Escola e Democracia Saviani
Escola e Democracia Saviani
Escola e Democracia Saviani
e, quando menos se falou em democracia, mais a escola esteve articulada com a construção de uma
ordem democrática".
Esta é uma das idéias que Dermeval Saviani, professor de Filosofia da Educação da PUC-SP,
desenvolve em seu trabalho sobre Abordagem Política do Funcionamento Interno da Escola de 1º
grau apresentado na I Conferência Brasileira de Educação realizada em abril de 1980 em São Paulo.
Além disso Dermeval faz uma série de críticas à Escola Nova.
Abordagem Política do Funcionamento que se articula com essa, é uma tese que eu cha
ESCOLA Interno da Escola de 1º grau. Parece-me à pri maria pedagógico-metodológica, e a enuncio as
meira vista, que poderíamos fazê-lo de duas sim: "do caráter científico do método tradicio
maneiras: abordarmos ou a questão da orga nal e do caráter pseudo-científico dos métodos
nização da escola de 1º grau, e aí então colo novos". Vejam, então, que eu estou me colo
DEMOCRACIA res, assim por diante, chegando em seguida ao uma terceira, que, portanto, opera como uma
professor e aos alunos. Neste caso, então, o en conclusão das duas primeiras. As duas primei
foque estaria nas atividades-meios, ou seja, na ras funcionam como premissas para extrair uma
organização. A outra forma de abordar se terceira tese conclusiva. Essa é uma tese especi
ria enfatizar as atividades-fins, e nesse senti ficamente política, de política educacional. Eu
do examinar mais propriamente como se de a enuncio da seguinte maneira: "de como, quan
senvolve o ensino, que finalidades ele busca do mais se falou em democracia no interior da
OU atingir, que procedimentos ele adota para atin escola, menos democrática foi a escola; e de co
mo, quando menos se falou em democracia,
A TEORIA DA gir suas finalidades, em que medida existe coe
rência entre finalidades e procedimentos. Bem, mais a escola esteve articulada com a constru
é melhor me preocupar com as atividades-fins ção de uma ordem democrática". Bem, essa
CURVATURA DA VARA e deixar à margem a questão da organização terceira tese eu derivo das duas primeiras. Em
seguida examinaremos as conseqüências disso
da escola de 19 grau. Enfatizarei justamen
te a problemática do ensino que se desenvolve na educação brasileira, e por último farei refe
no interior da escola de 1º grau, pensando que rência a um apêndice. Neste apêndice farei uma
Dermeval Saviani funções políticas esse ensino desempenha.
Já que a abordagem é política, vou logo me
pequena consideração sobre a "teoria da curva
tura da vara". Eu não sei se a teoria da curva
colocar no coração do político. Nesse senti tura da vara é conhecida. Ela foi enunciada por
do, farei uma exposição centrada em três Lênin ao ser criticado por assumir posições
teses. Enunciarei para vocês as três teses, que extremistas e radicais. Lênin responde o seguin
vou apenas comentar rapidamente; em segui te: "quando a vara esta torta, ela fica curva de
da, extrairei delas algumas conseqüências um lado e se você quiser endireitá-la, não bas
para a educação brasileira e complementa ta colocá-la na posição correta. É preciso cur
rei com um apêndice. Para retirar o suspense vá-la para o lado oposto". Com esse teoria da
sobre a forma da minha exposição, eu já ante curvatura da vara, completarei o meu artigo.
cipo quais são as teses e também qual é o A impossibilidade de desenvolver to
apêndice. Vejam bem, todas elas são teses po das as teses acima colocadas, faz com que eu
líticas; no entanto, a primeira, por ser mais apenas as enuncie para, em seguida, tirar algu
geral, eu a considero uma tese filosófico-his- mas conseqüências e, a partir delas provocar um
tórica. Poderíamos enunciá-la da seguinte ma debate, e mais do que isso, deixá-las para serem
neira: "do caráter revolucionário da pedago exploradas mais profundamente em outros arti
gia da essência e do caráter reacionário da gos. Entre parênteses, eu acrescentaria apenas
pedagogia da existência". Uma segunda tese, que essas teses derivam de uma reflexão relati- 23
vamente amadurecida, que venho desenvolven e a pedagogia que decorria dessa filosofia, por feudal e a gestação do modo de produção capi
do há algum tempo. Alguma coisa já tenho até sua vez, não implicava problemas políticos mui talista. Nós vamos ter, justamente aí, que a bur
exposto em alguns textos ou palestras. to sérios, na medida em que o homem, o ser guesia, classe em ascensão, vai se manifestar co
Quanto à primeira tese, "do caráter revo humano, era identificado com o homem livre; mo uma classe revolucionária, e, enquanto clas
lucionário da pedagogia da essência e do caráter o escravo não era ser humano, conseqüente se revolucionária, vai advogar a filosofia da es
reacionário da pedagogia da existência", o que mente a essência humana só era realizada nos sência como um suporte para a defesa da igual
eu quero dizer com isso é, basicamente, o se homens livres. Então, o problema do escravis dade dos homens como um todo e é justamente
guinte: nós estamos hoje, no âmbito da política mo, sobre o qual se assentava a produção da a partir daí que ela aciona as críticas à nobreza
educacional e no âmbito do interior da escola, sociedade grega, ficava descartado e nem era e ao clero. Em outros termos: a dominação da
na verdade nos digladiando com duas posições um problema do ponto de vista filosófico-pe- nobreza e do clero era uma dominação não-na-
antitéticas e que, via de regra, convencional dagógico. tural, não-essencial, mas, social e acidental, por
mente são traduzidas em termos do novo e do Durante a Idade Média, essa concepção tanto, histórica. Vejam que toda postura revolu
velho, da pedagogia nova e da pedagogia tradi essencialista recebe uma inovação, que diz res cionária é uma postura essencialmente histórica,
cional. Essa pedagogia tradicional é uma peda peito justamente à articulação da essência hu é uma postura que se coloca na direção do de
gogia que se funda numa concepção filosófica mana com a criação divina; portanto, ao serem senvolvimento da história. Ora, naquele mo
essencialista, ao passo que a pedagogia nova se criados os homens segundo uma essência pre mento, a burguesia se colocava justamente na
funda numa concepção filosófica que privilegia determinada, também já seus destinos eram direção do desenvolvimento da história e seus
a existência sobre a essência. O que isso signi definidos previamente; conseqüentemente, a di interesses coincidiam com os interesses do no
fica do ponto de vista histórico-filosófico? ferenciação da sociedade entre senhores e ser vo, com os interesses da transformação; e é nes
vos já estava marcada pela própria concepção se sentido que a filosofia da essência, que vai
O homem livre
que se fazia da essência humana. Então, a essên ter depois como conseqüência a pedagogia da
Se nós voltarmos à antigüidade grega, va cia humana justificava as diferenças. essência, vai fazer uma defesa intransigente da
mos verificar que, em verdade, a filosofia da Ora, coisa diversa vem a ocorrer na época igualdade essencial dos homens. Sobre essa base
24 essência não implicava maiores problemas lá, moderna, com a ruptura do modo de produção da igualdade dos homens, de todos os homens,
é que se funda então a liberdade, e é sobre, jus melhor, essencial dos homens, e se eles são li cia burguesa, é óbvio, mas o papel político da
tamente, a liberdade, que se vai postular a refor vres, então podem dispor de sua liberdade, e na escola estava aí muito claro. A escola era pro
ma da sociedade. Lembrem-se, de passagem, de relação com os homens, mediante contrato, fa posta como condição para a consolidação da
Rousseau. O que defendia Rousseau? Que tudo zer ou não concessões. É sobre essa base da so ordem democrática.
é bom enquanto sai do autor das coisas. Tudo ciedade contratual que as relações de produção
degenera quando passa às mãos dos homens. vão se alterar: o trabalhador servo, vinculado A mudança de interesses
Em outros termos, a natureza é justa, é boa, e à terra, para o trabalhador não mais vinculado
no âmbito natural a igualdade está preservada. à terra, mas livre para vender a sua força de tra Ocorre que a história vai evoluindo, e a
As desigualdades (vejam o "discurso sobre a ori balho, e ele a vende mediante contrato. Então, participação política das massas entra em con
gem da desigualdade entre os homens") são ge quem possui a propriedade é livre para aceitar tradição com os interesses da própria burguesia.
radas pela sociedade. Ora, esse raciocínio não é ou não a oferta de mão-de-obra, e vice-versa, Na medida em que a burguesia, de classe em
outra coisa senão colocar diante da nobreza e quem possui a força de trabalho é livre de ven ascensão, portanto de classe revolucionária, se
do clero a idéia de que as diferenças, os privilé dê-la ou não, de vendê-la a este ou aquele, de transforma em classe consolidada no poder, aí
gios de que eles usufruíam não eram naturais e vender, então, a quem quiser. Esse é o funda os interesses dela não caminham mais em dire
muito menos divinos, mas eram sociais. E en mento jurídico da sociedade burguesa. Funda ção à transformação da sociedade; ao contrá
quanto diferenças sociais, configuravam injusti mento, como veremos, formalista, de uma igual rio, os interesses dela coincidem com a perpe
ça; enquanto injustiça, não poderiam continuar dade formal. No entanto, é sobre essa base de tuação da sociedade. É nesse sentido que ela
existindo. Logo, aquela sociedade fundada em se igualdade que vai se estruturar a pedagogia da já não está mais na linha do desenvolvimento
nhores e servos não poderia persistir. Ela teria essência e, assim que a burguesia se torna a clas histórico, mas está contra a história. A história
que ser substituída por uma sociedade igualitá se dominante, ela vai, em meados do século pas é contra os interesses da burguesia. Então, para
ria. É nesse sentido, então, que a burguesia vai sado, estruturar os sistemas nacionais de ensino a burguesia se defender desses interesses, ela
reformar a sociedade, substituindo uma socie e vai advogar a escolarização para todos. Escola não tem outra saída senão negar a história, pas
dade com base num suposto direito natural por rizar todos os homens era condição de conver sando a reagir contra o movimento da his
uma sociedade contratual. ter os servos em cidadãos, era condição de que tória. É nesse momento que a escola tradicio
Vejam então como é que se tece todo o esses cidadãos participassem do processo polí nal, a pedagogia da essência já não vai servir e
raciocínio. Os homens são essencialmente livres; tico, e, participando do processo político, eles a burguesia vai propor a pedagogia da existên
essa liberdade se funda na igualdade natural, ou consolidariam a ordem democrática, democra cia. Ora, vejam vocês: o que é a pedagogia da 25
existência, senão diferentemente da pedagogia da gogia da existência contra a pedagogia da essên dievais. Daí a razão do método novo proclamar-
essência, que é uma pedagogia que se fundava cia, pintando essa última como algo tipicamen se científico, proclamar-se um instrumento de
no igualitarismo, uma pedagogia da legitimação te medieval. Nesse sentido, ela deixa de assumir introdução da ciência na atividade educativa e,
das desigualdades? Com base neste tipo de pe a pedagogia da essência como uma construção em conseqüência, colocar a educação à altura
dagogia, considera-se que os homens não dela própria. Veremos agora, em relação ao mé do século, à altura da época. No entanto, esse
são essencialmente iguais; os homens são essen todo, como essa questão se coloca de modo ensino dito tradicional se estruturou através de
cialmente diferentes, e nós temos que respeitar também bastante claro. Eu vou especificar um um método pedagógico, que é o método expo-
as diferenças entre os homens. Então, há aque pouco mais a questão do método, porque diz sitivo, que todos conhecem, todos passaram por
les que têm mais capacidade e aqueles que têm respeito justamente ao modo como a gente ele, e muitos estão passando ainda, cuja matriz
menos capacidade; há aqueles que aprendem trabalha no interior da própria escola, no in teórica pode ser identificada nos cinco passos
mais devagar; há aqueles que se interessam por terior da sala de aula. E aqui nós poderíamos formais de Herbart. Esses passos, que são o pas
isso e os que se interessam por aquilo. nos lembrar, já diretamente, do movimento so da preparação, o passo da apresentação, da
Eis, em síntese, o que eu quis dizer com a da Escola Nova, que pintou justamente o mé comparação e assimilação, da generalização e,
minha primeira tese, tese filosófica-histórica, todo tradicional como um método pré-cientí- por último, da aplicação, correspondem ao es
"do caráter revolucionário da pedagogia da es fico, como um método dogmático e como um quema do método científico indutivo, tal como
sência, e do caráter reacionário da pedagogia método medieval. Basta nós nos lembrarmos, fora formulado por Bacon, método que pode
da existência". Com efeito, a pedagogia da exis por exemplo, de Kilpatrick, Educação para uma mos esquematizar em três momentos funda
tência vai ter esse caráter reacionário, isto é, civilização em mudança, onde ele vai justamen mentais: a observação, a generalização e a con
vai contrapor-se ao movimento de libertação da te caracterizar a civilização que foi-se construin firmação. Trata-se, portanto, daquele mesmo
humanidade em seu conjunto, vai legitimar as do com base no surgimento da ciência moderna método formulado no interior do movimento
desigualdades, legitimar a dominação, legitimar a partir do Renascimento como sendo a civili filosófico do empirismo, que foi a base do de
a sujeição, legitimar os privilégios. Nesse con zação em mudança. Nesse sentido, os métodos senvolvimento da ciência moderna. Eu acho
texto a pedagogia da essência não deixa de ter tradicionais são remetidos para a Idade Média, que esse ponto precisa ser explicitado um pou
um papel revolucionário, pois, ao defender a e, portanto, para um caráter pré-científico, e co melhor.
igualdade essencial entre os homens continua mesmo anticientífico, ou seja, dogmático. Ora, No ensino herbartiano, o passo da prepa
sendo uma bandeira que caminha na direção no entanto, essa crença que a Escola Nova pro ração significa basicamente a recordação da lição
da eliminação daqueles privilégios que impe paga é uma crença totalmente falsa. Com efeito, anterior, logo, do já conhecido; através do pas
dem a realização de parcela considerável dos o chamado ensino tradicional não é pré-cientí so da apresentação, é colocado diante do aluno
homens. Entretanto, neste momento, não é a fico e muito menos medieval. Esse ensino tra um novo conhecimento que lhe cabe assimilar;
burguesia que assume o papel revolucionário, dicional que ainda predomina hoje nas escolas a assimilação, portanto o terceiro passo, ocorre
como assumira no início dos tempos modernos. se constituiu após a revolução industrial e se por comparação, daí por que eu o denominei
Nesse momento, a classe revolucionária é outra: implantou nos chamados sistemas nacionais de assimilação-comparação — a assimilação ocorre
não é mais a burguesia, é exatamente aquela ensino, configurando amplas redes oficiais, por comparação do novo com o velho; o novo
classe que a burguesia explora. criadas a partir de meados do século passado, é assimilado, pois, a partir do velho. Esses três
no momento em que, consolidado o poder bur passos correspondem, no método científico in
A falsa crença da Escola Nova guês, aciona-se a escola redentora da humani dutivo, ao momento da observação. Trata-se
dade, universal, gratuita e obrigatória como de identificar e destacar o diferente entre os
A segunda tese eu enunciei da seguinte um instrumento de consolidação da ordem de elementos já conhecidos. O passo seguinte, o
forma: "do caráter científico do método tra mocrática. da generalização, significa que, se o aluno já
dicional, e do caráter pseudocientífico dos mé O que estou querendo enfatizar com isto assimilou o novo conhecimento, ele é capaz de
todos novos". Vejam que no fundo as minhas é que justamente esse método tradicional foi identificar todos os fenômenos corresponden
teses estão indo contra a tendência corrente, constituído após a revolução industrial, contra tes ao conhecimento adquirido. Ora, no méto
contra a tendência dominante. E por que isso? riamente, portanto, ao argumenta que os esco do indutivo, o momento da generalização não
Porque, vejam bem, tanto na primeira tese, co lanovistas comumente levantam de que a revo é outra coisa senão á subfunção, sob uma lei
mo veremos agora na segunda, o que em verda lução industrial transformou a sociedade, de extraída dos elementos observados, pertencen
de a burguesia faz, ao defender a posição que terminou uma sociedade não mais estática, em tes a determinada classe de fenômenos, de to
corresponde aos seus interesses, é contrapô-la mudança contínua, que essa revolução indus dos os elementos (observados ou não), que in
ao momento anterior. Assim, no caso da peda trial, que tem seu fundamento na ciência, não tegram a mesma classe de fenômenos. O passo
gogia da existência e da essência, a burguesia teve sua contrapartida na educação, que conti da aplicação, que é o quinto passo do método
26 constrói os argumentos que defendem a peda nuou sendo pré-científica, seguindo lemas me herbartiano, coincide, via de regra, com as
"lições para casa". Fazendo os exercícios, o
aluno vai demonstrar se ele aprendeu, se assi
milou ou não o conhecimento. Trata-se de ve
rificar através de exemplos novos, não mani
pulados ainda pelo aluno, se ele efetivamente
assimilou o que foi ensinado. Corresponde,
pois, ao momento da confirmação, no caso do
método científico, uma vez que, se o aluno apli
cou corretamente os conhecimentos adquiridos,
se ele acertou os exercícios, a assimilação está
confirmada. Pode-se afirmar que ao ensino cor
respondeu uma aprendizagem. Por isso, a pre
paração da lição seguinte começa com a recapi
tulação da anterior, o que é feito normalmente
mediante a correção da lição de casa. Eis, pois,
a estrutura do método tradicional; na lição se
guinte começa-se corrigindo os exercícios, por
que essa correção é o passo da preparação. Se
os alunos fizeram corretamente os exercícios,
eles assimilaram o conhecimento anterior, en
tão eu posso passar para o novo. Se eles não fi
zeram corretamente, então eu preciso dar novos
exercícios, é preciso que a aprendizagem se pro
longue um pouco mais, que o ensino atente pa
ra as razões dessa demora, de tal modo que, fi
nalmente, aquele conhecimento anterior seja
de fato assimilado, o que será a condição para
se passar para um novo conhecimento.
Cabe aqui perguntar: por que o movi
mento da Escola Nova tendeu a classificar co
mo pré-científico, e até mesmo como anti-cien
tífico, dogmático, o método aqui citado? Acre
dito que demonstrei a sua cientificidade. Mas
vamos tentar agora responder a essa pergunta.
A Escola Nova deve ter suas razões.
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era a bandeira de luta, agora a Escola Nova vem gundo a perspectiva das camadas dominantes, rebaixamento do nível de ensino destinado às
transferir a preocupação dos objetivos e dos quer dizer, não escolhiam os melhores; a bur camadas populares. É nesse sentido que a he
conteúdos para os métodos e da quantidade guesia acreditava que o povo instruído iria esco gemonia pôde ser recomposta. Sobre isso, ha
para a qualidade. Ora, vocês não sabem o que lher os melhores governantes. Mas o povo ins veria coisas interessantíssimas para a gente
existe de significado político por detrás dessa truído não estava escolhendo os melhores. Ob discutir, em relação ao que está ocorrendo no
metamorfose! Em verdade, o significado polí serve-se que não escolhiam os melhores do pon Brasil, hoje; a contradição da política educa
tico, basicamente, é o seguinte: é que quando to de vista dominante. Ocorre que os melhores cional atual, em que a proposta de base, refe
a burguesia acenava com a escola para todos (é do ponto de vista dominante, não eram os me rente ao ensino fundamental, é, em meu modo
por isso que era instrumento de hegemonia), lhores do ponto de vista dominado. Na verdade, de ver, populista, e a proposta de cúpula, em
ela estava num período capaz de expressar o povo escolhia os menos piores, porque é cla relação à pós-graduação, é elitista.
os seus interesses abarcando também os in ro que os melhores eles não podiam escolher Em suma, o momento de 30, no Brasil,
teresses das demais classes. Nesse sentido, uma vez que o esquema partidário não permi através da ascensão do escolanovismo, corres
advogar escola para todos correspondia ao inte tia que seus representantes autênticos se candi pondeu a um refluxo e até a um desaparecimen
resse da burguesia, porque era importante uma datassem. Então ele tinha que escolher, entre to daqueles movimentos populares que advoga
ordem democrática consolidada e correspon as facções em luta no próprio campo burguês, vam uma escola mais adequada aos seus interes
dia também ao interesse do operariado, do pro as opções menos piores; só que as menos piores, ses. E por que isso? A partir de 30, ser progres
letariado, porque para eles era importante par do ponto de vista dos interesses dos domina sista passou a significar ser escolanovista. E
ticipar do processo político, participar das de dos, eram as piores do ponto de vista dominan aqueles movimentos sociais, de origem, por
cisões. Ocorre que, na medida em que eles co te. "Ora, então essa escola não está funcionan exemplo, anarquista, socialista, marxista,
meçam a participar, as contradições de interes do bem", foi o raciocínio das elites, das camadas
ses que estavam submersas sob aquele objetivo dominantes; e se essa escola não está funcio
comum vêm à tona e fazem submergir o co nando bem, é preciso reformar a escola. Não
mum; o que sobressai, agora, é a contradição de basta a quantidade, não adianta dar escola para
interesses, ou seja, o proletariado, o operariado, todo mundo desse jeito. E surgiu a Escola Nova, I SAVIANI, Dermeval. A filosofia da educação e o
as camadas dominadas, na medida em que par que tornou possível, ao mesmo tempo, o apri problema da inovação em educação. In: Garcia,
ticipavam das eleições, não votavam bem, se moramento do ensino destinado às elites e o W. E. org. Inovação educacional no Brasil.
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que conclamavam o povo a se organizar e reivin aptidão, e se encaminha para o mercado de tra tes dominam é condição de libertação.
dicar a criação de escolas para os trabalhado balho. Ora, vejam vocês como está aqui de Nesse sentido, eu posso ser profundamen
res, perderam a vez, e todos os progressistas modo bem caracterizado aquilo que eu chamo te político na minha ação pedagógica, mesmo
em educação tenderam a endossar o credo esco o aligeiramento do ensino destinado às cama sem falar diretamente de política, porque, mes
lanovista. Bem, eu poderia me estender, puxar das populares. Dessa maneira, o ensino das ca mo veiculando a própria cultura burguesa, e
o fio da história, de 30 até agora, mas vamos madas populares pode ser aligeirado até o nada, instrumentalizando os elementos das camadas
fazer um corte, e vou tomar a reforma de 1971 até se desfazer em mera formalidade. populares no sentido da assimilação desses con
como uma outra indicação prática dessa tese Outro ponto apenas, e eu já passo para a teúdos, aí eles ganham um instrumento para
que enunciei. teoria da curvatura da vara, porque acho que es fazer valer os seus interesses, e é nesse sentido,
O que fez a Lei nº 5.692? Tomemos, por tão todos curiosos em relação a ela. Então, uma então, que politicamente se fortalecem. Não
exemplo, o princípio de flexibilidade, que é a observação só, sobre a reformulação curricular. adianta nada eu ficar sempre repetindo o refrão
chave da lei, que é a grande descoberta dessa Uma outra "descoberta" da Lei nº 5.692 foi a de que a sociedade é dividida em duas classes
lei, a sua grande inovação. Ela é tão flexível reformulação curricular através de atividades, fundamentais, burguesia e proletariado, que a
que pode até não ser implantada. E mais ainda: áreas de estudos e disciplinas, determinando burguesia explora o proletariado e que quem é
é tão flexível que pode até ser revogada sem que o ensino, nas primeiras oito séries, se desen proletário está sendo explorado, que a burgue
ser revogada; e eu não estou inventando, não. volvesse predominantemente sob a forma de sia está explorando, se o que está sendo explo
Peguem o Parecer nº 45/72, da profissionaliza atividades e áreas de estudo. Ora, essas ativi rado não assimila os instrumentos através dos
ção, em confronto com o Parecer nº 76/75, dades e áreas de estudos são outra maneira de quais ele possa se organizar para se libertar des
também da profissionalização. O primeiro pa diluir o conteúdo da aprendizagem das cama sa exploração. Associada a essa prioridade de
recer regulamentou o artigo 5º da lei; o segun das populares; e todos sabem que isso efetiva conteúdo, que eu já antecipei, me parece fun
do revogou o primeiro e, com ele, revogou tam mente ocorreu e vem ocorrendo. damental que se esteja atento para a importân
bém o artigo 5º da lei; só que, mediante o prin Vou dispensar outras ilustrações vincu cia da disciplina, quer dizer, sem disciplina
cípio da flexibilidade, ele não revogou, ele re- ladas à Lei nº 5.692; apenas eu gostaria de esses conteúdos relevantes não são assimilados.
interpretou. Reinterpretou, e o artigo 5º per enfatizar isso: que contra essa tendência de Então, eu acho que nós conseguiríamos fazer
manece nela. aligeiramento do ensino destinado às cama uma profunda reforma na escola, a partir de
Através dessa flexibilidade, se instituiu, das populares nós precisaríamos defender seu interior, se passássemos a atuar segundo
por exemplo, aquela diferenciação entre termi- o aprimoramento exatamente do ensino esses pressupostos e mantivéssemos uma preo
nalidade real e terminalidade legal ou ideal. Ora, destinado às camadas populares. Essa defesa im cupação constante com o conteúdo e desenvol
o que é a terminalidade real senão admitir que plica na prioridade de conteúdo. Os conteúdos vêssemos aquelas fórmulas disciplinares, aque
quem tem pouco continua tendo menos ainda? são fundamentais e, sem conteúdos relevantes, les procedimentos que garantissem que esses
Às vezes eu digo, brincando, que nesse sentido conteúdos significativos, a aprendizagem deixa conteúdos fossem realmente assimilados. Por
o capitalismo é bem evangélico. Ele aplica ao pé de existir, ela se transforma num arremedo, ela exemplo, o problema dos elementos das cama
da letra a máxima evangélica enunciada na pará se transforma numa farsa. Parece-me, pois, fun das populares nas salas de aula implica redobra
bola dos talentos: "ao que tem se lhe dará; e ao damental que se entenda isso e que, no interior dos esforços por parte dos responsáveis pelo en
que não tem, até o pouco que tem lhe será tira da escola, nós atuemos segundo essa máxima: a sino, por parte dos professores, mais diretamen
do". Em relação a essa diferenciação entre ter prioridade de conteúdos, que é a única forma te. O que ocorre, via de regra, é que, dadas as
minalidade ideal e terminalidade real, se diz co- de lutar contra a farsa do ensino. Por que esses condições de trabalho, e dado o próprio modelo
mumente o seguinte: todo o conteúdo de apren conteúdos são prioritários? Justamente porque que impregna a atividade de ensino e traz, en
dizagem do 1º grau será dado em oito anos; eis o o domínio da cultura constitui instrumento in tão, exigências e expectativas para professores
legal, ou seja, o ideal. Mas, naqueles lugares em dispensável para a participação política das e alunos, tudo isso faz com que o próprio pro
que não há condições de se ter escola de oito massas. Se os membros das camadas populares fessor tenda a cuidar mais daqueles que têm
anos, então que se organize esse conteúdo para não dominam os conteúdos culturais, eles não mais facilidade, deixando à margem aqueles que
seis anos, em outros para quatro ou para dois, e podem fazer valer os seus interesses, porque têm mais dificuldade. E é assim que nós acaba
assim por diante; e, numa mesma região, a escola ficam desarmados contra os dominadores, que mos, como professores, no interior da sala de
que não tem condição de dar oito, que dê se servem exatamente desses conteúdos cultu aula, reforçando a discriminação e sendo poli
6, e assim por diante; e, numa mesma classe, rais para legitimar e consolidar a sua domina ticamente reacionários.
para aqueles alunos que não têm condições ção. Eu costumo, às vezes, enunciar isso da se Quanto ao apêndice, relativo à "teoria
de chegar lá no oitavo, você dá uma forma guinte forma: o dominado não se liberta se ele da curvatura da vara", eu faço apenas um co
ção geral em quatro anos, que é quase só o que não vier a dominar aquilo que os dominantes mentário rápido e encerro. Na verdade, introdu
32 eles vão ter mesmo; em seguida, sondagem de dominam. Então, dominar o que os dominan zi esse apêndice simplesmente pelo seguinte:
a ênfase que dei, invertendo a tendência corren
te, decorre da consideração de que, na tendên
cia corrente, a vara está torta; está torta para o
lado da pedagogia da existência, para o lado dos
movimentos da Escola Nova e assim por diante.
E é nesse sentido que o raciocínio habitual ten
de a ser o seguinte: as pedagogias novas são por
tadoras de todas as virtudes, enquanto que a pe
dagogia tradicional é portadora de todos os de
feitos e de nenhuma virtude. O que se evidencia
através de minhas teses é justamente o inverso.
Creio ter conseguido fazer curvar a vara para o
outro lado. A minha expectativa é justamente
que com essa inflexão a vara atinja o seu pon
to correto, vejam bem, ponto correto esse que
não está também na pedagogia tradicional, mas
está justamente na valorização dos conteúdos
que apontam para uma pedagogia revolucioná
ria; pedagogia revolucionária esta que identifi
ca as propostas burguesas como elementos de
recomposição de mecanismos hegemônicos e se
dispõe a lutar concretamente contra a recom
posição desses mecanismos de hegemonia, no
sentido de abrir espaço para as forças emergen
tes da sociedade, para as forças populares, para
que a escola se insira no processo mais amplo
de construção de uma nova sociedade.
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