Companhia Queimado

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS


ÉTNICOS E AFRICANOS

DIANA MARGARIDA CATARINO

A COMPANHIA DO QUEIMADO (1852-1905)


impactos desiguais na malha urbana de Salvador e na profissão do Aguadeiro.

Salvador
2019
DIANA MARGARIDA CATARINO

A COMPANHIA DO QUEIMADO (1852-1905)


impactos desiguais na malha urbana de Salvador e na profissão do Aguadeiro.

Tese apresentada ao Programa Multidisciplinar de


Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da
Universidade Federal da Bahia, como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestrado. Área de
concentração: Estudos Étnicos.

Orientador: Prof. Doutor Lívio Sansone


Co orientador: Prof. Doutor Jeferson Bacelar.

Salvador

2019
Sistema Universitário de Bibliotecas da UFBA – Biblioteca do CEAO

C341 Catarino, Diana Margarida.


A Companhia do queimado (1852-1905) impactos desiguais na malha urbana de Salvador e na
profissão do aguadeiro / Diana Margarida Catarino. – Salvador, 2019.
145 f.

Orientador : Profº Drº. Lívio Sansone.


Co-orientador: Profº Drº Jeferson Bacelar.
Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Centro de Estudos Àfro-Orientais 2019.

1. Distribuição de água. 2. Salvador – séc. XIX. 3. Desigualdades sociais. I. Sansone, Lívio.


II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Centro de Estudos
Áfro – Orientais. III. Título.

CDD 614.514
Universidade Federal da Bahia

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS ÉTNICOS E


AFRICANOS (POSAFRO)

ATA Nº 12

Ata da sessão pública do Colegiado do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS ÉTNICOS E


AFRICANOS (POSAFRO), realizada em 23/12/2019 para procedimento de defesa da Dissertação de
MESTRADO EM ESTUDOS ÉTNICOS E AFRICANOS no. 12, linha de pesquisa Estudos Étnicos e Africanos,
do candidato DIANA MARGARIDA DOS SANTOS CATARINO, matrícula 218122498, intitulada A
Companhia do Queimado (1852-1905). Impactos desiguais na malha urbana de Salvador e na profissão do
aguardeiro. Às 09:00 do citado dia, Centro de Estudos Afro-Orientais, foi aberta a sessão pelo presidente da
banca examinadora Prof. Dr. LIVIO SANSONE que apresentou os outros membros da banca: Prof. JEFERSON
AFONSO BACELAR, Prof. Dr. FABIO MACEDO VELAME e Profª. Dra. TEREZA MARAT MENDES. Em
seguida foram esclarecidos os procedimentos pelo presidente que passou a palavra ao examinado para
apresentação do trabalho de Mestrado. Ao final da apresentação, passou-se à arguição por parte da banca, a qual,
em seguida, reuniu-se para a elaboração do parecer. No seu retorno, foi lido o parecer final a respeito do trabalho
apresentado pelo candidato, tendo a banca examinadora aprovado o trabalho apresentado, sendo esta aprovação
um requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Em seguida, nada mais havendo a tratar, foi encerrada a
sessão pelo presidente da banca, tendo sido, logo a seguir, lavrada a presente ata, abaixo assinada por todos os
membros da banca.

Dra. TEREZA MARAT MENDES


Examinador Externo à Instituição

Dr. FABIO MACEDO VELAME, UFBA


Examinador Externo ao Programa

JEFERSON AFONSO BACELAR, UFBA


Examinador Interno

Dr. LIVIO SANSONE, UFBA


Presidente

DIANA MARGARIDA DOS SANTOS CATARINO


Mestrando

Rua Augusto Viana, s/n - Canela - Salvador/BA - CEP 40110-909 Telefax: •


Dedico este trabalho a Salvador e aos filhos das suas águas.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho resultou de um somatório de preocupações e agitações pessoais que foram
esclarecidas através da grande liberdade metodológica que me foi proporcionada para
desenvolver o estudo. Por me garantir esta liberdade agradeço ao meu orientador, Doutor Lívio
Sansone. Também a paciência, atenção e críticas cuidadosas e incentivo à pesquisa. Por ter
acreditado no propósito e na relevância do trabalho, proposto por uma orientanda de outra área
disciplinar, arquitetura, que dava os primeiros passos no pensamento das relações raciais, e que
tentando estabelecer relações entre a teoria e o contexto visível construído, divagou por vastas
áreas de pesquisa e, por vezes, baralhou pensamentos, nem sempre atingindo resultados
imediatos, mas que fizeram parte do processo que resultou neste trabalho agora apresentado.
Ao professor Doutor Fábio Velame agradeço a vanguarda do seu trabalho no
reconhecimento e estudo das Arquiteturas outras e da influência das teorias sociais
diferenciatórias (raça, classe, gênero, cultura) nestas expressões. A conexão entre a temática
racial e cultural ao campo da produção da arquitetura e da cidade colabora para a legitimação
não só de lugares, mas também de vozes e construções outras cuja relevância estes estudos
asseguram.
Ao Doutor Valdemir Zamparoni agradeço as acirradas críticas metodológicas, pela
instigação e apresentação de cosmologias Africanas, compreensão, construção e destruição de
processos culturais em África.
Ao Professor Doutor Jeferson Bacelar agradeço a simpatia, a disponibilidade, as
referências bibliográficas e incentivo ao desenvolvimento do trabalho.
Á Professora Teresa Marat-Mendes agradeço a oportunidade que me proporcionou na
graduação, através da proposta de realização de um trabalho, na disciplina de Urbanismo, que
promoveu o estudo das articulações hídricas da Costa do Sol (PT), que me deu a oportunidade
de iniciar os meus estudos e interesse pelo manejamento da água no território.
Ás várias instituições que visitei para realizar a pesquisa, IPAC (BA), IPHAN (BA),
Biblioteca Pública (BA), UFBA, especialmente de Arquitetura e Urbanismo e Gonçalo Moniz,
de Medicina, agradeço a disponibilidade dos seus colaboradores e funcionários, fundamental
para que conseguisse acessar às informações que construíram este trabalho.
À FAPESB que possibilitou que me empenhasse em tempo inteiro no estudo por dois
anos. Tentei responder às altas expectativas e retribuir o investimento em mim realizado não só
concentrando os meus esforços no estudo, como apoiando organizações não governamentais e
apresentação/divulgação de acervos culturais afro-brasileiros.
Agradeço também, e especialmente, aos que compartilharam as atividades diárias
comigo. Ao Leonardo, aos meus avós, pais e mães, tios e tias, pela inspiração diária e exemplo
de persistência.
RESUMO. Neste trabalho revelamos a estratégia na qual a Companhia do Queimado (1852-
1905) desenvolveu a distribuição d´água potável a Salvador. Recorrendo a fontes diretas,
jornais e revistas, relatos médicos e técnicos do serviço, entrelaçando informações, para
recuperar os impactos sociais/ raciais da Companhia no espaço urbano, recuperando as
condições da sua formação. Em quatro capítulos exploramos a dinâmica do serviço, a
instituição, a colaboração da ciência para interpretação da qualidade das águas servidas e a os
impactos da Companhia no tradicional aguadeiro. Em chafarizes, casas de vendagem e penas
domiciliares, articulou espaços assimétricos de distribuição, com condições higiênicas
denunciadas pelos lentes da Faculdade de Medicina. O descontentamento dos consumidores ao
serviço foi constante, face à irregularidade do abastecimento, justificado por secas e
dificuldades decorrentes de abusos por contratantes, preço inadequado e concorrência. Salvador
inscreveu esta dinâmica no espaço urbano, através de relações compensatórias, nos quintais,
nos hábitos de consumo, na revalidação de status social e experiência nos espaços coletivos.

Palavras-Chave: Salvador; aguadeiro; Companhia; venda; água.

ABSTRACT. In this work we reveal the strategy in which Companhia do Queimado (1852-
1905) developed the distribution of drinking water to Salvador. Using direct sources,
newspapers and magazines, medical and technical service reports, interlacing information, to
recover the social / racial impacts of the Company in urban space, recovering the conditions of
its formation. In four chapters we explore the service dynamics, the institution, the science
collaboration to interpret the quality of the served water and the impacts of the Company on the
traditional “aguadeiro”. In fountains, sale houses and home feathers, it articulated asymmetrical
distribution spaces, with hygienic conditions denounced by the Faculty of Medicine. The
discontent of consumers with the service was constant, due to the irregularity of the supply,
justified by droughts and difficulties due to abuses by contractors, inadequate price and
competition. Salvador inscribed this dynamic in the urban space, through compensatory
relations, in the backyards, in consumption habits, in the revalidation of social status and
experience in collective spaces.

Keywords: Salvador; aguadeiro; Company; sale; water;

1
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AH/MHC: Arquivo Histórico do Museu do Hospital e das Caldas;
AHU: Arquivo Histórico Ultramarino;
AADMI: Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial;
ANA: Agência Nacional de Águas;
APEB: Arquivo Público do Estado da Bahia;
BHDigital: Biblioteca Nacional Digital;
CEAO: Centro de Estudos Afro-Orientais;
FAMEB: Faculdade de Medicina da Bahia;
FAPESB: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia;
GMBAHIA: Gazeta Médica da Bahia;
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística;
IMS: Instituto Moreira Salles;
MAS: Arquivo Municipal de Salvador;
RTCIG-Bahia: Relatório de Trabalhos do Concelho Interino de Governo da Bahia;
SEFAZ: Secretaria Municipal da Fazenda;
SIPAC: Sistema de Informações do Patrimônio Cultural da Bahia;
INEMA: Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos;
IPAC: Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia;
IPHAN: Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional;
UFBA: Universidade Federal da Bahia.

2
LISTA DE IMAGENS
Capítulo 1 - Lugares de contraste do séc. XIX em Salvador
Figura 1 – Complexo do Unhão: fonte, chafariz e aqueduto; Fonte antiga; Solar Berquó com
bacia de retenção; Solar do Gravatá com poço no quintal ...................................................... 21
Figura 2 – Casas térreas de porta e janela; Sobrado; Centro Histórico ................................... 22
Figura 3 – Chafariz da Piedade (1862); Terreiro de Jesus (1859); Bonfim (1888) ................ 24
Figura 4 – Ganhadores; Casa de vender água; O Cavalo de água .......................................... 28
Figura 5 – Casa da Companhia Beberibe (1926); Basílica N. Sr.ª da Penha (1859) .............. 29
Figura 6 – Moeda/Vale com a inscrição “Vale um Barril d´Agoa” ........................................ 31
Figura 7 – Publicação “Favor saldar os débitos” .................................................................... 34
Figura 8 – Hidrômetros ........................................................................................................... 37
Figura 9 – Caixa d´água; Abastecimento (1910) .................................................................... 41
Figura 10 – Aguadeiros em Recife ......................................................................................... 41
Figura 11 – Jaqueira (1870-1880); Terreiro de Jesus com a Catedral (1870-1880) ............... 45

Capítulo 2 - Companhia do Queimado (1852-1905)


Figura 1 – (1) Tanque da Conceição; (2) Queimado; (3) Tororó ............................................ 51
Figura 2 – Fonte do Queimado, instalações industriais, Capela d S. José; Fonte do Queimado,
1940 ......................................................................................................................................... 52
Figura 3 – Anúncio; Açude do Queimado. (1) Fábrica de Tecidos; (2) Convento da Soledade;
(3) Capela S. José .................................................................................................................... 53
Figura 4 – (1) Represa; (2) Fonte do Queimado; (3) Casa das Máquinas; (4) Reservatório da
Cruz do Cosme ........................................................................................................................ 54
Figura 5 – Açude do Queimado, 1924 .................................................................................... 55
Figura 6 – (1)Represa; (2)Fonte; (3)Casa das Máquinas; (4)Reservatório Cruz do Cosme ... 56
Figura 7 – Fonte do Tororó (1871/81); Fonte Vale do Tororó; Chafariz do Tororó (1920) ... 57
Figura 8 – Aumento de Capital; Represa Mata Escura e Estação do Retiro ........................... 67
Figura 9 – Açude da Mata-Escura ........................................................................................... 67
Figura 10 – Estação Queimado; Estação Retiro; Puissards (1888) ......................................... 68
Figura 11 – Represa do Prata .................................................................................................. 68
Figura 12 – Rua de S. Pedro, vendedor d´água com carroça .................................................. 72
Figura 13 – Reorganização do sistema do Queimado (1910) ................................................. 78
Figura 14 – Nova captação ...................................................................................................... 80
Figura 15 – Açudes do Cascão e Saboeiro .............................................................................. 80
Figura 16 – Represa do Pituassú (1910); Represa do Cachoeirinha (1910) ........................... 81
Figura 17 – Estação da Bolandeira; Reservatórios Metálicos na Cruz do Cosme (1910); Torre
da Duna Grande (1910) ........................................................................................................... 81
Figura 18 – Reservatório da Cruz do Cosme .......................................................................... 81

Cap. 4 - Os Aguadeiros
Figura 1 – Aguadeiro; Festa do Bonfim (1924); Aguadeiro ................................................. 107
Figura 2 – Mané Fonseca; Aguadeiros; Rua do Saldanha .................................................... 114
Figura 3 – Carroças da limpeza pública; O fiscal das carrocinhas; Um auto-lixo ................ 115

3
SUMÁRIO
Introdução ................................................................................................................................ 05
Metodologia ............................................................................................................................. 06

Cap. 1 - Lugares de contraste do séc. XIX em Salvador ............................................... 13-48


1.1 - Salvador no séc. XIX, novas dinâmicas ..................................................................... 17
1.2 - Dependências compensatórias: os quintais ................................................................ 21
1.3 - As estações d'água do Queimado ................................................................................ 23
1.3.1 - Os chafarizes ..................................................................................................... 23
1.3.2 - Casas de vendagem ............................................................................................ 28
1.3.3 - Penas domiciliares ............................................................................................. 32
1.4 - A gestão da cidade: as Companhias e a Câmara Municipal ........................................ 39

Cap. 2 - Companhia do Queimado (1852-1905) ............................................................. 49-88


2.1 - O citio da Fazenda de Santo Antonio do Queimado, na Baixa da Soledade ............... 52
2.1.1 - A concorrência dos Lacerda .............................................................................. 56
2.2 - Outros serviços: Torneiras de salvação e Banheiros públicos ..................................... 59
2.3 - O alargamento da captação .......................................................................................... 63
2.3.1 - Década de 70: a negociação do termo de renovação ......................................... 64
2.3.2 - Década de 80: o novo impulso do aumento do capital ...................................... 66
2.3.3 - Década de 90: aumento de tarifa ou restrição .................................................... 69
2.4 - Encampamento, 1905 .................................................................................................. 73
2.4.1-Theodoro Sampaio: “best Brazilian engineer in Mister Robert´s staff” .............. 74
2.4.2 - Remodelação do serviço e nova captação .......................................................... 78
2.5 - Pierson e a coincidência da nova distribuição de abastecimento ................................. 82

Cap. 3 - A ciência na descrição do serviço e na interpretação dos dados ................... 89-105


3.1 - Rozendo Guimarães, a água do Forte de S. Pedro e o engajamento político .............. 94
3.2 – Domingos Monteiro, componentes químicos ............................................................. 97
3.3 – A fonte de S. João e o entendimento internacional ..................................................... 99
3.4 - Augusto César Vianna: análise bacteriológica ao Queimado ..................................... 100
3.5 - Agostinho de Araújo Jorge: o Queimado e a Beberibe .............................................. 102

Cap. 4 - Os Aguadeiros ................................................................................................. 106-128


4.1 - O corpo e a Faculdade de Medicina da Bahia ............................................................ 112
4.1.1 - Higiene dos pobres ......................................................................................... 114
4.2 – O controlo da profissão (1876-1905) ........................................................................ 118
4.3 - “Territórios sobrepostos, Histórias entrelaçadas”, da capital para Santo Amaro ....... 122

Considerações Finais ..............................................................................................................129


Anexos ....................................................................................................................................134
Referências .............................................................................................................................145

4
INTRODUÇÃO
Para iniciar a apresentação dos elementos deste trabalho apresento a autora, dando
parâmetros para o leitor enquadrar as subjetividades e o lugar de fala de quem desenvolveu o
trabalho. Diana, portuguesa, arquiteta e urbanista formada pelo ISCTE-Universidade de Lisboa.
Na graduação estudou a produção de arquitetos isolados de seu contexto social, como produção
intelectual e técnica. A obra de Arquitetura era apresentada como obra autoral, autônoma do
seu contexto, fruto da intelectualidade do seu autor, que estabelecia suas principais relações
com as obras e autores franceses ou americanos.
Participando em um intercâmbio no último ano de estudos na Faculdade de Arquitetura
da Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Alexandre Delijaicov, desenvolvi, em
projeto, parte da proposta do anel hidroviário de São Paulo, que promovia a ligação do rio
Tamanduateí, Pinheiros e Tietê, como alternativa ao transporte coletivo sobre rodas,
reconhecendo as potencialidades da gestão hídrica na conformação urbana.
Atuando profissionalmente com arquitetura comercial, através dos estudos na Pós-
Graduação em Arquitetura Comercial, Senac-SP, iniciei um processo de problematização e
formulação de alternativas à tipologia tradicional das Feiras Internacionais, aproximando-a a
formatos urbanos contemporâneos, onde a sustentabilidade ambiental e econômica surgem
como garantia de sua viabilidade social.
Em Salvador, trazendo a bagagem conceitual e disciplinar da leitura do espaço urbano
e das relações econômicas da arquitetura com a cidade, resultou o meu estranhamento dos
espaços dos chafarizes; grades e horário de funcionamento, sem bancos convidativos à
permanência e usufruto. Deste estranhamento decorreu a vontade em entender o processo que
levou à formação desta linguagem urbana particular. Da literatura já existente relativa à
importância das fontes para o abastecimento à cidade, os relatórios e trabalhos técnicos de
abastecimento, nenhum discutia ou justificava a apropriação social particular destes lugares.
Por entender que um estudo técnico de abastecimento não responderia às inquietações,
apresentei a proposta de estudo ao Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos,
com a intenção de encontrar a justificativa apoiada na perspectiva cultural e racial, que
perspectivaram o trabalho. Num programa interdisciplinar, onde prevaleceram as disciplinas de
cunho social, mantive o esforço em acompanhar as leituras, e discussões das novas temáticas,
estabelecendo relações com o espaço urbano.
Este percurso novo exigiu a formulação de novas formas condicionantes do pensar e,
principalmente, novos meios de apresentação de resultados, predominantemente na forma
escrita, encontrando ainda resistência a outros meios de apresentação de ideias no conjunto

5
acadêmico. Deste esforço e desta combinação de condicionantes resultou este trabalho que aliou
uma visão de arquiteta e urbanista, construtora da cidade, à visão das dinâmicas e pressões
sociais que habitam estes espaços. Para o meu entendimento profissional, como arquiteta e
urbanista, este estudo confirmou a necessidade do construir contemporâneo se democratizar, se
desvinculando da imagem personalista do seu autor, resultando em ações menos autoritárias.

METODOLOGIA:
A metodologia aplicada neste trabalho foi desenvolvida à medida que fui aprofundando
o estudo do abastecimento de Salvador, impulsionado, como já referi, por um estranhamento
pessoal dos espaços das fontes e chafarizes. Entendi a degradação dos espaços das fontes e
chafarizes como “indícios irregulares”, recorrendo à expressão de Jane Jacobs, que considera
os elementos “fora do padrão” como importantes instrumentos de análise. (JACOBS, 2000,
493)
A investigação começou por reconhecer os trabalhos já realizados, das interações raciais
e da vivência dos espaços das fontes e chafarizes da cidade, transversais às disciplinas de
Geografia, História, Urbanismo, Arquitetura, Ecologia, Engenharia, de âmbito
majoritariamente tecnicista ou descrições pontuais de viajantes. Por equacionar estavam as
implicações racistas na formulação destas expressões urbanas. Não tendo encontrado
referências a esta circunstância, em uma cidade em que o fator racial é tão relevante e produz
tão acentuadas desigualdades, mantive a convicção da relevância do trabalho.
O Prof. Doutor Manuel Teixeira, nos estudos urbanos das cidades de implantação
original portuguesa, conclui que a história urbana portuguesa é indissociável da história urbana
brasileira, referindo-se ao processo de trocas e reformulações. (TEIXEIRA, 1999, 13) Neste
embalo, na disciplina “História das Cidades Coloniais”, lecionada pelo Professor Doutor Lula
Cardoso no programa da Pós-Graduação em Arquitetura da UFBA, iniciei o estudo da temática
no âmbito em que me encontrava familiarizada, base da minha formação acadêmica: o
Português. De uma postura que regulava a utilização do Chafariz d´El Rei de Lisboa confirmei
que cedo os locais de abastecimento foram disciplinados. Com 330 aguadeiros, a regulação
deixa claro a utilização de referências diferenciatórias de cor e gênero no abastecimento:
Constando ao Senado que há homens, brancos, negros e mouros, que se
vão pôr às bicas do chafariz de El Rei a vender água a quem a vai buscar,
de que se seguem brigas, ferimentos e mortes, faz a postura para a
repartição das ditas bicas pela maneira seguinte:
Na primeira bica, indo da Ribeira para ela, encherão os pretos, forros e
cativos, e assim mulatos, índios e todos os mais cativos que forem
homens.

6
Logo na segunda seguinte, poderão encher os mouros das galés
somente a água que for necessária para as suas aguadas e, tendo cheio
seus barris, ficará a dita bica para os negros e mulatos, conforme a
declaração atrás.
Na terceira e quarta, que são as duas do meio, encherão nelas os homens
e moços brancos.
E na quinta seguinte logo, encherão as mulheres pretas, mulatas e
índias, forras e cativas.
E na derradeira bica, da banda de Alfama, encherão as mulheres e
moças brancas conforme a declaração das bicas. (Posturas
Quinhentistas, FONSECA, 2015, 232)
Esta normativa não só estabelece a ordem do abastecimento, como faz do chafariz um
símbolo do apartaid social, ao condicionar o acesso à fonte, refletindo a organização social
hierarquizada entre homens brancos, mouros das galés, homens negros e mulheres brancas e
negras. O impedimento a escravos ou a qualquer pessoa de encher “por dinheiro nos chafarizes
da cidade”, impossibilitou a venda ou pagamento pelo serviço e, após o abastecimento,
deveriam ir “logo pera suas cazas sem ahi fazerem nenhũa demora”. Deste parâmetro,
impeditivo da venda, decorrerá a principal diferença do serviço na colônia, onde a partir da sua
ocupação, existem referências à prática da venda d´água por particulares.
Aldo Rossi (1966) ajuda a compreender os espaços dos chafarizes, quando problematiza
as permanências no espaço urbano. Destacando que o que permanece, permanece em
modalidades e circunstâncias que, frequentemente, não são comparáveis, alertando para a
dificuldade da realização de comparações de realidades distintas. Compreendendo que o
método histórico pode mostrar o que a cidade foi, as permanências podem ser fatos isolantes e
aberrantes; podem não caracterizar um sistema, a não ser sob a forma de um passado que ainda
experimentamos. (ROSSI, 2001, 52)
Os chafarizes, mostrando o que a “cidade foi”, ajudam a compreender a forma de um
passado que ainda experimentamos, e é nesta circunstância que é fundamental reconhecer a sua
formação e os seus significados, quando a função perdida faz com que o seu valor resida
unicamente na sua forma. (ROSSI, 2001,57) Empenhei grande parte do tempo trabalho
buscando “antídotos”, para através da profundidade histórica buscar “as interconexões causais
entre o passado mais do que a mudança e a ruptura – a descontinuidade”, para entender a
realidade contemporânea. (SANSONE, 2008, 184)
Recorremos a uma metodologia que relacionou conceitos de cultura, sujeita a
condicionamentos próprios e locais, que conheci, para resposta às questões propostas. Nessa
perspectiva, a frequência da Pós-Graduação do Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos
e Raciais apresentou novas leituras, autores e problematizações, que questionaram antigas

7
metodologias, alertaram para os inconvenientes de uma leitura centrada e baseada em princípios
europeus, nos quais assentou praticamente toda a minha formação.
Recorremos frequentemente a trabalhos e temas fora do main stream publicacional, a
fontes bibliográficas, na sua maior parte, de trabalhos acadêmicos não publicados, consultados
nos acervos das Faculdades de Arquitetura, Filosofia, CEAO e Medicina. A última se revelou
uma inesperada fonte de descrições do abastecimento da Companhia do Queimado.
Os jornais da época foram consultados na base de dados da Hemeroteca da Biblioteca
Nacional e na Biblioteca Municipal de Salvador, completados com imagens ilustrativas do
acervo da Fundação Moreira Salles. O recurso a fontes primárias, Relatórios dos Trabalhos do
Conselho Interino de Governo, aos arquivos do Arquivo Público de Salvador, IPAC, IPHAN e
Fundação Gregório de Mattos, foram fundamentais no processo de entender as principais
polêmicas e discussões dos principais períodos de tomada de decisão.
Para permitir a narração da história, que se recolhia, Elikia M´Bokolo designou de
“metodologia dos fragmentos”, à qual adicionámos o olhar urbano, arquitetônico e etnográfico,
procuramos ordenar com lógica factual os “fragmentos”, entendendo lógicas de distribuição e
consumo.
Na aproximação ao acervo da “Bibliotheca Gonçalo Moniz - Faculdade de Medicina da
Bahia”, interessada em conhecer as perspectivas médicas do uso da água como terapia, foram
reconhecidas nas “theses doutorais” o interesse dos médicos e suas perspectivas relativas ao
abastecimento à cidade através da problematização da “hygiene”, especificamente discutindo a
qualidade da água do Queimado. Nestes trabalhos foram encontradas as melhores descrições
do serviço da Companhia uma vez que a água era, para estes lentes, assim como a terra e o ar,
dos elementos mais importantes e fundamentais para a “hygiene”, preponderante no combate
às epidemias.
Os trabalhos técnicos de engenharia de Theodoro Sampaio e Saturnino de Brito também
ajudaram a formular a aproximação da percepção social do serviço e do funcionamento da
Companhia, complementando as discussões, participando nas principais polêmicas.
Renato Emerson dos Santos (2012) apresentou uma alternativa aos “indícios
irregulares” de Jacobs, quando enuncia a necessidade de reconhecer “grafagens” no território,
convencido que através delas que é possível a leitura social particular de cada lugar. Como
“pedras de roseta”, as cidades contemporâneas aguardam ser decifradas e, nesta perspectiva, o
olhar de dentro, das interações plurais, encontrando lugares outros, para além dos quilombos,
das expressões dos Blocos Afro, também encontramos construções materializadas das ideias.
(VENTURI, BROWN e IZENOUR, 1972)

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Terminamos o trabalho explorando um conceito de Edward Said (2011), “Territórios
sobrepostos, histórias entrelaçadas”, onde reconhecemos influências da Companhia do
Queimado em outros lugares, no interior do Município, Santo Amaro, e depois em África,
levada pelos retornados, que face às limitações de tempo, apenas sinalizámos as primeiras,
incentivando entusiasticamente quem queira continuar estes estudos.
O que partiu de um estudo geral de abastecimento, se afunilou para o estudo da
Companhia do Queimado, identificada como a promotora do serviço oficial de vendagem. As
constantes referências ao seu funcionamento, nos jornais da época, contrastava com o escasso
conteúdo científico conhecido, uma vez que a sua importância já se encontrava legitimada,
através do tombamento pelo IPHAN.
No Capítulo 1, “Lugares de contraste do séc. XIX em Salvador”, abordamos as fontes e
chafarizes da cidade, problematizando as condicionantes particulares do espaço urbano.
Procuramos relacionar os contrastes derivados das alterações de moradia do séc. XIX, na
tipologia do lote e a sua relação com o abastecimento d´água, descrevendo os processos a que
chamámos de dependências compensatórias. Olhando para as estações de venda do Queimado,
“casas de vendagem”, “pennas domiciliares” e chafarizes, demonstramos como estes espaços
contrastavam na sua representação, significado e público abastecido, com viés marcadamente
racial e discriminatório.
No Capítulo 2, “Companhia do Queimado (1852-1905)”, aprofundamos o estudo
técnico da gestão hídrica da Companhia, da sua formação, até ao seu encanamento em 1905,
problematizando os temas mais destacados, do serviço e reações sociais.
No Capítulo 3, “A ciência na descrição do serviço e na interpretação dos dados”,
apresentamos a perspectiva dos lentes da Faculdade de Medicina da Bahia relativa à higiene
urbana e o gradual conhecimento e discussão das análises físicas, químicas e biológicas da água,
reconhecendo polêmicas relativas à qualidade, demonstrando como, também a “sciencia”, foi
acusada de partidária e envolvimento político.
No Capítulo 4, “Os Aguadeiros”, demonstramos as condicionantes físicas e raciais que
condicionaram o corpo do aguadeiro, que acumulava o “problema” do negro na sociedade,
como este entendimento repercutiu na profissão e, por consequência, no seu dia a dia.
Para o Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Raciais procurei realizar um
estudo que falasse de segregação e racismo em contexto, acreditando ser esse o meio de
embasamento de estratégias para corrigir a injustiça racial, com articulação multidisciplinar.
Este é um trabalho que não pretende descrever o processo de abastecimento hidráulico, ou

9
tecnicista, mas com foco social e interseccional das diferentes esferas de poder interferentes na
cultura da sociedade baiana.
OBJETIVO GERAL:
Todo o homem cria formas, todo o homem organiza o espaço e se as
formas são condicionadas pela circunstância, elas criam igualmente
circunstância. (TÁVORA, 1999, 85)
O arquiteto Fernando Távora considera o espaço construído como produto e produtor
de outros espaços, e é nesta perspectiva que consideramos fundamental a análise e interpretação
das intenções da sua constituição e as apropriações que realizou. Atrevo-me, a complementar a
citação, de formas e circunstâncias, adicionando as ideias, as ideologias. Como veremos, não
só ocupam o espaço da dúvida “scientífica”, como organizam ações e justificam formas de
repressão/opressão. A aproximação às circunstâncias em que foram implantados os espaços de
venda da Companhia, e às formas dos espaços, colaboram para o entendimento das
circunstâncias atuais destes espaços.
Então, o trabalho bebe principalmente de três influências: (1) da leitura urbana -forma;
(2) dos fatores políticos e sociais de gestão de recursos hídricos na especificidade local de
Salvador -circunstancia; (3) a segregação social científica e urbana -ideias.
Reconhecendo a obra hidráulica como um marco de modernidade do séc. XIX, este
trabalho pretende problematizar a instalação desta infraestrutura no contexto da cidade
colonizada do séc. XVI. Na constituição destas “construções complexas”, onde a modernidade
aconteceu de forma sui generis. Propomos interpretar as transposições e adaptações que a
diferencia da origem, mediante o entendimento e cruzamento dos discursos científicos vs
ciência como poder, controle social, soberania, que acompanharam a transição Colonial para a
Republicana.
As ideias foram imbricadas, no séc. XIX, pela relevância social das teorias raciais e
pretensões simbólicas de propaganda externa, sendo fundamental a percepção da construção
dos processos sociais distintivos e excludentes da sociedade através da classe, status social,
raça, etnicidade, identidade, Estado e mercado para entender a sua repercussão na distribuição
d´água.
Os estudos da Fundação Memória da Água, de 1988, contabilizaram mais de 150 fontes
e chafarizes na cidade, em funcionamento, ruinas ou apenas como registro histórico. Aucimaia
Tourinho no “Estudo Histórico e Sócio-Ambiental das principais fontes públicas de Salvador”
(2008), analisa 40 fontes e identifica o desaparecimento de seis. Das 34 existentes, cinco
encontram-se em propriedade privada. Das 29 existentes em espaço coletivo, quatorze estão
degradadas ou sem qualquer infraestrutura de apoio, restando em 2008, em um universo de 40
10
fontes, apenas quinze em condições de uso. Este parâmetro acusa a necessidade de salvaguarda
destes equipamentos e da concretização de medidas protetivas para estes espaços.
O reconhecimento da relevância patrimonial Municipal é documentado através da
proteção a onze equipamentos pelo IPAC-BA, e Nacional, pelo IPHAN, em dois equipamentos,
fazendo coincidir a proteção nos equipamentos da Fonte da Preguiça, e na Fonte do Queimado,
classificação que, no entanto, não garante a vitalidade ou função social dos equipamentos.
Interessa analisar como a “cidade das mil fontes” sofreu (e continua) com a dificuldade
ao acesso à água potável nas variantes do abastecimento doméstico e no espaço coletivo. O que
justifica o estado de degradação dos espaços das fontes e chafarizes de Salvador? Considerando
as diferenças epistêmicas do Norte e do Sul no tratamento do espaço comum, ainda assim, o
que justifica o cerceamento do acesso à água? Por que no Brasil não se consome água
diretamente da torneira? Do que decorre a necessidade de aquisição d´água engarrafada ou de
um sistema de filtração doméstico? Qual o fundamento do afastamento dos espaços d´água à
sociedade?
OBJETIVO ESPECÍFICO:
Este trabalho pretendeu reconhecer as condições da implantação dos equipamentos de
venda d´água em Salvador. Para isso, identificámos a entidade promotora da instalação dos
equipamentos: a Companhia do Queimado, de reconhecida relevância cultural através do
tombamento, pelo IPHAN, do Parque e Fonte do Queimado (n.º processo: 1289-T-89). O
período temporal de estudo foi delimitado pelo funcionamento da Companhia, acompanhando
os preparativos para a sua constituição, as formulações imediatas, e o seu encampamento, de
1852 a 1905.
Apesar da importante classificação do IPHAN, as informações relativas à gestão
pública, política, técnica e social da Companhia sistematizadas eram escassas, tendencialmente
valorizando o seu significativo papel no processo de modernização industrial, na transição para
a República. Desconhecia-se, no entanto, a relevância da sua participação no processo de
reformulação cultural de consumo e de status, intrinsecamente ligados à sua distribuição na
cidade, suscitando o objetivo de reavivar seu conhecimento, como pequena contribuição para a
história do abastecimento. O reconhecimento das estratégias fundacionais do sistema de
distribuição atual, foi alimentado pelo reconhecimento das “estações de vendagem”: os
chafarizes e “casas de vendagem”, ainda existentes na malha urbana.
A interpretação da atuação da Companhia foi amparada pela compreensão da
mentalidade ideológica predominante na segunda metade do séc. XIX, que em Salvador
desenvolveu especificidades que justificaram as soluções adoptadas. Afastando a pretensão de
11
produção de uma teoria geral, nos debruçámos na tentativa de encontrar especificidades
particulares locais, de um “desenvolvimento” apoiado na importação truncada de sistemas de
gestão e tecnologias europeias, diferenciado das demais cidades.
Como se vulgariza a cultura da compra d´água? Como se aceita pacificamente o
cerceamento dos espaços de captação? Como funcionou a Companhia do Queimado? Qual a
sua política, objetivos e estratégias? De que modo a medicina interferiu nas políticas de
saneamento da cidade? O fator racial foi elemento diferenciatorio? A cidade produziu políticas
urbanas particulares? É possível propor a correção de desigualdades no acesso e consumo de
água potável?
Mergulhámos nas tramas que envolvem factos políticos, sociais, culturais e ideológicos,
identificando os sujeitos sociais que utilizam o espaço da fonte e “das estações de vendagem”
como meio de subsistência de aguadeiros e lavadeiras, entendendo estes espaços como
instrumento de exteriorização das instâncias do poder (público, privado, individual e coletivo).

Afrânio Peixoto, em 1945, já alertava a “Eruditos e investidores: belo tema de pesquisa


e indagação: as fontes da Bahia!” (PEIXOTO, 1945,175)

12
Capítulo 1

Lugares de contraste do séc. XIX em Salvador.


Este trabalho parte da premissa de que a arquitetura e o urbanismo são expressões
construídas da cultura, que estabelecem relações compensatórias entre os hábitos e as
necessidades espaciais das atividades diárias locais que compreendem e modificam relações
sociais de acordo com a tecnologia, política e tradição contemporânea contribuindo para a
manutenção ou composição de novos hábitos da população que a habita.
Não são, portanto, expressões apolíticas ou isoladas do contexto criativo e
materializado. Desvinculamos este trabalho da interpretação da Arquitetura e Urbanismo como
“disciplinas autônomas”. Na perspectiva que defendemos elas refletem o pensamento
contemporâneo, com significados que ultrapassam a conformação espacial construída,
compreendendo o vocabulário tecnicista da disciplina, mas também o processo da construção
da ideia e meios empregados na sua realização dentro e fora do gabinete, onde se “entrelaçam”
ideologia, propaganda, embates da dualidade coletiva e individual.
Como produção coletiva a cidade expressa as vivências próprias de cada hábito
cultural, circunscrito por especificidades topográficas, climáticas e tensões sociais que a
modelam e organizam, tendencialmente, de modo mais tecnológico e funcional para os que nela
habitam ou governam (a dualidade novamente) e condicionada ao tipo de relações sociais que
abriga. Entendemos a leitura da arquitetura e do urbanismo que ultrapassa a classificação
temporal, estilística, como obra autoral, acreditando na intersecção de outros campos
disciplinares (adisciplinaridade), entendendo as influências (outras) que compõem o construído.
Questionamos, portanto, a expressão popularizada de Vauthier1 que, ao estudar a casa
Brasileira no séc. XIX, considerou que quem viu uma, viu quase todas, desconsiderando a
análise do habitar individual, onde encontramos especificidades de cada espaço de acordo com
a(s) cultura(s) de quem o habita. Sobre este tema o trabalho fotográfico “cubículos-caixões”
(2017) de Benny Lam, demonstrando a subdivisão contemporânea de apartamentos em Hong
Kong, exemplifica como sob o mesmo invólucro espacial se desenvolvem diferentes
expressões. Recordamos também as diferentes articulações de uma família nuclear
monogâmica ou polinuclear poligâmica, não alteradas pelo limite do espaço construído.
A leitura e interpretação da espacialidade contribui para reconhecer e reafirmar
expressões sociais culturais, assim como a Arqueologia, a História, a Antropologia. Negamos
também a concepção da Arquitetura como produção independente e de concepção “própria” do
autor, que produz uma compreensão que se pretende “de arquiteto”, como se fosse possível

1
O engenheiro e arquiteto Louis L. Vauthier esteve no Brasil entre 1840 a 1846 quando escreveu “As
Cartas”.

14
higienizar a arquitetura do contexto em que atua, ou seja, de tudo o que a circunda. (SARAIVA,
2019, 3) Compreendemos considerá-la no contexto histórico e cultural em que se produziram,
entendendo o processo social da sua existência.
Não é de admirar que Salvador detenha uma expressão urbana própria. Fundada sob
preceitos urbanos portugueses, na especificidade do transporte colonial de composição de
hábitos e compensações, encontrou processos próprios para a satisfação das suas necessidades
particulares.
Por duas vezes foi sitiada, por holandeses e depois por portugueses, que pretenderam
através da restrição do abastecimento de alimentos, a rendição. Esta tática bélica demonstra a
relevância da gestão dos bens primários à cidade. Excluindo estes períodos atípicos de ataques
armados, a gestão dos bens de primeira necessidade decorre conforme articulações políticas
locais, desarmadas, mas igualmente e potencialmente perigosas e danosas.
Reclamamos a necessidade da compreensão do processo da implantação da tecnologia
de infraestrutura hídrica urbana em Salvador, como decorreu, alterou hábitos culturais e
analisada em contraste.
Sem disciplina própria no séc. XIX, a cidade foi pensada no panorama científico, por
engenheiros e médicos higienistas, que desenvolveram a higiotecnia, preocupada com o
controle das coisas: o ar, água, terra, dos corpos doentes, mortos e aglomerações propagadoras
de epidemias. A água foi peça chave neste processo para purificar a cidade. Médicos
identificaram miasmas e águas estagnadas como principais focos das epidemias, ao mesmo
tempo formulam teorias raciais hierarquizadas e discriminatórias, não sendo estranho a
construção de articulações de distribuição d´água contaminadas por ideias de base racial
discriminatória.
O abastecimento d´água a Salvador, capital da província que impôs mais entraves ao
gradual e anunciado processo de abolição da escravatura, foi agravado pela total dependência
do seu transporte para o abastecimento, realizado pelo Aguadeiro. Ao não se encontrar mais
disponível nas mesmas condições, foi urgente a atualização do serviço de abastecimento d´água
à cidade, ultrapassando esta dependência.
Mediante autorização de constituição de Companhia, o Governo da Província delegou
a responsabilidade do serviço à gestão privada. Embora discutindo, contratando obras,
definindo condições e produzindo um discurso benemérito da Companhia, não conseguiu a
anuência da população ao serviço, que não atingia resultados satisfatórios. Da constante
incompatibilidade entre quantidade e qualidade na distribuição e a viabilidade financeira da

15
empresa, decorreram processos compensatórios que ora prejudicaram a companhia, ora os
consumidores, resultando na manutenção dos hábitos de consumo tradicionais.
Se a História e a Geografia enumeram sucessivos e importantes períodos de seca, a
inexistência de fontes de captação perenes, e o uso inadequado das penas domiciliares, foram
argumentos para o Queimado justificar a continuada escassez d´água potável fornecida. A
situação desoladora persiste ao virar do século, evidenciando que “não é propriamente a falta
do precioso liquido o que aflige a população, mas o incomodo e a despeza para a acquisição”2:
a irregularidade na distribuição não justificava os altos preços praticados.
Progressivamente a Municipalidade procurou alternativas à dependência ao
abastecimento do Queimado e interfere no abastecimento, num processo de discussão entre a
opinião pública, o Município e a Companhia, que culminou no encampamento da empresa em
1905, acompanhando o processo de transição política, enfrentando períodos se seca e
epidemias.
A venda e distribuição d´água potável pela Companhia do Queimado no espaço coletivo
e domiciliar iniciou a 7 de janeiro de 18563. Abastecendo chafarizes e “casas de vendagem”,
sendo o número de penas4 domiciliares contratadas quase insignificante. Para a maioria da
população, que não podia contratar o serviço domiciliar, o serviço dos aguadeiros continuou
fundamental. A compra da água nos chafarizes e “casas de vendagem”, obrigava à convivência
de um ambiente descrito como violento, onde aconteciam frequentes rixas, e o tempo de espera
para abastecimento dependia da disponibilidade de água, que, em períodos de seca, atrasava o
enchimento do reservatório, fazendo aumentar a fila e o tempo de espera. Os Aguadeiros,
distribuindo a água pela cidade, como intermediários entre a Companhia e o consumidor,
atribuíram uma complexidade excepcional ao serviço que oscilava entre a tentativa da
instalação de um serviço moderno e tecnológico e o falhanço da proposta pela escassez de água.
A insistente necessidade de gestão dos danos, que resultavam da ineficácia do
abastecimento do Queimado, da inexistência da garantia da proveniência da água revendida
pelo aguadeiro, e o consequente aumento de preço pelo transporte face a crescente dificuldade

2
Mensagem apresentada à Assembleia Geral Legislativa, Governador Luiz Vianna, 10/04/1899;
Relatórios dos Presidentes dos Estados Brasileiros (BA), edição 1, 1899, pág. 4/5.
3
“[...] a água chegou aos chafarizes a 8 de dezembro 1856, sofrendo um processo de depuração e limpeza
dos canos, só iniciando a sua venda a 7 de janeiro. (Relatório dos Trabalhos do Conselho Interno de
Governo (BA), Fala do Presidente da Província João Lins Sinimbu, edição 01, 1857, pág. 124/125)
4
“Penna”, ou “anel” são vocábulos que vinculam o serviço de distribuição característica dos
encanamentos sobre pressão. (BENCHIMOL, 1992, 67) O seu valor unitário era convencionado por lei.
Em 1910 a lei Municipal fez corresponder uma penna a 500 litros de água servida por prédio.
(SAMPAIO, 1910, 14)

16
de abastecimento, condicionaram a população ao abastecimento tradicional, recorrendo ao
abastecimento em poços privados ou nos espaços de retenção de água natural em lagos, fontes
públicas, mantendo os seus hábitos de consumo, perante uma tecnologia ineficiente. No início
do século XX, o abastecimento ainda acontecia com água de fontes de domínio público e
privado, existentes em abundância.

1.1 Salvador no séc. XIX, novas dinâmicas.

[...] há água em toda parte. [...] É fácil imaginar o enorme reservatório


representado pelo solo da Cidade Alta: é só cavar para ter um poço. [...] Os
mananciais e as fontes estão em toda a parte em Salvador, na base do horst como
nas trilhas de menor fratura, do menor deslocamento de terreno, do mais
insignificante vale. São águas cristalinas, filtradas naturalmente, ricas em sais
minerais [...] Salvador é a cidade das mil fontes. (MATTOSO, 1992, 47)

Da descrição de Kátia Mattoso (1992), parece incoerente apontar problemas históricos


resultantes da disputa por água, em uma cidade abundante em fontes, riachos e lagoas. Devemos
considerar que o processo de industrialização, com importante indústria têxtil e de curtume, na
segunda metade do séc. XIX, aliado ao aumento exponencial da população que, com prudência
e admitindo grande imprecisão, entre 1810 e 1870 havia duplicado de tamanho, passando de
cinquenta mil para cem mil habitantes. (MATTOSO, 1982, 105) A falta de higiene
generalizada, sem serviço de canalização de água ou esgotamento, iniciaram o processo de
degradação da qualidade d´água na maioria destes locais, decorrendo deste processo também o
julgamento e condenação higiênica deste elemento, considerado o grande propagador de
epidemias, do qual se deveria manter uma distância segura.
Dados oficiais de 1848 registram 27 fontes públicas na cidade: doze na Cidade Baixa, e
quinze na Cidade Alta. (APEB, OP, M4879, 1848) A Companhia, a partir de 1853, instala doze
chafarizes e termina a sua atuação (1905) com 22 chafarizes instalados no espaço público e sete
“casas de vendagem” para abastecimento. (Anexo 1) Apesar do aparente aumento da
disponibilidade de água no espaço público, este número foi condicionado pelo abandono e
desaparecimento das fontes naturais da cidade, invadidas, apropriadas e canalizadas no séc. XX.
No entanto, dados de 1889 retirados de uma análise do Laboratório Municipal
enumeram mais de uma centena de locais de abastecimento5, entre fontes particulares e
públicas, comprovando a importância do abastecimento tradicional ao longo do séc. XIX. A
atividade comercial de venda d´água em espaço privado não foi condicionada ou suprimida pela

5
Análise elaborada por Dr. Innocencio Cavalcanti APEB, caixa 12, relatório 306, apud DANNEMANN,
2018, 35;

17
Companhia, mesmo através da argumentação de obtenção de suposto privilégio que impedia a
constituição de concorrência oficial d´água canalizada.
Por equacionar ficou o abastecimento à população mais carente, sem recursos para a
contratação de pena ou pagar pelo seu transporte ao Aguadeiro. Não cuidando de manter
apropriadas as fontes públicas existentes na cidade, o Município negligenciou o problema,
remetendo-o totalmente para a Companhia:
[Fonte do Gravatá] a mais imunda, e pior de tôdas; é porém a mais frequentada
por ser a única pública, que há dentro da cidade; digo pública por ser naquela
paragem: há porém alguns poços, de que seus donos vendem água a quem a não
pode haver nas duas únicas bicas que tem aquela fonte. (VILHENA, 1799, 103)

A cidade articulou os seus espaços para ultrapassar a carência no abastecimento,


decorrendo expressões urbanas locais específicas. Entre a formalidade social coletiva, que
contrastava com a informalidade da vida doméstica, conformou lotes urbanos que responderam
à permissa de intimidade, protegendo a intimidade em lotes fundos, com poucos metros de
frente, desenvolvendo grande parte das atividades domésticas, longe da formalidade e da
exposição, nos fundos do lote. Transportando o conceito português de quinta, originalmente
com ênfase rural e de produção agrícola, o lote urbano de Salvador conformou quintais que
ajudaram a enfrentar a inexistência de infraestrutura coletiva, produzindo alimento e onde se
captava água dos caminhos hídricos dos fundos.
A expressão urbana do grande contingente da população liberta ao longo do séc. XIX,
desenvolveu também novos espaços habitacionais e de comércio artesanal, inserindo novas
dinâmicas econômicas e expressões ao espaço urbano, agravando tensões entre espaço privado
e público, disputadas entre proprietário e locatários. O aluguel de casas era um negócio
importante para a/o capital. Só o Dr. Francisco Muniz de Aragão possuía 33 casas na entrada
do Tororó, todas apresentando estado desabonador para a salubridade da cidade, com falta de
infraestrutura, como latrina, sinfão e quintais alagados. Impossibilitado de alugar uma ampla
moradia, o liberto morou em casas ou quartos alugados, formulando espaços que não haviam
sido equacionados na cidade, aumentando o número de residentes no fogo, e consequentemente,
a necessidade de infraestrutura básica.
José Antônio Caldas (1998)6 apresenta dados relativos a 1759, que referem a
concentração de residências nas freguesias da Sé, Conceição da Praia e do Pilar,
correspondentes às áreas centrais e diretamente relacionadas ao porto marítimo. A Cidade

6
in A evolução Física de Salvador, apud Gregório de Mattos, 1998, pág. 148.

18
Baixa, abrigando as atividades comerciais, era habitada por comerciantes com sua família e
serviçais. Junto ao cais, no espaço coletivo, se encontravam quitandas responsáveis pela
comercialização de boa parte dos gêneros de subsistência, e a presença do serviço do ganho era
expressiva decorrente da grande procura pelos serviços das atividades portuárias.
O censo de 18557 contabilizou a população escrava e liberta. Nele observamos a
redistribuição populacional nas freguesias de São Pedro, Santo Antônio e Sé. Na Sé, apesar de
até meados do século XIX caracterizar-se como de elite foi perdendo essa característica, na
medida em que os comerciantes se mudaram para as freguesias do Pilar e Vitória, cedendo seus
sobrados para casas de comércio ou para acomodação de seus empregados. Passa a ser habitada
por uma população de classe média e pobre, decorrendo a adaptação de residências
unifamiliares a multifamiliares, subdivididas em vários espaços, gerando renda por aluguel ao
proprietário, que não reside na freguesia. Não será por acaso que serão nestes espaços alugados
onde a vigilância sanitária identificará maiores problemas de higiene. Pela sua centralidade,
proximidade ao porto e aos principais pontos de comunicação, concentrou grande número de
libertos e escravizados de ganho trabalhando e habitando, por aluguel.
No fim da rua das Verônicas, não muito longe do Convento e Ordem Terceira
do São Francisco aglomeravam-se pardos, cabras e pretos livres e libertos,
poucos escravos, com ocupações primárias de prestações de serviços
autônomos como “vende água”, “vende lenha”, “vende mingau”, “tem venda
na porta”, “carrega cadeira”, “ de ganho”, “rema saveiro”. (NASCIMENTO,
2007, 69)

Na freguesia de Santo Antônio encontramos outro perfil de ocupação. Considerada no


início do século XIX uma freguesia periférica, era habitada por setores médios da sociedade,
ocupada por casas comerciais e roças. No decorrer do séc. XIX, aumentou significativamente
o número de residências de escravos e libertos, por vezes já de segunda geração, em casas
térreas de tipologias simples de uma porta e uma janela. A baixa percentagem de brancos, bem
inferior aos pardos evidencia a segregação espacial na escolha dos locais de residência do
contingente liberto, na extremidade oposta ao eixo S. Pedro/Vitória, que permaneceu todo o
período Republicano sem o menor saneamento.8

7
“Relação entre a expansão predial e estabelecimentos de negócios em Salvador (1895-1930)”.
Departamento de Tributos Imobiliários de Salvador. Livro de Castro Imobiliário, Livro dos 12 distritos
urbanos, anos indicados; Arquivo Público do Estado da Bahia, Arrolamento das casas de negócios,
Livros dos 12 distritos urbanos, anos indicados, apud Silva, “Crescimento urbano e habitação em
Salvador (1890-1940), 24.
8
Distribuição “livres, libertos e escravos” de Salvador, de acordo com o censo de 1855. (ANDRADE,
1988, 62)

19
Depois da freguezia da Sé, a de Santo Antonio Além do Carmo é como uma
grande aldeia sem arte e sem conforto, onde a vida não encontra nos recursos
da hygiene urbana as condições de resistência garantidoras de saúde e do bem
estar. Ruas tortas, desniveladas, ora estreitas, ora bruscamente alargadas
impuras, mal calçadas, casas de feio aspecto, no geral baixas, acanhadas e sem
conforto, população no geral pouco afeita á limpeza: - a freguesia de Santo
Antonio Além do Carmo é, depois da Sé, a que mais bastante intervenção requer
do saneamento geral. (BRITO, 1929, 20)

Através da tabela do Professor Mário Augusto Santos, que analisa a evolução predial e
comercial no período de 1895 a 1930, verificamos que a freguesia de Santo Antônio teve o
maior aumento predial do período, evoluindo de 2.527 em 1895 para 7.110 prédios, em 1930,
sendo o distrito com maior número de prédios da cidade. (Anexo 2) Com o aumento de 64,46%
no número de residências, e 60,92% de negócio, a freguesia apresenta índices de ocupação
semelhantes aos da Vitória: uma nova periferia planejada para a residência dos mais abastados,
que apresenta um crescimento predial de 61,14 % e 62,9%. A semelhança entre o crescimento
percentual do número de prédios e de negócios, enuncia a existência de atividades comerciais
diferenciadas, de trabalhadores independentes ou de ganho em Santo Antônio, enquanto na
Vitória habitavam os proprietários das empresas. O contraste destas duas freguesias decorre,
mais do que nos números, do status social e das ocupações. A semelhança numérica se
concretiza em realidades espaciais e econômicas totalmente opostas.
O estudo da evolução da freguesia de Santo Antônio é relevante, uma vez que nela se
localizou a primeira represa de abastecimento à cidade, condicionada para o efeito em 1853 e
condenada para abastecimento em 1924, sendo progressivamente ocupada, num processo
gradual de abandono Municipal e ocupação irregular para o qual este dado demográfico ajudará,
em outra altura, a entender.
Afirmando ser possível traçar a geografia de áreas mais negras que outras, Cecília
Moreira Soares (1994), através da análise dos censos de 1872, identifica a concentração de
mulheres negras no Passo, Vitória e Conceição da Praia, do Pilar, Mares e Penha, onde serviam
como domésticas. O serviço doméstico, correspondia à ocupação de 27,2% da população
escrava em Salvador no período de 1811-1888, e incluía o abastecimento d´água. Com a atuação
da Companhia, a nova articulação econômica do serviço acarretará uma alteração no gênero
que providenciará o abastecimento, privilegiando-se o elemento masculino, face à
periculosidade do abastecimento nos chafarizes e “casas de vendagem”, onde no seu caminho

20
tudo se ajustava: velhas contas pessoais, vinganças, ciúmes, desavenças9, trazendo constante
“desassocego as familias alli residentes”10.

1.2 Dependências compensatórias: os quintais

Tôda a montanha na sua fralda geme água, e poucas são as casas, que não
tenham sua poça, em que a aproveitam. (VILHENA, 1799, 102)

Se a tipologia habitacional da arquitetura colonial na sua relação com a cidade, com o


meio natural e suas dependências, na forma de casas térreas, sobrados e solares, já se encontram
bastante estudadas, concordamos com o arquiteto Jan Holthe11 que considera a necessidade de
estudo dos outros espaços que compõem o urbano. Estudando os quintais urbanos, o autor
apresenta a originalidade da relação destes espaços com a cidade, atuando como espaços de
compensação, onde se desenvolvem atividades necessárias, mas ausentes no espaço coletivo.
Acrescentamos a estes estudos, os espaços dos chafarizes e das “casas de vendagem”, também
menos conhecidos, mas igualmente relevantes.
Figura 1- Complexo do Unhão: fonte, chafariz e aqueduto; Fonte antiga, Solar do Unhão; Solar
Berquó com bacia de retenção; Solar do Gravatá com poço no quintal.

Referências: Google Earth, consultado a 15/17/2019; Processo de adaptação do Solar ao Museu de


Arte Popular de Lina bo Bardi IPHAN;

Observando as condições hídricas e a ausência de infraestrutura coletiva para o


abastecimento, reconhecemos o desenvolvimento de funções compensatórias no quintal. O
privilégio de ter um quintal estava diretamente associado de ter um poço nativo, capaz de
fornecer água em abundância e sem o inconveniente de deslocar-se, às vezes por grandes
distâncias, em busca do produto. (HOLTHE, 2002, 234)
[...] os quintais eram fundamentais para o bom funcionamento das casas e o
conforto de seus habitantes. Não se concebe uma residência sem o uso frequente
de água, e numa cidade onde as casas podiam, em determinados períodos de sua
história, abrigar quase 50 moradores, muitas vezes o consumo podia ser
realmente muito elevado. Desta forma, a população de Salvador dependia – e
com razão – dos seus quintais como espaço de armazenamento de grandes

9
A Tarde (BA), 12/12/1977.
10
Jornal de Notícias (BA), “Pelas ruas”, edição 3665, 9/02/1892, p.1.
11
Na sua tese de mestrado apresentada à FAU-UFBA, Quintais Urbanos de Salvador: Realidades, Usos
e Vivências no Século XIX, 2002.

21
quantidades de água, até mesmo porque as alternativas (água encanada,
aquedutos etc.) praticamente inexistiam. (HOLTHE, 2002, 237)

A relação da arquitetura residencial com o quintal, seus usuários e atividades,


desenvolveu-se na precariedade da infraestrutura coletiva e se articularam nos serviços
domésticos, que pediam ligações mais amplas com o exterior. (LEMOS, 1978, 35) Embora as
roupas continuassem a ser lavadas à beira de rios e lagoas, os banhos (quando tomados), no rio,
evitando o transporte de grandes volumes de água, “a lei do mínimo esforço” (a que
anteriormente chamámos de funcionalidade), levava a que se transportasse a água estritamente
necessária às pequenas limpezas, à cozinha e aos raros banhos de gamela. (LEMOS, 1978, 34)
A tradição de disposição do lote com estrada na cumeeira e fundos para a linha d´água, facilitava
não só o abastecimento d´água como o escoamento d´águas sujas.
A tipologia de residência das famílias menos favorecidas, do grosso da população e
também do “grosso da classe média sem pretensões”, era a casa térrea. De porta e janela ou
duas ou três janelas, o lote raramente ultrapassa os 5,00 m de largura – às vezes mal chegando
aos 3,00m. Em geral mais compridos que largos, resultavam em fachadas estreitas e
mesquinhas, sem recuos laterais limitando a exposição para a rua. (MATTOSO, 1992, 446) O
número de janelas e largura do lote estava diretamente relacionado ao poder aquisitivo do
proprietário. As mais modestas, as casas térreas de porta e janela, eram nas palavras de Freyre
(1968), as habitações dos negros, alguns, exercendo as atividades de marceneiros, ferreiros,
funileiros, [que] chegam às vezes à pequena burguesia. (FREYRE, 1968, 179)
Figura 2 - Casas térreas de porta e janela; Sobrado; Rua das Laranjeiras, Centro Histórico.

Referência: A Tarde (BA), n.887, “Os contrastes da Avenida "7", 11/09/1915, p. 1; Fotografia de Luis
Nicolau Parés (2007).

Em sobrados e solares habitava, no início do séc. XIX, a elite. Distinguida no espaço


urbano pela escala da habitação e dimensão do lote. Com dois ou mais pisos, a hierarquia

22
ascensional, onde os mais poderosos habitavam mais acima, desconsiderou o piso térreo, mais
exposto ao exterior e onde se desenvolveram as lojas, com acessibilidade privilegiada ao
quintal. As lojas eram ocupadas e subdivididas pela população pobre que não dispunha de
recursos para construir ou alugar a sua própria casa. Quando habitados por diferentes famílias,
Holthe (2002) sugere o quintal era utilizado por todos os moradores, de acesso articulado para
que todos pudessem usufruir destes espaços não-edificados e protegidos. (HOLTHE, 2002,
151)
1.3 “As estações d'agua do Queimado”
1.3.1 Os chafarizes:
[...] fallaremos ligeiramente dos chafarizes, que, aliás, péde um estudo mais
minucioso e profundo, por tratar-se de uma cousa que é o elemento principal da
vida humana - a agua. Os chafarizes, ou melhor as estações d'agua do
Queimado, são os logares mais dignos da fiscalização do Governo Municipal,
porque sendo alli que se apanha o liquido preciozo para a servidão publica, é
com a mesma razão que se deve rigorozamente impôr os preceitos que a hygiene
ensina, afim de evitar a propagação de molestias graves. (SILVA, 1908, 9)

Com vista ao cumprimento do disposto no artigo 11.º do contrato de 1853, que


determinou as condições para abastecimento e distribuição d´água à cidade, a Companhia
instalou doze chafarizes, abastecidos com as águas extraídas do açude do Queimado, através de
uma rede subterrânea que ligou a praça Castro Alves, Terreiro de Jesus, Largo Dois de Julho e
Piedade.
Figura 3 - Chafariz da Piedade (1862); Terreiro de Jesus (1859); Bonfim (1888).

Referência: acervo IMS: Benjamin Mulock; Camilo Vedari, 1862, (apud Holthe, 2002, 184); A
Locomotiva, edição 1, 1888, pág. 1.

A instalação de cada equipamento foi o ponto mais elaborado no primeiro contrato,


sendo determinada a precisa localização de cada dispositivo, remetendo o projeto final ao
parecer da província (Anexo 3). A sete de janeiro de 1857, a empresa iniciou a venda d´água à
população, investindo em elegantes chafarizes, com forte simbologia pictórica e material:
[...] sendo os principais na Praça 15 de Novembro, na Praça do Conde d´Eu, na
Piedade, e em frente ao Theatro Publico. – O primeiro é todo em bronze, tendo
no alto o emblema da abundancia, e no pedestal 4 collossaes estatuas de bronze
representando os rios de S. Francisco, Jequitinhonha, Pardo e Paraguassú, que
lançam copiosa água n´um grande tanque circular de mármore. O segundo tem

23
no alto o emblema do Brazil representado por um índio, e o terceiro tem no alto
a estatua de Pedro Alvares Cabral, o descobridor do Brazil. Ambos estes
chafarizes, bem como as respectivas bacias, são feitos de fino mármore, e todos
três cercados de gradaria de ferro. (AMARAL, 1922, 545)
Instalados em comemoração ao facto auspicioso da nossa Independência, da nossa
emancipação política12, os chafarizes foram verdadeiros monumentos tecnológicos e de
representação, que pretenderam cenografar a imagem do progresso da cidade e grafar a imagem
da Companhia, na transição para a cidade moderna. As “casas de vendagem”, instaladas após a
Guerra do Paraguai, contribuíram para o processo ao adoptaram nomes de locais onde houvera
vitórias do exército brasileiro, (Curuzu, Humaitá)13, enaltecendo a identidade regional e orgulho
nacional. A instalação dos chafarizes iniciou o projeto de propaganda externa da cidade,
anterior à conseguida com o elevador Lacerda (1873), o primeiro elevador urbano do mundo.
A sua presença na malha urbana foi descrita por viajantes, servindo de cenário para a captura
de postais.
Figura 4 - Postais enquadrando os chafarizes.

Referência: acervo do Museu Tempostal (BA);

Destaques da Feira Mundial de Paris de 1855, os chafarizes compunham a paisagem


parisiense da época, que, a partir de 1846 elaborou estudos hídricos por Belgrand, tendo
Haussman, como um dos expoentes das mudanças urbanas, e diretor do departamento de águas
e esgotos (1855). Nesta circunstância, os chafarizes atribuíam qualidades artísticas aos espaços
públicos que já possuíam completo abastecimento domiciliar.
Em Salvador, este estado de distribuição apenas será aproximado no século XX, quando
a representação de símbolos hídrico e históricos, acompanham o processo de ressignificação da
simbologia e construção de identidade nacional Republicana. Nas comemorações do Dois de
Julho, o Queimado contribuía com a festividade, acionando o chafariz do Terreiro, provocando
deslumbramento pela elevação da água a onze metros e cinco centímetros acima do adro da

12
Diário de Noticias (BA), 08/02/1912.
13
A Tarde (BA), 16/03/1933.

24
Catedral14. “Fazia gosto vel-o jorrando agoa, e com ella descrevendo círculos em todas as
direcções, embandeirando e illuminado.”15 A permanência de apenas dois chafarizes, de maior
relevância artística e representativa na malha urbana, sobreviventes da transição política do
final do início do séc. XX, confirma a leitura urbana de Rossi que afirma que continuamos a
fruir elementos cuja função foi perdida faz tempo; o valor desses fatos reside, pois, unicamente
na sua forma. (ROSSI, 2001,57)
Mas, em Salvador, na segunda metade do século XIX, a excentricidade destes
equipamentos contrastou com a falta de infraestrutura básica e coletiva da cidade. Como
podemos observar na fotografia do chafariz do Terreiro de Jesus (1862), que abre o capítulo,
que capta a roupa a corar no chão, demonstrando-o entregue aos vendedores de água, quando
era um campo de poeira, sem calçamento e sem arborização.16
O contraste do “gosto de vel-o jorrando agoa”, com a incapacidade dos equipamentos
de abastecer a população, condicionada às condições da Companhia, incomodou. A torneira,
fechada fora do horário de funcionamento, até vinte horas, controlada por guarda, desagradava
a população que dele dependia para se abastecer e realizar o seu negócio. A população
questionava: será permittido isto, Srs. Fiscais, quando a Camara o proibe?
Voltando da Lapinha, onde, como em todo o transito, tinha ostentado
suas prezas, quizera á força beber agora, e como a grade do chafariz
estava fechada, bradou: -Fogo com o rodízio de prôa! E a fileira da
frente lançou-e sobre a grade a tentar quebral-a. - Solta a peça raiada!
Gritaram de novo os que comandavam. E com novo reforço eles bebiam
agua no tanque do chafariz, e no dia seguinte a grade era conduzida,
quebrada em várias partes, para as oficinas da companhia do Queimado!
(A Actualidade (BA), edição 467, 1863, pág. 3)

Consciente da importância da opinião pública que desenvolvia uma guerra oficial contra
a companhia do Queimado nos jornais, tentando reverter a situação, em 1862, estabeleceu na
“habitação da pobreza” dois chafarizes, um no distrito da Cruz do Cosme e outro na praça da
Lapinha, vendendo o barril d´agua a 10 rs, tornando se credora da estima publica, alegava o
jornal O Commercio (RJ), edição 187, a 8/07/1862.
A condicionante imprevista de seu uso original, para “vendagem d´água”, acarretou
articulações não previstas na dinâmica destes espaços. A constante presença e ocupação de
Aguadeiros, funcionários da empresa/guardas, e sendo frequentes as queixas à sua atuação,

14
Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de Governo da Bahia, fala do Presidente da Província
Alvaro Tiberio de Moncorvo e Lima, edição 1, 1856, p.73.
15
A Actualidade (BA), edição 467, 1863, pág. 3.
16
Diário de Noticias (BA), 8/02/1912;

25
como “miniaturas de régulos admittindo a tirar água apenas as pessoas de sua sympathia, com
prejuiso das outras que ali ficam retidos duas e mais horas”, conformaram ambientes que foram
um obstáculo à imagem pretendida, expondo a população Africana e afrodescendente, que se
pretendia esconder na propaganda internacional. 17
Os chafarizes são para as pretas captivas o rendez-vous de seus amores, o logar
onde desabafam as raivas dos senhores e senhoras; a sala de visita onde recebem
as amigas, o escriptorio onde pagam suas dividas de ciúmes e tratam em magna
sociedade das acções, que vêem raticar em casa. Negros e negras, de bons e
maus senhores, ali se encontram, e grandes coisas se decidem, enquanto corre a
agua da bica com doce e suave murmúrio. (O Alabama (BA), 12/10/1868)
Para o escravizado que se abastecia no chafariz, este momento representava a
experiência de liberdade, onde se encontrava com o seus, revelando segredos e
confidencialidades de “yayasinhas” e “sinhôsinhos”. “Até que chegam se desculpam dizendo
que havia muita gente no chafariz, que as bicas estavam ocupadas e que os galés tomaram conta
delas; e outras carcavias semelhantes, que uma pobre dona de casa não tem remédio sinão
aturar.” (O Alabama (BA), 12/10/1868) A “má frequência” e inadequação (i)moral destes
espaços são constatados nas descrições nos jornais da época, sempre pejorativos: uma “turba
magna de capadócios” se juntava nas fontes para as suas conquistas:
[...] esses herois da boa vida, da vida sem cuidados não só iam ao chafariz para
se divertirem como vae um moço de educação ao theatro para ver a sua
namorada, ou como passa um amável pela rua de seu bem, para rasgar-lhe um
cortejo [...] No chafariz pauteam, dão risadas e fazem muita cousa mais que fica
em silencio. (O Alabama (BA), 12/10/1868.)
A década de 1890 marca o recuo do Queimado no abastecimento aos chafarizes
públicos, por falta de água para servidão em todas as estruturas. O chafariz no largo Castro
Alves, um dos removidos da malha urbana, deixou de vender água aos aguadeiros, que foram
forçados a se deslocarem à rua das Vassouras, comprando ao preço de 20 reis o barril, um
aumento de 10 reis, que consistia uma “violação do ultimo contracto que prorrogou o praso da
companhia do Queimado”, que estipulou preço máximo de venda. (Pequeno Jornal (BA), n.º
36, 14/03/1890, p. 2)
A falta d´água nos chafarizes ocasionou maiores deslocamentos para abastecimento,
aumentando o preço do serviço e contrastou, com o privilegiado serviço domiciliar, ora o
contrário. No período final de atuação da Companhia, observamos o abastecimento nos espaços
coletivos e a ausência no domicilio, constrangendo os mais poderosos. Virando estratégia e
tática bélica, com chantagem, a empresa manipulou a privação de água a determinadas camadas
populacionais, demonstrando o seu poder. Dependendo de quem se queria beneficiar ou

17
Cidade do Salvador (BA), edição 38, “Vendagem de Agua nos chafarizes”, 11/03/1899, p.1;

26
restringir, orquestrou a sua atuação, atingindo os mais fortes da cidade alta, nas freguesias de
S. Pedro, Victoria, de grande parte de Sant´Anna e Nazaré, obrigando à intervenção da
Municipalidade que contratou meios de abastecimento alternativos. (Cidade do Salvador (BA),
edição 414, 1898, pág. 2)
A 19 de maio de 1905, o Queimado é encampado pela Intendência Municipal e é
contratado o engenheiro Theodoro Sampaio que apresenta um projeto de melhorias do serviço
d´águas e implantação de serviço de esgotos. A partir de 1915, Theodoro Sampaio gere os
serviços da Secção de Água do Município, quando o Município já passava por um processo
grave de endividamento. Sob o argumento de diminuição das despesas, o engenheiro ordenou
o fechamento e retirada dos chafarizes do largo Dois de julho, Tororó, e na rua do Bispo, os
mais imprestáveis e de maior prejuízo dentre os treze desses velhos aparelhos de vendagem
d´água do primitivo abastecimento. Aos restantes se anunciava, oportunamente, o mesmo
destino. (A Tarde (BA), 9/01/1915)
A higiene estadual explicou a medida, alegando que todas as casas já possuíam penas,
obrigadas por lei a instalar aparelhos sanitários com caixas de descarga, que só podem funcionar
tendo água direta. No entendimento de Theodoro Sampaio, o chafariz era desnecessário porque
causava prejuízo, e suas rendas não davam para o pagamento de meio mês aos empregados que
o guardavam. Para ele, prova evidente de que estes bairros não careciam deles. Mandou então
fechá-los.
Para os Aguadeiros, esta estratégia resultou na perda de mais um lugar onde ganhavam
o seu suposto “lucro fabuloso”, numa operação entendida, por alguns, como colaborando para
mais secar os minguados recursos do povo pobre, que perdera mais uma fonte de renda. Em
depoimento, “uma preta mina, cujos queixos, hontem, pela manhã atroavam no largo 2 de julho”
interrogava: “Eu ganhava meu almoço aquí, carregando água para vender. Agora como ha de
ser, meu Francisco?”
Não perderam função as velhas fontes, como demonstrou a grande seca de 1883-85,
quando a própria empresa apelou para o restauro das fontes tradicionais pela Municipalidade,
ao ver baixar o nível de seus mananciais. Em constante deplorável estado, as fontes
continuavam esquecidas: “ellas, como as aguas que d´ellas se tira, pela zelosa câmara” (Gazeta
da Bahia (BA), edição 226, 18/10/1881, p. 1)
Espalhados por diferentes pontos da cidade, os chafarizes de menor peso, com as
modificações urbanas promovidas pelas companhias de bondes para a passagem dos veículos e
o “aformoseamento” das praças, desapareceram. “E o abastecimento do liquido, imprescindivel

27
à população, tornou-se mais dificil nesta boa terra, onde a água encanada é um luxo, é somente
para o homem abastado...” (Diário de Noticias (BA), 8/02/1912)

Se a cidade é civilizada, [...] seus administradores obedecem a uma orientação


artistica e os cofres publlicos permittem, as fontes são de marmore, de bronze,
elegantes, sumptuosas, como os nossos chafarizes da Piedade e do Terreiro.
Quando, porém, o povo é pobre, a população é pequena, a cidade é de somenos
importancia, deixa-se de parte o lado artistico, o lado agradavel e cuida-se, com
muita seriedade, do lado utilitário, do lado hygienico. Nós não procuramos saber
agora, se o povo bahiano é pobre, se a nossa população é pequena, se a cidade
do Salvador a chamada Athenas Brazileira, é de somenos importancia...
Affirmamo, sim, que nao temos serviço de abastecimento de agua à população
nas ruas, o que é vexatório. (Diário de Noticias (BA), 5/03/1912)

1.3.2 Casas de vendagem


7.º Além dos chafarizes fixados no art.º 1.º poderá a Companhia construir outros
nos logares em que as necessidades publicas os reclamarem, e bem assim casas
de banho sob a inspecção da Policia, ficando para esse fim autorisada a
encanaras aguas do Riacho Negrão – rio Camorogipe, e da Fonte da Telha
mediante a indemnisação dos particulares, que por tal motivo forem
prejudicados etc. (Contrato de 1853)

José Alves Amaral no “Resumo Chronologico e Noticiosa da Bahia, desde o seu


Descobrimento em 1.500” (1922) menciona a venda d´água nos chafarizes à exceção de dois.
Na descrição referente a 1853, não menciona quais as duas exceções, que supomos ser os
chafarizes do Terreiro e da Piedade. A Companhia colocou também torneiras em cinco
depósitos em diversos pontos, onde vendia água, e um repuxo no Riachuelo, que fornecia
aguada para os navios, e tinha instalado 2.317 penas d´água em casas particulares e
estabelecimentos públicos.
Figura 5 – Ganhadores; “Última casa de vender água, na rua das vassouras”; O clássico “cavalo de
água”.

Referência: A Tarde (BA) 9/01/1915; A Tarde(BA), n.º 1059,116; (SAMPAIO, 2005, 112)

As casas de vendagem trataram-se de um original arranjo de distribuição d´água. Sem


nomenclatura definida no contrato inicial, denominadas genericamente por estações ou
depósitos, apenas a 1 de março 1874 é cunhado o termo, constante no Relatório dos Trabalhos

28
do Conselho de Governo (BA)18. Instaladas nas ruas mais movimentadas foram na opinião do
Comendador Antonio da Cruz Machado, de reconhecida utilidade e substituiam os chafarizes
talvez com as mesmas vantagens para a Companhia.19
Esta tipologia desenvolveu, em Salvador, um viés diferenciado da tipologia
Pernambucana, sua antecessora, desenvolvendo um sistema de abastecimento similar ao da
Companhia Beberibe, vendendo água à população por meio de penas domiciliares e chafarizes.
No entanto, Recife desenvolveu a venda sempre em espaços próprios, construídos
especificamente para essa finalidade. Fato que contrasta com a adaptação de espaços alugados
na estratégia desenvolvida em Salvador. Esta particularidade, que desenvolveu espaços de
venda marginais à malha urbana, não assumiu a exigência de salubridade.
Figura 6- Casa de Vendagem da Companhia Beberibe, 1926; Basílica de Nossa Senhora da Penha,
1859.

Referência: Revista da Cidade (PE) n.10, 31/07/1926; IMS, Coleção Gilberto Ferrez;

A faculdade de substituição ao abastecimento nos chafarizes das casas de vendagem foi


uma medida articulada pela Companhia como alternativa aos resultados inesperados e
inconvenientes da presença negra nos chafarizes. Por razões de ordem financeira, instalou
apenas um pequeno número de casas, cinco em 1853, apenas sete em 1905. Podemos entender
a resistência da abertura destas casas e o não investimento nesta solução, face à inconveniência
da despesa extra decorrente do arrendamento dos espaços a particulares. A acompanhando o
debate da instalação das casas de banho, entendemos a dificuldade no aluguer para estas
funções, para os quais os proprietários pediam altas rendas, o que desmotivava a companhia.
A venda aconteceu então em espaços de aluguel baixo, resultantes da subdivisão das
antigas casas senhoriais, mediante o aproveitamento de um espaço intersticial de apenas uma

18
Fala do Presidente da Província Cruz Machado, Relatório dos Trabalhos do Conselho de Governo
(BA), 1/03/1874, pág. 236;
19
A Tarde (BA), 16/03/1933; Fala do Comendador Antonio da Cruz Machado na sessão da Assembleia
Legislativa Provincial da Bahia; Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de Governo (BA),
1/03/1874.

29
porta que dava entrada a um minúsculo espaço, onde se instalava uma torneira, um torniquete
e um guarda encarregado de cobrar a água no momento em que fosse retirada.
Aproximando-se da tipologia de habitação da população mais carenciada, de uma porta
e uma janela, subdividida em apenas uma porta, demonstra a quem se destinava o abastecimento
nestes espaços: aos africanos, negros escravizados de ganho ou libertos, para os quais não
haviam prescrições de resguardo e privacidade, condições de permanência ou de higiene,
evitando-se a sua exposição nas principais praças da cidade.
A quantidade de água correspondia ao valor da moeda de cobre (10, 20, 40 e 60
réis) que era depositada em uma caixa de madeira, pintada de verde, fechada a
cadeado, colocada sobre o torniquete que regulava a entrara e saída do
comprador. Todas as manhãs as caixas eram substituídas por outras e levadas
por ganhadores africanos para o escritório da Companhia do Queimado, onde
eram abertas, contando-se o dinheiro. A Companhia trocava o cobre pelo papel,
vendendo um saco de cem mil réis (Rs 100$000) de cobre por 90$000 de papel.
(A Tarde (BA), 16/03/1933)

O trabalho do médico Octavio Torres da Silva (1908), desenvolvido na Faculdade de


Medicina da Bahia, ao explorar as questões de higiene urbana considerou a água elemento
fundamental para o controle de epidemias e forneceu valiosa descrição do serviço das casas de
vendagem:
Nesses logares nota-se a porcaria desde o encarregado de vender a agua, que
quasi sempre é um typo bodôzo, vivendo n'uma gurita da mesma especie, que
não tem cuidado necessario em limpar as torneiras e lavar diariamente o sólo de
sua repartição. Alli dá entrada diariamente a centenas de individuos
nauzeabundos, n'uma promiscuidade medonha, sendo quasi todos os portadores
de mazellas, e no recinto d' aquelle logar, cospem, sacodem suas roupas, urinam,
atiram fumo mascado etc, etc., e ainda mais amarram nas grades carcomidas
pela acçao do tempo e impregnadas de microbios, os animais que ficam a espera
dos barris que fazem a carga. Esses animaes no tôco, escavam o sólo, urinam e
defecam; cujos excrementos de mistura com a urina são levados pelos pés dos
conductores para dentro do chafariz, e d'alli para as casas onde taes individuos
vão despejar essa agua. Ora, não é licito ignorar que semelhante processo é por
demais nocivo á saúde publica, tanto mais quando se trata de uma epocha
epidemica. Entretanto nada se tem feito para melhorar esses fócos de miasmas
que tem o relevante nome de deposito de agua potavel. (SILVA, 1908, 9)

Desta descrição confirmamos a dualidade de espaços entre o chafariz, imponente e


artístico, e as casas de vendagem, espaços marginais, insalubres, com falta de higiene e
identificados como focos de miasmas.
Também aí se estabeleceram preferências, não precisando alguns usuários de entrar na
fila. O Jornal Correio da Bahia (BA) a 04/11/1998, faz referência à venda de vales metálicos
para a compra de água, que exibiam numa das faces uma reprodução do chafariz da Conceição

30
da Praia e no verso tinha a inscrição: vale um barril de água. Quem tinha o vale, tinha a
preferência de atendimento.
Figura 7 - Moeda/vale com a inscrição “Vale um Barril d´Agoa”.

Referência: Material institucional constante no acervo Gregório de Matos; Museu Imperial de


Petrópolis, Coleção Museu Histórico de Petrópolis.

Gradualmente, o Município foi desativando os equipamentos, convicto da capacidade


de alargar a todos a distribuição d´água através do abastecimento domiciliar. Mas a deficiência
no abastecimento continuou de tal forma, que em 1916 o jornal A Tarde (BA) enumera a
existência de vinte e sete casas d´água localizadas em diversos distritos da cidade20, indo em
contramão ao ideal de Theodoro Sampaio e demonstrando a perpetuação deste tipo de venda,
restabelecido pela Secção de Água do Município, em 1933. (A Tarde (BA) 16/03/1933)
O crescimento exponencial destes locais na cidade demonstra o preenchimento pelo
espaço comercial, de fábricas d´águas e depósitos de empresas particulares, do serviço não
disponibilizado pela Municipalidade. Ainda hoje úteis e espalhadas na cidade, a permanência
desta tipologia de venda evidencia que, apesar dos avanços tecnológicos empreendidos por
engenheiros famosos como Theodoro Sampaio e Saturnino de Brito, esta tipologia de comércio
mantem-se necessária.
Na escritura de transferência de domínio, posses, direitos, ações e responsabilidades,
sessão de dívidas, pagamentos e quitação efetuada entre o Município e a Companhia, listaram-
se os bens da transação: 22 chafarizes e sete casas de vender água:
Quadragezima sétima - Todos os encanamentos, torneiras e [ilegível] colocados
nos seguintes prédios, denominados casa de vender agoa, a saber na rua do Pão
de Lot de propriedade do Doutor José Tourinho alugada por quinze mil reis
mensais, na Rua do Curriachito, prédio do outorgado, na rua do Bispo de
propriedade do Conselheiro Braulio Xavier da Silva Pereira, cujo aluguel já é

20
O Jornal A Tarde (BA) 11/04/1916, p.01 relaciona as “casas de vendagem”: Quitandinha do Capim,
Conceição do Boqueirão, Tororó, Cais de São João, largos da Conceição da Praia, Mouraria, Saúde,
Água de Meninos, Lapinha, Pilar, Bonfim, Rosário, Ribeira de Itapagipe, Boa Viagem, 2 de julho, praças
Castro Alves, 13 de maio, dos Veteranos, José de Alencar. 15 de novembro, e mais nas casas das ruas
do Pão de Lot, Curriachito, Bispo, Dr. Seabra, Calçado do Bonfim, Madragoa e Travessa das Mercês.

31
pago pelo outorgado, na Rua Doutor Seabra, de propriedade da Ordem Terceira
de São Francisco, de aluguel mensal de cinquenta mil-reis, na calçada do
Bonfim, de propriedade do Doutor Reis Magalhães de aluguel mensal de quinze
mil reis, na Madragôa de propriedade do Coronel Amado Bahia de aluguel
mensal de vinte mil reis, e na travessa das Merces propriedade do Conselheiro
Braulio Xavier da Silva Ferreira do aluguel mensal de vinte mil reis.
1.3.3 Penas domiciliares
6.º Os Empresarios ficam com direito de arrendar os anneis ou pennas d´água
pelo preço e tempo que lhes convenha, nunca excedendo porem este de praso
marcado no artigo precedente. [30anos] (norma constante do contrato da
Companhia do Queimado, 17/01/1853)

Embora no primeiro contrato, que definiu o âmbito de funcionamento da Companhia, o


arrendamento de penas d´agua não tenha observado a definição dispendida na localização dos
chafarizes, era conhecido que esta seria a receita mais vantajosa à empresa, o que se confirmou
com o gradual aumento da contratação.
Respeitando a ordem de prioridades definida no contrato, finda a instalação dos
chafarizes, foi iniciada a instalação do serviço particular nas principais avenidas, ramificada
por outras ruas, para os habitantes que desejavam o benefício21. Em 1857, o Queimado servia
2.317 penas particulares e os estabelecimentos públicos: o Matadouro Público, Hospital da
Caridade, conventos de S. Bento e S. Francisco, prisão do Barbalho e Santo Antônio, lucrando
27$950 [contos de réis]22. Um valor irrelevante face o inicial desinteresse da população pelo
serviço domiciliar, pelo qual pagava uma taxa fixa de 9$000 mensais, um valor considerado
alto face à qualidade do serviço.
A 15 de setembro de 1858, o número de penas mantinha-se tão pequeno que ficava
muito aquém daquele que a Diretoria previra para fazer face ao custo do seu material, sendo o
seu rendimento quase nenhum23. A suposta inviabilidade financeira da empresa justificou a
solicitação imediata do privilégio da venda d´água, com o intuito de proibir a venda dos
particulares, acabando com a concorrência. Não se encontra na Lei a atribuição deste privilégio,
que funcionou mais como um pressuposto, uma proteção política. (Jornal do Commercio (RJ),
8/07/1862) Este pressuposto será apreciado em 1866, quando o engenheiro Antônio Lacerda
solicita licença camarária para o encanamento e venda d´água da sua chácara do Tororó,
problemática que apresentamos no capítulo 2.

21
Fala do Presidente da Província o Doutor Alvaro Tiberio de Moncorvo e Lima, 14/05/1856; Relat.
dos Trab. do Conselho Interino de Governo (Ba), edição 1, 1856, pág. 72.
22
Fala do Sr. Dezembargador J.L.V. Cansansão de Sinimbu, Presidente da Província da Bahia, edição
1, 1857, pág. 127;
23
Na fala do 1.º Vice-Presidente da Província o “desembargador” Manoel Messias de Leão, constante
no Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de Governo (Ba), edição 1, 1858, pág. 19;

32
Em 1860 a tubulação já se encontrava em algumas das principais ruas da cidade, em
artérias que se estendiam do Queimado à Barra e ao Bonfim, e a Companhia pretendia estende-
la a todas as outras ruas e becos.24 A proteção política e o aumento do número de penas deixara
o Queimado com a perspectiva de lisonjeiro futuro. O abastecimento particular, dos
estabelecimentos públicos e de caridade tinham o consumo diário de 8 mil barris25, e em 1874,
o lucro da pequena rede de distribuição, de apenas 53.218 metros, superava já o lucro dos
chafarizes e “casas de vendagem”, conforme esperado:
[...] a diferença para mais na receita de 12:178$650, assim como na despeza de
1:608$249 reis, prova o progresso que tem tido a procura das pennas d´agua
para casas particulares e a concurrencia dos chafarizes e casas de vendagem
estabelecidas nos pontos mais distantes d´aquelles. As pennas d´agua
produzirão 67:035$710, os chafarizes 39:020$950 reis. (Relatório dos
Trabalhos do Conselho Interino de Governo (BA), edição 1, relativo ao 28.º
semestre da Companhia, 1874, pág. 236)

Atingindo os lucros esperados, o Queimado muda o seu escritório para a praça do


Palácio, instalando-se no edifico da Câmara, mas a relação da empresa com o Município
começa a se deteriorar a partir da década de 70, quando a Municipalidade manifesta insatisfação
pelo serviço e interfere na gestão da empresa, exigindo maior segurança na contratação e
garantias de disponibilidade d´água. O aumento da contratação agravou a quantidade de
devedores por encanamentos, concertos e suprimento d´água.26 O movimento das penas
demonstra a instabilidade de adesão, permanência e pagamento do serviço, contrastando com a
baixa abertura de penas novas no início do século XX.
Tabela 1 - O movimento das penas d´agua, 1905.
Pennas d´água 1.º semestre
Pennas alteradas 25
Pennas abertas 821
Pennas fechadas 726
Pennas novas 63
2.º semestre
Pennas alteradas 14
Pennas abertas 773
Pennas fechadas 826
Pennas novas 59
Referência: Relat. da Direcção apresentado à Assembleia Geral dos Accionistas, Abr/1905, pág. 5;

Combatendo o alto número de devedores, o Queimado desenvolveu uma política radical


de fechamento de penas, sujeitando a contratação do serviço a um processo de seleção, que

24
Fala da Presidência constante no Relat. Trab do Conselho Interino de Gov. (BA), edição 1, 1860, p.
75;
25
Fala da presidência constante no RTCIG-Bahia, edição 1, 1860, pág.75;
26
Relatório da Direcção da Companhia do Queimado e parecer da commissão de contas relativo ao 31.º
semestre, apresentado em assembleia geral de 26 de março de 1874;

33
pretendia excluir potenciais clientes problemáticos, condicionar o uso das penas e impedir a
revenda.

- Capitao, esta companhia do Queimado tem celebridades! -Como


assim? -Não sei a razão por que fornecendo agua aos hotéis á fabrica de
chapeus aos Coqueiros, recusa-se a fazel-o ás padarias. -É que entende
que aquelles necessitam mais que estas. -Pois é um erro; no caso em
que estão uns está outros; ou antes as padarias tem precisão mais
urgente que os hotéis, visto que fornecem um gênero de primeira
necessidade para o publico em geral, ao passo que poucos comem em
hotel. Em depois os hotéis com quatro, seis, ou oito barris, estão
abastecidos, em quanto que não acontece assim com as padarias, que
veem-se na necessidade de distrahir os trabalhadores em carregar agoa,
o que produz imenso estorve. Quanto a fabrica de chapéus, nem é
preciso falar. -Não é por ahi que eu vou. (O Alabama (BA), 9/10/1869)

Se defendendo das acusações de abuso de poder e instabilidade no serviço, denunciava


factos criminosos, de destruição dos registros das penas d´água, o roubo de cadeados, tranquetas
e registros27, que se achavam colocados n´uma caixa d´alvenaria coberta por laje de cantaria
junto às portas dos prédios, para obterem maior quantidade d'água do que lhes é devida.
(Correio da Bahia (BA), edição 32, 3/05/1877, p.2) Ofereceu recompensa por denúncias e a
quem prender em flagrante o delinquente e 50$000 se descobrir os objetos roubados. (Gazeta
da Bahia (BA), edição 122, 1/05/1884)
Figura 8- Publicação da Companhia solicitando "o favor de saldar seus debitos".

Referência: Correio da Bahia (BA), edição 87, 5/07/1878; Correio da Bahia (BA), edição 31,
1/05/1877, p.3;

27
Os registros que aqui se mencionam seriam os dispositivos responsáveis pelo fechamento ou abertura
da passagem da água pela canalização, uma vez que os registros contadores só serão instalados mais
tarde.

34
O pagamento da taxa única de 9$000 mensais, independente do consumo, favoreceu a
revenda privada e o aparecimento de novas casas de venda particulares, que conformou uma
situação difícil de comprovar e restringir:
[...]o consumo d´agua do theatro corre por conta do sr. Manuel Lopes
Cardoso, o qual na qualidade de empresário, mediante ajuste, nos deu o
direito de lá tirar-mos a agua precisa para o gasto de nosso
estabelecimento, durante a sua ausência, desta capital.
Ora, se como confessa o nosso contendor, não somos nós que tomamos
banhos no theatro e a agua que gastamos é paga com o nosso dinheiro,
onde quer tirar essa culpabilidade que tão levianamente sobre nós
arroja? (Correio da Bahia (BA), 10/02/1874)

Na negociação da renovação do contrato, de 22 de setembro de 1870, na Presidência do


Conselheiro Barão de S. Lourenço, as condições para a suspensão das penas foram
estabelecidas pela Municipalidade, protegendo os consumidores, evitando o estabelecimento
de privilégios odiosos. (O Alabama (BA) 9/10/1869)
Art. 8.º A Companhia não poderá recusar pennas d´agua á quem o exigir
e pagar sugeitando-se aos Regulamentos; e uma vez realisada a
concessão, não podera ser retirada ou suspensa senão na forma dos ditos
Regulamentos; nem o preço da concessão poderá ser elevado á mais de
15 réis por barril de tres canadas28.
Art. 9.º Um Regulamento feito pela Companhia e pelo Governo
approvado especificará os casos de suspensão das pennas d´agua, ou de
multa por abuso, tendo a parte prejudicada recurso para o Chefe da
Policia, e d´este para a Presidencia, quando a causa da suspensão ou da
multa não fôr por falta de pagamento ou por venda d´agua tirada da
penna concedida, ou distracção do uzo domestico á bem de estranhos.
(termos de novação do contrato de 22/12/1870)

Ao mesmo tempo que a Municipalidade travava os abusos da empresa, também protegia


a sua infraestrutura, enquadrando os que destruírem ou danificarem as obras da companhia às
penas o que o Código Criminal inflige aos que mutilam ou danificam monumentos públicos.
(Lei Provincial n. 451 de 17 de junho de 1852, ֆ 5.º do art. 2.º, 1884)
Em 1889 a Assembleia Provincial contraria a pretensão do Queimado que pretendia
aumentar o custo do serviço.29 Em negociação, a diretoria mostrou-se disposta a alterar o
sistema de distribuição estabelecendo um fornecimento mínimo, menor de 20 barris diários,
segundo a necessidade de cada um, que resultaria em menor dispêndio. A colocação de um

28
“Canada”: antiga medida de líquidos (vinho, azeite) equivalente a quatro quartilhos.
29
Relatório com que o Exm. Sr. Cons. Dr. Manuel do Nascimento Machado Portella passou a
administração da Provincia ao Exm. Sr. Desembargador Aurelio Ferreira Espinheira no dia 1.º de Abril
de 1889, constante no Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de Governo (Ba), edição 1, 1889,
pág. 121;

35
registro d´água, para que o consumidor pague somente o que gastar, ajudaria a controlar o custo
do serviço, o consumo, e a revenda, à semelhança do registro de gás, já existente.
No governo de Luiz Tarquínio (1890) é anunciado o reajuste que representava algum
alívio aos consumidores: “Nossos applausos. Á companhia do Queimado apenas diremos: -
antes tarde do que nunca.” Considerou-se urgente a instalação de esgotamento e acabar com o
fornecimento d´água a particulares e a estabelecimentos públicos pelo sistema de torneira livre:
o flagelo das grandes distribuições. (Gazeta Médica da Bahia (BA), edição 23, 1891, 221)
Obrigando à importação de torneiras de contagem, motivo que provavelmente impediu
a sua concretização, a situação manteve-se até que o jornal a Cidade do Salvador (BA), em
17/05/1898 anuncia novamente a pretensão do aumento de preço da tarifa para a quantia de
13$000. (Anexo 4) Demonstrando que, oito anos depois da negociação de Luiz Tarquínio a
situação ainda se encontrava nos primitivos moldes. A solicitação do aumento gerou uma onda
de revolta popular, exposta nos jornais que consecutivamente se declaram contra:
Não ha n´esta terra quem não saiba de que só pode viver ou o muito rico, ou o
ganhador de cesto, aos quaes somente lhes ocorrem a fortuna! A agua que já era
cara (9$) por mez, com a obrigação de dar-se diariamente vinte barris pequenos
a quatro annos que passou para alguns barris em um dia sim, em outro não, de
modo que feitas as contas, temos quinze dias, "ou quinze noites" porque só vem
agua a noite em lugar de 30 dias - o que - equivalle 15 noites de agoa por 9$00!!!
e muita gente há que passa dias e dias, noites e noites sem saber noticias da água
do Queimado! Ora isso é o cumulo do desrespeito as leis, e a maior das
injustiças de quem recebe os 9$000 do pobre assignante, isso não tem nome! E
como é que ainda se quer concessão de augmento de preço para a quantia de
13$000? onde se viu maior injustiça? [...] Será possivel a municipalidade
esqueça-se de que os seus deveres são de zelar, defender, e beneficiar ao povo?
(Cidade do Salvador (BA), edição 411, 17/05/1898, pág. 2)

Abusando seriamente das leis, e estabelecendo preços vexatórios à pobreza, a população


reage à escassez buscando alternativas, abrindo junto de suas moradas fossas à procura do nível
onde possa chegar à água do Queimado, única que lhe pode ser suprida, muitas vezes rompendo
o encanamento para colocar torneira para beber e para a cozinha. (O Jornal do Salvador (BA),
13/12/1897)

Diante de tudo isto, ai d´aquele que não pagar a mensalidade integral no


momento em que lhe é apresentado o recibo de suprimento de agua, de vinte
barris por dia talvez, e que ele não os vio, nem por um óculo. Ai d´aquelle que
resistir ou reclamar! Cortam-lhe logo o encanamento por ordem da augusta
direção, ante a qual não há direito, não há lei senão a sua prepotência, senão o
abuso dos poderes de que se acha revestida pelas suas condições especiais e
excepcionaes. (A Cidade do Salvador (BA), edição 409, 1898, pág. 2)

36
A Bahia, terra sui generis, sofria com a paciência e resignação evangélicas. É ludibriada
por uma companhia anônima, rica e prospera à custa dos abusos e que ainda quer aumento de
contribuição por serviços que não presta conforme está obrigada! “Deixemos de tantas
protecções a quem a vida é fácil, e que não sabe o que seja o cansaço, o suor e as dificuldades,
para manter a existência.” (A Cidade do Salvador (BA), edição 409/411, 1898, pág. 2)
Os hidrômetros começaram a ser instalados, em 1901, sendo lembrada a conveniência
de uma lei Estadual ou Municipal que obrigasse todos os prédios de um certo aluguel a ter pena
de água regulada por hidrômetro, “porque desde que o concessionário tiver a torneira a sua
disposição e pagar o que gastar, garante que não haverá desperdício nem prejuízo para a
companhia.” Este princípio é, contemporaneamente, ainda uma questão por solucionar. A
instalação de apenas um hidrômetro por prédio, impede o conhecimento exato do consumo de
cada proprietário, que impede o desenvolvimento de medidas e consciencialização da
necessidade de evitar o desperdício d´água. Em conta conjunta, que é dividida igualmente por
todos os consumidores, desconhece-se o consumo real de cada consumidor.
Figura 9 - Colocação de Hidrômetros.

Referência: A Lanterna (BA), edição 25, 1901, p.4;

Embora a população tenha concordado com o aumento do preço da pena, de 9$000 para
12$000rs mensais, nem com este aumento a Companhia se animou a melhorar o serviço.
(BRITO, 1929, 28) O abastecimento da população pobre continuou omisso das discussões,
continuando sem meio de se abastecer. O jornal Cidade do Salvador (BA), a 7/05/1898,
questiona: “Deverá [ela] viver desasseiáda, androjosa, immunda, habitando os seus cubiculos
sujos, infectos, nauseabundos, curtindo além de outras necessidades, a mais imperiosa,
inclemente e desapiedosa – a sede?”.
A Inspetoria de Higiene concordava com a imprescindibilidade do abastecimento
d´água para a higiene pública, considerando escassa e de má qualidade a água existente para os
usos ordinários da população30. Em vistoria a três propriedades identifica o acumulo de matérias
fecais e valas descobertas como os principais inconvenientes à higiene. Nas ruas, foi

30
Relatórios dos Presidentes dos Estados Brasileiros (BA), edição 1, pág. 3, 1895, assinado pelo
Inspector Dr. Eduardo G. Costa.

37
identificado o despejo público das matérias e latrinas públicas, que representavam enormes
focos de infecção e a falta de infraestrutura de esgotamento, como os fatores mais
problemáticos. Na fiscalização de 131 prédios, 46 apresentavam falta de asseio geral, com canos
obstruídos ou arrombados, latrina sem sifão, em péssimo estado.
O relatório da mesma entidade, de 1894, enumera que o Queimado servia 3.500 prédios
apenas. De um total de 17.857 prédios existentes no perímetro urbano, podemos aproximar a
beneficiação de apenas 19,6% dos prédios existentes, dado que confirma e revela um
abastecimento domiciliar muito precário, incipiente e seletivo em Salvador no início do séc.
XX.31
No livro da “Escritura de transferência de domínio, posses, direitos, acções e
responsabilidades, sessão de dívidas, pagamentos e quitação” consta a transferência dos bens
da Companhia para o Município, de 1905, onde encontramos a listagem dos bens da transação.
Nesta lista identificaram-se apenas quinhentos e setenta e seis penas d´água. Este dado revela
que entre 1894 e 1905, o Queimado perdera a contratação de 2.924 penas domiciliares, vendo
o seu serviço reduzido a 16% da sua capacidade de 1894. Esta circunstância ajuda a entender a
aceitação pacífica do seu encampamento, pelo Município, em 1905. A opinião pública, pela sua
pressão e procurou processos alternativos de abastecimento, venceu a disputa, não contratando
o serviço.
Foi evidente o embate político entre governos liberais e conservadores e a forte oposição
dos proprietários em investir nos seus imóveis, contrastando com os interesses dos
arrendatários. Preocupados com o aumento de taxas Municipais, foi evidente o espírito
partidário ou a resistência rotineira dos inimigos naturais de todo e qualquer melhoramento.
Foram várias e sucessivas as tentativas de implantação do serviço de escoamento e
limpeza, chegando a ser assinada, em 1871, unicamente para as freguesias da Conceição da
Praia e Pilar, para a habitação da elite. (Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de
Governo (BA), edição 3, 1871, p.6)
Mais uma prova patente e cabal de que na Bahia não existe hygiene, é o preço
de um dos seus principais elementos – a agua – pois, a população, para obtel-a
canalizada, tem de pagar 12$000 mensaes, e a porção é tão parca, que não
podem seguir os preceitos hygienicos, para tornar suas habitações salubres –
Não temos esgotos para essas immundices, sabem todos, temos sim, mais um
sarcasmo maldicto atirando a face do progresso scientífico da matéria de
hygiene: os canos estagnação das matérias putrescíveis, as terríveis bocas de

31
Engenheiro chefe da Municipalidade relativa ao sistema de esgotamento da cidade apresentado pelo
Eng. Theodoro Sampaio. A Gazeta Médica da Bahia (n.º1) em 1903.

38
lobo á exalarem aos excessos da temperatura gazes mephílicos á passagem dos
transeuntes! (SILVA, 1908, 23)

No término da sua atuação, a empresa auferia 51:155$020 de rendimento anual em


chafarizes e casas de vender água. 496:360$045 referentes ao serviço domiciliar, reafirmando
esta como a principal fonte de rendimento. Em alugueis de casas de vender água e do escritório
gastou 1:520$000 semestrais, dispendendo 7:591$100 para o pagamento de guardas de
chafarizes.32

1.4 A gestão da cidade: as Companhias e a Câmara Municipal.

Quem diria, que n´esta terra, que n´esta segunda cidade de hum colossal
império, hoje, em 1848 as ruas fossem mal calçadas, não houvesse huma praça
digna d´esse nome [...] Nem hum chafariz há n´esta cidade. (Revista Americana
(BA), edição 3, 1848, p.2)

Salvador não foi dotada de infraestrutura urbana, em seu sentido amplo, até o século
XVIII quando se começaram a desenvolver políticas que pretenderam organizar os serviços da
cidade. Apesar de possuir um dos maiores portos da América Latina enfrentou graves
problemas de salubridade, insegurança e abastecimento que atravessaram todo o século, sem
que a Câmara Municipal se posicionasse ou buscasse soluções, agindo apenas através de
posturas e utilizando como instrumentos a coerção e punição. Os serviços foram organizados
então por iniciativas privadas.
Nutro esperança de ver realizada esta empreza por huma companhia organisada
nesta praça á exemplo da Companhia de Bibiribe de Pernambuco, a qual fez
conduzir agoa do rio da prata na distancia de duas leguas por canos de ferro até
a cidade do Ricife, onde já hum chafariz està prompto, e vão-se edificar outros.
(Fala do Presidente da Província da Bahia o conselheiro Antonio Ignacio
d´Azevedo, edição 1, 1847, pág. 25)

Antônio Gonçalves Martins, Juiz de Direito de Santo Amaro, assina no último ano do
seu primeiro mandato, em 1852, a criação da Companhia do Queimado. No seu segundo
mandato (1868-1871) ocorreu um forte ciclo de melhorias urbanas em parceria com
particulares, por si só ou organizados em Companhias. Este sistema, entendido como sendo o
geralmente preferido em todos os países adiantados, pretendia desenvolver com afinco o fim de
ver implantado o espírito de Associação: a alavanca do progresso moral e material. Neste
espírito foram criadas várias companhias sanitárias como a Companhia do Queimado (1853),

32
Relatório da Direcção da Companhia do Queimado apresentado à Assembleia Geral dos Accionistas
em Abril de 1905;

39
de esgotos (1873), transportes (1869), investidores (Grupo Lacerda), Comérciais (1649/1775),
que pretenderam resolver as necessidades políticas e higiênicas oitocentistas.
Através de financiamentos estrangeiros, empréstimos provinciais e outros incentivos,
foram instaladas as infraestruturas essenciais à cidade, resultando em esquemas associativos de
dependências primordiais para a realização dos anseios elitistas emergentes, coordenada pela
burguesia emergente e antigos donos de engenho. (TRINCHÃO, 2010, 48) Novos agentes
modernizadores, com estrutura familiar, se desdobraram em alianças empresariais e exerceram
forte influência política. Embora sem experiência e se lançando em empreendimentos sem uma
noção muito clara das dificuldades, consequências e possibilidades de lucro ou prejuízos. Por
estes motivos, muitos perderam suas fortunas. (TRINCHÃO, 2010, 71/72)
A Companhia de Abastecimento de Água do Queimado foi descrita pelo IPHAN, no
processo de tombamento liderado por Astor Lima como a primeira do gênero no país33.
Interessados em conhecer “o gênero” a que se refere, iniciámos as nossas pesquisas que
encontraram Companhia(s) de distribuição d´água com data de formação anterior, como a
Companhia “Bibiribe” ou “Beberibe” de Recife (PE) fundada em 1848, com formação
autorizada pelo contrato de 11/12/1838, alavancada por Vauthier, na década de 40, quando
assumiu a Repartição de Obras. (JUCÁ, 1975, 25)
A relação institucional da Companhia do Beberibe com as autoridades públicas é ainda
desconhecida, mas encontrámos algumas sugestões, como no jornal O Liberal Pernambucano
(PE)34, que lamenta a apropriação do encanamento pelo Presidente da Companhia, “abusando
de sua posição”, e denuncia a incompatibilidade do Presidente da Câmara ser sócio de um
arrematante de obras da mesma Câmara. A contratação, realizada por via de arrematamento, se
diferencia das condições contratuais do Queimado, e se equipara à estabelecida no Rio de
Janeiro. O gênero a que se refere Astor Lima pode ser referente ao tipo de contrato realizado
entre as autoridades públicas e a empresa. Enquanto em Recife e no Rio de Janeiro a gestão
pública contratou as obras de infraestrutura, em Salvador foi concedido o direito de concessão
por 30 anos.
O jornal O Estandarte (MA)35 suscita dúvidas relativas à exclusividade de venda da
Companhia de Bibiribe. Considera a prática inconstitucional e “perfeitamente inútil, pois
nenhuma outra indústria de venda d´água na cidade poderá resistir á da Companhia, salvo se a

33
A aprovação unânime pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, inscrição no Livro do Tombo
Histórico – Volume II, sob o n.º 544, às fls. 30, em 14 de fevereiro de 1997, http://portal.iphan.gov.br;
34
O Liberal Pernambucano (PE), edição 83, 1852, pág. 2;
35
O Estandarte (MA), edição 7, 1856, pág.4;

40
agua do encanamento for má, e n´esse caso o governo não póde obrigar o povo a bebe-la.”
Observaram também que a proibição “ofende direitos de propriedade já adquiridos”:
Quando se creou a companhia de navegação a vapor no Itapicurú, não vimos
que se prohibisse a navegação do rio pelas antigas canoas, botes, iguarités, etc,
etc. Apenas se concedeu o privilegio exclusivo na navegação a vapor. [...]
Dizem-nos que os estatutos da companhia do Bibiribe, que não vimos,
consagrão esta mesma disposição; mas quid indé? Commetteu o mesmo erro.
(O Estandarte (MA), edição 7, 1856, pág.4)

Apesar de “não ter visto” o contrato, o jornal aponta que a Companhia de Bibiribe
dispunha de privilégios de venda, sendo necessária a realização de um estudo desta Companhia
em particular, para afirmar com clareza os parâmetros definidores do “gênero” de que o
Queimado se afirma percursor, uma vez que como mostra o Queimado, os privilégios podiam
ser supostos, o que não indica que fossem legislados.
De antemão alertamos para a possibilidade da Companhia do Queimado ter inaugurado
a distribuição desigual de água, manejada de acordo com o status social/cor do público a que
se destinava, formalidade que, de certo, não justificaria o seu tombamento, apenas sustentada
pela necessidade de denúncia para promoção de políticas de igualdade no acesso aos serviços.
Figura 10 - Caixa d´água (s/d); Abastecimento, 1910;

Referência: Revista da Cidade (PE) n.10, 31-07-1926; IMS, Coleção Gilberto Ferrez;
Figura 11- Aguadeiros em Recife;

Referência: Revista da Cidade (PE) n.10, 31-07-1926; IMS, Coleção Gilberto Ferrez;

A concessão de privilégios de exclusividade para realização de determinada atividade


foi uma prática generalizada na segunda metade do séc. XIX em Salvador. O jornal O Monitor
(BA) noticia uma verdadeira epidemia de petições de privilégios: era para navegar e abrir

41
estradas, para fazer almanaques e pregar letreiros, para fazer tecidos de algodão, fino e grosso,
de seda, de caruá, para fazer álcool e cosméticos, para vender bilhetes de loterias e fazer papel,
para matar formigas e ajardinar pântanos:
[...] Em breve, haverá quem requeira privilegio para construir casas, vender pão,
agua ... perdão, já há privilegio para vender agua, na opinião dos homens do
Queimado (O Dr. Augusto Frederico de Lacerda quis encanar a excelente agua
de sua fazenda Tororó e não o poude conseguir) leite, galinhas, porcos, capim,
e talvez .... quem sabe .... os audazes n´este paiz tudo alcançam ... o jusprime
noctis. Oh tempos! Oh costumes! (O Monitor (BA), edição 6, 1876, p.3)

No início da década de 50 já se encontravam constituídas quatro empresas particulares


de vulto, três na capital (Queimado; a iluminação a gás e a estrada da Vala) e a quarta, a estrada
de ferro, sob a responsabilidade do Governo Provincial. No entanto, carecia “tratar do aceio,
limpeza e embelezamento da nossa primeira Cidade, cujos habitantes, pelos impostos que
pagão, tem direito aos melhoramentos materiais que tanto reclamão as praças e ruas.”36 Uma
vez anunciada a perda do braço escravizado, que tudo carregava e fazia funcionar, a elite
Baiana, sem experiência na gestão de cidades, contribuiu para a configuração de uma
modernização definida pela dependência na importação de tecnologia, materiais e mão de obra
qualificada. (TRINCHÃO, 2010, 47) O modelo de modernidade europeu, principalmente o
inglês, foi importado, encontrando dificuldades na sua adaptação à realidade, resultando em
embates com obstáculos que resultaram em tensões sociais antes não consideradas.
Acontecia a reestruturação política, primeiro com a constituição das instituições
próprias do Império, depois da República, polarizada na disputa entre azuis (liberais) e
vermelhos (conservadores). A bancada conservadora, composta por antigos escravocratas,
donos de engenhos, aliada à burguesia, disputou os lugares de poder, defendendo a gestão
centralizada. Foi defendida a formação de uma empresa única de “asseio da cidade, nivelamento
de praças, construção de ruas”, mesclando gestão pública e privada, apoiando a atuação do
Queimado e pretendendo ampliar as suas competências de atuação:
[...] são obras pelas quaes a população hoje abençoa á empresa de asseio da
cidade?
Partiu toda ella da companhia do Queimado, vermelha, que pretendia organizar
uma companhia que se encarregasse de todas as empresas presentes e futuras da
província; querião fazer disso um centro de operações eleitoraes e altamente
lucrativas, em consequência do mais horroroso monopólio. Querião o asseio da
cidade com a mesma subvenção e maior gravame para as casas particulares;
querião empresa de carros mortuários, de conducção, e recreio com exclusivo;
querião empresa de esgotos, e querião tudo o mais quanto se devesse e se

36
Fala do Presidente constante no Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de Governo (BA),
edição 1, 1864, pág. 16;

42
pudesse fazer na província. Não conseguirão. (Correio Mercantil, e Instructivo,
Político, Universal (RJ), 1865, edição 150, pág. 1)

A 20 de fevereiro de 1865, o Inspetor de Saúde Pública, Dr. José de Góes Sequeira


remeteu ao Presidente da Província da Bahia, Luiz Antonio Barboza de Almeida cópia do
relatório37 onde referência a existência de uma empresa para a distribuição de água, na
Inglaterra, para a qual “quantas aplicações de imenso e vario alcance se hão feito, aplicações
todas practicas, cujos resultados diretamente revertem em beneficio da saúde publica!”
(SIQUEIRA, 1865, 165) Era a Water Supply, Drainage and Towns Improvement Company,
apresentada como exemplo de companhia que contratou com diferentes cidades da Grã-
Bretanha o fornecimento d´água necessário à vida doméstica, à irrigação, ao asseio das ruas, a
remoção das matérias solidas procedentes de cloacas e acumuladas nos esgotos, e tudo quanto
fosse tendente ao serviço de incêndios.

[...] Ora em nosso paiz, guardadas as proporções, se não poderião fundar


Compa.as com semelhantes fins? Eu creio que sim: e taes Empresas
convenientemente dirigidas trarião resultados mais profícuos em relação a
hygiene publica. – Nesta Capital a Comp.ª Aquaria do Queimado já poderia ser
o núcleo d´uma Empresa d´essa natureza: se ella fosse animada, e recebesse
todo o impulso, e desenvolvimento estou (sic) que se lhe poderia dar esta
direção o que seria de summa utilidade, e n´isto vou de acordo com a opinião
da Comissão da Gran-Bretanha, isto é, que a salubridade desses diversos centros
de população muito ganharia, concentrado-se tanto quanto fosse possível nas
mãos d´uma mesma Comp.ª o abastecimento d´agua, o deseccamento. E
saneamento das respectivas localidades. (SEQUEIRA, 1865, 165)

Altamente lucrativa, a disputa pela colocação da infraestrutura da cidade será acirrada


entre as famílias Pereira Monteiro e Lacerda, ambas enriquecidas pela indústria de
transformação do algodão. Antecipando-se, Pereira Monteiro, aliado a dois investidores,
constitui a Companhia do Queimado, aproveitando a água armazenada no açude existente na
sua fábrica de tecidos para o abastecimento da cidade em 1853. À família Lacerda será atribuída
autorização para a instalação do serviço de transporte coletivo. O Liberalismo, impediu a
intervenção Estatal em áreas de iniciativa privada, no entanto, continuaram a ser formalizadas
medidas políticas que as protegeram.
A partir de 1869 o serviço de abastecimento irá se entrelaçar com o sistema de
canalização para escoamento das matérias “excrementícias, urinarias e aguas servidas”38, que

37
Relatório acerca do Estado Sanitário da Província da Bahia durante o ano de 1864, elaborado pelo
Inspector da Saúde Pública e enviado ao Presidente da Junta Central de Higiene Pública, sendo remetido,
mediante cópia, ao Presidente da Província a 25/02/1872. (GMBahia 2004;74:2 (Jul-Dez): 157-167)
38

43
exponenciou a problemática da escassez de água. (Diário do Rio de Janeiro (RJ), 1874, edição
136, pág.2) As medidas higiênicas enfrentaram novamente a oposição dos proprietários dos
imóveis, indispostos a aumentar os seus gastos para adquirir os serviços de latrinas e banheiros,
uma vez que não habitavam nestes lugares. (UZEDA, 1992, 114) Esta situação ajuda a explicar
a falta infraestrutura hídrica que em 1923 ainda atingia mais de dois terços de seus quase
290.000 habitantes. (Gazeta Médica da Bahia (BA), julho, 1923, pág. 43/50)
A inexistência de uma rede d´água e esgotos tiveram consequências indiretas, que
impediram a instalação de outras infraestruturas públicas na cidade. É o caso das lavanderias
coletivas. Relatos e fotografias captaram as roupas estendidas no chão da cidade, a courar, outra
particularidade da paisagem de Salvador que revela a falta desta infraestrutura coletiva.
A Municipalidade conhecia as lavanderias públicas de Paris, consideradas de grande e
proveitoso desenvolvimento. Existindo apenas uma em 1846, em 1876 contavam-se tantas
quantos são os bairros em que se subdividia a grande cidade. De verdadeira utilidade pública,
as lavanderias eram edifícios simples e de elegante construção, em estrutura de ferro e teto
envidraçado e sempre asseado. Apesar de destinados à população pobre, não deixaram de ser
equipados com tecnologia de vapor, que aspirava as águas do Sena, fazendo mover e aquecendo
os enxugadores:
A acção desta parte dos aparelhos é tão activa que em seis a oito minutos toda
a porção de roupa que recebe restitui tão enxuta que d´alli passa logo aos
engommadouros, que também em poucos minutos dão conta do seu mister. Os
tanques são alimentados por enormes repuxos, que tão rapidamente enchem
como os escoadouros os esvasiam; de modo que em 8 a 10 min a agua se renova
completamente. As batedeiras constam de duas taboas inclinadas destinadas ao
ensaboamento. A barrelleira ocupa uma sala particular bem ventilada. Cada
uma trouxa entra n´ella atada por um cordel com o numero de ordem para evitar
trocas ou extravios. (O Monitor (BA), edição 68, 1876, pág. 2)

O uso de lavanderias coletivas e tecnológicas em Paris contrastou com a estratégia


adoptada para a modernização de Salvador, onde se optou por manter as utilidades do dia-a-
dia, executadas pelos pobres, sem investimento. Em 1915, a cidade mantinha o trabalho das
lavadeiras ao ar livre. A Municipalidade coibia o seu trabalho, sem que apresentasse
alternativas:
Na nossa Bahia é o que so vê: contraste sobre contraste, em toda a parte. Não
há força humana, ou, pelo menos, ainda não houve força humana que acabasse
estas conhecidas "tradições": [...] Seria um nunca acabar se fossemos nos dar ao
trabalho de fazer a relação das nossas "tradições" as lavadeiras ao ar livre.... Ha-
as por toda a parte, no centro da cidade e nos arredores e suburbios; não raro é
de ver-se, em ruas da Sé, roupas, lavadas, courando ao sol, estendidos sobre os
parallelipipedos das calçadas. Esse hábito porem, de tanto falar a imprensa, vai

44
sendo cohibido pela policia e fiscalisação municipal. (A Tarde (BA)
30/04/1915)

Figura 12 - "Jaqueira" [1870-1880]; Terreiro de Jesus com a Catedral [1870-1880];

Referência: Brasiliana Fotográfica, Gaensly, Guilherme, 1843-1928;

Conclusão
Neste capítulo procurámos demonstrar como se formaram os lugares de contraste do
século XIX, quando o problema da infraestrutura urbana, de higiene e controle dos elementos
tornou urgente a constituição de Companhias que se responsabilizassem pela implantação e
gestão dos serviços.
Apoiados na formulação de que a história urbana é transparência da história social,
econômica e política, detectámos territorialidades intersticiais de linguagem urbana específica
de Salvador. Os espaços dos quintais, dos chafarizes e das “casas de vendagem”, todos
relacionados entre si e referentes ao abastecimento d´água. Estes espaços decorreram de
pressões políticas, higiênicas, de união e segregação, que a contribuição de várias disciplinas
ajudou a recriar. Todos tiveram sua justificativa para instalação e fechamento, que analisámos
neste trabalho.
A distribuição da Companhia, beneficiava uns e esquecia outros, orquestrando a
situação consoante os seus interesses e articulações políticas e financeiras. A orquestração
terminará quando a restrição atinge os cidadãos localizados na cidade alta, mais poderosos,
forçando o Município a interferir na distribuição, problematizando ideias liberais e
conservadoras na distribuição de privilégios.
Saída da exploração escravocrata, a urbanidade garantida por mão de obra escravizada,
tentou ser substituída por uma tecnologia que garantia a manutenção do estilo e qualidade de
vida da elite, que, através de investimentos, financiamentos e empréstimos buscou novos
investimentos lucrativos. O investimento em infraestrutura da cidade será um investimento

45
proveitoso e muitas das famílias conservadoras se organizaram em companhias para participar
no processo.
Da incompatibilidade da importação dos equipamentos de chafarizes, que contavam na
Europa com ênfase no elemento artístico, em Salvador, deparou-se com a difícil relação entre
o efeito artístico e a primeira necessidade de abastecimento criando lugares de exceção.
Sobrelotados, pouco higiênicos e controlados por guardas. Lugares de brigas e violência. Esta
ressignificação, não desejada, que pretendia ser símbolo de progresso, foi transformada em
símbolo do atraso, frequentada por uma população que se tentava esconder: os ganhadores,
africanos e afrodescendentes.
A distribuição domiciliar parecia solucionar os problemas, acabando com a
concentração de ganhadores. No entanto, a irregularidade do abastecimento, os altos preços
praticados e a alta taxa de aluguer dos imóveis e a conduta agressiva da Companhia
desincentivaram a contratação domiciliar. A forte reação popular e o progressivo desinteresse
e fechamento de penas motivará também o desinteresse da Companhia em oferecer o serviço e
a sua consensual venda ao Município, em 1905.
O endividamento do Município, do início do século XX, motivará o enxugamento de
despesas, e sob esse pretexto, serão desmontados os chafarizes onde se apresentava maior
concentração de penas privadas, iniciando o processo de desmantelamento e dispersão dos
equipamentos que, a par do abandono histórico dos espaços das fontes localizadas no espaço
coletivo, afastaram cada vez mais a oferta de água nos espaços coletivos da cidade.
Embora a Companhia do Queimado não tenha inovado com o serviço de venda d´água,
atividade já desenvolvida por particulares, bastante comum, ela foi responsável pela sua venda
em grande escala de distribuição e na distribuição sob condicionantes de base racial e
estabelecimento de preferências de abastecimento, participando na redistribuição de status
social ocorrida no século XIX.

Fontes Consultadas:
Teses acadêmicas:
ARAUJO, Jean Marcel Oliveira. Bahia: negra, mas limpinha. Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Grad. em Ciências Socias da UFBA, Salvador, 2006.
BATINGA, Rozelena. Gonzales Borges; A casa: Abrigo de corpos e sentimentos. A intimidade
doméstica da elite baiana na virada do séc. XX. O exemplo do distrito da Vitória. Salvador:
FAU UFBA, 2002.
COSTA, Ana de Lourdes Ribeiro. Ekabó: trabalho escravo, condições de moradia e reordenamento
urbano em Salvador no séc. XIX. Salvador, Universidade da Bahia, 1989.
DANNEMAN, João Carlos Silveira. Arquitetura da água em Salvador: legitimidade na preservação de
fontes e chafarizes públicos. Tese doutoral apresentada no Programa de Arquitetura e
Urbanismo. Salvador, UFBA, 2018.

46
HOLTHE, Jan Maurício Oliveira van. Quintais urbanos de Salvador. Realidades, Usos e Vivências no
Século XIX. Salvador: tese de mestrado apresentado ao programa de Arquitetura da UFBA,
2002.
LEITE, Rinaldo Cesar. A Rainha Destronada. Discursos das elites sobre as grandezas e os infortúnios
da Bahia nas primeiras décadas Republicanas. São Paulo: PUC-SP, 2005.
SOARES, Cecília Moreira. Mulher negra na Bahia do século XIX. Salvador: FFCH-UFBA, 1994.
SOUSA, Avanete Pereira. Poder local e cotidiano: a Câmara de Salvador no século XVIII. Salvador:
Tese de mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal da Bahia, 1996.
UZEDA, Jorge Almeida, A morte vigiada: a cidade do Salvador e a pratica da medicina urbana (1890-
1930), Tese de mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal da Bahia, 1992.

Relatórios dos Presidentes dos Estados Brasileiros (BA)


Fala do Pres. da Província da Bahia o conselheiro Antonio Ignacio d´Azevedo, edição 1,1847, pág. 25;
Fala do Pres. da Província Doutro Alvaro Tibério de Moncorvo e Lima, edição 1, 14/05/ 1856, pág. 72;
Fala da Presidência do Sr. Desembargador Cansansão de Sinimbu, Pres. da Província da Bahia, edição
1, 1857, pág. 126/127.
Fala do 1.º vice-presidente da Província, o desembargador Manoel Messias de Leão, edição 1,1858, pág.
19;
Fala do Presidente Ferreira Penna, edição 1, 1860, pág.75;
Fala do Vice Presidente da Província, Conselheiro Manoel Maria do Amaral, edição 1, 1864, pág. 16;
Fala do Presidente da Província Cruz Machado na Sessão da Assembleia Legislativa Provincial da
Bahia, a 1/03/1874;
Mensagem apresentada à Assembleia Geral Legislativa, 10 Abril, edição 1, pág. 3, 121,1899;

Instituto Histórico e Geográfico da Bahia


Saneamento da Bahia, 1926 Relatório dos Projectos por F. Saturnino Rodrigues de Brito. Secretaria de
Saúde e Assistencia Pública, Imprensa Official do Estado, 1926
Acervo Theodoro Sampaio
A rua (saneamento de Salvador) REF. T506D13

Arquivo Público do Estado da Bahia


Atas da Câmara, 1700-31, v.7 e v.8; 1731-50/ 1750-65/ 1765-76/ 1776-87/ 1787-1801. MAS,
manuscrito.;
Termos de alinhamentos e vistorias, 1724-46/1746-70/1755-91/1775-1800/ 1777-85. MAS. Manuscrito;
APEB, OP, M4879, 1848;
APEB, caixa 12, relatório 306;
Atas da Câmara, 1731-50, fl 135/1750-65, fl.97/ 1765-76, fl. 15. MAS, manuscrito;

Acervo da Bibliotheca Gonçalo Moniz - Faculdade de Medicina da Bahia


Theses
SILVA, Octavio Torres da. A cidade do Salvador perante a Hygiene. Bahia: Typographia Moderna,
1908;

Acervo da Fundação Gregório de Matos - Fundo da Câmara Municipal de Salvador,


secção secretária, série Companhia do Queimado
Contrato da companhia do Queimado de 17 de janeiro de 1853; novação 1870;
Relatório da Direcção da Companhia do Queimado apresentado à Assembleia Geral dos Accionistas
em Abril de 1905;
Relatório da Direcção da Companhia do Queimado e parecer da commissão de contas relativo ao 31.º
semestre apresentado em Assembleia Geral de 26 de março de 1874;

47
Jornais:
A Notícia (BA) 30/10/1914; Tribuna da Bahia (BA) 09/11/97;
A Tarde (BA) 9/01/ 1915; 11/01/1915; A Lanterna (BA), edição 25 pág. 4, 1901;
11/09/1915; 11/04/1916; 16/03/1933;
12/12/1977;
Correio da Bahia (BA) 10/02/1874, artigo A Actualidade (BA) Edição 467, 1863, pág. 3;
assinado por José Eulalio Barbosa d´Almeida: “ORevista Americana (BA) edição 3, pág. 2, 1848.;
seu a seu dono.”; 05/07/1878; 04/11/1998; Revista da Cidade (PE) n.10, 31-07-1926;
Jornal do Commercio (RJ) 8/07/1862; Diário do Rio de Janeiro (RJ) 1874, edição 136,
pág.2;
Correio Mercantil, e Instructivo, Político, O Alabama Periódico critico e chistoso (BA)
Universal (RJ) Edição 150, 1865, pág. 1; 12/10/1868; 9/10/1869;
O Liberal Pernambucano (PE) edição 83, pág. 2 Diário de Noticias (BA) 5/03/1912;
de 1852;
Gazeta da Bahia (BA) 1/05/1884; n.º 1 de 1903; Pequeno Jornal (BA) 18 de março 1890;
Cidade do Salvador (BA) 17/05/1898; O Monitor (BA) 7/06/1876, edição 6;

48
Capítulo 2

Companhia do Queimado (1852-1905)


Neste capítulo analisamos as circunstâncias da atuação da Companhia do Queimado no
âmbito institucional, político e administrativo no período da sua atuação, de 1852 a 1905. Para
reconhecer o panorama institucional, recorremos à documentação constante nos acervos da
Prefeitura Municipal, arquivo da Fundação Gregório de Matos e aos Relatórios anuais do
Conselho Interino do Governo (BA). As polêmicas com a sociedade civil foram acompanhadas
através das publicações nos jornais da época, constantes no acervo da Hemeroteca da Biblioteca
Nacional. Para as considerações de âmbito técnico consultámos os trabalhos dos engenheiros
sanitaristas Theodoro Sampaio e Saturnino de Brito e relatos médicos, que, interessados nas
propriedades bacteriológicas da água, produziram descrições técnicas e higiênicas do serviço
da represa.
A atuação do governo no planejamento da distribuição d´água potável a Salvador inicia-
se em 1848 com enfoque ao abastecimento do porto, autorizando a qualquer indivíduo ou
companhia à construção de dois chafarizes na cidade baixa1, sendo já equacionada a
possibilidade de formação de uma companhia para o efeito.
Um rodizio de várias epidemias proliferavam na cidade, decorrente das más condições
higiênicas e águas estagnadas, identificadas como principal veículo de transmissão,
demonstrando a urgência do controlo sanitário do meio. Consequentemente foi problematizada
a necessidade da criação de infraestruturas de higiene, motivando a criação de um aparato
administrativo com aportes médicos e policiais. (UZEDA, 1992, 40) Kátia Mattoso (1992)
demonstra a dificuldade de controlo das epidemias quando relata o comportamento da febre
amarela. Debelada em 1849-1850, ressurgiu com força total em 1856, quando o cólera-morbo
também grassou, tornando-se endêmica a partir de 1858, dizimando a população e afetando o
comércio. (MATTOSO, 1992, 113)
Anunciando a industrialização na província, as Fábricas de Tecidos instalaram-se em
locais convenientes à reserva d´água, nas margens dos rios ou em baixios, usando-a para
impulsionar os maquinismos. As três fábricas de tecidos da província, a “Todos os Santos”, de
Valença, a Conceição e o Queimado na capital, abasteciam o mercado de vestiário e cobertura
dos escravos e da população menos abastada, exportando também sacos dos gêneros de
agricultura2. Seus administradores engajaram-se nas melhorias urbanas da segunda metade do
século XIX.

1
AMCS. Leis e Resoluções da Assembleia Legislativa – 1848;
2
Fala do Presidente da Província Francisco Gonçalves Martins (BA), edição 01, 1852, pág. 58.
50
A família Lacerda, que dirigia a Fábrica de Todos os Santos, disputará a venda d´água
da fonte do Tororó. O negociante Domingos Gomes Ferreira, proprietário da Fábrica da
Conceição, solicitará autorização de encanamento para a casa de prisão. (Jornal do Commercio
(BA), 9/06/1866) Mas será a partir da reserva da Fábrica do Queimado, propriedade de
Monteiro, Espinheira Junior & C.ª3, onde se instalará o equipamento para o abastecimento da
capital, tirando partido da localização geográfica privilegiada.
No corte topográfico elaborado por Mathéo (1871), percebemos a relação topográfica
das Fábricas de Tecidos. O Queimado, localizado a 50 metros acima do nível do mar, 26 metros
mais alto que o Dique do Tororó e 20 metros mais baixo que as maiores alturas dos morros que
o rodeiam “por muitas léguas de distância”, era o local geográfico mais apropriado para a
captação e distribuição por gravidade à cidade.
Figura 1- (1) Tanque da Conceição; (2) Queimado; (3) Tororó.

Fonte: Museu da EMBASA, por H. Mathéo, 1871.


A família Monteiro, proprietária e administradora de vários pontos de negócio na
cidade, a partir de 1847 participou nas comissões de melhoramentos, encarregando-se
generosamente de consertos na fonte do Queimado, no calcetamento das ruas da Fonte dos
Padres até ao Bonfim4. A partir de 1852, a família assume quase continuamente a direção da
Companhia do Queimado, com excepções ao segundo mandato (1554/5), quando foi dirigida
pelo Barão de S. Francisco, e 1898, por Dyonisio Gonsalves Martins, ficando Monteiro filho
como diretor de caixa. (Cidade do Salvador (BA), edição 383, 1898, pág. 2)
Até à segunda metade do séc. XIX, nos subúrbios afastados do litoral, a paisagem da
área do Cabula, Estrada da Cruz do Cosme, das Boiadas, Saúde e Brotas era composta por roças
e fazendas, com população dispersa. Com poucas opções de sobrevivência além da agricultura,
era servida por péssimas estradas que dificultavam o transporte de mercadorias e moradores. A
partir de 1834, a paisagem foi alterada pela presença das caldeiras e máquinas a vapor,

3
Que contava em 1877 com 40 operários, 1000 fusos e 30 teares. (Almanack das Famílias (BA), 1877,
p. 125)
4
Fala do Presidente da Província Antonio Ignacio de Azevedo, edição 1, 1847, pág. 24/25; Fala do
Presidente da Província o Commendador Manuel Pinto de Souza Dantas, edição 01, 1/03/1866.
51
marcando o novo período de desenvolvimento, que prometiam funcionar sem ser à custa de
tanto sangue5.
Para a Fábrica do Queimado foi encomendada, em 1849, uma máquina a vapor, em
razão da falta d´água que move o seu maquinismo, evidenciando já a problemática que
acompanhará o funcionamento da Companhia: a inconstância e escassez do recurso. Para a
instalação das máquinas foi contratado o engenheiro civil Francês José Revault, mecânico de
reputação e construtor, que também participará nas comissões de melhoramentos da cidade. De
1855 a 1857, Revault assume a direção da Fábrica de Tecidos do Queimado, na ausência do seu
proprietário, que liderava a Companhia de abastecimento. Deixou o cargo apenas para montar
a sua própria fábrica, a Modelo, na rua da Vala. Existem registros do funcionamento da Fábrica
do Queimado até 1889, não se conhecendo os motivos que levaram ao seu fechamento. No
entanto, a proximidade de uma indústria têxtil à reserva d´água potável que abastecia a cidade,
concretiza uma relação suspeita, já apontada nos pareceres das análises realizadas à qualidade
das águas do séc. XIX, explanada no capítulo 3.
2.1 O citio da Fazenda de Santo Antonio do Queimado, na Baixa da Soledade.
Na freguesia de Santo Antônio além do Carmo, na baixa da divisa das sub-bacias da
Lapinha e Caixa d´Água, encontrava-se o “citio da Fazenda de Santo Antonio do Queimado”.
Com vegetação abundante e um importante manancial d´água que era considerado a melhor
água de beber da cidade. A fonte pública do Queimado servia o convento das Religiosas
Urçulinas e era utilizada por escravizados para lavar as roupas dos moradores e na mais terra
se estendiam para se lavarem e enxugarem. O terreno pertencia à posse publica “à mais de
trinta, quarenta e cem anos”. (AHU, Cartas do Senado para S. Magestade – 1746, página 153,
154 e 155, aberto por Jorge Efamelo de Sá)
Figura 2- Fonte do Queimado, instalações industriais, Capela de São José; Fonte do Queimado na
década de 1940.

5
Fala de Francisco Martius, Presidente da Província da Bahia, 4/07/1849, edição 01, pág. 36, 1849;
Idade D´Ouro (BA) 15/12/1818, n. 99, Supplemento extraordinário.
52
Referência: Postal da Litho-Typ. Almeida, http://www.salvador-antiga.com, consultado a 09/09/2019;
FALCÃO, 1940, 373;

Em 1746 o espaço de uso coletivo da fonte sofre uma tentativa de usurpação por parte
de Raimundo Maciel Soares, que deixou a área “quantonada, e sem área alguma” pretendendo
ainda mudar-lhe o caminho, “por parte mais longinqua e perigosa e mais prejudicial”. O povo
da Bahia reclamou contra a apropriação indevida, denunciando a Câmara e o procurador
Manuel Botelho de Paiva ao rei D. João V.6 Como resolução, foi ordenada a restituição do
espaço da fonte ao seu primitivo estado. Talvez porque consciente da importância e necessidade
da salvaguarda dos espaços de servidão pública, os Jesuítas, em 1801, edificaram um altivo
frontispício em pedra na fonte, demonstrando como já no início do séc. XIX, os elementos
artísticos da arquitetura atribuíam qualidades representativas e significância aos locais,
funcionando como sinalização de um marco/espaço coletivo, protegendo-o de apropriação
privada. Ao analisarmos hoje a malha urbana do entorno verificamos que a estratégia protegeu
efetivamente a área da fonte, uma pequena área não ocupada pela expansão urbana.
Figura 3 - Anúncio; Açude do Queimado. (1) Fábrica de tecidos; (2) Convento da Soledade; (3)
Capela S. José.

Referência: O Monitor 20/10/1876; Fotografia de Guilherme Gaensly, 1880;


Preocupado com os insolúveis problemas de abastecimento o Presidente da Província,
Dr. João Maurício Wanderley, autorizou através da Lei n.º 451 de 17 de janeiro de 1853 a
atuação da Companhia do Queimado. Formada pelos investidores Francisco Antônio Pereira
Rocha, advogado, Bacharel em Direito em Coimbra e Diretor da “Companhia promotora da
colonização de chins”7 e Bernardino Ferreira Pires. O sistema contou com reservatórios,
chafarizes e penas domiciliares, que garantiram o retorno dos investimentos em infraestrutura
pela venda d´água, com direito de usufruir das suas obras por trinta anos. (Contrato 1853)
Figura 4 – (01) Represa; (02) Fonte do Queimado; (03) Casa das Máquinas; (04) Reservatório da Cruz
do Cosme.

6
AHU-Baía, cx. 112, doc. 52 e 62 de 6/05/1749.
7
Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Bahia, edição 1, 19/09/1854, pág. 231;
53
Referência: Fotografia de Guilherme Gaensly, 1880, www.salvador-antiga.com, consultado a
29/04/2019.

Para a sua formação, a Companhia contou com um fundo de investimento de 320 contos,
correspondentes à entrada de 71 acionistas, e um empréstimo do governo provincial de 150
contos para impulsionar o andamento das obras, totalizando uma verba de 470 contos para a
realização do serviço8. A direção foi composta por sete membros, cujas ações representaram
um capital de 104:000$9. A 1 de fevereiro de 1853, foram iniciadas as atividades, empregando
200 trabalhadores, e o seu escritório instalado na moderna rua Nova do Comércio, n.º 21, 1.º
andar.10 Imediatamente Pereira da Rocha viaja à Europa para encomendar os primeiros
equipamentos: duas máquinas de vapor horizontais de alta pressão, os caros chafarizes e do que
mais era necessário a execução das obras. Em 1854, a confiança na companhia era expressa
com a valorização das suas ações “procuradas com 20 por 0/0 de premio, e não ha vendedores”.
Parte da roça do Queimado, pertencente a Pereira Monteiro, foi vendida à recém-
formada companhia a 18 de março de 185311, voltando Monteiro a vender mais três
propriedades do entorno em 1868, num processo de aquisição de propriedades que constituiu o
avultado patrimônio em terras e em bens de serviço. A atividade de compra de propriedades é
majoritariamente referente aos períodos de 1860 a 1865, com a aquisição de oito novas
propriedades e na década de 80, com a compra de vinte propriedades, que correspondem aos
períodos de alargamento da captação e, também, de financiamento público.
A ampliação da capacidade das vertentes exigiu investimentos para a captação em todo
o brejo do Queimado: no vale entre as colinas da Cruz do Cosme, do Corta-Braço e da Estrada
das Boiadas, n´uma extensão de mais de cem braças12. Em 1867, a represa, segundo o
engenheiro Aguiar, ocupava uma superfície de 2.545.665 palmos quadrados. Sendo um palmo

8
Fala do Presidente da Província Doutor Alvaro Tibério de Moncorvo e Lima, edição 01, 1856, p.5.
9
Fala do Presidente da Província João Lins Sinimbu, edição 01, 1857, pág. 127.
10
Fala do Presidente da Província Doutor Alvaro Tibério de Moncorvo e Lima, edição 1,1856, pág, 71.
11
Livro de escrituras da propriedade da Companhia do Queimado apud Gênese da propriedade privada
do Brasil, Cid Teixeira, Cydelmo Teixeira, 1878, III-23,24.
12
Braça: antiga medida de comprimento equivalente a 2,20 metros lineares. Cem braças correspondem
a 220 m. (SANTOS, 2010, 141)
54
quadrado, equivalente a 484 cm2, entendemos que a represa tinha área aproximada de
123.210,186 m2, dimensão bem considerável. (Gazeta Médica da Bahia (BA), edição 110,
29/02/1872, p. 1)
Figura 5 – Açude do Queimado, 1924.

Referência: PACHECO, 1924, 7/8.

Como solução técnica para o abastecimento por gravidade à cidade alta, foi construído
um depósito no alto da Cruz do Cosme com 26 palmos de altura e capacidade de 3200 pipas. A
sua localização n´uma encosta em altura, permitia que as águas por sua própria pressão
percorressem os tubos que se distribuíram na cidade alta. O nível mais baixo correspondia à
altura da cornija da Escola de Medicina. (GMBahia, edição 110, 29/02/1872, p.1)
Embora o sistema de reservatório não fosse novo, existindo várias cisternas particulares
espalhadas na cidade, a companhia inovou na escala de armazenagem e método construtivo do
equipamento, sendo o primeiro reservatório de alvenaria do país. (SANTOS, 2010, 141) No
nível inferior, foi construída a casa de aparelhos para suspender a água até o reservatório, em
linhas neoclássicas, a exemplo da arquitetura fabril do século XIX. As máquinas que elevavam
a água para o reservatório consistiram em duas bombas de vapor horizontais d´alta pressão,
assentes em rocha viva e cantaria de Lisboa que, junto ou separadamente, aspiravam a água por
canal subterrâneo, por uma coluna de 25 cm de diâmetro, até ao reservatório, passando por
filtros de lã.
A casa dos aparelhos é feita com toda a segurança e são bastantes 10 horas de
trabalho de uma só machina para encher o reservatório. As machinas são dignas
de atenção não só pela exactidão com que funccionão, e perfeição do seu
acabamento, como pela economia do combustivel, gastando menos de uma
tonelada de carvão para suspender 3200 pipas d´água a uma altura tão
considerável. (SANTOS, 2010, 141)

Figura 6- (1) Represa; (2) Fonte; (3) Casa das máquinas; (4) Reservatório da Cruz do Cosme.

55
Referência: Planta constante do processo de Tombamento do IPHAN;
As inovações técnicas implantadas pela Companhia mereceram a visita do Imperador
D. Pedro II, a 1 de novembro de 1859. Foi recebido pelo Comendador13 Paulo Pereira Monteiro
que ofereceu um lunch às Suas Altezas e pessoas que os acompanhavam. O Imperador apreciou
o novo e grande aqueduto que puxava a água por máquinas a vapor distribuindo-a para as partes
mais distantes da cidade em diversos níveis de altitude enquanto subiam ao ar imensos foguetes
e tocava uma banda de música.14 A opinião pública estava rendida à companhia, que trouxe a
esta “capital um immenso beneficio, facilitando-lhe o abastecimento de agua potavel, além de
tornar as suas praças de chafarizes tão bellos como não ha certamente em qualquer outra Cidade
do Império”. (Fala do Presidente Ferreira Penna (BA), edição 01, 1860, pág. 3)
Por lei, a Municipalidade procurou regular o serviço tirando da Companhia todo e
qualquer arbítrio, a não ser em condições secundárias, priorizando a instalação dos chafarizes
nas principais praças e o abastecimento domiciliar. Encontrou na concorrência dos proprietários
de poços, que continuaram podendo vender água como até aqui pelo modo e preço que lhes
convier, o seu maior obstáculo. A manutenção da relevância do abastecimento tradicional
comprova a incapacidade da Companhia em formular uma alternativa viável de abastecimento.
2.1.2 A concorrência dos Lacerda
A intervenção da família Lacerda no serviço de distribuição d´água é ainda envolto em
dúvidas, mas há a certeza da sua participação em 1865, quando se publica que a qualidade da
água da roça do sr. Lacerda era superior à do Queimado: “Presentemente só bebem delas
aquelles indivíduos que absolutamente não podem dar 20 rs. por um barril de agua da roça do

13
Título de Commendador foi atribuído no início da década de 60.
14
Correio Mercantil, e Instructivo, Político, Universal (RJ), edição 227, 1868, pág. 1;
56
Sr. Lacerda, no Tororó, que a vende em grande porção.” (Correio Mercantil e Instructivo,
Político, Universal (RJ), edição 42, 1865, pág. 1)
No ano seguinte, a solicitação formal de venda d´água ao Município adiciona alguns
detalhes relativos à sua utilização. Nas proximidades da chácara da família Lacerda encontram-
se duas fontes que são protegidas pelo IPAC (BA). São elas a Fonte do Dique do Toróró e a
Fonte do Vale de Tororó .15 O IPAC (BA) data as estruturas existentes, em formato de cúpula,
da década de 1870/80, então, supomos que este(s) equipamento(s) foi/foram edificado(s) como
melhoria dos poços preexistentes, dos quais se procedia à captação e venda d´água. É necessário
também distinguir as referências históricas ao chafariz do Tororó, pertencente ao Queimado,
que não se deve confundir com nenhuma das anteriores, conforme demonstra a imagem
publicada no jornal A Manhã (BA), edição 22, 1920, p.8.
Para identificação do local de venda é necessário recuperar os limites do lote da chácara
dos Lacerda, compreendendo a inserção de cada estrutura em cúpula na propriedade, podendo
supor os seus usos, ajudando a reconstituir a importância e significado para a história da cidade
e do abastecimento.
Figura 7 - Fonte do Tororó (1871/81); Fonte do Vale do Tororó; Chafariz do Tororó (1920).

Referência: Correio24 horas (BA), 07/08/2009; Governo do Estado 1982; A Manhã (BA), edição 22,
1920, pág. 8.

Estas estruturas destacam-se por sua arquitetura se aproximar às Buvettes das estâncias
de água mineral europeias, o que pode indicar maior investimento e uma aproximação a um
público mais elitizado, induzindo à consideração de maior qualidade do líquido, justificando o
preço mais elevado. Presumivelmente mais afastado de fontes diretas de poluição.
A Fonte do Dique do Tororó encontra-se mais documentada, como construção de
Augusto Frederico de Lacerda quando Mordomo do Asilo dos Expostos, inaugurada em
21/11/1875. Nesta estrutura destaca-se a instalação de bomba manual, que recalcava o líquido
encosta acima até o Asilo. Este sistema possibilitou o fechamento da fonte, só aberta para

15
Fonte do Dique do Toróró tombada pelo Decreto n.º 28.398/10.11.1981; “Fonte do Vale de Tororó”
processo 30.483/10.05.1984.
57
limpeza ou reparo, excluindo a possibilidade de acesso e usufruto livre deste equipamento,
revelando um meio alternativo à grade e ao guarda adoptado pelo Queimado. Segundo a
descrição do IPAC-BA, a fonte funcionou até a instalação da rede de distribuição na Avenida
Joana Angélica no começo do século passado. (Inventário IPAC-Bahia, 1975,191)
Para a Fonte do Vale do Tororó o inventário de proteção do acervo cultural avança com
a descrição de uma fonte formada por um poço coberto por cúpula, com três óculos, do tipo
cacimba, que consiste na escavação de um poço, geralmente em uma baixada até atingir o lençol
d´água16. Destaca que não foram encontradas referências históricas sobre a mesma, mas trata-
se, provavelmente, de uma construção do último terço do século XIX. A falta de informação
sobre a estrutura coincide com a sua difícil permanência na malha urbana.
Da discussão dos privilégios de venda d´água, em 1866, quando era já consensual que
os privilégios não poderiam ser ampliados, mas restritos, decorreu na análise das condições do
contrato da Companhia, divergindo o entendimento do Município e do governo da Província.
Esta discussão foi determinante para limitar ou possibilitar a concorrência.
Segundo o Município, o contrato não determinava o privilégio, seguindo o princípio de
que os privilégios não podiam ser presumidos ou deduzidos, mas claros e determinados
expressamente na lei. Nesta perspectiva entendeu que a Companhia não o detinha. A permissão
aos particulares de vender água das suas casas ou roças pela forma e maneira que lhe prouvesse
e agradasse, reforçava o entendimento que legitimava a oferta do serviço dos Lacerda.
Em protesto, a Companhia recorre ao governo Provincial, que contrariou o
entendimento Municipal e determinou que se cassasse a licença do Dr. Augusto de Lacerda,
entendendo a existência da exclusividade da venda pertencente ao Queimado. Apesar de
reconhecer que o privilégio não era claro no contrato e na lei, entendeu que, todavia, se devia
presumir em razão dos ônus a que a companhia do Queimado se sujeitou. Dificultando a
formação de concorrência, a Província procurava assegurava o futuro da companhia que tantos
benefícios trouxe à cidade. (Jornal do Commercio (RJ), edição 156, 1866, p.1; edição 159, p.2)
Em resposta, a Municipalidade manteve a posição de que a consequência rigorosa da lei
e de sua disposição é que tanto o Dr. Lacerda podia encanar e vender a água do Tororó, quanto
não podia a Presidência determinar à Câmara que cassasse a licença. O governo Provincial é
então acusado de apadrinhar as “monstruosas pretensões da companhia do Queimado, e que só
o ódio, a cegueira, podem sustentar a guerra encarniçada de que é victima o Dr. Lacerda”. Neste

16
Do Governo do Estado da Bahia, elaborado pela Secretaria da Indústria e Comércio, pelo projeto
“Restauração e Reutilização das Fontes e Chafarizes de Salvador”, de fev/1982. Governo do Estado da
Bahia, 1982, 34.
58
momento, anteviu-se o estabelecimento de um quadro de dependência: “se o machinismo
soffrer algum desarranjo a que esta sujeito, de sorte que leve dous ou três mezes a reparar,
deverá a cidade morrer á sede, porque ninguém lhe póde fornecer agua!” (Jornal do Commercio
(RJ), edição 159, 9/07/1866, p.2)
Oh! Quanta oposição não precisou [para] vencer a Companhia do Queimado!
Sem o espírito descortinador e audaz de um Lacerda, e sua vontade firme não
teríamos no elevador hydraulico o grandioso melhoramento, cujas vantagens
diariamente vamos todos experimentando. Não há, não póde haver mais eficaz
agente do progresso do que a iniciativa individual e o espirito da empresa; se
inspira em sincero patriotismo quem o estimula e anima; como também não
póde deixar de ser considerado máo cidadão que o desgosta e desacoroçoa por
motivos pequenos, tirados da paixão e do ódio. (Diário do Rio de Janeiro (RJ),
edição 136, 1874, pág. 2)

Surpreendido pelo inesperado acontecimento da redução da disponibilidade do serviço


nos chafarizes, fechamento das penas d´água nos estabelecimentos públicos e casas particulares
por escassez d´água, em exposição o Vice-Presidente Figueiredo Rocha evidencia a iminente
necessidade de providenciar alternativas ao abastecimento, e referencia novamente o
estabelecimento aquário do Tororó, como potencial colaborador para o abastecimento.17 No
entanto, a comissão de engenheiros considerou que no estado em que se encontravam estas
vertentes, só poderiam concorrer muito insignificantemente para o abastecimento da cidade:

[...] mas que com a construção de um reservatório (puissard) de grande


superfície, cavado na parte do valle inferior a em que se acha o actual,
aprofundado até a rocha do lado que olha para o dique, único, que deve ser
impermeavel, com o assentamento de machina superior em força a que lá existe,
e com a construção de um recipiente de conveniente capacidade, colocado no
nível actual, aquellas vertentes se tornariam um poderosos auxiliar para
abastecer a cidade baixa de excelente agoa. (ROCHA, 1869,15)

Esta citação não só confirma a permanência do serviço do estabelecimento aquário do


Tororó após a polêmica dos privilégios com a Província, como indica a prévia existência de
máquinas para captação.

2.2 Outros serviços: Torneiras de salvação e Banheiros públicos.


Na pretensão de alargar a oferta dos seus serviços, à semelhança do modelo inglês, a
Companhia acordará com o Município a instalação do sistema de combate a incêndios e
banheiros públicos. No entanto, a falta do elemento fundamental para os dois serviços, água em

17
Exposição do Vice-Presidente Figueiredo Rocha, Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de
Governo (BA), edição 3, 1869, pág.15.

59
quantidade, dificultará a eficácia, que juntamente com outras nuances e interesses, afastaram a
Companhia da pretensão inicial.

Torneiras de salvação

8.ª A Companhia dará gratuitamente toda a agua que fôr precisa para alimentar
torneiras de segurança contra incendios, as quaes serão collocadas nos edificios
publicos, a saber Alfandega, Arsenal, Theatro e Palacio do Governo, não
devendo as mesmas funcionar senão em caso de fogo, sendo os respectivos
encanamentos a custa do Governo. Em caso de incendio, quer nos edificios
publicos, quer nos particulares, a Companhia fornecerá gratuitamente toda a
agua dos seus chafarizes. (Contrato de 17/01/1853)

No contrato de 1853, a Província atribuiu à Companhia a obrigação de, em caso de


incêndio, abastecer de forma gratuita as torneiras de combate instaladas em edifícios públicos,
com canalização instalada às custas do Governo. Para os edifícios particulares, autorizou a
retirada gratuita nos chafarizes. No entanto, a gravidade e frequência dos incêndios que
grassaram nos edifícios particulares, principalmente no bairro comercial, quase sempre
criminosos quer filhos do descuido quer nascidos de tenebrosa premeditação, levou a que em
1858 se instalasse onze torneiras de salvação na Cidade Baixa, procurando prestar prontos
socorros de que se possa dispor no momento, logo que a sua existência seja anunciada, de modo
a evitar quando possível a sua continuação e progresso.18
Apesar das comissões de especialistas, que por suas luzes, posição e circunstância
pareciam apropriados para propor o aperfeiçoamento deste importante ramo do serviço público,
as melhorias apenas foram implantadas quando a Lei Provincial n. 1.945 de 26 de agosto de
1879 ampliou por quinze anos os prazos estabelecidos para a Companhia gozar da
infraestrutura. A renovação obrigou à instalação de cem torneiras de salvação em várias partes
da cidade, com distribuição gratuita, responsabilizando a Companhia pela manutenção e
conservação do equipamento, abastecendo as novas torneiras, como para as demais já colocadas
à custa da Província.19
Na “Memória Histórica da Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia” de 1905,
o Dr. José Carneiro Campos relata a deflagração, a 3 de março, de um incêndio no edifício da
Faculdade que destruiu completamente a Biblioteca e atingiu o Hospital da Caridade.
Descrevendo a evolução do incêndio, denuncia o péssimo serviço de extinção de incêndios, a

18
Fala do Vice-Presidente da Província, Dr. José Augusto Chaves (BA), Relatório dos Trabalhos do
Conselho Interino de Governo-Bahia, edição 3, 1861, pág. 14.
19
Fala com que abriu a sessão da 23.a Assembleia Legislativa o Presidente Antonio de Araújo de Aragão
Bulcão, Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de Governo (BA), edição 1, 1880, pág. 76.

60
falta de material necessário, a carência absoluta de água durante horas e a falta de ordem e de
direção nesse serviço, como as muito prováveis causas das grandes perdas. O autor considera
que o incêndio poderia ter se limitado ao almoxarifado se houvesse combate eficaz, e desta
forma, ter-se-ia evitado a perda dos tesouros insubstituíveis contidos na biblioteca, a destruição
da artística e histórica capela dos jesuítas e dos laboratórios. (CAMPOS, 1905, 9)
O autor crítica não só os problemas de infraestrutura no edifício, o depósito de apenas
12.000 litros (quantidade que fornece uma pena d´agua durante um mês), que não foi utilizado
para combate ao fogo “por faltar não sei que apetrecho necessário”, mas também o serviço de
socorro da Companhia, que demorou a trazer as bombas movidas à mão, apesar de haver nas
proximidades oito torneiras para incêndio e o chafariz do Terreiro. “Lavrou portanto o incêndio
inatacado por duas longas horas, sem que a Companhia do Queimado ou a Intendência se
pudessem utilizar das torneiras de salvação, porque as respectivas chaves, que deviam
permanecer nas estações de bombeiros, não puderam ser encontradas”. (CAMPOS, 1905, 9)
Apesar dos esforços do Município em melhorar o serviço de combate a incêndios,
responsabilizando a Companhia para a sua prestação, este mantinha-se pouco eficaz, causando
grandes perdas.
Banheiros públicos

[...] poderá a Companhia construir [...] casas de banho sob a inspecção da


Policia, ficando para esse fim autorisada a encanaras aguas do Riacho Negrão
– rio Camorogipe, e da Fonte da Telha mediante a indemnisação dos
particulares, que por tal motivo forem prejudicados. (Contrato de 17/01/1853)
Embora não constituindo obrigatoriedade, a possibilidade da construção casas de banho
pelo Queimado foi enunciada em contrato. Para a construção d´este melhoramento de que tanto
reclamava a higiene da cidade, foi autorizada a captação das águas do riacho Negrão – rio
Camorogipe, e Fonte da Telha. No entanto, a Companhia interessada em investir nas penas
domiciliares, deixou esta solicitação em “águas de bacalhau”, até que a renovação do contrato
de 1870 estabeleceu a construção de quatro casas de banho como obrigatoriedade: “pelo menos
duas na cidade baixa, duas na alta; colocando-as em distancia que facilite a concurrencia dos
diferentes pontos”:
Art.º 4.º A Companhia dentro do prazo das novas obras estabelecerá quatro
casas de banho nos sitios mais apropriados para a concurrencia, de maneira á
proporcionar estes beneficios aos differentes Bairros da cidade. Regulamentos
Policiais, de accôrdo com a Companhia, indicarão a ordem e o preço do serviço,
afim de que sejão as referidas casas frequentadas sem offensa dos bons
costumes. (Termo de renovação 17/06/1870)

61
Considerado um recurso para as classes menos favorecidas, que não podem ter
banheiros em suas casas com grande despesa de encanamentos e fornecimento d´água e que ali
encontravam satisfação a uma necessidade higiênica, de asseio para o corpo. (Fala do Presidente
da Província Cruz Machado (BA), edição 1, 1874, pág. 236) A proposta contava com o prévio
estabelecimento de preços em tabela aprovada pelo Governo, regulamento e vigilância policial.
Ainda assim, a iniciativa apenas será viabilizada pela iniciativa Municipal, face o continuado
desinteresse da Companhia em ofertar o serviço. Apesar da obrigatoriedade estabelecida pelo
contrato, em 1874 ainda não existiam estes equipamentos de grande vantagem para a população,
mormente no verão, e um auxiliar eficaz para a salubridade pública.
A Companhia justificava o seu incumprimento pelo fracasso da articulação espacial
desta estrutura, pensada à semelhança das casas de vendagem. Recusando-se a construir o
equipamento de raiz, e tendo já a experiência do pagamento do aluguer, que originava uma
despesa adicional que a desagradava, alegava enfrentar ainda maior dificuldade para o aluguel
de espaços para as casas de banho, exigindo os proprietários pelo aluguel seis vezes mais do
valor justo, temendo a desvalorização das propriedades face a função proposta. “Tentou a
Direcção obter uma casa, occupada actualmente por uma ferraria, no tôpo da ladeira da
Conceição. Entrando em ajuste com o proprietário, exigiu este a quantia de 12:000$000, pelo
que valerá apenas a 6.ª parte!”. Assim na rua Nova do Commercio e das Princezas não tem sido
possivel tambem achar-se um logar conveniente.20
Este útil melhoramento será avançado pela Província em 1879, pelo engenheiro Jacome
Martins Baggi, Diretor de Obras Públicas, que construiu quatro latrinas em dois cubículos
abobadados com entrada pela Ladeira da Misericórdia e na praça do Palácio, abastecidos
gratuitamente. (Pequeno Jornal (BA), edição 39, 1890, pág. 2) Os mictórios, no entanto, foram
imediatamente fechados por solicitação Policial à vista de graves inconvenientes que se
manifestaram, de que é exemplo a notícia da Cidade do Salvador (BA) de 7/05/1899:
Banho e cacete - Tendo se banhado na casa de banhos 1.º de Setembro á Estrada
Nova um soldado, este recusou-se ao pagamento e como o velho Romualdo
insistisse em exigil-o, o soldado entendeu que a moeda corrente era pau e
espancou-o. O velho, lançando mão de uma estaca, vibrou-lhe formidavel
paulada. Graças á intervenção de um alfaiate chamado Vicente, a cousa não
tomou maiores proporções. Em todo o caso, depois do fresco do banho, teve o
soldado o corpo a arder, para nao se lembrar de lavar-se de graça quando a agua
esta tão cara e os aguadeiros so querem vendel-a ás pipas! (Cidade do Salvador
(BA), 7/05/1899)

20
Relatório da Direcção da Companhia do Queimado e parecer da Commissão de Contas relativo ao
31.º semestre apresentado em Assembleia Geral de 26/03/1874.
62
O médico Octavio Torres da Silva na sua tese, “A cidade do Salvador perante a
Hygiene” (1908), apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia descreveu as condições de
higiene do bairro comercial, a imensa rua do Cais, que serve de porta de entrada aos visitantes,
e refere uns indecentes e imorais focos desorganizadores de nossa vitalidade orgânica,
denominados – mictórios:
Immundos, porque o estado em que se se os encontram, denotam qual o
processo empregado, que os tornam prejudiciais em vez de uteis; pois, para uma
capital, é degradante aquelles pontos de serventia publica, onde não impera a
decencia e o respeito ao decoro publico. [...] Esses mictorios primam pela
porcaria, e pela immoralidade, porque não é raro ver-se individuos
clandestinamente satisfazerem suas necessidades, sem ligar a minima
importancia ao que se chama respeito a sociedade. (SILVA, 1908, 2)
Evoluindo da estratégia de colocação da infraestrutura em propriedades alugadas do
Queimado para construções autônomas, as casas de banho, mictórios públicos ou receptáculos
de urina, se encontravam ainda em diminuta quantidade, numa cidade grande e populosa como
Salvador. Os seus equipamentos eram de baixa qualidade, feitos de caixas de ferro, sem pia,
“quasi sempre entupida de papeis velhos, excrementos, pedras, etc., prohibindo o escoamento.”
(SILVA, 1908, 2) Da sua descrição constatamos também a permanência em 1908 dos mictórios,
(guritas) em condições especiais: o da Praça do Conselho Municipal, cujo estado repugnante já
é bem conhecido, e outro situado junto a Photographia Lindemann, na Praça Castro Alves que
teve igual desfecho.
2.3 O alargamento da captação
Os anos de 1865-1880 foram particularmente difíceis para a Província. O fim anunciado
do comércio interno de escravizados intensificou a demanda, a Guerra do Paraguai provocou
grande perda demográfica produtora e as grandes secas do sertão, nos finais das décadas de 70
e 80 contribuíram para a desestabilização financeira e política.
A 21 de agosto de 1869, a Companhia comunica que por deficiência de água em seus
depósitos passava a reduzir o serviço dos chafarizes e a fechar as penas d´agua dos
estabelecimentos públicos e das casas particulares.21 Este inesperado sucesso deixa o governo
em estado de alerta para a necessidade de aumentar a captação de mananciais, resultando na
interferência dos órgãos governamentais para identificação de novos mananciais passíveis de
captação e para verificação da real situação da disponibilidade d´água.
A falta de pressão no encanamento geral, decorrida pelo crescente número de penas e o
aumento do número de chafarizes, dificultou o regular suprimento da cidade alta, originando

21
Exposição do Vice-Presidente Figueiredo Rocha, Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de
Governo, edição 3, 1869, pág.15.
63
repetidas reclamações e o questionamento dos privilégios da Companhia, que não garantia a
qualidade e a quantidade para o abastecimento. A Companhia alegava falta de recursos
financeiros para realizar melhorias no serviço, alegação que contrasta com os lucros registrados
nos relatórios anuais das atividades, onde se verificava a sua situação vantajosa.
Obrigada a tomar providências, o governo revisou as condições do contrato, mesmo
antes de terminado a prazo de 30 anos no qual foi garantido o direito de usufruir as suas obras.
Entre 1870 e 1890 foram várias as tentativas de viabilizar a Companhia, com renovações que
gradualmente diminuíram o monopólio comercial da venda d´água, procurando proteger o
consumidor dos abusos de um serviço cada vez mais necessário, mas cada vez mais ineficiente.
2.3.1 Década de 70: a negociação do termo de renovação.
O monopólio havia munido a Companhia de dependências que lhe garantiram algum
conforto para que, sob o pretexto do racionamento, restringisse o número de chafarizes
onerando ainda mais a população, obrigada a percorrer distâncias mais incômodas e mesmo
insuportáveis na ausência de condutores com a cessação da escravatura. Procurando aumentar
a proteção aos beneficiários contra excessos e caprichos, o Município estabeleceu que os
chafarizes uma vez frequentados ao público não poderiam ser fechados se não com a sua
aquiescência.
Pressionada a aumentar a qualidade do seu serviço, que compreendia obras muito
dispendiosas, elevando-se talvez a quantia superior a 250:000$000, e restando apenas dezoito
anos de usufruto das obras do primitivo contrato, a companhia considerou que apenas realizaria
investimentos mediante o prolongamento da concessão por 20 anos, entrando em negociações
com o governo.
Uma primeira proposta, apresentada pelo Palácio da Presidência da Província da Bahia
a 21 de novembro de 1870, foi no sentido de obrigar a execução de obras não realizadas,
aceitando a ampliação do prazo da concessão por mais 20 anos. Impunha a execução imediata
do encanamento das águas do riacho Negrão, rio Camarogipe e da Fonte da Telha e a instalação
de banheiros públicos. No entendimento do Presidente da Província Barão de S. Lourenço, estas
providências já deveriam ter sido executadas e assim ter-se-ia evitado esta crise. A Companhia
era obrigada a iniciar dentro de um ano as obras de canalização dos mananciais, a melhorar o
sistema de filtração, e a concluir as obras em quatro meses. Em contrapartida mantinha a isenção
do pagamento de imposto, inclusive o municipal.22

22
Fala do Presidente da Província Barão de S. Lourenço (BA), edição 3, 1869; edição 1, 6/03/1870, pág.
50; 21/11/1870.
64
O principal motivo de contestação e desacordo entre o Governo e a Companhia incidiu
na tentativa de retirar a exclusividade da distribuição para as casas particulares, representando
esta via a principal fonte de rendimentos da Companhia, e onde realizara maiores investimentos.
Nesta circunstância o governo admitia já o interesse pelo encampamento do todo ou de parte
da Companhia, respondendo à pressão da opinião pública, que continuava descontente por
pagar por um bem público e pressionava a encampação Municipal do serviço, prevista no art.
5 do contrato de 1853.
A Assembleia dos acionistas deliberou unanimemente não aceitar as bases impostas,
porque insistia na pretensão de ter o privilégio de distribuição para as casas particulares e,
segundo, porque as condições referidas eram prejudiciais aos direitos adquiridos e aos
interesses da Companhia. Nestas comdições mantinha os direitos que lhe cabiam no contrato
primitivo, válido por mais treze anos. Comprometeu-se, todavia, a encanar o Riacho Negrão,
Fonte da Telha, e Comorogipe, afim de assegurar o abastecimento aos habitantes da Cidade.23
Aos vinte e dois dias de dezembro de 1870 foi acordada uma solução intermediária, em
reunião com o Presidente Barão de S. Lourenço e a direção do Queimado, que possibilitou o
Município desapropriar no todo ou em parte o serviço, alterando o foco da desapropriação das
penas domiciliares para os chafarizes, possibilitando dar água gratuitamente à população,
continuando as penas d´água no domínio da Companhia, conforme contestara. Foram mantidas
as pretensões de canalização e filtração, a instalação no prazo máximo de cinco anos, e a
redução do preço do barril de três canadas de 20 para 10 réis. A instalação de novos chafarizes,
quatro casas de banhos públicas e penas a domiciliares, não sendo aceite a recusa ao serviço.
Foi concedido pelo governo Imperial a isenção de direitos de importação para as obras.24
Embates a favor e contra a Companhia ocuparam os jornais, comparando a distribuição
de Salvador à do Rio de Janeiro e Recife. A Companhia diferenciava as condições dos serviços,
evidenciando que em Salvador, “si o pobre dispende 20 rs. para obter um barril d´agoa, deve
pagar com satisfação porque o encontra certo e de prompto”, alegando que nos “logares onde o
fornecimento das agoas é gratuito, como na Côrte, para a população que vai buscar ás bicas
publicas, ahi se tem chegado a pagar com difficuldade 1$000 por um barril d´agoa, perdendo o
conductor muitas horas á espera de chegar lhe a vez”. Considerava justa a gratidão e proteção
que precisa pois com ela melhoraram as condições da cidade, cujas vantagens podem ir ainda
em aumento.25

23
Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de Governo (BA), edição 1, 1871, pág. 38.
24
Fala do Presidente da Província Cruz Machado (BA), edição 1, 1874, pág. 226/227;
25
Fala do Presidente da Província Barão de S. Lourenço (BA), 6/03/1870.
65
Em paralelo à degradação do serviço se manteve o descaso Municipal pelas fontes
públicas, onde se abasteciam os pobres, que continuavam degradadas. Este foi considerado a
causa de estarmos num estado estacionário.26
O problema da falta de pressão nas torneiras volta a assombrar a Companhia em 1876,
que instalou encanamentos suplementares, reforçando o abastecimento da Cidade Baixa até
Itapagipe e de S. José até às Mercês, procurando garantir o “prompto serviço de pennas d´água
até os mais elevados andares das casas e sufficientemente supprido o grande fornecimento
d´agua, principalmente para as Freguezias de S. Pedro e Vitória”, onde se localizavam as
residências das classes mais abastadas, apenas.27
Continuava lisonjeiro o estado financeiro da Companhia. Em agosto de 1876, a Direção
acorda com o governo o fornecimento ao novo matadouro em conformidade com a promessa
feita, como compensação da licença e do terreno cedido para o encanamento do rio Camorogipe,
preparando já o aumento considerável da captação realizado na década de 80.
Progressivamente o governo negociou benefícios para os seus estabelecimentos, como
a gratuidade para o Passeio Público (1859), para os estabelecimentos pios (1879), alargado em
1880 para a gratuidade de cem barris para a casa da Providencia e cem ao Asilo de Mendicidade
e finalmente, para todos os estabelecimentos públicos mantidos pela Província.28
Descontente, por mais dez anos a Companhia continuou praticamente inativa,
realizando apenas obras de escassa revelância. (SAMPAIO, 1910, 6)

2.3.2 Década de 80: o novo impulso do aumento do capital


Apenas em 1879, através da Lei n.º 1945 de 26 de agosto, sancionada pelo Presidente
Dr. Antônio de Araújo de Aragão Bulcão, que a beneficiou com mais quinze anos para usufruto
de suas obras, promove o aumento do seu capital social, de 2.000:000$000 em 10.000 ações de
200$000 cada uma, habilitou-se a dar cumprimento ao que de tão longa data se comprometera.
Com relações mais próximas com o Município, muda o seu escritório para a Praça do Palácio,
no edifício da Câmara, e foi então que com o engenheiro Revault na direção do serviço, as obras
pendentes de ampliação do serviço começavam. (SAMPAIO, 1910, 6)
Realizou-se uma nova represa, com parede de terra no rio Camurugipe, na Matta Escura,
à cota 23,739, a quatro quilômetros do Queimado. A captação descia por gravidade, através de
um encanamento de ferro do diâmetro de 30 cm, até à nova estação de bombas no Retiro, à cota

26
Discurso do sr. Deputado Souza França na Assembleia Legislativa (BA), 31/05/1875.
27
Fala do Presidente Luiz Antonio Silva Nunes (BA), edição 1, 1876, pág. 150.
28
Fala com que abriu a sessão da 23.a Assembleia Legislativa o Presidente Antonio de Araújo de Aragão
Bulcão (BA), edição 1, 1880, pág. 73.
66
17, percorrendo 1.800m. No Retiro as águas eram levantadas e calcadas em encanamento, do
mesmo diâmetro até o Queimado, para de novo serem levantadas para o reservatório de
alvenaria, na cota 77.
Figura 8 - Aumento de Capital da Companhia; Represa Matta Escura e Estação do Retiro.

Referências: Gazeta da Bahia (BA), 23/02/1883; elaborado sobre esquema de Saturnino Brito
(BRITO, 1928, 107).

Theodoro Sampaio (1910), considera que as novas obras realizadas pela Companhia no
impulso de 1880 não visaram senão aumentar o volume d´água na represa do Queimado, sem
alteração substancial do plano primitivo. A dupla elevação d´água para o reservatório aumentou
consideravelmente os gastos em carvão necessários para a alimentação do maquinismo de
elevação. (SAMPAIO, 1910, 6)
Figura 9 - Açude da Matta-Escura. "Um dos reservatórios mais aprazíveis recantos da cidade."

Referência: (PACHECO, 1924, 13); (SAMPAIO, 1910,14)

Nova grave seca atingiu a Bahia entre 1883 e 1885 e levou o Queimado, ao ver baixar
o nível dos seus mananciais, a propor a restauração do uso das fontes tradicionais29.
Evidenciando a sua crescente ineficácia, mesmo face às melhorias efectuadas pelos engenheiros
Dionysio Martins e Maia Bittencourt, que aumentaram as muralhas das represas do Queimado

29
Governo do Estado da Bahia, IPAC - inventário de proteção do acervo cultural da Bahia, Paulo
Ormindo de Azevedo.
67
e Matta Escura, novas bacias de filtração, dois puisards cobertos de capacidade total de
2.412.606 litros, e novas bombas de elevação, uma de 80 cavalos na estação do Retiro e outra
da mesma potência no Queimado, ampliando-se a rede de distribuição a 53.218 metros.
(SAMPAIO, 1910, 7)
Figura 10- Estação Queimado; Estação do Retiro; Dois puissards, 1880.

Referência: (PACHECO, 1924, 15); (SAMPAIO, 1910, 13); Fotografia de Guilherme Gaensly,
http://www.salvador-antiga.com, consultado a 29/04/2019.

Totalizando 5.692.600 litros de água armazenada, o reservatório na Cruz do Cosme


(cota 77), manteve-se o de maior capacidade, 3.000.000l, seguido de dois puisards com
capacidade de 2.416.000l (cota 39), e 280.000l represados no reservatório do Queimado, que
recebia as águas da Matta Escura e se mantinha como o principal copo coletor.
A captação das águas do açude do Prata, na cota 45, o mais alto e de melhor qualidade,
foi deixada como reserva para captação em alturas críticas, de dezembro a março, quando os
mananciais quase que desaparecem, os açudes esvaziam-se, apresentando nas suas bacias um
aspecto desolador. (SAMPAIO, 1910,8)
Figura 11 - Represa do Prata.

Referência: (PACHECO, 1924, 16); (SAMPAIO, 1910,14)

Em setembro de 1887 é encomendado o estudo de abastecimento à cidade ao


engenheiro baiano Theodoro Sampaio, que só apresentará resultados 24 anos depois, em 1904.
A solicitação deste estudo comprova a intenção Municipal em encampar a Companhia, tomando
para si a responsabilidade pelo serviço, que marca a ruptura e azedume das relações entre a
Companhia, o governo e os consumidores, os principais prejudicados.

68
2.3.3 Década de 90: aumento de tarifa ou restrição.
Na década de 90 intensificaram-se os debates e troca de acusações entre defensores dos
interesses coletivos e os representantes da Companhia, que insistiam em diferenciar o serviço
prestado. A solicitação de aumento da tarifa das penas domiciliares, de 9 para 13 réis agravou
a oposição pública, fazendo ressurgir as comparações com o sistema de abastecimento do Rio
de Janeiro onde “os chafarizes servem água gratis as pessoas. Só na Bahia na retaguarda e o seu
povo vai à fonte COMPRAR ÁGUA”.30 A Companhia empenhou-se a esclarecer que o seu
serviço era particular feito para o gozo do público, não decorrendo da aplicação de um fundo
de caridade, mas emprego de capital em busca de remuneração. Contra a Companhia caia a
urgência em deixar de se proteger “a quem tem uma vida fácil e que não sabe o que é cansaço
e suor e dificuldades para manter a existencia.” (A Cidade do Salvador (BA), 22/05/1989; Jornal
de Noticias (BA), 17/05/1898)
O aumento da tarifa foi justificado pela necessidade da instalação de poderosas
máquinas de elevação, que consumiam mais de quatro toneladas de carvão de pedra
diariamente. Como única alternativa propõe que o governo tomasse para si a responsabilidade
das despesas:
[...] sendo o preço d´agua resultado de multiplos factores, necessariamente não
podia ficar estacionario, desde que os elementos do calculo subiram de valor.
Não ha duas arithmeticas; uma para o trabalho legal, outra para as expansões da
philantropia. Para que a immutabilidade subsista é preciso o coefficiente da
caridade, que não pode ser imposto a um grupo, sob pena de se converter o
attributo santo em instrumento de expoliação. Vejamos ainda o confronto dos
factos e a inconsciencia das opiniões. A Direcção. (Jornal de Notícias (BA)
24/05/1898)
O deterioramento da canalização agravou o processo que induzia ao fortalecimento do
abastecimento nas fontes públicas, evidenciando a necessidade de concorrerem à alimentação
da cidade. Mas em 1899, até a fonte do Gravatá, que até então sempre resistira às maiores secas,
“as vezes até com tanta força, que além das largas passagens que havia para o escoamento, a
água parecia querer desagregar as grandes pedras do frontal da mesma fonte que se acham
solidamente unidas”, viu o seu manancial muito reduzido. (Cidade do Salvador (BA) edição 27,
1899, pág. 1,2) O racionamento fez com que muitos proprietários colocassem à disposição do
público os mananciais dos terrenos de sua propriedade mediante módica contribuição e alguns
até gratuitamente.” (Cidade do Salvador (BA), edição 17, 1899, pág. 2)
A FALTA DE ÁGUA Tem sido constante a falta de agua nas pennas das
freguesias do Pilar e da Conceição da Praia. Naquella e mesmo nesta os
aguadeiros exigem 1$500 e as vezes 2$000 por uma carga de quatro pequenos

30
A Cidade do Salvador (BA), 7/05/1898; 10/05/1898;
69
barris de agua o que já é uma grande commodidade para os pobres. Na freguesia
da Penha essa falta é de tal ordem, que anualmente faz parte nas festas [ilegível]
Realmente viver num clima abrasador, empastado continuamente pela poeira,
comer carne cara, magra, escura, suja, que pede pelo menos umas cinco
lavagens antes de ser cozinhada e sem haver agua para isso, é gosar de todos os
confortos da vida. (Cidade do Salvador (BA) edição 2, 1898, pág. 2 /3)

Sob graves acusações, a Cia ameaçou suspender os serviços e abandonar a cidade.


“Golpe!”, anuncia o jornal a Cidade do Salvador. Considerada desde então uma ameaça ao
espírito público, continuou o reclame por providências, questionando os motivos do
desabastecimento: “ha muita água no depósito, o que não há é pressão, para economisar-se no
combustivel e poder-se dar dividendo aos acionistas”.31
Chamado à Assembleia Provincial, o Dr. Dyonisio Gonçalves Martins, então diretor,
leu extenso relatório onde descreveu o grande sacrifício para fornecer a pouca água aos
chafarizes. Além da seca, registra os contínuos desperdícios que se davam diariamente nas
penas particulares que quase permaneciam em jacto contínuo, e a enorme perda d´água jorrada
continuamente durante muitos dias no incêndio de 1.º de dezembro por mangueiras em
verdadeiro estado deplorável, perdendo-se muita água antes de extinguirem-se as chamas. As
despesas ocasionadas pelas obras de ampliação do serviço impediam manter o atual preço
porque a venda arrecadada pela venda nem ao menos satisfazia as exigências de custeio.
A Assembleia, compreendendo a situação, autoriza um empréstimo, “nunca superior
á quantia de 400.000$000”, para as novas obras de que carece: aumento das atuais presas, Prata
e Matta Escura, construção de uma nova onde for julgado mais conveniente, bem como a
construção de um novo reservatório, julgando deste modo evitar novas situações calamitosas.
(A Cidade do Salvador (BA), edição 27, 1899, pág. 1,2)

A represa do Queimado.

Chamado para emitir parecer relativo à qualidade bacteriológica das águas do


Queimado, o Dr. Augusto Vianna fornece preciosa descrição da situação do dique do
Queimado. Apresentando-o como grande coletor das águas, descreve-o revestido por vegetação
rasteira e em alguns pontos coberto de mato. Menciona o afastamento da represa aos núcleos
de população, onde não passam estradas de trânsito público, com vigilância constante de
empregados da companhia, que limpavam diariamente as margens e recolhiam quaisquer
impurezas. (VIANNA, 1897, 25)

31
A Cidade do Salvador (BA), 3/01/1899; 5/01/1899; 22/05/1989; Correio do Brazil (BA) 09/09/1903;
70
Estendendo-se por uma superfície de 12.712 metros quadrados, com águas sujeitas a
uma perfeita exposição solar e agitadas continuamente pelas brisas, este reservatório
condicionava as águas da esteira subterrânea de numerosas nascentes e vertentes, e recebia as
águas dos terrenos da Fazenda Bate Folha (Matta Escura) que recebiam as águas do Cobre,
acolhidas no Retiro. Deste modo, o dique do Queimado era considerado como o reservatório
central, o manancial único, que abastece toda a cidade. (VIANNA, 1897, 26)
No grande coletor do Queimado as águas eram depuradas por filtros de secção
retangular em número variável e frequentemente renovados. A camada filtrante, com 1”, 40 de
altura, repousa sobre um leito de tijolos, formando canais por onde escoava a água. A camada
filtrante era composta de 0”,70 de pedras e seixos de diâmetro variado, sobrepostos, em 2,70
de areia grossa e fina, bem lavada. Depois de filtradas, eram recolhidas por 24 horas, em
puissards cobertos, d´onde eram elevadas para o reservatório da Cruz do Cosme. As destinadas
à distribuição da cidade baixa e ao arrabalde de Itapagipe, ficavam em um depósito semelhante,
colocado perto dos filtros. Todos estes depósitos temporários e definitivos eram em alvenaria,
revestidos interna e externamente de cimento, e também caiados em épocas determinadas.

O serviço de carroças municipais


Quando os chafarizes sofreram o racionamento de horário de funcionamento, abrindo
tarde e fechando cedo, e as fontes da cidade secaram provocando restrições no abastecimento
das penas domiciliares, desabastecendo a elite, parecia que existia um propósito em aumentar-
se os efeitos da seca, para d´ai tirar-se o maior proveito possível, e conseguir-se os
ambicionados fins: o aumento do preço da pena d´água, obrigando à execução de medidas
provinciais:
Continua essa benemerita companhia, que tão amiga se tem mostrado do povo
bahiano, nomeadamente dos concessionários de suas pennas de agua, na teima
de não abril-as, a pretexto de que não há agua quando além das continuadas
chuvas que tem cahido, o sr. Caminada afirmou na sua correspondência já haver
mais valias três milhões de litros diários, e portanto, mais que suficientes para
o consumo. Isto, porem não é de admirar, porque todas as vezes que chove, a
companhia, no dia imediato faz constar que os seus tanques depósitos baixaram
tantos palmos de nível! Como se a chuva tivesse a propriedade de fazer secar as
aguas armazenadas. Assim como um general sitia o inimigo até rendel-o pela
fome, assim também a companhia sitia os seus concessionários até conseguir-
lhes o aumento que pretende. (Cidade do Salvador (BA), edição 61, 1899, pág
2)

Enquanto aguardava a proposta de Theodoro Sampaio, a 14/01/1899, o Município


implantou uma alternativa emergencial, não ao abastecimento, mas à distribuição. Através da
contratação de 30 carroças, diariamente carregadas de “meias pipas” para a venda pública, ao

71
preço de doze mil reis (12$000) de aluguel, por dia, cada uma. O serviço, contratado aos srs.
Olavo da Costa Doria e José Landislau da Silva Bahia, obrigava à venda d´água pelas ruas da
cidade em carroças de sua propriedade, durante o tempo em que se tornar preciso esse serviço
extraordinário, a juízo da mesma Intendência. (Cidade do Salvador, edição 17, 1899, pág. 2)
Este serviço não se concretizou propriamente em um serviço alternativo ao da
Companhia, uma vez que os carroceiros eram obrigados, por contrato, à compra da água nos
chafarizes, prevendo-se apenas o abastecimento em outros locais “a indicar pela
municipalidade” no caso de falta. Foi uma manobra que objetivou substituir o trabalho/lucro de
distribuição do aguadeiro, mais do que instalar uma alternativa ao serviço da Companhia.
Distribuída a cem réis o barril, os carroceiros municipais eram obrigados a fornecer no mínimo
dez meias pipas cheias durante o dia, das seis horas da manhã às seis da tarde, com as pipas
pintadas e numeradas com o dístico “serviço Municipal cem réis ao barril”. (Cidade do
Salvador, edição 17, 1899, pág. 2)
Figura 12 - Rua de S. Pedro, vendedor d´água com sua carroça.

Referência: (SAMPAIO, 2005, 105)


Recorrendo à contratação terceirizada de trabalhadores, estes foram acusados de
condulo com o aguadeiro, surgindo reclamações aos seus modos e eficiência, acusados de só
venderem aos antigos fregueses e nunca aos ricos que têm chafariz em casa. Quando
questionados, “exclama[vam] logo em tom arrogante e sinistro; vá chamar o seu freguez porque
não estou para massadas. Chame o seu antigo fornecedor. Esta é a resposta que recebem todos
os que são forçados a comprar agua do vehiculo municipal.” (Cidade do Salvador (BA), edição
49, 1899, pág. 1)
O domicilio continuou a não ser servido pelos carroceiros municipais e aguadeiros que
não se incomodam muito em lá ir, pelo que ficaram quase “condemnados a morrer de sede e a
privar-nos das abluções frequentes e indispensáveis n´um clima ardente, como o que ora
atravessamos.” (Cidade do Salvador (BA), edição 18, 1899, pág. 1)

72
Na rua da Poeira, e de longa data, a agua ali é uma verdadeira preciosidade, que
passa a correr como a caravana nos desertos, assim e de que não seja muito
cobiçada pelos sequiosos moradores que curtem as maiores decepções. Pelo
Caquende, da mesma forma, passam as poucas carroças em marcha acelerada e
surdo se torna o conductor que a ninguém atende. Na rua de Carlos Gomes as
poucas carroças que passam ou a única que transita, de letra D só vende água
por atacado á padaria, não sendo a ninguém mais permitido comprar. Na
freguesia do Pilar não há aguadeiros municipaes, e se os há, são tão raros que
ninguém mais ouve falar nelles; pelo que os vendedores particulares, fornecem
as cargas de agua de 1000 a 1600 isto mesmo sem ir aos terceiros andares! Os
moradores da rua do Ferraro, antigo Campo da Polvora, não obstante terem na
vizinhança o fiscal da intendência para esse serviço, são ainda mais caipôras do
que os das outras freguesias e ruas porque, tendo feito reclamações pessoaes a
esse funcionário, que como outros muitos, não se querem indispor, ainda nada
conseguiram. Até a rua da Independencia, a qual era percorrida por quatro
carroças diárias, já está por sua vez experimentando essas torturas. Que
dificuldade em obter um barril de água municipal aquelles que tendo fregueses
particulares por moléstia ou impedimento destes, são obrigados a chamar o
aguadeiro municipal. Desde sexta feira que os moradores dessa rua estão quase
a morrer a sede. (Cidade do Salvador (BA), edição 49, 1899, pág. 1)

Do relato que transcrevemos acima, fica claro que o panorama do abastecimento no final
do século XIX, apesar do investimento da Companhia do Queimado, da progressiva intervenção
do governo na gestão, se mantinha insuficiente para o abastecimento à população e atingia agora
também a elite, que reclamam energéticas providências, para o distrito de São Pedro e principais
ruas.

2.4 Encampamento
[...] dois mil e setecentos contos de reis (2.700:000$000), preço por quanto foi
contractada a requisição de todos os bens, direitos, domínios, posses, acções
concessões e dívidas activas pertencentes ao outorgante. (Contrato 1905)

Pela Lei n.º 719 de 30 de setembro de 1904, a Intendência Municipal foi autorizada a
encampar todo o serviço do Queimado. A proposta foi apresentada pelo intendente em nome
do Município da capital, passando para ele a administração do serviço. A partir deste momento
ele se encarregou de proceder à reforma e ampliação do serviço d´águas e à instalação da rede
de esgotos.
Com a anuência dos representantes de sete mil e cinquenta ações, ou setenta por cento
do capital social, realizou-se a transferência mediante indenização de 2 mil e 700 contos de réis:
“justo valor e no interesse coletivo de dotar a Capital com serviço de esgotos, necessidade de
há muito reclamada pela hygiene e grau de civilização”. No relatório da Companhia,
apresentado em abril de 1905, quando as 10.000 ações eram distribuídas por 146 acionistas,
sendo os principais acionistas o Banco da Bahia, com 400 ações, seguido pelo Banco Mercantil

73
da Bahia, com 324. A família Monteiro continuava representada, por cinco elementos e 96
ações, continuando Paulo Pereira Monteiro o maior acionista (32 ações).
2.4.1 Theodoro Sampaio: “the best Brazilian engineer in Mister Robert´s staff”.
O séc. XX deu grande destaque aos engenheiros higienistas que trabalharam nas
reformas urbanas em prol do sanitarismo, realizando a retificação de rios que causavam
enchentes, a drenagem dos pântanos para a destruição dos viveiros de insetos disseminadores
de enfermidades e a fiscalização sanitária dos habitantes.
Conjuntamente com os projetos de remodelação urbanística e as demolições que
dariam lugar à nova paisagem, os códigos sanitários elaborados nos inícios da
Republica se voltam contra as formas coletivas de moradia, configuradas como
centros irradiadores de epidemias, além de assegurar ao poder público o direito
de intervenção no cotidiano de seus moradores e nos moldes de sua
sobrevivência. (WISSENBACH, 1997, 105)
Enquanto Pereira Passos e Osvaldo Cruz iniciaram as reformas do Rio de Janeiro,
Saturnino de Brito (1905) o plano de saneamento de Santos, em Salvador é assinado o contrato
com Theodoro Sampaio para a melhoria do abastecimento d´água e instalação do sistema de
esgotos. As melhorias urbanas apenas serão consideradas por J. J. Seabra, a partir de 1912, num
processo descompassado de melhorias em que se desenvolverá a especificidade espacial da
cidade, de embelezamento, sem considerar as condições de infraestrutura básica, procurando o
progresso e prestígio perdido em relação às cidades supramencionadas.
Theodoro Sampaio era integrante do grupo da “Atenas Negra”, com acesso a estudos
nas universidades, com formação adequada para a ocupação dos cargos Imperiais, quando
“nenhum gabinete se organizava sem que à nossa Bahia [...] coubesse ou a presidência do
Conselho ou duas e mais pastas”.
Otimista diante do processo civilizatório e do desenvolvimento econômico em
curso num país de gigantescas dimensões e riqueza, grande parte delas ainda
por se conhecer, empenhou-se na busca por soluções que viabilizariam o Brasil
como nação, tanto no período monarquista como no republicano. E, apesar da
declarada preferência pelo Império, participou de forma entusiasmada de ambos
os regimes, porém sempre realista e crítico, características marcantes da sua
geração. (SANTOS, 2010, 26)
Nos estudos da sociedade baiana de Donald Pierson (1971), o autor apresenta Theodoro
Sampaio como um dos mais importantes cidadãos de cor baianos, um preto de destaque,
inserindo-o no grupo de mulatos que atingiram prestígio social, conseguindo ultrapassar a
barreira social da cor, condicionante que distinguia radicalmente a situação racial Brasileira da
existente nos Estados Unidos. Analisando as relações raciais em Salvador, sempre em relação
à realidade estadunidense que instituiu, entre 1876 e 1965, através das Leis Jim Crow o
apartamento dos colored people. Neste contexto Pierson considerou que em Salvador a

74
principal via de segregação se dava por via da classe, envolta em determinantes econômicos,
de instrução e culturais e não por via da cor.
No entanto, o autor admite uma sobreposição entre classe e raça, visível na distribuição
dos grupos nos espaços da cidade, o grau de conflito com base na cor ou na classe relativamente
diminuto. No Brasil, a teoria social dominante da miscigenação levou a que a discriminação
atuasse em outra layer, subterrânea, que apesar de não interditar legalmente a população negra,
o fez indiretamente, também através da exclusão às melhorias estruturais de habitação,
educação, saneamento. Para as elites, ao contrário, se focaram todo o tipo de melhoramentos,
como este trabalho insiste em demonstrar e denunciar.
Esta discriminação ocultada, não transcrita em papel, aceitou a inclusão/ascensão social
do mulato, mediante comprovação e adaptabilidade aos parâmetros comportamentais europeus.
Esta aceitação aconteceu em indivíduos, um por um e não como grupo32, não representando
essa aceitação uma generalidade aplicada a todos os mulatos.
Pierson apresenta Theorodo Sampaio como um engenheiro mulato que desfrutou em
vida reconhecimento profissional e intelectual, um exemplo de ascensão social conquistada
através da excepcional formação profissional de um filho bastardo, ou de um filho que não pôde
ou não quis tornar público o nome de seu pai por compreender a situação constrangedora que
seria a paternidade para ele e para o próprio pai. (SANTOS, 2010,31) Mas que, ainda assim,
formulou uma personagem social que permitiu a sua ascensão social, por via da competência
profissional, instrução, acumulação de recursos financeiros e adopção de hábitos e
comportamentos europeus.
Engenheiro Civil, Geógrafo, Cartógrafo, Historiador, Etnógrafo, Arquiteto e Urbanista,
este foi sumariamente Theodoro Sampaio, natural de Santo Amaro, nascido em 1855. Formado
engenheiro aos 21 anos, no Rio de Janeiro. Ademir Santos (2010) divide a sua carreira em três
fases, correspondentes a cada cidade em que prestou os seus serviços.
Na primeira fase, de 1878 a 1886, colaborou com a administração da Coroa, como
engenheiro do Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, integrando
a Comissão Hidráulica do Império, dirigida pelo engenheiro norte-americano William Milnor
Roberts, encarregado da obra da expansão do porto de Santos. Esta colaboração decorrerá sob
o embate da tradição norte Americana e a Brasileira. A exclusão Americana da participação do
mulato ao convício com o branco é relatada no “Apêndice A – Esboço autobiográfico de um
cidadão de côr”, quando Pierson publica a autobiografia de Theodoro Sampaio.

32
CFR. Thales de Azevedo, 1955ª:195 apud PIERSON, 1971, 369.
75
Neste espaço relata o que considera um caso de preconceito racial que sofreu no início
da sua carreira: “hoje bem raros no país”. Convidado a participar na Comissão Hidráulica, o
seu nome foi excluído da lista de integrantes, ato justificado por ser o único homem de cor na
luzida comitiva. O convite parecera chocante aos olhos dos técnicos Americanos que, segundo
se dizia, não apreciavam homens de cor. A discriminação foi ultrapassada com a intervenção
do Senador Viriato Medeiros. Posteriormente Theodoro conquistou a estima e amizade de Mr.
Roberts que julgou de justiça distingui-lo entre os seus auxiliares. (PIERSEN, 1971, 426/427)
Na segunda fase da sua carreira, 1886-1904, colaborou na Comissão Geográfica e
Geológica de São Paulo, onde se dedicou ao estudo da navegabilidade do rio Paranapanema e
à elaboração de cartografia. De 1890 a 1892 acompanha o processo de desapropriação da
Companhia da Cantareira de Águas e Esgotos, assumindo a responsabilidade pelo setor de
Serviços de Águas e Esgotos da Cidade de São Paulo, tornando-se especialista em legislação e
administração das obras de saneamento. Foi responsável pela construção da Caixa da Avenida,
que abasteceu a Av. Paulista e permitiu a abertura de novos bairros para as camadas sociais de
alta renda, ao norte e sobretudo ao sul da colina. (REIS, 2010, 66)
Deixando em 1903 os trabalhos de saneamento de S. Paulo, tornei à Bahia em
1904 para estudar e me propor em concorrencia pública para as obras de
saneamento da cidade; contratei em 19 de maio de 1905 essas obras com o
Município da Capital, realizando-as após quatro anos na parte relativa ao
serviço de abastecimento d´agua e tão-sómente uma têrça parte do serviço de
esgotos, pois que, à falta de recursos pecuniários por parte do Município, os
trabalhos tiveram que paralisar-se e suspensos ficaram por muitos anos até que,
em 1929 quando foi então rescindido o referido contrato de comum acôrdo entre
as partes contratantes. Terminou aí a minha atividade profissional. (PIERSON,
1971, 382)
A terceira fase, 1904 – 1937, é marcada pelo regresso à Bahia, sua terra natal, trazendo
o cabedal, espírito lúcido e a experiência adquirida em São Paulo. Em 1905 foi contratado pela
intendência Municipal de Salvador para projetar e implantar o serviço de abastecimento d´água
e coleta de esgoto, atuando também no Governo do Estado como engenheiro e urbanista.
A chegada de Theodoro Sampaio à Bahia coincide com a equação de três grandes
questões urbanas: a modernização do porto, o abastecimento d´água e a construção do sistema
de esgotos, especialidades que dominava. Entendendo a sociedade Baiana como decadente, em
decomposição, para ele o saneamento deveria começar pela habitação, através de
melhoramentos das condições sanitárias, fiscalização e vigilância dos costumes das classes
pobres, com forte ênfase nas questões morais.
Vinte e quatro anos após a encomenda do estudo de abastecimento d´água, a proposta é
finalmente apresentada. Diferentemente de São Paulo, na Bahia, Theodoro Sampaio assumiu-

76
se como profissional liberal e intelectual à frente da firma Theodoro Sampaio & Paes Leme. O
saneamento de Salvador foi a maior obra pública sob sua exclusiva responsabilidade técnica e
encontra-se entre as maiores do gênero, quando a população subia a 250.000 habitantes e quatro
quintos carecia de abastecimento.
No processo de contratação e instalação, o projeto sofreu disputas políticas e jurídicas
que se arrastaram por dezanove anos, incidindo as críticas às determinantes contratuais e,
principalmente, ao financiamento. O contrato de 1905, que previa entrega em 1910, foi
rescindido em 1929, por mútuo acordo, 24 anos após o início das obras, não implantado na sua
totalidade. Theodoro Sampaio contava então com 74 anos.
Para financiamento das obras, através da sua rede de contatos, o engenheiro propõe à
Municipalidade a realização de um empréstimo por intermédio da casa Lupton, da importância
de “600.000 libras esterlinas a typo de 80 e juro de 6% com amortizações annuaes de 2,590”.
Neste acordo, a casa Lupton exigia como garantia, novamente, a renda líquida do aluguel das
penas d´água, bem como a dos esgotos, que motiva o empréstimo. A casa Lupton dava
continuidade ao almejado pela Companhia do Queimado, embora sem o conhecimento técnico
especializado necessário, apenas capacidade de financiamento. Foca nas fontes de lucro certas
do serviço: o aluguel das penas d´água e, agora também, da taxa de esgoto.
O Município, já endividado e interessado em consolidar a dívida num único credor,
solicita que se negocie o aumento do empréstimo: de 1.000.000 esterlino, com redução razoável
nos juros. As condições deste empréstimo foram discutidas no Correio do Brazil (BA)”, que já
prevê o completo desastre com a aceitação das condicionantes propostas. Se privado das
receitas, como teria o Município capacidade para manter o serviço?
Contra o contrato gritava o bom senso e protestava a grande maioria do povo que
imediatamente previu que as rendas do Município não chegariam para satisfazer as exigências
do contrato e o resultado será finalmente ficar a Bahia, a pobre Bahia, desgraçada e sem
dinheiro, sem saneamento e comprometida! (Correio do Brazil (BA), 9/05/1905)
Em carta ao conselho Municipal, Theodoro Sampaio garante que a quantia do
empréstimo seria suficiente para as obras da rede de esgotos, construída com 5 mil contos de
réis, e se disponibiliza a negociar os preços das instalações.33 Depois de oitenta e seis dias de
lutas, de muita discussão e dos mais desencontrados alvitres, a dezessete de março de 1906,
“venceu a bôa razão”, que aprovou os estudos e projeto de abastecimento, orçado em
2.856:757$438 réis. O projeto exigia estudos do rio do Cobre e dos mananciais do Cabrito, com

33
Correio do Brazil (BA), 15/05/1905; 12/05/1905;
77
aquisição autorizada pelo Conselho para que se levasse mais longe o exame dos mananciais
para captação. (SAMPAIO, 1910, 10)
A Revista Polithechnica de São Paulo divulgou sob o título “Abastecimento de água da
cidade da Bahia” (1910), o relatório de Theodoro Sampaio, onde descreve a situação do
primitivo sistema de abastecimento do Queimado, para o qual propôs a sua reestruturação e o
aumento das reservas através do novo sistema da Bolandeira.
2.4.2 Remodelação do serviço do Queimado e nova captação.
Figura 13 – A reorganização e ampliação do sistema do Queimado, 1910.

Referência: SAMPAIO, 1910,1;

A remodelação do serviço do Queimado teve como principal objetivo a retirada da dupla


elevação d´água, que originava gastos em carvão para alimentação dos motores e que fornecia
apenas sete ou oito milhões de litros diários. Era urgente aumentar a quantidade d´água e
distribuí-la melhor. Nesta intenção foi estabelecida a divisão em distritos, por altitude,
prevendo-se o reforço de mananciais alimentados reciprocamente e a substituição da
canalização antiga, estragada e de diâmetro insuficiente. (SAMPAIO, 1910,11)
Theodoro Sampaio distingue o abastecimento por zonas baixa, média e alta. As zonas
médias e baixas eram abastecidas pelo antigo serviço, enquanto a nova adução, que utilizava os
mais modernos equipamentos, abasteceria a zona alta da capital. As três represas construídas
pela Companhia (Queimado, Matta Escura e Cobre) foram destinadas a servir, por simples
gravidade, às zonas baixas e médias.
Estas iniciativas inseridas no antigo sistema, alteraram substancialmente a dinâmica do
Queimado, que verá agora a sua importância descentralizada, diminuída. Nesta subdivisão
técnica, justificada por parâmetros de altitude topográfica (baixa de 0 a 25, média de 25 a 50 e
alta 50≤), encontramos exceções importantes, que a perspectiva de Pierson (1971) ajuda a

78
entender: a inclusão dos bairros da Barra e Rio Vermelho na classificação de zona alta, uma
vez que, sabemos, de acordo com a altitude geográfica, seriam classificados como zona baixa,
litorânea. Habitados pela elite, por excepção, se garantiu aos bairros o usufruto da nova
captação e tubulação, demonstrando a interferência da componente social na técnica.
Theodoro Sampaio retirava da represa do Queimado a importância de grande dique,
receptáculo de todas as vertentes, que deixa de receber as águas da Matta Escura e do Cobre,
abastecendo unicamente à área comercial e portuária da zona baixa. A represa do Prata foi
destinada a abastecer, por gravidade, os bairros da Calçada, Mares, Bomfim, Bôa Viagem e
Itapagipe, desviadas na estação do Retiro. A represa da Matta Escura ao abastecimento da zona
média, descendo as águas por simples gravidade até a estação de bombas do Retiro, onde eram
aspiradas e elevadas para o reservatório antigo da Cruz do Cosme, evitando mistura no
Queimado. Realizou-se uma reforma radical na estação do Retiro, se conservando a antiga
linha, agora auxiliar, atuando como estação de socorro para situações de emergência para o
abastecimento da cidade baixa e média, quando se utilizaria a maquinaria de suspensão de águas
do Queimado. (SAMPAIO, 1910, 18)

Nova captação
O engenheiro hydraulico, nesta parte do paiz, não se deve contentrar com os
pequenos volumes d´agua corrente que os rios, ainda mesmo os de longo curso,
guardam em seus leitos, quasi de todo seccos na estação quente. O criterio a
seguir não é o do mínimo das aguas na secca, mas o do maximo na estação
chuvosa. O estudo do regimem das aguas, nesta parte to paiz, deve visar o
represamento, a accumulação das aguas em reprezas ou açudes da capacidade
requerida para o fim que se tem em vista. (SAMPAIO, 1910, 24)
Os trabalhos de prospecção de lugares de captação começaram a 21 de junho de 1905,
com o levantamento topográfico dos mananciais da bacia do rio das Pedras, Cascão, Saboeiro,
Cachoeirinha e Pituassú34, com a escolha do local mais adequado à construção das barragens.
(SAMPAIO, 1910, 24)
Em linhas gerais, o plano do novo abastecimento consistiu na captação e
armazenamento das águas em novas represas, fazendo-as descer por gravidade em canalização
de ferro fundido n´uma estação central, na Bolandeira, na cota 4, onde se construíram bacias de
filtração e reservatórios. Bombas Worthington elevam as águas, depois de filtradas, para a torre
metálica no alto da Duna Grande, distante 1490 metros, d´onde descem por gravidade, através

34
O jornal A Manhã (BA) 18/11/1920, considerou a represa de Pituassúa mais importante, a mais bela,
a formosa bacia, que acumula um volume d´água suficiente para abastecer a cidade durante um período
de cinco meses sem chuva.
79
de uma linha adutora de 18” de diâmetro, até os novos reservatórios metálicos da Cruz do
Cosme. Em rede autônoma, a água era então distribuída na zona alta. (SAMPAIO, 1910, 30)
Figura 14 - Esquema da nova captação ramificada ao esquema primário.

Referência: (BRITO, 1928, 107);

Ao contrário da situação das antigas represas, grandes extensões de terras foram


desapropriadas pelo Município para proteção dos mananciais, sendo cuidadosamente limpas
das matérias orgânicas existentes e protegidas as suas orlas numa largura de 2 metros.
(SAMPAIO, 1910, 28)
Na Bolandeira se instalou a estação central, no meio de um terreno amplo, bem nivelado,
a 500 metros distante do mar e em situação aprazível, com fácil acesso para as comunicações
por terra e mar, recebendo com facilidade o combustível indispensável às máquinas.
Satisfazendo também as condições de cota de nível favorável à adução das águas das represas
por gravidade, perto do ponto culminante da Duna Grande, na cota 71,28, diminuindo a
extensão das linhas de recalque e a força das bombas. (SAMPAIO, 1910, 30/31)
Figura 15 - Açude do Cascão e Saboeiro.

Referência: (PACHECO, 1924, 19/18)


Figura 16 - Represa do Pituassú, 1910; Represa do Cachoeirinha, 1910.;

80
Referência: (SAMPAIO, 1910, 31)
Figura 17 - Estação da Bolandeira; Reservatórios Metálicos à Cruz do Cosme , 1910; Torre metálica
da Duna Grande, 1910;

Referência: A Tarde (BA), 1915; (SAMPAIO, 1910, 21)


Os princípios de hidráulica foram aplicados na torre metálica, que tem a forma de um
tronco piramidal quadrangular, sustentada por quatro colunas de ferro fundido. Nesta estrutura
a água sobe, impelida por bombas. No alto dessa torre fica um pequeno reservatório de ferro de
2m3 que facilita a passagem das águas por simples gravidade para os reservatórios metálicos da
Cruz do Cosme, erguidos sobre possantes armações de ferro, à cota 98, descendo novamente as
águas por gravidade para o abastecimento da rede alta, em sistema independente das outras
redes.
Figura 18 – Reservatório da Cruz do Cosme.

81
Referência: Postal Litho-Typ. Almeida, 1911, http://www.salvador-antiga.com, consultado a
27/07/2019.

Regularizado convenientemente o serviço das penas d´água, foi prevista a severa


fiscalização; eliminados os abusos e grandes desperdícios que nesse serviço se observavam.
Considerou-se normalizado todo o sistema. A adução da água ficava garantida só com o
trabalho diário das duas bombas da Bolandeira. Sete reprezas de boa capacidade estavam em
funcionamento, com a possibilidade do recurso a cinco bombas, isoladas ou em conjunto, e com
novas canalizações de ferro. (SAMPAIO, 1910, 33)
Com satisfação, podemos hoje affirmar que o problema do abastecimento
d´agua da cidade da Bahia está resolvido e que essa solução jamais seria
negativa por deficiencia de mananciaes [...] Encarado o problema da agua de
accordo com as condições geologicas e meteorologicas, dominantes na Bahia,
a solução delle não só está conseguida, como não mais poderá offerecer
difficuldades serias quanto ao seu desenvolvimento. (SAMPAIO, 1910, 36/37)
Apesar das aparentes condições propícias e o melhoramento da infraestrutura, as obras
acabaram por resultar em custos maiores do que os previstos, por efeito da alta considerável do
preço do ferro no estrangeiro, e da oscilação da taxa de câmbio, que justificam o facto de apenas
1/3 do serviço de esgoto proposto ter sido instalado, dando preferência às condições de
quantidade d´água suficiente para a posterior instalação do serviço. (SAMPAIO, 1910, 10)
2.5 Pierson e a coincidência social da nova distribuição de abastecimento.
A fisiografia da região não deixou de ter importância na vida cultural da Bahia;
porque, em geral, a distribuição da população por classes, e até certo ponto por
grupos raciais, segue de perto a configuração da terra. (PIERSON, 1971, 65)

Nos estudos de Donald Pierson (1971), “Brancos e Prêtos na Bahia: um estudo de


contato social”, a respeito da situação racial da década de 30, apoiando-se grandemente no
relato de Darwin de Salvador, o autor descreve a cidade baixa, onde se localizavam o porto com
a sua alfândega, armazéns, escritórios, consulados, bancos, correio, sede da associação

82
comercial e a maioria de lojas de artigos masculinos. Sobre o promontório, na cidade alta,
estendendo-se para os subúrbios, se localizavam os edifícios públicos, a maioria das igrejas,
hotéis, cinemas, nas principais praças, e as áreas residenciais.
Descrevendo o planalto em altos, declives relativamente fortes, e vales estreitos, onde
se encontram as ruas principais, as mais importantes linhas de transportes, considerou serem
estes os lugares mais convenientes, confortáveis e saudáveis para residência e, por
consequência, mais desejáveis. (PIERSON, 1971, 99) Aí se encontravam os edifícios mais
modernos e ricos, as casas das classes “superiores”, descendente da velha aristocracia, que
detinha a propriedade de 3.855 telefones, 1.028 automóveis, rádios e bibliotecas particulares da
cidade, diferindo em nível econômico, na educação e até certo ponto nos costumes dos
habitantes, que diferem grandemente dos que residem nos altos. (PIERSON, 1971, 70)
Segundo Pierson, os vales, em contraste, eram lugares de residência menos confortáveis,
menos saudáveis e menos convenientes, por consequência mais baratos. Sem ruas, calçamento,
aí viviam as classes “inferiores”. As habitações, na maior parte, eram simples casebres
constituídos por uma armação de madeira coberta de barro, que considerava mais saudáveis e
mais agradáveis do que os slums das cidades industriais europeias ou norte-americanas.
(PIERSON, 1971, 99/100)
Reconhecendo o padrão de distribuição da sociedade na cidade, segundo um padrão
bastante simples, referência pequenas modificações, exceções, exemplificadas pelo bairro da
Barra. Embora localizado em área baixa, litoral: situado à beira-mar, em área baixa, bem
ventilado pela refrescante brisa marítima, habitado pela elite. (PIERSON, 1971, 99/100)
Nas áreas que denominou “intermédias”, se localizavam as habitações dos que estavam
saindo das classes “inferiores”, que encontravam as habitações das classes “superiores”, onde
as partes escuras e claras da população se encontram e se misturavam, em uma íntima
proximidade residencial, nomeando por exemplo, a Avenida Sete de Setembro. (PIERSON,
1937, 106) A existência desta zona intermediária justificou que o autor considerasse que a base
da organização social e territorial se distribuída mediante preceitos “antes classe que raça”.
(PIERSON, 1971, 109)
Considera no entanto a barreira social existente entre “os pobres” dos vales, e “os ricos”
dos altos, grande e difícil de transpor, produzindo áreas residenciais contrastantes. (PIERSEN,
1937, 103),
Em resumo, pode dizer-se que, em geral, os brancos e os mestiços mais claros
ocupavam os altos da cidade, que eram mais confortáveis, saudáves e cômodos,
onde, portanto, os imóveis eram mais caros; ao passo que os prêtos e os mestiços
mais escuros residiam geralmente nas áreas baixas, menos convenientes e

83
saudáveis, bem como nas áreas afastadas, menos acessíveis, onde, portanto, os
imoveis eram mais baratos. Em outras palavras, os altos dos “ricos”
correspondiam, em geral, às áreas residenciais dos brancos e dos mestiços mais
claros, enquanto que os vales dos pobres e as regiões adjacentes correspondiam
em grande parte, às áreas residenciais da parte mais escura da população.
(PIERSON, 1971, 105)
Para Pierson, a segregação de classe coincide com a distribuição racial, em grande parte
justificada e previsível, dadas as circunstâncias e condições da fixação dos negros e a libertação
relativamente recente da condição servil, considerando que não existe na Bahia, ao que parece,
um esforço proposital de segregar as raças afim de manter distinções de casta, como em várias
partes dos Estados Unidos. A possibilidade da ascensão social do mulato afastava a Bahia da
situação Norte-Americana.
No entanto, apesar da optimista conclusão de Pierson, é evidente a manipulação de
segregação social baseada na raça quando justapomos os trabalhos de Pierson e Theodoro
Sampaio. Ao diferenciar o abastecimento das áreas baixa, média e alta, segundo os mesmos
parâmetros da interpretação social de Pierson, altimétricos, ambos reconhecem a distribuição
assimétrica racial da cidade, onde as áreas altas são ocupada pela elite branca “superior”,
usufruindo da nova rede de abastecimento e as “baixas e médias”, ocupadas pela população
“inferior”, usufruindo da infraestrutura antiga apenas se tiverem condições de pagar por ela,
fazendo coincidir a estratégia higiotécnica com a distribuição racial.
A estratificação racial foi acentuada pela inclusão de excepções aos parâmetros
altimétricos do serviço, que possibilitaram o usufruto de melhores condições de abastecimento
a Bairros que, segundo a determinação técnica, estariam sujeitos ao abastecimento antigo, como
o caso apresentado da Barra e Rio Vermelho, incluídos no regime especial como área alta, para
abastecer segundo a nova adução a privilegiada elite.
Continuando a não chegar a todos, o importante serviço continuará ao longo do séc. XX,
sujeito a disputas, tensões e enredos outros, que serão analisados em uma próxima etapa, sob o
pretexto de que:
[...] o importante serviço que deve ser municipalisado, para que a nossa
população tenha agua que a não envenene, tenha agua que não seja a morte
canalisada, a conductora sombria de todas essas infecções intestinaes que tanto
avolumam os nossos registos fúnebres [...] O povo da Bahia quer agua e agua
que o não envenene, agua que lhe não custe este preço fabuloso e único de doze
mil réis por pena... Agua que não nos chegue em casa carregada de detritos,
pesada de impurezas, como uma visita sorrateira da morte. (Gazeta de Noticias
(BA), 27/09/1912)

84
Conclusão
Neste capítulo analisámos o comportamento contratual da Companhia com o Governo,
apresentando as condições do seu surgimento, localização e atuação. Compreendemos que a
sua atividade foi marcada pela técnica, viabilidade financeira e articulação com o Governo,
sempre em negociação, cada parte protegendo os seus interesses. Gradualmente a
Municipalidade tentou reverter a situação do privilégio de venda da Companhia, que fazia a
cidade refém do serviço, enfrentando resistência da população.
Apesar das sucessivas negociações, o serviço só melhorava mediante o adiantamento
financeiro do governo e empréstimo estrangeiro. O constante aumento da demanda d´água pela
distribuição domiciliar e nos chafarizes agravou o abastecimento, face os sucessivos períodos
de seca. Do estado calamitoso de escassez d´água, da pretensão de lucro da Companhia e da
demorada resposta da encomenda do estudo de alargamento da captação a Theodoro Sampaio,
decorreram esquemas de racionamento que afetaram os mais fortes, da cidade alta, que
obrigaram à formação de um sistema de abastecimento por carroças que apenas pretendeu
retirar o lucro do distribuidor, Aguadeiro, continuando a água a ser comprada à Companhia.
Dos avultados investimentos decorridos na década de 80, decorreu a proposta de
aumento do preço da pena d´água, que originou graves acusações e à equação do encampamento
da Companhia. Iniciando a negociação das condições do encampamento, a Companhia negou-
se a abrir mão das penas domiciliares, aceitando, no entanto, o encampamento dos chafarizes,
na intenção Municipal de dar água aos pobres.
O governo interferiu no serviço de abastecimento, em quatro principais momentos. No
primeiro momento (1853), mediante a anuência de formação da companhia, aceitou a distinção
dos espaços de venda (chafariz vs casas de vendagem vs penas domiciliares). Num segundo
momento (1870) incentiva a construção do acordado no prévio contrato, que apenas será
consolidado em 1880, com o aumento do prazo para usufruto dos serviços. Mediante
empréstimo incentiva a Companhia ao alargamento do serviço. Na década de 90, a solicitação
do aumento da tarifa doméstica e a escassez d´água constituirá um serviço de venda pelas ruas,
comprando água ao Queimado, que nada mais pretendeu do que regularizar a profissão do
aguadeiro.
Theodoro Sampaio, filho mulato da Bahia, apresenta a sua proposta em 1904. A
Companhia foi encampada no ano seguinte, e o serviço entregue à responsabilidade do
Município. As obras de melhoramentos e ampliação do sistema dividiu a cidade em três
distintas zonas topográficas, que corresponderam à distribuição geográfica racial da cidade,
como demonstrou Pierson.

85
Theodoro Sampaio modelou o sistema de distribuição para que o novo sistema
abastecesse a cidade alta, e o primitivo, as zonas médias e baixas, (comércio e porto) agindo
por simples gravidade, recebendo reforço por meio das bombas do Retiro, quando necessário.
A segunda represa, a mais alta, no córrego do Prata, foi destinada para abastecer por gravidade
a outra parte da cidade baixa, correspondente aos bairros da Calçada, Mares, Bomfim, Bôa
Viagem e Itapagipe. O novo sistema, captado nas represas Cascão, Saboeiro, Cachoeirinha e
Pituassú era recolhido na Bolandeira e aspirado para os reservatórios metálicos da Cruz do
Cosme, em sistema separado, abastecendo a cidade alta, numa articulação que mais uma vez
beneficiaria os mais poderosos, para os quais regimes de excepção garantiam o serviço.
Ao retirar a centralidade da represa do Queimado para o abastecimento, passando a
receber as águas do Retiro diretamente nos reservatórios metálicos, se inicia o progressivo
processo de abandono e degradação da represa.

Referências:
Jornais:

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Correio Mercantil, e Instructivo, Político, Almanack administrativo, Commercial e


Universal (RJ) edição 42, pág. 1, 1865; edição Industrial (BA) edição 1 pág. 231, 1854; edição
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Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino do Governo (BA)


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Estudantes enviados à Europa, conforme as Leis 138 e 145, 1846, pág. 8;

86
Fala do Presidente da Província Antonio Ignacio de Azevedo, edição 1, 1847, pág. 25.
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Fala do Presidente da Província Doutro Alvaro Tibério de Moncorvo e Lima, edição 01, 1856;
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Fala do Desembargador João Antonio Henriques na 19º legislatura da Assembleia Provincial da Bahia,
edição 1, pág. 5/126, 1/03/1872; Fala do Vice-Presidente Almeida Couto, edição 1, 1873, pág.
17;
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Fala do Presidente Luiz Antonio Silva Nunes, edição 1, 1876, pág. 150.
Fala do Presidente da Província Silva Nunes, edição 1, 1876, pág. 150; edição 1, 1877, pág. 30;
Fala com que abriu a sessão da 23.a Assembleia Legislativa o Presidente Antonio de Araújo de Aragão
Bulcão, edição 1, 1880, pág. 75/76.
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Relatórios dos Presidentes dos Estados Brasileiros (BA)


Relatório da Inspectoria de Hygiene no decurso do anno de 1894, edição 1, 1895;

Acervo da Bibliotheca Gonçalo Moniz - Faculdade de Medicina da Bahia


VIANNA, Augusto César. Analyse bacteriológica das aguas do Queimado: feita a pedido da direção da
Companhia. Bahia: Typ. do Diario da Bahia, 1897.

IPAC
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IPHAN - Arquivo Noronha Santos;


Processo de tombamento n.º 1.289-T-89, S.P.H.A.N./C.R.D. Parque e Fonte do Queimado, Salvador –
Bahia:
Escritura de transferência de domínio, posses, direito, acções e responsabilidades. Secção de dividas,
paga e quitações [...] cedente a Companhia do Queimado e como comprador o Município da
Capital do Estado da Bahia, 03 de agosto 1966.
Estatutos do Centro de Memória da Água na Bahia “Memória da Água”, publicado no Diário Oficial do
Município de 18/19 de junho de 1989.
Anteprojeto da Fundação Memória da Água, Empresa de Águas e Saneamento: Parque do Queimado,
elaboração Astor Lima; documentação, Ana Maria Neves e Suzana Mary Barros Presídio,
Salvador, EMBASA, 1988.
Projeto de “Restauro e Reutilização da Fonte do Queimado”, IPAC – Secretaria da Indústria e Comércio
do Estado da Bahia – Agosto 1982;

Arquivo Público do Estado da Bahia


AMCS. Leis e Resoluções da Assembleia Legislativa – 1848;
Documento. Archivo publico – Cartas do Senado para S. Magestade – 1746, página 153, 154 e 155,
aberto por Jorge Efamelo de Sá;
AHU-Baía, cx. 112, doc. 52 e 62;
Presidência da Província – Série: Saúde; Lazaretos – 1850-1889. Secção de Arquivo Colonial e
Provincial; maço: 5385 [Documento original]

87
Instituto Histórico e Geográfico da Bahia,
BRITO, Saturnino. Saneamento da Bahia (Cidade do Salvador) 1926. Relatório dos projectos por
Saturnino de Brito. Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1928.
acervo Theodoro Sampaio
A rua (saneamento de Salvador) REF. T506D13a.
Parecer do Vereador Dr. Inocêncio Marques de Araújo Góes proponto a Câmara representar ao Governo
da Província sobre a conveniência de abastecimento d´agua a população nos chafarizes,
torneiras públicas e demais privilégios com relação à colocação obrigatória de penas d´agua.
CX17D014;

Fundação Gregório de Matos


Fundo da Câmara Municipal de Salvador, secção secretária, série Companhia do Queimado
Contrato da companhia do Queimado de 17/01/1853;
Contrato da companhia do Queimado de 1870.
Acervo de noticias das fontes e chafarizes de Salvador.
Relatório da Direcção da Companhia do Queimado e parecer da commissão de contas relativo ao 31.º
semestre apresentado em assembleia geral de 26 de março de 1874.
Contracto para as obras de saneamento e abastecimento da capital do estado da Bahia.

Teses acadêmicas
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CEAB – UFBA, 1998.
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Filosofia e Ciências Humanas, 2006.
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FERREIRA, Vicente Vieira; Higiene, Moléstia e Medicina, Bahia, Typ. E Encadernação da Empreza
Editora, 1899.

88
Capítulo 3

A ciência na descrição do serviço e na interpretação dos dados.


18.º A Companhia conservará as suas obras sempre em bom estado, as aguas
limpas e potaveis e no caso de falta poderão os reparos ser feitos pela Provincia,
por conta da Companhia e esta sujeita a uma multa de um conto de reis todas as
vezes que seja preciso lançar mão d´este meio. (Contrato de 17/01/1853)
Embora o contrato de 1853 determinasse a distribuição de águas limpas e potáveis,
prevendo multa para o descumprimento, a dúvida científica relativa aos requisitos da qualidade
da água inviabilizou a comprovação quer da sua potabilidade ou impureza, uma vez que ainda
decorria, na segunda metade do séc. XIX, o processo do reconhecimento científico das técnicas
de análise química.
Das aproximações ao estudo da qualidade da água decorreram controvérsias e
divergências de interpretação científica, que contou com a preponderante posição da opinião
pública, de base empírica, que denunciava frequentemente nos jornais a má qualidade da água
servida, contestando o resultado dos trabalhos dos homens da ciência, descritos por Lília
Schwarcz (1993) como um misto de cientistas e políticos, pesquisadores e literados, acadêmicos
e missionários. Apesar de representarem a autoridade, atuando como ícones de civilidade, os
pareceres científicos foram confrontados pela experiência empírica, por aqueles que,
efetivamente, consumiam a água do Queimado.
Neste momento, apresentamos o processo do gradual reconhecimento científico da
água, iniciado com o reconhecimento dos componentes físicos (cor, sabor, peso, cheiro,
frescura) evoluindo para identificação dos elementos químicos da sua composição, e
finalmente, bacteriológicos, que identificou os germens prejudiciais à saúde, que
inviabilizariam qualquer bom resultado dos parâmetros anteriores. As disputas de interpretação
preencheram o espaço da dúvida científica por posições ideológicas, ataques pessoais e
engajamentos políticos.
A Faculdade de Medicina da Bahia, no período de 1853 a 1899, produziu e discutiu
resultados e processos de análise da qualidade da água, acompanhando descrições de âmbito
cultural e urbano do serviço, referindo processos de captação e tratamento, condições sanitárias
dos estabelecimentos, que foram fundamentais para o resgate e reconstituição da gestão do
Queimado. Analisando o envolvimento científico e político dos médicos e estudantes,
buscamos reconhecer o embasamento teórico, técnico e social em que decorreu a distribuição
d´água à cidade: necessidade primeira da higiene urbana.
Segundo Afrânio Peixoto (1926), a Higiene como disciplina médica começou a ser
oficialmente lecionada no Brasil a partir de 1813, desenvolvendo a especialidade do médico
Higienista: um especialista que adicionava ao papel tradicional do médico um fim mais elevado,
que desenvolveu um programa que resumia todas as aspirações da humanidade, todas as suas

90
tendências para o aperfeiçoamento continuo e indefinido, com vista ao progresso. O saneamento
físico e moral do povo constituía o vigos, a felicidade e a principal riqueza da nação. (Cidade
do Salvador (BA), edição 397, 1898, pág. 1)
O curso de Medicina, com quinze disciplinas, lecionava “Higiene e História da
Medicina, Patologia, Ética e Terapeutica” no último ano. A partir de 1832 a Higiene foi dividida
em três grandes ramos, todos de grande importância: higiene geral, especial e publica. O
primeiro, estudou a influência dos diversos meios sobre a saúde do homem, considerado como
ser abstrato; o segundo, a influência sobre a saúde do homem em condições particulares,
resultando em estudos relativos à higiene infantil, escolar, rural, urbana, industrial, militar,
carcerária, hospitalar, e o terceiro ocupou-se do estudo das instituições e leis de higiene para
cada ação, e também os internacionais. (Cidade do Salvador (BA), edição 404, 1898, pág. 1)
A partir da Lei de 3 de outubro de 1832, a FAMEB construiu um novo caminho de
pesquisas, com viés culturalista, com a especialização dos seus docentes em Filosofia,
Literatura, História Natural e da Civilização produzindo “theses doutorais”1 que apresentam
quadros de época, não somente do ponto de vista historiográfico, mas espacial, político,
econômico e, sobretudo, ideológico. Estas representações permitem expor as polarizações e
dinâmicas que orientaram os comportamentos coletivos dos agentes científicos responsáveis
por tentar impor um padrão civilizatório novo, ou velho.
A participação dos lentes da FAMEB nas instituições de higiene de Salvador, nos
Conselhos de Salubridade Pública, onde foram incumbidos de interpor pareceres relativos à
salubridade geral e assistência pública, apresentando propostas com o fim de melhorar estes
serviços, tinha o fim de aconselhar as autoridades administrativas e policiais, sobretudo no que
pertencia à saúde pública. Por muito tempo prestaram excelentes serviços, examinando e
resolvendo as questões relativas à higiene. (Gazeta Médica da Bahia (BA), 1889, p. 344)
O controlo por meio de análises, segundo o Dr. José de Góes Sequeira, em 1872 já havia
sido solicitado por três vezes e realizadas por diferentes peritos. Todos consideram as águas
potáveis e de boa qualidade. O farmacêutico André Aducci foi o primeiro a realizar a análise

1
“these doutoral”: “Tecnicamente o termo these doutoral não é aplicado no mesmo sentido que
acionamos hoje, na academia. These doutoral, tal qual os cientistas baianos a designam no século XIX
até meados do século XX, refere-se a uma espécie de trabalho monográfico que era defendido no final
do Curso de Sciências Médico Cirúrgicas. Uma outra diferença importante reside no fato da exigência
do acadêmico em Sciências Médico Cirúrgicas enunciar uma “ideia nova” – a these – para cada uma
das cadeiras/disciplinas que compunham o curso, porém, sem assumir enquanto obrigatória, a
necessidade de desenvolvê-las. As theses doutorais se limitavam a apresentação de um enunciado novo
e só isso. [...] Sob o ponto de vista da análise, as theses doutorais aparecem enquanto documentos,
produto das determinações históricas da época, da sociedade que as produziram.” (SÁ e MAGALHÃES,
2016, 142)
91
em 1853, por solicitação do Barão de Cotegipe, e o resultado não desmentiu o grande apreço
de que já gozavam aquelas águas. (Gazeta Medica da Bahia (BA), 29/02/1872, pág. 201/203)
Três anos mais tarde, a análise do farmacêutico Manoel Rodrigues da Silva, chefiado
por Góes Sequeira, apresenta a principal problemática das discussões: a incontestável
constatação de que em algumas ocasiões as águas dos chafarizes apresentam sobrecarga de
matérias estranhas. Góes Sequeira considerava que as matérias minerais e orgânicas
encontradas eram em tão pequena quantidade que a sua presença não inviabiliza a sua
potabilidade. Julgava desnecessário qualquer nova analise n´este sentido, apontando motivos
acidentais para a presença de matérias estranhas:

[...] se em alguns chafarizes a agua apresenta-se então perturbada era isso


devido á circunstancias meramente accidentaes que suponho dependião
principalmente da falta de lavagem em épocas regulares dos respetivos
reservatórios, e dos tubos de canalização, e das grandes obras, que a Companhia
em pouco tempo, e com o fito de m.s vantajosamente abastecer á cidade,
empreendeu e realisou. (SEQUEIRA, 1865,162)
Uma terceira análise, solicitada em 1864 pelo Governo Provincial, que nomeou uma
comissão sob a responsabilidade do Dr. Virgílio Climaco Damásio, publicou o que foi
considerado um trabalho digno da inteligência, ilustração e independência do seu autor. O
trabalho, considerava as águas das vertentes do Queimado ótimas, mas:

[...] achão-se ellas misturadas com aguas de uma represa que existe junto ao
estabelecimento do Queimado, as quaes tornão completamente importáveis as
que actualmente fornece a companhia. Presentemente só bebem delas aquelles
indivíduos que absolutamente não podem dar 20 rs. por um barril de agua da
roça do Sr. Lacerda, no Tororó, que a vende em grande porção. (Correio
Mercantil, e Instructivo, Político, Universal (RJ), edição 42, 1865, pág. 1)

A evidente ineficácia dos filtros de lã instalados em 1853, que não produzirão os


resultados esperados, mantinham as águas turvas, continuando a ser aconselhado melhorias no
sistema de filtração. As conclusões do relatório, que desacreditavam a qualidade da água, foram
sancionadas pela opinião pública e compatibilizaram finalmente a opinião dos consumidores
que liam indignados os escritos desses homens e os da companhia que procuram demonstrar a
pureza das águas, que eles mesmos não bebem, e que nos dias chuvosos, ou de grande calor,
não servem nem para banhos. (Correio Mercantil, e Instructivo, Político, Universal (RJ), edição
42, 1865, pág. 1)
Como já se esperava, e mesmo já se ameaçava, a divulgação do relatório Dr. Virgílio
Damásio, denunciando a condição completamente importável da água acirrou os protestos
contra o Queimado. A opinião pública apoiou Virgílio Damásio que “arrastando os ódios de

92
uma companhia tão poderosa e ousada, acaba de explicar a diferença e deterioração que de certo
tempo para cá apresentão as aguas que abastecem a província.” A reação dos defensores do
Queimado não se fez esperar nas gazetas da cidade: com muito dinheiro a Companhia diz que
“há-de esmagar o Dr. Virgílio”:

O Dr. Virgílio Climaco Damazio, opositor da faculdade de medicina, é o


campeão contra a companhia, porque deseja assim fazer direito a uma nomeação
mais elevada para a mesma faculdade; mas tem sido de tal modo batido
scientificamente que deve estar muito arrependido de ter assim arriscado uma
reputação que se ia creando através das suas pretenções. Para a companhia o
triumpho é completo. (Jornal do Commercio (BA), edição 41, 1865, pág. 1)
A 20 de fevereiro de 1865, Góes Sequeira, empossado no cargo de inspetor da Saúde
Pública, remeteu ao Presidente da Província, Luiz Antonio Barboza de Almeida cópia do
relatório do estado sanitário da Província2. No ponto IV menciona diretamente a aventurada
opinião popular que considerava as águas do Queimado de má natureza, - chegando-se mesmo
a afirmar e propalar que eram lamacentas, pútridas e fétidas, e que só mediante o emprego de
filtros poderiam tornar-se potáveis. Em clara alusão ao trabalho de Virgílio Damásio, questiona
a eficácia do único meio aconselhado por aqueles que propalavam tais ideias, considerando a
medida por demais insuficiente, uma vez que os filtros não transformavam águas
essencialmente insalubres ou modificavam os seus principais constituintes. A filtração,
podendo mudar a cor de uma água turva, tornando-a clara, límpida, desembaraçando-a de certas
matérias que existem em suspensão, não a isenta de outras substâncias que podem estar
dissolvidas, sugerindo a necessidade de um estudo químico para determinar a real condição.
“Se as condições physicas, chimicas, e hygienicas revelão, que as vertentes do
Queimado são excelentes, será mister submetel-as á filtração antes de serem expostas ao
consumo publico?”, questionava o Dr. Góes Sequeira, com uma reação que propõe a ingestão
de água turva, que só pode ser entendida como resposta à instigação de Virgílio Damásio.
(SEQUEIRA, 1872, 163)
Convicta da qualidade das suas águas, a Companhia mantinha o discurso que assumia
ter em seu abono a aceitação do público, comprovada pelo aumento do consumo, que subia à
maior escala. A qualidade estava comprovada nos exames anteriormente elaborados por

2
Relatório acerca do Estado Sanitário da Província da Bahia durante o ano de 1864, elaborado pelo
Inspector da Saúde Pública e enviado ao Presidente da Junta Central de Higiene Pública, sendo remetido,
mediante cópia, ao Presidente da Província. 25/02/1872 GMBahia 2004;74:2(Jul-Dez):157-167.
[Documento original] Arquivo Público da Bahia - Presidência da Província – Série: Saúde; Lazaretos –
1850-1889. Secção de Arquivo Colonial e Provincial; maço: 5385.

93
diferentes autoridades e pessoas habilitadas, que falaram muito alto em favor da qualidade das
águas. Para provar boa-fé solicitou nova análise ao Governo Provincial, que reafirmou as águas
das vertentes do Queimado como excelentes, e que independente do emprego de filtros, podiam
ser usadas. Sequeira mantém a opinião favorável à qualidade, considerando agora a necessidade
de melhoramentos nos locais de captação, de modo que o manancial se conserve mais
resguardado, para que as águas pluviais não a inquinem com matérias orgânicas.
Não escondendo o seu apreço pela Companhia, Góes Sequeira adjetiva-a de previdente
e interessada em firmar solidamente os seus créditos e em conquistar a estima e reconhecimento
público. (SEQUEIRA, 1865, 164/165) Propõe à Província que adote a estratégia inglesa de
melhorias urbanas que concentrou em uma única companhia, na Water Supply, drainage and
towns improvement company o abastecimento d´água, o secamento de pântanos e saneamento
das localidades, indo ao encontro dos objetivos iniciais do Queimado em alargar a oferta dos
serviços ao asseio da cidade, nivelamento de praças, construção de ruas. (Correio Mercantil, e
Instructivo, Político, Universal (RJ), edição 150, 1865, pág. 1) A centralização dos serviços em
uma só entidade privada, era uma pretensão vermelha que não foi conseguida, motivo que pode
explicar a sua progressiva saída do mercado.
Sujeitos a desconsiderações partidárias, ofensas pessoais e desconsideradoras,
verdadeiras batalhas científicas foram travadas entre renomados nomes da FAMEB, com
principais protagonistas os Drs. Virgílio Climaco Damásio (1864), Rozendo Guimarães (1871),
José de Góes Sequeira (1872), Domingos Monteiro (1897), Manoel Joaquim Saraiva (1897),
Augusto César Vianna (1897), todos interpretando a qualidade da água do Queimado,
produzindo teses que procuraram atualizar o método de análise e interpretação.

3.1 Rozendo Guimarães, a água do Forte de S. Pedro e o engajamento político.


O Dr. Rozendo Guimarães3 após participar como voluntário na Guerra do Paraguai,
apresenta a sua tese “Água” (1871) à cadeira de “Pharmacia”. No capítulo décimo, discute o
estado das fontes da cidade da Bahia, descrevendo o seu povo miserável, que vive na
imoralidade e mastiga carnes podres. Com enfoque claramente contestatório do envolvimento
Médico na política da cidade, considera que a Municipalidade apenas desenvolve posturas que
mandam arrancar os olhos para que sejas cego e não vejas em quem votes. (GUIMARÃES,
1871, 38):

3
Formado pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1849. Opositor de Ciências Acessórias da FAMEB
em 1859. GMBahia 2008;78:1 (Jan-Jun): 11-23.
94
[...] e de liberdade só te deixão de sóbra essa desses batuques indecentes,
immoraes, obcenos, que a Camara Municipal te concede nas praças publicas, de
dia e de noite, para rigosijo das festas do Dous de Julho, que, presenceados por
um estrangeiro que aqui desembarcasse nesses dias festivos, e que fosse pouco
entedido na geographia, farião acreditar que havia desembarcado em Loanda,
Ajudà ou Congo! (GUIMARÃES, 1871, 38)
Recolhendo amostras da água da fonte do Forte de S. Pedro e recuperando os resultados
das análises de 20 de fevereiro de 18654 das vertentes do Queimado, analisa comparativamente
os resíduos orgânicos encontrados nas duas amostras.
Nas vertentes do Queimado encontra uma concentração de produtos sólidos, em 5 litros,
de 0,320grm e nas águas da fonte do Forte de S. Pedro, de 0,340grm. (Anexo1) No entanto,
considera que se bem comparadas, as águas do Forte de S. Pedro são muito superiores às do
Queimado. Reconhecendo a matéria orgânica como elemento de insalubridade nas águas,
particularmente quando contém sais impróprios para sua potabilidade, considera necessário a
interpretação dos sais constituintes para a formulação da sua real qualidade, não podendo ser a
concentração de matérias orgânicas o indicativo único de apreciação. (GUIMARÃES, 1871,
26)
A maior concentração de matérias orgânicas apresentada na Fonte de S. Pedro era
facilmente justificada pela falta de benefícios, metida, como está, dentro dos matos, onde caem
folhas, ramas, etc. Apesar disso, considera de boa qualidade quando comparada com as águas
vendidas à população, de certo tempo para cá, que causam asco, e a repugnância, derivados do
“pezo, o mau gosto, o cheiro desagradável, e a falta de frescura.” (GUIMARÃES, 1871, 36) A
água do forte de S. Pedro só perde no quesito matérias orgânicas, ponto que seria facilmente
ultrapassado através da intervenção Municipal, com a limpeza do espaço circundante da fonte.
“Raciocinemos de boa fé e veremos que a desvantagem, neste ponto das aguas do Forte de S.
Pedro desaparece.”
Contestando a excelência das águas e a qualidade do serviço do Queimado, de modo
quantitativo e qualitativo, lembra que em 1864 o povo reclamava com razão contra a má
qualidade das águas dos chafarizes, reforçando, com franqueza, que as águas vendidas à
população, de certo tempo para cá, não são de boa qualidade, antes poderiam ser consideradas
como de inferior, senão de péssima qualidade, reforçando a posição de Virgílio Damásio.
(GUIMARÃES, 1871, 29)

4
Análises realizadas pelo “ilustre Sr. Dr. José de Góes Sequeira”. Doutorado em 1840 com uma tese
com o título “A civilização tem concorrido para o melhoramento da saúde pública?”.
95
Nas entrelinhas, Guimarães considera os responsáveis pela higiene da cidade (entre os
quais Góes Sequeira) engajados na defesa dos privilégios da Companhia, responsabilizando os
poderes públicos de displicência com os bens essenciais, mais atarefados sempre com empresas
de mais vulto, que têm reputado as necessidades mais vitais do povo, a alimentação e a saúde,
como coisas muito secundárias, ou que não valem a pena, esquecidos ou zombando do
aforismo, responsabilizando a sua classe por compactuar com o mau serviço:

[...] a commandita do Queimado, senhora de baraço e cutello, que cerra as


pennas d´agua, sem piedade e despoticamente, que não consente, nem quer que
venda ou dê agua quem a comprou e cuja propriedade não deve ter
competidores, nem mesmo nas fontes publicas do povo, porque é privilegiada
por dentro e por fora! (GUIMARÃES, 1871, 28)
As entidades, sem descer do espaldar, não se preocupam em cuidar de beneficiar fontes
públicas, permanecendo condenadas ao descaso, abastecendo com falta de qualidade a “parte
pobre da população, que não tem trez e quatro vinténs para dar por um barril de agua, que DEUS
Nosso Senhor tão abundantemente derramou pelo mundo para matar a sede de suas
creaturas!...” (GUIMARÃES, 1871, 42)
A Gazeta Médica da Bahia5 publica novo relatório de Góes Sequeira, solicitado pelo
Governo, que menciona boatos espalhados por pessoas incompetentes, com informações
inexatas, ou por juízos precipitados, que problematizavam a água como veículo propagador de
epidemias, como a beribéri, que estariam nos encanamentos de chumbo da Companhia. Góes
Sequeira, novamente, desconsidera as asserções, considerando que estas não derivavam de
origem profissional, porque todos os médicos de alguma experiência e que conhecem a história
do beribéri na província, sabem, que esta moléstia foi observada antes da existência da
companhia do Queimado. A aceitação unanime da água como meio propagador de epidemias
apenas acontecerá a partir dos estudos de Oswaldo Cruz, “A Vehiculação Microbiana pelas
Aguas”, apresentado em 1892 à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Novo relatório de Góes Sequeira, de 1872, manteve o parecer que no estabelecimento
aquário tudo se encontrava em muito boa ordem, no melhor estado de asseio. As águas
apresentavam-se frescas, com filtros, inteiramente límpidas, inodoras, sem sabor, mas gratas ao
paladar; e, segundo se pode deduzir de um primeiro e não aprofundado exame, possuíam as
qualidades de boas águas potáveis. Resistindo à análise química, reconhece que a presença de
matérias orgânicas pode prejudicar muito a saúde pública, mas que “não erão encontradas
naquelas aguas senão em quantidades inapreciáveis”. (GMBahia, 1872, pág. 201/203)

5
Bahia, ANNO V, 102, 31/10/1871, pág. 73,74;
96
Da cada vez mais acirrada discussão, resultou nova comissão, a 18 de fevereiro de 1872,
composta pelos Drs. José Góes Siqueira, Francisco Rodrigues da Silva e Francisco Pereira de
Aguiar, que sofreu primeiramente a escusa do Dr. Góes Siqueira, substituído por Dr. Antonio
Januario de Faria e, depois, dos Drs. Rozendo Guimarães e Virgílio Damásio, que também
pediram escusa, demonstrando a incompatibilidade de entendimento e falta de soluções técnicas
para a solução do problema. (Relatório do Vice-Presidente Almeida Couto (BA), edição 1,
1873, pág. 17)
Um artigo de opinião, de Henrique dos Santos, que demonstra conhecer o
posicionamento de Guimarães, solicita a intervenção das autoridades Provinciais para enfrentar
o descaso nos pontos de captação, onde observa bicas obstruídas pelo lamaçal acumulado por
falta de zelo, e como esta, todas as fontes da capital e da companhia do Queimado, que não
merecem a vigilância dos encarregados da saúde do povo. Como consequência do descaso das
autoridades enuncia a seca, a fome:

[...] e por fim a peste e consequência de tudo para so exigir da sciencia tarde os
meios de debelar o mal, e do medico o sacrifício de todos os seus commodos e
abnegação da vida em prol de seu semelhante!! Essas considerações que trago
– para pedir aos homens encarregados do dever de zelar da salubridade pública
mais atenção para as causas que produzem males – pedem nossas reflexões. (O
Monitor (BA), edição 263, 1878, pág.2)
Aqui, o Dr. Henrique dos Santos reconhece já a água como veículo de males. Reitera a
sua independência política, como um homem acostumado a tirar do trabalho os meios de
subsistência, sem essa ambição que a muitos cega:

- o fim que tenho em mira é arrancar os homens de minha terra da indolência a


que se entregam, cegos com as paixões partidárias, pois que a lei de 1.º de
outubro de 1828 ainda vigora; os presidentes teem leis para administrar bem a
província, a Inspectoria de Saude tem um regulamento. Agora digamos – si os
factos provam o que alego, si o raciocínio cannence, si o excesso de calor do
nosso clima vae embolando tão robustas intelligencias, de sorte que nada se faz
para o bem comum e tudo vae mal em minha terra, só havendo se seguir o rifão
– tanto bate agua molle em pedra dura até que a fura. (O Monitor (BA), edição
263, 1878, pág.2)

3.2 - Domingos Monteiro, componentes químicos.


A tese de Domingos Monteiro (1897) estudou as águas de beber e avaliou a quantidade
ou natureza dos corpos constantes nas águas, associados aos graus de aptidão para o consumo.
Contemporaneamente já se reconhecia, sem contestação, a faculdade de propagação pela água
de muitas moléstias infecciosas, como a febre tifoide e a cólera. O autor reconhece a
complexidade do estudo da água potável, que levanta muitas discussões, ainda existindo entre
os autores controvérsia. No entanto, pretende discutir se a predominância dos sais calcários é

97
condição indispensável à boa qualidade das águas ou prejudicial, ou inútil. (MONTEIRO, 1897,
23)
Na terceira parte, considera a falta de água pura uma das maiores misérias que os grupos
podem suportar, considerando competência das Municipalidades proporcionar aos centros
urbanos água em abundância e de boa qualidade, sempre protegida desde os mananciais até à
boca dos consumidores, tomando medidas capazes de evitar a contaminação. Mencionado o
parecer do ilustrado lente de higiene da FAMEB, Dr. Manoel Joaquim Saraiva, relativo às águas
do Queimado, considera entristecedora a [in]capacidade administrativa d´uma Municipalidade
que trata com indiferença a proteção dos meios naturais, aceitando o consumo de uma água
contendo excesso de sais calcáreos e magnesianos, terra, matérias organicas, impregnadas de
bactérias, que opera fatal e lentamente na depressão da vitalidade d´uma população inteira.
(MONTEIRO, 1897, IV)
Monteiro esclarece que a potabilidade das águas não decorre somente da pureza, não
podendo se confundir a limpidez, a transparência das águas, com a pureza. Basta uma ligeira
reflexão para se ver que isto não tem razão de ser, uma vez que quimicamente falando, a pureza
significa ausência absoluta de matérias estranhas em um corpo, e por isso a água destilada é a
mais pura. Mas esta não serve de bebida ao homem nem satisfaz as exigências da economia. A
água destilada é desagradável, pesada e impropria às funções digestivas, então, “agua pura não
é potável. Difícil é, então enumerar os caracteres, as qualidades das águas potáveis.”
(MONTEIRO, 1897, 24)
Se era unanime considerar que uma boa água tem perfeita transparência, sem gosto nem
cheiro, fresca, bem arejada, com certo grau de suavidade, a concordância desaparece quando:

[...] ensaiamos uma descripção mais completa, e determinarmos (designarmos)


as somas das matérias envolvidas, que é para desejar não sejão em excesso,
achamos consideráveis diferenças de opiniões e também uma real falta de
evidencia [...] Todavia, uma classificação hygienica ou uma enumeração de
aguas potáveis, firmada em taes factos como são geralmente admitidos, será
útil. (MONTEIRO, 1897, 26)
Oswaldo Cruz, em 1892, demonstrou os meios pelos quais os agentes microbianos
podem chegar ás aguas: no banho n´um rio, poço, lago, roupas que tenham sido usadas por
pessoas afetadas por moléstias transmissíveis, ou através da excreção de contaminados por
moléstias, “escarros, fezes, vômitos, etc e que são ricos em micróbios específicos”. (CRUZ,
1892, 62) Analisando o comportamento dos micróbios em água esterilizada e não esterilizada,
demonstrou o diferente comportamento do bacilo da cólera e febre tifoide, fechando a antiga

98
questão acerca de matérias orgânicas para adicionar a problemática bacteriológica ao estudo da
qualidade das águas, comprovando a água como veículo transmissor de epidemias.
A conciliação da falta de esgotamento e proteção dos mananciais dotou Salvador,
principalmente no seu manancial mais desprotegido e mais antigo, do Queimado, de condições
que favoreceram a propagação da cólera e febre tifoide, facilitada pelo contato com dejetos
humanos, de um crescimento urbano que já ocupara a sua margem. Esta situação, de
insalubridade, decorreu do abandono da proteção a este manancial após 1905, quando deixou
de ser o principal coletor da cidade.

3.3 – A fonte de S. João e o entendimento internacional.


A Gazeta Médica (BA) em 1897 divulga o trabalho da comissão do Conselho Geral de
Saúde Pública, incumbida do estudo das águas da fonte de S. João, na ilha de Itaparica, liderado
por Dr. Eduardo José de Araújo com ajudantes da Inspetoria de Higiene e químicos do
Laboratório Municipal. (GMBahia, 1897, 308-315) À comissão preocupava a utilização da
fonte por doentes que se banhavam em uma taboa nesta fonte, certamente instigados pelas
atribuições milagrosas da cura pela água, entendendo que este procedimento não era regular
visto a facilidade de refluírem as águas servidas para o depósito da fonte, poluindo-o por menor
que seja a quantidade de água refluída. (GMBahia (BA), 1897, 306/307)
Na sua composição física, a água se apresentou sem cor, com cheiro térreo, límpida,
quando recolhida na goteira junto à fonte, turva quando captada no seu depósito, deixando pelo
repouso um resíduo de matérias orgânicas e terrosas. A análise química não revelou presença
de nitratos, nem vestígios de amoníaco. Uma vez que as águas potáveis tinham ainda um
número limitado de elementos conhecidos, se considerava que as águas potáveis tinham
composições elementares muito semelhantes, sendo pequeníssimas as variações de quantidades
dos seus elementos, condição que se complexificava tratando-se das águas minerais, que
variavam nas proporções de minerais, muito superiores às que se acham dissolvidas nas águas
apenas potáveis. No entanto, das análises a S. João concluiu-se que os elementos encontrados
foram somente aqueles que são comumente achados nas águas potáveis, desconsiderando o seu
valor terapêutico. (GMBahia (BA), 1897, 308)
Com a divulgação dos estudos efetuados nas nações da Europa, pelos Conselhos Gerais
de Saúde, que sistematizaram os parâmetros químicos para as análises das águas potáveis e
minerais, fixando máximos e mínimos dos elementos constituintes, foi possível enquadrar os
dados nacionais com os parâmetros internacionais. (Anexo 2) O Comité Parisiense distinguiu a
água em Pura, Potável, Suspeita e Má, considerando que para o parâmetro de resíduo, este não

99
podia exceder de 0,gr50 para ser considerado como potável. As águas da fonte S. João
apresentavam 0,gr0727, que correspondia a um quinto da máxima estabelecida, bem inferior à
máxima determinada, classificando a água de S. João como potável, água de chuva, que,
passando por um terreno sedimentário de sílica argilosa, dissolvia alguns elementos.
Apesar dos bons resultados das análises, a Comissão condena o uso da água da fonte,
refutando a sua qualidade terapêutica ou milagrosa e menciona falta de infraestrutura higiênica
para o banho:

[...] a prohibição da sua venda, não só por não ser água mineral, e, portanto
incapaz de produzir effeitos therapeuticos, e tambem como agua, entre pura e
potavel pode tornar-se perigosa á saude publica, como vehiculo de germens em
condições de produzirem estados morbidos, visto o modo porque são tomados
os banhos pelas pessôas que ocupam esta fonte. A Commissão, de accordo com
o trabalho da analyse feita pelos chimicos do Laboratorio Municipal, sómente
tem em mira, procedendo desta forma, livrar a população de uma agua dita
milagrosa, que longe de beneficial-a, pode muita vezes prejudicál-a. (GMBahia
(BA), 1897, 28/311).
Recuperando as tabelas que estabeleceram o parâmetro Francês de análise, analisámos
também os dados relativos à água do Queimado recolhidos em 18566, 1864 e 1885, quando se
desconheciam os parâmetros comparativos. (Anexo 3) Pelo método do Comité Consultatif
d´Hygiene de Paris, em relação às matérias orgânicas e produtos voláteis, o resultado de 1856
[0,064] e 1864 [0,0745] classificam a água como SUSPEITA (0,gr04 a 0,gr07), tendendo para a
classificação de MÁ (<0,gr1).
Os resultados orientam para a confirmação da posição de desconfiança de Virgílio
Damásio e Guimarães, que insistiam na melhoraria da filtração, em oposição a Góes Sequeira,
que considerou o índice irrelevante para a aferição da sua qualidade. Esta constatação reforça a
melhor condição da Fonte de São João, de Itaparica, em relação à qualidade da água servida
pelo Queimado na cidade, e a sua má qualificação segundo parâmetros Parisienses.

3.4 - Augusto César Vianna: análise bacteriológica ao Queimado.


A 29 de março de 1897, a pedido da Companhia é finalmente realizada a análise
bacteriológica das águas do Queimado por Augusto César Vianna, em publicação que
acompanhada por um parecer do Dr. Manuel Joaquim de Saraiva.
Considerando a questão da salubridade de uma água potável das mais árduas e de mais
difícil solução, sob os quais surgiram estudos

6
Divulgadas no trabalho do Dr. Tiburcio Suzano de Araújo. “Effeitos do uso das aguas impuras sobre
a economia.” FAMEB, 1885, e Dr. Virgílio Damásio.
100
[...] fundados no methodo experimental, e que se vão aperfeiçoando lentamente,
à medida que avança na estrada do futuro o carro do progresso, que, na frase do
sábio Duclaux, tem rodas quadradas, e somente marcha por solavancos, o estudo
das aguas potáveis tem soffrido, como era de esperar da sua importância, que
naturalmente se deveria impor em todos os tempos à apreciação dos espíritos
ilustrados, a repercussão de todas as teorias, de todos os methodos, de todos os
processos, descobertos e empregados na evolução da sciencia, sempre nova, da
Hygiene publica. (VIANNA, 1897, 1)
Apreciadas sobre sucessivos aspectos e, não raras vezes, os resultados parecem à
primeira vista enormemente distanciados uns dos outros. O autor considera que a partir de 1796,
o estudo progrediu e a análise bacteriológica adicionou novos parâmetros às análises químicas
e físicas das águas, devendo ser feitas concomitantemente, porque se auxiliavam mutuamente,
e mantém entre si estreita dependência. (VIANNA, 1897, 6)
Coletando amostras de diferentes pontos de distribuição do Queimado, como era de
esperar, face à limpeza e purificação das águas desenvolvido pela Companhia, o resultado, em
nada desabonou as boas qualidades da água. (VIANNA, 1897, 28) Na Mata Escuta, as análises
encontraram, em média, uma baixa concentração de 1.723 bactérias por centímetro cúbico. No
Dique do Queimado, 1.252 por c.c., e depois da depuração nos filtros, a média indicava apenas
452 germens por c.c., comprovando a eficácia dos mesmos.
A água recolhida na torneira do Laboratório de Anatomia e Physiologia Pathologicas da
Faculdade de Medicina apresentou uma média um pouco maior, 483 bactérias por c.c.,
possivelmente devido às condições da canalização. Reconhece que o resultado quantitativo da
análise tinha já perdido grande parte de seu valor, sendo determinante o exame qualitativo dos
germens que a constituíam, uma vez que a presença de um só gérmen patógeno em uma água
límpida pode condená-la, transformando-a em propagadora de enfermidades.
Recorrendo ao método de análise das placas de Petri, não encontrou espécies patógenas
conhecidas. Revelando diferentes colônias, de bactérias variadas, para determinar a sua
natureza realizou inoculações com os germens das diversas colônias em cobaias, “único
criterium nestas condições”. Como resultado obteve que nenhum dos animais sucumbiu durante
a experiência, nem mesmo revelaram reação mórbida alguma. Não se surpreendendo com o
resultado, com conclusões idênticas ao que tem anualmente obtido da água do Queimado.
Concentrada no grande Dique do Queimado a água era constantemente renovada e decantada
antes de passar pela camada filtrante e encontrava-se protegida, distante de qualquer povoado,
não servindo de trânsito quer a homens, quer a animais. (VIANNA, 1897, 31)
Isenta de germens patógenos, considera que as águas do Queimado estão muito longe
de merecer a qualificação de más que as incriminou, com alguma precipitação, a Diretoria do

101
Laboratório Municipal desta Capital, firmando que nas condições atuais se pode sem receio de
qualquer contestação científica afirmar que, sob ponto de vista bacteriológico, as águas do
Queimado, devem ser colocadas no grupo das melhores águas destinadas à alimentação pública.
(VIANNA, 1897, 32/ 33)
Juntou-se ao relatório de Vianna o parecer químico do Dr. Manuel Joaquim Saraiva que
aponta algumas melhorias no serviço como a substituição da cobertura de zinco dos puissards,
que aqueciam a água, reforçando que a água destinada a esta capital tem condições que os
higienistas e os engenheiros sanitários se esforçam para conseguir, satisfazendo as exigências
da saúde pública. (VIANNA, 1897, 43)

3.5 - Agostinho de Araújo Jorge: o Queimado e a Beberibe.


O Dr. Agostinho de Araújo Jorge, na sua tese (1899) reafirma que por muito tempo se
julgou que a maior ou menor abundância de matérias orgânicas existentes em uma água era a
condição sine qua non para maior ou menor facilidade de desenvolvimento do mundo
microbiano. O autor volta a valorizar o exame químico das águas, que muitas vezes condena
uma água que depois é considerada pura pelo exame bacteriológico. Defendendo a importância
das análises físicas ao exame químico, como complementares, cabia no entanto a primazia do
bacteriológico, pelos efeitos muito graves que podem resultar da invasão do organismo por uma
ou muitas espécies microbianas suspeitas ou nocivas. (JORGE, 1899, 9/10)
Finalizando o seu trabalho apresenta dois quadros com os dados das análises das águas
distribuídas na Bahia pela Companhia do Queimado e no Recife pela Companhia do Beberibe.
Apesar do autor, provavelmente propositadamente, não traduzir os resultados das análises, ao
comparar os Resíduos a 180º das águas da Bahia, com concentração de 0,0585, com os
parâmetros determinados pelo Comité Consultatif d´Hygiene de Paris, verificamos que
continuava classificada como SUSPEITA, assim como a de Recife.
Implacável e incessante foi a atuação domiciliar do Serviço de Higiene Municipal. No
episódio da epidemia de peste bubônica, em 1904, autorizou a destruição de várias casas
consideradas focos de infecção. Os inspetores fiscalizaram 7.326 casas, ordenando a demolição
de 88 e três foram simplesmente queimadas.
Se a água era já escassa para os usos ordinários da população, sendo um elemento
imprescindível para o fim higiênico, a situação era agravada se os poços e fontes estiverem
infeccionados por elementos morbígeros, ocasionando enfermidades de tipos diversos.7 A

7
Relatório dos Presidentes dos Estados Brasil (BA), apresentado à Assembleia Legislativa pelo Dr.
Joaquim Manuel Rodrigues Lima a 7/04/1895 edição 1, 1895, pág. 31.
102
problemática da qualidade da água foi, entretanto, substituída pela problemática da sua escassez
e insuficiência para os serviços, agravados por pareceres dos estudos técnicos de esgotamento.
O jornal Cidade do Salvador (BA) a partir de 1898 divulgará os “Estudinhos de
Hygiene” assinados por Darolfe, divulgando a perspectiva médica relativa à Higiene. Na edição
408, expõe os perigos da exposição às águas impuras, explicando que os micróbios responsáveis
por certas moléstias podem estar contidos em água impura e em nosso organismo, dadas certas
condições, podem decorrer em moléstias graves e muitas vezes mortais. As duas principais
moléstias estavam identificadas: a febre tifoide e o cólera, propaga nas fezes dos doentes.
Lançadas aos rios, vão diretamente pelas águas os micróbios produtores destas moléstias,
procurando instruir a população a evitar procedimentos contaminantes.

Conclusão
Neste capítulo expomos a evolução da ciência, repercutidos nos pareceres dos médicos,
relativos à qualidade da água do Queimado. Embora apoiado na ciência, o entendimento e
parametrização dos resultados das análises apenas será sistematizado por entidades europeias
que parametrizou a análise química/física e bacteriológica.
A sistematização, divulgada no trabalho que discutiu a qualidade das águas da fonte S.
João, de 1897, suprimiu a lacuna que durante quarenta anos dificultou a análise comparativa
dos parâmetros classificatórios da qualidade das águas. Na Bahia, os médicos, engajados nas
entidades públicas e na FAMEB, desenvolveram trabalhos científicos que divergiram nos
resultados. Góes Sequeira, sempre considerou a água distribuída pelo Queimado de qualidade
excelente, contrastando com a opinião popular, que frequentemente se queixava da presença de
matérias orgânicas e impurezas. Virgílio Damásio, em 1864, contrariando Góes Sequeira,
divulga um estudo que condena as águas do Queimado e realça a necessidade de melhoria do
sistema de filtragem. Em reação, Góes Sequeira observa que não apenas da análise física
depende a classificação das águas, despertando a necessidade do conhecimento dos seus sais
componentes.
Sequeira Góes foi acérrimo defensor da qualidade das águas servidas do Queimado e
terá sua análise questionada por Guimarães (1871), que evidencia o seu engajamento político
na defesa da Companhia que pretendia ampliar os seus serviços de saneamento da cidade,
similar ao sistema inglês.
Domingos Monteiro na Bahia e Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, apresentam estudos
das águas de beber, quando já era unânime de que a água era um veículo transmissor de doenças,
que evidenciou a necessidade de considerar as componentes bacteriológicas. As análises

103
interpretadas segundos os parâmetros que determinavam as balizas europeias aceitáveis para as
águas consideraram as águas do Queimado SUSPEITAS a MÁS.
Augusto Vianna (1897), analisando bacteriologicamente as águas, mantém o parecer de
que não existem nelas bactérias prejudiciais à saúde, sendo estas sempre de igual qualidade, ou
superiores às Europeias.
O processo que demonstramos evidência como a certeza científica é transitória e
encontra-se dependente do aprofundamento dos processos, do visível para o invisível, para os
quais contribuem os equipamentos, as técnicas e as convenções que, como vimos, estabelecem
parâmetros de difícil aceitação em diferentes contextos, rodeados por ideologias que, por vezes,
comprometem a interpretação do analisador.
Referências:
Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino do Governo (BA)
Relatório do Vice-Presidente Almeida Couto (BA), 1/03/1873, edição 1, 1873, pág. 17.
Relatório dos Presidentes dos Estados Brasil (BA), apresentado à Assembleia Legislativa pelo Dr.
Joaquim Manuel Rodrigues Lima a 7/04/1895 edição 1, 1895, pág. 31.
Relatório da Inspectoria de Hygiene no decurso do anno de 1894; Relatórios dos Presidentes dos
Estados Brasileiros (BA) edição 1, 1895, pág. 3.

Jornais
Jornal do Commercio (BA) edição 41, Gazeta Médica da Bahia (BA) 1871;102, Bahia, pág. 73,74
pág. 1,1865; 31/10/1871; 1872;110:ANNO V(fev): 201-203, Relatório
apresentado pela Cómissão nomeada pelo Governo para dar
Correio Mercantil, e Instructivo, parecer sobre as aguas dos Queimado; 1897;28:7, 4.ª série:
Político, Universal (RJ) edição 42, 305-311, Água de S. João; 2004;74:2(Jul-Dez): 157-167,
pág. 1, 1865; Relatório acerca do Estado Sanitário da Província da Bahia
durante o ano de 1864, elaborado pelo Inspector da Saúde
Cidade do Salvador (BA) edição 397, Pública e enviado ao Presidente da Junta Central de Higiene
pág. 1, 1898; edição 404, pág. 1, Pública, sendo remetido, mediante cópia, ao Presidente da
1898; Província. 25/02/1872; 2008;78:1 (Jan-Jun): 11-23; Anno
XXX, Série V. Vol II abril 1899.
O Monitor (BA) edição 263, pág.2,
1878;

Instituto Gonçalo Moniz, Bahia, Fio Cruz


CRUZ, Oswaldo Gonçalves. A vehiculação microbiana pelas águas. Dissertação da Cadeira de Hygiene
e mesologia de apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro: Typographia da
Papelaria e Impressora (S.A.) Sucessora de Carlos Gaspar da Silva, 1892.
PEIXOTO, Afranio, Higiene, Medicina Preventiva. 4.ª edição, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro,
1926.

Acervo da Bibliotheca Gonçalo Moniz - Faculdade de Medicina da Bahia


VIANNA, Augusto César. Analyse bacteriológica das aguas do Queimado: feita a pedido da direção da
Companhia. Bahia: Typ. do Diario da Bahia, 1897.
CAMPOS, José Carneiro. Memória Histórica de 1905.
VIANNA, Augusto César. Analyse bacteriológica das aguas do Queimado: feita a pedido da direção da
Companhia. Bahia: Typ. do Diario da Bahia, 43p. 1897.

104
“Theses doutorais”
ARAÚJO, Jorge Agostinho de. Contribuições ao estudo das águas potáveis como meio productor e
propagador das moléstias infecciosas. Bahia: Imprensa Popular, 1899;
ARAÚJO, Tiburcio Suzano. Efeitos do uso das águas impuras sobre a economia. Bahia:
Litho-Typografia Ligouri, Mirando & C., 1885;
GUIMARÃES, Rosendo Agripino. Água. Bahia: Typographia de J.G. Tourinho, 1871.
MONTEIRO, Domingos, Martins Pereira, Analyse das aguas potáveis sob o ponto de vista Chímico,
Bacteriologico e hygienico. Bahia: Typographia e Encadernação Empreza Editora, 1897.
PEREIRA, Theodolindo Antonio da Silva; A Theoria microbiana e a mineralização das aguas de esgoto.
Bahia: Litho-Typografia Passos, 1905.
SILVA, Octavio Torres da. A cidade do Salvador perante a Hygiene. Bahia: Typographia Moderna,
1908.

105
Capítulo 4
Os Aguadeiros
Neste capítulo apresentamos as articulações da Companhia do Queimado e do Governo
Provincial que interferiram diretamente na profissão e no corpo do Aguadeiro através de
medidas administrativas, trabalhistas e ações policiais.
Embora ainda presente na memória dos Soteropolitanos, o Aguadeiro ainda não foi
apresentado na Academia. No entanto, a importância do seu trabalho e representatividade social
refletem problemáticas da cidade do séc. XIX: sobre ele caia o medo do ajuntamento do
contingente que garantia a distribuição alimentar da cidade, os estudos médicos da pobreza com
desdobramentos na educação dos temperamentos, da imoralidade, e a importante questão da
higiene que encontrou nos costumes de origem Africana doenças e hábitos nefastos, que
prejudicavam a segurança e a higiene coletiva: o sonho dourado a alcançar. (CAMPOS, 1873,
1)
Figura 1 - Aguadeiro; Um dos aguadeiros tradicionais da festa do Bonfim, 1924; Aguadeiro.

Referência: Museu Afro-Digital da Memória Africana e Afro-Brasileira; A Tarde (BA), 17/01/1924;


Fotografia de João Goston, 1857 a 1873 (apud HOLTHE, 2002, 214)

Ella foi a primeira bebida, que se usou. Recorramos à experiencia pessoal, e nos
convenceremos, que não há bebida tão agradável, e tão consoladora, e
satisfatória, sempre que sentimos sede, quer na comida, quer por accazião do
calor, como seja uma agua pura leve, bem fresca, e sem o menor sabor, ella
apressa a digestão, coadjuvando-a, em seus justos limites refrigera o excesso de
calor, que o trabalho do estomago sobre a comida desenvolve necessariamente,
e por isso nos torna depois dela alegres, ligeiros, aptos para qualquer trabalho,
e activos; o espirito se conserva em sua agudeza; e a reflexão é prompta; os
sentimentos do amor ou de amizade são mais doces; a inteligência conserva toda
sai inteireza, as idéias tornão-se claras, as paixões se conservão em equilibrio.
(REGIS, 1845, 20)

A Medicina da primeira metade do século XIX, preocupada com os humores que eram
influenciados pelo tipo de alimentação e condicionados ao consumo de bebidas, associou o
consumo de água a conotações morais que consideraram os bebedores do líquido “calmos e
circunspectos, dotados de paixões igualmente calmas, e de uma razão sã que conservam até a

107
mais avançada velhice”. Esta conotação, enaltecedora, contrastou com os bebedores de
destilados e em menor grau de bebidas fermentadas. Sobretudo no Brasil, o consumo d´água
exigia algumas precauções, porque o corpo estava muito esquentado e coberto de suor, que
comprova a preocupação voltada para população emigrante europeia, que estranhava o clima
dos trópicos. Julgava-se necessário fugir do abuso d´água, uma vez que ela nos torna fracos e
preguiçosos, “principalmente na Bahia onde há tanta inclinação à preguiça”. (REGIS, 1845, 20)
As conotações morais abrangiam toda a cultura social, da alimentação, à medicina, à profissão,
cor, gênero.
O estudo dos comportamentos desviantes, dos loucos, das prostitutas, dos corpos
indisciplinados, foram frequentes nos trabalhos da Faculdade de Medicina da Bahia, embasando
a formulação local de micropoderes, genericamente interpretados por Foucault, e analisados no
contexto Brasileiro por Roberto Machado que entendeu que a medicina Brasileira, com a
abolição da escravatura, simplesmente excluiu o escravo do contexto urbano, onde se formulava
o projeto de construção da nação.
[...] o escravo, na cidade, através dos efeitos da sua presença no seio da família
branca é visto como causa de desordem, sexualidade desregrada, paixões,
doenças, vaidade, egoísmo, brutalidade. Ao procurar transformá-la através de
sua higienização, a medicina tematiza o escravo como obstáculo fundamental à
criação de uma família brasileira sadia. (MACHADO, 1978, 354)

O estudo de medicina social, constante no livro “Danação da norma” (1978), demonstra


a interferência médica e da medicalização da sociedade brasileira, sem fronteiras nas vidas dos
indivíduos. Mais do que outros setores tradicionais, a medicina justificou articulações políticas
e administrativas que limitaram a atividade dos desviados, Negros, considerados o obstáculo ao
progresso. Devemos interpretar “Danação da Norma” com a perspectiva deste fazer parte das
primeiras abordagens ao tema, que acabou por não considerar as especificidades de cada lugar,
mas que, no entanto, já conclui que os médicos do séc. XIX não se preocuparam com a
expressão da escravidão urbana enquanto mão-de obra produtora, desconsiderando a sua função
essencial à economia, propondo simplesmente a sua extinção. Mais preocupada em transformar
a cidade, a medicina social Brasileira não foi uma medicina do trabalho ou do proletário, mas
uma medicina urbana, conformada por grandes programas de higienização e saneamento, que
pretenderam eliminar a doença, separar a loucura e a pobreza, associando a higienização urbana
à higienização dos corpos. (SCHWARCZ, 1993, 18)
Se no Rio de Janeiro a instalação dos chafarizes deu lugar à execução do serviço por
aguadeiros, geralmente portugueses, em Salvador o desinteresse deste contingente em realizar
o serviço, interessados em manter o status social que impedia a realização de tarefas domésticas,

108
manteve os ganhadores africanos ou descendentes no desempenho da fundamental função de
distribuição d´água. (PETTI, 2011,105) Dada a cada vez menor disponibilidade de escravizados
e empregados, o abastecimento nos chafarizes e casas de vendagem manteve-se delegado ao
tradicional aguadeiro, que se alinhava para a compra do líquido ganhando sua comissão no
transporte.
As considerações raciais presentes nos discursos dos lentes de Medicina de 1848 a 1919
acompanham também o período de difusão do evolucionismo social, naturalismo e social-
darwinismo (década de 1870), que organizaram o cenário científico e que formaram o panorama
propício para a aceitação crítica da corrente inglesa da eugenia. No debate do serviço de
abastecimento de água estas disciplinas se alimentaram, reciprocamente, produzindo políticas
e estratégias de distribuição. Na Bahia esta problemática foi agravada pela importância dos
Negros nos serviços de abastecimento à cidade, que viram o seu status jurídico e comercial
reformulado, mediante o surgimento de novas organizações que transformaram a cidade:
Releva aqui deplorar a incúria com que se tem deixado amontoar em nossas ruas
esse sem numero de escravos, que podem á luz do dia, e á nossa vista, conspirar;
a impolítica com que se tem deixado a população preta aglomerar-se na cidade,
cujos misteres podião ser exercidos por gente livre, desviando assim da
agricultura tantos braços necessários, e dando pretextos ao Bretão para nos
incomodar. Cure o governo do Brasil de disseminar quanto puder, de desviar
das cidades marítimas, quanto aconselhar a prudência essa população africana,
que a filantropia inglesa encara como seu mais valente auxiliar no proposito de
nos opprimir e anniquilar... (O Mercantil (BA), 4/12/1845)

A mensagem que acima transcrevemos resume as preocupações do contexto social da


época: a incúria provincial aos escravos amontoados, que conspiravam contra as elites
dominantes; a falta de legislação que abrangesse este contingente, cujos misteres podiam ser
exercidos por gente livre e a preferência pela emigração branca para a execução dos novos
serviços assalariados. Esta solução deveria resolver também os pretextos ao Bretão para nos
incomodar, em alusão à pressão para o fim do tráfico de escravos que oprimia e aniquilava o
Império, ainda dependente da sua mão-de-obra.
Nos auspícios da anunciada, mas demorada abolição imposta pelos Ingleses, se
desenvolveram novas dinâmicas sociais e articulações econômicas que repercutiram na
moradia, no sistema de arrendamento e subdivisão espacial, no poder regulador do
comportamento que é transferido para a esfera pública, na atividade laboral, que desenvolveu
normas e leis que restringiram a liberdade individual com o intuito de possibilitar a convivência
civilizada aos moldes europeus.
Desejando embranquecer a população e substituir a mão de obra escravizada pela
europeia assalariada, na Bahia, apesar da formação de colônias de imigrantes no interior, o
109
objetivo não foi muito aceite face uma população já muito miscigenada, que já contava com
importantes colaboradores mulatos em áreas de poder, no Governo ou na Faculdade de
Medicina da Bahia que não admitiam considerarem-se, a eles próprios, inferiores a qualquer de
seus colegas sob o pretexto de cor. No entanto, na Assembleia Provincial se discutia a imigração
que continuava a privilegiar “gente industriosa, de boa conducta, &c. já facilitando-lhe seus
transportes, já dando-lhe terras, e instrumentos, com que possa trabalhar”:
Não vê o Snr. Rebouças, que hoje, mesmo na Bahia a marcineria tem chegado
á sua maior perfeição, e que existem diversas fabricas de chapéos, e parachuvas,
que rivalisão em perfeição com os fabricados na Europa? E a quem se devem
esses melhoramentos? À africanos? Não, aos allemaens, aos Italianos &c.
(Revista Americana (BA), 1847, pág. 17)

A preocupação da elite dominante Baiana com o africano e o liberto é demonstrada por


Luciana Brito (2016) que discute as medidas implantadas para a segurança pública da Bahia,
no período de 1830 a 1841, entre elas a Revolta dos Malês (1835) que teve como objetivo matar
seus senhores, envenenar as fontes e apoderando-se dos navios ancorados no porto, voltar para
a África de onde tinham sido arrancados, deixando a elite em estado de alerta. (MATTOSO,
1992) Baseado no princípio de que os Africanos libertos eram os responsáveis pelas
turbulências, a lei n.º 9 de 13 de maio de 1835, considerada de urgente necessidade, dificultou
a permanência de Africanos incentivando a delação, na tentativa de enfraquecer os laços de
solidariedade, instituiu a perseguição às práticas culturais e religiosas, sobretudo ligadas à
religião muçulmana.
Atravancando a gestão de sua autonomia socioeconômica, de que se tornara dependente
a cidade, o Governo Provincial pretendeu dissolver qualquer ajuntamento de negros,
independente da sua nacionalidade ou status jurídico, reduzindo drasticamente os seus direitos
civis não só porque podiam usar a sua ladinice e mobilidade espacial para organizar revoltas,
mas também porque sabiam melhor ajuizar a dureza da escravidão e, por isso, sabiam melhor
descrever, aos ainda escravizados, as delícias da liberdade. (BRITO, 2016, 21) A execução das
leis restritivas à liberdade de Africanos teve o apoio da elite dominante, que aumentou a pressão
policial cotidiana. O sentimento de insegurança e desconfiança contribuiu para o crescente
afastamento e marginalização dos corpos Negros que enfrentaram taxas pecuniárias para viver
na Província, impostos sobre atividades comerciais, proibição de obtenção de bens e, mesmo,
o risco da deportação para África.
João Reís (2000) nos seus estudos dos cantos, observa que no Livro de Matrícula de
1887, nenhum dos 822 ganhadores listados como nascidos na África aparece como habilitado
para algum ofício. (REIS, 2000, 212) Esta constatação demonstra como as autoridades partiam

110
do pressuposto que os Africanos eram todos apenas carregadores, ou, o silenciamento
estratégico dos próprios das suas atividades, que isentava ao pagamento do imposto de dez mil
réis anuais à Província por todo Africano que exercesse ofício mecânico: carregadores,
aguadeiros. (Legislação da Província da Bahia sobre o negro: 1835-1888) Este silenciamento
dificulta a real percepção das condições de trabalho do aguadeiro, que aqui tentamos recriar.
Restou recorrer às referências em jornais da época na tentativa de aproximar a problematização
da vivência quotidiana da sua profissão. A regulação da profissão caminha em paralelo com a
regulação dos cantos, apesar do aguadeiro não estar organizado por esta via, tratando-se de um
trabalho mais autônomo, que usufruía de ampla liberdade de trânsito na cidade, o que
dificultava o seu controlo.
Tentando alterar os hábitos de distribuição e consumo, a partir de 1857, o Queimado
institui uma nova relação comercial na cidade. Se inicialmente as mulheres escravizadas
colaboravam no serviço abastecendo em fontes públicas e lagos, que servia de pretexto para
saída1, tirando disso alguma “felicidade, que ellas apreciam em extremo, e por isso, quanto mais
ali se demoram, mais gosto sentem, ainda que em chegando em casa levem pelas ventas algum
bofetão da senhora”. (O Alabama (BA), 12/10/1868) Aos chafarizes da Companhia concorrerão
majoritariamente homens pela periculosidade da convivência nestes espaços tratados com total
descaso pela Companhia, sem condições de higiene ou qualquer tipo de cuidado. O Governo
colaborava por omissão e negligência, agravando a situação de descuido das fontes públicas.
Os “Pretos aguadeiros e botadores de água [...] enchiam dois ou quatro barris de até 80 litros,
prendiam-nos ao lombo de um burro e saíam a vender. As mulheres usavam grandes potes de
barro e latas, transportados na cabeça, protegida por uma rodela de pano enroscado.”
(CONSUELO SAMPAIO, 2005, 105).
Com o fim da escravatura continuaram sendo delegados aos Negros as mais baixas
funções da hierarquia laboral, como aguadeiro, despejadores de dejetos, copeiros, mendigos e
prostitutas. A classificação de Maria Inês Cortes de Oliveira (1988) inclui a profissão de
aguadeiro no nível mais baixo da hierarquia laboral, exercida por pessoas sem qualificação. Da
inicial utilização doméstica, quando o serviço decorria em total dependência do senhor, o

1
“Desapareceo a Manoel da Costa Lima, no dia 3 do corrente, uma negra nagô por nome Carolina, que
andava vendendo agoa em um barril..." (Correio Mercantil, 29/10/1846) “Fugirão da padaria de S.
Felippe Neru dous escravos, um na tarde de 23 do corrente, em occasião que accompanhava dous
burrinhos que trazião agoa da fonte do Forte de S. Pedro, levando também um barril d´agoa.” (Correio
Mercantil (BA), 29/10/1846)

111
trabalho evolui para a prática através do serviço de ganho, apropriado pelo senhor e pelo
escravo, retirando o escravizado uma parte para ele.
A cada vez menor disponibilidade de escravizados resultou no recurso a mão de obra
terceirizada que utilizou a mão do aguadeiro em regime de contratação. Mantendo a Companhia
como principal distribuidora, o serviço de carroças da Municipalidade manteve a formação de
clientela, confirmada através da publicação do jornal Cidade do Salvador (BA) de 11/04/1900,
que denunciou que os aguadeiros só vendiam água “a certas e determinadas pessoas,
estabelecendo odiosas preferencias, quando nao despejam a pipa em uma só casa!”.

4.1 O corpo e a Faculdade de Medicina da Bahia


Do medo e desconfiança dos ajuntamentos de Negros decorreram grande número de
queixas nos jornais que extravasam o período em análise. Em 1851, A Verdadeira Marmota
(BA) denuncia a presença na fonte do Coqueiro, em todas as noites de “grupos de rapases
acompanhados das competentes farpellas” que tomam depravado banho, acordão e incomodam
com gritarias:

[...] subindo a tal ponto a depravação, o desrespeito, e o pouco caso das leis que
muitos desses indivíduos sobem em fraldas de camisa trazendo as roupas em
trouxas e debaixo de chula para se vestirem ora no portão do pateo da Lapa, ora
no adro do hospício da Piedade. (A Verdadeira Marmota (BA), 6/12/1851)

Solicitando mais sérias providencias da polícia e dos Inspectores, os moradores sugerem


que a fonte seja constantemente rondada e que sejam capturados os engraçados afim de
sofrerem as penas da lei. O Alabama (BA) de 1866, confirma a acentuada presença Negra no
Chafariz do Terreiro e pretende através de uma portaria dirigida ao guarda do chafariz, ordenar
que não consinta o ajuntamento de negros e negras que todas as noites se encontram em redor
daquele chafariz, onde se profere toda casta de obscenidades, sem nenhuma atenção às famílias
que por ali passam.
Os moradores da rua do Moinho do Tororó queixaram-se dos abusos que praticam
alguns aguadeiros no chafariz daquela rua, transformada em ponto de sessão, que se alteram e
se travam de razões, trazendo em constante desassossego as famílias ali residentes. Propondo à
Intendência Municipal a mudança daquele chafariz para o largo próximo. (Jornal de Notícias
(BA), 9/02/1892) Vilhena também se demonstrou impressionado pela “indizível a desordem
[...] que os prêtos fazem para tomar água” nas fontes da cidade, deixando o seu testemunho:
[...] quebrando-se mutuamente as cabeças, e braços; uns pelo que lhes pertence;
outros por defender, e patrocinar negras suas parceiras, e apaixonadas; e outros
por defender-se, e a elas das insolências dos insubordinados soldados, que
violentamente os constrangem a que lhes levem água onde bem querem, sem

112
que eles sejam aguadeiros, nem paguem às negras que o são; e se prontamente
não lhe obedecem, é infalível o quebrar-lhes as vasilhas, e dar-lhes muita
pancada. Se porém é negro, que lhes queira fazer cara, aí são logo a espada, ou
mais prontamente a faca, sem a qual é raro o que se acha; (VILHENA, 1788,
108)
Esta situação demonstra que não só os moradores viam o seu direito ao sossego
desrespeitado, mas também, como os pretos, forçados das galés, facinorosos e desesperados,
eram constrangidos violentamente a realizar um trabalho que não lhes competia. Vilhena
propõe que para este contingente fosse destinado o uso privativo de uma fonte; castigar e
doutrinar os soldados, proibindo-lhes o irem de noite apossar-se das fontes, não deixando tomar
água senão a quem querem. (VILHENA, 1799, 108-109)
Esta difícil relação é constante no séc. XIX, agravada em períodos de racionamento
d´água, quando é adicionado ao enredo os guardas cívicos, denunciados pelo tratamento que
davam aos aguadeiros, obrigando-os a fornecerem água de graça duas vezes ao dia, agarrando-
os e prendendo-os na rua para esse fim, comprovando a pouca confiança que merecem em geral
os guardas. (O Monitor (BA), 18/04/1878; Pequeno Jornal (BA), 17/03/1890)
A autoridade Municipal em 1848 propôs, por iniciativa do diretor do Imperial Corpo de
Engenheiros, tenente-coronel João Blöem, a construção de tanques de retenção d´água nas
fontes públicas com o intuito de beneficiar os pobres escravos que de madrugada, e na alta noite
eram obrigados a buscar água e umedecem os pés e roupa, e assim estragam a sua saúde. Esta
é talvez, a primeira e última abordagem do poder público em relação à gestão das fontes no
período que precede a atuação da Companhia. Consuelo Sampaio (2005) acrescenta que esta
melhoria serviria também de lava-pés para carregadores, livres ou não. Os reservatórios
atuavam como importantes depósitos de água que em ocasião de incêndio, facilitava a extração,
o que não acontecia nas bicas, servindo ainda de bebedouros aos animais. A perfeita vigilância
policial e o exame rigoroso nas vertentes, condutos e esgotos também foram consideradas.
Deste planejamento resultou o melhoramento de fontes como a das Pedreiras, Água de
Meninos, das Pedras, Fonte Nova, do Gravatá, de São Pedro e São Gabriel.
A fala de Dr. João Mauricio Wanderley à Assembleia da Província2, que divulgou
melhorias nas fontes dos Padres e do Pereira, observou que nelas não há ordem nem asseio por
parte dos que as frequentam, e para evitar isso julgou indispensável um guarda em cada fonte,
como ocorria no Rio de Janeiro. Desta forma demonstra que, assim como a venda d´água não
foi inaugurada pelo Queimado, também a presença de guarda nos locais de abastecimento

2
Fala do Presidente da Província Dr. João Mauricio Wanderley à Assembleia da Província, edição 1,
1854, pág. 37.
113
também não foi inaugurada por ela. No Relatório da Tesouraria Municipal, de 18563, consta a
despesa de 200rs para pagamento mensal do vigia da fonte da Ladeira da Misericórdia, 66$800
anual, que comprova a colocação de um responsável pelo espaço de distribuição pública d´água
na cidade, mantida pela Companhia.
Figura 2- “O conhecido aguadeiro Mané Fonseca”; Aguadeiros; "O chafariz da rua do Saldanha, o
primeiro sob que caiu a pena do fechamento".

Referência: A Noticia (BA), 30/10/1914; A Tarde (BA), 11/04/1916; SAMPAIO, 2005, 110;

4.2.1 Higiene dos pobres


Os Comaroff (1992) se referindo à empresa cultural do colonialismo Britânico na África
relacionam a Medicina e o Imperialismo no trato ao corpo Africano como objeto de especulação
Europeia que personalizou o sofrimento e a degeneração nestes corpos e associou o seu
ambiente a uma incubadora de febres e aflições. A associação do corpo Africano à degradação,
poluição, imoralidade e doença no panorama social e científico, serviu aos regimes coloniais
para impor a sua dominação sobre objetos e coletividades em todos os lugares. (COMAROFF,
1992, 215/216) O espaço urbano, como receptáculo das ideias, se configurou de modos
diferentes nas cidades colonizadas sempre sob a égide de controle espacial, moldado de maneira
a criar verdadeiras barreiras contra a infiltração do negro, cujo tom era o de promover e acentuar
as diferenças sociais. (NASCIMENTO, 1989, 69)
Em Salvador, a distribuição d´água realizada pelo corpo Africano e Afrodescendente o
sujeitou à condição de corpo doente, ao mais baixo prestígio social e como veículo de
transmissão de doenças, condição que pretendia motivar a contratação de penas domiciliares,
principal fonte de rendimento da Companhia. A ameaça da doença, principalmente para o
imigrante Europeu, e a permanente preocupação com a imagem nacional diante dos olhos do
mundo civilizado, levou o poder público a tomar medidas para melhorar as condições de
salubridade pública da cidade através de dispositivos de poder coercitivos apoiados na suposta
neutralidade da técnica e da ciência. (SILVEIRA, 2000, 25) Aos homens da ciência foi evidente

3
Relatórios de Trabalho do Conselho Interino de Governo (BA), edição 2, 1856, pág. 51.
114
a incompatibilidade, o protagonismo e exclusividade, do desempenho da distribuição de água
por corpos negros, organizando empresas privadas que pretenderam substituir o serviço.
Em 1784 foi nomeado um almotacé para cuidar do asseio da cidade que se achava
repleta de porcos e outros animais pelas ruas, mesmo havendo uma antiga postura que proibia
esta prática. (MAROCCI, 1996,107) Aplicando penalizações a quem descumpria as posturas
Municipais, não surpreende que escravizados, preto forro, oficiais mecânicos e
vendedor/mercador, fossem listados como os mais penalizados por comportamentos anti-
higiénicos. O Serviço de Asseio e Limpeza da Cidade, gerido pelo Governo da Província em
1876, contava com 57 carroceiros4, compostos por 39 homens livres e 18 escravos, distinguidos
segundo a sua cor, 41 foram classificados como crioulo, cinco mulatos, quatro mulatos escuros,
dois pardos, um preto. Verificamosa predominância da contratação do trabalhador livre crioulo,
sendo o Africano, o preto, minoritário, que demonstra já a gradação de tons de negro que
conformará a classificação racial da cidade.
Figura 3- As carroças de que ninguém mais se lembrava voltaram a fazer a limpeza pública; O fiscal
das carrocinhas; Um auto-lixo.

Referência: A Noticia (BA), 8/01/1915.

Na tentativa de recuperar o ambiente científico no panorama social da época,


recuperamos a tese de Dr. Luis de Oliveira Almeida apresentada à Faculdade de Medicina da
Bahia, intitulada “Hygiene dos pobres” (1908), que reforça a associação do consumo de
destilados, pela dificuldade de acesso à água potável, à degradação moral e ao crime,
demonstrando que em 50 anos o panorama científico não se tinha alterado assim tanto.
Apoiando-se no que hoje chamamos de história social, o autor procura a justificativa para a
prática, referindo que a dificuldade em ingerir água potável fazia com que se recorresse mais
frequentemente aos destilados. Se no campo os pobres iam buscar água n´um tanque ou fonte
onde se acha em repouso, condição que favorecia a sua decantação, na cidade, usa-se a água

4
Apeb, Maço 6412/1876.12.20 apud SAMPAIO, 2005, 52.
115
recolhida das bicas dos telhados das casas, imundos e infectos, em vasos onde se banham muitas
vezes ou em cisternas, para toda sua necessidade, desfavorecendo a qualidade da água
consumida. (ALMEIDA, 1908, 27/28)
Segundo ele, os pobres por sua condição, não obtinham água comprada e haviam
adquirido o hábito de beber cachaça pelo trabalho a que são destinados e sua falta de recursos.
Bebiam cachaça uma vez que chegando a casa, nem água nem outro alimento os espera.
“Bebem-n´a então julgando saciar a fome e a sede e os acompanha muitas vezes quase toda a
sua família.” Este hábito da população pobre transforma, segundo as palavras do autor, “almas
inocentes [...] culpadas, quanto organismo são se torna doentio, quanta moral se desorganiza!”
(ALMEIDA, 1908, 31)
Desta vez, o autor se referiu ao número extraordinário de imigrantes, não se referindo
ao Europeu que sofre com o clima tropical, mas ao Africano, como visitas dispensáveis e
prejudiciais que só vêm contaminar o nosso meio, transmitir moléstias alheias a nós ou arrancar-
nos tanta preciosidade em tantas almas nas falsificações de seus produtos. A produção científica
mantem teorias de superioridade racial branca, superioridade moral e civilizatória ainda no
início do séc. XX.

A experiência de Pedro Maxixe (1849)


De Itapagipe, Pedro Maxixe publica no jornal A Marmota (BA) de 31/05/1849, uma
carta a seu primo e amigo Dr. Jarreta. Em duas edições, descreve a situação social e as condições
de acesso aos bens de primeira necessidade da península, expondo as suas preocupações:
Saúde e dinheiro lhe apeteço, por que tambem he do que careço. Dou-lhe parte
que tendo de tomar uns banhos salgados, que me receitou o medico Pitorra, por
via da frouxidão que padeço, preferí este amavel e pittoresco sitio do Papagaio,
onde me acho, ao da Calçada do Bomfim; porque, meo primo, aqui está a gente
mais á vontade, sem o luxo que ali he preciso, que bem se pode chamar a côrte
da Bahia. (A Marmota (BA), edição 248, 1849, 2)

Afligido por doença, Maxixe, assim como grande parte da elite da cidade, afasta-se do
centro da cidade para regiões litorâneas, foge do reboliço e do luxo da corte, que mantinha o
seu status social e de vida opulento. Em Itapagipe declara ter melhor acesso aos bens de primeira
necessidade como carne, aqui excelente, não como a da cidade, “magra, muxilenta e ramelosa”.
A dezoito de agosto refere a dificuldade no acesso à água potável, lamentando que,
sendo Itapagipe um dos mais pitorescos e agradáveis sítios da Bahia, o mais excelente dos
subúrbios, “mesmo nas barbas da Camara de seo Municipio não possua uma fonte!”, o que

116
obrigava ao uso de cisternas de água de gasto, existentes uma em cada canto. Na Calçada há
duas fontes:
[...] a saber, uma que se apellidada do - Gama - e padece retenção d´ourinas, e
outra intitolada da - Alegria - mas que bem lhe poderião trocar as bolas,
chamando-a da tristeza. E dar-se-ha caso que metessem em cabeça dessa gente
Municipal, que o povo de Itapagipe vá á meio legoa de distancia matar a sêde
nas agoas da Alegria? (A Marmota (BA), edição 270, 1849, 2)

O fácil acesso à água de gasto, armazenada em cisternas, e a dificuldade de acesso à


potável favorecia Itapagipe em relação ao centro da cidade, uma vez que, segundo Vilhena, não
existia dentro da cidade uma única fonte, cuja água se possa beber, quando para gasto não
abundam. (VILHENA, 1969, 102) Por escassez, e porque causa nojo beber tal água, o
abastecimento era realizado por barris enterrados que sofrem igualmente cruéis martírios:
Primeiramente existe ahi uma turba de negras lavadeiras, que fazem as maiores
porcarias, como sejão, lavarem as mãos e pés dentro desses barrís, e ainda isso
não he tudo, porém que lavão também as pernas, barrigas e seos suburbios:
depous lá de vez em quando apparece um cão ou um gato morto d´entro d´agoa.
Em vista d´isso, primo, faça idéia como não será salobre e gostoza semelhante
bebida! E pensa Vm. que um escravo que vai buscar agoa olha lá para essas
ninharias? Não creia. (A Marmota (BA), edição 270, 1849, p.3)

Maxixe teria de aguardar até 18925 para o abastecimento d´água do Queimado chegar a
Itapagipe, quando a Companhia, conhecendo quanto era sensível a falta d´água em alguns
pontos no Bomfim, onde no verão do ano passado se vendera por 320 rs. o barril, e acedendo
aos pedidos dos habitantes d´essas localidades, prolongou o encanamento de Água de Meninos
até à Baixa do Bomfim e Itapagipe, assentando “pelo menos um chafariz, assim como 2 ou 3
no espaço comprehendido entre o Noviciado e o largo do Bonfim.”6
Temos além disto uma fonte no Bonfim; porém esta não só também fica
distante, como he achacada da mesma molestia, que padece á do Gama: uma e
outra não valem, todavia, um dos barrís da Massaranduba, quer pela
abundancia, quer pela qualidade do licôr, porque sempre estão entupidas, e a
agoa he muito pesada e de gosto desagradavel, e nesta parte não lhes arreia
bandeira a da Alegria: Se o dinheiro gasto nellas, Srs. Camaristas, se applicasse
em construir uma fonte no referido sitio da Massaranduba, seria mais proveitozo
ao povo de Itapagipe, que não se veria na obrigação de beber agoas, que os
negros vão buscar, em canôas, nos Fiaes S. João, Cabrito e outros lugares, para
vender; o que ainda assim, mal delle, se não fôra esse ramo de commercio
aquatico. (A Marmota (BA), edição 270, 1849, p.3)

Concluindo o seu relato, Maxixe refere as alternativas ao consumo de água potável,


referindo novamente o recurso a cinco alambiques que funcionam em trabalho contínuo, “onde
se pode tomar um codorio de bôa e superlativa, que em abono da verdade, não ha onde se

5
Jornal de Noticias (BA), 25/01/1892;
6
Fala do Presidente Ferreira Penna (BA), edição 1, 1860, pág. 75.
117
fabrique de melhor; bem que eu ainda não provei della, pois estou a espera de que Vm. por cá
appareça para tomarmos uma pingolêta dessa nossa patricia dourada.” A escassez e a
falsificação da água faziam o recurso ao alambique mais frequente, o que na perspectiva médica
do séc. XIX, não favorecia o estado das afecções nervosas e moral da população, que, tornando-
se habitual, resultava necessariamente em perturbações de movimento, de sensibilidade, e de
inteligência, considerava o Dr. Ernesto Carneiro (1864).

4.2 – O controlo da profissão.


Durante o período colonial a Câmara procurou estabelecer regras para o exercício do
comércio porta a porta. Inicialmente, os que se ocupavam da atividade tinham livre trânsito em
todo o meio urbano e arredores, mas a partir da década de 60 do séc. XVIII, são especificados
locais para o comércio ambulante sendo construídos cobertos, cabanas, e quitandas, alugados
aos que andam pelas ruas. Dificultando o tráfego com a venda de comida7, foi pretendida a
desocupação de passeios. (SOUSA, 1996, 95)
Procurando impulsionar as boas práticas na utilização da água das fontes públicas, foi
proibida a lavagem de roupas nas fontes ou em casas que não tenham quintal; o estender da
roupa nas ruas, praças e avenidas; a abertura de poços ou qualquer obra hidráulica com prejuízo
dos rios e fontes de servidão pública. Além das Posturas, a Municipalidade progressivamente
aumentou o controlo do comércio ambulante exigindo licença para o exercício da atividade. No
período compreendido entre 1797 e 1801, 70% das licenças são registradas por mulheres
Negras, livres ou não8, que reforça a posição de João Reis, quando explica a resistência dos
trabalhadores mecânicos em afirmar a sua profissão como fuga ao pagamento de impostos
Municipais. A partir de 1876, a obrigatoriedade da matrícula dos profissionais, que instituía
imposto sob a profissão, torna-se mais exata, especificando as profissões a que se referia:
[Os] aguadeiros, carroceiros, ganhadores, engraxadores, cocheiros, conductores
de carros, bondes, etc, hortaleiros, cosinheiros, jardineiros, criados de qualquer
espécie devem ir se matricular na intendencia municipal até o dia 20 do mez
proximo vindouro, sob as penas e multas discrimminadas nas posturas e nos
regulamentos respectivos. (O Monitor (BA), edição 51, 3/08/1876, p.1)

7
OFÍCIOS AO GOVERNO, 1768-1807. Mas, MANUSCRITO, FL. 7; condenações feitas pelos
almotaçés, 1777-85. Mas, manuscrito, s/ano; ATAS DA CÂMARA, 1776-87. MAS, manuscrito, fl. 91-
7. Algum tempo depois, já em 1772, outras foram feitas pela Câmara na Baixa dos Sapateiros e na Praça
do Terreiro, além de um bom número de cobertos e cabanas na praia. Em 1769 foram construídas várias
quitandas em “uma sesmaria que a Câmara possuía saindo das Portas de São Bento para a parte da capela
de N. Senhora da Barroquinha”.
8
LICENÇAS, 1797-1801. MAS, manuscrito apud SOUSA, 1996, 98.
118
A partir de 18999 determina o preço máximo de revenda, de cem reis para o barril de 20
litros, que já se negociava a um preço maior, isentando ao pagamento do imposto a quem
praticar preços abaixo do limite, tentando por este meio controlar o cenário calamitoso que já
se instalara na cidade.

Ninguem poderá vender agua por mais de cem reis ao barril de 20 litros pelo
mesmo sem que esteja matriculado e tenha pago o imposto de que trata o
número 96 do art.º 2.º da lei n.º 320 de 3 de Janeiro de 1898, o qual fica elevado
ao dobro sob pena de pagar a multa de quinze mil reis pela primeira vez na
reincidencia trinta mil reis e cinco dias de prisão.
Quem vender a cem reis ou menos, fica, durante o exercício corrente, isento do
aludido imposto. Quem porém vender a cem mil reis ou menos fica isento da
matricula como do pagamento do imposto. (Posturas Municipais, 20/01/1899)

O Aguadeiro foi envolvido na polêmica entre a Municipalidade e a Companhia, sendo


sinalizado como o principal obstáculo à distribuição pelo exagerado preço cobrado pelo
transporte. (Anexo 1) Foi denunciado nas gazetas da cidade, que consideravam o serviço
altamente lucrativo e sem regulamentação: “Por quanto compravam os barris? indagamos? - a
vintem - E por quanto vendiam? - Dois tostões ás vezes, um tostão quasi sempre.... Era um
lucro fabuloso”. (A Tarde (BA), 9/01/1915) A autoridade policial foi chamada a intervir,
obstando a que imponham uma tabela de preços exageradíssimos, o que contribui para agravar
ainda mais a situação. “Não nos consta que a agua nos chafarizes tenha subido de preços, e de
algumas fontes elles se servem sem a menor contribuição...Qual pois a razão porque exigem
por uma carga d´agua 2$, 3$ até 5$?” (Cidade do Salvador (BA), 19/01/1899)
Esta situação demostra como apesar de todas as limitações administrativas, o Aguadeiro
sabia negociar e continuava essencial para a distribuição, ao contrário da Companhia, que se
mantinha irredutível em não aceitar a redução do preço da pena ou barril d´água, pressionando
a administração Municipal com o encerramento dos equipamentos.
No domingo ás 7 horas da manhã, ainda havia chafarizes fechados, não obstante
a aglomeração de carregadores de agua que já se achavam á espera dos
fleugmaticos empregados, que em nada se encommodam e que tanta pressa
teem em retirar-se, porque, não é raro ver-se chafarizes fechados ás 5 horas da
tarde. (Cidade do Salvador (BA), edição 49, 1899, pág. 1)

Da seca decorreu a autorização Municipal para a utilização dos mananciais da fazenda


Campina ao Retiro, adicionada formalmente ao sistema do Queimado. Em compensação
forneceria água à população, das 6 horas da tarde ás 9 horas da noite, de forma gratuita. (Jornal
de Noticias (BA), edição 5662, 23/11/1898, pág. 1) O Queimado, não atuando conforme

9
Livro de Posturas Municipais n.º 30-A de 20 de janeiro de 1899.
119
combinado, obrigou à fiscalização da Intendência Municipal, que verificou que o serviço era
fechado pelos agentes que alegavam serem essas as ordens superiores. Nesta circunstância, o
serviço continuou a ser realizado com a maior irregularidade, graças à má vontade ou a falta de
intuição de que têm dos seus deveres, ou de recomendações ou ordens que recebem dos patrões.
(Cidade do Salvador (BA), 11/04/1900)
A situação calamitosa do serviço d´água no final do século obrigou ao desenvolvimento
de novas estratégias em alternativa ao serviço do Queimado, exigindo um serviço mais regular,
que continuava a ser feito com o maior atropelo, em detrimento para as pessoas pobres. (Cidade
do Salvador (BA), 11/05/1900) Foi novamente denunciado o estabelecimento de odiosa
preferência dos empregados dos chafarizes, essas miniaturas de régulos e caprichosos, que
admitiam apenas o fornecimento a pessoas de sua simpatia, com prejuízo das outras que ali
ficam retidos duas e mais horas, não dando troco ou recebendo fixas:
Porque rasão se hão de fechar na presente crise os chafarizes tão cedo? Alguns
ha que às 3 horas da tarde já não vendem mais agua quando muito bem pode
esse serviço prolongar-se até as 7 ou 8 horas da noite. No tempo em que havia
abundancia de agua e que as pennas particulares funcionavam regularmente,
todos os chafarizes estavam abertos pelo menos até 7 horas e 7 e meia da noite:
agora, porem, que a necessidade do precioso liquido indispensavel à vida,
augmenta com a escassez, é que a Companhia do Queimado, que se mantem do
favor publico e de conceções feitas pelo Governo para a commodidade da
população, se lembram de mandar fechar tão cedo os chafarizes. (Cidade do
Salvador (BA), 11/05/1900)

A Municipalidade foi então obrigada à implantação de um serviço emergencial de


distribuição por carroças, em 1899, em alternativa ao serviço da Companhia e dos Aguadeiros,
irredutíveis nas negociações. No entanto, através da compra d´água nos chafarizes pelo serviço
de carroças, a Intendência parece, mais uma vez, apenas preocupada em interferir no trabalho
do Aguadeiro, impedindo a adição da taxa de transporte - seu lucro. Substituindo o Aguadeiro
de ganho pelas carroças Municipais, que contrataram os mesmos Aguadeiros mas agora sobre
restrições contratuais: supervisão, chefia, horário de trabalho, objetivos e rendimento fixo pela
Municipalidade. Claro que a gestão do engenheiro Caminada enfrentou dificuldades para ter
pessoal numeroso, disciplinado e interessado para o trabalho:
A maior parte dos trabalhadores são retirantes, que depois de algumas horas ou
de um dia de trabalho abandonam logo este porque, dizem eles, além de ser
excessivamente fatigante penoso e prejudicial á saúde, visto que vivem
completamente encharcados, a pequena diária de 2500 que vencem, não lhes
compensa o risco que correm. (Cidade do Salvador (BA), edição 49, 1899, p.1)

O abandono dos trabalhadores do serviço Municipal foi tão grande que chegou a ter o
seu número reduzido de trezentos e tantos, para apenas cinquenta, que só trabalhavam até o

120
meio dia, sendo o serviço totalmente interrompido dessa hora em diante e durava todo o
domingo, não obstante serem outros tantos contratados. “Hontem compareceram cerca de 100
operários.” (Cidade do Salvador (BA), edição 49, 1899, p.1)
As reclamações eram diárias, repetindo-se às anteriormente relacionadas aos
colaboradores do Queimado, de vender água apenas a certas e determinadas pessoas,
estabelecendo odiosas preferências, quando não despejam a pipa em uma só casa, ou apenas a
quem não tem freguês, recusando-se a abastecer terceiros. “Depois da reducção de 12$000 para
8$000 diários no aluguel das carroças nada mais natural dizem elles de que o serviço peiorar,
visto como o animal passa a comer menos, o aguadeiro deixa a ganhar na mesma proporção, e
portanto, nao convem muito exforço.” (Cidade do Salvador (BA), 11/04/1900)
E, dizem os carroceiros municipaes, só temos ordem de ceder agua nesta rua,
da casa que ficam mencionadas; cabendo a cada uma, uma pipa por dia. Na rua
da Independencia, teimam elles um só vender agua a quem não tem freguez, e
ainda quando a muitos rogos, se dignam dar um barril mal cheio, nao querem
subir escada e exigem morador do primeiro degrau em diante. (Cidade do
Salvador (BA), 11/04/1900)

A fiscalização da Municipalidade foi criticada pelo pouco caso e foi necessária a


solicitação da intervenção policial que ameaçou os vendedores refratários de mandá-los
hospedar na casa de correção, caso não quisessem vender água a retalho à pobreza. (Cidade do
Salvador (BA), edição 49, 1899, pág. 1)
Em 1906, um ano depois do encampamento da Companhia do Queimado, Nina
Rodrigues realiza, na Faculdade de Medicina da Bahia, o primeiro estudo etnográfico da
população de origem Africana, quando a identidade do mulato, associada à degradação,
começou a encontrar resistências, decorrendo a partir desta temporalidade um processo de
reinterpretação do corpo do mulato, que até agora havia sido considerado como um obstáculo
à imagem do recente país, como ainda observamos no trabalho de Octávio da Silva (1908):
Chegados á terra, ahi se vêem atropellados com carroças, carretas, velhas
carcassas immundas, atulhando e embaraçando a passagem dos tranzeuntes,
tornando-se mais nojentas, já pelas immundices que trazem, já pelos
excrementos e urina dos animaes que as conduzem, já e em mistura com tudo
isso, fogareiros, bancos, comestiveis, e individuos de baixa esphera social
pupulando alli, qual poça d´agua em que abundam as larvas dos pequenos
insectos, empestando mais o ar respirável, pelas emanações fétidas que exhalam
(SILVA, 1908, 2)

A ideologia racista se desenvolverá nas teorias eugenistas que continuaram


impregnando a ciência, e não será surpreendente que a nova articulação hídrica elaborada por
Theodoro Sampaio, apesar de ele ser um mulato, demonstrar articulações discriminatórias do
serviço. Este processo demonstra como a formulação de medidas urbanas com base racista e

121
segregatória foi anterior à formação da Companhia, passa por todo o período de funcionamento,
se ajustando aos novos contornos sociais e político (República), e mantida com o
encampamento da Companhia, em 1905.

4.3 “Territórios sobrepostos, Histórias entrelaçadas”, da capital para Santo Amaro.


Se desde o princípio reconhecemos as histórias profundamente complexas e
entrelaçadas das experiências específicas, mas mesmo assim interligadas e
sobrepostas — das mulheres, dos ocidentais, dos negros, dos Estados e culturas
nacionais —, não há nenhuma razão intelectual particular para conceder um
estatuto ideal e essencialmente separado a cada uma delas. Mas seria desejável
preservar o que há de único em cada qual, enquanto preservarmos também
algum sentido da comunidade humana e as disputas efetivas que contribuem
para sua formação, e da qual todas participam. (SAID, 2011, 55)

Neste ponto enunciamos os entrelaçamentos10 da gestão do Queimado na formação de


outras Companhias Aquíferas na Província e além fronteiras, para África. Procuramos na
experiência histórica, que evita a compreensão linear, o reconhecimento do que há de único em
cada expressão, deixando propostas para aprofundados estudos futuros.
Santo Amaro foi o núcleo urbano mais perto de Salvador que apresenta evidências de
ter bebido da estratégia de distribuição d´água do Queimado. Para o abastecimento à cidade
foram estudadas duas possibilidades: o encanamento das águas do Perauna, ou a abertura de
um poço artesiano. Em 1850 optou-se inicialmente pela solução experimental do poço
artesiano, considerando as vantagens econômicas que este sistema prometia, tentativas que se
prolongaram até 1862, sem sucesso.11
Sob a direção do Engenheiro André Przewodowski, militar contratado pela Junta de
Engenheiros das Obras Públicas, a obra dependia da importação de peças da Europa, e todas as
previsões de entrega foram sucessivamente adiadas. Iniciada a 29 de setembro de 1857, a 27,5
palmos de profundidade encontrou uma camada impermeável que se prolongou por
440/500/600 palmos, adiando sucessivamente a expectativa de encontrar água.
O interesse na instalação deste equipamento não estava só na captação d´água por baixo
custo, como também no interesse comercial, em instalar o primeiro poço artesiano no Império,
o que permitia a inscrição da patente de invenção da sonda, obviamente perspectivando o lucro.

10
Em referência ao capítulo 1 do livro “Cultura e Imperialismo” (2011) de Edward Said.
11
Relatório com que Joaquim Antão Leão passou a administração da Província da Bahia a Antonio
Coelho Sá e Albuquerque (BA), a 30/09/1862, edição 2, 1862, pág. 54; Fala recitada na abertura da
Assembleia Legislativa da Bahia pelo Presidente da Província Alvaro Tibério de Moncorvo e Lima
(BA), 14/05/1856, edição 1, 1856, pág. 221; Relatório pelo 1.º Vice-presidente da Província da Bahia
João Lins de Sinimbu por ocasião de passar-lhe a administração da mesma Província (BA), 17/05/1858,
edição 2, 1858, pág. 21/22.
122
Sucessivos atrasos foram ocasionados pela dependência de ferramentas, elementos e
maquinismo Europeus que demoravam nos procedimentos alfandegários: “Em uma das peças
havia uma inscripção pela quase se reconhecia ter ella expedido de Paris no mez de Setembro
de 1850, e que sahio d ´Alfandega em 1857”, demorando sete anos para que ficassem
disponíveis. Para ultrapassar esta dependência foram encomendadas ao Engenho da Fundição
Bahiana, de Cameron Smith & Companhia a produção de peças para se acherem prontas à
medida que a sondagem avançar.12
Por quatro vezes em três anos a obra foi paralisada: duas por atraso das consignações, e
por ausência do engenheiro em comissão pelo interior da Província. Parecia não ter fim.
Finalmente, em 1862, Joaquim Antão Leão mandou suspender o trabalho, uma vez que a
iniciativa não apresentava certeza de obter água:
Na occasião em que fui a Santo Amaro examinar as estradas que alli se estão
construindo examinei tambem o poço, e fiquei mais convencido da necessidade
de se fazer um exame profundo das duas maneiras de abastecer a Cidade, e
submettendo a Junta de Engenheiros a questão da praticabilidade da fonte
artesiana, foi ella de opinião que em vista das condições topographicas e
geologicas que apresenta a localidade escolhida, não se pode mathematicamente
determinar a existencia de camadas subterraneas d´agoa potavel; o que não se
devendo esperar um resultado satisfatorio de breve apparecimento d´ella, mais
conveniente será abrir mão de tal empreza, recorrendo-se ao encanamento das
agoas do rio – Peraunas, affluente do Sergy, até a Cidade. (Fala recitada na
abertura d´Assembleia Legislativa da Bahia por Joaquim Antão Leão (BA),
1/03/1862, edição 1, 1862, pág. 31)

Abrindo mão do poço artesiano, que atrasou o abastecimento e onde se aplicaram


avultadas somas, em balde, recorreu-se então à segunda alternativa: o encanamento das águas
do rio Peraunas, afluente do Sergy, por meio do encanamento de fontes naturais, por uma
Companhia Aquífera. Formada em 1856, a companhia sujeitou-se quase às mesmas condições
do serviço da Capital, pela importante Companhia do Queimado.13
A 22 de fevereiro de 1871, foram aprovados os estatutos da Companhia Aquária
Sant´Amarense, tendo o empresário Major Imburana cedido o privilégio a Antonio Paranhos
de Freitas Paranhos Junior, que se comprometeu a abastecer a cidade com três chafarizes,

12
Fala do Presidente da Província João Lins Sinimbu (BA), edição 1, 1857, pág. 127; Fala do Presidente
da Província Paes Barreto (BA), 15/03/1859 edição 1, 1859, pág. 109/110; “A exceptuar-se a pequena
porção que veio de Pariz, tudo há sido confeccionado na Fundição Bahiana, para que se achem prontos
á medida que avançar a sondagem”.
13
Relatório com que Joaquim Antão Leão passou a administração da Província da Bahia a Antonio
Coelho Sá e Albuquerque (BA), 30/09/1862, edição 2, 1862, pág. 54; Fala recitada na abertura
d´Assembleia Legislativa da Bahia por Joaquim Antão Leão (BA), 1/03/1862, edição 1, 1862, pág. 31;
Relatório do Presidente da Província Gonçalves Martins, 15/04/1871 edição 3, 1871, pág. 7;
123
canalizando as águas das vertentes do alto do tanque do engenho de S. Cosme, com 75 mil
canadas.
Zilda Paim (1974) relata o envio do filho de Antonio de Freitas a Londres para a compra
de dois chafarizes, que custaram setenta contos de reis, instalados com o acompanhamento de
um técnico. Por si só, os chafarizes valiam mais que toda a cidade: “he um rasgo da Arte, mas
não uma cousa a proposito.”14
Companhia Aquaria Sant´Amarense – Breve deve inaugurar-se. Chegou da
Europa todo o material que lhe faltava. O empresário pretendia começar o
fornecimento d´agoa no dia 2 de fevereiro; mas é impossível, sendo as
informações que tenho, que por todo este mez ou principio do seguinte os
habitantes d´aquella importante cidade vejam realizado um dos melhoramentos
mais exigidos pela salubridade publica.” (Fala do Presidente da Província da
Bahia Freitas Henriques, 1/03/1872, edição 1, 1872, pág. 127)

A 14 de abril de 1872 foi inaugurado o importante melhoramento para a cidade de Santo


Amaro, sendo recolhidas à tesouraria provincial 600 ações pertencentes à Província, no valor
total de 30:000$000. O Município foi detentor de ações até 1927. À semelhança da Companhia
do Queimado, a gestão foi alvo de várias críticas, denúncias e debates nos jornais, envolvendo
qualidade do serviço e acusações de envolvimento político, displicência do gerente da
Companhia que tinha o tempo empregado em altas cavalarias, nos planos tenebrosos da
vergonhosa oligarquia, que aqui foi implantada para a desgraça desta terra.15
No trabalho “A história de Santo Amaro”, de Herundino da Costa Leal, descrevendo
o espaço do chafariz, segundo informações colhidas de pessoas mais antigas da cidade, relata a
sua organização intermediada por grades no acesso, dois torniquetes para controle da entrada e
saída dos Aguadeiros. Junto à entrada, uma guarita protegia o empregado da Companhia que
fazia o recebimento de vinte réis, quanto custava a entrada daquele pessoal no recinto do
chafariz. (LEAL, s/d, 34/35)
A formação de Companhias para o abastecimento d´água na Província foi uma
articulação continuada, promovida pelo Governo. Em 1872 o Tenente Coronel Carolino da
Silva Tosta é contratado para o abastecimento d´água potável a Cachoeira, S. Felix e Muritiba.

14
Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial da Bahia na abertura da sessão ordinária do anno de
1846 pelo Presidente da Província Francisco Jose de Sousa Soares d´Andrea (BA), edição 1, 1846, pág.
81.
15
Fala do Presidente da Província da Bahia Freitas Henriques, edição 2, 1872, pág. 16; Correio do Brazil
(BA), edição 458, 1905, pág.1/2;
124
O Dr. Alexandre José de Barros Bittencourt para a cidade de Nazaré, Manuel Amado de Souza
e João Baptista Correia de Araujo para o abastecimento de Maragogipe.16
Em 1874, o Presidente da Província Cruz Machado abriu concurso, a concessionários
ou quaisquer outros pretendentes, para o abastecimento a outras localidades, mas nenhum
contrato foi feito. Tais empresas não se realizaram, não porque não haja a necessidade, mas
devido à crise da praça que embargou as aspirações de qualquer pretendente. Surpreso que pelos
grandes resultados obtidos e a aceitação que tem gozado a Companhia do Queimado não tenha
incentivado à reunião de capitães e esforços individuais, para o incumbimento deste importante
serviço que seriam melhor executados e com maior proficuidade. (Fala do Presidente da
Província Cruz Machado (BA), edição 1, 1874, pág. 236)

Conclusão
Oitenta e dois anos (1848 a 1919) de investimentos no serviço de abastecimento d´água
não alteraram a percepção popular da má qualidade do serviço.
Estudar a percepção popular deste serviço implica considerar questões técnicas, conduta
moral, engajamento político, condições higiênicas e sociais dos envolvidos na gestão do recurso
hídrico, composta por um largo espectro disciplinar: de médicos a aguadeiros. O clima de
suspeição abrange a todos: médicos são acusados de emitir pareceres que favorecem interesses
particulares em detrimentos dos interesses públicos; a Companhia, de fornecer e distribuir
apenas sob o intuito de auferir altos lucros; aos seus empregados, que desprezam condições de
higiene; e distribuidores Africanos e afrodescendentes, por falta de asseio e atuando como
pequenos régulos na distribuição de água.
O Africano, que realiza a revenda da água, atuando no fim da cadeia de distribuição, foi
descrito como o propagador das moléstias que atingiam a população que consumia a água por
eles distribuída, através do seu descaso no manuseio do líquido ou por falsificação da
proveniência. Foi, talvez, o mais fácil de excluir da cadeia, através do incentivo à distribuição
domiciliar e pela retirada dos equipamentos dos chafarizes da cidade, onde se juntavam.

16
Pela Lei n. 1212 de 17 de Maio de 1872 foi concedido ao Tenente Coronel Carolino da Silva Tosta,
“ou à quem mais vantagens oferecer, privilegio por 50 annos á contar da data do contracto com o
Governo da Província para estabelecer chafarizes e abastecer de agua potável a Cidade da Cachoeira e
as povoações de S. Felix e Muritiba”. Pela Lei 1219 de 28 de Maio de 1872, “foi o Governo autorizado
á conceder ao Dr. Alexandre José de Barros Bittencourt, ou a quem mais vantagens oferecer, privilegio
por 50 annos para a construção de chafarizes d´agua potável na Cidade de Nazareth, podendo o
emprezario para este fim organizar uma Companhia ou associação com direito ás desapropriações, que
forem necessárias a realização da obra”. Pela Lei n. 1233 de 13 de Junho do mesmo an foi concedido “à
Manuel Amado de Souza e João Baptista Correia de Araujo privilégio exclusivo por 50 annos para o
abastecimento d´agua potável na Cidade de Maragogipe por meio de dois chafarizes.”
125
Gradualmente foram criados, a partir do século XIX, vários espaços de abastecimento:
as reservas naturais da cidade, os poços geridos por particulares, a distribuição domiciliar, as
“casas de vendagem”, e os chafarizes da Companhia. Enquanto existiram melhorias na
distribuição domiciliar, que servia maioritariamente à classe branca dominante, a população
pobre, que não tinha recursos para pagar o líquido, e enfrentava resistência à contratação da
pena pelo proprietário dos imóveis, que não o habitava, foi gradualmente abandonada e o seu
acesso à água restrito e dificultado.
Envolvidos nas preocupações de higiene do século XIX, foi evidente aos “homens da
sciencia” a incompatibilidade no protagonismo e exclusividade no desempenho destas funções
por corpos Africanos e afrodescendentes, organizando empresas privadas com a
responsabilidade da gestão dos serviços de saneamento da cidade: água, esgotos e limpeza. A
ideologia e as práticas territoriais aplicadas à gestão do serviço de abastecimento e saneamento
separaram territorialmente as classes e raças através da criação de espaços de abastecimento
diferenciados a cada contingente, servindo à Companhia privada do Queimado.
As fontes públicas existentes na malha urbana seguem deixadas ao acaso pela
Municipalidade e os chafarizes de servidão da Companhia do Queimado foram gradualmente
desmantelados do espaço comum, permanecendo apenas as que lhe foram conferidas qualidades
artísticas e representativas relevantes, condecorando as praças do Terreiro de Jesus ou a
Piedade, evidenciando a ausência de melhorias de infraestrutura para a população pobre.

Fontes consultadas
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Fala recitada na abertura d´Assembleia Legislativa da Bahia pelo Presidente da Província Antonio da
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128
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho procurámos as informações disponíveis da Companhia do Queimado no
período da sua atuação 1852-1905, com o objetivo de reconhecer articulações e suas
consequências sociais na cidade. Por ser uma entidade que manejava um dos mais importantes
recursos naturais da cidade, a água, foram vastas as contribuições indiretas relativas ao serviço
em jornais de época, em trabalhos médicos e técnicos, que ajudaram a remontar a atuação da
Companhia, apesar da escassez de documentação própria. Em quatro capítulos explorámos as
contribuições da Companhia em diferentes vieses, urbano, institucional, científico e social, com
o objetivo de entender os impactos do serviço na cidade.
No capítulo 1 enfocamos as articulações urbanas para acesso e captação d´água
anteriores à implantação do serviço da Companhia, entendendo as alterações e permanências
que decorreram na captação com o início das atividades. A dificuldade de acesso à água
inscreveu especificidades territoriais em Salvador que a partir da ocupação colonial sempre
articulou a distribuição d´água na forma de venda, primeiro de poços particulares, depois
desenvolvendo um processo exploratório escalonado pela Companhia. Da exploração
econômica da água resultaram espacialidades diferenciadas, agravadas, polarizadas e
discrepantes entre o serviço da pena domiciliar e a instalação das, genericamente denominadas,
“estações de vendagem”, que iniciaram novos formatos de venda: os chafarizes e as “casas de
vendagem”, instaladas para o abastecimento a quem não podia pagar pelo serviço domiciliar.
A última variante formalizou uma tipologia particular de venda de Salvador fruto da
resistência da Companhia em investir em infraestrutura para os que não podiam pagar pelo
serviço domiciliar, seu serviço predileto porque lhe auferia maiores lucros. A falta de
investimento para o abastecimento da pobreza originou uma incompatibilidade imprevista na
instalação dos equipamentos dos chafarizes: a manutenção da dependência da distribuição
efetuada pelo distribuidor Negro, o Aguadeiro. Atuando nos equipamentos monumentais,
importados da Europa, que pretendiam demonstrar a modernização da cidade, o uso para
abastecimento da população e a presença do aguadeiro nestes locais, de acordo com a ideologia
da época, constituiu um obstáculo à construção da imagem moderna da cidade que se pretendia
apresentar como apelativa à emigração europeia. Deste “inconveniente” desenvolveram-se
forçosamente espaços alternativos para esta função, marginais na malha urbana, deslocando os
aguadeiros dos espaços centrais dos chafarizes.
A Companhia Beberipe de Recife desenvolveu um processo de abastecimento
semelhante ao de Salvador, no entanto, na especificidade das “casas de vendagem” é notória a

129
defasagem deste equipamento quando comparado ao de Salvador. Se em Recife foram
construídos espaços de raiz, em Salvador foram instalados em espaços subalugados, pouco
conhecidos ou divulgados na literatura. Instalados em espaços resultantes da subdivisão das
casas senhoriais do séc. XIX, em condições de apenas uma porta e janela, um torniquete que
controlava o acesso, guarda e a torneira da Companhia, nestes espaços se debruçaram as
preocupações dos médicos que denunciaram a precariedade higiênica do serviço focando, mais
uma vez, não no serviço da Companhia, mas nos seus utilizadores.
A problematização do serviço domiciliar é fundamental para entender o processo que
levou ao encampamento da Companhia. Foi a restrição d´água neste serviço, que afetou a elite,
que obrigou a intervenção Municipal no serviço. Apesar da frequente inconstância do
abastecimento, os investimentos na nova captação justificaram a solicitação do aumento da
tarifa que encontrou resistência e oposição popular. A Companhia usufruirá do seu privilégio
de distribuição para orquestrar a disponibilidade do serviço utilizando esta prática para atingir
os mais fortes, demonstrando a dependência do abastecimento da cidade e obrigando ao
reconhecimento da sua importância, num jogo de privações e negociações que motivará a
intervenção Municipal para a aquisição do serviço.
No capítulo 2 resgatamos através das publicações de jornais da época e trabalhos
técnicos as principais problematizações técnicas do funcionamento da Companhia, sua
formação, dificuldades técnicas e intervenção Provincial e Municipal na discussão dos
privilégios e sistema concorrencial do serviço. Progressivamente o sistema técnico de captação
se complexificou com a ampliação dos locais de captação, reconhecendo o gradual processo de
condenação do dique do Queimado, inicial grande coletor alterado e ampliado por Theodoro
Sampaio. A perda da sua importância, como reservatório central, inicia o processo seu de
marginalização e abandono.
O alargamento da captação resultou de uma estratégia que compatibilizou a higiotecnia
com a distribuição racial da cidade, como demonstram os trabalhos do engenheiro Theodoro
Sampaio e do sociólogo Donald Pierson. No estudo racial de Pierson, ele não só problematizou
o mulato, demonstrando a possibilidade da ascensão social, nomeando o exemplo de Theodoro
Sampaio, “um prêto de destaque”, como uma especificidade racial da cidade, evidenciando o
carácter local das expressões e derivações de raça e, consequentemente, do racismo. Através de
uma leitura cruzada dos dois trabalhos, um técnico e outro social, comprovamos a coincidência
espacial entre a estratégia da subdivisão técnica altimétrica de Theodoro que (re)produz a
diferenciação clara de investimento no serviço de captação e distribuição baseado em distinções
de raça e classe social manejando o serviço consoante a distribuição altimétrica da população

130
que Pierson descreveu ser também ela distinta racialmente. Privilegiando a captação nova para
a cidade alta, onde residia a elite, um sistema de reservas complementares assegurava o perfeito
e pleno abastecimento. Enquanto a altimetria média e baixa, onde habitavam as camadas em
ascensão e a baixa, em convívio tenso, continuaram abastecidos pelo antigo sistema.
Novamente, as excepções falam muito, nomeadamente com a exceção dada aos Bairros do Rio
Vermelho e Barra, localizados em altitude baixa, mas que por ser habitado pela elite, tiveram
acesso à nova captação, demonstrando o social, de Pierson, interferindo na leitura técnica, de
Theodoro Sampaio.
A represa do Queimado, destinada ao abastecimento ao cais, tomou um destino
desconhecido, do qual apenas se conhece o seu desfecho: a sua condenação e desaparecimento.
Este processo de gestão demonstra como a distribuição d´água participou no processo de
redefinição de status social no período da transição Colonial para o Republicano, quando foram
oferecidos diferentes serviços de abastecimento, que privilegiaram as melhores condições para
a elite branca localizada nos espaços mais altos da topografia da cidade, sendo salvaguardadas
também as exceções em áreas litorâneas, também privilegiadas.
O capítulo 3 ganhou autonomia pela relevância das perspectivas médicas guardadas nos
trabalhos da Faculdade de Medicina da Bahia. Participantes ativos nas instituições de higiene,
os seus lentes desenvolveram não só relatos da sociedade contemporânea, descrevendo suas
mazelas, como também se preocuparam com a qualidade das águas do Queimado, produzindo
trabalhos que compararam a água do Queimado com a das fontes da cidade, da distribuída em
Recife, e discutindo a infraestrutura de captação como no caso da fonte de Itaparica.
Acompanhando o desenvolvimento e a interpretação dos parâmetros de comparação das
análises, desenvolvidos em instituições europeias, todas, como constatámos, consideraram as
águas do Queimado como de baixa qualidade.
Uma vez que o contrato previa multa para o incumprimento da obrigatoriedade de servir
água de qualidade à cidade, era necessário provar tecnicamente a sua (falta) de qualidade, e
sobre este entendimento decorrerão interpretações e polêmicas na classe médica que ajudam
não só a entender o engajamento médico na proteção dos interesses da Companhia, como
acompanhar a evolução do conhecimento científico, físico, químico e bacteriológico das
análises, que desenvolveram novas metodologias e acompanharam descrições precisas do
serviço. A incapacidade da ciência em justificar com clareza os resultados desafiava a
experiência empírica popular, insatisfeita com a qualidade da água que contestava seus
resultados.

131
No capítulo 4 foi necessário entender as implicações sociais que a instalação da
Companhia no trabalho do Aguadeiro, visto que sua relevância no abastecimento foi mantida
para todos aqueles que não podiam pagar pelo serviço de pena domiciliar. No entendimento
científico da época o seu corpo acarretará a degeneração, a doença e a imoralidade nos costumes
e sobre ele cairá a primeira intervenção Municipal, não só restringindo a liberdade pessoal de
ocupação de locais públicos, como restringindo gradualmente a sua imprescindibilidade na
distribuição, conseguida pelo gradual processo de cerceamento e retirada de locais de captação.
A constituição do serviço emergencial de carroças Municipais, para enfrentar o longo período
de escassez do recurso, e as restrições impostas pela Companhia foram combatidas através de
medidas que, novamente, foram contra os Aguadeiros, com a organização de um serviço
Municipal que subcontratava a mão de obra. Retirando-lhes a faculdade de trabalhador por
conta própria. As descrições e queixas da fraca adesão dos Aguadeiros ao serviço de carroças,
de adesão ao serviço terceirizado, demonstra a luta e resistência afrodescendente pela melhoria
de condições trabalho e como o Município, que não conseguindo baixar o preço do serviço da
Companhia, atinge o seu objetivo através da retirada do lucro do seu distribuidor, em mais uma
iniciativa de restrição do aguadeiro à água que acompanhou a restrição do fornecimento d´água
potável nos espaços públicos da cidade.
Foi evidenciado ao longo do trabalho a ausência permanente da construção de
infraestrutura para as camadas pobres, que, na especificidade de Salvador, coincidiu com
parâmetros diferenciatórios de raça, classe, camuflada pela ascensão do mulato, que manejou
sistemas diferenciados de abastecimento. Todos os que não tinham a capacidade de adquirir o
serviço de abastecimento domiciliar foram excluídos e privados do serviço face o descaso
Provincial/Estadual em beneficiar as fontes públicas, capacitando-as de condições para
participarem no abastecimento, ou de qualquer outro equipamento para serviço d´este grupo.
Este trabalho pretendeu revelar relações urbanas intrinsecamente relacionadas com as
construções sociais e raciais de expressões quotidianas ainda invisíveis, que parecem “cegar
por tanto se ver”, com usos naturalizados, que colaboram à manutenção da desigualdade
territorial. O racismo e a desigualdade social estrutural no Brasil é visível quando descortinamos
estas evidência que atuam dentro na normalidade quotidiana. A Academia deve contribuir neste
processo de denuncia explorando novos parâmetros e vertentes discriminatórias para as quais o
espaço urbano, como contingente cultural, deve ser observado com olhar crítico e minucioso.
Quanto à motivação inicial deste trabalho, a necessidade de entender as grades
existentes nos espaços dos chafarizes, compreendemos que a sua instalação remonta à
implantação colonial do sistema de venda da Companhia, servindo de controlo de entrada e

132
saída dos Aguadeiros que aí pagavam a taxa de abastecimento. Apesar de no início do século o
serviço ter sido transferido para o Município, que realizou importantes alterações nestes locais,
tendo estes equipamentos deixado de vender água, a manutenção do gradeamento compreende-
se hoje pela salvaguarda das qualidades artísticas dos equipamentos que, pela sua inadequação
ao ambiente social e urbano necessitam estes elementos para proteção a depredações. Esta
condição de inapropriação da comunidade aos seus monumentos coloca em causa não só o
significado destes como problmeatiza identidade e identificação cultural. Esta circunstância que
permaneceu de uma condicionante econômica hoje encontra-se generalizada a equipamentos
importados como os sobreviventes chafarizes e monumentos produzidos localmente, como o
“Cetro da Ancestralidade” de Mestre Didi, localizado na rua da Paciência no bairro do Rio
Vermelho, que recebeu recentemente uma vedação idêntica à existente nos espaços dos
chafarizes. Entendendo que a visitação do passado não é só importante para conhecê-lo como
é também essencial para não repetir os erros, é urgente problematizar a defesa dos espaços de
representação da cidade sob novas soluções e perspectivas.
Por equacionar ficaram outras performances econômicas surgidas na segunda metade
do séc. XIX, como a compreensão química da água que possibilitou não só distinguir as águas
potáveis das minerais, como o surgimento de uma indústria de produção de águas que alimentou
o mercado com falsificações de águas europeias. Interessa também acompanhar o processo de
decadência da represa do Queimado decorrente da restruturação do abastecimento de Theodoro
Sampaio, quando saiu do foco de captação e perdeu a alimentação através das outras represas
que passaram a funcionar em sistema autônomo, iniciando um processo que a relegou a um
espaço proliferador de epidemias, estudado pela Fundação Rockfeller no início do séc. XX.
Do processo de tombamento pelo IPHAN, iniciado no final da década de 80, pela
Fundação Memória da Água liderada por Astor Lima, interessa não só entender o significado
do tombamento do Parque do Queimado no contexto da construção e reconhecimento de novos
patrimônios nacionais como as repercussões desta proteção para o local.

133
Capítulo 1 – Lugares de contraste do séc. XIX em Salvador.
Anexo 1 – Os chafarizes do primeiro contrato da Companhia do Queimado, 17/01/1853.
De acordo com o Termo de contrato celebrado com o Governo da Província pelos D.rs
Francisco Antonio Pereira Rocha e Bernardino Pereira Pires segundo a autorização outorgada
pela Lei Provincial, Art.º 451, de 17 de junho de 1852, a Companhia se obrigou a construir
cinco chafarizes na cidade baixa, e sete na alta, “cada um d´elles quatro bicas com torneiras nos
logares”:
O 1.º em frente do quartel de cavalaria, em Água de Meninos e
collocado na direcção do eixo d´esse quartel, e no meio do vão entre sua
porta principal e o cais interno e fronteiro.

Camillo Vedani. Vista Geral do bairro Água de Meninos, c. 1860. Salvador, Bahia / Acervo IMS;

O 2.º em frente da Matriz do Pilar, e sobre a perpendicular levantada ao


meio do ultimo detrás do adro, e no aformosamento d´esta linha com a
do eixo da Igreja do Haipiais.

Altar e fonte de Santa Luzia. Fonte: Relíquias da Bahia

Não se encontraram vestígios ou referência ao chafariz da Companhia. A Igreja, Nossa Senhora


do Pilar, construída em 1756 tem como especial devoção a de Santa Luzia, padroeira dos deficientes
visuais. Tem como particularidade a privatização de uma fonte que considera ter águas sagradas. Apesar
da descrição da localização do Chafariz a instalar ser precisa, não se encontram registros da colocação
deste. A fonte, hoje altar de Santa Luzia era uma fonte existente no local, outrora servira para a
abastecimento de naus e caravelas. Provem da canalização realizada na contenção da encosta para a
implantação do templo. No dia 13 de dezembro os devotos buscam a água da fonte milagrosa para sarar
as suas doenças, principalmente relacionadas aos olhos, uma vez que esta igreja é dedicada a uma das
virgens-mártires que sofreu o martírio de ter os olhos arrancados.

134
3.º no Largo da Praça do Comércio, e sobre o eixo tirado pela porta
principal da mesma Praça, e no meio da parte d´esse eixo interceptada
pelas duas alas de arvores proximamente parallelas a frente dos
edificios da Praça.

Chafariz da Praça do Comércio, inaugurado a 8 dezembro de 1865. Foi recolocado em Nazaré por volta
do início do século XX.
O 4.º em frente da escada da rua interna do Mercado e no meio do vão
entre o parapeito da escada e o alinhamento da frente do mar do
Mercado.

O 5.º em frente da Matriz da Conceição na linha tirada do meio do


Portão da Matriz ao meio do portão do Arsenal, e no meio do vão entre
o ponto em que essa linha foi interceptada pelo prolongamento da frente
municipal da casa que é hospital da Marinha, e a frente da gradaria do
Arsenal.

Na Cidade alta:
[...] o 1.º no largo da Cruz do Paschoal.

Não foram encontradas referências a este chafariz.

O 2.º deverá ser na rua da Valla em frente da Travessa que a


comunicação com a baixa dos Sapateiros: este chafariz poderá ter de
dez a oito palmos de lado ou de diametro.

135
Não foram encontradas referências a este chafariz.

O 3.º deverá ser na Praça do Terreiro.

Guilherme Gaensly, 1870-1880. Salvador, Bahia / Acervo FBN; Benjamin Mulock. Catedral Basílica, c. 1859.
Salvador, Bahia / Acervo IMS
O 4.º deverá ser no centro da quitanda de Guadalupe excluida a parte
d´ella que será ? pela rua da Valla.

O 5.º deverá ser no largo do Theatro, e no centro da figura formada por


uma mestra de pedras que lá existe dentro do recinto das arvores, que
ficam entre a rua de transito e o mar.

O 6.º deverá ser na Praça da Piedade, e collocado no centro da figura


irregular que ficar no meio da Praça depois de tiradas as ruas em volta
d´ella, cujos lados deverão ser parallelos as casas, e supposto logo um
lado da Praça alinhado pela casa da quina da sua do portão, no largo da
Piedade.

Gaensly, Guilherme, 1843-1928. Referência: brasiliana fotográfica

O 7.º será no largo do Acciolis, no lugar mais espaçado, o qual não se


designa ao certo por depender ainda do arranjo d´aquelle largo.

136
Em 1860, além dos doze chafarizes contratados com o Governo, mais três se assentaram, sendo
um na rua direita da Mouraria, outro na Saúde, e o terceiro no largo da Povoação da Barra. (Relatório
dos Trabalhos do Conselho Interino de Governo (BA) – 1860)
Na transcrição de escritura descrição de bens constantes no contrato da Companhia do
Queimado a 30 set 1905, são identificados 22 chafarizes:
Quadragesima terceira - Todos os chafarizes com os seos pertences, que
a outorgante passou a saber: um no Largo da Quitandinha do Capim,
um no Largo da Conceição do Boqueirão; um no Terreiro, um no Cais
de S. João, um no Largo da Conceição da Praia, um no Largo da
Mouraria, um no Lardo da Saúde, um na praça José de Alencar, um na
praça quinze de Novembro, um no Lardo da Agua de Meninos, um no
Lardo da Lapinha, um no Largo do Pilar, um na Praça dos Veteranos;
um no Largo do Commercio, um na Baixa do Bomfim, um no Largo do
Bonfim, um no Largo do Rosário de Itapagipe, um no largo da Ribeira
de Itapagipe, um no largo da Bôa Viagem, um na praça treze de Maio,
um na Praça Castro Alves e um no Largo dois de Julho. (transcrição de
escritura descrição de bens constantes no contrato da Companhia do
Queimado a 30 set 1905)
Anexo 2 – Relação entre a expansão predial e estabelecimentos de negócios em Salvador (1895-
1930).

Referência: (SANTOS,1990, 24)

137
Anexo 3 – Aprovado em conformidade da 2ª parte da 1ª condição do contrato em 17/01/1853.
Palácio do Governo da Bahia 10 de fevereiro de 1854. João Maurício Wanderley.

Referência: Arq. Púb. da Bahia. Plantas, Biblioteca Francisco Vicente Vianna. Planta nº 353;

Anexo 4 - Preços da água nos chafarizes e “Casas de Vendagem” da Companhia do


Queimado
Ano Preço do barril (20l) Referência
Poços de particulares e fontes públicas:
Até 1852 “Só se paga por ela o trabalho da condução” (VILHENA, 1799, 109)
“os quais poderão vende-las como até aqui,
1853 (SAMPAIO, 1910, 5)
pelo modo e preço que lhes convier.”
Nos chafarizes e casas de vendagem: contrato de 17 de junho de 1853
20 réis o pote, ou barril de três canadas
Os Estabelecimentos públicos pagão menos
1852 Contrato da Cia no ano de 1852;
um terço, isto é, dez réis por barril, segundo o
contrato
1857 20 réis por barril Fala da Presidência a 7/01/1857.
Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de
1859 Grátis ao jardim público
Governo (BA) - 1859
Relat. Dos Trab Cons Inter. Gov. Ba, 1860,
1860 15$000 por barril
edição 1, pág. 75.
Renovação do contrato da Companhia (1870)
Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de
1870 20/30 reis (?)
Governo (BA),1871, 17 de junho de 1870.
Art. 8 - Termo de renovação do contrato
1870 Máx. 15 réis por barril de 3 “cannadas” autorizada pelo art. 11 da Lei Provincial n 1131
de 17 de Junho e 1870
1879 Gratuidade aos estabelecimentos pios de cem Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de
barris gratuitos diariamente Governo (BA) – 1880, edição 1, pp 34.
1880 Gratuidade a todos os estabelecimentos Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de
públicos mantidos pela província Governo (BA) – 1880, edição 1 pp76)
1890 20 reis ao barril * 1
Pequeno Jornal (BA), 14 março 1890
1899 Livro de Posturas Municipais n.º 30-A de 20 de
Máx. 100 reis ao barril de 20 litros
janeiro de 1899
1904 80 L = 400 réis, podendo subir em épocas de
(SAMPAIO, 1910, 8)
seca a 1$500 e a 2$000. réis
1908 500 e 1000 réis (SILVA, 1908, 26)

1
Violação ao contrato: “O augmento de 10 reis em cada barril é uma violação do ultimo contracto que prorrogou
o praso da companhia do Queimado, pelo que chamamos a attenção do sr. dr. governador do estado.”

138
Anexo 5 - Preços praticados pela Companhia do Queimado para abastecimento
domiciliar.
No abastecimento domiciliar de Salvador
Relat. Dos Trab. Conselho Interino de Governo
1860 taxa única de 9$000 mensais
(Ba), edição 1, pág. 75, 1860.
“Paguem unicamente o que
A partir de 1890 Pequeno Jornal (BA), 18/03/1890
consumirem” (Luiz Tarquinio)
1898 13$000 (PROPOSTO) Cidade do Salvador 17/05/1898
1908 12$000 (SILVA, 1908, 23)
12$000 (o mínimo o abastecimento a
1904 (SAMPAIO, 1910,8)
domicilio por cargueiro de 80L)
1912 12$000 por penna Gazeta de Noticias (BA), 27/09/1912
1915 vintém A Tarde (BA), 9/01/1915
O abastecimento de água no Rio de Janeiro, por decreto de 25 de novembro de 1894 taxou cotas fixas
anuais para o suprimento obrigatório da água, sendo grátis o consumo para imóveis de valor locativo até 60$000.
(Almanak Laemmert (RJ), 1888, pág. 24)

Anexo 6 – Contrato Companhia do Queimado 17 de Janeiro de 1853


“Termo de contrato celebrado com o Governo da Provincia pelos D.rs Francisco
Antonio Pereira Rocha e Bernardino Pereira Pires segundo a autorização outorgada pela Lei
Provincial, Art.º 451, de 17 de junho de 1852 para o fim abaixo declarado. Aos 17 dias do mez
de Janeiro de 1853, n´esta Leal e Valorosa Cidade da Bahia e Palacio do Governo da Provincia,
perante o Ex. mo Senhor Presidente da mesma compareceram os Doutores Francisco Antonio
Pereira Rocha, e Bernardino Ferreira Pires, formando Companhia, para assignarem o presente
contracto, celebrando o mesmo Governo segundo a autorização outorgada pela Lei Provincial,
art.º 451, de 17 de Junho de 1852 para o fornecimento de água potável, tanto para a Cidade
baixa, como para a alta (extraida do açude e vertentes do Queimado, segundo as propostas por
elles apresentadas)sobre as bom mencionadas na referida Lei, com as declarações seguintes:
1º- A Companhia que os menciona dos Cidadãos teêm organizado (segundo os estatutos,
que correm impressos), fará construir para o dicto fim, cinco chafarizes na cidade baixa, e sete
na alta, tendo cada um d´elles quatro bicas com torneiras nos logares seguintes. O 1.º em frente
do quartel de cavalaria, em Água de Meninos e collocado na direcção do eixo d´esse quartel, e
no meio do vão entre sua porta principal e o cais interno e fronteiro. O 2.º em frente da Matriz
do Pilar, e sobre a perpendicular levantada ao meio do ultimo degrás do adro, e no crusamento
d´esta linha com a do eixo da Igreja do Haipiais. O 3.º no Largo da Praça do Comércio, e sobre
o eixo tirado pela porta principal da mesma Praça, e no meio da parte d´esse eixo interceptada
pelas duas alas de arvores proximamento parallelas a frente dos edificios da Praça. O 4.º em
frente da escada da Praça de S. João na direcção do eixo da rua interna do Mercado e no meio
do vão entre o parapeito da escada e o alinhamento da frente do mar do Mercado. O 5.º em
frente da Matriz da Conceição na linha tirada do meio do Portão da Matriz ao meio do portão
do Arsenal, e no meio do vão entre o ponto em que essa linha foi interceptada pelo
prolongamento da frente municipal da casa que é hospital da Marinha, e a frente da gradaria do
Arsenal. O 1.º chafariz d´Água de Meninos terá a base circular e poderá ter de diametro de dez
a doze palmos mesmo deverão ter o do Pilar e o da Praça do Commercio e do caes da Praça de
S. João deverá ter seis a oito palmos de diametro e o da Praça da Conceição o mesmo. Os

139
chafarizes da Cidade alta deverão ser: o 1.º no largo da Cruz do Paschoal. O 2.º deverá ser na
rua da Valla em frente da Travessa que a comunicação com a baixa dos Sapateiros: este chafariz
poderá ter de dez a dôze palmos de lado ou de diametro. O 3.º será na Praça do Terreiro, e
deverá ter de quatorze a vinte palmos de face ou de diametro. O 4.º deverá ser no centro da
quitanda de Guadalupe, excluida a parte d´ella que será absorvida pela rua da Valla. O 5.º deverá
ser no largo do Theatro, e no centro da figura curvilinea formada por uma mestra de pedras que
lá existe dentro do recinto das arvores, que ficam entre a rua de transito e o mar. Este chafariz
poderá ter de diametro ou de face de doze a quatorze palmos, ou mesmo ser um polygono
inscripto a um circulo de 16 palmos de diametro. O 6.º deverá ser na Praça da Piedade, e
collocado no centro da figura irregular que ficar no meio da Praça depois de tiradas as ruas em
volta d´ella, cujos lados deverão ser parallelos as casas, e supposto logo um lado da Praça
alinhado pela casa da quina da sua do portão, no largo da Piedade. O chafariz da Piedade poderá
ter de lado ou diametro de 14 a 16 palmos. O 7.º será no largo do Acciolis, no lugar mais
espaçoso, o qual não se designa ao certo por depender ainda do arranjo d´aquelle largo. A planta
dos chafarizes será approvada pelo Governo. Todas estas obras deverão achar-se concluidas
improrrogavelmente dentro de cinco annos a contar da data d´este contrato.
2.º a Companhia não poderá vender agua por mais de vinte reis o pote, ou barril de tres
canadas. Esta prohibição se não estende aos particulares que tiverem agua em suas casas ou
roças, os quais poderão vende-las como até aqui, pelo modo e preço que lhes convier.
3.º A Companhia não pagará imposto algum nem mesmo Municipal, estabelecido ou
que se haja a estabelecer pela licença para a construção dos chafarizes e mais obras precisas,
sendo unicamente obrigada a repôr em seu mesmo estado em que se achavam as calçadas que
desmanchar, e as ruas por onde passar o encanamento, bem como os terrenos e edificios
publicos e particulares em que se encontrem quaisquer trabalhos da empresa.
4-º o Governo ordenará, na forma das Leis, a desapropriação quando esta for necessaria
para a realização das obras da empresa, sendo a indemnização paga pela Companhia.
5.º A Companhia é garantido o direito de usufruir as suas obras por espaço de trinta
annos, contados do dia da conclusão das mesmas (marcada no art.º 1º) depois das quais somente
poderá ser desapropriada, si ao Governo convier, pagando-lhe este apenas o capital que tiver
desembolsado para levar a effeito as ditas obras, excluindo portanto toda e qualquer despesa
com reparos e concertos e reformas durante os trinta annos. Ficam applicaveis aos que as
destruirem ou danificarem, as mesmas penas que o Codigo Criminal inflige aos que mutilam
ou damnificam monumentos publicos.
6.º Os Empresarios ficam com direito de arrendar os anneis ou pennas d´água pelo preço
e tempo que lhes convenha, nunca excedendo porem este de praso marcado no artigo
precedente.
7.º Além dos chafarizes fixados no art.º 1.º poderá a Companhia construir outros nos
logares em que as necessidades publicas os reclamarem, e bem assim casas de banho sob a
inspecção da Policia, ficando para esse fim autorisada a encanaras aguas do Riacho Negrão –
rio Camorogipe, e da Fonte da Telha mediante a indemnisação dos particulares, que por tal
motivo forem prejudicados etc.
8.ª A Companhia dará gratuitamente toda a agua que fôr precisa para alimentar torneiras
de segurança contra incendios, as quaes serão collocadas nos edificios publicos, a saber
Alfandega, Arsenal, Theatro e Palacio do Governo, não devendo as mesmas funcionar senão
em caso de fogo, s sendo os respectivos encanamentos a custa do Governo. Em caso de
incendio, quer nos edificios publicos, quer nos particulares, a Companhia fornecerá
gratuitamente toda a agua dos seus chafarizes.
9.ª Tambem se obriga a fornecer toda a agua que fôr precisa para as officinas do Arsenal
da Marinha, e para uso do pessoal do mesmo e d´Alfandela assim como para aguada dos Navios
de Guerra Nacionais, recebendo uma terça parte menos do preço porque arrendar iguaes anneis

140
ou pennas d´água aos particulares (nunca excedendo do calouto de vinte reis por barril),
devendo porém ser taes encanamentos parciais a custa do Governo.
10.ª Se houver sufficiente agua cedera tambem a Companhia, para ser indemnisada com
o mesmo abatimento, o que fôr precisa para um chafariz de uso interno no Passeio Publico, que
será construido a custa da Provincia, e para os que vierem a ser indispensaveis em outros
estabelecimentos publicos,
11.ª Para que sejam effectuadas as obras projectadas concorrerá a Provincia por
emprestimo a Companhia com a quantia de cento e cinquenta contos de reis, que se realisará
dentro em tres annos, entregando-se a Companhia cincoenta contos de reis nos primeiros seis
mezes, seguindo as forças do cofre Providencial, e o restante em prestações iguaes de mez em
mez. No caso porem, que por escassez da receita ou arrecadação ou por qualquer outro
inconveniente não possa haver exactidão nos pagamentos que ficam marcados, terá a
Companhia direito de prolongar o praso de cinco annos que lhe fôra concedido para realisação
das obras contractadas, por tanto tempo, quanto fôr a demora da Thesouraria em cumpri-los
sem isso incorrer em multa alguma.
12.º Este capital não vencerá juros e será pela Companhia restituido e pago a Provincia
dentro de fez annos a contar do 1.º dia em que começar a servir de todos os chafarizes na forma
do art. 1.º, em prestações annuaes de quinze contos de reis.
13.º Para garantia do emprestimo e ratificação d´elle, na forma acima indicada, a
Companhia prestará na Thesouraria Provincial fiança idonea até que estejam concluidas
examinadas e approvadas pelo Governo as obras declaradas no art.º 1.º depois do que cessará a
fiança, ficando as mesmas obras hypothecadas aos cofres Provinciaes até real emboles tanto de
emprestimo, como das multas em que incorrer.
14.º A Companhia apresentará dentro do praso marcado no art.º 1.º, concluidas e em
exercicio todas os dôze chafarizes contractados pagando a multa de um conto de reis por cada
mes que exceder o dito prazo.
15.º A Companhia dará começo a obra seis mezes depois do recebimento da primeira
prestação de cincoenta contos de reis, e por cada mez de demora pagará a multa de um conto
de reis. 16.ª Se por culta da Companhia deixar de haver agua nos chafarizes, pagará ella uma
multa de dez mil reis diarias por cada chafariz em que faltar.
17.º No caso de que a Companhia não entre com as prestações a que está sujeita na
epochas designadas no art.º 12, essa quantia vencerá o juro de um por cento, accumuladas
anualmente, e formará um fundo que será levada em conta de desapropriação da obra, findos
os trinta annos: isto porém se no caso de que o Governo não prefira fazer logo recolher aos
cofres execitivamente as ditas prestações e juro.
18.º A Companhia conservará as suas obras sempre em bom estado, as aguas limpas e
potaveis e no caso de falta poderão os reparos ser feitos pela Provincia, por conta da Companhia
e esta sujeita a uma multa de um conto de reis todas as vezes que seja preciso lançar mão d´este
meio.
19.º O Governo terá direito de mandar examinar a veracidade das contas por onde a
Companhia provar o custo primitivo das obras da empresa. 2.º a Companhia não poderá fazer
reclamação contra as clausulas oneradas que lhe são impostas n´este contracto.
E para constar se lavrou este termo, que com o Ex.mo Senhor Presidente da Provincia,
assignaram os empresarios da mencionada Companhia Lourenço de Sousa Marques, Chefe da
5.ª Secção servindo de horetaris o fez escrever (Assignados) João Mauricio Wanderley,
Francisco Antonio Pereira da Rocha e Bernardino Ferreira Pires Conferiram.

Anexo 7- Termo de renovação 17 junho 1870


“Termo de renovação autorizado pelo art.º 11 da Lei Provincial art. 1131 de 17 de Junho
de 1870, do contrato celebrado á 17 de Janeiro de 1853 com a Companhia do Queimado em

141
virtude da Lei art.º 451 de 17 de Junho de 1852, ampliando por mais vinte anos o prazo
concedido pelo 5.º do art.º 2.º da mesma Lei 451.
Aos vinte e dous dias do mez de Dezembro de 1870 n´esta Leal e Valorosa Cidade de
S. Salvador, Bahia de todos os Santos e Palacio do Governo da Provincia, perante o Exm. Sr.
Conselheiro Barão de S. Lourenço, Presidente da mesma, compareceram os Srs.
Commendadores Paulo Pereira Monteiro, e Francisco de Sampaio Vianna, e o negociante Luiz
José Pereira Rocha, Directores da Companhia do Queimado para de conformidade com a
deliberação dos accionistas da mesma Companhia em Assembleia Geral de 21 do corrente,
assignarem o presente termo de novação do contracto de 17 de Janeiro de 1853, celebrado com
a mesma Companhia sob as condições constantes dos seguintes artigos.
Art. 1.º A Companhia se obriga á começar dentro do prazo de um anno, á contar da data
da assignatura do presente contracto, as obras que de accordo com a planta apresentada forem
precisas para o encanamento das aguas do Riacho Negrão, Fonte da Telha e Rio Camarogipe,
e as concluir no prazo de quatro annos. Estas aguas passarão pelo mesmo processo de filtração
agora usado ou que melhor se reconhe la, art. 11 da Lei de 17 de Junho de 1870.
Art. 2.º Para a realisação das obras supra mencionadas a Companhia terá o direito de
desapropriação de conformidade com os $$ 4 e 7 do art. 2.º da Lei n. 431 e contracto de 17 de
Janeiro de 1853.
Art. 3.º A Companhia de acordo com o Governo construirá novos chafarizes ou mudará
os existentes segundo as necessidades da população. Uma vez frequentados ao publico não
poderão ser fechados se não com acquiescencia do mesmo Governo.
Art.º 4.º A Companhia dentro do prazo das novas obras estabelecerá quatro casas de
banho nos sitios mais apropriados para a concorrencia, de maneira á proporcionar estes
beneficios aos differentes Bairros da cidade. Regulamentos Policiais, de accôrdo com a
Companhia, indicarão a ordem e o preço do serviço, afim de que sejão as referidas casas
frequentadas sem offensa dos bons costumes”
Art. 5.º As novas obras ficam comprehendidas na disposição do $ 5 do 2.º da Lei n.º 451
e respectivo contracto, quanto á desaprovação.
Art. 6.º O Governo poderá realizar a desapropriação permittida pela condição 5.ª no todo
ou em parte; e verificando-se a segunda hypothese no caso de querer dar gratuitamente agua a
popolação, continuando as pennas d´agua no dominio da Companhia, esta será encarregada da
administração geral por parte do Governo, com as condições que forem ajustadas.
Art. 7.º Se a desapropriação fôr total, e o Governo não preferir administrar o serviço por
seus agentes immediatos, e sim contractar com alguma Companhia ou individuos em igual
circunstancias a Companhia terà a preferencia.
Art. 8.º A Companhia não poderá recusas pennas d´agua á quem o exigir e pagar
sugeitando-se aos Regulamentos; e uma vez realizada e concessão, não podera ser retirada ou
suspensa senão na forma dos ditos Regulamentos; nem o preço da concessão poderá ser elevado
á mais de 15 réis por barril de tres canadas.
Art. 9.º Um Regulamento feito pela Companhia e pelo Governo approvado especificará
os casos de suspensão das pennas d´agua, ou de multa por abuso, tendo a parte prejudicada
recurso para o Chefe da Policia, e d´este para a Presidencia, quando a causa da suspensão ou da
multa não fôr por falta de pagamento ou por venda d´agua tirada da penna concedida, ou
distracção do uzo domestico á bem de estranhos.
Art. 10.º O praso de trinta annos da codição 5.º do primitivo contracto e garantido pelo
art. 2.º $ 5.º da Lei 451 fica prorrogado por mais vinte annos. Logo que a Companhia entrar no
goso d´este segundo prazo o preço do barril de agua nos chafarizes não poderá exceder dez réis.
O que para constar se lavrou este termo de novação do contracto celebrado com a mesma
Companhia em 17 de Janeiro de 1853, o qual assignaram o Exm. Sr. Presidente da Provincia e
os referidos Directores da Companhia do Queimado, perante as testemunhas tambem abaixo

142
assignados. Pagou de emolumentos na Thesouraria Provincial trinta mil reis conforme o
conhecimento n. 102, que fica archivado. E eu Joaquim José Fararia escrevi. – Eu Manoel
Jesuino Ferreira, Secretario do Governo o fiz escrever. Pagou oitocentos de sello conforme as
estampilhas inutilisadas pelo mesmo Secretario. (assignado) Barão de S. Lourenço. – Paulo
Pereira Monteiro, P – Francisco Sampaio Vianna, S. – Luiz José Pereira Rocha. – Como
testemunhas – Dr. José de Góes Siqueira – Benedicto Mariano Rio Grande. – Conforme –
Paschoal Pereira de Mattos, chefe da 2.º Secção.

Anexo 8 - Dividendos da Companhia do Queimado


Data valor semestre referência
1/03/1853 Premio 5 a 10% Relat. Trab. Do Cons. Interino de
Gov. (ba) 1853, edição 1(1) pág. 65.
1/03/1854 “As suas acções são procuradas com 20 por 0,0 Relat. Trab. Conselho Interino de
de premio, e não há vendedores.” Governo, 1854, edição 1 pág. 31
2/10/1868 50 % de prémio Correio Mercantil, e Instructivo,
Político, Universal (RJ), edição 272
1/03/1874 “o dividendo no ultimo semestre foi de 8% por Relat. Trab. Cons. Interino de
acção” Gov.(BA), 1874, edição 1 pág. 237
21/07/1876 90% de prémio O Monitor (BA), 25/07/1876
1/05/1876 “7% ou 14$000 por acção em rasão do aumento Relat. Dos Trab. Conselho Interino de
do capital” Governo, 1876, edição 1 pág. 151
31/01/1877 85 % de premio O Monitor (BA), 1/02/1877
24/03/1879 95 0$0 de premio 43.º Gazeta da Bahia (BA), 25/03/1879
25/02/1880 90% de prémio Gazeta da Bahia (BA), 26/02/1880
31/07/1880 6 1|2 % ou 13$000 por acção 44.º Gazeta da Bahia (BA), 1/08/1880
11/08/1880 96 % de premio Gazeta da Bahia (BA), 12/08/ 1880
31/01/1881 2 0|0, ou 14$ por acção 45.º Gazeta da Bahia (BA), 2/02/ 1881
1/08/1881 7 % ou 14 $ por cada acção 46.º Gazeta da Bahia (BA), 2/08/1881
15/11/1881 95 % de premio Gazeta da Bahia (BA), 16/10/1881
1/08/1882 11 $ por acção 48.º Gazeta da Bahia (BA), 3/08/1882
1/02/ 1883 6 1|2% ou 13$000 por acção 49.º Gazeta da Bahia (BA), 1/02/1883
1/08/1883 5 1|2% ou 11$000 por acção 50.º Gazeta da Bahia (BA), 5/08/1883
2/02/1884 12$000 por acção 51.º Gazeta da Bahia (BA), 12/02/1884
5/08/1884 6% ou 12$00 reis por acção 52.º Gazeta da Bahia (BA), 7/08/1884
4/02/1885 6% ou 120$000 por acção 53.º Gazeta da Bahia (BA), 7/02/1885

Capítulo 3 – A “sciencia” na análise dos dados.


Anexo 1 – Quadro comparativo de GUIMARÃES, 1871.
Tabela 1
Queimado (1865) Dr. GUIMARÃES 1871 Propriedades
Góes Sequeira Fonte do Forte GUIMARÃES 1871
Carbonato de cal 0,052 0,063 Propriedade benéfica
Chloreto de magnesio 0,027 0,007 -
Dito de sodio 0,136 0,123 Propriedade desabonatória
Sulfato de magnesia 0,038 ......... Propriedade desabonatória
Sulfato de soda ......... 0,058 -
Siliça e matéria organica 0,035 .........
Siliça ........ 0,023 -
Matéria organica ........ 0,057
Ferro atomos vestígios “Não há que comparar”
Perda 0,012 0,007
(em que faltão 0,020)
Somma 0,340
0,300
referência: (GUIMARÃES, 1871,26)

143
Anexo 2 – Análises segundo o método do Comité Consultatif d´Hygiene de Paris
Análise segundo o método do Comité Consultatif d´Hygiene de Paris das águas de S. João.
1 litro d´água a 180º AGUA PURA POTAVEL AGUAS S. JOÃO
Cloro 0,gr15 0,gr04 0,gr0133
gr gr gr gr
Ácido sulfurico 0, 002 a 0 005 0, 005 a 0 03 0,gr0042
gr gr
Matéria organica em oxygenio 0, 001 0, 002 0,gr00034
Materias organicas e
0,gr015 0,gr040 0,gr0184
productos volateis
Grão hydrotrimetrico 5 a 15 15 a 20 1,5
Referência: GMBahia, 1897, 28:316

Método de Fischer, Reicherdt, Kubel e Tiemnan aplicados à água S. João.


1 litro d´água a 180º FISCHER REICHERDT KUBEL E TIEMNAN AGUA S. JOÃO
0,gr11 a gr gr
Calcio .................... 0, 11 a 0, 12 0,gr0072
0,gr112
Magnesio 0,gr04 .................... 0,gr04 0,gr0036
gr
0, 002 a
Acido sulfurico 0,gr08 0,gr08 a 0,gr10 0,gr0042
0,gr0063
0,gr03 a 0,gr002 a
Chloro gr 0,gr02 a 0,gr03 0,gr0133
0, 055 0,gr0008
0,gr02 a
Acido ozotico 0,gr004 0,gr005 a 0,gr015 nada
0,gr07
gr gr gr
Residuo a 180º .................... 0, 0005 a 0, 50 0, 50 0,gr0727
Dureza em gráos
30 32 28 1,5
francezes
gr
Oxygenio consumido 0, 0005 a
0,gr002 0,gr0025 0,gr00034
pela C6H10O5 0,gr0025
referência: GMBahia, 1897, 28:316
Anexo 3 – Dados das análises de 1856 e 1864.
Dados de 1856 recolhidos pelo farmacêutico Sr. Dados de 1864 recolhidos pelo Sr. Dr. Virgílio
Manoel Rodrigues da Silva Climaco Damásio
Em 5 litros d´agua resíduo solido=gr. 0,320, á saber: Em 2 litros d´agua resíduo solido= gr. 0,149; á saber:
Carbonato de cal ....................................0,052 Carbonato de cal ................................................0,018
Chlorureto de magnésia..........................0,027 Chlorureto de magnésio......................................0,156
Chlorureto de sódio................................0,156 Chlorureto de sódio............................................0,060
Sulfato de magnésia................................0,038 Sulfato de magnésia...........................................0,038
Silicia e matéria orgânica ......................0,035 Silicia e matéria orgânica ...................................0,013
Ferro átomos.......................................... - Carbonato de ferro .............................................0,018
Perda.......................................................0,012 Perda.....................................................................0,07
______ ______
0,320 0,149

Tabela 1 – Parâmetros definidos no Comité Consultatif d´Hygiene de Paris aplicado à água do Queimado.
AGUAS AGUAS
AGUA
POTAVEL SUSPEITA MÁ QUEIMADO QUEIMADO
PURA
(1856) (1864)
Cloro gr gr 0,gr05 A Mais de
0, 15 0, 04 ........ ........
0,gr1 0,gr1
Ácido sulfurico 0,gr002 a 0,gr005 a
Mais 0,gr03 <0,gr05 ....... .......
0gr005 0gr03
Matéria organica em 0,gr003 a
0,gr001 0,gr002 <0,gr004 ....... .......
oxygenio 0,gr0004
gr
Materias organicas e Menos Menos 0, 04 a
<0,gr1 0,064 0,0745
productos volateis 0,gr015 0,gr040 0,gr07
Grão hydrotrimetrico
5 a 15 15 a 20 Mais 30 <100 ....... .......
total
Grão hydrotrimetrico
2a5 5 a 12 12 a 18 <20
depois da abullição
Referência: GMBahia, 1897, 28:316;

144
Dados de 1856 recolhidos pelo farmacêutico Sr. Manoel Rodrigues da Silva. Os dados originais referem-
se a amostras de 5 litros d´água, tendo-se adaptado os dados para 1 litro, possibilitando a comparação.
Dados de 1864 recolhidos pelo Sr. Dr. Virgílio Climaco Damásio. Os dados originais referem-se a
amostras de 2 litros d´água resíduo, tendo-se adaptado os dados para 1 litro, possibilitando a comparação.

Capítulo 4 – Os Aguadeiros
Anexo 1 - Relação de Preço de revenda d´água dos aguadeiros
Ano Preço de revenda local Referência
Relatório dos Trabalhos do Conselho
1859 320$ o barril Bairro do Bonfim, Itapagipe Interino de Governo (BA) – 1860 (edição
01/02)
Jornal A Cidade do Salvador (BA) 19/01/
1889 2$, 3$ até 5$
1899
1892 120rs cidade de Nazareth Jornal de Notícias (BA) 18/02/1892
Tororó (deslocamento à fonte do Jornal A Cidade do Salvador (BA) 17/12/
1897 2$ e 3$ a carga
Gravatá) 1897
1,00 réis o barril,
eram os preços comuns do
1914 400 réis a carga, Jornal A Noticia (BA) 20/10/1914
líquido indispensavel,
muito embora,.
em épocas de verão mais forte e
logares distantes de chafarizes e
1914 1$000 e 2$000 Jornal A Noticia (BA) 20/10/1914
fontes publicas, os quatro barris
custassem
Chegando em Itapagipe,
principalmente, nos dias das
1914 4 e 5$000 Jornal A Noticia (BA) 20/10/1914
festas do Bomfim, Guia e S.
Gonçalo, ao preço alto de
“Dois tostões ás
1915 vezes, um tostão Largo Dois de Julho A Tarde (BA) 9/01/1915
quasi sempre....”

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