Artigo de Carmen Lima
Artigo de Carmen Lima
Artigo de Carmen Lima
DO LITORAL AO SERTÃO:
ATUAL PESENÇA POTYGUARA NA SERRA DAS MATAS / CE
DO LITORAL AO SERTÃO:
ATUAL PESENÇA POTYGUARA NA SERRA DAS MATAS / CE*
Carmen Lúcia Silva Lima**
mjc.pe@terra.com.br
Resumo:
Indígenas no Ceará
*
Este texto é resultado de uma pesquisa preliminar e em andamento junto aos Potyguara do Mundo Novo - o
Povo Caceteiro da Serra das Matas.
**
Bacharel em Ciências Sociais (UFC).
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1
Sobre os topônimos de origem Tupi presentes nesta região ver Aragão (1994).
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O maciço da Serra das Matas é composto por um conjunto de serras (Olho d’água,
Serra Branca, Bomsucesso, Anuês e São Gonçalo) e serrotes (Dois Irmãos, Caramiranga,
Mundo Novo e Torão) (MARTINS & SALES, 1999). Em um desses serrotes, Mundo Novo, é
que residem os Potyguara.
No presente são agricultores, mas afirmam ser o nomadismo sua forma de vida
precedente. Como tais migravam pela região em busca de sua sobrevivência. Esta mobilidade
fez com que eles perdessem seu território, pois a cada retorno se deparavam com a presença
de não-índios. A escassez de recursos, acompanhada da ameaça de perda de suas terras,
resultou na passagem de coletores a agricultores.
Fizeram o primeiro contato com a Fundação Nacional do Índio - FUNAI em 1999.
Nesta ocasião, através de abaixo-assinado solicitaram o reconhecimento de sua identidade
Potiguara e demarcação de suas terras.
A pertença Potiguara é defendida através da narrativa do seu mito de criação. A partir
dele expressam a sua ancestralidade (Weber, 1994[1922]), e sustentam, desta forma, a sua
etnicidade indígena. Eles acreditam que são os filhos da Cuiã, a irmã da Cobra. Vejamos no
que consiste este mito de origem:
“Uma mulher que tinha muita vontade de ter filhos. Quando foi um dia ela saiu pro
mato e falou para as árvores:
- Eu queria ter uma filha nem que fosse uma Cobra.
Tempos depois essa mulher ficou buxuda e teve uma barriga de dois, uma menina e
uma Cobra. Jogaram a Cobra dentro do mar e ficou a menina sendo criada pelos seus
pais. Quando a menina estava mocinha morreu a sua mãe e ela ficou sendo criada por
seu pai.
A menina ficou moça e um dia pegou a mexer nas coisas de seu pai e encontrou um
anel de tucum, pegou o anel e colocou no dedo, ficou bonzinho para ela. Ela saiu
correndo e foi mostrar a seu pai. O pai vendo ela com o anel no dedo ficou assustado
e falou:
- Você agora vai casar comigo porque sua mãe disse que eu me casasse com quem
esse anel servisse.
- Eu não vou casar com você, porque você é meu pai – disse a Cuiã.
Seu pai insistiu que ia casar com a Cuiã sua filha. A Cuiã saiu para a beira do mar e
pediu ajuda a sua irmã.
- Moi de Cobra?
- O que você quer Cuiã?
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- Que você me ajude, pois o nosso pai quer casar comigo, porque o anel que nossa
mãe deixou serviu para mim e ele falou que ia casar comigo.
Disse a Cobra:
- Vá para outra aldeia e lá procure uma mulher que tenha um filho rapaz e você fique
sempre assanhada, para eles pensarem que você é feia e no começo o rapaz não vai se
interessar por você.
O tempo passou e tudo estava bem e na aldeia que a Cuiã estava houve grande
cerimônia de casamento. A Cuiã saiu correndo em direção ao mar e disse:
- Minha irmã Cobra?
A Cobra disse:
- O que foi minha irmã?
A Cuiã disse:
- Eu quero um vestido da cor do céu com todos os planetas.
Sua irmã Cobra atendeu ao pedido. A Cuiã voltou para festa e passou toda a noite
namorando o filho da mulher onde estava morando. Ele não reconheceu ela devido
ela está tão bonita com aquele vestido. Bem cedo a Cuiã guardou seu vestido dentro
da caixinha de pau que sua irmã havia dado. No dia seguinte a Cuiã voltou
novamente ao mar e pediu sua irmã um vestido da cor do campo com todas as flores.
Sua irmã Cobra fez seu pedido. No outro dia pediu um vestido da cor do mar com
todos os peixes, sua irmã lhe atendeu e pediu que quando ela fosse se casar na hora
da cerimônia chamasse por ela, que assim iria desencantar, desvirar de Cobra pra
mulher. Na hora do casamento a Cuiã se esqueceu de chamar sua irmã e por isso que
ainda hoje ela está encantada no mar. Do casamento da Cuiã com esse rapaz foi que
começou os Potyguara” 2.
2
Fonte: Arquivos da Secretaria de Educação do Estado do Ceará – SEDUC, material produzido pelos indígenas
no Curso de Capacitação para os professores indígenas.
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3
A cidade de Monsenhor Tabosa no passado fazia parte do município de Tamboril.
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400 mil réis4, uma porção central desta terra, a qual denominaram Mundo Novo. Com esta
compra e nomeação, o Jacinto ficou dividido em duas porções: o Jacinto de Cima e o Jacinto
de Baixo. Mundo Novo está localizado entre os dois. Atualmente, o Jacinto de Cima é
habitado por diversos pequenos proprietários rurais; o Jacinto de Baixo pelos Bento e Mundo
Novo pelos Paixão.
Em 1918, toda a família dos Bento vivia na Várzea, outra localidade do município
majoritariamente por eles habitada. Na região da Serra das Matas, eles possuem fama de
desconfiados e valentões. Com eles ninguém brinca. Na segunda viagem que fizemos à
Monsenhor Tabosa, em outubro de 2002, juntamente com Alyne e Isadora5, visitamos a
Várzea. Este povoado continua quase que totalmente habitado pelos Bento. Segundo eles,
suas terras foram invadidas por fazendeiros criadores de gado. Por este motivo, alguns
tiveram que migrar para o Jacinto.
Na Várzea, os Bento, que nesta ocasião ainda não estavam “organizados” como
indígenas, afirmaram ter consciência de suas raízes. Contaram que quando seus antepassados
lá chegaram, a região era habitada por “selvagens”. Nas disputas pelo território, alguns
indígenas chegaram a morrer e outros fugiram, eles não sabem dizer para onde. Como mulher,
naquela região, era muito difícil, alguns deles se casaram com índias. É comum o relato de
que um antepassado chegou e pegou uma índia no mato a dente de cachorro e a trancou
dentro de casa até que ela amansasse. Quando isto acontecia, ele passava a viver
maritalmente com ela. A origem indígena da família é o resultado destas uniões.
Sobre a presença e expropriação indígena ocorrida em decorrência da ocupação do
gado na região há alguns registros na historiografia local. Como estes não objetivavam refletir
sobre a questão indígena, registraram estes fatos de forma vaga e genérica.
Em nosso município, a Serra das Matas foi habitada por índios que mais tarde
foram escravizados, expulsos ou mortos pelos conquistadores (MARTINS &
SALES, 1999: 33).
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A geração atual sustenta o discurso de que compraram o que já lhes pertencia, pois como nômades, no passado
habitavam da Serra das Matas à Serra da Ibiapaba.
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Alyne Silva Almeida e Isadora Lídia são estudantes do Bacharelado em Ciências Sociais, na Universidade
Federal do Ceará. A primeira pesquisa Os Tabajara do Olho D`Água dos Canutos, localizados também em
Monsenhor Tabosa. Já a segunda, inicialmente tentou pesquisar a educação indígena e diante das dificuldades de
penetração nesta esfera, estava em busca de uma outra alternativa. Desta forma, com o objetivo de conhecer a
realidade dos grupos indígenas de Monsenhor Tabosa e ver as possibilidades de uma possível pesquisa na região,
ela nos acompanhou.
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Embora serra, a Serra das Matas fora primitivamente ocupada por vaqueiros.
Nunca o negro. (. . .) A corrente sanguínea que medrou os caracteres
somatológicos e burilou o perfil das matrizes do homem da Serra das Matas, em
seu estágio mais primitivo, veio no fluxo da ocupação das sesmarias para o
pastoreio do gado. Deste modo, a rigor, as faldas, ilhargas, pícaros e o altiplano
da Serra das Matas foram ocupados, a partir dos anos 700, por vaqueiros no
esmagamento aos primeiros donos das terras: os índios (LIMA, 1994: 43).
Não precisaria citar que, esta penetração do gado, pelo Ceará a dentro, fora
matando o índio (idem: 44).
No momento não consigo precisar em que ano ocorreu a chegada dos Bento no
Jacinto. O fato é que com ela iniciam-se as disputas territoriais. Alguns relatos confirmam as
versões escutadas na Várzea de que eles perderam parte de suas terras, foram “empurrados”6 .
Por este motivo chegam no Jacinto e passam a empurrar os Paixão. Pode-se afirmar que
muitos dos conflitos envolvendo estas duas famílias se devem à incompatibilidade das
atividades produtivas exercidas por ambos. Os Paixão eram agricultores e os Bento criadores
de gado solto.
Os atritos entre eles são bastante conhecidos. Isto porque para resolver os constantes
impasses geralmente eles recorriam a terceiros: delegado, juiz, políticos e o padre. É válido
registrar que nas narrativas dos Paixão, os Bento estão sempre errados e são sempre
perdedores.
As disputas foram encerradas na década de sessenta, quando foi celebrado um acordo
de paz entre as duas famílias. Segundo algumas versões, além do empobrecimento dos Bento,
o acordo teve a influência dos Gena, que são uma outra família da região. Algumas mulheres
dessa linhagem casaram-se com homens das duas famílias. Por exemplo, a mulher de Jorge
Bento é dos Gena. Tereza Cidis e Maria Luzanira, que são irmãs, casaram-se respectivamente
com Antonio Veim e Noberto, que são dos Paixão.
Depois que os Paixão assumiram publicamente a etnicidade indígena, os Bento do
Jacinto também o fizeram. Atualmente, estas duas famílias vivem em relativa harmonia. A
relatividade afirmada possui uma razão de ser. Verifiquei que as desconfianças permanecem.
É recorrente a afirmação: Os Bento são como fogo de munturo7: por cima tá tudo bem. Mas
por baixo o fogo tá cumendo. Acredita-se que não há quem apague fogo no munturo. Quando
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Categoria nativa utilizada para falar da perda das terras. Esta perda é resultado das mais diversas negociações.
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Amontoado de lixo.
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se pensa que tudo está sob controle, de repente aparece uma chama aqui, outra ali e acolá.
Então um imenso fogaréu se apresenta e acaba com tudo. Por esta razão é melhor não confiar.
Conclusão
Para Oliveira Filho (1999) a etnicidade necessariamente supõe uma trajetória e uma
origem. A primeira é histórica e resultante de múltiplos fatores. A segunda, além de ser uma
experiência primária e individual, é também traduzida em saberes e narrativas. Segundo ele,
as identidades étnicas são caracterizadas por uma atualização histórica que reforça o
sentimento de referência a uma origem. Considerando este autor, pode-se afirmar que o relato
aqui feito nos permitiu contemplar um pouco da etnicidade Potyguara do Mundo Novo.
Para além de uma paisagem, é no espaço que as práticas sociais acontecem e o sentido
da vida se faz. Nele as relações são tecidas local e especificamente, transformando-o em um
lugar (SANTOS, 1996). Assim sendo, originários do litoral, no presente, a Serra das Matas
constitui o lugar onde o Povo Caceteiro, como grupo étnico (WEBER, 1994 [1922]; BARTH,
1998 [1969]; COHEN, 1978 [1974]; CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976; CUNHA, 1986)
configura sua cultura e identidade.
Considerando que os mitos não são frutos da fantasia e dos devaneios, e sim uma
forma de contar a história, conquistas, perdas e valores (ZANONI & BARROS, 2002), pode-
se afirmar que com o mito Os filhos da Cuiã, a irmã da Cobra a família dos Paixão
fundamenta sua pertença à etnia Potiguara. Dentre outras razões de ser, ele possibilita a
afirmação do presente, ou seja, de onde viemos e como chegamos aqui (JONSON, 1997: 149).
A relação entre a etnografia e a história é bastante fecunda. Para o entendimento da atual
existência Potyguara na Serra das Matas, aqui proposta, ela foi de fundamental importância. Porém, é
válido registrar que, no geral, permanece o desafio de encarar a história de uma perspectiva das
populações nativas, considerando seu protagonismo. Trata-se aqui de um deslocamento do foco do
colonizador para os colonizados. Apesar de fundamentada em algumas verdades, a crônica da
destruição e do despovoamento já não é mais aceitável para explicar a trajetória dos indígenas. Ela não
nos permite ver as múltiplas experiências de elaboração e reformulação de identidades criativas em
suas respostas. “O caminho ainda é longo e bastante incerto; mas vários antropólogos e historiadores
já vêm dando passos na direção certa” (MONTEIRO, 2002: 142)
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Bibliografia:
STREIFF-FENART, Jocelyne (Orgs). Teorias da Etnicidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1998
[1969].
Pioneira, 1976.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São
Aquarela, 1996.
JOHSON, Allan G. Dicionário de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
LIMA, Pe. Geraldo Oliveira. Gênese da Paróquia de Monsenhor Tabosa. Rio de Janeiro:
MARTINS, Lais Almeida. De telha a Monsenhor Tabosa. Porto Alegre: Alcance, 1997.
_______ & SALES, Márcio. Descobrindo e construindo Monsenhor Tabosa. Fortaleza: Ed.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? – situação colonial,
territorialização e fluxos culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (Org). A viagem da volta
Capa, 1999.
PEIXOTO DA SILVA, Isabelle Braz. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais
PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Fontes inéditas para a história indígena no Ceará.
PROFs POTYGUARA. Povo Caceteiro da Serra das Matas - A força que vem da terra,
WEBER, Max. Relações comunitárias étnicas. IN: Economia e sociedade. V I. 5 ed. Brasília:
ZANONI, Claúdio & Maria M. dos Santos. Uma possível chave de leitura dos mitos. In: ... e
Tonantzin veio morar conosco: IV Encontro Continental de Teologia India. Belém: CIMI;
AELAPI, 2003.