Zen Na Arte Da Escrita - Ray Bradbury
Zen Na Arte Da Escrita - Ray Bradbury
Zen Na Arte Da Escrita - Ray Bradbury
Petê Rissatti
S UMÁR IO
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Capa
Folha de rosto
Sumário
Dedicatória
Prefácio
A alegria da escrita
Corra muito, fique imóvel, ou: a coisa no alto da escada, ou: novos
fantasmas de mentes antigas
A mente secreta
… Sobre a criatividade
Agradecimentos
Notas
Sobre o autor
Créditos
Para minha professora mais admirável, Jennet Johnson,
com amor.
C OMO ES C ALAR A ÁRVOR E DA
VIDA, ATIR AR P EDR AS EM S I
MES MO E VOLTAR A DES C ER S EM
TER OS OS S OS OU O ES P ÍR ITO
PARTIDOS
UM P R EF ÁC IO C OM UM TÍTULO
NÃO MUITO MAIS LONGO QUE O
LIVR O
E agora:
Inventei um novo símile para descrever a mim mesmo nos últimos tempos.
Ele pode ser seu.
1973
C OR R A MUITO, F IQUE IMÓVEL, OU:
A C OIS A NO ALTO DA ES C ADA, OU:
NOVOS FANTAS MAS DE MENTES
ANTIGAS
CORRA MUITO, FIQUE IMÓVEL. É a lição dos lagartos. Para todos os escritores.
Observe quase todo ser vivo e verá a mesma coisa. Saltar, correr, congelar.
Em sua capacidade de partir num piscar de olhos, estalar como um chicote,
evaporar, estar aqui em um instante, não estar mais no próximo, a vida
fervilha na Terra. E quando essa vida não está correndo para escapar, está se
fingindo de estátua para fazer a mesma coisa. Veja o beija-flor, está ali, não
está ali. Como o pensamento que surge e desaparece num estalo, um vapor
de verão; o pigarro de uma garganta cósmica, a queda de uma folha. E onde
isso estava… em um sussurro.
O que os escritores podem aprender com os lagartos, roubar dos
pássaros? Na rapidez está a verdade. Quanto mais rapidamente você falar,
mais agilidade terá para escrever, mais sincero será. Na hesitação está o
pensamento. Na demora vem o esforço por um estilo, em vez do salto para se
dizer a verdade — e este é o único estilo pelo qual vale a pena entrar em
uma ratoeira ou em uma armadilha.
E o que acontece entre corridas e voos? Seja um camaleão mesclado com
tintas, troque cromossomos com a paisagem. Seja uma pedra de estimação,[2]
deite-se na poeira, descanse na água da chuva no barril cheio pela calha que
ladeava a janela de seus avós muito tempo atrás. Seja o licor de dente-de-
leão no frasco de ketchup tampado e com a inscrição à tinta: Manhã de
junho, primeiro dia de verão de 1923. Verão de 1926. Noite de fogos de
artifício. 1927: Último dia de verão. ÚLTIMO DOS DENTES-DE-LEÃO, 1o de
outubro.
E a partir disso tudo, termine com seu primeiro sucesso como escritor, a
vinte dólares por história, na revista Weird Tales.
Como você começará a iniciar o princípio de um tipo quase novo de
escrita para aterrorizar e assustar?
Em geral você tropeça nele. Você não sabe o que está fazendo e, de
repente, está feito. Você não começa a reformar certo tipo de escrita. Ele
evolui a partir de sua vida e dos terrores noturnos. De repente, você olha ao
redor e enxerga que fez uma coisa quase nova.
O problema de qualquer escritor em qualquer área é ficar limitado àquilo
que já foi antes ou ao que está sendo publicado exatamente naquele momento
em livros e revistas.
Cresci lendo e amando as tradicionais histórias de fantasmas de Dickens,
Lovecraft, Poe e, mais tarde, Kuttner, Bloch e Clark Ashton Smith. Tentei
escrever histórias com intensa influência de vários desses escritores e
consegui criar bolinhos de lama de quatro andares, cheio de linguagem e
estilo, que não flutuavam e afundaram sem deixar rastros. Eu era jovem
demais para identificar meu problema, estava ocupado demais imitando.
Eu quase deparei com meu eu criativo no último ano do ensino médio,
quando escrevi uma espécie de longa lembrança do despenhadeiro profundo
de minha cidade natal e meu medo dele à noite. Mas eu não tinha uma
história que combinasse com o despenhadeiro, então minha descoberta da
verdadeira fonte de minha futura escrita foi postergada em alguns anos.
A partir dos doze anos de idade, escrevia ao menos mil palavras por dia.
Por anos, Poe olhava por sobre um ombro, enquanto Wells, Burroughs e
praticamente todos os escritores das revistas Astounding e Weird Tales
olhavam por sobre o outro.
Eu os amava, e eles me sufocavam. Não aprendi como desviar o olhar e,
no processo, não olhava para mim mesmo, mas para aquilo que passava
dentro da minha cabeça.
Somente quando iniciei a descoberta dos truques e dos prazeres que
advinham da associação de palavras que comecei a encontrar um caminho
real através dos campos minados da imitação. Por fim, descobri que, se
vamos pisar em uma mina ativada, que seja a nossa mina. Se for para
explodir, por assim dizer, que seja pelas próprias dores e delícias.
Comecei a fazer breves anotações e descrições de amores e ódios.
Durante meus vinte e 21 anos, circulei por tardes de verão e meias-noites de
outubro sentindo que, em algum lugar, nas estações brilhantes e escuras,
devia haver algo que fosse realmente meu.
Por fim, descobri esse algo em uma tarde, quando tinha 22 anos. Escrevi
o título “O lago” na primeira página de uma história que se finalizou duas
horas depois. Duas horas depois de eu ter me sentado à minha máquina de
escrever em um alpendre ensolarado, com lágrimas correndo até a ponta do
nariz e os pelos da nuca arrepiados.
Por que os pelos se arrepiavam e o nariz escorria?
Percebi que tinha enfim escrito uma história realmente boa. A primeira
em dez anos de escrita. E não era apenas uma história boa, mas era uma
espécie de híbrido, algo que beirava o novo. Não era mesmo uma história de
fantasmas tradicional, mas uma história sobre amor, tempo, lembrança e
afogamento.
Enviei-a para Julie Schwartz, minha agente, que gostou, mas disse que
não era uma história tradicional e provavelmente seria difícil vendê-la. A
Weird Tales rodeou-a, cutucou com uma vara de três metros e, por fim, ora
essa, decidiu publicá-la, embora a história não tivesse a ver com a revista.
Mas precisei prometer que, da próxima vez, escreveria uma boa história de
fantasmas à moda antiga! Eu prometi. Eles me deram vinte dólares, e todo
mundo ficou feliz.
Bem, alguns de vocês sabem o que aconteceu. “O lago” foi reimpresso
dezenas de vezes nos últimos 44 anos. E foi a história que fez vários editores
de outras revistas erguerem os olhos e perceberem o rapaz de pelos
arrepiados e nariz escorrendo.
Será que aprendi uma lição dura, rápida ou mesmo fácil com “O lago”?
Não. Voltei a escrever histórias de fantasma à moda antiga, pois eu era
jovem demais para entender muito de escrita, e durante anos minhas
descobertas passaram despercebidas por mim. Eu estava perambulando por
aí e escrevendo coisas ruins a maior parte do tempo.
Aos vinte e poucos anos, se minha ficção de horror sobrenatural era
imitadora, com uma ou outra surpresa de um conceito e na execução, minha
escrita de ficção científica era horrenda, e minha ficção policial beirava o
ridículo. Eu sofria a influência profunda de minha querida amiga Leigh
Brackett, que eu costumava encontrar todo domingo na Muscle Beach, em
Santa Monica, Califórnia, para ler seus contos de alto nível de Stark on
Mars ou invejar e tentar emular suas histórias de Flynn’s Detective. No
entanto, nesses anos, passei a fazer listas de títulos, anotar longas linhas de
substantivos. Por fim, essas listas eram provocações que traziam o meu
melhor à tona. Eu tateava meu caminho na direção de algo sincero,
escondido sob o alçapão no alto do meu crânio.
A lista era mais ou menos assim:
O LAGO. A NOITE. OS GRILOS. O DESPENHADEIRO. O SÓTÃO. O PORÃO. O
ALÇAPÃO. O BEBÊ. A MULTIDÃO. O TREM NOTURNO. A SIRENE DO NEVOEIRO. A
SEGADEIRA. O PARQUE DE DIVERSÕES. O CARROSSEL. O ANÃO. O LABIRINTO DE
ESPELHOS. O ESQUELETO.
Eu estava começando a ver um padrão na lista, nessas palavras que eu
tinha simplesmente lançado no papel, confiando que meu subconsciente
alimentasse os pássaros, por assim dizer.
Dando uma olhada na lista, descobri meu amor e meu medo antigos
relacionados a circos e parques de diversões. Lembrei, depois esqueci,
então lembrei de novo como fiquei aterrorizado quando minha mãe me levou
pela primeira vez em um carrossel. Acrescentei meus gritos à balbúrdia de
órgão a vapor gritando, mundo girando e cavalos horríveis saltando. Durante
anos não cheguei perto de um carrossel. Quando de fato me aproximei de um
novamente, décadas mais tarde, ele me levou para o meio de Algo sinistro
vem por aí.
Porém, muito antes disso, continuei fazendo listas. A CAMPINA. A ARCA DE
BRINQUEDOS. O MONSTRO. TIRANOSSAURO REX. O RELÓGIO DA CIDADE. O VELHO. A
VELHA. O TELEFONE. AS CALÇADAS. O CAIXÃO. A CADEIRA ELÉTRICA. O MÁGICO.
À margem desses substantivos, tropecei em uma história de ficção
científica que não era uma história de ficção científica. Meu título era “F de
Foguete”. O título publicado foi “King of the Grey Spaces” [Rei dos espaços
cinza], a história de dois garotos, grandes amigos, um eleito para ir à
Academia Espacial, e o outro ficaria em casa. O conto foi rejeitado por
todas as revistas de ficção científica, pois, no fim das contas, era apenas uma
história sobre amizade sendo testada pelas circunstâncias, embora a
circunstância fosse uma viagem espacial. Mary Gnaedinger, da Famous
Fantastic Mysteries, deu uma olhada na minha história e a publicou. Mas,
outra vez, eu era jovem demais para enxergar que “F de Foguete” seria o
tipo de história que me tornaria um escritor de ficção científica, admirado
por alguns e criticado por muitos que observavam que eu não era escritor de
ficção científica, eu era um escritor de “pessoas”, e que se dane!
Continuei fazendo listas que tinham a ver não apenas com noite,
pesadelos, escuridão e objetos em sótãos, mas com brinquedos com os quais
os homens brincam no espaço e com as ideias que encontrava em revistas
policiais. A maioria do material detetivesco que publiquei aos 24 anos nas
revistas Detective Tales e Dime Detective não vale a pena reler. Aqui e ali
dei algumas tropeçadas, e fiz um trabalho quase bom ao me lembrar do
México, que me assustava, ou do centro de Los Angeles durante as revoltas
de Pachuco. Mas precisaria de boa parte de meus quarenta anos para
assimilar o gênero policial/de mistério/suspense e fazer com que ele
funcionasse em meu romance Death Is a Lonely Business [A morte é um
negócio solitário].
Mas voltemos às minhas listas. E por que voltar a elas? Aonde o estou
levando? Bem, se você for escritor ou escritora ou espera sê-lo, listas
parecidas desencavadas do lado torto de seu cérebro talvez o ajudem a se
descobrir, do mesmo jeito que eu me debati até finalmente me encontrar.
Eu começava a percorrer essas listas, escolhia um substantivo e, em
seguida, me sentava para escrever um ensaio-poema-prosa longo sobre ele.
Em algum momento no meio da página ou, talvez, na segunda página, o
poema em prosa se transformava em uma história. Quer dizer, uma
personagem de repente aparecia e dizia: “Aqui estou eu” ou “Aqui está uma
ideia da qual eu gosto!”. E a personagem terminava o conto para mim.
Começou a ficar óbvio que eu estava aprendendo com as minhas listas de
substantivos e que estava aprendendo também que minhas personagens
fariam meu trabalho por mim se eu as deixasse em paz, se eu lhes desse uma
cabeça, ou seja, suas fantasias, seus medos.
Olhei para minha lista, vi ESQUELETO e me lembrei dos meus primeiros
trabalhos de arte na infância. Eu desenhava esqueletos para assustar minhas
primas. Ficava fascinado com aquelas despojadas exibições médicas de
crânios, costelas e ossos pélvicos. Minha música favorita era “Tain’t No
Sin, To Take Off Your Skin, and Dance Around in Your Bones”.[3]
Lembrando meu primeiro desenho e minha música favorita, entrei no
consultório do médico um dia com a garganta inflamada. Toquei meu pomo
de adão, os tendões de cada lado do pescoço e pedi seu conselho médico.
— Sabe qual é seu problema? — perguntou o doutor.
— Qual?
— Descoberta da laringe! — grasnou ele. — Tome uma aspirina. Dois
dólares a consulta, por favor!
Descoberta da laringe! Meu Deus, que bonito! Corri para casa, sentindo
minha garganta, e depois minhas costelas e, em seguida, meu bulbo
raquidiano e minhas rótulas. Minha nossa! Por que não escrever uma história
sobre um homem que fica aterrorizado ao descobrir que, embaixo da pele,
dentro da carne, escondido, existe um símbolo de todos os horrores góticos
na história — um esqueleto!?
A história escreveu-se em poucas horas.
Um conceito perfeitamente óbvio, ainda assim ninguém mais na história
da escrita de contos de horror sobrenatural jamais o havia transformado em
palavras. Mergulhei na máquina de escrever e emergi dela com um conto
novinho em folha, absolutamente original, que estava à espreita embaixo da
minha pele desde que desenhei um crânio em cima de ossos cruzados pela
primeira vez, aos seis anos de idade.
Comecei a ganhar fôlego. As ideias vinham mais rápido agora, e todas
provenientes de minhas listas. Perambulava no sótão de meus avós e no seu
porão. Ouvia as locomotivas no meio da noite uivando pelas paisagens ao
norte de Illinois, e aquela era a morte, um trem funerário levando meus entes
queridos para algum cemitério distante. Lembrei-me das cinco da manhã, das
chegadas do circo de Ringling Brothers, Barnum and Bailey, no raiar do dia,
e de todos os animais em procissão antes do nascer do sol, seguindo para a
campina vazia onde as grandes tendas se erguiam como incríveis cogumelos.
Lembrei-me do Sr. Electrico e de sua cadeira elétrica itinerante. Lembrei-me
de Blackstone, o Mágico, dançando com seus lenços mágicos e fazendo
elefantes desaparecerem no palco da minha cidade natal. Lembrei-me de
meu avô, minha irmã e de várias tias e primos, em seus caixões, para sempre
desaparecidos nas covas, onde as borboletas pousavam como flores nos
túmulos e onde as flores voavam como borboletas sobre as lápides.
Lembrei-me do meu cachorro, perdido por dias, voltando tarde para casa,
em uma noite de inverno, com neve, lama e folhas nos pelos. E as histórias
começaram a pipocar, a explodir daquelas lembranças escondidas nos
substantivos, perdidas nas listas.
Minha lembrança de meu cachorro e de sua pelagem invernal
transformou-se em “O emissário”, a história de um garoto doente e acamado
que manda seu cachorro sair para recolher as estações do ano em sua
pelagem e voltar. Então, uma noite, o cão volta de uma jornada ao cemitério
e traz “companhia” consigo.
Meu título da lista A VELHA transformou-se em duas histórias, uma “Havia
uma velha senhora”, sobre uma senhora que se recusa a morrer e exige que
seu corpo volte da funerária, desafiando a Morte, e a segunda, “Season of
Disbelief” [Estação da descrença], sobre crianças que se recusam a
acreditar que uma velha senhora já fora jovem, até mesmo uma garota, uma
menina. A primeira história apareceu na minha primeira coletânea, Dark
Carnival [Parque de diversões sombrio]. A segunda fez parte de um teste de
associação de palavras que fiz para mim mesmo chamado Licor de dente-
de-leão.
Claro que podemos ver agora (não podemos?) que é a observação
pessoal, a ilusão bizarra, a presunção estranha que compensam. Fiquei
fascinado por pessoas velhas. Tentei resolver seu mistério com meus olhos e
minha mente de jovem, mas me surpreendia o tempo todo ao perceber que,
em um tempo muito distante, eles foram eu, e em algum dia, lá na frente, eu
seria eles. Absolutamente impossível! Ainda assim, havia garotos e garotas
trancados em corpos velhos, uma situação horrenda, um ardil terrível bem
diante de meus olhos.
Fuçando na minha lista, de novo, peguei o título O JARRO, resultado de
minha estupefação ao encontrar uma série de embriões em exposição em um
parque de diversões quando eu tinha doze anos e de novo quando eu tinha
catorze. Naqueles dias distantes de 1932 e 1934, nós, crianças, não
sabíamos de nada, claro, de absolutamente nada sobre sexo e procriação.
Então, é de imaginar como fiquei surpreso quando passei por uma exposição
gratuita no parque de diversões e vi todos aqueles fetos de humanos, gatos e
cães, exibidos em jarros rotulados. Fiquei chocado com a aparência
daqueles mortos não nascidos, e com os novos mistérios da vida que eles
fizeram surgir na minha cabeça mais tarde naquela noite e durante anos.
Nunca falei dos jarros e dos fetos em formaldeído com meus pais. Sabia que
eu havia deparado com algumas verdades e era melhor não as discutir.
Tudo isso veio à tona, claro, quando escrevi “O jarro”, e o parque de
diversões e os fetos expostos e todos os antigos terrores escorreram da ponta
de meus dedos para dentro da minha máquina de escrever. O antigo mistério
finalmente encontrou um lugar de descanso, em uma história.
Encontrei outro título na minha lista, A MULTIDÃO. E datilografando
furiosamente, relembrei uma colisão terrível quando eu tinha quinze anos,
quando corri da casa de um amigo para procurar o estrondo e encontrar um
carro que havia atingido um obstáculo na rua e batido em um poste
telefônico. O carro partiu-se ao meio. Duas pessoas jaziam mortas na
calçada, outra mulher morreu bem quando cheguei até ela com seu rosto
destruído. Outro homem morreu um minuto depois. Outro ainda morreu no
dia seguinte.
Nunca tinha visto nada desse tipo. Caminhei para casa, trombando nas
árvores, em choque. Foram meses até superar o horror daquela cena.
Anos mais tarde, com a lista à minha frente, lembrei uma série de coisas
peculiares sobre aquela noite. O acidente ocorreu em uma interseção
cercada, de um lado, por fábricas vazias e um pátio escolar deserto e, do
lado oposto, por um cemitério. Vim correndo da casa mais próxima, a quase
cem metros de distância. Ainda assim, em instantes, parecia que uma
multidão havia se reunido. De onde tinham vindo todas aquelas pessoas?
Mais tarde, pude apenas imaginar que alguém tinha vindo, de algum jeito
estranho, das fábricas vazias ou, ainda mais estranho, do cemitério. Depois
de datilografar apenas por alguns minutos, me ocorreu que, sim, aquela
multidão era sempre a mesma multidão que se reunia em todos os acidentes.
Eram vítimas de acidentes de anos atrás, condenados a voltar e a assombrar
a cena dos novos acidentes, quando estes ocorriam.
Quando cheguei a essa ideia, a história se finalizou sozinha em uma única
tarde.
Enquanto isso, os artefatos do parque de diversões estavam ficando cada
vez mais próximos, seus grandes ossos começando a se projetar através da
minha pele. Eu estava fazendo digressões em poemas em prosa sobre circos
que chegavam bem depois da meia-noite. Durante aqueles anos, no início de
meus vinte anos, perambulando em um labirinto de espelhos no velho Píer de
Venice com meus amigos Leigh Brackett e Edmond Hamilton, Ed de repente
gritou: “Vamos sair daqui antes que Ray escreva uma história sobre um anão
que paga para entrar aqui toda noite e poder ficar alto no grande espelho de
alongamento!”. “É isso!”, gritei, e corri para casa para escrever “O anão”.
“Preciso aprender a ficar de boca fechada”, disse Ed quando leu a história
na semana seguinte.
Claro, O BEBÊ naquela lista era eu.
Eu me lembrei de um antigo pesadelo. Era sobre nascer. Lembrei-me de
estar deitado em um berço, com três dias de idade, chorando ao saber que fui
cuspido para o mundo; a pressão, o frio, os gritos na vida. Eu me lembro do
peito da minha mãe. Lembro-me do médico, no quarto dia da minha vida,
curvando-se sobre mim com um bisturi para fazer uma circuncisão. Eu
lembrei, eu lembrei.
Troquei o título de O BEBÊ para “O pequeno assassino”. Essa história
entrou em antologias dezenas de vezes. Vivi a história, ou parte dela, desde a
primeira hora da minha vida em diante, e somente me lembrei dela e a
datilografei aos meus vinte e poucos anos.
Eu escrevi histórias baseadas em cada substantivo em minhas páginas e
páginas de listas?
Nem sempre. Mas uma grande parte. O ALÇAPÃO, na lista em 1942 ou
1943, não veio à tona até três anos atrás, como uma história para a revista
Omni.
Outra história sobre meu cão e eu levou mais de cinquenta anos para
emergir. Em “Abençoe-me, padre, porque pequei”, voltei no tempo para
reviver uma surra que dei em meu cão quando eu tinha doze anos e pela qual
nunca me perdoei. Escrevi a história para finalmente examinar aquele garoto
cruel e triste e pôr seu fantasma, e o fantasma de meu cão tão amado, para
descansarem para sempre. Por acaso, era o mesmo cachorro que trouxe a
“companhia” do cemitério em “O emissário”.
Durante esses anos, Henry Kuttner, juntamente com Leigh, foi meu
professor. Ele sugeria autores — Katherine Anne Porter, John Collier,
Eudora Welty — e livros — The Lost Weekend, One Man’s Meat, Rain in
the Doorway — para lermos e aprendermos com eles. Ao longo dessa
trajetória, ele me deu um exemplar de Winesburg, Ohio, de Sherwood
Anderson. Ao terminar o livro, disse a mim mesmo: “Um dia eu gostaria de
escrever uma história que se passe em Marte, com pessoas parecidas”.
Imediatamente fiz uma lista do tipo de gente que eu gostaria de mandar a
Marte para ver o que aconteceria.
Esqueci Winesburg, Ohio e minha lista. Por anos escrevi uma série de
histórias sobre o Planeta Vermelho. Um dia me dei conta de que o livro
estava terminado, a lista completa, e As crônicas marcianas estavam a
caminho da publicação.
Então, é isso. Em suma, uma série de substantivos, alguns com raros
adjetivos, que descrevia um território desconhecido, um país não
descoberto, parte dele Morte, o restante Vida. Se eu não tivesse inventado
essas prescrições para a Descoberta, nunca teria me tornado o arqueólogo e
antropólogo “corvo” que sou. Aquele corvo que procura objetos brilhantes,
carapaças antigas e fêmures deformados das pilhas de ossos do lixão dentro
da minha cabeça, onde se espalham os restos de colisões com a vida, bem
como Buck Rogers, Tarzan, John Carter, Quasímodo e todas as outras
criaturas que me fizeram querer viver para sempre.
Nas palavras da antiga canção da ópera Mikado, eu tinha uma lista
pequena, exceto pelo fato de que era longa, que me levou até o país de Licor
de dente-de-leão e me ajudou a mudar o país de Licor de dente-de-leão
para Marte, e me fez ricochetear para o obscuro território do vinho quando o
trem noturno do sr. Dark chegou muito antes da aurora. Mas a primeira e
mais importante pilha de substantivos foi aquela preenchida com as folhas
sussurrantes ao longo de calçadas às três da manhã e com os cortejos
funerários seguindo ao lado de trilhos ferroviários vazios, e com os grilos
que, de repente, por motivo nenhum, se calavam, e aí era possível ouvir o
coração, desejando não conseguir.
O que nos leva a uma revelação final…
Um dos substantivos em minha lista do ensino médio foi Coisa, ou,
melhor ainda, A Coisa no alto da escada.
Durante a minha infância em Waukegan, Illinois, havia apenas um
banheiro na casa, que ficava no andar de cima. Era preciso subir e percorrer
um corredor escuro até encontrar uma luz e acendê-la. Tentei fazer com que
meu pai deixasse a luz ligada a noite toda, mas era caro. A luz ficava
apagada.
Por volta das duas ou três da manhã, eu precisava ir ao banheiro. Ficava
deitado na cama por mais ou menos meia hora, dividido entre a necessidade
agoniada de me aliviar e aquilo que eu sabia estar me esperando no corredor
escuro que levava ao sótão. Por fim, impulsionado pelo sofrimento, eu
atravessava nossa sala de jantar e entrava naquele corredor, pensando: corra
muito, salte, ligue a luz, mas, aconteça o que acontecer, não olhe para cima.
Se olhar para cima antes de acender a luz, Ela vai estar lá. A Coisa. A
terrível Coisa que espera no alto da escada. Então, corra cegamente; não
olhe.
Eu corria, eu pulava. Mas não conseguia evitar e, no último momento,
sempre piscava e encarava a horrenda escuridão. E ela sempre estava lá. E
eu gritava e rolava escada abaixo, acordando meus pais. Meu pai grunhia e
se virava na cama, imaginando de onde tinha vindo aquele seu filho. Minha
mãe se levantava, me encontrava caído no corredor e subia para ligar a luz.
Ela esperava até que eu subisse ao banheiro e voltasse, para dar um beijo no
meu rosto molhado de lágrimas e colocar meu corpo aterrorizado na cama.
Na noite seguinte, na próxima e na outra ainda a mesma coisa acontecia.
Enlouquecido por minha histeria, meu pai encontrou um velho penico e o pôs
embaixo da minha cama.
Mas eu nunca me curei. A Coisa permaneceu para sempre lá. Somente
quando nos mudamos, quando eu tinha treze anos, me livrei daquele terror.
O que fiz, há pouco tempo, com aquele pesadelo? Bem…
Agora, muito tempo depois, A Coisa está lá no alto da escada, ainda
esperando. De 1926 até hoje, no fim do primeiro semestre de 1986, houve
uma longa espera. Mas, por fim, olhando minha lista sempre confiável,
datilografei o substantivo no papel, acrescentando “A Escada”, e finalmente
encarei a escalada no escuro e o frio do sótão, que permaneceram no mesmo
lugar por sessenta anos, esperando um pedido para que descessem pelas
pontas congeladas dos meus dedos até a corrente sanguínea. A história,
criada a partir das minhas lembranças, foi terminada nesta semana, enquanto
eu ainda escrevia este ensaio.
Deixo você agora no primeiro degrau de sua escada, à meia-noite e meia,
com um bloco de notas, uma caneta e uma lista a ser feita. Invoque os
substantivos, alerte o eu secreto, prove a escuridão. Sua Coisa está
esperando no caminho até as sombras do sótão. Se falar com suavidade e
escrever qualquer antiga palavra que queira saltar de seus nervos para a
página…
Sua Coisa no alto da escada em sua noite particular… pode muito bem
descer até você.
1986
C OMO ALIMENTAR E MANTER UMA
MUS A
NÃO É FÁCIL. Ninguém jamais fez isso de forma constante. Aqueles que tentam
com mais afinco a espantam para dentro da floresta. Aqueles que viram as
costas e saem tranquilos, assobiando baixinho entre dentes, a ouvem
caminhando atrás deles em silêncio, atraída por um desdém adquirido com
cuidado.
Claro que estamos falando da Musa.
O termo caiu em desuso em nossos tempos. Quando o ouvimos agora, é
quase certo de que sorriremos e invocaremos imagens de alguma deusa grega
frágil, vestida com folhas, harpa em mãos, acariciando nossa fronte suada de
escriba.
Então, a Musa é a mais apavorada de todas as virgens. Ela se assusta
quando ouve um som, empalidece quando você faz perguntas, dá meia-volta
e desaparece se você toca seu vestido.
O que a aflige?, você pergunta. Por que ela se encolhe quando a
encaramos? De onde ela vem e aonde vai? Como podemos fazer com que sua
visita dure períodos mais longos? Que temperatura a agrada? Ela gosta de
vozes altas ou baixas? Onde se compra comida para ela, de qual qualidade e
em qual quantidade, e quais são os horários das refeições?
Podemos começar parafraseando o poema de Oscar Wilde, substituindo a
palavra “Amor” por “Arte”.
1961
B ÊB ADO E GUIANDO UMA
B IC IC LETA
B. Berenson
I Tatti, Settignano,
Firenze, Italia
1980
INVES TINDO UNS TR OC ADOS :
FAHREN HEIT 451
EU NÃO SABIA, MAS estava realmente escrevendo um romance que custou uns
trocados. Na primavera de 1950 paguei nove dólares e oitenta centavos em
moedinhas para escrever e terminar a primeira versão de “O bombeiro”, que
mais tarde se transformou em Fahrenheit 451.
Em todos os anos, de 1941 até aquela época, fiz grande parte do meu
trabalho de datilografia nas garagens da família, tanto em Venice, Califórnia
(onde morávamos porque éramos pobres, não porque era o lugar “da moda”
para se viver), ou atrás da casa de condomínio onde minha esposa,
Marguerite, e eu criamos nossa família. Eu era tirado da minha garagem
pelas minhas filhas queridas, que insistiam em ir até a janela dos fundos,
cantando e batendo nos vidros. O pai precisava escolher entre terminar uma
história ou brincar com as meninas. Eu escolhia brincar, claro, o que
colocava a renda familiar em risco. Eu precisava encontrar um escritório.
Não podíamos pagar por um.
Por fim, encontrei o lugar perfeito, a sala de datilografia no porão da
biblioteca da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Lá, em fileiras
ajeitadas, ficavam vinte ou mais antigas máquinas de escrever Remington ou
Underwood, que eram alugadas por dez centavos a cada meia hora. Era só
enfiar a moeda e o relógio começava a tiquetaquear loucamente, e eu
datilografava de forma insana até terminar, antes que a meia hora expirasse.
Portanto, eu tinha dois estímulos para ser o louco da datilografia: as crianças
que haviam ficado em casa e o temporizador da máquina de escrever. Ali,
tempo era realmente dinheiro. Terminei o primeiro rascunho em quase nove
dias. Com 25 mil palavras, era metade do romance que ele se tornaria.
Entre investir as moedinhas e ficar louco quando a máquina de escrever
engripava (pois tempo precioso é desperdiçado!) e tirar e pôr as folhas no
equipamento, eu perambulava no andar de cima. Ali eu caminhava
tranquilamente, perdido de amor pelos corredores e em meio às pilhas,
tocando livros, puxando tomos das estantes, virando páginas, devolvendo as
obras ao seu lugar, mergulhando em todas as coisas boas que são a essência
das bibliotecas. Que lugar para se escrever um romance sobre queimar
livros no futuro, não acha?
Já chega de passado. Que dizer de Fahrenheit 451 nos dias de hoje?
Minha opinião mudou quanto ao que ele me dizia quando eu era um escritor
mais jovem? Se por mudança você quer dizer apenas que meu amor pelas
bibliotecas se ampliou e se aprofundou, a resposta é um sim que ricocheteia
das pilhas de livros e varre o pó de arroz da bochecha da bibliotecária.
Desde que escrevi esse livro, criei mais histórias, romances, ensaios e
poemas sobre escritores do que qualquer outro escritor de que consigo me
lembrar na história. Escrevi poemas sobre Melville, Melville e Emily
Dickinson, Emily Dickinson e Charles Dickens, Hawthorne, Poe, Edgar Rice
Burroughs, e, entrementes, comparei Júlio Verne e seu Capitão Maluco com
Melville e seu marinheiro igualmente obcecado. Rabisquei poemas sobre
bibliotecários, peguei trens noturnos com meus autores favoritos em meio à
natureza selvagem continental, ficando acordado a noite toda, tagarelando e
bebendo, bebendo e tagarelando. Alertei Melville, em um poema, para que
ficasse longe da terra firme (nunca foi sua praia!) e transformei Bernard
Shaw em um robô para poder armazená-lo convenientemente a bordo de um
foguete e acordá-lo na longa jornada para Alpha Centauri, a fim de ouvir
seus prefácios saindo de sua boca e para dentro de meus ouvidos deliciados.
Escrevi uma história da Máquina do Tempo, na qual voltava velozmente ao
passado para me sentar à beira do leito de morte de Wilde, Melville e Poe
para contar do meu amor por eles e aquecer seus ossos nas horas
derradeiras. Mas, chega. Como é possível ver, eu sou enlouquecidamente
louco quando se trata de livros, escritores e dos grandes silos de grãos onde
a perspicácia deles está armazenada.
Há pouco tempo, junto com o Studio Theatre Playhouse, de Los Angeles,
tirei todas as minhas personagens de F. 451 das sombras. O que há de novo,
perguntei a Montag, Clarisse, Faber, Beatty, desde a última vez que nos
encontramos, em 1953?
Eu perguntei. Eles responderam.
Eles escreveram novas cenas, revelaram partes estranhas das
personagens, bem como almas e sonhos não descobertos. O resultado foi
uma peça em dois atos, encenada com bons resultados e, principalmente,
ótimas críticas.
Beatty foi quem mais saiu de debaixo de minhas asas ao responder a
minha pergunta: Como começou? Por que você tomou a decisão de se tornar
o capitão dos Bombeiros, um queimador de livros? A resposta surpreendente
de Beatty veio em uma cena na qual ele leva nosso herói, Guy Montag, a seu
apartamento. Ao entrar, Montag fica pasmo ao descobrir os milhares e
milhares de livros enfileirados nas paredes da biblioteca escondida do
capitão dos Bombeiros! Montag se vira e grita ao seu superior:
— Mas você é o capitão dos Bombeiros! Você não pode ter livros na sua
casa!
Ao que o capitão, com um sorriso leve e seco, retruca:
— Não é crime ter livros, Montag, crime é lê-los! Sim, é isso. Eu tenho
livros, mas não os leio!
Montag, em choque, aguarda a explicação de Beatty.
— Não vê a beleza disso, Montag? Eu nunca os li. Nenhum livro, nem um
capítulo, nem sequer uma página, um parágrafo. Eu brinco com ironias, não
é? Ter milhares de livros e nunca ter aberto um, virar as costas para tudo
isso e dizer: não. É como ter uma casa cheia de belas mulheres e, sorrindo,
não tocar… em nenhuma. Então, veja, não sou um criminoso. Se você me
flagrar lendo um, aí, sim, você vai me entregar! Mas este lugar é tão puro
quanto o quarto branco de uma garota virgem de doze anos de idade em uma
noite de verão. Estes livros morrem nas estantes. Por quê? Porque eu estou
falando. Não lhes dou apoio, nem esperança com mão, olhos ou língua. Não
são melhores que poeira.
Montag contesta:
— Não entendo como você consegue não ficar…
— Tentado? — grita o capitão dos Bombeiros. — Ah, isso já ficou para
trás. A maçã já foi roída e jogada fora. A serpente voltou para a árvore. O
jardim foi dominado por ervas daninhas e ferrugem.
— No passado… — Montag hesita, em seguida continua: — No passado
você deve ter amado muito os livros.
— Touché! — confirma o capitão dos Bombeiros. — Abaixo da linha da
cintura. No queixo. Através do coração. Rasgando as entranhas. Ah, olhe
para mim, Montag. O homem que amava livros, não, o garoto que era louco
por eles, maluco por eles, que escalava as pilhas como um chimpanzé
enlouquecido por eles.
“Eu os comia como salada, os livros eram meu almoço, meu lanche, meu
jantar e o petisco da meia-noite. Arrancava páginas, comia-as com sal,
ensopava-as com gosto, mordiscava as lombadas, virava os capítulos com a
língua! Livros às dúzias, aos montes e aos bilhões. Carregava tantos para
casa que fiquei corcunda por anos. Filosofia, história da arte, política,
ciências sociais, poesia, ensaio, as peças grandiosas, o que você pensar eu
devorava. E então… e então.” A voz do capitão dos Bombeiros desaparece.
Montag provoca:
— E então?
— Ora, a vida aconteceu para mim. — O capitão dos Bombeiros fecha os
olhos para recordar. — A vida. O de costume. O mesmo. O amor que não
deu muito certo, o sonho que azedou, o sexo que degringolou, a morte que
chegou rapidamente a amigos que não mereciam, o assassinato de um ou
outro, a insanidade de alguém próximo, a morte lenta da mãe, o suicídio
abrupto do pai… um estouro de elefantes, o avanço furioso de uma doença.
E em lugar nenhum, lugar nenhum o livro certo para o momento certo, para
enfiar na parede da barragem que estava se rompendo e reter a inundação,
mais ou menos uma metáfora, menos ou mais um símile. E na virada dos
trinta para os 31 anos, eu me recompus, cada osso quebrado, cada centímetro
de carne esfolada, escoriada ou cicatrizada. Olhei para o espelho e encontrei
um velho perdido por trás de um rosto de jovem assustado, vi um ódio ali
por tudo e qualquer coisa, o que quer que fosse eu amaldiçoava, e abria as
páginas de meus lindos livros na biblioteca e encontrava o quê, o quê, o
quê?!
Montag adivinha:
— As páginas estavam vazias?
— Na mosca! No alvo! Ah, as palavras estavam lá, certo, mas elas
passavam pelos olhos como óleo quente, não queriam dizer nada. Não
traziam ajuda, consolo, paz, porto seguro, amor verdadeiro, cama quente,
luz.
Montag pensa nos anos passados:
— Trinta anos atrás… os últimos incêndios de bibliotecas…
— Exatamente. — Beatty assente com a cabeça. — E sem ter emprego,
sendo um romântico frustrado, ou sei lá mais que diabos, me candidatei para
a Primeira Turma de Bombeiros. A primeira a subir os degraus, a primeira
na biblioteca, a primeira no coração da fornalha ardente desses compatriotas
incandescentes, encharque-me com querosene, me entregue a tocha!
“Fim da palestra. É isso, Montag. Sem tirar nem pôr!”
Montag sai, com mais curiosidade do que nunca sobre os livros, a
caminho de se tornar um pária, ser perseguido e quase destruído pelo Sabujo
Mecânico, meu clone robótico da grande fera de Baskerville, de A. Conan
Doyle.
Na minha peça, o velho Faber, o professor residente mas nem tanto,
falando com Montag através da longa noite (por meio de um rádio com fone
de ouvido em forma de concha), é vitimado pelo capitão dos Bombeiros.
Como? Beatty suspeita que Montag está sendo instruído por um dispositivo
secreto, arranca-o de sua orelha e grita para o professor distante:
— Vamos pegar você! Estamos na porta! Estamos subindo! Pegamos!
O que aterroriza Faber, fazendo seu coração destruí-lo.
Tudo ótimo. Tentador depois de tanto tempo. Tive que lutar para não
incluir isso no romance.
Por fim, muitos leitores escreveram contestando o desaparecimento de
Clarisse, imaginando o que teria acontecido com ela. François Truffaut
sentiu a mesma curiosidade e, em sua versão cinematográfica do meu
romance, resgatou Clarisse do esquecimento e a pôs entre o Povo do Livro
que perambulava na floresta, recitando sua litania de livros para eles
mesmos. Senti a mesma necessidade de salvá-la, pois, no fim das contas, ela,
no ápice de sua falação tonta e fascinada pelos famosos, foi responsável de
muitas formas pelo início do questionamento de Montag sobre livros e o que
havia neles. Em minha peça, portanto, Clarisse emerge para dar as boas-
vindas a Montag e trazer um final um tanto mais feliz para aquilo que, em
essência, era uma coisa bem amarga.
No entanto, o romance permanece fiel a seu eu anterior. Não acredito em
interferir no material de qualquer jovem escritor, especialmente quando esse
jovem escritor fui eu mesmo. Montag, Beatty, Mildred, Faber, Clarisse,
todos caminham, se movem, entram e saem como fizeram 32 anos atrás,
quando os escrevi pela primeira vez, por dez centavos a cada meia hora, no
porão da biblioteca da UCLA. Não mudei nenhum pensamento ou palavra.
Uma última descoberta. Escrevo todos os meus romances e histórias,
como você está vendo, em uma grande explosão de paixão prazerosa.
Somente há pouco, dando uma olhada no romance, percebi que Montag tem o
nome de uma empresa fabricante de papel. E Faber, claro, é uma fabricante
de lápis! Meu subconsciente foi muito astuto ao batizá-los assim.
E não ter me contado!
1982
AP ENAS DES TE LADO DE
B IZÂNC IO: L IC OR DE DEN T E-DE-
L EÃO
Waukegan, que visitei com frequência desde então, não é nem mais feia
nem mais bonita que qualquer outra cidadezinha do Meio-Oeste. Muito dela
é verde. As árvores tocam o meio das ruas. A rua na frente da minha casa
antiga ainda é pavimentada com tijolos vermelhos. Então, em que sentido a
cidade era especial? Ora, eu nasci lá. Era minha vida. Eu precisava escrever
sobre ela quando eu achasse adequado:
Waukegan/Green Town/Bizâncio.
Então, Green Town existiu?
Sim, sim mais uma vez.
Havia um garoto de verdade chamado John Huff?
Havia. E esse era seu verdadeiro nome. Mas ele não se afastou de mim,
eu me afastei dele. Mas, um final feliz, ele ainda está vivo, 42 anos depois, e
lembra do nosso amor.
Havia um Solitário?
Havia, e esse era seu nome. E ele andava pela noite em minha cidade
natal quando eu tinha seis anos de idade, apavorava todo mundo e nunca foi
capturado.
O mais importante, o casarão em si, com vovô e vovó, os hóspedes e tios
e tias nele existiram? Isso eu já respondi.
O barranco é real e as profundezas e a escuridão da noite? Era, é. Levei
minhas filhas até lá, poucos anos atrás, temeroso de que o barranco pudesse
ter ficado raso com o tempo. Fico aliviado e feliz em relatar que o barranco
está mais profundo, mais escuro e mais misterioso do que nunca. Mesmo
agora, eu não iria para casa por ali depois de ver O Fantasma da Ópera.
Então, é isso. Waukegan era Green Town e era Bizâncio, com toda a
felicidade que isso significa, com toda a tristeza que esses nomes implicam.
As pessoas lá eram deuses e anões e sabiam-se mortais, e então os anões
caminhavam empertigados para não envergonhar os deuses, e os deuses se
agachavam para fazer os pequenos se sentirem em casa. E, no fim das contas,
não é disso que a vida é feita, da capacidade de dar uma volta e entrar na
cabeça de outras pessoas para observar o tolo milagre condenado e dizer:
ah, então é assim que você enxerga?! Bem, agora preciso me lembrar disso.
Então, aqui está minha celebração da morte e da vida, da escuridão e da
luz, do velho e do novo, do esperto e do estúpido combinados, pura alegria e
terror completo escritos por um garoto que no passado pendia de cabeça
para baixo nas árvores, vestido em sua fantasia de morcego, com doces em
forma de presa na boca, que por fim caiu das árvores quando tinha doze
anos, foi embora, encontrou uma antiga máquina de escrever infantil e
escreveu seu primeiro “romance”.
Uma lembrança final.
Balões de ar quente.
Raramente você os vê nesses dias, embora eu tenha ouvido dizer que, em
alguns países, eles ainda os façam e encham com ar quente com uma
fogueirinha de palha embaixo deles.
Porém, em 1925, em Illinois, nós ainda os tínhamos, e uma das
derradeiras lembranças que tenho de meu avô é da última hora de uma noite
de Quatro de Julho, há 48 anos, quando vovô e eu caminhávamos no gramado
e acendemos uma fogueirinha e enchemos com ar quente o balão de papel em
forma de pera com listras vermelhas, brancas e azuis, e seguramos a
presença angelical tremeluzente nas mãos por um momento final diante do
alpendre cheio de tios, tias, primos, mães e pais, e depois, muito
suavemente, deixamos a coisa que era vida e luz e mistério se desprender de
nossos dedos para o ar estival e passar sobre as casas que começavam a
dormir, entre as estrelas, tão frágil, tão maravilhoso, tão vulnerável, tão
adorável quanto a própria vida.
Vejo meu avô ali, olhando para aquela luz estranha, pairando, meditando
em seus pensamentos silenciosos. Eu me vejo com olhos rasos d’água, pois
tudo havia acabado, a noite havia terminado, eu sabia que nunca mais
haveria uma noite como aquela.
Ninguém falava nada. Todos olhamos para o céu, respiramos fundo e
todos pensamos as mesmas coisas, mas ninguém disse uma palavra. Mas
alguém tinha que dizer, não é? E esse alguém sou eu.
O vinho ainda espera nas adegas lá embaixo.
Minha família querida ainda está sentada no alpendre no escuro.
O balão de ar ainda paira e queima no céu noturno de um verão ainda não
enterrado.
Por que e como?
Porque eu falei que é assim.
1974
O LONGO C AMINHO ATÉ MARTE
6 de julho de 1990
S OB R E OS OMB R OS DE GIGANTES
1980
A MENTE S EC R ETA
NUNCA QUIS IR À Irlanda na minha vida. Ainda assim, lá estava John Huston ao
telefone me convidando a ir ao seu hotel tomar um drinque. No final daquela
tarde, com bebidas nas mãos, Huston me encarou cuidadosamente e disse:
“O que você acha de morar na Irlanda e escrever o roteiro de Moby Dick?”.
E, de repente, estávamos partindo atrás da Baleia Branca; eu, minha
esposa e duas filhas.
Foram sete meses para rastrear, pegar e jogar fora as barbatanas da
Baleia.
De outubro a abril, morei no país onde eu não queria estar.
Eu achava que não tinha visto nada, ouvido nada, sentido nada da Irlanda.
A Igreja era deplorável. O clima era horrível. A pobreza era inadmissível.
Não absorveria nada disso. Além disso, havia o Peixão…
Eu não contava que meu subconsciente me pregaria uma peça. No meio de
toda a umidade péssima, enquanto tentava levar o Leviatã até a praia com
minha máquina de escrever, minhas antenas estavam observando as pessoas.
Não que meu eu desperto, consciente e em movimento não as percebesse,
gostasse, admirasse, considerasse algumas delas amigas e as visse com
frequência, não. Mas, no geral, predominantes eram a pobreza, a chuva e a
sensação de pesar por mim mesmo em uma terra pesarosa.
Com o Bicho registrado em tintas e entregue às câmeras, fugi da Irlanda,
certo de que não havia aprendido nada que não fosse temer as tempestades,
os nevoeiros e as ruas cheias de mendigos de Dublin e Kilcock.
Mas o olho subliminar é astuto. Enquanto eu lamentava meu trabalho
árduo e minha incapacidade, dia sim, dia não, de me sentir tanto como
Herman Melville quanto eu desejava, meu eu interior se mantinha alerta,
farejava fundo, ouvia muito, observava de perto e arquivava a Irlanda e seu
povo para outros momentos quando eu pudesse relaxar e deixá-los
transbordar para minha própria surpresa.
Voltei para casa via Sicília, Itália, onde tomei sol para me livrar do
inverno irlandês, garantindo, de uma vez por todas, que: “Não escreverei
nada sobre os Corredores de Connemara e as Gazelas de Donnybrook”.
Deveria ter me lembrado da minha experiência com o México, muitos
anos antes, onde encontrei não a chuva e a pobreza, mas o sol e a pobreza, e
fui embora em pânico pelo clima de mortalidade e pelo terrível cheiro
adocicado quando os mexicanos exalavam a morte. Por fim, escrevi alguns
pesadelos ótimos a partir daí.
Mesmo assim, eu insisti que Eire, a Irlanda, estava morta, a vigília havia
terminado, seu povo nunca me assombraria.
Vários anos se passaram.
Então, numa tarde chuvosa, Mike (cujo nome real é Nick), o motorista de
táxi, sentou-se fora da visão em minha mente. Ele me cutucou com suavidade
e ousou me lembrar de nossas jornadas conjuntas pelos pântanos, ao longo
do rio Liffey, e dele falando e dirigindo o carro antigo lentamente pela
névoa, noite após noite, levando-me ao Royal Hibernian Hotel, o único
homem que conheci melhor em todo o país verde e selvagem, das dezenas de
Jornadas Sombrias.
— Diga a verdade sobre mim — disse Mike. — Escreva aí do jeito que
foi.
E, de repente, eu tinha um conto e uma peça. E a história é verdadeira e a
peça é verdadeira. Aconteceu daquele jeito. Não podia ter acontecido de
outra forma.
BEM, A HISTÓRIA NÓS entendemos, mas, ora, por que depois de todos esses
anos, fui para os palcos? Não fui, mas voltei para eles.
Fui ator amador e de rádio quando garoto. Escrevi peças quando jovem.
Essas peças, não produzidas, eram tão ruins que prometi a mim mesmo nunca
escrever de novo para os palcos até tarde na vida, depois de primeiro
aprender a escrever melhor todos os outros estilos. Ao mesmo tempo, desisti
de atuar porque temia a política de concorrência que os atores precisam
fazer para trabalhar. Além disso: os contos, os romances me chamaram. E
atendi ao chamado. Mergulhei na escrita. Anos se passaram. Assisti a
centenas de peças. Eu as amava. Mas ainda resistia a escrever Ato I, Cena I
de novo. Então, veio Moby Dick, um momento para refletir sobre ela, e, de
repente, ali estava Mike, meu motorista de táxi, revirando minha alma,
fazendo emergir pedacinhos da aventura de alguns anos antes, perto da
Colina de Tara ou no interior, no outono, na troca de folhagem das árvores
em Killeshandra. Meu antigo amor pelo teatro, com um empurrão final, me
pressionou.
Mas, também se acotovelando e apertando entre presentes gratuitos e
inesperados, chegou uma multidão de cartas escritas por estranhos. Uns oito
ou nove anos atrás, comecei a receber os seguintes textos:
Senhor: Na noite passada, na cama, falei sobre sua história “A sirene no
nevoeiro” para minha esposa.
Ou: Senhor, tenho quinze anos e venci o Prêmio Anual de Recitação no
Gurnee Illinois High, tendo memorizado e declamado seu conto “O som de
trovão”.
Ou: Prezado sr. B.: Temos o prazer de relatar que a leitura dramática de
seu romance Fahrenheit 451 foi recebida calorosamente por dois mil
professores de inglês em nossa conferência na noite passada.
Em um período de sete anos, dezenas das minhas histórias foram lidas,
declamadas, recitadas e dramatizadas em escolas e faculdades em todo o
país. As cartas empilhavam-se. Por fim, elas tombaram e caíram sobre mim.
Virei para a minha esposa e disse: “Todo mundo está se divertindo me
adaptando, menos eu! Como pode?!”.
Na época, era o inverso da antiga história. Em vez de gritar que o
imperador está nu, essas pessoas estavam dizendo, sem dúvida, que um
reprovado em língua inglesa da Los Angeles High School estava totalmente
vestido e era estúpido demais para vê-lo!
Aí, comecei a escrever peças.
Uma última coisa me empurrou de volta ao palco. Nos últimos cinco anos,
peguei emprestado ou comprei uma boa quantidade de livros com ideias de
peças europeias e americanas para ler; assisti ao teatro do absurdo e do mais
que absurdo. No geral, acabei julgando as peças como exercícios frágeis,
com muita frequência tontas, mas, acima de tudo, faltavam nelas os
requisitos principais de imaginação e habilidade.
Considerando essa opinião superficial, é justo pôr minha cabeça na
guilhotina. Se quiser, pode me executar agora.
Não é incomum. A história da literatura é cheia de escritores que, correta
ou erroneamente, sentiam que podiam consertar, melhorar ou revolucionar
certa área. Então, muitos de nós mergulhamos onde nem anjos deixam
rastros.
Tendo ousado antes, exuberante, ousei de novo. Quando Mike saltou da
minha máquina, outros intrusos o acompanharam.
E quanto mais eles fervilhavam, mais se acotovelavam para preencher
espaços.
De repente, vi que eu conhecia mais das misturas e comoções dos
irlandeses do que conseguiria desembaraçar em um mês ou ano de escrita e
deslindá-las. Inadvertidamente, me vi abençoando a mente secreta e
examinando uma vasta agência de correio interior, chamando pelo nome
noites, cidades, climas, animais, bicicletas, igrejas, cinemas, procissões e
fugas.
Mike me pôs em uma caminhada lenta; irrompi em um trote, que logo se
tornou uma corrida de verdade.
As histórias, as peças, nasceram em uma ninhada chorona. Eu precisava
sair do caminho.
A ESTÉTICA DA ARTE engloba tudo, há espaço nela para todo o horror, toda a
delícia, se as tensões que os representam forem levadas aos perímetros mais
extremos e liberadas para agir. Não estou pedindo finais felizes. Peço
apenas finais adequados com base na avaliação adequada da energia contida
e da detonação oferecida.
Enquanto o México me surpreendeu com tanta escuridão no coração do
sol do meio-dia, a Irlanda me surpreendeu com a mornidão do sol envolto
pela névoa que só serve para aquecer as pessoas. Os tambores distantes que
ouvi no México me levaram até uma marcha fúnebre. Os tambores em Dublin
me levaram alegremente pelos pubs. As peças queriam ser peças felizes.
Deixei que elas escrevessem a si mesmas dessa forma, a partir de seus
desejos e necessidades, suas alegrias estranhas e prazeres admiráveis.
Então, escrevi meia dúzia de peças e escreverei mais sobre a Irlanda.
Sabia que há, em toda a Irlanda, grandes colisões frontais de bicicleta e as
pessoas sofrem de concussões sérias por anos depois do acidente? Pois é.
Eu as capturei e as mantive em um ato. Sabia que, toda noite nos cinemas, um
momento antes de o Hino Nacional Irlandês estar prestes a irromper nos
alto-falantes, há uma onda terrível de evasão enquanto as pessoas lutam para
escapar pelas saídas para não ouvir aquela música terrível de novo?
Acontece. Eu vi acontecer. Eu corri com elas. Ora, escrevi esse evento como
uma peça, Anthem Sprinters [Os corredores do hino]. Sabia que a melhor
maneira de dirigir à noite no nevoeiro pelas terras pantanosas do interior da
Irlanda é com os faróis apagados? E dirigir terrivelmente rápido é melhor!
Escrevi sobre isso. É o sangue de um irlandês que move sua língua a dizer
belezas ou o uísque que ele entorna move seu sangue para mover a língua e
recitar poemas e declamar com harpas? Não sei. Eu pergunto a meu eu
secreto, que me responde. Sábio que sou, escuto.
Então, achando-me falido, ignorante, desatento, termino com peças de um
ato, uma peça de três atos, ensaios, poemas e um romance sobre a Irlanda.
Eu era rico e não sabia. Todos somos ricos e ignoramos o fato enterrado da
sabedoria acumulada.
Então, várias vezes minhas histórias e peças me ensinam, me recordam,
que nunca posso duvidar de mim mesmo, de meus instintos, das minhas
entranhas ou do meu subconsciente Ouija de novo.
A partir de agora, espero sempre ficar alerta, educar a mim mesmo da
melhor forma possível. Mas, na falta disso, no futuro, voltarei tranquilamente
à minha mente secreta para ver o que ela observou quando achei que eu a
havia deixado de lado.
Nunca deixamos nada de lado.
Somos taças sendo preenchidas constante e silenciosamente.
O truque é saber como nos inclinarmos para que a beleza se derrame.
MEU TEATRO DE IDEIAS
O TEMPO É MESMO teatral. É cheio de loucura, barbaridades, genialidade,
inventividade; entusiasma e deprime. Diz muito ou pouco demais.
E uma coisa é constante em todos os casos mencionados acima.
Ideias.
As ideias estão em marcha.
Pela primeira vez, na longa e problemática história da humanidade, as
ideias não existem meramente no papel, como as filosofias constam dos
livros.
As ideias de hoje são planejadas, simuladas, projetadas, eletrificadas,
firmadas e soltas para acelerar ou desacelerar os homens.
Tudo isso sendo verdade, como é raro um filme, romance, poema,
história, pintura ou peça que lide com o maior problema de nosso tempo: o
homem e suas ferramentas fabulosas, o homem e seus filhos mecânicos, o
homem e seus robôs amorais que o conduzem, estranha e inexplicavelmente,
à imoralidade.
Pretendo que minhas peças entretenham e sejam imensamente divertidas,
que estimulem, provoquem, aterrorizem e, assim espero, distraiam. Isso, eu
acho, é importante para contar uma boa história, escrever bem as paixões até
o fim. Que o resíduo venha quando as peças terminarem e a multidão for
para casa. Que o público desperte à noite e diga: “Ah, foi isso que ele quis
dizer!”. Ou grite no dia seguinte: “Ele está falando de nós! Está falando do
agora! Do nosso mundo, de nossos problemas, de nossas dores e delícias!”.
Não quero ser um palestrante esnobe, um bom samaritano grandiloquente
ou um reformista tedioso.
Desejo correr, capturar esse tempo, o mais grandioso em toda a história
do homem, para estar vivo, rechear meus sentidos com ele, olhá-lo, tocá-lo,
ouvi-lo, cheirá-lo e esperar que outros corram comigo, perseguindo as ideias
e as máquinas feitas de ideias, e serem perseguidos por elas.
No passado, fui parado muitas vezes por policiais à noite que me
perguntavam o que eu estava fazendo caminhando por aí.
Escrevi uma peça chamada The Pedestrian [O pedestre], que se passava
no futuro, sobre o drama de caminhantes semelhantes nas cidades.
Testemunhei inúmeras sessões espíritas entre televisores e crianças
enlevadas, transportadas e distraídas de todas as idades, e escrevi A savana,
uma peça sobre uma sala de televisão com aparelhos de parede a parede em
um futuro muito próximo que se torna o centro de toda a existência de uma
família aprisionada.
E escrevi uma peça sobre um poeta do ordinário, um mestre do medíocre,
um velho cujo maior feito de memória é relembrar como um Moon, um
Kissel-Kar ou um Buick de 1925 se parecia à época, até o capô, para-brisas,
consoles e placas do carro. Um homem que consegue descrever a cor de
cada embalagem de doce que comprara e o desenho de cada maço de cigarro
que fumara.
Espero que essas peças, essas ideias, postas em movimento agora no
palco, sejam consideradas um produto genuíno de nosso tempo.
1965
F ILMANDO UM HAIKAI EM UM
B AR R IL
Mitch Tuchman
Quando o senhor deu a Clayton 260 páginas, achou que ele filmaria
daquele jeito? Como um roteirista experiente, deveria saber que…
Bem, claro que eu sabia que estava longo demais. Eu sabia que podia
fazer o primeiro corte… mas, daí para a frente, fica mais difícil. Em
primeiro lugar, a gente fica cansado e não consegue ver a coisa com clareza.
Então, depende de o diretor ou produtor, de quem estiver menos cansado que
a gente, ajudar a encontrar os cortes.
1982
ZEN NA ARTE DA ES C R ITA
1973
… S OB R E A C R IATIVIDADE
SIGA COM PASSOS FELINOS AONDE AS VERDADES
MINADAS VÃO DORMIR
2 “Pet rock”, no original, objeto colecionável criado pelo executivo Gary Dahl, que se tornou um grande
sucesso nos anos 1970. Eram pedras lisas vendidas como animais de estimação, que vinham em caixas
de papelão forradas de palha. (N.T .)
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3 “Não é pecado tirar a pele e sair dançando só com seus ossos.” Trecho e título de música de Walter
Donaldson, com letra de Edgar Leslie, lançada em 1929. (N.T .)
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5 Referência a Anthem Sprinters [Os corredores do hino], história que narra quando Bradbury e sua
esposa corriam do Hino Nacional irlandês (N.E.)
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