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Zen Na Arte Da Escrita - Ray Bradbury

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tradução:

Petê Rissatti
S UMÁR IO
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Capa

Folha de rosto

Sumário

Dedicatória

Prefácio

A alegria da escrita

Corra muito, fique imóvel, ou: a coisa no alto da escada, ou: novos
fantasmas de mentes antigas

Como alimentar e manter uma Musa

Bêbado e guiando uma bicicleta

Investindo uns trocados: Fahrenheit 451

Apenas deste lado de bizâncio: Licor de dente-de-leão

O longo caminho até Marte


Sobre os ombros de gigantes

A mente secreta

Filmando um haikai em um barril

Zen na arte da escrita

… Sobre a criatividade

Agradecimentos

Notas

Sobre o autor

Créditos
Para minha professora mais admirável, Jennet Johnson,
com amor.
C OMO ES C ALAR A ÁRVOR E DA
VIDA, ATIR AR P EDR AS EM S I
MES MO E VOLTAR A DES C ER S EM
TER OS OS S OS OU O ES P ÍR ITO
PARTIDOS
UM P R EF ÁC IO C OM UM TÍTULO
NÃO MUITO MAIS LONGO QUE O
LIVR O

ÀS VEZES ME SURPREENDO com minha capacidade, quando era um garoto de


nove anos, de compreender minha armadilha e dela escapar.
Como o garoto que eu era pôde, em outubro de 1929, por causa da crítica
de seus colegas de sala do quarto ano, rasgar suas revistinhas do Buck
Rogers e, um mês depois, achar que todos os seus amigos eram idiotas e
voltar correndo para colecioná-las?
De onde vieram essa opinião e essa força? Que tipo de processo
vivenciei que me permitiu dizer: “Eu bem que poderia morrer”? Quem está
me matando? Qual é a cura?
Claro que eu podia responder a todas essas perguntas. Dei um nome à
minha doença: o fato de eu ter rasgado minhas revistinhas. E encontrei a
cura: voltar a colecioná-las, independente do que acontecesse.
Fiz isso. E foi bem feito.
Mas, ainda assim. Naquela idade? Quando estamos acostumados a
corresponder à pressão de nossos pares?
Onde encontrei coragem para me rebelar, mudar minha vida, viver por
minha conta?
Não quero superestimar tudo isso, mas, caramba, eu amo esse menino de
nove anos, quem quer que ele tenha sido. Sem ele, eu não poderia ter
sobrevivido para apresentar estes textos.
Parte da resposta, claro, reside no fato de eu ter sido tão loucamente
apaixonado por Buck Rogers que não pude enxergar meu amor, meu herói,
minha vida destruídos. É quase simples assim. Era como saber que o melhor
camarada, o mais amoroso amigo, centro da vida se afogou ou levou um tiro
e morreu. Não dá para salvar os amigos mortos dessa maneira do próprio
funeral. Percebi que Buck Rogers talvez pudesse ter uma segunda chance de
viver se eu lhe desse uma. Então, fiz uma respiração boca a boca nele e,
“opa!”, ele se levantou e disse: “E aí?”.
Grite. Pule. Brinque. Deixe esses filhos da puta para trás. Eles nunca vão
viver do jeito que você vive. Vá e faça.
Exceto pelo fato de que nunca falei palavrões como FDP. Não eram
permitidos. Caramba! foi mais ou menos o tamanho e a força do meu grito.
Sobreviva!
Então, eu colecionava quadrinhos, era apaixonado por parques de
diversões e exposições mundiais, e comecei a escrever. E aí você
perguntará: o que a escrita nos ensina?
Em primeiro lugar, e antes de mais nada, ela nos lembra de que estamos
vivos e que isso é um presente e um privilégio, não um direito. Precisamos
nos apropriar da vida, já que ela nos foi dada. A vida pede recompensas,
pois nos concedeu o ânimo.
Então, embora nossa arte, ainda que assim desejemos, não possa nos
salvar de guerras, privação, inveja, cobiça, velhice ou morte, ela pode nos
revitalizar no meio de tudo isso.
Em segundo lugar, escrever é sobreviver. Qualquer arte, qualquer bom
trabalho, claro, significa isso mesmo.
Não escrever, para muitos de nós, significa morrer.
Precisamos pegar em armas todos os dias, talvez sabendo que a batalha
não poderá ser vencida por inteiro, mas precisamos lutar, ainda que seja uma
luta leve. O menor esforço para vencer significa, ao fim de cada dia, uma
espécie de vitória. Lembre-se do pianista que disse que se não praticasse
todo dia ele saberia, se não praticasse por dois dias, os críticos saberiam,
depois de três dias seu público saberia.
Uma variação disso é real para quem escreve. Não que seu estilo, seja
ele qual for, ficasse disforme em poucos dias.
Mas o que aconteceria é que o mundo nos atropelaria e tentaria nos
adoecer. Se não escrever todo dia, os venenos se acumularão, e você vai
começar a morrer, agir de um jeito enlouquecido, ou ambos.
É preciso embebedar-se da escrita para que a realidade não possa te
destruir.
Pois a escrita permite apenas as receitas adequadas de verdade, vida,
realidade, enquanto você for capaz de comer, beber e digerir sem
hiperventilar e despencar como um peixe morto na cama.
Em minhas jornadas, aprendi que, se eu deixar um dia passar sem
escrever, fico cada vez mais inquieto. Dois dias e começo a tremer. Três e
suspeito de loucura. Quatro e viro um porco, chafurdando em um lamaçal.
Uma hora de escrita é um tônico. Fico de pé, corro em círculos e grito,
pedindo um par de sapatos limpos.
Então é disso que, de um jeito ou de outro, este livro trata.
Tomar uma pitada de arsênico a cada manhã para que você possa
sobreviver ao pôr do sol. Outra pitada no pôr do sol para que você possa
sobreviver além da aurora.
A microdose de arsênico que se toma aqui o prepara para não se
envenenar e não se destruir mais adiante.
O trabalho no meio da vida é essa dosagem. Para manipular a vida, lance
órbitas coloridas e brilhantes para cima de modo a se mesclarem com as
órbitas escuras, misturando uma profusão de verdades. Usamos os fatos
grandiosos e belos da existência para suportar os horrores que afligem
diretamente a nós, a nossa família e amigos, ou que nos vêm através das
notícias dos jornais e da TV.
Não devemos negar os horrores. Quem entre nós não teve um amigo que
morreu de câncer? Existe família em que algum parente não foi morto ou
ficou mutilado por um acidente de automóvel? Não conheço nenhuma. Da
minha parte, uma tia, um tio, um primo e seis amigos foram mortos por um
carro. A lista é infinita e devastadora se não nos opusermos criativamente a
ela.
Isso quer dizer que a escrita é como uma cura. Não completa, claro. Você
nunca supera pais no hospital ou o amor de sua vida no túmulo.
Não vou usar a palavra “terapia”, é uma palavra asséptica demais, estéril
demais. Digo apenas que, quando a morte reduzir a velocidade dos outros,
você deve correr para construir seu trampolim e pular de cabeça em sua
máquina de escrever.
Poetas e artistas de outras épocas, de um passado distante, sabiam de tudo
isso que eu disse aqui ou que apresentarei nos ensaios a seguir. Aristóteles
falou disso eras atrás. Você o tem ouvido ultimamente?
Estes ensaios foram escritos em vários momentos durante um período de
trinta anos, para expressar descobertas especiais, servir a necessidades
especiais. Mas todos ecoam as mesmas verdades de autorrevelação
explosiva e espanto contínuo que seu poço profundo abriga, basta você
simplesmente recuar um pouco e gritar para dentro dele.
No momento em que escrevo este texto, chegou uma carta de um jovem
escritor desconhecido que diz que vai viver segundo meu lema, encontrado
no meu livro O viajante do tempo.

[…] mentir com gentileza e provar que a mentira é verdade […]


finalmente, tudo é uma promessa […] o que parece uma mentira é uma
necessidade decrépita que deseja ser parida […].

E agora:
Inventei um novo símile para descrever a mim mesmo nos últimos tempos.
Ele pode ser seu.

Toda manhã pulo da cama e piso em uma mina terrestre.


A mina terrestre sou eu.
Depois da explosão, passo o restante do dia juntando os pedaços.
Agora, é sua vez. Pule!
A ALEGR IA DA ES C R ITA

ENTUSIASMO. ANIMAÇÃO. Como é raro ouvir pessoas usando essas palavras.


Como é raro ver pessoas vivendo ou, de fato, criando com elas. Ainda
assim, se me perguntassem o nome dos itens mais importantes que formam o
escritor, as coisas que moldam seu material e o impulsionam pela estrada até
onde deseja ir, eu diria apenas para que olhasse para seu entusiasmo,
enxergasse sua animação.
Você tem uma lista de escritores favoritos; eu tenho a minha. Dickens,
Twain, Wolfe, Peacock, Shaw, Molière, Jonson, Wycherly, Sam Johnson.
Poetas: Gerard Manley Hopkins, Dylan Thomas, Pope. Pintores: El Greco,
Tintoretto. Músicos: Mozart, Haydn, Ravel, Johann Strauss (!). Pense em
todos esses nomes e você vai pensar em entusiasmos, apetites, fomes,
grandes ou pequenas, mas, de qualquer forma, importantes. Pense em
Shakespeare e Melville, e você vai pensar em trovão, raio, vento. Todos
sabiam da alegria de criar em formatos grandes ou pequenos, em telas
ilimitadas ou restritas. Esses são os filhos dos deuses. Souberam se divertir
em seu trabalho. Não importa se a criação foi difícil aqui e ali, ao longo do
caminho, ou se doenças e tragédias acometeram sua vida mais íntima. As
coisas importantes são aquelas que nos foram transmitidas por suas mãos e
mentes, e essas coisas estão cheias até a tampa de vigor animal e vitalidade
intelectual. Seus ódios e desesperos foram relatados com uma espécie de
amor.
Olhe para as figuras alongadas de El Greco e me diga, se puder, que ele
não teve alegria em seu trabalho? Você pode realmente achar que A criação
dos animais, de Tintoretto, é uma obra baseada em algo menos do que
“diversão” em seu sentido mais abrangente e envolvente? O melhor jazz diz:
“Gonna live forever; don’t believe in death” [Vamos viver para sempre; não
acredite na morte]. A melhor escultura, como a cabeça de Nefertiti, diz, sem
parar: “A Beleza esteve aqui, está aqui e estará aqui para sempre”. Cada um
dos homens que listei capturou um pouco do mercúrio da vida, congelou-o
por todo tempo e se virou, no arroubo de sua criatividade, para apontá-lo e
gritar: “Não é bom?”. E era bom.
O que tudo isso tem a ver com a escrita da narrativa breve em nossos
tempos?
Somente isto: se estiver escrevendo sem entusiasmo, sem animação, sem
amor, sem diversão, você será apenas meio escritor. Significa que está tão
ocupado de olho no mercado ou de ouvido atento à panelinha de vanguarda
que não está sendo você mesmo. Nem sequer se conhece. Pois esta é a
primeira coisa que um escritor deveria ser: alguém com entusiasmo. Deveria
ter algo de febril e de ardor. Sem esse vigor, talvez fosse melhor ir colher
pêssegos ou cavar trincheiras; quem sabe isso não faria um bem maior à sua
saúde.
Quanto tempo faz desde que você escreveu uma história na qual seu
verdadeiro amor ou seu verdadeiro ódio foi para o papel? Quando foi a
última vez que ousou liberar um estimado preconceito para que ele batesse
na página como um relâmpago? Quais são as melhores e as piores coisas em
sua vida, e quando você vai dar um jeito de sussurrá-las ou gritá-las?
Não seria maravilhoso, por exemplo, deixar de lado uma edição da
Harper’s Bazaar que, por acaso, você estivesse folheando no consultório do
dentista e saltar para sua máquina de escrever e avançar a toda com fúria
hilariante, atacando o esnobismo idiota e, às vezes, chocante da revista?
Anos atrás fiz exatamente isso. Encontrei um número em que os fotógrafos da
Bazaar, com seu senso pervertido de igualdade, utilizaram novamente, em
uma ruazinha de Porto Rico, nativas como adereços, em frente às quais
posavam suas modelos de aparência esfomeada, em benefício de jovenzinhas
ainda mais emaciadas nos melhores salões de beleza do país. As fotografias
me enfureceram tanto que corri, não andei, até minha máquina e escrevi “Sol
e sombra”, a história de um velho porto-riquenho que arruína a tarde de
trabalho do fotógrafo da Bazaar ao se infiltrar em cada foto e arriar as
calças.
Ouso dizer que alguns de vocês teriam gostado de ter feito esse trabalho.
Eu me diverti escrevendo-o; o efeito posterior e purificador da vaia, do
berro e da gargalhada histérica imensa. Provavelmente os editores da revista
nem ouviram falar dele. Mas muitos leitores ouviram e gritaram: “Dá-lhe,
Bazaar, dá-lhe, Bradbury!”. Não reivindiquei vitória, mas fiquei com sangue
nas mãos quando os expus.
Quando foi a última vez que você criou uma história como essa, por pura
indignação?
Quando foi a última vez que você foi parado pela polícia em sua
vizinhança por gostar de caminhar e, talvez, pensar à noite? Aconteceu com
tanta frequência comigo que, irritado, escrevi “O pedestre”, uma história de
um tempo, cinquenta anos atrás, quando um homem é preso e levado para
estudos clínicos porque insiste em olhar para a realidade não televisionada e
respirar um ar não condicionado.
Deixando a irritação e a raiva de lado, o que falar do amor? O que você
mais ama no mundo? Digo, as coisas grandes e pequenas. Um bonde, um par
de tênis? Essas coisas, quando éramos crianças, eram envoltas em magia. No
ano passado, publiquei uma história sobre a última viagem de um garoto em
um bonde que cheirava a todas as tempestades com trovoadas, cheio de
bancos de veludo verde-musgo bacanas e eletricidade azul, mas condenado a
ser substituído pelo ônibus mais prosaico, de cheiro mais prático. Outra
história relacionada a um garoto que queria um par de tênis novos pelo
poder que eles lhe conferiam para saltar rios, casas e ruas, e até mesmo
arbustos, calçadas e cães. Para ele, os tênis eram o estouro de antílopes e
gazelas na savana africana estival. A energia das corredeiras dos rios e
tempestades de verão estava naqueles tênis; ele precisava tê-los mais do que
qualquer outra coisa no mundo.
Então, simples assim, eis a minha fórmula.
O que você quer mais do que qualquer outra coisa no mundo? O que você
ama ou o que você odeia?
Encontre uma personagem, como você mesmo, que vai desejar ou não
uma coisa, de todo coração. Dê-lhe ordens e mais ordens. Mande-a
caminhar. Em seguida, avançar o mais rápido que puder. A personagem, em
seu grande amor ou ódio, vai levar você até o fim da história. O entusiasmo
e a força de sua necessidade, e existe entusiasmo tanto na raiva quanto no
amor, vão incendiar a paisagem e aumentar a temperatura de sua máquina de
escrever acima dos quarenta graus.
Tudo isso é indicado essencialmente ao escritor que já aprendeu seu
ofício, ou seja, está imbuído de ferramentas gramaticais e conhecimento
literário suficientes para não tropeçar quando quiser correr. Contudo, o
conselho também serve bem ao iniciante, embora seus passos possam vacilar
por razões puramente técnicas. Mesmo nesse caso, a paixão com frequência
salva o dia.
Por isso, o histórico de cada história deveria ser lido quase como uma
previsão do tempo: quente hoje, fresco amanhã. Nesta tarde, incendeie a
casa toda. Amanhã, jogue a água fria da crítica sobre as brasas
incandescentes. Tempo suficiente para pensar, cortar e reescrever amanhã.
Mas hoje exploda, despedace, desintegre! Os outros seis ou sete rascunhos
vão ser pura tortura. Então, por que não aproveitar esse primeiro rascunho,
na esperança de que sua alegria vá procurar e encontrar outros no mundo
que, ao ler sua história, vão se incendiar também?
Não precisa ser um grande incêndio. Um pequeno lampejo, a luz de uma
vela, talvez; um desejo de uma maravilha mecânica como um bonde ou uma
maravilha animal como um par de tênis saltando como coelhos nos gramados
nas primeiras horas da manhã. Busque os pequenos amores, encontre e
modele as pequenas amarguras. Saboreie-os na boca, teste-os em sua
máquina de escrever. Quando foi a última vez que você leu um livro de
poesia ou tirou um tempo, em uma tarde, para ler um ensaio ou dois? Você já
leu uma única edição da Geriatrics, o periódico oficial da Sociedade Norte-
Americana de Geriatria, voltado à “pesquisa e ao estudo clínico das doenças
e dos processos dos idosos e do envelhecimento”? Leu, ou mesmo viu, uma
cópia de What’s New, revista publicada pela Abbott, que fica ao norte de
Chicago, e que traz artigos como “Tubocurarina para cesariana” ou
“Fenamecida em epilepsia”, mas também poemas de William Carlos
Williams, Archibald Macleish, histórias de Clifton Fadiman e Leo Rosten;
capas e ilustrações de John Groth, Aaron Bohrod, William Sharp, Russell
Cowles? Absurdo? Talvez. Mas as ideias estão em todos os lugares, como
maçãs caídas apodrecendo na grama por falta de estranhos caminhando com
um olho e um gosto pela beleza, seja absurda, horrível ou refinada.
Gerard Manley Hopkins expressou tudo isso assim:

Glória a Deus pelas coisas tão coloridas…


Pelos céus matizados como vaca malhada;
Pelas róseas pintas salpicadas na truta que nada;
Castanhas caídas como carvão em brasa; asas de pintassilgo;
Paisagem riscada e partida — fechada, inculta, arada;
E todos os ofícios, ferramentas, vestimentas, instrumentos.
Tudo que é oposto, original, parco, esquisito;
Seja instável, sarapintado (ninguém sabe de nada?)
Ágil, lento; doce, azedo; luzidio, mortiço;
Ele, cuja beleza nunca muda, tem concebido:
Louvado seja.

Thomas Wolfe comia o mundo e vomitava lava. Dickens fazia refeições


em uma mesa diferente a cada hora. Molière, provando a sociedade, virou-se
para pegar o bisturi, como Pope e Shaw fizeram. Para todo canto que você
olhar no universo literário, os grandes se ocuparam em amar e odiar. Você
considerou essa ação primordial como obsoleta em sua escrita? Se sim,
quanta diversão está perdendo. A diversão da raiva e da desilusão, a
diversão de amar e ser amado, de emocionar e se emocionar com esse baile
de máscaras que nos faz dançar do berço ao cemitério. A vida é curta, o
pesar inevitável, a mortalidade certa. Mas, no trajeto, em seu trabalho, por
que não carregar aqueles dois balões inflados chamados Entusiasmo e
Animação? Com eles, na viagem ao túmulo, pretendo deixar alguns idiotas
para trás, acariciar o cabelo de uma bela garota, acenar para um garotinho
em cima de um caquizeiro.
Qualquer um que queira se juntar a mim, há espaço de sobra no Exército
de Coxey.[1]

1973
C OR R A MUITO, F IQUE IMÓVEL, OU:
A C OIS A NO ALTO DA ES C ADA, OU:
NOVOS FANTAS MAS DE MENTES
ANTIGAS

CORRA MUITO, FIQUE IMÓVEL. É a lição dos lagartos. Para todos os escritores.
Observe quase todo ser vivo e verá a mesma coisa. Saltar, correr, congelar.
Em sua capacidade de partir num piscar de olhos, estalar como um chicote,
evaporar, estar aqui em um instante, não estar mais no próximo, a vida
fervilha na Terra. E quando essa vida não está correndo para escapar, está se
fingindo de estátua para fazer a mesma coisa. Veja o beija-flor, está ali, não
está ali. Como o pensamento que surge e desaparece num estalo, um vapor
de verão; o pigarro de uma garganta cósmica, a queda de uma folha. E onde
isso estava… em um sussurro.
O que os escritores podem aprender com os lagartos, roubar dos
pássaros? Na rapidez está a verdade. Quanto mais rapidamente você falar,
mais agilidade terá para escrever, mais sincero será. Na hesitação está o
pensamento. Na demora vem o esforço por um estilo, em vez do salto para se
dizer a verdade — e este é o único estilo pelo qual vale a pena entrar em
uma ratoeira ou em uma armadilha.
E o que acontece entre corridas e voos? Seja um camaleão mesclado com
tintas, troque cromossomos com a paisagem. Seja uma pedra de estimação,[2]
deite-se na poeira, descanse na água da chuva no barril cheio pela calha que
ladeava a janela de seus avós muito tempo atrás. Seja o licor de dente-de-
leão no frasco de ketchup tampado e com a inscrição à tinta: Manhã de
junho, primeiro dia de verão de 1923. Verão de 1926. Noite de fogos de
artifício. 1927: Último dia de verão. ÚLTIMO DOS DENTES-DE-LEÃO, 1o de
outubro.
E a partir disso tudo, termine com seu primeiro sucesso como escritor, a
vinte dólares por história, na revista Weird Tales.
Como você começará a iniciar o princípio de um tipo quase novo de
escrita para aterrorizar e assustar?
Em geral você tropeça nele. Você não sabe o que está fazendo e, de
repente, está feito. Você não começa a reformar certo tipo de escrita. Ele
evolui a partir de sua vida e dos terrores noturnos. De repente, você olha ao
redor e enxerga que fez uma coisa quase nova.
O problema de qualquer escritor em qualquer área é ficar limitado àquilo
que já foi antes ou ao que está sendo publicado exatamente naquele momento
em livros e revistas.
Cresci lendo e amando as tradicionais histórias de fantasmas de Dickens,
Lovecraft, Poe e, mais tarde, Kuttner, Bloch e Clark Ashton Smith. Tentei
escrever histórias com intensa influência de vários desses escritores e
consegui criar bolinhos de lama de quatro andares, cheio de linguagem e
estilo, que não flutuavam e afundaram sem deixar rastros. Eu era jovem
demais para identificar meu problema, estava ocupado demais imitando.
Eu quase deparei com meu eu criativo no último ano do ensino médio,
quando escrevi uma espécie de longa lembrança do despenhadeiro profundo
de minha cidade natal e meu medo dele à noite. Mas eu não tinha uma
história que combinasse com o despenhadeiro, então minha descoberta da
verdadeira fonte de minha futura escrita foi postergada em alguns anos.
A partir dos doze anos de idade, escrevia ao menos mil palavras por dia.
Por anos, Poe olhava por sobre um ombro, enquanto Wells, Burroughs e
praticamente todos os escritores das revistas Astounding e Weird Tales
olhavam por sobre o outro.
Eu os amava, e eles me sufocavam. Não aprendi como desviar o olhar e,
no processo, não olhava para mim mesmo, mas para aquilo que passava
dentro da minha cabeça.
Somente quando iniciei a descoberta dos truques e dos prazeres que
advinham da associação de palavras que comecei a encontrar um caminho
real através dos campos minados da imitação. Por fim, descobri que, se
vamos pisar em uma mina ativada, que seja a nossa mina. Se for para
explodir, por assim dizer, que seja pelas próprias dores e delícias.
Comecei a fazer breves anotações e descrições de amores e ódios.
Durante meus vinte e 21 anos, circulei por tardes de verão e meias-noites de
outubro sentindo que, em algum lugar, nas estações brilhantes e escuras,
devia haver algo que fosse realmente meu.
Por fim, descobri esse algo em uma tarde, quando tinha 22 anos. Escrevi
o título “O lago” na primeira página de uma história que se finalizou duas
horas depois. Duas horas depois de eu ter me sentado à minha máquina de
escrever em um alpendre ensolarado, com lágrimas correndo até a ponta do
nariz e os pelos da nuca arrepiados.
Por que os pelos se arrepiavam e o nariz escorria?
Percebi que tinha enfim escrito uma história realmente boa. A primeira
em dez anos de escrita. E não era apenas uma história boa, mas era uma
espécie de híbrido, algo que beirava o novo. Não era mesmo uma história de
fantasmas tradicional, mas uma história sobre amor, tempo, lembrança e
afogamento.
Enviei-a para Julie Schwartz, minha agente, que gostou, mas disse que
não era uma história tradicional e provavelmente seria difícil vendê-la. A
Weird Tales rodeou-a, cutucou com uma vara de três metros e, por fim, ora
essa, decidiu publicá-la, embora a história não tivesse a ver com a revista.
Mas precisei prometer que, da próxima vez, escreveria uma boa história de
fantasmas à moda antiga! Eu prometi. Eles me deram vinte dólares, e todo
mundo ficou feliz.
Bem, alguns de vocês sabem o que aconteceu. “O lago” foi reimpresso
dezenas de vezes nos últimos 44 anos. E foi a história que fez vários editores
de outras revistas erguerem os olhos e perceberem o rapaz de pelos
arrepiados e nariz escorrendo.
Será que aprendi uma lição dura, rápida ou mesmo fácil com “O lago”?
Não. Voltei a escrever histórias de fantasma à moda antiga, pois eu era
jovem demais para entender muito de escrita, e durante anos minhas
descobertas passaram despercebidas por mim. Eu estava perambulando por
aí e escrevendo coisas ruins a maior parte do tempo.
Aos vinte e poucos anos, se minha ficção de horror sobrenatural era
imitadora, com uma ou outra surpresa de um conceito e na execução, minha
escrita de ficção científica era horrenda, e minha ficção policial beirava o
ridículo. Eu sofria a influência profunda de minha querida amiga Leigh
Brackett, que eu costumava encontrar todo domingo na Muscle Beach, em
Santa Monica, Califórnia, para ler seus contos de alto nível de Stark on
Mars ou invejar e tentar emular suas histórias de Flynn’s Detective. No
entanto, nesses anos, passei a fazer listas de títulos, anotar longas linhas de
substantivos. Por fim, essas listas eram provocações que traziam o meu
melhor à tona. Eu tateava meu caminho na direção de algo sincero,
escondido sob o alçapão no alto do meu crânio.
A lista era mais ou menos assim:
O LAGO. A NOITE. OS GRILOS. O DESPENHADEIRO. O SÓTÃO. O PORÃO. O
ALÇAPÃO. O BEBÊ. A MULTIDÃO. O TREM NOTURNO. A SIRENE DO NEVOEIRO. A
SEGADEIRA. O PARQUE DE DIVERSÕES. O CARROSSEL. O ANÃO. O LABIRINTO DE
ESPELHOS. O ESQUELETO.
Eu estava começando a ver um padrão na lista, nessas palavras que eu
tinha simplesmente lançado no papel, confiando que meu subconsciente
alimentasse os pássaros, por assim dizer.
Dando uma olhada na lista, descobri meu amor e meu medo antigos
relacionados a circos e parques de diversões. Lembrei, depois esqueci,
então lembrei de novo como fiquei aterrorizado quando minha mãe me levou
pela primeira vez em um carrossel. Acrescentei meus gritos à balbúrdia de
órgão a vapor gritando, mundo girando e cavalos horríveis saltando. Durante
anos não cheguei perto de um carrossel. Quando de fato me aproximei de um
novamente, décadas mais tarde, ele me levou para o meio de Algo sinistro
vem por aí.
Porém, muito antes disso, continuei fazendo listas. A CAMPINA. A ARCA DE
BRINQUEDOS. O MONSTRO. TIRANOSSAURO REX. O RELÓGIO DA CIDADE. O VELHO. A
VELHA. O TELEFONE. AS CALÇADAS. O CAIXÃO. A CADEIRA ELÉTRICA. O MÁGICO.
À margem desses substantivos, tropecei em uma história de ficção
científica que não era uma história de ficção científica. Meu título era “F de
Foguete”. O título publicado foi “King of the Grey Spaces” [Rei dos espaços
cinza], a história de dois garotos, grandes amigos, um eleito para ir à
Academia Espacial, e o outro ficaria em casa. O conto foi rejeitado por
todas as revistas de ficção científica, pois, no fim das contas, era apenas uma
história sobre amizade sendo testada pelas circunstâncias, embora a
circunstância fosse uma viagem espacial. Mary Gnaedinger, da Famous
Fantastic Mysteries, deu uma olhada na minha história e a publicou. Mas,
outra vez, eu era jovem demais para enxergar que “F de Foguete” seria o
tipo de história que me tornaria um escritor de ficção científica, admirado
por alguns e criticado por muitos que observavam que eu não era escritor de
ficção científica, eu era um escritor de “pessoas”, e que se dane!
Continuei fazendo listas que tinham a ver não apenas com noite,
pesadelos, escuridão e objetos em sótãos, mas com brinquedos com os quais
os homens brincam no espaço e com as ideias que encontrava em revistas
policiais. A maioria do material detetivesco que publiquei aos 24 anos nas
revistas Detective Tales e Dime Detective não vale a pena reler. Aqui e ali
dei algumas tropeçadas, e fiz um trabalho quase bom ao me lembrar do
México, que me assustava, ou do centro de Los Angeles durante as revoltas
de Pachuco. Mas precisaria de boa parte de meus quarenta anos para
assimilar o gênero policial/de mistério/suspense e fazer com que ele
funcionasse em meu romance Death Is a Lonely Business [A morte é um
negócio solitário].
Mas voltemos às minhas listas. E por que voltar a elas? Aonde o estou
levando? Bem, se você for escritor ou escritora ou espera sê-lo, listas
parecidas desencavadas do lado torto de seu cérebro talvez o ajudem a se
descobrir, do mesmo jeito que eu me debati até finalmente me encontrar.
Eu começava a percorrer essas listas, escolhia um substantivo e, em
seguida, me sentava para escrever um ensaio-poema-prosa longo sobre ele.
Em algum momento no meio da página ou, talvez, na segunda página, o
poema em prosa se transformava em uma história. Quer dizer, uma
personagem de repente aparecia e dizia: “Aqui estou eu” ou “Aqui está uma
ideia da qual eu gosto!”. E a personagem terminava o conto para mim.
Começou a ficar óbvio que eu estava aprendendo com as minhas listas de
substantivos e que estava aprendendo também que minhas personagens
fariam meu trabalho por mim se eu as deixasse em paz, se eu lhes desse uma
cabeça, ou seja, suas fantasias, seus medos.
Olhei para minha lista, vi ESQUELETO e me lembrei dos meus primeiros
trabalhos de arte na infância. Eu desenhava esqueletos para assustar minhas
primas. Ficava fascinado com aquelas despojadas exibições médicas de
crânios, costelas e ossos pélvicos. Minha música favorita era “Tain’t No
Sin, To Take Off Your Skin, and Dance Around in Your Bones”.[3]
Lembrando meu primeiro desenho e minha música favorita, entrei no
consultório do médico um dia com a garganta inflamada. Toquei meu pomo
de adão, os tendões de cada lado do pescoço e pedi seu conselho médico.
— Sabe qual é seu problema? — perguntou o doutor.
— Qual?
— Descoberta da laringe! — grasnou ele. — Tome uma aspirina. Dois
dólares a consulta, por favor!
Descoberta da laringe! Meu Deus, que bonito! Corri para casa, sentindo
minha garganta, e depois minhas costelas e, em seguida, meu bulbo
raquidiano e minhas rótulas. Minha nossa! Por que não escrever uma história
sobre um homem que fica aterrorizado ao descobrir que, embaixo da pele,
dentro da carne, escondido, existe um símbolo de todos os horrores góticos
na história — um esqueleto!?
A história escreveu-se em poucas horas.
Um conceito perfeitamente óbvio, ainda assim ninguém mais na história
da escrita de contos de horror sobrenatural jamais o havia transformado em
palavras. Mergulhei na máquina de escrever e emergi dela com um conto
novinho em folha, absolutamente original, que estava à espreita embaixo da
minha pele desde que desenhei um crânio em cima de ossos cruzados pela
primeira vez, aos seis anos de idade.
Comecei a ganhar fôlego. As ideias vinham mais rápido agora, e todas
provenientes de minhas listas. Perambulava no sótão de meus avós e no seu
porão. Ouvia as locomotivas no meio da noite uivando pelas paisagens ao
norte de Illinois, e aquela era a morte, um trem funerário levando meus entes
queridos para algum cemitério distante. Lembrei-me das cinco da manhã, das
chegadas do circo de Ringling Brothers, Barnum and Bailey, no raiar do dia,
e de todos os animais em procissão antes do nascer do sol, seguindo para a
campina vazia onde as grandes tendas se erguiam como incríveis cogumelos.
Lembrei-me do Sr. Electrico e de sua cadeira elétrica itinerante. Lembrei-me
de Blackstone, o Mágico, dançando com seus lenços mágicos e fazendo
elefantes desaparecerem no palco da minha cidade natal. Lembrei-me de
meu avô, minha irmã e de várias tias e primos, em seus caixões, para sempre
desaparecidos nas covas, onde as borboletas pousavam como flores nos
túmulos e onde as flores voavam como borboletas sobre as lápides.
Lembrei-me do meu cachorro, perdido por dias, voltando tarde para casa,
em uma noite de inverno, com neve, lama e folhas nos pelos. E as histórias
começaram a pipocar, a explodir daquelas lembranças escondidas nos
substantivos, perdidas nas listas.
Minha lembrança de meu cachorro e de sua pelagem invernal
transformou-se em “O emissário”, a história de um garoto doente e acamado
que manda seu cachorro sair para recolher as estações do ano em sua
pelagem e voltar. Então, uma noite, o cão volta de uma jornada ao cemitério
e traz “companhia” consigo.
Meu título da lista A VELHA transformou-se em duas histórias, uma “Havia
uma velha senhora”, sobre uma senhora que se recusa a morrer e exige que
seu corpo volte da funerária, desafiando a Morte, e a segunda, “Season of
Disbelief” [Estação da descrença], sobre crianças que se recusam a
acreditar que uma velha senhora já fora jovem, até mesmo uma garota, uma
menina. A primeira história apareceu na minha primeira coletânea, Dark
Carnival [Parque de diversões sombrio]. A segunda fez parte de um teste de
associação de palavras que fiz para mim mesmo chamado Licor de dente-
de-leão.
Claro que podemos ver agora (não podemos?) que é a observação
pessoal, a ilusão bizarra, a presunção estranha que compensam. Fiquei
fascinado por pessoas velhas. Tentei resolver seu mistério com meus olhos e
minha mente de jovem, mas me surpreendia o tempo todo ao perceber que,
em um tempo muito distante, eles foram eu, e em algum dia, lá na frente, eu
seria eles. Absolutamente impossível! Ainda assim, havia garotos e garotas
trancados em corpos velhos, uma situação horrenda, um ardil terrível bem
diante de meus olhos.
Fuçando na minha lista, de novo, peguei o título O JARRO, resultado de
minha estupefação ao encontrar uma série de embriões em exposição em um
parque de diversões quando eu tinha doze anos e de novo quando eu tinha
catorze. Naqueles dias distantes de 1932 e 1934, nós, crianças, não
sabíamos de nada, claro, de absolutamente nada sobre sexo e procriação.
Então, é de imaginar como fiquei surpreso quando passei por uma exposição
gratuita no parque de diversões e vi todos aqueles fetos de humanos, gatos e
cães, exibidos em jarros rotulados. Fiquei chocado com a aparência
daqueles mortos não nascidos, e com os novos mistérios da vida que eles
fizeram surgir na minha cabeça mais tarde naquela noite e durante anos.
Nunca falei dos jarros e dos fetos em formaldeído com meus pais. Sabia que
eu havia deparado com algumas verdades e era melhor não as discutir.
Tudo isso veio à tona, claro, quando escrevi “O jarro”, e o parque de
diversões e os fetos expostos e todos os antigos terrores escorreram da ponta
de meus dedos para dentro da minha máquina de escrever. O antigo mistério
finalmente encontrou um lugar de descanso, em uma história.
Encontrei outro título na minha lista, A MULTIDÃO. E datilografando
furiosamente, relembrei uma colisão terrível quando eu tinha quinze anos,
quando corri da casa de um amigo para procurar o estrondo e encontrar um
carro que havia atingido um obstáculo na rua e batido em um poste
telefônico. O carro partiu-se ao meio. Duas pessoas jaziam mortas na
calçada, outra mulher morreu bem quando cheguei até ela com seu rosto
destruído. Outro homem morreu um minuto depois. Outro ainda morreu no
dia seguinte.
Nunca tinha visto nada desse tipo. Caminhei para casa, trombando nas
árvores, em choque. Foram meses até superar o horror daquela cena.
Anos mais tarde, com a lista à minha frente, lembrei uma série de coisas
peculiares sobre aquela noite. O acidente ocorreu em uma interseção
cercada, de um lado, por fábricas vazias e um pátio escolar deserto e, do
lado oposto, por um cemitério. Vim correndo da casa mais próxima, a quase
cem metros de distância. Ainda assim, em instantes, parecia que uma
multidão havia se reunido. De onde tinham vindo todas aquelas pessoas?
Mais tarde, pude apenas imaginar que alguém tinha vindo, de algum jeito
estranho, das fábricas vazias ou, ainda mais estranho, do cemitério. Depois
de datilografar apenas por alguns minutos, me ocorreu que, sim, aquela
multidão era sempre a mesma multidão que se reunia em todos os acidentes.
Eram vítimas de acidentes de anos atrás, condenados a voltar e a assombrar
a cena dos novos acidentes, quando estes ocorriam.
Quando cheguei a essa ideia, a história se finalizou sozinha em uma única
tarde.
Enquanto isso, os artefatos do parque de diversões estavam ficando cada
vez mais próximos, seus grandes ossos começando a se projetar através da
minha pele. Eu estava fazendo digressões em poemas em prosa sobre circos
que chegavam bem depois da meia-noite. Durante aqueles anos, no início de
meus vinte anos, perambulando em um labirinto de espelhos no velho Píer de
Venice com meus amigos Leigh Brackett e Edmond Hamilton, Ed de repente
gritou: “Vamos sair daqui antes que Ray escreva uma história sobre um anão
que paga para entrar aqui toda noite e poder ficar alto no grande espelho de
alongamento!”. “É isso!”, gritei, e corri para casa para escrever “O anão”.
“Preciso aprender a ficar de boca fechada”, disse Ed quando leu a história
na semana seguinte.
Claro, O BEBÊ naquela lista era eu.
Eu me lembrei de um antigo pesadelo. Era sobre nascer. Lembrei-me de
estar deitado em um berço, com três dias de idade, chorando ao saber que fui
cuspido para o mundo; a pressão, o frio, os gritos na vida. Eu me lembro do
peito da minha mãe. Lembro-me do médico, no quarto dia da minha vida,
curvando-se sobre mim com um bisturi para fazer uma circuncisão. Eu
lembrei, eu lembrei.
Troquei o título de O BEBÊ para “O pequeno assassino”. Essa história
entrou em antologias dezenas de vezes. Vivi a história, ou parte dela, desde a
primeira hora da minha vida em diante, e somente me lembrei dela e a
datilografei aos meus vinte e poucos anos.
Eu escrevi histórias baseadas em cada substantivo em minhas páginas e
páginas de listas?
Nem sempre. Mas uma grande parte. O ALÇAPÃO, na lista em 1942 ou
1943, não veio à tona até três anos atrás, como uma história para a revista
Omni.
Outra história sobre meu cão e eu levou mais de cinquenta anos para
emergir. Em “Abençoe-me, padre, porque pequei”, voltei no tempo para
reviver uma surra que dei em meu cão quando eu tinha doze anos e pela qual
nunca me perdoei. Escrevi a história para finalmente examinar aquele garoto
cruel e triste e pôr seu fantasma, e o fantasma de meu cão tão amado, para
descansarem para sempre. Por acaso, era o mesmo cachorro que trouxe a
“companhia” do cemitério em “O emissário”.
Durante esses anos, Henry Kuttner, juntamente com Leigh, foi meu
professor. Ele sugeria autores — Katherine Anne Porter, John Collier,
Eudora Welty — e livros — The Lost Weekend, One Man’s Meat, Rain in
the Doorway — para lermos e aprendermos com eles. Ao longo dessa
trajetória, ele me deu um exemplar de Winesburg, Ohio, de Sherwood
Anderson. Ao terminar o livro, disse a mim mesmo: “Um dia eu gostaria de
escrever uma história que se passe em Marte, com pessoas parecidas”.
Imediatamente fiz uma lista do tipo de gente que eu gostaria de mandar a
Marte para ver o que aconteceria.
Esqueci Winesburg, Ohio e minha lista. Por anos escrevi uma série de
histórias sobre o Planeta Vermelho. Um dia me dei conta de que o livro
estava terminado, a lista completa, e As crônicas marcianas estavam a
caminho da publicação.
Então, é isso. Em suma, uma série de substantivos, alguns com raros
adjetivos, que descrevia um território desconhecido, um país não
descoberto, parte dele Morte, o restante Vida. Se eu não tivesse inventado
essas prescrições para a Descoberta, nunca teria me tornado o arqueólogo e
antropólogo “corvo” que sou. Aquele corvo que procura objetos brilhantes,
carapaças antigas e fêmures deformados das pilhas de ossos do lixão dentro
da minha cabeça, onde se espalham os restos de colisões com a vida, bem
como Buck Rogers, Tarzan, John Carter, Quasímodo e todas as outras
criaturas que me fizeram querer viver para sempre.
Nas palavras da antiga canção da ópera Mikado, eu tinha uma lista
pequena, exceto pelo fato de que era longa, que me levou até o país de Licor
de dente-de-leão e me ajudou a mudar o país de Licor de dente-de-leão
para Marte, e me fez ricochetear para o obscuro território do vinho quando o
trem noturno do sr. Dark chegou muito antes da aurora. Mas a primeira e
mais importante pilha de substantivos foi aquela preenchida com as folhas
sussurrantes ao longo de calçadas às três da manhã e com os cortejos
funerários seguindo ao lado de trilhos ferroviários vazios, e com os grilos
que, de repente, por motivo nenhum, se calavam, e aí era possível ouvir o
coração, desejando não conseguir.
O que nos leva a uma revelação final…
Um dos substantivos em minha lista do ensino médio foi Coisa, ou,
melhor ainda, A Coisa no alto da escada.
Durante a minha infância em Waukegan, Illinois, havia apenas um
banheiro na casa, que ficava no andar de cima. Era preciso subir e percorrer
um corredor escuro até encontrar uma luz e acendê-la. Tentei fazer com que
meu pai deixasse a luz ligada a noite toda, mas era caro. A luz ficava
apagada.
Por volta das duas ou três da manhã, eu precisava ir ao banheiro. Ficava
deitado na cama por mais ou menos meia hora, dividido entre a necessidade
agoniada de me aliviar e aquilo que eu sabia estar me esperando no corredor
escuro que levava ao sótão. Por fim, impulsionado pelo sofrimento, eu
atravessava nossa sala de jantar e entrava naquele corredor, pensando: corra
muito, salte, ligue a luz, mas, aconteça o que acontecer, não olhe para cima.
Se olhar para cima antes de acender a luz, Ela vai estar lá. A Coisa. A
terrível Coisa que espera no alto da escada. Então, corra cegamente; não
olhe.
Eu corria, eu pulava. Mas não conseguia evitar e, no último momento,
sempre piscava e encarava a horrenda escuridão. E ela sempre estava lá. E
eu gritava e rolava escada abaixo, acordando meus pais. Meu pai grunhia e
se virava na cama, imaginando de onde tinha vindo aquele seu filho. Minha
mãe se levantava, me encontrava caído no corredor e subia para ligar a luz.
Ela esperava até que eu subisse ao banheiro e voltasse, para dar um beijo no
meu rosto molhado de lágrimas e colocar meu corpo aterrorizado na cama.
Na noite seguinte, na próxima e na outra ainda a mesma coisa acontecia.
Enlouquecido por minha histeria, meu pai encontrou um velho penico e o pôs
embaixo da minha cama.
Mas eu nunca me curei. A Coisa permaneceu para sempre lá. Somente
quando nos mudamos, quando eu tinha treze anos, me livrei daquele terror.
O que fiz, há pouco tempo, com aquele pesadelo? Bem…
Agora, muito tempo depois, A Coisa está lá no alto da escada, ainda
esperando. De 1926 até hoje, no fim do primeiro semestre de 1986, houve
uma longa espera. Mas, por fim, olhando minha lista sempre confiável,
datilografei o substantivo no papel, acrescentando “A Escada”, e finalmente
encarei a escalada no escuro e o frio do sótão, que permaneceram no mesmo
lugar por sessenta anos, esperando um pedido para que descessem pelas
pontas congeladas dos meus dedos até a corrente sanguínea. A história,
criada a partir das minhas lembranças, foi terminada nesta semana, enquanto
eu ainda escrevia este ensaio.
Deixo você agora no primeiro degrau de sua escada, à meia-noite e meia,
com um bloco de notas, uma caneta e uma lista a ser feita. Invoque os
substantivos, alerte o eu secreto, prove a escuridão. Sua Coisa está
esperando no caminho até as sombras do sótão. Se falar com suavidade e
escrever qualquer antiga palavra que queira saltar de seus nervos para a
página…
Sua Coisa no alto da escada em sua noite particular… pode muito bem
descer até você.

1986
C OMO ALIMENTAR E MANTER UMA
MUS A

NÃO É FÁCIL. Ninguém jamais fez isso de forma constante. Aqueles que tentam
com mais afinco a espantam para dentro da floresta. Aqueles que viram as
costas e saem tranquilos, assobiando baixinho entre dentes, a ouvem
caminhando atrás deles em silêncio, atraída por um desdém adquirido com
cuidado.
Claro que estamos falando da Musa.
O termo caiu em desuso em nossos tempos. Quando o ouvimos agora, é
quase certo de que sorriremos e invocaremos imagens de alguma deusa grega
frágil, vestida com folhas, harpa em mãos, acariciando nossa fronte suada de
escriba.
Então, a Musa é a mais apavorada de todas as virgens. Ela se assusta
quando ouve um som, empalidece quando você faz perguntas, dá meia-volta
e desaparece se você toca seu vestido.
O que a aflige?, você pergunta. Por que ela se encolhe quando a
encaramos? De onde ela vem e aonde vai? Como podemos fazer com que sua
visita dure períodos mais longos? Que temperatura a agrada? Ela gosta de
vozes altas ou baixas? Onde se compra comida para ela, de qual qualidade e
em qual quantidade, e quais são os horários das refeições?
Podemos começar parafraseando o poema de Oscar Wilde, substituindo a
palavra “Amor” por “Arte”.

A Arte voará se segurá-la com mão leve,


A Arte morrerá presa com mão que pese,
Com mão leve ou pesada, como posso saber
Se deixo a Arte ir ou a faço permanecer?

Substitua “Arte”, se desejar, por “Criatividade” ou “Subconsciente” ou


“Calor” ou seja lá que palavra use para dizer o que acontece quando você
gira como uma roda de fogo e uma história “acontece”. Outra maneira de
descrever a Musa talvez seja acessar novamente aquelas manchinhas de luz,
aquelas bolhas de ar que flutuam diante da visão de todo mundo, diminutas
imperfeições nas lentes ou na membrana transparente externa do olho.
Despercebidas por anos, quando você concentra a atenção nelas, podem
virar incômodos insuportáveis na atenção de uma pessoa em todas as horas
do dia. Perturbam o que você está olhando quando ficam no caminho. As
pessoas vão a psiquiatras com problemas de “manchas”. A prescrição
inevitável: ignore-as, e elas desaparecerão. O fato é que elas não
desaparecem; elas permanecem, mas nos concentramos no que há além delas,
no mundo e nos objetos sempre mutantes do mundo, como se deve.
Então, o mesmo se dá com nossa Musa. Se nos concentrarmos no que há
além dela, ela recupera a postura e sai do caminho.
Sou da opinião de que para manter uma Musa é preciso primeiro oferecer
comida. É um pouco difícil explicar como é possível alimentar algo que não
está lá. Mas vivemos cercados por paradoxos. Mais um não deve doer.
O fato é bem simples. Durante a vida toda, ao ingerir comida e água,
formamos células, crescemos e ficamos maiores e mais substanciais. Aquilo
que não era, é. O processo não é detectável. Pode ser analisado apenas em
intervalos durante o trajeto. Sabemos que está acontecendo, mas não
sabemos muito bem como ou por quê.
De forma semelhante, durante a vida, nos enchemos de sons, visões,
cheiros, gostos e texturas de pessoas, animais, paisagens, eventos, grandes e
pequenos. Enchemo-nos dessas impressões e experiências e de nossas
reações a elas. Em nosso subconsciente não entram apenas dados factuais,
mas dados reativos, nosso movimento na direção de eventos percebidos ou
para longe deles.
Esses são os materiais, os alimentos, com os quais a Musa cresce. É o
armazém, o arquivo do qual precisamos lançar mão a cada hora de vigília
para comparar realidade com lembrança, e durante o sono para comparar
lembrança com lembrança, que significa fantasma com fantasma, para
exorcizá-los, se necessário.

AQUILO QUE PARA QUALQUER pessoa é o subconsciente, transforma-se para


quem escreve em seu aspecto criativo, a Musa. São dois nomes para a
mesma coisa. Mas não importa como a chamamos, aqui está o núcleo do
indivíduo que fingimos exaltar, para quem montamos altares e mantemos uma
retórica em nossa sociedade democrática. Aqui está o material da
originalidade, pois é na totalidade da experiência considerada, registrada e
esquecida que cada homem é verdadeiramente diferente de todos os outros
no mundo. Pois nenhum homem vê os mesmos eventos na mesma ordem na
vida. Um homem encara a morte mais jovem que outro, um homem conhece o
amor mais rapidamente que outro. Dois homens, como sabemos, vendo o
mesmo acidente, registram-no com referências cruzadas diferentes, em outra
parte de seu alfabeto alheio. Não há cem elementos, mas 2 bilhões de
elementos no mundo. Cada um os analisará de forma diferente nos
espectroscópios e escalas.
Sabemos o quanto cada pessoa é nova e original, mesmo a mais lenta e
embotada. Se a acessarmos de forma correta, falarmos com ela e a
deixarmos tranquila, dizendo, por fim: “O que você deseja?” (Ou, se for
muito velha: “O que você desejou?”), ela vai revelar seu sonho. E quando
uma pessoa fala com o coração, em seu momento de verdade, suas palavras
são poesia.
Não vi isso acontecer uma vez, mas mil vezes na vida. Meu pai e eu só
nos tornamos grandes amigos muito tarde na vida. Sua linguagem, seus
pensamentos do dia a dia não eram notáveis, mas sempre quando eu dizia
“Pai, me fala sobre Tombstone quando você tinha dezessete anos” ou “sobre
os campos de trigo de Minnesota quando você tinha vinte”, meu pai
começava a falar sobre ter fugido de casa quando tinha dezesseis anos, indo
para o Oeste no início do século XX, antes de as últimas fronteiras serem
fixadas — quando não havia rodovias, apenas estradas para cavalos, trilhos
de trem, e a Febre do Ouro estava em Nevada.
Não, não era no primeiro, no segundo ou no terceiro minuto que algo
acontecia com a voz de meu pai, que a cadência certa ou as palavras corretas
surgiam. Mas depois que ele falava por cinco ou seis minutos e acendia seu
cachimbo, de repente a antiga paixão voltava, os dias de outrora, as músicas
antigas, o clima, a luz do sol, o som das vozes, os vagões fechados, viajando
tarde da noite, as prisões, os trilhos se fechando em pó de ouro lá atrás,
enquanto o Oeste se abria — tudo, tudo isso, a cadência ali, o momento, os
muitos momentos de verdade e, portanto, de poesia.
A Musa de repente estava lá para o meu pai.
A Verdade chegava fácil à sua mente.
O Subconsciente dizia o que precisava, intocado, e fluía de sua língua.
Do jeito que precisamos aprender a fazer com a nossa escrita.
Do jeito que podemos aprender com cada homem, mulher ou criança que
esteja por perto quando, tocado ou emocionado, conta algo que amou ou
odiou naquele dia, ontem, ou em algum outro dia passado. Em um
determinado momento, o pavio, umedecido, depois de faiscar, se acende, e
os fogos de artifício começam.
Ah, para muitos, a seu modo, é um trabalho árduo, bruto e claudicante
lidar com a linguagem. Mas ouvi fazendeiros contarem sobre sua primeira
safra de trigo depois de se mudarem para outro estado, e se não era o poeta
Robert Frost falando, era seu primo de quinto grau. Ouvi maquinistas
falarem sobre a América com um jeitão de Thomas Wolfe, que viajou pelo
nosso país com seu estilo como aqueles viajaram sobre rodas de aço. Ouvi
mães falarem da longa noite com seu primogênito quando ficaram com medo
de que elas e o bebê pudessem morrer. E ouvi minha avó falar de seu
primeiro baile, quando tinha dezessete anos. E todos eles, quando a alma se
aquecia, viravam poetas.
SE PARECE QUE DEI uma grande volta, talvez eu tenha dado mesmo. Mas quis
mostrar o que todos temos dentro de nós, que sempre esteve ali e que tão
poucos de nós nos damos ao trabalho de perceber. Quando as pessoas me
perguntam de onde eu tiro minhas ideias, eu dou risada. Como é estranho…
estamos tão preocupados olhando para fora, tentando encontrar caminhos e
meios, que nos esquecemos de olhar para dentro.
A Musa, para repisar essa ideia, está aí, um depósito fantástico, nosso ser
completo. Tudo isso é o que há de mais original e espera que nós o
invoquemos. E, apesar disso, sabemos que não é tão fácil assim. Sabemos
como é frágil o padrão tecido por nossos pais, tios ou amigos, que podem ter
seu momento destruído por uma palavra errada, uma porta batida ou um
carro de bombeiro passando. Então, o embaraço, a vergonha, as críticas
lembradas podem enrijecer o cidadão médio de forma que cada vez menos
ele consiga se abrir em sua vida.
Digamos que cada um de nós tenha, primeiro, se alimentado de vida, e,
mais tarde, de livros e revistas. A diferença é que no início nos alimentamos
de um conjunto de eventos que aconteceu conosco, e depois a alimentação
foi forçada.
Se vamos fazer uma dieta para nosso subconsciente, como preparar o
cardápio?
Bem, talvez possamos começar nossa lista da seguinte forma:
Leia poesia todos os dias. A poesia é boa porque exercita músculos que
não usamos com frequência. A poesia expande os sentidos e os mantém
afiados. Mantém a pessoa consciente de seu nariz, olhos, orelhas, língua,
mãos. E, acima de tudo, a poesia é metáfora ou símile compactados. Essas
metáforas, como flores de papel japonesas, podem se expandir em formas
gigantescas. As ideias estão em todo canto nos livros de poesia, ainda assim
é raro ouvir professores de escrita recomendar que se passeie por eles.
Minha história “A praia ao pôr do sol” é resultado direto da leitura do
belo poema de Robert Hillyer sobre encontrar uma sereia perto do Rochedo
de Plymouth. Minha história “Chuvas leves virão” é baseada no poema
homônimo de Sara Teasdale, e o corpo da história abrange o tema de seu
poema. Um capítulo do meu romance As crônicas marcianas, “… E a lua
continua brilhando”, que descreve uma raça morta de marcianos que não
mais singrará mares vazios tarde da noite, veio de Byron. Nesses casos, e
em dezenas de outros, eu tive uma metáfora que saltou sobre mim, me girou e
me fez correr para criar uma história.
O que é poesia? Qualquer poema que lhe cause um arrepio. Não se force
demais. Pegue leve. Com o passar dos anos, você vai se atualizar, avançar e
passar, em seu caminho, por T.S. Eliot, até outras paragens. Você diz que não
entende Dylan Thomas? Sim, mas seus gânglios entendem, e sua sagacidade
secreta e todos os seus filhos ainda não nascidos. Leia-o como consegue ler
um cavalo com os olhos, liberte e avance para uma campina verde infinita
em um dia de vento.

O QUE MAIS CABE em sua dieta?


Livros de ensaios. Aqui, de novo, seja exigente, perambule pelos séculos.
Você terá que analisar bem o período antes de os ensaios se tornarem menos
populares. É difícil dizer quando se vai desejar saber os aspectos mais
sofisticados de ser um pedestre, de cuidar de abelhas, esculpir lápides ou
brincar de rolar aros. Esse é o momento em que você banca o diletante, e em
que compensa sê-lo. De fato, jogamos aqui pedras em um poço. Cada vez
que ouvimos um eco de nosso subconsciente, nos conhecemos um pouco
mais. Um eco baixinho pode iniciar uma ideia. Um eco alto pode resultar em
uma história.
Para sua leitura, encontre livros para melhorar sua noção de cores, sua
noção de forma e tamanho no mundo. Por que não aprender sobre olfato e
audição? Às vezes, suas personagens precisarão usar nariz e ouvidos, ou
talvez possam não identificar metade dos cheiros e sons da cidade, e todos
os sons da natureza ainda vão estar soltos nas árvores e nos gramados da
cidade.
Por que toda essa insistência nos sentidos? Pois, para convencer seu
leitor de que ele está lá, você precisa atacar cada um desses sentidos com
cor, som, gosto e textura. Se seu leitor sentir o sol na pele, o vento
balançando as mangas da camisa, metade de sua batalha está vencida. É
possível transformar as histórias mais improváveis em contos verossímeis se
seu leitor, por meio dos sentidos, estiver seguro de que está no meio dos
eventos. Ele não conseguirá se recusar a participar. A lógica de eventos
sempre abre espaço para a lógica dos sentidos. A menos que, claro, você
faça algo realmente imperdoável para arrancar o leitor do contexto, como
fazer com que a Revolução Americana seja vencida com metralhadoras, ou
introduzir dinossauros e homens da caverna na mesma cena (milhões de anos
separam sua existência). Mesmo neste último caso, uma máquina do tempo
bem descrita e tecnicamente perfeita poderá suspender de novo a descrença.
Poesia, ensaios. E as narrativas breves, os romances? Claro. Ler aqueles
autores que escrevem do jeito que você espera escrever, aqueles que pensam
do jeito que você gostaria de pensar. Mas também leia os que não pensam
como você ou que não escrevam como você quer escrever, a fim de receber
estímulos para direções que talvez você não vá tomar durante muitos anos.
De novo, não deixe que o esnobismo alheio impeça que, digamos, você leia
Kipling, ainda que ninguém mais o leia.
Nossa cultura e nossos tempos são imensamente ricos em lixo e tesouros.
Às vezes, é um pouco difícil separar lixo de tesouro, então recuamos, com
medo de nos afirmarmos. Mas como estamos aqui para criarmos textura,
colecionarmos verdades em muitos níveis e, de muitas maneiras, nos
testarmos diante da vida e das verdades de outros que nos são oferecidas em
revistas em quadrinhos, programas de TV, livros, revistas, jornais, peças e
filmes, não deveríamos temer ser vistos em companhias estranhas. Sempre
me senti bem na companhia de Ferdinando Buscapé, de Al Capps. Acho que
há muito a se aprender sobre psicologia infantil com as personagens de
Charles Schulz, como o Charlie Brown. Existia um mundo inteiro de
aventuras românticas, belamente desenhado por Hal Foster, em seu Príncipe
valente. Quando garoto, eu as colecionava, e talvez tenha sido influenciado
em meus livros mais antigos pelas maravilhosas tirinhas diárias da classe
média norte-americana “Out Our Way”, de J. C. Williams. Sou tanto
espectador de Charlie Chaplin em Tempos modernos, de 1935, quanto leitor
de Aldous Huxley, em 1961. Não sou uma coisa apenas. Sou muitas coisas
que os Estados Unidos foram em minha época. Tenho noção suficiente para
progredir, aprender, crescer. E nunca ofendi ou virei as costas para as coisas
com as quais cresci. Aprendi com Tom Swift e com George Orwell.
Deliciei-me com o Tarzan de Edgar Rice Burroughs (e ainda respeito aquela
antiga delícia, e não sofri lavagem cerebral com ela), bem como me delicio
com Cartas de um diabo a seu aprendiz, de C. S. Lewis. Conheci Bertrand
Russell e Tom Mix, e minha Musa cresceu nesse terreno fértil de coisas
boas, ruins e indiferentes. Sou uma criatura que consegue lembrar com
carinho não apenas dos afrescos de Michelangelo no Vaticano, mas também
dos sons há muito esquecidos do programa de rádio Vic and Sade.

QUAL É O PADRÃO que reúne tudo isso? Se eu alimentei minha Musa em


partes iguais de lixo e tesouro, como cheguei ao fim da vida com o que
algumas pessoas consideram histórias aceitáveis?
Acredito que uma coisa reúne tudo isso. Tudo que já fiz foi feito com
empolgação, porque quis fazer, porque amei fazê-lo. O maior homem do
mundo para mim, um dia, foi Lon Chaney, foi Orson Welles em Cidadão
Kane, foi Laurence Olivier em Ricardo III. Os homens mudam, mas uma
coisa permanece sempre igual: a febre, o ardor, o prazer. Porque quis fazer,
fiz. Onde quis me alimentar, me alimentei. Lembro-me de perambular,
perplexo, saindo de um palco na minha cidade natal, segurando um coelho
vivo que Blackstone, o Mágico, me deu na maior de suas apresentações!
Lembro-me de perambular, perplexo, em meio às ruas de papel machê da
Exposição do Século de Progressos de Chicago, em 1933; nos salões dos
doges venezianos na Itália, em 1954. A qualidade de cada evento foi
imensamente diversa, mas minha capacidade de beber deles foi a mesma.
Não significa dizer que a reação de uma pessoa a tudo em um
determinado período deveria ser semelhante. Em primeiro lugar, não pode
ser. Aos dez anos de idade, Júlio Verne é aceito, Huxley, rejeitado. Aos
dezoito, Thomas Wolfe é aceito, e Buck Rogers, abandonado. Aos trinta,
Melville é descoberto, e Thomas Wolfe, perdido.
Permanece a constante: a busca, o encontro, a admiração, o amor, a
reação honesta aos materiais em mãos, não importa o quanto pareçam
desgastados um dia quando se olha para trás. Aos dez anos, solicitei uma
estátua de um gorila africano feito da cerâmica mais barata como
recompensa por eu enviar uma embalagem do macarrão Fould’s Macaroni. O
gorila, que chegou pelo correio, teve uma recepção tão grande quanto aquela
dada à estátua do Menino Davi em sua inauguração.

ENTÃO, A ALIMENTAÇÃO DA Musa, à qual dedicamos a maior parte de nosso


tempo neste ensaio, me parece ser a perseguição contínua de amores, o
confronto desses amores ante as necessidades presentes e futuras, o avanço
das texturas simples às mais complexas, das ingênuas às mais informadas,
das não intelectuais às intelectuais. Nada se perde. Se você avançou por
territórios vastos e ousou amar coisas tolas, você aprendeu até mesmo com
os itens mais primitivos coletados e descartados em sua vida. A partir de
uma curiosidade cada vez mais itinerante em todas as artes, de programas
ruins de rádio ao bom teatro, das canções de ninar à sinfonia, do passeio ao
zoológico a O castelo, de Kafka, há uma excelência básica a ser separada,
verdades a serem encontradas, mantidas, saboreadas e usadas algum dia. Ser
uma criança em seu tempo significa fazer todas essas coisas.
Não vire as costas, por dinheiro, para todas as coisas que você
colecionou durante a vida.
Não vire as costas, pela vaidade de publicações intelectuais, para quem
você é — o material dentro de você que o torna um indivíduo e, portanto,
indispensável para os outros.
Então, para alimentar sua Musa, você deve sempre ter fome de vida desde
a infância. Senão, é um pouco tarde para começar. Mas antes tarde do que
nunca, claro. Você sente que pode?
Significa que você ainda precisa dar longas caminhadas à noite por sua
cidade ou pelo campo durante o dia. E longas caminhadas, a qualquer
momento, por livrarias e bibliotecas.
E enquanto se alimenta, como manter sua Musa é nosso problema final.
A Musa precisa ter um formato. Você vai escrever mil palavras por dia
por dez ou vinte anos para tentar lhe dar uma forma, aprender o suficiente
sobre gramática e construção de histórias de modo que elas se tornem parte
do Subconsciente, sem restringir ou distorcer a Musa.
Ao viver bem, observando como você vive, ler bem e observando
enquanto lê, você alimentou Seu Eu Mais Original. Ao treinar-se na escrita
pelo exercício repetitivo, a imitação, o bom exemplo, você abriu um espaço
limpo e bem iluminado para manter a Musa. Você deu espaço para que ela,
ele, ou o que seja, surja. E com a prática, você vai ter relaxado o suficiente
para não encarar a inspiração de forma descortês quando ela entrar na sala.
Você aprendeu a ir logo para a máquina de escrever e manter a inspiração
durante todo o tempo, passando-a para o papel.
Você aprendeu a responder à questão anterior: a criatividade gosta de
vozes altas ou baixas?
A voz alta, apaixonada, parece agradar mais. A voz exaltada, em conflito,
a comparação de opostos. Sente-se em frente a sua máquina de escrever,
pegue personagens de vários tipos, deixe que voem juntos em um grande
estrondo. Logo seu eu secreto será despertado. Todos nós gostamos de
decisão, declaração; qualquer um que faça barulho a favor, qualquer um que
faça barulho contra.
Não significa dizer que a história silenciosa será deixada de lado. É
possível ficar tão empolgado e apaixonado com uma história silenciosa
como com qualquer outra. Há empolgação na calma tranquila de uma Vênus
de Milo. O espectador aqui se torna tão importante quanto aquilo que se vê.
Tenha certeza de uma coisa: quando o amor sincero fala, quando a
admiração verdadeira começa, quando a empolgação surge, quando o ódio
se enrodilha como fumaça, você nunca precisará duvidar que a criatividade
o acompanhará por toda a vida. O núcleo de sua criatividade deveria ser o
mesmo de sua história e da personagem principal em sua história. O que sua
personagem quer, qual é seu sonho, qual é sua forma, e como é expressa?
Essa expressão, ela é o dínamo da vida da personagem, e de sua vida como
Pessoa Criadora. No exato momento em que a verdade irrompe, o
subconsciente passa de lixeira a anjo que escreve em um livro de ouro.
Então, olhe para você. Considere tudo com que você se alimentou durante
anos. Foi um banquete ou uma dieta de fome?
Quem são seus amigos? Eles acreditam em você? Ou atrasam seu
crescimento com ridicularização e descrença? Se responder sim à terceira
pergunta, você não tem amigos. Vá procurar outros.
E, por fim, você já treinou bem o bastante para poder dizer o que quiser
sem se frustrar? Já escreveu o suficiente para relaxar e poder permitir que a
verdade saia sem ser arruinada por posturas autoconscientes ou alteradas
pelo desejo de enriquecer?
Alimentar-se bem é crescer. Trabalhar bem e constantemente é manter o
que você aprendeu e sabe em ótimo estado. Experiência. Trabalho. Esses são
os lados idênticos da moeda, que, quando jogada, não é experiência nem
trabalho, mas o momento da revelação. A moeda, por ilusão de ótica, torna-
se redonda, um globo da vida brilhante, rodopiante. É o instante em que o
balanço do alpendre estala baixinho e uma voz fala. Todos prendem a
respiração. A voz aumenta e diminui. Meu pai fala de outros anos. Um
fantasma ergue-se de seus lábios. O subconsciente se mexe e esfrega os
olhos. A Musa arrisca-se nas samambaias abaixo do alpendre, onde os
garotos de verão, espalhados no gramado, estão ouvindo. As palavras viram
poesia, com as quais ninguém se importa, porque ninguém pensou em chamá-
las assim. O amor está ali. A história está ali. Um homem bem alimentado
mantém e calmamente apresenta sua porção infinitesimal de eternidade. E é
como sempre foi por eras, quando havia um homem com algo a contar, e
outros, quietos e sábios, a ouvir.
NOTA DE ENCERRAMENTO

O PRIMEIRO ASTRO DE cinema de quem me lembro é Lon Chaney.


O primeiro desenho que fiz foi um esqueleto.
A primeira surpresa de que me lembro de ter sentido foi das estrelas em
uma noite de verão em Illinois.
As primeiras histórias que li foram de ficção científica na revista
Amazing.
A primeira vez que saí de casa foi para ir a Nova York e ver o Mundo do
Futuro anexo ao Perisphere e encoberto pelo Trylon.[4]
Minha primeira decisão quanto a uma carreira foi com onze anos de
idade: queria ser mágico e viajar pelo mundo com minhas ilusões.
Minha segunda decisão foi aos doze, quando ganhei de Natal uma
máquina de escrever para crianças.
E decidi me tornar escritor. E entre a decisão e a realidade estendem-se
oito anos de ensino fundamental, ensino médio e de vender jornais em uma
esquina em Los Angeles, período no qual escrevi 3 milhões de palavras.
Minha primeira aprovação em publicações veio de Rob Wagner, da
revista Script, quando eu tinha vinte anos.
Minha segunda venda foi para a Thrilling Wonder Stories.
Minha terceira foi para a Weird Tales.
Desde então, vendi 250 histórias para quase todas as revistas nos Estados
Unidos, além de escrever o roteiro de Moby Dick para John Huston.
Escrevi sobre Lon Chaney e o povo esquelético para a Weird Tales.
Escrevi sobre Illinois e sua natureza selvagem no meu romance Licor de
dente-de-leão.
Escrevi sobre aquelas estrelas acima de Illinois, para onde uma nova
geração está indo.
Criei mundos do futuro no papel, muito parecidos com aquele mundo que
vi em Nova York, na Feira Mundial, quando era garoto.
E decidi, bastante tarde na vida, que nunca desistiria de meu primeiro
sonho.
Goste ou não, sou uma espécie de mágico, no fim das contas, meio-irmão
de Houdini, filho-coelho de Blackstone, nascido à luz do cinema de uma sala
antiga, é o que gostaria de pensar (meu nome do meio é Douglas; Fairbanks
estava no ápice quando cheguei, em 1920), e amadureci em um momento
perfeito — quando o homem dá seu último e maior passo para fora do mar
que o criou, a caverna que o abrigava, a terra que o mantinha, e o ar que o
invocou para que ele nunca pudesse descansar.
Em suma, sou um filhote malhado de nossa era movida pela massa,
entretida em massa, solitária em uma multidão na virada do Ano-Novo.
É um momento ótimo para se viver e, se preciso, morrer nele e por ele.
Qualquer mágico de respeito lhe diria a mesma coisa.

1961
B ÊB ADO E GUIANDO UMA
B IC IC LETA

EM 1953, ESCREVI UM artigo para a revista The Nation defendendo meu


trabalho como escritor de ficção científica, embora esse rótulo apenas se
aplique para, talvez, um terço de minha produção anual.
Algumas semanas depois, no fim de maio, chegou uma carta da Itália. No
verso do envelope, em uma caligrafia fina e alongada, li as seguintes
palavras:

B. Berenson
I Tatti, Settignano,
Firenze, Italia

Virei-me para a minha esposa e questionei:


— Meu Deus, não pode ser o Berenson, o grande historiador de arte,
pode?
— Abra — disse minha esposa.
Eu abri e li:

Prezado sr. Bradbury,

Em 89 anos de vida, esta é a primeira carta de fã que escrevo para lhe


dizer que acabei de ler seu artigo na The Nation — “Day After
Tomorrow”. É a primeira vez que encontrei uma declaração de um artista
de qualquer área que, para trabalhar criativamente, precisa dar substância
a seu trabalho e se diverte com ele como se estivesse fazendo uma
travessura ou entrando em uma aventura fascinante.
Quão diferente dos trabalhadores da indústria pesada se tornou esse
profissional da escrita!
Se algum dia vier a Florença, venha me ver.
Atenciosamente,
B. BERENSON

Portanto, aos 33 anos de idade, eu tive minha maneira de ver, escrever e


viver aprovada por um homem que se transformou em um segundo pai para
mim.
Eu precisava daquela aprovação. Tudo de que precisamos é de alguém
mais elevado, mais sábio, mais velho para nos dizer que, no fim das contas,
não estamos malucos, que estamos fazendo tudo certo. Tudo bem, caramba,
está ótimo!
Mas é fácil duvidar de si mesmo, pois olhamos ao redor, para uma série
de noções mantidas por outros escritores, outros intelectuais, e essas noções
fazem a pessoa corar de culpa. Escrever deveria ser difícil, agoniante, um
exercício excruciante, uma ocupação terrível.
Mas, veja, minhas histórias me conduziram pela vida. Elas gritam, eu
sigo. Elas correm para cima de mim e me mordem a perna — eu reajo
anotando tudo o que acontece durante a mordida. Quando termino, a ideia me
solta e foge.
Esse é o tipo de vida que eu tive. Bêbado e guiando uma bicicleta, como
descrito em um boletim de ocorrência da polícia irlandesa. Bêbado de vida,
é isso, e sem saber para onde partir em seguida. Mas você está no caminho
antes do amanhecer. E a viagem? Exatamente metade terror, metade euforia.

QUANDO EU TINHA TRÊS anos de idade, minha mãe me levava ao cinema


duas ou três vezes por semana. Meu primeiro filme foi O corcunda de Notre-
Dame, com Lon Chaney. Eu comecei a sofrer uma curvatura permanente na
espinha e na imaginação naquele dia, muito tempo atrás, em 1923. Naquele
momento passei a reconhecer um compatriota maravilhosamente grotesco da
escuridão quando via um. Corri para ver todos os filmes de Chaney diversas
vezes para ficar deliciosamente apavorado. O Fantasma da Ópera agarrou-se
em minha vida com sua capa escarlate. E quando não era o Fantasma, era a
mão terrível que gesticulava por trás de uma estante de livros em O gato e o
canário, apontando para eu ir encontrar mais da escuridão escondida nos
livros.
Eu era, então, apaixonado por monstros, esqueletos, circos e parques de
diversões, dinossauros e, por fim, pelo Planeta Vermelho, Marte.
A partir desses tijolos primitivos, construí uma vida e uma carreira. Ao
me apaixonar por todas essas coisas maravilhosas, todas as coisas boas da
minha existência afloraram.
Trocando em miúdos, eu não ficava envergonhado em circos. Algumas
pessoas ficam. Circos são barulhentos, vulgares, e recendem ao sol. Muitas
pessoas aos catorze ou quinze anos são despojadas de seus amores, de seus
gostos antigos e intuitivos, um a um, até que, quando chegam à maturidade,
não resta a elas nenhuma diversão, nenhum entusiasmo, nenhuma animação,
nenhum sabor. Outros criticaram os circos, e criticaram a si mesmos por sua
vergonha. Quando o circo chega às cinco da manhã de um dia de verão, e o
órgão ressoa, eles não se levantam e correm, viram para o lado em seu sono,
e a vida passa.
Eu me levantava e corria. Quando eu tinha nove anos, aprendi que estava
certo, e todo mundo estava errado. Buck Rogers havia chegado à cena
naquele ano, e foi amor à primeira vista. Eu colecionava tirinhas diárias, e
era enlouquecidamente louco por elas. Amigos criticavam. Amigos
zombavam. Rasguei as tirinhas de Buck Rogers. Por um mês caminhei pelas
aulas do quarto ano atordoado e vazio. Um dia, irrompi em lágrimas, me
questionando sobre a devastação que havia acontecido comigo. A resposta
era: Buck Rogers. Ele havia partido, e simplesmente não valia a pena viver.
O próximo pensamento foi: esses não são meus amigos, aqueles que me
fizeram rasgar as tirinhas e, assim, rasgar minha vida ao meio; eles são meus
inimigos.
Voltei a colecionar as tirinhas de Buck Rogers. Minha vida tem sido feliz
desde então. Pois esse foi o início da escrita de ficção científica. A partir
daí, nunca mais dei ouvidos a ninguém que criticasse meu gosto por viagens
espaciais, espetáculos populares ou gorilas. Quando isso acontece, pego
meus dinossauros e vou embora.
Pois, veja, isso tudo é adubo. Se eu não tivesse enchido meus olhos e
minha cabeça, por um tempo, com tudo o que comentei antes, quando
chegasse o momento de transformar as associações de palavras em ideias, eu
teria gerado uma tonelada de cifras e meia tonelada de zeros.
A savana é um exemplo excelente do que acontece em uma cabeça cheia
de imagens, mitos, brinquedos. Trinta anos atrás, eu estava sentado em frente
a minha máquina de escrever e datilografei estas palavras: “O salão de
jogos”. Salão de jogos, onde? No passado? Não. No presente? Difícil. No
futuro? Sim! Bem, então, como seria um salão de jogos em algum ano futuro?
Comecei a datilografar, fazendo associações de palavras ao redor desse
salão. Esse salão de jogos precisava ter televisores alinhados em cada
parede e no teto. Ao caminhar em um ambiente assim, uma criança poderia
gritar: Rio Nilo! Esfinge! Pirâmides!, e eles apareceriam, cercando-a,
coloridos e sonorizados, e por que não? Os gloriosos aromas, maus cheiros
e odores mornos, escolha um, para o nariz!
Tudo isso chegou até mim em poucos segundos de escrita dinâmica. Eu
conhecia o salão, agora podia pôr personagens nele. Datilografei um
personagem chamado George, levei-o a uma cozinha no futuro, onde sua
mulher se virou e disse:
— George, queria que você desse uma olhada no Salão de Jogos. Acho
que está quebrado…
George e sua mulher atravessam o corredor. Eu os sigo, datilografando
loucamente, sem saber o que vai acontecer em seguida. Eles abrem a porta
do Salão de Jogos e entram.
África. Sol escaldante. Abutres. Carne morta. Leões.
Duas horas mais tarde, os leões saltaram das paredes do Salão de Jogos e
devoraram George e sua mulher, enquanto os filhos, dominados pela TV,
estavam sentados, bebericando chá.
Fim da associação de palavras. Fim da história. A coisa toda completa e
quase pronta para envio, uma explosão de ideias, em cerca de 120 minutos.
Os leões naquela sala, de onde vieram?
Encontrei os leões nos livros da biblioteca da cidade quando eu tinha dez
anos. Vi os leões em circos de verdade quando tinha cinco. O leão que
caminhava no filme de Lon Chaney, Ironia da sorte, em 1924!
Em 1924!, você vai dizer, duvidando. Sim, 1924. Faz apenas um ano que
vi novamente o filme de Chaney. Assim que o filme apareceu na tela, soube
que os leões de A savana tinham vindo dali. Estavam escondidos, esperando,
encobertos por meu eu intuitivo durante todos esses anos.
Pois sou esse esquisito especial, o homem com sua criança interior que se
lembra de tudo. Lembro-me do dia e da hora em que nasci. Lembro-me de
ser circuncidado no quarto dia depois do meu nascimento. Lembro-me de
mamar no peito de minha mãe. Anos mais tarde, perguntei para minha mãe
sobre a minha circuncisão. Eu tinha informações que ninguém poderia ter me
dado, não havia motivo para contá-las a uma criança, especialmente
naqueles tempos ainda vitorianos. Fui circuncidado em algum lugar fora da
maternidade? Fui. Meu pai me levou ao consultório médico. Eu me lembro
do médico. Eu me lembro do bisturi.
Escrevi a história “O pequeno assassino” 26 anos depois. Conta a
história de um bebê que nasceu com todos os sentidos operacionais, cheio de
terror por ter sido lançado em um mundo frio, e se vinga de seus pais ao
engatinhar secretamente pela noite e, por fim, destruí-los.
Quando tudo isso de fato começou? Digo, a escrita. Tudo começou a
funcionar no verão, outono e início do inverno de 1932. Na época, eu estava
totalmente entupido de Buck Rogers, dos romances de Edgar Rice Burroughs
e da série de rádio noturna Chandu the Magician. Chandu falava sobre
encantamentos mágicos e psíquicos, o Extremo Oriente e lugares estranhos
que me faziam parar toda noite e, de memória, escrever os roteiros de cada
programa.
Mas todo o conglomerado de magia e mitos e escadas despencando com
brontossauros apenas para surgir com La, rainha e alta sacerdotisa de Opar,
foi reunido em um padrão por um homem, o Sr. Electrico.
Ele chegou com um parque de diversões decadente, o The Dill Brothers
Combined Shows — cuja entrada custava 35 centavos —, durante o fim de
semana do Dia do Trabalho de 1932, quando eu tinha doze anos. Por três
noites, o Sr. Electrico se sentava em sua cadeira elétrica para ser
eletrocutado por 10 bilhões de volts de pura energia azul sibilante.
Estendendo as mãos para o público, seus olhos flamejantes, os cabelos
brancos em pé, as faíscas saltando entre os dentes abertos em um sorriso, ele
passava uma espada de Excalibur sobre a cabeça das crianças, nomeando-as
cavaleiros mirins com fogo. Quando chegou a mim, ele tocou meus ombros e
depois a ponta do meu nariz. O raio saltou para dentro de mim. Sr. Electrico
gritou: “Viva para sempre!”.
Concluí que foi a melhor ideia que eu já tinha ouvido. Fui ver o Sr.
Electrico no dia seguinte, com a desculpa de que um aparelhinho de truque
mágico com moedas que eu havia comprado dele não estava funcionando.
Ele consertou e me levou para conhecer as tendas, gritando para cada uma
“Cuidado, seus bocas-sujas” antes de entrarmos para conhecer os anões, os
acrobatas, as mulheres gordas e os Homens Ilustrados que aguardavam ali.
Fomos até o lago Michigan, onde o Sr. Electrico falou de suas pequenas
filosofias, e eu falei das minhas grandiosas. Nunca saberei por que ele me
aturou. Mas me ouviu, ou pareceu ter ouvido, talvez porque estivesse longe
de casa, talvez porque tivesse um filho em algum lugar do mundo, ou não
tivesse nenhum filho e quisesse um. De qualquer forma, ele contou que era
um ex-ministro presbiteriano e vivia em Cairo, Illinois, e disse que eu
poderia lhe escrever quando quisesse.
Por fim, ele me deu uma notícia bem especial.
— Já nos encontramos antes — disse ele. — Você foi meu melhor amigo
na França, em 1918, e morreu nos meus braços na batalha da floresta de
Ardenas daquele ano. E aqui está você, renascido, em um novo corpo, com
um novo nome. Bem-vindo de volta!
Saí aos tropeços daquele encontro com o Sr. Electrico, maravilhosamente
elevado por dois presentes: o fato de ter vivido antes (e ficar sabendo disso)
… e o dom de tentar, de alguma forma, viver para sempre.
Poucas semanas depois, comecei a escrever minhas primeiras narrativas
curtas sobre o planeta Marte. Daquela época até hoje, nunca parei. Deus
abençoe o Sr. Electrico, o catalisador, onde quer que esteja.

SE EU CONSIDERAR CADA aspecto de todo o relato acima, meu início quase


inevitavelmente teve de ser no sótão. Dos doze aos 22 ou 23 anos, escrevi
histórias até muito depois da meia-noite — histórias não convencionais
sobre fantasmas, assombrações e coisas em jarros que vi em parques de
diversões fuleiros, sobre amigos perdidos no ondular dos lagos e
companheiros da madrugada, aquelas almas que precisavam voar no escuro
para não serem atingidas pelo sol.
Foram necessários muitos anos até que eu escrevesse fora do sótão, onde
eu tinha que lidar com minha futura mortalidade (uma preocupação de
adolescente), chegar até a sala de estar, e depois sair para o gramado sob a
luz do sol, onde os dentes-de-leão haviam nascido, e prontos para se
transformar em licor.
Ficar no gramado na frente da casa com meus parentes no Quatro de Julho
me deu não apenas minhas histórias de Green Town, Illinois, mas também me
levou para Marte, seguindo o conselho de Edgar Rice Burroughs e John
Carter, carregando minha bagagem da infância, meus tios, tias, minha mãe,
meu pai e meu irmão comigo. Quando cheguei a Marte, eu os encontrei, na
verdade, esperando por mim, ou marcianos que pareciam com eles, que
queriam me levar para um túmulo. As histórias de Green Town que
conseguiram entrar no romance acidental intitulado Licor de dente-de-leão e
as histórias do Planeta Vermelho que foram parar em outro romance
acidental chamado As crônicas marcianas foram escritas, alternadamente,
durante os mesmos anos em que corria até o barril que armazenava água da
chuva na casa de meus avós para mergulhar ali todas as lembranças, os
mitos, as associações de palavras de outros anos.
Durante o caminho, também recriei meus parentes como vampiros que
habitavam uma cidade semelhante àquela de Licor de dente-de-leão, prima
de primeiro grau sombria da cidade de Marte, onde a Terceira Expedição
terminou. Então, tinha minha vida de três maneiras: como explorador da
cidade, viajante espacial e peregrino com os primos norte-americanos do
Conde Drácula.
Vejo que não falei quase nada sobre uma variedade de criaturas que você
encontrará ao acompanhar esta coletânea, surgindo aqui em pesadelos para
soçobrar ali em solidão e desespero: dinossauros. Dos meus dezessete até os
32 anos, escrevi meia dúzia de histórias sobre dinossauros.
Certa noite, quando minha esposa e eu estávamos caminhando pela praia
em Venice, Califórnia, onde eu morava em um apartamento de recém-casado,
pagando 32 dólares de aluguel por mês, encontramos a ossada do Píer de
Venice e as estacas, os trilhos e os cabos da antiga montanha-russa
despencados na areia, sendo devorados pelo mar.
— O que esse dinossauro está fazendo aqui, deitado na praia? —
perguntei.
Minha esposa, muito sábia, não tinha a resposta.
A resposta veio na noite seguinte, quando, invocado do sono por um
chamado, me levantei e ouvi a voz solitária da sirene de nevoeiro da baía de
Santa Monica tocando várias e várias vezes.
Claro!, pensei eu. O dinossauro ouviu aquela sirene de nevoeiro no farol
tocar, pensou que era outro dinossauro despertado do passado profundo,
veio nadando para um confronto amoroso, descobriu que era apenas uma
sirene de nevoeiro e morreu na praia, com o coração partido.
Saltei da cama, escrevi a história e a enviei para o jornal Saturday
Evening Post naquela semana; ela foi publicada logo depois com o título “O
monstro do mar”. Essa história, que recebeu o título de “A sirene no
nevoeiro”, virou filme dois anos mais tarde.
A história foi lida por John Huston em 1953, que prontamente me ligou
para perguntar se eu gostaria de escrever o roteiro para seu filme Moby
Dick. Aceitei e avancei de uma fera para a próxima.
Por conta de Moby Dick, reexaminei a vida de Melville e Júlio Verne,
comparei seus capitães malucos em um ensaio escrito como introdução para
uma nova tradução de Vinte mil léguas submarinas, que, lida pelo pessoal
da Feira Mundial de Nova York, fez com que me considerassem responsável
pela conceitualização do andar superior inteiro do Pavilhão dos Estados
Unidos.
Por conta do Pavilhão, a Disney me contratou para ajudá-los a planejar os
sonhos que desembocaram na Spaceship Earth, parte do Epcot Center, uma
feira mundial permanente, que está sendo construído agora, e cuja
inauguração será em 1982. Naquela construção, enfiei toda a história da
humanidade, indo e voltando no tempo, e, em seguida, mergulhando no futuro
selvagem do espaço.
Inclusive com dinossauros.
Todas as minhas atividades, todo o meu crescimento, todos os meus
novos trabalhos e novos amores, foram causados e criados por aquele amor
primitivo original pelas feras que eu via quando tinha cinco anos e pelas
quais eu era apaixonado quando tinha vinte, 29 e trinta anos.
Dê uma olhada em minhas histórias e provavelmente vai encontrar uma ou
duas que aconteceram comigo de verdade. Resisti, durante muito tempo, a
trabalhos que me fariam ir a algum lugar e “absorver” a cor local, os
nativos, o olhar e o sentimento da terra. Aprendi há muito tempo que dessa
forma não enxergo diretamente, que meu subconsciente está fazendo a maior
parte da “absorção”, e levará anos até que alguma impressão que preste
venha à tona.
Quando eu era jovem, morei em um prédio em Los Angeles, na região dos
latinos. A maioria de minhas histórias latinas foi escrita anos depois que me
mudei do prédio, com uma exceção terrível feita no local. No fim de 1945,
com a Segunda Guerra Mundial recém-terminada, um amigo meu me pediu
para que eu o acompanhasse até a Cidade do México em um Ford V-8 caindo
aos pedaços. Lembrei-o do voto de pobreza a que as circunstâncias me
forçavam. Ele retrucou me chamando de covarde, perguntando por que eu
não me enchia de coragem e enviava três ou quatro histórias que estava
escondendo. O motivo por que eu as escondia: as histórias haviam sido
rejeitadas uma ou duas vezes por várias revistas. Impulsionado pelo meu
amigo, tirei a poeira das histórias e as enviei pelo correio com o
pseudônimo William Elliott. Por que o pseudônimo? Porque eu temia que
alguns editores de Manhattan pudessem ter visto o nome Bradbury nas capas
da Weird Tales e tivessem preconceito com aquele escritor de literatura
“pulp”, considerada uma literatura menor.
Enviei pelo correio três narrativas breves para três revistas diferentes na
segunda semana de agosto de 1945. Em 20 de agosto, vendi uma história
para a Charm, em 21 de agosto para a Mademoiselle e, em 22 de agosto,
meu aniversário de 25 anos, vendi uma história para a Collier’s. O valor
total dessas vendas foi de mil dólares, que seria como ter um cheque de 10
mil dólares chegando pelo correio hoje em dia.
Eu estava rico. Ou tão perto disso que fiquei embasbacado. Foi uma
virada na minha vida, claro, e corri para escrever aos editores daquelas três
revistas para revelar meu verdadeiro nome.
Todas as três histórias foram incluídas na lista The Best American Short
Stories of 1946, de Martha Foley, e uma delas foi publicada no livro O.
Henry Memorial Award Prize Stories, de Herschel Brickell, no ano
seguinte.
Aquele dinheiro me levou ao México, a Guanajuato, e às múmias nas
catacumbas. A experiência me machucou e me aterrorizou tanto que eu mal
podia esperar para fugir do México. Tive pesadelos sobre morrer e ter de
permanecer nos salões dos mortos com aqueles corpos erguidos e
amarrados. Para purgar meu terror instantaneamente, escrevi “O próximo da
fila”. Uma das poucas vezes que uma experiência produziu resultados quase
imediatos.
Chega de México. Que tal a Irlanda?
Há todo tipo de história irlandesa na minha obra porque, depois de viver
em Dublin por seis meses, vi que a maioria dos irlandeses que conheci tinha
uma variedade de maneiras de lidar com aquele monstro terrível chamado
Realidade. É possível enfrentá-la diretamente, o que é uma má ideia, ou se
pode rodeá-la, cutucá-la, dançar para ela, criar uma canção, escrever sua
história, prolongar a tagarelice, encher o tanque. Cada uma dessas maneiras
é parte do clichê irlandês, mas cada uma, junto com o clima horrível e a
política em frangalhos, é verdadeira.
Acabei conhecendo cada mendigo das ruas de Dublin, aqueles que ficam
perto da ponte O’Connell com loucas pianolas que mais arranham que tocam
e aqueles que compartilham um único bebê dentro de uma tribo inteira de
mendigos encharcados de chuva, de modo que era possível ver a criança
uma hora no alto da Grafton Street e no momento seguinte ao lado do Royal
Hibernian Hotel, e à meia-noite à beira do rio, mas nunca pensei que
escreveria sobre eles. Até que a necessidade de uivar e dar vazão à raiva me
fez voltar atrás uma noite e escrever “McGillahee’s Brat” [O pirralho de
McGillahee] a partir de suspeitas terríveis e da mendicância de um fantasma
que andava na chuva que precisavam ser escritas. Visitei alguns dos prédios
antigos incendiados, pertencentes a grandes latifundiários irlandeses, e ouvi
histórias de um “incêndio” que não havia se extinguido por completo, e
assim escrevi “A conflagração pavorosa lá na mansão”.
Anthem Sprinters [Os corredores do hino], outro encontro irlandês, se
escreveu anos mais tarde, quando, em uma noite chuvosa, relembrei as
incontáveis vezes que minha esposa e eu corremos para fora dos cinemas em
Dublin, avançando para a saída, derrubando crianças e velhos para
conseguir sair antes que o Hino Nacional fosse executado.
Mas como comecei? A partir do ano do Sr. Electrico, escrevi mil
palavras por dia. Por dez anos, escrevi ao menos um conto por semana,
imaginando que, de alguma forma, finalmente chegaria o dia em que eu
realmente sairia do caminho e deixaria a escrita acontecer.
O dia chegou em 1942, quando escrevi “O lago”. Dez anos fazendo tudo
errado, de repente a ideia certa veio, a cena certa, as personagens certas, o
dia certo, o momento criativo certo. Escrevi a história sentado do lado de
fora da casa, no gramado, com a minha máquina de escrever. Ao fim de uma
hora, a história terminou, os pelos da minha nuca estavam arrepiados, e eu às
lágrimas. Eu sabia que tinha escrito a primeira história realmente boa da
minha vida.
Durante os meus vinte e poucos anos, eu tinha o seguinte cronograma: na
segunda-feira de manhã escrevia o primeiro rascunho de uma história nova.
Na terça, fazia a segunda versão. Na quarta-feira, a terceira. Na quinta, a
quarta. Na sexta-feira, uma quinta. E no sábado à tarde eu enviava a sexta
versão e o manuscrito final para Nova York. Domingo? Eu pensava em todas
as ideias loucas que tentavam chamar a minha atenção, à espreita embaixo da
porta do sótão, confiantes, no fim das contas, de que, por conta de “O lago”,
eu logo as deixaria sair.
Se tudo isso parece mecânico, não era. Veja, minhas ideias me levavam a
agir dessa forma. Quanto mais eu fazia, mais queria fazer. A gente fica voraz.
Fica febril. É impossível dormir à noite, porque as ideias de criaturas
ferozes querem sair e fazem a gente revirar na cama. É um jeito maravilhoso
de viver.
Havia outro motivo para escrever tanto: eu estava recebendo de vinte a
quarenta dólares por história das revistas populares. Meu estilo de vida
estava longe de ser abastado. Precisava vender ao menos uma história, ou
melhor duas, por mês para poder pagar meus cachorros-quentes, meus
hambúrgueres e minhas passagens de bonde.
Em 1944, vendi cerca de quarenta histórias, e minha renda total do ano
foi de apenas oitocentos dólares.
De repente me ocorreu que há muito para comentar sobre minhas histórias
reunidas. É interessante falar de “The Black Ferris” [A roda-gigante
sombria], pois, em um outono, 23 anos atrás, o conto passou de narrativa
curta para um roteiro e, mais tarde, para um romance, Algo de sinistro vem
por aí.
“O dia em que choveu para sempre” foi outra associação de palavras que
me propus certa tarde, pensando em sóis quentes, desertos e harpas que
podiam mudar o clima.
“The Leave-Taking” [A partida] é a história real da minha bisavó, que
tinha mais de setenta anos quando eu tinha três anos, e consertava telhados,
depois ia para cama dormir dizendo adeus para todo mundo.
“Calling Mexico” [Chamando México] nasceu porque visitei um amigo
certa tarde, no verão de 1946, e quando entrei na sala, ele me entregou o
telefone e disse: “Ouça”. Escutei os sons da Cidade do México vindo de
mais de 3 mil quilômetros de distância. Fui para casa e comecei a escrever
uma carta sobre minha experiência telefônica a um amigo em Paris. Na
metade da carta, ela se transformou em uma história, que foi postada pelo
correio naquele dia.
“The Picasso Summer” [O verão de Picasso] foi o resultado de uma
caminhada à beira-mar com amigos e minha esposa em um fim de tarde.
Peguei um palito de picolé, desenhei figuras na areia e disse:
— Não seria horrível se você quisesse ter um quadro do Picasso e, de
repente, cruzasse com ele aqui, desenhando feras mitológicas na areia… seu
próprio Picasso “rabiscando” bem diante de você…
Terminei a história sobre Picasso na praia às duas da manhã.
Hemingway. “O papagaio que conheceu o papa.” Certa noite, em 1952,
estava atravessando Los Angeles com amigos para invadir a gráfica onde a
Life estava imprimindo sua edição com O velho e o mar de Hemingway.
Pegamos as cópias saindo da impressora, nos sentamos no bar mais próximo
e falamos sobre o “papa” Hemingway, Finca Vigía, Cuba e, de algum jeito,
de um papagaio que vivia naquele bar e falava com Hemingway toda noite.
Fui para casa, fiz uma anotação sobre o papagaio e a deixei de lado por
dezesseis anos. Fuçando em minhas pastas de arquivo em 1968, encontrei
apenas a anotação para um título: “O papagaio que conheceu o papa”.
Pensei: “Meu Deus”. Papa, como Hemingway era conhecido, havia
morrido oito anos antes. Se aquele papagaio ainda estiver por aí, ele se
lembra de Hemingway, consegue falar com a voz dele e vale milhões. E se
alguém sequestrasse o papagaio e pedisse resgate?
“The Haunting of the New” [O assombro do novo] aconteceu porque John
Godley, lorde Kilbracken, escreveu para mim da Irlanda, descrevendo sua
visita a uma casa que havia sido incendiada e fora substituída, pedra a
pedra, tijolo a tijolo, imitando a original. Meio dia após ler o cartão-postal
de Kilbracken, eu tinha o primeiro rascunho da história.
Agora, chega. Aí está. Há centenas de histórias de quase quarenta anos da
minha vida em minhas coletâneas de histórias. Elas contêm metade das
minhas verdades condenatórias das quais suspeitava à meia-noite e metade
das verdades salvadoras que eu reencontrava no dia seguinte, ao meio-dia.
Se tem algo para se mostrar aqui, é simplesmente o diagrama da vida de
alguém que partiu para algum lugar… e foi. Mais do que pensar nos
caminhos que percorri, fiz coisas e descobri o que eu era e quem eu era
depois de fazê-las. Cada história foi uma maneira de encontrar esses eus.
Cada eu enxergava o dia seguinte um pouco diferente daquele eu que existia
24 horas antes.
Tudo começou em um dia de outono, em 1932, quando o Sr. Electrico me
concedeu dois presentes. Não sei se acredito em vidas passadas, nem tenho
certeza se posso viver para sempre. Mas aquele menino acreditou nas duas
coisas, e eu o deixei seguir sua opinião. Ele tem escrito minhas histórias e
livros para mim. Usa tabuleiros Ouija e diz Sim ou Não para verdades
submersas ou meias verdades. Ele é a pele através da qual, por osmose,
todas as coisas passam e vão para o papel. Confiei em suas paixões, em seus
medos e alegrias. Como resultado, ele raramente me deixou na mão. Quando
um novembro longo e nublado entra na minha alma, e eu penso demais e
percebo de menos, sei que passou da hora de voltar àquele menino de tênis,
com febres altas, numerosas alegrias e pesadelos terríveis. Não sei ao certo
quando ele termina e eu começo. Mas tenho orgulho por esse trabalho em
dupla. O que mais posso fazer além de querer seu bem e, ao mesmo tempo,
reconhecer e querer bem a outras duas pessoas? No mesmo mês em que me
casei com minha esposa, Marguerite, me associei ao meu agente literário e
amigo mais íntimo, Don Congdon. Maggie datilografava e criticava minhas
histórias, Don criticava e vendia os resultados. Com esses dois como
parceiros de equipe nesses últimos 33 anos, como eu poderia ter fracassado?
Somos os Corredores de Connemara, Aqueles que Fogem da Rainha[5]. E
ainda estamos correndo para aquela saída.

1980
INVES TINDO UNS TR OC ADOS :
FAHREN HEIT 451

EU NÃO SABIA, MAS estava realmente escrevendo um romance que custou uns
trocados. Na primavera de 1950 paguei nove dólares e oitenta centavos em
moedinhas para escrever e terminar a primeira versão de “O bombeiro”, que
mais tarde se transformou em Fahrenheit 451.
Em todos os anos, de 1941 até aquela época, fiz grande parte do meu
trabalho de datilografia nas garagens da família, tanto em Venice, Califórnia
(onde morávamos porque éramos pobres, não porque era o lugar “da moda”
para se viver), ou atrás da casa de condomínio onde minha esposa,
Marguerite, e eu criamos nossa família. Eu era tirado da minha garagem
pelas minhas filhas queridas, que insistiam em ir até a janela dos fundos,
cantando e batendo nos vidros. O pai precisava escolher entre terminar uma
história ou brincar com as meninas. Eu escolhia brincar, claro, o que
colocava a renda familiar em risco. Eu precisava encontrar um escritório.
Não podíamos pagar por um.
Por fim, encontrei o lugar perfeito, a sala de datilografia no porão da
biblioteca da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Lá, em fileiras
ajeitadas, ficavam vinte ou mais antigas máquinas de escrever Remington ou
Underwood, que eram alugadas por dez centavos a cada meia hora. Era só
enfiar a moeda e o relógio começava a tiquetaquear loucamente, e eu
datilografava de forma insana até terminar, antes que a meia hora expirasse.
Portanto, eu tinha dois estímulos para ser o louco da datilografia: as crianças
que haviam ficado em casa e o temporizador da máquina de escrever. Ali,
tempo era realmente dinheiro. Terminei o primeiro rascunho em quase nove
dias. Com 25 mil palavras, era metade do romance que ele se tornaria.
Entre investir as moedinhas e ficar louco quando a máquina de escrever
engripava (pois tempo precioso é desperdiçado!) e tirar e pôr as folhas no
equipamento, eu perambulava no andar de cima. Ali eu caminhava
tranquilamente, perdido de amor pelos corredores e em meio às pilhas,
tocando livros, puxando tomos das estantes, virando páginas, devolvendo as
obras ao seu lugar, mergulhando em todas as coisas boas que são a essência
das bibliotecas. Que lugar para se escrever um romance sobre queimar
livros no futuro, não acha?
Já chega de passado. Que dizer de Fahrenheit 451 nos dias de hoje?
Minha opinião mudou quanto ao que ele me dizia quando eu era um escritor
mais jovem? Se por mudança você quer dizer apenas que meu amor pelas
bibliotecas se ampliou e se aprofundou, a resposta é um sim que ricocheteia
das pilhas de livros e varre o pó de arroz da bochecha da bibliotecária.
Desde que escrevi esse livro, criei mais histórias, romances, ensaios e
poemas sobre escritores do que qualquer outro escritor de que consigo me
lembrar na história. Escrevi poemas sobre Melville, Melville e Emily
Dickinson, Emily Dickinson e Charles Dickens, Hawthorne, Poe, Edgar Rice
Burroughs, e, entrementes, comparei Júlio Verne e seu Capitão Maluco com
Melville e seu marinheiro igualmente obcecado. Rabisquei poemas sobre
bibliotecários, peguei trens noturnos com meus autores favoritos em meio à
natureza selvagem continental, ficando acordado a noite toda, tagarelando e
bebendo, bebendo e tagarelando. Alertei Melville, em um poema, para que
ficasse longe da terra firme (nunca foi sua praia!) e transformei Bernard
Shaw em um robô para poder armazená-lo convenientemente a bordo de um
foguete e acordá-lo na longa jornada para Alpha Centauri, a fim de ouvir
seus prefácios saindo de sua boca e para dentro de meus ouvidos deliciados.
Escrevi uma história da Máquina do Tempo, na qual voltava velozmente ao
passado para me sentar à beira do leito de morte de Wilde, Melville e Poe
para contar do meu amor por eles e aquecer seus ossos nas horas
derradeiras. Mas, chega. Como é possível ver, eu sou enlouquecidamente
louco quando se trata de livros, escritores e dos grandes silos de grãos onde
a perspicácia deles está armazenada.
Há pouco tempo, junto com o Studio Theatre Playhouse, de Los Angeles,
tirei todas as minhas personagens de F. 451 das sombras. O que há de novo,
perguntei a Montag, Clarisse, Faber, Beatty, desde a última vez que nos
encontramos, em 1953?
Eu perguntei. Eles responderam.
Eles escreveram novas cenas, revelaram partes estranhas das
personagens, bem como almas e sonhos não descobertos. O resultado foi
uma peça em dois atos, encenada com bons resultados e, principalmente,
ótimas críticas.
Beatty foi quem mais saiu de debaixo de minhas asas ao responder a
minha pergunta: Como começou? Por que você tomou a decisão de se tornar
o capitão dos Bombeiros, um queimador de livros? A resposta surpreendente
de Beatty veio em uma cena na qual ele leva nosso herói, Guy Montag, a seu
apartamento. Ao entrar, Montag fica pasmo ao descobrir os milhares e
milhares de livros enfileirados nas paredes da biblioteca escondida do
capitão dos Bombeiros! Montag se vira e grita ao seu superior:
— Mas você é o capitão dos Bombeiros! Você não pode ter livros na sua
casa!
Ao que o capitão, com um sorriso leve e seco, retruca:
— Não é crime ter livros, Montag, crime é lê-los! Sim, é isso. Eu tenho
livros, mas não os leio!
Montag, em choque, aguarda a explicação de Beatty.
— Não vê a beleza disso, Montag? Eu nunca os li. Nenhum livro, nem um
capítulo, nem sequer uma página, um parágrafo. Eu brinco com ironias, não
é? Ter milhares de livros e nunca ter aberto um, virar as costas para tudo
isso e dizer: não. É como ter uma casa cheia de belas mulheres e, sorrindo,
não tocar… em nenhuma. Então, veja, não sou um criminoso. Se você me
flagrar lendo um, aí, sim, você vai me entregar! Mas este lugar é tão puro
quanto o quarto branco de uma garota virgem de doze anos de idade em uma
noite de verão. Estes livros morrem nas estantes. Por quê? Porque eu estou
falando. Não lhes dou apoio, nem esperança com mão, olhos ou língua. Não
são melhores que poeira.
Montag contesta:
— Não entendo como você consegue não ficar…
— Tentado? — grita o capitão dos Bombeiros. — Ah, isso já ficou para
trás. A maçã já foi roída e jogada fora. A serpente voltou para a árvore. O
jardim foi dominado por ervas daninhas e ferrugem.
— No passado… — Montag hesita, em seguida continua: — No passado
você deve ter amado muito os livros.
— Touché! — confirma o capitão dos Bombeiros. — Abaixo da linha da
cintura. No queixo. Através do coração. Rasgando as entranhas. Ah, olhe
para mim, Montag. O homem que amava livros, não, o garoto que era louco
por eles, maluco por eles, que escalava as pilhas como um chimpanzé
enlouquecido por eles.
“Eu os comia como salada, os livros eram meu almoço, meu lanche, meu
jantar e o petisco da meia-noite. Arrancava páginas, comia-as com sal,
ensopava-as com gosto, mordiscava as lombadas, virava os capítulos com a
língua! Livros às dúzias, aos montes e aos bilhões. Carregava tantos para
casa que fiquei corcunda por anos. Filosofia, história da arte, política,
ciências sociais, poesia, ensaio, as peças grandiosas, o que você pensar eu
devorava. E então… e então.” A voz do capitão dos Bombeiros desaparece.
Montag provoca:
— E então?
— Ora, a vida aconteceu para mim. — O capitão dos Bombeiros fecha os
olhos para recordar. — A vida. O de costume. O mesmo. O amor que não
deu muito certo, o sonho que azedou, o sexo que degringolou, a morte que
chegou rapidamente a amigos que não mereciam, o assassinato de um ou
outro, a insanidade de alguém próximo, a morte lenta da mãe, o suicídio
abrupto do pai… um estouro de elefantes, o avanço furioso de uma doença.
E em lugar nenhum, lugar nenhum o livro certo para o momento certo, para
enfiar na parede da barragem que estava se rompendo e reter a inundação,
mais ou menos uma metáfora, menos ou mais um símile. E na virada dos
trinta para os 31 anos, eu me recompus, cada osso quebrado, cada centímetro
de carne esfolada, escoriada ou cicatrizada. Olhei para o espelho e encontrei
um velho perdido por trás de um rosto de jovem assustado, vi um ódio ali
por tudo e qualquer coisa, o que quer que fosse eu amaldiçoava, e abria as
páginas de meus lindos livros na biblioteca e encontrava o quê, o quê, o
quê?!
Montag adivinha:
— As páginas estavam vazias?
— Na mosca! No alvo! Ah, as palavras estavam lá, certo, mas elas
passavam pelos olhos como óleo quente, não queriam dizer nada. Não
traziam ajuda, consolo, paz, porto seguro, amor verdadeiro, cama quente,
luz.
Montag pensa nos anos passados:
— Trinta anos atrás… os últimos incêndios de bibliotecas…
— Exatamente. — Beatty assente com a cabeça. — E sem ter emprego,
sendo um romântico frustrado, ou sei lá mais que diabos, me candidatei para
a Primeira Turma de Bombeiros. A primeira a subir os degraus, a primeira
na biblioteca, a primeira no coração da fornalha ardente desses compatriotas
incandescentes, encharque-me com querosene, me entregue a tocha!
“Fim da palestra. É isso, Montag. Sem tirar nem pôr!”
Montag sai, com mais curiosidade do que nunca sobre os livros, a
caminho de se tornar um pária, ser perseguido e quase destruído pelo Sabujo
Mecânico, meu clone robótico da grande fera de Baskerville, de A. Conan
Doyle.
Na minha peça, o velho Faber, o professor residente mas nem tanto,
falando com Montag através da longa noite (por meio de um rádio com fone
de ouvido em forma de concha), é vitimado pelo capitão dos Bombeiros.
Como? Beatty suspeita que Montag está sendo instruído por um dispositivo
secreto, arranca-o de sua orelha e grita para o professor distante:
— Vamos pegar você! Estamos na porta! Estamos subindo! Pegamos!
O que aterroriza Faber, fazendo seu coração destruí-lo.
Tudo ótimo. Tentador depois de tanto tempo. Tive que lutar para não
incluir isso no romance.
Por fim, muitos leitores escreveram contestando o desaparecimento de
Clarisse, imaginando o que teria acontecido com ela. François Truffaut
sentiu a mesma curiosidade e, em sua versão cinematográfica do meu
romance, resgatou Clarisse do esquecimento e a pôs entre o Povo do Livro
que perambulava na floresta, recitando sua litania de livros para eles
mesmos. Senti a mesma necessidade de salvá-la, pois, no fim das contas, ela,
no ápice de sua falação tonta e fascinada pelos famosos, foi responsável de
muitas formas pelo início do questionamento de Montag sobre livros e o que
havia neles. Em minha peça, portanto, Clarisse emerge para dar as boas-
vindas a Montag e trazer um final um tanto mais feliz para aquilo que, em
essência, era uma coisa bem amarga.
No entanto, o romance permanece fiel a seu eu anterior. Não acredito em
interferir no material de qualquer jovem escritor, especialmente quando esse
jovem escritor fui eu mesmo. Montag, Beatty, Mildred, Faber, Clarisse,
todos caminham, se movem, entram e saem como fizeram 32 anos atrás,
quando os escrevi pela primeira vez, por dez centavos a cada meia hora, no
porão da biblioteca da UCLA. Não mudei nenhum pensamento ou palavra.
Uma última descoberta. Escrevo todos os meus romances e histórias,
como você está vendo, em uma grande explosão de paixão prazerosa.
Somente há pouco, dando uma olhada no romance, percebi que Montag tem o
nome de uma empresa fabricante de papel. E Faber, claro, é uma fabricante
de lápis! Meu subconsciente foi muito astuto ao batizá-los assim.
E não ter me contado!

1982
AP ENAS DES TE LADO DE
B IZÂNC IO: L IC OR DE DEN T E-DE-
L EÃO

LICOR DE DENTE-DE-LEÃO, como a maioria de meus livros e histórias, foi uma


surpresa. Comecei a conhecer a natureza dessas surpresas, graças a Deus,
quando era um escritor bem jovem. Antes disso, como todo iniciante, eu
pensava que era possível fazer uma ideia existir na base de murros,
pancadas e sovas. Com esse tratamento, claro, qualquer ideia decente
encolhe as patas, vira as costas, fixa os olhos na eternidade e morre.
Então, foi com grande alívio que, aos vinte e poucos anos, deparei com
um processo de associação de palavras no qual eu simplesmente saía da
cama toda manhã, caminhava até minha escrivaninha e anotava qualquer
palavra ou série de palavras que surgia na minha cabeça.
Em seguida, pegava em armas contra a palavra, ou por ela, e criava um
sortimento de personagens para sopesar a palavra e me mostrar seu
significado na minha vida. Uma hora ou duas depois, para minha surpresa,
uma nova história estaria pronta, terminada. A surpresa era completa e
agradável. Logo descobri que teria de trabalhar dessa forma pelo resto da
vida.
Primeiro, eu fuçava minha mente em busca de palavras que pudessem
descrever meus pesadelos pessoais, medos da noite e da infância, e
compunha histórias a partir deles.
Depois, dava uma longa olhada nas macieiras com suas maçãs verdes e
para a antiga casa onde eu nascera, e para a casa ao lado, onde moravam
meus avós, e para todos os gramados dos verões nos quais cresci, e
começava a testar palavras para tudo isso.
O que temos em Licor de dente-de-leão é uma reunião dos dentes-de-leão
de todos esses anos. A metáfora do licor que aparece várias vezes nessas
páginas é maravilhosamente apropriada. Eu estava reunindo imagens de toda
a minha vida, armazenando-as e esquecendo-as. De alguma forma, eu tive de
me enviar ao passado, com as palavras como catalisadores, para expandir as
lembranças e ver o que elas tinham a oferecer.
Assim, a partir dos 24 até os 36 anos, mal passava um dia em que eu não
perambulava por uma recordação do gramado de meus avós, no norte de
Illinois, esperando cruzar com alguma bombinha velha meio estourada, um
brinquedo enferrujado ou um fragmento de carta escrita para mim mesmo em
algum ano da juventude, para entrar em contato com a pessoa mais velha que
eu me tornaria, a fim de lembrá-la do passado, de sua vida, de seu povo, de
suas alegrias e tristezas encharcadas.
Esse processo tornou-se um jogo que eu iniciava com imenso entusiasmo:
ver quanto eu conseguia me lembrar dos dentes-de-leão ou da colheita de
uvas silvestres com meu pai e irmão, da redescoberta do barril de coleta de
chuva, foco de proliferação de mosquitos, ao lado da varanda envidraçada,
ou da busca pelo cheiro das abelhas peludas douradas que pairavam ao
redor da parreira do alpendre nos fundos da casa. Abelhas têm cheiro, sabe,
e se não têm, deveriam, pois seus pés estão salpicados com os temperos de 1
milhão de flores.
E então eu quis relembrar como era o barranco, especialmente naquelas
noites, quando eu caminhava pela cidade até chegar em casa, tarde da noite,
depois de ver o assustadoramente delicioso O Fantasma da Ópera de Lon
Chaney, e meu irmão Skip corria à minha frente e se escondia embaixo da
ponte sobre o riacho do barranco como o Solitário, saltava do esconderijo e
me pegava, gritando, e eu corria, caía e corria de novo, gaguejando até em
casa. Era muito legal.
No caminho, eu encontrava e colidia, por meio de associação de
palavras, com amizades antigas e leais. Peguei emprestado meu amigo de
infância no Arizona, John Huff, e o mandei para o leste, para Green Town,
para que eu pudesse me despedir dele com decência.
No caminho, me sentei para tomar café da manhã, almoçar e jantar com
gente muito querida morta há muito tempo. Pois fui um garoto que amava
seus pais, avós e irmão de verdade, mesmo que esse irmão tenha “se
livrado” de mim.
No caminho, me vi no porão, trabalhando na prensa de vinho do meu pai,
ou no alpendre da frente, na noite da Independência, ajudando meu tio Bion a
carregar e disparar seu canhão de latão feito em casa.
Portanto, eu mergulhava na surpresa. Devo acrescentar que ninguém me
disse para eu me surpreender. Por ignorância e vivência, encontrei maneiras
antigas e novas de escrever e ficava perplexo quando as verdades saltavam
dos arbustos como codornas antes do tiro. Tropecei na criatividade de forma
tão cega quanto qualquer criança que está aprendendo a andar e enxergar.
Aprendi a deixar meus sentidos e meu passado me dizerem tudo o que, de
algum modo, era verdade.
Então, eu me transformei em um garoto que corre para pegar uma concha
de água limpa da chuva daquele barril ao lado da casa. E, claro, quanto mais
água você tira, mas ela flui. O fluxo nunca cessou. Assim que aprendi a ir
àqueles tempos e a voltar deles, tive muitas lembranças e impressões
sensoriais para brincar, não para trabalhar, mas sim para brincar. Licor de
dente-de-leão não é nada mais que o garoto escondido no homem que brinca
nos campos do Senhor, na grama verde de outros agostos, no início da
adolescência, crescendo, e a sensação da escuridão à espreita sob as árvores
para semear o sangue.
Eu me diverti e fiquei um tanto surpreso com um crítico que há alguns
anos escreveu um artigo analisando Licor de dente-de-leão e as obras mais
realistas de Sinclair Lewis, imaginando como eu pude ter nascido e sido
criado em Waukegan, que rebatizei como Green Town em meu romance, e
não percebi como o porto era feio e como eram deprimentes as docas de
carvão e os pátios dos trens da cidade.
Mas, claro, eu os notei e, sendo um encantador nato, fiquei fascinado por
sua beleza. Trens, vagões, o cheiro de carvão e fogueira não são feios para
crianças. A feiura é um conceito que descobrimos por acaso, mais tarde, e
com o qual ficamos envergonhados. Contar vagões é uma atividade essencial
de garotos. Seus parentes mais velhos espumam, fumegam e zombam do trem
que lhes impede a passagem, mas os garotos contam com alegria e gritam o
nome dos vagões quando passam, vindos de lugares distantes.
E, de novo, aquele pátio de trens supostamente feio era aonde os parques
de diversões e circos chegavam com elefantes que lavavam o pavimento de
tijolo com poderosas águas ácidas fumegantes às sombrias cinco horas da
manhã.
Quanto ao carvão das docas, eu descia ao meu porão a cada outono para
esperar a chegada do caminhão e de sua calha de metal, que descia com
estrépito e liberava uma tonelada de belos meteoros, que caíam do espaço
distante para dentro do meu porão e ameaçava me enterrar embaixo de
tesouros obscuros.
Em outras palavras, se sua criança for poeta, estrume de cavalo pode
apenas significar flores para ela; que, claro, é o que estrume de cavalo
sempre foi.
Talvez um novo poema meu explique mais do que esta introdução como
um livro germinou de todos os verões da minha vida.
Aqui vai o começo do poema:

Bizâncio, eu não venho de lá,


Mas de outro tempo e praça
Cuja raça era simples, testada e aprovada;
Quando criança
Eu despenquei em Illinois.
Um nome sem amor nem graça
Era Waukegan, de lá eu vim
E não, bons amigos, de Bizâncio.

O poema continua descrevendo meu relacionamento de longo prazo com


meu local de nascimento:
E, ainda assim, eu vejo ao olhar para trás
Da parte mais alta da árvore mais distante
Uma terra tão azul, amada e brilhante
Quanto qualquer Yeats acharia ser real.

Waukegan, que visitei com frequência desde então, não é nem mais feia
nem mais bonita que qualquer outra cidadezinha do Meio-Oeste. Muito dela
é verde. As árvores tocam o meio das ruas. A rua na frente da minha casa
antiga ainda é pavimentada com tijolos vermelhos. Então, em que sentido a
cidade era especial? Ora, eu nasci lá. Era minha vida. Eu precisava escrever
sobre ela quando eu achasse adequado:

Então, com míticos mortos crescemos


E a colher no pão do Meio-Oeste passamos
E espalhar a geleia brilhante de deuses antigos
Saciando a fome com antepastos sombrios
Embaixo de nosso firmamento, fingindo
Que era a coxa de Afrodite surgindo…
Enquanto no alpendre, calmo e ousado
Suas palavras de pura sabedoria e olhar dourado
Meu avô, um mito de fato,
Que superou Platão no ato
Enquanto vovó, na cadeira de balanço
Cosia a manga rasgada do cuidado manso
Crochetava flocos de neve frios, raros, brilhantes
Para em noites de verão ficarmos invernantes
E tios, reunidos com suas fumaças,
Diziam sabedorias mascaradas de piadas,
E as tias tão sábias quanto servas délficas
Distribuíam limonadas proféticas
A garotos ajoelhados como santos serviçais
Para o alpendre grego nas noites estivais;
Então seguiam à cama, penitentes
Das maldades dos inocentes;
Os pecados-mosquitos zumbindo nos ouvidos
Falavam, pelas noites e por anos decorridos
Nem Waukegan, tampouco Illinois
Mas o céu alegre e os alegres sóis.
Embora medíocre toda a nossa Sorte
E Yeats frente a Mayor brilha mais forte
E ainda nós nos conhecíamos. O anúncio?
Bizâncio.
Bizâncio.

Waukegan/Green Town/Bizâncio.
Então, Green Town existiu?
Sim, sim mais uma vez.
Havia um garoto de verdade chamado John Huff?
Havia. E esse era seu verdadeiro nome. Mas ele não se afastou de mim,
eu me afastei dele. Mas, um final feliz, ele ainda está vivo, 42 anos depois, e
lembra do nosso amor.
Havia um Solitário?
Havia, e esse era seu nome. E ele andava pela noite em minha cidade
natal quando eu tinha seis anos de idade, apavorava todo mundo e nunca foi
capturado.
O mais importante, o casarão em si, com vovô e vovó, os hóspedes e tios
e tias nele existiram? Isso eu já respondi.
O barranco é real e as profundezas e a escuridão da noite? Era, é. Levei
minhas filhas até lá, poucos anos atrás, temeroso de que o barranco pudesse
ter ficado raso com o tempo. Fico aliviado e feliz em relatar que o barranco
está mais profundo, mais escuro e mais misterioso do que nunca. Mesmo
agora, eu não iria para casa por ali depois de ver O Fantasma da Ópera.
Então, é isso. Waukegan era Green Town e era Bizâncio, com toda a
felicidade que isso significa, com toda a tristeza que esses nomes implicam.
As pessoas lá eram deuses e anões e sabiam-se mortais, e então os anões
caminhavam empertigados para não envergonhar os deuses, e os deuses se
agachavam para fazer os pequenos se sentirem em casa. E, no fim das contas,
não é disso que a vida é feita, da capacidade de dar uma volta e entrar na
cabeça de outras pessoas para observar o tolo milagre condenado e dizer:
ah, então é assim que você enxerga?! Bem, agora preciso me lembrar disso.
Então, aqui está minha celebração da morte e da vida, da escuridão e da
luz, do velho e do novo, do esperto e do estúpido combinados, pura alegria e
terror completo escritos por um garoto que no passado pendia de cabeça
para baixo nas árvores, vestido em sua fantasia de morcego, com doces em
forma de presa na boca, que por fim caiu das árvores quando tinha doze
anos, foi embora, encontrou uma antiga máquina de escrever infantil e
escreveu seu primeiro “romance”.
Uma lembrança final.
Balões de ar quente.
Raramente você os vê nesses dias, embora eu tenha ouvido dizer que, em
alguns países, eles ainda os façam e encham com ar quente com uma
fogueirinha de palha embaixo deles.
Porém, em 1925, em Illinois, nós ainda os tínhamos, e uma das
derradeiras lembranças que tenho de meu avô é da última hora de uma noite
de Quatro de Julho, há 48 anos, quando vovô e eu caminhávamos no gramado
e acendemos uma fogueirinha e enchemos com ar quente o balão de papel em
forma de pera com listras vermelhas, brancas e azuis, e seguramos a
presença angelical tremeluzente nas mãos por um momento final diante do
alpendre cheio de tios, tias, primos, mães e pais, e depois, muito
suavemente, deixamos a coisa que era vida e luz e mistério se desprender de
nossos dedos para o ar estival e passar sobre as casas que começavam a
dormir, entre as estrelas, tão frágil, tão maravilhoso, tão vulnerável, tão
adorável quanto a própria vida.
Vejo meu avô ali, olhando para aquela luz estranha, pairando, meditando
em seus pensamentos silenciosos. Eu me vejo com olhos rasos d’água, pois
tudo havia acabado, a noite havia terminado, eu sabia que nunca mais
haveria uma noite como aquela.
Ninguém falava nada. Todos olhamos para o céu, respiramos fundo e
todos pensamos as mesmas coisas, mas ninguém disse uma palavra. Mas
alguém tinha que dizer, não é? E esse alguém sou eu.
O vinho ainda espera nas adegas lá embaixo.
Minha família querida ainda está sentada no alpendre no escuro.
O balão de ar ainda paira e queima no céu noturno de um verão ainda não
enterrado.
Por que e como?
Porque eu falei que é assim.

1974
O LONGO C AMINHO ATÉ MARTE

COMO FUI DE WAUKEGAN, Illinois, até Marte, o Planeta Vermelho?


Talvez dois homens consigam dizer.
Seus nomes aparecem na página de dedicatória da Edição de
Quadragésimo Aniversário de As crônicas marcianas.
Pois foi meu amigo Norman Corwin, o primeiro a me ouvir contar minhas
histórias marcianas, e meu futuro editor, Walter I. Bradbury (nenhum
parentesco), que enxergaram o que eu estava planejando, embora eu não
estivesse ciente do que estava fazendo, e me persuadiram a terminar um
romance que eu não sabia que tinha escrito.
A forma como viajei naquela noite de primavera em 1949, quando Walter
Bradbury fez-me surpreender comigo mesmo, é um caminho sem guia de “E
se”.
E se nunca tivesse ouvido e me apaixonado pelas novelas de rádio de
Norman Corwin quando eu tinha dezenove anos?
E se eu nunca tivesse enviado meu primeiro livro de histórias para
Corwin, que acabou virando um amigo da vida toda?
E se eu não tivesse aceitado seu conselho de ir a Nova York em junho de
1949?
Então, muito simples, As crônicas marcianas talvez nunca tivessem
existido.
Mas Norman insistiu várias e várias vezes que eu deveria ir até as
editoras de Manhattan, e que ele e sua mulher, Katie, estariam lá para me
guiar e proteger na cidade grande. Por conta de sua persuasão, viajei pelo
país, quatro longos dias e noites em um ônibus de viagem, fermentando em
uma imensa bola de fungo, com uma mulher grávida que ficou em Los
Angeles com quarenta dólares no banco, e uma pousada da ACM (cinco
dólares por semana) me esperando na Rua 42.
Os Corwin, fiéis a sua promessa, me levaram para passear e me
apresentaram para uma porção de editores, que perguntaram: “Você trouxe
um romance?”.
Confessei que eu era um velocista de textos curtos e havia trazido apenas
cinquenta contos e uma máquina de escrever portátil antiga e surrada. Eles
estavam querendo cinquenta contos superimaginativos, a maioria deles
brilhante? Não queriam.
O que me leva ao meu “e se” final e mais importante.
E se eu nunca tivesse jantado com o último editor que conheci, Walter I.
Bradbury, da Doubleday, que fez a velha e deprimente pergunta: “Você
trouxe um romance?”, somente para me ouvir descrever a distância que
percorria a cada dia, pisando em uma ideia que era uma mina terrestre no
café da manhã, recolhendo os pedaços e fundindo-os perto do almoço, para
deixá-los esfriar.
Walter Bradbury balançou a cabeça, terminou a sobremesa, refletiu e, em
seguida, disse:
— Acho que você já tem um romance.
— O quê? — perguntei. — Desde quando?
— E todas aquelas histórias marcianas que você publicou nos últimos
quatro anos? — Brad respondeu. — Não há um fio condutor enterrado ali?
Você não poderia costurá-las, fazer uma espécie de tapeçaria, um meio-
primo de um romance?
— Meu Deus! — exclamei.
— Sim?
— Meu Deus! — repeti. — Em 1944, fiquei tão impressionado com
Winesburg, Ohio, de Sherwood Anderson, que falei para mim mesmo que
precisava tentar escrever algo que chegasse aos seus pés, e que se passasse
em Marte. Rascunhei as linhas gerais de personagens e eventos no Planeta
Vermelho, mas logo perdi tudo em meus arquivos!
— Parece que encontramos — disse Brad.
— Encontramos?
— Exato — disse Brad. — Volte para a ACM e datilografe um plano
daquelas duas ou três dúzias de histórias marcianas. Traga-o amanhã. Se eu
gostar, lhe dou um contrato e um adiantamento.
Don Congdon, meu melhor amigo e agente literário, sentado do outro lado
da mesa, assentiu com a cabeça.
— Estarei no seu escritório por volta do meio-dia! — falei para Brad.
Para comemorar, pedi mais uma sobremesa. Brad e Don tomaram cerveja.
Era uma noite típica e quente de julho em Nova York. Ar-condicionado
ainda era um luxo de anos futuros. Datilografei até as três da manhã,
transpirando em mangas de camisa, enquanto analisava e equilibrava meus
marcianos em suas cidades estranhas nas últimas horas antes das chegadas e
partidas de meus astronautas.
Ao meio-dia, exausto mas eufórico, entreguei o plano para Walter I.
Bradbury.
— Você conseguiu! — disse ele. — Você vai ter seu contrato e um cheque
amanhã.
Devo ter feito muito barulho. Quando me acalmei, perguntei a ele sobre
minhas outras histórias.
— Agora que vamos publicar seu primeiro “romance” — comentou Brad
—, podemos arriscar com suas histórias, embora essas antologias raramente
vendam. Pode pensar em um título que envolveria duas dúzias de histórias
diferentes como uma pele…?
— Pele? — perguntei. — Por que não O homem ilustrado, minha história
sobre um pregoeiro de parque de diversões cujas tatuagens ganham vida com
o suor, uma a uma, e representam seu futuro no peito, nas pernas e nos
braços?
— Parece que vou ter que emitir dois cheques de adiantamento — disse
Walter I. Bradbury.
Saí de Nova York três dias depois com dois contratos e dois cheques que
totalizavam mil e quinhentos dólares. Dinheiro suficiente para pagar nosso
aluguel mensal de trinta dólares por um ano, pagar as despesas de nossa
bebê, e ajudar no pagamento da entrada de uma pequena casa de condomínio
no interior de Venice, Califórnia. Na época em que nossa filha nasceu, no
outono de 1949, eu havia reunido e combinado todos os meus objetos
marcianos que estavam perdidos. Ele acabou não se tornando um livro de
personagens excêntricos como em Winesburg, Ohio, e sim uma série de
ideias, noções, fantasias e sonhos estranhos sobre os quais eu pensava e para
os quais eu havia despertado aos doze anos de idade.
As crônicas marcianas foram publicadas no ano seguinte, em meados de
1950.
Ao viajar para o leste naquela primavera, eu não sabia o que havia feito.
Entre as viagens de trens em Chicago, caminhei até o Instituto de Arte
para almoçar com um amigo. Vi uma multidão no alto das escadarias do
Instituto e pensei que eram turistas. Mas quando me aproximei, a multidão
desceu e me cercou. Não eram amantes da arte, mas leitores que tinham
adquirido as primeiras edições de As crônicas marcianas e tinham vindo me
contar exatamente o que eu havia feito de forma totalmente inconsciente. O
encontro daquela tarde mudou minha vida para sempre. Nada foi igual
depois disso.
A lista de “e se” podia se estender ao infinito. E se eu não tivesse
conhecido Maggie, que fez um voto de pobreza para se casar comigo? E se
Don Congdon nunca tivesse me escrito para se tornar e continuar sendo meu
agente por 43 anos, começando na mesma semana em que me casei com
Marguerite?
E se, logo depois da publicação de As crônicas, eu não estivesse em uma
pequena livraria de Santa Monica quando Christopher Isherwood passou.
Rapidamente, autografei e entreguei para ele um exemplar do meu
romance.
Com uma expressão de lástima e alarme, Isherwood aceitou o exemplar e
fugiu.
Três dias depois, ele me telefonou.
— Você sabe o que fez? — questionou ele.
— O quê? — devolvi a pergunta.
— Você escreveu um livro ótimo — respondeu ele. — Acabei de me
tornar o resenhista-chefe de livros da revista Tomorrow, e o seu será o
primeiro livro que vou resenhar.
Alguns meses mais tarde, Isherwood telefonou para dizer que o celebrado
filósofo inglês Gerald Heard queria me fazer uma visita.
— Ele não pode! — gritei.
— Por que não?
— Porque não temos mobília em nossa casa nova!
— Gerald Heard vai se sentar no seu chão — retrucou Isherwood.
Heard chegou e se encarapitou em nossa única cadeira.
Isherwood, Maggie e eu nos sentamos no chão.
Algumas semanas depois, Heard e Aldous Huxley me convidaram para
tomar chá, durante o qual os dois se inclinavam para a frente, um imitando o
outro, e perguntavam:
— Você sabe o que você é?
— O quê?
— Um poeta — disseram.
— Meu Deus! — exclamei. — Sou?
Então, terminamos como começamos, com um amigo se despedindo e
outro me recebendo ao chegar de uma jornada. E se Norman Corwin não
tivesse me enviado ou se Walter I. Bradbury não tivesse me recebido? Marte
talvez nunca tivesse ganhado uma atmosfera, e seu povo nunca teria nascido
com máscaras douradas, e suas cidades, não construídas, teriam ficado
perdidas nas colinas intocadas. Muito obrigado por aquela jornada a
Manhattan, que se transformou em uma viagem de ida e volta de quarenta
anos a outro mundo.

6 de julho de 1990
S OB R E OS OMB R OS DE GIGANTES

O OCASO NO MUSEU DOS ROBÔS: O RENASCIMENTO DA


IMAGINAÇÃO

HÁ DEZ ANOS VENHO escrevendo um poema narrativo longo sobre um garotinho


no futuro próximo que encontra um museu áudio-animatrônico, desvia-se
drasticamente do pórtico correto marcado Roma, passa por uma porta
assinalada Alexandria, e entra por uma soleira onde um sinal com a palavra
Grécia aponta para uma campina.
O garoto corre pela grama artificial e depara com Platão, Sócrates e,
talvez, Eurípedes, sentados ao meio-dia embaixo de uma oliveira,
bebericando vinho, comendo pão com mel e falando verdades.
O garoto hesita e, em seguida, fala com Platão:
— Como vai a República?
— Sente-se, garoto — diz Platão —, e vou lhe contar.
O garoto senta-se. Platão conta. Sócrates intervém de tempos em tempos.
Eurípedes apresenta uma cena de suas peças.
Nesse ínterim, o garoto talvez faça uma pergunta que paira em todas as
mentes nas últimas décadas:
— Como os Estados Unidos, o país de Ideias em Marcha, por tanto tempo
negligenciaram a fantasia e a ficção científica? Por que tem sido dada
atenção a elas apenas nos últimos trinta anos?
Outras perguntas do garoto poderiam muito bem ser:
— Quem é responsável pela mudança?
— Quem ensinou os professores e os bibliotecários a puxarem as meias,
a sentarem-se direito e a prestarem atenção?
— Ao mesmo tempo, que grupo em nosso país se afastou da abstração e
moveu a arte de volta para a direção da ilustração pura?
Como não estou nem morto nem sou um robô, e o Platão áudio-
animatrônico talvez não esteja programado para responder, vou tentar
responder o melhor que eu puder.
A resposta é: os alunos. Os jovens. As crianças.
Eles conduziram a revolução na leitura e na pintura.
Pela primeira vez na história da arte e do ensino, as crianças se tornaram
professores. Antes, no nosso tempo, o conhecimento vinha do topo da
pirâmide para a larga base, onde os alunos sobreviviam o melhor que
podiam. Os deuses falavam, e as crianças ouviam.
Mas, veja! A gravidade reverte-se. A pirâmide gigantesca vira-se como
um iceberg derretendo, até os garotos e as garotas chegarem ao topo. A base
da pirâmide agora ensina.
Como isso aconteceu? Afinal, lá nos anos 1920 e 1930 não havia livros
de ficção científica nos currículos escolares. Havia poucos nas bibliotecas.
Apenas uma ou duas vezes ao ano um editor responsável ousava publicar um
ou dois livros que podiam ser chamados de ficção especulativa.
Se fôssemos a uma biblioteca comum, cruzando os Estados Unidos nos
anos 1932, 1945 ou 1953, teríamos encontrado:
Nada de Edgar Rice Burroughs.
Nada de L. Frank Baum e nada de Oz.
Em 1958 ou 1962, não encontraríamos nenhum Asimov, nenhum Heinlein,
nenhum Van Vogt e, bem, nenhum Bradbury.
Aqui e ali talvez um livro ou dois dos autores acima. No restante: um
deserto.
E por que isso acontecia?
Entre os bibliotecários e professores da época, havia, e de alguma forma
ainda persiste de modo obscuro, uma ideia, uma noção, um conceito de que
apenas o fato deveria ser ingerido no café da manhã. Fantasia? Isso é para
aves raras. Fantasia, mesmo quando toma formas de ficção científica, o que
faz com frequência, é perigosa. É escapista. É sonhar acordado. Não tem
nada a ver com o mundo e os problemas do mundo.
Assim dizem os esnobes que não se veem como esnobes.
Assim as estantes ficam vazias, os livros intocados nos escaninhos dos
editores, o assunto não ensinado.
Vem a Evolução. A sobrevivência daquela espécie chamada criança. As
crianças, famintas, ávidas por ideias que jazem todas nessa terra fabulosa,
presas em máquinas e arquitetura, começaram a trabalhar por conta própria.
O que elas fizeram?
Entraram nas salas de aula em Waukesha, Peoria, Neepawa e Cheyenne e
Moose Jaw e Redwood City e puseram uma bomba sutil na mesa da
professora. Em vez de uma maçã, era Asimov.
— O que é isso? — perguntou a professora, desconfiada.
— Experimente. Vai ser bom para a senhora — disseram os alunos.
— Não, obrigada.
— Experimente — disseram os alunos. — Leia a primeira página. Se não
gostar, pare.
E os alunos espertos se viraram e se afastaram.
Os professores (e os bibliotecários mais tarde) postergaram a leitura,
mantiveram o livro na casa por algumas semanas e depois, tarde da noite,
experimentaram o primeiro parágrafo.
E a bomba explodiu.
Eles não leram apenas o primeiro, mas o segundo parágrafo, a segunda e
a terceira páginas, o quarto e o quinto capítulos.
— Meu Deus! — gritaram, quase em uníssono. — Esses malditos livros
narram alguma coisa!
— Jesus Cristo! — eles gritaram, lendo um segundo livro. — Tem ideias
aqui!
— Minha Nossa! — murmuraram eles, em seu caminho através de Clarke,
rumando para Heinlein, emergindo de Sturgeon —, esses livros são
relevantes pra (palavra feia)!
— Sim! — gritou o coro de crianças famintas no pátio. — Ah, minha
nossa, sim!
E os professores começaram a ensinar e descobriram uma coisa incrível:
os alunos que nunca quiseram ler antes de repente ficaram estimulados,
fizeram um esforço e começaram a ler e a citar Ursula Le Guin. As crianças
que nunca tinham lido mais que um obituário de pirata na vida, de repente
estavam virando páginas com a língua, ansiando por mais.
Os bibliotecários ficaram perplexos ao descobrirem que os livros de
ficção não estavam apenas sendo emprestados às dezenas de milhares, mas
sendo roubados e nunca mais devolvidos!
— Onde estávamos? — perguntavam-se os bibliotecários e professores
quando o príncipe os despertou com um beijo. — O que tem nesses livros
que os deixam tão irresistíveis quanto pipoca doce?
A história das ideias.
As crianças não teriam dito isso em tantas palavras. Apenas sentiam, liam
e amavam. Sentiam, pois não podiam falar, que os primeiros escritores de
ficção científica eram homens da caverna que estavam tentando descobrir as
primeiras ciências — e quais eram elas? Como capturar o fogo. O que fazer
com aquele mamute desajeitado que está na frente da caverna. Como bancar
o dentista para o tigre dentes-de-sabre e transformá-lo em um gatinho
doméstico.
Ponderando sobre esses problemas e possíveis ciências, os primeiros
homens e mulheres das cavernas desenharam sonhos de ficção científica nas
paredes das cavernas. Rabiscos em fuligem, preparando possíveis
estratégias. Ilustrações de mamutes, tigres, fogueiras: como resolver? Como
transformar a ficção científica (problema a resolver) em fato científico
(problema resolvido).
Alguns poucos corajosos saíram da caverna e foram pisoteados pelo
mamute, mastigados pelo tigre, torrados pelo fogo bestial que vivia nas
árvores e devorava a madeira. Alguns poucos por fim retornaram para
desenhar nas paredes o triunfo do mamute derrubado como uma catedral
peluda na terra, o tigre sem dentes e o fogo domado e levado para dentro da
caverna para iluminar os pesadelos e aquecer as almas.
As crianças sentiram, ainda que não pudessem falar, que a história inteira
da humanidade significa resolver problemas, ou que a ficção científica
engole ideias, as digere e excreta fórmulas para a sobrevivência. Não dá
para ter uma sem a outra. Sem fantasia, sem realidade. Nenhum estudo
relacionado à perda, nenhum ganho. Sem imaginação, sem desejo. Sem
sonhos impossíveis, sem soluções possíveis.
As crianças sentiram, ainda que não pudessem dizer, que a fantasia, e sua
filha robótica, a ficção científica, não é escapismo. Mas um círculo ao redor
da realidade para encantá-la e fazer com que ela se comporte. O que é um
avião, no fim das contas, senão um círculo em torno da realidade, uma
aproximação da gravidade, que diz: olha, com minha máquina mágica, eu
desafio você. A gravidade desapareceu. A distância ficou de lado. O tempo
parou, ou se inverteu, pois eu finalmente venci a corrida do sol ao redor do
mundo, por Deus! Olhe! Avião, jato, foguete — oitenta minutos!
As crianças imaginaram, ainda que não sussurrassem, que toda a ficção
científica é uma tentativa de resolver problemas ao fingir que desvia o olhar.
Em outro lugar, descrevi esse processo literário como Perseu confrontado
pela Medusa. Olhando para a imagem da Medusa em seu escudo de bronze,
ao fingir que desviava o olhar, Perseu estende a mão sobre o ombro e decepa
a cabeça da Medusa. Então, a ficção científica simula o futuro para curar os
cães doentes que estão caídos na estrada do hoje. A indeterminação é tudo.
A metáfora é o remédio.
As crianças amam os catafractários, embora não os chamem dessa forma.
Um catafractário é apenas um persa especial em um cavalo especial de raça,
cuja combinação remonta às legiões romanas de algum tempo atrás. Resolver
problema. Problema: exércitos romanos gigantescos a pé. Sonhos de ficção
científica: catafractário/homem montado. Os romanos espalharam-se.
Problema resolvido. A ficção científica torna-se fato científico.
Problema: botulismo. Sonhos de ficção científica: algum dia produzir um
recipiente que preservasse a comida, impedindo a morte. Sonhadores da
ficção científica: Napoleão e seus técnicos. Sonho que se torna fato: a
invenção da lata de estanho. Resultado: milhões de pessoas vivas hoje que,
do contrário, teriam se contorcido e morrido.
Então, parece que todos somos filhos da ficção científica, sonhando com
novas maneiras de sobreviver. Somos os relicários de todos os tempos. Em
vez de colocar ossos de santos em jarros de cristal e ouro para serem
tocados pelos fiéis nos séculos seguintes, colocamos vozes e rostos, sonhos
e sonhos impossíveis em fitas, em gravações, em livros, na TV, nos filmes. O
homem é um solucionador de problemas apenas porque é um Guardião de
Ideias. Somente ao encontrar maneiras tecnológicas de economizar tempo,
vigiar o tempo, aprender com ele e transformá-lo em soluções,
sobrevivemos através das eras para nos tornarmos melhores. Estamos
contaminados? Podemos nos descontaminar. Estamos doentes? Os hospitais
do mundo são os melhores lugares desde que a TV chegou para visitar,
segurar as mãos, levar metade da maldição da doença e do isolamento.
Queremos estrelas? Podemos tê-las. Podemos pegar taças de fogo do sol?
Podemos e precisamos para iluminar o mundo.
Para todo lugar que olhamos: problemas. Para todo lugar onde olhamos
profundamente: soluções. Os filhos dos homens, os filhos do tempo, como
não ficam fascinados com esses desafios? Portanto: a ficção científica e sua
história recente.
No topo disso tudo, conforme mencionado antes, os jovens lançaram
bombas na galeria de arte mais próxima, no seu museu de arte central.
Eles atravessaram os corredores e dormitaram na cena moderna conforme
representada por sessenta e poucos anos de abstração que se superabstrai até
desaparecer em seu próprio traseiro. Telas vazias. Mentes vazias. Sem
conceitos. Às vezes, sem cor. Sem ideias que interessariam uma pulga
amestrada em um circo de cães.
— Chega! — gritaram as crianças. — Deixem que a fantasia exista.
Deixem que a luz da ficção científica exista.
Deixem que a ilustração renasça.
Deixem que os pré-rafaelistas clonem a si mesmos e proliferem!
E assim foi.
E porque os filhos da Era Espacial e os filhos e as filhas de Tolkien
quiseram que seus sonhos ficcionais fossem desenhados e pintados em
termos ilustrativos, a arte antiga da contação de história, conforme
representada por seu homem da caverna ou por seu Fra Angelico ou seu
Dante Gabriel Rossetti, foi reinventada como a segunda pirâmide gigante
virada de cabeça para baixo, e a educação correu da base para o ápice, e a
velha ordem foi invertida.
Portanto, sua revolução dupla na leitura, no ensino da literatura e da arte
pictórica.
Portanto, por osmose, a Revolução Industrial e as Eras Eletrônica e
Espacial finalmente escorreram em sangue, osso, tutano, coração, carne e
mente do jovem que, como professores, nos ensina o que deveríamos saber
desde o início.
Essa verdade de novo: a história das ideias, que é tudo o que a ficção
científica sempre foi. Ideias parindo a si mesmas em fato, morrendo, apenas
para reinventar novos sonhos e ideias e renascer em aspectos e formas mais
fascinantes, alguns deles permanentes, todos eles uma sobrevivência
promissora.
Espero que não fiquemos sérios demais aqui, pois a seriedade é a morte
vermelha se deixarmos que ela se mova com liberdade demais entre nós. Sua
liberdade é nossa prisão, nossa derrota e morte. Uma boa ideia deveria nos
preocupar como um cão nos preocupa. Não deveríamos, por nossa vez, nos
preocuparmos até o túmulo, afogá-la com intelecto, pontificar até adormecê-
la, assassiná-la com a morte de mil fatias analíticas.
Continuemos como crianças, e não infantis, em nossa visão perfeita,
tomando emprestados esses telescópios, foguetes ou tapetes mágicos que
possam ser necessários para nos levar mais rápido até os milagres da física,
bem como ao sonho.
A revolução dupla continua. E mais revoluções invisíveis estão por vir.
Sempre haverá problemas. Graças a Deus. E soluções. Graças a Deus. E
manhãs do amanhã nas quais buscá-las. Louvemos Alá e enchamos as
bibliotecas e as galerias de arte de marcianos, elfos, duendes, astronautas, e
bibliotecários e professores em Alpha Centauri, que estejam ocupados
dizendo para as crianças não lerem ficção científica ou fantasia: “Vai
transformar seu cérebro em mingau!”.
E então, dos corredores do meu Museu dos Robôs, no longo ocaso,
deixemos que Platão tenha a última palavra de sua República eletromecânica
computadorizada.
— Vão, crianças. Corram e leiam. Leiam e corram. Mostrem e digam.
Virem outra pirâmide. Virem outro mundo de cabeça para baixo. Tirem a
fuligem do meu cérebro. Repintem a Capela Sistina dentro do meu crânio.
Riam e pensem. Sonhem, aprendam e construam.
— Corram, meninos! Corram, meninas! Corram!
E com esse bom conselho, as crianças correrão.
E a República será salva.

1980
A MENTE S EC R ETA

NUNCA QUIS IR À Irlanda na minha vida. Ainda assim, lá estava John Huston ao
telefone me convidando a ir ao seu hotel tomar um drinque. No final daquela
tarde, com bebidas nas mãos, Huston me encarou cuidadosamente e disse:
“O que você acha de morar na Irlanda e escrever o roteiro de Moby Dick?”.
E, de repente, estávamos partindo atrás da Baleia Branca; eu, minha
esposa e duas filhas.
Foram sete meses para rastrear, pegar e jogar fora as barbatanas da
Baleia.
De outubro a abril, morei no país onde eu não queria estar.
Eu achava que não tinha visto nada, ouvido nada, sentido nada da Irlanda.
A Igreja era deplorável. O clima era horrível. A pobreza era inadmissível.
Não absorveria nada disso. Além disso, havia o Peixão…
Eu não contava que meu subconsciente me pregaria uma peça. No meio de
toda a umidade péssima, enquanto tentava levar o Leviatã até a praia com
minha máquina de escrever, minhas antenas estavam observando as pessoas.
Não que meu eu desperto, consciente e em movimento não as percebesse,
gostasse, admirasse, considerasse algumas delas amigas e as visse com
frequência, não. Mas, no geral, predominantes eram a pobreza, a chuva e a
sensação de pesar por mim mesmo em uma terra pesarosa.
Com o Bicho registrado em tintas e entregue às câmeras, fugi da Irlanda,
certo de que não havia aprendido nada que não fosse temer as tempestades,
os nevoeiros e as ruas cheias de mendigos de Dublin e Kilcock.
Mas o olho subliminar é astuto. Enquanto eu lamentava meu trabalho
árduo e minha incapacidade, dia sim, dia não, de me sentir tanto como
Herman Melville quanto eu desejava, meu eu interior se mantinha alerta,
farejava fundo, ouvia muito, observava de perto e arquivava a Irlanda e seu
povo para outros momentos quando eu pudesse relaxar e deixá-los
transbordar para minha própria surpresa.
Voltei para casa via Sicília, Itália, onde tomei sol para me livrar do
inverno irlandês, garantindo, de uma vez por todas, que: “Não escreverei
nada sobre os Corredores de Connemara e as Gazelas de Donnybrook”.
Deveria ter me lembrado da minha experiência com o México, muitos
anos antes, onde encontrei não a chuva e a pobreza, mas o sol e a pobreza, e
fui embora em pânico pelo clima de mortalidade e pelo terrível cheiro
adocicado quando os mexicanos exalavam a morte. Por fim, escrevi alguns
pesadelos ótimos a partir daí.
Mesmo assim, eu insisti que Eire, a Irlanda, estava morta, a vigília havia
terminado, seu povo nunca me assombraria.
Vários anos se passaram.
Então, numa tarde chuvosa, Mike (cujo nome real é Nick), o motorista de
táxi, sentou-se fora da visão em minha mente. Ele me cutucou com suavidade
e ousou me lembrar de nossas jornadas conjuntas pelos pântanos, ao longo
do rio Liffey, e dele falando e dirigindo o carro antigo lentamente pela
névoa, noite após noite, levando-me ao Royal Hibernian Hotel, o único
homem que conheci melhor em todo o país verde e selvagem, das dezenas de
Jornadas Sombrias.
— Diga a verdade sobre mim — disse Mike. — Escreva aí do jeito que
foi.
E, de repente, eu tinha um conto e uma peça. E a história é verdadeira e a
peça é verdadeira. Aconteceu daquele jeito. Não podia ter acontecido de
outra forma.

BEM, A HISTÓRIA NÓS entendemos, mas, ora, por que depois de todos esses
anos, fui para os palcos? Não fui, mas voltei para eles.
Fui ator amador e de rádio quando garoto. Escrevi peças quando jovem.
Essas peças, não produzidas, eram tão ruins que prometi a mim mesmo nunca
escrever de novo para os palcos até tarde na vida, depois de primeiro
aprender a escrever melhor todos os outros estilos. Ao mesmo tempo, desisti
de atuar porque temia a política de concorrência que os atores precisam
fazer para trabalhar. Além disso: os contos, os romances me chamaram. E
atendi ao chamado. Mergulhei na escrita. Anos se passaram. Assisti a
centenas de peças. Eu as amava. Mas ainda resistia a escrever Ato I, Cena I
de novo. Então, veio Moby Dick, um momento para refletir sobre ela, e, de
repente, ali estava Mike, meu motorista de táxi, revirando minha alma,
fazendo emergir pedacinhos da aventura de alguns anos antes, perto da
Colina de Tara ou no interior, no outono, na troca de folhagem das árvores
em Killeshandra. Meu antigo amor pelo teatro, com um empurrão final, me
pressionou.
Mas, também se acotovelando e apertando entre presentes gratuitos e
inesperados, chegou uma multidão de cartas escritas por estranhos. Uns oito
ou nove anos atrás, comecei a receber os seguintes textos:
Senhor: Na noite passada, na cama, falei sobre sua história “A sirene no
nevoeiro” para minha esposa.
Ou: Senhor, tenho quinze anos e venci o Prêmio Anual de Recitação no
Gurnee Illinois High, tendo memorizado e declamado seu conto “O som de
trovão”.
Ou: Prezado sr. B.: Temos o prazer de relatar que a leitura dramática de
seu romance Fahrenheit 451 foi recebida calorosamente por dois mil
professores de inglês em nossa conferência na noite passada.
Em um período de sete anos, dezenas das minhas histórias foram lidas,
declamadas, recitadas e dramatizadas em escolas e faculdades em todo o
país. As cartas empilhavam-se. Por fim, elas tombaram e caíram sobre mim.
Virei para a minha esposa e disse: “Todo mundo está se divertindo me
adaptando, menos eu! Como pode?!”.
Na época, era o inverso da antiga história. Em vez de gritar que o
imperador está nu, essas pessoas estavam dizendo, sem dúvida, que um
reprovado em língua inglesa da Los Angeles High School estava totalmente
vestido e era estúpido demais para vê-lo!
Aí, comecei a escrever peças.
Uma última coisa me empurrou de volta ao palco. Nos últimos cinco anos,
peguei emprestado ou comprei uma boa quantidade de livros com ideias de
peças europeias e americanas para ler; assisti ao teatro do absurdo e do mais
que absurdo. No geral, acabei julgando as peças como exercícios frágeis,
com muita frequência tontas, mas, acima de tudo, faltavam nelas os
requisitos principais de imaginação e habilidade.
Considerando essa opinião superficial, é justo pôr minha cabeça na
guilhotina. Se quiser, pode me executar agora.
Não é incomum. A história da literatura é cheia de escritores que, correta
ou erroneamente, sentiam que podiam consertar, melhorar ou revolucionar
certa área. Então, muitos de nós mergulhamos onde nem anjos deixam
rastros.
Tendo ousado antes, exuberante, ousei de novo. Quando Mike saltou da
minha máquina, outros intrusos o acompanharam.
E quanto mais eles fervilhavam, mais se acotovelavam para preencher
espaços.
De repente, vi que eu conhecia mais das misturas e comoções dos
irlandeses do que conseguiria desembaraçar em um mês ou ano de escrita e
deslindá-las. Inadvertidamente, me vi abençoando a mente secreta e
examinando uma vasta agência de correio interior, chamando pelo nome
noites, cidades, climas, animais, bicicletas, igrejas, cinemas, procissões e
fugas.
Mike me pôs em uma caminhada lenta; irrompi em um trote, que logo se
tornou uma corrida de verdade.
As histórias, as peças, nasceram em uma ninhada chorona. Eu precisava
sair do caminho.

AGORA, JÁ PRONTO E ocupado com outras peças sobre os maquinários da


ficção científica, tenho uma teoria a posteriori sobre dramaturgia?
Tenho.
Pois somente depois é possível definir, examinar, explicar.
Tentar saber de antemão significa congelar e matar.
A autoconsciência é inimiga de toda arte, seja atuar, escrever, pintar ou
viver em si, que é a maior de todas as artes.
Segue aqui minha teoria. Nós, escritores, estamos aptos a fazer o
seguinte:
Construímos tensões para o riso, então concedemos a permissão, e o riso
vem.
Construímos tensões para a tristeza, e por fim dizemos chorem e
esperamos ver nosso público em lágrimas.
Construímos tensões para a violência, acendemos o pavio e corremos.
Construímos tensões de amor, nas quais muitas das outras tensões se
misturam para serem modificadas e transcenderem, e permitimos essa
fruição na mente do público.
Construímos tensões, especialmente hoje em dia, na direção da náusea e,
em seguida, se tivermos jeito e talento, se soubermos observar, permitimos
que nosso público fique nauseado.
Cada tensão busca seu próprio fim, liberação e relaxamento.
Ou seja, nenhuma tensão, no âmbito estético e prático, deve ser construída
e permanecer retida. Sem isso, toda arte termina incompleta, morre na praia.
E, na realidade, como sabemos, não relaxar de uma tensão específica pode
levar à loucura.
Existem exceções aparentes, nas quais romances e peças terminam no
ápice da tensão, mas a liberação está implícita. O público é instado a sair
para o mundo e explodir uma ideia. A ação final é repassada do criador ao
leitor/espectador, cujo trabalho é alcançar o riso, as lágrimas, a violência, a
sexualidade ou a náusea.
Não saber disso significa desconhecer a essência da criatividade, que, no
fundo, é a essência do ser humano.
Se eu fosse aconselhar escritores iniciantes, se eu fosse aconselhar o
escritor iniciante que vive dentro de mim, que foram ao teatro do absurdo, o
quase absurdo, o teatro de ideias, qualquer tipo de teatro, eu aconselharia o
seguinte:
Não me conte piadas sem sentido.
Vou rir de sua recusa de me permitir o riso.
Não me construa tensões para as lágrimas e recuse que eu me lamente.
Vou buscar muros das lamentações melhores.
Não faça meus punhos se cerrarem e esconda o alvo.
Talvez eu acabe batendo em você.
Acima de tudo, não me traga náusea, a menos que me mostre o caminho
até a amurada do navio.
Pois, por favor, entenda, se você me envenenar, eu vou ter que adoecer.
Vejo que muitas pessoas que escrevem filmes nauseantes, romances
nauseantes, peças nauseantes esqueceram que o veneno pode destruir mentes
da mesma forma que pode destruir o corpo. Muitos frascos de venenos têm
rótulos que os identificam como eméticos. Por negligência, ignorância ou
incapacidade, os novos Bórgias intelectuais enfiam bolas de pelo em nossa
garganta e não permitem a convulsão que poderia nos fazer bem.
Esqueceram, se é que algum dia aprenderam como é, o conhecimento
ancestral de que apenas se ficarmos realmente doentes podemos recuperar a
saúde. Até os bichos sabem quando é bom e adequado vomitar. Então, me
ensinem a ficar nauseado, no momento e no lugar certo, para que eu possa
caminhar de novo pelos campos e, com os cães sábios e sorridentes, saber
quando comer um matinho.

A ESTÉTICA DA ARTE engloba tudo, há espaço nela para todo o horror, toda a
delícia, se as tensões que os representam forem levadas aos perímetros mais
extremos e liberadas para agir. Não estou pedindo finais felizes. Peço
apenas finais adequados com base na avaliação adequada da energia contida
e da detonação oferecida.
Enquanto o México me surpreendeu com tanta escuridão no coração do
sol do meio-dia, a Irlanda me surpreendeu com a mornidão do sol envolto
pela névoa que só serve para aquecer as pessoas. Os tambores distantes que
ouvi no México me levaram até uma marcha fúnebre. Os tambores em Dublin
me levaram alegremente pelos pubs. As peças queriam ser peças felizes.
Deixei que elas escrevessem a si mesmas dessa forma, a partir de seus
desejos e necessidades, suas alegrias estranhas e prazeres admiráveis.
Então, escrevi meia dúzia de peças e escreverei mais sobre a Irlanda.
Sabia que há, em toda a Irlanda, grandes colisões frontais de bicicleta e as
pessoas sofrem de concussões sérias por anos depois do acidente? Pois é.
Eu as capturei e as mantive em um ato. Sabia que, toda noite nos cinemas, um
momento antes de o Hino Nacional Irlandês estar prestes a irromper nos
alto-falantes, há uma onda terrível de evasão enquanto as pessoas lutam para
escapar pelas saídas para não ouvir aquela música terrível de novo?
Acontece. Eu vi acontecer. Eu corri com elas. Ora, escrevi esse evento como
uma peça, Anthem Sprinters [Os corredores do hino]. Sabia que a melhor
maneira de dirigir à noite no nevoeiro pelas terras pantanosas do interior da
Irlanda é com os faróis apagados? E dirigir terrivelmente rápido é melhor!
Escrevi sobre isso. É o sangue de um irlandês que move sua língua a dizer
belezas ou o uísque que ele entorna move seu sangue para mover a língua e
recitar poemas e declamar com harpas? Não sei. Eu pergunto a meu eu
secreto, que me responde. Sábio que sou, escuto.
Então, achando-me falido, ignorante, desatento, termino com peças de um
ato, uma peça de três atos, ensaios, poemas e um romance sobre a Irlanda.
Eu era rico e não sabia. Todos somos ricos e ignoramos o fato enterrado da
sabedoria acumulada.
Então, várias vezes minhas histórias e peças me ensinam, me recordam,
que nunca posso duvidar de mim mesmo, de meus instintos, das minhas
entranhas ou do meu subconsciente Ouija de novo.
A partir de agora, espero sempre ficar alerta, educar a mim mesmo da
melhor forma possível. Mas, na falta disso, no futuro, voltarei tranquilamente
à minha mente secreta para ver o que ela observou quando achei que eu a
havia deixado de lado.
Nunca deixamos nada de lado.
Somos taças sendo preenchidas constante e silenciosamente.
O truque é saber como nos inclinarmos para que a beleza se derrame.
MEU TEATRO DE IDEIAS
O TEMPO É MESMO teatral. É cheio de loucura, barbaridades, genialidade,
inventividade; entusiasma e deprime. Diz muito ou pouco demais.
E uma coisa é constante em todos os casos mencionados acima.
Ideias.
As ideias estão em marcha.
Pela primeira vez, na longa e problemática história da humanidade, as
ideias não existem meramente no papel, como as filosofias constam dos
livros.
As ideias de hoje são planejadas, simuladas, projetadas, eletrificadas,
firmadas e soltas para acelerar ou desacelerar os homens.
Tudo isso sendo verdade, como é raro um filme, romance, poema,
história, pintura ou peça que lide com o maior problema de nosso tempo: o
homem e suas ferramentas fabulosas, o homem e seus filhos mecânicos, o
homem e seus robôs amorais que o conduzem, estranha e inexplicavelmente,
à imoralidade.
Pretendo que minhas peças entretenham e sejam imensamente divertidas,
que estimulem, provoquem, aterrorizem e, assim espero, distraiam. Isso, eu
acho, é importante para contar uma boa história, escrever bem as paixões até
o fim. Que o resíduo venha quando as peças terminarem e a multidão for
para casa. Que o público desperte à noite e diga: “Ah, foi isso que ele quis
dizer!”. Ou grite no dia seguinte: “Ele está falando de nós! Está falando do
agora! Do nosso mundo, de nossos problemas, de nossas dores e delícias!”.
Não quero ser um palestrante esnobe, um bom samaritano grandiloquente
ou um reformista tedioso.
Desejo correr, capturar esse tempo, o mais grandioso em toda a história
do homem, para estar vivo, rechear meus sentidos com ele, olhá-lo, tocá-lo,
ouvi-lo, cheirá-lo e esperar que outros corram comigo, perseguindo as ideias
e as máquinas feitas de ideias, e serem perseguidos por elas.
No passado, fui parado muitas vezes por policiais à noite que me
perguntavam o que eu estava fazendo caminhando por aí.
Escrevi uma peça chamada The Pedestrian [O pedestre], que se passava
no futuro, sobre o drama de caminhantes semelhantes nas cidades.
Testemunhei inúmeras sessões espíritas entre televisores e crianças
enlevadas, transportadas e distraídas de todas as idades, e escrevi A savana,
uma peça sobre uma sala de televisão com aparelhos de parede a parede em
um futuro muito próximo que se torna o centro de toda a existência de uma
família aprisionada.
E escrevi uma peça sobre um poeta do ordinário, um mestre do medíocre,
um velho cujo maior feito de memória é relembrar como um Moon, um
Kissel-Kar ou um Buick de 1925 se parecia à época, até o capô, para-brisas,
consoles e placas do carro. Um homem que consegue descrever a cor de
cada embalagem de doce que comprara e o desenho de cada maço de cigarro
que fumara.
Espero que essas peças, essas ideias, postas em movimento agora no
palco, sejam consideradas um produto genuíno de nosso tempo.

1965
F ILMANDO UM HAIKAI EM UM
B AR R IL

Começou como The Black Ferris, uma história de 3 mil palavras,


publicada na Weird Tales (1948), sobre dois jovens que suspeitam de
alguma coisa de peculiar no parque de diversões que chega à cidade. A
história transformou-se em um tratamento para o cinema de setenta
páginas, Dark Carnival (1958), um projeto com direção de Gene Kelly,
que não foi produzido. Dele surgiu um romance, Algo de sinistro vem
por aí (1962); o romance se tornou um roteiro (1971), depois um
segundo roteiro (1976), e agora, por fim, um filme. O autor da história,
do tratamento, do romance e dos roteiros é, claro, Ray Bradbury.
Bradbury sente que tem sorte: “Sempre fui um bom editor de minha
própria obra”.
“Venho tentando ensinar meus amigos de escrita que existem duas
artes: a número um, escreva; e, em seguida, a segunda grande arte é
aprender como cortar de forma a não matar ou nem sequer ferir a obra.
Quando se começa uma vida como escritor, em geral se odeia o
trabalho, mas agora que estou mais velho, ele se transformou em um
jogo maravilhoso, e eu amo esse desafio tanto quanto escrever o
original, pois é um desafio. É um desafio intelectual pegar um bisturi e
cortar o paciente sem matá-lo.”
Se editar é um jogo maravilhoso, então Algo de sinistro vem por aí é
como uma fábrica de jogos cheia de possibilidades, pois Bradbury está
adaptando, readaptando e readaptando novamente a historinha de Will
Holloway, Jim Nightshade e o carrossel demoníaco, cujos passageiros
envelhecem um ano a cada volta. Ele está satisfeito que a versão de
Jack Clayton, que a Disney vai lançar em fevereiro, “é a mais próxima
de qualquer coisa minha no cinema”. Ele parece satisfeito com a
colaboração; “Passei seis meses fazendo um roteiro totalmente novo
para Jack, que foi uma experiência deliciosa, pois é maravilhoso
passar toda tarde ao lado dele”.

Mitch Tuchman

EU TINHA UM ROTEIRO de 260 páginas. Representam seis horas. Jack disse:


“Bem, agora você vai cortar quarenta páginas”. Eu retruquei: “Minha nossa,
eu não consigo”. Ele falou: “Pode começar, eu sei que você consegue.
Estarei aqui”. Então, cortei quarenta páginas. Ele disse: “Tudo bem, agora
você precisa cortar mais quarenta páginas”. Cheguei a 180 páginas, e aí Jack
pediu: “Mais trinta”. Eu falei: “Impossível, impossível!”. Tudo bem, cheguei
às 150 páginas. E Jack repetiu: “Mais trinta”. Bem, ele continuou falando
que eu conseguiria, e, por Deus, repassei uma última vez e cheguei às 120
páginas. Ficou melhor.

Quando o senhor deu a Clayton 260 páginas, achou que ele filmaria
daquele jeito? Como um roteirista experiente, deveria saber que…
Bem, claro que eu sabia que estava longo demais. Eu sabia que podia
fazer o primeiro corte… mas, daí para a frente, fica mais difícil. Em
primeiro lugar, a gente fica cansado e não consegue ver a coisa com clareza.
Então, depende de o diretor ou produtor, de quem estiver menos cansado que
a gente, ajudar a encontrar os cortes.

Que tipo de ideias Clayton trouxe?


Ele simplesmente se sentava comigo dia após dia e dizia: “Em vez dessas
seis linhas de diálogo, você consegue encontrar uma maneira de dizê-las em
duas?”. Ele me desafiava a encontrar uma maneira mais breve de dizê-las;
então, eu encontrava. Então, a sugestão indireta e o fato de saber que ele
estava me apoiando psicologicamente eram importantes.
O senhor cortava diálogo ou ação?
Tudo. O principal é a compressão. Na verdade, não é cortar como
metáfora de aprendizagem — e aí meu conhecimento de poesia foi de grande
ajuda para mim. Há uma relação entre os grandes poemas do mundo e os
grandes roteiros: os dois lidam com imagens compactas. Se puder encontrar
a metáfora correta, a imagem correta, e a colocar em cena, é possível
substituir quatro páginas de diálogo.
Olhe para um filme como Lawrence da Arábia: uma das maiores cenas
dele é sem diálogo. A cena inteira em que Lawrence volta para o deserto
para resgatar o condutor de camelo: não há uma linha de diálogo. Ela se
passa em cinco minutos e é toda imagem. Quando Lawrence sai do deserto,
depois de todos o esperarem por aqueles minutos de sol escaldante e
temperatura violenta — a música aumenta e o coração se eleva também. É o
tipo de coisa que se busca aqui.
Sou um roteirista espontâneo, sempre fui. Sempre fui dos filmes. Sou filho
do cinema. Assisti a todos os filmes feitos, desde os dois anos de idade.
Estou calejado. Quando eu tinha dezessete anos, estava vendo entre doze e
catorze filmes por semana. Bem, é um bocado de filme. Significa que vi de
tudo, ou seja, a porcariada toda. Mas é bom. É uma maneira de aprender.
Aprende-se assim como não fazer as coisas. Ver apenas filmes excelentes
não educa a pessoa, de jeito nenhum, pois eles são misteriosos. Um filme
ótimo é misterioso. Não há maneira de decifrá-lo. Por que Cidadão Kane
funciona? Bem, ele simplesmente funciona. É brilhante em todos os níveis, e
não há maneira de apontar nada nele que não esteja correto. Tudo está
correto. Mas em um filme ruim fica imediatamente evidente, e ele consegue
ensinar mais: “Nunca vou fazer isso, nunca vou fazer aquilo, e nunca vou
fazer aquilo outro”.

São muitas as histórias de romancistas insatisfeitos com as adaptações


cinematográficas de sua obra. Com frequência a insatisfação é resultado
de suas falsas expectativas. Pode me dar um exemplo de conselho que o
roteirista Ray Bradbury talvez tenha dado ao escritor Ray Bradbury
enquanto adaptava Algo de sinistro?
Jack e eu debatemos por muito tempo sobre a Bruxa do Pó. Ela é uma
criatura muito bizarra. No romance, fiz com que ela fosse à biblioteca, e ela
tinha os olhos costurados. Mas ficamos com medo de que, se não fizéssemos
isso certo, ficaria hilário. Então, nós a invertemos: agora ela é a mulher mais
bonita do mundo (Pam Grier). Às vezes, ela vai se virar de repente, e os
garotos vão ver o que está por baixo da beleza: aquela criatura muito, muito
feia. Acho que funciona melhor assim.

No livro, Charles Holloway tem uma atitude aflita diante da


inevitabilidade do fim da juventude. Houve algum jeito de expressar isso
no filme que não fosse com olhares tristes? Algum jeito de reter aquele
monólogo interno sem nenhuma ação relacionada a ele?
Tem. Não está tudo lá, mas eu o fortaleci, acredito. Em um determinado
momento na vida, quando seu filho era jovem, Charles Holloway (Jason
Robards) perdeu a oportunidade de salvá-lo do afogamento; e, em vez dele,
o homem que está do outro lado da rua, sr. Nightshade, o salvou. Então,
temos isso como um ponto sensível recorrente. No fim, cabe a Holloway
salvar seu filho (Vidal I. Peterson) no labirinto de espelhos; uma coisa
fortalece a outra.
Então, temos poucas pistas no roteiro inteiro do pai falando com a mãe
(Ellen Geer) tarde da noite ou com o filho no alpendre. Não é necessário
insistir muito nisso. É uma coisa ótima no trabalho cinematográfico: só é
preciso um olhar de um jeito ou sentir o vento de outro, não é necessário
repassar todas as falas.
Tem uma cena maravilhosa quando o pai está sentado no alpendre com
Will tarde da noite, e o garotinho diz: “Às vezes ouço o senhor chorar à
noite. Queria poder deixar o senhor feliz”. E o pai diz: “Só me diga que vai
viver para sempre”. É de partir o coração.

E a hipérbole? Acho que não há nenhum motivo para segurar “Os


bilhões de vozes cessaram instantaneamente, como se o trem tivesse
mergulhado em uma tempestade de fogo fora da Terra”.
Meu caro jovem, há uma cena na qual os garotos (Peterson e Shawn
Carson) correm pelo cemitério e observam o trem passando. Eles se
agacham e se recostam no barranco e, em certo momento, o trem assobia, e
todas as pedras no cemitério estremecem, e os anjos choram poeira. Ah-há!

O senhor tem uma maneira atrativa de usar substantivos como verbos.


Em um momento, o senhor descreve Charles Holloway como “um pai que
‘acegonhava’ as pernas e ‘peruava’ com os braços”. Uma linguagem
descritiva como essa pode ser passada para a tela?
Um bom diretor poderia fazê-lo.

O senhor ainda continuará vendo as aves?


Um bom diretor encontraria uma maneira, porque o que a pessoa está
filmando é haikai. Está se filmando um haikai em um barril.
Vou lhe dar um exemplo do que estamos falando. Dou aulas no
departamento de cinema da Universidade da Califórnia do Sul há 22 anos —
vou até lá algumas vezes ao ano —, e vários alunos me procuram e pedem:
“Podemos filmar seus contos?”. Eu digo: “Claro, podem. Façam isso. Mas
tem uma restrição que eu imponho. Filmem a história inteira. Leiam o que eu
fiz e alinhem as tomadas por parágrafos. Todos os parágrafos são tomadas.
Pelo jeito que o parágrafo está escrito, vocês saberão se é um close ou uma
tomada longa”. Então, minha nossa, esses alunos, com suas camerazinhas e
quinhentos dólares, fizeram filmes melhores que as grandes produções que
eu tive, pois eles seguiram a história.
Todas as minhas histórias são fílmicas. O homem ilustrado da Warner
Brothers, alguns anos atrás (1969), não funcionou porque eles não leram os
contos. Talvez eu seja o romancista mais cinematográfico do país hoje.
Todos os meus contos podem ser filmados diretamente da página do livro.
Cada parágrafo é uma tomada.
Quando eu falei com Sam Peckinpah anos atrás sobre a direção de Algo
de sinistro, eu lhe disse: “Como você vai rodar o filme se realmente o
fizermos?”. Ele disse: “Arrancar as páginas do livro e enfiá-las na câmera”.
E eu respondi: “Está certo”.
Por fim, o trabalho é escolher entre todas as metáforas no livro, colocá-
las em um roteiro na proporção correta para que as pessoas não comecem a
rir de você.
Por exemplo, eu assisti na TV a Jogo de paixões, filme de George Stevens
sobre a jogatina em Las Vegas. Warren Beatty e Elizabeth Taylor, que estava
parecendo o Gaguinho do desenho animado. Em meia hora de filme, Taylor
vira-se para Beatty e diz: “Me carregue para o quarto”. Bem, não há o que
fazer além de rir. Pensei: “Ele vai quebrar as costas”. O que quero dizer é
que assim se arruína um filme.
Então, quando alguém leva a fantasia para a tela, precisa garantir que as
pessoas não vão morrer de rir.

Como o senhor começa o processo de adaptação para o cinema?


Eu jogo tudo fora e recomeço.

O senhor nunca olha o material original?


Quando escrevo um roteiro para cinema ou uma peça de teatro baseada
em meu trabalho, nunca olho o original. Termino o texto e depois volto para
ver o que deixei de fora. Sempre é possível inserir coisas se elas estiverem
faltando. É mais divertido ouvir as personagens falando trinta anos depois.
Adaptei Fahrenheit 451 para o teatro em Los Angeles dois anos atrás; fui
até os personagens e disse: “Oi, não nos falamos há trinta anos. Você
amadureceu? Espero que sim. Eu amadureci”. E, claro, eles também haviam
amadurecido. O capitão dos Bombeiros virou-se para mim e disse: “Oi, faz
trinta anos que você me escreveu e esqueceu de me perguntar a razão de eu
queimar livros”. Eu falei: “Caramba! Boa pergunta. Por que você queima
livros?”. E ele me contou — uma cena gloriosa que não está no romance.
Está na peça. E, em algum momento no futuro, devo voltar ao romance e
enfiar nele o material novo, porque é maravilhoso.

O senhor poderia fazer outro filme sobre ele?


Não é necessário, pois eu amo o filme de Truffaut, mas eu gostaria de
fazer um especial de TV da peça com todo o material novo; dar ao capitão
dos Bombeiros uma chance de contar ao público que ele é um romântico
fracassado: ele achava que os livros podiam curar tudo. Todos pensamos
assim de algum jeito em nossa vida — não é? — quando descobrimos os
livros. Achamos que, em uma emergência, tudo o que se deve fazer é abrir a
Bíblia, Shakespeare ou Emily Dickinson, e pensamos: “Uau! Eles sabem de
todos os segredos”.

Com todo o conhecimento de roteiro e o que podemos e não podemos


fazer na tela, o senhor não se interessa em começar a dirigir filmes?
Não, não quero lidar com tanta gente. Um diretor precisa fazer quarenta
ou cinquenta pessoas o amarem ou o temerem, ou uma combinação dos dois,
o tempo todo. E como lidar com tantas pessoas e ainda manter a sanidade e a
cortesia? Acho que eu ficaria impaciente e não gostaria de ficar.
Veja, estou acostumado a acordar toda manhã, correr para a máquina de
escrever e, em uma hora, eu crio um mundo. Não preciso esperar ninguém.
Não preciso criticar ninguém. E está pronto. Tudo que preciso é de uma
hora, e estou à frente de todo mundo. No restante do dia posso ficar numa
boa. Eu já fiz mil palavras naquela manhã; então, se eu quiser um almoço de
duas ou três horas, eu posso, porque já deixei todo mundo para trás.
Mas um diretor diz: “Ai, meu Deus, estou animado. Agora, imagino se
poderei animar todo mundo”. E se minha protagonista não estiver se sentindo
bem hoje? E se meu protagonista for rabugento? Como lido com isso?

Seus personagens nunca apresentam esses problemas?


Nunca. Eu nunca aturo nada disso vindo de minhas ideias.

O senhor simplesmente dá uma palmada nelas para colocá-las no


lugar?
Assim que as coisas ficam complicadas, eu me afasto. Esse é o grande
segredo da criatividade. A gente tem que tratar as ideias como gatos: fazer
com que eles sigam a gente. Se tentar se aproximar de um gato e pegá-lo no
colo, caramba, ele não vai deixar. Você precisa dizer: “Ora, vá para os
diabos”. E o gato diz: “Espera aí. Ele não está se comportando como a
maioria dos seres humanos”. Então, o gato segue a gente, pois fica curioso:
“Bem, o que há de errado com você que não me ama?”.
Bem, uma ideia é assim. Viu? A gente diz: “Ora, caramba, não preciso
que me deprima. Não preciso que me preocupe. Não preciso que me
pressione”. As ideias vão me seguir. Quando elas estão de guarda baixa e
prontas para nascer, eu me viro e as agarro.

1982
ZEN NA ARTE DA ES C R ITA

SELECIONEI O TÍTULO ACIMA, muito obviamente, pelo seu valor emocional. A


variedade de reações a ele deveria me garantir algum tipo de público, ainda
que apenas de observadores curiosos, aqueles que vêm por pena e ficam
para gritar. Para garantir uma atenção arrebatadora, o antigo e pequeno
espetáculo dos Medicine Men, que viajava pelo nosso país, usava órgão,
tambores e índios Blackfoot. Espero que seja perdoado por usar ZEN da
mesma forma, ao menos aqui para começar.
Pois, no fim das contas, talvez você descubra que não estou brincando.
Mas vamos falar cada vez mais sério.
Agora, enquanto você está aqui comigo, que palavras devo pintar em
letras vermelhas de três metros de altura?
TRABALHO.
Essa é a primeira.
RELAXAMENTO.
É a segunda. Seguida pelas duas finais:
NÃO PENSE!
Bem, agora, o que essas palavras têm a ver com zen-budismo? O que têm
a ver com a escrita? Comigo? Mas, mais especialmente, com você?
Para começar, vamos dar uma boa olhada nessa palavra levemente
repelente que é TRABALHO. É, acima de tudo, a palavra ao redor da qual sua
carreira revolverá pela vida toda. Começando desde já, você não deveria se
tornar escravo dele, que é um termo mesquinho demais, mas seu parceiro.
Assim que você realmente for coparticipante da existência com seu trabalho,
essa palavra vai perder seus aspectos repelentes.
Vamos parar um momento e fazer algumas perguntas. Por que uma
sociedade como a nossa, com uma herança puritana, tem sentimentos
ambivalentes em relação ao trabalho? Sentimo-nos culpados se não estamos
ocupados, não é? Mas, por outro lado, não nos sentimos um tanto sujos se
suamos demais?
Só posso sugerir que geralmente cedemos ao trabalho, a uma atividade
falsa, para evitar ficarmos entediados. Ou, pior ainda, concebemos a ideia
de trabalhar por dinheiro. O dinheiro torna-se o objeto, o alvo, a finalidade e
a essência. Portanto, trabalho, sendo importante apenas como meio para
aquele fim, degenera-se em tédio. Não podemos imaginar, então, por que o
odiamos tanto?
Ao mesmo tempo, outros estimularam a noção entre os escritores mais
inseguros de que pena, pergaminho, uma hora de ócio no meio do dia, uma
pitada de tinta riscada com bom gosto no papel vão bastar para trazer o
sopro da inspiração. A referida inspiração com frequência é a última edição
da The Kenyon Review ou de outro periódico literário. Algumas palavras
por hora, alguns parágrafos feitos por dia e, voilà!, somos os Criadores! Ou,
melhor ainda, Joyce, Kafka, Sartre!
Nada poderia estar mais distante da verdadeira criatividade. Nada
poderia ser mais destrutivo que as duas atitudes acima.
Por quê?
Porque as duas são formas de mentir.
É tão mentira escrever dessa maneira quanto ser recompensado em
dinheiro no mercado comercial.
É tão mentira escrever dessa maneira quanto ser recompensado pela fama
oferecida por algum grupo quase literário esnobe nos suplementos
intelectuais.
Nem preciso dizer o quanto as publicações literárias estão cheias até a
tampa de jovens garotas e garotos que se enganam com a ideia de estarem
criando quando o que estão realmente fazendo é imitar os volteios e os
floreios de Virginia Woolf, William Faulkner ou Jack Kerouac.
Nem preciso dizer o quanto as revistas femininas e outras publicações de
circulação em massa estão cheias até a tampa de jovens garotas e garotos
que se enganam com a ideia de que estão criando quando, na verdade, estão
apenas imitando Clarence Budington Kelland, Anya Seton ou Sax Rohmer.
O mentiroso de vanguarda engana-se que será lembrado por sua mentira
pedante.
O mentiroso comercial também, em um nível próprio, se engana, pois,
embora esteja se inclinando, isso só acontece porque o mundo está
inclinado; todo mundo anda desse jeito!
Gostaria de acreditar que todo mundo que esteja lendo este ensaio não
tenha interesse nessas duas formas de mentira. Cada um de vocês, com
curiosidade sobre a criatividade, quer ter contato com aquela coisa dentro
de si que é realmente original. Deseja fama e fortuna, sim, mas apenas como
recompensa pelo trabalho realmente bem-feito. A notoriedade e uma conta
bancária gorda devem vir depois de tudo estar terminado e pronto. Significa
que não podem ser consideradas enquanto se estiver à frente da máquina de
escrever. O homem que as considera mente de uma das duas maneiras para
agradar um público mínimo que somente é capaz de derrubar uma ideia até
insensibilizá-la e, em seguida, matá-la, ou um público grande que não
reconheceria uma ideia se ela se aproximasse e o mordesse.
Ouvimos muito falar sobre se voltar para o mercado, mas não o suficiente
sobre se voltar para as panelinhas literárias. As duas abordagens, no fim das
contas, são maneiras infelizes de um escritor viver neste mundo. Ninguém se
lembra, ninguém traz isso à tona, ninguém discute a história de quem se
inclina, seja um Hemingway diminuto ou uma versão de segunda mão de
Elinor Glyn.
Qual é a maior recompensa que um escritor pode ter? Não será aquele dia
em que alguém correrá até ele, o rosto explodindo com sinceridade, os olhos
fervilhantes com admiração, e gritará: “Aquela sua nova história é linda,
realmente maravilhosa!”?
Somente aí a escrita valerá a pena.
De repente, as pomposidades das loucuras intelectuais se esvanecem. De
repente, as quantias acordadas coletadas nas revistas cheias de propaganda
ficam desimportantes.
O mais calejado dos escritores comerciais ama esse momento.
O mais artificial dos escritores literários ama esse momento.
E Deus, em sua sabedoria, com frequência oferece esse momento aos
escritores por encomenda mais ávidos por dinheiro ou os literateurs mais
ávidos por atenção.
Pois chega um momento nas ocupações diárias em que o antigo escritor
por dinheiro se apaixona tanto pela ideia que começa a galopar, fumegar,
ofegar, enfurecer e escrever com o coração, mesmo sem querer.
Então, também o homem com a caneta-tinteiro de repente é tomado pela
febre, abre mão da tinta púrpura em prol da transpiração pura. Então, ele
destroça canetas-tinteiro às dúzias e, horas depois, emerge arruinado da
cama da criação como quem desviou uma avalanche que passou por sua
casa.
Agora, é possível perguntar, que transpiração é essa? O que fez esses
dois mentirosos quase compulsivos começarem a falar a verdade?
Deixe-me erguer minhas placas de novo.
TRABALHO
É bem óbvio que os dois homens estavam trabalhando.
E o trabalho em si, depois de um tempo, impõe um ritmo. O lado
mecânico começa a ruir. O corpo começa a assumir a dianteira. A guarda
abaixa. Então, o que acontece?
RELAXAMENTO
E daí os homens ficam felizes ao seguir meu último conselho:
NÃO PENSE
O que resulta em mais relaxamento e mais espontaneidade e maior
criatividade.
Agora que já o confundi muito, vou parar para ouvir seu grito
desesperado.
Impossível!, você diz. Como é possível trabalhar e relaxar? Como é
possível criar e ficar uma pilha de nervos?
É possível. Isso se faz todo dia, toda semana, todo ano. Atletas fazem
isso. Pintores fazem isso. Escaladores de montanha fazem isso. Zen-budistas
com seus pequenos arcos e flechas fazem isso.
Até eu consigo fazê-lo.
E se até eu consigo fazê-lo, como você provavelmente está resmungando
agora por meio de dentes cerrados, você também pode fazer isso!
Certo, vamos organizar as placas agora. Poderíamos colocá-las na ordem,
de verdade. RELAXAMENTO ou NÃO PENSE poderiam vir antes, ou ao mesmo
tempo, seguido por TRABALHO.
Mas, por conveniência, vamos fazer dessa maneira, com o acréscimo de
uma quarta placa de desenvolvimento:
TRABALHO RELAXAMENTO NÃO PENSE MAIS RELAXAMENTO
Vamos analisar o número um?
TRABALHO
Você está trabalhando, não está?
Ou planeja algum tipo de cronograma para começar assim que deixar este
ensaio de lado?
Que tipo de cronograma?
Algo assim. Mil ou duas mil palavras por dia nos próximos vinte anos.
No início talvez você consiga chegar a um conto por semana, 52 histórias ao
ano, por cinco anos. Você terá escrito e engavetado ou queimado um monte
de material antes de estar confortável com essa média. Talvez você comece
agora e consiga fazer o trabalho necessário.
Pois eu acredito que, no fim das contas, a quantidade tende a resultar na
qualidade.
Como assim?
Os bilhões de esboços de Michelangelo, de Da Vinci, de Tintoretto, os
quantitativos, prepararam-nos para os esboços qualitativos únicos lá na
frente, retratos únicos, paisagens únicas de controle e beleza incríveis.
Um grande cirurgião disseca e redisseca mil, dez mil corpos, tecidos,
órgãos, preparando-se, portanto, através da quantidade, para o tempo em que
a qualidade vai importar — com uma criatura viva sob seu bisturi.
Um atleta pode correr dezesseis mil quilômetros para se preparar para
cem metros.
Quantidade traz experiência. Apenas a experiência pode trazer qualidade.
Todas as artes, grandes e pequenas, resultam da eliminação do
desperdício de movimento em favor da declaração concisa.
O artista aprende como deixar elementos de fora.
O cirurgião sabe como ir diretamente à fonte do problema, como evitar
desperdício de tempo e complicações.
O atleta aprende a conservar energia e aplicá-la ora aqui, ora ali, como
utilizar esse músculo em vez daquele outro.
O escritor é diferente? Acho que não.
Sua maior arte com frequência será o que ele não diz, o que deixa de fora,
sua capacidade de declarar simplesmente, com emoção clara, o caminho
pelo qual ele vai avançar.
O artista precisa trabalhar tanto, por tanto tempo, que o cérebro
desenvolve e vive, sozinho, em seus dedos.
Assim como o cirurgião, cuja mão, por fim, como a mão de Da Vinci,
deve esboçar sinais salvadores de vida na carne do homem.
Assim como o atleta, cujo corpo, por fim, é educado e se torna, ele
mesmo, uma mente.
Pelo trabalho, pela experiência quantitativa, a pessoa se liberta da
obrigação ante a qualquer coisa que não seja a tarefa à frente.
O artista não deve pensar na recompensa crítica ou no dinheiro que
receberá por pintar. Ele precisa pensar na beleza aqui, no pincel pronto para
fluir quando ele o soltar.
O cirurgião não deve pensar em seus honorários, mas na vida pulsando
embaixo de suas mãos.
O atleta deve ignorar a multidão e deixar seu corpo correr a corrida por
ele.
O escritor deve deixar os dedos esgotarem a história de suas
personagens, que, sendo apenas humanas e cheias de sonhos e obsessões
estranhas, ficam felizes em poder correr.
Então trabalhe, trabalhe duro, prepare o caminho para os primeiros
estágios de relaxamento, quando alguém começa a se aproximar do que
Orwell talvez chamasse de Não pense! Como ao aprender a datilografar,
chega o dia quando as letras a-s-d-f e j-k-l abrem um fluxo de palavras.
Assim, não deveríamos desprezar o trabalho nem desprezar as 45 ou 52
histórias escritas em nosso primeiro ano como fracassos. Fracassar é
desistir. Mas você está no meio de um processo de movimentação. Nada de
fracasso até então. Tudo continua. O trabalho está feito. Se for bom, você
aprende com ele. Se for ruim, você aprende ainda mais. Trabalho feito e
terminado é uma lição a ser estudada. Não há fracasso a menos que alguém
pare. Não trabalhar é cessar, contrair-se, enervar-se e, portanto, tomar uma
posição destrutiva diante do processo criativo.
Então, veja, você está trabalhando não pelo trabalho em si, produzindo
não pela produção em si. Se esse for o caso, talvez você devesse jogar as
mãos para o alto, horrorizado, e se afastar de mim. O que estamos tentando
fazer é encontrar uma maneira de libertar a verdade que reside dentro de
todos nós.
Não fica óbvio agora que, quanto mais falamos de trabalho, mais perto
chegamos do Relaxamento?
A tensão resulta de não saber ou desistir de tentar saber. O trabalho, ao
nos dar experiência, resulta em confiança renovada e, por fim, em
relaxamento. De novo, o tipo dinâmico de relaxamento, como a escultura, na
qual o escultor não tem, conscientemente, de dizer aos dedos o que fazer. O
cirurgião não diz a seu bisturi o que fazer. O atleta também não aconselha o
corpo. De repente, um ritmo natural é alcançado. O corpo pensa por si.
Então, de novo, as três placas. Junte-as da forma que você desejar.
TRABALHO RELAXAMENTO NÃO PENSE, antes separadas. Agora, todas as três
juntas em um processo. Pois se alguém trabalha, no fim das contas esse
alguém vai relaxar e parar de pensar.
Porém, trabalhar sem pensar corretamente é quase inútil. Vou me repetir,
mas o escritor que deseja arrancar a verdade maior de dentro de si deve
rejeitar as tentações de Joyce ou Camus ou Tennessee Williams, como se
exibem nas resenhas literárias. Deve esquecer o dinheiro que o espera nas
publicações de massa. Ele deve se perguntar: “O que eu realmente acho do
mundo, o que eu amo, temo, odeio?”, e começar a despejar isso no papel.
Então, por meio das emoções, trabalhando continuamente, por um longo
período, sua escrita se esclarecerá; ele relaxará porque pensa corretamente e
pensará ainda mais corretamente porque relaxa. Os dois momentos serão
intercambiáveis. Por fim, começará a ver a si mesmo. À noite, a pura
fosforescência de suas entranhas lançará sombras pela parede. Por fim a
onda, a mistura agradável de trabalho, espontaneidade e relaxamento serão
como o sangue em seu corpo, fluindo porque precisa fluir, movendo-se
porque precisa se mover ao sair do coração.
O que estamos tentando desvelar nesse fluxo? A única pessoa
insubstituível para o mundo, para a qual não há uma cópia. Você. Como
houve apenas um Shakespeare, um Molière, um dr. Johnson, você é esse bem
precioso, o indivíduo, o homem que todos nós democraticamente
proclamamos, mas que, com muita frequência, fica perdido ou perde a si
mesmo na confusão.
Como alguém fica perdido?
Por meio de objetivos incorretos, como eu disse. Por querer a fama
literária rápido demais. Por querer dinheiro logo. Se pudéssemos lembrar,
fama e dinheiro são presentes que nos são entregues somente depois de
termos entregado ao mundo nosso melhor, nossas verdades solitárias,
individuais. Ora, devemos construir nossa melhor ratoeira, sem considerar
se um caminho está sendo aberto em nossa porta.
O que você acha do mundo? Você, o prisma, a medida da luz no mundo;
ela brilha pela sua mente para lançar uma leitura espectroscópica sobre o
papel em branco, diferente daquela que qualquer outra pessoa em qualquer
outro lugar pode lançar.
Que o mundo arda através de você. Lance a luz do prisma, de um branco
quente, sobre o papel. Faça sua leitura espectroscópica individual.
Então, você, um novo elemento, é descoberto, mapeado, batizado!
Então, a maravilha das maravilhas, você poderá até ser popular nas
revistas literárias e, um dia, ser um cidadão com dinheiro suficiente, ficar
fascinado e feliz quando alguém gritar com sinceridade: “Muito bom!”.
Então, a sensação de inferioridade em uma pessoa com frequência
significa a verdadeira inferioridade em um ofício pela simples falta de
experiência. Por isso, trabalhe, ganhe experiência para se sentir à vontade
com sua escrita, como um nadador boia na água.
Há apenas um tipo de história no mundo. Sua história. Se você escrever
sua história, ela possivelmente poderá ser vendida a qualquer revista.
Tive histórias rejeitadas pela Weird Tales que recuperei e vendi para a
Harper’s.
Tive histórias rejeitadas pela Planet Stories que vendi para a
Mademoiselle.
Por quê? Porque sempre tentei escrever a minha história. Dê o rótulo que
quiser, chame de ficção científica e fantasia, de mistério ou faroeste. Mas, no
fundo, todas as boas histórias são apenas de um tipo, a história escrita por
um indivíduo a partir de uma verdade individual. Esse tipo de história pode
se encaixar em qualquer revista, seja ela a Post ou a McCall’s, Astounding
Science-Fiction, Harper’s Bazaar ou The Atlantic.
Corro aqui para acrescentar que a imitação é natural e necessária para o
escritor iniciante. Nos anos de preparação, um escritor deve escolher esse
campo, no qual ele acha que suas ideias vão se desenvolver
confortavelmente. Se sua natureza de alguma forma se parecer com a
filosofia de Hemingway, é correto que ele imite Hemingway. Se Lawrence é
seu herói, um período de imitação de Lawrence virá. Se os faroestes de
Eugene Manlove Rhodes são uma influência, ela vai aparecer no trabalho do
escritor. Trabalho e imitação andam juntos no processo de aprendizagem.
Uma pessoa impede sua criatividade real quando a imitação fica maior que
sua função natural. Alguns escritores levam anos, outros levam meses antes
de chegarem até a história realmente original dentro de si mesmos. Depois
de milhões de palavras de imitação, quando eu tinha 22 anos, de repente dei
o salto, relaxado, ou seja, para dentro da originalidade, com uma história de
“ficção científica” que era inteiramente “minha”.
Lembre-se, então, de que escolher um campo para escrever é totalmente
diferente de se curvar dentro daquele campo. Se seu grande amor, por acaso,
for o mundo do futuro, é correto que você empenhe suas energias na ficção
científica. Sua paixão impedirá que você se curve ou imite além do ponto da
aprendizagem permissível. Nenhum campo, se amado por completo, pode ser
ruim para um escritor. Apenas os tipos de escrita envergonhados em um
campo podem causar um grande dano.
Por que as histórias mais “criativas” não são escritas e vendidas em
nosso tempo, a qualquer momento? Principalmente, acredito eu, porque
muitos escritores não conhecem essa maneira de trabalhar que discuti aqui.
Estamos tão acostumados com a dicotomia de escrita “literária” em
oposição à “comercial” que não rotulamos ou consideramos o caminho do
meio, o caminho do processo criativo, que é melhor para todo mundo e mais
propício para produzir histórias que sejam agradáveis, da mesma forma, a
esnobes e a escritores por encomenda. Como de costume, resolvemos nosso
problema ou pensamos que o resolvemos ao enfiar tudo em duas caixas com
dois nomes. Qualquer coisa que não se encaixe em uma das caixas não se
encaixará em nenhum lugar. Enquanto continuarmos a fazer e pensar desse
jeito, nossos escritores continuarão presos e submetidos a si mesmos. A
Grande Estrada, o Caminho Feliz, está nesse meio-termo.
Agora — é surpresa? —, falando sério, preciso sugerir que você leia A
arte cavalheiresca do arqueiro zen, livro de Eugen Herrigel. Aqui, as
palavras TRABALHO, RELAXAMENTO e NÃO PENSE, ou palavras como essas,
aparecem em aspectos diferentes e em cenários diferentes.
Eu não sabia nada sobre zen até poucas semanas atrás. O pouco que sei
agora, pois você deve ter curiosidade sobre o motivo de meu título, é que
aqui, de novo, na arte do arco e flecha, muitos anos precisam passar para
que alguém aprenda apenas o ato de puxar a corda do arco e encaixar a
flecha. Daí, o processo, às vezes tedioso e enervante, de preparação para
permitir que a corda e a flecha se soltem. A flecha precisa voar em seu
caminho até um alvo que nunca deva ser considerado.
Não acho, depois desse longo artigo, que preciso mostrar a você, aqui, a
relação entre o arco e flecha e a arte do escritor. Eu já alertei sobre pensar
em alvos.
Instintivamente, anos atrás, conheci a parte que o Trabalho deve ocupar
na minha vida. Mais de doze anos depois, escrevi à caneta, à direita da
minha máquina de escrever, as palavras: NÃO PENSE! É possível me
repreender, a essa altura da vida, por eu ficar contente por ter encontrado
acidentalmente a chancela de meu instinto no livro de Herrigel sobre o zen?
Chegará um tempo em que suas personagens escreverão suas histórias por
você, em que suas emoções, livres da tendência literária e do viés
comercial, explodirão na página e dirão a verdade.
Lembre-se: a trama não passa de pegadas deixadas na neve depois que
seus personagens passaram a caminho de destinos incríveis. A trama é
observada depois do fato em vez de antes. Não pode preceder a ação. É o
mapa que permanece quando uma ação é concluída. É tudo que a trama
deveria ser. É do desejo humano deixar correr, correr e chegar a um
objetivo. Não pode ser mecânico. Só pode ser dinâmico.
Então, abra caminho, esqueça os alvos, deixe as personagens, seus dedos,
corpo, sangue e coração fazerem o trabalho.
Não fique contemplando seu umbigo, mas encare seu subconsciente com
aquilo que Wordsworth chamava de “passividade sábia”. Você precisa ficar
zen para reagir a seus problemas. O zen, como todas as filosofias, seguiu
apenas os rastros de homens que aprenderam por instinto o que era bom para
eles. Todo marceneiro, todo escultor digno de seu mármore, toda bailarina
pratica o que o zen prega sem sequer ter ouvido essa palavra durante toda a
vida.
“Um pai sábio conhece o próprio filho”, deveria ser parafraseado para:
“Um escritor sábio conhece o próprio subconsciente”. E não apenas
conhece, mas deixa falar sobre o mundo como ele e apenas ele o sentiu e
formulou segundo sua verdade.
Schiller aconselhava aqueles que escreviam a “remover as sentinelas dos
portões da inteligência”.
Coleridge punha nestes termos: “A natureza fluida da associação, que o
pensamento retém e conduz”.
Por fim, como leitura adicional para complementar o que eu disse,
recomendo o ensaio “A educação de um anfíbio”, de Aldous Huxley, do
livro Adônis e o alfabeto.
E um livro realmente ótimo de Dorothea Brande, Becoming A Writer;
publicado muitos anos atrás, mas que detalha muitas maneiras pelas quais um
escritor pode descobrir quem ele é e como tirar o material de si para botar
no papel, com frequência por meio de associação de palavras.
Agora fiquei parecendo uma espécie de cultista? Um iogue alimentando-
se de cereais e amêndoas embaixo de uma figueira? Garanto a você que falo
sobre todas essas coisas somente porque há cinquenta anos elas funcionam
para mim. E acho que talvez funcionem para você. O teste verdadeiro está na
prática.
Então, sejamos pragmáticos. Se não estamos contentes com nossa escrita,
talvez valha a pena dar uma chance ao meu método.
Se fizer, acho que talvez você encontre facilmente uma definição da
palavra Trabalho.
E a palavra é AMOR.

1973
… S OB R E A C R IATIVIDADE
SIGA COM PASSOS FELINOS AONDE AS VERDADES
MINADAS VÃO DORMIR

Não se trata de roubar, mas sim de encontrar e guardar para si;


Siga com passos felinos aonde as verdades minadas vão dormir
E detone as sementes ocultas com sutileza
Para que em seu rastro um redemoinho de riqueza
Brote invisível, ignorado, deixado para morrer
À medida que você avança, fingindo não ver.
Em seu retorno pelo caminho selvagem que criou
Encontre todas as coisas jogadas onde as espalhou;
Pequenas e grandes verdades vieram à tona naquele lugar
Por onde você cambaleou sem conseguir notar
Ou assim pareceu. E assim essas minas foram minadas,
No jogo fácil de passo e salto são encontradas,
Mas em geral no passo contínuo, nem sempre no salto.
Prestar atenção é importante, mas nem tanto.
Finja se importar, pareça distraído, ignore a estrada
E as metáforas como gatos atrás da sua risada
Cada um enrodilhado a ronronar, cada um, uma pretensão;
Cada um fera de ouro fino que você escondeu no coração,
Agora invocado adiante, do matagal em colheita
Transformado num imenso elefante que se agita
E tamborila e estala a mente, surpreendente,
Para vislumbrar a beleza, mas ainda ver sua falha vigente.
Então, falha descoberta, como se fosse a verruga da beleza,
Volte às pressas e veja tudo, o todo, a Inteireza.
Isso feito, finja essa perspicácia que não vai guardar para si,
Siga com passos felinos aonde as verdades minadas vão dormir.
O QUE FAÇO SOU EU; POR ISSO EU VIM
para Gerard Manley Hopkins

O que eu faço sou eu; por isso eu vim.


O que eu faço sou eu!
Por isso eu vim ao mundo!
Assim dizia Gerard;
Assim dizia o gentil Manley Hopkins.
Em sua poesia e prosa ele via as Moiras que o privilegiaram
Na genética, depois deixaram que encontrasse seu caminho
Entre as traiçoeiras imagens elétricas que carregava no sangue.
Deus deixa sua Impressão Digital em ti!, dizia ele.
Na hora de seu nascimento
Ele leva a mão ao seu rosto, Ele rodopia e estampa com suaves gestos
Os sulcos e símbolos de Sua alma sobre os olhos!
Mas nessa mesma hora, já nascido, gritando
Declarações perplexas de seu nascimento,
No olhar refletido da parteira, da mãe, do médico
Vê aquela Impressão Digital desaparecer e rarear na carne
Assim, perdida, apagada, você a busca durante a vida toda
E investiga para encontrar doces instruções ali
Feitas quando Deus pela primeira vez circuitou e imprimiu tua vida:
“Vai em frente! Faz isso! Faz aquilo! Faz aquilo outro!
Esse eu é teu! Sê-lo!”
E o que é isso?!, você grita com o peito fervendo,
Não há descanso? Não, apenas a jornada para ser você mesmo.
E mesmo quando a Marca de Nascença desaparecer, com o ouvido em
concha
Agora reduzidas a um suspiro, Suas últimas palavras o enviam ao mundo:
“Nem mãe, nem pai, nem avô és tu.
Não sejas outro. Sejas o eu que assinalei em teu sangue.
Preenchi tua carne contigo. Busca isso.
E, ao encontrar, sejas o que ninguém mais pode ser.
Deixo a ti presentes do Destino mais secreto; não encontra o Destino de
outro,
Pois, se o fizeres, nenhum túmulo será profundo o suficiente para teu
desespero
Nenhum país distante o suficiente para esconder tua perda.
Circum-navego cada célula tua
Tua menor molécula está correta e é verdadeira.
Procura os destinos indeléveis e bons
E raros.
Dez mil futuros compartilham do teu sangue a cada instante;
Cada gota de sangue um gêmeo elétrico clonado de ti.
No ferimento mínimo da mão leem-se réplicas do que planejei e soube
Antes de teu nascimento, depois escondi em teu coração.
Nenhuma de tuas partes que não acolha e esconda
O eu que serás se obedeceres à fé.
O que fazes é tu. Para isso te dei a vida.
Sê-lo. Assim sê o único que é realmente tu na Terra.”
Querido Hopkins. Gentil Manley. Raro Gerard. Nomes tão belos.
O que fazemos somos nós. Por sua causa. Por isso viemos.
O OUTRO EU
Eu não escrevo.
O outro eu
Exige revelar-se a todo instante.
Mas se me viro para encará-lo muito rápido Então
Ele volta sorrateiro para onde e quando
Estava antes de chegar aqui.
Sem querer abri uma fresta da porta
E o deixei partir.
Às vezes um grito-chama o convoca,
Ele deduz que preciso dele,
Então preciso. Sua tarefa
É me dizer quem sou por trás da máscara.
Ele é Fantasma, e eu, fachada
Que esconde a ópera que ele escreve com Deus,
Enquanto eu, totalmente cego,
Espero sem êxtase até sua mente
Esgueirar-se do meu braço ao pulso, à mão, à ponta dos dedos
E, esgueirando-se, encontrar
As verdades que caem da língua
E queimam com ruído,
E tudo que vem do sangue secreto e da alma secreta em solo secreto.
Com alegria
Ele avança sorrateiro para escrever, depois corre para se esconder
A semana inteira até a próxima tentativa de esconde-esconde
Na qual de fato finjo
Que fazer troça dele não é meu fim.
Ainda assim o faço e finjo virar o rosto,
Senão o eu secreto se esconderá o dia todo.
Eu corro e faço jogo fácil.
Um salto descuidado
Que invoca do sono
A fera brilhante, à espreita nas reservas
E na área de caça de quem? Meu fôlego,
Meu sangue, meus nervos.
Mas onde, nessa coisa toda, ele reside?
Em todas as minhas buscas exuberantes, onde se esconde?
Atrás desta orelha como chiclete
Daquela outra como lápis?
Onde esse garoto serelepe
Guarda seu chapéu?
Impossível. Ele nasceu eremita
E assim continua, em reclusão.
Não há motivo, mas me junto a seu jogo, seu ardil,
E o deixo correr à vontade e moldar minha imagem.
À qual dou meu nome e roubo o que é dele.
E tudo porque eu o impeli num espirro
Com o doce ronco da criação.
Será que R. B. escreveu esse poema, esse verso, esse discurso?
Não, o macaco interno, invisível, ensinou a lição.
Sua influência, vestida de minha carne, permanece um mistério;
Não diga meu nome.
Louve o outro eu.
TROIA
Minha Troia estava lá, claro,
Embora as pessoas dissessem: Nem tanto.
O Homero cego está morto. Seu antigo mito
Não vale a pena. Deixe para lá. É melhor não fuçar.
Mas então criei alguns meios
Para coser minha alma terrena
ou morrer.
Eu conhecia minha Troia.
O povo alertou este garoto que era apenas uma história
E nada mais.
Enfrentei o aviso com um sorriso,
Enquanto o tempo todo minha pá
Afundava o sol ajardinado e a sombra de Homero.
Deuses! Não importam!, gritaram os amigos: tolo Homero está cego!
Como pode ele mostrar as ruínas que nunca existiram?
Tenho certeza, disse eu. Ele fala. Eu ouço. Tenho certeza.
Desdenhando seu conselho
Cavei quando todas as costas estavam viradas,
Pois aprendi quando tinha oito anos:
A Ruína era meu Destino, disseram. O mundo chegaria ao fim!
Aquele dia em que entrei em pânico, pensei ser verdade,
Que você e eu e eles
Nunca veríamos a luz do dia seguinte...
Ainda assim o dia veio.
Com vergonha eu o vi chegar, relembrei minha dúvida
E imaginei: o que queriam aqueles profetas fatalistas?
Daquele dia em diante nutri uma alegria particular,
E não deixei que notassem
Minha Troia enterrada;
Pois se notassem, que escárnios,
Zombaria e piadas fariam;
Selei minha Cidade no fundo
De todos aqueles povos;
E, crescendo, cavei cada dia. O que encontrei
E dado como um dom por Homero velho e Homero cego?
Uma Troia? Não, dez!
Dez Troias? Não, duas vezes dez! Três dúzias!
E cada uma mais rica, bela e brilhante que a outra!
Todas na minha carne e sangue,
E cada uma delas verdadeira.
E o que isso significa?
Desenterre a Troia que há em você!
NÃO LEVE RUÍNAS DENTRO DA MENTE
Não leve ruínas dentro da mente
Ou a beleza falha; o sol romano é ofuscante
E a catacumba é seu gélido hotel!
Onde o inferno se revela no pretenso céu.
Atente-se aos tremores e ao dilúvio à vista
Que o tempo logo esconde no sangue do turista
E sai aos cambaleios da casa escondida
À visão em ruínas da Roma perdida.
Pense em sua natureza infeliz, tome cuidado
Os tijolos e ossos de Roma jazem lá, espalhados
Em cada cromossomo e gene contido
Jaz tudo que era ou poderia ter sido.
Todas as tumbas e tronos arquitetados
São em seus ossos à ruína lançados.
Lá o tempo revira toda a vida que cresce
E toda sua escuridão futura conhece,
Não leve essas ruínas internas por onde pisa,
Todo homem triste sabe que deve ficar em casa;
Pois se por acaso sua melancolia embarcar
Para onde tudo se perdeu, sua perda vai aumentar
E toda a escuridão que em si se encerraria
Vai fervilhar. Por isso só viaje com alegria.
Ou, do contrário, em ruínas consumará
Uma morte que já esperava virá,
E todas as cidades de sangue queimando
Não mais sãs e boas, tremerão, despencando
E você já sem enxergar verá
Uma Roma perdida, arruinada. E tu, o que será?
Estátua trincada e restaurada pela luz do meio-dia,
Mas que na meia-noite da alma se refugia.
Então não viaje com o humor contrariado
Ou sem que o espírito esteja ensolarado,
Viajar desse jeito pode custar o dobro,
Quando tanto você quanto o império se perdem em malogro.
Quando a mente traz a catacumba na tempestade,
E tudo em Roma parece mais uma lápide...
Não vá, turista.
Fique em casa!
Fique em casa!
EU MORRO, ENTÃO MORRE O MUNDO
Pobre mundo que não conhece sua ruína, o dia de minha morte.
Duzentos milhões se vão na hora de minha despedida,
Levo esse continente comigo para a sepultura.
São quase todos valentes, inocentes, e não desconfiam
Que se eu afundar eles serão os próximos da fila.
De forma que na hora da morte chegam os Bons Tempos
Mas eu, egoico louco, toco o sino de seu Pior Ano-Novo.
As terras além da minha terra são vastas e iluminadas,
Ainda assim com a mão firme eu apago sua luz.
Assopro o Alasca, duvido da França do Rei-Sol, corto a garganta da Grã-
Bretanha,
Levo a velha Mãe Rússia à loucura num piscar de olhos,
Empurro a China da borda de uma pedreira de mármore,
Derrubo a Austrália e planto sua lápide,
Chuto o Japão para longe. Grécia?, voou rápido.
Farei com que voe e caia, como a verde Irlanda,
Transformado num sonho suarento, levarei espanto à Espanha,
Fuzilarei os filhos de Goya, torturarei os filhos da Suécia,
Destruirei flores e fazendas e cidades com as armas do fim do dia.
Quando meu coração para de bater, o grande Rá se afoga no sono,
Enterro todas as estrelas nas Profundezas Cósmicas.
Então ouça, mundo, esteja alerta, conheça o temor mais puro.
Quando eu ficar doente, nesse dia seu sangue morre.
Comporte-se, e eu fico e permito que viva.
Mas, se não se comportar, retiro o que agora concedo.
Esse é o fim, é tudo. Suas bandeiras estão dobradas…
Se eu for alvejado e derrubado? É o fim de seu mundo.
FAZER É SER
Fazer é ser.
Ter feito não é suficiente;
Entupir-se de tanto fazer: esse é o jogo.
Nomear-se a cada hora pelo que é feito,
Organizar seu tempo no fim do dia
E encontrar-se em atos
Que você não poderia conhecer antes dos fatos
Você cortejou o eu secreto, que tanto precisa de cortejo,
E assim vem à tona,
Mata a dúvida cada vez que pula, avança, segue
Adiante para tornar-se
O eu agora descoberto.
Não fazer é morrer,
Ou deitar-se e mentir sobre tudo
Que talvez você faça um dia.
Pare com isso!
O vazio do amanhã fica
Se ninguém o fizer existir
Com seu modo dinâmico de ver.
Deixe o corpo conduzir o cérebro
O sangue como cão-guia do cego;
Depois pratique e ensaie
Para encontrar o universo do coração-alma,
Saber que ao se mover/ver
Prova o tempo todo: fazer é ser!
TEMOS A ARTE PARA QUE A VERDADE NÃO NOS MATE
Só conhece a Realidade? Pode morrer hoje.
Assim disse Nietzsche.
Temos a Arte para que a verdade não nos mate.
O Mundo é muito para nós.
O Dilúvio continua depois dos Quarenta Dias.
As ovelhas que pastam nos campos longínquos são lobos.
O relógio que tiquetaqueia dentro da cabeça é o verdadeiro Tempo
E à noite enterrará seu corpo.
As crianças aquecidas na cama na aurora vão embora
E, levando seu coração, partirão para mundos que você desconhece.
Assim sendo,
Precisamos da Arte para nos ensinar a respirar
E fazer o sangue circular; aceitar que nosso vizinho é o Diabo,
E a idade e a sombra e os carros que nos atropelam,
E o palhaço que tem a Morte no rosto
Ou o crânio com a coroa do Bobo
Que bate os sinos sujos de sangue e chocalha lamentos
Para repousar num tremor os velhos ossos tarde da noite.
Tudo isso, isso, isso, tudo isso: é demais!
Chega a partir o coração!
E então? Encontre a Arte.
Pegue o pincel. Posicione-se. Um para cá, dois para lá. Dance.
Corra. Tente um poema. Escreva uma peça.
Milton explica melhor do que um Deus bêbado
Por que o Homem trata o Homem desse jeito.
E Melville a matraquear se dedica à tática
De encontrar a máscara por trás da máscara.
E a homilia de Emily D. mostra a anomalia que é o refugo do Homem.
E Shakespeare envenena o dardo da Morte
E abrindo túmulos afia sua arte.
E Poe, quando prediz as marés do sangue,
Constrói com ossos a Arca que pela enchente navegue.
A morte, então, é como dente do juízo doloroso;
Enquanto a Arte arranca a Verdade em ato forçoso,
E mede o abismo que antes lhe servia de casa
Oculto no fundo da sombra, do Tempo e da Causa.
Embora a Lagarta da Borboleta-Monarca nos devore o peito,
Diante da Arte, grite como Yorick: “Agradeço!”.
AGR ADEC IMENTOS

OS ENSAIOS DESTA COLETÂNEA apareceram originalmente nas seguintes


publicações, cujos editores e organizadores merecem agradecimentos.
“A alegria da escrita”. Zen & The Art of Writing. Capra Chapbook
Thirteen, Capra Press, 1973.
“Corra muito, fique imóvel, ou: a coisa no alto da escada, ou: novos
fantasmas de mentes antigas”. How to Write Tales of Horror, Fantasy &
Science Fiction, editado por J. A. Williamson. Writers Digest Books, 1986.
“Como alimentar e manter uma Musa”. The Writer, jul. 1961.
“Bêbado e guiando uma bicicleta”. Introdução a The Collected Stories of
Ray Bradbury. Alfred A. Knopf, 1980.
“Investindo uns trocados: Fahrenheit 451”. Introdução a Fahrenheit 451.
Limited Editions Club, 1982.
“Apenas deste lado de Bizâncio: Licor de dente-de-leão”. Introdução a
Dandelion Wine. Alfred A. Knopf, Inc., 1974.
“O longo caminho até Marte”. Introdução a The Martian Chronicles: The
Fortieth Anniversary Edition. Doubleday, 1990.
“Sobre os ombros de gigantes…” Publicado originalmente como prefácio
a Other Worlds: Fantasy and Science Fiction Since 1939, editado por John
J. Teunissen, University of Manitoba Press, 1980. Reimpresso em edição
especial de MOSAIC, v. XIII, n. 3-4 (primavera-verão 1980).
“A mente secreta”. The Writer, nov. 1965.
“Filmando um haikai em um barril”. Film Comment, nov.-dez. 1982.
“Zen na arte da escrita”. Zen & the Art of Writing. Capra Chapbook
Thirteen, Capra Press, 1973.
NOTAS
1 Famosa marcha de desempregados que rumou de Ohio para Washington, D.C., liderada pelo
empresário Jacob Coxey, em 1894. Coxey alegava que, considerando os integrantes que se juntavam à
marcha no caminho, chegaria à capital com mais de 100 mil homens, porém, quando a marcha alcançou
Washington, havia apenas quinhentos homens. (N.T .)
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2 “Pet rock”, no original, objeto colecionável criado pelo executivo Gary Dahl, que se tornou um grande
sucesso nos anos 1970. Eram pedras lisas vendidas como animais de estimação, que vinham em caixas
de papelão forradas de palha. (N.T .)
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3 “Não é pecado tirar a pele e sair dançando só com seus ossos.” Trecho e título de música de Walter
Donaldson, com letra de Edgar Leslie, lançada em 1929. (N.T .)
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4 Monumentos criados para a Feira Mundial de Nova York, em 1939. (N.T .)


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5 Referência a Anthem Sprinters [Os corredores do hino], história que narra quando Bradbury e sua
esposa corriam do Hino Nacional irlandês (N.E.)
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S OB R E O AUTOR

Ray Bradbury nasceu nos Estados Unidos, em 1920. Escreveu romances,


contos, peças, poesia e roteiros para filmes, mas se tornou famoso com seus
romances visionários. Considerado um dos mais importantes nomes da
ficção científica, vendeu mais de 8 milhões de cópias de seus livros. Morreu
em junho de 2012. Dele, a Biblioteca Azul também publicou Fahrenheit 451
(romance), As crônicas marcianas e Prazer em queimar (contos).
Copyright © 1994 by Ray Bradbury Enterprises
Copyright © 2020 by Editora Globo S.A.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em
qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. — nem apropriada ou
estocada em sistema de banco de dados sem a expressa autorização da editora.

Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no
54, de 1995).

Editor responsável: Lucas de Sena Lima


Assistente editorial: Jaciara Lima da Silva
Preparação: Jane Pessoa
Revisão: Thiago Lins
Revisão de poemas: Ana Guadalupe
Diagramação: Ilustrarte Design e Produção Editorial
Capa: Studio Del Rey
Imagem da orelha: Cortesia de Don Congdon Associates, Inc.

Editora de livros digitais: Cindy Leopoldo


Conversão para e-book: Maria de Fátima Fernandes
Revisão do e-book: XXX

Título original: Zen in the Art of Writing

1a edição impressa, 2020


1a edição digital, XXX de 2020
ISBN: 978-65-XXX-XXXX-X (digital)
ISBN: 978-65-5830-002-1 (impresso)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B79z

Bradbury, Ray, 1920-2012


Zen na arte da escrita / Ray Bradbury ; tradução Petê Rissatti. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Biblioteca
Azul, 2020.
160 p. ; 21 cm.

Tradução de : Zen in the art of writing


ISBN 978-65-5830-002-1

1. Escrita. 2. Comunicação escrita. 3. Escrita criativa. 4. Criatividade (Linguística). I. Rissatti, Petê.


II. Título.
20-65438 CDD: 808.02
CDU: 808.01

Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472

Direitos exclusivos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por


Editora Globo S.A.
Rua Marquês de Pombal, 25
Rio de Janeiro — RJ — 20230-240 — Brasil
www.globolivros.com.br

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