LPH - Revista de História - V.2

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO - UFOP

Reitor
Cristovam Paes de Oliveira
Vice-Reitor
Carlos Roberto Caetano Chaves
Diretora do Instituto de Ciências Humanas e Sociais- ICHS
Solange Ribeiro de Oliveira
Vice-Diretor do ICHS
João Pinto Furtado
Chefe do Departamento de História - DEHIS
Carlos Fico
Coordenador do Laboratório de Pesquisa Histórica - LPH
Jose Guilherme Ribeiro
Coordenadoria do LPH
Jose Arnaldo de Aguiar Lima, Jose Guilherme Ribeiro e João Pinto Furtado

EXPEDIENTE

LPH - Revista de História e publicada anualmente sob a responsabilidade do LPH- DEHIS / UFOP. Cor-
respondência, pedidos de aquisição e contribuições devem ser encaminhados para Rua do Seminário, s/n
35420 - Mariana, MG. Tel.: (031) 557.1322 - Ramal 20.

LPH - Revista de História apresenta, neste número, seu novo Conselho Editorial. Seus membros, contudo, não
opinaram sobre os trabalhos que integram estes Anais.

CONSELHO EDITORIAL

Carlos Fico/UFOP
Carlos Guilherme Mota/USP
Ciro Flamarion Cardoso/UFF
João Pinto Furtado/'UFOP
Jose Antonio Dabdab Trabulsi/UFMG
Jose Arnaldo Coelho de Aguiar Lima/UFOP
Jose Guilherme Ribeiro/UFOP

Capa: Elias Layon


Produção gráfica: Imprensa Universitária da UFOP

Pede-se Permuta We Demand Exchange On Demande Echange

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


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LPH

REVISTA DE HISTÓRIA

SUMÁRIO

CONFERÊNCIAS

Fim do Milênio ou Fim da História?


Prof. Jacob Gorender ........................................ .. ..... 05

O Mundo Luso-Brasileiro Revisitado:


em Busca de uma Memória Comum
Prof. Carlos Guilherme Mota. ................. „.„ ............17

CURSO

A Crise do Movimento Operário e as


"Novas" Manifestações Sociais
Prof. Carlos Fico ..................................... .... ............ 31

SEMINÁRIOS
O Livro Didático em História

O Ensino da História do Brasil


Prof. Rubim Santos Leão de Aquino ........................ 36

A Noção de Tempo e o Ensino de História

A Noção de Tempo e o Ensino de História


Profa. Raquel Glezer................................................. 38

Experiências alternativas no ensino de História

Relato e Análise de uma Experiência


Profa. Conceição Gabrini ......................................... .42

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Experiências Alternativas no Ensino de História


Profa. Helenice Ciampi.......................................... ...46
MESAS-REDONDAS
Pesquisa Histórica: as Fontes Não-Convencionais
Algumas Notas sobre a Historicidade do Registro Fotográfico
Prof. Maurício Lissovsky ..........................................55

A crise das Ideologias na América Latina

Socialismo, Guerra Fria e a América Latina


Prof. Marco Antonio Villa. ....................................... 62

Movimentos Sociais e Crise das Ideologias no Brasil


Prof. João Pinto Furtado .......................................... 68

Peronismo Hoje: entre o Populismo e o Neoconservadorismo


Prof. Jose Luis Bendicho Beired ..............................74

A Pesquisa Histórica fora das Instituições Oficiais

A Pesquisa fora das Instituições Oficiais


Maria do Carmo Andrade Gomes ............................. 78

A Pesquisa Histórica fora das Instituições Oficiais


Eduardo Franca Paiva .............................................. 80

A Pesquisa Histórica fora das Instituições Oficiais


Edilane Almeida Cameiro ......................................... 83

Repensando a Licenciatura em História

Repensando a Licenciatura em História


Profa. Maria Inez Salgado de Souza.......................86

Memória e Patrimônio Histórico

Memória e Patrimônio Histórico


Prof. Jose Arnaldo C. A. Lima................................89

Memória e Patrimônio Cultural


Ricardo Samuel de Lana. .......................................... 91

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Memória e Patrimônio Histórico


Helena Alvim Ameno ................................................ 92

Memória e Patrimônio Histórico


Lidia Avelar Estanislau............................................. 94
A Crise das Ideologias Contemporâneas
A Crise das Ideologias Contemporâneas
Prof. Ângelo A. Carrara...........................................99

EXPERIÊNCIA DE PESQUISA:

COMUNICAÇÕES
Sessão do dia 25/09
Demografia da Escravidão Norte-Mineira no Século XIX
Tarcisio Rodrigues Botelho ..................................... 103

O Aluno Trabalhador: das Possibilidades de um Cotidiano


Político a uma Política para o Cotidiano
Elizabeth da Fonseca Guimarães ........... .................. 112

Constança do Serro Frio - Escravos Libertos


nas Minas Gerais do Século XIX
Yonne de Souza Grossi ............................................ 118

Tropas e Tropeiros no Abastecimento da


Região Mineradora no Período de 1693 a 1750
Claudia Maria das Graças Chaves
Vera Lucia Dutra Vieira ........................................... 129

Sessão do dia 26/ 9

Liberais e Conservadores na Província de Minas Gerais:


Identidade Política e Representação de Interesses,
Ricardo Arreguy Maia .............................................l34

Da História ao Mito: Dimensão simbólica


da Política Republicana no Brasil
Luiz Vitor Tavares de Azevedo................................138

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O Naufrágio do Marialva: ainda um Inédito


de Tomas Antonio Gonzaga
Ronald Polito............................................................147

Uma República de Leitores: as Cartas Chilenas


e a História da Leitura (ensaio de Intenções)
Joaci Pereira Furtado .................................................154

Discurso do PSD Mineiro na Constituinte Estadual (1947)


e Primeira Assembléia Legislativa Estadual do Estado de Minas Gerais (1957-1951)
Corina Maria Rodrigues Pereira
Tereza Cristina de Oliveira Miranda...................................................................164

O Discurso Juscelinista na Prefeitura de Belo Horizonte


Marilene Correa Maia ............................................. 170

Vocabulário de História Medieval


Celso Taveira ............................................................ 173

Sessão do dia 27/09

Os Monumentos Públicos: Poder, Memória e Sociedade


Carlos Aurélio Pimenta de Faria .............................. 179

A Comarca do Rio das Velhas:


Rastreamento de Fontes
Beatriz Ricardina de Magalhães .............................. 182

Os Estudos de D. Maria Carolina e a Mudança da Capital


Ângela Cristina Sampaio...........................................193

Arte Rupestre do Centro Mineiro:


A Região Arqueológica de Lagoa Santa
Alenice Motta Baeta.................................................196

FPTN - um Arquivo Particular que se Abre para a História


Ângela Cristina Sampaio..........................................208

A Pré-História do Estado de Minas Gerais


Andre Prous................................................................211

Escravos e Abolicionismo na Imprensa Mineira (1850/1888)


Liana Maria Reis.......................................................222

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CONFERÊNCIA

FIM DO MILÊNIO OU FIM DA HISTÓRIA

Jacob Gorender Historiador - ANPUH

Agradeço as generosas referências do Professor Carlos Fico e também o convite dos


organizadores deste Encontro Regional da ANPUH, a qual eu pertenço. Antes de iniciar o tema da
minha palestra, permito-me fazer um pedido: e que, durante o nosso trabalho nesta sala, os que estão
habituados a fumar façam um esforço para se absterem.
E, com isso, entro no tema que convencionamos para essa abertura: "Fim do Milênio ou Fim da
História?", correlato ao tema geral do Encontro a respeito da "Crise das Ideologias".
O milênio, como vocês sabem, e uma mera data. O fato de que. Estejamos em 1990 ou no ano
2000, por si mesmo, não indica nenhuma diferença, nenhum fato importante? Os historiadores são também
profissionais de datas, eles têm a obrigação de dar precisão às datas em que ocorrem certos eventos ou
processos sociais. E claro que, já hoje, a Historiografia não tem a obsessão das datas, mas elas
permanecem como uma questão referencial no nosso trabalho. Não esquecemos a advertência de Marc
Bloch, o grande historiador francês, de que data não deve ser uma obsessão. A precisão de uma data na
questão de um processo social e, dentro de certa faixa temporal, secundaria. Não faz muita diferença se
ter a data de 20, 30 ou 40 anos, antes ou depois, em processos como, por exemplo, o desaparecimento
da escravidão antiga ou o nascimento do capitalismo e assim por diante. Em todo o caso, não
deixamos de ter cuidado com a questão das datas.
Mas, afora a precisão, o milênio encerra um simbolismo no nosso mundo cristão, e aqui não
devemos generalizar: o mundo cristão não e todo o mundo. Hoje, nos estamos vendo como o mundo
muçulmano está desperto e como também os vários mundos Africanos e asiáticos se fazem notar na
nossa história contemporânea. Mas, no mundo cristão, o milênio já despertava movimentos e
sublevava as crenças, quando na proximidade de se completar o primeiro milênio. Surgiram as crenças a
respeito do Juízo Final, da vinda do Messias, de um milênio de ressurreição, de justiça, de
recompensas para os pobres, de paz na Terra. E depois surgiriam as crenças quiliastas, quer dizer, de mil
anos de felicidade. Isso ate se inverteu, num tempo não muito distante, com relação a uma doutrina
tão malfadada como o nazismo, que prometia uma nova ordem por mil anos. Quer dizer, esse número mil
como sinônimo de uma ordem social boa ou ma e algo que. Está enraizado, digamos, naquilo que se
poderia chamar de patrimônio mental do nosso mundo cristão. Agora, estamos nos aproximando do fim
do segundo milênio, do fim do século XX, e talvez

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a isso se possa associar (eu digo talvez, porque isto exigiria reflexões maiores) o prestígio da magia,
do ocultismo, da astrologia. Aqui no Brasil, livros sobre estes temas estão invadindo as livrarias e são
enormes best- sellers, que enriquecem seus autores. De qualquer maneira, nos estamos numa era de
fundamentalismos religiosos. Varias Religiões, hoje, apresentam-se com grande forca e invadem
também o mundo cristão. Religiões que vem do Oriente e, muito especialmente, o fundamentalismo
muçulmano, belicoso, militante, o qual, através de adeptos seus que vem trabalhar nos países
ocidentais, se faz presente de muitas maneiras. Uma delas, a da ameaça que ficou pesando sobre um
escritor que, com uma obra puramente literária, teria feito ofensas mortais, ofensas intoleráveis ao
Profeta do Islamismo e ate hoje vive escondido, sob ameaça de assassinato.
Creio que todo esse clima não está exatamente associado ao fim do milênio, senão de
maneira subconsciente, mas está associado ao mundo crítico em que vivemos. Crítico do ponto de
vista dos fenômenos sociais objetivos, de mudanças muito rápidas que estão ocorrendo e também do
ponto de vista das ideologias e dai a muito oportuna escolha do tema deste Encontro, "A Crise das
Ideologias". É interessante aqui assinalar a repercussão alcançada pelo artigo de um politólogo, um
cientista político americano, funcionário do Departamento de Estado, artigo publicado na revista do
Departamento e que falava do fim da História. O autor e Francis Fukuyama e o fim da História, no
caso ao qual ele aludia, era o fim da experiência socialista. Quer dizer, uma vez demonstrada a
inviabilidade do socialismo e a morte do marxismo como doutrina, que não podia oferecer um projeto
válido para a construção social da Humanidade, então ficava também provado que a doutrina que
subsistia e que conformava a organização possível e viável da sociedade de uma vez para sempre seria
a doutrina do neoliberalismo, da democracia liberal capitalista, ou seja, a vitória do neoliberalismo
como princípio formal da existência social mais elevada, das sociedades capitalistas mais adiantadas,
estaria finalmente provada e, com isso, a História chegava ao seu fim. História só haveria para os
povos atrasados, do Terceiro ou do Quarto Mundos, que precisariam então fazer um esforço para
chegar ao Primeiro Mundo capitalista e neoliberal. Uma vez chegando acabou-se a História: daí
para a frente, continuamos neoliberais ate o fim dos tempos.
Essa tese foi muito comentada, mas eu devo dizer que pouca gente acredita no fim da
História. É só observar o clima de tremendo suspense que se criou no Golfo Pérsico, envolvendo
exatamente as sociedades neoliberais do Primeiro Mundo, a começar pelos Estados Unidos, para
perceber que ainda temos muita História pela frente. Mas, de qualquer maneira, nos estamos num
momento de crise das sociedades variadas que cobrem as terras de nosso planeta e uma expressão
dessa crise social e a crise das ideologias.
Não adianta o Presidente George Bush - num discurso em que propunha a América Latina, a
todas as Américas, um piano de integração econômica com os Estados Unidos - apresentar a vitória de
Adam Smith sobre Karl Marx, tese que vem sendo também explorada por jornais econômicos como
The Economist ou o Financial Times, publicações de prestígio no mundo ocidental, ou seja, finalmente
provou-se que o liberalismo de Adam Smith e eficiente, ele permite economias prósperas, que criam
abundância, e essa abundância se espalha por todos os membros da sociedade, enquanto o marxismo,
com a sua teoria do planejamento social, do planejamento da economia, da atuação contraria ao
espontaneísmo do mercado, formaria economias que andam devagar, que não assimilam o progresso
técnico, que, ao invés da abundância, criam carências, criam a escassez. Ora, na verdade, isso ainda
está por ser provado. Estamos em presença de acontecimentos inéditos, sem dúvida alguma, mas que
ainda não é a última prova.
Com esse intróito, quero aqui entrar no nosso tema propriamente. Nos anos 70, já com o
crescimento dessa vaga neoliberal, no Primeiro Mundo, e se espalhando pelo Terceiro Mundo, falou-se
no fim das ideologias, mais ate do que nas crises. Estaríamos entrando numa época em que a ideologia

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não teria mais o que fazer. Nem necessitaríamos mais de visões totalizantes, de projetos do futuro,
com uma perspectiva de construção total da sociedade. Isso porque entravamos numa era
essencialmente pragmática, em que se vivia o presente e não se necessitava quebrar a cabeça,
torturar-se, para lutar pelo futuro ou delinear uma visão do futuro. Tudo isso se corporificou em algo
que veio a se chamar de "pós-modernismo". O pós-modernismo concebe que a economia como fator
de propulsão social e a política também como fator de organização social são hoje fatores, senão
nulos, ao menos secundários, não têm mais aquela força que justamente a época moderna lhes
atribuiu. A época que se inaugura com Descartes, uma época essencialmente racional, em que os
princípios da razão nortearam às várias correntes do pensamento, desde o pensamento pré-
revolucionário burguês, o pensamento iluminista, o pensamento liberal, como também o
pensamento revolucionário marxista. Segundo o pós-modernismo, viveríamos numa época
eminentemente hedonística e sensorial, a época do corpo, a época da supremacia somática, que os pós-
modernistas dizem ser hiper-racionalista, mas na verdade e irracionalista. Seria uma época em que nós
nos preocupamos com o presente, os aqui e agora, pontuais por excelência, com uma visão
pulverizadora. Não há necessidade de uma visão total, basta viver aquela sensação tópica, exclusiva
do momento que passa. Nessa sociedade, criam-se supostamente novas formas de socialidade, que não
são nem imorais, nem morais, são amorais. Seria a época também do fim da luta de classes, porque
caracterizada pela abundancia. As classes sociais se entendem e cooperam. Na realidade, o que eram
as classes sociais desaparece, porque não ha diferenças entre trabalhadores, engenheiros,
administradores, todos enfim são funcionários exercendo tarefas numa maquina altamente produtiva,
que beneficia todos. Os templos desse novo acontecer social são o supermercado, os shoppings. É a
era do consumismo que, no chamado Primeiro Mundo, já esta em vigência e o Terceiro Mundo só
deve tender para chegar ate lá.
Na verdade, não é preciso muita perspicácia, no meu entendimento, para perceber que o fim
das ideologias e também uma ideologia. Falar em fim das ideologias e uma ideologia e eu diria que
e a ideologia da segunda Belle fipoque do capitalismo. A primeira Belle Époque foi aquela que vai
dos finais do século XK, dos anos 80 do século XIX exatamente, ate a Primeira Guerra Mundial.
Quer dizer, a Bele Époque, a primeira, termina numa tremenda catástrofe, a Primeira Guerra Mundial.
Mas, como diz uma canção, me parece de Vinicius de Morais, "foi bom enquanto durou"... Foi àquela
época que Proust tetratou no seu famoso ciclo de romances, "Em Busca do Tempo Perdido". Quer
dizer, a época em que a "sociedade" se divertia ("sociedade" aqui entendida como "alta sociedade").
Divertia-se descuidadamente, sem preocupações com o futuro, porque parecia viver algo eteno, a festa
eterna. Época em que os conflitos sociais pareciam resolver-se em passeatas, em manifestações
pacíficas. Quando os operários podiam progredir através de reformas, conforme a teoria de Bernstein,
um marxista celebrizado pelo revisionismo, a matriz, alias, da social-democracia atual. Uma época
de evolucionismo pacífico, porém que acabou numa guerra global, a Primeira Guerra Mundial. Hoje
nós nos encontramos, pode-se dizer na segunda Belle Époque. Já estamos há uns dez ou quinze anos,
pois ela vem dos anos 70, do crescimento econômico, que só teve interrupção na recessão de 80 a
82, mas que depois passou a ser ininterrupto. Parece que esta acabando agora, com uma nova
recessão. É o mais longo ciclo do segundo pós-guerra. Os países do Primeiro Mundo vêm crescendo
ininterruptamente e a acumulação de capital e gigantesca. Ao mesmo tempo, as taxas de melhora das
condições de vida, o padrão de vida nesses países, de fato, se elevaram. Embora, como alguns
observadores fazem notar (mas isso no momento não chama muito a atenção), também vai crescendo
lateralmente o mundo dos desempregados estruturais, dos miseráveis, o mundo dos completamente

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pobres nesses mesmos países. Mas isso ainda e um fenômeno que não e tão evidenciado como a
melhora do padrão de vida daqueles que estão empregados, daqueles que podem usufruir das novas
tecnologias, informatizadas, robotizadas e assim por diante, como vamos ver.
É neste contexto que surge a questão da crise das ideologias. Não do seu fim, mas da sua
crise. A Professora Solange Ribeiro de Oliveira fez observar que, do ponto de vista de sua
filologia, a palavra "crise" quer dizer crescimento, não necessariamente morte. Eu acrescentaria
também um sentido que a palavra "crise" tem, porque dicionarizado, quer dizer, crise e uma
aceleração de fenômenos de mutação. São momentos em que as mutações se aceleram. Nós estamos
vivendo a crise não só de uma ideologia, da qual tanto se fala, que e a crise do marxismo (e muitos
já assinaram ate o atestado de óbito), mas também a crise da própria ideologia burguesa. Pois,
apesar da anunciada vitoria de Adam Smith, esse evento, como eu disse, não está comprovado.
Há nisso muita mistificação: a ideologia burguesa já está em crise, isto e, a procura de
caminhos diferenciados para superar os impasses exatamente do liberalismo, desde o fim do século
passado. E é exatamente no fim do século passado e princípios do nosso, que aparece uma das
expressões mais características dessa crise da ideologia burguesa. Refiro-me a Nietzsche. Exatamente
como expressão da crise da ideologia burguesa, Nietzsche se apresenta como antiburguês, contrário
ao burguês metódico, o burguês protestante descrito por Weber, frugal, poupador, racionalista. É
justamente o seu antiburguesismo que o toma tão atrativo precisamente para intelectuais de esquerda:
são intelectuais da esquerda, muitas vezes, que tomam a defesa de Nietzsche e o consideram um
patrimônio da esquerda. Eu, pessoalmente, repilo esta incorporação de Nietzsche ao pensamento da
esquerda. Nietzsche e a antiesquerda por excelência, o antimarxismo, o anti-socialismo. E não por
acaso, não por um erro de ótica, ele foi o filosofo predileto do nazismo e do fascismo, de Hitler e de
Mussolini. Mussolini, em particular, não escondeu a sua simpatia por Nietzsche e a influencia que o
filosofo teve em sua formação. Um historiador alemão, Hubert Cancik, deu-se ao esforço de
pesquisar os tramites da comemoração do centenário do nascimento de Nietzsche, ocorrido em 1944,
celebrado na Alemanha Nazista. Mussolini pessoalmente contribuiu para a comemoração, enviando
objetos arqueológicos da Itália para a Alemanha, como homenagem a figura do filosofo germânico.
Nessas celebrações, Mussolini declarou aos representantes alemães, que o procuraram, que
Nietzsche tivera uma grande influencia na sua formação. E não podia ser de outra maneira, uma vez
que Nietzsche desprezou o homem comum, os fracos, os que ele chamava de ressentidos - os
ressentidos com os fortes, com o super-homem. Quer dizer, Nietzsche e o arauto do super-homem,
de um homem que, por ser super-homem, tem direitos adquiridos para fazer e desfazer, sem
compromissos morais com a humanidade, a humanidade comum. A moral e uma inibição do super-
homem, o super-homem se caracteriza exatamente por não ter inibições morais. A moral e uma
invenção do cristianismo. Antes dele, uma invenção do judaísmo. Quer dizer, e inerente ao mundo
judaico-cristão. Da moral deve se desvencilhar o super-homem, pois, doutra maneira, permaneceria
limitado em seu agir, em sua vontade de poder, pelo ressentimento dos medíocres. É, preciso dizer
que, seguindo-se a Nietzsche, Heidegger foi alem, porque, se Nietzsche quisera uma subversão
completa dos valores, Heidegger declarou simplesmente a liquidação completa dos valores. Não só
a sua subversão, mas a sua liquidação completa.
Do ponto de vista da economia capitalista, os anos 30 foram anos de falência do liberalismo.
Esse neoliberalismo, louvado hoje com tanta apologética, estava no chão, como um pugilista
nocauteado, nos anos 30. Não podia se erguer do chão. Foi a época em que surgiu a doutrina de
Keynes, o economista inglês chefe de toda uma escola e que hoje também e malsinado pelos que,
juntamente com a falência do marxismo, declaram também a falência de Keynes. Isso é bem
interessante.

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


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Keynes não tinha nada de marxista. Ele considerava Marx um economista medíocre, digno de
desprezo. Keynes foi o economista que teorizou a economia capitalista regulada, não o liberalismo espontâneo
de Adam Smith, pelo qual o mercado seria uma mão invisível, que distribuiria de maneira adequada os
recursos econômicos e criaria abundancia. Para Keynes, diante da tremenda crise deflagrada numa sexta-
feira de outubro de 1929, a qual durou quatro anos (e da qual o mundo capitalista, na verdade, não saiu
durante os anos 30, só saiu com a Segunda Guerra Mundial), para Keynes, a economia capitalista, a fim de
não recair em nova crise dessa ordem, a fim de não se tornar inviável, devia ser regulada pelo Estado. Por tais
razões, elaborou os fundamentos teóricos para a intervenção do Estado na economia, seja dirigindo o
processo produtivo em certos casos (ele não pregava a socialização dos meios de produção), sejam
controlando o fluxo de dinheiro, a taxa de juros, os salários, orientando os investimentos, enfim, regulando o
conjunto da economia.
Assim, nos anos 30, nos temos uma profunda crise desse liberalismo que hoje, através de Francis
Fukuyama, se arroga constituir o fim da História. Então, se nos lembramos de meio século atrás, nos
podemos perguntar se as dificuldades do liberalismo, a crise que passou nos anos trinta e a sua substituição
pela doutrina antiliberal no próprio campo do capitalismo, não nos autorizam a afirmar que o que temos
agora em presença não e o fim da História, com a vitoria definitiva do neoliberalismo, mas uma onda
neoliberal que, como todas as ondas, também passarão. Será seguida por outra onda de sentido contrário,
como tem sido a dialética da História.
Há algo que nesse momento, nesses anos 90, nesse fim de século XX, da aproximação também do
terceiro milênio, constatei um processo descontínuo com o passado. É verdade que a História tem
descontinuidades, mas ela também possui continuidades. É uma simbiose de continuidade e descontinuidade.
Possui tempos variados. Isso marca o nosso trabalho historiográfico, na medida em que trabalhamos com os
fatos empíricos e simplesmente não nos contentamos com o acontecer empírico, porém procuramos
compreende-lo, interpretá-lo a luz de determinada metodologia. Sob esse aspecto, recordamos que a primeira
metade do século foi profundamente desfavorável ao capitalismo. Vejamos bem: o que produziu o
capitalismo na primeira metade do século? Duas guerras mundiais. Nenhuma delas foi provocada pelo
socialismo. O foco de ambas as guerras mundiais residiu nas rivalidades interimperialistas na Europa. E o
principal foco foi à Alemanha, tanto na Primeira quanto na Segunda Guerra Mundial. Estas duas guerras
causaram 70 milhões de mortos. Se, pelo calculo estatístico, pudermos dizer que, para cada baixa fatal
numa guerra, temos, pelo menos, três feridos, dos quais um ou dois são mutilados permanentes, então
teremos cerca de 140 milhões de mutilados em conseqüência dessas duas guerras. Uma catástrofe de
proporções tremendas, pavorosas.
Na primeira metade do século, o capitalismo produziu esta monstruosidade, que foi o nazismo. Do
seio do capitalismo, surgiu o nazismo, essa aberração do ponto de vista ate da doutrina capitalista liberal. O
nazismo inaugurou na história da humanidade o genocídio programado e industrializado. Porque
genocídios tem havido muitos e, ainda ha alguns anos atrás, houve na Alemanha (na Alemanha Ocidental,
que ainda existe), uma discussão entre historiadores, dentre os quais uma facção quis justificar o nazismo com
o genocídio, por exemplo, dos índios americanos pelos conquistadores espanhóis e Portugueses. Sem dúvida,
não vamos aqui justificar as matanças que os colonizadores das Américas praticaram nas populações
autóctones do nosso continente. E até continuam a praticar essas destruições com os sobreviventes das
populações autóctones, o que acontece inclusive no Brasil. Mas nós não podemos enfocar tal genocídio do
passado, inclusive o da África, com o tráfico de escravos, como algo que se equipara a matança
programada milimetricamente, cronometrizada e industrializada, que os nazistas realizaram nos campos de
concentração, com o propósito deliberado de extinguir da face da Terra certas etnias, como os judeus e os
ciganos, e, em grande parte também, os eslavos. Foi o que nos assistimos na primeira metade do

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século XX. Finalmente, a Grande Depressão econômica como já me referiu, que, na verdade, se prolongou
durante todos os anos 30, e da qual o mundo capitalista só conseguiu sair depois da tremenda destruição
de forças produtivas na Segunda Guerra Mundial.
Mesmo apos a Segunda Guerra Mundial, o sistema capitalista mundial sofreu um processo de
retração, que se iniciou com a Revolução Socialista na antiga Rússia. Quer dizer, uma faixa considerável
de países deixou de ser campo de aplicação de capitais por parte do sistema capitalista mundial e seus
centros dirigentes. A fratura do sistema capitalista mundial abrangeu a antiga Rússia, depois a China (dois
grandes países), depois o Vietnã, Coréia, Argélia, e todo o Leste Europeu, inclusive uma parte da
Alemanha e ate mesmo um país aqui nas Américas, vizinho dos Estados Unidos, ou seja, Cuba. Esse
processo, em minha opinião, chega ao ápice com a Guerra do Vietnã, quando os Estados Unidos, maior
potência militar do planeta, são derrotados por um povo camponês. É claro que, atrás desse povo
camponês, estavam a União Soviética e a China, que lhe forneciam armas, técnicas militares, porém não
soldados. O Vietnã combateu sozinho. Foi com seus homens, mal alimentados, que só comiam arroz e que
não tinham acesso aos hambúrgueres, a coca-cola e as outras delícias do mundo ocidental (R1SOS), foram
esses homens que derrotaram os soldados de mais de um metro e oitenta da maior potencia militar do
planeta. A unificação do Vietnã, em 1975, sob a hegemonia do partido comunista marca o ápice da
expansão da fratura socialista do sistema capitalista mundial.
Já foi observado que os Estados Unidos jamais ganharam nenhuma guerra importante sozinhos
neste século. Foram vitoriosos na primeira e na segunda guerra mundial com aliados. Mas sozinhos não
ganharam na Coréia, tal como não ganharam no Vietnã. E não e por acaso que agora, no Golfo Pérsico,
estão procurando se cercar do apoio de todo o Primeiro Mundo e ate de uma parte do Terceiro Mundo,
inclusive de uma parte do mundo árabe.
Mas, ao mesmo tempo, cabe observar que, se houve uma retração do sistema capitalista no segundo
pós-guerra, retração que já vinha desde a primeira metade do século, também houve o que os marxistas
não perceberam, ou não deram a devida significação: uma estabilização do mundo capitalista, tanto do
ponto de vista econômico como político. Os países do chamado Primeiro Mundo se tornaram países em que
o regime democrático em sua forma burguesa passou a funcionar com regularidade. E se funciona com
regularidade, funciona com estabilidade, funciona também com o consenso das classes subalternas.
Semelhante consenso foi obtido por mediação da social-democracia. Em quase todos os países da Europa
Ocidental, houve longos períodos em que a social-democracia foi governo: na Áustria, na Alemanha, na
Inglaterra, na Holanda. Já há sessenta anos que a social-democracia governa a Suécia, com um interregno
apenas de um quadriênio conservador. Hoje, a social-democracia governa a França e a Espanha. Na Itália,
os governos de centro-esquerda fizeram o papel da social-democracia, como os governos do Partido Social
Democrata nos Estados Unidos também fizeram o papel da social-democracia. A social-democracia, com a
sua doutrina baseada nos princípios econômicos de Keynes (intervenção do Estado na economia, formação
de um setor de empresas estatais e assim por diante) deu origem a doutrina do Estado de Bem-Estar
Social, Welfare-State, que tem nos Estados Unidos, como o seu principal propugnador, o famoso economista
John Kenneth Galbraith e, na Europa, os teóricos social-democratas. Por isso, um desses teóricos, um
cientista político muito conhecido no Brasil, o italiano Norberto Bobbio, pode dizer que se nunca houve a
revolução permanente pregada por Trotski, há a reforma permanente: há uma sucessão permanente de
reformas que vão elevando o padrão de vida da população dos países capitalistas em seu conjunto. E, de
fato, ate certo momento, isso se verificou. Não há dúvida que, no chamado Primeiro Mundo, criou-se todo
um sistema que elevou o padrão de vida da população empregada: previdência social, assistência medica,
educação ate o segundo grau obrigatória e generalizada,

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proteção no trabalho mais eficiente, construção de conjuntos residenciais. Os métodos produtivos


interessaram os trabalhadores, ao invés da esteira mecânica do fordismo e do taylorismo, já
ultrapassados com a nova tecnologia que esta se implantando. A tecnologia da informática, do robô,
dos novos materiais, da comunicação eletrônica e assim por diante. Isso e indiscutível, a classe
operaria, os trabalhadores dos países do Primeiro Mundo, puderam obter, nesse segundo pós-guerra,
através de governos social-democratas principalmente, vantagens, melhorias que elevaram
consideravelmente o seu padrão de vida.
Os trabalhadores ingleses já não vivem como os trabalhadores dos romances de Dickens,
aquela miséria horrível, sujeira, fome, doença e assim por diante. Ao mesmo tempo, em todos esses
países, com algumas exceções, como e o caso da própria Suécia, criaram-se setores da economia
estatizados, abrangendo ferrovias, transporte aéreo, eletricidade, além dos serviços públicos como água
e esgoto. Também siderurgias, fábricas de automóveis e de aviões, complexos de produção química,
em muitos casos, tornaram-se setores que passaram as mãos do Estado, que o Estado passou a gerir
como proprietário, na Alemanha, na França, na Inglaterra, na Bélgica, na Áustria, na Itália e noutros
países, mesmo no Japão.
Mas todo esse processo sofrera um solavanco, que o paralisa e, de certo modo, o impulsiona
um tanto para trás, a partir da vaga neoliberal que começa na segunda metade dos anos setenta. Isso
porque o processo de reforma, de conquistas obtidas pelos trabalhadores e mais os próprios
mecanismos de desenvolvimento capitalista conduzem a uma inundação da economia mundial pelos
eurodólares, pelo fato de que o carro-chefe da economia capitalista são os Estados Unidos, que emitem
a moeda mundial. A inundação dos eurodólares gerou uma inflação na segunda metade dos anos 70,
agravada pelo segundo choque do petróleo, advindo da tomada do poder pelo Aiatolá Khomeini, no
Ira, grande produtor de petróleo e depois, logo em seguida, pela guerra deflagrada peso Iraque contra
o Ira, que iria durar, como vocês sabem, oito anos. Então, o próprio processo inflacionário derruba
os governos social-democratas. Após o governo trabalhista inglês, surge o governo da Sra. Tatcher,
a "Dama de Ferro", que já esta em seu terceiro mandato. Vêm os governos republicanos dos Estados
Unidos, os dois mandatos de Reagan, sucedido agora pelo terceiro mandato republicano, de George
Bush. O governo social-democrata de Bruno Kreiski na Áustria, que dura treze anos, e sucedido por
um governo conservador presidido por Kurt Waldheim, homem que serviu ao Exercito Nazista durante
a Segunda Guerra Mundial. Mesmo na Suécia, pela primeira vez depois de 50 anos, o Partido Social-
Democrata cedeu o poder ao Partido Liberal durante 4 anos e recupera o poder em condição
minoritária, governando através de uma coalizão. Então, em todo o Primeiro Mundo, podem-se dizer,
os social-democratas são substituídos pelos neoliberais. Exceções podemos apontar seriam a França,
onde Miterrand e socialista e esta em seu segundo mandato, e a Espanha, onde Felipe Gonzalez esta
em seu terceiro mandato. Na França, Miterrand não permite que os trabalhadores percam conquistas
já obtidas, porem não cumpriu, por exemplo, a sua promessa de diminuir a semana de trabalho de 40
para 37 horas. Diminuiu para 39 horas. Na verdade, a política econômica que ele aplica e uma política
neoliberal: não por acaso, a sua vitoria nas eleições presidenciais foi acompanhada por uma elevação
das ações na Bolsa de Valores francesa. Quer dizer, o capital francês demonstrou sua plena confiança
na liderança de Miterrand. No caso de Felipe Gonzalez, a Espanha recém se liberou do franquismo e
é através do governo socialista que se consegue a estabilidade, o pacto social para uma política
neoliberal. A Espanha e hoje campo preferencial de aplicação dos capitais europeus, dos capitais
alemães, franceses, ingleses e americanos, porque há na Espanha uma defasagem no preço da mão-
de-obra com relação aos outros países da Europa Ocidental. De modo geral o que esta em vigência
nesses países, inclusive França e Espanha, e a política neoliberal.
Daí as privatizações de empresas estatizadas, possíveis dadas à enorme acumulação de capital

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pelos conglomerados multinacionais. O que não se podia fazer há 40 ou 50 anos atrás, ou seja:
modernizar as ferrovias, que exigiam enormes investimentos, a siderurgia, que também exigia enormes
investimentos, fábricas até de automóveis etc., e, por isso, o capital consentia que elas passassem a
mão do Estado. O Estado despendia o dinheiro publico para modernizar os meios de produção e agora,
que ha uma gigantesca acumulação de capital privado, tais meios são privatizados, revertem a preços
vantajosos, ao domínio do grande capital privado. A campeã das privatizações tem sido 3 Sra. Tatcher.
Ela privatizou recentemente ate o serviço de águas, o que vai contra os Estatutos da Comunidade
Econômica Européia, e já se propõe a privatizar o serviço de eletricidade. Mas, como estudiosos desta
questão apontam, em todos os casos ela privatizou com grandes vantagens para os compradores das
ações. Na verdade, tais privatizações funcionam como doações ao capital privado.
Por que tudo isso é possível? Aí chegamos também a outro ponto que e importante
compreender: e que nos estamos vivendo o ciclo de nova revolução científico-tecnológica. No
Primeiro Mundo, as novas tecnologias estão sendo aplicadas com enorme velocidade. São tecnologias
que entram em obsolescência em três, quatro anos, lapso de tempo em que surgem novas tecnologias,
que as substituem. Em primeiro lugar, a miniaturização tomou acessível a consumidores de massa o
computador pessoal, que entra nas casas não só dos intelectuais, dos escritores, dos pesquisadores, mas
também nas casas comuns. A informática industrializa os serviços financeiros e penetra também na
indústria dos bens de capital, com as maquinas que passam a ser comandadas através de computação.
O que permite que processes exigentes de cem operários passa a ser feitos por dez apenas. Além
disso, há a biotecnologia, que permite vencer obstáculos naturais a produção agrícola, vegetal e
animal, alem de criar toda uma engenharia genérica, capaz de eliminar doenças, revolucionar a
tecnologia farmacêutica, a ciência medica e assim por diante. A eletrônica via satélite torna as
comunicações ultra-rápidas em todo o universo, incluindo essa invenção tão comum para nos que e
a televisão, através da qual se tomam de conhecimento instantâneo os acontecimentos em qualquer
parte do globo, sejam os espetáculos programados, sejam, às vezes, os acontecimentos inesperados,
como recentemente, os fatos da Praça Celestial em Pequim. Acrescenta-se a invenção dos novos
materiais que substituem o aço, o alumínio, a madeira etc., materiais muito mais baratos, duradouros
ou descartáveis. Tudo isso configura uma revolução científico-tecnológica, que tem por base novos
conhecimentos científicos aplicados a tecnologia da indústria, agricultura e serviços. É claro que isso
também entra numa das indústrias mais importantes do mundo, que e a indústria de armas. Ela
também sofre uma tremenda influência de todo esse processo e constitui uma das matrizes principais
da atual revolução científico-tecnológica.
Esta revolução cintífico-tecnológica encontra-se na base da enorme acumulação de capital em
processo no mundo capitalista. Sejam os Estados Unidos, os países da Europa Ocidental, seja o Japão.
E aí nos temos que observar outro fato: se o capitalismo, o sistema capitalista mundial se retraiu,
porque perdeu a União Soviética, a China, o Leste Europeu e ate mesmo, aqui na América, perdeu
Cuba, se isto aconteceu, entretanto, hoje teve um florescimento enorme no Extremo Oriente. Não se
pode mais falar de capitalismo como algo puramente ocidental, como um estilo de vida, um modo de
produção, uma formação social tipicamente ocidental porque, entre os países mais capitalistas do
mundo, inclui-se o Japão. Nenhum país é hoje mais capitalista do que o Japão. E junto do Japão
estão os chamados "Tigres Asiáticos": a Coréia do Sul, Singapura, Tailândia, Filipinas, Austrália, que
também se insere no universo oriental.
O capitalismo foi capaz, nesse processo, de algo que os marxistas realmente não previam: a
superação das barreiras nacionais, especificamente no caso da Europa Ocidental. As barreiras
nacionais, que tanto dificultaram a saída da grande crise dos anos 30, hoje caíram abaixo. Não há
barreiras como antigamente entre os países da Europa Ocidental. No ano de 94, já se prevê a

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eliminação dos últimos entraves a completa liberdade de circulação de capitais, de homens, de


trabalhadores entre os países europeus. Haverá uma moeda única para todos os países. Quer dizer,
cria-se de fato uma Europa economicamente unificada. Ainda não politicamente unificada, mas, do
ponto de vista econômico, ela já forma uma entidade na qual a hegemonia e indiscutivelmente da
Alemanha. Já era da Alemanha Ocidental e será da nova Alemanha completamente unificada. Assim,
aparecem três grandes blocos do capitalismo: o bloco dos Estados Unidos, que continua ainda como
carro-chefe do capitalismo e que Integra na sua economia o Canadá (na pratica, uma província
americana) e México, o bloco da Europa Ocidental e o bloco do Extremo Oriente. Aí há a anotar que
esse não e um processo que muda a natureza do capitalismo. A natureza do capitalismo continua a
ser a de um regime que persegue o lucro como seu objetivo fundamental, que tem no lucro a sua forca
motriz, a sua motivação. Mais ainda: e um capitalismo que continua concorrencial, não mais entre
milhares de empresas pulverizadas como no século XIX, porém entre megamultinacionais. Em cada
bloco, são 300, 400 empresas, bancos, grandes conglomerados industriais e comerciais que dominam
70 a 80% da economia. Em torno deles, giram pequenas empresas, que lhes fornecem peças, prestam
serviços, fazem a pane ainda não regida pela automação, ainda não robotizada. A natureza desse
capitalismo continua, na essência, a mesma de antes. Por isso, eu me atrevo a afirmar, com toda a
tranqüilidade, que a melhor explicação do que e o capitalismo, da sua estrutura e da sua dinâmica,
ainda esta em O Capital de Marx, neste livro que muitos já consideram obsoleto, que nem merece
sequer consulta dos estudiosos.
Contudo, não se pode dizer que o capitalismo hoje e exatamente igual ao do tempo de Marx.
Isso seria um absurdo, em que infelizmente incorrem muitos marxistas. Houve novos processos, aos
quais eu já me referi que mudaram a maneira de proceder do capitalismo, mas não a essência desse
modo de produção e dessa formação social. No mundo capitalista, junto aos três blocos dominantes,
nos não podemos deixar de assinalar que ha enormes áreas marginais. Aliás, a maioria do mundo
capitalista esta na margem desses três blocos. Por que não se enquadra neles. Uma dessas áreas
marginais e a América Latina, da qual faz parte o nosso país. Quer dizer, a América Latina,
particularmente para o bloco dos Estados Unidos, que tem hegemonia aqui, mas para os outros
também, e somente uma fonte de lucros, de dividendos, de juros, através do mecanismo da divida
externa e dos investimentos diretos. Secundariamente e fornecedora de certas matérias-primas. Porque
as matérias-primas da América Latina, segundo mostram as estatísticas, estão, no seu conjunto, caindo
de preço, valem cada vez menos. O Primeiro Mundo as produz também ou as substitui, quando
precisa. Hoje, a Europa não precisa da carne da Argentina, do Uruguai e do Brasil, porque ela e
também grande produtora de carne e ate exportadora. Não precisa dos nossos cereais, que antigamente
enchiam os navios que iam para a Europa, porque ela também produz cereais e, com isso,
evidentemente, pode pagar mais barato por tudo o que compra da América Latina. As areas marginais
da América Latina e do Caribe, da África e da Ásia, são áreas condenadas a viverem o outro lado
desse processo, ou seja, o lado da miséria, do atraso, da impotência. Enquanto o lado do Primeiro
Mundo vive a alegria da segunda Belle Epoque do capitalismo, que, certamente, como a primeira,
terminara numa catástrofe.
Eu quero encerrar esta parte enfatizando que não vivemos o fim da História. O
neoliberalismo, justamente por ser "neo", constitui uma expressão da crise da ideologia burguesa. Não
prefigura o fim do capitalismo no dia de aranha: já os marxistas deveriam aprender que o capitalismo
tem muitos fôlegos e é dotado de elasticidade para superar catástrofes. Mas esta longe de ser esse
regime de abundancia perpetua e de harmonia ideal, na qual não se precisa ate de ideologia, não se
precisa de projeto totalizante, como alguns vem apregoando.
A segunda parte dessa conferência e para mim a mais importante, porque diz respeito à crise

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do marxismo. Como todo esse Seminário vai discutir a crise das ideologias, vão se suceder outros
conferencistas e muitos subsídios serão trazidos ao tema. Mas eu, pessoalmente, gostaria de falar a
respeito da crise do marxismo, tratar aqui de algumas questões, que podem ressurgir no decorrer do
Seminário. Eu não nego, como querem alguns, em particular certos trotskistas, que ha uma crise do
marxismo. Não ha duvida que muito do que esta ocorrendo hoje no chamado Leste Europeu, em
particular, foi previsto por Trotski, previsto na sua parte critica. Mas não no encaminhamento que a
crise esta tendo nesses países. Trotski não previu tal encaminhamento e os trotskistas o omitem. Então,
também o trotskismo esta em crise, como uma das vertentes legítimas do marxismo. Ainda ha pouco,
realizou-se, em São Paulo, a maior homenagem mundial prestada a Trotski na passagem do
cinqüentenário de seu assassinato. A homenagem se efetuou através de um simpósio de grandes
proporções, que trouxe a São Paulo notáveis especialistas de variadas tendências do marxismo,
inclusive do exterior: franceses, como Pierre Brone, soviéticos, o professor húngaro, Miklos Kun,
neto de Bela Kun, espanhóis, argentinos, bolivianos, italianos, etc.
Não ha duvida: avançou-se bastante no conhecimento das questões que cercam o pensamento
de Trotski. A meu ver, e todo o marxismo, inclusive o trotskismo, que esta em crise hoje. Porque, de
um lado, o que precisa ser assinalado a crítica ao modelo stalinista, que desmorona, no Leste
Europeu, inclusive na União Soviética, onde e só residual hoje - e a duras penas sobrevive na China,
em Cuba, no Vietnã e na Coréia -, a critica a esse modelo foi feita antes dos social-democratas e
neoliberais por Trotski, nos anos trinta. Antes de qualquer outro, ele apontou a degenerescência do
socialismo pelo domínio da burocracia, da camada burocrática. Muitas das suas afirmações são
reiteradas hoje por economistas da Perestroika, na União Soviética. Mas são as afirmações criticas
a respeito da ineficiência econômica, da ma qualidade dos produtos, de tudo isso ligado ao modelo
stalinista de planejamento. Mas Trotski não previu as soluções que estão sendo adotadas nesses
países. Não previu a questão que se constituiu com o problema do mercado, embora Trotski não
fosse contrario as relações mercantis a época do socialismo. Contrariamente ao que propõem
alguns trotskistas, Trotski não era partidário da extinção do dinheiro, como e a tese de Mandel, o
conhecido pensador trotskista. Trotski considerava que o dinheiro tinha lugar no regime socialista
em sua fase inicial e também a economia mercantil, mas ele não podia, de modo algum, pensar em
restauração do capitalismo, como esta se dando plenamente na Alemanha Oriental, que vai se
fundir com a Alemanha Ocidental. Em parte significativa já esta sendo tentado na Polônia e na
Hungria e pressiona fortemente na União Soviética.
O que está se dando, então, no Leste Europeu a meu ver? É, o fim do marxismo? O fim do
socialismo? Ou o fim de um modelo do socialismo? A meu ver, e o fim de um modelo, e o fim do
stalinisrno. Aqui, precisamos distinguir entre modelo e projeto. O projeto socialista continua vivo,
ele continua no ideário de milhões de pessoas, na União Soviética, China e em países do Leste
Europeu, mesmo ali onde venceram os partidos de direita anti-socialistas, nas últimas eleições na
Polônia, Hungria e Tchecoslováquia. Como ele continua vivo no mundo capitalista, apesar de que
atravesse uma fase critica na conjuntura de ofensiva violenta do neoliberalismo capitalista. Sem
dúvida, o projeto socialista atravessa uma crise, que e uma crise, em minha opinião, no sentido
filológico, uma crise de crescimento, não e uma crise mortal. Não e uma aceleração de mutações
mórbidas, que levam a morte, mas e uma aceleração de mutações dolorosas, sem dúvidas alguma,
difíceis, porém que levarão a superação da própria crise e ao rejuvenescimento do projeto
socialista. O socialismo esta ganhando algo extremamente precioso como ideologia totalizante de
construção de uma nova sociedade. Ele esta se libertando do stalinismo. Porque, queiramos ou
não, todas as correntes do marxismo eram afetadas pelo stalinismo. Por mais que nós nos
afirmássemos anti-stalinistas, sempre a imagem que ficava para as massas, por toda a parte, era a de
que socialismo se associava a partido

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único, a domínio da burocracia, a privilégios de uma minoria burocrática que detinha o poder, a
policia política, a campos de concentração, a expurgos, a processos judiciais falsificados que
assassinavam homens honrados, revolucionários de primeira linha, que associavam o socialismo a um
crime como o assassinato de Trotski, horroroso, hediondo, e assim por diante.
Dessa macula enorme, dessa monstruosidade, sem duvida alguma - porque foi isso o
stalinismo -, nós nos libertamos. E isso e um ganho essencial porque socialismo passa a ser entendido
como democracia socialista. É preciso afirmar que o que temos em vista e o socialismo democrático,
compatível com as divergências, com a existência de minorias, com a pluralidade de tendências, de
partidos, e assim por diante. Mas tal afirmação no futuro será dispensável, porque socialismo, posto
em funcionamento de maneira democrática, será por si mesmo sinônimo de determinado modelo de
democracia, a democracia socialista, uma democrata que não e igual à democracia burguesa, que não
tem em comum a estrutura da democracia burguesa. Portanto, nada tem a ver com a teoria da
democracia como valor universal. Porque a democracia não e valor universal. A democracia socialista
nunca pode ser entendida como um valor igual à democracia burguesa. Se assim entendêssemos,
confundiríamos completamente o que não pode ser confundido. Nem do ponto de vista da Ciência
Política nem do ponto de vista de qualquer outro prisma das Ciências Humanas.
Em toda parte, vimos que se ascendem os nacionalismos. Isso também não foi previsto por
Trotski, que pensava que, com a derrubada da burocracia stalinista na União Soviética, surgiria uma
nova tendência internacionalista. Não e o que esta acontecendo. São os nacionalismos que estão
acesos, provocando conflitos violentos. Também nos países do Leste Europeu, são fortes as tendências
de restauração do capitalismo. Quem lê hoje a imprensa soviética, encontra afirmações que configuram
um modelo utópico: equiparar a União Soviética a Suécia. A Suécia seria o modelo da sociedade
ideal para o qual se deveria dirigir a União Soviética. Todavia, se uns puxam fortemente no sentido
de uma verdadeira privatização capitalista da economia soviética, ainda há ali a forte resistência de
um ideário socialista, que repele tal privatização. Mesmo na Polônia e na Hungria, onde já se
avançou alguma coisa no sentido de restauração do capitalismo, não se pode deixar de prever que
haverá reações com relação às medidas que entronizem a exploração capitalista. Esta não deixara de
provocar uma reação dos trabalhadores, para os quais não desaparece a consciência adquirida de
valores do socialismo.
De qualquer maneira, eu desejaria terminar aqui esta conferência sem triunfalismos. Há uma
crise do marxismo, não o reconhecer e pior, porque nos impede de ser criativos nas condições da
crise. A crise exige o máximo da criatividade dos marxistas para a compreensão do próprio
capitalismo, do sentido da estabilização social-democrata, do sentido da ofensiva neoliberal, da nova
composição da classe operaria. O que é hoje a classe operaria? Mesmo aqui no Brasil, um terço dos
empregados na indústria da informática tem instrução superior. E nos países capitalistas, os
trabalhadores que ainda exercem tarefas manuais, o que fazem? Eles controlam e reparam as
maquinas. São polivalentes, dominam varias profissões ou especialidades. São altamente instruídos
em relação aqueles trabalhadores da esteira de montagem do fordismo, ou ao trabalhador modelado
pelo taylorismo. Isso precisa ser estudado, juntamente com os processos de conquista da hegemonia
(no sentido de Gramsci) e as contradições do capitalismo nas novas condições. E também a
multiplicidade de variações a que o socialismo da origem. Não se pode mais, definitivamente, pensar
num modelo único de socialismo como durante tanto tempo foi imposto na União Soviética e copiado
pelos outros países. Não se pode pensar na socialização somente como propriedade estatal.
Necessitamos pensar na variedade de formas da propriedade social no período de transição, cujo prazo
também não ―esta delimitado por ninguém. Profunda reflexão exige o papel do mercado e o papel
do piano, porque o piano não desaparece. Mas não pode ser o piano total. A idéia de um piano
totalitário de uma harmonia total, e uma Utopia. Utopia no sentido de algo que não se alcança. O

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socialismo deve dar margem também a certos desequilíbrios de acordo com o arbítrio do
consumidores, e também de acordo com a criatividade dos produtores. O piano não pode ser um plano
totalitário, tem que ser um piano que admite no seu transcurso os momentos de desproporção e de
criatividade provocadora de desequilíbrios, certamente muito diversos dos desequilíbrios próprios do
capitalismo.
E um desafio também ao marxismo o reconhecimento do seu atraso na Teoria Política Porque,
se o marxismo tem contribuições fundamentais a Teoria Política, e isso e inegável, sobretudo a respeito do
conteúdo do poder político, ele, ao prever que o Estado não desaparece de um momento para outro, não
estudou as formas do Estado socialista. Que formas terá? Este e um grande problema, por exemplo, para os
novos parlamentos que estão se instituindo na União Soviética e em ou países do Leste Europeu, onde
não há tradições parlamentares de funcionamento de congressos.
Tudo isso precisa ser estudado e, a partir daí, recriado e levado a prática.
Quanto à questão da democracia representativa e da democracia direta, que papel tem cai uma,
como ambas podem se fundir e mutuamente se fecundar, de tal maneira a superar no dia -a-dia suas
contradições? Sobretudo, a grande questão da Jornada de trabalho, que a nova tecnologia permite porque,
hoje, nos países capitalistas avançados, o movimento operário já está formulando o projeto de chegar
ao ano 2000 com a semana de trabalho de 28 horas, o que evidentemente aumentara maneira
considerável o período de lazer que os trabalhadores terão a sua disposição. Com isso, sendo possível
eliminar as altas taxas de desemprego que existem, particularmente na Europa Ocidental
Mesmo com o seguro-desemprego - que não existe em todos os países, não existe, por exemplo, Itália -
o desemprego ainda e uma chaga, ainda e uma ofensa ao trabalhador, uma humilhação, que continua a
existir e a aumentar no mundo capitalista. Ainda há grandes faixas de pobreza que cresce: por exemplo, em
particular nos Estados Unidos, com os cortes que o governo Reagan fez previdência social, na
assistência aos pobres, e assim por diante.
Por conseguinte ha muita coisa a fazer pela frente. O que essa nova tecnologia permite e exatamente
eliminar o desemprego e diminuir, ao mesmo tempo, a Jornada de trabalho. Ou eliminar o desemprego
através da redução da Jornada de trabalho. Como dizia Marx, o reino da liberdade não esta trabalho,
uma vez que ai se faz o que e necessário. Diante da maquina, nos não p odemos arbitrários, ela tem a
sua maneira de funcionar e nos temos que dominá-la, conhecendo-a e seguindo a sua mecânica, ai não e o
mundo da liberdade. O reino da liberdade esta exatamente fora do trabalho,
naquelas horas que nos pertencem, que nos chamamos de lazer, mas que, para aqueles homens
formados numa nova sociedade, são as horas da criatividade. Aquelas horas que o homem dedica para fazer
o que gosta e fazer e que por isso mesmo fará mais criativamente podendo realizar suas próprias
potencialidades e enriquecer os seus companheiros de sociedade. Construindo uma sociedade - exatamente
como Marx chamava - uma sociedade de produtores associados, uma sociedade desalienada, onde o
homem, todos os homens decidem não só questões pertinentes ao processo de trabalho, mas o que fazer
o que produzir, para que produzir. Isso não será decidido em pequenos gabinetes de executivos de
grandes bancos e de grandes conglomerados multinacionais, mas será decidido pelo conjunto da
sociedade. Então, o sentido da luta pelo socialismo e o da conquista do
tempo livre dilatado, como privilegio não de poucos, mas de todos, e o sentido da desalienação do
processo de trabalho, hoje dominado por ínfimas minorias, como e tanto no mundo socialista atual e no
mundo capitalista atual. É a conquista da liberdade através de um processo de produção em que todos os
interessados - os produtores associados - interferem. Uma sociedade em que a democracia praticada ate
o seu extreme limite deixa de ser democracia, porque deixa de ser um regime estatal. Nesse sentido e que
eu afirmo: o projeto socialista esta em crise, mas vai sobreviver a esta crise. O marxismo esta em crise,
mas vai sobreviver a esta crise! Muito obrigado. |

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CONFERÊNCIA

O MUNDO LUSO-BRASILEIRO REVISITADO:


EM BUSCA DE UMA MEMÓRIA COMUM

Carlos Guilherme Mota IEA/USP

Sim, admitamos: essa pobreza de experiências não é uma pobreza


particular, mas uma pobreza de toda a humanidade. Trata-se de uma
espécie de nova barbárie. Barbárie? Pois é, Nós a mencionamos para
introduzir um conceito novo, um conceito positivo de barbárie pois o que
traz ao bárbaro a pobreza de experiência? Ela o leva a começar do
começo; a começar de novo; a saber, se virar com pouco; a saber,
construir com pouco, será olhar nem para a direita nem para a
esquerda. Entre os grandes criadores sempre houve aqueles
implacáveis, cuja primeira medida era fazer tabula rasa. Na verdade eles
queriam uma prancheta, pois foram construtores.
(Walter Benjamin, 1933)

Os desafios postos neste fim de século aos cientistas sociais do mundo luso-afro-brasileiro tem-
nos obrigado a revisitação das historicidades de um conjunto de povos notavelmente heterogêneo. Daí a
oportunidade deste congresso, em que se incitam os cientistas sociais em língua portuguesa a revisão do
próprio saber e imaginar a social no "mundo que o português criou", com vistas a perspectivar os
desafios e as respostas possíveis nas próximas décadas. Retoma-se assim a antiga e sempre atual discussão
sobre a responsabilidade dos intelectuais - acenando-se para as aberturas que a imaginação histórico-
sociológica vem oferecendo ao propor novos paradigmas para se pensar o social, o econômico e o cultural.
Mais complexa se toma tal problemática quando se procura engrenar a reflexão nas inescapáveis
transformações que se vão operando no sistema mundial.
Nossa observação preliminar refere-se ao fato de que a ruptura mais profunda ocorre no piano
cultural lato sensu. O "mundo que o português criou" ruiu, e com ele a concepção lusotropicalista de
história, a mistificação de uma suposta especificidade cordial e adaptativa do

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


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português nos trópicos, com peculiaridades de miscigenação democratizante, do ponto de vista


étnico. Não pertencemos mais ao mesmo todo, ao menos aquele conjunto de instituições que
mantiveram por longos séculos um dos mais pesados aparelhos burocráticos de toda a História,
de que o sistema colonial, o escravismo, o corporativismo, a repressão ideológica da Contra-
Reforma e suas sutis remanescências de longue duree foram componentes indissociados.
Nesta retomada critica, vale recuperar toda uma linhagem de pensamento que, no Brasil,
em Portugal e na África, opôs sistematicamente a poderosa concepção de cultura harmônica desse
mundo resultante da expansão colonial "civilizadora". Pensadores do calibre de V. Magalhães
Godinho em Portugal ou do angolano Mario de Andrade sempre estiveram vigilantes na critica a
essa visão paralisante de História - que abrigava uma auto-satisfeita consciência amena de
atraso, distanciando-nos da contemporaneidade da história mundial1.
Também no Brasil, a crítica, desde muito cedo, se manifestou contra a interpretação
freyreana, defensora de uma suposta especificidade do "Novo Mundo nos Trópicos". Se Casa
Grande e Senzala, a obra-mestra de Gilberto Freyre, aparece em 1933 com ingredientes
modernizantes, provocando até mesmo repúdio de setores mais reacionários por dessacralizar os
heróis da raça branca gerados nos Institutos Históricos e Geográficos, note-se que nesse mesmo
ano surgia a crítica do historiador Caio Prado Junior (Evolução Político do Brasil e Outros
Estudos). O conjunto de sua obra certamente representa o início do redescobrimento do Brasil,
anunciando "um método relativamente novo" dado pela interpretação materialista. Organiza as
informações de maneira a não incidir e esgotar o enfoque "na superfície dos acontecimentos -
acelera sertanistas, entradas e bandeiras; substituições de governos e governantes; invasões ou
guerra". Para o historiador paulista, esses acontecimentos constituem apenas um reflexo (termo
que parasitara muitas das explicações posteriores) exterior daquilo que se passa no íntimo da
História. Caio redefiniu a periodização corrente, valorizando os movimentos sociais do
século XIX como Cabanada, Sabinada e Praieira e demonstrando que "os heróis e os grandes
feitos não são heróicos e grandes senão na medida em que acordam com os interesses das classes
dirigentes em cujo beneficio se faz a História oficial". Uma critica vigorosa e fundamentada a
Historiografia oficial ficava estabelecida, ao mostrar que autores difundidos como Rocha Pombo,
em volumes alentados e em manuais, dedicavam simples notas de rodapé a movimentos
populares do porte da Cabanada (Pará/1833-1836). A preocupação em explicar as relações sociais
a partir das bases materiais, apontando a historicidade do fato social e do fato econômico,
colocava em xeque a visão mitológica que impregnava a explicação histórica dominante. Criava-
se um novo paradigma: era o inicio da critica a visão monolítica do conjunto social, gerada no
período oligárquico da recém-derrubada Primeira Republica (1889-1930). Com as
interpretações de Caio Prado Junior, as classes emergentes pela primeira vez nos horizontes
de explicação da realidade social brasileira - enquanto categoria analítica. Seus outros livros
(Formação do Brasil Contemporâneo, 1942, principalmente) aprimoraram nosso instrumental
conceitual, formulando uma sofisticada teoria das classes, da coloniza? Ao enquanto sistema e das
idéias. Mas note-se: estudou o sentido da colonização e o peso dos componentes do sistema
colonial para avaliar suas persistências na vida brasileira.
Pouco depois, Antonio Candido, professor de Sociologia pertencente a um grupo-
geração mais jovem, formado sob o Estado Novo (1937-1945), já manifestava em seu
depoimento a Plataforma da Nova Geração (1944) repudio ao funcionalismo nos estudos de
cultura, pois apagava as diferenças e suavizava os crescentes conflitos vividos pela sociedade
brasileira na esteira das greves de 1917 e dos movimentos de 1922, 24,26,30,32 e 35.
A concepção de ciclo ou circulo cultural (...) leva quase que necessariamente a de função: a de
interdependência necessária entre os traços de uma cultura e da sua

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existência em função uns dos outros. Está certo e muito bem. No entanto, a concepção de
funcionalidade pode levar perigosamente a uma justificação e, portanto, aceitação de "todos" os
traços materiais e espirituais, 'dado o seu caráter necessário'. E vem a tendência para aceitar o
total complexo cultural e defender a sua inevitabilidade funcional, digamos assim, em
detrimento do raciocínio que tende a revelar suas desarmonias. Não e uma conseqüência fatal da
sociologia da cultura, esta visto. E um abuso possível, uma deformação contra a qual chamo a
atenção, num país em que ela vai entrando a toque de caixa. Veja você o nosso mestre Gilberto
Freyre, - a que ponto esta levando o seu culturalismo. Suas últimas obras descambam para o mais
lamentável sentimentalismo social e histórico; para o conservadorismo e o tradicionalismo.
Enamorado do seu ciclo cultural luso-brasileiro, e levado a arquitetar um mundo próprio, em que
se combine o progresso com a conservação dos traces anteriores característicos. Tudo estará
justificado se trouxer a marca do mundo que o português criou e que nos vamos desenvolvendo e
preservando, sim senhor, com a ajuda de Deus e de Todos os Santos Unidos (...) Aí está um
caso em que o método cultural carrega água para o monjolo da Reação. 2
Com a passagem dos anos 40 para os anos 50, o Brasil transita da consciência amena de atraso para a
trágica constatação de ser país subdesenvolvido. Enquanto muitos intelectuais empenhavam-se em
fabricar ideologias para a superação do subdesenvolvimento, mobilizando recursos (seja no ISEB, na
CEPAL ou alhures) para a afirmação de uma cultura nacional, de uma "Cultura Brasileira", eis que
aparecia em 1958 o livro notável de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder. Percorrendo o longo
caminho desde a particular Idade Media portuguesa até o século XX brasileiro, Faoro revelou a formação
histórica do patronato político brasileiro, concluindo de modo radical e surpreendente seu percurso: a
genuína cultura brasileira jamais emergiu a luz dos tempos. Após examinar seis séculos de História
notou a persistência de um forte estamento burocrático, desmobilizando sistematicamente as formas de
expressão que pudessem trazer a tona projetos sociais sintonizados com a contemporaneidade do mundo:
-... a principal conseqüência cultural do prolongado domínio do patronato do
estamento burocrático e a frustração do aparecimento da genuína cultura brasileira. 3
Mas vale registrar que essa crítica passou quase despercebida, num clima de euforia
desenvolvimentista-populista do período Kubitschek, em que se acenava as reformas de base – que
jamais ocorreram. Ao contrario, no piano das ideologias culturais observou-se o reforço, o da idéia de
Cultura Brasileira, da qual seus representantes máximos foram Gilberto Freyre, cada vez mais
'conservador, e Jorge Amado, progressivamente "tropical'"*.
As lutas pelas reformas de base e por um alinhamento terceiromundista do Brasil esbarraram
assim em solidas e conservadoras concepções de sociedade e de cultura, enraizadas nos setores
dirigentes. O golpe civil-militar de 1964 ocorre nesse realinhamento do pais dentro dos quadros da
Guerra Fria, reavivada apos as Revoluções de Cuba, da Argélia e de noticias de guerrilha da África
portuguesa. Apesar do intenso trabalho de intelectuais como Paulo Duarte, Florestan Fernandes, Caio
Prado Junior, Ferreira Gullar, Antonio Callado, Wanderley Guilherme e tantos outros, que vinham
denunciando as formas de dominação econômica, política e cultural vigentes no Brasil, a
desmobilização cultural tomou-se a pedra-de-toque desse poderoso sistema político-ideológico. Numa
modernizada visão da varanda - marcada pela concepção estamental de cultura - a casa-grande se
reaproximava da senzala, e as ideologias da "morenidade" e do homem cordial voltavam a suavizar as
diferenças. No piano político, a tradução dessa concepção de cultura revitalizou a metodologia da

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Conciliação - velha de mais de um século na História do Brasil- com a vitoria da contra-revolução


preventiva e permanente.
Aqui vale registrar a crítica vigilante de intelectuais como Caio Prado Junior, que vinha
denunciando desde os anos 50 em sua Revista Brasiliense os perigos de um fechamento contra-
revolucionário, alias teorizado depois do golpe em A Revolução Brasileira (1966). E também a
polêmica interpretada de Jose Honório Rodrigues, em Conciliação e Reforma no Brasil (1964), em que
analisa o caráter cruento da História do Brasil, na qual sempre predominou o espírito anti-reformista
- ou seja, quando nas conciliações os acordos feitos, "sempre sem nenhum beneficio nacional e popular,
demoravam muito, os dissidentes indignavam-se e conspiravam. Foi esse o papel dos liberais na história
brasileira"... Note-se que Jose Honório escrevera em 1961 seu Brasil e África, Outro Horizonte, título
aliás sugerido por Guimarães Rosa; ele, com Charles Ralph Boxer e outros não era bem-visto nos
círculos culturais do salazarismo 5.
Compõem esses cientistas sociais e escritores uma vertente critica e generosa escapada aos
tentáculos e a blandície da tentadora ideologia da Cultura Brasileira. Sistema ideológico em que, como
escreve Alfredo Bosi em sua História Conclusa da Literatura Brasileira, "tudo se dissolve no pitoresco, no
'saboroso', 'gorduroso' no apimentado do regional" 6.
Nessa vertente de pensamento, esboça-se uma autentica cultura de resistência. Apesar de
suas variadas origens, estímulos e compromissos teóricos, seus militantes opõem-se a visão idílica de um
Brasil "diferente", com "caráter nacional" especifico, mais propicio a certos avanços de uma suposta
"democracia racial" etc.
Novos paradigmas vêm sendo, pois pensados, amadurecidos em obras como as de Caio Prado
Junior, Raymundo Faoro, Antonio Candido Florestan Fernandes e muitos outros cientistas sociais,
juristas, historiadores. Dentre eles, destaca-se por sua trajetória marcada por uma busca constante de
um padrão moderno nas Ciências Sociais, e pela critica ao nosso assustador atraso, o sociólogo (e
historiador) Florestan Fernandes,
Com efeito, já nos anos 40, época em que produzia seu inaugural A Função Social da Guerra
Entre os Tupinambás, Antonio Candido localizava-o como pertencendo a "essa geração critica, critica e
mais critica"; nos anos 50, inicia com Roger Bastide o, amplo projeto sobre relações raciais ao Brasil, do
qual sairiam as obras extremamente inovadoras - de inspiração marxista heterodoxa, em geral, e que
constituem a chamada escola histórico-sociológica de São Paulo - como as de Otavio Ianni, Femando
Henrique Cardoso, Luiz Pereira, projeto que culmina em 1964 com sua notável Integração do Negro a
Sociedade de Classes (1850-1950); nos anos 60, avança sua teorização sobre a sociedade de classes e a
questão do subdesenvolvimento; nos anos 70, amplia sua discussão sobre o capitalismo dependente na
América Latina e a Revolução burguesa no Brasil; e nos anos 80, lança uma serie profusa de reflexões
sobre o socialismo contemporâneo e sobre o papel dos intelectuais destas partes no contexto mundial.
Portanto, ao lado e contra a vertente ideológica em que se formula a visão edulcorada da
lusotropicologia e, subproduto desta, a ideologia da Cultura Brasileira, da "Segurança e
Desenvolvimento" e de "Brasil Potencia Emergente", existe a outra: a tradição "afortunada" opõe-se a
tradição crítica. Feitas estas considerações, vamos aos desafios.

I. SOBRE A NOVA IDENTIDADE

Nos anos 90, o mundo luso-afro-brasileiro esta sendo submetido a desafios decisivos para a
redefinição de sua identidade. Apos a Revolução de 25 de Abril em Portugal, das lutas de

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independência na África e do fim do regime militai no Brasil, nosso mundo encontra-se numa das
grandes encruzilhadas da História Contemporânea, dilacerado por conflitos entre o capitalismo
monopolista exacerbado e formas de socialismo que ainda não lograram implantar-se de maneira
suficientemente democrática, mercê das contradições da ordem econômica internacional e - no caso dos
países Africanos - das peculiaridades das lutas contra o ultracolonialismo tardio.
A atual etapa do processo histórico - com o reordenamento dos centros mundiais de poder (MCE
em 1992, em particular) e com a profunda revisão ocorrente no mundo socialista - coloca o mundo luso-
afro-brasileiro em questão, restando saber se continuara como sócio menor nos quadros do capitalismo
associado e do "socialismo real de periferia" ou se, ao contrario, lograra reunir condições para sua
autonomização efetiva. O reconhecimento da necessidade de sua libertação não se desvincula da
criatividade com a qual as ciências sociais venham a identificar e projetar modos de vida que nos
distanciem da condição de países de 3' classe.
Ate porque o capitalismo vem conferindo a este mundo o papel de "subcontinente industrial
de reserva", não resta outra opção que a busca de formas socializantes de convivência. Para este
encaminhamento, certamente não ha formula única como solução histórica, mas as experiências vividas
nas duas margens do Atlântico - e do Indico! - já representam um patrimônio considerável. Patrimônio
não-estático, como conceituou Amilcar Cabral, um dos principais teóricos dos movimentos de libertação
das ex-colônias portuguesas, morto em 1973:
- "Cultura, fator de libertação? Não, libertação, fator de cultura..."
Nesta inversão, sugere-se um novo paradigma, produto de uma rotação de perspectiva, ponto
de partida para a revisão histórica - a busca de uma outra memória - no bojo de uma revolução cultural.
Para tanto, dever-se-á proceder a um aprofundamento da crítica histórico-cultural, sem a qual não se
desvendarão nossas possíveis identificações, inclusive em nossas inescapáveis diferenças.
Nada obstante, nosso acervo histórico-sociológico e literário e notável, impondo-se sua
sistematização numa Biblioteca Luso-Afro-Brasileira, a semelhan9a da Biblioteca Ayacucho para a
América Latina. Obras ou seletas - em quadrantes ideológicos diversos - como as de Oliveira Martins
(Portugal e suas Colônias), Charles Ralph Boxer, Jose Honório Rodrigues, Jaime Cortesão, Aquino de
Bragança, Barradas de Carvalho, Vitorino Magalhães Godinho, entre tantos outros, precisam dela constar.
E que, sempre que possível, acentue-se o exercício das imagens recíprocas (Portugal, África, Brasil).

Uma Rotação de Perspectivas


Buscar a identidade entre os "bárbaros", subprodutos culturais do capitalismo dependente, das
ideologias de Segurança Nacional e das formas residuais do ultracolonialismo multissecular, eis nosso
objetivo. "Nós somos os novos bárbaros, vivendo a oportunidade das fraturas e desorganização nos centros
intencionais", dizia em São Paulo ha alguns anos Severo Gomes, um dos representantes da nova
sociedade civil brasileira a seu amigo moçambicano Aquino de Bragança. Citando o historiador
Fernand Braudel, ao analisar o nascimento e a dinâmica da civilização européia, lembrou que os
bárbaros, antes de reunirem condições para derrubar os grandes impérios, viveram séculos na antecâmara
da civiuza9ao. "Conheceram a sua organização produtiva, social e militar e, quando alcançaram vitorias,
já eram mais que semicivilizados". No quadra dessas fraturas e que o Brasil, ainda sob regime militar,
viu-se obrigado a reconhecer países socialistas da África emergente, antecipando o que ocorreria no
piano interno Novos "bárbaros" no Brasil de hoje seriam os trabalhadores -que lutam em sindicatos
independentes, e que constituem a vanguarda da nova sociedade civil. E a imensa massa da popula5ao
sem os mais comezinhos direitos civis.
Essas forças emergentes permitem lá e cá vislumbrar um horizonte novo, impondo uma

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revisão profunda das noções de "civilização", "barbárie", "cultura", "libertação", "democracia". Afinal,
Florestan sempre chamou a atenção para uma outra história, a história do capitalismo nos países de
origem colonial. Em 1981, alertava ainda uma vez:
O que e grave e que o problema da descolonização não foi e continua a não ser colocado
enquanto tal. Ele é diluído e pulverizado. Como se não existisse e, substantivamente, o que
importassem fossem apenas as debilidades congênitas do capitalismo neocolonial e do
capitalismo dependente. (Poder e Contrapoder na América Latina, p. 80).

Revisitação a História Comum


Buscar a identidade do mundo luso-afro-brasileiro nesta nova etapa e propor uma política
cultural que favoreça a integração, eis um desafio que deve ser avaliado e equacionado em termos j
políticos amplos, aconselhado pela perspectiva histórica. Em primeiro lugar, ressalta o fato de que essa
identidade pressupõe elementos comuns historicamente determinados. Ora, a dominação ou a
dependência externas sempre existiram, do Antigo Sistema Colonial ao sistema mundial de
dependências; mas as soluções regionais, que compõem um largo espectro de respostas desde a
harmonização ate a negação radical da influencia externa, essas não guardam traços essencialmente
comuns. (Note-se que não se trata mecanicamente de relações só entre governos democráticos: o
Brasil, que mesmo sob um governo ditatorial, procurando uma falaz saída "terceiromundista"
neocapitalista no inicio dos ano 80, sustentou boas relações com os novos países socialistas na África
de língua-portuguesa.)
Nesta perspectiva, qualquer proposta de "integração" ou de "mundo" comum, deve
pressupor uma historicidade outra, visto que as parcelas a serem "integradas" foram criadas e vivem em
tempos distintos, quase sempre demarcadas a partir de fora. Primeiro, vivemos nos marcos dos Antigos
Sistemas Coloniais ibéricos (séculos XVI a XVIII); depois no sistema mundial de dependências no
século XIX sob a hegemonia inglesa (com persistências da primeira fase na África e na Ásia);
finalmente na configuração do capitalismo associado e dependente no século XX e do socialismo real.

A esses tempos decisivos, associem-se formações histórico-sociológicas diferentes. Por exemplo,


se no Nordeste brasileiro, no Alentejo etc. detecta-se uma forte concepção estamental de sociedade, em
outras regiões uma nítida concepção de sociedade de castas nas baixas camadas (sobretudo em Guine-
Bissau, Salvador da Bahia, Minas Gerais etc.) também pode ser observada; já uma acentuada concepção
classista de sociedade encontrar-se-ía, sobretudo nos centros avançados paulista, lisboeta, portuense,
etc.).
Não há, por fim, de se perder de vista que essa história ocorre em sistemas. Não foi isso que
permitiu a Joaquim Barradas de Carvalho situar toda a viagem mental de Renascimento lusíada nas
linhas de expansão territorial, sinalizada por farta literatura de viagens? Ou que propicia a Fernando
A. Novais perceber a dinâmica e a estrutura do Portugal moderno e suas colônias nos quadros do
Antigo Sistema Colonial? Ou a nos outros entender por que, a mesma época da Inconfidência Mineira
de Tiradentes (1789), ocorria uma outra em Goa, a Inconfidência dos Pinto? (Os inconfidentes mineiros
e goenses tinham noticias recíprocas, prova também de que nossa comunicação no século XX não e de
todo impossível...) |
Qual história, porem? Em 1970, Vitorino M. Godinho respondia:
Não são, é certo, as mesmas exatamente as escolhas que se nos põem do lado de cá do oceano:
mas estão estruturalmente conexas. E por isso importa num esforço conjunto estarmos
atentamente a par do que no Brasil se faz como informarmos do
que fazemos. Não que nosso destino (como sói dizer-se) seja necessariamente atlântico, em
antagonismo com a ligação, indispensável, a Europa. Mas nesse emaranhado de raízes esta o
cerne das resistências que hoje uns e outros temos de vencer se não queremos apenas sobreviver

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como museus de revolutas eras mas sim afirmarmo-nos pela capacidade de construir num mundo
em perpetua mudança.

II. NOVOS PARADIGMAS

As grandes transformações mundiais que se acentuaram nos anos 80 acarretam para os


cientistas sociais destas partes um novo desafio, qual seja o de detectar e revelar os diversos
níveis de historicidade no interior desse possível complexo sócio-cultural luso-afro-brasileiro.
Tais transformações não só vêm provocando funda revisão no mundo do socialismo real, trazendo a
tona expectativas quanto a emergência de novas formas de democracia socialistas - que por certo
implicam uma reconsideração do conceito de sociedade civil7, ou de noções como a de Nação-
Classe8. O esforço de aggiornamento desse conceito clássico - o de sociedade civil - adquire sentido
quando se constatam novas forças sociais em situação, seja em Portugal onde se discute o
ambivalente estatuto social do campesinato 9, seja em África, onde as lutas de libertação
impuseram uma criativa atualização conceitual: nem o termo "burguesia" sobreviveu a revisão
mais critica. Como advertiram Aquino de Braganga e I. Wallerstein em estudo introdutório a sua
notável coletânea, "há problemas ate com a língua".
No fundo, tanto o inglês como o português ou francês, idiomas em que os nossos
textos (da coletânea de documentos por eles compilados) apareceram originalmente,
não são aqueles em que as massas moçambicanas se exprimem. O termo burguesia
e altamente ambíguo, mesmo nas línguas européias, e o conceito emergiu da
experiência da Europa. O facto verifica-se com muito maior acuidade em África. E
o mesmo se aplica ao imperialismo, neocolonialismo etc. Devemos ter presente que
continuamos a aprender o significado dessas palavras, e parte da base do nosso
conhecimento ulterior consistira na própria experiência dos movimentos (...) 10
Também no Brasil, o conceito de sociedade civil ressurgiu vigorosamente apos uma
crise
do "milagre econômico" do inicio dos anos 70, porém com maior abrangência em relação ao
período anterior a ditadura de 1964. Organizações de profissionais liberais, de trabalhadores, de
cientistas, da Igreja, de associações de bairros abriram novos canais de expressão; outros modos
de expressão de uma sociedade informal, chegaram-se mesmo a afirmar-se gerandoa expressão
"nova sociedade civil" - que pressupõe formas de representação, expressão e solidariedade para
alem da sociedade civil das democracias formais.
Portanto, a exemplo de Marc Ferro - que produziu recentemente um volumoso Dicionário
da Glasnost, com a participa9ao de escritores soviéticos e franceses, para que estes se entendessem
sobre o tema -, aos cientistas sociais destas partes cumpre produzir um Dicionário Critico de
Palavras-Chaves, em que o instrumental conceitual dos analistas mais avançados dos três
continentes seja sistematizado e exposto a luz das discussões. No piano historiográfico, já existe o
importante Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão: marca uma época de
transição, que por certo prenuncia a renovação de perspectivas que um Dicionário Histórico do
Mundo Luso-Afro-Brasileiro poderá ampliar... Afinal, conceitos e noções como os de "sistema
colonial-fascista", "colonialismo", "ultramar", "neocolonialismo", "lusotropicalismo",
"descolonização", "modo de exploração colonial", "raça", "língua" (e "dialeto"...), "Nação-Classe",
"sistema mundial",

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"nacionalismo", "socialismo real", "socialismo" aguardam dicionarização atualizada.


Se olharmos o problema pelo angulo das transformações que ocorrem no cenário do universo do
capitalismo, cabe indagar qual o papel reservado ao conjunto de países de expressão em língua portuguesa.
As vésperas da consolidação do Mercado Comum Europeu, Portugal continua sendo definido como uma
sociedade semi-periférica, para usarmos a expressão de Imanuel Wallerstein.
Ou seja, Portugal permanece sendo Estado semi-periférico, burocraticamente rígido, com fortes
traços de corporativismo, com todas as conseqüências deste fato. Apesar de uma serie de mecanismos
compensatórios prevenirem conflitos mais agudos entre capital e trabalho, em verdade o padrão de
desenvolvimento alcançado e modesto, o Estado com poucas possibilidades de se reformar.
No plano mais geral do sistema inter-Estados tais sociedades podem servir apenas para reduzir os
conflitos entre os Estados centrais e os periféricos, funcionado como correias de transmissão e agentes
políticos de uma força imperial11.
Nessa medida, Portugal - que não alcançou ainda o patamar de desenvolvimento da Espanha ou
da Itália - poderá funcionar como correia de transmissão para os países Africanos de língua portuguesa - e
parcialmente para o Brasil - participarem da nova ordem mundial apos 1992. (Claro esta que o Brasil
possui outras alternativas de integração, seja com o resto da América Latina, seja com a "África austral;
mas a crise econômica que o avassala, somada as dificuldades de. reforma administrativa e debilidade da
nova sociedade civil, parece condená-lo a longo período de impasses, não sendo improvável que Portugal
seja um dos principais avalistas de seu entrosamento futuro com o MCE.)
Mas vale observar o cenário que se consolida nas Américas - com as vitórias/ eleitorais de Violeta
Chamorro na Nicarágua, de Collor no Brasil, de Fujimori no Peru: o que pode ocorrer e a imperialização
total dos centros de poder nessas regiões - sob as rubricas mágicas de "internacionalização" e
"modernização". Como advertiu Florestan, os países latino- americanos não estão apenas diante da opção:
ou "democracia pluralista" ou "socialismo". "Na verdade, (...), a emergência de um novo tipo de fascismo
poderá estar articulada a transformação da "democracia pluralista" na cidadela da contra-revolução
mundial"12 Não se verifica, neste lado do Atlântico, de integração equilibrada, programada e apoiada em
instituições parlamentares solidas como as do cenário europeu. Demais, a população marginalizada do
processo político e cultural e incalculável, numa região em que as políticas publicas não se livraram do
clientelismo mais tacanho. Assim, como pensar a modernidade cultural - vale dizer, política - dessas
massas - um dos requisites da integração do mundo luso-afro-brasileiro?
Se a revolução assiste hoje a novos desdobramentos na África de língua portuguesa -pluralismo
partidário, emergência de novos modos de pensar e socialismo com a formação de uma nova sociedade
civil -, na América Latina, em contrapartida, recuos notórios reabilitam uma espécie de "populismo
tecnoburocrático" que acaba por integrar... a pobreza a riqueza. E em Portugal, o Estado tarda em se
reformar e implementar formas mais avançadas de relação contratual entre capital e trabalho: um Estado
semi-periférico, enfim.
Sociedades semiperiféricas, Estados informais, ambigüidades culturais em que "classe" e "raça" não
parecem equacionadas nos moldes das sociedades contemporâneas avançada, tudo sugere que os novos
paradigmas devam ser buscados para alem dos conceitos formais e tradicionais de Estado, Nação, classe,
poder e cultura.
Para a reavaliação da ciência que se tem praticado toma-se inescapável o exercício da critica
historiográfica, sociológica, econômica, jurídica etc. Um reconhecimento do campo, enfim. Trata-se, num
primeiro passo, de superar as reproduções de "distanciamento e estranheza do discurso

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científico no interior da própria comunidade científica" - em que no mais das vezes se reproduz a divisão
ideológica do trabalho intelectual. A ciência deve pois ser entendida enquanto prática social do
conhecimento, "em dialogo com o mundo e que e afinal fundada nas vicissitudes, nas opressões e nas
lutas que o compõem e a nos, acomodados ou revoltados" 13.
A expressão mais forte da crise ora vivida nesta etapa de nossa história comum não reside apenas no
razoável desconhecimento recíproco no piano meramente factual histórico, ou na atualização do "quem e
quem" das ciências sociais em língua portuguesa. A expressão mais funda dessa crise localiza-se na
desconfiança dos paradigmas da própria ciência moderna e de sua aplicabilidade nestas partes. Boaventura
de Souza Santos comentou e criticou o paradigma "cuja forma de conhecimento proceda pela transformação
da relação eu/tu em relação sujeito/objeto, uma relação feita de distancia, estranhamento mutuo e
subordinação total do objeto ao sujeito (um objeto sem criatividade nem responsabilidade"14.
Para o ultrapassamento do velho paradigma, duas condições devem ocorrer. A sucessão de crises
que se acumulam no interior desse paradigma - ate porque os "objetos" falam, pensam, sentem, reagem as
"soluções" propostas pelos "sujeitos" - e o conhecimento ate então cientifico entra num processo de
derrapagem. A segunda condição para o ultrapassamento pressupõe circunstancias sociais e teóricas "que
permitam recuperar todo o pensamento que não se deixou pensar pelo paradigma e que foi
sobrevivendo em discursos vulgares, marginais, subculturais (tanto lumpendiscursos como discursos
hiperelitistas)"15.
O problema esta portanto na questão da linguagem, e não na das realidades histórico-concretas.
Não basta já dizermos - num esforço literário de união transcontinental superclasses - que "minha pátria
e minha língua". A formula9ao mais avançada nesse sentido encontrar-se-ia na poética de Caetano Veloso,
refletindo sobre a "última flor do Lácio" e passando da afirmação anterior a indagação atual:

Flor do Lácio Sambódromo


Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?"

A desconjunção dessas histórias luso-afro-brasileiras –refletida no imenso cipoal conceitual que ora
precisamos deslindar - impõe uma renovação da reflexão hermenêutica para articular-se num mesmo campo
cognitivo discursos e saberes tão dispares como o discurso literário, o poético, o estético, o político, o
religioso, o econômico e o histórico.
A tarefa e imensa e pressupõe humildade, paciência e senso de "longue durée" para melhor
apreendermos a complexidade de novos quadros mentais e a especificidade de uma história enquanto povo.
E atenção, pois a oposição ciência/senso comum esta abalada: "senso comum", para as consideradas
formas subordinadas de "subculturas", constitui freqiientemente o fermento de culturas de resistência - que
por vezes se manifestam em lutas de libertação, como as que ocorreram há nem tanto tempo no "mundo que
o português criou"16.

III. EM BUSCA DE UM NOVO CONCEITO DE CULTURA

Nos anos 70, novas formulações sobre a questão da cultura se apresentaram no mundo

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luso-afro-brasileiro. Em Portugal, a busca de um homem novo desponta em obras como as de Vitorin Magalhães
Godinho - sobretudo em seus ensaios em defesa da "cidadania" ligada a "dignidade d trabalho a todos os
portugueses", para que "nosso pais deixe de ser fabrica de braços e cérebros pai; exportar"17. Também nas reflexões
de militares portugueses como Melo Antunes, encontra-se: preocupação em considerar a "questão nacional" na
África como o tema básico a ser discutido COB "a intelligentzia das colonias', atenta aos reclamos dos "danados da
terra"18, fazendo notar ate um certo "atraso" com que os movimentos armados de libertação nacional se iniciaram
nas antigas colônias portuguesas naquele continente". La, a construção de um homem novo - agente e produto do
processo emancipador - também esteve presente nas principais formulac5es a época da independência,
sobretudo nas de Agostinho Neto 20.
No Brasil, a dessacralização da noção de Cultura Brasileira - tal como formulada pela lusotropicologia
gilbertiana e incorporada pelo Sistema - e completada com a republicação em 197< de Os Donos do Poder, de
Faoro e com a publicação, em 1975 de A Revolução Burguesa no Brasil de Florestan. No primeiro, a conclusão
sobre a frustração do aparecimento de uma "genuína cultura brasileira" permanecia a mesma de 1958, e atual. Em
Florestan, a "abertura" era denunciada, desnudando-se o modelo autocrático-burguês implantado. O sistema político-
militar vencera (período Costa e Silva/Médici) a luta armada, em nome de uma ideologia nacional.
Cumpria então revelar que essa Cultura "nacional" não existia - com seu cortejo de valores que
propagandeavam a democracia racial, a harmonia social e a "a nossa especificidade". Enfim, cumpria denunciar, já
nos quadros da massificação, a ideologia da Cultura Brasileira: nesse sentido, "não existe uma Cultura Brasileira no
piano ontológico, mas sim na esfera das formações ideológicas de segmentos altamente elitizados da população,
tendo atuado, ideologicamente, como um fator dissolvente das contradições reais."21
Mas talvez tenha sido na África que se formulou a critica cultural mais aguda, no caloi das lutas de
libertação colonial. Para alem da dessacralização das formas de dominação, e das noções de cultura e "assimilação",
ou de discussões sobre a "especificidade" dessa história, formularam-se novos conceitos de cultura, trabalho,
sociedade que indicam a emergência de novas matrizes de pensamento, talvez novos paradigmas para
reequacionar-se a questão da cultura.
As reflexões de Amflcar Cabral ressaltam num amplo espectro da produção e da critica, por sinalizarem
significativa rotação de perspectiva. Dentre suas teses, sistematizadas em 1972, avultam as seguintes:
1. A luta de libertação não e apenas "um facto cultural, mas também um factor de
cultura". Logo, seu conceito ultrapassa o saber a história para o "fazer a história".
2. Como a luta de libertação e essencialmente um ato político, "só os métodos políticos
(incluindo o uso da violência para liquidar a violência, sempre armada da dominação imperialista)
podem ser usados no decurso de seu desenvolvimento".
3. "A cultura, portanto, não e nem poderia ser uma arma ou um método de mobilização
de grupo contra o domínio estrangeiro. E bem mais do que isso. Com efeito, e na consciência concreta da realidade
local, em particular da realidade cultural, que se fundam a escolha, a estruturação e o desenvolvimento dos
métodos mais adequados a luta. Donde a necessidade, para o movimento de
libertação de conceder urna importância primordial, não só a características gerais da cultura da sociedade
dominada, mas ainda as de cada categoria social, porquanto, se bem que ela tenha um caráter de massa, a
cultura não e uniforme nem se desenvolve igualmente em todos os sectores,horizontais ou verticais da
sociedade".
4. "O que é importante para o movimento de libertação não é provar a especificidade ou
a não especificidade da cultura do povo, mas proceder a analise critica desta cultura em função das

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exigências da luta e do progresso e de a situar, sem complexo de superioridade ou de inferioridade, na


civilização universal, como uma parcela do patrimônio comum da humanidade, com vista a uma integração
harmoniosa no mundo atual".
Nessa perspectiva revolucionária, impõe-se ao estudioso do mundo luso-afro-brasileiro uma reflexão sobre
qual o instrumental conceitual mais adequado para a critica e a reconstrução histórica de nossos
variadíssimos universos sócio-culturais, para que os conheçamos em suas estruturas e historicidades
próprias. Ou seja, em suas diferenças. Somente então poder-se-á pensar em "nossa" integração, se possível
harmoniosa, no mundo atual. Mas (re) conheçamo-nos primeiro, indagando das possibilidades de afirmação
em nossos países dos valores de uma nova sociedade civil socialista e democrática.

Para um entendimento entre os cientistas sociais do mundo luso-afro-brasileiro:


propostas

1. Abandonar a procura de um "modelo" cultural comum - de vez que o conjunto de


sistemas simbólicos que representa a cultura e aberto e não fechado e fixo (Honorat Aguessy);
2. Ensaiar uma tipologia das configurações histórico-sociais que os compõem, vivendo tempos
diferentes;
3. Examinar nada obstante com maior detalhe o fator língua, supostamente o sustentáculo da
unidade cultural, num trabalho em comum com os lingüistas, filólogos, escritores, professores de
literatura, musicólogos e músicos. (Na formação das pesadas ideologias nacionais, os dialetos, os
falares regionais etc. vem sendo apagados pela mídia, em nivelamento que pode desfibrar a resistência de
povos que milenarmente organizam-se segundo padrões não-ditados pelos interesses do regime da hora);
4. Exercer, por meio da critica histórico-sociológica, a eliminação de reminiscências
ideológicas do lusotropicalismo cultural e do mecanicismo supostamente marxizante que obscurecem os
diagnósticos sobre as culturas do mundo luso-afro-brasileiro, dificultando a compreensão do direito a
diferença;
5. Articular projetos editoriais e de pesquisa em comum nos quais obras fundamentais que
revelem as historicidades dos variados sistemas simbólicos desse universo sejam explicitadas e
discutidas (p. ex., as de Oliveira Martins, Jaime Cortesão, Caio Prado Junior, Aquino de Bragança etc).
So o estudo das imagens recíprocas e das diferenças entre os povos que compõem o conjunto poderá
conduzir ao reconhecimento de uma possível identidade, baseada na eventual descoberta de uma
memoria (em) comum. Hoje, Portugal, Estado semiperiférico; Brasil, marcado por forte tradição
patrimonialista emoldurada nos quadros do capitalismo dependente e periférico; África, em transição dos
quadros do colonial-fascismo (ou "ultracolonialismo", segundo Perry Anderson) para o sistema
mundial, numa vertente socialista: tudo sugere a necessidade de um aggiornamento histórico e
historiográfico;
6. Verificar o papel da imprensa e da mídia eletrônica na produção e difusão das imagens
recíprocas: telejornais, novelas, debates. Da mesma maneira, a questão da indústria cultural e dos
livros didáticos. Examinar, no caso das TVs, das agendas noticiosas e da indústria cultural, em cada
uma das regiões, a participação em seu controle dos diversos grupos sócio-culturais;
7.A construção dessa memória comum - entenda-se: um inventario critico e
histórico-sociológico do conjunto de símbolos que represente de facto essas culturas, dos minhotos

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aos manjacos, papeis e oincas, dos paulistas aos ianomamis - se efetivara somente apos a elaboração de
um instrumental conceitual e analítico comum: Dicionário Histórico-Sociológico de Palavras-Chaves;
manuais de História e de Sociologia Sistemática, de Antropologia, Economia e Direito nos quais se
levem em conta os processos histórico-sociais efetivos nessas regiões (e portanto os conceitos em suas
temporalidades próprias); revistas especializadas que veiculem sistematicamente o "estado das artes" em
cada disciplina - incluindo impasses, lacunas e aberturas transdisciplinares em cada uma delas e no
conjunto. (Interessa saber igualmente dos modos de organização das sociedades "informais" nesses países,
como, por exemplo, os rumos da psicanálise no mundo Africano, ou do corporativismo universitário em
Portugal e no Brasil - em quais paradigmas de ciência e cultura ele se sustenta? Ou, ainda, do
significado sócio-histórico do neopopulismo em setores da esquerda brasileira nos anos 1980);
8. Criar projetos comuns de circulação de pesquisadores com vistas a conferir, no
encaminhamento de investigações em comum, os usos de conceitos-chaves, metodologias de pesquisa
e de criticas aos paradigmas científico-culturais vigentes;
9. Procurar avaliar o impacto para o conjunto de nossas instituições científico-culturais da
integração de Portugal no MCE; de uma possível integração do Brasil no bloco latino -americano; e
dos novos países de língua oficial portuguesa na "África contemporânea" (UNESCO, Brazzaville,
1978);
10. Analisar os mecanismos de legitimação dos respectivos governos, com especial ênfase
a participação da nova sociedade civil - que inclui grupos informais de opinião, com códigos externos
aos dos aparelhos das democracias formais;
11. Estudar sistematicamente os modos de formulação de políticas culturais nos três
continentes, não apenas os das universidades e organismos públicos, mas também os da sociedade dita
"informal". Examinar, em contrapartida, os conceitos de "cultura" que fomentam a contra-revolução
preventiva (Florestan, 1981);
12. Estudar a participação, neste século, dos cientistas sociais e intelectuais em geral nos
processos de democratização nos três continentes, com ênfase na questão de suas matrizes de
pensamento;
13. Examinar o tratamento dispensado as minorias, conforme a região: índios, negros,
mulheres, asiáticos, homossexuais, idosos, crianças, doentes mentais. Verificar o acesso aos empregos,
a escola, as carreiras e aos aparelhos de Estado. (O pressuposto e que o tratame nto dispensado as
minorias - que alias são maiorias - constitui importante indicador de avanço cultural);
14. Inventariar e colocar a disposição de um público cada vez mais amplo as conclusões
dos projetos interdisciplinares que vem buscando, nos vários centros de investigação, o esbofo de uma
história alternativa do desenvolvimento sócio -cultural dos povos que compõem o complexo
luso-afro-brasileiro;
15. Questionar qual a participação da universidade na elaboração de políticas culturais
alternativas, levando em conta indicadores variáveis conforme a região. Associar sempre nessa
discussão a explicitação do modelo de universidade adotado: forma de gestão, "vocação" estimulada
em qual direção, grupos sociais que dela se utilizam, "projetos" sociais nela inscritos etc.
A hipótese de partida e que a universidade não esta, nestas partes, se preparando para os
desafios deste fim de século, em que se gesta uma nova ordem mundial. Qual o lugar do "mundo" luso-
afro-brasileiro nessa nova ordem? Eis uma pergunta que começa a ser formulada nas principais revistas
internacionais e nos centros de estudos mundiais em que se estudam Portugal, a África, o Brasil e o
chamado Terceiro Mundo em geral. Cabe a nos agora, a partir do reconhecimento de nossas diferenças e
da necessidade de revisarmos os paradigmas científico-culturais que regeram o "mundo

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que o português criou", auxiliar na elaboração de instrumental conceitual que permita construir essa
outra História. Uma Ciência Social comprometida com a "contemporaneidade do amanha dos que não
tem ontem nem hoje" (Vinicius de Morais, O Haver).

NOT AS

1- Vitorino Magalhães Godinho, sobretudo seus Ensaios, sobre História de Portugal, Teoria da
História e Historiografia e História Universal (Lisboa: Sa da Costa, 1968-1971, 4 vol.). E do
angolano Mario de Andrade (Buanga Fele), em seu ensaio "O que e o lusotropicalismo?" (1955)
in Quem é o Inimigo? vol.1, dir. Aquino de Bragança e I. Wallerstein, Lisboa: Iniciativas
Editoriais, 1978, no cap. Formas de Opressão Cultural.
2- Em Mario Neme (org.), Plataforma da Nova Geração. Porto Alegre: Globo, 1945.
3- Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, Porto Alegre: Globo, 1958, p.269.
4- (sobre) Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1962
(ed. comemorat. dos 25 anos de Casa Grande e Senzala: vários autores). Freyre também
colaborou com a Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da Republica (1969).
5- Conciliação e Reforma no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, p. 11. A 3 1 ed. de
Brasil e África: Outro Horizonte saiu pela Ed. Nova Fronteira em 1982, revisada e com capitulo
abrangente ate 1980.
6- São Paulo: Cultrix, 1970, p.457.
7- Penso, sobretudo nas formulações de Norberto Bobbio.
8- Penso, sobretudo nas formulações de Amilcar Cabral em 1971, "A Nação - Classe", in Bragança
e Wallerstein; já cit., p. 126.
9- Boaventura de S. Santos, "Social Crisis and the State", in Kenneth Maxwell(ed.), Portugal in the
1980's. London: Greenwood Press, 1986, p.190.
10-Introdução ao vol.1 de Quem e o Inimigo, de Aquino de Bragança e I. Wallerstein, já cit., p.24.

11-Cf. Boaventura de S.Santos, op. cit., p.192, que se utiliza de tais conceitos com restrições.
12-Florestan Fernandes, Poder e Contrapoder na América Latino, Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p.33.
13-Boaventura de S.Santos, Introdução a uma Ciência Pos- Moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989,
p.13.
14-Ibidem, p.34/35.
15-Sobre o processo de crise final do paradigma da ciência moderna e sobre a renovação da reflexão
hermenêutica, v. na op. cit. os caps. 2,3 e 4.
16-Numa obra de critica aguda aos mitos de nossas histórias, ver Luis Reis Torgal, História e
Ideologia, Coimbra: Livraria Minerva, 1989. Exemplifica com a noção de "Ultramar" e indica
ate a existência de projeto sobre a História da Guerra Colonial.
17-Ver nos Ensaios do professor Vitorino Magalhães Godinho, vol. IV, em seu polemico e notável
prefacio, de grande atualidade para o debate sobre conceitos histórico -sociológicos e sua
aplicabilidade ao mundo luso-afro-brasileiro.
18-No importante prefacio de Melo Antunes a obra citada; de Aquino de Bragança e I. Wallerstein
(p.14).
19-Ibidem; p.13.
20 - Christian Geffray, "Fragments d'un discours du pouvoir (1975-1985): du bon usage d'une

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méconnaissance scientifique", em Politique Africaine, no. 29, mars 1988. Ver também "La.crise
du nationalisme", de Michel Cahen, na mesma revista, e ainda Luis de Brito no seu importante
artigo "Une relecture necessaire: la genese du parti-litat FRELIMO". Sobre o "homem novo",
uma das principais formulações foi a de Agostinho Neto, "A nossa cultura e o Homem Novo"
(1972), em Quem £ o Inimigo, op. cit., vol. HI.
21- Carlos Guilherme Mota, Ideologia da Cultura Brasileira. Pontos de Partida para uma Revisão
Histórica. 6a. ed., São Paulo: Ática, 1990, p. 287.

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CURSO

A CRISE DO MOVIMENTO OPERÁRIO E AS ―NOVAS‖


MANIFESTAÇÕES SOCIAIS
Carlos Fico
DEHIS/UFOP

O presente texto busca sintetizar o que foi o curso intensivo sobre "A Crise do Movimento
Operário e as 'Novas' Manifestações Sociais", ministrado no VII Encontro Regional da ANPUH-
MG entre 24 e 28 de setembro de 1990. O objetivo do curso foi familiarizar os participantes com
algumas das recentes transformações ocorridas na dinâmica social, bem como com as reflexões
teóricas e filosóficas sobre o assunto, pois, ao que parece, as "novas" manifestações sociais
(especialmente em comparação com o "velho" movimento operário) já podem ser objeto da
pesquisa histórica.
Para que não fosse feita uma analise apenas genérica do assunto, foi delimitado um aspecto
específico dessas transformações contemporâneas de um ponto de vista comparativo, qual seja a
distinção que ha entre elas no Primeiro e no Terceiro Mundo. Nesta ótica, pareceu mais adequado
comparar a insurgência dos chamados "novos" movimentos sociais (o pacifismo, o movimento
ecológico, os movimentos de defesa das chamadas "minorias" sexuais e raciais), especialmente na
Europa, com o fenômeno das manifestações deste gênero que ocorrem na América Latina (e
especialmente no Brasil), bem como com as manifestações aparentemente especificas do Terceiro
Mundo, onde os conflitos entre o capital e o trabalho de alguma forma persistem como local
básico de visualização da dinâmica social. Assim, essa comparação permitiu uma visualização
ampla dos temas inerentes àquilo que se entende por alterações no mundo contemporâneo.
O primeiro problema mencionado foi o da periodiza9&o ou, dizendo de maneira direta, o da
excessiva proximidade no tempo do processo a ser estudado, algo que se constitui em dificuldade
para as analises de tipo histórico. Tal circunstancia se verifica, pois, como era inevitável, o
corte cronológico do curso privilegiou as décadas de 70 e 80 do nosso século.
Um dos problemas tratados foi o da coisificação das relações sociais. Habermas, em sua obra
Teoria da ação comunicativa 1, faz uma reconstrução do complexo de problemas tratados por Max
Weber quanto a emergência histórica das estruturas de consciência moderna e a materialização
dessas estruturas de racionalidade em institui§6es sociais. De fato, a partir da distin9ao proposta por
Weber entre "racionalidade em relação a fins" e "racionalidade quanto a valores"2, uma serie de
discussões se impuseram e no curso, apesar de não ter sido o caso de desenvolver exaustivamente o
tema, foi possível resgatar alguns de seus aspectos, pois e ampla a ligação entre o mesmo e a
problemática da ocorrência de uma "nova maneira de se fazer política".

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Também foi Habermas quem chamou a atenção para a convergência entre a tese weberiana, da
racionalização e a "crítica da razão instrumental", inicialmente elaborada por Adorno (Horkheimer3.
Equiparando "racionalidade em relação a fins" com o que classificaram de "razão instrumental", Horkheimer
e Adorno, interpretando Marx a partir de uma perspectiva weberiana chamaram a atenção para o fato de
que, sob o signo de uma razão instrumental autonomizada, a racionalidade da dominação da natureza se
amalgama com a irracionalidade da dominação de classes
Posteriormente, autores como o próprio Habermas e também Claus Offe 4 chamaram | atenção
para o fato de que haveria esferas nas sociedades complexas que não seriam plenamente determinadas pelo
fenômeno do trabalho e da produção. Assim, a consciência social não poderia sei reconstituída apenas
como consciência de classe e o sistema político não mais se deteria fundamentalmente na garantia das
condições de produção e na superação dos conflitos distributivos,
Ao contrario de partilharem a idéia de que a sociedade e dominada pela economia (o que situa os
conflitos Fundamentais no setor do trabalho), esses autores propõem que se entendam a estrutura e a
dinâmica das sociedades modernas não como um antagonismo auto-enraizado na esfera da produção, mas
como a colisão entre "subsistemas da ação objetivamente racional" mediatizados pelo dinheiro e poder, e
um "espaço vital autodeterminado".
Tal postura, como e claro, afasta os autores dos paradigmas das teorias dos conflitos e, a partir da
crítica habermasiana contra o "domínio epistemológico do trabalho", na produção intelectual marxista,
foram feitas varias pesquisas (principalmente sociológicas e políticas) que podem ser denominadas de
"antiprodutivistas", isto e, privilegiadoras de outros lugares (que não a fabrica) como centros das relações
de dominação e palco dos conflitos sociais. Isto, e claro, constitui-se numa crítica da percepção de que
haveria uma continuidade entre desenvolvimento das forcas produtivas e emancipação humana. Foi no
âmbito dessas pesquisas, fortemente influenciadas por autores como Michel Foucault, que surgiram
noções como as de "modo de vida" (no lugar de modo de produção); valores "materialistas" versus valores
"pós-materialistas", esfera da produção e esfera domestica, entre outras.
Todos esses problemas estão profundamente relacionados com as alterações pelas quais passam as
sociedades chamadas "complexas" (Europa Ocidental e EUA principalmente). Em geral são mencionados,
como faz Andre Gunder Frank 5, o crescimento do emprego no setor de serviços terciários e no de auto-
emprego e a redução relativa da forca trabalhadora tipicamente industrial ou fabril.
Paralelamente a isso, costumam ser destacadas também, como fazem Frederic Jámeson 6 e
Daniel Bell7, as inovações tecnológicas que caracterizariam uma fase "pós-industrial" do capitalismo
(como a robótica, a cibernética e a informada), isto quando não se cogita de um rompimento com
a própria modernidade, tal como em Jean-François Lyotard8, na direção do que seria uma "condição
pós-moderna". Ora, a positivação da fase chamada "pós-industrial" parece ser uma postura ingênua,
porque, afinal, se os mecanismos de exploração ficaram menos evidentes, eles não acabaram. Não
se pode supor que uma simples "estetização da vida" funcione como "maquiagem" para as relações
de subordinação e dependência que, obviamente, ainda persistem. O setor tipicamente fabril nas
chamadas sociedades complexas parece declinar em termos relativos, mas isto não ocorre com o
sistema industrial. Isto e, a redução do número de trabalhadores caracteristicamente fabris não implica
uma debilidade do sistema, pois e de sua lógica um contínuo aumento de produtividade.
A crise, portanto, do clássico movimento operário, identificado com os insucessos do chamado
"socialismo real", seria explicada por uma multiplicidade de fatores que tenderiam a classificá-lo como
"velho", "ultrapassado" ou "ineficaz". Os "novos tempos" possuiriam características novas que, afinal, teriam
que corresponder a novas expressões da dinâmica social. Ao que parece, a

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ênfase analítica que os "novos" movimentos sociais tiveram nos últimos anos9 correspondeu a este tipo de
visão: uma aposta nesta novidade diante do "fracasso" do clássico movimento operário.
Sem duvida que o movimento operário tem problemas. Os enfoques iniciais dos primeiros socialistas
pressupunham que, a' partir de uma produção organizada de maneira correta, a boa convivência entre
trabalhadores associados livremente surgiria. De fato, desde af já havia o germe de 1101 problema que
ultrapassaria décadas e resistiria ate muito recentemente. São conhecidos as propostas de Max Adler (1873-
1937) de defnocrack industrial, as de Karl Korsch (1886-1961) quanto aos conselhos, as de Otto Bauer
(1881-1938) quanto aos comitês de fabricas, as de Antonie Pannekoek (1873-1960) sobre a auto-organização
revolucionária da classe operaria em conselhos de trabalhadores. Todas essas propostas, que poderiam ser
englobadas como pertencentes ao universo do que se convencionou chamar de "democracia industrial",
conformam um grupo, sem duvida, bastante heterogêneo de pensadores, mas, de alguma forma, possuem um
traço comum, tal como detectado por Norberto Bobbio: a crença de que a democracia política poderia SCT
reduzida a democracia econômica. Alias, já Karl Renner (1870-1950) afirmava que os conflitos entre classes
ou grupos sociais diferentes somente poderiam ser solucionados por meios políticos e não exclusivamente
através de uns democracia econômica. E preciso referir-se a esse problema clássico do movimento operário
e do marxismo ao menos em relação a dois aspectos:
A)os "novos" movimentos sociais chamam a atenção precisamente para o fato de que ha esferas de
conflito realmente longínquas (embora não inteiramente deslocadas) da do trabalho - tais como aquelas
relacionadas aos problemas ecológicos ou sexuais;
B)por outro lado, apesar do caráter restrito da noção de "democracia industrial" (quando encarada
como solução para toda uma sociedade), e obvio que isso não significa que o problema tenha sido
superado. Essa critica não pode servir de obstáculo a luta dos trabalhadores pela participação
deliberativa na fabrica e nas empresas de um modo geral. Se, de fato, não e possível subsumir o
autogoverno dos cidadãos no autogoverno dos trabalhadores, por outro lado resta sempre a questão
da democratização das fábricas e empresas.
Os "novos tempos", aos quais alguns autores se referem, possuem uma data inicial: 1968. Felix
Guattari fala que "a política tradicional encontrou-se em total ruptura e sem qualquer relação com o grande
movimento de transformação da subjetividade coletiva. Ela só chegou a captá-lo do exterior, em termos de
bloqueio, de repressão, e, posteriormente, de recuperação e reestruturação autárcica. Mas com esse
desconhecimento e essa denegação, apenas veio demonstrar a sua impotência"10.
A "nova política", portanto, buscaria requalificar as "lutas de base com vista a conquista contínua
de espaços de liberdade, de democracia e de criatividade", enquanto que a política tradicional,
estertorante, apenas conseguiria exercitar a dimensão mais repressiva de sua racionalidade.
Os "novos" movimentos sociais, assim, acabam por suscitar muitas esperanças. Se Foucault havia
denunciado razão cínica que se põe a serviço do poder e se Derrida havia se contraposto a razão que
reprimiu os elementos marginais, os "novos" movimento sociais aparecem justamente come a recusa de
alguns setores ditos marginais em sequer considerar o poder.
Marilena Chauí'1 arrolou algumas características comuns dos "novos" movimentos sociais: não
pretendem falar em nome da sociedade como um todo, desejando apenas ver reconhecidas suas "diferen5as";
coexistem com os outros movimentos sem pretender se situar como "vanguarda"; não pretendem a tomada
do Estado, mas pretendem reelaborar a idéia. e o exercício do poder em geral. Nesta linha, essas
manifestações não lutariam apenas por bens materiais ou para aumenta?' sua participação no sistema, mas
também por projetos simbólicos e culturais, por um significado é uma orientação diferentes da ação social.

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Uma das positividades dos "novos" movimentos sociais e justamente esta: eles não são apenas
instrumentais em relação a certos objetivos. Na verdade, essas novas formas organizacionais situam-se
elas próprias como objetivos. Trata-se de um enfretamento simbólico, uma proposta nova e uma
alternativa de vivencia do poder ou com o poder. Exemplos disso podem ser citados: regra geral, esses
"novos" movimentos possuem tarefas de curta duração, especificas, suas lideranças são múltiplas, as
formas de organização muitas vezes são temporárias e os mecanismos de imobilização contam muito mais
com uma espécie de sentimento moral de injustiça diante dos problemas do que com a doutrinação
tipicamente política. Ora, tais características, em certo sentido, servem para reavivar a dinâmica social,
servem para demonstrar que a maneira de fazer política e de exercitar o poder dos setores dominantes não
e a única.
Por outro lado, contudo, levantamentos preliminares desses movimentos, em países como a
Alemanha, a Franca e Inglaterra, parecem demonstrar que ha limitações importantes que,
resumidamente, podem ser sintetizadas da seguinte maneira: as temáticas inerentes ao pacifismo, a
ecologia e a defesa das "minorias" raciais e sexuais incomodam muito menos aos governos e aos setores
dominantes do que as manifestações que efetivamente ponham em discussão questões relacionadas a
essência do poder político, ao capital, a propriedade privada. Cabe, portanto, discutir o porque de esses
"novos" movimentos serem tão facilmente absorvidos pela mídia e incorporados ao status quo sem alterá-lo
substancialmente.
Muitos autores entenderam que essas inovações nos países desenvolvidos não poderiam ser captadas
e explicadas pelo modelo marxista da luta de classes. Em muitos casos, ate mesmo proclamou-se o fim
da luta de classes naqueles países. A contrapartida desta linha de analise e a de que haveria ainda, nos
países subdesenvolvidos, tais conflitos de classe o que, para dizer o mínimo, : sugere sérios problemas de
abrangência para o conceito marxista.
Também no Terceiro Mundo se viveu um período de ênfase analítica e de crença esperançosa
movimentos sociais. No Brasil, por exemplo, cunhou-se a expressão "Movimentos Sociais Urbanos"12
para designar as manifestações daqueles grupos sociais penalizados pelo "modo de acumulação de base
pobre", que implicava um padrão de superexploração da forca de trabalho e a minimização da
participação privada e do Estado nos custos de sua reprodução. A partir destas carências, surgiriam os
movimentos de reivindicações de serviços sociais urbanos.
Como se vê e muito grande a necessidade de uma reflexão teórica mais elaborada sobre
algumas dessas questões. É preciso relativizar, por exemplo, a noção de ruptura com a modernidade
que preside o pensamento dos adeptos da noção de "pós- modernidade" ou de "pos-industrialismo".
Parece que ha muito mais um desejo de se viver uma nova época, face ao desencanto com as
promessas não cumpridas da modernidade, do que efetivamente uma ruptura que anunciaria estes
novos tempos.
O curso, naturalmente, não pretendeu estabelecer conclusões sobre todos estes temas que vão
sendo pesquisados, tendo em vista a tese de doutoramento do autor. Buscou-se apenas uma visão geral do
problema e uma aproximação das questões teóricas e filosóficas, cujo tratamento e indispensável para o
historiador que desejar tratar deste aspecto da contemporaneidade.

NOTAS

1- HABERMAS, Jürgen. Teoria de la accion comunicativa. Trad. Manuel Jimenez Redondo.


Madrid: Taurus, 1987. 2 vols.

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2- WEBER, Max. Soziologische Grundbegriffe; Gesammelte Aufsatze sur Wissenschaftslehre. 21


ed. I Winckelmann: 1951. pp. 527-65.
3. ADORNO, Teodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento;
fragmentos filosóficos. 2* ed. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1986.
4-Ver especialmente OFFE, Claus. Trabalho como categoria sociológica fundamental? In:
Trabalho e sociedade; problemas estruturais e perspectivas para o futuro da "sociedade do
trabalho". Vol. 1 - A crise. Tntd. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
5- FRANK, A. Gunder & FUENTES, Marta. Dez teses acerca dos movimentos sociais. Lua Nova.
São Paulo, n. 17, p. 19-48, jun. 1989.
6- JÁMESON, Frederic. Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism. New Left Review.
n. 146, jul./ago. 1984.
7- BELL, Daniel. The coming of post-industrial society. New York, Basic Books Publishers, 1973.
8- LYOTARD, Jean-Francois. La condition postmoderne. Paris, Les Editions de Minuit, 1979.

9- Foram muitos os trabalhos que, nos anos 70 e 80, analisaram de uma perspectiva otimista e
esperançosa as alterações da dinâmica social dos países do Primeiro e, mesmo, do Terceiro
Mundo. Uma relação parcial destes trabalhos foi fornecida com a bibliografia do curso. Seguindo
E. Laclau e C. Mouffe (Hegemonia y estratégia socialista; hacia una radicalización de la
democracia. Madrid: Siglo XXI, 1987. p. 103), se constituíram duas tendências: uma considera
os "novos" movimentos como marginais em relação ao sujeito fundamental (a ciasse operaria);
outra os considera como os substitutes revolucionários da ciasse operaria em crise.
10-GUATTARI, Felix. Os novos espaços da liberdade. Coimbra: Centelha, 1987.
11- CHAUI, Marilena. Representação ou participação? In: Cultura e democracia. 4* ed. rev.
e ampl. São Paulo, Cortez, 1989.
12- Ver especialmente MOISTS, Jose Álvaro. O Estado, as contradições urbanas e os movimentos
sociais. In: MOISTS, J. A. et alii. Cidade, povo e poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

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SEMINÁRIO

O ENSINO DE HISTÓRIA NO BRASIL

RUBIM SANTOS LEÃO DE AQUINO


Coordenador e co-autor de livros de História.

Em 1978, em plena ditadura militar, a voz maravilhosa de Elis Regina popularizou o samba
Querelas do Brasil. Composto por Aldir Blanc e Mauricio Tapajós, sua letra tem frases-denúncias que
nos fazem pensar sobre o ensino da nossa História.
Uma dessas frases afirma que "o Brasil não conhece o Brasil".
Realmente, não conhece porque o ensino da História da sociedade brasileira esta limitado per uma
visão conservadora, elitista, parcial, racista, alienante, ufanista, machista... Poucos não passaram pela
chatice de saber na ponta da língua os nomes dos Donatários das Capitanias Hereditárias e dos
Presidentes da República. E, perguntamos qual a importância disso? Em contrapartida, quantos
aprenderam o que representou o sistema das Capitanias Hereditárias ou como vivia e vive a sociedade
brasileira durante a República?
"O Brasil não merece o Brasil" e outra afirmativa-denúncia cantada pela saudosa Elis.
Isso mesmo! Se temos pretensões de nos integrarmos ao Primeiro Mundo, como afoitamente aclarou o
Presidente Collor, não podemos continuar a desconhecer a nossa História, inclusive porque esta sendo
ensinada repetindo-se conceitos e afirmativas incorretos. Alguns exemplos podem apontar. Em
diversos livros para o 1 ° e para o 2 ° grau, o movimento comunista ocorrido no Rio, Grande do Norte,
Pernambuco e Rio de Janeiro, em 1935, é rotulado de Intentona Comunista. Basta consultar o dicionário
para se verificar que a palavra intentona significa projeto louco, plano insensato. Não e por acaso que,
todos os anos, no mês de novembro, as ordens do dia dos ministros| militares utilizam aquela
denominação, cujo objetivo ideológico visa denegrir o movimento de 1935, | Tendência bastante
difundida e a utilização das denominações de Inconfidência Mineira e da Inconfidência Baiana. Ora,
Inconfidência é sinônimo de infidelidade, deslealdade. Para as autoridades portuguesas, os
envolvidos nas abortadas rebeliões de Vila Rica e de Salvador foram infiéis, desleais e traidores. Como
brasileiros, será que devemos continuar a viver sob a visão da antiga metrópole? Por que não aceitar as
denominações Conjuração Mineira e Conjuração Baiana,! sabendo-se que conjuração significa
conspiração contra as autoridades estabelecidas? Isto semi falar nas explicações absurdas, fantásticas e
destruídas de qualquer fundamento histórico. Basta mencionar duas: o Brasil "enviou um grupo de
aviadores para a Europa" durante a Primeira Guerra Mundial. A renuncia de Jânio Quadros ocorreu
devido a "for9as ocultas", que o autor identifica como

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sendo os dirigentes dos Estados Unidos: John Moors Cabot (ex-embaixador), Adolf Berle (Secretario de
Estado) e Douglas Dillon (Secretario do Tesouro).
É por essas e outras que consideramos valida a afirmativa "o Brasil não merece o Brasil", de certos
autores de livros didáticos, acrescentaríamos nós.
Lembraríamos que muitas pessoas buscam divas de analistas e de psicólogos para melhor se
ajustarem no seu dia-a-dia. E, durante as sessões, cada vez mais perquirem no seu próprio passado
explicações para o seu comportamento presente. Assim procedendo, conscientizam-se do presente vivido e
ajustam-se para um futuro próximo.
Individualmente, as pessoas aceitam essa maneira de viver! Mas, não podemos ignorar que o
homem é um ser social, ou seja, vive em sociedade. Também não devemos esquecer que o tempo histórico
deve ser analisado sob a tríplice perspectiva passado - presente - futuro.
Por conseguinte, e o ensino da História que possibilita ao educando conhecer o seu passado como
meio para construir o futuro, porque as raízes desse futuro encontram-se no presente vivido.
A propósito, lembramos o depoimento do estudante da 8° serie Marco Antonio Fagundes no artigo
"A História Mente?", publicado na revista Isto É, de 1° de julho de 1978: "A gente fica caladinho. Nunca
estudei o que aconteceu de 1964 para cá. História do Brasil e uma matéria só de passado, datas, nomes. Nem
lembro direito por que proclamaram a República. Acho que seria mais importante estudar política para
entender o Brasil de hoje. Costumamos comentar bastante o curso e sei que a maioria dos alunos esta
descontente. No segundo semestre do ano passado fizemos um abaixo-assinado contra um professor.
Queríamos participar. Não deu em nada. O diretor disse que estávamos errados e amea9ou uma suspensão
coletiva. Ai veio o medo e ficamos caladinhos".
t, uma denuncia-protesto bastante grave. Podemos compreender que reflete a realidade de parte
considerável do ensino e, ate mesmo, do conteúdo de muitos livros didáticos de História.
Mais uma vez recordamos outras frases-denúncias cantadas por Elis Regina em Querelas do
Brasil: "o Brasil esta matando o Brasil" e "o Brasil SOS ao Brasil".
Como professores de História, defendemos a necessidade de o ensino da História ser formativo e
não meramente informativo Desse modo, contribuiria na formação das gerações que proximamente atuarão
na sociedade brasileira. Afinal, somos todos nos que fazemos a História como agentes de transformação
social.
Como professores de História cabem-nos o papel de formar o educando com uma consciência
humanista e sensível a praticas de solidariedade 1 e de justiça social, comprometido como agente
democrático e engajado na construção de uma nova sociedade brasileira, onde a justiça e o bem-estar não
sejam privilégios de poucos, mas direitos reais de todos os cidadãos brasileiros.

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SEMINÁRIO

A NOÇÃO DE TEMPO E O ENSINO DE HITÓRIA

RAQUEL GLEZER
Depto. De História – IEA/USP

En fait, 1'historien ne sort jámais du temps de l'histoire: le temps colle


a sa pensee comme la terre a la bSche du járdinier". 1

Um dos aspectos interessantes na questão da formação de historiadores no Brasil é o da pouca


atenção que vem sendo dada ao estudo das variáveis obrigatórias: Espaço e Tempo.
Deixamos a discussão do Espaço para geógrafos, e nem mesmo acompanhamos, a distância, os
debates e as transformações que estão ocorrendo na área vizinha. Geo-história, história dos climas,
geopolítica não atraem a aten9ao dos jovens historiadores nacionais.
Quanto ao Tempo, parece-nos haver uma atitude generalizada de considerar o tema arcaico,
ultrapassado, envelhecido. Sentimos que alguns historiadores, quando lhes é colocada a questão,
simbolicamente, puxam os revolveres e atiram: "tempo e cronologia"; "tempo e periodização"; "tempo e
ideologia", ou mesmo, "tempo e periodização europocêntrica". Propor o tema e quase uma ousadia.
As discussões sobre velhos temas, velhas histórias, velhas preocupações, como questões
epistemológicas, escolas historiográficas, métodos e técnicas estão hoje, aparentemente, fora do atual saber
histórico. Relações vivenciais, emoções, parecem que se tomaram mais significativas para a prática do
historiador. 5
Raros textos conceituais retomam as questões clássicas. 3
Entretanto, para todos que trabalham na difícil e problemática área da Epistemologia e Teoria da
História, Tempo e História e ato de reflexão obrigatória. 4
Tempo, para História, alem de ser variável, e uma questão teórica fundamental.
O surgimento da História como campo de conhecimento, apreensão da realidade, com teorias,
métodos e técnicas de trabalho, tomou-se possível com a Iaiciza9ao do pensamento filosófico, Quando
História e Filosofia de História deixaram de ser uma unidade, o processo de conhecimento histórico pode
definir seu objeto de estudo - a a9ao dos homens entre si e com a natureza.
Ao ocorrer a separação, História manteve o conceito Tempo, que se era, ate então, sagrado e
escatológico, passou a ser laico, mas manteve a finalidade, qualquer que fosse o nome dado a ela Juízo
Final foi substituído por Liberdade, Razão, Estado, Progresso, Evolução, Revolução.

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A noção do Tempo laicizado continuou sendo a do Tempo sagrado, cristão, com passado,
presente e futuro Ocorreu uma permuta de significação: Criação e Queda da Humanidade
transformou-se em Passado; Oferta de Salvação, em Presente; Juízo Final em Futuro. O Tempo deixoude ser
o meio de expressão da Providência Divina para ser o Tempo da vontade dos homens, direcionado por
eles. Esse Tempo tomou-se um absoluto.
Para a História, o Tempo variável obrigatória, acabou sendo o fator básico, elemento de união
explicação em si, fator de coordenação do passado dos homens, que, não mais estavam no caminho da
Salvação, estavam imersos na estrada do Futuro (qualquer que fosse o nome dado a ele).
O Tempo permitiu a rela9lo entre sociedades com formas diferentes de contagem, a comparação
entre elas, a articulação de elementos aparentemente desconexos. Ele tornou-se a explica9ao causal,
primaria elementar: fatos eram agregados por proximidade Cronológica. Com o progressivo
desenvolvimento do conhecimento histórico, a questão temporal transformou-se em recurso técnico,
classificatório.
A preocupação com a História Universal (História Católica) valorizou as periodizações: eras, épocas,
impérios, idades. Questões proféticas, escatológicas foram tranquilamente assumidas pela histórica ciência,
pois o estatuto científico do conhecimento garantia a neutralidade e a objetividade. A Cronologia, como
estudo comparativo dos diferentes calendários, correspondentes a diversas civilizações e formas de
contagem de tempo, desenvolveu-se, tornando-se um instrumento de pesquisa básico para articula9ao de
contagens originalmente diferentes. A progressiva especializa9ao do conhecimento histórico introduziu os
marcos temporais, a partir do único definido como dominante: 0 nascimento de Cristo. Novos marcos foram
paulatinamente sendo introduzidos, bem como recortes temporais, etapas, marcos simbólicos.
A percepção do Tempo como elemento articulador se transformou em pano de fundo. Não havia o
que discutir, o que falar sobre o Tempo. Afinal, ele sempre esteve/esta/estará a disposição do historiador
como elemento explicativo.
A introjeção do Tempo como fator explicativo em sim mesmo pode ser acompanhada na leitura
atenta dos manuais de introdu9ao aos estudos históricos, que, do século passado a nossos dias, servem de
apresentação do estado consensual do conhecimento histórico.
Do clássico Langlois & Seignobos, ficamos com o Tempo como categoria classificatória dos
documentos e depois dos fatos. 5
Bauer separou claramente em dois momentos diferentes o uso do Tempo na periodiza9ao e na Cronologia,
uma ciência auxiliar. 6
A questão do Tempo não e assunto tratado nos manuais, nem em livros de Teoria da História. E
um dado apenas. Desde quando Braudel introduziu a questão das temporalidades, que e um recurso
classificatório de fenômenos, pouco mais se avançou no debate. 7
Em textos recentes discutem-se questões como formas de contagem de tempo e de como
historiadores submetem o Tempo em seu processo explicativo 8, ou como os conceitos explicativos
relacionados a questão temporal se desenvolveram como calendário, passado/presente, idades míticas,
antigo/moderno, escatologia e decadência.'.
Podemos comprovar que, mesmo para historiadores preocupados com a questão teórica, Tempo e
percebido como elemento articulador pelo uso indiferenciado do termo, como sinônimo de época, era, idade,
momento, ideologia e História. 10
A utilização camaleônica do termo Tempo indica que, de acordo com os próprios especialistas, o conceito
não e claro. Como não estudamos a questão do Tempo, este segue sendo, como em senso comum, o
articulador dos atos humanos, fator explicativo em si mesmo, inquestionável, pois e percebido sensível e
empiricamente.

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Falta aos especialistas a retomada da questão básica do tempo. Em alguns campos já se está recolocando
a questão como fundamental, para a compreensão do próprio conhecimento cientifico,
Não pode o ensino de História, nos curses de graduação, ficar limitado a apresentar a
questão do Tempo como restrita a dois grandes debates teórico-ideológicos, como a questão das
periodizações europocêntricas ou etapistas 12, e, a questão da seleção dos marcos simbólicos sociais
dos vencedores e dos vencidos.13 .
Ao fazer crítica a seleções ideológicas temporais, como a periodização e o marco temporal
do vencedor, não se deve jogar fora a questão do Tempo.
Mesmo os críticos mais acirrados das periodizações não abandonam o Tempo-tripartite."
Afinal, para todos nos, e claro que o -abandono do Tempo leva a História a extinção. Na sociedade
contemporânea, encharcada de informações e dados aleatórios, a consciência histórica não pode deixar
de ser um elemento articulador.
O descaso com a questão Tempo deixa a sociedade diante de uma perplexidade: diversos
Tempos/diversas Histórias levarão a incompreensão e a certeza de que o Tempo e o solucionador das
questões que o homem se colocou em seu caminhar, e, ele, o Tempo, e um deus "ex-machina" que
resolverá os problemas que os homens não puderem resolver.
A sacralização do passado, que tanto os historiadores combateram, retornará pela
sacralização do Tempo.

NOTAS

1- BRAUDEL, Fernand. Écrits sur I'histoire. Paris: Flammarion, 1969. p. 75. :


2- Vide VIEIRA, M. do Pilar et alii. A pesquisa em História. São Paulo: Ática, 1989.
3- Vide CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios racionalistas. Rio de Janeiro: Campus, 1988 e
ZAIDAN FILHO; Michel. A crise da razão histórica. Campinas: Papirus, 1989.
4- Escolhi para discutir neste texto a questão do Tempo no ensino dos cursos de graduação em
História,' tanto por estar no campo nos últimos anos, como pelo fato de que, apesar das
dificuldades conceituais, Ernesta Zarnboni e Circe Maira Fernandes Bittencourt tem, nos 1 últimos.
/anos, dedicado alguns artigos a questão do ensino de I s e 2 s graus. '
5- LANGLOIS, Ch. V. e SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos estudos históricos, São Paulo:
Renascença, 1946. p. 74 - 172 (1* ed. 1898:)
6- BAUER, Wilhelm. Introduction al estudio de la história. Barcelona: Bosch, 1970. (Ped.l921.)
7- BRAUDEL, Fernand. A longa duração. In: - História e Ciências Sociais, Lisboa: Presença, 1972.
(Is ed. 1958.) : - -
8- CORDOLIANI, A. Comput, chronologie, calendries, e BEAUJOUAN, G. Les temps historiques.
In: SAMARAN, Ch. (org). L'histoire et ses mithodes. Bruges: Gallimard, 1961.p 31-51 e 51-67.
9- LE GOFF, J. (org). Memória - História. Enciclopédia Einaudi. V. 1, Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1984. P. 260, 293, 311, 370, 393 e 425.

10-Ver, entre outros, VILAR, Pierre. O tempo do Quijote; BAGU, S. Tiempo, realidad social y
conocimiento; ARlfiS, Ph. O tempo da história; e ainda, Le Goff, Duby, Foucault, Thompson,
Taylor, etc.
11-Vide POMIAN, K. L'ordre du temps. Paris, Gallimard,, 1984, e Current. Sociology, 37 (3), winter
1989-The sociology of Time, org. de Gilles Pronovost.
12- Vide CHESNEAUX, JJiacemos tabla rasa del pasado? Madrid: Siglo Veintiuno, 1984. (1 °ed.

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1976), e FERRO, Marc. A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação. São
Paulo, IBRASA, 1983. (1* ed. 1981), e FERRO, Marc. A história vigiada São Paulo: Martins
Fontes, 1989.
13. Vide VEZENTINI, C. & DE DECCA, E. A Revolução do vencedor. Contraponto. Rio de Janeiro:
1976 e DE DECCA, Edgar. O silencio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1981. Ver também
BENJÁMIN, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985, 1987, 1989.
14- CHESNEAUX, Jean. L'axe passé/présent/avenir. Espaces Temps. Paris, n. 29, 1985, p. 13, onde
diz: "L'histoire c'est, d'une part, un ensemble de techniques: tout le monde ne peut
pas'improviser specialiste de la connaissance histonque... d'autre part, represente la continuite
interne de la dimension du temps, l'articulation d'une période à une autre."

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SEMINÁRIO

RELATO E ANÁLISE DE UMA EXPERIÊNCIA

Conceição Cabrini - rede


pública de São Paulo

INTRODUÇÃO

Este relate diz respeito a uma experiência, realizada no ano letivo de 1987, com as 6's
séries1 do período diurno na E.E.P.S.G. João Baptista de Brito, localizada no Município de
Osasco em São Paulo.
Como estava ingressando no referido estabelecimento, naquele ano, necessitava
conhecer minha nova unidade escolar e clientela para poder montar meu objeto de estudo.
Interessava-me, sobretudo, saber como era a relação aluno-escola e vice-versa e qual a
concepção de História que q alunos possuíam.
Nesse momento preliminar, antes de chegar ap objeto de estudo, procurei discutir a
História vista como construção, através de varias visões. Elaborei algumas questões
problematizadoras2 que diziam respeito a fatos da vida escolar vivenciados pelos alunos, com o
objetivo de fazê-los refletir sobre a sua historicidade.
Essas questões foram aprofundadas através do texto "O pássaro que queria pousar na
estrela"3. Comparamos as duas formações culturais (a vivencia dos alunos com a do índio
Tsiprê), destacando o papel da mulher, a questão da criança e sua educação.
Com o objetivo de deixar claro para os alunos que o fato histórico pode ser reconstituído por
diversos modos, lembrei-os do movimento que a comunidade escolar vinha fazendo, ha algum
tempo, para exigir a reforma do prédio. Tínhamos varias versões sobre a reformulação da escola: a
do diretor, a da A.P.M. (Associação de Pais e Mestres), a dos professores, a dos alunos e,
finalmente, a dos órgãos oficiais. Mas a documenta9ao oficial provavelmente estaria registrando o
lado dos personagens; "principais": a do diretor (a instancia que solicitava a reforma), a da
Secretaria da Educação (o órgão
que concederia a reforma), excluindo da documentação os outros personagens e suas versões.
Procurei: portanto, através deste acontecimento, discutir o "fazer história", as implicações com
o seu registroe a questão da memória.
Para facilitar a compreensão dessas questões, recorri, mais uma vez, a elementos
constitutivos da sociedade indígena, através da poesia "Pássaro Vermelho" 4 . Os autores,
Milton Nascimento e Fernando Brant mostram a perda dos espaços físico-culturais das sociedades
indígenas

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que correm com a dominação européia no Brasil. Discutimos .a versão do fato dada pelos autores e
perguntei.como os europeus registraram este fato.
Essa questão fez-nos voltar ao problema do registro e, após analisá-lo, relacionamos a
possível perda de identidade, com a expulsão dos indivíduos de seu espaço (físico-cultural). No
entanto, a expulsão não acontecia (acontece) pacificamente, porque havia (há) resistência (a poesia
e um exemplo) e constante luta pela reconquista daquele espaço.
Chegamos assim ao objeto de estudo "Ocupação da Terra: Invasão/Expulsão - a resistência".
Foi trabalhado, principalmente, o conflito destas relações e construção histórica realizada pelos
diferentes agentes envolvidos no conflito. Assim, passamos a estudar: a) "a questão Indígena: ontem e
hoje", b)"a questão do negro: ontem e hoje", c) "os despossuídos", Nesse item, voltamos a enfocar a
cidade de Osasco5 e discutimos o movimento dos sem-terra.

A) A QUESTÃO INDÍGENA - ONTEM E HQJE

Trabalhamos, com documentos e textos historiográficos, visando analisar o projeto de sociedade


indígena, o modo de vida e de trabalho, o cheque com o branco e a expulsão da terra.
Organizei uma coletânea de documentos que mostravam o pensamento do colonizador em
relação ao indígena. Os alunos confrontaram os documentos, tiraram conclusões e realizaram uma
redação em grupo.
Lemos e discutimos textos de ficção como Kadiew, que enfoca a questão indígena hoje, a. história
da perda e da recuperação da identidade do indígena. E, Mistério do Grande Rio, que trata da expulsão da
terra na América espanhola..
O livro A Confederação dos Tamoios foi lido através de transparências em aula, trazendo
a questão da resistência indígena ate hoje, apontando como solução a Assembléia Indígena. Foi
confrontada esta versão com a. dos livros didáticos.
Os alunos pesquisaram sobre a sociedade indígena hoje e usaram como fonte o Boletim Comissão
Pró-Índio.

B) A QUESTÃO NEGRA: ONTEM E HOJE 7

Com o objetivo de analisar um outro caso de expulsão da terra, introduzimos a "Questão


Negra". Iniciamos o trabalho com a leitura e discussão da "Lenda dos Nagôs". Aprofundamos o tema
com a leitura do texto de Antonil: "Como há de haver o senhor de engenho com seus escravos" e
'analisamos as gravuras de Rugendas e Debret.
Encerramos a "Questão Negra" com a discussão em classe sobre o problema do negro hoje.

C) OS DESPOSSUÍDOS 8

Subsidiados pelas reflexões anteriores, através de textos e documentos sobre a questão indígena e
a do negro, os alunos tiveram elementos para captar e problematizar a questão dos "sem-terra". Neste
momento, ampliaram-se as generalizações ocorridas anteriormente, percebidas no estudo da sociedade
indígena e da questão negra: a percepção da invasão, da resistência e da expulsão, como uma relação de
classe. O conceito de classe social foi visto ,no embate da expulsão e reconquista.
Para enfatizar,,a, questão do conflito da terra, mostrando que ela e uma questão social e não étnica,
lemos o texto "A Escravidão no Brasil Hoje", de José Souza Martins, e os livros Deus me

Livre e Açúcar Amargo, de Luiz Puntel. Com este mesmo objetivo, assistimos ao filme "A Marvada Carne",

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para analisar o ripo de expulsão da terra sofrida pelo caipira, relacionando-a com a sociedade indígena.
Encerramos o tema com uma pesquisa sobre os sem-terras de Osasco. Os alunos entrevistaram
representantes do PT, PMDB, Igreja e sem-terras de Osasco. Os dados foram tabulados e subsidiaram o
debate final.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como penso que a apropriação do conhecimento se da num processo de construção, tinha como
pontos centrais: os trabalhos elaborados pelos alunos, pela classe (construção coletiva) e o confronto de
minhas preocupações com as dos alunos. O conhecimento e produzido no conjunto e não unilateralmente.
Colocávamos em sala de aula as reflexões dos alunos e minhas, dos textos e documentos
estudados. Para isso, usava o material disponível: lousa, giz e caderno. O trabalho do aluno ia para
a lousa e a classe anotava, em seus cadernos, as reflexões do companheiro. Nesse sentido, eles tiveram
contato com a documentação e historiografia, onde era ressaltado o posicionamento diferenciado;
percebiam, também, que as suas próprias elaborações eram diferenciadas. O dizer dos alunos não era
repetição, mas assumido politicamente.
Por isso, a avaliação não era o "certo" e o "errado" e isso, no início, os alunos estranharam muito.
Eu incentivava a argumentação de suas reflexões; toda semana recolhia seus trabalhos. A cada aula
discutíamos nossas posições frente a um texto, buscando o projeto social do autor. Essas discussões
iam do individual para o coletivo e do coletivo para o individual.
Percebi que, no decorrer do ano, os alunos iam se firmando em seu poder de argumentação, havia
sempre um porque do seu falar. "Penso assim porque..."
Acredito que estes alunos poderão experienciar o seu dizer, seja qual for a metodologia dos
professores ou da escola, com os quais entrarão em contato. Saberão conviver com o diferente e se
posicionarem, assumindo as suas colocações.
Em termos de resultado do trabalho, penso que muita coisa deva ser reavaliada. Por exemplo:
um maior tempo para um trabalho final mais elaborado, mais discutido, envolvendo outros professores,
pais etc.
Penso, também, que trabalhar nesta concepção de conhecimento exige uma constante reformulação e
reconstrução. A partir de um trabalho realizado e avaliado, novos problemas surgirão e a tentativa de
resolução estará em nova construção.

NOTAS

1- Em 1987 lecionava para 10 classes: três 5ªs séries, três 6ªs séries, duas 8ªs séries e dois 3ºs colegiais.
Fiz este diagnóstico com todas as classes e, posteriormente, em cada servir e, trabalhei com um tema
diferente.
2- Questões problematizadoras: o que vocês fazem na escola? Para que estudar história? O que é história?
Em que livro você estudou? O que você acha da escola? E os seus pais? Por que vir a escola?

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A quem pertence a escola?


ALENCAR, Chico. Brasil - Vivo. Petrópolis: Vozes. pag. 11.
4-Idem, pag. 8.
5- No estudo dos textos introdutórios, ainda na fase diagnostico, percebi que os alunos não conheciam
alguns problemas de sua cidade, Osasco.
6- Trabalhei os seguintes textos e documentos: - Coletânea de documentos históricos para 1° grau: 5« a
8' serie - SP: SE/CENP/1981. p. 13 a 17. – O Índio na História do Brasil - de Berta Ribeiro. Ed. Global,
Excertos. - História dos Povos Indígenas; 500 anos de luta no Brasil, RJ: Vozes/CIMI. p. 106 a 109.
- Kadiew - Jose Hamilton Ribeiro, Editora Brasiliense. - A Confederação dos Tamolos. R.L:
Vozes/CIMI. - Boletim Comissão Pró-Índio, na 11, out.nov de 1982. - Mistério do Grande Rio - Antonieta
Dias de Moraes - Nova Fronteira. - Seleção de documentos de História da América para 2s grau - Curso
da ANPUH. Uberlândia - MG/1986, Profª. Helenice Ciampi.
7- Trabalhei os seguintes textos e documentos: - "Lenda dos Nagôs" in Brasil Vivo, pp. 44-5. -
Cultura e Opulência do Brasil - Antonil - Cap. DC. - Rugendas - "A Viagem Pitoresca através
do Brasil", Livros de Ouro. - Debret - "Viagem Pitoresca e Hist6rica ao Brasil", Livros de
Ouro.
8- O material trabalhado foi: -"A Escravidão no Brasil Hoje" - Jose de Souza Martins, F.S.P., 1986.
- Deus me Livre - Luis Puntel, Ed. Ática. - Açúcar Amargo - Luis Puntel, Ed. Ática.

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SEMINÁRIO

EXPERIÊNCIAS ALTERNATIVAS NO ENSINO DE


HISTÓRIA

Helenice Ciampi/PUCSP

O conhecimento histórico é um campo sempre em aberto, seja porque o processo histórico nunca
cessa de agregar novos acontecimentos, seja porque existe uma constante releitura dos acontecimentos.
A História não e constituída por conhecimentos definitivos. Para alguns historiadores, ela e "o
constante repensar um objeto em movimento, processo em que o historiador e, a um só tempo, sujeito do
conhecimento e da história. O saber produzido por este historiador constituiu, neste sentido, parte da
própria história, submetido às determinações e aos limites do seu tempo e, dentro dele, aos
condicionamentos sociais que lhe são colocados" 1. Há, portanto, diferentes maneiras de apreender o
histórico e a história e reescrita segundo preocupações e diferentes pontos de vista, que são, também,
historicamente condicionados.
A revisão teórica pela qual passou a História seja em 30, com os Annales, ou na década de 50,
que, de certa forma, prossegue a linha de inovações dos Annales, deve ser pensada quando se indaga o
que e ensinar história hoje. As novas perspectivas de investigação sobre a concepção de história, a
forma de pensar a história e sua produção, precisam ser discutidas e incorporadas para que possibilitem
avançar também nas questões de sua transmissão. "A tarefa inevitável para a disciplina e reescrever a
história e ao mesmo tempo reformular o seu ensino" 2.
Ao discutir a questão da expansão do interesse pela História, Emanuel Le Roy Ladurie afirma
que, se, hoje, ela invade o publico adulto, no entanto, o mesmo não acontece no ensino primário e
secundário. Ocorre um desnível entre o desinteresse na escola e o entusiasmo no publico adulto. Le
Goff, concordando com ele, preocupa-se com a forma pela qual as novas investigações chegam a
escola. A advertência de Le Goff e para com a manutenção do discurso tradicional, mais determinista do
que nunca, ao lado da introdução de temas substituindo a história por períodos. Critica, pois, em nível
do 1° e 2s graus, a forma como a "Nova História" tem sido tratada, não explicando o porque das coisas
aparecerem e se transformarem. Não se trata, insiste Le Goff, da mera substituição dos períodos por
temas3. O importante e trabalhar uma nova concepção de história, uma história em construção, como diz
Pierre Vilar.
Michel Certeau denuncia, sobretudo, a disparidade entre a produção historiográfica e os
manuais. Os temas, às vezes, diz ele, ate mudam, mas se ocultam a maneira como a historiografia se

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constrói, as razões das suas modificações, o modo de suas representações, com as problemáticas
contemporâneas que determinam a sua construção. "O manual fala da História, mas não mostra a sua
historicidade. Através deste défice metodológico impede ao estudante a possibilidade de ver como
tudo se origina e de ser ele próprio produtor de História e de historiografia. Impõe o saber de uma
autoridade, quer dizer, uma não História" 4. E fundamental que o aluno perceba as relações de poder
perpassam a sociedade e, para isso, ele deve ser introduzido nas questões da produção do
conhecimento.
Assim, alterações significativas no processo de produção do conhecimento histórico
precisariam ser pensadas nos seus distintos níveis de ensino: o de 1° e 2° graus, que constituem, hoje, no
Brasil, o quase único mercado de trabalho dos graduados em História, e o ensino de 3° grau, que deve
formar esses profissionais.
Se o curso superior prepara os profissionais dos 1° e 2° graus, o enfrentamento do problema do
ensino e o da produção do conhecimento histórico supõem uma reflexão integrada dos três níveis de
ensino. Ater-se apenas a qualquer um deles e sacrificar uma visão de conjunto, perdendo-se as relações
implícitas das especificidades de cada grau. Creio que, dessa forma, poderemos nos remeter a um outro
problema que envolve pensar estratégias para a ampliação do pensamento reflexivo.
No documento "Diagnostico e Avaliação dos Cursos de História no Brasil", divulgado pelo MEC
em 86, o grupo de consultores conclui "que o conhecimento histórico deveria ser encarado, em qualquer
organização curricular, em sua tríplice dimensão: produzir esse conhecimento através da pesquisa e da
docência; criticar o conhecimento existente e aquele em processo de produção; transmitir o
conhecimento a partir de uma posição critica, tanto através da pesquisa quanto da docência. Produzir,
criticar, transmitir supõem um novo tipo de formação que coloca em jogo a própria natureza do
conhecimento histórico e que tem na pesquisa sua condição básica, implicando, por isso mesmo, a
necessidade de repensar também o conceito de pesquisa" 5.
Se ensinar história e criar a possibilidade de investigação, torna-se impossível separar ensino e
pesquisa na formação do profissional de história. Ela deve ser única, independentemente do campo em
que atuara o profissional. Kant dizia que "não se ensina a história (a filosofia, no original), mas somente
o fazer história (filosofia)"6.
Nesse sentido, ensinar história e, em todos os níveis, despertar no estudante a capacidade de
construir um objeto de conhecimento histórico, de saber se situar na historiografia e de efetivar a
investigação proposta. Estamos afirmando que a complexidade da produção do conhecimento histórico
precisa ser pensada em fun9ao de sua adequação e não da mera simplificação nos diferentes níveis de
ensino.
Para concretizar essa concepção de ensino, professores de História dos três graus,
constituíram um grupo de estudos, do qual este texto sintetiza algumas reflexões.
A definição de princípios bem definidos, ainda que não definitivos norteadores do ensino de
história, em sua pratica diária, e um dos objetivos do grupo.
O processo de definição e amadurecimento desses princípios se deu no desenvolvimento de nossa
pratica profissional, enriquecida, por um lado, pelas nossas leituras sobre o debate teórico e, por outro,
pelo debate das propostas de reforma curricular. Esses princípios não são originais. Foram formulados
teoricamente por outros autores, embora alguns já estivessem presentes em nossa pratica. Podemos
concentrá-los em três pontos: a questão do ensino-aprendizagem, a experiência do aluno e sua expressão,
a concepção de história.
O ensino-aprendizagem deve visar, nos três graus, a um trabalho com o pensamento. Faz-se
necessária a distinção entre conhecimento e pensamento.
Conhecimento e a aprópriação intelectual de um certo campo de objetos e/ou idéias. Muitas

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vezes, é sinônimo de uma mera sistematização, organização de dados da experiência, vendo a


experiência como um espelho desordenado do real. O conhecimento compreenderia, então, a
ordenação do real sem visar a compreensão do sentido da experiência 7.
Pensamento e um trabalho de reflexão que se esforça para elevar uma experiência (não
importa qual) a sua inteligibilidade, acolhendo a experiência como indeterminada, como não saber
que pede para ser determinado e pensado, isto e, compreendido. Para que o trabalho do
pensamento se realize, é preciso que a experiência fale de si para poder voltar-se sobre si mesma e
compreender-se. O conhecimento tende a cristalizar-se no discurso sobre; o pensamento se esforça
para evitar essa tentação apaziguadora, pois quem já sabe já viu e já disse, não precisa pensar, ver ou
dizer e, portanto, também nada precisa fazer. Nossa preocupação, entretanto, e com o pensamento,
tentando-se fazei uma reflexão histórica que seja produto dos dois pólos: professor e alunos. "Ao
professor não cabe dizer: faca como eu, mas faca comigo. O diálogo do aluno e com o
pensamento, com o mundo que o rodeia, mediado pelo professor"'.
É preciso fazer do ensino-aprendizagem uma obra do pensamento, como diz Claude Lefort,
isto é, fazer um trabalho de reflexão sobre a matéria da experiência, um trabalho de escrita sobre i
reflexão e um trabalho de leitura sobre a escrita, lembrando que ler é aprender a pensar na esteira
deixada pelo pensamento do outro, e retomar a reflexão do outro como matéria- prima para o
trabalho de nossa própria reflexão10. E nesse sentido que entendemos a produção do conhecimento
no 1º e 2° graus. A partir de elementos levantados para o exame de uma determinada realidade
histórica, espera-se que os alunos façam, em sala de aula, um trabalho de reflexão, fruto da sua
experiência, observação, interpretação e discussão de dados; espera-se que expressem suas reflexões,
estabelecendo relações entre tudo que foi trabalhado e talvez ate avançando alem do que já foi dito
em classe, Espera-se, também, que façam a passagem da fala a escrita, da discussão coletiva a
sua individualização; e que, posteriormente, tenham oportunidade de ler e confrontar as
diferentes reflexões, tentando inferir, concluir, ou seja, avançar, mais uma vez, na compreensão do
objeto de estudo. Essa produção de conhecimento será algo novo para os alunos, mas não para o
saber instituído.
Tendo em vista a forma como e estruturada a escola e concebido o conhecimento, nosso
alunado, em geral, apresenta dificuldade em expressar suas percepções e em exteriorizar as
articulações entre o que se lê e o mundo em que vive. Num ensino massificante, as práticas
pedagógicas não só discriminam, mas também emudecem os alunos. Privados de uma relação
significativa com a linguagem acabam não conseguindo expressar sua realidade.
Na maioria das vezes, no 1° e 2° graus, a linguagem e reduzida a dimensão meramente
denotativa ou indicativa, de sorte que a relação entre as palavras e as coisas nunca passa pela
mediação das significações. Reduzida ao esquema binário da relação signo-coisa, a linguagem foi
exilada do sentido e da região que lhe e própria, isto e, da expressão".
É fundamental que o aluno consiga expressar-se para poder então expressar sua realidade,
não apenas descrevendo-a e reproduzindo o senso comum, mas resgatando o sentido de suas
experiências, desvendando o véu que encobre o cotidiano.
É fundamental que o aluno se coloque a partir de sua situação social: precisamos recuperar
com ele sua perspectiva de classe para que se localize na história.
Ecléa Bosi12 diz que estamos habituados a supor que o "povo" tem um código perceptivo e
lingüístico restrito (eufemismo para encobrir: inferior, pobre, estreito), pois tomamos nossos próprios
códigos como modelos e somos incapazes de aprender a diferença de um outro código: conciso
pela fala, expressivo pelo gesto, marcado pela fadiga e por um relacionamento com o trabalho na
forma do cansaço.

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Daí todo um trabalho voltado para a análise da realidade mais próxima do aluno, como um momento
importante e significativo da pratica pedagógica. Mas, não simplesmente, como uma ilustração, uma aula
complementar, uma motivação inicial, mas uma atividade básica do trabalho Pedagógico. A semelhança do
narrador de que nos fala Walter Benjámin13, o historiador (ai no caso, do professor) deve tecer a trama de sua
narração com os fios da experiência, a sua e a dos outros, de modo que seu relato possa ser incorporado a
experiência de seus leitores (no caso, seus alunos, acrescento eu). Recuperar a figura do cronista que,
segundo Benjamin, esta em vias de extinção na sociedade moderna, pois que estamos privados de uma
faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.
Por que seria importante essa recuperação? Porque o narrador conta o que ele extrai da experiência, sua
ou aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a história. Não inclui
apenas a própria experiência, mas, em grande parte, a experiência alheia. "O cronista que narra os
acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que
um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história"14.
Centrar as experiências da aprendizagem na realidade social do aluno nos sugere muitas interrogações.
Para nos, não se trata simplesmente de atualidades, nem de uma mera substituição do passado pelo presente, que
manteria inalterada a consideração empírica do tempo histórico, invertendo superficialmente os termos. Não e um
mero presentismo, pois seria um reducionismo empobrecedor das especificidades de outras formações sociais e
outros momentos históricos.
Esse centrar implica indagar sobre a historicidade da experiência social, hoje e em outros momentos da
história. Marc Bloch insiste sobre o valor da experiência cotidiana vivida, sobre o que chama o "contato
perpetuo com o hoje": "Em verdade, conscientemente ou não, e sempre de nossas experiências cotidianas, das
quais, para matizá-las, onde for necessário, com tintas novas, tomamos, em última analise, os elementos que
nos servem para reconstituir o passado (...) O erudito que não sente a inclinação de olhar ao seu redor, nem aos
homens, nem as coisas, nem aos acontecimentos, merecera talvez o nome de útil arqueólogo, porem trabalhara
sensatamente renunciando ao de historiador"15.
Chesneaux nos adverte que esse "contato perpetuo com o hoje" não chega, contudo, a inverter
realmente a relação passado- presente, pois compreender o passado seria o objetivo principal do historiador. O
presente seria um artifício pedagógico para encontrar boas pistas ou tornar o passado interessante. Porém, e
preciso ir mais fundo, e preciso afirmar o princípio da primazia do presente sobre o passado. É preciso levar em
conta que a reflexão histórica e regressiva, que funciona a partir do presente, no sentido inverso do fluir do
tempo... O presente tem primazia sobre o passado porque unicamente o presente possibilita e permite
transformar o mundo. Importante e o caráter operatório de relação com o passado, sua atitude de responder as
exigências do presente: seus problemas e lutas.
Centrar a aprendizagem na realidade social do aluno significa que se leve em consideração o aluno
como agente capaz de propor questões ou dispor de conhecimento a partir de sua própria experiência, pois hoje
o ensino de História esta tão caótico que o aluno e expropriado dos mínimos instrumentos para pensar o
processo por ele vivido e sente-se impotente e incapaz de enxergar-se como sujeito.
Por realidade mais próxima do aluno, entendemos tudo o que está ligado a sua própria experiência de
vida, o que tem a ver com o que ele sabe, se interessa, se preocupa, pensa, etc., e que esta marcado
profundamente pela experiência do meio cultural que o envolve, dos grupos sociais nos quais esta inserido. Não
necessariamente só aquilo que o aluno viveu diretamente, mas também indiretamente, através de sua família
e/ou de seu meio social.
Tratar um conteúdo vinculado a realidade do aluno permitira mais facilmente se chegar, com

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ele, ao conhecimento do objeto, a sua descoberta, ou seja, apreende-lo em seu movimento, em suas contradições.
Ao propor que o objeto de estudo parta da realidade mais próxima do aluno, visamos sobretudo, a
aproveitar sua experiência, seu saber histórico.
A linguagem do aluno deve ser pensada como expressão de um sujeito que esta refletindo e não
unicamente em sua correção formal. Por isso, devemos ficar atentos para não bloquear, com exigências
formais, o aluno na expressão de suas reflexões. O não saber escrever corretamente n\ o impede de pensar. £
esse pensamento, sua relação, seu dialogo com o mundo que o cerca j instrumental básico que desejamos
explorar em nosso trabalho pedagógico.
O aluno precisa se acostumar a exprimir-se oralmente e por escrito. Perder o medo, inibição ou a
preguiça de fazê-lo, tão próprios de uma sociedade que nos leva cada vez mais a um menor contato com a
palavra escrita.
A concepção de história16 pode ser percebida peia forma de encarar o conhecimento histórico, pela
visão de processo e periodização, pelo destaque dado ao elemento fundamental m explicação do processo, pela
seleção e tratamento das fontes.
Para nos, a história estuda as ações dos homens, procurando explicar as relações entre seus diferentes
grupos. Produzir história, realizar uma reflexão histórica, e procurar captar e recuperar ai relações que se
estabelecem entre os grupos humanos no desenvolvimento de suas atividades nos diferentes tempos e espaços.
É fazer emergir toda a trama de relações sociais que constituem o nossos objeto de estudo. É identificar os
interesses dos grupos envolvidos e resgatar seus projetos alternativos e abortados.
A história, portanto, ao estudar as transformações de uma sociedade, deve procurar a ação dos
diferentes grupos que atuam nessa sociedade. Quando uma sociedade e pensada como um todo e se fica
atento as ações de seus diversos grupos, explica-se por que seu processo toma um determinado caminho e
não um outro. Percebem-se as injunções que permitiram a concretização de uma possibilidade e não de outras.
Ao se pensar o processo com essa preocupação, destrói-se a idéia de sua direção única t inevitável.
Afastamos, assim, a noção do principio da causalidade determinista, a idéia de necessidade histórica, afastamos
também uma visão maniqueísta povoada de heróis e vilões.
Para se estudarem as relações humanas em seus diferentes móveis, o que temos a fazer
buscar os vestígios dessas relações. Tudo quanto se diz, se conta, se constrói, se fabrica, é
manifestação da ação humana, e um testemunho histórico e, como tal, não e o espelho fiel
realidade, mas uma representação de partes e momentos particulares dela. Ter o conhecimento;
histórico como uma construção que deve ser questionada, e não considerá-lo como verdade acabada,
e um dos nossos princípios. "Reconhecer e trabalhar a historiografia enquanto produção intelectual
do conhecimento, realizada sob determinados e diferenciados condicionamentos sociais, portadora,!
portanto, de concepções e visões diversas sobre a realidade social, objeto de analise"17. ;'
Todo "conteúdo" e construção, pois o conhecimento histórico o e. O real não existe senão enquanto
conjunto de versões, ou melhor, de representações. No nível de declaração de princípios, todos nos parecemos
estar de acordo com isso, mas no nível da pratica muitas vezes nos relacionamos com a produção existente
como se ela fosse o real, e não uma representação dele.
Dai a importância de se trabalhar com varias fontes sobre o tema em analise. As fontes trazem
evidencias que são incompletas, mas não inverídicas. Representam desejos, interesses, ações. dos diferentes
sujeitos envolvidos. Embora a maior parte destas pessoas que estudamos já tenham morrido, e como pessoas
vivas que procuramos recuperá-las. São as perguntas que lhes fazemos que nos permitem levantar os interesses
dos indivíduos e grupos que deixaram esse registro. São pois as

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perguntas feitas aos documentos e suas respostas que vão esclarecendo as relates que buscamos e suscitando a
procura de novas fontes. Eis por que e necessário ir levantando os dados extraídos de diversas fontes,
procurando relacioná-los, confrontando as diferentes representações para maior aproximação da realidade. O
real confunde-se com a própria reconstrução. Dai a nossa preocupação com a construção/reconstrução do
conhecimento. Desde o seu primeiro contato com o ensino da história, o aluno deveria perceber que a história
não e o passado, mas um olhar sobre o passado. Esse olhar parte (depende) de quem olha: do seu lugar social, do
seu tempo, de sua instituição, de suas preocupações no hoje.
Mesmo que, porventura, o professor não trabalhe com mais de uma representação sobre um tema, ou
não diversifique as manifestações dos sujeitos envolvidos num mesmo falo, e importantíssimo começar a
sensibilizar o aluno para a questão da construção do conhecimento histórico: a gravura que observamos, o
documento que lemos, o texto que interpretamos e uma leitura sobre o tema e não a leitura, a verdade. £ neste
sentido que toda e qualquer produção literária ou jornalística, a ficção em geral, e objeto de análise histórica. É
mais uma representação da realidade, que, por suas características, poderá ajudar o aluno a melhor
compreendê-la.

.x.x.x.x.x.

Um dos objetivos do nosso grupo de estudo tem sido a socialização das experiências, entendida como
mais uma oportunidade para refletir sobre a pratica diária; como um caminho concreto para o trabalho integrado
dos três graus de ensino, na tentativa de romper as fronteiras institucionais.
Sabemos da dificuldade da reconstituição de uma experiência. E impossível recuperar-se a posteriori e
por escrito todo o dinamismo de um trabalho pedagógico. A tentativa permite, entretanto, clarear os princípios
que a embasam, as dificuldades enfrentadas e os resultados obtidos dentro dos limites das condições de
trabalho que temos e das deficiências da formação profissional que recebemos.
O relato que se segue deve ser entendido dentro destes parâmetros. Chamo a atenção para a forma
como a professora Conceição montou o seu objeto de estudo e a relação presente/passado.
Uma vez que a história estuda as transformações sociais, seu objeto de estudo e sempre uma
determinada sociedade, em determinado momenta, sempre pensada como um todo, embora nem sempre
analisada em sua totalidade.
Nossa preocupação, como vimos, e que o aluno compreenda a realidade em estudo e a explique. Para
isso, e preciso interrogai a realidade para estruturá-la, dar-lhe um sentido, um significado com marcos de
referenda explicativos.

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Ao selecionar o seu objeto de estudo juntamente com seus alunos, o professor deve construí-lo sob a
forma de uma problemática, que permita levantar os "comos" e os "porquês" do objeto em estudo. Quanta
mais rica e densa for a problematizarão do objeto de estudo a ser examinado, melhor será o resultado da
analise, porque o exame da problemática inicial levara, necessariamente, a outros tempos e lugares. A história e
um entrelaçar constante de tempos e espaços,
A problemática, inicialmente, ira se situar numa das quatro possibilidades seguintes:

Espaço Tempo

1) Aqui agora
2) Aqui em outro tempo
3) Em outro lugar em outro tempo
4) Em outro lugar agora

No relato que se segue da professora Conceição Cabrini, a montagem do objeto de estudo foi fruto do
trabalho conjunto professor-aluno. Partiu da 1ª opção, aqui-agora. Sua problematização inicial para a
construção do objeto de estudo foi: O que fazem na escola? Questão esta desmembrada e em: Por que
freqüentam a escola? Para que estudar história? O que e história?
Seu objetivo era recuperar o conhecimento que os alunos tiveram, anteriormente, de história, para discutir
o que e história, aproveitando fatos da vida escolar, sensibilizando-os sobre sua historicidade e sobre como
se da a construção de um fato e de sua memória.
Para ampliar/facilitar a compreensão dessas questões, a professora passou a analise da 3* possibilidade:
outro tempo e lugar, ou seja, qual o projeto de sociedade e de escola de uma comunidade indígena, através
da analise de uma lenda. Em seguida, professores e alunos trabalharam comparativamente a vida do aluno e do
indiozinho, destacando semelhanças e diferenças entre as duas realidades em relação a questão da criança e sua
educação; o que e ter "um bom comportamento" e qual o papel da mulher nas respectivas sociedades.
Na analise realizada, percebeu-se que a perda da identidade esta ligada a perda do espaço e a luta pela
sua reconquista e, ainda, a perda do controle da construção de sua memória.
Assim chegou-se ao eixo temático: a perda de identidade, a perda da terra e a luta pela sua reconquista.
Esta temática foi estudada no ontem e no hoje e com diferentes grupos sociais: o indígena, o negro e o
caipira (o caboclo), ampliando a questão do conflito da terra, mostrando que ela não se confunde com um
grupo étnico, tratando-se de uma questão social.
Nesse tipo de trabalho, portanto, esta uma nova relação com o tempo. Uma relação não linear entre
passado e presente. Uma relação dinâmica partindo de problematizações sugeridas pelo presente, em busca da
recuperação de outros momentos, num constante ir e vir entre presente e passado, através de temas ou eixos-
temáticos.
O trabalho com temas nos diferentes tempos (hoje/ontem) conjugara a pesquisa de campo (com
levantamento de dados, entrevistas, tabulação e analise dos elementos apreendidos) com a interpretação e
confrontação do material já produzido sobre o tema.
Concluímos que, para avançar na questão do ensino de História, temos que assumir responsabilidade
social e política com o momento vivido. Fazer, de data, do ensino uma prática social. Essa luta se trava em
vários espaços. No teórico- metodológico, implica romper com a maneira tradicional de conceber o
conhecimento, sua produção e transmissão, inteiramente dissociada da

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realidade social, da sua existência concreta, da base real e material sobre a qual se constrói o lodo social.
No âmbito profissional propriamente dito, e no sindical, significa envolver-se e pressionar associações
profissionais e entidades de classe ou políticas na luta pela valorização da educação como um todo e do ensino
publico em especial.
Como membro de uma associação que congrega professoras dos três graus de ensino, pergunto-me
como a ANPUH deve enfrentar as difíceis questões do ensino publico. Como encaminhar, sem
dissociar, as questões sindicais (luta por melhores condições de trabalho e salário), pedagógicas (formação do
professor e sua permanente atualização) e especificas (no campo da pesquisa e ensino da História)?
Nossa associação é precária em recursos materiais e humanos. Há, portanto, que mobilizar recursos e
financiamentos e elaborar projetos de intervenção, avançar no questionamento da dimensão social do trabalho do
professor de História na rede pública.
Há uma história da ANPUH que se insere no processo da Universidade no Brasil e nas contradições da
sociedade brasileira. Hoje, para a ANPUH se redefinir e avançar, penso que seria importante resgatar suas
origens. Ela se constituiu e se fortaleceu enfrentando o MEC na luta contra os Estudos Sociais, contra as
licenciaturas curtas e pela recuperação do ensino nos três graus. O 1° e 22 graus são partes integrantes de sua
história.

NOT AS

1- Contribuição ao diagnostico sobre os cursos de História do Brasil. 1982. p. 3 e 4. (Projeto da


Reforma Curricular do Departamento de História da IFCH-UNICAMP - Mimeografado).
2- FENELON, Diz. A licenciatura na área de Ciências Humanas. Ciência e Cultura, 35 (9),
setembro de 83.
3- LE GOFF, Jacques et alii. A história, uma paixão nova. In: A nova História. Lisboa, Edições 70,
1984. p. 12 e 14.
4- Idem, p. 13.
5- MEC - Brasília. Maio de 86. Diagnostico e Avaliação dos Cursos de História no Brasil, pag. 33.
6- A reforma do currículo do curso de História; elementos para discussão. Departamento de
História/ÚNICAMP, 1985. (Mimeógrafado).
7- CHAUÍ, Marilena de Souza. A reforma de ensino. Revista Discurso. Departamento de Filosofia
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP/HUCITEC, (8): 152-39, maio de
78.
8- CHAUÍ, Marilena de Souza. Ideologia e educação. Revista Educação e Sociedade. São Paulo,
Cortez Editora, Autores Associados/CEDES, (5), 26 de Janeiro de 1980.
9- Idem, p. 39.
10-CHAUÍ, Marilena de Souza. Os trabalhos da Memória. In: BOSI, Ecléa. Mem6ria e sociedade;
lembranças de velhos. São Paulo, T. A. Queiroz, 1979. p. XXI.
11-CHAUI, Marilena de Souza. A reforma de ensino. Revista Discurso. Departamento de Filosofiada
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP/HUCITEC, (8) : 155-6, maio de
1978.
12-BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade; lembranças de velhos. São Paulo, T.A. Queiroz, 1979.
13-BENJÁMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1985. pp. 201,197 e 198

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e 198.
14-Idem, p. 223, tese 3.
15-Citado por CHESNEAUX, Jean. Hacemos tabla rasa del passado? Mexico, Siglo VientiuJ
Editores, 1977. pp. 60 e 61.
16- Aqui retomo, de forma sintética, algumas idéias da segunda parte do livro O ensino da História:
Revisão urgente, do qual sou co-autora, editado em São Paulo pela Brasiliense, em 1986.
17- FENELON, Déa. A formação profissional de História e a realidade do ensino. Projeto História, São
Paulo, (2): 16, agosto de 1982.

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MESA REDONDA

ALGUMAS NOTAS SOBRE A HISTORICIDADE DO


REGISTRO FOTOGRÁFICO

Maurício Lissovsky
1) A FOTOGRAFIA DEVIDAMENTE HISTORICIZADA

O tema do presente painel - fontes - nos força a deixar de lado as "aplicações"


historiográficas da fotografia: que tipo de história ela ajuda a construir ou quais objetos lhe são mais
apropriados. Assumo portanto apenas a tarefa de empreender a uma pequena revisão critica das soluções
mais ou menos consensuais a que conduziu, nos últimos anos, a reflexão sobre "a fotografia como fonte" e
aponto para algumas questões que, na minha opinião, situam-se no horizonte de especulação mais
imediato.
Grande parte dessa discussão despendeu-se na constituição de uma metodologia adequada a utilização
da fotografia e no estabelecimento de uma "critica" eficaz. O primeiro inimigo a ser enfrentado pareceu ser a
"objetividade" do registro fotográfico - ou seu ilusionismo "homológico" Esta "batalha teórica" inicial parece ter
perdido seu apelo, pois bem pouca gente, hoje em dia, sustentaria, diante da parcialidade das outras fontes, o
caráter objetivo do testemunho fotográfico.
A elaboração de uma "metodologia" de tratamento da fotografia visava ainda, creio, sua legitimação
enquanto "documento histórico" - afinal, o status de sua historicidade não lhe seria concedido gratuitamente.
Intervenções diversas convergiram para uma espécie de consenso, um entendimento de base de que a "critica"
do registro fotográfico deveria fundar-se nos três elementos que se associam no seu processo de produção. O
objeto do registro (o conteúdo da imagem, ou o seu "assunto"), o sujeito do processo (o fotografo), o medium (o
aparelho, a tecnologia). Considerar estes três elementos significava, em alguma medida, admitir que o registro
fotográfico era o efeito de uma interação do olho do fotografo com o olho da câmera, e que não poderia ser
trabalhado sem considerar estes dois olhares e sua articulação.
A associação dos três elementos alguém um dia chamou "tripé" da produção do registro fotográfico e o
apelido pegou, seja por seu efeito didático ou pela analogia que lhe garantia a propriedade. Dar conta destes
elementos equivaleria a empreender plenamente a critica da fonte e, naturalmente, também a sua classificação
exaustiva.
Em torno do objeto, ou da cena (como prefiro designar o assunto da imagem fotográfica), as
investigações deveriam conduzir a "contextualização": no processo, na conjuntura, no

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acontecimento. Este tipo de contextualização associou-se, nos sistemas de recuperação automatizado de


informações, à noção de descritores. Um segundo movimento seria de ―identificação‖: do lugar dos
personagens, dos artefatos (freqüentemente lidos como ―atributos‖ – termo contrabandeado da hagiografia -
, pertinentérrimos quando se trabalha com retratos). Na automação, aproximaram-se dos identificadores.
A experiência mostrou que as investigações em torno do conteúdo dos registros fotográficos eram
favoráveis por investimentos ―fora da imagem‖: a consulta a documentos textuais, depoimentos ou coleções
de objetos e as outras fontes iconográficas. Recurso extremo, mas em alguns casos bastante útil: ir ao
próprio local onde o registro foi produzido, de modo a aprender-lhe melhor as circunstâncias.
Uma segunda investigação do contexto da cena, não menos importante, voltar-se-ia para a forma de
expressão de um conteúdo dado. Fundamentalmente um exercício de análise comparativa que toma séries
de imagens, colecionadas pelo pesquisador por sua afinidade cronológica ou temática . Tal análise permite
contextualizar o registro no âmbito da historia da fotografia.
A preocupação com o sujeito freqüente se confunde com a ―investigação de autoria‖ do registro: a
identidade do fotógrafo, suas motivações, as condições de produção da imagem. As perguntas consagradas
neste aspecto dizem respeito à sua profissionalização, padrões estéticos, finalidade do registro (culto
familiar, diletantismo fotoclubístico, divulgação, documentação técnica, controle social, etc.) subordinação
(imprensa, governo, empresa). No caso de fotografias de imprensa, existem sempre algumas perguntas
adicionais relativas à economia editorial (hierarquia de temas e espaços e usos da imagem) do veiculo para
o qual o registro foi produzido e, em particular, 05 3 sua utilização deste ou daquela maneira.
Admitir que a fotografia é uma imagem técnica tornou, sem dúvida,imperativo que a ―metodologia‖
incorporasse uma investigação em torno da tecnologia utilizada na produção de cada fonte em particular: a
mais sutil de suas mediações. Descartaria apenas que a tecnologia é mais vulgarmente pensada a partir dos
―limites‖ que impõe à produção dos registros em determinados ―estágios‖ da técnica. Tomada deste modo, a
―crítica‖ da tecnologia mais atrapalha do que ajuda, pois para o fotógrafo que opera o aparelho (na
daguerreotipia ou no still-video) a técnica menos ―limita‖ que ―resolve‖. Favorece, induz soluções formais,
repertório temáticos etc.

2. NEM TODO TRIPÉ TEM TRÊS PERNAS

Sim, há um tripé. Do ponto de vista das metodologias sua existência contribuiu para a sistematização
dos trabalhos e alguma complementaridade bastante profícua entre eles. Mas um breve passeio pelas
aproximações ―teóricas‖ da imagem fotográfica, no mesmo período não é capaz de garantir conformidade
(não digo uniformidade) entre as leituras. Tomo para comparação quatro ensaios bastante conhecidos e
submeto a todos, inclusive o tripé, a infame redução para álgebra. Nenhum de seus autores discordaria,
creio, que a fotografia é um processo que toma de um lado o Mundo (em toda s ua variedade e
profundidade) e o dispõe, aqui mesmo, sob forma de imagem (―técnica‖):

1– M => I

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Deste processo participam três elementos – ou intervenientes – que constituem o tal tripé: o objeto,
o sujeito, a técnica. Apresento o esquema, arbritariamente concebido, abaixo:

2 – M => O => I

(O objeto é recortado no Mundo e é deste que se re/produz uma imagem técnica)

3ª M ^ S => O

3b - O ^ T => I

(O sujeito participa predominantemente da seleção e recorte do objeto; e a técnica, da sua


transposição em imagem bidimensional).
Em Roland Barthes a ênfase recai sobre o sentido ―testemunhal‖ da imagem fotográfica – alguns
diriam, sua função indicativa. Esta ganha insistente expressão no noema ―isto foi‖. A leitura de Barthes,
portanto, toma processo fotográfico em sua forma mais reduzida (1. M => I) Pouco importa neste caso se há
ou não uma identidade plena entre mundo e imagem. Ainda lhes resta sempre uma semelhança, que decorre,
em ultima instância, dos vestígios de mundo que impressionam a imagem.
Identificar, em A ilusão Espetacular, de Arlindo Machado, é não perceber a perspectiva oposta de
que sua interpretação dirigi-se a um outro objeto. A preocupação desta obra é desvendar os mecanismos
pelos quais os objetos (e não o mundo ― fenomenológico‖) se transfiguram em imagens bidimensionais.
Abrange, neste caso, o nível intermediário de representação do processo (2.M = O => I). preocupado com o
―ilusionismo homológico‖ da imagem fotográfica, a ênfase da critica deve recair necessariamente sobre o
código (nas dessemelhanças entre mundo e imagem que ele oculta ou dissimula).
Temos um bom exemplo de como esta crítica se desenvolve ao acompanhar Arlindo Machado na
discussão da ―Herança‖ renascentista da fotografia: os métodos de construção perspectiva. Nos valores da
―infinitude‖ – tudo se dispõe ao olhar – e da ―homogeneidade‖ – nenhum objeto da cena goza de autonomia
estrutural – denuncia-se o compromisso de fotografia com a ―objetivação do objeto‖. Por extensão, com os
modos de representação cintífico – antropocêntricos e há ―dominação‖ da natureza. Fazer ―boas‖ fotos,
neste caso, estará diretamente relacionado à desconstrução do ilusionismo espetacular: revelar o lugar
―cego‖ da imagem (a câmara, o fotógrafo), denunciar o ângulo de tomada, subverter os planos ou utilizar a
luz para quebrar o ―realismo‖ da imagem.
O ensaio de Flusser – Filosofia da caixa preta – parece voltar-se a um outro nível de análise: aquilo
que se passa mais precisamente entre o recorte do objeto e a emergência de uma imagem: a técnica, o
aparelho (3b. O ^ T => I). Podemos exemplificar esta ênfase selecionando algumas definições de seu
―glossário‖:

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"Aparelho fotográfico: brinquedo que traduz pensamento conceitua) em fotografia".


"Funcionário: pessoa que brinca com aparelho e age em função dele".
"Fotografo: pessoa que procura inserir na imagem informações não previstas pelo apar! fotográfico".
O processo fotográfico repousa portanto sustancialmente em T, no aparelho: a caixa prj Toda critica
da imagem fotográfica deve visar o branqueamento desta caixa. O papel emblemático Flusser atribui a
fotografia na constituição da cultura contemporânea não e menos significativo que aquele que lhe havia
conferido Benjamim. Enquanto este último, no entanto, articulava-s fundação da modernidade assinalando
que sua "invenção foi contemporânea do socialismo, Flusser a toma como "protótipo" dos aparelhos pós-
industriais automatizados. Aparelhos onde o operador "funcionário" - só precisa conhecer o output e o input
para, obter os resultados esperados (pelo aparelho, é claro), sem necessariamente compreender o que se
passa entre um e outro. O aparelho condenaria o fotografo/funcionário a fotografar apenas o fotografável,
sua imaginação inscrita imaginação da caixa preta. So lhe resta, como alternativa, ser o parteiro do acaso.
Finalmente Susan Sontag. A fotografia é pensada em seu ensaio tanto como vestígio quanto como
interpretação do mundo. Nenhum destes aspectos pesa mais do que o outro. Seu principal interesse e pelo
sujeito do processo (3a. M A S => O). Este "sujeito", no entanto, não está restrito ao produtor da imagem,
mas incorpora também a dimensão da circulação: assimila, em um mesmo movimento, o fotografo e o
colecionador de imagens. Produção e consumo, a fotografia torna-se então uma forma particular de relação
com o mundo.
A fotografia comporta aí uma etica: o mundo como antologia de imagens, nivelandot
significados dos acontecimentos. Uma etica da não intervenção, pois participar dos acontecimenlc
e fotografa-los são gestos que se excluem. O carater indicial da imagem, por outro lado, lhe confs
uma dimensão magica. Vestfgio dos acontecimentos e, metonimicamente, sua posse. Magia e eUc
a fotografia, em nossa sociedade, não e um instrumento da memoria, mas um substituto dela: "Ho
em dia, tudo que existe, existe para terminar numa fotografia". ;
Caminhos tão distintos na interpretação da imagem fotografica, antes de marcarav
"divergencia", refletem enfases diferentes na avaliação do processo fotografico: o solido tripe sob'
o qual erguemos nossas metodologias. Porem, mais do que isso, demonstram que niveis diferentes f
analise não produzem analises mais profundas. A cada nfvel de analise, na realidade, corresponds'
uma sintese particular e questoes que lhe são próprias. Ser exaustivo, portanto, não e so um problem;
de profundidade, mas também superficie. ;

3. DUAS QUESTOES: TEMPORALIDADE E NARRATIVIDADE |

Para alem das considerações metodologicas, ha algumas questoes que, em minha opinial delimitam o
campo da utilização da fotografia como fonte para a história. Destaco duas delas:| estatuto do tempo na
imagem fotografica e as relações entre a imagem e o texto.
Desde os seus primordios, a fotografia tem sido apreciada como a "arte do instante' Efemera e, de
certo modo, indigna. Rodin chegou a denunciar, no registro do instante, a traição i próprio espirito do tempo:
o seu passar. A história, ao contrario, e a disciplina das durações. I dicotomia entre ambas e apenas aparente
pois a imagem fotografica e plena de tempo e duração Repasso apenas alguns exemplos importantes.
A primeira destas durações coincide com a produção do registro (no jargão: tempo de exposição). Ao
comentar as imagens produzidas nas duas décadas que se seguem a invenção da fotografia, W. Benjamin
sublinha que os daguerreótipos exibem sínteses da expressão de seus

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modelos. A longa exposição das chapas não deixava o modelo "ao sabor do instante", mas "dentro" dele.
Imerso na sua duração. Para Benjamin, o correlato desta experiência e uma impressão mais "durável"
no espectador, que nos afeta, ainda hoje. O aumento da sensibilidade nos filmes e da velocidade nos
aparelhos jamais permitiu que qualquer bom fotografo se iludisse com sua arte de capturar instantes.
Explorar a duração sempre esteve em pauta. Seu efeito gramatical mais conhecido são as imagens da
"velocidade". Toda imagem é portadora dos sinais deste tempo e de outros, decorrentes do
processamento químico e da fixação em um suporte qualquer. O estado em que um registro antigo nos
alcança, por exemplo, e, em larga medida, resultante destes últimos.
Uma outra temporalidade e da ordem do observador, daquele que contempla uma imagem. É seu
tempo de acolhimento. Há alguma literatura (especialmente técnica) em tomo de questões como o "sentido
de leitura" de um registro fotográfico, o percurso do olhar. O tema já era objeto de analise na pintura e a ele
articulam-se varias "regras de composição". De um modo ou de outro, mesmo nas apreensões mais
"guestálticas", há algo como uma "varredura" do olhar sobre a imagem. Portanto, um tempo mínimo para
executá-la.
Exercitar a contemplação, aprimorar o acolhimento, talvez seja uma das mais importantes
"obrigações" do historiador que lida com imagens. Tanto Barthes como Benjamin assinalaram seu
incomodo diante das "fotos-choque": aquelas nas quais a constatação impunha-se. Tais imagens
paralisariam mecanismo associativo do espectador. Mais ou menos presente, a função "choque" e inerente a
maioria das imagens fotográficas. Aprender a contemplar uma imagem e fundamental para quem não deseja
tornar-se prisioneiro da constatação.
A uma terceira temporalidade poderíamos chamar "tempo cristalizado". Diz respeito aos elementos
que se integram na cena: o tempo investido na sua produção material, seus tempos relativos. Em resumo, a
natureza de sua contemporaneidade em uma mesma imagem.
Por último, o transcurso do tempo. O intervalo de tempo que separa a produção do registro de sua
apropriação pelo historiador. Em principio nada o distingue de intervalos que o historiador já avalia na sua
relação com outras fontes, inclusive as textuais. Mas cabe mencioná-lo na medida em que a fotografia,
mais do que outros tipos de registro, só se torna realmente fonte quando desta apropriação. Considerar este
transcurso e atitude mental de prudência metodológica. Com fotografia: redobrá-la.
Anotaria dois argumentos em favor desta atenção especial. Primeiro, o fato de que este transcurso
de tempo pode ser facilmente elidido diante de uma fotografia - ela, afinal, é "imediatamente
comunicante", como dizia Barthes em um de seus primeiros textos sobre o tema." "Acrescento a pouca
familiaridade dos historiadores em geral com as marcas físico-químicas - e também biológicas - que este
transcurso produz no suporte do registro. Este desconhecimento pode ser responsável por uma certa elipse
do tempo, subentendendo-o, na medida em que sua evidencia grita por meio das marcas perpetradas sobre
a imagem.
Um comentário adicional, ainda em tomo do tempo, nos remeteria novamente a W. Benjámin: a
fotografia, ela própria como uma experiência do tempo. Experiência do que está distante e próximo ao
mesmo tempo, e que evoca o seu valor cultual. Experiência do irrepetível, daquilo cuja atualização depende
inteiramente da participação do instante e do tempo. Naturalmente esta experiência do tempo não pode
ser proporcionada igualmente por todas as imagens. Há que buscá-las, como Proust.

Uma segunda ordem de questões diz respeito as relações entre texto e imagem. Sua origem decorre
da contradição entre a história, como forma narrativa de memória hegemônica nas sociedades modernas, e a
fotografia, como suporte não-narrativo, e ademais não verbal, de informação. Pôr a

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fotografia na historiografia e, para usar uma expressão de Jakobson; uma tradução inter-semiótica, uma
"transmutação".
A forma usual de escapar desta complicação semiótica e o recurso a ilustração. A objeção usual a esta
pratica e a de que corrobora a subordinação da imagem ao texto escrito, atribuindo a primeira função mais
"didática" que "explicativa". Esta função seria exercida premoninantemente de duas maneiras, que
freqüentemente se confundem: uma, pneumônica, cuja atribuição e fixar imagens que são primordialmente
verbais; e outra, iconica, de representar os conteúdos do texto. Nas duas maneiras, o caráter indicial da imagem
fotográfica é negligenciado.
Como escapar da tentação (e do vício) de ilustrar? Uma primeira medida seria de ordem profilático-
metodológica: buscar operar sempre com séries de imagens; e, quando forçado a trabalhar com fotografias
isoladas, constituir series por afinidade, como constelações em torno destas. Adiante, uma preparação atlético-
afetiva, da ordem da inspiração (também no sentido de "sorver o ar"). Uma preparação do olhar e a elaboração
de um perquirir a especificamente fotográfico. Um bom exemplo aqui são as investigações que visam o modo
como culturas, sociedades, épocas ou grupos se expressam espacialmente. São relações espaciais entre os
elementos que povoam a cena: entre pessoas, entre coisas, entre pessoas e coisas.
Um modo de descrever esta disposição do espírito ao interrogar um registro fotográfico e sugerido por
Benjamin: a fotografia como acontecimento/mônada. Uma configuração saturada de tensões. Um cristal
constituído por fabulosas forcas de coesão, que a fotografia surpreende. Na ausência destas forças o mundo se
despregaria ante nossos olhos. Poderíamos assimilar este olhar a uma câmara de vácuo, sugando a realidade.
Desvendando-lhe os mistérios da unidade. Significa portanto abandonar a idéia de que a cena pode ser
resultado de arranjo casual ou espontâneo. Do momento em que o historiador toma uma fotografia como
fonte, ela torna-se imediatamente intencional. Uma situação plena de vontade de ser daquela forma.
Identificar, compreender as forças de coesão que habitam o mundo, e lhe emprestam, em última instancia, sua
consistência, e a oportunidade rara que a fotografia oferece ao historiador.
A maneira mais complexa, no entanto, de superar a incongruência entre texto e imagem diz respeito à
própria tecitura do discurso historiográfico, a sua carpintaria. Benjamin talvez tenha sido o primeiro a apontar
para a necessidade de inventar novas relações entre o texto e a fotografia'3-
No entanto, suas sugestões não fizeram escola. Antes, a solução preferencialmente apregoada pelos
fotógrafos parece admitir, implicitamente, que a imagem deveria ser resguardada do incontrolável
"imperialismo" ideoscópico do texto. A ênfase libertaria no ensaio fotográfico, a restrição da legenda a "local,
data", confirmam a opinião de que o texto, a bem da "autonomia" da imagem, deva ser rigorosamente vigiado,
pois a relaão entre ambos tenderia a ser sempre desigual.
Benjamim afirmava que os fotógrafos deveriam aprender a produzir as legendas de suas imagens e os
escritores a fotografar. Não creio que este conselho deva ser estendido aos historiadores, mas admito que a
utilização da fotografia como fonte histórica não estará satisfatoriamente equacionada enquanto não
aprendermos, por exemplo, a "manipular" as imagens com a mesma desenvoltura que, os textos. Citá-las, no
todo ou em parte. Argumentar com e contra elas. Encaixá-las nas demonstrações, refutações e permitir que
dialoguem com nossas outras fontes. Distribuí-las em series, qualificá-las, quantificá-las. Ilustrá- las com
textos. Enfim, discutir a especificidade da fotografia como fonte tem principalmente sentido se isto puder
torná-la uma fonte como outra qualquer, se encaminhar a sua generalidade. Quando isto for verdadeiramente
possível, algo no próprio tecido historiográfico haverá mudado. Não sei se a bem da disciplina, mas certamente da
sua narrativa.

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NOTAS

1- Entre os primeiros textos produzidos com este espírito no Brasil podemos citar, a título de exemplo:
KOSOY, Boris. A fotografia como fonte histórica; introdução à pesquisa e interpretação das
imagens do passado, São Paulo: Museu da Indústria, Comercio e Tecnologia do Estado de São
Paulo/SICCT, 1980. (Coleção Museus e Técnicas, n° 4.) BRANDAO, Ana Maria et alii. A fotografia
como fonte histórica; a experiência do CPDOC(1982). In: Acervo Rio de Janeiro, v.2,n.l, p.39-51, jan-jun
1987. LISSQVSKY, Mauricio. A fotografia como documento histórico. In: Ciclo de Palestras sobre
Fotografia (1: 1982: Rio de Janeiro). Sobre Fotografia, Rio de Janeiro, Funarte, 1983. p 116-26.
2- Ver MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. São Paulo, Brasiliense/INFOTO/Funarte, 1984.
3- A veiculação de uma imagem na imprensa abre a discussão para um outro ponto, que deixo de lado neste
texto: a história da recepção de um registro particular ou de uma serie destes. Acompanhar a trajetória de
uma imagem ao longo do tempo pode ser um aspecto importante da sua "leitura" pelo historiador. O
próprio investimento do historiador, afinal, e a parte da recepção desta imagem.
4- BARTHES, Roland. A câmara clara, Lisboa: Edições 70, s/d. MACHADO, Arlindo. Op. cit.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985. SONTAG, Susan. Ensaios sobre a
fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981.
5- Lembramos que e fundamentalmente como índice que Peirce classifica a fotografia Ver PEIRCE,
Charles S.A classificação dos signos. In: Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1975.
6- Ver BENJÁMIM, Walter. Pequena história da fotografia. In: Obras escolhidas I; magia e técnica
arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
7- Ver MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. In: Textos Selecionados. São Paulo: Abril
Cultural, 1984. (Os Pensadores).
8- Diante da fotografia do "instante", o mesmo opositor renasce: Zenão de Eléia. Sem duração, não
ha movimento.
9- A polêmica neste caso parece restringir-se a discutir se os caminhos pelo olhar em seu
movimento de "leitura" são "naturais" ou "culturais".
10- Tratei da acolhida visual. Fica só a menção a uma acolhida tátil da fotografia que, numa primeira
medida, diz respeito simplesmente a produção (e ao culto) do flagrante fotográfico, mas que possui especial
relevância quando trabalhamos com fotomontagens.
11- BARTHES, Roland. A mensagem fotográfica. In: O Óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, s/d.
|l2- JÁKOBSON, Roman. Aspectos lingüísticos da tradução. In: Lingüística e Comunicação.
|13- BENJÁMIM, Walter. O autor como produtor. In: Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1988

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SEMINÁRIO

SOCIALISMO, GUERRA FRIA E A AMERICA


LATINA

Marco Antônio Villa - Prof. Dept° de história


da Univ. Federal de Ouro Preto

Se o poder autocrático, a violência


organizada e o egoísmo cego pudessem
conter a evolução das sociedades humanas,
a humanidade não teria tido história.
(Florestan Fernandes)

Nos anos oitenta dois grandes processos tiveram enorme influencia na luta política na
América Latina: a crise do socialismo real na Europa Oriental e a reestruturação capitalista
envolvendo os Estados Unidos, o Japão e a Europa Ocidental.
A crise dos governos burocráticos do leste europeu intensificou-se no início da década
oitenta com os acontecimentos da Polônia, principalmente devido a criação da Solidariedade que iráinfluenciar
os movimentos oposicionistas nas "democracias populares". Ate então os grupos de
oposição não tinham se transformado em organizações de massa, restringindo a sua área de influência
fundamentalmente aos intelectuais.
Paradoxalmente, a União Soviética, que sempre reprimiu os movimentos oposicionistas que
surgiram na Europa Oriental, chegando a intervir militarmente na Alemanha Oriental, Hungria
Tchecoslováquia, irá incentivar os movimentos que derrubaram os burocratas do poder.
Provavelmente, a radicalidade destes movimentos não foi devidamente avaliada pelo governo
soviético, mas a necessidade de fortalecer a "perestroika" contra os seus inimigos internos, obrigou
Gorbatchev a jogar esta arriscada cartada. Em outras palavras, o afastamento das lideranças ortodoxas
na Europa Oriental passou a se constituir uma das condições indispensáveis para a manutenção
"perestroika" na União Soviética.
A reestruturação capitalista também não e um fato novo, mas no decorrer dos anos oitenta foi se
desenhando o novo mapa político mundial, onde os derrotados da II Guerra Mundial surgem como os
vencedores da nova ordem econômica mundial. A unificação alemã e o clímax deste processo em que os acordos
de Yalta, o conflito leste-oeste, o confronto entre os "campos" capitalista e

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comunista, as industrias do anticomunismo e da glorificação do "sorex" não passam de peças no museu dos
horrores da humanidade.
A guerra fria terminou, mas o "fim de Yalta es tambien el de Rio de Jáneiro; la caída Del de Berlin
arrastra consigo a la Doctrina de Seguridad Nacional como justificación ideológica já represión; la crisis
terminal de los Partidos Comunistas es también la del anticomunismo como ideología de Estado; y el
desvanecimiento del Imperio del mal disuelve en aire la materialidad de su antagonista, el 'mundo libre"".
A indústria do anticomunismo foi substituída pela ofensiva ideológica neoliberal que apresenta
como solução aos seculares problemas latino-americanos a reconversão do Estado, com a privatização das
empresas estatais, a diminuição dos gastos sociais e o reinado absoluto do mercado, e representa o caminho
para um mundo feliz, onde as contradições, inerentes ao capitalismo, são controláveis: e o fim da História.
O projeto neoliberal tem o encanto da simplicidade e seduz pela facilidade com que apresenta o
caminho para o desenvolvimento, que deixa de ser um problema político para se transformar em um problema
econômico. A complexidade da teoria Keynesiana, dos projetos cepalinos ou da planificação econômica e
substituída pela livre circulação das mercadorias sem nenhuma interferência estatal como remédio infalível
para o desenvolvimento.
Esta ofensiva neoliberal apresenta-se como uma revolução, quando não passa de uma tentativa de
repetição do passado, um retorno ao Estado liberal clássico e as relações internacionais do colonialismo
imperialista dos séculos XDC-XX. As alternativas históricas de libertação das classes trabalhadoras da opressão
capitalista são consideradas ultrapassadas, arcaicas, defasadas do momento histórico, como se o pensamento
socialista fosse contemporâneo do Australopiteco.
A palavra mágica para retirar a nuestra América do subdesenvolvimento e modernidade. Do Rio Grande a
Terra do Fogo o discurso das elites nunca foi tão igual (ao menos no discurso já transformamos em realidade o
sonho bolivariano). A discussão acerca do intercâmbio desigual, o dialogo Norte-Sul (lembram- se?), o
imperialismo estão "fora de moda", representam o passado, um certo rancor latino-americano acrescido de um
sentimento de inferioridade, mesmo quando entre os anos 1982 e 1990 a transferência líquida de capitais da
América Latina para o Primeiro Mundo foi de US$222,7 bilhões, a renda per capita na região em dez anos
caiu de US$2,320 para US$2,090 e o Produto Interno Bruto caiu 9,6% per capita2.
Mas estes indicadores econômicos e sociais não estão em primeiro piano para os defensores do projeto
neoliberal, os alvos são o nacionalismo econômico e as empresas estatais, e o México surge como o exemplo a ser
seguido. Ironicamente, o México, que sempre foi a ovelha negra da diplomacia norte-americana, hoje e a "menina
dos olhos" da administração republicana pela aplicação de uma política econômica que rompe com uma
tradição de cinqiienta anos e pelo pagamento pontual dos juros e amortizações da divida externa. Também a
imprensa brasileira, que tanto temia a "mexicanização" do Brasil quando a ARENA e, posteriormente, o
PMDB dominavam a cena política, hoje aponta o México como o caminho a ser seguido pelo nosso país3.
Recentemente, em entrevista a revista Isto E, o "brazilianista" Rioran Roett, um defensor da
"modernidade", sintetizou com muita clareza o que considera moderno e o que e atrasado: 'Tanto o Lula, no
Brasil, quanto o Cuahtemoc Cárdenas, no México, usaram uma retórica do passado em suas campanhas e os dois
foram derrotados, com margens relativamente pequenas. Os dois queriam fechar a economia e manter um
espaco grande para as estatais. Mas acho que o piiblico percebeu que o modelo que etes propunham não
funciona. O resultado e que o Lula esta saindo da política e o Cardenas não tem grande futuro político. O Lula
e o Cardenas são homens sinceros e honestos, mas seus programas estão orientados para o passado. Por sua vez
o Menem, que ganhou a eleição usando

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a retórica do passado, percebeu que executar o programa peronista de governo era receita certa par, enterrar
definitivamente a Argentina. Acho que a linguagem do Collor e a do Salinas de Gortari representam melhor os
ventos do futuro".4
A nova divisão do poder mundial deve restringir a influencia dos Estados a América Latins ficando a
Europa Oriental sob a hegemonia da Comunidade Econômica Européia e o Pacífico dominado pelos
japoneses. Assim, não e acidental a proposta do Presidente George Bush de constituição de um mercado
unificado das Américas ate o final do século e "o primeiro passo nesse processo e um acordo de liberdade
comercial com o México".5 Diz o Presidente Bush: "Hoje, os laços' de nossa herança comum estão fortalecidos
pelo amor a liberdade e um desejo comum de democracia. Nosso desafio - o desafio nessa nova era das
Américas - e assegurar esse sonho partilhado e todos os seus frutos para todo o povo das Américas, Norte,
Central e Sul".6
A iniciativa americana foi muito bem recebida pela imprensa brasileira. Um conhecido jornalista
afirma que "Bush quer comércio com a América Latina. Se nos abrirmos ao capitalismo) diversificador e
competitivo enriqueceremos. Caso contrário continuaremos como estamos, à margem da história".7
Assim como o governo americano tenta redefinir suas relações econômicas com a América Latina,
também o fim do conflito leste- oeste, que representa uma importante contribuição para a paz mundial,
significa o restabelecimento da Doutrina Monroe e da política do Big Stick. A recente invasão do Panamá e a
primeira intervenção norte-americana nos últimos cinqüenta anos que não foi justificada por um pretenso
avanço do comunismo. E o restabelecimento do direito de intervenção dos Estados Unidos nos assuntos
internos de qualquer país latino-americano.
Para Adolfo Gilly, "como nunca antes, a fines de 1989, Washington tuvo los manos libres para su
empresa militar. No había peligro de respuesta soviética en otro escenario ni de verdadera resistencia de um
regímen dictatorial panameño cuyas cabezas estaban desde hace años corrompidas por su colaboracíon en las
operaciones de los servicios secretos de Estados Unidos. Pero el objetivo no era cortar esas cabezas, sino
destruir la independencia panameiia, desarticular su Estado y sus fuerzas armadas y volver a toda la
Republica de Panamá al status de una gran Zona del Canal (algo asi como el proyecto de convertir a Cuba en
una extension de la base de Guantanamo y una sucursali de las finanzas y los negocios cubanos de Miami)."8
Na invasão do Panamá tão pouco noticiada pela imprensa brasileira, que ignora os doze meses de
ocupação militar americana, os Estados Unidos utilizaram pela primeira vez o avião F-l 17 Stealth, fabricado
em 1982 mas desde então mantido em segredo, que foi testado em um "cenário de guerra real". Os bombardeios
americanos foram devastadores: "en los primeros cuatro minutos de la invasion estadunidense arrojáran sesenta
y siete bombas de una tonelada cada una". Nas "primeras catorce horas posteriores a la invasion se registro la
caiía de 417 bombas mas otras cinco que provocaram efecto de entre 1 y 1,7 de magnitud en la escala
Richter".9 Morreram de 3.500 a 7.000; panamenhos, 5.000 foram feridos, mais de 20.000 perderam suas casas;
o custo material da invasão alcança a cifra de US$3 bilhões.
Portanto, a "invasion estadunidense a Panamá no es una anomalia como afirmam alguns críticos
liberales, sino la consecuencia logica de la reafirmacíon de los interesses imperiales de Occidente.
Fortalecidos por la expansion paeffica de la influencia occidental en el Este, las potencias capitalistas se
encuentram en una posicíon más fuerte para reafirmar su dominacíon por la fuerza en el Sur".10
A invasão e ocupação do Panamá e um aviso a todos os passes que não compartilham doi "sonho
americano", o espectro da intervenção passa novamente a rondar a América Latina. Mesmo| assim, alguns
pesquisadores continuam negando a permanência do imperialismo, ou descartando-o

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enquanto um dos fatores explicativos da história latino-americana. Obviamente que não e o caso de retirar do
museu a velha política do antiimperialismo, da contradição principal da nação com o imperialismo, enfim,
não se trata de repetir os dogmas falidos da in Internacional, mas considerar que "independência nacional y
democracia son hoy condiciones simultáneas, no sucesivas, de cualquier política nacionalista de izquierda o
socialista en los países latinoamericanos", ou seja, "esta llegando a su fin - no que haya concluido del todo - el
ciclo del nacionalismo antiimperialista autoritario y de la idea de que un estado fuerte frente al extranjero
debe ser un estado fuerte frente a sus ciudadanos .
Assim, nos anos oitenta, simultaneamente a política intervencionista estadunidense (Granada, Panamá, El
Salvador, Nicarágua), a economia latino-americana ficou estagnada, interrompendo um período de crescimento
contínuo de trinta anos. O pagamento da divida externa transforma-se no principal objetivo das políticas
econômicas, conduzindo a um aumento das taxas de inflação e desemprego, alem de agravar as condições de
vida e trabalho da população (basta recordar o aumento do deficit habitacional, da taxa de mortalidade, do
analfabetismo). As tentativas de integração econômica não obtêm o resultado esperado, a produção
econômica volta-se para a exportação em busca de saldos na balança comercial para amortizar e pagar o
serviço da divida externa, o parque industrial não se renova. Enfim, uma década perdida, onde o único
destaque econômico foi o narcotráfico, considerado por alguns como a única multinacional com êxito na
América Latina. 12
Politicamente, nos anos oitenta assistimos ao fim das ditaduras militares. Da Guatemala ao Chile repetiu-
se o mesmo ritual já conhecido há varias décadas em nossa América: a queda das ditaduras semeia esperanças
de consolidação da ordem democrática, afastando o fantasma do golpe militar. O esgotamento destes regimes,
na maioria das vezes, não foi devido às dificuldades econômicas, mas a um desgaste da forma de dominação,
o que impulsiona a retirada dos militares do exercício direto do poder.
O padrão de acumulação capitalista não se altera com a "redemocratização" e o modelo econômico
desenvolvido durante o período ditatorial quando muito e passível de pequenas modificações, mantendo
como principal característica a exclusão da maioria da população dos frutos do desenvolvimento econômico. O
retomo dos civis ao governo significa também o restabelecimento da ordem constitucional que manterá os
privilégios da classe dominante sem o desgaste da coação da força das armas.
A crise das ditaduras e a "redemocratização" da América Latina não conduziram ao fim dos aparelhos
repressivos, que, apesar da mobilização dos movimentos de defesa dos direitos humanos, permaneceram
intactos, prontos para, se for o caso, entrarem novamente em operação. Os torturadores não foram julgados, seus
crimes transformaram-se em "atos heróicos em defesa da pátria". Os governos civis trabalharam com afinco
para virar rapidamente esta trágica pagina da nossa história, colocando um ponto final, impedindo qualquer
possibilidade de apura9ao destas violações dos direitos humanos. Aos que exigiam justiça foi imputada a pecha
de desestabilizadores das instituições redemocratizadas, como se fosse possível construir um Estado de Direito
Democrático mantendo os aparelhos repressivos da ditadura e seus algozes em liberdade. Os militares
conseguiram preservar seus privilégios, obtiveram a chancela oficial para os atos cometidos durante o regime de
exceção e pavimentaram o caminho para retornar ao primeiro piano da cena política através de constituições que
legitimam a intervenção militar.
A transição conservadora desenrola-se em uma conjuntura econômica adversa, acirrando as contradições
de classe inerentes ao capitalismo dependente e frustrando as aspirações das classes trabalhadoras. Se a
democratização incompleta e uma característica da transição conservadora, a permanência da crise econômica
recoloca na ordem do dia o retorno das ditaduras militares, pois os

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governos "redemocratizados" não conseguem conviver com as demandas dos dominados e atende-las Atingido o
limite da "redemocratização", no horizonte avizinha-se o restabelecimento da "ordem militar.
Assim, a luta pelo socialismo na América Latina desenvolve- se em um terreno adverso dominado
pelas ditaduras ou pelas transições conservadoras. O grande desafio e a construção de projeto socialista que
rompa com a tradição da esquerda latino- americana (a antiga dicotomia institucional - via armada) e que
tenha efetiva inserção nos movimentos de massas.
Com o fim do "sorex", a luta pelo socialismo na América Latina deve ser redimensionada não só pelo
abandono do dogma marxista-leninista criado por Stalin, como também pela busca alternativas nacionais, com
base na especificidade de cada pais, elaborando uma estratégia revolucionaria que tenha como ponto de
partida a realidade concreta da luta de classes e não uma teoria apriorística, aistórica, que buscava um farol
em Moscou, Pequim ou Tirana, para que nave da revolução aportasse em um porto seguro.
Este redimensionamento não significa sucumbir a ideologia liberal, negar o caráter de classe do Estado e
os limites da democracia burguesa, mas de nada adianta vencer as eleições se no exercício do governo não são
criadas novas formas de participação ao popular. Participar do processo eleitoral para simplesmente gerir com
eficiência e honestidade a res publica nada tem de revolucionário.
O fracasso eleitoral da esquerda em toda a América Latina e uma demonstração inequívoca de que não
basta ganhar as eleições e administrar a crise do Estado burguês, pois ha não so desgaste, evidenciado nas
eleições, como também a esquerda deixa de se transformar em um alternativa política, restando como opção a
negação da ordem burguesa um socialismo de tlpc "polpotiano", um caminho nada luminoso para as trevas.
Construir uma alternativa socialista, hoje, significa analisar os 45 anos de socialismo n Europa oriental
e os 70 anos de socialismo na União Soviética. De nada adianta negar a crise do socialismo, pois os países do
"sorex" foram sempre a referenda do socialismo de quase todas at tendências socialistas que, no máximo,
escolhiam algum pais como paradigma (Cuba, União Sovietica Albania, Vietnã).
O socialismo latino-americano, que sempre padeceu de grandes teóricos, necessita também para
sobreviver de incorporar as suas demandas políticas clássicas as problemáticas da modernidade senão estará
condenado ao limbo da História.

NOTAS

1- Gilly, Adolfo. Panamá. E.U.y América Latina (tercera parte). La Jornada, 10/04/1990.
2- Vide ―PIB‖ brasileiro cai 5%, prevê estudo da ONU‖―. Folha de São Paulo, 04/07/1990‖; ONU
critica o plano Brady e prevê menor expansão da economia mundial‖. Folha de São Paulo, 3/7/90,
―América Latina poderá perder mais uma década‖. O Estado de São Paulo, 1301/91.
3- Vide, entre vários exemplos, e editorial ―O caminho aberto ao Brasil‖. Jornal da tarde, 02/07/1990.
4- Entrevista de Riordan Roett. ―O Brasil chegou ao século XX‖. Isto É, (06/06/1990). A modernidade
representada por Carlos Salinas de Gortari não atingiu a sociedade mexicana pois ―em 1989, em los
primeros meses em 1990 fueron asesinados ocho dirigentes campesinos regionales‖. Vide ―80
personas Del sector rural, asesinados el año pasado‖. La

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Jornada. 15/03/1990.
5- Folha de São Paulo 28/06/1990.
6- Idem.
7- FRANCIS, Paulo. Medida e recuperacSo da Alianca para o Progresso. Folha de São Paulo.
8- GILLY, Adolfo. Panama, E.U. y América Latina (segunda parte). La Jornada. 10/04/1990. o 9-
9- "Murieron en la invasion al menos 3 mil 500 panamenos".
10- PETRAS, Jámes. Aislacionismo sovietico y expansion euro- americana: de Panama a Polonia. El
Galo Ilustrado. PP25/03/1990. (Semanário de El Dia).
11- GILLY, Adolfo. Panamá, E.U. y América Latina. La Jornada. 13AM/1990. (Sexta parte.)
12- Vale destacar o artigo do ex-presidente do Peru, Alan Garcia, onde demonstra a importância do
trafico de drogas para a economia dos Estados Unidos, que movimenta US$100 bilhões em um
mercado com 25 milhões de consumidores eventuais e 10 milhões de consumidores freqüentes.
Ver Garcia, Alan. "El Negocio mas rentable en Estados Unidos". Excelsior. 15/02/1990.

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MESA-REDONDA

MOVIMENTOS SOCIAIS E CRISE DAS IDEOLOGIAS


NO BRASIL

João Pinto Furtado, DEHIS/UFOl

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

O objetivo da presente exposijáo e tão-somente o de levantar uma possível orientação de


pesquisa que possa nortear a reflexão sobre um objeto que, por assim dizer, em sua especificidade
ainda se "movimenta" diante de nossos olhos. Essa tarefa, a um só tempo instigante e penosa/
sobretudo para o Historiador, impõe o repensar da questão do tempo e suas implicações no processo,
cognitivo. ;
Partimos de uma indagação decorrente da avaliação do contexto presente. Entre o processo'
de mobilização que culminou com as eleições presidenciais de novembro de 1989 e o quadro atual,: já no fim
do primeiro semestre de exercício do novo Governo, percebe-se um grande hiato no que diz respeito a
participação política, a direita e a esquerda. É como se a sociedade brasileira estivesse "á mercê" do Estado.
Tal contexto nos sugere a seguinte questão: estaríamos vivenciando a falência do
modelo participativo segundo o qual se forjaram os movimentos sociais mais atuantes das décadas de setenta e
oitenta? Estariam tais movimentos em busca de novas estratégias e orientações?
Na tentativa de responder parcialmente a essas questões, procuramos orientar nossa reflexão a partir
das proposições de Thompson1, segundo as quais a experiência concreta ocupa lugar central no processo de
constituição dos discursos e praticas da classe trabalhadora. Parte-se, portanto, da recusa a uma visão
teleológica do processo histórico que, ao atribuir a classe trabalhadora a tarefa da revolução como um a priori,
no limite, nega analiticamente a esta mesma classe a possibilidade de se constituir em sujeito de sua própria
história. Com isto, nos colocamos diante da idéia de "fim da história", questionando a um so tempo a temática
hegeliana da reconciliação do espírito consigo mesmo e a marxista, da reconciliação da humanidade consigo
mesma por via da revohifao2. Por outro lado, questionamos também as proposições de uma pretensa vertente
neoliberal que vislumbra, no mundo contemporâneo, o "fim da história", que se traduziria, segundo o
"pensador" nipo-americano Francis Fukuyama, na crescente incorporação dos valores liberais e da democracia
burguesa em demonstração inequívoca da falência do socialismo.
No sentido de tentar perceber qual e a leitura que os movimentos sociais, sobretudo o

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chamado sindicalismo cutista, fazem desta realidade e como orientam sua af ao, partimos também de uma nova
orientação metodológica, qual seja a da História imediata. Segundo esta problemática, tentaremos perceber em
que medida os movimentos sociais sobre os quais nos debni9amos procuram elaborar suas próprias leituras da
História. Partimos da premissa de que, para estes movimentos, ocupa jun lugar central em sua estratégia de
mobilização o resgate da história da pratica política dos trabalhadores. Tal e o que se verifica, por exemplo, a
partir da analise das discussões ocorridas no recém-realizado "Congresso de Unificação das Entidades dos
Trabalhadores do Ensino de Minas Gerais"3.0 Congresso tornado como, de alguma maneira, representativo da
discussão que no momento se empreende no interior da C.U.T. - Central Única dos Trabalhadores reuniu,
mantendo a proporcionalidade, representantes das diversas tendências que compõem a Central. Assim,
Articulação, Cut pela Base, Convergência Socialista, Corrente Sindical Classista, Democracia Socialista e setores
do Partido Comunista Brasileiro em processo de filia9ao a CUT procuravam sempre, no curso dos debates, se
apresentar como os ilegítimos herdeiros das tradições mais combativas do movimento. E como se a manipulação
da história do movimento conferisse substância política aos atores, que passam a falar não apenas por si, mas
também em nome de uma suposta identidade de classe4. Para melhor entender esta ordem de questões, tentemos
acompanhar mais de perto a constituição dos novos protagonistas.

A CONSTITUIÇÃO DOS "NOVOS" ATORES A "Nova" Direita


A partir da segunda metade dos anos 70, e sobretudo nos anos 80, assiste-se, no Brasil, a um aumento
significativo da participa9ao política por via de canais extra-instituicionais. Em outras palavras, assiste-se a
progressiva reaglutina9ao do movimento popular por um lado, e, por outro lado, a recomposi9ao da correlagao
de for9as a direita, onde, sob a pretensão de repensar o papel do Estado, um grupo pTovido de um discurso
neoliberal piocuia "marcar" uma posigao de contesta9ao a ordem instituida pelo golpe de 64.
Essa "Nova" Direita, e necessário dizer, por demais velha em rela9ao ao seu projeto de sociedade e suas
praticas políticas, procura justificar seu epfteto em furi9ao da base de legitimidade de seu discurso. Atualizando
a tematica liberal da Centralidade do Mercado, sob a otica da eficiência e da produtividade, a "Nova" Direita
transforma a "mao invisivel do mercado" no mais novo fetiche. Enxugamento da maquina, eficiência e
produtividade tem sido palavras-chave. Em seu discurso, a precariedade desses caracteres explica tanto as
mazelas da economia nacional, como os tanques de Pequim ou a questão nacional da União Soviética.
Essa "Nova" Direita que, no piano intemacional, se alimenta continunamente nos mitos da "Era
Reagan" e do "Tatcherismo" encontrou, apos uma serie de percal9os, em Fernando Collor sua expressão mais
acabada. E sintomático que, no processo eleitoral de 1989, as pesquisas apontassem, em uma determinada
parcela do eleitorado, para aqueles candidatos que melhor se enquadrassem neste perfil. Assim, por exemplo, o
"liberal de primeira hora", Afif Domingos, cresceu nas pesquisas enquanto conseguiu capitalizar este potencial
de votos. Também Mario Covas, com seu "choque de capitalismo", procurou cativar esta parcela do eleitorado.
Em 1989, as palavras enxugamento, produtividade e eficiência freqüentaram, ad nauseam, a imprensa escrita e
falada. Não e fortuito, ou obra do acaso, que o principal expoente da "Nova Direita Sindical", Luiz Antonio
Medeiros procure, a todo tempo, fundamentar sua legitimidade na eficiência de sua a9ao, nos resultados de
seu sindicalismo.
O que existe de comum a todos estes personagens e suas respectivas bases de apoio e a eleição do
mercado como cenário privilegiado para a resolu9ao dos problemas sociais. Procura-se, em

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suma, exorcizar o fantasma da "estadolatria" e seus efeitos perversos.

A "Nova Esquerda"
Até aqui falamos, ainda que brevemente, da onda neoliberal. Vejamos agora, também de
maneira sucinta, a origem do que vem sendo qualificado como a "nova esquerda". Entendemos como expoentes
dessa "nova esquerda" fundamentalmente os agrupamentos políticos que deram origem ao Partido dos
Trabalhadores e a Central Única dos Trabalhadores, embora os limites que comportem tal definição não sejam
exatamente bem delineados. Tais agrupamentos definem-se, inicialmente, pela recusa a "estrutura sindical
pelega" herdada do regime militar, bem como pela tentativa de representar politicamente a classe trabalhadora
enquanto classe através de um partido de massas5. Para os fins a que nos propomos, vamos nos limitar a analise
do sindicalismo cutista.
Uma primeira distinção importante entre esta "nova esquerda" e os setores que I
tradicionalmente procuravam se definir como porta-vozes da classe trabalhadora, diz respeito as suas I origens
e estratégias de ação. A "Nova Esquerda" forjar-se nas lutas sociais que marcaram a segunda metade dos anos
70, procurando imprimir a todo momento um conteúdo de massas a sua ação, em oposição ao "sindicalismo
de gabinetes" do trabalhismo populista e ao "sindicalismo de quadros" do "partidão". Em relação a estratégia
de ação, percebe-se a recusa da legitimidade da estrutura sindical do regime militar e a busca de novas
alternativas de luta, trazendo para as ruas a luta por salários e melhores condições de trabalho. Em uma
palavra, a "nova esquerda" contrapõe a luta através do Estado, a luta apesar do Estado. Nesse sentido,
percebe-se nitidamente a tentativa de esvaziar o Estado de qualquer possibilidade de atuação no curso da
ação sindical. No processo da Assembléia Nacional Constituinte, observa-se a recusa, por parte da "Nova
Esquerda", da legislação sindical vigente, e a tentativa de eliminação da unicidade sindical e do Imposto
Sindical obrigatório, no que foi veementemente contestada, seja pelo "sindicalismo populista", seja pelo
"sindicalismo de quadros" do P.C.B.
O que se percebe em relação a estratégia do "sindicalismo cutista" e que procura fazer uma releitura da
história do movimento dos trabalhadores e fundar uma nova pratica sindical. Os próprios : conceitos
empregados pela militância denotam e revelam, de certa maneira, esta especificidade. Por exemplo, não e tão
forte, no sindicalismo cutista, a dicotomia urbano/rural, assim como trabalha-se, geralmente, com o conceito
mais amplo de classe trabalhadora, recusando o uso de conceitos como classe operaria ou campesinato.
Também a questão do socialismo e colocada de maneira distinta. O cotidiano da mobilização e também as
lutas localizadas são vistos como constituintes micro de um processo de transformação global. Nesse sentido,
desvela-se um esforço em prol da construção teórica e pratica permanente do socialismo, o que significa um
esforço de reelaborarão da matriz discursiva do marxismo e, no limite, a recusa de um projeto global e único de
revolução. Tal e o que se percebe, a nível do discurso, nas proposições de diversas tendências do sindicalismo
cutista, a despeito de suas divergências em relação ao conteúdo do socialismo e estratégias de ação. Assim
temos desde uma concepção de socialismo e ação sindical mais marcada pela social-democracia, representada
pela Articulação, tendência majoritária, ate as concepções trotskistas de grupos como convergência socialista
e democracia socialista, que, embora minoritários, detém importantes posições no interior da central. Este
jogo de tensões no interior da CUT e responsável, em parte, pela ambigüidade da atuação da Central no
contexto que nos e mais imediato, o qual passa a ser visto a seguir.

O CONFRONTO
A par da constatação de que o confronto entre os dois agrupamentos políticos e inerente e mesmo
constitutivo de sua identidade, e de que se prolonga nos mais diversos aspectos da vida social,

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optamos, no entanto, por um corte temporal e temático que privilegiasse o enfrentamento mais recente 0 que
tange a política salarial do Governo Collor ate o momento do presente Encontro.
No ano passado, os atores citados acima tiveram um enfrentamento mais pontual e ideológico no
processo de eleições presidenciais, onde os debates já revelavam as posições claramente antagônicas em relação
a temas como o papel do Estado, política econômica etc. Mas, do ponto de vista de que nos ocupamos, e mais
interessante tentar estudar a arena das relações trabalhistas no sentido de perceber, na pratica concreta, o jogo
de forcas que se estabelece e as estratégias de enfrentamento. Somos remetidos, portanto, ao confronto
Governo versus Sindicalismo Cutista, o qual já delineia suas características centrais neste Is semestre de
administração.
Uma primeira impressão que se tem e que, apos a derrota de seu candidato a Presidência da
Republica, o movimento popular alinhado em tomo da CUT entrou numa espécie de letargia, não conseguindo
articular, logo nos primeiros meses, uma postura mais positiva em face das primeiras medidas de impacto em
relação a política econômica.
A primeira tentativa de marcar claramente uma postura de oposição a política econômica do Governo
Collor traduziu-se na marcação de uma greve geral para o dia 12 de junho de 1990. A citada mobilização foi
desmarcada posteriormente pela direção da central, sob o argumento de que não haveria engajamento
suficiente para uma demonstração de forca, o que, agravado pela saída da Central Geral dos Trabalhores da
mobilização, redundaria em demonstração inequívoca da desarticulação do movimento sindical. Tal postura
gera grande polemica no interior da Central e será violentamente contestada por algumas tendências,
notadamente CUT pela Base e os grupos trotskistas Convergência Socialista e Democracia Socialista. Tais
grupos, cabe reafirmar, embora não majoritários, detem importantes posições na Central, controlando
Sindicatos com grande poder de mobilização7. Os grupos não alinhados a Articulação, tendência majoritária,
detém 6 votos dos 14 da executiva da CUT e posicionam-se, desde o início, contra a participação da Central no
chamado "Entendimento Nacional" proposto pelo Governo.
Em junho tem-se um processo de radicalização e enfrentamento na Ford durante campanha salarial.
Fala-se em sabotagem e greve de ocupação. O fato ocupou grande espaço na imprensa nacional e, quem diria,
assiste-se a Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e
Diadema e membra da Executiva Nacional da CUT, executando a função de "bombeiro", no que foi voto
vencido pela base, que insistiu no processo de radicalização, embora sem muitos resultados concretos.
Em agosto de 1990 ocorre um fato decisivo, uma primeira vitoria da "Nova" Direita, sobre o qual o
Presidente da CUT, Jáir Meneguelli, diria posteriormente se tratar de um dos mais duros golpes então
recebidos pelo Movimento Sindical. Trata-se do julgamento da greve dos funcionários da Companhia
Siderúrgica Nacional (C.S.N.) pelo Tribunal Superior do Trabalho, realizado a 08/08/90.
Neste julgamento, o TST cria uma nova figura jurídica, a greve abusiva, que rapidamente firma
jurisprudência, sendo aplicada posteriormente para os ferroviários e eletrecitários em greve. Neste julgamento,
o parecer do relator, Ministro Marcelo Pimentel, diz textualmente: "Na defesa do interesse nacional o direito de
greve pode ser relativizado"'. Longe de ser tão somente um fato isolado numa empresa específica, o julgamento
significa uma guinada nos procedimentos ate então usuais no TST, onde as reivindicações trabalhistas sempre
encontraram maior receptividade'. Através do citado parecer, a Justiça do Trabalho introduz temas como
"interesse nacional" e "saúde financeira das empresas" na analise de dissídios trabalhistas. O mercado entra na
arena da legislação trabalhista pela porta da frente e, numa situação emergencial de crise, alguns direitos (como
o de greve) podem ser suspensos. É o "jeitinho brasileiro" criando uma espécie de "Estado de Sítio" para a
legislação

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trabalhista. Assim, determinações da conjuntura econômica passam a ser critérios para interpretação e aplicação
da legislação. "O principio básico do Direito do Trabalho e a manutenção do emprego" E, ainda citando
palavras do relator, "se eu desse o aumento que eles (os trabalhadores da CSN queriam, o Piano Collor teria
desaparecido junto com a Companhia Siderúrgica Nacional"10 Por via da jurisprudência, a "Nova Direita"
preenche algumas das lacunas da legislação complementar deixadas em aberto no processo constituinte e
coloca no centro das discussões a questão do mercado, ainda que este vá se revelar mais tarde como mera
figura de retórica.
É sintomático que, na noite em que se veiculou a notícia do referido dissídio (08 de agosto de 1990), o
"porta-voz oficioso" da Presidência da Republica, jornalista Alexandre Garcia, anunciasse exultante no "Jornal
Nacional" da Rede Globo o seu resultado, complementando que o julgamento em questão "pode se constituir
numa referenda para os Tribunais Regionais em seus julgamentos".
Mais que isto, percebendo possibilidades de avançar nesta estratégia, em 27 de agosto o Governo
reedita a Medida Provisória 199 sobre a política salarial com o n2 211, acrescentando a possibilidade de
que, mesmo na data-base, a empresa possa alegar problemas financeiros e não conceder reposição salarial11. Os
conflitos trabalhistas passariam a ter como arena privilegiada a dimensão do mercado. Nesse sentido, a temática
da eficiência ganha um conteúdo perverso. Na medida em que a contabilidade das empresas pode incorporar,
via manipulação, instrumentos de I arrocho salarial, inaugura-se o capitalismo sem riscos, onde o empresário
pode transferir o risco do empreendimento para o trabalhador. Num certo sentido, atualiza-se o procedimento,
já consolidado na economia nacional, de privatização de lucros e socialização de perdas, no qua! a classe
trabalhadora e sempre chamada a oferecer sua quota de sacrifício. O que se apresenta como o dado novo e,
supostamente, a "saída" do Estado da mediação dos conflitos, sob o argumento de que esta estabelecido um
processo de livre-negociação. Essa medida foi ainda mais contestada que as anteriores, basta dizer que ate
Luiz Antonio Medeiros se contrapôs, embora sem conseguir "resultados" concretos.
Em setembro, data-base das categorias mais combativas no interior da CUT, esperava-se um grande
confronto, chegando-se a falar, nos Gabinetes Ministeriais e na grande imprensa, em um "setembro negro"
com grande movimentação sindical e política. O fracasso de mais esta expectativa sugere que a classe
trabalhadora ainda se encontra na defensiva e que se instaurou no interior da CUT uma nova discussão, desta
vez acerca da participação da Central no chamado "Entendimento Nacional". O que se deixa no ar como
uma questão ainda em aberto: quais seriam as implicações de uma tal participação? Seria um recuo apenas
estratégico? Ou denotaria uma mudança de rumo do próprio movimento sindical?
Citando textualmente Jáir Meneguelli, acerca da desmarcação da Greve Geral de 12 de junho:
"O papel do dirigente sindical não e mandar nos trabalhadores, e representá-los. Por mais que a executiva da
CUT quisesse a Greve Geral, e ela queria, naquele momento não foi possível"!i Num certo sentido, esta
postura também serve como termômetro para balizar o atual comportamento da Executiva da Central. Se a
participação da Central no chamado "Entendimento Nacional" e uma decisão correta ou não, não se sabe,
especialmente quando se procura ter a perspectiva da história em aberto, como pratica a ser construída num
processo de elaboração coletiva.

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NOTAS

1 A maior parte destas proposições encontra-se em: THOMPSON, E.P. Tradition, revuelta y consciência
de classe. 2* ed. Barcelona: Editorial Critica, 1984. E também: THOMPSON, E.P. A formação da classe
operária inglesa. 2* ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. V3. e também: THOMPSON, E.P. A miséria da
teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
2 Uma interessante reflexão acerca do tratamento das proposições hegelianas em Marx pode ser sugerida a
partir da leitura dos "Manuscritos econômico-filosóficos de 1844", o que é aqui apenas citado, e não
desenvolvido, por escapar aos objetivos do presente trabalho.
3. O referido Congresso, realizado em agosto de 90, foi objeto de observação direta, onde, na condição de
Delegado Sindical, procuramos estar especialmente atentos a discussão sobre a história e os rumos do
movimento. Uma síntese das principais posições e discordancias encontram-se impressa no "Caderno de
Teses" organizado pela direção do Encontro, onde as principais tendências apresentam, por escrito, suas
teses.
4- A noção de identidade aqui sugerida foi tomada de empréstimo a: SADER, Eder. Quando novos personagens
entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
5- A este respeito o manifesto de criação do Partido dos Trabalhadores e bastante ilustrativo, pleno de citações.
Veja: Documentos básicos do partido dos trabalhadores. São Paulo: Comissão Executiva Nacional do
Partido dos Trabalhadores, 1987.
6- Não e nosso objetivo discutir a possibilidade, ou não, de um caráter "popular" da candidatura e administração
do Sr. Fernando Collor, neste primeiro momento de governo, embora reconheçamos que deva ser uma
discussão de grande interesse para as eleições subseqüentes.
7- Para uma analise dos segmentos que compõem a CUT e a correlação de forças em seu interior, veja-se:
RODRIGUES, Leôncio M. CUT: os militantes e a ideologia. São Paulo: Paz e Terra,
1990.
8- "CUT aceita participar do pacto por oito votos a seis". Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 de set. 1990, p.4,
cad. 1; e também: "Dividida, CUT vai participar do Pacto Social". Folha de São Paulo, São Paulo, 21 set.
1990, p. 12, cad. 2.
9-Sobre o julgamento da greve na Companhia Siderúrgica Nacional, vejá-se: "Um Freio nas Greves".
Veja, Rio de Janeiro, Ano 23, ns 32, p. 44, 15 ago. 1990.
10-Entrevista a Revista Veja. Artigo citado.
11-Jornal Hoje em Dia, Belo Horizonte, 28 ago. 1990, p. 09, cad.l.
12-Em discurso proferido na abertura do Congresso de Unificação das Entidades dos Trabalhadores do Ensino
de Minas Gerais, realizado em Belo Horizonte de 15 a 18 de agosto de 1990.

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MESA REDONDA

PERONISMO HOJE: ENTRE O POPULISMO E O


NEOCONSERVADORISMO :

Jose Luis Bendicho Beired

( Depto. de História - UNESP (Assis)

O conteúdo das medidas tomadas pelo governo presidido por Carlos Menem põe em questão a identidade
política das massas peronistas e do seu partido, desencadeando uma ruptura sem precedentes na história do
peronismo. O mal-estar presente no interior dessa corrente política também se estende a grandes parcelas não
peronistas da sociedade, que viram um presidente eleger-se COIL uma plataforma política que pouco tinha a ver
com as iniciativas tomadas apos a posse. De onde Menem e sua equipe extraíram a legitimidade social
necessária para empreender um conjunto de drásticas medidas que configuram uma "revolu^ao
conservadora"? Qual o significado dessa "revolução" para a sociedade argentina e no contexto da história do
populismo argentino? Depois de Menem, o peronismo continuara vivo como corrente populista, ou estaremos
assistindo ao seu fim e ao nascimento de um pos-peronismo?
Menem vence o pleito de 1989 num quadro social marcado pelo desespero da população: diante da
hiperinflação, da recessão, do empobrecimento acelerado e do crescimento do desemprego.: Essas eleições
tiveram um caráter plebiscitário em que a sociedade não consagrou uma oposição qualquer ao governo de Raul
Alfonsin, mas sim uma figura que simbolizava uma corrente política historicamente identificada com os interesses
corporativos dos trabalhadores. Alternativa que procurou reencarnar personagens como Juan Domingo Peron e os
caudilhos novecentistas1 do interior do pais que lutavam contra os políticos liberais do litoral e de Buenos Aires,
colocando-se como paladinos, dos descamisados e como figuras providenciais destinadas a reverter o grave
quadro econômico e social.
Do ponto de vista econômico-social, as medidas implementadas pelo novo governo argentino significaram
uma ruptura profunda com relação aquelas tradicionalmente defendidas pelo peronismo. Esse movimento populista
foi constituído a partir da articulação de diversas correntes políticas e sindicais argentinas, na década de 1940,
apresentando um conjunto de propostas que tinham muito em comum com o varguismo, o cardenismo e o aprismo:
distributivismo econômico, fortalecimento do mercado interno, protencionismo, intensificação do papel
interventor do Estado na economia, industrialismo, nacionalismo econômico e defesa da integração nacional e
social.
Com a perspectiva de reconverter o capitalismo argentino, o projeto menemista abandonou todas as
propostas acimas elencadas, valorizando exatamente tudo o que lhes e contrario. O modelo

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econômico-social de tal projeto e o Chile de Pinochet e aponta para a transformação da Argentina num país
essencialmente agro- exportador, com mercado interno livre, baixa inflação, alto grau de desemprego e
subemprego, baixos salários e alto grau de polarização social.
A contrapartida política do projeto econômico menemista foi a sua aliança com setores políticos e sociais
de direita e de extrema direita : para citar os mais importantes temos a União de centro Democrático - partido
neoconservador -, os militares que fizeram oposição a Alfonsin e a direita do movimento sindical,
completamente homogeneizado pelo peronismo. Fiador e maior
Beneficiário, o grande empresariado joga um papel fundamental na estratégia menemista. Vide, por exemplo o
lugar ocupado pelo grupo multinacional Bunge y Born na definição e implementação de programa econômico
no inicio da nova gestão governamental. Apesar da ruptura da estreita ligação desse grupo econômico com o
governo ocorrida posteriormente, o empresariado continua sendo o interlocutor privilegiado pelo governo e o
principal beneficiário das suas decisões. Nesse contexto, o movimento sindical tem sido relegado a segundo piano
enquanto interlocutor e participante das decisões governamentais, rompendo-se uma tradição política no peronismo
em que os dirigentes sindicais sempre desempenharam um papel de primeira grandeza.
O governo Menem tem se pautado pela ruptura de um padrão de desenvolvimento capitalista vigente ha
cinco décadas na Argentina, em que o Estado ocupava um lugar fundamental. Não e demais lembrar que
atualmente esse e um fenômeno geral na América Latina, e que guarda uma relação estreita com a
recomposição do capitalismo a nível internacional. No caso da Europa Ocidental, por exemplo, tal mudança
tem se processado através da luta dos setores políticos neoconservadores e neoliberais contra o Estado de Bem-
Estar Social. Apesar das evidentes diferenças entre a América Latina e a Europa, e um traço comum entre ambos os
continentes a impressionante força com que as tendências neoconservadoras tem ganho espaço social e político. O
projeto governamental de Menem insere-se nesse quadro, como um dos momentos do avanço do
neoconservadorismo, configurando no seu pais o que certos analistas chamam de "revolução conservadora"3.
Entre as conseqüências da implantação desse projeto, uma das mais evidentes e a restrição e a ameaça as
instituições democráticas, uma vez que uma condição básica para o seu sucesso e a restrição das decisões políticas
sobre a economia. Tal restrição objetiva lograr a mínima interferência da cidadania organizada sobre o movimento
das forcas de mercado. Isto e, a lógica do mercado deve ser cada vez mais preservada das demandas da lógica
política, implicando uma redefinição' da identidade dos indivíduos, os quais passam a ser interpelados
fundamentalmente como consumidores e produtores, e em segundo piano como cidadãos. Se, de um lado, a
redefinição das identidades sociais e estimulada pelo discurso político do atual governo argentino e pela direção
do Partido Peronista, de outro, tal transformação e poderosamente impulsionada pelos resultados materiais
imediatos da política econômica do governo. Desindustrialização, desemprego crescente, recessão e arrocho
salarial fatalmente acabam levando a desmobilização da sociedade civil, a desagregação dos movimentos sociais e
das reivindica9oes coletivas por direitos, atingindo duramente a capacidade de luta dos partidos e ate a sua
legitimidade frente a sociedade. Mesmo o movimento sindical, tradicionalmente mais organizado, mais numeroso
e mais poderoso do que outros movimentos sociais, vê-se acuado frente aos resultados das medidas de corte
neoconservador sobre a massa de trabalhadores. Em suma, o quadro e bastante grave. Economicamente; aponta a
curto e médio prazo para a deteriorizaçao das condiçoes de vida e emprego da população. Politicamente, num
contexto em que a democracia política argentina encontra-se ainda muito frágil, não ha perspectiva de consolidação
democrática.
Uma vez que o peronismo protagoniza uma radical transformação da sociedade argentina

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postulando medidas e idéias contraditórias com a sua tradicional identidade política, cabe perguntar
se o que existe hoje como dominante no seu interior e algo absolutamente divorciado da trading,
peronista. ;
Como vimos, do ponto de vista econômico-social ha uma mudança profunda nas concepção
dominantes dentro do peronismo - dizemos dominantes porque ha filiados e grupos organizados dentro,
do partido e do sindicalismo peronista contrários as teses defendidas por Menem. Mas, de outro lado
também e possível detectar uma serie de aspectos que guardam uma significativa relação d e
continuidade com determinadas tradições do peronismo.
Recorrendo permanentemente a antinomia nação / anti-nação, o peronismo tem recortado
o campo político de modo a definir quem e "amigo" e "inimigo", quem esta e quem não esta ao lado
da pátria. Profundamente maniqueísta, uma contrapartida dessa operação ideológica e a adesão
explícita a um anticosmopolitismo político e cultural que vê, por exemplo, o liberalismo e o
socialismo como correntes ideológicas exteriores ao verdadeiro caráter da nacionalidade argentina. Ao
lado disso, continua exaltando o cristianismo enquanto sustentáculo dos valores genuinamente
argentinos.
Outro traço de continuidade e a desvalorização da democracia política e dos seus mecanismos
de representação em favor do apelo direto ao povo. Nesse sentido, pri vilegia-se a identificação líder-povo,
lider-nação, produzindo um deslocamento da legitimidade do sistema político ela provem menos dos
mecanismos eleitorais inerentes a democracia representativa do que da'5 correspondência com os interesses
fundamentais da nação. O governo tem produzido uma política dei Estado em que os interlocutores
principais são os grupos de interesses corporativos-empresarios militares, sindicatos de trabalhadores e
Igreja católica - tradicionalmente qualificados pelo peronismo como as agrupações mais representativas da
na{ao. Menem personifica um peronismo que continua' submerso numa cultura política autoritária. A
política tende a ser concebida pelo governo sob a lógica da guerra - com os atores sendo interpelados de
forma extremamente maniqueísta '-, em que aos adversários não resta outra alternativa senão aniquilar-se.
Nessa perspectiva, herdada da tradição peronista, trata-se, pois, de destruir - sem reconhecer a
legitimidade - os adversários políticos, considerados defensores de interesses externos, alheios a nação
argentina.
Para concluir, pode-se afirmar que a política econômica implementada por Menem esta
enterrando a concepção populista que o peronismo teve ao longo da sua história a respeito da gestão da
economia. Entretanto, do ponto de vista político, podemos observar um a grande continuidade em
determinados aspectos autoritários da cultura política peronista. Atualmente, as posi9oes defendidas por
Menem são dominantes na direção do Partido Peronista e tendem a gerar uma crise profunda no seu
interior, que por ora não e possível prever o desfecho. Mas, e certo que as iniciativas ate agora' tom adas
pelo governo e as concepções subjacentes ao peronismo não são nada estimulantes para a I construção de
uma sociedade moderna baseada na democracia e no pluralismo, demandas estas produzidas pela
própria modernidade, e que em algum momento hão de querer cobrar os seus direitos.

NOTAS

1-Nascido em La Riojá, província do norte argentino, Carlos Menem procura mostrar-se ao público como um
continuador da luta do caudilho mais famoso da região, Facundo Quiroga, imortalizado no livro Fagundo de
Domingo Faustino Sarmiento, como modelo da barbárie, segundo uma visão liberal da época.

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2-BOSOER, Fabian - "Un Ano de Revolution Conservadora" in La ciudad futura. Buenos Aires, n.22, p.6,
Abr./Mayo,1990.
3-A proximidade do peronismo a grupos de direita não é nova, chegando a ser muito importante na própria
origem desse movimento político. A novidade é a aliança com setores neoconservadores que há anos
defendem uma política radical de privatização de empresas e dos serviços públicos, com vistas a alcançar um
―Estado mínimo‖. Também é bom lembrar que a aliança com tais grupos não é pacífica, haja vista que entre
os militares há oposição às propostas privatistas.

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MESA REDONDA

A PESQUISA FORA DAS INTUIÇÕES OFICIAIS

Maria do Carmo Andrade Gomes - LAPHIS

"Preservar a simples hierarquia excludente entre produção erudita e escrita de difusão e


negligenciar mesclas, compromissos, identificações. Isso não significa 'descambar' nem divisão entre
espaços legítimos e espúrios da reflexão histórica. Simplesmente, essa área de estudos pluraliza sua;
formas de existir e a qualidade de produção não pode ter lugar pré-determinado."
Marcos A. da Silva

A empresa LAPHIS - Laboratório de Pesquisa e Consultoria Histórica - surgiu em abril d« 1988


como fruto da vontade de um grupo de pesquisadores que vislumbraram, a partir de experiências
individuais diversas, a abertura de um novo mercado. Embora bastante tímido, este campo de|
realizações apresentava-se como opção de trabalho frente a desestruturação conjuntural dos órgãos de
pesquisa do Estado e as sempre restritas oportunidades acadêmicas.
Em nossas trajetórias profissionais, já amadurecidas por cerca de 08 a 10 anos de experiência
em órgãos do patrimônio histórico, arquivos e museus, surgiram contatos com a produção cultural regional,
como convites para realizações de pesquisas para empresas e particulares, consultoria para televisão ou
montagens de exposições, entre outros. A partir destas iniciativas individuais, aprofundamos a discussão
em torno da constituição de uma empresa que oferecesse formalmente este tipo de trabalho, de maneira a
ampliar nossos horizontes profissionais, forçando a abertura de um leque de possibilidades de pesquisa
antes inexistentes ou ignoradas.
Trata-se ainda de um mercado extremamente acanhado, especialmente em Minas Gerais, devido a
pouca sensibilidade de autoridades, empresários e promotores culturais quanto a dimensão e apelo social
da história e da memória e, mais que tudo, pela crise econômica do país, principal agente constrangedor
das iniciativas culturais. O mercado tendeu a se tomar mais amplo quando da vigência da Lei 7505/86, de
incentivo a produção cultural pelo patrocínio das empresas, que também para nos foi fator de estimulo,
embora não tenhamos trabalhado através dela devido a sua curta e discutida existência.
Apesar das adversidades, o LAPHIS tem caminhado ao longo destes três anos no sentido de seu
amadurecimento, enfrentando dificuldades que vão desde a instabilidade das ofertas de trabalho e a
desvalorização econômica da pesquisa histórica e do pesquisador ate o despreparo profissional do

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


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historiador para o enfrentamento de questões praticas, como aquelas de ordem administrativa e contábil ou
relativas a negociação de orçamentos, cronogramas etc.
O balanço de nossas atividades mostra grande diversidade de produtos e clientela: pesquisa levantamento
documental para projetos especiais de empresas como livros-brinde, construção de biografias. pesquisa e
montagem de exposições, avaliação de patrimônio cultural para empresas de consultoria ambiental, informes
históricos para tombamento de bens culturais e outros. Essa diversidade resulta muitas vezes na necessidade
de se buscarem consultores e no convívio com outros profissionais como jornalistas, arquitetos, alem de
representar para nos, pesquisadores, um desafio metodológico que buscamos superar com qualidade.
Concluindo, gostaríamos de salientar dois pontos importantes a serem discutidos nesta mesa-redonda:
.a abertura de um novo mercado de trabalho para os historiadores, fruto do amadurecimento das empresas
publicas e privadas e da conscientização de seu papel com atores históricos responsáveis por uma parcela de nossa
memória;
.a renovação historiográfica que tem permitido a difusão de temas históricos através de sucessos editoriais,
da ampliação das fontes e abordagens históricas e da utilização de distintos suportes na condução de suas
mensagens, como o cinema, a imprensa escrita e falada, o vídeo, entre outros.

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MESA REDONDA

A PESQUISA HISTÓRICA FORA DAS INTITUIÇÕES


OFICIAIS

EDUARDO FRANÇA PAIVA


INSCRIPTUM PESQUISAS HISTÓRICAS LTDA

O que se deve entender por "instituições oficiais"? Esta expressão estabelece a diferenciação entre as
instituições de caráter público e as de caráter privado, mesmo sendo estas últimas reconhecidas
oficialmente? Como deveriam ser classificadas as empresas privadas de pesquisa': histórica? É possível
conciliar rigor e ética cientifica com os "fins lucrativos" destas empresas? Estas empresas estão fazendo "história
encomendada"?
Utilizar-se destas questões para iniciar um texto que pretende, apenas, abordar alguns aspectos desta
atividade e reflexo do curto tempo de existência e de trabalho das empresas, bem como da quase inexistência de
espaço para discussão - e inexistência da própria discussão - dos problemas comuns que as afligem. Algumas das
questões refletem, ainda, a desinformação em relação a este tipo de trabalho realizado por historiadores. Este
desconhecimento e mais comum em centros urbanos menores (mesmo que sedes de universidades que oferecem
cursos de História), embora não se encontre ausente nas capitais-sedes de grandes universidades.
Nesta perspectiva, pretende-se esclarecer alguns pontos pertinentes a matéria. Um deles refere-se a
chamada "história encomendada", cujas conclusões finais estariam definidas pelo agente patrocinador com o
beneplácito da empresa e dos historiadores responsáveis pelo desenvolvimento do projeto; em outras palavras, a
história do financiador, como ele a deseja.
O debate em torno deste assunto privilegiara, naturalmente, exposições e relatos sobre os trabalhos
empreendidos. Pretende-se demonstrar como essas empresas estão contribuindo para a evolução das discussões
pertinentes a História e a historiografia, bem como chamar a atenção para a mudança - lenta, na verdade - de
hábitos da população em relação a necessidade de conhecimento de sua história. Complementa este quadro um
comentário sobre a atuação do historiador neste processo,; abordando-se a ampliação de seu campo de trabalho e o
seu papel de protagonista na recuperação da memória - as vezes de lembranças - de determinadas regiões,
empresas e instituições.
A investigação sobre assuntos e temas, pouco ou quase nada conhecidos, e uma proposta constantemente
feita as equipes de pesquisadores, embora o trabalho com objetos de estudos mais; conhecidos não seja tão
incomum. Nestes casos, sobretudo no primeiro, vem sendo observado um; envolvimento direto e atuante da
comunidade com os historiadores, de quem são cobradas reuniões,

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explanações e resultados mais objetivos. Percebe-se, então, que alem das avaliações feitas pelos rentes
financiadores, os textos produzidos, geralmente sob a forma de relatórios mensais, estão sendo examinados pela
própria comunidade.
Este quadro genericamente traçado pode ser exemplificado através da evolução do projeto ―História de
Venda Nova", financiado pela Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte e d envolvido pela
Inscriptum Pesquisas Históricas Ltda. De origem setecentista, Venda Nova é uma das varias localidades situadas
na antiga Comarca do Rio das Velhas que a partir da mudança da capital de Minas para Belo Horizonte, tiveram
sua memória quase que apagada. Mais especificamente, este distrito esteve subordinado a varias freguesias e
cidades desde a sua origem, nunca alcançou sua emancipação, sendo definitivamente incorporado ao município de
Belo Horizonte a partir de 1948. Como periferia da capital, região e, atualmente, uma grande "cidade dormitório",
onde significativa parcela da população deseja a sua separação político-administrativa de Belo Horizonte.
A proposta de investigação em tomo da origem e formação histórica da região partiu da própria
comunidade, através da "Comissão de História de Venda Nova" - ligada a administração regional e composta por
moradores sem formação acadêmica especifica. Representantes da Comissão participaram ativamente das reuniões
de apresentação e discussão do projeto de pesquisa elaborado pela Inscriptum e apresentado ao agente
financiador. A equipe de historiadores tem sido freqüentemente interpelada pelos membros da Comissão, bem
como auxiliada pelos mesmos, principalmente em relação as coletas de depoimentos orais, realizadas junto a
antigos moradores,
E possível notar a avidez de informações entre os habitantes de Venda Nova. Ela e justificada diante
da concretização de sua proposta e da possibilidade de se obterem, pela primeira vez, informações
sistematizadas sobre a região onde moram, sobre suas origens ou, em outras palavras, sobre o processo
histórico no qual estes habitantes encontram-se inseridos.
Para eles, desencadear um processo de tamanha importância, bem como participar ativamente de sua
evolução, e motivo de orgulho. O repasse das informações coletadas para professores e alunos das escolas de I9
e 2s graus da região e um programa previsto pela Comissão, antes mesmo do início da pesquisa. Espera-se, com
isso, incentivar o compromisso de preservação da memória regional entre a população e intensificar a promoção
de eventos culturais.
Para a equipe de historiadores desenvolver este trabalho em contato direto e permanente com a
comunidade idealizadora do projeto, e oportunidade inusitada de cumprir uma de suas funções sociais mais
importantes. Trata-se de difundir o conhecimento adquirido e os resultados de suas pesquisas junto a sociedade
na qual se insere, da qual e parte integrante enquanto agente histórico e "profissional" responsável pela
preservação de sua memória, bem como pela analise das relações sociais estabelecidas, das expressões,
representações e transformações de sua cultura.
Alguns trabalhos, empreendidos através de empresas privadas de pesquisa histórica, tem possibilitado a
participação de moradores em projetos similares ao relatado. Talvez por estarem desprovidas do aparato
burocrático característico das "instituições oficiais", essas empresas venham conseguindo viabilizar a integração
entre pesquisa histórica e comunidade, fato muitas vezes cortejado pelos projetos desenvolvidos em grandes
universidades e institutos de pesquisa, embora nem sempre efetivado.
Neste sentido, a contribuição para o desenvolvimento da sensibilidade coletiva nesta relação a História e a
importância da preservação da memória das regiões, das famílias e das instituições vem apresentando bons
resultados, como também tem ampliado o campo de trabalho do historiador. Vem se tornando comum a
preocupação da iniciativa privada com a criação e manutenção de seus arquivos, com o registro sistematizado da
evolução de suas atividades e com o desenvolvimento de pesquisas relacionadas as cidades e regiões onde
encontram-se atuando. Da mesma forma, tem havido contatos

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no sentido de se promoverem levantamentos mais específicos, como, por exemplo, o arrolamento de dados sobre
exploração mineral em determinadas regiões onde se pretende reiniciar as atividades.
A ampliação do campo de atividades do historiador se da concomitantemente a reconhecimento social -
mesmo que, ainda, reduzido - de seu oficio, bem como a disposição do mercado para a absorção de seu trabalho.
A formação desse mercado consumidor - composto pelas iniciativas publica e privada - e a oportunidade de prestar
serviços a ele não podem ser ignoradas pelo historiador destes tempos. A ele cabe buscar novas frentes de atuação
e ao mesmo tempo avaliar transformações, em gestação, na rela9ao entre seu trabalho e a sociedade onde vive.
Dessa forma e necessário demonstrar que os resultados das pesquisas empreendidas pclo "profissional" de
História extrapolam, muitas vezes, os limites do debate, sendo colocados a service da vida cotidiana da população.
Lastreadas por aparelho técnico-metodologico apurado e trabalhando de acordo com rigorosos procedimentos
etico-cientfficos, as empresas privadas e suas equipes de pesquisadores tem eontribuido neste sentido. São
projetos de invéstigação sobre o processo de formajáo histórico- cultural das regioes ou, mais especificamente,
sobre trajetorias de vidas individuals e de empresas, passando pelo arrolamento de informações necessarias para o
tombamento, restauração e preservação do patrimonio cultural.
Já e possi'vel perceber, então, que a referida "história encomendada" não integra as atividades desenvolvidas
por essas empresas, resguardadas as pretensas exceções. Os financiadores indicam, geralmente, os temas ou
assuntos a serem invéstigados sobre os quais os historiadores tem trabalhado sem imposições de carater
metodologico e/ou ideologico. Sob a chancela destes últimos se procedem, inclusive, alterac5es nas propostas
originais, comuns nos processos de invéstigação.
A relação com os agentes de fomento vem ocorrendo, ainda, de outra forma: as empresas de pesquisa
tem formulado Tojetos e requerido patrocinio da iniciativa privada. São propostos temas de interesse dos agentes
financiadores que preveem, geralmente, o produto final sob a forma de livros e videos, dentre outras opções de
registro. Embora não tenha se tornado inteiramente inviavel, esta formula de captação de recursos sofreu um duro
golpe com o final da Lei nB 7.505 de 02.07.1986, mais conhecida como "Lei Samey", destinada ao incremento
cultural no pais.
O atual governo, ao extinguir esta Lei e não propor nenhum outro tipo de programa de desenvolvimento
cultural em substituição, esta contribuindo, -decisivamente, com o retrocesso do quadro histórico-cultural
brasileiro. A simples diminuição do ritmo de desenvolvimento das atividades de pesquisa nas areas privada e publica
compromete esforços, particulares e coletivos, para a evolução deste setor, assim como os bons resultados já
obtidos.
A atual indefinição da poh'tica cultural do governo causa danos irreparaveis a sociedade brasileira, ainda
que as conseqiiencias não sejam inteiramente detectaveis no momento. Uma avaliafao primaria não encontraria
dificuldades em identificar uma depredação mais acelerada do patrimonio histórico constitui'do, bem como
apontar o retardo no debate - já defasado - sobre a produção, organiza9ao e difusão da informafao no Brasil;
areas que tem recebido contribui^oes das empresas de pesquisa historica.
Ainda que se tenha pretendido privilegiar neste texto as atividades desenvolvidas por estas empresas, e
importante observar que elas não se encontram em polos opostos as "instituições oficiais" de pesquisa historica. O
intercambio de experiências entre elas e efetivo, mesmo que não seja comum o desenvolvimento conjunto de
projetos de invéstiga9ao. Neste sentido e necessário salientar que essa cooperação pode ser intensificada, devendo,
assim, contribuir para a atenuação de problemas que nos são indistintamente colocados.

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MESA REDONDA

A PESQUISA HISTORICA FORA DAS


INSTITUIÇÕES OFICIAIS

Edilane Almeida Carneiro

Dossiê – Agenda de Investigação Histórica Ltda.

Não é novidade para nenhum de nos, historiadores, o problema da limitação de nosso mercado de
trabalho, especialmente para aqueles que optam por viver do oficio da pesquisa, seja em instituições públicas ou
junto a iniciativa privada.
Entretanto, não e o caso de lamentarmos indefinidamente, procurando culpados. Mais importante é
criarmos alternativas. E nessa perspectiva que compreendemos a criação da DOSSIÊ e de outras firmas de
pesquisa histórica.
Acreditamos, inclusive, que esse não e um fenômeno isolado. Para se falar, hoje, das possibilidades da
pesquisa histórica, e preciso acompanhar um movimento mais amplo, que diz respeito a expansão da História,
para alem dos limites da academia e das instituições oficiais, cativando um publico muito maior, sem perder, e
claro, o atributo da qualidade e do rigor cientifico.
Pode ser que essa "moda retro", essa procura de raízes, seja um dos aspectos da necessidade ,de identidade,
tanto no âmbito da família, quanto no de empresas ou de cidades. Como se, nos dias de hoje, pedíssemos a
História respostas para questões vitais como: quem somos, donde vimos, para onde vamos?
Mas esse não seria o único fator a contribuir para o sucesso da História junto ao grande publico. Também
a decepção das pessoas frente a modernidade e ao progresso reabilita a Histona, preenchendo uma carência de
fundamentação em relação ao real.
Com efeito, ha muito que se pensar sobre isso. De qualquer forma, essa "moda retro", ou
que nome se queira dar, e um fenômeno perceptível e atestado pela popularidade dos livros de História junto a
leitores não especializados. O que, diga-se de passagem, esta certamente ligado a combinação de características
muito caras a "Nova História", como o retorno da narrativa, com a recuperação da "arte de contar" e, por
conseguinte, com a produção de textos mais prazerosos e o tratamento de novos objetos, antes esquecidos por
uma história política, de Estados e estadistas, e também por uma certa historiografia marxista eminentemente
economicista.
Para nos, e também para outros, esse momento significou a possibilidade de lidarmos com
pesquisa, de insistirmos no oficio do historiador, trabalhando com memórias de instituições privadas, genealogias,
biografias, histórias de cidades e ate mesmo de cavalos.

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Desenvolvemos projetos que nos são encomendados ou apresentados por nos ao cliente, o que não quer
dizer, de maneira nenhuma, que nos sejam impossíveis o rigor científico e a preocupação teórica e
metodológica.
A propósito do nosso trabalho, importa, sobretudo, pensar suas especificidades e desafios e, para tanto,
retomaremos aqui a experiência com a história do cavalo Mangalarga Marchador
Para nos, afora varias outras particularidades, como interesses e objetivos do cliente, nos grande desafio e
o dialogo entre nossa empresa e o cliente - no caso, a Associação Brasileira do Criadores de Cavalo
Mangalarga Marchador [ABCCMM]. A dificuldade consiste em travai m dialogo entre diferentes, na medida
em que nosso interlocutor nem sempre se expressa na nos ( linguagem. Alguns jamais pararam para pensar
sobre a História e tem uma relação com o passado' cristalizada em estereótipos, apoiada em uma concepção
"ingênua" da história, no sentido de que passado e o conhecimento do passado restringem-se apenas a
ordenação de fatos isolados, datas L biografias de "grandes homens".
Por isso, e preciso que repensemos sempre os nossos pressupostos metodológicos para explicarmos o que,
para nos, pode parecer obvio, como, por exemplo, a relatividade da verdade histórica, a pertinência de uma
história-problema contraposta a simplificação de uma histon4 eminentemente factual.
Voltando a história do cavalo Mangalarga Marchador, e muito elucidativo citar que no nosso primeiro
contato com o cliente nos foi solicitada a "comprovação documental" para uma versão da origem da raça
Mangalarga que vem sendo transmitida há anos. Conta-se que um prestigiado barão do sul de Minas, o Barão de
Alfenas, teria ganho da Família Imperial um garanhão da Coudelaria de Alter do Chão em Portugal. O cruzamento
com suas éguas criadas em sua fazenda teria dado início a raça Mangalarga Marchador. Caberia a nos eliminar as
controvérsias quanto a datas e a alguns nomes, escrevendo, então, uma história verdadeira, cientifica e definitiva.
Ao longo de meses de pesquisa pelas fazendas, cartórios, arquivos públicos e particulares, do interior e
de outros Estados, convencemo-nos de que, mais do que comprovar essa versão, importava contextualizar esses
acontecimentos, recuperar seus personagens e alinhar os vestígios de suas atividades.
Recuamos ao final do século XVIII e início do XDC, para o contexto do abastecimento da Corte pelos
núcleos produtores do sul de Minas. Nesse cenário, transitavam os protagonistas dessa história. Fomos encontrá-
los nos registros, barreiras e recebedorias da Comarca do Rio das Mortes, Passavam com escravos, mantimentos,
gado vacum e cavalar, pagando entradas, dízimos, subsídios e outros tributos exigidos. Esse comércio garantia-
lhes uma relativa influencia política. No entanto, são poucos os vestígios das atividades desses criadores - alguns
depoimentos, algumas fotografias e poucos documentos.
Empenhamo-nos em preencher as falhas e silêncios com as pistas reunidas e, por certo, com a imaginação,
buscando conciliar rigor e encanto, como diz Georges Duby. E, assim, escrevemos uma história do cavalo
Mangalarga Marchador, que, com certeza, não e definitiva, mas, sem duvida, transcende o universo estritamente
político e diplomático da Corte, para explorar o contexto mais amplo das estruturas sociais e econômicas do
Brasil na passagem do século XVIII ao XIX.
Por fim, o nosso trabalho envolvera sempre um constante esforço de sensibilizar o nosso
cliente, levando-o a repensar sua relação com o passado, com a memória, com o saber histórico. Dessa
forma, a cada pesquisa aprendemos e ensinamos que o acontecimento só tem sentido se integrado em
series temporais mais amplas; que "grandes homens" - barões, inclusive - não são entidades aistóricas;
que os silêncios são indicadores poderosos; que o documento deve ser interpretado, desmontado e lido
como produto de uma dada sociedade.

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Na dificuldade do diálogo, o produto de nossas investigações deve falar por nós propondo-se a ser
uma reflexão sobre a História.

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MESA-REDONDA

REPENSANDO A LICENCIATURA EM HISTÓRIA

MARIA INEZ SALGADO DE SOUZA – Fac. De


Educação - UFMG

"A história (ensinada) não era apenas palavras numa


página, nem as ações de reis e primeiros – ministros, não
apenas eventos. História era o suor, sangue, lagrimas e
triunfos de um povo ... o nosso povo. (Saville)

Acredito ser extremamente oportuno o tema deste debate e creio que este e um momento para se
esclarecerem dúvidas ou ate mesmo expressarmos nossas opiniões sobre tão contraverso tem a licenciatura
em História.
A oportunidade desse debate servira para levantarem-se as questões que cercam polêmico
assunto e procurarei fazê-lo não em termos do que são atualmente os cursos de licenciatura mas do que
poderá vir a ser.
Existem já análises que eu chamaria de clássicas, como as de Déa Fenelon, Elsa Nadai
Raquel Glezer, para so citar as mais conhecidas, onde são mostradas o descompasso entre os cursos.
de História e o "ensino de História". Eventos foram realizados para se discutir o tema, com excelentes
contribuições para o debate, tais como as originadas no seminário "Perspectivas do Ensino &
História", em 1988, na USP, ou no grupo de Pratica de Ensino de História no V ENDIPE, em 198£
na UFMG. A tônica das discussões foi, neste último, a constatação de que dever-se-ia ultrapassar
etapa das criticas e partirmos, nos, os professores de Pratica de Ensino para propostas conjuntas que
visem o redirecionamento dos aspectos julgados críticos.
Creio que o encontro regional da ANPUH e um "locus" apropriado para apontarem-se novos caminhos da
prática docente em História. Aqui estão reunidos professores universitários, pesquisadores alunos de cursos de
História e professores de 1º e 2º graus. Isto e, todos aqueles a quem interessa e toca de perto, ao menos em tese,
a questão da licenciatura de História tal como vem sendo, proporcionada e para onde deve evoluir. Assim, peco
licença para não tecer unicamente considerações sobre a realidade atual do ensino, mas voar mais alto e fazer uma
digressão acerca da "licenciatura que gostaríamos de poder oferecer aos estudantes de História que desejarem
tomar-se professores‖.

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Por que ideal? Porque creio que aquilo que vou propor aqui poderá parecer utópico, fora da realidade, difícil de ser
executado, mas foi o presente debate e sucessivas criticas de professores e alunos que levaram-me a esse esboço
de encaminhamento para o dilema da Pratica de Ensino.
O que fazer, pois, quanto a formação acadêmica do profissional de História?
Como ponto de partida, e preciso que se esclareça o que se entende aqui por "licenciatura em História".
Ao me referir a ela, estou pensando "lato sensu" naquele profissional que cabe, não
somente a mim, enquanto professora de Pratica de Ensino, formar, mas sim a todos os professores do curso de
História, quer se envolvam ou não diretamente com os aspectos pedagógicos dessa formação. Para se
entender esta proposição e necessário que se responda a uma questão básica subjacente: o que e a
licenciatura? O que esse vocábulo denota? O que esse nome nos traz a mente e sempre o fato de estar vinculado
as questões da qualificação do profissional que se destina ao ensino. No atual sistema, esta qualificação e
atribuída ao ciclo de formação docente,.que geralmente dá-se no âmbito das Faculdades de Educação. Nos
institutos ou faculdades de origem, quando falamos de universidades, esta destinação profissional do estudante
não e jamais articulada - nem sequer se menciona ao aluno durante o curso - a problemática envolvida pela
licenciatura. Acredito não ser isto apenas uma mera falha burocrática mas um erro conceitual. Nossa contribuição
nessa mesa-redonda procura refletir nossa preocupação com este aspecto da formação do profissional de História
que se destina a carreira docente.
A experiência, enquanto professora e pesquisadora, possibilitou minha participação nesta mesa-redonda e e
com base nela que tentarei esboçar algumas idéias e propor a viabilização de uma nova conceituação do que seja a
"qualificação do futuro professor de História". O princípio do qual parto e que não se deve dissociar ensino de
pesquisa, não se deve segmentar o curso de História entre a preparação acadêmica do pesquisador e professor
universitário e a preparação pedagógica dos futures professores de 1º e 2º graus. Isto posto, pode-se então falar a
respeito. da formação ideal do profissional que devem os cursos de História estar aptos a qualificar.
A atualização teórica e o conhecimento, bem como a pratica da pesquisa histórica, pelos professores e
alunos dos cursos de História, podem e devem iluminar a futura atuação docente desses profissionais. A
extrapolação dos limites da história narrativa, cronológica, institucional deve-se dar não apenas em nível do
mundo acadêmico, mas também deve-se fazer parte integrante da nova perspectiva educacional da História.
Com isso quero dizer que o que já se faz nos cursos de bacharelado e pós-graduação deve passar a ser praticado
nas escolas de 1º e 2º graus. Impossível? Não se trata de colocar professores dos cursos elementares como
pesquisadores e os alunos como "aprendizes de feiticeiro", trata-se de colocar a História escolar no lugar que ela
merece: o de uma ciência ou campo do conhecimento com metodologia própria que vem avançando e sendo
reavaliado constantemente. O que e necessário para que isso se processe? Primeiro, uma rediscussão da
qualificação profissional do futuro professor. O encarregado de estabelecer a ponte entre o "conhecimento
histórico" e o "ensino de História" será o futuro professor, aluno do que chamamos atualmente de "licenciatura".
Ele será o intermediário, o capacitador do entendimento da ciência da História por todos aqueles que, na escola
elementar, ou no segundo grau, se defrontarão com esse conhecimento e o recriarão, na medida em que forem
levados a conhecer e ampliar o significado da "história que não esta nos livros".
Para tornar a proposta do novo ensino de História viável, o professor deve estar devidamente
instrumentalizado. Vale dizer que a sua qualificação profissional tem de ser reestruturada com esse fim. Um
principio basico e de que não se deve dissociar os conteúdos disseminados pelo curso de origem da formação
pedagógica, tal qual e feito atualmente. Essa dissociação cria um fosso transponível não apenas entre o nível
superior e os outros móveis escolares, como ainda entre

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pesquisadores e professores, entre criadores e repetidores, entre a história científica e a história e pouco mais que
conto da carochinha.
A busca de uma integração entre os conteúdos e sua metodologia e a parte pedagógica e sua
transformação em pratica docente deverão passar pela resposta a três tipos de questões:
- que teorias de história vem alimentando a pesquisa?
- que teorias de história alimentam o ensino?
- como se trabalhar com as teorias de história no ensino?
Não cabe aqui dar as respostas, dada a exiguidade do tempo e da natureza deste debate, sim colocar que
diretrizes sugeririam para urn possível redimensionamento da qualificação dada professor de História em nosso
País.
Tendo como pressuposto o compromisso da Nova História com a história popular, ou com
quer Marc Ferro, com uma "história dos povos sem história", pode-se apontar como objetivo dessa
nova conceituação de profissional da história a democratização da produção da história. Democratizar
a produção da história significa ampliar a lista dos que a escrevem aplicando a experiência ^
presente ao conhecimento e interpretação do passado. Um grande número de novas histórias acha-se
disponível ao alcance daqueles que saibam e possam delas tirar proveito. Falo aqui de todas as formas
de história listadas por Le Goff: a história oral, a história vinda de baixo, a história feita a partir dor
arquivos locais. Formas estas que são do domínio do universitário mas que ainda não são conhecida;
pelo professor que continua repetindo os manuais didáticos. Tudo isso faz parte de um movimento que
vem se dando principalmente em países da Europa, onde a classe trabalhadora, de fora da
universidade, reivindicou para si a participação na produção do conhecimento sobre sua evolução
histórica. Este movimento e sem duvida de uma história originada "de baixo para cima", como a que
vem sendo feita na Inglaterra por comunidades locais de trabalhadores. Esta história mudou os focos
de interesse: de nacional passou a ser local, de uma história das instituições passou a uma história do
cotidiano, da arte de governar ao estudo da cultura popular. Assim a história popular propõe um
revigoramento a base da história, amplia seus objetos e permite a utilização de novas matérias- primas
para processar o conhecimento histórico. Todos esses integrantes, acredito, poderiam ser transportados
para os cursos de história, fazendo-se através deles a instrumentalização dos futuros professores,
pesquisadores e incentivadores da pesquisa em história popular nas comunidades.
O que se propõe aqui, enfim, e uma oposição cerrada a erudição estéril de muitos de nossos
cursos de História, os quais contribuem de forma negativa para a história que e ensinada nas escolas,
É necessário que os cursos de História se conscientizem de seu papel na formação do profissional de
história como um todo: destine-se ele a pesquisa, docência ou a ambos. Para tanto, deve-se estimulai
uma integração entre os responsáveis tanto pelas disciplinas de conteúdo especifico quanto as de
conteúdo pedagógico. Para que isso se de, e imprescindível uma discussão previa de "que história vai
ser ensinada", "para que fim".

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MESA REDONDA

MEMÓRIA E PATRIMÔNIO HISTÓRICO


José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima
DEHIS/UFOP

Ao historiador que opta por enveredar pela trilha da preservação da memória histórico-cultural de
seu povo - e essa e nossa opção -, vários são os problemas que tornam seu caminhar uma tarefa. angustiante. Um
deles, a questão da definição do objeto de pesquisa que, em última analise, define o que vai ser preservado, para
nos e crucial. Benjámin, nas 'Teses sobre a Filosofia da História", redigidas no ano de sua morte, em 1940, e
publicadas seis anos depois, afirma: "Ha um quadro de Klee que se chama Angelus Novos. Representa um anjo
que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada,
suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto esta dirigido para o passado. Onde nos
vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre
ruína, e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma
tempestade sopra do paraíso e prende-se a suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa
tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas
cresce ate o céu. Essa tempestade e o que chamamos progresso". E nessa afirmação de Benjámin que devemos
buscar nosso objeto de pesquisa - falamos, portanto, dos fragmentos citados por ele -, são neles que nossa memória
encontra a chave capaz de desperta-la. E através deles que podemos, mesmo fragmentariamente, tentar reconstruir
algo que diz respeito ao nosso tempo e as nossas inúmeras expectativas.
Outra questão com a qual nos defrontamos sempre:"para que preservar?". Esta indagação e nossa e e
também, em maior número, daqueles que se envolvem diretamente com os bens a serem preservados, sejam estes
as populações das cidades ditas históricas ou aqueles que por varias razoes, sistematicamente, se afastam ou são
afastados de sua própria história. Para essa questão respondemos com uma frase de Fernando Brandt: "Minha arma
e o que a memória guarda". Se e esta a nossa arma, e os fragmentos do passado são capazes de colocá-la em ação, a
questão esta parcialmente resolvida.
Mas esta memória agora transformada em arma engatilhada, de nada serve na ausência de um alvo claro e
determinado. No mesmo trecho citado anteriormente, Walter Benjámin nos da esse alvo. Trata-se da Tempestade
que vem do paraíso: forma irônica de se referir a modernidade, que e concomitantemente promessa de
emancipação e projeto de dominação. A única forma de resolver de vez este problema e a perspectiva de futuro
que a recuperação daqueles fragmentos e, portanto, da

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memória, nos da, impedindo, assim, que mais uma vez o anjo da História evite olhar para como em Klee.
Neste sentido, um projeto vem sendo desenvolvido, no Laboratório de Pesquisa Histórico, do Instituto de
Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, por nossos alunos e sob nossa coordenação, e
tem por título "Inventario do Acervo Cultural no Município de Mariana. Propõem inventariar, catalogar e estudar
verticalmente os bens culturais moveis e imóveis de Mariana, visando a recuperação, mesmo fragmentariamente,
da memória histórica municipal e sua posterior divulgação. O projeto está sendo acionado por partes e divide-se
operacionalmente em seis módulos: 1 - urbanismo, 2 - arquitetura, 3 - talha ornamental, 4 - pintura decorativa,
5 - imaginária e 6 - artes decorativas, com subdivisões temáticas que estão sendo criadas ao longo de sua
efetivação,
Objetiva prioritariamente:
1 - criar um núcleo referencial histórico-documental- iconográfico sobre Mariana, sediado
no Laboratório de Pesquisas Históricas do Instituto de Ciências Humanas e Sociais desta Universidade,
montado a partir de dossiês organizados para cada objeto estudado;
2 - instrumentalizar os alunos do Departamento de História desta Instituição, no que tange
as pesquisas bibliográficas e arquivísticas, acrescidas da elaboração de textos técnicos;
3 - contribuir para que esta Universidade possa auxiliar aos poderes públicos constituídos
e as instituições pertinentes na tarefa de conservação, revitalização, utilização e divulgação destes bens
patrimoniais. :
No atual estagio desse Projeto, iniciado em outubro de 1990, a equipe esta estudando o sistema de
abastecimento d'água, seu esgotamento e os chafarizes da cidade de Mariana, uma das subdivisões do primeiro
modulo (urbanismo).
A escolha desse tema se justifica na medida em que a água consumida em Mariana, ate hoje, não tem
tratamento adequado. As elites políticas contemporâneas ainda não se sensibilizaram, de fato, com esse assunto e se
negam sempre a discutir verticalmente e a resolve-lo, o que para nos, e uma das questões básicas para o complete
desempenho da cidadania, visto envolver a saúde da coletividade pela quais são responsáveis.
Desta maneira, esse Projeto e a materialização de uma forma de ação que encontramos para resolver, em
parte, a questão da salvaguarda material dos monumentos históricos e sairmos do marasmo positivista dos
inventários ate agora realizados. Tendo como ―móbile" o estado de conservação dos chafarizes, estamos
criando condições de pressionar, na esfera da política, essa perspectiva de futuro, questionando esse projeto de
dominação, imposto pela modernidade e presente nas péssimas condições atuais, entre outras, de captação e
distribuição da água na malha urbana.
Ao fim, mas não menos importante, resta salientar que essa pesquisa e financiada pelo Programa de Bolsa
de Pesquisa da Coordenadoria de Projetos Acadêmicos da Diretoria de Ensino desta Universidade.

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MESA-REDONDA

MEMÓRIA E PATRIMONIO CULTURAL

Ricardo Samuel de Lana

Falar sobre Memória e Patrimônio Cultural no momenta atual e tanto mais oportuno por estarmos
vivenciando o processo de desmantelamento do sistema nacional de proteção do patrimônio cultural brasileiro.
Não intenciono me dedicar aqui a discutir essa questão, mas não poderia deixar de mencioná-la porque
Memória e Patrimônio Cultural são integrantes e indissociáveis.
Não com o conceito restrito de patrimônio histórico e artístico oficialmente difundido e que referencia os
conceitos de monumentalidade, excepcionalidade ou antiguidade, mas com as posturas mais recentemente
difundidas que reconhecem nas manifestações do quotidiano, nas realizações modestas, a história oral -
inestimável vertente do patrimônio cultural brasileiro.
Nesse sentido, privilegiar o registro da memória toma-se um imperativo pra quem lida com a preservação
cultural na atualidade. Como muito bem coloca Marshall Bermam no seu "Tudo que e Solido Desmancha no
Ar...", "o turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes descobertas nas ciências
físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção,
que transforma conhecimento cientifico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera
o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes, descomunal explosão
demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos caminhos
do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico desenvolvimento urbano; sistemas de
comunicação de massa, dinâmica em seu desenvolvimento, que embrulham e amarram no mesmo pacote os mais
variados indivíduos e sociedade..."
Nesse contexto privilegia-se a versão da história oficial celebrativa e oficializa-se a história dos
vencedores em detrimento da história dos vencidos. Resgata-se os estereótipos oficiais que viabilizam a
perpetuação dos interesses dominantes esvaziando a lembrança, a emoção, o sentido dos acontecimentos reais. De
modo inverso, conforme Bergson, "a lembrança ao atualizar-se toma-se percepção". O registro da lembrança, da
memória oral, possibilita a documentação de estruturas sociais pretéritas, de formas de cultura regional, da
retenção de idéias, impressões, conhecimentos, experimentos e realizações. Enfim, do que modernamente
denomina-se patrimônio cultural de uma sociedade em constante mutação pois, segundo Walter Benjámim, todo
dia e o último dia. E o último
dia e hoje.

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MESA REDONDA

MEMÓRIA E PATRIMONIO HISTÓRICO

Helena Alvim Amenci

Quando se apresenta, uma ocasião como o VII Encontro Estadual de História, onde
discute tiram Memória e Patrimônio Histórico, ficam, em aberto, para questionamentos, os
caminhos e as diretrizes pelos quais tem-se orientado as atividades realizadas pelo Museu
Histórico de Divinópolis.
Não ha, portanto, a idéia de se estabelecer ou definir um conjunto de normas como teoria
científica.
Para se chegar a dialética Memória/Patrimônio Histórico consideram-se dois grupos de
atitudes.
Estabelecendo o relacionamento Museu e Comunidade, o primeiro grupo propoe ao
Museu Is - tornar-se uma instituição devidamente legalizada, especializada,
garantindo sua existência. Sabe-se que muitas instituições tem sido
desativadas, ou desvirtuadas de seus objetivos, com facilidade, por não haver
amparo legal que as sustentasse. A falta de legislação dificulta, também, a
formação de um corpo administrativo e técnico. Todo Museu, toda Casa de
Cultura, toda Instituição devem ser criados a partir de leis que lhes garantam a
existência e lhes possibilitem a composição de um quadro de funcionários
habilitados para o desempenho de suas atividades;
2° - conceituar-se como espaço pedagógico, complementar da Escola, de fácil
acesso da população, onde as praticas educativas tem, como prioridade,
registro e a guarda dos acontecimentos e feitos da Comunidade garantia da
preservação e continuidade da História.
Observa-se que, em muitos Museus, por desconhecimento ou inconsciência de sua
importância no processo da educação, as atividades são exercidas por pessoal despreparado, não
especializado e desinformado.
Ha improvisação, ou brinca-se de fazer Museu. Não
basta boa vontade, "jeitinho para a coisa".
São necessários conhecimento, técnica, estudo, contato com outras instituições,
investimentos, aprimoramentos.
O conceito de Museu como espaço pedagógico fundamenta a crença de que um povo
chega

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consciência de seu Patrimônio somente apos definir e estruturar o sistema educacional.


Sem educação, um povo não tem condições de se mostrar com saúde, com cultura, com tecnologia, com
desenvolvimento industrial, com estabilidade econômica e financeiramente, como nação que faz respeitar.
Vale a pena lembrar que um povo tem consciência de seu patrimônio quando este povo tem consciência de si
mesmo.
Pisa-se areia movediça, se se tenta convencer o povo de que seus monumentos, suas praças, suas florestas,
seu ambiente não devem ser destruídos, ele se sente abandonado, faminto, desabrigado e desprovido das
necessidades básicas de vida.
Preservando-se o Ser Humano, conseqüentemente preserva-se Sua História, Sua Cultura, Seu
Ambiente. O Povo e Patrimônio. .
Entendendo-se Patrimônio como acervo, bens ou conjunto de bens de uma instituição, de uma pessoa ou
de uma comunidade, o segundo grupo de atitudes mostra o relacionamento de Museu e Patrimônio através do
fenômeno do conhecimento.
O objeto que constitui o Patrimônio se faz conhecer em três momentos que, embora distintos, fazem
parte de um mesmo fenômeno, a saber:
. O momento ontológico: o objeto em si mesmo, seu espaço, seu tempo, sua matéria,
sua cor, seu cheiro, a existência ontológica do objeto.
.O momento lógico: a verdade do objeto garantida pela forma; a realidade do objeto
garantida pela sensibilidade que o percebeu; sua conformidade com a ordem do mundo no
qual se encontra. E a existência lógica do objeto.
.O momento epistemológico: as novas realidades que o objeto
proporciona, as histórias contadas através de sua linguagem memorial revelando referencias
universais. £ a existência epistemológica.
Isto significa que as pecas que compõem um acervo, um arquivo, suportam estes momentos, estas
existências.
Considerando qualquer uma das pecas do acervo do Museu Histórico de Divinópolis, por exemplo, o boné
que pertenceu ao Senhor Francisco Ribeiro da Silva, maquinista da Rede Ferroviária Federal, constatam-se sua
matéria, sua cor, seu cheiro, seu tamanho, sua forma em harmonia ou desarmonia com outros bonés de outros
maquinistas, de outras ferrovias, de outras pessoas.,que marcaram presença no mundo, proporcionando outras
realidades, fazendo História.

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MESA-REDONDA

MEMÓRIA E PATRIMONIO HISTÓRICO

Lídia Avelar Estanislau - IBPC

A experiência da releitura e apenas um exemplo da dificuldade, senão da impossibilidade, de


reviver o passado tal e qual - impossibilidade que todo sujeito que lembra tem em comum com o
historiador.(--.) Posto o limite fatal que o tempo impõe ao historiador, não lhe resta senão
reconstruir, no que lhe for possível, a fisionomia dos acontecimentos.
Ecléa Bosi

Minha contribuição a esta mesa-redonda sobre Memória e Patrimônio Histórico parte de algumas
colocações de Chesneaux, retiradas de sua analise a propósito da história e dos historiadores. Estarei, certamente,
"chovendo no molhado", mas foi o ponto de partida que escolhi para iniciarmos esta nossa reflexão conjunta. Creio
que concordaremos com ele na afirmação de que "o Estado busca controlar o passado. Estado e poder organizam o
passado e modelam sua imagem em função de seus interesses políticos e ideológicos. Nas sociedades de classe, a
história faz parte dos instrumentos pelos quais a classe dirigente mantém seu poder. As classes dirigentes e o
Estado invocam freqüentemente o passado de modo explicito: a tradição, inclusive em suas componentes
culturais especificas, a continuidade e a história são invocadas como fundamento e princípio de sua
dominação."1
No Brasil, o poder político tem se fundado, entre outras coisas, em hábil apropriação do passado
apresentado como patrimônio "histórico". Palavras como permanência, continuidade, tradição, herança estão
presentes no discurso oficial de preservação do patrimônio. Muitas vezes, porem, a utilização do passado e menos
explícita. A história e chamada em defesa da ordem estabelecida e dos interesses das classes dirigentes através
de uma ideologia difusa que perpassa os meios de comunicação, os livros didáticos, o mercado (inclusive o
cultural). Mas o Estado também intervém de forma mais concreta a fim de "ritualizar" o passado e desviar, a seu
serviço, a memória popular. £. o caso das festas nacionais, das comemorações solenes, dc tombamento de
monumentos. Tudo isso funciona da mesma maneira: patrocínio estatal de uma celebração histórica, um espetáculo
que realiza a ocultação dos aspectos não oficiais do acontecimento.
O conhecimento do passado e vigiado, na fonte, pelo poder de Estado. O controle do

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passado e da memória coletiva pelo poder de Estado se da sobre as fontes documentais. A grande maioria dos
"documentos de primeira mão", tão caros aos historiadores, são de origem estatal ou paraestatal. Nossa memória e a
memória do poder, pois os registros estão nos arquivos do Estado, nos arquivos da Igreja, nos arquivos das grandes
empresas, nos arquivos das grandes famílias.
Esse controle e muitas vezes como um "desconto na fonte" - ao se destruirem ou tornar secretos
documentos embaraçosos - e faz com que fragmentos da história do mundo so sobrevivam pelo que deles foi dito
(ou permitido dizer). A ocultação e um dos procedimentos mais correntes nesse dispositivo de controle do passado
pelo poder. As guerras colonialistas e imperialistas e a escravidão estão entre os temas favoritos dessas operações
redutoras. A memória popular e, quase sempre, expropriada ou resta-lhe o recurso de ficar "arquivada" nas
lembranças das pessoas, sem monumentos tombados que lhe respaldem o testemunho.
Outra forma de manipulação da história pelo poder de Estado e o exorcismo do passado e o elogio da
modernidade. E preciso viver no presente, sem se interessar pelo passado, pois o futuro possível, como não podia
deixar de ser, e aquele sistematicamente cultivado pelo grande capital. Tudo isso como se passado, presente e
futuro pudessem existir independentes de suas relações!
Entretanto, o passado não desapareceu dos discursos oficiais, nem do cotidiano brasileiro, mas e agora
manipulado em função das exigências do momento. O passado e agora despedaçado, convertido em elementos
dispersos de um sistema inofensivo.
A ideologia da modernização perde de vista as referencias que permitiriam criticar o presente e assim
definir para o futuro a exigência de uma sociedade qualitativamente diferente.
A ocultação do passado e um procedimento favorito do poder, mas não e monopólio das classes
dirigentes. O passado incomoda aqueles que estão preocupados em preservar seu poder particular, no interior de
todo e qualquer tipo de organização, mesmo que varie a sua etiqueta ou filiação partidária.
O controle do passado pelo poder e um fenômeno comum a todas as sociedades de classe, mas ele se
efetua segundo modalidades especificas em função das exigências que cada modo de produção dominante
estabelece. Nos sociedades asiáticas, a história e um assunto de Estado, um atributo e um apoio essenciais de
cada dinastia. No ocidente feudal, a história prolonga o discurso moral e religioso do cristianismo medieval. Na
União Soviética, desde o período stalinista, esquematizava-se comodamente a história do mundo: comuna
primitiva, escravismo, feudalismo, capitalismo, socialismo. Na China, onde a situação e mais complexa, há uma
história popular fundamentada na própria experiência de vida, ao lado de praticas autoritárias e dogmáticas, e,
assim, ora apela-se amplamente para a memória popular, ora só se fornecem visões tardias e fragmentarias.
No capitalismo liberal também existe uma relação especifica entre as exigências do modo de produção
dominante e o funcionamento do saber histórico. Essa relação, entretanto, não e direta nem mecânica: ela e feita,
ao mesmo tempo, de intervenções abertas do Estado e de pressões ideológicas difusas.
Os historiadores, ate recentemente, estavam convencidos de que gozavam de "liberdade cientifica", mas
hoje já se dão conta de que reproduzem em sua atividade profissional todas as condutas características da
sociedade capitalista em seu conjunto. O saber histórico, entrincheirado através da objetividade, finge ignorar
que reforça, com toda a autoridade do Tempo, o poder do Estado, da igreja, dos europeus, dos homens ricos...
A História da Educação, por exemplo, nada mais c do que um discurso ideológico que apresenta como
construção "histórica" o sistema atual de aprisionamento escolar e de condicionamento dos estudantes a cultura
dominante: respeito passive ao saber, competição individual, aceitação das desigualdades sociais em nome da
"aptidão" ou da "capacidade". Salvo casos raros, o saber histórico

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é açambarcado por um grupo conivente com a classe dirigente, que aceita seus valores e leva, em geral, a mesma
vida confortável - do escriba egípcio ao acadêmico soviético, passando pelo político liberal, pelo intelectual
progressista ate o pesquisador "de esquerda".
De fato, através das relações especificas de cada sociedade, as classes dirigentes confiaram, quase sempre,
o estudo do passado a profissionais: monges, sacerdotes, arquivistas, burocratas, políticos aposentados, ricos
ociosos, professores. Estes, muito raramente e ha pouco tempo, se interessaram em resgatar, em cada etapa do
passado, a relação específica entre o saber histórico e o modo de produção dominante. Uma sociologia da história,
uma história social, ou uma história da história - quaisquer das expressões me parecem redundantes -, quando e
feita, e sob forma puramente narrativa: registram-se os progressos do saber histórico, através do tempo, pela
acumulação dos conhecimentos e refinamento dos métodos críticos.
"Proclamamos a nossa critica a historiografia dos vencedores, mas continuamos a aceitar com extrema
facilidade as evidencias a criticas que o saber histórico nos apresenta: os cortes cronológicos e as periodizações
impostas pela lógica da dominação; a concepção de história como passado morto; a autoridade da palavra
impressa; a dissociação entre os problemas e a documentação; o exclusivismo profissional do saber; o
intelectualismo; o objetivismo apolítico ou, muitas vezes, a ciência como refugio para a neutralidade"2,
O passado que não se leva em conta e aquele que se insere diretamente nas lutas do povo.
E neste nosso tema Mem6ria e Patrim6nio Histórico cabe perguntar:
- A quem o passado incomoda?
- Toda ocultação do passado e censurável em si?
- É possível estabelecer prioridades no trabalho de desocultação do
passado?
- Onde acaba a iluminação seletiva do passado em função das lutas
reais, das prioridades políticas reais, e onde começa a ocultação
deliberada, a falsificação por razão de Estado?
Toda escolha política implica um risco de erro mas nada nos garante que o que triunfou foi sempre o
melhor. Para compreender os avanços alcançados na satisfação das necessidades é preciso coletivas resgatar
processos alternativos ou lutas cotidianas, como também fracassos, derrotas e Utopias. Falar de Mem6ria e
Patrimônio Histórico exige alguma discussão sobre as relações do tema com as diferentes concepções de
História e do lugar do político nestas concepções e praticas, para podermos pensar em "história da cultura não
como a história de todo um modo de vida, mas, principalmente, como todo um modo de luta."3
Na luta contra a ordem estabelecida, recusar o passado com suas imagens de opressão e uma tendência
"natural". A versão oficial do passado, de acordo com os interesses do poder e por isso mutilada, censurada e
deformada, os movimentos sociais opõem uma imagem conforme. as suas aspirações, capaz de refletir a real
riqueza de seu passado.
A vontade de se apoiar no passado para afirmar uma identidade própria e muito sensível nos movimentos de
liberação nacional da Europa central, no século XIX e nos movimentos de libertação do Terceiro Mundo, no
século XX. O passado toma-se um ancoradouro das lutas do presente e o resgate do passado toma, então, a
forma de uma inversão de símbolos e valores.
A preservação de sítios e monumentos históricos do passado faz parte das reivindicações dos movimentos
sociais, tai como aconteceu com a Serra da Barriga, nas Alagoas: o direito de um passado próprio se confunde com
o direito de existir hoje. Por isso a luta pelo tombamento do lie Ya Nassô Oka - o Terreiro da Casa Branca, na
Bahia - o mais antigo templo da religião afro- brasileira, único monumento que figura no Livro do Tornbo ao
lado de tantas igrejas. Pela mesma razão a luta pelo

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reconhecimento de Zumbi dos Palmares como herói nacional. Também por razoes semelhantes a luta pela
demarcação dos territórios indígenas. A afirmação de um passado original faz parte das lutas contra a dominação
branca e contra o quase extermínio das nações indígenas no Brasil. Os manuais de história os ignoram com a
afirmação de que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil! As terras que ocupavam desde tempos imemoriais e
seus modos de vida considerados como "primitivos",. "animistas" ou "folclóricos" - tal como a cultura negra -
fundamentam-se em um equilíbrio ecológico e demográfico muito elaborado. Foram os brancos que lhes
trouxeram as doenças que os destroem, que lhes submeteram como escravos, que lhes encurralaram sob o
pretexto da evangelização.
Para os não-brancos no Brasil - negros e indígenas em particular - o resgate do passado caminha junto a
um despertar político.
Felizmente, muitos historiadores já consideram a necessidade de uma revisão da história oficial, como
ponto de partida das lutas populares, e o povo brasileiro já encontra aliados na luta pelo seu direito a História. A
história do capital já começa a ser contestada pela história do trabalho.
Não se pode negar que a subordinação tem como contrapartida a insubordinação e a resistência, por isso
todas as lutas populares são pontos de partida para as lutas de hoje, na medida em que o passado alimenta os
movimentos sociais.
Para mudar uma situação e preciso, antes de mais nada, conhecê-la. Para conhecê-la bem e preciso
analisar as forcas históricas que a configuram. Quando nos roubam o passado e preciso retomar a história no
ponto onde ela parou.
A extinta SPHAN/próMemória sucede o EBPC - Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, autarquia
especial vinculada a Secretaria da Cultura da Presidência da Republica, cuja estrutura devera atender ao disposto
pela Constituição Federal, especialmente os artigos 215 e 216, com seus parágrafos e incisos, e a Lei ns 8.029,
de 12 de abril de 1990, publicada no D.O.U. de 13/05/90, que autoriza o executivo a criar o IBPC.
A Constituição Federal reconheceu uma pratica em que já se empenhavam muitos profissionais e
estudiosos ao adotar a expressão patrimônio cultural e estabeleceu a competência conjunta da União, Estados,
Distrito Federal, Município e sociedade civil nas ações de promoção e proteção do patrimônio cultural. Não se
trata mais de preservar a arquitetura luso-brasileira-eclesiástica, nem os conjuntos barrocos, apenas.
O patrimônio cultural brasileiro compreende "os bens materiais e imateriais, tornados individualmente ou
em conjunto, portadores de referenda a identidade, a ação, a memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressões; os modos de criar, fazer e viver; as criações
científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados as
manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e os sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e cientifico."4
A Constituição do Estado de Minas Gerais - art. 208 e 209 - reafirma o texto da Constituição Federal
e acrescenta que o Estado, com a colaboração da comunidade, fará a "repressão aos danos e as ameaças a esse
patrimônio" e que "a lei estabelecera piano permanente para proteção do patrimônio cultural do Estado,
notadamente dos núcleos urbanos mais significativos".
A função do patrimônio "histórico" na pratica política das classes dominantes e relativamente fácil de
estabelecer, e seus marcos físicos, ainda que precariamente, estão preservados. Mas a relação ativa que as lutas do
povo estabelecem com seu passado e muito mais complexa. O poder mobilizador da memória popular já
estabelece suas datas - como o 7 de outubro, o 20 de novembro - e seus monumentos - como o de Volta Redonda.
Mas a memória dos trabalhadores esta cheia de Iembran5as das greves que marcaram profundamente nossa
história recente. Ate quando as grandes greves, as

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datas e monumentos das lutas do povo vão permanecer arquivadas na memória dos trabalhadores? Ate que ponto
fazem parte apenas da experiência coletiva dos trabalhadores?
O passado e objeto de lutas políticas muito vivas e o recurso a memória popular precisa ser organizado
sistematicamente. É preciso uma política de comunicação entre as gerações para que os idosos contem suas
Iembran9as e novas versões da história venham á tona. Trata-se de resgatar, como patrimônio cultural, a
capacidade do povo brasileiro de tomar as rédeas de seu destino.de exercer plenamente a sua cidadania.
Assim, a política pública de promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro terá que identificar e
inventariar toda uma gama vasta de formas de expressão ate então desconsideradas.
O IBPC, particularmente, enquanto serviço público federal, enfrentar numerosas questões e muitos
estudos e pesquisas tomam-se necessários para esclarecimentos teóricos e práticos, já que o qualitativo afirma
sua primazia sobre o quantitativo, o descontinuo sobre o continuo, o coletivo sobre o individual, o plural sobre o
singular.
Todas as questões devem ser abordadas no campo da eficácia política, e não no campo da erudição. O
rigor cientifico não e uma exigência intelectual abstrata, mas uma das condições de um trabalho coerente.
Os cientistas sociais em geral, e os historiadores em particular, tem uma tarefa gigantesca no resgate das
lutas de classe e dos conflitos sociais ao longo da história brasileira.
O tema Mem6ria e Patrimônio Histórico, melhor dizendo Memória e Patrimônio Cultural esta a
exigir de todos nos um trabalho "ombro a ombro" que propicie outras leituras dos bens culturais consagrados,
mas que também favorece a desocultação dos fatos históricos, posto que passado, presente e futuro não são dados,
são criados,
Finalmente, concluo esta minha provocação citando Walter Benjamim, para quem "nunca houve um
monumento da cultura, que não fosse também um monumento da barbárie."3

NOTAS

1- CHESNEAUX J. Du passi faisons table rase? a propos de V historie et des historiens. Paris:
Maspero, 1976.
2- FENELON, Dea Ribeiro. Trabalho, cultura e hitória social; perspectivas de investigação. Projeto
História. São Paulo: PUC/SP, 4:21/37, 1985.
3- THOMPSON, E.P. The Politics of Theory in peoples History and Socialist Theory. London:
Raphael Sammuel, 1981, cit. in: FENELON, D.A. op. cit.
4- BRASIL, Constituição: Republica Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centre Gráfico,
1988; MINAS GERAIS. Constituição do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Assembléia Legislativa,
1989.
5- BENJÁMIN Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1.

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


99

MESA-REDONDA

A CRISE DAS EDEOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS

Angelo Carrara

O objetivo desta exposição e tentar estabelecer um inventario de eventos válido para a compreensão das
transformações ocorridas nos últimos doze anos no âmbito das relates internacionais e das diretrizes das
políticas econômicas delineadas por um número considerável de países.
Para isso, escolheram-se os acontecimentos políticos do triênio 1978-80 e o quadriênio 1987-90,
respectivamente, como inicio e fim dessa demarcação. E em 1978 que ocorre a invasão vietnamita do Camboja,
derrubando o governo do Khmer Vermelho. Em 1979, podem ser enumerados a vitória da revolução sandinista na
Nicarágua, a revolução islâmica no Ira, a invasão soviética do Afeganistão, o inicio da Kai Phang na China e a
eleição da conservadora Margareth Thatcher como primeira-ministra da Grã-Bretanha. O triênio se encerra com a
eleição de Ronald Reagan no final de 1980 para a presidência dos E.U.A , alem da guerra Ira-Iraque, do inicio
da guerra civil em El Salvador, da radicalização das posições israelenses na Palestina e da fundação do
Solidariedade na Polônia.
A invasão vietnamita veio a se tomar o principal problema político para a completa integração do
sudeste asiático, desde o fim da guerra do Vietnã. A Revolução Sandinista, a Revolução Islâmica Iraniana e a
Invasão Soviética do Afeganistão constituirão a tríade dos problemas da política internacional a serem enfrentados
pelos E.U.A e convergirão para o escândalo Ira-Contras ocorrido em 1988. Já a guerra Ira-Iraque, conjugada com
a questão palestina, representou o principal problema defrontado pelo mundo mulçumano, não obstante o
envolvimento de vários países não islâmicos.
Alem da ascensão de Thatcher e Reagan ao poder, e licito considerar que os anos oitenta são
inaugurados quanto as questões de política econômica, por uma onda conservadora que atingiu a Alemanha com
Helmult Kohl e o Jápao com Nakasone, em 82, e o Canada com Mulroney, em 84; e nem a Franca do socialista
Mitterrand ficou ilesa, apos a eleição de Jacques Chirac como primeiro-ministro em 86. Deve-se apontar
também a emergência, no mesmo período, dos Tigres Asiáticos, com posturas ditas "pragmáticas". Se e claro que a
ascensão de tais governos assinalou uma resposta ao processo inflacionário generalizado do final da década de
70 - 12% em 80 - e claro também que as políticas de estabilização, adotadas pelos Sete Grandes, geraram uma
profunda recessão econômica internacional, talvez a mais profunda desde os anos 30. Dois fatores ainda assim
podem ser citados como responsáveis pela atual fase de expansão iniciada em 83: os E.U.A vêm

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


100

desempenhando o papel de motor dessa expansão em função de sua acentuada demanda d e importação; as
taxas reais de juros para os empréstimos em dólares nos mercados internacionais - que entre 1973 e 1980 era de 1%
em media - elevaram-se a partir de 81 para uma media de 8%. Instalado no poder, o conservadorismo não alterou
suas atitudes durante os últimos anos. A Kai Phang chinesa podia ser apontada,então, como indicio da vitória da
"livre iniciativa" em escala planetária. A criação do Sindicato Livre na Polônia naquele momento atestava, por
outro lado, a ascensão de um movimento de contestação do regime comunista.
No entanto, no quadriênio compreendido de 1987 a 1990 observa-se profunda alteração no panorama
político mundial, que de fato tem implicado uma reavaliação por parte dos governos conservadores. Alias, em
1985, com a chegada ao poder de Mikhail Gorbachev, iniciou-se o levantamento das restrições políticas na
URSS. Mas e em dezembro de 1987 que as duas' superpotências assinaram o acordo INF de Washington, para a
redução dos mísseis de pequeno e médio alcance baseados em solo europeu. O crasch da bolsa de Nova Yorque
em outubro - anunciando que a Reaganomics estava com os dias contados - e a eclosão da intifada, as agitações
antiisraelenses nos territórios palestinos ocupados por Israel em dezembro merecem atenção pelas conseqüências
futuras,
Em 1988, ano da implantação da Perestroika, a Câmara dos Deputados dos EUA rejeitou o pedido do
presidente Reagan de ajuda aos guerrilheiros anti-sandinistas, justamente no mês do anúncio do escândalo Ira-
Contras. 1988 caracterizou-se ainda pelo retorno da paz em varias regiões: foram iniciadas as conversações entre o
Ira e o Iraque para por fim a guerra do Golfo; entre Angola, República Sul-Africana e Cuba para a solução dos
conflitos entre esses três países e a Namíbia e entre China, Vietnã e URSS para por termo a ocupação vietnamita no
Camboja. Os princípios de um acordo de paz entre o Marrocos e a Frente Polisário do Saara Ocidental foram
aceitos. No final daquele ano, o próprio governo americano aceitou dialogar com a OLP, depois que o Congresso
Nacional Palestino declarou a independência dos territórios árabes ocupados por Israel, e, por último, foram
firmados os protocolos para a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão.
Será a partir de 1989, contudo, que o conjunto de fatos que hoje domina a atenção mundial precipitar-se-
ia: a queda dos governos comunistas do Leste Europeu e as demais mudanças nas suas estruturas de poder, as
transformações operadas pelo governo da África do Sul, o avanço eleitoral do fundamentalismo islâmico no
mundo árabe, combinado com o retorno do discurso pan-arabista e os propósitos neoliberais dos governos latino-
americanos recém-empossados.
Alguns fatos isolados tiveram importância mais localizada, apesar da repercussão internacional. É o
caso do massacre da manifestação pro - democracia dos estudantes na praça da Paz Celestial em junho, em
Pequim, a consolidação, pela via eleitoral, do governo iraniano apos a morte de Khomeini, em julho e a visita de
Gorbachev a China em maio.
Os movimentos políticos que levaram a queda dos regimes comunistas do Leste Europeu - o "Outono
do Povo" - precipitaram- se em setembro, quando a Hungria abriu sua fronteira com a Áustria, dando início a fuga
em massa de milhares de alemães orientais para aquele pais e para a Alemanha Ocidental, encerrando-se em
dezembro na Romênia e na Tchecoslováquia, apos ter passado pela Alemanha Oriental e pela Bulgária. O
movimento nas ruas foi consolidado por eleições realizadas desde marco deste ano em todos os países do Leste,
com a vitoria dos não- comunistas, exceção para a Romênia., que elegeu membros do antigo PC. Mesmo na
Croácia e Eslovênia os comunistas foram derrotados.
Já na URSS, as mudanças vem sendo operadas de forma mais gradual, posto que abrangem discussões bem
mais amplas, como o caso do estatuto jurídico das quinze Repúblicas. Mas a partir da abolição do monopólio do
PCUS em fevereiro, declarações de independência das repúblicas vem se tomando constantes, num processo
deflagrado pelos Estados bálticos e seguido pelas demais

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


101

repúblicas, inclusive pela Carélia - lima região administrativa da RSS da Rússia.


Os conflitos étnicos, iniciados em 1988 pelos armênios e azerbaijanos continuam, encerrando hoje
disputas entre usbeques e quirguizes.
Os "ventos liberalizantes" sopraram ate na distante Mongólia e na Albânia.
No campo das relações entre os dois blocos de poder, junho de 1990 assistiu a assinatura DOS tratados em
Washington entre Bush e Gorbachev proibindo a fabricação de armas químicas pelas superpotências e destruição de
todo o arsenal ate cinco mil toneladas para cada lado, estabelecendo redução de 30% das ogivas nucleares de longo
alcance, alem de outros documentos visando o estreitamento das relates entre os dois Estados. Alem disso, e no
mesmo mês, os chefes dos sete Estados membros do Pacto de Varsóvia emitiram um comunicado conjunto
segundo o qual ate novembro de 90 o Pacto devera adotar novos estatutos transformando-se numa organização
política.
No Oriente Médio, a reunificação do Iêmen, em maio, realçou, na reunião de Cúpula de Bagdá, realizada
no mesmo mês, o ressurgimento do discurso pan-arabista, cuja liderança e disputada pelo Egito, pelo Iraque e pela
Síria. No entanto, a crise no Golfo Pérsico, gerada pela anexação do Kuwait pelo Iraque, provocou, ao contrario,
uma cisão entre as principais lideranças. Em contrapartida, junho foi o mês em que a coalizão Likud e mais cinco
partidos religiosos direitistas venceram e constituíram o governo israelense, prenunciando o retorno da linha dura
de infaustas conseqüências para a questão palestina. Some-se a isso o crescimento do fundamentalismo islâmico (
no Sudão, Jordânia, Argélia e Tunísia).
Já no Extremo Oriente, a détente tampouco e menos sentida. Ainda em maio, Formosa propôs a
reunificação a China continental e em junho foram reiniciadas conversações sobre a reunificação das duas
Coréias. Mesmo a China popular esboça uma atitude mais branda, ao anunciar a anistia em junho de presos
políticos, com o objetivo de melhorar a imagem do governo, interna e externamente, e garantir o status de "nação
mais favorecida" junto aos Estados Unidos. O Sudeste Asiático foi saudado com o anuncio de abertura do
dialogo com o Vietnã pelos EUA para impedir o retorno do Khmer Vermelho ao poder.
Desde setembro de 89, a África do Sul vem conhecendo reformas, quando da eleição de Frederik de Clerk.
A partir de então seguiu-se a libertação de vários presos políticos culminada em fevereiro de 90 com a libertação de
Nelson Mandela e a legalização do Congresso Nacional Africano. A Namíbia e nação independente desde esse
mês. Outras partes da África, como o Quênia, Moçambique e Angola também mostraram sinais de reforma.
Na América Latina, aos golpes militares característicos dos anos 60 e 70, seguiu-se uma onda
redemocratizante nos anos oitenta no continente. Por outro lado, em meados dos anos 80, e como uma tentativa de
resposta a crise da dívida externa a partir de 82, foram elaborados pianos heterodoxos de estabilização
econômica sem os resultados esperados (85 no Peru e Argentina, 86 no Brasil), simultaneamente a outro projeto,
ortodoxo, aplicado na Bolívia a partir de 85. O continente vem sendo varrido desde 80 por uma crescente onda
neo-liberal e a proposta norte- americana conhecida como "Iniciativa para as Américas", objetivando a formação
de um mercado comum, tem sido objeto de estudos por parte desses países. Os próprios EUA, em junho,
acordaram com o Japão um conjunto de medidas a serem adotadas pelos dois países para tomar os dois mercados
mais abertos e eficientes. Um mercado comum na América do Norte também esta para ser implantado (USA,
Canadá e México).
Pode-se, assim, destacar o triênio de 1978 a 1980 como momento de eclosão de uma serie de conflitos
cuja resolução dar-se-á apenas no final da década de oitenta. Não obstante, se foi o desmoronamento
estupefaciente dos regimes comunistas que deu realce ao final da década, este foi um tanto esmaecido pela crise
em curso do Golfo Pérsico, em função do desastre que ela vem

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causando na economia ocidental.


Tais são os fatos que destacamos e que devem ser levados em consideração par; entendimento da
atual crise das ideologias contemporâneas.

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COMUNICAÇÃO

DEMOGRAFIA DA ESCRAVTOAO NORTE-MINEIRA NO SÉCULO


XIX1

Tarcisio Rodrigues Botelho


Prof. do Depart. de História da
Universidade Estadual de Montes Claros

INTRODUÇÃO

A historiografia econômica da Minas Gerais provincial, passou ao longo da década de 1980 por uma
complete redefinição. O quadro de estagnação e regressão econômica traçado para o século XIX mineiro foi
suplantado por uma serie de estudos que, a partir de amplas bases empíricas, apontaram para uma sociedade
com um dinamismo particular.
O debate iniciado com o trabalho de Roberto Martins acerca das peculiaridades assumidas pelo
escravismo em Minas Gerais2 tem gerado uma serie de outros estudos que se dividem, grosso modo, entre aqueles
que apontam para uma realidade econômica mais complexa que a descrita por Roberto Martins3, e aqueles que se
voltam para o comportamento da população escrava dentro da província mineira.
Nossa atenção, neste momento, se volta para este último segmento do debate. O estudo das características
demográficas da população escrava mineira tem se mostrado especialmente rico. Apontando a reprodução natural
da população cativa mineira como um elemento importante no seu sistema escravista, o caminho aberto por
Francisco Vidal LUNA e Wilson CANO4 tem surgido como hipótese bastante promissora na compreensão de parte
da peculiaridade da província mineira. Uma serie de outros trabalhos5 mostram evidencias de processes de
reprodução natural entre os escravos mineiros e avançam algumas hipóteses explicativas'.
No estagio em que atualmente se encontram tais pesquisas, acreditamos ser profícuo o redirecionamento
dos estudos, sentido do abandono de perspectivas por demais abrangentes e da volta a percepção de realidades
locais. O estudo de áreas mais restritas permite não só o aprofundamento das pesquisas específicas como ainda o
mapeamento dos comportamentos distintos perceptíveis na província mineira. E neste âmbito que pretendemos
trabalhar, abordando o norte da província, uma região sem ligações diretas com atividades de exportação, para a
qual se verticalizara a pesquisa com o uso de materiais empíricos mais ricos e detalhados. Pretendemos perceber
as especificidades e os

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


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pontos comuns de uma região economicamente subordinada em relação ao restante da província


Procuraremos, com isto, detectar variantes da demografia escrava de Minas Gerais como um todo
para assim apontar novos rumos a trabalhar. ;
Nesta comunicação, apresentaremos os resultados obtidos para dois distritos da região: Vila Januária e São
Jose de Formigas, ambos distritos-sede dos municípios de Januária e Montes Claros de Formigas. Pretendemos
trabalhar com o período entre 1810 e 1888, quando se esta diante de uma superação definitiva do antigo pacto
colonial, dado pela vinda da família real portuguesa para o Brasil e o posterior processo de independência. No
contexto regional, observamos uma situação desligamento dos condicionantes primeiros da sua ocupação e
desenvolvimento, qual seja, a expansão da pecuária nordestina e o surto minerador, tanto de Minas Gerais
quanto de Goiás e outras províncias. Assim, apesar da precariedade das informações acerca da região, podemos
afirmar que a mesma se encontrava com uma economia estruturada em moldes razoavelmente estáveis,
subordinada as outras regiões mais dinâmicas de Minas Gerais e províncias vizinhas.
Neste primeiro momento da pesquisa, lançamos mão de duas fontes principais de dados: listas
nominativas, existentes para a década de 1830; e inventários abrangendo todo o corte temporal a trabalhar. As
listas nominativas, por seu caráter pretensamente exaustivo no levantamento da população a qual se referem,
permitem um amplo estudo, no qual esperamos deixar observar indícios claros de processos de reprodução natural.
A utilização dos inventários pretende fornecer uma fonte de dados constituída a partir de princípios uniformes e
conhecidos que abranja um período maior de tempo. Procuramos, com isto, expandir as conclusões obtidas a
partir do estudo das listas.

A DEMOGRAFIA REGIONAL: A DÉCADA DE 1830

As listas nominativas de habitantes aqui utilizadas fazem parte de dois esforços de inventariação
sistemática da população de Minas Gerais ao longo da década de 1830, o primeiro em 1831/32 e o último entre
1838 e 18407. A semelhança de propósitos na realização destes "censos provinciais abre caminho a comparação
entre os dois momentos. Entretanto, seu caráter fragmentário será nosso principal obstáculo. Isto porque não
possuímos listas de habitantes nos dois momentos par, os distritos em questão. Assim, há apenas um documento
para Montes Claros em 1832 e outro para Januária em 1838. Apesar da diferença de datas na realização destes
levantamentos, acreditamos que os mesmos são minimamente comparáveis entre si.
Foi identificada uma população total de 3344 habitantes para o distrito de Montes Claroi em 1832, e
1971 habitantes para o distrito de Januária em 1838. Para Montes Claros, temos um população escrava de 499
indivíduos, representando, assim, cerca de 15% da população total, enquanto para Januária esta população e da
ordem de 642 pessoas, 35% da população total do distrito.
Esta grande diferença de peso da população escrava nos distritos em questão se deve própria situação
econômica vivida por ambos naquele momento. Ate meados da década de 1840, Montes Claros ainda será uma
localidade de economia restrita, a baseada no comercio de produtos locais com a região central da província.
Januária, por sua vez, como reflexo da vizinhança com o rio São Francisco e das ligações com a Bahia,
apresentara um ativo comercio, ao qual se ligara um; agricultura comercial também importante, baseada,
sobretudo no fabrico dos diversos derivados da cana-de-açúcar.
As Tabelas 1 e 2 apresentam as populações destes distritos divididas conforme a condição social, idade e
sexo. Tomando o comportamento da população livre como termo de comparação, percebemos uma tendência a
concentração do contingente cativo nas faixas etárias mais elevadas, especialmente entre os homens. Entretanto,
ao realizarmos a divisão da população escrava entre

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


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aqueles nascidos no Brasil e os Áfricanos8, vemos descortinar algo distinto (Tabelas 3 e 4). Há um significativo
avanço na participação, entre os brasileiros, de indivíduos que podemos denominar de crianças (ate 14 anos), em
detrimento daqueles com 30 anos e mais. Os Africanos, por sua vez, caracterizam-se pela pequena participação de
crianças, e por uma presença restrita de mulheres, resultando em altas razoes de masculinidade. Entre os escravos
brasileiros as razoes de masculinidade apresentam-se equilibradas.
Quando comparamos os dois distritos, vemos que Januária apresenta uma maior presença de escravos nas
faixas etárias mais valorizadas (entre 15 e 44 anos), alem de um maior desequilíbrio entre os sexos, mesmo entre
os escravos nacionais. Estas evidências reforçam o que foi dito acima acerca de uma economia mais dinâmica
neste último distrito.
A partir deste quadro geral e possível inferir, a nosso ver, a presença de processos de reprodução natural
do elemento cativo que estariam a influenciar, em maior ou menor grau, a reposição e o aumento desta
população. A forte presença de crianças entre os escravos nacionais ocorre lado a lado com uma significativa
presença de escravos jovens e mesmo de Africanos, deixando entrever uma situação econômica que, embora não se
iguale a de outras regiões mais dinâmicas da província, não pode ser descrita como de estagnação ou regressão.

A POPULAÇÃO ESCRAVA NO SÉCULO XIX: TENDÊNCIAS

As Tabelas 5 a 8 apresentam o resultado do levantamento dos escravos arrolados em inventários


guardados nos cartórios dos municípios de Montes Claros e Januária relativos aos distritos em questão. A divisão
desta população conforme a década em que foi realizado o inventario e segundo a dimensão destes planteis
(Tabelas 5 e 6) permite traçar o que seria a tendência da distribuição dos cativos conforme o tamanho da
propriedade.
Os dados apresentam um comportamento bastante irregular, fruto, principalmente, da pequena amostra
disponível. Entretanto, podemos dizer que ate a década de 1860 ha uma forte presença de escravos em grandes
planteis (15 e mais cativos), enquanto ha uma tendência declinante dos planteis de médio porte (5 a 14 escravos).
Para as pequenas propriedades (1 a 4 escravos), ha uma preservação de sua participa9ao no distrito de Montas
Claros, enquanto em Januária eles apresentam um comportamento variável. Os dados das décadas de 1870 e
1880 tem seu comportamento influenciado pela conjuntura de superação definitiva do escravismo.
O que ha de mais significativo nos dados colhidos nos inventários com respeito a reprodução natural destas
populações encontra-se nas Tabelas 7 e 8. Nestas vemos as crianças escravas distribuídas segundo o tamanho
do plantel. Em cada grupo de plantel temos o peso relativo das crianças sobre o total de escravos em cada
plantel, e o peso relativo do plantel no total de crianças. Assim, em Montes Claros, na década de 1830, as crianças
representavam 33,3% do total de escravos dos pequenos planteis. Estas crianças em pequenos planteis, por sua
vez, respondiam por 18,8% do total de crianças encontradas naquela década.
A Tabela 7 nos mostra que em Montes Claros, ao longo do século XIX, houve um aumento da participação
das crian9as em todos os grupos de planteis. Este aumento, todavia, foi especialmente importante nos médios
planteis, dada sua constância e seu forte peso. Quanto a distribuição do total de crianças entre os planteis, houve
uma diminuição da participação dos pequenos planteis em função principalmente de um aumento da participação
dos grandes proprietários.
Para Januária (Tabela 8), ha um recuo das crianças nos pequenos planteis e, aparentemente,

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também nos grandes. Apenas as medias propriedades apresentam um comportamento minimamente regular, no
sentido da preservação de uma forte participação destes indivíduos ao longo do século Quanto ao total de
crianças, ha em alguns momentos perda de espaço dos pequenos planteis em favor das grandes propriedades.
Destas constatações parece emergir um quadro em que os planteis de media dimensão se
constituem em locais favoráveis a presença de crianças. Esta tendência em se localizar crian9as em
propriedades de médio porte pode significar também um ambiente favorável ao desenrolar de
processos de reprodução natural, incluindo-se aí à constituição de famílias estáveis dentro da
escravaria. As pequenas e grandes propriedades, apesar de incluírem crianças em proporções
significativas, parecem encerrar certos riscos e gerar certa instabilidade que não permite uma maior
continuidade na observação destes processos. '
O caráter exploratório deste trabalho e as restrições do material empírico não permitem um maior
aprofundamento do tema ou uma consolidação das impressões iniciais. Entretanto, abre caminho a indagações
importantes. A mais significativa delas diz respeito as condições que favorecem as ocorrências de processos
de reprodução natural entre os cativos. Dentro destas indagações, por sua vez, inscreve-se a preocupação com a
família escrava. Outro aspecto importante refere-se as ligações entre o comportamento demográfico dos escravos
e a economia como um todo. Quais as influências sobre os cativos da economia em geral e das atividades
econômicas desenvolvidas em cada plantel em particular são questões que podem ser exploradas de modo
bastante promissor a partir de documentação tão rica em informações
quanto as listas nominativas e os inventários post-mortem.

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TABELA 1

POPULAÇÃO POR IDADE, SEXO E CONDIÇÃO SOCIAL

MONTES CLAROS, 1832

FAIXA LIVRES ESCRAVOS


RAZÃO DE
ETÁRIA MASCULINI-
DADE
HOMENS MULHERES HOMENS MULHERES LI- ES-
VRES CRA-
ABS % ABS % ABS % ABS %
VOS
0-14 626 22 616 21.6 93 18.6 65 13 1.02 1.43

15-29 372 13 402 14.1 106 21.2 78 15.6 0.93 1.36

30-44 209 7.3 236 8.3 54 10.8 40 8 0.89 1.35

45-59 136 4.8 119 4.2 29 5.8 14 2.8 1.14 2.07

60 + 73 2.6 55 1.9 14 2.8 6 1.2 1.33 2.33

S/INF. 1 0.0 0 0.0 0 0.0 0 0.0

TOTAL 1417 49.8 1428 50.2 296 59.3 203 40.7 0.99 1.46

Fonte: Arquivo Publico Mineiro, Mapas de População, Pasta 13, Doc. 06.
Obs.: Excluídos 6 casos de não informação do sexo, na faixa etária de 0-4 anos.

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TABELA 2

POPULAÇÃO POR IDADE, SEXO E CONDIÇÃO SOCIAL

JANUÁRIA, 1838

FAIXA UVRES ESCRAVOS RAZAODE


ETÁRIA MASCULINIDA-
DE
HOMENS MULHERES HOMENS MULHERES LI- ES-
VRES CRA-
ABS % ABS % ABS % ABS % VOS
0-14 273 20.6 259 19.4 102 15.8 102 15.8 1.05 1

15-29 184 13.8 183 13.8 95 14.8 96 15 1.01 0.99

30-44 124 9.4 126 9.4 88 13.7 49 7.6 0.98 1.8

45-59 51 3.9 54 4 39 6 18 2.8 0.94 2.17

60 + 39 3 35 2.7 23 3.6 8 1.3 1.11 2.88

S/INF. 1 0 0 0.0 0 0.0 0 0.0

TOTAL 672 50.6 657 49.4 347 56 273 44 1.02 1.27

Fonte: Arquivo Publico Mineiro, Mapas de População, PP 1/10, ex. 15, Doc. 03.

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TABELA 3

POPULAÇÃO ESCRAVA POR IDADE SEXO E


ORIGEM (―RAÇA‖)

MONTES CLAROS, 1832

FAIXA NACIONAIS ÁFRICANOS RAZAODE


ETÁRIA MASCULINTDA-
DE

HOMENS MULHERES HOMENS MULHERES NA- ÁFRIC


CIO- ANOS
ABS % ABS % ABS % ABS % NAIS
0-14 79 20.5 64 16.6 9 8.7 1 1.0 1.23 9.00

15-29 73 19.0 69 17.9 31 30.1 8 7.8 1.06 3.88

30-44 25 6.5 35 9.1 28 27.2 3 2.9 0.71 9.33

45-59 16 4.2 12 3.1 13 12.6 2 1.9 1.33 6.50

60 + 6 1.6 6 1.6 8 7.8 0 0.0 1.00 ERR

TOTAL 672 50.6 657 49.4 347 56 273 44 1.02 1.27

Fonte: Arquivo Público Mineiro, Mapas de População, Pasta 13, Doc. 06.

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110

TABELA 4

POPULAÇÃO ESCRAVA POR SEXO, ORIGEM ("RAÇA")

E GRUPOS ETARIOS ESCOLHIDOS

JANUÁRIA, 1838

FAIXA NACIONAIS ÁFRICANOS RAZAO DE


ETÁRIA MASCULINIDA-
DE

HOMENS MULHERES HOMENS MULHERES NA- ÁFRIC


CIO- ANOS
ABS % ABS % ABS % ABS %
NAIS
0-14 101 19.6 102 19.8 1 1.0 0 0.0 0.99 ERR

15-29 76 14.7 90 17.4 19 18.3 6 5.8 0.84 3.17

30-44 46 8.9 42 8.1 42 40.4 7 6.7 1.10 6.00

45-59 24 4.7 15 2.9 15 14.4 3 2.9 1.60 5.00

60 + 13 2.5 7 1.4 10 9.6 1 1.0 1.86 10.00

TOTAL 260 50.4 256 49.6 87 83.7 17 16.3 1.02 5.12

Fonte: Arquivo Público Mineiro, Seção Provincial, PP 1/10, Cx. 15,


Doc. 03.
Obs.: Excluídos os casos de não informação da idade (ver Tabela
2).

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


111

TABELA 5

POPULAÇÃO ESCRAVA INVENTARIADA, SEGUNDO A DIMENSÃO


DO PLANTEL

MONTES CLAROS

DATA 1-4 5-14 15 + TOTAL


ABS
ABS % ABS % ABS %
1810-19 9 36.0 16 64.0 0 0.0 25

1820-29 20 27.4 53 72.6 0 0.0 73

1830-39 43 21.7 52 26.3 103 52.0 198

1840-49 59 26.7 121 54.8 41 18.6 221

1850-59 77 26.9 112 39.2 97 33.9 286

1860-69 82 16.0 169 33.0 261 51.0 512

1870-79 58 26.7 139 64.1 20 9.2 217

1880-88 21 14.4 104 71.2 21 14.4 146

TOTAL 369 22.0 766 45.6 543 32.4 1678

Fonte: Montes Claros, Cartório do Primeiro Oficio, Inventários.

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


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COMUNICAÇÃO

O ALUNO TRABALHADOR

Das possibilidades de um cotidiano político a uma política para


cotidiano

Elisabeth da Fonseca Guimarães

A vida do estudante noturno, assim como a de tantos grupos sociais, esta permeada por uma
multiplicidade de relações, muitas vezes, visíveis e abordáveis; outras vezes, imperceptíveis e mesmo
impenetráveis. Grande parte dos jovens só se escolariza devido a existência de escolas noturnas, que
são freqüentadas, em sua maioria, por trabalhadores, que ocupam suas horas diárias nas mais diversas
atividades.
Neste estudo, a proposta e conhecer o aluno da Escola Noturna de Uberlândia,
s
de 5 a 8' serie do 1º grau, e aprender o caráter político que lhe envolve o cotidiano. Sem
a pretensão de dai conta da totalidade, delimitamos o universo empírico desta investigação a partir da
experiência de vida desses jovens: a escola, o trabalho, o que decidimos conceber como a recriação da
liberdade e o seu procedimento político frente a realidade. Por esse universo nos enveredarmos a
procura de uma compreensão maior, não apenas dessa realidade especifica, mas também da
sociedade em que vivemos.
Buscamos os elementos, para nossa analise, na própria experiência de vida desse jovem: a
infância encurtada, o trabalho precoce, a luta diária pela sobrevivência. Elegemos o ambiente escolar,
mais especificamente o turno da noite, o lugar onde esses jovens encontram-se, conhecem-se,
relacionam-se, como o espaço principal para o trabalho de campo. Um espaço político de troca de
experiência, de tomada da consciência, de decisão, de ação.
A escolha das escolas se fez a partir da distancia que elas teriam em relação ao centro da
cidade, com a preocupação de selecionar escolas de vários bairros, de modo a obter uma amostra
representativa de nosso universo. Ao total, foram sete as escolas visitadas, desde a localizada na praça
principal da cidade ate aquela que se distancia 11 quilômetros do centro.
Para o trabalho de campo, apoiamo-nos em E. P. Thompson e em sua maneira peculiar de
"fazer História". Para isso, elaboramos nossa analise com base em conceitos construídos a partir da
vivencia desses indivíduos. Valorizamos seus depoimentos, conversas, opiniões. Ate mesmo a
exclamação mais banal, mais corriqueira, foi considerada. Essas falas foram cuidadosamente
registradas na dissertação final. Alem de evidenciarem a riqueza do grupo investigado, elas nos
aproximaram de nossos propósitos de pesquisa.

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A fundamentação teórica deste estudo foi construida a partir do pensamento marxista,


iniciando pelo próprio Marx e sua concepção de homem, enquanto ser histórico e transformador da
realidade. Na trilha do marxismo, chegamos a Gramsci, fil6sofo contemporaneo que pensou o homem
como produto da praxis, ou seja, o fazer humano concreto, econômico, produtivo.
A vida cotidiana do aluno notumo e vista por nos como um momento precioso para
apreensão dessa praxis. No seu acontecer, acreditamos da-se a critica do senso comum, a passagem da
visão primitiva e não elaborada para a construção de uma concepção de mundo própria, de modo a
intervir efetivamente na realidade.
O pensamento de Gramsci e fundamental a esta invéstigação, porque nele encontramos
passagens que se referem a aspectos gerais de nossa analise, como a possibilidade de transformar a
realidade, através da vontade e da ação dos homens, e a aspectos mais especificos, diretamente ligados
a questão educacionai, visualizando o aiuno noturno, o promoter de uma nova ordem social. Para nos, a
riqueza de Gramsci encontra-se nessa nova leitura do marxismo, o que abre a brecha para que a
esfera estrutural seja vista, também, como terreno da consciência e da humanidade. Essa nova leitura
so nos e possível pelo carater dialetico dessa filosofia, o que nos conduz a uma estrategia de ação
revolucionaria, privilegiando o lado político do individuo. Nessa dialetica nos apoiamos para pensar o
cotidiano de nosso invéstigado: uma totalidade fertil para atuação poli'tica, entendida, aqui, enquanto
pratica que envolve todas as ações do homem em sociedade.

A) Escola e trabalho: Como não pensa-los juntos?


O aluno notumo, por sua própria especificidade, so pode ser conhecido vinculado a escola, que
Die atribui a condição de aluno, e ao trabalho, razao primeira que o leva a procurar os cursos notumos
para se escolarizar. Nosso invéstigado e adolescente, com o fisico em formação. Trabalha, em media,
mais de 8 horas diarias, e, sem exceção, estuda a noite.
E um trabalhador que ocupa, durante todo o dia, as mais diversificadas atividades, em
posição, quase sempre, de subemprego, executando tarefas de extrema responsabilidade: "professor"
de matemal, baba, motorista, desenhista, marceneiro, domestica, mecanico, e outros. No que se refere
ao cumprimento de seus direitos trabalhistas, a situação assume outro aspecto, de trabalhador eie
passa a ser "o menino". Raramente esta registrado em carteira, o salario nem sempre atinge o minimo
oficialmente estipulado e o pagamento de horas extras, ferias ou acertos de dispensas são feitos através
de "acordos". Mais de uma dezena de vezes deparamos com alunos, com menos de 14 anos, que
trabalham desde os 11 sem nenhuma garantia, em atividades nada infantis.
E a escola? Ela participa efetivamente da vida do aluno noturno, de modo a esclarece-lo
quanto a seus direitos de trabalhador? Não ha única resposta para essa questão e nem como
generalizar. O que existem são fatos, tomadas da realidade que nos encorajám a pensar a escola como
um espaco de discussão, de conscientização, de luta. Para isso, 6 preciso ve-la como um elemento
ativo na sociedade. Apreender-lhe a organicidade de uma institui?ao que esta viva, que e pane
integrante da História.
Para o nosso aluno, a escola representa um caminho para se alcançar uma vida melhor: um
trabalho mais "maneiro", a compreensão da realidade através do conhecimento escolarizado, o respeito
das pessoas decorrente desse conhecimento. E um espaco de mudanca, por onde ele sonha com uma
vida mais digna, menos sofrida.
Em nossas explorações, não encontramos uma única Escola Notuma. Se existe aquela que
ignora por complete quem e o aluno notumo e age como se ele não existisse, ha também aquela que
precisa ser ampliada e fortalecida (já que se mostra fragil, restrita, ameagada) e que tem a coragem
de confiar nesses jovens trabalhadores e por eles, e em direção a eles, tem sido capaz de repensar sua

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prática.

B) A liberdade recriada: como o aluno trabalhador reconstr6i este espaço cotidiano


O tempo de trabalho e determinante na vida do aluno noturno. Em detrimento dos "outros
tempos" que compõem seu cotidiano, seja o dedicado à escola, ao descanso ou ao que nomearemos de
recriação da liberdade, ele se impõe como uma necessidade.
Em nossa análise, apreendemos a capacidade desse jovem para lidar com essa determinação a
ponto de conseguir levar uma vida mais leve, mais divertida, mais feliz, sem deixar, com isso, de ser um
trabalhador, um estudante, ura ser político. Esta capacidade se evidencia nos momentos em que ele recria
a própria liberdade, ou seja, subverte o convencional e atribui a situações, como o trabalho e o estudo,
objetivos totalmente contraditórios aqueles que lhe são conferidos oficialmente,
Os momentos de recriação da liberdade existem na vida do aluno trabalhador como parte do
tornar-se homem. Eles se traduzem em um se soltar interiormente, na construção de pianos para o future,
em viagens do pensamento. Uma reconstrução que acontece continuamente através de permutas entre a
seriedade do trabalho e da escola e a vivacidade que lhe e própria da idade. Eles não são simples
resistência ao mundo disciplinado. São vitais ao cotidiano desse jovem. Atuam como suportes
reconstrutores da experiência diária, permeando a face adulta da responsabilidade com o infantil, o
lúdico, o irreverente e o ingênuo de seu tempo.

C)O aluno trabalhador e a manifestação de sua face política


Para apreender a face política do aluno trabalhador, partimos de acontecimentos que não tem
caráter político restrito, mas de fatos corriqueiros, de depoimentos de pessoas comuns, sem a intenção ou a
projeção de liderança. Optar por esse tipo de analise só foi possível pelo próprio modo como pensamos o
homem, em sua capacidade infinita de atuar sobre a realidade, manifestada através das mais primarias
decisões, das mais elementares atividades.
O ambiente escolar foi o nosso principal campo de pesquisa. Por isso mesmo, a maioria de
nossos debates girou em torno da questão educativa ou foi perpassada por ela. Observamos que a escola
pode, e muito, contribuir para o avanço político do aluno noturno, ainda que raramente o faça. Esse aluno
tem consciência que o saber escolarizado e fundamental para que ele possa fazer uma leitura coerente da
política que se pratica no país, principalmente quando se trata de decifrar o discurso do poder. Mais que
isso, esse saber o ajuda a compreender as situações mais elementares de seu cotidiano, a fazer uma
avaliação da vida que leva, das relates que estabelece no trabalho, do conteúdo que lhe e transmitido em
sala de aula.
A escola pode contribuir definitivamente para o crescimento político do aluno noturno, não
apenas em sentido restrito, o que envolve a militância como ponto de partida, mas em sentido amplo, que e
próprio da condição humana e que possibilita a esse jovem uma participação consciente na realidade,
tornando-o um promotor da história de seu país e não apenas um mero espectador.
Sobre a educação política informal que acontece através dos meios de comunicação, ha de se
considerar a influencia marcante exercida pelo radio e pela televisão. A brevidade e a rapidez, com que as
informações chegam ate os jovens, garante a eficácia do controle ideológico destes instrumentos. O
jornal, que poderia contribuir para uma aproximação mais consciente com a realidade, e pouco lido. Sua
leitura, quando acontece, depende de intervalos no período de trabalho e da compra dos mesmos por
terceiros. O próprio preço já e um obstáculo para fazer deste veiculo um habito.
A participação política deve ser pensada como uma realidade na vida do aluno trabalhador,
principalmente se levarmos em conta a media de idade desse aluno e o momenta histórico vivido. Como
uma conquista, ela só pode acontecer nos mais diferentes momentos de seu cotidiano. Nesta

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pesquisa, constatamos o quanto a educação formal pode levá-lo a se posicionar politicamente. Este
posicionamento, entretanto, só pode ser considerado atrelado a forca da Sociedade Civil, enquanto
organismo maior, capaz de desencadear mudanças significativas na sociedade brasileira.

D) Quem e o aluno da Escola Noturna?


Neste estudo, não procuramos imprimir nenhum tom definitivo as nossas explorações, mesmo
porque, pela própria riqueza do grupo que investigamos, nunca foi nossa intenção oferecer um perfil do
aluno trabalhador. Nossa proposta de conhecer o cotidiano desses jovens está atrelada a própria maneira
como nos colocamos diante desse grupo, acreditando em suas possibilidades de atuar conscientemente na
realidade social.
O nosso aluno trabalhador e um ser carente. De uma carência que se manifesta nos mais
diversos momentos de seu cotidiano. Decidimos delimitar sua situação de carência a partir de três aspectos
que consideramos marcantes: o material, o afetivo e o político.
A carência material e palpável. A simplicidade dos trajes, a precariedade do material escolar, a
preocupação com a possibilidade de lhe cortarem a merenda (o que faz com que a função primeira da
escola se desloque para a alimentação) denotam o quanto e difícil para ele garantir um mínimo de condições
materiais necessárias a sua sobrevivência. A manutenção dos estudos, então, nem se fala. Qualquer tipo de
recurso material que a escola venha a lhe solicitar deve ser visto com cautela.
A carência afetiva e uma outra agravante da Escola Noturna. Grande parte de seus
"meninos" sofre deste mal. Alheia a essa questão, pouco ela tem feito para amenizar essa dor. O próprio
Serviço de Orientação Educacional, criado com essa finalidade, atende, prioritariamente, os alunos do
diurno. A discriminação entre os turnos escolares afeta o aluno nos mais diferentes setores da escola
(biblioteca, pátio para Educação Física, presença da diretora, participação em eventos extracurriculares).
Ela concorre para acentuar ainda mais as mazelas afetivas que ele traz de casa.
A carência participativa envolve o cotidiano desse grupo em proporções equivalentes a material
e a afetiva. Em termos teóricos, ela se identifica com a incapacidade do homem de se impor a realidade
histórica e de se fazer a razão primeira das transformações sociais. Presente no trabalho, na escola e em
situações esporádicas do seu cotidiano, ela esta, a nosso ver, vinculada a própria história de vida desse
jovem. Em termos mais gerais, compõe o legado autoritário dos anos 60, já em termos de pratica dessa
pesquisa, ela se apresenta mediante a falta de determinação de nosso investigado, ao se colocar como
um mero espectador das decisões tomadas a sua volta.
A militância política, que pode ser incluída nessa situação de carência, e rara no noturno. Ela
começa a despontar com a recriação dos grêmios estudantis. Para alem dos muros da escola, essa militância
e praticamente inexistente, com o agravo do descrédito e do desinteresse peio homem publico, por parte
do aluno trabalhador. Sobre os poucos militantes que encontramos, acreditamos poder visualizar nesses
jovens, embriões dos futuros lideres políticos, capazes de desempenhar função "dirigente", "organizativa",
"educativa" e "intelectual". Sua presença na escola e importante a medida que seu relacionamento com os
colegas esta mediado por interesses comuns. Nascidos da necessidade de o grupo se impor socialmente,
esses líderes estão encarregados de defender as reivindicações estudantis para a elaboração de uma nova
concepção de mundo, que inclui as aspirações deste segmento social. Sua pratica se faz
fundamentalmente importante dentro do espaço escolar, num trabalho cotidiano de buscas de novas
lideranças e de conscientização de seus colegas que, enquanto homens, guardam a vocação histórica de
transformar a realidade social.
Ao final de nossas explorações, evidenciamos uma concepção cara a vivência do aluno
trabalhador, que nos acompanhou por toda a nossa analise, sem que a ela nos referíssemos
explicitamente: o conceito de cidadania. Para conceber o cidadão nos apoiamos em D.Saviani, para

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quem o cidadão e aquele sujeito de direitos e de deveres, que esta capacitado a participar da vida da
sociedade. Esta participação, para acontecer, pode prescindir da cultura letrada e do saber
sistematizado, oferecido pela escola.
Olhamos o aluno trabalhador como futures cidadãos. A Escola Noturna e capaz de nos dar
provas desta possibilidade através da história de vida de cada um desses jovens, marcada pelo trabalho
precoce, pela carência, pela capacidade de recriar a própria liberdade. E através do trabalho de
profissionais engajados na tarefa de ensinar, que são capazes de fazer do período noturno um
momento precioso no cotidiano do aluno trabalhador.
Nesta pesquisa, nossa disposição foi a de ver o aluno da Escola Noturna de Uberlândia como
um ser histórico, produto das relações sociais travadas no tempo em que vive. A historicidade que
envolve suas experiências de vida norteou nosso olhar para que dele não cobrássemos uma
participação revolucionaria radical, nos moldes dos anos vinte ou de qualquer outro momento. Ele e
portador de um legado que tem sua origem na própria história da sociedade brasileira que, como
sabemos, engatinha na conquista de seus direitos políticos. Como parte de um segmento isolado, não
podemos reservar-lhes a responsabilidade de, instantaneamente, virar a mesa e reverter este quadro.
Acreditamos na capacidade de esse jovem caminhar em direção a conquista de uma
participação efetiva na realidade social. Para isso, ele não pode prescindir do apoio efetivo da Escola
Noturna. Não que sejamos favoráveis a esse tipo de escolarização, mas, se ela e parte integrante de
seu cotidiano e se não pode ser extinta de pronto, deve ser repensada de forma a acompanha-lo nesse
percurso.

NOTAS

1- A afirmação baseia-se na pesquisa da autora abaixo citada que relata: "Aluno matriculado
no período noturno, na sua grande maioria, já esta engajado em trabalho assalariado durante o dia,
quase sempre, em turno de oito horas". Carvalho, Célia P., Ensino Noturno: realidade e ilusão,
p.7.
2- Para maior compreensão do pensamento deste historiador veja: THOMPSON, E.P. A miséria
da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
3- Pelo caráter relatório dessa exposição, não registramos aqui nenhum desses depoimentos.
Reafirmamos, entretanto, seu valor e sua necessidade para evidenciar a riqueza do grupo
pesquisado.
4- GRAMSCI, A., Obras escolhidas, p.16.
5- Idem, Ibidem, p.27.
6- Idem, Ibidem, p.83.
7- Fazemos aqui referenda a concepção de política em Gramsci: em sentido restrito, relaciona-
se diretamente a esfera de atuação do Estado e as relações de poder. Em sentido amplo, e concebida
como elemento constitutivo da práxis humana. Veja Coutinho, C. N. Gramsci, p.75.
8- Veja Gramsci, A., Op. cit, p.234 e Coutinho, C.N., Op. cit., p.91.
9- Em 21 de novembro de 1985, os grêmios foram oficialmente legalizados.
10-Referimos a Gramsci e ao "destacado papel que ele atribui aos intelectuais na formação e na
construção do partido. "Todos os membros de um partido devem ser considerados como
intelectuais", diz Gramsci;" e isso não pelo nível de sua erudição, mas pela função que exercem
no partido, que e dirigente e organizativa, ou seja, educativa, isto e, intelectual." Coutinho, C.N.,

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Op. cit., p.122.


11-Saviani, D. A cidadania que não temos, p.73.

BIBLIOGRAFIA

CARVALHO, C. P. Ensino noturno; realidade e ilusão. São Paulo, Cortez, 1984.


COUTINHO, C. N. Gramsci. Porto Alegre, L&pm, 1981.
GRAMSCI, A. Obras escolhidas. São Paulo, Martins Fontes, 1978.
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
SAVIANI, D. Educação, cidadania e transição democrática. In: COVRE, M.L.M. A
cidadania que não temos. São Paulo, Brasiliense, 1986.

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COMUNICAÇÃO

CONSTANÇA DO SERRO FRIO ESCRAVOS


LIBERTOS NAS MINAS GERAIS DO
SÉCULO XIX

Yonne de Souza Grossi: Fafich/UFMG

Ainda hoje, sua voz se confunde com a evocação dos atabaques ecoando pelos
vales. E quando tudo esta quieto na Fazenda do Mata Cavalo, quando dorme
toda a dor e desatino dos homens, ainda se pode ouvir sua voz agônica de água
entre as sombras das paredes: "Deixo livres os meus escravos, como se de
ventre livre nascessem e os instituo herdeiros de meus bens".
João Evangelista Rodrigues

Nossa comunicação será um fragmento do projeto "Memória Histórica da Fazenda do Mata


Cavalo". Este projeto articula o tema de escravos libertos e o tema da propriedade da terra, sendo o
objeto a Fazenda do Mata Cavalo, nas últimas décadas do século XIX ate fins dos anos 50, quando a
primeira etapa de conflitos pela terra se encerra e finaliza um movimento de agudas tensões
contradições sociais.
Aos escravos da Mata Cavalo foi concedida liberdade, em testamento, pela senhora de terra
Constança Fortunata de Abreu e Lima. No ano de 1883, ela declara livres os seus escravos e os institui
herdeiros de seus bens e das extensas terras da fazenda, localizada no antigo morro de Gaspar Soares, hoje
Município de Morro do Pilar, na Zona Metalúrgica do Estado de Minas Gerais, a IS quilômetros da
Capital.
O que se pretende aqui e libertar vozes soterradas pelo passado, examinar pegadas solapadas pelo
tempo e interrogá-las sobre essa mulher nascida no Serro, Minas Gerais, filha legitimada de Jose

* Este projeto e realizado pelo Grupo de Trabalho "História Social de Minas Gerais no Século XIX",
do Centre de Estudos Mineiros, Fafich/UFMG.

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Pereira de Abreu e Lima. Ao rastrear sua vida, queremos convidar a decifração de sua obra
conclusa, pois os libertos perdem as terras em conflitos e ações judiciais. Sua resistência em nada cancela o
arbítrio ou lei, em que os engenhos de contravenção sistemática reproduzem um elemento estrutural da
situação de nossas elites agrárias e urbanas.
Ao reconstituir uma possível história de Constança buscamos a chave para desvelar tramas de
relações sociais, que nos permitira o acesso a realidade abordada. A dimensão social das redes psicológicas
que conformam as relações interpessoais nos remetera também a construção de cenários de interpretação
de uma época: era outro o tempo e outra a sociedade. Como Constança pensava aspectos de seu próprio
mundo? Como reagia ao fato de ser filha bastarda, produto da "fragilidade humana? Como se colocava
diante de questões sociais?
As últimas décadas do século XK evidenciam preocupações com as possíveis transformações
sociais, políticas, econômicas, culturais advindas da abolição do regime de trabalho escravo e do final do
regime monárquico. Qual seria o acesso de Constança a essas realidades, determinadas pelo movimento
da sociedade brasileira? É preciso conhecer o seu mundo de valores para instituir o seu espaço de
locomoção social, o que a transformara no significante da interpretação de uma realidade. Como era
chamada familiarmente pelos negros de Mãe Tança, pretendemos, também, engendrar o nível das relações
senhora/mãe/escravos e seus desdobramentos político-sociais.
Finalmente, queremos mostrar que essa história se rompe em vários pontos, a medida que outros
interesses entram no cenário em jogo. A herança dos libertos será desafiada pela forca dos homens e das
regulamentações, ou seja, pelo desencadeamento de novas forças sociais. O eixo da história será
deslocado, posta em discussão a liberdade de homens a quem e sonegado o estatuto da cidadania, dilema
recorrente na sociedade brasileira de hoje.

Cenários Historiográficos
Há coisas que estão presas na memória do tempo, como um monumento, uma obra de arte, uma
peça antiga. Através delas pode-se desfiar a teia do acontecimento instituinte, desvendar a trama das
relações indeterminantes, descobrir momentos engendrantes de processos. Natalie Zemon indicara o
caminho da "atenta escuta as vozes do passado"1. Dira Euzensberger: "Se mil olhos viram o Durruti, e justo
que mil bocas contem o que viram"2. Ricoeur oferece o "exercicio da suspeita" e a "vontade de escutar",
como ingredientes do processo de interpretar; Alfredo Bosi lembra que interpretar significa uma escolha,
entre as múltiplas possibilidades eleitas, capaz de circunscrever a questão problematizadora3 O problema
da significação coloca-se para a História e ascende a posições diferenciadas quanto a maneira de se lidar
com a realidade, ou seja, com o espectro de singularidades que o existente registra, com os limites expostos
pelas rupturas, com os intervalos possibilitados pelas pemianencias4. Essa busca de interpreta5ao, para se
conseguir significar, e um dos caminhos de força do conhecimento.
No caso presente, o campo territorializado ultrapassa o perfil de um personagem. Perscruta um
contexto mais amplo, sem o qual os protagonistas seriam inexeqüíveis. Apagados, deixariam sombras
tênues sem configurações capazes de se efetivar com nitidez. Atravessam décadas de um século que
coloca o dilema do escravismo diante da construção de relações capitalistas de produção. Como interpretar
a tessitura desse processo? Como perceber essa passagem? Será preciso visitar as entrelinhas desse
movimento, para esclarecer posições. Trata-se de uma conjuntura critica, em que ha confluência de
conflitos, performando lutas potencialmente transformadoras. Entretanto, cabe descartar explicações
centradas na analise de tipos e instituições sociais, como a família patriarcal, considerada miniatura da
sociedade, perspectiva clássica assinalada por Gilberto Freyre, cujas interpretações se alicerçam em G.
Simmel e Franz Boas, entre outros. Em Casa Grande & Senzala, o patriarca surge

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como representação legitimadora de um governo e o patriarcal ismo encena a imagem tutelar do poder
estatal. As interações e conflitos de grupos, segmentos ou classes são escamoteados e mascarado,
pelas relações entre componentes da família patriarcal. Assim, procede-se a um reducionismo perverso
da realidade, perverso no sentido ambíguo de praticas autoritárias, camufladas pelas relações
paternalistas. Mesmo no âmbito familiar, a concepção patriarcal hospeda mecanismos que encobrem
o exercício da dominação de classe. Assim, temos a carta de alforria como privilegio de decisão do
senhor, conduta consensual entre proprietários e escravos do século XIX. Novos estudos, entre eles
o de Cunha e Sleenes, revelam a presença de negociações, conquistas, pactos, atitudes racistas
preconceituosas, onde a historiografia tradicional estampava gestos de concessão ou doação, crueldades
ou injusticas5.
Sidney Chalhoub6 chama também a atenção para o significado de certas categorias de analise e suas possíveis
direções implícitas. Assim, a tônica no conceito de "transição da escravidão (ou do escravismo, ou do modo de
produção escravista) ao trabalho livre (ou a ordem burguesa) é problemática porque passa a noção de linearidade e
de previsibilidade de sentido no movimento da história". Em outras palavras, a partir de uma teoria do reflexo com
nuanças político-ideológicas, postula-se que a extinção do trabalho escravo se explica pela lógica da produção e do
mercado, Implícita esta a noção de base/superestrutura e a idéia reducionista de determinação a partir do econômico.
É como se a História se deslocasse do eixo das ações e lutas de seus sujeitos sociais, e significasse a trajetória de
uma destinação, delineadora de seus rumos. Assim, a lógica da mudança cabe introduzir categorias de
indeterminação, de imprevisibilidade dos fenômenos, ou seja, a noção de processo social. Dessa forma, será possível
aproximar-se do significado que os agentes sociais emprestaram as suas ações7.
A propósito, lembra Chalhoub a historiografia norte-americana sobre a escravidão, que desde os anos de
1970, com as influentes obras de Eugene Genovese e Herbert G. Gutman8, tem debatido o que o autor chama
"aparente paradoxo", pois, ao mesmo tempo que comprova a eficácia política da dominação senhorial, desvenda
atividades culturais realizadas de forma autônoma pelos escravos. A presença da classe senhorial deixa marcas na
maneira como os escravos organizavam o seu mundo, mas este acolhimento de normas não significa negar que os
negros instituíam um mundo próprio, mesmo sob as condições adversas da escravidão. Em outras palavras, não se
pode fazer apenas uma leitura senhorial da situação de cativeiro. É o que outros historiadores tem feito para
explicar a conjuntura de crise do regime de trabalho escravo e de guerra civil: um exame atento ao significado da
liberdade para escravos, proprietários e governantes, naqueles anos decisivos'.
O que se pretendeu, com essa discussão, foi mostrar alguns complicadores ao se mapearem vestígios não tão
evidentes quanto se desejava. Onde auscultar as marcas das transformações sociais, contidas em documentos
cotejados pelo tempo? Como integrar o material coletado como um construto, cujos desdobramentos exponham as
contradições da História em movimento? De que forma evocar a natureza instituinte dos conflitos de classe, quando
dissimulada em dramática harmonia? O tema em questão pretende hospedar alguns desses cenários, forjados pela
memória histórica da Fazenda do Mata Cavalo:

Corpo de água e pedra. Geografia fluvial no limite da cerca. No impasse da porteira. Rede vazia no alpendre
da casa grande, fantasma de olhos vendados contra o céu vazio. Vazio e azul. Azul e voraz. De um azul denso
imaginário pasto de relíquias. No mais só resta esse desejo montanhoso de desembestar estrada afora. Perguntar aos
quatro ventos com todas as bocas e vozes, todos os pássaros e mãos, todos os bichos que habitam suas vertentes e
verdades: Cadê mãe Tança.
João Evangelista Rodrigues

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Um Fidalgo da Casa Imperial


No dia 3 de março de 1857, na cidade de Conceição - hoje Conceição do Mato Dentro -, então Comarca
do Serro, na Província de Minas Gerais, tudo esta preparado para que seja feito o testamento público de Jose Pereira
de Abreu e Lima. Em marco daquele ano, trigésimo sexto da independência e do Império do Brasil, vai se dar o
surgimento de um significativo capitulo da história He Constança Fortunata de Abreu e Lima, MAE TANCA. De
fato, quando Francisco Honório dos Santos, segundo Tabelião Público Judicial e de Notas, abre as paginas do livro
do cartório para registrar e dar forma ao testamento, que será ditado por Jose Pereira de Abreu e Lima, esta
começando a ser escrita uma história da Fazenda Mata Cavalo10. Abreu e Lima, o testador, "cristão e católico", vai
doar seus bens e suas terras as filhas Constança e Ana. Sua primeira vontade diz respeito ao destino de seu próprio
corpo apos a morte. Ele o quer sepultado na Igreja Matriz de sua freguesia, envolto no hábito de São Francisco.
Cuidado o corpo, lembra-se de sua alma e pede que "se digam duzentas missas por sua intenção, com a brevidade
possível".
Abreu e Lima faz também uma declara9ao, quase em penitência: diz ter vivido em estado de solteiro e
que, por "fragilidade humana", era pai de duas filhas de nomes Constança Fortunata de Abreu e Lima e Ana Ignês de
Abreu e Lima, declarando-as únicas herdeiras de seus bens. Não faz referencia a mãe das filhas, que permanece
esquecida no testamento e na sua história. Quem a recupera e Constan9a, ao fazer testamento em 8 de agosto de
1883. Na peça testamentária, declara-se filha de Inácia da Silva Campos e legitimada pelo Capitão Jose Pereira de
Abreu e Lima; diz também que e solteira, nunca foi casada, nunca teve filhos. Seus pais já haviam falecido em 1883,
como sua irmã Ignês, pois aquela manifesta o desejo de ser enterrada no Distrito de Morro do Pilar, na Igreja Matriz,
perto de sua irmã Ignês. Ela deseja que por sua alma se digam "dois oitavários de missas". Determina que se de aos
pobres a quantia de cinqüenta mil reis e mais cinqüenta mil para consertos da Matriz. Essas providencias devem ser
tomadas enquanto seu corpo estiver sobre a terra.
Jose Pereira de Abreu e Lima, quando dispõe de sua terça em testamento, beneficia seus escravos com
uma condição: seriam libertados aqueles a quem suas herdeiras julgassem dignos da alforria. Essa liberdade,
entretanto, só poderia ser gozada quando da morte das duas filhas herdeiras. Conclui a declara9ao testamentária,
concedendo a Constança e Ana prazo de dois anos apos o seu falecimento para prestar contas em juízo. Constança do
Serro Frio, pois lá nasceu, cuja existência e justificada pelo pai como um produto solteiro, resultado da "fragilidade
humana". ira no futuro, também solteira, conviver com seus escravos, conceder-lhes liberdade, doando-lhes os bens
herdados: "Deixo todos os meus escravos livres como se de ventre livre nascessem e os instituo herdeiros dos meus
bens, com a condição, porem, de ficarem morando, vivendo em sociedade nesta minha fazenda, sem poderem vender
nem alienar, por qualquer forma e aqueles que assim o não fizerem não terão parte alguma e serão excluídos"11.
Constança, a herdeira, a quem os escravos irão chamar de Mãe Tarça, lega outros bens a um seu
compadre, Tenente Jorge Benedito Ferreira, "pelos bons serviços". Deixa-lhe todos os seus "trastes de prata" e
"pedaço de terras de cultura, que estão alem do rio e principia pelo espigão que vem do alto do Tejucal ao rio,
divisando com terras dos herdeiros do finado Salvador Martins Correia, e outro peda9O de campos com poucas
capoeiras, no lugar denominado Terra Quebrada, que divisa, por um lado, com Francisco Rofino Ferreira e, por outro,
com o mesmo Francisco"12. Redigido e aprovado o testamento pelo Tabelião Fernando José de Heredia, foi "cozido
com cinco pontos de retrós preto e outros tantos pingos de lacre vermelho por banda, na Fazenda do Mata Cavalo,
em 8 de agosto de 1883'"3.
Teófilo Thomas Ferreira possuía, na região do Morro do Pilar, três fazendas: das Lajes, do

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Salvador e do Mata Cavalo. Ele comprou, ao longo de anos, áreas de terras dos escravo
libertos que viviam ali trabalhando na agricultura. Aqui tem inicio a perda das terras deixadas por Jose
Pereira de Abreu e Lima as suas filhas e posteriormente doadas aos escravos. Em 1939, as terras adquiridas
por Teófilo Thomas são herdadas pelo filho, Jose Batista Ferreira - o Inhozinho -, que em 1941, as
demarcou e adquiriu outras áreas, de pequenos proprietários e lavradores negros que ainda viviam na
região, ampliando assim suas propriedades ate o ano de 1956. Durante esse período, isto e, entre 1939 e
1956, sucederam-se conflitos judiciais, contestações e assassinatos pelas terras da Fazenda do Mata
Cavalo. Nos cartórios da cidade de Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais, estão os vários processos
movidos por negros e latifundiários envolvidos na luta pela propriedade da terra. Ha, no Cartório do Crime,
intrigantes processos sobre a questão. Passada a etapa de luta reivindicatória, em 1957, a Fazenda do Mata
Cavalo, já com o nome de Fazenda Cachoeira ou Bom Retiro, e adquirida por Leandro Ordones de Castro,
que a vende, em 1985, a Fernando Gomes Cardoso1'1.
Abreu e Lima adquirira a fazenda de Antonio Francisco Soares e emprestou o seu nome de
família a seus escravos, reproduzindo o costume de uso, pelos negros, do sobrenome de seus
proprietários. De fato, nas terras da região grassavam numerosos os Pereira de Abreu, libertos ou cativos.
Jose Pereira de Abreu e Lima, poeta e medico, trouxe seus escravos do Arraial de Córregos, no princípio
do século XIX, depois de passar por Serro e Conceição. Naquela época, o Bispo D. Viçoso fez uma visita
pastoral ao Morro do Pilar, ganhando de Jose Pereira alguns versos em latim. Fidalgo da Casa Imperial e
Cavaleiro da Real Ordem do Cruzeiro, Abreu e Lima era amigo de D. Pedro JJ, de cuja intimidade em
família participava15. Teve tempo e dinheiro para aperfeiçoar o seu latim e estabelecer relações estreitas
com a Igreja Católica. Essa proximidade dava-se pela fé proclamada e laços com o clero: seu irmão
Lucas de Abreu e Lima casou-se com a irmã do Vigário de Morro do Pilar, Padre Anastácio Cardoso
Neves. Tal casamento fortaleceu os laços que uniam os Pereira de Abreu e Lima a "importante família do
sacerdote", oriunda de Sabará. O Padre Anastácio era pessoa influente no Morro do Pilar não só pelo
poder sacerdotal, mas também pelos bens que possuía: uma grande casa, um rancho de tropas, uma
fabrica de ferro e a Fazenda do Barroso.
Jose Pereira de Abreu e Lima locomovia-se num meio social em que. conviviam famílias
ligadas ao campo e a produção incipiente de ferro: gente de títulos e senhores de terra. Entre eles, o citado
Vigário Anastácio, que casou sua sobrinha com Manoel Vieira Costa, proprietário de um retiro que
pertencera ao Capitão Francisco de Paula Câmara, irmão do Intendente Câmara, responsável pela fundação
da Real Fabrica de Ferro de Morro do Pilar16. Nessa época, residiam no arraial algumas famílias alemãs,
empregadas em fabricas de ferro. Outro proprietário era o Coronel Antonio Jose Rodrigues, dono das
terras denominadas Paiol, na "Cordilheira do Cipó", e de uma fabrica de ferro, na estrada para
Conceição. Familiar de Jose Pereira, Antonio Honório de Abreu e Lima era latifundiário e também
proprietário de uma fabrica de ferro, situada em um lugar chamado Coqueiro17.
Todos eles viveram seu tempo nesses lugares. Deixaram rastros espalhados em cartórios
e em igrejas das vilas por onde passaram. Deixaram também, sepultados nas terras, seus corpos,
misturados aos objetos de ferro que fundiram, sinais de seu desejo de riqueza e de poder. Pelo poder e
pela riqueza os homens lutam. Pelo desejo, sobrevivem.
Na cidade de Conceição do Mato Dentro, em 4 de dezembro de 1930, os negros e seus
descendentes começam a perder as terras da Mata Cavalo. Numa ação executiva, movida contra o negro
Benedito Pereira de Abreu para cobrança de custos, o executado não oferece embargos a penhora de
seus bens. Residente em Morro do Pilar, o negro Benedito teria de pagar a quantia de 473 mil reis. Em 8 de
dezembro de 1930, outras terras da fazenda são penhoradas e postas em leilao18. Em 9 de abril de 1932
foram vendidos ao advogado Oscar Silva os bens penhorados (terras), pertencentes aos negros Manoel e
Honório Nunes Pereira. No ano de 1935, pela carta de arrematação passada a

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favor do mesmo advogado e extraída dos autos da ação executiva movida por Jorge dos Santos
Pereira, perdem seus bens os negros Benedito Raimundo Pereira de Abreu, Manoel Nunes Pereira de
Abreu, Frederico Pereira de Abreu e Benedito Primo Pereira de Abreu. Jorge do Santos Pereira,
embora descendente dos escravos da Mata Cavalo, em conflito com seus co-proprietários negros, move
contra eles uma ação executiva. No auto da penhora estão relacionados os seguintes bens: "uma casa
nova de vivenda coberta de telhas, com cinco compartimentos, sendo três assoalhados e dois térreos,
com esteios de braúna, somente barreada, inclusive uma área de dois ou três litros mais ou menos,
plantações de bananeiras, com uns pés de café, situada na Fazenda de Mata Cavalo, município de
Morro do Pilar, avaliada por 600 mil reis; um casebre muito ordinário, com bananeiras e pés de café;
uma pequena área de terra, na serra, no lugar denominado Costa, distrito de Mono do Pilar,
pertencente a Manuel Nunes de Abreu"".
Todos os bens arrematados pelo advogado Oscar Silva foram vendidos a Jose Batista
Ferreira, fazendeiro residente em Morro do Pilar, em 26 de fevereiro de 1941:
Nem reza. Nem pranto. Apenas um no na memória do tempo indivisível. Um ofício de
oferendas. A renovação cotidiana de uma esperança sem tréguas. Desassossego de
família, passado de pai para filho, de geração em geração. Todos querem ver e ouvir
Mãe Tança. Delinear sua figura na varanda. Ouvir sua voz. A mesma voz que em 1883
arou a terra escura e plantou na alma destes seres a Utopia da liberdade, a dignidade
originaria da vida.
João Evangelista Rodrigues

A cidade de Morro do Pilar esta situada na Zona Metalúrgica, com uma área de 421km2 e
altitude de 714m. Sua população e de 4.170 habitantes, sendo 1.470 na zona urbana e 2.700 na rural.
O município foi criado pela Lei n5 1.039, de 12 de dezembro de 1953. e instalado a 1° de Janeiro de
1954, por Laurival Ferreira Carneiro, então Intendente Municipal, em reunião presidida pelo Padre
Tarcísio dos Santos Nogueira20.
Auguste Provençal de Saint-Hilaire, em seu livro "Voyage dans les Provinces de Rio de
Janeiro et de Minas Gerais". descreve sua viagem a Província de Minas, em 18162i. Fornece
informações sobre as forjas do Intendente Câmara e narra:
a alguma distância de Gaspar Soares, transpus o Rio Preto, que deve o nome a cor que suas
águas, absolutamente límpidas, tomam do leito em que correm, um pouco mais longe,
transpus varias vezes o Picão, que, como o Rio Preto, se lança no Rio Santo Antonio, cujas
águas se vão reunir as do Rio Doce. A povoação do MORRO de Gaspar Soares (...) não é mais
que uma sucursal da paróquia de Conceição, e deve o nome ao gerente de uma das mais
antigas jazidas que foram exploradas no País. Quis-se fazê-lo denominar Morro de Nossa
Senhora do Pilar, porque sua igreja foi edificada sob a invocação desta santa; o nome mais
antigo, todavia, sempre prevaleceu... se bem que se. encontra ainda atualmente ouro no
leito do Rio Preto e na costa dos morros, esse metal não i objeto de uma exploração
regular e constante. Somente quando os proprietários de escravos não tem ocupação a dar-
lhes e que os enviam a cata de ouro. Cada escravo e obrigado a trazer ao seu senhor uma
certa quantidade, e é castigado quando não entrega o que dele se exige... As montanhas que
se contornam pelo lado direito quando se vai a vila do Príncipe tem os flancos cobertos de
relva e os cumes cobertos de matas virgens21.

Gaspar Soares, ao descobrir Morro do Pilar, para lá levou seus escravos domésticos. Extraía

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outro nos morros e, quando os trabalhos de mineração a talho aberto se aproximavam do arraial, u
de lugar as casas e a igreja, cedendo outra área para as novas construções. As precárias condições de
trabalho, às vezes, provocavam acidentes. De uma feita, 18 escravos morreram devido ao resvale
terra e pedras. Gaspar Soares dirigia o povoado de forma arbitrária e autocrática. Ao escolher o para a
nova capela, chegou um frade missionário para evangelizar. Gaspar não gostou da tônica do discurso
sobre a "vida dissoluta dos amasiados". Não teve duvida: pediu ao missionário que escolhesse o lugar
mais apropriado para edificação da igreja, que ele achava ser uma esplanada, coberta por espessa
vegetação, onde hoje esta a matriz. Entretanto, ordenou a dois capangas que abrissem, nesse mato,
uma sepultura e, quando o padre chegasse, fosse agarrado e enterrado "com terra fina, será quebrar
osso, nem derramar sangue". O que foi realizado, segundo as lendas da região.
No município de Morro do Pilar, ainda, são encontrados vestígios de objetos de ferro ali
produzidos por pequenas fundições, a que os habitantes dão sempre o nome de "fabricas". Não é
possível indicar a quando remontam as primeiras fundições em Minas Gerais. O engenheiro alemão
Eschwege diz que em 1811, quando chegou a Província, verificou que a maioria dos ferreiros e
grandes fazendeiros tinham também o seu forninho de fundição "sempre diferente um do outro, pois
cada proprietário, na construção, seguia suas próprias idéias". Para os estudiosos, as primeiras
fundic5es de ferro se devem ao conhecimento metalúrgico de escravos Africanos. De fato, "o escravo
constituiu uma peca fundamental da indústria siderúrgica mineira, ate a abolição da escravidão"22,
Constança morreu em 21 de agosto de 188723, na fazenda do Mata Cavalo. Seu pai havia
falecido em 04 de novembro de 185724. Seus herdeiros e escravos libertos, ao todo 43 pessoas, estão
arrolados em seu testamento: Bina, Rita, Branca, Ernesto, Regina, Elelvina, Maria, Janoaria,
Margarida, Sammuel, Irene, Generosa, Faustino, Tito, Benigna, Emilia, Monica, Neno, Rofino, Joao,
Sofia, Processo, Felicio, Rosalina, Diniz, Cornélia, Maízes, Josino, Jose, Bobaça, Celestina, Hipólito,
Brenato, Urbano, Jose, Elax, Justa, Patrício, Honório, Francelina, Antonio, Custodia, Lino. Destes, 27
eram casados, 04 viúvos e 12 solteiros, isto e, sem estado civil declarado. Não ha referenda a filhos
de escravos, lembrando-se que a Lei do Ventre-Livre e de 1871. I

Constança: A Alteridade :
Para Ecléa Bosi, ha fatos que, embora testemunhados por outros, só repercutiram
profundamente em nos25. Esse pressuposto pretende introduzir Constança Fortunata de Abreu e Lima
em um dos espaços socialmente destinados a mulher no século XIX. Trata-se de um espaço privado,
é verdade, pois a esfera pública, no que tange a política e a economia, é domínio e inscrição
masculina na sociedade. Michelle Perrot26 observa que "no teatro da memória as mulheres são sombras
tênues". Quase sempre ha o silêncio dos arquivos sobre "as mulheres singulares" que representam
presenças sem existência. A informação detêm mais sobre a mulher, "entidade coletiva e abstrata",
desatada de suas singularidades, conformando rostos anônimos, sem reserva de espaço.
As mulheres depositam sua memória " no mundo mudo e permitido das coisas"27.
Distanciamento e intimidade performam a teia de seu quotidiano.. Assim, Constança toca seus
"trastes de prata", testemunhos de sua condição de classe, quando se toma senhora de terras28. Dá
lições ao corpo, cavalgando num "silião" de montaria feminina, rastro talvez de seus momentos de
lazer, ou da necessidade de transitar da fazenda aos povoados vizinhos para o exercício de atividades
sociais e religiosas, quando as maneiras de transporte ainda eram precárias. Na região não havia
estradas de ferro, e o recurso era a montaria. Na fazenda, quais seriam os cantos onde Constança
gostava de se encolher para perscrutar seu mundo interior? Se descobríssemos, quem sabe,
poderiam "então falar de suas estradas, de suas encruzilhadas, de seus bancos. Toda pessoa deveria
fazer o cadastro de seus campos perdidos. Thoreau afirmava ter o mapa dos campos inscritos em sua
alma"29. Ou será que os

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Dramas de Constança eram murmurados em ―suas canastras‖, preenchendo um espaço de sua solidão,
protegidos da vigência de uma passado que não passou, ― retornando sob forma de pesadelo sobre um presente
não redimido‖? E as "caixas velhas" de Constança teriam fechaduras e chaves, ocultando objetos simbólicos,
suporte de múltiplos sentidos desconhecidos? Comprometidos num jogo nunca tramado? "No reino dos
valores a chave fecha mais do que abre. E o gesto que fecha e sempre mais nítido, mais forte, mais rápido que o
gesto que abre"3'. Quando "duas medalhas de ouro" adornavam aquele corpo que não foi vivido, possivelmente
reprimido pelos costumes de uma época castradora da mulher? "Ouro velho" e "prata velha" falam de
preocupações materiais. Já "louças, colheres para chá e tachos de cobre" nos conduzem ao mundo domestico,
aparentemente descartável, mas que revela possuir suas permanências.
Como terá sido interpretado por Constança o silencio testamentário de seu pai sobre a existência de
sua mãe, a serrana Inácia da Silva Santos? Como convivia com o jogo de uma filiação bastarda, que não
tramou? O pai, lugar privilegiado da lei, normatizador dos mapas condicionantes da infância, o outro
significativo em que se espelhara a criança... um silencio de ausências. O pai, na confissão de sua "fragilidade
humana", a rejeição pública do prazer, simulacro de sombras geradoras de Constança. Nega o desejo de ser pai
ao mesmo tempo que o reforça, no gesto jurídico de deixar sua herança as filhas. Entretanto, a essas criaturas,
quem sabe, será posta e reposta a questão da identidade? Donde a imagem do outro, "que exige de nos
criação, para que dele tenhamos experiência"32? A fratura da alteridade poderia ter dificultado a Constança o
convívio erótico com o lado masculino da sociedade, num tempo em que "as expressões do desejo sexual" eram
pouco discutidas33. Talvez Constança procure um dos ingredientes compensatórios de sua perda/amor na
condição de proprietária, que coloca novamente a questão da autoridade paterna. Esta delega poderes sobre bens
aquela que prescindiu de poder em sua formação e condição social anteriores, Haja vista que a figura da mãe
nem mesmo e mencionada pelo pai. O dilema será talvez resolvido, em parte, pela construção de um
mecanismo de expressão filial: o de se tomar Mãe Tança.
O que Mãe Tança quer dizer? Sobretudo, dizer para quem? Mãe: terra, fecundidade, onde, segundo a lei
arcaica grega, se depositava a semente geradora de filhos (escravos de Constança?). Na Grécia antiga oriental,
anterior ao século VII AC, o direito e de consangüinidade, direito da terra. Heran9a e filiação são matrilineares.
Grave sera o delito que o filho pratica contra a mãe. Contra o pai não será considerado delito, pois o pai não e
parente. A protagonista e a mãe uterina, quem determina a linhagem. Nessa concepção, e a terra que deposita a
semente. Como a agricultura recorta uma questão não definida ainda, a terra será percebida como protagonista
de todas as coisas. Quanto a mulher, e o apêndice da terra31. Dai o duplo movimento mãe/terra, mãe/mulher, onde
a subjetividade se identifica de forma clara e distinta, permitindo o surgimento do engenho arcaico. Também
é possível constelar "o arquétipo da Grande Mãe: gestar, parir, cuidar, nutrir, sentir pulsar o corpo, acolher; ...
ser mãe concretamente de um filho, ou simbolicamente de qualquer pessoa..."35. Todavia, como recolher os
esfacelamentos interiores de Constan9a, para construir a emergência de um lugar protegido pela vigência do
simbólico?
Que poder se esconde sob a religiosidade de Constan9a? Talvez desfaça "um sentimento de inadequação
permanente"36, passível de desconforto diante de valores sancionados socialmente, e não cumpridos inteiramente.
A confissão e a penitencia são rituais "que reconhecem a potencia da desordem"37, Auxiliam os mecanismos de
controle da sociedade, cuidando de níveis integradores. Na peça testamentária de Constança ha indicadores da
tradição católica, como presença legitimadora de vida terrena,. com suas promessas para além-túmulo. Assim,
seu desejo de ser sepultada na matriz, "conforme o uso da terra"; sua ordem para que "se digam dois oitavários
de missas", enquanto seu "corpo estiver sobre a terra"; exige, também, durante a "dramaturgia dos funerais"38, que
seja dada aos

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pobres a quantia de cinqüenta mil reis, bem como igual quantia para consertos da matriz. Os mesmos cuidados
com a alma encontramos presentes no testamento de seu pai. Aqui vale lembrar os costumes medievos de orações
e dádivas para se instrumentalizar a redenção35.
Invisível, o pai ainda exerce seu poder sobre a filha. Impalpável, a memória da mãe e apenas o registro de
um amor culpado, no fechado mundo masculino da "fragilidade humana". Com Constança, também, nenhuma
palavra que nos diga de seu destino: da mãe, apenas o nome e a cidade de origem. Identidade e lugar, elementos
arcaicos de controle40. Aqui o silêncio já nos diz sobre a condição da mulher naquela sociedade.
Finalmente, a doação de Constança: por que não deixou seus bens a igreja? Que formas de negociações
permearam suas relações com os escravos, a ponto de lhes delegar um mandato familiar de permanência "em
sociedade"? Esperava não só que cuidassem das terras, como também que nunca se separassem. Será que a
efervescência abolicionista preocupava Constança, levando-a a temer pela sorte de seus escravos 'libertos, porém
despreparados para enfrentar o novo mundo de relações sociais de trabalho? Não se sabe se a ressonância das
transformações pelas quais o País passava, prenunciando o final do regime de trabalho escravo e do regime
imperial, atingia as montanhas da província de Minas, no seu isolamento dos centros de decisão e poder
políticos. Posta a questão, cabe aos negros libertos por Constança assumir a situação de proprietários e construir
socialmente o estatuto de sua cidadania. As pedras da fazenda falarão de liberdade, sim. Mas também de
combate e de perda:
Rios e pedras. Cadê Mãe Tança. Nuvens e lendas. Cadê Mãe Tança. Túneis invisíveis. Cadê
Mãe Tança. Tambores e ritmos. Cadê Mãe Tanca. Danças noturnas, Cadê Mãe Tanca. Grutas de
medo. Cadê Mãe Tanca. Vultos e ventos. Cadê Mãe Tanca. Vozes da África. Cadê Mãe Tança.
Lanças de guerra. Cadê Mãe Tanga. Mar e marfim. Cadê Mãe Tança. Letras e Leis. Cadê Mãe
Tança. Janela infinita. Cadê Mãe Tança. Pastores da noite. Cadê Mãe Tanca. Prenuncios de
morte. Cadê Mãe Tança. Chicote e senzala. Cadê Mãe Tanca. Leões do deserto. Cadê Mãe Tanca.
Heranca e suplicio. Cadê Mãe Tanca. Segredos de Minas. Cade Mãe Tança".
Joao Evangelista Rodrigues

NOTAS

1- Natalie Zemon Davis. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 21.
2- Hans Magnus Euzensberger em entrevista a Foiha de S. Paulo quando do lançamento de seu livro
O curto verão da anarquia - 'Buenaventura Durruti e a guerra civil espanhola. São Paulo: Companhia
das Letras, 1987.
3- Paul Ricoeur. Da interpretação: ensaio sobre Freud. São Paulo: Imago, 1977, C.I e 2. Alfredo
Bosi, Ceu, Inferno. São Paulo: Atica, 1988, pp. 274-287.
4- Clotilde A. Paiva e Luiz D.H. Arnaut. Fontes para o estudo de Minas oitocentista: listas
nominativas, Anais V Seminário sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte, UFMG/CEDEPLAR,
1990, pp. 85-106. Ver, sobretudo, a 1" parte.
5- Ver Manuela Carneiro da Cunha. Sobre a servidão voluntária: outro discurso; escravidao e
contrato no Brasil Colonial. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade, São Paulo:
Brasiliense/Edusp, 1986, pp. 145-57. Robert Sleenes. Lares negros, olhares brancos; histórias da
família escrava no século XIX. In: Revista Brasileira de História, Marco Zero/ANPUH. V.8,
ns16, p.189-203, Marc/ago. 1988.

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6- Sidney Chalhoub. Visões da liberdade, uma história das últimas décadas da escravidão na corte.São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. p. 19.
7- E. P- Thompson, A miséria da teoria, ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Athusser. Rio de
Janeiro: Zahar, 1981.
8- . Eugene D. Genovese. Roll, Jordan, Roll. The word the slaves made. Nova York: Rondom House,
1974. Herbert G. Gutman, The black family in slavery and freedom. 1750-1925, Nova York:
Pantheon, 1976.
9- Sidney Chalhoub, Op. cit., p. 26.
10-- Testamento de Jose Pereira de Abreu e Lima, 1857, Cartório do 2a Ofício, Conceição do Mato Dentro. Minas Gerais.
11- Testamento e inventario de Constança Fortunata de Abreu e Lima, 1883, Cartorio do 2° Ofício,
Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais.
12-Idem.
13-Idem, ibidem.
14-Anotações em escrituras e registros de terras, do arquivo particular de Fernando Gomes Cardoso,
Belo Horizonte. Alem desses documentos, ha informações verbalizadas de advogados que
seguiram a tramitação dos processos (dados obtidos em entrevistas).
15-Cs A. V. Matos. Indagações e noticias sobre Mono de Gaspar Soares. Diamantina: Typ. G.A.
Estrela Polar, 1921, p. 73.
16-Idem, pp. 15, 18, 20.
17- Idem, ibidem, pp. 8, 9, 10, 11.
18-Anotações constantes do arquivo particular de Fernando Gomes Cardoso, Belo Horizonte.
19-Idem.
20-Informações Básicas, Morro do Pilar, IBGE, Belo Horizonte, 1982.
21-Geraldo Dutra de Morais. História de Conceição do Mato Dentro. S/E, 1942, pp. 155, 158.
22-A esse respeito consultar o estudo exemplar de Douglas Cole Libby, Transformando o trabalho em uma economia
escravista; Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988.
23-Testamento e inventario de Constança, op. cit.
24-Testamento de Jose Pereira de Abreu e Lima, op. cit.
25-Ecléa Bosi. Lembranças de velhos; memória e sociedade. São Paulo: Queiroz, 1983, p. 332.
26-Michelle Perrot, Praticas da memória feminina. In: A mulher no espaço público, Revista
Brasileira de História. São Paulo: Marco Zero/ANPUH. V9, n B 8, p.9-18, Ago./ Set.1989.
27-Idem.
28-Estes e outros objetos que serão citados por nos estão arrolados no testamento e inventario de Constança, op.
cit.
29- Gaston Bachelard. A política do espaço. São Paulo, Martins Fontes: 1989, p. 31.
30-Citado por Renato Mezan in: Heloisa R. Femandes (org.) Tempo do desejo. São Paulo:
Brasiliense, 1989, p. 70.
31-Gaston Bachelard. Op. cit, p. 85.
32-M. O. Merleau-Ponty. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 187.
33-Peter Gay. A educação dos sentidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 110.
34-Gregório F. Baremblitt. Fabricam-se "homens". Belo Horizonte, mimeo, 1985, p. 249, versão
preliminar.
35-Vera Paiva. Evas, Marias, Liliths... as voltas do feminino. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 38.
36-Idem, citando Mary Douglas, p. 75.
37-Vera Paiva, op. cit, p. 75.

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38-Georges Duby. Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro,


1987. p. 34.
39-Idem, p. 28.
40-Elias Canetti. Massa e poder. Brasília: São Paulo, UNB/Melhoramentos, 1983, p. 319.

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COMUNICAÇÃO

TROPAS E TROPEIROS NO ABASTECIMENTO DA


REGIÃO MINERADORA NO PERÍODO DE 1693 A 1750

Claudia Maria das Graças Chaves


Vera Lucia Dutra Vieira
UFMG

O período de 1693 a 1750 tem como parâmetro o início do povoamento da capitania mineira era
função do descobrimento dos veios auríferos ate a decadência visível da mineração. E nesta fase de
surgimento das primeiras vilas e povoamentos que se iniciam, junto a mineração, as atividades ligadas
ao comercio e a agricultura.
Estas atividades que dão apoio e subsídios a mineração são fundamentais para a formação e
desenvolvimento das Minas Gerais. Neste quadro, os tropeiros desempenharam um importante papel
como agentes dinamizadores do sistema. Eles tornaram possível a entrada e escoamento de
mercadorias oriundas de outras regiões ou mesmo da própria capitania. Assim, interligaram a região
mineradora a São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, atuando ao mesmo tempo como
atravessadores, comerciantes e, ainda, como mensageiros e contrabandistas.
A importância de se estudar o trabalho dos tropeiros no período colonial revela-se,
sobretudo, através das incipientes analises econômicas das minas gerais, que não permitiram ainda um
consenso quanto ao estagio de desenvolvimento das atividades agropastoris da região, durante a
primeira metade do século XVIII.
Procurando comprovar a existência da agropecuária já nos primórdios de Minas Gerais,
consoante a hipótese de que as atividades agropastoris não passaram a existir somente apos a
decadência da mineração, mas simultaneamente, dando-lhe apoio e subsídios, este estudo visa
colaborar nas discussões sobre o assunto. Para tanto, a analise da questão será fundamentada com o
exame da variedade de mercadorias originadas na própria capitania e comercializadas no mercado
interno e externo.

II

O comercio e a agricultura, desenvolvidos marginalmente ao lado da mineração, escaparam

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


130

em grande parte ao rígido controle português devido a dinâmica interna do sistema que não se
enquadrava no modelo colonial do "exclusivo metropolitano". Em outras palavras, queremos dizer que
a colônia não respondia somente aos estímulos externos da metrópole, pois tanto o comercio como
a agricultura permitiram o desenvolvimento econômico interno e ao mesmo tempo garantiram a
existência do sistema colonial.
Se o comercio interno permitia a circulação de riquezas, assegurando que parte delas ficasse
retida na colônia, a agricultura, por sua vez, contribuía para a fixação do homem na terra e produção
os gêneros de consume de primeira necessidade. Embora estivesse voltada para uma produção de
subsistência, ela gerava os excedentes que abasteciam o mercado interno.
Esta questão do abastecimento interno tem sido objeto de análises e debates nos últimos anos e
parece-nos bastante complexa. O principal problema, ao se levantar essa questão, reside no fato de
que seria necessário haver brechas no sistema colonial de monoprodução, possibilitando a existência
de um excedente comercializável que pudesse ir além da simples produção para o autoconsumo, ou
seja, o problema seria a aceitação de um setor mercantil de subsistência. A polêmica gerada em torno
dos trabalhos de Giro Flamarion Cardoso' e de Jacob Gorender2 traz a tona esta discussão. Para
Gorender a estrutura da plantagem dentro do modo de produção escravista e bissegmentada, isto e,
e uma unidade produtora de bens destinados a exportação e para o autoconsumo, produzindo uma
economia mercantil (bens comercializáveis voltados para o mercado mundial) e natural (bens
destinados somente ao autoconsumo). Giro Flamarion, no entanto, aponta para a existência de um
modo de produção secundário ou "brecha camponesa", o qual possibilitaria o plantio de mantimentos
para a subsistência e também para a produção de excedente comercializável. Entretanto, apesar de
Ciro Flamarion apontar para essa linha de análise, a discussão acerca da agricultura excedentária não
se esgota, devido a resistência de alguns autores cuja rigidez conceitual não lhes permite ver a
dinâmica interna do sistema colonial.
Outro interessante conceito sobre agricultura excedentária e aquele definido por Paul Singer.
De acordo com este autor, falar no caráter excedentário da agricultura de subsistência seria
redundância, pois "a produção de subsistência se divide em duas partes, uma destinada ao
autoconsumo, outra, destinada ao setor de mercado 3. E este mesmo autor que, ao fazer uma
retrospectiva da "velha capital" mineira, aborda as especificidades desta capitania em relação as outras
Áreas de monocultura cafeeira através de seu conceito de setor de subsistência:
Verifica-se, pois, que na periferia da área mineradora desenvolvem-se atividades de
subsistência, cujos excedentes eram destinados ao mercado das Gerais. Era inevitável
que isto acontecesse, desde que os produtos de subsistência, alem de escassos,
alcançaram preços elevadíssimos na área de mineração, onerados como eram por altos
custos de transporte (.,.). Isto mostra que o desenvolvimento do setor de subsistência, em
Minas, foi. quase concomitante com o do Setor de Mercado Externo. Mas, e preciso
considerar que, tendo sido o primeiro condicionado pelo último, e 16gico que aquele só
poderia alcançar sua plena expansão apos o desenvolvimento deste4.
Ao resgatarmos a polemica acerca da "brecha camponesa" e ao trazermos o conceito de
subsistência de Paul Singer, gostaríamos de destacar a importância da agricultura excedentária em
Minas durante a primeira metade do século XVIII5, na medida em que o seu simples reconhecimento
nos traz importantes elementos paia analisarmos o papel da agricultura no abastecimento do mercado
interno e no desenvolvimento da atividade comerciai.
Essa atividade criou fortes vínculos com a agricultura de subsistência, pois quanto mais o
comercio se desenvolve e intensifica, mais estímulos confere a produção do excedente agrícola. Este

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


131

processo constitui-se numa via de mão dupla, pois o estímulo dado a produção agrícola
resultara fatalmente no escoamento dessa produção para o comercio.
Com a descoberta dos primeiros veios auríferos, a região das minas assistiu a
chegada de grande contingente populacional. No princípio, a ausência de uma política de
distribuição de terras, somada ao despreparo das pessoas que as minas se dirigiam,
contribuiu para as crises de fome dos anos de 1697/1698 e 1700/1701. Passada esta fase
inicial, começou-se a plantar roças de subsistência, muitas vezes conjugadas as lavras. Mas o
alto preço que se pagava por qualquer alimento nas minas atraiu grandes senhores de
escravos, cujas fazendas passaram a produzir para abastecer a população mineradora:
Desta forma, a mineração viveu sustentada por uma agricultura voltada para o
mercado interno Primeiramente, era a agricultura de subsistência composta das
pequenas explorações agrárias que sustentavam os primeiros descobridores e
mineradores; posteriormente, grandes fazendas vieram a abraçar a atividade
agrícola de manutenção. E importante frisar que as pequenas rocas continuaram
a existir, colaborando para a produção de alimentos 6.
A questão da agricultura na capitania mineira no período de auge da extração
aurífera foi e tem sido, ainda, desconsiderada por muitos historiadores. Alguns chegaram
mesmo a negar a existência de tal atividade antes do declínio da mineração. A maioria
destes autores elaborou seus estudos tendo por base o relato de Antonil. Porem, e necessário
ressaltar que, se num dado momento Antonil afirma ser estéril o solo das minas "achando-se
não poucos mortos com uma espiga de milho na mão sem terem outro sustento"7 e ele ainda
quem afirma ser a agricultura, assim como o comercio, uma forma de se obter o ouro extraído
das lavras:
E com isso não parecera incrível o que for fama constante se conta haverem
ajuntado em diversos tempos assim uns descobridores dos ribeiros nomeados, como
uns mais afortunados nas datas, e também os que, mantendo gados e negros para
os venderem por maior preço, e outros gêneros mais procurados, ou plantando, ou
comprando rocas de milho nas minas, se foram aproveitando do que outros tiravam 8.
No entanto, os historiadores que trataram deste assunto atentaram somente para o seu
primeiro argumento 9. Entre eles podemos citar Mafalda Zemella e Mirian Ellis, que
desconsiderara a produção interna de alimentos, alegando que o abastecimento da capitania
provinha exclusivamente da importação. Outros autores da historiografia clássica
desenvolveram esta mesma analise: Waldemar Barbosa, Augusto de Lima Junior, João
Domas Filho, Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Junior. A crença de que a
mineração foi a única empresa existente nesta primeira metade do século XVIII e a
conseqüente negação de outras atividades econômicas persiste ainda em alguns autores
contemporâneos, como e o caso de Laura de Mello e Souza em seu livro "Os
Desclassificados do Ouro":
A percepção inicial de que a Metrópole se prejudicava pensando se beneficiar
desdobra-se no desvelamento gradativo da verdadeira natureza da economia mineira
e na conscientização do estado de pobreza da capitania de Minas, que passa a ser
o foco principal das atenções(...) Assim, paradoxalmente, a famosa capitania seria
na realidade "uma das capitanias mais pobres, que tem a América", o que se devia
em grande parte a diminuição dos jornais e ao desprezo pela agricultura,
manufaturas e criação de gado 10.
Por seu lado, já na década de 1960, Charles Boxer valorizava a agricultura e o
comércio em Minas na primeira metade do século XVIII, abrindo um campo bastante
amplo para se estudar o caráter multifacetado da economia mineira:
LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991
132

O preço alto dos mantimentos significava que, em maioria, as pessoas em de fazê-lo, tinham
uma fazenda ou roca, nas quais plantavam legumes, e criav aves, porcos, etc. para elas e seus
escravos, vendendo o excesso para o consumo i cidade, com bom lucro".
Estudos mais recentes, como o de Carlos Magno Guimarães e o de J. F. Graziano da Silva têm
dado novos enfoques a agricultura de subsistência que reforçam a idéia de sua produção
excedentária desde o principio da extração aurífera:
Não só a agricultura foi atividade desenvolvida desde o inicio da colonização das
minas, como desde cedo teve caráter escravista e mercantil1.

III

Estudar o século XVIII em Minas Gerais e não levar em consideração a agricultura e o


comércio interno e o mesmo que negar a existência de uma vida econômica própria da colônia em
relação a metrópole, quando, pelo contrario, estas atividades foram praticadas intensa
independentemente dos interesses metropolitanos. Desta maneira, o viés circulacionista que
menosprezava o mercado interno em favor de um "capitalismo" perde o sentido em função do
dinamismo alcançado por estes setores.
O volumoso comércio praticado nas minas foi viabilizado em grande parte pela produção interna
de gêneros alimentícios, ainda que os gêneros importados e os provindos de outras capitanias houvessem
contribuído para o fornecimento de mercadorias a região mineradora.
Essas mercadorias importadas e provindas de outras capitanias chegavam a Minas
transportadas em lombos de burros, em viagens que duravam ate 60 dias por caminhos bastante
difíceis, muitas vezes impraticáveis devido às chuvas prolongadas. Esses fatos tomavam altos 05
preços de tais mercadorias, o que estimulava a produção de gêneros alimentícios e de produtos
manufaturados em Minas.
Os tropeiros, ao fazerem quase todo o transporte de mercadorias destinadas ao comercio,
tornaram possível a existência do mercado interno, pois garantiram a circulação dos produtos
importados e dos produzidos no interior da própria capitania, dando maior vigor as atividades
agrícolas e comerciais, tidas como marginais dentro do sistema colonial.
A atuação das tropas e tropeiros não se limitou, portanto, ao contrario do que muitos autores
supõem, ao simples transporte das mercadorias chegadas ao porto do Rio de Janeiro para as minas, Esta
foi apenas uma face da atividade dos tropeiros. A outra e a intricada rede comercial que eles
estabeleceram internamente, com produtos extraídos das próprias capitanias. A circulação das tropas
estimulou a fixação dos povos nos caminhos que se dirigiam para as minas pela facilidade que
apresentavam para o escoamento dos produtos de suas lavouras.
A dupla articulação dos tropeiros - o transporte e o comercio de produtos tanto oriundos de
outras capitanias quanto os produzidos em Minas e o transporte e comercio das mercadorias
importadas - torna-se mais perceptível a partir da documentação já levantada.
Dois editais publicados pela Câmara de Vila Rica, o primeiro de 1722 e o segundo de 1733,
ilustram bem o duplo comercio das tropas:
(...) tem chegado a nossa noticia ha muita falta de viveres, assim vindos do Rio de Janeiro
como do Sertão dos Curraes, e ainda do termo desta vila, e que muitos moradores della,
assim que entrão as carregaçõens de huas, e outras partes as VÃO logo atravessar (...)13

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


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(...) mandamos que nenhuma pessoa de qualquer qualidade ou condição que


seja atravesse mantimentos desta terra como são milho, farinha, fei jão, e
azeite de Mamonne, nem outros sim possão recolher em suas casas,
mantimentos de lavradores nem também de viandantes para as vender a
comissão (...)"
Em documentações deste tipo podemos identificar a dupla articulação dos tropeiros
atuando o comércio interno e externo da capitania, o tipo de dificuldades encontradas
nas estradas e a existência de outros agentes comerciais tais como atravessadores e
comissários que, ao lado dos tropeiros, movimentavam a rede comercial de Minas. O
estudo destes documentos nos possibilitara, portanto, o desenvolvimento de nossa
pesquisa, na medida em que nos trazem elementos suficientes para discutirmos o papel dos
tropeiros na economia mineira.

NOTAS

]. CARDOSO, Ciro Flamarion. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes,


1979.
2- GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978.
3. SINGER, Paul. Desenvolvimento e crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
4. _______ . Desenvolvimento econômico e evolução urbana. São Paulo: Nacional, 1968. p.
203.
5- Idem, ibidem.
6- SILVA, J.F.Graziano (coord). Estrutura agrária e produção de subsistência na
agricultura brasileira. São Paulo: Hucitec, 1978.
7- ANTONIL, Andre João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. São
Paulo: d. p.292.
8- Idem, ibidem.
9- Cf. GUIMARAES, Carlos M. & REIS, Liana M. Agricultura e escravidão em Minas
Gerais (1700-1750) Revista do Departamento de História. Belo Horizonte,
Fafich/UFMG. N 5 2. 15, 1986.
10-SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p. 35
11-BOXER, Charles. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Nacional, 1969. p. 67.
12-GUIMARAES, CM. & REIS, Liana M. Op. cit. p. 21
13-CMOP n° 6, p. 28v e 29. APM.
14- CMOP n° 6, p. 155, 155v, 156. APM.

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134

COMUNICAÇÃO

LIBEERAIS E CONSERVADORES NA PROVINCIA DE


MINAS GERAIS
identidade política e representação de interesses.

Ricardo Arreguy Maia - Mestrando em Ciência Política pela UFMG

Esse trabalho e parte integrante de minha dissertação de mestrado sobre a política e os


políticos mineiros no século XIX (1835-1889). Ele reflete a preocupação com a inexistência
de estudos sobre a vida política e partidária dessa terra por esse tempo, e encontrou ai seu
incentivo. Esse esquecimento, sem dívida, relaciona-se diretamente com um certo viés
econômico que, por muito tempo, tem privilegiado o estudo de regioes nas quais se
implantaram as grandes unidades produtivas de agroexportação escravista.
E bem verdade que a situação de esquecimento começou a ser relativamente superada
em inícios da década de 80, com o trabalho renovador de Roberto B. Martins, sobre a economia
escravista mineira do século em questão. Este, além de ter estimulado um debate dos mais
positivos1, desnudou um dos grandes preconceitos a propósito da realidade mineira daquele
período: aquele que afirma ter havido aqui uma estagnação, uma involução econômica. Esse
argumento - mal explicado pela falta de maior embasamento empírico - tem como escudo a
(falsa) noção da "transferência da mão-de-obra escrava, da mineração, para a cafeicultura do
Vale do Paraíba"2. Obviamente que esse argumento incorre num absurdo, ao pretender
estabelecer uma linha de continuidade entre realidades que tem entre si, no mínimo, 40 anos.
Acredito serem esses os fatores responsáveis pelo virtual esquecimento de quase um século de
vida política da História de Minas3.
Diante desse quadro, esse trabalho não poderia ter uma ambição que não fosse tentar
uma primeira aproximação - um reconhecimento de um campo sobre o qual ainda não se pode
contar com as vantagens do debate ou se propor o exercício da revisão.
A par dessas considerações, estabeleceu-se que a necessidade maior que se impunha
seria de conhecer a "cara do monstro", ou seja, conhecer o sujeito da atividade política ou ainda,
o grupo social envolvido em tal atividade. O que se fez, então, pode ser caracterizado como uma
"depuração' de todos os indivíduos que tomaram posse por eleição nas diversas legislaturas
das casas parlamentares da época (Assembléia Provincial e Gerai - Senado e Câmara), na
Província e pela Província, foram levados em conta somente aqueles cujas carreiras foram
consideradas "consistentes‖ sem interrupções e que durassem mais de duas legislaturas
provinciais, todos os senadores e os

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


135

deputados gerais com mais de uma legislatura seguida). Dessa forma, com o grupo - a elite
política reduzido a 202 indivíduos, foi feito o levantamento de uma biografia mínima de cada um,
onde constou a "naturalidade - região de origem", "profissão-ocupação", a indicação de
"parentes na política" e a "filiação partidária". De posse da maioria desses dados - que foram
levantados no Arquivo Publico Mineiro, em documentação das mais variadas origens (desde anais,
jornais e atas de eleições, ate genealogias, biografias e dicionários biográficos, etc.), e com o
cruzamento das informações, chegou-se a resultados que permitiram a confrontação com estudos
voltados a definição da elite política imperial e a definição das coalizões sociais formadoras dos
partidos liberal e conservador. Da mesma forma, foi possível fazer um primeiro esboço de como
o sentido de regionalismo influi na questão da opção partidária, num procedimento estatístico que
tem revelado bastante proficuidade. Assim, seguindo a mesma divisão regional proposta por Roberto
Martins, e que também e utilizada por Douglas Cole Libby, a elite política mineira ficou distribuída
conforme mostra a Tabela 1.
Um primeiro dado a ser destacado e o da sub- representação da maioria das regiões, a
exceção da Metalúrgica- Mantiqueira e dos vales do Jequitinhonha-Mucuri-Doce. Dessas,
destaque para a super-representação da primeira, cuja importância como região dinâmica em termos
políticos, administrativos e também econômicos (a incidência de fazendeiros nessa região e o dobro
daquela observada na Mata e na dos vales do Jequitinhonha- Mucuri-Doce) permanece durante todo
o século.

TABELA I

ELITE POLÍTICA MINEIRA, POR REGIÕES


(considerando o peso populacional de cada uma em 1873)

REGIÕES POPULAÇÃO (%) INDIVÍDUOS


NA ELITE* (%)
Metalúrgica-Mantiqueira 22,98 46,06
Jequitinhonha-Mucuri-Doce 16,61 18,79
Sul de Minas 16,76 13,94
Zona da Mata 16,72 11,52
Zona Oeste 12,08 4,24
São Francisco-Montes 4,91 3,03
Claros
Alto Paranaíba 4,81 1,21
Paracatu 1,90 1,21
Triângulo Mineiro 3,25 0,61

* excluídos os de origem externa a Província ou desconhecida. fonte dos dados sobre população:
LIBBY, D.Cole. Transformação e trabalho em uma Economia Escravista - Minas Gerais no
Século XIX. São Paulo, Brasiliense, 1989, p.367 (anexo 1).

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


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Igualmente motivo de destaque e o equilíbrio na distribuição partidária - entre liberais e conservadores - dentro
das principais regiões representadas: na Metalúrgica-Mantiqueira 39,74% são liberais, contra 35,53% de conservadores.
Na mesma ordem, para o Sul de Minas, 39,13% contra 43,14%. Na Mata ha uma surpreendente igualdade: 42,11%
para cada agremiação. Como exceção digna de nota, a vantagem pró-conservadores no âmbito da região dos
vales do Jequitinhonha-Mucuri-Doce, onde, contra 29,03% de liberais, tem os conservadores 48,39%4. O geral da
Província apresenta 35,15% de liberais contra 41,09% de conservadores. Estes dados refletem uma tendência apenas,
cumpre que se ressalte, uma vez que ficaram "sem informação", no que tange a filiação partidária, cerca de 25% dos
dados, o que obriga a uma postura cautelosa na interpretação dos mesmos.
Por sua vez, o perfil ocupacional dessa elite permite que se tenha uma idéia de ate que ponto a natureza da
atividade econômica exercida pelo indivíduo influencia sua opção - sua identidade -partidária. Utilizando os critérios
propostos por Jose Murilo de Carvalho, adaptando-os, as treze profissões arroladas (advogado, magistrado, fazendeiro,
medico, padre, militar, bacharel, professor, funcionário publico, comerciante, jornalista, industrial e engenheiro civil)
foram agrupadas segundo o "possível impacto da ocupação sobre a orientação da elite com referenda ao estado"5, ou
seja, de acordo com a origem da renda advinda de cada ocupação. De tal forma que três grandes grupos ficaram
configurados, conforme demonstra a Tabela II.

TABELA II

FILIAÇÃO PARTIDÁRIA POR NATUREZA DA RENDA (%)

LIBERAIS CONSERVADORE S/INFORMAÇÃO TOTAL


S
Estado 25,-80 47,58 27,42 41,61
Profissoes 43,24 45,95 10,81 37,24
Economia 36,59 34,15 31,70 13,67
Outros 31,81 40,91 27,27 07,38

Profissões: advogados, médicos, comerciantes, jornalistas e engenheiros civis. Estado: magistrados,


padres, professores, militares, funcionários públicos. Economia: fazendeiros e industriais. Outros:
bacharéis e sem informação. Porcentagem referida ao total de profissões aferidas.

Um dos pontos mais importantes a ser destacado e, primeiramente, a constatação de que os setores
produtivos tem baixa representação na elite - o que antecipa, para o período do Império, a tendência
verificada por J.Wirth, D.Fleischer e Amilcar V.Martins, valida para a República Velha6. Mas e também
surpreendente a relativa semelhança na representação dos outros dois setores, que aglutinam, de um lado,
as profissões urbanas, e de outro, a burocracia estatal. Sugere mesmo uma partilha consciente dos
assentos nas Assembléias, por parte dos representantes desses dois setores. Por suas vez, e de se ressaltar a
semelhança do peso proporcional dos partidos no âmbito tanto do grupo "profissões", quanto no
"economia". O destaque, enquanto fenômeno importante, fica para a maioria de conservadores na
categoria "governo", o que vem confirmar parcialmente uma visão comum n

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literatura sobre os partidos políticos imperiais, que e a de considerar a burocracia como o locus por
excelência de onde se recrutavam os quadros do Partido Conservador7, se bem que coloque em xeque vários
outros estudos, nem sempre necessariamente amparados por verificação empírica.
A melhor compreensão do fenômeno partidário no Império, a descrição da elite política mineira
desse período, e a verificação das coalizões sociais que formam os partidos são algumas das perspectivas que
esse trabalho pretende oferecer. Ao se propor desvendar uma realidade ha muito esquecida, ele visa resgatar
a história política de Minas do século XIX do segundo piano - mero interregno entre, de um lado, a Minas
colonial, da civilização urbana e "mais democrática", impar no contexto brasileiro, e, de outro, a Minas dos
arranjos políticos da Republica Velha, de onde eram recrutados os quadros políticos de ascendência
nacional, que cristalizariam uma tradição.

NOTAS

1- Ver, entre outros, MARTINS, Roberto B. Growing in Silence: of nineteenth-century Minas Gerais.
Tese de doutoramento apresentada a Universidade de Vanderbilt, 1980. SLENES, Robert. Os
múltiplos de porcos e diamantes: a economia escravista de Minas Gerais no século XIX.
CADERNOS IFCH-ÚNICAMP, n.17, jun.1985, e LUNA, Francisco V. & CANO, Wilson.
Economia escravista em Minas Gerais. CADERNOS IFCH-ÚNICAMP, n.10, out., 1983.
2- Apud MARTINS, Amílcar V. & MARTINS, Roberto B. Slavery in a non-export Economy:
Nineteenth-century Minas Gerais revisited. In: HISPANIC AMERICAN HISTORICAL REVIEW,
v.6, n.3, p. 538, ago.1983.
3- Justice seja feita a Francisco IGLESIAS, com seu Política econômica do governo provincial
mineiro (1835-1889). Rio de Janeiro: MEC/INL, 1958. De mais a mais, os estudos sobre Minas
no século XK se restringem a temas pontuais, tais como a siderurgia, a imigração, a guarda
nacional, a produção de viveres para a corte, a cafeicultura e a industrialização, demografia,
mão-de-obra, os viajantes estrangeiros, os partidos republicanos, mas nunca sobre a política e os
partidos imperiais.

4- Mas, nesse caso, são 22,58% de dados desconhecidos, o que obriga a um certo cuidado era
afirmações muito positivas a esse propósito.
5- Cf. CARVALHO, Jose Murilo de. A construção da ordem; a elite política imperial. Brasilia:
UNB, 1981, p.76.
6- FLEISCHER, David V. O recrutamento político em Minas Gerais, 1890-1918. Belo Horizonte:
UFMG, 1981; WIRTH, John. O fiel da balança, Minas Gerais na Federação Brasileira
(1889-1937). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. cap.5,;e MARTINS, Amilcar V. A economia
política do café com leite (1900-1930). Belo Horizonte: UFMG/Proed, 1981. cap.II.
7- Essa e a visão de Caio Prado Jr. Evolução política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1978; de
Raymundo FAORO. Os donos do poder. Porto Alegre: Ed. Globo, 1985 e também de
CARVALHO, op.cit., entre outros.
8- Ver o resumo dessas posições em CARVALHO, op.cit., p.155-8 e MATTOS, Dinar Rohloff de.
0 tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, Brasilia: JNL, 1987. p.130-1, notas 84 e 85.

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COMUNICAÇÃO

DA HISTÓRIA AO MITO:
Dimensão simbólica da política republicana no Brasil

Luiz Vitor Tavares de Azevedo


DEHIS/UFOP

Neste texto destacam-se alguns trabalhos e artigos recentes que abordam a relação entre história -
mito - "sacralização da política" concernente ao período republicano no Brasil.
Atualmente fala-se muito em "crise das ideologias", em meio a tantas reflexões sobre o tema.
Destaco um trecho de um artigo publicado no Jornal do Brasil de autoria do Frei Betto, dominicano e
teórico da Teologia da Libertação, onde afirma:
O marxismo-leninismo deixou de ser uma ferramenta de transformação da história para
tornar-se uma espécie de religião secularizada, defendida em sua ortodoxia pelos
sacerdotes da escola do Partido e cujos princípios eram ensinados como dogmas
inquestionáveis. No sistema educacional, a ortodoxia virou 'ortofonia' - as portas do
século XXI, repetia-se nas salas de aula da República Democrática Alemã (...) o
monismo do manual de Plekhanov, 'A Concepção Materialista da História', de 1895,
e as lições mecanicistas da 'História do Partido da União Soviética', publicada por
Stalin em 1938. Em sumo, em nome da mais revolucionária das teorias políticas
surgidas na história, ensinava-se a 'não pensar'. Assim como certos teólogos
tridentinos acreditavam que a leitura da "Suma Teológica', de São Tomas de Aquino era
suficiente para se aprender teologia, os ideólogos do Partido diziam que, uma vez
aprendida a lição oficial, não se fazia necessário conhecer nenhuma outra
corrente filosófica e nem mesmo outros teóricos marxistas. Trotski, Kautsky, Rosa
Luxemburgo, Giamsci eram nomes que suscitavam repulsa1.
Mais recentemente Nikolai Burharin passou a ser considerado mais do que Trotski, o mais
efetivo adversário do stalinismo2.
Por outro lado e preciso enxergar também, como afirma Tom Laughwood, que "a queda da
ineficiente Utopia socialista, ao invés de abrir caminho para o realismo, promove a Utopia do capital"1.
Leandro Konder, ao tratar da recepção das idéias de Marx no Brasil, ate o começo dos anos
trinta*, destaca o aspecto de que a dogmatica stalinista enconlrou aqui campo fertil em meio ao credo
positivista, hostil a especulações filosóficas que se afastam do contato direto com os "fatos" e os "danos",
9- LPH -
considerando-as suspeitas de serem "metafísicas". Apreendendo "fatias da realidade", o modo

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139

de pensar de tipo positivista se dispõe a esgotá-las, ate chegar a uma visão capaz de ser exposta em
formulas sucintas, sintéticas, cristalinas, nas quais se expressa a essência "útil" e "positiva" da realidade
setorial abordada.
Em contrapartida, o modo de pensar dialético parte da idéia de que as realidades setoriais existem
em mudança e os processos de transformação das diferentes coisas são interligados, de modo que e ilusório
tentar-se evitar a discussão sobre os problemas globais, que se referem as questões mais abrangentes,
relativas a aspectos globais da existência humana. Sem uma certa visão dinâmica e provisória (mas
imprescindível) do todo, e impossível avaliarmos a extensão de cada parte. Por isso, as tarefas que a
filosofia enfrenta nunca podem ser integralmente assumidas pelas ciências, que, para serem eficazes, se
limitam ao campo particular de cada uma delas.
A dialética pressupõe a capacidade de o sujeito revolucionário transformar a realidade objetiva e ,
ao mesmo tempo, se transformar: isso não se consegue automaticamente, e preciso tomar iniciativas
fecundas para se obter tal resultado. O sujeito que cede a tentação de se instalar numa crença
excessivamente segura, então, passa a tentar comandar com arrogância a mudança a da sociedade (dos outros)
sem enfrentar o desafio de promover sua própria mudança, sem se empenhar em sua "autotransformação"
(como preconizava Marx).
Ainda segundo Konder, o stalinismo e o modo de pensar do tipo positivista se uniram (apesar de
algumas divergências) em torno do esvaziamento da dialética, impondo-lhe uma derrota histórica muito
grave.
Alias, este mesmo modo de pensar de tipo positivista atuou no campo da luta simbólica pela
construção do mito de origem da Republica no Brasil como bem demonstra a brilhante analise de Jose
Murilo de Carvalho em "A Formação das Almas, o Imaginário da Republica no Brasil"5. Segundo o autor,
varias vertentes usavam de maneiras muito distintas o instrumento simbólico. A vertente liberal quase não se
utilizava de símbolos, porque a ela não interessava que a República fosse popular. As outras duas vertentes,
a jacobina e a positivista, foram as que mais particularmente investiram nessa guerra de símbolos. A
vertente jacobina inspirava-se diretamente na Revolução Francesa, no uso da alegoria feminina da
Republica ou na preferência pela Marselhesa. Comparados aos jacobinos, os positivistas eram ainda mais
empenhados. Eram positivistas aqueles que haviam formulado mais claramente uma idéia de Republica
incluindo um projeto de utilização da arte como instrumento de doutrinação política. Foram positivistas os
que mais sistematicamente empregaram esses mecanismos, formando pintores e escultores.
Uma das lutas historiográficas mais árduas se deu pela fixação dos heróis republicanos brasileiros.
Aqueles que participaram diretamente do "15 de novembro", que eram, evidentemente, os candidates mais
óbvios a heróis da Republica, não tiveram muito êxito nesse campo. Tentou-se exaltar Deodoro, Floriano
Peixoto, mas nenhum deles se tomou muito popular, talvez porque um dos pecados originais da "Republica
que não foi" tenha sido o de não ter contato com a participação popular, mais efetiva, conforme a análise
desenvolvida por Jose Murilo de Carvalho em trabalho anterior6.
A República não obteve sucesso nas tentativas de se legitimar através de simbologias. Só logrando
êxito no momento em que os historiadores optaram por Tiradentes. Ele uniu Independência e República e,
mais que isso, foi cristamente falando um mártir, tomando-se também uma espécie de "totem cívico". Seu
sacrifício vicário aparece identificado, explicitamente, com a imagem de Jesus Cristo. No momento de criar
um herói de consenso que a representasse no imaginário popular, na hora de lutar por um mito de origem, a
República teve que socorrer-se com alguém fora do movimento. Isso porque ela nasceu cercada de muitos
conflitos e com exígua participação popular.
Sem querer mitificar história, pode-se aceitar a idéia de que os mitos se renovam, porque as
situações que eles simbolizam se repetem, não querendo também cair num mecanicismo

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empobrecedor.
Ao caracterizar o Estado pós-1930 no Brasil como um Estado de Compromisso, F. destaca
que foi a incapacidade de auto-representação dos setores dominantes a suas clivagens internas que
possibilitaram o surgimento de um regime político centrado "na personalização do poder", na "imagem
(meio real e meio místico) da soberania do Estado sobre o conjunto da sociedade" e da "necessidade da
participação das massas populares urbanas"7. Este aspecto das místicas da personalização do poder
esteve presente em graus diversos em mais de uma experiência política na América Latina: o conteúdo
mítico foi mais forte na Argentina de Perón e Evita, com menor intensidade em Vargas e muito menos
ainda com Cárdenas, no México, onde o mito foi a própria Revolução Mexicana.
Ernesto Laclau chama a atenção para os componentes não classistas, tais como as tradições
populares, que compõem o universo de demandas políticas mobilizadas pelo populismo através do
princípio articulatório que unifica essas contradições não classistas com os conteúdos que fazem pane do
discurso político e ideológico das classes dominadas. Neste sentido afirma o autor: "...o elemento
estritamente 'populista' não reside no movimento como t*\ nem em seu discurso ideológico
característico - que, como tais, terão sempre um pertencimento de classe - e sim em uma contradição não
classista especifica articulada a esse discurso..."8
Esse conteúdo não classista no discurso veicula significações bastante ambíguas, como a
própria noção de "povo" e todas as significações relacionadas ao imaginário coletivo em confluência com
as tradições populares, "resíduo de uma experiência histórica única e irredutível e (que), enquanto tal,
constituem uma estrutura de significados mais solida e durável do que a própria estrutura social. Esta
dupla referenda ao povo e as classes constitui o que poderíamos denominar de dupla articulação do
discurso político"'.
Num trabalho intitulado "Sacralização da Política", Alcir Lenharo10 afirma que, ao se tentar uma
síntese da construção da figura mítica de Vargas, observou-se estar ela acoplada em dois pianos distintos,
citando Monica P. Velloso: "de um lado a magia, a intuição, a profecia e a predestinação; de outro,
prevalece o espírito de racionalidade, de planificação e de previsão"11. O autor destaca
a utilização alegórica de uma imagem exaustivamente empregada no discurso político, por
sinal muito cara ao imaginário do cristianismo, desde seus primórdios: o corpo. A nação, por exemplo, e
associada a uma totalidade orgânica, a imagem do corpo uno, indivisível e harmonioso; o Estado
também acompanha essa descrição; suas partes funcionam como órgãos de um corpo tecnicamente
integrado; o território nacional, por sua vez, e apresentado como um corpo que cresce, expande,
amadurece; as classes sociais mais parecem órgãos necessários uns aos outros para que funcionem
homogeneamente, sem conflitos; o governante, por sua vez, e descrito como uma cabeça dirigente e,
como tal, não se cogita em conflituação entre a cabeça e o resto do corpo, imagem da sociedade12.
Prosseguindo em sua analise, Alcir Lenharo observa que o corporativismos e apóia inteiramente na
imagem de organicidade do corpo humano. As partes que compõem a sociedade foram pensadas tal
como o relacionamento dos órgãos do corpo humano: integralmente e sem contradições. O objetivo do
projeto, portanto, visava neutralizar os focos de conflitos sociais, tornando as classes (órgãos)
solidarias umas com as outras. Ao lado dessa referenda, uma outra também ganha ressonância: toda
uma pedagogia do corpo foi sendo detalhada, de modo a colonizá-la para a produtividade do
trabalho. De uma aproximação estetizante

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generalizada, não será difícil acompanhar as passadas que levam a instrumentalização


do corpo, também militarizado e cada vez mais apto para o trabalho. O que mais choca e o
endereçamento religioso que esse tratamento recebe. Modelado para o trabalho, o corpo e
disposto valorativamente enquanto oblação litúrgica; cada cidadão e convidado a dar sua vida,
verter seu sangue para a salvação do corpo maior da pátria, se necessário.

E ainda:
a sacralização da política visava dotar o Estado de uma legitimidade escorada em pressupostos
mais nobres que os tirados da ordem política, funcionando como escudo religioso contra as oposições
não debeladas. Da mesma forma, os canais convencionais, alimentados pela religiosidade, podiam ser
utilizados como condutores mais eficientes dos novos dispositivos de dominação que o poder
engendrava13.
Como ponto de inflexão na história do período republicano, Vargas e referencial obrigatório
para o processo de consolidação do capitalismo no Brasil através da criação também de um imaginário
político a ele associado - o "trabalhismo". De acordo com a tese de Pedro Cezar D.Fonseca,
o estudo dos discursos de Vargas remete diretamente a questão do papel do individuo na
construção do real. Mas este transcende, embora se suponha, a genialidade do estadista. E o estudo
sobre Vargas toma-se o desvendar da construção do capitalismo, das possibilidades da
industrialização, da factibilidade do nacionalismo, da capacidade de integrar socialmente as grandes
massas pela política de desenvolvimento econômico14. Na abordagem de Ângela de Castro Gomes,
foi só a partir do Estado Novo que sua (Vargas) figura come;ou a ser projetada como a de
um grande e indiscutível líder nacional. Em 1938, a máquina política do Estado, tendo como cabeça do
DIP, começou a articular, possivelmente, uma das mais bem sucedidas campanhas de propaganda
política de nosso país. Getulio Vargas era seu personagem central, e desde este ano ate 1944 o
empreendimento não cessou de crescer. Festividades, cartazes, fotografias, artigos, livros, concursos
escolares, e toda uma enorme gama de iniciativas foi empreendida em louvor do chefe do Estado
Novo. Seu nome e sua imagem passaram a partir daí a encarnar o regime e todas as suas realizações.
As palestras de Marcondes certamente em muito contribuíram para tal divulgação, mas elas
podem ser particularmente valiosas para o entendimento de uma faceta especial desta construção: a
de Vargas, 'pai dos pobres' e líder das , massas trabalhadoras. O Ministro do Trabalho iria
caracterizar um certo tipo de imagem do Presidente, e mais ainda um certo tipo de postura diante do
povo trabalhador13.
É ainda Alcir Lenharo quem diz que dentro do imaginário religioso e católico do povo
brasileiro
se encontra o culto do amor a pátria, a fé na pratica e no futuro, o apostolado para a pátria, a
predestina;ao do líder, o fim dos antigos intermediários entre o poder e o povo e a nova relação - de
comunhão - entre Getulio e as massas, as novas leis, atos e atitudes aprovados por todos, concretização
da universalidade eclesial ("Pai, que todos sejam um"). O discurso do poder penetra e caminha por
dentro do conjunto de símbolos, imagens e personagens familiares ao imaginário cristão. Sem

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querer calcar imagens sobre imagens (O discurso do poder opera muito mais àvontade com o
movimento ambíguo delas), e possível perceber uma projeção da pessoa de Getulio a um piano de
divinização, desdobrável em uma trindade d» imagens que se interpenetra e se contem em uma só:
Getulio ora corresponde S imagem do Pai, que vela e protege pelos filhos, imagem que recebe seu
acabamento principal na figura do grande legislador social; ora identifica-se mais com a imagem do
Filho, líder que intervém na estória, predestinadamente, o Messias que veio pai, mudar seu fluxo e
afastar outros intermediários; ora corresponde a figura do Espírito a iluminar os caminhos dos seus
subordinados para uma nova ordem, amparada por outras luzes. Até mesmo a grandeza futura da
pátria parece assemelhar-se ao tempo da escatologia, em que a bem-aventurança e finalmente
alcançada". A morte de Getulio, assim como mais tarde a de Tancredo Neves, insere-se na cadeia
simbólica que da um sentido de tragédia a história do Brasil republicano: Tiradentes - Vargas.
Tancredo. A idéia do sacrifício, da martirização de figuras políticas aparece com freqüência no
imaginário político.
Num artigo publicado no Jornal do Brasil, o pesquisador do IUPERJ, Luis Eduardo Soares,
afirma:
Getulio saiu da vida, pelas próprias mãos, para entrar na História. A morte, foi, pan
ele, artifício da virtude. Acuado, atingido em sua honra e em seu poder, acusado de
trair o interesse comum e o bem publico para beneficiar projeto egoísta, individual,
encontrava-se, em agosto de 54, politicamente morto e, paradoxalmente,
desindividualizado - tornara-se mais um. Parecia condenado a descer do Palácio do
Catete para fundir-se, virtualmente anônimo, as multidões solitárias. Antecipou-se ao
golpe, golpeando-se a si mesmo atingindo seu próprio corpo. Logrou, pelo
suicídio, reviver politicamente e sobreviver a seus adversários. Voltou a
individualizar-se, distinguindo-se como objeto da comoção nacional e ator do novo
processo que desencadeou, enquanto produtor de fatos significativos e protagonista
central de seus desdobramentos, mesmo in absentia. A assunção do lugar
determinantes de agente ou de sujeito do processo simbólico-político correspondem,
paradoxalmente, a negação radical das razoes egoístas (em sentido pragmático-
utilitário, no psicológico) da própria ação. Esse paradoxo fundiu Getulio ao homem
publico Vargas; os interesses privados foram subsumidos pelo interesse publico (...).
O corpo baleado de Vargas tomou-se o próprio templo do espírito publico. A
verdadeira carta que legou a posteridade foi a história política reescrita a luz - ou a
sombra - de sua pena (no duplo sentido da palavra).
Reinventando o passado, pode injetar sentido no future concorrendo para
criá-lo (...). Na saga de Vargas, a virtude moldou a fortuna, mas ao preço de sua
razão: o vitorioso tornou- se vitima imediata da própria vitoria. O paradigma
acionado e o sacrifício cristão que redime todo o povo. A sociedade brasileira
entende, em seu conjunto, muito bem essa linguagem. Destinatária do gesto nobre, a
multiplicidade humana que coabita o território nacional habilita-se a experimental
uma unidade imaginaria. A morte de Vargas, refratada simbolicamente pela
interpretação popularizada, provoca um sentimento de fraternidade, contrapartida da
amarga orfandade compartilhada, que e esteio da construção política de nossa
identidade cultural. O ódio do pai que abandona, suicidando-se, e transferido aos
seus adversários, sobre os quais pesa o estigma do algoz. Getulio sobrevive como

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refernciaa central da própria história da nacionalidade, alem do bem e do mal.17


o mesmo autor o calvário de Tancredo reedita o martírio de Vargas - em certo sentido, pelo avesso:
joguete do destino, ao invés de senhor da própria morte; afastado, pela tragédia, de toda interferência
nos rumos políticos da posteridade, ao invés de artífice do futuro justamente pelo recurso a própria
exclusão; reconduzido ao domínio privado, que passa a subsumir a dimensão publica constitutiva da
figura do presidente, ao invés da conversão do corpo privado em espírito público, observada na saga
de Vargas. Ambos os heróis, por sua atividade ou passividade, por obra da virtude ou desígnio da
fortuna (e vontade divina, completaria o imaginário popular), remetem ao paradigma cristão e
guardam, portanto, algum vestígio semântico da escatologia messiânica. Ambos, por seu sofrimento,
na lenta agonia ou no súbito e funesto desenlace, expiam nossas culpas, a terrível responsabilidade por
tantas injustiças sociais, ambos, por performances míticas análogas e opostas, prometem a redenção do
povo. Por isso, ambas as cerimônias fúnebres transformaram-se em extraordinárias consagrações
populares e puderam ser vividas como verdadeiras celebrações religiosas do pacto mítico fundador da
nacionalidade18.

CONCLUSÃO

Lima Barreto, um dos escritores-cidadãos mais críticos em relação ao significado da


República no Brasil, criou, através do personagem Policarpo Quaresma, um dos melhores retratos do
contraditório e paradoxal sentido da "coisa publica" aqui na Bruzundanga. Como a história não e só o
dado imanente mas também construída pelo que dela se imagina, Policarpo tornou-se, ironicamente,
um herói incompreendido, perdido "atrás da miragem de estudar a pátria", para afinal constatar que "a
pátria que quisera ter era um mito, era um fantasma criado por ele no silencio de seu gabinete"".
Na verdade, uma questão importante esta em saber como se opera a passagem da história ao
mito, como opera esse misterioso processo de heróificação, que resulta na transmutação do real em sua
absorção no imaginário...tomando-se a interrogação, no dizer de Raoul Girardet20, mais delicada ainda,
pela presença, mais ou menos importante mas sempre detectável nesse tipo de construção mítica, de
certa parcela de manipulação voluntaria. Ainda segundo Girardet,
os mitos políticos de nossas sociedades contemporâneas não se diferenciam muito, sob esse aspecto,
dos grandes mitos sagrados das sociedades tradicionais. A mesma e essencial fluidez os caracteriza,
ao mesmo tempo que a imprecisão de seus respectivos contornos. Imbricam-se, interpenetram-se,
perdem-se por vezes um no outro. Uma rede, ao mesmo tempo sutil e poderosa de liames de
complementaridade, não cessa de manter entre eles passagens, transições e interferências. A
nostalgia das idades de ouro findas desemboca geralmente na espera e na pregação profética de sua
ressurreição. É bem raro, inversamente, que os messianismos revolucionários não alimentem sua
visão do futuro com imagens

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ou referencias tiradas do passado. O passo e rapidamente dado, por outro lado denúncia dos
complôs maléficos ao apelo ao Salvador, ao chefe redentor;é a este que se acha reservada a
tarefa de livrar a cidade das forcas perniciosas que pretendem estender sobre ela sua
dominação. Do mesmo modo que o mito religioso, o mito político aparece como
fundamentalmente polimorfo: é precioso entender com isso que uma mesma série de imagens
oníricas pode encontrar-se veiculada por mitos aparentemente os mais diversos; e preciso
igualmente entender que um mesmo mito e suscetível de oferecer múltiplas ressonâncias e não me
numerosas significações(...)
O poder de renovação da criatividade mítica e, de fato, muito mais restrito" do que as
aparências poderiam fazer crer. Se o mito e polimorfo, se constitui um, realidade ambígua e
movente, ele reencontra o equivalente de uma coerência nas regras de que parece depender o
desenrolar de sua caminhada. Esta pode set representada e apresenta-se efetivamente como uma
sucessão ou uma combinação de imagens. Mas nem essa sucessão nem essa combinação escapam
a uma certa forma de ordenação orgânica(...)
Assim, o tema do Salvador, do chefe providencial, aparecera sempre associado a
símbolos de purificação: o herói redentor e aquele que liberta, corta os grilhões, aniquila os
monstros, faz recuar as forcas mas. Sempre associado também a imagens de luz - o ouro, o
sol ascendente, o brilho do olhar - e as imagens de verticalidade - o gládio, o cetro, a arvore
centenária, a montanha sagrada. Do mesmo modo, o tema da conspiração maléfica sempre
se encontrara colocado em referenda a uma certa simbólica da macula: o homem do complô
desabrocha m fetidez obscura; confundido com os animais imundos, rasteja e se insinua;
viscoso ou tentacular, espalha o veneno e a infecção...21.
Na medida em que o discurso antipopulista centrou sua ação na figura de Vargas e
combatia acirradamente as diversas modalidades políticas nas quais se expressava seu
prestigio político - getulismo, trabalhismo, reformismo -, a oposição acabava dando
consistência ao mito que queria destruir.
A temática do corpo também aparece no discurso oposicionista: ao defender o principio da
homeostase social, ou seja, o estado de equilíbrio do organismo vivo em relação as suas varias
funções, Carlos Lacerda apresenta um quadro de distinção para os agentes responsáveis pela
normalidade das instituições: os "clínicos" - os políticos engajados na manutenção da saúde social,
e os "cirurgiões" - os militares sempre prontos a realizar intervenções cirúrgicas emergenciais mas de
efeito duradouro22.
A UDN, que empunhava nas suas campanhas políticas o higiênico "lenço branco" para evitar
o maléfico contagio popular e populista, acabou contaminada. pelo estilo mítico ao indicar Jânio
Quadros como candidato as eleições presidenciais de 1960.
Em meio a volatividade das referencias políticas, podemos concluir, com Carlos Lessa, que a
democracia e uma palavra muito pouco discutida no processo político brasileiro. Basta
recuperar a memória recente da nossa transição democrática. A campanha das Diretas
Já, o maior fato político de massa do país, desemboca numa eleição indireta em que foi
possível praticar as excelências a avaliação maniqueísta: de um lado estava o do
Tancredo, que encarnava todas as virtudes; e de outro, o personagem que
temporariamente encarnava todos os defeitos: Paulo Maluf. Era uma corrida entre o
bem e o mal, em que toda a população torceu para o bem ganhar. Além de

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ganhar, o bem ainda morre, o que completa o quadro simbólico. Quer dizer: o mergulho para entender o
autoritarismo não foi feito porque foi substituído pelo gesto ritual da vitoria do bem sobre o mal. O
início da transição para a democracia foi assim pouco mais do que um ritual vudu, onde se transferiu
para Maluf todo o mal da ordem autoritária. No piano mágico, foi exorcizado o mal23. Donde se conclui
que "yo no creo en brujás pero que las hay, las hay..."

NOTAS

1-. BETTO, Frei. Os donos da verdade socialista. Jornal do Brasil, 16/09/90, p.9. Idéias/Ensaios
(grifos nossos).

2- COHEN, Stephen. Bukharin e a Revolução Bolchevique; ama biografia política. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1990.
3. LAUGHWOOD, Tom. Troca de Utopias. Jornal do Brasil. 0;?./09/90; p.9-10 (Idéias/Ensaios.)
4. KONDER, Leandro. A derrota da dialética. Rio de Janeiro: Campus, 1988.
5. CARVALHO, Jose Murilo. A Formação das almas; o imaginário da Republica, no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
5.___________________ , Os bestializados; o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.
7- WEFFORT, Francisco. O populismo na político, brasileira. 2. ed. Rio de Jáneiro: Paz e Terra,
1980. p. 69.
8- LACLAU, Ernesto. Para uma teoria do populismo. In: Política e ideologia na Teoria marxista.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 171.
9- Idem, ibidem, p. 174 (grifos do autor).
10-LENHARO, Alcir. Sacralização da política. 1. ed. Campinas: Únicamp/Papirus, 1986.
11-VELLOSO, Monica P. Cultura e poder político. In: Estado Novo-ideológico e poder. Rio clc
Janeiro: Zahar, 1982. p. 97. Apud LENHARO, A., op. cit.
12-LENHARO, A., op. cit. p. 16-7.
13-Idem, ibidem, p. 18.
14-FONSECA, Pedro Cezar D. Vargas; o capitalismo em construção, São Paulo: Brasiliense, 1989.
p. 467.
15-GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo-. São Paulo, Vértice, Ed. Revista dos
Tribunais; Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988. p. 238-9.
16-LENHARO, A., op. cit., p. 194-5. Sobre a questão da imagem do pai em sua relação com
o
aparecimento da religião, ver Sigmund FREUD, Totem e tabu e outros trabalhos.Rio de Janeiro:
Imago, 1974. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de S. Freud, vol.
XIII.)
17-SOARES, Luis Eduardo. Os dois corpos do presidente. Jornal do Brasil,
Idéias/Ensaios. p. 8-9.
18-Idem, ibidem, p. 9-10.
19-BARRETO, Afonso H. Lima. Tristefim de Policarpo Quaresma. p.235 Apud
PRADO, .Antonio Arnoni, Lima Barreto, o crítico e a crise. São Paulo: Martins
For.tes, 1989, p. 9.
20-GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.
21-Idem, ibidem, p. 15 e 17.
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22-AZEVEDO, Luiz Vitor T. Carlos Lacerda e o discurso de oposição na


Tribuna da Imprens a

(1953-1955). Niterói:UFF, 1988. (Dissertação de Mestrado em História.)


23- LESSA, Carlos. Quando o Estado vem antes da Nação. Jornal do Brasil, Caderno B,
1989.

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COMUNICAÇÃO

O NAUFRÁGIO DO MARIALVA:
Ainda inédito de Tomás Antônio Gonzaga

Ronald Polito

―queimei o coração, que He mais q’. tudo (...)


Ah como estou diverso!‖
(fragmento do poema)

INTRODUÇÃO

A obra de Tomas Antonio Gonzaga continua a exigir um tratamento editorial mais minucioso
com vistas ao estabelecimento definitivo de todos os seus textos. Autor usualmente conhecido pelos
poemas que dedicou a Maria Dorotéia - os poemas reunidos sob o título Manila de Dirceu -, Gonzaga
escreveu ainda as formosas Carlos Chilenas, cuja autoria não e mais um fascinante problema crítico.
Mas Gonzaga escreveu também outros textos em geral desconhecidos mesmo pelos interpretes de sua
literatura. Dentre eles anotamos seu Tratado de Direito Natural e sua Carta sobre a Usura.
Afora esses trabalhos, a tradição critica veio - lhe imputando, entre outros, a autoria de um Tratado
sobre a Educação, um poema a Virgem Conceição e um poema sobre o naufrágio do Marialva,
navio português que naufragou em Moçambique na primeira década do século XIX. Ainda hoje seu
Tratado sobre a Educação continua perdido, mas o poema sobre o naufrágio do navio Marialva,
localizado a algumas décadas pelo historiador e filólogo Rodrigues Lapa, deve ser reunido as suas
Obras Completas, sem o que as interpretações de sua vida e de sua obra podem permanecer parciais ou
insuficientes.
Esta comunicação visa dar uma breve noticia sobre o poema e informar acerca dos
procedimentos adotados para seu estabelecimento, pois O Naufrágio do Marialva ainda continua
inédito e desconhecido pela maioria dos estudiosos da área e nunca chegou a ser publicado
integralmente.

1. BREVE HISTÓRICO DO POEMA

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É necessário reafirmar que o trabalho desenvolvido por Rodrigues Lapa em torno do


estabelecimento de texto da obra de Tomás Antonio Gonzaga continua ainda hoje sendo um marco
não superado. Por ironia do destino, foi preciso que a obra e a biografia do poeta esperassem 150 anos
para que um conterrâneo seu viesse ao Brasil e solucionasse a maioria dos problemas inerentes ao
estabelecimento de seus textos, coisa que a intelectualidade brasileira não foi capaz de fazer com o
mesmo apuro no período anterior e, depois de Rodrigues Lapa, pouco avan9ou no sentido <je
aperfeiçoar ainda mais seu trabalho.
E como complemento deste empreendimento arquitetônico que foi o de Lapa em torno da obra
de Gonzaga, o historiador e o filólogo português ainda foi agraciado com o que ele considerou uma das
maiores felicidades de sua vida de pesquisador:, encontro, entre os manuscritos da " Biblioteca
Nacional, em 1967, do poema inédito de Gonzaga O Naufrágio do Marialva. Este poema, adquirido
pela Biblioteca Nacional em 1910 de um particular parece nunca ter sido visto por nenhum estudioso
brasileiro ate esta data e mesmo depois dela. Em outros termos: simplesmente nenhum de nossos
intelectuais chegou sequer a verificar o fichário da Biblioteca Nacional, já que o encontro do poema por
Lapa não foi fruto de uma busca intensa, pois o mesmo lá se encontrava catalogado a espera apenas
de que alguém abrisse uma gaveta de fichário...
Desde meados do século passado se tinha noticias de que Tomas Gonzaga havia escrito o
poema O Naufrágio do Marialva. Essa informação consta em.histórias literárias e em edições de obras
de Gonzaga, como na edição de Marília de Dirceu., de 1862, organizada por Joaquim Norberto, ou
no livro Filinto Elísio e os Dissidenies da Arcádia: a Arcádica Brasileira, de Teófilo Braga. Com a
virada do século parece que este poema caiu no esquecimento e mesmo depois de ser encontrado por
Rodrigues Lapa -'.e continua não referenciado nas obras atuais de história literária. Confira-se, entre
outros, sua ausência na obra de Jose Guilherme Merquior, De Anchieta a Euclides: Breve História
da Literatura Brasileira.
O sucinto e primoroso artigo que.Rodrigues Lapa publicou sobre o poema de Gonzaga, no
Suplemento Literário do Minas Gerais, em 19.O6.1967, e referencia obrigatória para o trabalho de
estabelecimento deste texto. Nesse artigo podemos encontrar não apenas um breve relato acerca do
naufrágio do navio Marialva, as possíveis motivações que levaram Gonzaga a escrevê-lo e a
transcrição de algumas dezenas de versos do poema, como igualmente.o deslindamento de um
problema autoral. Com efeito, 6 autor conclui que o. poema de Gonzaga dedicado a Virgem
Conceição, referido anteriormente entre os inéditos do poeta, não e nada mais que uma parte do,
próprio poema O Naufrágio do Marialva, pois o primeiro canto do Naufrágio e dedicado a Virgem
a modo de uma oração para que proteja os navegantes Portugueses. No mesmo artigo, Lapa indicara
sua intenção de "preparar o texto par uma edição critica", o que ainda não tivera "ocasião de fazer".
Ao :que nos consta, consultando os estudos biobibliográficos sobre Rodrigues Lapa, esse trabalho
nunca foi realizado. É exatamente esta a tarefa que nos propusemos desenvolver.

2. O NAUFRÁGIO DO MARIALVA E A OBRA LITERÁRIA DE GONZAGA

A. A Obra Literária

A importância do poema O Naufrágio do Marialva para a compreensão da obra e da


biografia de Tomás Antonio Gonzaga não deve ser minimizada. Apesar da avaliação de Rodrigues
Lapa com a qual concordamos, ao considerar o poema do ponto de vista literario3 sem 'maior
significação, o autor adverte sobre a relevância do mesmo para uma melhor compreensão da biografia
de Tomas Gonzaga, sendo o único texto literário que nos restou do período em que viveu em

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Moçambique (1792-/1809/). Afora este fato, evidentemente, algumas passagens do poema


não estão isentas de certa qualidade estética, principalmente aquelas em que o autor descreve grandes
panoramas marítimos.
£ necessário anotar o significado do mar e das peripécias marítimas na obra de Gonzaga em
sintonia com aquilo que poderíamos considerar uma particularidade da mentalidade portuguesa do
período moderno - o fascínio pelas grandes aventuras marítimas -, o autor, tendo cruzado o Atlântico
pelo menos 4 vezes durante sua vida, parece ter guardado fortes impressões dessas viagens. Isto pode ser
verificado por mais de um poema no livro Marilia de Dirceu em que ele nos traça grandes quadros
marítimos e nos revela conhecimentos náuticos adquiridos como que a espera de se manifestarem mim
vasto painel épico. É assim que podemos ver o poeta buscando preparar Marilia para cruzar com ele os
mares e ir ao encontro de seus "saudosos lares", como no poema 55 das Obras Completas (edição de
1957):

Veras ao deus Neptuno, sossegado,


aplainar co tridente as crespas ondas;

ficar como dormindo o mar salgado;


verás, verás d'alheta
soprar o brando vento;
mover-se o leme, desrinzar-se o linho,
seguirem os delfins o movimento,
que leva na carreira
o empavesado pinho.

Alguns outros poemas do período em que viveu em Vila Rica ainda pintam cenas marítimas, mas
o exemplo e suficiente para essas considerações. O que desejamos indicar e esse fio de
continuidade entre seus poemas e que desemboca em seu empreendimento épico que e O Naufrágio
do Marilva. Igualmente, a relevância desse poema não se restringe estritamente a compreensão de suas
relações com o restante da obra poética de Gonzaga, nem tampouco com sua biografia, pois também
importa observar que o mesmo deve ser inserido no quadro da poesia épica arcádica no Brasil e em
Portugal da época.
Deve-se ressaltar este aspecto ou faceta do autor: tendo composto uma obra épica, Tomas
Antonio Gonzaga revela-se possuidor de uma pratica poética plural, alem do fato de nos ter legado
textos não literários em sentido estrito. Sua obra literária, portanto, inclui textos poéticos nos mais
diversos registros no interior do Arcadismo: poemas encomiásticos, líricos, bucólico-pastoris em
sentido estrito, o longo e hibrido poema trágico-herói-cômico que são as Cartas Chilenas e, por fim,
este poema épico.

B. O Poema

O Naufrágio do Marialva e urn texto incompleto, como alias quase todo o restante de sua obra
literária ou não. Restou-nos um fragmento (cerca de oitocentos versos) do que pode ter sido um poema
épico com aproximadamente dois mil versos decassílabos brancos. Nele e descrito o périplo do navio
português Marialva que afundou na entrada de Moçambique em 1802.
Segundo Lapa, o poema não foi escrito logo apos o fato. Gonzaga, que conheceu inclusive
sobreviventes do desastre, só o teria feito apos 1808. Os motivos que levaram o poeta a retornar aos
versos são difíceis de avaliar. No entanto, parece razoável, como sugere o mesmo Lapa, ter em mente

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a fuga da família real portuguesa para o Brasil como possível elemento a compor a motivação de
Gonzaga quando representa epicamente a "missão" portuguesa pelos mares e "avalia" o seu destino
histórico.
Do poema restaram-nos dois fragmentos do Canto I2 e os Cantos 35 e 49. Ainda não foi
encontrada certamente a sua parte mais importante, o Canto 5°, em que seria descrito o naufrágio do
navio, quando Gonzaga lançaria mão do melhor que tinha para a pintura da grande cena final. 0
Canto I8, como se disse, e uma invocação a Virgem Conceição para que proteja o poeta e os
navegantes em sua missão. Um dos fragmentos do canto já anuncia a confrontação mitológica
principal que perpassa todo o poema: a luta entre Venus e Palas em suas tentativas de levar os
Portugueses aos prazeres ou aos trabalhos.
O Canto 2Q provavelmente descreveria a partida do navio de Portugal, a viagem pelo
Atlântico, sua chegada ao Rio de Janeiro e o encontro de Venus com os navegantes, quando ela lhes
prometeria os prazeres da cidade. O Canto 32 narra a intervenção de Palas, que busca levar os
Portugueses a fugir dos prazeres e fazer jus a memória dos "bons patrícios" e seu passado de
conquistas e glorias. Em realidade, consoante a diversos outros textos do autor, o longo discurso de
Palas, a ocupar quase todo o canto, estrutura-se segundo comparações históricas, mitológicas e
argumentos lógicos bebidos na retórica do tempo, todos recorrentes em sua obra.
Venus, indignada pela vitoria momentânea de Palas, arma uma emboscada para os
navegantes. Mal os Portugueses levantam ancora para partir da Cidade do Rio, Venus procura o nome
"que prezide no porto" e lhe pede que, em vingança, quebre o navio sobre as pedras. Toda a cena e
muito interessante porque a primeira tentativa de afundamento do navio ocorre precisamente na Ilha
das Cobras, Sugar que Gonzaga conhecia por certo com precisão, tendo passado ali quase três anos
preso. A divindade do porto toca as águas com o cetro e
as agoas correm
com forca nunca vista, e arrebatão
o grande Marialva sobre as pedras,
que rodeão a Ilha delatada,
que dá grande cidade está defonte,
e he uma fortaleza guarnecida,
que da Ilha das Cobras tem o nome.
O navio se salva por influxo
| da portectora Palas: vai dar fundo
num lugar a saída acomodado
que o Poço se appellida: novamente
as agoas o arrebatão, e vão pollo
em cima da restinga pedregoza
que parte com huma ilha inculta,
e breve que o nome tem dos Ratos.
O Canto 4a narrara basicamente as tentativas sucessivas de Venus em fazer mal aos
Portugueses. Mas com um porem: não destruindo-os de um único golpe, como a deusa esclarece,
"porque quero acaballos pouco a pouco / ao pezo successivo dos trabalhos, / que he mal inda peor q'. a
mesma morte". Neste canto estão as melhores cenas marftimas do poema, a antecipar o que o poeta nos
reservaria para o naufrágio propriamente dito.
Para Rodrigues Lapa, o poema de Gonzaga indicia o quanto ele estava mudado. É o próprio
poeta que nos diz no Canto 1°: "queimei o coração que he mais q'. tudo", para versos a frente
exclamar: "Ah como estou diverso! Muitas vezes / depois da fea noite tormentoza / apparece a

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manhaã serena, e limpa, / seguida por hum sol ardente, e claro." Igualmente, o fato de Gonzaga
abandonar Venus, a antiga divindade adorada pelo poeta nos versos para Marília, e aproximar -se de
Palas como deusa protetora dos Portugueses, indica não apenas uma oposição visível a Os Lusíadas,
mas igualmente o distanciamento de sua antiga orientação pelos prazeres e a opção por uma deusa
que e símbolo de contenção racional e equilíbrio. Por fim, o fato de Gonzaga riscar certos versos
talvez ousados do poema e sobrepor-lhes uma visão austera, apolínea, e interpretado por Lapa como
sinal de abandono de sua antiga orientação mais sensual.
Aqui não e o espaço para podermos discutir com minúcias o encaminhamento geral que
Lapa imprime a sua interpretação do poema. Anotamos apenas que os poucos elementos indicados por
Lapa não nos parecem suficientes para concluirmos acerca de uma mudança do poeta. Lembramos
inclusive a insistência com que Lapa sempre buscou encontrar exatamente os elementos desta
mudança, sem nunca tê-los detectado claramente.
Desse modo, se Marília sempre foi comparada a Venus e Cupido, sendo mesmo mais
poderosa que ambos, a pastora de Dirceu também foi comparada a Apolo, divindade que, do ponto
de vista dos valores que representa, se aproxima de Palas. Por outro lado, Gonzaga parece ter sido
um poeta que sempre buscou a adequação de certas representações em relação ao gênero poético que
praticava, o que pode explicar não apenas a adoção de Palas como deusa protetora dos Portugueses,
como também a maior contenção do poeta na descrição de cenas sensuais, o que talvez conviria
melhor ao seu empreendimento épico.
É possível, de antemão, indicar as principais linhas de forca interpretativas que buscaremos
imprimir ao poema. O navio Marialva, como metáfora do próprio reino português, não poderia ter
outro destino que não o naufrágio, tal como Portugal, que, abandonado por D. Maria I e a corte, e
deixado a mercê da invasão napoleônica. Igualmente, ao refazer o itinerário seguido pelo poeta, o
Marialva se transforma talvez em metáfora da própria biografia de Gonzaga. Se o navio não afundou
na Ilha das Cobras, ele vai encerrar seu périplo exatamente em Moçambique, onde o poeta viveu seus
anos de degredo. Tomás Gonzaga não teria mudado de modo significativo, ainda que terminando
seus dias possivelmente mais cético e pessimista em relação a sua pátria, o que dificilmente
viremos a saber com maior certeza sem estarmos de posse da conclusão do poema e de novos
documentos esclarecedores sobre o período moçambiquenho do autor. Por fim, e como metáfora
efetivamente exterior ao texto, e o próprio poema enquanto fragmento, enquanto ruína, que pode ser
tornado como vitima de um naufrágio, esperando ser um dos sobreviventes da história.

3. PARA O ESTABELECIMENTO DE TEXTO: TRACOS GERAIS

Em primeiro lugar, queremos chamar a atenção para um fato de suma importância. Sendo o
segundo poema autografo de Tomas Antonio Gonzaga (o primeiro autógrafo e o poema dedicado a
D. Maria I em 1777 e constante em reprodução fac-similar no segundo volume das Obras Completas
de 1957). O Naufrágio do Marialva adquire um significado especial. A rigor, esta peca documental,
juntamente com o outro autografo, se transforma no meio mais eficaz de cotejamento e comprovação
acerca da autoria dos outros poemas de Gonzaga, Marília de Dirceu, as Cartas Chilenas e demais
poesias, dado que estes textos são, no limite, apócrifos.
Em se tratando de um poema quase inteiramente inédito, esta por ser feito todo o trabalho
de estabelecimento de texto, trabalho este que deve abarcar a um só tempo aspectos gerais e
específicos, no sentido da preparação de uma edição crítica para o poema.
Como primeira etapa será efetuada a identificação detalhada do manuscrito, seu histórico,
descrição sumaria de seu estado de conservação, formato, caligrafia, tinta, papel, datação etc. Nesta

etapa será efetuado também o levantamento sistemático referente ao afundamento do navio Marialva em
Moçambique, através da imprensa da Corte e dos Relatórios do Intendente da Marinha e Armazéns Reais da

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Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos.


Concomitante a identificação, vem sendo desenvolvida sua transcrição diplomática (paleográfica) a
partir de microfilmes cedidos pela Biblioteca Nacional. A transcrição visa indicar todas as variantes internas ao
texto, mapear lacunas, interpolates, detalhes de ortografia e pontuação divisão em estrofes, medida dos versos etc.
Para esta transcrição utilizamo-nos de outros autógrafos do autor, como o poema dedicado a D. Maria I
anteriormente referido, e documentos seus no exercício de funções públicas. Os procedimentos finais adotados,
bem como as indispensáveis normatizações advirão necessariamente da adoção de algumas regras gerais a esse
tipo de trabalho e da utilização de bibliografia específica, adaptadas as particularidades do próprio texto. Nesta
etapa do trabalho contamos com a indispensável colaboração do Prof. Jose Guilherme Ribeiro e, num segundo
momenta, com o auxilio do Prof. Joaci Pereira Furtado.
A partir dos tipos de edições de textos mais comuns, será possível definir a forma final
adotada para a edição do poema. Apos a transcrição diplomática, o texto será submetido a uma leitura
contemporânea, de ortografia e pontuação, em que a utilização de dicionários e gramáticas, do período
e de hoje, e essencial. Com respeito a pontuação, a leitura contemporânea buscara interferir o menos
possível na cadencia e nas pausas do próprio texto. O leitor terá, portanto, acesso a transcrição
diplomática e a leitura atual do poema.
Paralelamente a sua transcrição diplomática e leitura contemporânea, vem sendo coletadas ilustrações
diversas visando reunir um conjunto de imagens capazes de familiarizar o leitor com o poema e sua época. Em
princípio, a lista de ilustrações conteria: desenhos e plantas do navio Marialva; desenhos e informações acerca
do naufrágio do navio nos jornais e relatórios da época: reproduções dos principais deuses presentes na trama do;
poema (Palas, Venus, Eolo, Noto, Netuno, Anfitrite e o Gigante Adamastor), de preferência coletadas da pintura
e da escultura rococós e neoclássicas; mapas da baia da cidade do Rio de Janeiro; mapas do porto de
Moçambique, etc, :
Por fim, será constituído o aparato critico do texto tendo em vista basicamente: : 1. especificações
gerais de versificação e metrificação; 2. variantes de versos e de partes do poema; 3. campo de significados das
palavras e expressões empregadas; 4. particularidades lingüísticas; 5. campo figurativo da linguagem; 6. graus
de intertextualidade entre o poema e outros textos de Tomas Antonio Gonzaga, bem como entre o mesmo e
outros poemas épicos do período e da literatura em geral; 7. análise do ideário do poema, comparando-o ao quadro
geral das idéias do autor e de sua época; 8. constituição de glossários e índices em tomo das principais
referências históricas e mitológicas constantes no poema (pessoas, personagens, lugares, fatos etc).
Este aparato crítico leva em conta, entre outros elementos, principalmente os poemas épicos Ilíada,
Odisséia e Os Lusíadas para a verificação de possíveis relações intertextuais entre O Naufrágio do Marialva e
esses textos, afora os poemas épicos árcades para considerações gerais acerca dos códigos empregados. Pensa-
se também em refazer os cotejamentos efetuados por Manuel Bandeira entre Marilia de Dirceu e as Cartas
Chilenas, em texto hoje já clássico no que se refere a comprovação da autoria das Cartas, verificando os
mesmos elementos anotados pelo autor no interior d'0 Naufrágio do Marialva. Ressalte-se, nesse sentido, o
levantamento estatístico de Bandeira relativo a freqüência no emprego de anáforas por pane de Gonzaga, bem
como sua comprovação de que apenas Gonzaga, e não Claudio Manuel da Costa, emprega a expressão
"desrinzar". E o que se vê no fragmento do poema para Marília citado anteriormente, em uma passagem das Cartas
Chilenas e, mais uma vez, no próprio O Naufrágio: "que se rompão / as velas desrinzadas". Por fim, as diversas
particularidades de código inerentes a obra de Gonzaga, anotadas com minúcia por Rodrigues Lapa

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e outros intérpretes, permitirão estender ainda mais as relações entre os textos do poeta.

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COMUNICAÇÃO

UMA REPÚBLICA DE LEITORES


As Cartas Chilenas e a história da leitura
(ensaio de intenções)

Joaci Pereira Furtado

"Escrever e propiciar a manifestação alheia; em que a nossa imagem se revela a nos mesmos".
Antonio Candido

I. INTENÇÕES

Como as Cartas Chilenas tem sido lidas?


Lamentamos começar a presente comunicação provocando certa decepção aos que esperam ouvir
respostas. É sintomático iniciarmos nossa fala com uma pergunta. Padecemos aquela fase da pesquisa em que se
tateia no escuro, buscando definir a forma que o trabalho vai assumindo a medida que se avança nas leituras, se
experimentam modelos técnico-metodológicos ou se conversa demais com colegas e professores. Assim, ate que
neste momento nos comportamos semanticamente com muita coerência, pois em latim "communicare" significa
"tornar comum" - e outra coisa não faremos aqui senão socializar nossas duvidas, projeções e as poucas certezas.
Na realidade, desejamos apenas tornar publicas algumas idéias que submeteremos ao espancamento acadêmico
nos próximos dezoito meses - algo que, para satisfação ou desespero de todos, pode começar aqui.
Por mais ociosa ou abstrusa que pareça a pergunta com a qual iniciamos, responde-la pode clarear
aspectos de um importante tema da cultura brasileira: a obra de Tomás Antonio Gonzaga (1744-1810?).
Reverenciado também como inconfidente, pode-se dizer que ele e um dos mais nobres poetas de língua
portuguesa, citado e estudado em uma infinidade de situações e ainda hoje despertando interesse. Talvez um
cidadão medianamente informado não precise de muito esforço para lembrá-lo se lhe perguntarmos quais os
grandes nomes da Literatura brasileira. Em todo caso, se nos limitarmos a opinião dos críticos desde o século
passado, notaremos um tranqüilo consenso quanto a excelência dos escritos gonzagueanos.
Mas nossas preocupações restringem-se a sua sátira, que ocupa um lugar especial na obra de Gonzaga.
Trata-se de um texto cuja autoria ate ha alguns anos era discutida, singularizado pelas circunstancias em que foi
escrito, portador de problemas editoriais ainda não resolvidos (o que não

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e uma exceção na obra desse poeta) e, ao mesmo tempo, seu segundo trabalho mais conhecido. Nosso propósito
aqui e esboçar algumas considerações sobre um estudo que se dedique as formas de interpretação das Cartas
desde sua publicação, em 1845. As dimensões de tal empresa ficam bem mais complexas se considerarmos a
freqüência com que o panfleto e invocado pela historiografia referente ao período final da mineração. A definição
de seu autor também fez acumular uma enorme bibliografia - isto sem contar sua tradição critica. Portanto, a idéia
que esclareceremos adiante e a de uma história da leitura das Cartas Chilenas.
O que diremos a seguir - perdoem se isto ressoa como uma insistência lamuriosa - apenas da conta do
atual estagio de nossas reflexões sobre um tema com o qual convivemos ha algum tempo e registra as mudanças
que operamos em nossos pianos iniciais1. Trata-se de um exercício, um "ensaio" que inaugura a nossa longa e
tortuosa experiência de escrever uma dissertação de mestrado. Vocês encontrarão, com certeza, lacunas e
contradições, algum rebuscamento na maneira de nos expressar e, não raro, afirmações perigosas. Mas esperamos
que todos tenham paciência com nossa fragilidade de aprendiz - o que não significa pedir misericórdia.
Desejamos que, ao menos como um primeiro passo, tenha valido a pena.

II. PROPOSIÇÕES ou NA CÂMARA ESCURA


Talvez jamais saibamos como os habitantes de Vila Rica, naqueles fatídicos anos de 1780, entendiam o
que Critilo dizia com suas Cartas Chilenas2. A leitura contemporânea do panfleto perdeu-se para sempre, pois
dificilmente alguém deixaria por escrito - ou relataria para alguém que escrevesse - suas impressões sobre algo
então considerado subversivo e que ate deve ter sido lido por uma minoria de letrados.
É provável que o grosso daquela população sequer tenha ouvido falar da existência de tal libelo, já que
ela era em sua maioria escrava e analfabeta3. Isto reduz - e muito - o número dos habitantes a que nos referimos.
Alias, não ha registros de como o panfleto circulou, embora seja certo que não foi impresso4. Supõe-se que cópias
manuscritas foram afixadas em lugares públicos da movimentada capital mineira5, mas isto seria uma tarefa, no
mínimo, arriscada para quem desejava manter-se incógnita após escrever treze (ou mais) "cartas" dizendo, por
exemplo, que o governador Cunha Menezes se sairia melhor como sapateiro6. Há indícios de que a existência da
sátira chegou ao conhecimento do agravado representante de Sua Majestade, que ate teria ordenado uma inócua
busca dos "pasquins"7. Mesmo durante a devassa da Inconfidência Mineira mencionou-se algo a respeito8, mas
isso não impressionou as autoridades, que pareciam preocupadas com outras coisas'. As próprias cópias que
sobreviveram aos humores da História são objeto de controversia10, sendo muito possível que nunca saibamos a
forma exata do poema lido naquele tempo.
De qualquer forma, baseadas em manuscritos da época, as Cartas Chilenas ressurgem em 1845 - embora
em 1826 a "Epistola a Critilo" já houvesse sido publicada" -, com sete das treze "cartas" que constituem a
versão que hoje parece definitiva. Somente a partir de então possuímos registros do que as pessoas pensavam
quando liam os "sucessos do Fanfarrão" narrados por Critilo. Não nos referimos aqui a qualquer pessoa, mas a
um tipo muito especial de leitor - o intelectual, principalmente aquele interessado na História e na Literatura do
Brasil. O anônimo folheador das Cartas - de certo trazido a elas pela miríade de interligações entre Tomás
Antonio Gonzaga, Marília de Dirceu e a Inconfidência Mineira - não nos legou sua opinião, pelo menos não
da maneira explicita e sistemática como os estudiosos fizeram. Mas isto e assunto para outro lugar.
Desde que o panfleto foi impresso, uma considerável bibliografia sobre ele vem se acumulando; seja
em obras exclusivamente dedicadas ao poema ou em passagens de compêndios de Literatura ou História
brasileira. O fato e que diversos historiadores, críticos, teóricos da Literatura,

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escritores, filólogos e diletantes em algum momento de suas fainas intelectuais se debruçaram sobre as Cartas. E
são eles os únicos que, de uma ou de outra forma, nos deixaram suas impressões acerca do provocante escrito
satírico. Sim, porque mesmo em se tratando de áridos estudos estatísticos sobre sua autoria - de longe, o aspecto
que mais desafiou a curiosidade ou a soberba eruditos -, certas posições foram inevitavelmente assumidas, por
mais sutis que pareçam. Afinal, a simples tentativa de se colocar o libelo sob a pena de Antonio Diniz da Cruz e
Silva12 e não de outro e mais eloqüente do que se imagina. Mais que isso, dos que se propuseram a escrever algo
sobre as Cartas Chilenas poucos se furtaram a interpretação explícita - o que tem sido feito ha quase cento e
cinqüenta anos.
Isto quer dizer que e possível acompanharmos as maneiras como esse texto foi apreendido por uma
sofisticada espécie de leitor - a que hoje o dialeto estatístico muito provavelmente chamaria de "formador de
opinião" - e analisar suas idéias sobre ele. Em outras palavras, podemos escrever uma história da leitura das Cartas
Chilenas a partir do discurso "erudito", "cientifico", "competente" - ou o nome que se queira dar em
contraposição a "popular", "leigo", "informal" -, tentando, sobretudo percorrer o caminho inverso da relação
leitura-leitor - ou seja, saltar das paginas em que o autor registrou suas idéias a respeito do panfleto para o
universo intelectual de onde ele as retirou. O que implica em perceber "como" e "por que" os dizeres de Critilo
foram entendidos como um "prefacio" a Inconfidência Mineira'3 ou como o protesto injuriado de um iluminista -
ainda que de última hora e amorenado pelos trópicos". Essas opiniões também são historicamente contaminadas,
apesar da pretensa assepsia dos que se imunizam com o discurso e o instrumental "científicos". Alias, isso fica
mais evidente quando, ao circularmos paralelamente pela bibliografia sobre as Cartas e a Inconfidência,
notamos acentuada identidade entre o que se diz sobre uma e outra - isto e, pelo menos ate certa altura e em sua
grande maioria, o que se escreve acerca da sátira e da conjura conflui para a construção de uma leitura
mitificadora de ambas, entorpecida pela idéia de que elas representariam um momento crucial de resistência a
tirania e a opressão, por sua vez eivada dos valores da Ilustração, atenta aos movimentos insurrecionais (em especial
a Independência norte-americana) e alimentada pelo altruísmo libertário dos inconfidentes, que Joaquim Jose da
Silva Xavier teria levado ao extremo", é claro que esta afirmação e bastante simplificadora, atropelando inegáveis
tensões interiores a longa bibliografia sobre os dois temas. Mas ela funciona como o fio de Teseu, possibilitando-
nos caminhar por onde trechos de diversos percursos formam uma única trilha. É esse traço comum permeando o
entendimento da sátira de Critilo - pelo menos ate meados deste século - que desejamos compreender, Afinal, deve
haver uma explicação para a coincidência de opiniões entre, por exemplo, Sílvio Romero, Caio de Mello Franco e
Alberto Faria16 - os quais, apesar de atribuírem as Cartas a autores diferentes, vêem no panfleto a mesma dignidade
democrática que teria movido os conspiradores de Minas. Ha certamente modos de esclarecer a cristalização desse
discurso, os labirintos intelectuais que percorreu, seus veículos com o momento, seu parentesco com a
historiografia tradicional da conjura, os indícios do que poderíamos chamar de "ideologia". Enfim, de certo modo
podemos entrar nos gabinetes dos letrados do passado e estabelecer com eles um paciente dialogo - ainda que nem
sempre muito fluente -, examinando sua bibliografia, os métodos e sobretudo suas idéias ao ler (e escrever
sobre) as palavras de Critilo.
Talvez já esteja evidente que não concordamos com o que poderíamos chamar de "leitura convencional"
das Cartas Chilenas - e, por extensão, da Inconfidência Mineira17. De fato, a conjura derivou mais de um desarranjo
circunstancial entre os interesses da elite mineira e a política colonial da Coroa portuguesa - seguida de uma
reacomodação quase que imediata - do que de um sentimento nacionalista apimentado pelo exemplo da América
Inglesa18. Quanto a sátira, não e preciso grandes malabarismos hermenêuticos para notar que o libelo transpira
indignação e perplexidade com "desordem de um governo despótico"", voltando- se saudoso para aquilo que
havia sido ou deveria

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ser a normalidade. Mas qual normalidade? Bem, para satisfazer essa pergunta e preciso levar em conta certas
sutilezas do pensamento de Critilo - algo que, por um motivo ou por outro, possivelmente a totalidade de seus
críticos e estudiosos sempre ignorou.
Assim como a etiqueta "iluminista" não fica bem na roupagem discursiva do panfleto, debitá-la
simplesmente a um vago "despotismo esclarecido e mentalidade colonial"20 também diz pouca coisa. Na realidade,
as posturas das Cartas não se esgotam nos limites de maniqueísmo entre "Ilustração" e "Absolutismo" - que, alias,
nem são tão incompatíveis assim21. Como já não ha mais dúvidas quanto a autoria da satire22, ela se afina
perfeitamente com o restante da obra de Tomas Antonio Gonzaga - um case muito especial de mimetismo
estético-ideologico23.
Trajando os mais puídos valores do "Ancien Régime" luso, Gonzaga circula ate com certa elegância pelos
salões da moda intelectual européia de então. £ o caso de seu tratado sobre o Direito Natural24, assunto da agenda
de Montesquieu e Rousseau mas que ele esvazia de qualquer conteúdo revolucionário, submetendo a "sociedade
civil" aos imperscrutáveis desígnios divinos e a vontade inquestionável do Principe25. As liras26 - e nisto coerente
com a forma como os cânones do Arcadismo foram lidos em terras lusitanas - resolvem sem maiores transtornos a
incompatibilidade que a princípio o catolicismo tridentino de Gonzaga imporia ao paganismo árcade. Os versos a
Marília, se apenas muito discretamente se referem a tradição judaico-cristã e jamais mencionam o nome de Deus,
por outro lado insinuam-se por um cipoal de imagens literárias, onde a mitologia greco-romana desempenha
um papel meramente figurativo, enquanto a presença ambígua do fado e da Providencia mal encobre a mão do
cristianíssimo Todo-Poderoso27.
Apesar de se servir da sátira - uma arma amplamente utilizada no século XVHI para se lançar acido
sobre os comportamentos sociais -, nas Cartas Chilenas, em que pese sua repugnância a opressão despótica e
profunda simpatia pelo "rei- filosofo, o poeta indigna-se diante dos desmandos do Fanfarrão - um chefe que "só
vem para castigos de pecados"28 - e nada mais. Nenhuma palavra sobre insurreição ou resistência. Desejos de que a
observância das "sagradas leis do reino"29 retome logo a sofrida Chile, Critilo espera que os súditos padeçam
cristamente aquele desgoverno - ate o "dia em que mão robusta e santa / depois de castigar-nos, se condoa / e
lance na fogueira as varas torpes"30. Seus versos ficariam como testemunho de uma calamidade que nunca deve se
repetir31 - o que vai depender mais da virtude do governante do que da vontade dos governados32.
Gonzaga não esta nem adiante nem atrás em relação a seu tempo, mas com as idéias "no lugar"33:
exatamente no clima de pombalismo, versão lusa da reforma conservadora do Estado absolutista que se
convencionou chamar de "despotismo esclarecido"34, ainda que em termos teóricos essa conciliação não seja tão
tranqiiila35. De algum modo, sua obra ate pode ser considerada "revolucionaria", pois foi uma solução original -
em diversas formas e situações - para decisivas inquietações do homem moderno a partir do que se experiênciava
em Portugal e seus domínios. Isto e, Gonzaga, Dirceu e Critilo encontraram "respostas possíveis" para problemas
específicos que a política, a arte e o conhecimento - as voltas com o vendaval de mudanças que varria a Europa
setecentista - enfrentavam no reino português.
Não foi por falta de pesquisa ou erudição que os estudiosos das Cartas Chilenas passaram insensíveis por
essas sinuosidades do pensamento gonzagueano. É. claro que se pode atribuir alguma culpa aos crônicos problemas
de documentação da época e a tênue confiabilidade editorial dos textos de Gonzaga - mas isto e insuficiente para
inocentar seus leitores "cultos" de qualquer envolvimento com métodos, teorias, posições sociais, ideologias,
enfim, com a História. É muito provável que a maioria deles tenha cumprido - e bem - um certo papel social, onde
cabe refinar e divulgar a maneira como determinada classe vê as coisas - mesmo se nessa visão "os homens e
suas relações nos aparecem de cabeça para baixo como em uma câmara escura..."36.

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III . PERCEPÇÕES OU O ENIGMA DA LEITURA


Mesmo sem saber, quando uma pessoa lê um poema na verdade ela o reescreve. Assim um como quadro
pode despertar as reações mais diversas - do desprezo nauseado a admiração histérica -, a obra literária possui uma
formidável elasticidade interpretativa, que tanto pode elevá-la ao Olimpo dos "clássicos" quanto atira-la a vala
comum da mediocridade. Van Gogh e James MacPherson ilustram bem os dois casos37.
Podemos ser acusados, pelo que acabamos de dizer, de confundir "interpretação" com "juízo de valor" - mas
realmente não conseguimos divorciar as duas coisas, mesmo que sejam distintas38. Acabamos de ver que uma obra
de arte hoje incensada ate pelo senso comum pode ter sido execrada no passado justamente porque não foi "bem
compreendida" naquele tempo. Nossa cultura desenvolveu um aparato sofisticado, freqüentemente com pretensões
de objetividade, que não só pontifica sobre "o que e arte" como também hierarquiza os objetos artísticos conforme
sua "excelência". Dá-se a isso o nome de "critica"39. No campo da Literatura e ela que estabelece a nobiliarquia
dos "grandes autores" e organiza a percepção "erudita" das obras, reformando seu significado ao gosto da
sensibilidade do momento. Em outros termos, a medidas que as gerações de críticos se sucedem na dissecação de
suas paginas, o texto literário e reescrito e reinscrito naquele instante histórico através de novas incisões
interpretativas, ainda que suas palavras sejam as mesmas. O leitor "culto", embora vinculando a publicação de seu
modo de ler a certeza de que este e pelo menos mais plausível do que o de muitos, não desenvolveu anticorpos
contra os contágios de seu ambiente histórico-cultural. Como qualquer comum dos mortais que detém os olhos sobre
os versos de um poema ou as linhas de um romance, o "erudito" - seja historiador, critico, teórico da Literatura -
age, ainda que de maneira privilegiada, como "segundo autor" da obra que lê, recolocando-a em seu contexto,
reabilitando-a para novos significados, traduzindo numa dimensão semântica o que e velado peio imaginario40.
Isso resulta dos "vazios" textuais que o leitor ocupa com suas representações, tomando a obra
dialeticamente múltipla em sua compreensão41. E nessa relação assimétrica entre texto e leitor - cuja fluidez cabe
mais as projeções do segundo do que a polissemia do primeiro - interpõe a realidade de quem le42 - o contexto da
leitura, diriam os especialistas, onde seu sentido e construfdo43. Ora, isso tem implicações muito serias, pois estamos
irrecorrivelmente sentenciados a cumprir nossa pena como prisioneiros da História: somos contemporaneos de uma
sensibilidade, pertencemos a uma classe social, estamos infectados por idéias e preconceitos, temos nossos
interesses e duvidas - enfim, somos cidadãos do volúvel e multifacetado universo da cultura que, entre outras
coisas, nos propicia a atmosfera da leitura44.
Portanto, através do esquadrinhamento da extensa lista bibliográfica sobre as Cartas Chilenas,
tencionamos espreitar o leitor quando, solitário diante dos versos de Critilo, ele se pergunta: "o que o texto me diz e
o que eu digo sobre o texto?"45. Porem, de nada vai valer esse esforço se esperamos ouvir uma resposta que confira
com modelos transcendentais ou atemporais de percepção estetica46, pois essa experiência tem data - e, o que e
mais grave, suas próprias feições historicas47. É aqui que entramos com o instrumental do nosso oficio, pois os
historiadores dispõem de algumas armas - mesmo que intelectualmente neolíticas - para enfrentar questões a
respeito - ou pelos menos já conviveram com essa problemática o suficiente para vislumbrar algumas saídas -
como, por exemplo, sair a cata das listas de freqüência das bibliotecas ou dos títulos que elas guardavam48. Ou
então analisar estampas que retratem o ato de ler4'. Ou ainda estudar o livro enquanto objeto e mercadoria,
percorrendo o longo circuito sócio-econômico que separa o escritor do leitor50. Mas esses procedimentos aplacam
apenas um tipo de curiosidade: o de saber qual o lugar da leitura e do livro em nossa cultura5' - o que não satisfaz
totalmente a pergunta do princípio deste parágrafo.
Na verdade, desvendar a interpretação de textos no passado requer ferramentas muito mais

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sutis - e assim mesmo corremos o risco de ser pouco menos que superficiais ou anacrônicos52.
A própria idéia de leitura varia de uma época para outra: já houve quem a considerasse prejudicial a saude33.
Talvez, se pedirmos socorro à teoria literária, seja possível avaliar as potencialidades coercitivas - mas não
determinantes - dos textos. Aos historiadores caberia constatar "quais as leituras que efetivamente ocorreram"54.
Parece uma solução razoável, principalmente quando pensamos no estranho moleiro friuliano de Carlo Ginzburg55
ou na curiosa tragédia quinhentista relida por Natalie Davis*.
Os leitores que resolvemos investigar tem suas idiossincrasias, naturalmente - o que nos coloca
enigmas específicos, cujas respostas não poderão ser menos singulares. Eles formam "comunidades
interpretativas"57 que no Brasil obedecem a estatutos rígidos e exclusivistas, uma certa elite que lidera a opinião
literária, que freqüentemente impõe o império do seu gosto58 e que não por acaso coincide com as classes
dominantes. Não estaríamos exagerando se afirmássemos que, pelo menos ate recentemente, esse público de
privilegiados lia para si e recitava para "uma sociedade de iletrados, analfabetos ou pouco afeitos a leitura"59. O
destino de muitos autores sempre dependeu da sua aquiescência - ou benevolencia60. Dai não e difícil imaginar a
atuação do crítico - ainda mais específica, pois ele seria algo como um "leitor habilitado", ungido pela erudição
para refinar a interpretação literária, E talvez por isso mesmo, o que e pior, esse discurso sempre corre o risco
de se maquiar com "aparências de conceitos", isto e, com "racionalizações, cuja função imediata será ideológica,
no sentido negativo do termo, de ocultamento do lugar (da classe) de onde se fala"61 - algo que virtualmente elimina
aquela relatividade do texto artístico62.
Mesmo que essa nossa idéia de um tom afinando a leitura das Cartas Chilenas acabe em
frangalhos, restara a tarefa, não menos instigante, de compreender os sentidos que a sátira assumiu nos últimos
cento e cinqüenta anos63. É possível que apos revirar tudo encontremos uma infinidade de opiniões que se
esquivem a qualquer amarra classificatória ou contra as quais não localizamos provas de cumplicidade com
discursos ideológicos - mas, pensando bem, "não ha relações de sentido que não estejam referidas e determinadas
por um sistema de dominação"64.
IV . PROJEÇÕES
Escrever a história da leitura das Cartas Chilenas talvez seja mais complicado do que a princípio
parece. Afinal, trata-se de quase um século e meio de interpretação - agravada pelo fato de localizar-se entre o ano
de 1845 e a década de 1980, época de mudanças radicais que solaparam ate mesmo o Brasil. Obviamente isso
tem reflexos particulares em nosso caso, principalmente se imaginarmos o longo desfile de modas intelectuais do
período, ao qual nossos críticos compareceram com muito empenho65.
Traduzido em termos práticos, nosso trabalho consistira num levantamento minucioso do que já
se escreveu sobre O libelo - uma tarefa parcialmente concluída6', mas agora ampliada pela garimpagem de
menções em textos não específicos. Basta lembrar que não ha um escrevinhador da província67 ou livro de História
do Brasil que não se refira ao texto. Ao mesmo tempo não podemos perder de vista a trajetória da critica literária
brasileira - o que nos fornecera subsídios para compreender suas interpretações68. Por fim, a questão do "como
se lê" e de longe a mais delicada e aqui registramos apenas algumas impressões iniciais a respeito.
Mas o momento mais grave caberá a montagem de esquemas explicativos da leitura do; versos
de Critilo e a proposição de fases correspondentes a sensibilidade de cada momento - ou seja relacionar com seu
contexto a maneira como cada período enxergava o panfleto, algo que não se resolve com receitas mecanicistas
e que obedece ate a uma tripla mediação69. Lembremos as conseqüência trazidas pela simples impressão do texto:
exumado das tumbas arquivísticas, torna-se

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mais facilmente objeto da dissecação acadêmica, adquirindo dimensões e significados distintos das intenções originais que
levaram a sua redação. Por outro lado, o próprio percurso editorial do libelo já nos permite estabelecer referenciais para
uma periodização das leituras, uma vez que ele passa de panfleto manuscrito a texto de revista, de texto de revista a livro,
de livro a reedições, de reedições a antologias, de antologias a obras completas e de tudo isso aos manuais de Literatura,
aos estudos literários e as teses universitárias. São formas diferentes que corporificam modos distintos de compreensão
afetados pelo agitado transito de idéias e sensibilidades estéticas que congestionaram os séculos XIX e XX. Basta lembrar a
marcante ótica romântica, as analises de tempero positivista, a avalanche modernista ou a insólita heterodoxia da
"Nouvelle Histoire". Todos os leitores estão em maior ou menor grau comprometidos com essas e outras maneiras de
encarar a realidade e particularmente os versos dos poemas. Mas por detrás da leitura de muitos deles podemos nos deparar
com a câmera escura a inverter o sentido das coisas.

NOTAS

1- FURTADO, Joaci Pereira. A republica de Critilo; Tomas Antonio Gonzaga e as "Cartas


chilenas". São Paulo, mimeo., abril de 1990. (Projeto de pesquisa apresentado a Comissão de
Bolsas do Departamento de História da USP). 56 p.
2- GONZAGA, Tomás Antonio. Cartas chilenas, em que o poeta Critilo conta a Doroteu os factos
de Fanfarrao Minesio, govemador de Chile. In: _________________ . Poesias - Cartas chilenas. Rio de Jáneiro:
MEC/ENL, 1957. p. 181-315. (Prefacio e notas de M. Rodrigues Lapa.)
3- GORENDER, Jácob. Escravismo na mineração. In: . O escravismo colonial. 3. ed. São Paulo:
Ática, 1980. p. 427- 50. SOUZA, Laura de Mello e. Os protagonistas da miséria. In: ____________ .
Desclassificados do ouro; a pobreza mineira no século XV111. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990. p. 141- 213.
4- HELLEWELL, Laurence. O livro no Brasil; sua história. Trad. Maria da Penha Villalobos e Lolio
L. de Oliveira. São Paulo: EDUSP, 1985. p. 22.
5- FERREIRA, Delson Gonçalves. As "Cartas Chilenas" e a Inconfidência Mineira. Análise &
Conjuntura. Belo Horizonte. V. 4, n. 2/3, p. 181, maio/dezembro 1989. LAPA, Manuel
Rodrigues. As Cartas chilenas; um problema histórico e filológico. Rio de Janeiro: MEC/INL,
1957. p. 8-9, 13-5.
6- GONZAGA, T. A. op. cit., p. 313.
7- MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa; a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal
(1750-1808). Trad. João Maia. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1985. p. 124.
8- AUTOS DA DEVASSA DA INCONFIDÊNCIA MINEIRA (ADIM). Belo Horizonte, Imprensa
Oficial, 1977. v. 9. ADIM. Rio de Janeiro, MEC, 1936/38. v. 2.
9- PENNA, Jr., Affonso. Prefácio. In: LAPA, M. R. op. cit., p. XVI.

10-LAPA, M. R. ibidem, p. 107-26.


11-Idem, ibidem, p. 12.
12-MEIRELES, Cecília. Um enigma do século XVHJ: Antonio Diniz da Cruze Silva.
PROCEEDINGS OF THE INTERNATIONAL COLOQUIUM ON LUSO-BRASILIAN
STUDIES. Nashville, The Vanderbilt University Press, 1953. p. 161-4.
13-FRANCO, Caio de Mello. O inconfidente Claudio Manuel da Costa. Rio de Janeiro: Schmidt, 1931. p. 131.

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14-FERREIRA, D. G. Cartas chilenas; retrato de uma época. Belo Horizonte: UFMG, 1987. p.
184-96.
15-Apesar de breves, Heloisa Starling tem considerações interessantes a respeito da apropriação
ideológica da Inconfidência Mineira. Ver STARLING, Heloisa Maria Murgel. Os senhores das
Gerais; os Novos Inconfidentes e o golpe de 1964. Petropolis: Vozes, 1986. p. 83-7.
16- FARIA, Alberto. Crytonymos das "Cartas chilenas". In: Accendalhas; literatura e
folclore. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro & Maurílio, 1920. p. 7-50. Muito embora Faria descarte a
participação de Gonzaga na Inconfidência - pois ele não teria se aparceirado "com revolucionários
levianos" (p. 256) -, seu texto transpira certa simpatia pela "justeza de Critilo -no que não destoa do
discurso mitificador que cerca o libelo. FRANCO, C. de M. op. cit., p. 129-235. ROMERO, Silvio.
História da literatura brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1980. v.2, t.l.
17-"Por extensão" porque a historiografia tradicional aproxima as duas. Mas, como veremos, não ha
necessariamente uma continuidade entre a sátira e a conspiração.
18-MAXWELL, K. op. cit. MOT A, Carlos Guilherme. Atitudes de inovação no Brasil (1789-1801).
Lisboa: Horizonte, s/d. 131 p.
19-GONZAGA, T. A. op. cit., p. 192.
20-BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1981. p. 84.
21-FALCON, Francisco Jose Calazans. Estado absolutista e Ilustração. In: . Despotismo
esclarecido. São Paulo: Ática, 1986. p. 11-6.
22-Pelo menos ficou bastante difícil propor outro nome que não o de Gonzaga apos a publicação do
convincente trabalho de LAPA , M. R. op. cit.
23-Não temos a pretensão de dizer qualquer novidade a respeito, ate porque já foi feito algo nesse
sentido em trabalho recente, que aqui utilizaremos largamente. Trata -se de POLITO, Ronald. A
persistência das idéias e das formas; um estudo sobre a obra de Tomas Antonio Gonzaga.
Niterói, mimeo., 1990. 273 p. (Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de História
da Universidade Federal Fluminense.)
24-GONZAGA, T. A. Tratado de direito natural. In: ___ . Obras completas de Tomás Antonio
Gonzaga. São Paulo: Nacional, 1942. p. 357-556. (Ed. critica de M. Rodrigues Lapa.)
25-POLITO, R. op. cit., p. 82-98.
26-Uma boa edição: GONZAGA, T. A. Marília de Dirceu. Lisboa: Sá da Costa, 1944. 267
p. (Prefácio e notas de M. Rodrigues Lapa.)
27-POLITO, R. op. cit., p. 62-71.
28- GONZAGA, T. A. Cartas chilenas..., p.291.
29-Idem, ibidem, p. 218, 252,261,263.
30-Idem, ibidem, p. 255.
31- Idem, ibidem, p. 190, 232. POLITO, R. op. cit., p. 11, 197.
32-POLITO, R. op. cit., p. 98-113.
33- A expressão vem de uma velha disputa: COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura brasileira: um
intimismo deslocado, a sombra do poder? Cadernos de Debate. São Paulo, n. 1, p. 65-7, p. 1976.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As idéias estão no lugar. ibidem, p. 61 -4.SCHWARZ,
Roberto. As idéias fora do lugar. In: . Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977. p. 13-28.
34- Mas o termo não e muito feliz. Ver FALCON. F. J. C. op. cit. p. 5-10. Ver principalmente A época
pombalina; política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982. 532 p.
35-POLITO, R. op. cit., p. 43, 46-7, 97-8.

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36-MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideológia alema.-São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 21
(Introdução de Jacob Gorender) Ver também CHAUÍ, Marilena. O que e ideológia. 3. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1981. 125 p. :
37-COLL Jorge. O que é arte. 6. ed. São Paulo: Brasiliense,1985. p. 19, 21-2.
38-JÁUSS, Hans Robert. O texto poético na mudança de horizonte da leitura. In: LIMA, Luiz Costa,
org. e trad. Teoria da literatura em suas fontes. 1. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alyes, 1983>,v
2., p. 308, 312. . A estética da recepção: colocações gerais. In: LIMA, L. C, org. e trad. 4
literatura e o leitor; textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 19.79. p. 46.
39-COLI, J. op. cit., p. 1.2,22. .
40-ISER, Wolfgang. Problemas da teoria da literatura atual. In: LIMA, L. C. Teoria da literatura...p.
379-80,_. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: op. cit., p, 408-9. É muito
oportuna a transcrição das palavras de Silviano Santiago a respeito: "Entre o livro impresso e a sua
consideração como clássico - um clássico das letras - se situa a sua própria inclusão na História,
sistema delicado e flexível, e também a sua condição de elemento modificador dentro do sistema a
que ele pertence agora por direito adquirido junto aos críticos e historiadores. A acomodação da
obra na História e o seu naufrágio no catalogo só podem ser anulados por um critico que a tome
presente, contemporânea, - ou seja, transforme-a em prisioneira do próprio contexto histórico do
critico. Se a obra e a mesma (em qualquer século que e lida), e apenas o nome do seu segundo autor
(isto e, do critico) que lhe imprime um novo e original significado".SANTIAGO, Silviano. Eca, autor
de "Madame Bovary". In: . Uma literatura nos trópicos.São Paulo: Perspective 1978. p. 50. (Grifo
do autor). Ver também CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 7. ed. São Paulo: Nacional,
1985. p. 74.
41- - ISER, W. A interação do texto com o leitor. In: LIMA, L. C. A literatura e o leitor..., p. 88, 90,
120, 132. .Problemas da teoria... In: idem, ibidem, p. 379,. 382.
42-ISER, W. A interação..., p. 105. , Problemas da teoria..., p. 371. LIMA, L. C. O leitor
demanda da literatura. In: . A literatura e o leitor..., p. 23-4, 34.
43-E como diz Wolfgang Iser: "... o sentido do texto e apenas a pragmatização do imaginário e não
algo inscrito no próprio texto ou que pertencesse como sua razão final." ISER, Wolfgang,
problemas de teoria..., p. 408.
44-Desta vez damos a palavra a Luiz Costa Lima: "sempre falamos de algum ponto; numa sociedade
de classes, sempre falamos a partir de uma classe. Ora, porque a experiência estética não e
regulada por conceitos, ela se torna mais apta tanto a abrigar prenações, quanto a permitir a
visualização ou realização de experiências novas." LIMA, L. C. O leitor demanda..., p. 21. Ver
também ISER, W. Problemas da teoria..., p. 375.
45-JAUSS, H. R. O texto poético..., p. 313.
46-GUMBRECHT, Hans Ulrich. A teoria do efeito estético em Wolfgang Iser. In: LIMA, L. C,
(org.) Teoria da literatura..., p. 432.
47-Ou como prefere Jauss: "A percepção estética não e um código universal atemporal, mas, como
toda experiência estética, esta ligada a experiência histórica". JÁUSS, H. R. O texto poético...,
p. 314.
48-PROUST, Jacques. História social e história literária. In: GODINHO, Vitorino Magalhães, coord.
A história social; problemas, fontes e métodos. Trad. M. A. M. Godinho. Lisboa: Cosmos, 1973.
p. 301-16.
49-DARNTON, Robert. Primeiros passos para uma história da leitura. In: . O beijo de
Lamourrette; mídia, cultura e revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras,
1990. p. 156.

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50-op. cit., p. 109-31, 132-45. 5

54-Ou seja, suas "bases institucionais": "quem", "o que", "onde" e "quando" se le. Ver op. cit.,
p.159.
51-idem, ibidem, p. 167.
52-idem, ibidem, p. 159-60.
53-idem, ibidem, p. 167. O autor já fez algumas tentativas em, por exemplo: . Histórias que os
camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso. Um burguês organiza seu mundo: a cidade
como texto. Os leitores respondem a Rousseau: a fabricação da sensibilidade romântica. In: .
.0 grande massacre de gatos; e outros episódios da história cultural francesa. Trad. Sonia
Coutinho. 2. ed, Rio de Janeiro: Graal, 1986. p. 21-101, 141-88, 277-328.
55-GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes; o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. Trad. M. B. Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 309 p.
56-DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerra. Trad. Denin Bottmann. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1987. 188 p. A autora esboça um histórico de como o caso foi contado e recontado nos
últimos quatro séculos (ver p. 20-1, 139-57), mas infelizmente ela não deu muita atenção a isso
- o que não deixa de empobrecer a obra.
57-DARNTON, R. op. cit., p. 127.
58-CANDIDO, A. op. cit., p. 77.
59-Idem, ibidem, p. 81. .
60-Idem, ibidem, p. 84-6, 91.
61-LIMA, L. C. O leitor demanda..., p. 21.
62-ISER, W. A interação..., p. 129.
63-Usando novamente as palavras de Darnton: desejamos "enfrentar o elemento de relação que se
. encontra no núcleo da questão: como leitores mutáveis interpretam textos variáveis?" DARNTON,
R. O beijo.., p. 172.
64-MICELI, Sergio. Introdução: a força do sentido. In: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas
simbólicas. Trad. Sergio Miceli e outros. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. XIH.
65-ODALIA, Nilo. Formas do pensamento historiográfico brasileiro. Anais de História, Assis, n. 8,
p. 31-40, 1976. A análise pode ser estendida a toda intelectualidade brasileira, em particular os
críticos.
66-Ver bibliografia do projeto citado.
67-MAXWELL, K. op. cit.,. p. 138.
68-Citemos, por exemplo, MARTINS, Wilson. A crítica no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1983. 2 v. CANDIDO, Antonio. O método critico de Silvio Romero. São Paulo: Empresa
Gráfica da "Revista dos Tribunais", 1945. 224 p.
69-PROUST, J. op. cit., p. 307.

Original Recebido em /09/90

Aceito para Publicação em 03/04/91

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DISCURSO DO PSD MINEIRO NA GONSTITUINTE ESTADUAL


(1947) E PRIMEIRA LEGISLATURA DA ASSEMBLÉIA
LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS (1947-1951)*

Corina Maria Rodrigues Moreira


Tereza Cristina de Oliveira Miranda ,
Bacharéis em História pela UFMG

Este estudo pretende analisar a atuação da bancada pessedista na Assembléia Estadual Constituinte
(1947) e a primeira legislatura da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais (1947-1951), através dos
discursos destes deputados em plenário, objetivando a) perceber quais os interesses veiculados pelo partido; b)
estabelecer a existência ou não de urna ligação ideológica destes deputados com o partido pelo qual foram
eleitos; c) identificar a vinculação destes deputados a política local; d) verificar o tipo de oposição que
faziam ao governo estadual, uma vez que este encontrava-se nas mãos da UDN; e) analisar qual a visão que
estes deputados tinham de suas funções legislativas.
A importância de tal analise liga-se ao fato de ser este um momento singular da história política
brasileira - momento da chamada redemocratização, sobrevinda da dissolução da ditadura varguista e
conseqüente formação do sistema pluripartidário com base nacionais.
A opção metodológica pela utilização do "discurso" reside no fato de esta ser urna fonte inestimável
para a "apreensão de um universo vivo, complexo e sutil, que traz o sabor inigualável da experiência vivida"1,
sendo ele, visto aqui enquanto pratica política e, portanto, visceralmente relacionado a um momento
histórico determinado.

CENTRALISMO E PRAGMATISMO: UM PARTIDO MAJORITARIO NA OPOSIÇÃO

Um fato que muito nos chamou a atenção, quando da leitura dos discursos dos deputados pessedistas
em plenário, foi a sua estruturação sistemática e lógica, que geralmente obedece a uma linha diretiva básica,
qual seja, a de explorar, inicialmente, aspectos mais gerais para, apos esta introdução, dirigir-se,
objetivamente, ao assunto que leva o deputado , naquele momento, a ocupar o plenário com seu discurso.
Esta postura e adotada como que para tornar bem clara qual a posição tomada pelo partido no interior
do Poder Legislativo, demonstrando-nos a objetividade com que os deputados levantam as questões que lhes
são de interesse. Discursos objetivos e bem articulados, que visam a um fim determinado e constituem o meio
de efetivação da ação política destes parlamentares e que, sem dúvida, possuem a eficácia necessária para a
mobilização dos setores aos quais lhes interessam atingir em sua luta pela sustentação do poder que lhes
permitira a manutenção do status quo.
Verificamos, a partir daí, que os interesses veiculados pela bancada pessedista no Legislativo

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mineiro, através de seus discursos, estão previamente determinados pela acolhida que terão por um público
específico, ou seja, fala-se dali aquilo que aquele publico espera ouvir, e fala-se com muita clareza e
objetividade. E qual e este público ao qual estão destinados os discursos? Por que se esta enviando a
mensagem para este público determinado?
O grande interesse veiculado por estes deputados em seus discursos refere-se aos problemas municipais,
e assim não poderia deixar de ser, uma vez que a própria Constituição Federal (e, por conseqüência, a Estadual,
já que esta última esta elaborada nos moldes da primeira) confere grande importância aos municípios. Além
disso, a idéia corrente daquele momento e a da importância da estruturação de municípios fortes e
independentes (econômica e politicamente) come base para o fortalecimento da nascente democracia brasileira,
que se fundamentaria no crescimento econômico da Nação.
Por outro lado, a estruturação do poder tinha sua fundamentação nas bases de poder locais, ou seja, a
própria entrada destes deputados na Assembléia Legislativa havia sido fruto das injunções de um poder local
que, apesar do centralismo do regime ditatorial do período anterior, não havia perdido sua vida política
própria, dando continuidade a formação de homens públicos e de confrontações políticas.
O apelo ao município possuía, portanto, um duplo significado: uma citação comum naquele tempo, em
razão de creditar-se a eles importância fundamental no desenvolvimento da Nação, era deles ainda que
partiam os votos que permitiriam a interferência nas esferas institucionais de (decisão, interferência esta que
era de fundamental importância no processo de redemocratização do País, sendo eles os "legítimos
representantes do povo mineiro" e, por isso mesmo, os condutores autorizados deste processo
Entretanto, não se fala somente dos municípios, mas para eles também. Quando os deputados fazem
referencias genéricas ou específicas aos municípios, significa que eles estão dando um retorno aos seus
eleitores (ao menos a nível discursivo), pois eles ali estão enquanto seus representantes e de seus interesses,
não podendo decepcioná-los, uma vez que deles dependem para continuar sua vida política.
Estes discursos acabam transformando-se, em última instancia, em claros chamamentos eleitorais,
pois, dando "feed- back" aqueles que os elegeram, os deputados acabam por mostrar que não se esqueceram
porque ali estão, podendo, portanto, ali continuar, defendendo os interesses de seus eleitores e de sua região.
As municipalidades são lembradas, também, e diversas vezes, em discursos de oposição ao governo
estadual, e e neste momento que podemos notar um outro lado da constante referenda as localidades do interior
do Estado: a necessidade de manutenção do poder local ter.do fundamental importância na conservação de
cargos em instancias institucionais de poder o que, por sua vez, fundamenta a fixação daquelas elites políticas
no cenário local, urna vez que o intercambio de favores e mutuo e constante.
Assim sendo, quando se sente ameaçada em seu domínio, esta elite política corre o risco de perder não
só a influência que ali possui, mas a que remete as esferas de decisões mais amplas e que, em última instancia,
são as que lhes permitem manter o status quo.
Desta forma, quando os deputados fazem referenda aos abusos de poder que estão ocorrendo no interior
em detrimento de seus correligionários, ou a modificações que o governo estadual esta fazendo nos quadros
administrativos municipais, preenchendo-os com partidários seus, o que os esta preocupando, acima de tudo, e
a perda de terreno eleitoral e, conseqüentemente, a perda de poder que daí advêm.
O que podemos notar, portanto, e a dupla importância dos municípios no cenário político

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que se estabelece naquele momento: uma importância atribuída - célula última sobre a qual se funda a
democracia - e uma importância real - instancia que lhes permite a intervenção nos meios de poder
institucionais. Entretanto, esta duplicidade não e, de forma alguma, estática, uma vez que estes dois
pólos interagem-se para a fundamentação de um padrão que se insurge .contra o centralismo excessivo
e que prega a autonomia do município contra o "federalismo hegemônico", propugnado pelo regime
anterior.
Desta forma, a constante referenda aos municípios enquanto fundamentadores do
desenvolvimento econômico e político da Nação - dos quais estes deputados são os representantes e
pelos quais são responsáveis, tendo, por isso, que lhes dar algum retomo que justifique a sua presença
no Legislativo e que lhes permita arrecadar votos em algum próximo pleito, promovendo, assim,
através do fortalecimento das municipalidades, o fortalecimento da própria Nação - contribui não só
para a manutenção do poder, mas sambem para o direcionamento de seus interesses, no sentido da
conservação ou da transformação.
E é neste sentido que falamos de interação da duplicidade contida nas referencias as
localidades, ou seja, a sua importância atribuída e real fornece o subsidio para a realização de uma
proposta de autonomização dos municípios que, alem de ser vista como ideal para a real
democratização do Pais, fortalece a possibilidade de maior controle.
Porem, as bandeiras levantadas em plenário pelos deputados pessedistas não referem-se
unicamente aos municípios, mas possuem, em última instancia, um fundamento que as aproxima dos
discursos concernentes as localidades. Referem-se a problemas enfrentados pelo funcionalismo público
(principalmente os salariais), a questão do abastecimento e da melhoria de condições de vida da
capital, a reclamações acerca da incidência do fisco e, como pode-se notar, a fatos específicos, que
visam a determinados segmentos da sociedade e a farta colheita eleitoral que estas camadas lhes
podem proporcionar. E é ai que falamos em proximidade de fundamento entre um discurso e outro,
apesar de, neste último caso, isso nos parecer bem mais claro.
Continuam, portanto, a defender interesses determinados, para e por um publico específico, que
lhes dará o mesmo retorno que eles lhes estão dando quando se lembram e remetem-se a ele -
direcionam o discurso para um publico específico, do qual se colocam como porta-vozes e ao qual
estão dirigindo-se no intuito de legitimar e, em certos casos, perpetuar sua presença no Legislativo
Este constante esforço em direção a um eleitorado específico faz-se presente no decorrer de
toda a Legislatura em questão, mas toma-se ainda mais evidente no 2s semestre de 1950, com a
proximidade das eleições para a Presidência da Republica, para o Governo de Estado e para as Casas
Legislativas. E se durante todo o período legislativo essa preocupação mostrar-se recorrente nos
discursos referentes aos municípios e a defesa de interesses determinados, com a aproximação do
pleito, a evidencia acaba recaindo sobre os discursos de oposição a administração estadual.
Neste ponto, acreditamos ser importante nos de termos em uma questão de suma relevância no
que tange a analise da atuação da bancada pessedista no Legislativo mineiro: qual o tipo de
oposição feita por estes deputados ao Governo Estadual.
Já nos referimos a oposição levantada em torno das questões municipais e daquela advinda da
aproximação das eleições, que põe na balança as atitudes tomadas pelo Poder Executivo durante a
sua administração. Estas duas maneiras expressas de oposição têm claramente objetivos político-
eleitorais, e referem-se basicamente a problemas políticos (política aqui vista como administração de
conflitos). E e esta a oposição levada a cabo pela bancada pessedista no decorrer de toda a Legislatura
em estudo: uma oposição política, e não uma oposição de princípios.
Este fato pode-se tomar bastante claro no momento em que apreendemos qual a visão que
estes deputados possuíam de suas funções legislativas, do papel do Legislativo e mesmo do Executivo,

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e qual o papel de uma oposição no interior deste quadro institucional. E a determinação destas funções
e papeis e uma preocupação constante destes deputados, que a elas referem-se diversas vezes, como
que para delimitar a posição por eles tomada, evitando, assim, a cobrança daquilo que, não lendo sido
estabelecido, esta alem de suas possibilidades de realização.
É assim que vemos surgir as expressões "colaboração", "construtiva", "discreção",
"cooperação, palavras que nos levam ao centro da delimitação de funções e papeis por eles propostas:
a Assembléia Legislativa deve cooperar com o Poder Executivo na criação de melhores condições de
vida para a população através de seus deputados, que são os representantes do povo e, por isso
mesmo, devem estar atentos através de uma oposição discreta, construtiva, que vise unicamente, a
colaboração com o Executivo em prol do bem comum.
O Executivo e visto como o vértice dos três poderes, aquele que põe em prática as
contribuições dadas pelo Legislativo - esfera onde estão representados os interesses públicos - para
a efetivação do bem-estar da população.
No interior de um Legislativo tão altruísta, o papel assumido por estes deputados, enquanto
oposição, não poderia ser outro senão o da colaboração - e isto e o que esta fazendo quando denuncia
os atos do Executivo que, a seu ver, vão contra os interesses da população. Uma oposição discreta e
tranqüila, que não agite a opinião publica em demasia, uma vez que a desordem só faz impedir a
administração do bem publico.
O que podemos notar, entretanto, e que, por trás desta posição colaboracionista corroborada pela
função que se atribui ao Legislativo, existe a não-diferenciação de princípios entre um partido e
outro (UDN e PSD), uma vez que o caminho tornado pelo Governo Estadual para a resolução dos
problemas existentes não e questionado - questiona-se, sim, a forma política que esta direcionando
estas resoluções. A oposição e feita quando existe ameaça de perda de poder ou possibilidade de
conquistá-lo, o que transforma o Legislativo mineiro em um palco onde a disputa por posições na vida
político-administrativa fica evidenciada. Não podemos nos deter com maior profundidade nesta
questão, uma vez que para isto necessitaríamos de uma análise relativa também aos discursos não só
dos representantes da UDN no Legislativo, mas também no Executivo mineiro, e o que aqui fizemos
foi unicamente constatar o fato que nos foi transmitido pelos discursos pessedistas.
O que podemos verificar, portanto, é que a imagem construída pelos deputados pessedistas da
legislatura em estudo fixa-se em tomo da junção da visão que tem de seu papel enquanto
legisladores e representantes de seus eleitores com a de seu papel enquanto opositores a um governo
estabelecido também através do vote. Na verdade, a oposição que faziam ao governo mostrava-se
claramente partidária, ou seja, opunham-se a UDN e, uma vez que o Governo do Estado estava por
ela ocupada, opunham- se a ele. Mais interessante ainda e perceber que a junção destes dois papéis
anteriormente descritos e que ira determinar a atuação destes deputados em plenário. Enquanto
legisladores e porta-vozes dos interesses de seus eleitores, empenhados na construção de determinada
realidade histórica, visando ao bem- estar coletivo, não podiam sistematizar uma oposição que viesse
a obstruir as realizações de uma administra9ao, no momento em que esta propunha benefícios para
a população.
Por outro lado, contudo, não podemos nos deixar levar unicamente por aquilo que e dito
pelos deputados em plenário: colocando-se enquanto defensores do bem comum, defendendo interesses
bastante específicos e fazendo uma oposição centrada no âmbito político, o que estes deputados nos
demonstram e que, como partido conservador que representam, partido este que propunha o equilíbrio
enquanto conduta essencial da vida política, e majoritário na ocupação de funções institucionais
decisórias, não necessitavam tomar atitudes mais drásticas (e nem assim queriam, uma vez que a
condução da vida administrativa do Estado não lhes era de todo desagradável ou mesmo contraditória

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com seus princípios liberais-conservadores), devendo preocupar-se basicamente com a manutenção ou obtenção de
seus meios de interferência nas injunções políticas institucionais, o que lhes permitiria controlar, com maior
eficácia, o caminho a ser tornado pela Nação naquele decisivo momento histórico.
Assim sendo, o que podemos concluir e que a linha diretiva da atuação da bancada pessedista mineira
na Primeira Legislatura da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, analisada através dos discursos destes
deputados em plenário, e dominada por um alto tom pragmático: defendendo interesses específicos, levando a cabo
uma oposição essencialmente política e conciliatória, tinha o objetivo explicito de não comprometer sua posição
privilegiada de ter em mãos a condução de um processo de reestruturação do poder da maneira que mais lhes
conviesse.

NOTAS

Trabalho realizado sob financiamento do CNPq com orientação da Prof3 Lucila de Almeida Neves Delgado
e que faz parte de monografia apresentada no Bacharelado do Curso de História da UFMG.

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COMUNICAÇÃO

O DISCURSO JUSCELINISTA NA PEEFEITURA DE

BELO HORIZONTE

Marlene Corrêa Maia


Dept de História – Fafich/UFMG
o

Nesta comunicação, pretendemos apresentar algumas considerações acerca da pesquisa


que estamos realizando no bacharelado do curso de História da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFMG, sob a orientação da professoras Lucila de Almeida Neves Delgado.
Constitui nossa proposta de trabalho analise do discurso juscelinista durante a
administração da Prefeitura de Belo Horizonte nos anos de 1940 a 1945.
Tal período, apesar de seu indiscutível significado na história da cidade, não foi
analisado com grau maior de profundidade. De maneira geral, o que encontramos são estudos
particularizados, enfocando temas como o projeto da Pampulha a reforma urbana, a
"modernização" das artes, entre outros.
Assumimos como ponto central de nosso estudo a hipótese de que o discurso
juscelinista, durante a administração da Prefeitura de Belo Horizonte, enfatizou a
"modernização", sobretudo no que concerne aos aspectos de progresso e desenvolvimento da
cidade. De acordo com a concepção de IK., a cidade deveria preparar-se para acompanhar as
mudanças que estavam ocorrendo no país. Era precise reestruturar Belo Horizonte, de forma a
conferir-lhe um perfil de metrópole.
O período que estamos trabalhando e bastante rico em fontes primarias, o que está
viabilizando a execução do nosso projeto. Inicialmente, a documentação que estamos analisando
e o conjunto de quarenta e quatro discursos publicados no jornal Minas Gerais ao longo da
administração de JK. Estes, numa primeira avaliação, possibilitaram a formulação da hipótese
central e têm contribuído, através de seu amplo potencial explicativo, para identificação de
propostas, projetos, objetivos e idéias que permearam a atuação de Juscelino Kubitschek.
OUTRO tipo de fonte que estamos analisando e o Relatório do prefeito de Belo
Horizonte datado de 1942. Este material nos têm permitido conhecer os projetos executados, os
orçamentos e as dificuldades que envolveram a rotina administrativa de JK.
As memórias ―Meu Caminho para Brasília - A Escalada da Humanidade" e "A
Escalada Política‖ – tornam possível em contato mais precioso com as idéias do homem, do
político e do administrador.
Devido à imprecisão do termo, sentimos a necessidade de formular uma conceituação

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compatível com nossa proposta de trabalho. Nesse sentido, entendemos por discurso um conjunto de
signos do qual fazem parte a fala, as palavras, os gestos, as ações, a imagem. A analise desses
elementos implica a exploração do texto e do extratexto. Não basta o estudo da palavra em si. É preciso
resgatar as condições de produção do discurso, a contextualidade. Explorar o conotativo, além do
denotativo, ou seja, a idéia que o enunciado expressa.
Como subsidio teórico, estamos utilizando trabalhos que discutem a problemática da análise de
discurso. As abordagens que se referem especialmente a associação da lingüística a história nos têm
fornecido métodos para uma interpretação mais precisa dos textos. A intenção e de elucidar as marcas
enunciativas, a essência do conteúdo do discurso e estabelecer relações entre estas e o contexto de produção
que será conhecido através do estudo de uma bibliografia referente ao período.
A partir da analise de alguns documentos podemos apresentar algumas considerações acerca do
conteúdo do discurso.
JK retoma a idéia que norteou o projeto inicial da capital, ou seja, a necessidade de se criar para
Minas Gerais uma verdadeira metrópole, "um centro econômico e sócio-cultural, enfim, que comandasse
a província"1. A idéia e retomada por JK como forma de justificar seus projetos.
Essa concepção modernizadora e ampliada e dinamizada por JK, na medida em que o espaço
metropolitano de Belo Horizonte assume novos contornos, com o alargamento e pavimentação de ruas e
avenidas (a Afonso Pena e um exemplo), o alongamento e construção de redes de esgotos, obras sociais
(Hospital Municipal, Lar dos Meninos), além de empreendimentos no setor cultural (Instituto de Belas
Artes) e ainda o conjunto da Pampulha, uma inovação estética em termos de arquitetura.
A administração juscelinista estava intimamente ligada ao contexto nacional, num momento de
auge do Estado Novo. Segundo Lourdes Sola, "1940 marca o início das realizações econômicas
propriamente inovadoras, planejadas em 1939"2. É o instante de efetivação do piano qüinqüenal com a
implantação de usinas hidrelétricas, estrada de ferro e rodagem e fabricas de aviões. Um espírito de
progresso e de desenvolvimento assolava o país, refletindo-se também no governo de Benedito Valadares
que afirma em um discurso proferido na inauguração da Delegacia Regional do Serviço da Alimentação da
Previdência Social (SAPS) que "o governo de Minas se orgulhava de emprestar toda a sua cooperação a
essas patrióticas iniciativas, que tantos benefícios traziam aos operários mineiros"3.
A atuação de Juscelino Kubitschek estava vinculada a administração de Benedito Valadares, e o
que constatamos em vários discursos, como, por exemplo, o que se refere ao quinto aniversario da
administração: 'Tão bem quanto eu, conheceis essa obra, inegavelmente gigantesca que, na capital de
Minas, atesta a eficiente e patriótica orientação dada aos negócios públicos pelo governador Benedito
Valadares e que transmudou, em todos os aspectos, a fisionomia de Belo Horizonte, tomando-a hoje a
terceira cidade do Brasil em grandeza e conforto'**.
Acreditamos que JK, ao privilegiar o binômio progresso e desenvolvimento, procura, sobretudo,
adequar sua administração a conjuntura nacional.
Ha que se ressaltar uma nítida preocupação da administração JK em atender as aspirações de
diversos segmentos da sociedade. Ao mesmo tempo que criava instituições assistenciais, intensificava
a atividade cultural e modificava o espaço urbano da cidade. O compromisso de seu governo com esses
aspectos da administração e reafirmado em um discurso proferido em 1943, no Rotary Clube, onde JK
argumentava que "numa cidade em formação ainda, dotada de um piano não executado em sua totalidade,
o dever primacial do administrador era, em primeiro lugar, compor a fisionomia material da "urbs"5.
Entendemos que na construção dessa "fisionomia material", algumas obras merecem destaque:
O Lar dos Meninos e o Restaurante da Cidade, obra ressaltada pela imprensa como um "nobre
empreendimento da administração municipal"6. Assinalamos também a construção da

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Pampulha, obra conjunta da administração municipal e estadual. Segundo Adalgisa Arantes Campus, "o
conjunto da Pampulha tem um significado político de autopromoção do prefeito e do governador, essa
antiga necessidade dos políticos se perpetuarem no tempo através do espaço, podemos dizer que a
Pampulha e um passo para Brasília"7.
No nosso entendimento o momenta em questão apresentou-se como ponto de partida para a
projeção nacional da imagem do político JK, caracteristicamente popular e compromissada com o
progresso e o desenvolvimento.
Realçamos que esta imagem foi gestada neste período e o seu trabalho na prefeitura de Belo
Horizonte significou, sobretudo, um primeiro esforço no sentido de alcançar o cenário nacional. Em
1976, em entrevista a Revista Manchete, JK afirmou: "minha eleição para deputado federal foi a
maneira pela qual o povo de Minas, e em especial o povo de Belo Horizonte, expressou o seu
reconhecimento pelo meu trabalho a frente da Prefeitura. Eu havia feito apenas o meu dever. Mas isto
bastou para que todos se sentissem gratos ao esforço que imprimi a frente da municipalidade da
Capital"'.
Através da conclusão da fase de análise das fontes primarias estamos buscando caracterizar o
conteúdo do discurso e obter elementos para avaliar o seu grau de inserção na realidade em que foi
produzido. A partir dessa etapa, acreditamos encontrar subsídios para fundamentação e comprovação de
nossa hipótese.

NOTAS

1-TORRES, João Camilo de Oliveira. História de Minas Gerais. Belo Horizonte: Difusão
Panamericana, V. 5, cap. II, p. 1224.
2- SOLA, Lourdes. O Golpe de 37 e o Estado Novo. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.) Brasil
em perspectiva. São Paulo: 13* ed. Difel, 1982.
A instalação, ontem, na Capital, da Delegacia Regional e dos Postos do SAPS. In: Minas
Gerais, Belo Horizonte, 16 de agosto de 1944, p. 06.
3- Pelo 59 aniversário da administração Juscelino Kubitschek. In: Minas Gerais. Belo Horizonte,
19 de abril de 1945, p. 08.
4- Homenagem do Rotary Clube a Belo Horizonte. In: Minas Gerais. Belo Horizonte, 16
de dezembro de 1943, p. 08.
5- Administração JK de Oliveira - Inaugurado na Capital de Minas Gerais mais um restaurantes
da cidade. In: Revista Nacional Bancária. Belo Horizonte, Coleção Linhares, maio 1945, p.
26-7.
6- CAMPOS, Adalgisia Arantes. Pampulha, urna proposta estética e ideológica. (rnimeo).
7- JK - Os anos difíceis do PSD mineiro. In: Manchete. Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1976,
p. 28.

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COMUNICAÇÃO

VOCABULÁRIO DE HISTÓRIA MEDIEVAL


Celso Taveira

No estágio atual de nossos trabalhos fizemos levantamentos de termos em três obras, selecionadas
em função da importância que representaram e ainda representam para a historiografia do período: "O
outono da Idade Media", de Johan Huizinga, publicado pela primeira vez em 1919 em holandês e em 1932
em francês; "Maomé e Carlos Magno" de Henri Pirenne, publicado por F. Vercauteren em 1937, a partir
dos manuscritos deixados pelo autor em 1935, ano de sua morte; o primeiro tomo de "A sociedade feudal"
de Marc Bloch, que tem por título "A formação dos laços de dependência", publicado em 1939 (o segundo
tomo, "As classes e o governo dos homens", do qual fizemos levantamento apenas no primeiro capítulo,
dedicado as origens e consolidação da nobreza como classe social, foi publicado em 1940).
Três momentos, portanto, na historiografia do século XX dedicada a Idade Media: uma análise
psicológica no primeiro caso, uma tese inovadora no segundo, uma análise a mais completa possível da
estrutura social, uma síntese ainda não igualada, que e como vem sendo considerado ate hoje o livro de Marc
Bloch1.
Em 18 meses de pesquisa coletamos em Huizinga um total de 313 termos, em Pirenne 114 e
finalmente 504 em Marc Bloch. É evidente que muitos deles se repetem nos três textos, sobretudo aqueles
que se inserem no repertorio básico, o que nos permite já neste momento tecermos algumas considerações
reveladoras das dimensões de cada um dos livros consultados.
E sabido que a monumental analise de Huizinga se tomou o primeiro fundamento da história das
mentalidades hoje tão cultivada na Franca e, por extensão, no Brasil. Passo gigantesco pela ampliação do
âmbito da pesquisa (coletâneas de documentos e sobretudo um minucioso estudo dos cronistas da época) e
pela importância atribuída a psicologia do cotidiano medieval, onde o autor utilizou recursos que viriam a
ser igualmente utilizados por Marc Bloch, por exemplo, o recurso as fontes literárias e poéticas.
Ao traçar um vivo painel da vida no final da Idade Media no Norte da Franca e nos Países Baixos, o
autor utilizou no titulo a palavra "outono": o outono da Idade Media. Em edições subseqüentes, a palavra
foi curiosamente substituída por "declínio", tal como na edição francesa de 1932 e nas edições posteriores
em língua portuguesa. Foi somente na edição francesa de 1980 (Payot) que o titulo original foi restaurado.
Cumpre-nos registrar, sobretudo a importância do caráter simbólico atribuído pelo historiador holandês a
esta palavra, que designa a estação do ano em que a natureza perde energia e definha. Assim, a civilização
medieval dos séculos XIV e XV definha e cede lugar a um outro tipo de civilização.
Ora, e justamente este caráter simbólico que predomina ao longo dos 22 capítulos do texto

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original (transformados em 23 nas Edições portuguesas que seguem a versão condensada


inglesa & 1924). Neste sentido, ficamos desconcertados diante de nossa própria proposta de
trabalho, em função da despreocupação do autor quanto ao teor técnico da terminologia
utilizada, ligado que esta o pl^ do livro a exploração dos estados psicológicos. Assim,
quando o autor afirma:
La distinction technique entre le saint et le bienheureux, l'organisation de la sainteie
par la canonisation officielle, bien que d'un formalisme inquietant, n'etaient pourtam
pas en opposition avec 1'esprit du christianisme. L'Eglise restait conscient e de
1'egalite originelle de l'etat de saint et de celui de bienheureux, et de
l'insuffisance de la canonisation 2.
A citação ilustra nossa dificuldade em dois aspectos: primeiramente chamamos atenção pai a
esta "distinção técnica entre o santo e o bem-aventurado", onde o autor, embora preocupado
com uma questão técnica, permanece num domínio vago de santidade institucionalizada e
formal, mas carente de um desenvolvimento do conteúdo. Consideramos essencial em nosso
Vocabulário o registro de um aspecto inesgotável da Cristandade medieval, qual seja, o culto
dos santos e o reforço continuado do contingente dos mesmos, formando uma verdadeira
legião beatificada. Ora, o texto não fornece subsídios para tal, embora nos aponte sua
importância enquanto fenômeno social de primeira grandeza Em segundo lugar, desta mesma
citação poderíamos reter o termo "canonização", mas os dados são igualmente tênues.
Da mesma forma, no estudo da categoria social dos cavaleiros, encontramos uma
expressão do tipo "ideal cavalheiresco":
Nous retrouvons l'ideal chevaleresque applique la guerre dans ies combat;
singuliers, entre deux ou plusieurs adversaires 3 .
Ou ainda, num momento crucial, quando nos deparamos com a temivel palavra "feudal";
Les trois grands ordres de Terre Sainte et Ies trois ordres espagnois, nes de la
penetration mutuelle de l'ideal monastique et de l'ideal feodal, avaient bientot pris
le caractere de grandes institutions politiques et economiques 4.
É evidentemente difícil concebermos um verbete para "ideal feudal" ou "ideal
monástico", mas eis que podemos identificar aí o lampejo de quem pensa a história. O ideal
feudal confunde-se naturalmente com o ideal cavalheiresco e, em Marc Bloch, encontraremos
justamente o caráter militar como fundamento das instituições feudais:
L'orgueil est un des ingredients essentiels de toute conscience de classe. Celui des
"nobles" de l'ere feodale vat., avant tout, un orgueil guerrier 5.
Portanto, podemos não abrir um verbete para instituições feudais vistas numa ótica
literária e idealizada, mas certamente as considerações de Huizinga nos serão úteis na
elaboração de um verbete destinado a nobreza medieval.
"Maomé e Carlos Magno", última obra de síntese de Henri Pirenne, também marcou
época e suscitou debates em função da tese do autor acerca da expansão do Islã no século
VIII como marco para o início dos tempos medievais 6.
Debates hoje superados, com a rejeição generalizada da tese, contrabalançada pela
ampla aceitação de um dado geográfico dos mais significativos: a gradativa transferência do
eixo econômico do Sul para o Norte da Gália franca, num processo consumado na época
carolíngia. Neste contexto, adquire grande importância para o historiador belga e para a
historiografia posterior o termo "portus", marcando o novo caráter fluvial e continental
assumido pelo comercio. Portanto, ao tratarmos do verbete "portus", estaremos nos referindo
não apenas a uma nova configuração do espaço geográfico na Idade Média, que a distingue da
Antiguidade, mas também a pólos de um futuro desenvolvimento econômico, quando os
Normandos cessarem as agressões e iniciarem a pratica do estabelecimento

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definitivo no continente europeu.


Por outro lado, nada encontramos de interessante acerca do termo "feudo", que aparece num sentido
generalizante do tipo:
En esas tierras del Norte, feudo de la ley Salica y la ley Ripuaria, las costumbre son
mucho mas rudas que en el Sur. Incluso se encuetran alli paganos7.
Como vemos, o termo aparece inteiramente vazio de sentido, num contexto que implica
essencialmente a rivalidade entre a realeza merovíngia neustriana e a dinastia pepínida austrasiana, ou então
o conflito Romanismo-Germanismo implícito na oposição entre os francos merovíngios romanizados e os
carolíngios austrasianos não romanizados.
A nosso ver o livro de Pirenne e um amalgama de inovações do ponto de vista de uma ―história
econômica e de conservadorismo do ponto de vista de uma história política. Abundam no texto expressões
latinas próprias do império romano tardio, tais como: "judices provinciarum", "quaestor sacri palatii",
"magister officiorum"8, resultantes sem duvida do esforço do autor em demonstrar sua tese acerca da
permanência da Romania ate a época de Carlos Magno. Ora, neste sentido e o próprio termo "România"
que pode nos interessar de perto, em função do significado a ele atribuído por Pirenne, indicando a
permanência das estruturas antigas ate o triunfo do germanismo vindo da Austrália a partir da segunda metade
do século VIII.
"Maomé e Carlos Magno" de Pirenne, "A sociedade feudal" de Marc Bloch: ambos
publicados no final da década de 30, e, no entanto, que salto representou o segundo. Com Marc Bloch,
deparamos pela primeira vez com um manancial quase que inesgotável de material para nosso
Vocabulário, doravante as voltas com reflexões ate então inimaginadas no século XX.
"L'ampleur de la synthese, aujourd'hui encore irremplacee"9.
A comparação evidencia a transformação profunda nos métodos e nas vias abertas. Em Marc Bloch,
temos o primeiro esforço de compreensão da sociedade feudal em suas mais variadas manifestações, um
"questionário" (Robert Fossier) segundo expressão do próprio autor:
Un livre sur la societe feodale peut se definir comme un effort pour repondre a une question
posee par son titre meme...10
Ao questionar o próprio tftulo de seu livro (assim como outros historiadores o fizeram depois), o
autor nos coloca ao mesmo tempo diante de seu metodo e diante de nossas dificuldades. 0 metodo:
...un livre d'histoire doit dormer faim11. As dificuldades:
Ainsi la langue technique du droit elle-meme ne disposait que d'un vocabulaire a
la fois trop archaique et trop flottant pour lui permettre de serrer de pres la realite.
Quant au lexique des parlers usuels, ils avaient toute l'imprecision et l'instabilite
d'une nomenclature purement orale et populaire. Or, en matiere d'insututions
sociales, le desordre des mots entraine presque necessairement celui des choses12.
Destes dois pianos da linguagem, o falado e o escrito, sabemos o quanto o primeiro e preponderante
numa sociedade estruturada basicamente nos costumes. Assim, ao depender quase que
exclusivamente da palavra escrita, o medievalista vê-se privado de qualquer testemunho localizado
fora da esfera reduzida dos letrados. E no entanto, talvez muito mais importante para ele seja o
depoimento vivo da palavra falada, ou seja, da palavra inexistente, do testemunho surdo das camadas
inferiores da sociedade. E por isto que Marc Bloch na verdade analisa a aristocracia laica da época
feudal e não a sociedade feudal em seu conjunto. Portanto, se e impossível trabalhar com a palavra
inexistente, o historiador deve se contentar com a existente. Mas, ao sentir-se feliz por dispor pelo
menos desta, ele não pode nunca perder de vista o fato de que esta pode preparar-lhe uma armadilha.

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Por outro lado, embrenhando-nos nesta palavra dispornível, acreditamos poder dispor de um poderoso
instrumento crítico que nos permite, já neste momento, tecer algumas considerações próprias. O autor fornece
dados abundantes para a elaboração de um verbete sobre a nobreza feudal ao longo de quase todo o livro. Se
nos detivermos no capítulo primeiro do livro primeiro do II tomo (pp 395-407), encontraremos as seguintes
afirmações:
Chez beaucoup de peuples germains, il avait existe certaines families qualifiees,
officiellement, de "nobles": en langue vulgaire "edelinge", que les textes latins
rendent par "nobiles" et qui, en franco-bourguignon, survecut sous la
forme "edelenc" (...) leurs membres comme disent les documents
anglo-saxons, etaient "nes plus chers" que les autrês hommes (p. 396)13.
Um pouco mais a frente, o autor assinala a presença do termo "nobilis", comportando seja a idéia de
uma distinção de nascença, seja aquela de uma certa fortuna, seja ainda a simples possessão de um alódio,
o que implicaria a ligação com pessoas mais humildes. Além disso, no processo generalizado de servilização,
o próprio privilegio de ser livre pode ser associado ao conceito de "noblesse". Finalmente, na confusão
amplamente disseminada na época, o termo acabou adquirindo um valor militar:
La synonimie, fugitivement entrevue, entre les mots de "nobles" et de "libres" ne devait
laisser de traces durables que dans le vocabulaire d'une forme speciale de subordination
la vassalite militare". (p.4O0) (...) la petite eglise que les religieux de Saint Riquier, vers
le milieu du IX siecle, re'servait aux devotions du personnel vassalique entretenu a la
cour abbatiale, portait le nom de chapelle des nobles ("capella nobilium") (pp. 400-
401)".
A partir do início do século XI, ao nos apróximarmos da segunda idade feudal do autor, encontramos
uma afirmativa que a nosso ver contrasta inteiramente com o rigor das considerações precedentes15. Ao
mencionar um tratado de paz datado de 1023, visando a proteção das "nobles femmes", o autor nos diz o
seguinte (os grifos são nossos):
En un mot, si la noblesse, comme classe juridique, demeurait inconnue, il est, des
ce moment, au prix d'une legere simplification de la terminologie, pleinement
loisible de parler d'une classe sociale des nobles et, surtout peut-etre, d'un genre de
vie noble. Car c'etait, principalement, par la nature des fortunes, l'exercise du
commandement, les moeurs que cette collectivite se definissait (p.402)".
Fortuna, comando, maneiras; eis como a nobreza passa a se definir a partir do século XI,
mas isto somente se toma possível a partir de uma "ligeira simplificação da terminologia". O que mais
nos chama a atenção e este recurso escorregadio que a línguagem nos oferece, a expressão inicial do autor,
"en un mot", que subitamente conduz o leitor a uma conclusão, que a nosso ver acaba por se constituir numa
especie de afirmação aprioristica. Em suma, para compreenderrnos algo acerca da formação da nobreza
feudal, devemos simplificar o conteúdo da palavra e aplica-la a um "genero devida nobre" já constitufdo no
século XI, no momento em que comecamos a sair deste século X tão obscuro.
Este exemplo que retiramos no autor atende amplamente aos objetivos de nosso projeto e desta nossa
comúnicação. Podemos explicitar aí os três níveis nos quais concentraremos nossos esforços: definição
análise de conteúdo e significado do mesmo para o autor considerado, o todo girando em torno da palavra,
este documento arqueológico registrado nas fontes escritas e que se constitui na materia-prima do
historiador.
Concluimos esta comunicação, registrando o fato de que, ao sairmos em busca das palavras que o
historiador utiliza, estamos nos confrontando com o material maior da ciência historica. Diante

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da palavra eslamos diante do instrumento através do qual a realidade e apreendida. Ou, talvez
rnais precisamente, diante da palavra estamcs diarste da aparencia externa da realidade historica
que nunca conseguimos perceber em sua totalidade. Pois, para conseguir esta façanha,
necessitariamos também do silêncio dos documentos.

NOTAS

* O presente trabalho conta com a participação dos estudantes José Fulgêncio P. C. da Silva,
Francisco Eduardo Andrade, Jane Regina Ferreira e Ana Maria de Oliveira, bolsistas pela
Coordenação de Piojetos Academicos da Direioria de Ensino da Universidade Federal de Ouro Preto.
1- Utilizamos as seguintes edições; para o livro Huizinga. L'Automne Age. Paris, Payot, 1980; O
Dedlínio da Idade Media. Lisboa, Ulisseia, s/d; Idem. São Paulo, Verbo/Edusp, 1978. Para Henri
Pierenne. Mahoma y Carlomagno, Madrid., Alianza, 1985; Maomée Carlos Magno. Lisboa, Dom
Quixote, 1970. Para Marc Bloch, La societe feodale, Paris, Albim Michel, 1989 (coll. L'evolution
de L"humanite); La sociedadfeudal. MNexico, Uteha, 1958 (col. La evolucion de la humanidade,
2 vols); A sociedade feudal, Lisboa, Ed. 70, 1987, 2* ed.
2- "A distinção tecnica entre o santo e o bem-aventurado, a organização oficial, ainda que de urn
formalismo inquietante, não estavam no entanto em oposi5ao ao espirito do cristianismo. A Igrejá
permanecia consciente da igualdade original do estado de santo e daquele de bem-aventurado,
bem como da insuficiência da canonizafao''. J. Huizinga, L'Autome..., cap. 12, p.172. As
traduções são de nossa responsabilidade.
3- J. Huizinga, op. cit, cap.7, p.106, "Reencontramos o ideal eavaiheiresco aplicado a guerra nos
combates singulares, entre dois ou varies adversaries".
4- J. Huizinga, op. cit., cap.6, p.87. "As três grandes ordens espanholas, nascidas da penetração
mútua do ideal monástico e do ideal feudal, haviam logo assumido o caráter de grandes
instituições polidcas e econômicas".
5- Marc Block, La societe'..., t. II, cap.l, pp.406 e 407. "O orgulho e urn dos ingredientes
essênciais
de toda consciência de classe. Aquele dos "nobres" da era feudal foi, antes de tudo, um orgulho
guerreiro".
6-A questão foi inicialmente proposta no livro As cidades na Idade Media.
7-Henri Pirenne. Mahoma y Carlomagno. Madrid: Alianza, 1985, pp. 161 e 162.
8- Idem, p.42.
9- R. Fossier. Prefacio. in: Marc Bloch. La societe.... "A amplidao da sintese, ate hoje
insubstituivel".
10-Marc Bloch, op. cit., Introdução, p.16. "Un livro sobre a sociedade feudal pode se defirtir como
um esforço para responder a uma questão colocada por seu tiailo".
11-Idem, p.17. O autor cita o jurista ingles Mailland"... um livro de história deve dar fome".
12-Idem, livro II, cap.2, p.123. "Assim a própria língua tecnica do direito dispunha apenas de um
vocabulário simultaneamente muito arcaico e muito flutuante que lhe permitisse aprender de peito
a realidade. Quanto ao léxico dos falares usuais, eles possuiam toda a imprecisão e instabilidade
de uma nomeclatura puramente oral e popular. Ora, em matéria de instituições sociais, a
desordem das palawas arrasta quase necessai'iamente a desordem das coisas".
13-"Entre muitos povos germânicos, existiram certas famílias qualificadas oficialmente de "nobres":
em língua vulgar "edelinge", que os textos latinos expressam por "nobbiles" e que sobreviveu em

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franco-borgonhes sob a forma "edelenc" (...) seus membros, como dizem os documentos anglo saxões,
eram "nascidos mais caros" que os outros homens".
14-"A sinommia, fugitivamente entrevista, ent5re as palavras "nobres" e "livres", não devia deixar
traços duráveis a não ser no vocabulário de uma forma especial de subordinação: a vassalidade
militar. (...) a pequena igreja que os religiosos de Saint Riquier, por volta de meados do século
IX, reservavam as deveções do pessoal vassálico mantido na corte abacial, era chamada de capela
dos nobres".
15-"Estamos nos atendo ao aspecto estritamente metodólogico, conscientes de que, do ponto de vista
histórico, as considerações do autor nesta seção vem sendo alvo de discordâncias. Ver o já citado
prefácio de Robert Fossier a edição de 1989 do livro de Marc Bloch.
16-"Numa palavra, se a nobreza, enquanto classe jurídica, permanência desconhecida, torna-se
plenamente lícito, a partir deste momento, ao preço de uma ligeira simplificação da terminologia,
falar de uma classe social dos nobres, sobretudo talvez de urn gênero de vida nobre. Pois era
principalmente pela natureza das fortunas, o exercfcio do comando e pelos costumes que esta
coletividade se definia".

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COMUNICAÇÃO

OS MONUMENTOS PÚBLICOS: PODER


MEMÓRIA E SOCIEDADE

Carlos Aurilio Pimenta de Faria

Comunicação apresentada no VII Encontro Regional da ANPUH-MG, em Mariana, no dia 27 de


setembro de 1990.
Nesta comunicação, exponho a discussão teórica que serve de base a um trabalho mais especifico,
intitulado "Memória e construção de uma consciência político-social: analise dos monumentos belo-
horizontinos aos inconfidentes", apresentado em dezembro de 1990 como requisito para o Bacharelado em
História da UFMG. Aqui, minha intenção primeira é apresentar e discutir a importancia de determinados
símbolos que nos são tão familiares, e que, no entanto, parecém muitas vezes mimetizados na paisagem
urbana. Falo dos monumentos publicos que, se são ostensivamente expostos a etemidade, parecém também
contar com a apatia do transeunte apressado e atordoado pelo cotidiano.
Segundo Georges Balandier, o poder não consegue se manter "nem pelo dominio brutal nem pela
justificação racional". Quando ele se estabelece únicamente pela forca e pela violencia incontida, sua
existência não pode ser segura. Tampouco a clarificação racional seria suficiente paia a perpetuação do
poder e sua necessaria credibilidade. "Ele (o poder) s6 se realiza e se conserva pela transposição, pela
produção de imagens, pela rnanipulação de simbolos e sua organização em um quadro cerimonial"1.
O passado e seus personagens são instrumentos imprescindfveis para a construção da legitimagao.
A história e, por vezes, idealizada e manipulada ao sabor das necessidades e a servijo do poder presente.
Podemos descongelar do bronze e do granito um rico material de analise. Estas figuras paralisadas
guardam em sua cristalizafao todo um movimento social e político.
A verificação etimologica da palavra "monumento" nos fornece sua precisa significação. A palavra
latina "monumentum" nos remete a raiz indo-europeia "men", que exprime uma das mais importantes funfoes
do espfrito (mens) que e a memoria. O verbo latino "monere" significa "fazer recordar", e daf "avisar,
iluminar e instruir". O monumento e, portanto, um "sinal do passado"2. A Enciclopedia Brasileira Merito da
como principal definição de monumento: "Qualquer obra de arquitetura ou escultura destinada a transmitir
a posteridade a memoria de fato ou pessoa notavel". Mais adiante, lemos que a edificação de monumentos
visa "uma continuidade espiritual que caracteriza

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uma tendência natural da vida em sociedade"3.


É exatamente essa "naturalidade" que buscaremos questionar, argumentando quanto as
funções desta ligação visceral e explícita entre monumento, poder de imposição e poder de
perpetuação.4
Enfatizando a idéia matricial de perpetuação pretendida pelos idealizadores dos monumentos
objetivamos buscar a significação e mensagem que se quer transmitir. A idéia amplamente aceita
de desconhedmento e descaso pelos monumentos e também importante. O temor de sua
efetivação, o temor que a imagem/símbolo caia num limbo, conduz a processos de ritualização que
reporiam a mensagem na ordem do dia.
Creio que nossa própria vivência na cidade possa justificar esta noção de desconhecimento
e descaso. No entanto, procuremos outros suportes. O seminário "Cidade, Cidadãos e Cidadania"
promovido pela Secretaria Múnicipal de Cultura de São Paulo em início de 1989, teve como uma
de suas conclusões, que Marilena Cham considera de "grande interesse político e cultural":

3- Descobriu-se que a população ignora a autoria e o significado de todos


os monumentos e esculturas espalhados pela cidade, como se eles
1
integrassem a memória coletiva como sinais e marcas desprendidos de se sentido artístico e
histórico5.

Atendo-nos a Belo Horizonte, podemos citar uma coluna do jornal de maior circulação no
Estado, o Estado de Minas, que se chama "Cenas de BH" e tem como subtítulo "Descobrindo a
Cidade". Frequentemente, essa coluna traz artigos sobre os mais diversos monumentos da cidade,
explicitando seu significado e localização e colhendo depoimentos junto a população e aos
funcionários públicos ligados a área cultural e a conservação da cidade. A tônica e sempre a
mesma: revelar o desconhecido.
Nelson Brissac Peixoto, comparando fotografias e monumentos, discute a saturação
simbolica das cidades modernas, em que os monumentos, como pontos referenciais, são tragados
por uma "avalanche de signos", tomando-se "virtualmente invisiveis". Escutemos Brissac
Peixoto:

... Um espaço sem hierarquia nem ordem, saturado, achatado, onde o fundo se
confunde com o primeiro piano e a paisagem se fragmenta em milhares de
pedacos. Sujeira visual que provoca uma total obstrução da legibilidade. A
proliferação dos signos os priva de qualquer significado*.

A rigidez e aparente distância dos monumentos podem, porém, nos iludir quanto a sua
poderosa inserção na sociedade e quanto a sua significação político-social. Claude Lefort ressalta
que nada há de mais vivo, "de mais presente em uma sociedade do que a relação que mantém com
as imagens do passado". Segundo esse autor, "o pensamento e a a^ao política se nutiem dos
exemplos que ela (a sociedade) se da."1. Os monumentos, entretanto, são imagens e referencias do
passado construidas para o futuro pela interferencia do poderio publico. Não podemos, portanto,
julga- los como imagens referenciais coletivamente instituldas, posto que suaintencionalidade tem,
normalmente, origens na administração publica, cujá representatividade (quando existente) não deve,
analiticamente, fundir suas ações e propósitos aos de toda a sociedade. Lembremo-nos também de
Georges Balandier (1982), que destaca a necessidade que o poder tem de produzir imagens e
manipular simbolos para a sua própria realização e conservação.

Todo o clamor da Nova História por urn tratamento dos documentos como monumentos, ou

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seja, a exortação a percepção de que os documentos não são "ingênuos" (para utilizar a expressão de Marc
Bloch), nos mostra, por contraste, a especificidade de nossa abordagem sobre os monumentos públicos. A
Nova História conclama a busca da intencionalidade dos documentos e ao questionamento de sua
aparente objetividade, afirmando que "o documento e monumento. Resulta do esforço das sociedades
históricas para impor ao futuro - voluntária ou involuntariamente - determinada imagem de si próprias. No
limite, não existe documento-verdade"*. Os monumentos têm sua intencionalidade de perpetuafao explfcita,
por sua própria natureza, consn'tuindo-se como verdadeiros "lugares da memoria", da memoria permitida e
louvada.
Seja, então, pelo descaso ou desconhecimento ou pela saturação ambiental, aquele significado
original vai se desgastando. Aquilo que foi construido para fazer recordar, forçar a lembrança, cai num
limbo. Díi a necessidade da repetição, da ritualizafao, ritualização essa que também abre espaco para
reformulações da mensagem e para novas aprópriações.
O rito e, segundo Claude Riviere, "a atitude fundamental, verbal, gestual e postural, onde qualquer um se reconhece
como inferior frente a manifestação de uma potencia", ao mesmo tempo em que (e aí a razão fundamental por que a
política se ritualiza) "o rito e o meio teatral de dar credito a uma superioridade e, portanto, de obter respeito e honra através
da ostentação de símbolos de dominação, de riqueza, de realizações algumas vezes imaginarias, de que o inferior carece"'.
Esses ritos, que Riviere chama de "seculaxes", tem funcionalidade política como elemento de legitimação,
hierarquização, moralização e exaltação.
Pierre Bourdieu afirma que os "simbolos são os instrumentos por excelência da 'integração social': enquanto
instrumentos de conhecimento e de comunicação, eles tomam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que
contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração 'lógica' e a consolidção da integração
moral"10.
Retornamos aqui a Riviere para quem a questão do nomos, da regra, do imperativo e resolvida apenas pela crença e
pelo rito que a consolida". Nesse sentido, podemos perceber a instauração de monumentos em sua função exemplar e em
sua ligação com o civilismo, que deve ser visto como a "aceitação das Iimita9oes inerentes a vida social"12. Se este acordo faz
sentido apenas enquanto o individuo participa do estabelecimento desta ordenação, vemos as cerimonias inaugurais desses
monumentos como congrajámento da população e de seus "representantes" com a memoria que então se incorpora ao
patrimonio da cidade.
Desta forma, dilui-se uma intenção estabelecedora e institucionalizante que apenas se pretende universal.
Dissipa-se, então, a idéia do monumento como recurso formal e dominante de "preservação da identidade social
por um passado historicizado"13, idéia essa que e realmente significativa. Esse passado historicizado e
importante base para a criação de um civismo que seja conserisual, o que nos remete a questão do monumento
ao herói.
Discorrendo sobre a função do herói, Paulo Miceli ve nele, esta "supergente que vira estatua", uma
finalidade essêncialmente moralista, que se presta para avaliar e dirigir capacidades e condutas. "O herói aparece
como responsavel pela indicação dos caminhos da humanidade e dos papeis que são destinados aos demais,
distribuindo ensinamentos e pregando sua moral num espaco onde e perigoso entrar e quase sempre proibido
especular ou ser indiscreto".

A heroificação a que se refere Miceli se incutiria por vezes em uma dimensão muito mais ampla em que a memória e
ritualizada e sacralizada (lembrando-nos de que a categoria do sagrado e muito mais abrangente que a do religioso),
formando um princípio de estruturação e organização do dinamismo social.
Notamos também como as ritualizações podem desviar aquele impulsos originais, forjando uma nova imagem, mais
adequada a um novo contexto sócio-político e vinculando-se

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outra forma aos novos "chefes de cerimonial".


Em uma rápida menção aos monumentos, Freud (1973), para explicitar a caracterização dos histericos
como sofrendo de "reminiscências" das quais não conseguem se desembaracar, também vê os
monumentos como símbolos mnêmicos. Freud aponta como anormalidade um apego emocional
persistente tanto de histericos em relação a acontecimentos traumaticos do passado como de
transeuntes que parassem compungidos ante a lembrança expressa pelos monumentos. Ele deixa
implícito que essas "memorias corporeas" deveriam ser assimiladas, assim como os traumas, de modo a
não alhear as pessoas da realidade e do presente.
Os monumentos, assim consideramos, são claros sinônimos e expressões da vontade e efetivação da
perpetuação de determinadas lembranças. A edificação de monumentos encerra urna arbitrariedade: a
apropriação, não apenas da memoria coletiva presente e futura de um passado destacado, mas também a
frequente apropriação do próprio desejo coletivo, visto serem estes muitas vezes exigidos em nome de
toda a população. O intuito (voluntario ou não) de se forjar uma imagem propria e propagá-la, que e
implicito nos documentos, e nítido nos monumentos. Esses "arquivos de pedra", como os chama Le
Goff, "acrescentavam (e podemos usar aqui o presente!) a função de arquivos propriamente ditos um
carater de publicidade insistente, apostando na ostentação e na durabilidade dessa memória lapidar e
marmorea"15.
Os monumentos podem ser objetos que buscam definir e caracterizar a identidade de uma nação. Os
monumentos são frequentemente associados a um passado comum, a uma herança coletiva que aponta
parametros e exemplos selecionados e cultuados16. Sendo elementos que balizam uma ligação entre
passado, presente e futuro, os monumentos podem ser considerados artifícios que intentam garantir a
continuidade da nação no tempo. Desta maneira, encontramos um sentido para o exemplo extremado das
estátuas de Sadam Hussein erigidas no Kuwait ocupado (ver nota 4).
Em um artigo que discute os "patrimônios culturais" em suas inter-relações com a memória e as
ideologias nacionais, Jose R. Goncalves afirma que os monumentos "são considerados parte orgânica
do passado e, na medida que os possuimos ou os olhamos, estabelecemos, por seu intermédio, uma
relação de continuidade com esse passado" 17. O autor utiliza aqui o termo monumento de forma
bastante abrangente, não se referindo especificamente as estatuas, mas queremos colocar reticências sobre
seu adjetivo "orgânica". Como visamos ressaltar uma vontade instauradora que pode ser arbitraria,
esclarecémos que estas "intrusoes perpetuadoras" não são necessariamente recebidas e mantidas de
maneira organica ou natural. Para exemplificar, apelamos, uma vez mais, para acontecimentos recentes.
Estátuas que simbolizam um período repressor tem sido sistematicamente removidas ou destruidas por
populares na União Soviética e no Leste Europeu desde fins de 1989 ". O socialismo estatista foi um
pródigo construtor de estatuas e cultuador de seus fundadores. Ainda na esteira da onda iconoclasta
assinalada, vejamos o seguinte artigo:
Uma estátua de Lênin foi destruída pelos operários de uma fábrica de
estátuas de Erevan, capital da Armênia. Como não há mais encomendas de estatuas e bustos de
líderes comunistas, os operários da fábrica Art-Kombinet foram despedidos. Em protesto,
quebraram todo o estoque".
Também este artigo nos mostra como esta forma de reforgo a identidade coletiva e a legitimização
era amplamente utilizada pelo regime soviético. Entretanto, devemos notar como a percepção
governista da mudança dos ventos refrea este movimento. Ali não mais existe uma passividade cordata
da população. A própria repressão não mais tem sido considerada eficaz ou prefere-se, estrategicamente,
eviti-la. Dilui-se o que Backsko chama de "comunidade de sentido".

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"Inexistindo esse terreno comum, que terá suas raízes seja no imaginário preexistente, seja em
aspirações coletivas em busca de urn novo imaginario, a relação de significado não se
estabelece e o simbolo cai no vazio, se não no ridfculo".20 Mas neste exemplo não se trata de vazio
ou de ridfculo, trata-se de não mais incorrer na furia da popuiação,
O fim da opressão e a procura de uma nova construção refletem-se na destruição de
antigos símbolos ou exemplos, demonstrando claramente como estes podem ser impostos,
forçando uma organicidade que no fundo e artificial.21
Temos ainda um exemplo em que a destruição torna-se simbolo de uma nova
ordenação. Em Managua, Nicaragua, um monumento demolido foi assim conservado para
perpetuar aquele sentimento de revolta popular. Há ainda uma placa com os seguintes dizeres:

PARTE DE ESCULTURA DEL MONUMENTO AL DICTADOR A.


SOMOZA G. QUE SE ENCONTRABA EN EL ESTADIO DE SU MISMO
NOMBRE DERRUBADA POR LA IRA DEL PUEBLO, EL DIA DE LA
VICTORIA REVOLUCIONARIA22.

A memória oficial pode ser debil. Sua credibilidade não depende somente da vontade
instauradora. Devemos averiguar sua aceitação e sua organização, que e indispensável para
suplantar a simples "montagem" ideológica. Montagem essa que e, segundo M. Pollak, "por
definição precaria e fragil"23.
Paitindo deste questionamento, vemos os monumentos publicos como um elo
escassamente analisado de interação entre poder e sociedade, que se revela, assim, extremamente
significativo e multifacetado.

NOTAS

1- BALANDIER, G. 1982:7.
2- LE GOFF, J. Documento/Monumento, 1984: 95.
3- ENCICLOPEDIA BRASILEIRA MERITO. Vol.13: 436.
4- Esta mesma naturalidade pode ser contraposta a um exemplo recente, que nos parece
essêncialmente forçado e artificial. Uma refugiada Kuwaitiana anunciou que as tropas
invasoras iraquianas ergueram 3 estatuas do presidente Sadam Hussein na capital do
emirado ocupado. Ainda mais significativo e o fato de estas esculturas representarem o novo
presidente do território anexado em 3 diferentes versoes: em uniforme militar, com túnica e
turbante arabes e usando um temo ocidental. Desta forma, enquanto o país ainda se
encontra macicamente dominado por
forças militares iraquianas, bombardeado por ideologias pan-arabicas e quando se
procura justificar a anexação por um passado comum desmembrado pelo imperialismo
ocidental, aquelas estatuas surgem como imposijáo, como busca de legitimação que nos soa
tão ostensiva quanto os tanques. FOLHA DE SÃO PAULO, 16 outubro 1990.
5- CHAUÍ, Marilena. Fantasia política? In: FOLHA DE SÃO PAULO, 03 maio 1989, p.A3.
6- PEKOTO, N.B . 1990: 472.
7- LEFORT, C. 1990: 164.
8- LE GOFF, J. Documento/Monumento, 1984: 103.
9- MOTA, Roberto. Apud RIVIERE, C. 1989: 9-10.

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10-BOURDIEU, P. 1989: 10.


11-RIVIERE, C. 1989: 16.
12-BURDEAU, G. 1979: 106.
13-DUARTE, L.F.D. 1986: 741.
14-MICELI, P. 1988: 10.
15-LE GOFF, J. História. 1984: 181.
16-Em uma serie de cartas escntas entre 1881 e 1883 a uma amiga na Alemanha, a jovem
educadora alema Ina Von Binzer, comentando sobre o Rio de Jáneiro, justifica a pobreza
de monumentos da cidade pelas "poucas tradições ou lembrancas historicas" que o pais
possuia. BINZER, I.V. 1982: 62.
17-GONCALVES, J.R. 1988: 268.
18- Para uma coletanea de artigos reportando cronologicamente alguns destes
movimentos, ver FARIA, C.A.P. 1990:68-70.
19-FOLHA DE SÃO PAULO, 26 outubro 1990.
20-CARVALHO, J.M. 1990: 13.
21-Ainda uma outra ilustração: manifestantes destruiram, a machadadas, uma estatua do ex-
ditador paraguaio Alfredo Stroessner, na cidade de La Colmena. ESTADO DE M1NAS,
05 de setembro 1989.
22-Fotografia presente em: FERLJNGHETTI, L. 1985: 25.
23-POLLAK, M. 1989: 9.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

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político-social; analise dos
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185

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PEKOTO, Nelson Brissac. As irriagens do outro. In: O Dcsejo. São Paulo, Cia. das
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REVIERE, Claude. As liturgias políticas. Rio de Jáneiro, Imago, 1989.

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


186

COMUNICAÇÃO

A COMARCA DO RIO DAS VELHAS:


RASTREAMENTO DAS FONTES

Beatriz Ricardina de Magalhães

Construir, produzir, resgatar forarn as palavras de ordem que mais se


destacaram nas discussdes do primeiro dia deste seminário. O objeto de nossa
comunicação é, pois, exatamente este: contribuir para a construção de uma história
moderna de Minas; proper a recuperação da documentação, dando-lhe transparência
atraves de urna ampla investigação das fontes primárias; motivar os estgiários para o
estudo do seculo XVIII, estimulá-los a elaborar monografias, comunicações e/ou
mesmo trabalhos pontais, e, sobretudo, chamar atenção para a criação do banco de dados
sobre essa fase da historia, no Centro de Estudos Mineiros, FAFICH, UFMG.
Das quatro Comarcas criadas em Minas Cierais no secuio XVIII, a do Rio das
Velhas tem sido a menos visitiada paia hisioriografia.
Pode-se especular em torno dos motivos de tal marginalização. Apesar de ela
não ter tido a glória da sediar o governo regional, e de não conhecer, em seus fastos, a
corrida dos diamantes, em 1776', era a Comarca mais populosa da Capitania, registrando
uma distribuição extremamente desigual da população, contando, também, com uma
assusiadora taxa de mortalidade infantil (90,76%). (Vide mapa dos habitantes).
Este é um primeiro desafio. Quais as atividades econômicas dessa população?
Por que aí se instala um contingente tão vasto de negros? Como era sua distribuição
geográfica? Em que eles se ocupavam? Como era a vida coitidiana nas vilas (Sabará,
Pitangui, Paracatu, Minas Novas, Caeté etc.) e nos seus termos?
Temos conhecimento da existência de vários rnapas da Capitania. Chamo
atenção, partioularmenie, para os de Joaqaim Joss da Rocha - um dos indiciados nos
Autos da Devassa da Inconfidência Mineira de 1789 - sobretudo o relative a "Comarca
do Sabara", pertencente ao acervo do Arquivo Público Mineiro". Como bom cartógrafo
que era, ele tema definir os limites da regiao, indicar povoados, igrejas, caminhos,
relevo, e, sobretudo, a hidrografia. (Vide mapa, p. 12).

1 . Uma primeira tarefa seria não so checar esses dados como também
investigar, através de outras fontes, os traços paraculares da Comarca que, em 1780",
tinha uma superfície de 1.620 léguas e era habitada per 123.352 almas. Seria válido,
pois sobre esses indícios, tentar contstruir outros rnapas identificando meihor a regiao?
Talvez mesmo fosse o caso de se iniciar urn trabalho

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


187

utlizando-se das informações apresentadas por Cunha Matos em sua Corografia Histórica da Província
de Minas Gerais (1837). Há, tanto no Arquivo Público Mineiro (APM), como no Serviço Cartográfico
do Exercito, sediado no Rio de Jáneiro, seções cartográficas extremamente ricas e pouco conhecidas.

II . Temos a satisfação de trazer aqui um primeiro levantamento de fontes manuscritas e


impressas que acreditamos merecerem exame.

1 . Manuscritos pertencentes ao acervo do APM

O nurnero'de códices referentes a Câmara Múnicipal de Sahara 'e de 246 (cujás datas.vão de
1719 a 1892), sendo que 108 referem-se ao século XVIII4.

2. Documentos transcritos publicados na RAPM relativoes a Sahara (vila e/ou comarca) nos
seguintes volumes: I, II, VI, VII, XIII e XVII.

3. Na RAPM, n 5 3, foi publicada a Memoria Historica da Capitania de Mirias Gerais de


Joaquim Jose da Rocha, cuja riqueza de informações possibilita um confronto de 'lados entre as quatro
comarcas. Pelo fato de ter sido publicada no século XIX (1837) ela se refere também a 5* Comarca, a
do Paracatu.

4. Ainda na RAPM, de 1908, vols. 1 e 2, temos a transcrição da Instrução para o governo da


capitania de Minas Gerais (1780), de Joao Jose Teixeira Coelho, obra fundamental para o estudo de
Minas colonial. . . . . . . ...

' 5 . Obras impressas

A carência de pesquisa documental nas obras publicadas sobre essa regiao e um


fatonotdrio. Apos um levantamento ;na Biblioteca Múnicipal de Sabara isso foi amplamento
comprovado. Elas podem ser caracterizadas como obras de registro de curiosidades, roteiros
turisticos, biografias de personagens ilustrês etc. Uma ressalva, entretanto, deve ser feita quanto as
publicações relativas
a história da arte 5. Há, contudo, um trabalho de maior envergadura sobre a cidade, da autoria de
Zoroastro Vianna Passes6.

III. NOSSA PESQUISA: RESULTADOS PROVISÓRIOS

Isto posto, na medida em que nos voltamos para a história regional de Minas no secuio
XVIII, nessa fase de levantamento de suas fontes primárias (G. T. "O século XVTII mineiro"),
pretendemos concentrar esforços no estudo dessa ilustre desconhecida Comarca do Rio das Velhas.

O trabalho teve início em 1988, através de um, convenio firmado com a Diretoria Regional da
antiga SPHAN, hoje Institute Brasileiro do Patrimonio Cultural (TOPC). Por sua vez o CPc; da
UFMG nos favoreceu, durante dois anos, com quatro bolsas para estagiarios, os quais elaboraram a
catalogação e o fichamento dos inventários do cartório do P. Ofício da Comarca de Sabará,
pertencentes ao acervo do Museu do Ouro.

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


188

Esse Projeto foi desenvolvido pelos alunos do Departamento de História, FAFICH, Alem
da catalogação dos inventarios foram preenchidas fichas descritivas dos dados rnais
significativos encontrados em cada inventario. A organização final ficou sob a responsabilidade
cje Valeria Pereira da Silva.
Ha 591 inventarios do Cartorio do I s Oficio, assim distribufdos: 269 para o século
XVUj e 322 para o XIX. Arualmeme encontram-se fichados 104 inventarios do século XVIH
(39%) e 208 do século XK (64,5%).
Embora tendo trabalhado com cerca de 39% dos inventarios do século XVHI, tivemos
condição de apurar certas tendencias da população dessa Comarca.
Foram elaborados alguns quadros: 1 - local de residencia; 2 - sexo do inventariado; 3 .
ocupação; 4 - proprietaries de imoveis; 5 - mimero de escTavos; 6 - posse de metais; 7 -
registr 0 das fortunas (monte-mor).
A titulo de exemplo, vamos apresentar apenas dois desses quadros provisorios.

SÉCULO XVIII — MONTES-MORES REGISTRADOS

NOS INVENTARIOS — FORTUNAS

NÃO REG. ATE 100 500a 500 a 1 1 a 5 5 a 10 contos


10 a 20 contos r. + 20 contos
DÉCADAS
1000.000 500.000 r. conto r. contos r.
1720-1729* - -r. - - r. — - - -
1730-1739 02 — 01 02 04 02 01 -
1740-1749 02 - 01 - 07 — - -
1750-1759 - - — 02 03 — - 01"
1760-1769 02 - 01 01 03 — 02 -
1770-1 779 30 03 03 01 05 01 - -
1790-1799 03 — 01 — — — - -
SEM DATA 10 02 - 01 05 — - -
TOTAL 49 05 07 07 25 03 03 01
% 49% 5% 7% 7% 25% 3% 3% 1%

* Inventários em oitavas de ouro sendo: 1 monte-mor 2.736 oitavas e 3/4 de


ouro; 1 m.m. 790 oitavas de ouro e 2 m.m. nad registrados. ** Monte-mor mais elevado
encontrado nestas fichas, vr. de29:185,750 reis.

Curiosamente, comparando com os dados encontrados para a Comarca de Ouro Preto, nela a
concentração maior de posse de escravos se da no plantel de 1 a 4 escravos, 42,9% -
Entretanto, uma discrepância significativa e encontrada na faixa seguinte, no plantel de 5 a
9 escravos. Na Comarca de Ouro Preto situam-se 26,6% dos proprietaries para 8,7% na Comarca
do Rio das Velhas'.

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189

O segundo quadro se refere ao volume da riqueza, a saber, ao patrimonio acumulado.


Voltando ao mapa de população (1776) (p. ), o segmento masculino na Comarca do Rio das Velhas
atingia 30,23%, assim constituido: 14,32% de brancos e 57,48% de negros, enquanto que a Comarca de
Ouro Preto contava com 25% da população masculina da Capitania. Em relação a população negra, os
brancos representavam 15,76% e os negros 68%. Nesse aspecto elas muito se assemelhavam.
Contudo, no quadro abaixo, não ha distinção de cor ou de raca. Nas Minas, onde as
oportunidades de enriquecimento eram maiores, sabe-se que predominava uma minoria de brancos.

NÚMERO DE ESCRAVOS POR PROPRIETÁRIO (POR INVENTARIO)


SÉCULO XVIII
ESCRAVOS

DÉCADAS NR* 1 A 4 5 A9 10 A 14 15 A 19 20 A 29 30 A 39 40 A 49 + 50

1720-1729 — 02 01 — 01 — — — —
1730-1739 — 04 02 02 01 03 — — —
5 740-1749 — 04 01 04 — 01 — — —
1750-1759 02 01 — — 01 01 — — or*-
1760-1769 04 03 02 — — 01 — — —
1770-1779 12 24 03 02 .— 01 — — —
1790-1799 02 02 — — — — — — —

SEM DATA 12 04 — — — — — — —
TOTAL 32 44 09 08 03 07 01
% 30,8 42,3 8,7 7,7 2,9 6,7 0,9

OBS.: * NR — Não registrado


** 58 escravos
— 1 menção a escravas prenhes e com.bebes. (1730/39) .
:

Aqui o contraste é significativo. Dos 51% registrados, 25% possuíam um


patrimonio de l:000$000 a 5:000$000. Enquanto que na Comarca de Ouro Preto, embora a
forma de cálculo seja diferente, a média de riqueza variava entre 2:973$490 (1 período) e
1:953$712 (3° período), que significa a existência de maiores ganhos na Comarca do Rio
das Velhas. Na verdade, ate o presente, o patrimonio mais alto encontrado e o de Mathias
de Crasto Porto (residente no arraial de Roca Grande, Comarca de Sahara, falecido em
1742), cujo volume atingiu a cifra de 80:287$962 reis.
Sena importante verificar, ao longo do século, o grau de concentração da riqueza, a
relação existente entre o volume da riqueza e a posse de escravos, o local de residencia,
a atividade econômica exercida, a repartição do patrimonio, o número de herdeiros, etc.
para melhor identificar esses personagens.

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190

IV - E, finalizando, ha uma observação importante a fazer: o Mtiseu do Ouro e depositario de um rico e


variado acervo. São Inventirios, Testamentos, Livros de Irmandades, Processos Criminals etc.
Recentemente foram transferidos para ele (29A)9/89) trihta metros lineares de documentos:
Inventarios e Testamentos, Processos Judiciais, Libelos, Autuações, Listas de Escravos etc. Esse
volume veio duplicar o acervo do Museu. Trata-se de um material valiosi'ssimo, salvado da ação do
tempo, mas que ainda não foi devidamente catalogado. E, dificilmente, nos tempos atuais, ele ira
merecer um tratamento adequado apesar do empenho da atual direção do Museu10.

NOTAS

1- Mapa eiaborado por Jose Joaquim da Rocha," Memoria Hlstorica da Capitania de Minas Gerais".
In: Revista do Arquivo Publlco Mineiro. Belo Horizonte, n° 3: 425-517.
2- Arquivo Publico Mineiro, Belo Horizonte. Mappa da Comarca do Sabari, s/1, 1778 (740 x 500
mm). Para melhor conhecimento não so das caracteristicas do mapa, como também da identidade do seu autor,
ha um excelente estudo:
ÁVILA, Cristina et alii. "Cartografia e Inconfidencia;Considerações sobre a Obra de
Jose Joaquim da Rocha". In: Análise e Conjuntura; Inconfidência Minelra e Revolução
Francêsa. Bicentenario 1789/1989 - vol. 4, n°s 2 e 3, 1989. ;
3- TEKEIRA COELHO, Jose Joao. "Instrução para o Govemo da Capitania de Minas Gerais". In:
RAPM, volumes 1 e 2, ano VHI, 1903.
4- "Catalogo da Seção Colonial". In: RAPM, n° 28 (XXDI),1977.
5- Conta com autores como Affonso AVILA, Anibal MATTOS, entre outros.
6- PASSOS, Zoroastro Vianna. Em Torno da Hist6rla de Sahara. 2 vis., Rio de Jáneiro, SPHAN,
n° 5, 1940.
7- Alunos do Departamento de História, FAFICH, bolsistas do CPq, da UFMG, que auxiliaram na
pesquisa: Carla Alfonsina D'Auria, Carla Valeria Vieira Linhares, Rosalvo Almeida Filho, Rosa
Maria Amado e Silene Cunha de Oliveira.

8- MAGALHAES, Beatriz Ricardina de. La Soclete Ouropretaine Selon Les Inventaires


"Post-Mortem". (1740-1770). These de doctorat - EHESS. Univ. Paris VI, 1985 (mimeo).
9- Esta comparação, evidentemente, não e muito significativa pois para o referido trabalho foram
estudados 106 inventarios (todos encontrados no pen'odo de 1740/70) e para a Comarca do Rio
das Velhas fez-se um levantamento de apenas 39% dos documentos (cujo maior volume, 42, se
concentra na década de 1770/79). Detectamos uma tendencia que, talvez, com o avanco da
pesquisa, se confirme. O importante e iniciar o estudo nessa direção a fim de se perceber a
diferencia^ao existente dentro do territorio mineiro. A questão não e fazer um "inventario das
diferenças", mas buscar um conhecimento mais aprofundado da população que representava,
apróximadamente, um quinto dos brasileiros da época.
10-Aproveitamos para agradecer a permanente boa acolhida não so da parte do Prof. Alexandre
Magalhaes, diretor do Museu do Ouro, como também do Prof. Jose Arcanjo do Couto Bouzas,
;
coordenador de pesquisas.

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COMUNICAÇÃO

OS ESTUDOS DE D. MARIA CAROLINA E A MUDANÇA DA


CAPITAL¹.

Angela Cristiana Sampaio


Mestrado em Sociologia/Fafich/UFMG

―miséria é miséria em qualquer canto


riquezas são diferentes
fracos doentes aflitos carentes
riquezas são diferentes
o sol não causa mais espanto
miséria é miséria em qualquer canto
cores raças castas crenças
riquezas são diferentes‖
(MISÉRIA;Antunes,Brito,Miklos)

Diferenças. Palavra banalizada, mas que se constitui em um conceito difícil de ser respeitado,
inclusive em análises históricas. O observador/pesquisador, na maioria das vezes, despossui o seu
objeto de sentidos, os quais não reconhecem, pór perceguir cegamente nele atributos e questões
anacrônicas, as quais constituem o seu presente, e não pela reconstrução atenta as teias do passado
que revestem esse obejeto².
Esperando não incorrer nessa limitação analítica, propondo fazer aqui um breve exercício, uma
tentativa de levantar alguns elementos que possam ser acrecentados à discussão sobre os significados
da construção de Belo Horizonte. E através de um discurso jornalístico sobre um tema particular, a
educação formal da mulher brasileira, em fins do século XIX, foi possível detectar um eixo analítico
– o conhecimento científico, e o que dele pode decorrer, como saneador dos espaços,corpos e
espíritos - recorrente nos ―discursos mudancistas‖ (da capital).
Utilizando uma matéria do jornal ―Gazeta de Ouro Preto‖ (OP), publuicado em 25/jan./1888,
sobre o ingresso de uma mulher, D. Maria Carolina de Vasconcelos - seu nome dá o título à matéria
como ouvinte, na Escola de Farmácia de Ouro Preto, algumas questões pertinentes, ao que foi
mencionado acima, se colocam. Mantendo a grafia da época, segue-se um de seus trechos mais
expressivos:

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


194

―A mulher brasileira...é o que infelizmente nós vemos: tem por única instrução o catecismo na
infancia, os omances damninhos na puberdade de colaboração com a valsa ao piano e o canto piegas.
Execessivamente sentimental, desconhecendo o homem e a si, as mais das vezes levianamente
namora na janela ou na sala. Fraca de espírito e de corpo, chlorotica, ignorando os preceitos da
hygiene, abusando do espartilho, da anquinha e do salto alto, que alem de arruinarem-lhe a saúde
tornaram-se ridícula e caricatura, aguarda o futuro para condenar a prole as enfermidades do espírito
e do corpo.
―As questõe de interesse geral, ela não as compreende, vive em um mundo à parte, fora de
circulação das idéias. Ignora o que seja a pátria, ciência e humanidade – não concebe o mundo em
que gravita o homem do qual só sabe apreciar o aspecto da futilidade. (...)‖

Futilidade. O autor do trecho acima, de uma forma apaixonada, faz eficiente discurso sobre a
necessidade de uma nova mulher para habitar o mesmo mundo do homem moderno. Alinhando
elementos domo pieguice, sentimentalismo, alienação, leviandade, etc, que seriam construidores dos
hábitos das mulheres de sua época, ele eficientemente critica uma visão do mundo e propõe uma
outra.
Futilidade. Homem é apresentado , apesar de ausente, como marco definidor de uma nova
racionalidade que revoltaria frente a infantilidade, permissividade, morbidade, ridículo, que estariam
presentes no comportamento feminino. Mas, é interessante observar que ele, o homem, não é
parceiro ou cúmplice da mulher na constituição e usufuição desse modo de vida deverá ser
abandonado.
Futilidade. Critica-se o comportamento, porem deixam-se de lado as estruturas, as instituições,
intocáveis. Ressalta, nesse pequeno trecho produzido, a importância dada à família, e mais ainda, sob
uma nova ótica, à família higienizada que buscará muito mais na medicina, do que na religião, por
exemplo, os princípios de sua organização. A higenização ditaria regras que afugentariam não so as
mazelas das doenças do corpo como também colocaria nos trilhos os espíritos fracos das mães,
esposas, irmãs, filhas...
Futilidade. Fala-se da entrada de D.Maria Carolina em uma escola de ensino superior e ao
esmo tempo da necessidade de se criar algo novo, o lar. A casa não sendo mais colocada como o
espaço de dispersão ou do sonho, mas como espaço privado complementar a um outro território, o
publico, que se pretende engajado e responsável , enquanto atento para as idéias do mundo. E a
Escola Superior de Farmácia deveria fazer parte deste processo enquanto lugar de discussão, leituras
sérias, avaliação de competência, etc...
Futilidade. Pátria. Ciência. Humanidade. Esclarecedor que apelo à pátria, em uma província de
iniciativas separatistas, se coloque junto com elementos que diluem intereses imediatos – não se
falando em domínio de uma região sobre outras, de uma religião sobre outas ou de uma classe social
sobre outra. Fala-se, ao contrário, de uma crença na objetividade da ciência, que estabeleceria a
circulação de idéias, suprindo necessidades, eliminando dificuldades, a qual poderia reunir todos
sobre o mesmo teto, sem conflitos ou mesmo sem o desagrado da convivência com posturas
caricaturais – a sobriedade, a economia também das emoções se faria necessária para os novos
tempos que estariam por vir. Ou ainda na denuncia da ignorância egoísta das mulheres, brasileiras,
que não as permitiria superar os limites da sala ou da cozinha, incorporando os saudáveis anseios da
humanidade.
A tentativa de ver o todo, de desvincilhar-se das experiências particulares e, através da ciência,
da medicina social, propor uma nova racionalidade, se faz presente também na documentação que
tenho utilizado sobre a mudança da capital, de Ouro Preto para Belo Horizonte, o que se efetivou

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


195

em 1897 com a sua inauguração. Importante foi perceber como este mesmo discurso - dos
novos tempos, do progresso, do moderao - estava se intiojetando nas pessoas e se reproduzindo
fluentemente, segundo particularidades, frente aos inimigos, os mais diversos, que
privilegiavam'.
Buscando-se desmontar o "discurso mudancista" (da capital) pode-se ver que ele se
pautou na valorização de se criar um centro catalisador que propiciasse o desenvolvimento
econômico, cultural, social de Minas, estimulando a industrialização, propondo uma superação
do passado colonial, repensando o espaco urbano, via medicina social. O capitalismo, que não
se fazia presente, em sua totalidade, nas relações sociais de produção, em Minas no século
XIX, se realizaria através da penetração e tentativa de racionalização massificadora,
questionando, adaptando, substituindo praticas sociais e instituifenalizando o individualismo
biirgues'.
O individuo adquiriria, frente a. essa racionalidade, um novo "status", aquele que teria
a informação ampliada sobre o murido não mais como possibilidade,mas-sim como
necessidade vital. A desinformação sobre padroes de pensamento/comportamento
estabelecidos por outras sociedades modernas, no que se referem a alimentação, sexo,
sociabilidade, vestuario, etc., implicaria o qiiestionamento de sua saude moral. Não somente
se definiriam as pessoas pelos criterios cristãos, do bem e do mal, a ciência se propbria como
o instrumento legitimador ou desqualificador das praticas cotidianas. As pessoas, assim, não
somente deveriam fazer ou usar alguma coisa, mas deveriam ter a noção de valores,
segundo a qual um costume seria melhor ou pior que outro para a sua saude fisica e
espiritual, valores que lhes permitiriam inserir-se no mundo civilizado.
É saboroso deparar com um texto como este, produzido por um jomal quinzenal,
estimulado pela atitude decidida de D. Maria Carolina, no qual o seu autor da asas a
imaginação e afia, uln por um, dentes, dentre muitos outros, que vão dilacerando um
universo simbolico de uma época.

NOT AS

1- Esta comunicação faz parte do desenvolvimento de minha dissertação de mestrado


em
Sociologia/FAFICHAJFMG, sob a orientagao da professora Dea Ribeiro Fenelon,
sobre a
mudanca da Capital de Minas e as contribuições dos preceitos da Medicina Social neste
processo.
2- ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Compreensão da realidade national i um desafio para
cientistas
sociais. FSP, 22/09/90, p.5-6 (Cad. Letras.) '
3- COSTA, Jurandir Freire. Ordem medica e norma familiar. Rio de Jáneiro: Graal, 1980.
4-OLIVEIRA, Lucia Lippi. A questão national na primeira Republica. São Paulo:
Brasiliense,
. 1990.
5- Entre outros, vejá-se a campanha feita pelo jornal "O Diabinhb" (OP), durante a década de
1880,
contra o entrudo e em apaixonada defesa racionalista pela pratica do camaval.
6- MURICY, Katia. A razao cetica Machado de Assis e as questoes do seu tempo.
LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991
196

COMUNICAÇÃO

ARTE RUPESTRE DO CENTRO MINEIRO:


A Regiao Arqueologica de Lagoa Santa

Alenice Motta Baeta Setor de Setor


de Arqueologia do MHN/UFMG

O estudo sistemático das pinturas rupestres do centro de Minas Gerais iniciou-se no ano de
1973 pela Missão Franco- Brasileira e, a partir de 1976, este estudo foi retomado pelo então criado
Setor de Arqueologia do Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais.
Para c desenvolvimento do trabalho de coleta e estudo das pinturas, o Setor de Arquelogia
vem contando desde 1987 com o financiamento e bolsas de outras fundações e instituições alem
da UFMG, como o Conselho Nacional de Pesquisa - CNPq, a Missão Franco-Brasileira, a
Fundação de Amparo a Pesquisa de Minas Gerais - Fapemig e da Finep. Mesmo assim, os recursos
humanos e financeiros são insuficientes frente a tarefa.
Nosso objetivo e coletar o maior número de informac5es, ampliando as nossas analises
crono-estilísticas e contribuindo com estudos etnograficos.
Damos prioridade aos sitios em fase de depredação, seja por agentes naturais ou por ações
humanas, realizando, pois, um verdadeiro trabalho de salvamento.
A arte rupestre aparece em diversas regioes do Estado de Minas, principalmente no centro,
norte e sudoeste. No centro mineiro, este tipo de fonte documental ocorre em diversas areas, seja
em paredoes calcareos, como e o caso da regiao "in foco" que e a de Lagoa Santa
especificamente, seja em paredoes de quartzito como parte da Serra do Cipo, Santana do Riacho
e Serra do Espinhaco.
Conhecida desde o século XIX, devido aos achados paleontologicos e arqueologicos do sabio
dinamarques Peter Wilhem Lund, a regiao arqueologica de Lagoa Santa comporta pelo menos 30
sitios rupestrês. Estes encontram-se espalhados pelos múnicfpios de Lagoa Santa, Matozinhos,
Prudente de Morais, Pedro Leopoldo e Sete Lagoas.
A maioria dos paredoes calcareos pintados ou gravados encontram-se, normalmente, bem
prdximos de alguma lagoa, expostos, direta ou indiretamente, a luz natural. Muitas pinturas estão
em altura e local acessi'veis, sendo, por isto, muitas vezes depredadas. Outras encontram-se em
local de acesso dificil e ate mesmo perigosos.
Para trabalhar com este tipo de fonte, fazemos um estudo sucessivo das
pinturas, tanto em campo para a coleta de dados, como em laboratorio para analise
destes. Em campo, copiamos as pinturas, observando variaveis como: tema, tecnica
de

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realização, tamanho, forma, altura, cor, tratamento grafico, superposições e outras observa$6es
cabíveis sobre as caracteristicas de cada si'tio. E feita a descrição geral do afloramento, como
também o levantamento fotografico e topografico do paredao. Em laboratorio, as pinturas são
reduzidas na escala de 1:5, e trabalhamos com urn jogo de fichas para cada figura, que e
analisada individualmente e dentro do seu contexto. . . . '. .
Através do estudo das variaveis, pode-se então perceber o padrão crono-estilistico de cada
si'tio levantado. A- analise comparative dos si'tios rupestrês mostra a existência de caracteristicas
comuns, mas também de tracos peculiares em cada local. . :..
Alem de direcionar as nossas pesquisas para determinafoes estilisticas, nos interessa
também compreender a sucessão destes estilos e sua incidencia quantitativa e qualitativa na
regiao.
Quando observamos principalmente as superposições de temas e estilos, obtemos algumas
conclusoes sobre a antiguidade relativa destes na regiao de Lagoa Santa e suas influencias de/ou
em outras regioes do pals.
Estas observações sobre as pinturas, tratadas de forma contextual, dao margem a analise
interpretativa que, por sua complexidade, ainda se encontra incipiente eni nosso .pais.

1 - UNIDADES CULTURAIS , .

Arqueologos especialistas em pintura rupestre no Brasil como Prous e Guidon utilizam, para
classificar as ocorrencias, as noções de Tradição, estilo e facies. Tradição e a categoria estilística e
tematica mais ampla, onde permanecem tragos comuns da arte regional. A Tradição por vezes e
subdividida em "estilos" e "facies", que caracterizam universes mais reduzidas e específicos, trata-
se então de variajoes microrregionais e/ou temporais, dentro de urn conjunto estilistico geral.
No caso de Lagoa Santa, temos reconhecido pelo menos duas unidades estili'sticas bem
caracterizadas: a Tradição Planalto e a Unidade Estilistica "Ballet".

1.1- A Tradição Planalto

É caracterizada pelo predommio quantitativo ou, pelo menos, visual, de representações


zoomorfas, entre as quais quadrupedes (sobretudo os cervideos), que formam a maioria das
representações. Por vezes, estes cervideos estão também flechados e associados a peixes ou
cardumes, a antropomorfos muito esquematizados, a nuvens de pontos, a tracos e basionetes que
também aparecém de forma isolada ou associados entre si. Geralmente, as figuras não formam
cenas explícitas; a única exceção e a existência de evocações de caca, com animais
desproporcionalmente grandes. Existem algumas representações de aves, repteis e raramente
onças, tatus, antas, porco do mato e tamandua. Animais como emas e cobras não aparecém nesta
Tradição, contrastando com a presença destes era outras Tradifoe.s, no norte de Minas. .
Antropomorfos esquematizados e filiformes são os mais comuns; porem expressoes mais
naturalistas aparecém em alguns sitios, como na Lapa da Criciuma III e Capao das Eguas r em
locais mais obscuros dos abrigos, Apre&entam os bracos e pemas em movimento sugerindo
influencia da unidade estih'stica "Ballet", tratada mais adiante.
Quanto a tecnica e a cor, as figuras apresentam-se em sua maioria pintadas com urna so cor
(monocromia). Normahnente, o vermelho e predominante, seguido pelo amarelo, o branco e o
preto.

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A bicromia e as tecnicas de gravura (picoteamento e, principalmente, as incisoes) ocorrem mais


raramente.
A "Tradição Planalto" foi definida considerando centenas de si'tios do Planalto Central
Brasileiro que abarcam parte dos Estados do Parana, São Paulo e Bahia. E importante observar
que esta unidade parece expandir-se a partir do centra mineiro.
Foi o primeiro conjunto estih'stico a se desenvolver na regiao; provavelmente, suas figuras
mais antigas eslao associadas ao pen'odo geologico Holoceno antigo (entre 12.000 e 8.000 BP). A
partir do Holoceno medio, variações tematicas e tecnicas se dao com maior incid encia. (Ver
prancha n5 1.)
Tipos de animais menos comuns e novas formas de execução dos grafismos rupestrês que
caracterizam estilos microrregionais recentes que aparecém sobre as primeiras representações
"Planalto".

1.2-Unidade Estatística "Ballet"

São essêncialmente figuras humanas lineares, com cabecas de passaros soerguidas que dao
sensação de leveza e sugerem uso de mascaras; o sexo e bem indicado, seja para mulheres ou
para homens. Existem cenas de parto.
A tematica expressa uma cultura ligada a representação dramatico-ritual/ de fecundidade,
demonstrando aspectos socio- artfsticos bem complexos.
Por ser mais recente que esta, e apresentar sobretudo cenas com antropomorfos, ela parece
demonstrar influencias estih'sticas da Tradição Nordeste (particulamiente bem representadas no
Piaui). As figuras tipo "Ballet" aparecém sobre as da Tradição "Planalto" nos si'tios: Lapa do
Ballet, \Gruta Rei do Mato e Cocais, que se encontram respectivamente nos municípios de
Matozinhos, Sete Lagoas e Barao de Cocais. (Ver prancha n 5 2.)

II - OS SÍTIOS: UM ESTUDO DE CASOS

Cada sítio rupestre apresenta elementos tipologicos/estilísticos que vem, por vezes,
confirmar tendências gerais das Tradições ou evidenciar a existência de caracteres microrregionais
dentro destas. Daremos aqui, apenas algumas informações gerais sobre alguns sítios, para então,
exemplificaremos dados estilísticos típicos e atípicos da Regiao Arqueológica de Lagoa Santa.

2.1 - Gruta Rei do Mato

A Gruta Rei do Mato, localizada no município de Sete Lagoas, possui 150 pinturas em uma
de suas entradas principais. Estas se encontram localizadas na parede e no teto, onde a luz incide
indiretamente. São representações de figuras geométricas, zoomorfas e fitomorfas.
O painel da parede demonstra três momentos cronológicos; o mais antigo esta representado
por cardumes vermelhos, característicos da Tradição Planalto. (Ver prancha n 9 3.)
O momento intermediário e representado por dois grupos de antropomorfos da Tradição
Ballet. Um deles, a direita do painel, e composto por nove indivíduos na cor vermelha: oito
mulheres em torno de um homem, todos com o sexo bem indicado. Apresentam ainda cabeças de
passaros; os

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pescoços e as pemas são compridos e os bracos de muitos parecém asas. Três circulos concentricos
com tracos radiais interligados parecém estar relacionados a este primeiro grupo. O outro grupo, a
esquerda, e composto por três antropomorfos, filiformes de cor preta, com sexo também indicado e
cabecas de aves.
;
'" O nivel cronológico mais recente e representado por tubereulos/raizes interligados, de cor
amarela que sugerem a forma de cara. '
Nos tetos, defronte a esta parede, apareeem de forma mais desfirganizada, conjuntos de
quadrupedes, peixes, figufas'geornetricas e fitomorfos que confirmam a cronologia do painel pintado

2.2 - Capão das Éguas

Este Sítio, localizado no múnicipio de Prudente de Morais, apresenta pinturas, gravuras e


incisoes rupestrês, que se encontram no paredao e nos blocos abatidos do abrigo.
As suas 150 figuras apresentam uma grande variedade tipologica, inseridas na Tradição
Planalto.
O Sitio foi dividido era Abrigo inferior, superior, intermediario e conduto das abelhas. Este
último apresenta antropomorfos naturalistas associados a peixes e quadrupedes. O Abrigo medio e
representado por uma onca e uma triade de aves, alem de um conjunto de pontos em composição
com a pata da onça. No Abrigo inferior ha 'dois casos de bicromia, todos 1 envolvendo quadrupedes
flechados associados a antropomorfos. Ainda aparecém neste,abrigo provaveis representações de
sauro e'fatu, este último,' assdciadd'provavelmerite a "cupules" (depressões artificiais na focha). So
Ha um caso do emprego da tecnica de picoteamento no paredao: uma- gravura de antropomorfo
localizada a frente de um bloco abatido com gravuras geometricas por toda a sua face exposta.
As incisões aparecém em um outro bloco/laje desabada.no centre do. Abrigo inferior. . ;
A grosso modo, tudo que envolve as figuras pre-historicas no Capao, como distribuição
espacial, tema, tecnica, altura, traiamento grafico,-etc. esu muito bem compartimentado e definido,
trazendo tamb,em muitas variedades tipologicas: da Tradição Planalto, (Ver prancha n" 4.)

2.3 – Lapa da Pia

Localizada no múnicipio de Prudente de Morais, este brigo, iluminado parcialmente pelo sol,
apresenta representafoes de quadrupedes, peixes e figuras geometricas, em evidencia os pectiformes.

O nível cronológico mais recente representado por grafismos S iasos espalhados por todo o pequeno
abrigo. Por vezes, estes apresentam-se de- forma desordenada ou entab em formadelicada de
peixesoude pentes. " Os móveis mais antigos são representados por peixes, quadrupedes,
figuras geometricas, " (inclusive de machados semi-lunares.
Não havia -ate levantarmos este Sítio, muitos dados quantitativos qualitativos sobre as |
incisoes nesta regiao. Com a Lapa da Pia,. obtivemos dados suficientes para- classificarmos esta '
expressão técnico-estilistica. (Ver prancha n4.).
No norte de Minas aparecem incisoes, no nivel cronológico mais recente também nos
intermediários, como por exemplo na Lapa- dos Desenhos:(Vale do Peruaçu). Na regiao arqueologiea
de Lagoa Santa, esta tecnica aparece, ate entlo, na cronologia mais recente.

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2.4 - Vargem da Pedra

Localizada no múnicipio de Matozinhos, este Sítio, com 260 figuras, apresenta vanos painéis
com grafismos rupestres concentrados em abrigos, nichos e condutos.
São sete painéis espalhados por todo o afloramento calcareo, expostos, direta e
indiretamente, a luz natural, sendo que alguns se encontram hoje em locais de acesso dificil.
Cada painel apresenta variados tipos e estilos e, por vezes, diferentes tecnicas e co res.

QUADRO 1

PAINEL REPRESENTAÇÃO

1 Conjunto de antropomorfos esquemáticos, figuras geometricas, peixes,


antopomorfos Ballet(2 cenas, uma, de copula). (Ver prancha n B 5 c.)

2 Quadrupedes - urn, flechado, com antropomrfos esquematicos ao redor


sugerindo cenas de caca.

3 Conjunto dequadúpedes (dois, de cor branca), antropomorfo esquematico.

4 Figuras geometricas, como bastonetes e astericos, conjunto de quadrupedes.

5 Incisoes geometricas sobre manchas pintadas,

6 Figuras geometricas bi e tricromicas: circulos com divisoes radiais.


Quadrupedes e pontos.

7 Conjunto de quadrupedes pretos.

Os tipos de representações geometricas bi e tricromicas do painel 6 só aparecém neste Sítio,


sugerindo influencias estilísticas do norte de Minas: a Tradição São Francisco (a grosso modo,
caracterizada pela bicromia de grafismos geometricos).
Neste Sítio aparecém variações estilisticas, tanto da Tradição Planalto, como da Unidade
Estilistica Ballet.
Portanto, cada sitio rupestre pode apresentar uma ou varias unidades estilísticas, como e o
caso de os Sítios Vargem da Pedra e Gruta Rei do Mato demonstrarem ou não uma organização e
equilibrio em seu conjunto, como na Lapa da Pia, por exemplo. E através do cruzamento de todas as
variaveis que envolvem os grafismos, sejam extraidas de cada figura ou do seu conjunto geral e que
obtemos maior embasamento para uma analise mais contextual para, então, podermos visualizar
provaveis "areas culturais" no Estado de Minas Gerais e em especial na regiao arqueologica de Lagoa
Santa.

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201

III - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, Alice. Tradições e estilos na arte rupestre no nordeste brasileiro. Clio - Revises do Curso
de Mestrado de História. Recife, v. 5, p. 91-104, 1982.
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Grande. Institut d'Ethndlogie. Archives et Documents; microeditions. Musee de l'Homme, Paris,
1975.
ANTHON1OZ, S.; COLOMBEL, P. & MONZON, S. Us peintures rupesties de Cerca Grande,
MG, Rresii. Cahiers d'archeologie d' Amirique du Sud. Paris, v. 6. 1978. Gl'iijON, Niede. Da
aplicabilidade das ciassificações preliminares na arm rupestie. Clio – Revista do Curso ue
Mestrado em Hisloria. Recife, v. 5, p. 117-128, 1982. MARTIN, Edouard. Me/noire collective
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WOXZON, S. Metodos de arialise dos grafismos de ação. Arquivos do \iuseu de Hisloria
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PROUS, Andre et alii. Estih'stica e cronologia na arte rupestre de Minas Gerais. Pesquisas. São
Leopoldo, v.31, p. 121-46, Inst. Anchietano de Pesquisas. 1981. PROUS, Andre. Exemplos de
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v.10, p. 196-210, 1985/86.
PROUS, Andre & PAULA, Fabiano Lopes. L'art rupestre dans les regions explorees par Lund
(centre de Minas Gerais, Bresil). Arquivos do Museu de Hisloria Natural. Belo Horizonte, v. 4/5, p.
311- .34, 1979/80.
SEDA, Paulo et alii. As representações zoomorfas de arte rupestre da Serra do Cabral; uma tentativa
de identificação e classificaijáo taxonomica. Dedalo. São Paulo, v.l, p. 343-61.(Pubhcações
avulsas.)
SOLEILHAVOUP, F. Les oeuvres rupestrês Sahariennes sont-elles hhmenacies? Office du Pare
National du Tassili - Alger, 1978.

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Prancha n a 1

Tradição Planalto - Tipos típicos

Antropomorfos -
a,b,c Biomorfo -
d
Peixe - e
Cervideos - f,g,h,i,j,k
Sinais Geometricos -1, m, n, o, p,
q, r, s, t, u

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203

Prancha n° 2
Unidade Estilística ―Ballet‖ – Temática

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Prancha ns3
Gruta Rei do Mato (Painel 1 - parede)
a - momento cronologico mais recente: Fitomorfos
b - momento cronologico intermediario: Cena de antropomorfo "Ballet"
c - momento cronologico mais antigo: Cardume

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Prancha ns 4

Sitio Capão das Éguas


a - Provavel ccna de caça
b - Zoomorfo associado as
bastonetes e cupules

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Sítio Lapa da Pia


c - Peixes
d - Incisoes de peixes
e - Incisoes
f - Incisoes de pentes

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Prancha ns 5

Sitio Vargem da Pedra


a - Figuras geometricas bi e tricromicas (P.6)
b - Tríade de aves (P.I)
c - Cena de Copula (P.I)

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COMUNICAÇÃO

FPTN - UM ARQUIVO PARTICULAR QUE SE ABRE


PARA A HISTÓRIA

Angela Cristina Sampaio Pesquisadora FPTN

Criada em 1985, a Fundação Presidente Tancredo Neves (FPTN) 1, pode vir a se constituir em mais um espaço
de pesquisa em Minas Gerais, superando uma tendencia detectada em algumas instituições de guarda e conservação
documental, que não se propoem ou não dispoem de condições para aventurar-se em mergulhos cognocitivos.
Contando com um rico acervo, pelo volume, qualidade e variedade de sua documentação, a FPTN também se propoe
a abrir o seu arquivo para consultas de pesquisadores interessados nos 50 anos de vida publica de Tancredo Neves.
Desafios, possibilidades, inquietações, limitações se apresentam continuamente no desenvolvimento do
trabalho de limpeza, classificação, manuseio, acondicionamento, preservação, na meckda em que conhecimentos
técnicos estão disponíveis e nos questionam algumas vezes, ao mesmo tempo que convivemos com a falta,
temporaria em nossa equipe, de bibliotecario, arquivista, museólogo, sociologo....
Cabe ressaltar que durante os anos de 1987/89, por estar o Arquivo dentro do "Projeto Memoria dos
Presidentes", foi realizado um convenio com a Fundação Nacional Pro-Memoria que, através de sua equipe "Pro-
Documento" - instituição infelizmente extinta pelo governo federal -, fomeceu criteriosa assessoria aos profissionais
da FPTN. Esta assessoria se deu em três m'veis:
- diagnostico das condições em que se encontrava o Arquivo, desde a propriedade de suas instalações fisicas,
ate a presença e identificação de microorganismos;
- orientação tecnica, para a equipe de trabalho, sobre manuseio, limpeza, higienização, acondicionamento e
guarda da documentação. Orientação dada levando-se em conta a especificidade de cada peca documental, em vista
de sua diversidade - adesivos, cartas, camisetas, jornais, fitas videomagneticas e audiomagneticas, livros, discos
fonograficos, fotografias etc.;
- acompanhamento do trabalho ao longo de seu desenvolvimento.
E sobre a organização intema do Arquivo, embora busquemos fazer um mapeamento geral do material
abrigado na FPTN com grandes recortes (arquivo x acervo, series x series complementares etc.), e no manuseio diario
do documento que enfrentamos a precariedade de soluções muitas vezes intuitivas, frutos de acaloradas discussões
da equipe. Em anexo encontra-se um quadra que permite a visualização da organização dada aos 60.000
documentos pertencente a FPTN. Cabendo ressaltar

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que pelo fato de seu acervo receber doações de documentos ate os dias de hoje, optou -se por esquemas
maleaveis de classificação.
Em vista do que foi colocado acima, gostariamos de enfatizar que buscamos, através de novas
5
leituras, intercambio com outros arquivos, participação em congresses, por exemplo, não so diminuir
nossas dificuldades e limitações tecnicas de trabalho, como também evitar, na medida do possível, os velhos
"erros" e soluções "superadas" por instituições similares no trato documental.
Concluindo, seria importante ressaltar que iniciativas, ainda timidas, estão sendo feitas no sentido que
aponta o estatuto de criação da FPTN com relação as suas finalidades, que seriam, entre outras: "publicar obras
e textos... criar e manter cursos... organizar concursos... realizar estudos...". Esperamos que estas diretrizes se
concretizem e que se multipliquem em Minas centros de pesquisa
não so para a ampliação do mercado de trabalho para novos pesquisadores, como também para o
estimulo a democratização da produção de novos conhecimentos.

NOTAS

1- A FPTN conta, atualmente, com uma pequena equipe técnica formada por quatro historiadoras: Celia Regina
Araujo Alves (Coordenadora), Nila Rodrigues Barbosa, Rosangela Mendonça Sampaio e Angela Cristina
Sampaio. Tendo sua sede em Belo Horizonte, a FPTN, caracteriza-se por ser uma instituição sem fins
lucrativos, se mantendo através de doações. Como fruto de seu trabalho figura o "Memorial Tancredo Neves",
inaugurado no dia 08 de dezembro de 1990, em São Joao del Rei, Minas Gerais.

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COLEÇÃO DISTRITO ARQUIVO TANCREDO NEVES COLEÇÃO FAMÍLIA


NEVES
FEDERAL COLEÇÕES COMPLEMENTA
COMCOMPLEMENTA
COMPLEMENTAR
COMPLEMENTARES
SERIES: COLEÇÃO COLEÇÃO D1 RISOLETA SERIES:
ITAMARATI NEVES . AUDIO-VISUAL .
CORRESPONDENCE

. CORRESPONDENCIA
. Abaixo-assinado .DOCUMENTAÇÃO
Aerogramas SÉRIES: SERIES: . JORNAIS,
Com fotos REVISTAS
Confidencial . AUDIO-VISUAL . CORRESPONDENCIAS: CLIPPINGS.
De terceiros
. CORRESPONDENCIA A) Instituto do Coração
. DOCUMENTOS B) Residencia Particular:
International . JORNA1S, REVISTAS, Com recorles de jornais
CUPPINGS Homenagens
Oficial
Particular Oficial
. Poemas Particular
. Preces Poemas
Religiosos . . JORNAIS, REVISTAS E
Telegramas
. Telex CLIPPINGS:
. Varios Boleiins de diversas ins-
tituico&s, entidades de
. AUDIO-VISUAL: classe, orgaos de gover-
. Fotos nos.
. Material de Propaganda Jornais: nacionais e in-
ternacionais.
. DOCUMENTOS (64 Titulos -
Anexo I) da Assessoria
. Material
. JORNAJS. REVISTAS E
CUPPINGS
. PRODUÇÃO INTELECTUAL _
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COMUNICAÇÃO

A PRÉ-HISTÓRIA DO ESTADO DE MINAS GERAIS

Andre Prous
Departamento de sociologia/Antropologia da UFMG.
Responsavel pelo Setor de Arqueologia da UFMG e pela
Mission Archeologique de Minos Gerais. Bolsista do CNPq.

INTRODUÇÃO

Na reconstituição histórico-cultural do passado, podemos lançar mão de duas fontes principais


de informação: os textos (escritos) e os vestígios arqueologicos (sendo estes qualquer testemunha
material da presença e da atividade do Homem, dentro do seu meio natural e cultural).
Os historiadores, particularmente no Brasil, são ainda pouco informados sobre as
possibilidades de utilizar-se a arqueologia para os períodos mais recentes. Vao desde informações
sobre as modificações ambientais (através de estudos paleobotanicos) ate a reconstitução das antigas
as paisagens agrárias (reconhecimento dos antigos cadastros, dos caminhos, etc., através da fotografia
o, aerea ou de satelite). A arqueologia permite abordar aspectos biologicos (demografia, populações ,
do parentesco biologico entre as pessoas) ou tecnologicos; rotas de difusão de materias-primas ou de
da propagação de novidades; alimentação; fornece ate meios de abordar sistemas simbolicos de
representagao do mundo. Sobretudo, recoloca o homem, ser cultural e que como tal se apresenta
através dos textos, no seu ambiente natural (muitas vezes desdenhado pelos escritos).
Outrossim, o texto e o vestígio arqueológico apresentam-se aos pesquisadores como
complementares não apenas pela abrangencia, mas também pelo direcionamento da informação.
O escrito e urn documento elaborado consciente e voluntariamente pelo autor, o qual tem as o
domínio sobre a tecnica da escrita (o que, na maioria das culturas, significa que ele esta ligado aos
detentores do poder). Assim sendo, o escrito apresenta ao leitor uma visão parcial e ideologicamente
orientada, como sabem todos os historiadores. Inclusive, as lutas ideologicas podem, alternativamente,
provocar a promoção, a subestimação ou ate o desaparecimento do documento.
Em compensagao, a maioria dos vestigios arqueologicos foram considerados ideologicamente
neutros e provem de qualquer pessoa: são essencialmente lixo. Assim sendo, não foram colocados
como portadores de mensagem (ou seja, não são destinados a induzir uma interpretação favorável a
quem os abandonou) e não se limitam a registrar as ações dos poderosos: o refúgio alimentar do pobre
podera ser tão bem representado quanto o do rico. Poderiamos falar do aspecto "democrático" do lixo,

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em oposição ao aspecto "elitista" do escriio. Isto não significa que a arqueologia possa substituir a
história, ou que o lixo seja preferível ao texto: completam-se e esclarecém-se mutuamente. Quem usa so
o texto trabalha a partir da visão do vencedor, mesmo que a critique. Quem so acredita no lixo perde a
compreensão das interpretações simbólicas e das manipulações ideologicas da realidade, assim como o
acesso a individualidade.
Mesmo assim, a própria arqueologia passa a ser hoje considerada como uma arma, sendo
manipulada pelo poder, já que pode ajudar a criar ou reforçar mitologias (da "cultura ariana", do
"comunismo primitivo", da legitimidade de um pais artificial, criado pelo desmembramento de um
imperio colonial, etc.).
Destarte, não e apenas preciso criticar o texto a partir dos vestígios materiais, mas convem que o
historiador conheca um pouco as tecnicas e os métodos da arqueologia para saber quais suas
possibilidades(imensas) e suas limitações, e ser capaz de perceber as distorções e interpretações
abusivas do discurso arqueologico.
Para isto, apresentarei, inicialmente, slides mostrando o procedimento do arqueologo. A seguir
farei um histórico das pesquisas no Estado, acabando por um resumo da pre-história do Estado de
Minas Gerais.

I - PROJEÇÃO DE SLIDES

Escavação dos sitios mineiros de Lapa Vermelha, Santana do-Riacho, Dragao e Boquete.
Vestígios biólogicos (esqueletos, alimentos), tecnologicos (artefatos de pedra, fibras, madeira, osso
e ceramica) e simbolicos ("arte rupestre"). Descrição dos metodos de analise, das orientações de
pesquisa e das conclusoes.

II - BREVE HISTÓRICO DAS PESQUISAS NO ESTADO

A arqueologia do Estado de Minas Gerais, comentada na Europa em meados do século XIX,


acabou caindo no esquecimento, por falta de interesse local, quase ate a segunda guerra mundial.
Mesmo após esta data, precisa-se esperar os anos 70 para que se iniciem trabalhos fora da regiao de
Lagoa Santa, a qual tinha ate então monopolizado as atenções. Neste mesmo decênio, monta-se o
primeiro centro de pesquisa do Estado. Com efeito, em meados do século XIX, o paleontólogo P.
Lund menciona as pinturas rupestrês de Cerca Grande e o achado de machados de pedra indígenas; cita
exemplos brasileiros para explicar a origem humana dos "concheiros" (semelhantes aos sambaquis)
do Velho Mundo. Enfim, achando em Sumidouro ossadas humanas misturadas com ossos de animais
extintos, tem a coragem inedita de supor a existência de um homem "antediluviano" nas Américas,
idéia que somente sera aceita em meados do século XX. Ao mesmo tempo, juntava um farto material
paleontologico que foi utilizado por Darwin para defender sua visão evolucionista.
Apos tão brilhante e precoce preliidio, o interesse pelo passado dos indfgenas de Minas
desaparece por complete, ate que, no final do decenio de 1920, um jesuita austriaco, Padberg -
Drenkpohl, mandado pelo Museu Nacional, viesse escavar em Confins, perto de Lagoa Santa;
encontrou um cemiterio pre- histórico, mas não tendo achado restos de fauna extinta, pensou que fosse
recente.
Intelectuais mineiros como A. Cathoud, A. Mattos, o consul da Inglaterra, H. Walter, e o Dr. J.
Penna discutiram essa conclusão. Enquanto este último divulgava a arte rupestre de Lagoa Santa, os
outros tentavam, por meio de escavações, demonstrar a antiguidade do Homem na regiao.

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Infelizmente, o modo de coleta do material (operários trabalhando sozinhos e pagos por "peca") não permitia
observações de carater científico; a única tentativa de sintese de arqueologia da regiao, feita nos anos 50, não
teve suas teses confirmadas pelas pesquisas posteriores.
Em 1954/5, W. Hurt (da Universidade de Indiana), O. Blasi e L. de Castro Faria (do Museu Nacional
do Rio) fizeram as primeiras escavações confiaveis no Estado, em Cerca Grande, perto de Lagoa Santa.
Publicaram os resultados somente em 1969 e de maneira muito sucinta, anunciando datações de quase
10.000 anos (ate então, as mais antigas obtidas no Brasil) para os primeiros vesti'gios de ocupação huinana.
Em 1971, uma Missão Arqueologica chefiada por A. Lamaing- Emperaire, da qual participamos,
voltava em Lagoa Santa para conseguir maiores informações e tentar reconstituir o paleoambiente. A
obtenção de datações muito antigas (mais de 20.000 anos) e o descobrimento de grandes animais extintos nos
móveis habitados do abrigo de Lapa Vermelha levaram A. Emperaire a prosseguir as escavações deste sítio
ate 1977. Paralelamente, outra equipe era encarregada do levantamento das pinturas rupestrs, algumas das
quais datadas de varios milênios, pela primeira vez também, no Brasil. Em 1976, a UFMG me convidou para
montar a primeira equipe profissional do Estado; logo, iniciamos as pesquisas na serra do Cipo (Santana do
Riacho) e no norte do Estado (Montalvania). Desde então, a UFMG desenvolveu pesquisas em dezenas de
múnicípios, descobrindo centenas de sitios e realizando pesquisas sistematicas em varias regioes, as vezes
em convenio com pesquisadores estrangeiros (escavações da Lapa Pequena de Montes Claros, com A.
Bryan e R. Gruhn). Atualmente, os trabalhos da UFMG se concentram particularmente no centro mineiro e
nos vales dos rios Peruacu e Jequitinhonha. Paralelamente, desde os anos 70, o Instituto de Arqueologia
Brasileira (TAB) vem trabalhando, particularmente, nas regioes de Unai, Varzelandia e Serra do Cabral.
Com isto, podemos dizer que a arqueologia de Minas Gerais teve condições de renascer nos ano 70;
infelizmente, seriam necessarias dezenas de equipes profissionalizadas para cobrir o territorio, registrar e
estudar ocorrencias, assim como ajudar as entidades de proteção ao Patrimonio (IEPHA e IPHAN), elas
mesmas insuficientemente equipadas, apesar da contratação de dois pre- historiadores pelo IEPHA-MG nos
anos 80.
Apesar da falta de possibilidade de contratações, das dificuldades para obter uma infra-estrutura
eficiente e financiamentos permanentes, o Setor de Arqueologia da UFMG, apoiado pela Missão
Arqueologica Franco-Brasileira, conseguiu tornar o nome dos sitios mineiros conhecidos intemacionalmente.
Organizou nurnerosos cursos e seminarios para promover a formação de pessoal, convidando, inclusive,
personalidades americanas (J. Flenniken), francêsas (J. Tixier) e argentinas (M.E. Mansur - Franchomme).

III - RESUMO DA OCUPAÇÃO DE MINAS DURANTE A PRE-HISTÓRIA

O Pleistoceno

Há mais de 12.000 anos atras, o ambiente natural no Brasil central era bastante diferente do atual. Num
clima mais seco, grandes savanas cobertas de capim forneciam alimentos para manadas de animais
gigantescos: camelfdeos (especies de lhamas gigantes), tatus de cerca de 3 m de comprimento,
mastodontes (aparentados aos elefantes) e, sobretudo, varias especies de preguicas terricolas, algumas das
quais chegavam a medir 6 m de comprimento. Os primeiros imigrantes humanos, descendentes de colonos
entrados na América a partir da passagem terrestre que existiu entre o Alaska e a Siberia oriental,
chegaram no Brasil em algum momento entre 40.000 e 12.000

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anos atras, no final do período geológico chamado pleistocene. É, difícil saber a que momento exato
ocorreu este primeiro povoamento: carvões datados entre 20.000 e 40.000 anos atras foram coletados
em abrigos do Piauí (escavações de N. Guidon) e em Minas Gerais (escavações conjuntas nossas e
de A. Laming-Emperake na Lapa Vermelha). No entanto, em ambos os casos, ha dúvidas sobre a
origem humana dos vestigios encontrados, inclusive dos carvoes.

A Transição Pleistoceno/Holoceno

Ao redor de 12.000 anos atrás, os abrigos da serra do Cipo (Santana do Riacho), do vale do
Peruacu, perto de Januária (abrigo do Boquete) e de Montalvania apresentam vestigios de
fogueiras, conservam instrumentos de osso e pedra lascada de sílex, arenito e de quartzo. Os estudos
(feitos no microscopio) das microestrias e dos micropolidos formados nos gumes de pedra mostram
que muitos instrumentos liticos eram utilizados para trabalhar madeira. Encontramos, também, urn
atelie onde se elaboravam pontas de flecha. Uma delas, quebrada, estava no meio do refugo de
fabricação; os homens, pois, já possufam arcos nesta época. Achamos, também, pigmentos (utilizados
para realizar algumas das pinturas mpestrês encontradas nesses locais?). Encontramos os seus vestígios
alimentares (conservaram-se sementes caibonizadas, valvas de moluscos e ossos de tatus e cervideos).
No Estado vizinho da Bahia, o paleontologo C. Cartelle encontrou um osso de preguica gigante com
maicas de inslrumentos de pedra (pesados, para desarticular, e facas mais leves, p ara cortar os
músculos), mostrando que o homem cafou estes animais enormes. No entanto, já nos encontramos no
final do pleistoceno, num momento em que o clima se transforma, tomando- se um pouco mais quente
(a temperatura deve ter subido de 4 aC) e bastante umido: entrava-se no período geologico atual, dito
"holoceno". As matas se desenvolviam, muitos pastos desapareciam e, com eles, as manadas de
herbivoros gigantes.

O Holoceno Antigo

Para este período, entre 12.000 e 8.000 anos atras, dispomos de muitas informações
coletadas nos últimos anos de pesquisa, particularmente no sitio de Santana do Riacho. Uma parte
deste abrigo foi utilizada como cemitério por uma população muito homogênea fisicamente (era
endogamica, ou seja, os membros do grupo local casavam-se essêncialmente entre si): a raca de Lagoa
Santa; eram pessoas relativamente pouco robustas, que sofriam de caries dentarias (fato raro entre os
homens pre-históricos) e de inflamações osseas. Sepultavam os mortos em covas, embrulhando-os
numa rede revestida de entiecasca, por vezes adornados com colares de sementes; despejávam um
po vermelho de oxido de ferro na cova, que era fechada com pequenos blocos de pedra amontoados;
mais de 50 esqueletos foram escavados. No centro de Minas, onde o sílex e raro, fabricavam
instrumentos lascados (facas, raspadores, furadores, pontas de projetil, etc.) sobretudo com cristal de
quartzo. Para instrumentos que precisavam ser mais resistentes, como os machados (cujos gumes eram
polidos), os habitanles de Lagoa Santa e da serra do Cipo importavam a hematita da serra do Curral,
ou de Conceição do Mato Dentro, e silimanita do vale do Jequitinhonha.
Há indícios de que certas pinturas rupestres sejam desta época, embora nenhuma tenha sido
datada com certeza. As figuras mais antigas do centro mineiro pertencem ao que cha mamos Tradição
Planalto, caracterizada por grandes representações de veados (por vezes rodeados por pequenas figuras
esquematicas, simbolizando caçadores, que, as vezes, fincam um dardo nas costas do animal) e por
peixes - agrupados aos pares. Esta tradição se estendeu desde o Estado do Parana, ao sul, ate parte
da Bahia. Em Minas, aparece em centenas de sitios do plato de Lagoa Santa, da serra do Cipo e do

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vale do Jequitinhonha. Talvez, ao mesmo tempo, no norte de Minas e, particularmente, AO


Longo do rio São Francisco, tenha nascido o que chamamos Tradição São Francisco,
caractenzada por grafismos essêncialmente geometricos, por vezes associados a representações
de objetos (Iancas, propulsores de dardos, etc.).

O Holoceno Medio

Entre 8.000 e 4.000 antes do presente, não se conhecem mais vestigios da raijá de Lagoa
Santa. Os únicos esqueletos disponíveis vem do norte de Minas (vale do Peruacu) e mostram
uma população bem diferente e mais robusta. Alem dos sepultarnentos em covas, foram
encontradas outras estruturas de ocupação dos abrigos, como marcas de estaca, cujos
alinhamentos devem permitir reconstituir a forma das habitações: mais de duzentas foram
levantadas num único sítio. Os instrumentos de pedra conhecidos para esta época são, na sua
maioria, menos sofisticados tecnologicamente que os do período anterior, embora não sejam,
por isto, menos eficientes;são, no centro mineiro, lascas brutas de quartzo retiradas de blocos
rachados sobre uma bigorna (tecnica de lascamento "bipolar") e, no norte, lascas de sílex
utilizadas brutas, tais como sairam do bloco de materia-prima (o "micleo"), sem retoques
posteriores. Conservaram-se também inumeras plainas, feitas a partir de conchas retocadas,
utilizadas para o trabalho da madeira, é provavel que tenha havido numerosas aldeias a ceu
aberto, como a que foi rápidamente prospectada em Buritizeiros, perto do rio São Francisco.
Infelizmente, não houve condições, ainda, de se realizar uma escavação sistemática neste
local e, portanto, o nosso conhecimento sobre esta época e limitado a ocupafao dos abrigos.
Neste período, a alimentação dos habitantes do Brasil atual continua sendo obtida
diretamente da natureza: coleta de vegetais, cada, coleta de moluscos (particularmente, os
grande gastropodos da familia Strophocheilideae) e caca aos vertebrados. Curiosamente, nota-
se a falta de restos de anta e de porco do mato entre os restos alimentares; teria havido uma
proibição de consumo de carne destes animais? Em compensação , há sinais de pesca;
alguns anzóis de osso foram encontrados, assim como vertebras de peixes.Algumas pinturas
foram datadas, com precisão, desta época, e milhares de outras são provavelmente do mesmo
período. Ao que parece, a tradição Planalto se mantem com a mesma tematica (representações
zoomorfas), mas, em cada regiao, os paineis
pintados mostram caracteristicas estilisticas peculiares, refletindo, provavelmente, territórios
tribais distintos, cada grupo tendo sua maneira de expressar a mensagem inscrita nos paredoes
naturais.

O Período Holocenico Tardio ( cerca de 4000/2000 antes do presente)

Trata-se de um período de transição, ainda bem pouco conhecido. Na serra do Cipó,


é caracterizado pelo aparecimento de um novo estilo na Tradição Planalto; frequentemente,
alinhamentos debastonetes e conjuntos de pontos pintados se justapoem ou sucedem as
representações animais, que não chegam, no entanto, a desaparecer. Em varias partes do Estado,
as representações de aves se multiplicando em Unai, elas parecém voar no teto de um abrigo
que sugere o ceu.
As pesquisas do IAB (do Rio de Jáneiro) sugerem que, nesta época, pelo menos
algumas populações passam a cremar os mortos. Em Santana do Riacho, graos de
milho parecem contemporaneos de fogueiras de cerca de 4000 anos de antiguidade. Alguns
cacos de ceramica aparecem também nesta época, e documentariam o aparecimento da tecnica
da olaria; no entanto, os achados são ainda raros, e temos de considerar que os cacos
encontrados nas camadas anteriores a 2500 antes do presente possam ser intrusivos.
Em todo caso, o holoceno tardio aparece como um perío do de mudanças, com,
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provavelmente, a introdução de uma agricultura incipiente, talvez a chegada de novas


populações e idéias.
O Holoceno Final (cerca de 2000/3000 anos atras ate o século XVIII)

Os últimos milênios são conhecidos tanto pelos milhares de sitios a ceu aberto já
registrados, quanto pelos abrigos, alguns dos quais continuam a ser utilizados.

Os moradores dos abrigos no norte mineiro

Os abrigos, no norte do Estado, foram utilizados por horticultores, que


armazenavam provisoes em "silos", especies de grandes cestas sem alça que entenavam no
chao de terra. Encontram-se neles coquinhos, feijáo, milho, mandioca (as vezes
parcialmente-ralada), cabaças, urucum, e ate folhas de fumo empilhadas, sementes silvestres
e plantas medicinais; artefatos como coidoes de algodao, penas para adomos, cabo para
machado de pedra, etc., tudo preservado pelo ambiente extraordinariamente seco de alguns
sitios. Logo antes da chegada dos europeus, os últimos ocupantes dos abrigos deixaram
instrumentos de pedra lascada de grande tamanho (artefatos plano-convexos e retocados) e
machados de pedra totalmente polidos (o gume polido e mais aprópriado para instrumentos
que trabalham por percussão, como o machado; os gumes lascados são melhores para trabalhar
por pressão, ou seja, para cortar, serrar, raspar ou furar). Nesses dois milenios, parece ter
havido um grande movimento de idéias, tecnicas e, talvez, de populações; com efeito, as
"mensagens" jupestres mudam varias vezes de conteúdo. contrastando com a relativa
estabilidade das tradições anteriores. Contamos a existsncia de pelo menos três tradições
sucessivas; uma delas, pelo menos, veio de fora: a tradição "Nordeste", encontrada e
definida, inicialmente, no Piauí, e caracterizada por pequenas representações humanas
agitadas que formam grupos familiares, cenas de copula ou de ritual ao redor de uma arvore.
No centro-sul do Estado (Lagoa Santa/Sete Lagoas), parece ter havido um
sincretismo entre a tradição Nordeste e as crencas ligadas as aves do período anterior, que
deu nascimento as representações de tipo "Ballet", com seres que tem corpos antropomorfos,
cabeça de ave e orgaos genitais exagerados, e que formam procissoes, ou cenas de parto.
Os ceramistas moradores dos abrigos foram agrupados, pelo pesquisador O. Dias,
numa tradifao chamada "Una", cujos portadores teriam, posteriormente, migrado para o literal
carioca. De fato, sabemos ainda muito pouco sobre esses grupos.

Os aldeiões da Tradição Sapucai

No decurso do primeiro milênio da nossa era, multiplicam-se, em todo o Estado,


as aldeias de uma cultura que raramente utiliza os abrigos. Estas populacpes e stão
agrupadas na Tradição Sapucai, aparentada a Tradição Aratu, que se estende nos Estados de
Goias e da Bahia. As aldeias eram formadas por grandes habitações coletivas dispostas em
circulo ao redor de uma praça central. Nas habitações acham-se milhares de cacos de
ceramica de grandes potes (destinados a conservar liquidos, fazer bebidas fermentadas, ou a
sepultar os mortos) e vasilhames menores, finos, cujá forma lembra, por vezes, cuias vegetais.
Entre as habitações, enterravam os mortos em urnas cujá forma lemtaa a fruta da Sapucaia
(arvore do mundo dos mortos, nas tradigoes de certos indios Puri).
A ceramica não era decorada, mas os vasos menores recebiam, as vezes, um
banho ("engobo") de tinta vermelha. Estes grupos utilizavam a pedra, essêncialmente, na
forma de bigorna

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e batedor para quebrar sementes e na de objetos polidos como machados ou adornos. Urn artefato
cerimonial, que freqiientemente acompanhava o morto na sua uma, e uma lamina de machado em
forma de incora, dita semilunar, sempre feita com muito cuidado. Perto de Lagoa Santa, ha uma
pintura rupestre mostrando um desses machados complete encabado. O lascamento da pedra, em
compensação, era pouco praticado e sem maiores requintes: estes grupos deviam utilizar muito
mais a madeira como materia-prima para instrumentos, Estas aldeias, como a da Fazenda São
Geraldo, em Ibia, que contava 18 casas, podem ter agregado centenas de pessoas e, pela espessura
do refugo arqueologico, podem ter sido estaveis durante muitos anos. São típicas de cultivadores
de milho que ocupavam os cerrados do Brasil central.
Esses vestígios podem ser atribuídos aos ancestrais dos indios Gês que mantem, ate hoje,
padroes de aldeiamento parecidos com os da Tradição Sapucai.
Em alguns lugares, particularmente frios (sope da serra do Cipo, Nepomuceno), foram
encontradas covas de ate 3m de profundidade e 12m de diametro, escavadas na terra; degraus
laterais permitiam o acesso; o refugo formava uma cintura protetora contra as enxurradas. Tais
estruturas lembram as "casas semi-subterraneas" tipicas do planalto sul brasileiro; ainda faltam
pesquisas para verificar quais foram seus autores. De qualquer modo, existem alguns indi'cios de
influências meridionals nas zonas de Araucaria ("pinheiro do Parana") do sul do Estado, onde
foram encontrados objetos ti'picos como "virotes" de pedra, normalmente associados as casas
subterraneas do infcio do 1º milenio da nossa era, no sudoeste de São Paulo e no Parana. No
século XVI, Gabriel Soares de Souza dava noti'cias de povos que habitavam embaixo da terra,
"em tocas".

A tradição ceramista tupi-guarani

No final do primeiro e no início do segundo milenio da nossa era, uma nova população,
provavelmente vinda da orla marítima, penetra em territorio mineiro ao longo dos principais rios
navegaveis (rio Doce, rio Jequitinhonha), subindo também seus principals afluentes. São os
grupos ditos "Tupi-Guaranis", pelo menos em parte, ancestrais dos Tupis históricos. Não tiveram
tempo de se tomarem númerosos; por isto, poucos sitios são conhecidos e nenhum foi ai nda
objeto de uma pesquisa sistematica. Grupos canoeiros e cultivadores de mandioca ocupavam
essêncialmente ambientes de mata ciliar onde podiam praticar a agriculrura de coivara e a pesca,
suas principals atividades de subsistencia.
As aldeias tupi-guaranis eram também a ceu aberto e compostas por varias grandes malocas
(habitações coletivas de forma oval) cujá ocupação podia ser por varios anos. A diferença dos
Sapucafs, decoravam suas ceramicas com relevos feitos na pasta fresca (corrugações feitas
pinçando o barro, impressão de unhas) ou com desenhos gecmetricos muito delicados pintados em
preto e vermelho sobre um fundo branco. Em Andrelandia, foram também achados adomos de
ceramica, em forma de cabeça humana, que eram provavelmente aplicados na borda dos
vasilhames. As laminas de machados (de forma ovalada ou trapezoidal) tem seu gume polido
(para dar uma forma biconvexa, mais resistente), sendo o resto da peca picoteado (o que da uma
superfície rugosa, melhorando a aderencia dentro do cabo). São também comuns maos de pilao
picoteadas e/ou polidas; em outros Estados, foram encontrados adornos labiais ("tembetas") de
cristal em forma de T, que ainda não foram assinalados em Minas.
Os Tupis-Guaianis, como os Sapucais, sepultavam os mortos em urnas, seja em vasos
abertos, de forma quadrangular (vale do rio Doce), o que e comum no litoral do centro e nordeste
brasileiro, seja em grandes umas profundas de boca restrita (regiao de Salinas), forma tradicional
nos Estados do sul do Brasil.

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Os Tupis-Guaranis, pouco acostumados aos cerrados e as caatingas, não


parecém ter consolidado sua presença em territorio mineiro. Quando chegaram os europeus,
estes somente noticiaram a presença de Puris e Coroados (descendentes dos portadores da
Tradifao "Una"?) e de grupos Ges. Muitos ceramistas e horticultores, para escaparem as
doen9as e aos ataques dos brancos, modificaram seus costumes, aumentando sua mobilidade;
ao mesmo tempo, os rradicionaishabitantes do centro e none mineiro (Sapucais) sofriam o
impacto da chegada de novos grupos indigenas que vinham de outras regioes, provavelmente
em razao da pressão dos Portugueses; estes belicosos recém-chegados, chamados
"Botocudos" pelos europeus, são os grupos mais freqiientemente mencionados pelos
administradores coloniais, que não chegaram a conhecer as primitivas sociedades indigenas do
Brasil cennal na sua fase de apogeu.

CONCLUSÃO

Embora os trabalhos arqueologicos sistematicos no Estado tenham-se


desenvolvido apenas nos últimos 15 anos, foi possível realizar urn primeiro balanço dos
conhecimentos. A partir dos documentos guardados nos arquivos, teria sido impossível ter
uma idéia, mesmo minima, do passado de Minas e do Brasil. Nem sequer a existência de urn
passado pre-cabralino podia ser aceito, embora todo mundo saiba da existência dos fndios
antes do século XV: o Brasil, oficialmente, continua tendo sido "descoberto pelos
porrugueses";podenamos dizer que, no imaginario nacional, os Indios existem pelos brancos,
que os criaram para exaltar a si mesmos pela oposição com os "outros".
Os povos sem escrita não tem voz, no mundo moderno: o "descobrimento do
mundo" e atribufdo aos europeus. A "invenção" do pastoreio e da agricultura são creditados ao
único Próximo Oriente, culturalmente aceito como raiz do mundo europeu e branco em geral.
Ate no vocabulario "antropologico", os indios do Brasil não tem direilo a serem chamados
de agricuhores: são "horticultores"; os caçadores-coletores formam "bandos", uma palavra que
sugere uma inorganização total do tecido social. Esse vocabulario, ranco do evolucionismo
milinear do século XIX, reflete a postura da "inteteligentista" que assimila os indios a um
elemento da Natureza, a ser preservado numa reserva zoologica para passeios saudosistas de
uma sociedade que não conseguiu decidir se essas sociedades "outras" são resqui'cios do
Paraiso Perdido (mito do "Bom Selvagem") ou um estorvo na rota do Progresso. Ninguém
parece imaginar que possam refletir uma escolha adaptativa as condições de vida peculiares,
tão validas quanto a escolha dos agricultores de cereais dos países temperados, os quais
levaram a tecnologia maquinista ao seu auge, ao preço da miseria da maior parte da popula9ao
mundial.
Descartando - ou relativizando - o imaginario criado pelo escrito, a
arqueologia da uma chance aos excluidos de existirem e se expressarem. Aos poucos, a luta
dos povos esquecidos para viverem e se situarem no mundo começa a ter seus frutos,
merce ao trabalho paciente dos arqueologos: não apenas ao escavar-se as piramides dos
farads, mas também ao fazer ressurgir o dia-a-dia inglorio dos caboclos sem terra, dos indios
sem voz, dos quilombos perseguidos.

BIBLIOGRAFIA

Muitas informações poderao ser encontradas nos Arquivos do Museu de


História Natural da UFMG.

LPH – Revista de História, v. 2, n 1, p. 05-16, 1991


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COMUNICAÇÃO

ESCRAVOS E ABOLICIONISMO NA IMPRENSA


MINEIRA (1850/1888)

Liana Maria Reis


Deptº de História – PUC – MG

O presente trabalho constitui a primeira etapa de urn projeto de pesquisa 1 cujo tema e a atuação
política dos escravos - entendida como toda manifestação do cativo ("pacífica" ou "violenta") no
sentido de fazer frente as relações de dominação as quais estava submetido - atuação expressa tanto
nas ações praticadas dentro dos espaços institucionais (legais) abeitos pelo sistema escravista, como
nos diversos atos de rebeldia referidos nos inúmeros jornais do período de 1850 a 1888, na provincia
de Minas Gerais2.
O recorte temporal não foi estabelecido aleatoriamente. O ano de 1850 marca o fim do
trafico negreiro e este fato vai interferir, de forma significativa, nas transformações das relações
sociais (especialmente na relação senhor-escravo), na medida em que as discussões acerca da
continuidade da escravidão e a busca de solução para o problema da mao-de-obra tornavam-se
inadiaveis para os proprietarios escravistas. Por outro lado, este fato implicou, provavelmente, a
abertura de novas possibilidades de negociação política por parte dos escravos na conquista de certos
direitos, pois os proprietarios passaram a se preocupar com a manutenção da forca de trabalho,
assegurando a continuidade dos seus investimentos, haja vista o aumento dos precos dos cativos e os
limites impostos pelo tragico interprovincial. Estes fatos podem explicar, pelo menos em parte, o
"melhor tratamento" dispensado aos cativos nos anos posteriores a 1850 3.
O ano de 1888 marca outro momento significativo do processo histórico brasileiro com a
extinção juridica da escravidao. A Lei Aurea de 13 de maio e percebida como expressão da dinamica
social, ou seja, como resultado de acordos e confrontos cotidianos travados entre os sujeitos históricos.
Sendo a lei o "principal veículo para o exercício de hegemonia pela classe dominante'"', ela vai
interferir também nesta dinamica, regulando, transformando e limitando juridicamenle a ação política
destes mesmcs agentes sociais 3. Portanto, os marcos 1850 e 1888 não são entendidos como simples
datas ou eventos, mas se inserem num contexto mais amplo no qual representam apenas momentos
conjunturais daquele processo histórico.
Privilegiamos Minas Gerais, dentre outros fatores, por ser a provincia que congregou o maior
plantel escravista do País6, tendo um desenvolvimento especifico diferenciado das demais economias
regionais brasileiras, como uma base produtiva muito diversificada e a predominancia da pequena e
media posse de escravos 7, o que ampliou a base social de sustentação do próprio sistema escravista.
A opção em trabalhar com jornal enquanto documento basico justifica-se na medida em que ele se constitui
fonte historica extremamente complcxa, na qual podemos perceber a convergencia de opinioes e visoes de
mundo diversas, representativas daquela sociedade. Neste sentido, o jornal tornou-se um importante
veículo de comunicação, divulgador de ideologias (escravista, abolicionista, etc.), utilizado como relevante

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mecanismo de controle social, como, por exemplo, ao tornar públicas as condições de fuga e descrições
fisicas do escravo fugido, facilitando sua localização e consequente aprisionamento.
Sem duvida, a imprensa e um "manancial dos mais ferteis para o conhecimento do passado" 8 e hoje os jornais
são Teconhecidos como importante fonte de estudo de uma dada realidade. Contudo, como quaisquer outros
documentos, os jornais são representações do real produzidos por individuos historicamente condicionados
e, portanto, não são isentos de subjetividade. Para utiliza-los como fonte de pesquisa cumpre identificar por
quem e quando foram produzidos, com quais objetivos e para atender a que tipo de leitores e interesses,
pois que "sua existência e fruto de determinadas praticas sociais" de um tempo'. Nesta perspectiva, nossa
postura diante dos jornais sera de apreende-los não enquanto "verdades" de uma reaiidade historica ou como
veículos imparciais de transmissão de informações, "mas antes como uma das maneiras como segmentos
localizados e relevantes da sociedade produziram, refietiram e represenlaram percepções e valores da
época"10. Procederemos a uma certa leitura dos dados, identificando os sinais, resqufcios e fragmentos do
passado, que, associados a "intuição" do historiador, permitem captar nas entrelinhas do documento basico
o "não dito", a fala silenciada, representações e percepções nem sempre explicitadas mas perceptíveis, que
informam multiplas visoes dos varies aspectos da sociedade. Se e certo que não se pode conhecer, explicar
e reconstituir a complexidade do real vivido - a totalidade de uma dada realidade historica -, podemos nos
apróximar do "real", atentando para detalhes a priori desprezíveis, mas que podem "revelar profundos e
significantes fenômenos". Como nos ensina Carlo Ginzburg: "arealidade e opaca: mas ha certos pontos -
pistas e sinais - que nos permitem decifra-la"11.
O estudo visa, pela analise dos dados, reconstituir historicamente as relações sociais estabelecidas entre
escravos, senhores, forros e homens pobres livres através de importantes informações sobre a vida
cotidiana do escravo, bem como através das imagens construi'das do cativo perceptiiveis nas diversas falas
dos jornais. O objetivo, num piano mais amplo, e tentar resgatar o significado histórico das varias formas
de reação (como o roubo, fuga, crime, suicidio, etc.) enquanto desestabilizadoras do sistema escravista,
ampliando, desta forma, a compreensão da dinamica social mineira no bojo do processo abolicionista. Neste
sentido, o estudo pretende contribuir para determinar o peso político especifico da rebeldia para a
destruição do sistema. Num piano mais espeeffico, visamos perceber os limites históricos da atuação
política, o campo de possibilidades no qual o escravo forjáva estrategias de luta, surgidas do confronto
cotidiano entre os sujeitos históricos.
Transcorridos cem anos da extinção da escravatura no Brasil, muito pouco se sabe sobre a participação dos
escravos naquele processo, particularmente no caso mineiro, o que compromete nosso entendimento acerca
daquela reaiidade12. Toma-se impositivo preencher esta lacuna, resgatando a história de homens e mulheres
trabalhadores submetidos a escravidao que, ao vivenciar a condição de escravos, "construfram seus modos
de vida e luta", ora assumindo uma posição de submissão, ora resistindo através dos varios atos de rebeldia,
bem como estabelecendo acordos e aliancas no seu dia-a-dia. Ao estabelecerem intricada relações com
outros escravos, com senhores, homens e mulheres livres, eles construfram lacos familiares, aliancas,
"solidariedades econômicas, culturais e sociais, que acabaram por construir uma cultura e um saber escravos
- base de muitas estrategias de sobrevivencia e de muitos projetos de liberdade" 13 . É, exatamente este
movimento da história que

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pretendemos captar no momento de desagregação do sistema escravista brasileiro - as contradições, os


conflitos cotidianos, as negociações, as resistencias, as aliancas entre as diversas classes sociais H,
demonstrativos da divergencia de interesses e comprovadores de uma realidade multipla, diversificada e
conflituosa -, contribuindo para a verticalização do conhecimento da hisloria mineira oitocentista.
Tendo como objetivo central reconstituir a trajetoria vivida pelo escravo, procedefnos a
coleta de todas as informações que direta ou indiretamente mencionassem o "elemento servil" nos diversos
jornais do século XIX das cidades mineiras'5. Foram consultados todos os 70 titulos de jornais da seção
"Jornais Avulsos" do A.P.M., listados no período de 1850 a 1888, sendo trariscritos os dados de 77% dos
periodicos, o que equivale apróximadamente a revisão de 4.265 exemplares". Os dados extraidos são
extremamente ricos: são anuncios de fuga, venda, compra, aluguel de escravos, agressoes, crimes;
informações sobre alforrias, censos de população e associações abolicionistas, poemas, contos e discursos
parlamentares, dentre outros. Podemos observar o patemalismo e o preconceito do branco expressos nas
descrições das concessoes das alforrias, das fugas, dos crimes, das agressoes, etc., bem como nos debates
e comentarios jornalisticos onde era construfda uma imagem do escravo, ora visto como ser inferior - que
deveria ser controlado e dirigido - ora como ser monstruoso, capaz dos mais terriveis atos de barbarismo.
Os anuncios de fuga (individual e coletiva) são particularmente detalhados 17, na medida em
que o senhor necessitava fomecer uma descrição fisica pormenorizada do escravo, seus vícios e costumes,
para facilitar a identificação, localizagao e aprisionamento do fugitivo, permitindo ao pesquisador
entender e resgatar parte da realidade do cotidiano do escravo - como as condic5es de vida (especialização e
tarefas exercidas), o grau de exploração e violencia, as perspectivas de fuga e as estrategiac criadas pelo
cativo nas suas experiências diarias. Em alguns anuncios aparece um dado particularmente interessante
referente a uma possi'vel ajuda (acoutamento) oferecida ao fugitivo, o que pode ser um indfcio da atuação de
abolicionistas e/ou ajuda de outros escravos, forros, e demais homens livres. É ilustrativo o anuncio da fuga
do escravo Marcelino pertencente a Antonio Carlos de Lima, ocorrida no dia 26 de fevereiro. O dito escravo
fugiu da cidade de Santa Luzia do Sahara, onde morava, e a noticia foi divulgada no "Liberal Mineiro" de
Ouro Preto do dia 6 de junho de 1884:
(...) É crioulo, alto, sem barba, tera 22 anos de idade, tem falta de dentes na frente
do maxilar superior, pemas algum tanto arqueadas para dentro, pes e orelhas
grandes, conserva sempre a boca aberta, fazendo-se de tolo; e porem muito
esperto para correr e furtar; e pedreiro ordinario, não gosta de bebidas
espirituosas e nem de cafe, mas o amante de doces e fuma cigarros. Seguiu d'aqui
em companhia de um ex- soldado, de nome Manoel Alves (vulgo passarinho), em
demanda do Curvelo, Capao Redondo, Paracatu ou S.Francisco e Jánuaria;mas
últimamente obteve-se noticia quase ccrta de que justara para camarada de um
tropeiro e seguira para Paracatu'8.
Podemos observar a estrategia criada por Marcelino (como forma de sobrevivencia) como conservar
"sempre a boca aberta, fazendo-se de tolo", e que foi percebida pelo proprietario que, no entanto, o julga
como "muito esperto para correr e furtar" (praticas que deveriam ser comuns). Também se verifica o
conhecimento que o senhor tinha dos habitos e das preferencias do escravo, inclusive no que se refere a
alimentação: "e amante de doces". Fica evidenciada a participação da comunidade na localização e paradeiro
de Marcelino que seguiu em companhia do ex-soldado para provaveis locais e que através de "noticia quase
certa" dada ao senhor, o dito escravo se dirigiu possívelmente para Paracatu, trabalhando como tropeiro. Isto
comprova que naquele momento a fuga abria possibilidade de incorporação do escravo ao mercado de
trabalho livre.
Cumpre ressaltar que estes anuncios são os que aparecém em maior mimero no computo

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geral dos dados. A maior ou menor incidencia de determinados tipos de informação são indicativos
do carater selelivo deste registro histdrico (no sentido de privilegiar determinados fatos e informações e
desconsiderar outros), devendo ter uma significação maior para aquela sociedade ou pelo menos para
alguns de seus integrantes.
As considerações expostas abaixo não são o resultado da analise da volumosa massa
de documentos, mas apenas possibilidades apontadas pelos dados que indicam caminhos a serem
trilhados e desvendados.
Embora todos os tipos de resistencia tenham sido praticados pelos escravos ao longo
dos varios séculos de desenvolvimento do sistema escravista, podemos aventar a hipotese de que, se
o quilombo constituiu uma das formas mais comuns de reação escrava no século XVIII mineiro, a fuga
foi a mais caracteristica do século XIX - não excluindo outras formas de reação, nem desconsiderando
que, para fonnação do quilombo, a fuga era etapa indispensavel".
As fugas eram originadas por motivos diversos, como a separação dos familiares, os
maus tratos, o simples desejo pela liberdade ou mesmo a quebra de certos acordos com os senhores, e
representava uma ameaça radical ao sistema na medida em que desestruturava o processo de produção.
Segundo Eduardo Silva:
A unidade basica da resistencia no sistema escravista, seu aspecto tipico, foram as
fugas. Para um produtor direto definido como "cativo", o abandono do trabalho e um desafio radical,
um ataque frontal e deliberado ao direito de propriedade 20. Porem, se a fuga foi constante durante a
vigencia do sistema escravista, qual teria sido seu poder de pressão nas últimas décadas do século XIX
no sentido de desagregar o escravismo? Segundo Ademir Gebara, dentre outros protestos
as fugas foram um fator de importancia fundamental para forcar a precipitação final
do processo de transição para o trabalho livre. Isso se daria porque, não podendo
ser a fuga considerada uma atividade criminosa STRICTO SENSU, ela acabaria por
impor o envolvimento, de forma crescente, de setores livres da população e, com
isso, sua repressão passaria a depender tanto do apoio da comunidade, quanto da
extensão da repressão a outros setores da população que não o escravo 21.
Os anuncios de fuga demostram claramente esta participação da comunidade na
localização do fugitivo, ao mesmo tempo que inform am a existência de lacos de solidariedade entre
escravos e demais individuos daquela comunidade. Cumpre lembrar que nos anos finais do imperio a
manutenção da ordem toma-se impositiva: era necessário controlar as ações dos escravos, para
garantir a continuidade da produção, e dos homens livres e forros que podiam colocar em xeque a
estrutura social22. Analisando a atuação da imprensa do Rio de Jáneiro da década de 1880,
especialmente os periodicos Gazeta da Taxde e Cidadao do Rio, ambos pertencentes a Jose do
Patrocínio, Humberto Machado afirma que: As revoltas e fugas, tornadas mais comuns na última fase
do período escravista, demonstram que os cativos não se caracterizam pela passividade, como
apregoavam os defensores do regime. Por isto, era imprescindivel divulga-las23.
Neste sentido, entendemos a importancia da imprensa, para a época, como vefculo
divulgador de idéias abolicionistas, que alertavam os senhores do perigo dos atos de rebeldia escrava,
referidos como prova da inviabilidade da permancncia da escravidao, e como relevantc mecanismo de
controle social, facilitando a localização do paradeiro do fugitivo. Cabe lembrar "O Luzeiro" da cidade
de Paracatu, denominado como um "periodico dedicado as avançadas", no qual se alertava:
Não se admite Testas de FERRO e nem anuncios de FUGA DE ESCRAVOS 24.

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Tal posição demonstra o confiito existente entre as diversas tendencias políticas, manifestado nos
periodicos da época, e o reconhecimento de que tais anuncios, decisivamente, funcionam como urn meio
eficaz de manutenção do sistema. Demonstra também a importancia que a imprensa e as idéias
abolicionistas tiveram na formação de uma ideologia que condenava a escravidao.
Entretanto, os jornais poderiam se transformar também em mecanismo de defesa do escravo
fugido, na medida em que, sendo o escravo alfabeu'zado - como aparece em inúmeros anuncios -,
poderia, através da leitura dos periodicos, tomar consciência do grau de informação que o senhor tinha
de sua localização, possibilitando ao cativo procurar outras paragens.
A expansão da cafeicultura a partir de 1850, o crescimento das cidades e a incipiente
industrialização a partir da década de 70 demandavam a montagem de uma infra -estrutura - como
abertura e melhoria dos caminhos e a construção de ferrovias, como a Pedro II (1869 - 1889) e a
Leopoldina (1874) - para facilitar o intercambio comercial com outras provmcias e com a Corte do
Rio, e para o escoamento da produção, gerando empregos tanto para homens pobres livres, quanto
para os escravos fugidos que poderiam passar por forros. O anuncio da fuga do escravo Fortunato,
datado de 3/8/1883 e divulgado pelo "Liberal Mineiro", informa:
(...) consta que este escravo se acha, a titulo de livre, trabalhando na estrada de ferro entre a
povoação de Soledade e Lagoa do Netto; rogao, pois, os senhores I administradores ou a quem
quer que seja encarregado do pagamento dos trabalhadores, que ao dito escravo Fortunato nenhum
dinheiro adiantem ou paguem, antes aguardem a presença de seus senhores, com quem poderao fazer
todo e qualquer contrato (...)25.
Podemos perceber a visível preocupação dos procuradores ou herdeiros da proprietaria, D. Anna
Amalia de Jesus, em impedir a continuidade do contrato do trabalho estabelecido entre o escravo e os
empregados, feito a revelia da senhora, que não so perdera (pelo menos durante um certo tempo) aquela
forca de trabalho, como não tirava proveitos daquela situação.
O meio urbano abria maiores possibilidades de sobrevivencia para o fugitivo, particularmente se
este possui'sse alguma especializafao, o que também aumentava as chances de n egociação com o
senhor, ampliando seu poder político de barganha e as possibilidades de acumulação de peculio para
couipra da alforria. Poderia ser o caso do escravo Lucindo, que fugiu do sitio de Sete Lagoas, no ano
de 1883, cujá fuga e anunciada no Liberal Mineiro:
(...) e muito conversador, e muito bom oficial de pedreiro, trabalha
especialmente em fomalhas de engenho de canna, e bom factor de assucar, bom lambiscador, bom
ferrador de animaes, bom cavaleiro, lida muito bem com animaes, e bom cortador de Tezes e matador
de porcos, trabalha em diversos ofícios, mas e vagaroso em seu trabalho (...)M.
Seria pouco provavel que, pelo fato de ser "vagaroso", Lucindo não conseguisse vender sua
forca de trabalho, executando qualquer ou muitas das tarefas que tão bem sabia fazer, segundo seu
prdprio senhor.
As cidades passavam, naquele momento, a constituir importantes polos de atração de mao-de-
obra, gerando por parte da classe senhorial agraria a necessidade de tentar impedir as fugas do campo
- assegurando somente aos escravos que não fugissem os beneffcios da lei de 1871 bem como
reivindicando do Estado Imperial medidas mais repressivas contra os escravos que sentindo-se
garantidos pela lei e pelo fim inevitavel da escravidao, fazem cada vez mais balbiirdias nas vendas e
bares, em geral associados a homens livres ou colonos estiangeiros, e ameaçam a vida de seus
senhores27. O contato dos escravos com os colonos e homens livres, muitos dos quais abolicionistas e

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possuidores de uma mentalidade antiescravista, contribui para uma maior conscientizac,ao


poh'tica dos cativos. Por outro lado, ao fugir para os centrês urbanos e manter relafoes sociais de
assalariamento ou por empreitada para execujáo de determinadas tarefas, o escravo era aos poucos
educado para enfrentar a passagem do trabalho compulsorio para o livre.
Poderia haver uma estreita ligação entre aumento do número de fugas com a formação de
sociedades abolicionistas? Não seriam estas associates criadas para garantir aquela passagem com o
menor risco possível para a classe senhorial e demais elites políticas? Era necessário controlar o
potencial de rebeldia dos escravos sem a ameaça de uma radicaliza^ao: "era preciso mudar alguma coisa
para que tudo permanecesse como antes".
Acreditamos ser possível estabelecer uma ligação entre os atos de rebeldia e as leis que vão
sendo regulamentadas apos o fun do trafico, como a Lei do Ventre Livre e Rio Branco. Se estas leis
podem ser vistas como uma vitoria da classe senhorial, no sentido de ter conseguido adiar ao maximo a
extinção da escravatura, elas também devem ser percebidas como uma conquista dos escravos, resultado
da pressão manifestada na atuafao poh'tica dos cativos.
O aprofundamento destas hipoteses contribuira para desmistificar uma serie de equivocos e
falsas idéias que ate agora vigoram em boa parte da historiografia onde ao negro se reservou ora o
papel de ser submisso, ora de herói. Trata-se de percebe-lo como sujeito histórico que, ao longo do
desenvolvimento do sistema escravista, criou, diante de suas condições de existência concreta,
estrategias cotidianas de luta. O escravo lutou o quanto pode, não so através de atos ilegais, mas
também dentro dos espacos legais abertos pelo sistema, para fugir a dominafao e exploração a que
estava submetido, tentando melhorar seu nfvel de vida. E o estudo pretende resgatar também outras
formas de luta desenvolvidas pelo escravo no seu dia-a- dia, como negociações e acordos sem apelar para
atitudes radicais, e que muitas vezes são interpretadas como "submissão", mas que na realidade não
significam "ausencia de luta, mas uma estrategia sob condições extremamente desfavoraveis" 28.
O fato de a escravidao ter sido extinta pela dinastia de Braganca e de todo o processo ter sido
controlado e dirigido pelas elites políticas dominantes fez com que muitos autores desconsiderassem
a atuac,ao dos escravos neste processo, pois introjetaram a visão do branco vencedor, gerando, sem duvida,
uma percepção distorcida daquela realidade, porque unilateral, Idéias como a docilidade da escravidao, a
submissão constante do escravo, a tutela sempre presente do branco, seja na concessão da alforria, seja
na sobrevivencia do cativo, contribuiram para a manutenc,ao de uma ideologia que atendia aos
inteTesses dos proprietaries escravistas do século XIX, e que ainda hoje continua a atender aos
interesses das classes dominantes, na medida em que se preserva a idéia do conformismo e da
passividade do "brasileiro", negando os conflitos classistas verificados na sociedade na qual o negro
continua a ocupar posic,oes de inferioridade, seja profissionalmente, seja pela discriminafao racial.

NOTAS

1- Agradecemos ao FTP (Fundo de Incentivo a Pesquisa) da PUC-MG o


financiamento da pesquisa.
2- Os jornais estão classificados na sec,ao de "Jornais Avulsos" do Arquivo
Publico Mineiro e perfazem um total de 70 tftulos de diversas tendencias: conservadores,
liberals, abolicionistas e republicanos.
3- Segundo Robert Conrad, "apesar da melhoria das condifoes depois de meados
do século, os escravos no Brasil foram incapazes, ate mesmo durante as últimas décadas de
escravidao, de

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manter seus niimeros através de meios naturais". Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850 - 1888, Rio de
Jáneiro: Civilização Brasileira, INL, 1975, p. 36. Entretanto, para Douglas Cole Libby, no período pos-1850,
existem evidencias (embora os dados sejam escassos) de "um aumento na capacidade de reprodução da
população cativa" na provincia de Minas Gerais em função da "maior preocupação entre os senhores de escravos
em mclhorar o tratamento dado aos cativos exatamente no sentido de proteger e fazer crescer seus
invéstimentos face a reduzida oferta de 'pecas de reposição'". Transformagao e trabalho em uma economic
escravista - Minas Gerais no siculo XIX, São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 61.
4- GEBARA, Ademir. Escravidao: fugas e controle social. Estudos Econômicos, São Paulo, 18
(103-146): 101, 1988.
5- Segundo Ademir Gebara, com o qual concordamos, "a lei não pode ser estudada como um
fenômeno passivo, que existe apenas como uma mera conseqiicncia de uma dada formação social.
A lei constitui uma forca ativa na mediação entre as classes, sendo também. uma forca
parcialmente autonoma, na qual as reivindicações dos dominados devem ser, necessariamente,
acomodadas". O mercado de trabalho livre no Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 12.
6- Segundo Jose Pedro Xavier da Veiga, no ano de 1888 existiam apróximadamente 800.000
escravos no Brasil, dos quais 230.000 concentravam-se nas Minas. Efemerides mineiras
1664-1897, Ouio Preto: Imprensa Oficial, 1987, p. 428. Trabalhando com mapas de população
do século XIX, Douglas Cole Libby aponta 367.443 escravos em Minas (18,2% do total geral no
Brasil, segundo o recenseamento de 1872. Op. cit., p. 53.
7- LIBBY, Douglas C. op. cit., p. 346/350.
8- CAPELAIO, Maria Helana R. Imprensa e Histdria do Brasil, São Paulo: Contexto, 1988, p. 13.
9- Idem, ibidem, p. 24.

10-SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro; jornais, escravos e cidadaos em São
Paulo: no final do século XIX, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 17.
11-GINZBURG, Carlo - Morelli, Freud e Sherlock Holmes: pistas e o metodo cienu'fico. History
Workshop Journal, n. 9, p. 22, 1980. Trad, de Francisco A. S. Grossi.
12-Ressaltamos o trabalho de Oiliam Jose, único trabalho especifico sobre a abolição em Minas.
Abolição em Minas, Belo Horizonte: Itatiaia, s/d. Não obstante considerar a rebeldia negra fator
de desestruturação do sistema, o autor compartilha da idéia da docilidade da escravidao. Sua
visão do processo abolicionista mineiro e superficial, embora não se possa negar a importancia
do estudo, ainda que pouco verticalizado.
13-LARA, Silvia H. Trabalhadores escravos In: Trabalhadores escravos: Campinas, Unibanco, 1989,
p. 18.
14-Entendemos, conforme Thompson, classe social como um "fenômeno histórico" e não uma mera
classificação; ou seja, na trajetoria de inumeras lutas travadas no tempo histórico, determinados
homens, ao vivenciarem e compartilharem experiências comuns, sentem e identificam seus
interesses, contrapondo-se, desta forma, a outros grupos de homens cujos interesses são diferentes
e mesmo antagonicos aos seus. THOMPSON, Edward P. Tradicidn, Revuelta Y Consciência de
Classe. Barcelona: Crin'ca, 1979.
15-49,2% destes jornais foram produzidos em Ouro Preto, capital provincial.
16-Os jornais serao identificados nas notas de rodape pelos codigos J.O.P. (jornais de Ouro Preto),
ou J. A. (jornais avulsos das demais cidades mineiras), seguidas pelo volume e número da pagina.
Tanto os codigos, quanto os volumes, foram definidos pela classificação do Arquivo Publico
Mineiro.
17-Ao que tudo indica, havia uma padronização destes aniincios err todas as províncias do imperio.

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Ver FREYRE, Gilberto, O Escravo nos anuncios nos jornais brasileiros do século XIX, 2*
ed. São Paulo: Nacional, 1979.
18-J.O.P., 31, p. 3. Os grifos são nossos.
19-Num trabalho sistematico de revisão dos codices da Se^ao Colonial do Arquivo Publico
Mineiro, Carlos Magno Guimaraes rastreou 119 quilombos entre os anos de 1711 e 1797. Os
quilombos do Secuio do Ouro. Revista do Departamento de Histdria. Belo Horizonte. N. 6, p.
15-46, 1988.
20-SILVA, Eduardo. Fugas, revoltas e quilombos; os limites da negociafao. In: REIS, Joao Jose
e SILVA, Eduardo. Negociaqdo e conflito; a resistencia negra no BrasiJ escravista. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 62. O autor afirma que a fiiga "e um ato extremo e sua
simples possibilidade marca os limites da dominação, mesmo para o mais acomodado dos
escravos e o mais terrivel dos senhores, garantindo-lhes espac,o para a negociação no
conflito". p.63.
21-GEBARA, Ademii.Op. cit, p. 123.
22-MATTOS, Ilmar R. de. O tempo saquarema. São Paulo: Hucilec, 1987.
23-MACHADO, Humberto. A imprensa abolicionista. In: Negros brasileiros, encarte
especial, Ciência Hoje, Apoio CNPq/MCT, 1988, p. 30.
24-J. A. 13, p.l, datado de 1701/1884. Os grifos são do próprio jornal.
25-J.O.P., 32, p. 4.
26-J.O.P., 32. p. 3.
27-LANA, Ana Lucia Duarte. A transformagao do trabalho; a passagem para o trabalho livre
na zona da Mata Mineira, 1870-1920, Campinas: Únicamp, CNPq, 1988. p. 73.
28-SILVA, Eduardo, op. cit. p. 78.

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LPH - REVISTA DE HISTÓRIA

A Assembleia Departamental de História, em sua reunião de 19/12/90, tendo em vista a


necessidade de regulamentar as atividades do periodico "LPH - Revista de História", RESOLVE
aprovar o seguinte:

REGULAMENTO I

Art Is LPH - Revista de História e um periodico cientifico e academico do DEHIS e


destina-se a divulgaçã de trabalhos originais concementes a História e as suas areas interdisciplinares.

Paragrafo único - A criterio do Conselho Editorial, poderao ser publicados,


excepcionalmente, em vista de sua reconhecida relevancia, trabalhos já publicados em outros veiculos.

Art 2s LPH - Revista de História tem periodicidade anual.

Paragrafo único - A criterio do Conselho Editorial, poderao ser editados mimeros especiais
dedicados a temas especificos, em edição ordinaria ou extraordinaria.

Art. 3a A tiragem de LPH - Revista de História sera igual ou superior a mil exemplares.

Paragrafo único - Os autores receberao três exemplares do número da revista em que for
publicado trabalho de sua autoria, mais dez separadas do mesmo.

Art. 4s O Conselho Editorial de LPH - Revista de História e constitufdo pelo


Coordenador do LPH, que o preside, pelos outros dois professores da Coordenadoria do LPH, pelo
Chefe do Departamento de História e por três Historiadores brasileiros escolhidos anualmente pela
Assembleia Departamental de História.

Paragrafo único - São competencia dos membros do DEHIS do Conselho Editorial:

I- Encarregar-se de todas as tarefas relativas a editoração da revista.


II- Encarregar-se da distribuição da revista.
III- Promover intercambio com publicações congeneres.
IV-Participar do julgamento de todo o material encaminhado para publicação, de
acordo com a sistematica estabelecida no Anexo I.

Art. 59 LPH - Revista de História publicara trabalhos das seguintes modalidades:

I- Artigos de pesquisa, compreendendo resultados novos de pesquisa historica


apresentados de modo abrangente e discutidos nas suas implicações, com ate 30 laudas.
II- Artigos de revisão, compreendendo textos que reunam os principals aspectos de
uma determinada area de pesquisa em História, estabelecendo relagoes entre os mesmos e
evidenciando a estrutura conceitual própria do tema, com ate 30 laudas.
III- Comúnicafoes, compreendendo apresenta^ao de resullados parciais de pesquisas,
sua discussão

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area de pesquisa em História, estabelecendo relacocs entre os mesmos e evidenciando a estrutura


conceitual própria do tema, com ate 30 laudas.
III-Comúnicações, compreendendo apresentação de resullados parciais de pesquisas, sua discussão
e analise, com ate 10 laudas.
IV-Entrevistas.
V- Resumos de monografias, compreendendo smtcses dc monografia de conclusão de Bacharelado
em História, preferencialmente dos alunos do DEHIS, com ate 10 laudas.
VI- Cronicas e noti'cias, compreendendo apresentação de fatos relevantes no campo dos estudos
históricos, com ate 3 laudas.
VII-Resenhas criticas, compreendendo analise de obras editadas ha, no maximo, dois anos, com ate
5 laudas.
VIII- Poesias.
IX- Desenhos, ilustrações e fotos.
Paragrafo único - LPH - Revista de História podera editar numcros que não contenham
todas as modalidades de trabalhos de que fala este artigo.

Art. 6 9 LPH - Revista dc História publicara trabalhos em português, espanhol, ingles e francês.

Art. 7s Os originais deverao ser apresentados em duas vias, datilografados em espafo 2, em laudas
de 30 linhas de 60 toques, na sua forma definitiva, revistos, sem rasuras ou correções, obedecendo
as seguintes normas:
I- Na primeira pagina deverao constar o titulo do trabalho, o(s) nome(s) do(s) autor(es) e da(s)
instituição(oes) a que pertence(m).
II-Um resumo de ate 10 linhas em português e ingles ou português e francês.
III- As referencias bibliograficas e notas deverao ser registradas no texto através de numeração
seqiiencial e colocadas ao final do trabalho, na mesma ordem, observada a NB -66 da ABNT.
IV- As iiustrações de textos, quando forem absolutamente indispensaveis, deverao ser
aprescntadas em folha em separado, acompanhadas da respectiva legenda, na sua forma definitiva,
com indicação, no verso, sobre sua localização no texto (por exemplo: "inserir apos 3° paragrafo da
pag. 6"). As fotos deverao ser em preto e branco com alto nivel de contraste. O negativo deve ser
enviado. Outras
ilustrações deverao ser feitas em papel vegetal, a nanquim preto.
V- As ilustrações, desenhos e fotos encaminhados para publicação por si so deverao ser de
boa qualidade e, preferencialmente, expressivos em relação a tematica historica. Os originais
deverao ser apresentados em arte final. As fotos deverao ser em preto e branco ou em cores e o
negativo também devera ser encaminhado.
VI- As poesias deverao ser encaminhadas em sua arte final, quando for o caso, ou
datilografadas quando para composição grafica textual comum.
Art. 85 Os originais devem ser encaminhados a Secretaria do LPH, acompanhados de carta de
encaminhamento onde constem o u'tulo do trabalho, o(s) nome(s) do(s) autor(es), seu endere?o
complete e telefone(s) para contato.

Paragrafo primeiro - O autor sera regularmente informado das diversas etapas do processo
editorial a que se submete seu trabalho.

Paragrafo segundo - Os originais recusados serao devolvidos ao autor.

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