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Educação e Cultura no Brasil.

Dr. César Nunes 1

No Brasil, a compreensão da Educação como prática social e como política pública


exige a análise de complexas peculiaridades culturais e políticas, derivadas dos modelos
econômicos e sociais estabelecidos em nossa trajetória histórica, na contramão das
premissas modernas que tiveram na Educação a base de transformação econômica, cultural
e política das sociedades feudais. A educação jesuíta (1548-1759), que nos engendrou como
uma nação e sociedade era marcadamente uma educação conservadora e reacionária,
quando comparada aos ideais modernos, voltada para a restauração do pacto medieval e
centrada na reprodução dos valores que marcaram historicamente a tradição feudal
aristocrata medieval. Era uma proposta de educação para a obediência, para a disciplina, a
educação retórica e memorística, a educação para a produção de corpos obedientes e
servis, a anulação da originalidade pessoal, a promoção da resignação, a cultura da
aceitação e a exaltação da passividade são elementos éticos circunscritos ao modelo
pedagógico jesuíta, missionário, proselitista e essencialmente conservador. A escola jesuíta
era nitidamente uma instituição voltada para as camadas dominantes e, nesta escola,
estabelecia-se uma formação clássica aristocrata, com a implícita determinação de restaurar
a velha ordem medieval, abalada na Europa, com um acento antimodernista, antipopular e
ultraconservador. Desta escola deriva o ethos de nossa cultura retórica e memorística, de
cultivo da obediência e da exaltação da passividade e da aceitação, voltada para a prática da
imposição de valores, para o exacerbado magistrocentrismo e para a produção de corpos
obedientes. A literatura especializada nos relata esta dura opção histórica, produzida na
gênese de nosso processo colonial estruturador da identidade cultural. CARTOLANO
(1988) assim define essa identidade:

(...) A filosofia foi no Brasil, desde os tempos coloniais, um luxo de


alguns senhores ricos e ilustrados: do colono branco que aqui chegara e
que constituíra a classe dominante na colônia, conservando os hábitos
aristocráticos da classe dirigente da metrópole. Além do poder político e
econômico, essa classe detinha também os bens culturais ‘importados’ e
somente ela tinha acesso e direito à educação dirigida pelos jesuítas. Essa
educação humanística era, juntamente com a posse de terra e de escravos,
um sinal de classe2.

Uma escola modeladora, que se pretendia ser controladora da natureza humana


fundamental, prática que ainda não foi superada. Em momentos de afirmação de nossos
projetos políticos libertários, desde a ruptura com o longo e penoso colonialismo português,
seguiu-se a organização conservadora do império escravocrata, sacudido por levantes
sanguinolentos e consolidado sobre a manutenção de estruturas sociais e legais centrados na
infâmia da escravatura e na desigualdade social abissal. Não se alterou o papel e a função
da Escola. Nem com o advento da República em 1889. Há em nossa tradição um forte
1
César Nunes é livre docente em Educação, Professor Titular da Faculdade de Educação da UNICAMP e
Coordenador Geral do Grupo de Estudos e Pesquisas PAIDEIA. Email- cnunes@unicamp.br
2
CARTOLANO, M. Teresa P. Filosofia no Ensino de 2º grau, Cortez, São Paulo, 1988, p.20.
acento autoritário remanescente do século XVIII, da educação positivista, a escola
republicana, centrada no ideário de Benjamin Constant e nas determinações que
sustentaram a república oligárquica. Esta pretendia ser uma escola disciplinadora das
massas, uma escola com acento militar autoritário, voltada para o elogio da hierarquia, da
obediência, da vigilância e da punição como formas pedagógicas supostamente
enriquecedoras do caráter pátrio e das unidades produtoras da sociedade de ordens e de
concentrações hierárquicas obedientes. Este segundo ethos altera muito pouco o referencial
jesuíta e acaba tornando-se uma variante da determinação primeira. Numa extensa época
como o período colonial brasileiro e na estrutura nascente da república oligárquica, nós não
encontramos condições objetivas para a propositura de uma educação liberal, humanista,
que supõe uma sociedade de iguais, de homens livres e convictos do ideário fraterno e
utópico de uma comunidade humana sem determinações hierárquicas. Sobre esta artificial
mudança, carregada de influências positivistas européias, expressava Cruz Costa:

(...) Herdeiros da cultura portuguesa, plantado aqui o bacilo da


inteligência européia, nela enxertamos, desde então, numa ininterrupta
tentativa de novas e variadas experiências, garfos novos de outras visões
do mundo. A história das vicissitudes da longa importação de idéias e de
doutrinas que se fará, a seguir, ao longo do século XIX, será, assim, uma
curiosa série de contradições e, ao mesmo tempo, um incessante esforço,
que nos impele à procura do sentido das nossas idéias. Marcada pela
europeização, a inteligência brasileira voltava-se para os diferentes
mercados da Europa onde se supria. Julgava-se que os livros da sabedoria
européia encerravam uma fórmula ideal e milagrosa! A realidade
ambiente, essa, era esquecida pela maioria dos letrados do início do século
XIX, para os quais os moldes literários, artísticos e filosóficos da Europa
pareciam calhar, como uma luva, ao Brasil. À França pediram-se figurinos
literários e filosóficos; à Inglaterra, senhora de uma monarquia modelo, o
ritual do parlamentarismo, e à Alemanha, sobretudo depois de 1870, ao
mesmo tempo em que nos enviava a sua metafísica clássica, remetia-nos
também as suas novas orientações científicas. Proclamada a
Independência, entrariam a circular no Brasil as mais variadas doutrinas,
É, porém, principalmente de Paris ou através de Paris, que nos chegariam
as idéias filosóficas.3

Este cenário mantém-se para além da malograda independência de 1822 chegando à


elitista revolta republicana de 1889. Nestes dois movimentos, supostamente de afirmação
de uma identidade política, ficava faltando uma firme identidade cultural, politicamente
diversa das matrizes históricas, a orientar um inovador processo econômico, social e
político. Estende-se, por assim dizer, até 1930, com o fim da república dos coronéis,
mantida pela cafeicultura subsidiada. Desde 1548, quando a empreitada colonialista
inaugura os Governos Gerais, com a indicação de Tomé de Souza, chegam os Jesuítas para
firmar o plasma cultural e educacional da sociedade e cultura do Brasil.
Com o processo de industrialização determinado a partir dos anos 1930, a reforma
educacional liderada por Francisco Campos, de inspiração nitidamente fascista, pois
reproduziria aqui o ideário de uma filosofia da história e da educação que engendrara a

3
COSTA, C. idem, op cit. p.81.

2
concepção de educação para o trabalho na Itália de Mussolini, produz uma escola
concentradora da finalidade de transformar a sociedade agrária em uma sociedade moderna,
industrial e urbana. Neste caminho, produz ainda uma máquina de qualificação para o
trabalho, preparando as massas para o adestramento letrado da sociedade industrial,
produzindo nas camadas médias uma qualificação profissional e destinando aos setores
dominantes um cabedal cultural simbólico necessário para sua reprodução como classe
dirigente.
A escola centrada na reforma de Francisco Campos e de Gustavo Capanema é uma
escola inspirada no modelo cultural europeu, cuja expressão institucional é o Grupo
Escolar e que representa, grosso modo, as formas estatísticas e institucionais do fascismo
escolar, travestido de instituição e de modelo pedagógico no Brasil. A escola centrada na
disciplina, nos exames, nas provas, nas sabatinas, no magistrocentrismo, na inspeção, na
memorização, na exaltação da frequência e da disciplina paramilitar, e que se torna, em
última instância, num mecanismo de qualificação e de seleção social de todas as camadas e
classes sociais daquele momento. A determinação de produzir uma escola centrada na
pedagogia autoritária derivava da perspectiva política maior, a concepção de Estado, que
Getúlio Vargas consubstanciava com sua atuação conservadora e autoritária.
Diz BÓRIS FAUSTO (1994):

(...) a corrente autoritária assumiu com toda conseqüência a perspectiva do


que se denominava modernização conservadora, ou seja, o ponto de vista
de que, em um país desarticulado como o Brasil, cabia ao Estado
organizar a nação para promover dentro da ordem o desenvolvimento
econômico e o bem-estar geral. O Estado autoritário poria fim aos
conflitos sociais, às lutas partidárias, aos excessos da liberdade de
expressão que só serviam para enfraquecer o país. (Fausto, 1994, p.357).

O ideal político nacionalista assumia a educação como modeladora da identidade


nacional, ao mesmo tempo em que reproduzia as condições de dependência das idéias e
projetos modelares advindos da Europa. Nossa suposta “modernização” submeteu a
educação e a oferta de escolas aos interesses e necessidades do mercado de trabalho, nos
lugares de maior adensamento das relações capitalistas, industrializantes e urbanizadoras,
deixando um lastro enorme de pessoas e grupos sociais excluídos desse universo.
Afirmam os historiadores, como REIS FILHO (1981):

(...) Isto é, pelas novas idéias, políticos e publicistas pretendiam realizar a


atualização histórica, considerada como a forma de realização nacional.
Entretanto, a própria maneira de perceber e de analisar a realidade
sociocultural brasileira refletia as últimas teorias importadas que
passavam a exercer dupla função: para diagnosticar a realidade e para
propor soluções. O modelo pensado assumia a forma de projeto que
passava para os programas partidários e daí era transformado em leis de
organização política, judiciária, eleitoral ou educacional. É um período em
que as propostas de reformas, de quase todas as instituições brasileiras
existentes, entravam em debate, agitando o pequeno mundo intelectual e

3
político da época. Porém, as reformas não partiam da realidade, mas do
modelo importado4.

Ainda que estejamos longe de fazer uma crítica efetivamente cabal deste período, a
escola proposta pelas estruturas do glorioso projeto nacionalista, no meio de tantas
contradições, ainda se configurou como a mais orgânica expressão de nosso frágil sistema
educacional. Prevalece até os anos 1960, ainda que abalada por inovações e exigências de
uma conflitiva conjuntura histórica. Precisamos estudar com maior propriedade a educação
brasileira voltada para a seleção e preparação de quadros profissionais superiores e de mão
de obra para o mercado de trabalho emergente tardiamente.
Por fim, encontramos a tradição escolar recente, centrada no modelo norte
americano, aqui produzida através dos acordos MEC/USAID. O símbolo da atuação desta
escola é a atuação do então ministro Jarbas Passarinho. A escola institucionalmente
defendida por Jarbas Passarinho perdia o papel histórico de produtora dos consensos
culturais, ético-morais e produtivos básicos, ainda que somente anunciada nas políticas de
estado daquele momento. Tornava-se, a partir da realidade do êxodo rural, do inchaço das
cidades, da presença das massas deserdadas da terra na cidade, uma escola compensatória,
voltada à compensação, com políticas mais assistencialistas, que atendem a demandas mais
emergenciais das comunidades carentes, mas que alteram profundamente o papel histórico-
institucional da educação e da escola no Brasil. A proposta de Educação da Ditadura
Militar (1964-1985), usando esta identidade personalista para representar o modelo, produz
uma suplementação das funções através da compensação nutricional pela merenda, do
papel subsidiário da escola como elemento de saúde pública, promovendo campanhas de
saúde, atendimentos incidentais primários, transforma-se num centro comunitário de lazer e
atendimento compensatório, por falta de equipamento social e comunitário nos bairros.
Assume ainda o papel social de centro de controle de zoonoses, centro de saúde,
medicalizando o processo pedagógico básico, quebrando profundamente o papel da escola
como formadora cultural e ético- institucional.
As bibliotecas definham e crescem os equipamentos de lazer e de espaços
improvisados, derivados da ação compensatória. Transformam a escola, até
arquitetonicamente, numa ilha de assistencialismos compensatórios, quebrando o currículo
e o ordenamento institucional tradicional e a tradição jurídico- curricular do Brasil,
produzindo um amplo desprestígio social para a função de educador, perdendo o prestígio
social da formação básica, produzindo dentro da escola, mecanismos e nichos de controle
comportamental e de patrulhamento ideológico- político, de modo que a escola de Jarbas
Passarinho torna-se uma “Torre de Babel”, onde professores, alunos, classes sociais e
determinações institucionais desagregam-se plenamente sem que possa haver uma unidade
político- formal emancipatória, capaz de criar e produzir cidadania.
Nesta direção, esta escola assistencialista quanto mais se afunda como instituição,
num papel subsidiário e secundário, mais amplia a determinação e influência da televisão,
com mecanismo modelar produtora de influências comportamentais entre crianças,
adolescentes e jovens do Brasil. A inclusão da sociedade de massas e da sociedade de
participação virtual é o mais novo ideário dessa escola.

4
REIS FILHO, Casemiro. A educação e a ilusão liberal. São Paulo, Cortez/Autores Associados, 1981, p.
187.

4
A escola que surge nos anos 1980, das cinzas da escola assistencialista, ao invés de
ser a educação e a escola proposta pelos amplos grupos de educadores que empreenderam
uma heróica luta em defesa da educação pública nos anos 1980, na verdade, nas políticas
educacionais recentes, assume uma nova feição institucional e novas finalidades
institucionais. É o que chamamos de “Escola Parabólica”, voltada para o cultivo de novas
tecnologias artificialmente postas a serviço de um processo pedagógico desequilibrado e
desacreditado. A inserção de novas tecnologias de informação; a televisão, o vídeo, as “tvs”
integradas, o smartphone, os computadores, as tecnologias digitais, enfim, mostram e
formam um complexo tecnológico, que não bate com o perfil e a determinação institucional
da escola nesta sociedade, em amplo processo de dilaceramento social e de globalização
subserviente. A forma com que a globalização dos capitais e da cultura foi conduzida em
nossa história social, política e econômica recente, aponta para as maiores contradições, a
garantia de um suposto equilíbrio econômico à custa de um amplo processo de exclusão e
de marginalização social.
HABERMAS (1993) nos alerta:

(...) O preço a ser pago pela introdução da economia de mercado inclui:


desigualdade social, novas divisões, e uma porcentagem elevada, não
passageira, de desempregados. Haverá um número relativamente elevado
de desempregados nos novos Estados de Alemanha porque uma parte da
população é idosa e a outra mal preparada para suportar a considerável
pressão de mudança: para isso é necessária robustez de espírito e preparo
cognitivo. Como sempre acontece nos casos de uma transformação social
alterada, as crises são descarregadas sobre a vida, a saúde física e psíquica
dos indivíduos mais fortemente atingidos.5

Sobre este tema já produzimos alguns estudos, permitindo-nos reproduzir aqui, a


título de síntese, algumas de nossas premissas analíticas e interpretativas da atual Reforma
Educacional (1996), se é que assim se pode denominar o conjunto artificial e aleatório de
medidas que tem regulamentado a educação brasileira recentemente.

(...) Este foi o terreno político de nossos reformadores verde-amarelos.


Inspirados na crítica a toda tradição marxista e no ethos da modernização
globalizante a transversalidade foi o elan compensatório para a frustração
histórica da LDB popular, defendida pelos educadores nos anos 80, foi a
contrapartida à usurpação dos PNE’s de base social e popular
revolucionária, a materialização do discurso antimarxista que saudava o
fim da história, a queda do muro e o enterro de todo sectarismo em nome
de uma confortável idéia adesista de versatilidade adaptativa, um delírio
narcisista e uma exaltada cantilena solipsista própria de períodos sem
utopias.6

A escola “parafernália eletrônica”, centrada numa educação neoliberal, resgatando


pressuposto alheios à educação tradicional brasileira, insere-se numa trajetória artificial,
incapaz de produzir, através da educação escolar, a cidadania retoricamente apontada nos
objetivos educacionais mais amplos. Voluntariado, a formação em serviço, a formação
5
HABERMAS, J. Passado como Futuro, p.60.
6
NUNES, C. e SILVA, E. A Educação Sexual da Criança, Campinas, Autores Associados, 2000, p. 134.

5
básica dilacerada, os mecanismos artificiais de produção estatística de uma otimização do
sucesso escolar, estão cada vez mais sendo desmascaradas pela realidade da ausência de
investimentos institucionais amplos na educação, pela esterilidade criativa na produção de
mecanismos regulares e institucionais de formação de professores, e pela cópia imperfeita
de modelos fiscalizatórios, derivados de países onde a educação básica já foi plenamente
universalizada e vencida. Os exames nacionais, os parâmetros curriculares, o uso pontual e
artificial de tecnologias de radiodifusão e uso da televisão e de educação à distância, não
convencem, quando comparados aos míseros 5,9 % do PIB, que continuam historicamente
a sustentar todo o equipamento educacional brasileiro, muito distante dos índices já
praticados nos países dominantes ou centrais do capitalismo. Por fim, esta educação mostra
a incapacidade do Estado em prover a educação pública boa e de qualidade para todos e, ao
mesmo tempo, nestes últimos trinta anos, prevaleceu no Brasil, um modelo de educação
privada, centrada no lucro e no sucesso quantitativo, mensurado somente pelos
determinantes da empresa e do perfil econômico.
Os estudos e pesquisas que analisam a relação histórica e institucional entre Estado
e Sociedade, para entender a dinâmica da produção e da educação apontam hoje para novas
funções e determinações da Escola e da Cultura na sociedade. Durante o século XIX e nos
inícios do século XX a escola era vista como uma instituição redentora, consagrada à
promoção da cultura e elevação moral dos homens. A partir dos anos 1920, com o
delineamento da crise mundial determinada pela Primeira Guerra Mundial, ela é
apresentada como uma instituição maléfica, carregada de adjetivações sociológicas e
políticas, particularmente depois da crítica do papel desagregador e desigual da distribuição
do capital escolar na sociedade de classes. Desde sua origem no século XVIII e ao longo do
século XIX, a escola transformara-se numa instituição central no processo de
homogeneização cultural e de construção de um determinado conceito e modelo de
cidadania.
Nesta direção somente uma referencial desta potencialidade poderia dar conta de
uma aproximação com o real vivido e tão arduamente buscado. Não se trata aqui de
descobrir uma chave infalível ou um método soteriológico que viesse a dar conta dos
enigmas opacos postos à Razão. A dialética apreende o ser, o saber e o fazer do homem, em
suma, ela define, em sua provisoriedade, a essência humana, dinâmica e mutável, ao
mesmo tempo em que caracteriza o esforço aproximado do homem em saber; e torna-se
exigência de seus fazer político. Já MARX (1988) deixava bem claro que não pretendia
criar ou constituir uma heurística messiânica, mas uma forma de apreensão dos dinamismos
da realidade, ao dizer:

(...) O método que consiste em proceder do abstrato ao concreto não é,


para o pensamento, senão uma maneira de apropriar-se do concreto, de
reproduzi-lo, como concreto, intelectualmente. Mas esta não é a origem
do próprio concreto (7).

É fundamental que se compreenda a relação da teoria com a prática para não


proceder-se a uma negação da própria dialética. A realidade mesma do mundo e das coisas,

7
. Citado por KOSIK, K. In: DIALÉTICA DO CONCRETO, Editora paz e Terra, Rio de Janeiro, 1976, p. 36.

6
constituídas como dados materiais e sensíveis do mundo, são maiores que o que delas se
possa saber ou dizer. A dialética mantém a tensão entre o saber e o ser das coisas
articuladas pelo fazer do homem. A acentuação da dialética como um referencial
essencialmente teórico, que não tivesse raízes constitutivas na concretude da vida material,
daria forma a um "positivismo dialético" ou uma concepção positivista da dialética, linear e
caricata, que seria um contrassenso histórico e filosófico. Ao mesmo tempo, extrair da
concepção dialética o papel reservado à teoria seria transformá-la num rigoroso
pragmatismo, opaco, confuso, um saber amorfo ou um conjunto de princípios de ação
desconexos que em nada alterariam o curso da dialética da natureza nem da própria
sociedade. MARX (1988) apontava já esta tensão entre a universalidade e subjetividade,
entre as condições materiais objetivas, postas pela sociedade e pelos determinados modos
de produção e a perspectiva de uma essência humana construída em tais relações ao dizer:

(...) O homem apropria sua essência universal de forma universal, isto é


como homem total. Cada uma de suas relações humanas com o mundo
(ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, observar, perceber, desejar,
atuar, amar), em resumo, todos os órgãos de sua individualidade, como os
órgãos que são imediatamente comunitários em sua forma são, em seu
comportamento objetivo, a objetiva apropriação deste seu ser. A
apropriação da realidade humana, seu comportamento desde a condição
objetiva, é a afirmação da realidade humana (...), é a eficácia humana e o
sofrimento humano, pois o sofrimento, humanamente entendido, é um
gozo próprio do homem. (...) Ainda que a propriedade privada conceba,
por sua vez, todas essas realizações imediatas da possessão somente como
meio de vida, e a vida a que servem como meios é a vida da propriedade
privada, do trabalho e da capitalização (8).

Esta potencialidade de unir a teoria e a prática em interdependências fundamenta o


caráter crítico da filosofia crítico-dialética. Como filosofia busca apresentar de maneira
racional e conceitual os principais questionamentos sobre a vida humana, pessoal e social
contemporânea, como crítica insere-se na longa tradição teórica da filosofia de fundar o
conhecimento e as experiências em grades de valores. Não é uma exegese da linguagem
nem uma estreita heurística da razão, é uma busca de compreender as coisas pela sua
totalidade. Sua tarefa crítica consiste em desmascarar toda e qualquer alienação que pese
sobre a consciência e sobre a realidade mesma. A consciência não se torna, para esta
filosofia crítica, um separado do mundo, ela dá-se no embate com o mundo prático, real,
engendra-se nele para nele existir e supera-se neste movimento.
O vigor das descrições de MARX (1988) sobre a brutalidade do trabalho e a
conseqüente desumanização do homem, referindo-se aos operários da Inglaterra de seu
tempo, ainda é perturbador para nossas condições:

(...) Vigiar máquinas, reatar fios quebrados, não são atividades que exijam
do operário um esforço de pensamento, mas, além disso, impedem-nos de
ocupar o espírito com outros pensamentos. Já vimos, igualmente, que este

8
. Citado por SILVEIRA, P. e DORAY, B. op. cit. p. 156.

7
trabalho somente deixa lugar à atividade física, ao exercício dos
músculos. Assim, a bem dizer, não se trata de um trabalho, mas sim de um
aborrecimento total, o aborrecimento mais paralisante, mais deprimente
possível - o operário da fábrica está condenado a deixar enfraquecer todas
as forças físicas e morais neste aborrecimento e o seu trabalho consiste em
aborrecer-se durante todo o dia desde os oito anos. E também não se pode
distrair um só instante - a máquina à vapor funciona durante todo o dia, as
engrenagens, as correias e as escovas zunem e tilintam sem cessar aos
seus ouvidos, e se quiser repousar, mesmo momentaneamente, o
contramestre cai-lhe logo em cima com multas. E o operário bem sente
que está condenado a ser enterrado vivo na fábrica, e vigiar sem cessar a
infatigável máquina é a tortura mais penosa possível. De resto, exerce um
efeito extremamente embrutecedor tanto sobre o organismo como sobre as
faculdades mentais do operário. (9).

Esta descrição nos remete à desumanização de tantas fábricas e de tantos lugares de


atuação humana atuais. A simples constatação do que acontece com nossas escolas e com
outras instituições sociais não deixa de nos preocupar fortemente, se a vivacidade desta
situação não estaria sendo tão claramente vivida como até redimensionada. Em nossos dias,
SCHAFF aponta para a trágica dicotomia que paira sobre a realidade desumana da
globalização subserviente: (...) O mundo rico está orientado para o consumo e perdeu o
sentido do esforço e da solidariedade, pois em poder de 20% dos homens estão
concentrados 80% das riquezas. Se a hegemonia desmedida do Estado restringe a
liberdade, não podemos ignorar que a hegemonia indiscriminada do mercado pode nos
levar a um ponto de não retorno10.
A Filosofia, enquanto privilegiado campo da investigação humana, até por sua
marginalidade histórica no processo de fragmentação das ciências humanas sofrido nestes
dois últimos séculos, permaneceu em condições de lançar questões profundas sobre a
realidade global do homem, do mundo e da cultura. Fiel aos determinantes de sua
constituição como um saber, na Grécia Antiga, a Filosofia retoma seus questionamentos e
temas estruturais na época contemporânea, a solicitar do homem e de seu tempo um
veemente apelo de verdade. Retomar os caminhos da Filosofia significa retomar um
diálogo fecundo com idéias e pensadores que ousaram interrogar seu tempo e sua
existência. É preciso ter clareza das distâncias e contornos que nos separam destes
pensadores e de seus sistemas de idéias, mas não se pode prescindir de um permanente
crivo da trajetória do pensamento humano, do que foi pensado e significado e que repercute
significativamente em nós ainda hoje. As idéias e reflexões de homens e sociedades, as
artes e as construções significativas em todos os campos da cultura, das Ciências e da
Política, estão profundamente imbricadas em nossas vidas contemporâneas. Não se trata, no
entanto, de compreender a filosofia a partir de sistemas de pensamento prontos e
historicamente acabados, mas de desvendar a atitude filosófica primordial: filosofar é
admirar a realidade, admirar o mundo. PLATÃO afirma que (...) muito próprio do filósofo é
o estado de tua alma: a admiração. Não conhece a filosofia outra origem a não ser esta.

9
. MARX. K. e ENGELS, F. TEXTOS SOBRE EDUCAÇÃO E ENSINO, Editora Cortez e Moraes, 1988, São Paulo, p. 24-25.
10
SCHAFF, A Sociedade Informática, Guanabara, Rio de Janeiro, 1998, p.134.

8
Tal admiração não se reduz a uma investigação física sobre o mundo exterior, a
admiração da filosofia atinge a igual suscetibilidade e dinamismo das profundezas da
condição humana. A Filosofia é um modo de ver o mundo, que nasce do espanto e da
admiração. A contemplação, a "theoria" como afirmavam os gregos, não tem aqui um
significado passivo. Contemplar significa ver com profundidade, com serena racionalidade
e deleite, com plenitude e comprometimento com o que se vê. Os olhos do "lógos" não se
perdem na profusão do ser das coisas. Esta seria a prática do filósofo, consoante aos
destinos de sue tempo:
(...) Os filósofos não são capazes de transformar o mundo. O que nós
necessitamos é de um pouco mais de praticas solidárias; sem isso, o
próprio agir inteligente permanece sem consistência e sem conseqüências.
No entanto, tais práticas necessitam de instituições racionais, de regras e
formas de comunicação, que não sobrecarreguem moralmente os cidadãos
e, sim, elevem em pequenas doses a virtude de se orientar pelo bem
comum O resto de utopia que eu consegui manter é simplesmente a idéia
de que a democracia – e a disputa livre por suas melhores formas – é
capaz de cortar o nó górdio dos problemas simplesmente insolúveis. Eu
não pretendo afirmar que iremos ser bem- sucedidos nesse
empreendimento. Nós nem ao menos sabemos se é dada a possibilidade
desse sucesso. Porém, pelo fato de não sabermos nada a esse respeito,
devemos ao menos tentar. Sentimentos apocalípticos não traduzem nada,
além de consumir as energias que alimentam nossas iniciativas. O
otimismo e o pessimismo não são as categorias apropriadas a esse
contexto.11
A filosofia da educação que defendemos é a que se sustenta sobre uma corporeidade
essencialmente humanizada, consciente de si e de seus potenciais meios de produzir coisas
reais e sensíveis num mundo real, feito para todos os homens. Os corpos dos homens e
mulheres livres, libertos de toda forma de expropriação e reconhecedores do que podem
produzir e socializar entre seus pares e semelhantes as mais criativas e originais formas de
expressão. Um corpo que recusa ser mercadoria e que busca constituir-se além do “reino da
necessidade”, com as quais garantimos unicamente nossa sobrevivência material, mas sim
um corpo projetado para ser signo de liberdade, para novas e plenas formas de
espiritualização da paixão humana. Este corpo, carregado de signos sociais de exploração,
anseia superar as condições materiais que lhe dilaceram e fazem padecer, para alcançar
e engendrar outra plenitude numa nova materialidade. Esta possibilidade encontra as
condições objetivas, presentes nos novos movimentos sociais, a anunciar horizontes de
solidariedade, de justiça social e de ampla participação política das massas excluídas.
Estamos num processo histórico de luta política para constituir uma forma de
vivência social democrática e igualitária. Nesse processo as forças e os movimentos sociais
expressam seus interesses e suas concepções de mundo, de ciência, de cultura e de
educação. Lutamos pela conjunção histórica que reconhece a educação como prática social,
como dimensão humana e como fenômeno cultural político. O reconhecimento da prática
educacional e escolar como formação humana plena, como direito a estar na escola e direito
a aprender na escola tem sido nosso horizonte de buscas e de conquistas.

11
HABERMAS. J. Passado como Futuro, 1993, p. 94.

9
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