Pium Eli Brasiliense
Pium Eli Brasiliense
Pium Eli Brasiliense
Pium
I
II
III
IV
Certo dia, de volta da cata em que seu pai trabalhava, depois de levar-lhe a
comida, encontrou-se com o capangueiro, cara a cara.
– Então, inda tá com o vestido feio de algodão?
Não respondeu. Passou por ele de olhos fincados no chão. Vestido de algodão!
Aquilo não era roupa de gente. Rolinha devia ser um homem bom, porque queria que
ela trocasse aqueles panos feios por seda.
Quando se encontrava com qualquer pessoa, mesmo mulheres, sempre lhe
martelava a cabeça a idéia de que estava despida. Aquilo já se transformara num
complexo perigoso.
Sem erguer a cabeça, ela passou uma espiadela nas mãos grossas de Rolinha.
Um frio desesperado lhe percorreu o corpo inteiro. Tinha mais medo de Rolinha do
que de lobisomem. Não sabia se era por causa das coroas de ouro de seus dentes, que
pareciam o diabo pondo fogo pela boca, quando ele a olhava com aquele sorriso
intencional.
Subitamente desatou numa carreira violenta, em direção ao rancho. Em certo
momento, não sabe por que impulso danado, como se um cabresto lhe puxasse a
cabeça, olhou para trás. Rolinha estava parado, sorrindo.
Ritinha pôde ver aquele mesmo sorriso sem-vergonha que a impressionara na
loja de Domingos Fernandes. Rolinha devia ser o diabo em pessoa. Por que a estava
perseguindo daquele jeito? De certo havia dormido de mau modo, mesmo depois do
beliscão de sá Zefa e o anjo da guarda batera as asas de volta ao céu, completamente
desapontado, deixando o diabo agora rondar os seus passos. Era isso, não podia haver
dúvida. Anjo bobo! Por uma coisinha de nada, ficava amuado.
Mais adiante a sertaneja encontrou-se com uma rameira, e ficou apalermada.
Acompanhou com o olhar aquela mulher exótica, de cabelo esquisito, como se
estivesse molhado de açafrão. Sapato amarelo, vestido amarelo, bolsa amarela,
sombrinha amarela, tudo podia ser! Mas aquele cabelo daquela cor... O diabo andaria
solto na zona do Pium?
Esqueceu-se de Rolinha, de suas botas sanfona e de seu sorriso canalha. De
repente correu outra vez. Entrou em casa estabanadamente. Sá Zefa estava tratando da
comida e ergueu-se apressada, limpando as mãos na saia, arregalando os olhos para
Ritinha, que parou à sua frente, ofegante.
– Que diacho é qui essa minina viu qui só chega em casa correndo? O que qui
foi, num-sei-que-diga?
– Mãe! Vi uma muié com o cabelo parecendo cabelo de espiga de milho, mãe!
– Larga de andá reparando essas coisas, trem! O mundo não anda bão nada.
Todo dia aparece cada coisa... qui Deus me livre e guarde!
Ritinha, como sá Zefa, não sabia que as mulheres modernas anoiteciam com o
cabelo preto e amanheciam loiras. Acreditavam que somente os santos de sua devoção
faziam milagres, não água oxigenada ou amoníaco.
Momentos depois entra pelo rancho adentro uma velha conhecida, comadre de
sá Zefa, e foi logo enchendo o ambiente com sua voz meio pigarrenta:
– Cadê esse povo sumido, gente! Agora tão grande, mexendo com cristal...
Houve abraços demorados entre as comadres. Era a comadre Lina que viera
com o marido dar um passeio no garimpo, para vender cereais e comprar miudezas.
Conversa puxa conversa e o tempo ia se esgotando. De sopetão, sá Lina virou-se para
Ritinha, que ficara a um canto, ouvindo a prosa, pois as duas velhas quando se
encontravam era um nunca acabar de casos pra lá e casos pra cá.
– Ritinha tá diferente, comadre!
Aquelas palavras foram mesmo que um empurrão numa cerca podre. Os
nervos de Ritinha já estavam bambos e se desmantelaram por completo. Estava nua
decerto, todo mundo já sabia de sua doença nova, e sabia que o anjo da guarda não
dormia mais com ela.
– Compra outro vestido pra ela, comadre!
Outro vestido! Aquilo não era roupa de gente! Mas como poderia adquirir
daqueles panos bonitos da loja de Domingos, se seu pai mal estava fazendo para a
bóia?
– Também, comadre! – continuou a velha Lina. – Vosmecê tá pensando qui
Ritinha ainda tá minina? É preciso ir pensando no casório, porque ela é ajeitadinha de
tudo. Moço bonito não falta. Mais também com esse vestido feio de algodão é qui não
dá certo.
Vestido feio de algodão! Será que a velha Lina havia conversado com o
homem das botas sanfona? “Então tu quer ficar toda vida com esse vestido feio de
algodão? Não tá vendo logo qui vistido de algodão só quem usa hoje em dia é bobo ou
gente de asilo? Tu não vê logo que essa figa encardida que tá no teu pescoço só minino
qui tá mamando é qui usa?”
A situação piorara com a chegada da comadre de sá Zefa. Ela viera ressuscitar
as palavras de Rolinha na cabeça da mocinha, que não pôde esconder a sua
perturbação, a ponto de sá Zefa fazer uma observação:
– Parece qui ficou matuta depois qui veio pro garimpo, Rita? Essa minina anda
meia isquisita, comadre. No meio de tanto povo viajado, invés de desasná mais, tá é
ficando boba!
– Deixa ela, comadre. Ela ficou meia desajeitada porque eu falei no vestido
dela. Tá muito bão, minha fia, tava era brincando.
Ritinha retirou-se, completamente aturdida. Decerto o homem de botas
sanfona havia falado no seu vestido para a velha. Estava era nua mesmo, isto sim.
Como é que ninguém falava das roupas das outras mulheres?
“Se tu quiser tudo qui tá nesta bodega, é só falá. Dinheiro pouco não falta.”
Novamente as palavras do homem lhe martelavam a idéia.
– Passa o café aí pra comadre, Rita!
A voz de sua mãe veio tirá-la daquele nervosismo desnorteante, e sentiu-se
melhor por ter que fazer alguma coisa. Enquanto preparava o café as lágrimas
pingavam no fogo, uma a uma, e Ritinha sentiu-se aliviada, chorando assim a esmo,
sem saber por quê.
VI
VII
Ritinha caminhava a passos ligeiros, rumo à cata em que seu pai trabalhava. Ia
levar-lhe comida num caldeirão. Comida pobre e desvitaminizada. A carne estava
racionada e por preços exorbitantes.
Ao chegar ali viu um quadro de estarrecer. Um garimpeiro jazia no solo,
ensangüentado, com a cabeça rachada. Os miolos estavam estufados, misturados com
terra e gorgulho. Os demais garimpeiros prosseguiam no seu pesado trabalho. Era
necessário extrair-se muito cristal naquele dia. O dono do serviço precisava entregar
uma partida no próximo avião. Além disso, aquele negócio lhe daria a bagatela de
noventa contos líquidos. A palavra cruzeiro não havia pegado ainda ali.
O morto ficara de um lado, as mãos cruzadas ao peito onde se via um bentinho
de Nossa Senhora Aparecida, preso a um cordão sujo. A cata em que trabalhava estava
já muito profunda e a retirada do cristal era uma operação difícil e que requeria muitos
cuidados e bastante prática.
Numa das tarefas de remover pedras, água e terra do fundo da cata, Marcelino,
um rapaz daquelas bandas, conhecido de Zé do Carmo se achava embaixo, retirando
pedras, que ia passando ao companheiro próximo e este ao de cima, até chegar fora.
A voz de alerta para receber os blocos era contínua e ritmada.
– Epa! Opa! Epa! Opa!
E os calhaus iam passando de mão em mão, percorrendo os diversos degraus
construídos pelos garimpeiros.
Em certo momento um dos homens de cima escorregou, devido a ter-se
partido a base do degrau em que se firmava. A pedra escapuliu-lhe das mãos.
Houve um momento de pânico. Marcelino recebera a pedra em cheio na
cabeça. Morreu instantaneamente. Retiraram-no do fundo da escavação. Estava ali
jogado de um lado. O serviço continuava.
Outro homem fora mandado para providenciar o enterro. Uma rede, uma cova.
Pouco acompanhamento. Os garimpeiros eram numerosos mas não podiam abandonar
o serviço só para acompanhar um defunto, com receio de perderem a diária, pois ali
tudo era adquirido pela hora da morte. Certamente não haveria lágrimas. Flores? Eram
mato pelo campo, perto do cemitério improvisado. Os tatus se encarregariam do resto.
Outro garimpeiro substituirá Marcelino na arriscada missão. Ritinha entregou
o caldeirão a Zé do Carmo, tremendo, sem desviar os olhos de Marcelino.
– Quem é esse, pai?
– Tu não conhece, Rita. É um garimpeiro. Vai para casa.
– Mais como é o nome dele?
– Não adianta. Nome de gente pobre é só pra não misturá com os outro, não
significa nada. Isto é o Marcelino, tu não conhece.
– Como foi que ele morreu?
– Pedra na cabeça. Pra que sabê dessas coisa triste, minina? Vai pra casa. O
coitadinho já morreu, ninguém dá mais jeito. Podia sê qualqué um de nóis.
– Ele tava lá embaixo?
Zé do Carmo sacudiu a cabeça afirmativamente, desembrulhando o caldeirão
que estava envolto num pano de algodão, cuidadosamente lavado.
– E aquele foi pro lugar dele? – indagou mais uma vez a moça.
– Não pode pará o serviço, Rita.
– Mais se ele morre também?
Nesse momento o cozinheiro dava o sinal de que a comida já estava pronta,
batendo fortemente numa enxada velha pendurada num galho de árvore.
Somente Zé do Carmo recebia comida de casa. Os demais faziam suas
refeições ali mesmo, por conta do patrão. Quase oitenta por cento do que ganhavam
ficavam naquelas panelas grandes e latas de querosene vazias, servindo de panelas.
Naquele dia podiam comer mais. Havia um de menos. Marcelino era bom
garfo.
Ritinha estava louca por ver a cara do garimpeiro morto, mas haviam posto um
lenço sujo por cima do rosto ensangüentado do homem. Se não tivesse tanto medo de
almas do outro mundo, puxaria aquele lenço. A vontade de ver a cara do morto era
tamanha que ela começou a dar voltas em torno do cadáver, para ver se o lenço tinha
algum lado erguido. Nada. O pano estava todo empapado de sangue e se agarrara ao
rosto do defunto. Quando havia sentinela na roça, todas as pessoas que iam fazer
quarto ao defunto, ao entrar, depois de jogar água benta no cadáver, descobriam-lhe o
rosto, balançando a cabeça significativamente. Era a tradição.
Ritinha não estava com tanto medo de Marcelino, que não conhecia, como do
lenço sujo. Lenço de outro garimpeiro. Defunto não tinha escrúpulo, não tinha receio
de contágio de doença.
Zé do Carmo comeu apressadamente. Entregou o caldeirão vazio à filha.
Ritinha não conteve a vontade de ver a cara do morto e pediu:
– Tira o lenço pra eu vê a cara dele, pai.
– Pra quê, minina? Não tá parecendo nem cara, virou tudo uma paçoca danada.
– Mais eu queria vê...
– Pra tu ficá com medo? Vai pra casa, Rita. Reza um tiquinho pra alma dele.
Reza pros qui tão vivo também. Vai pra casa.
Ritinha saiu correndo. Passou pela loja de Domingos. Não quis olhar para
dentro. Tinha mais vontade de ver a cara do garimpeiro morto do que as novidades da
loja. Não sabia por que naquele momento estava se lembrando era do lenço de seda
ramado do pescoço do homem de botas sanfona. Seria por causa do lenço pintado de
sangue pregado na cara do defunto?
Já estava muito adiante da loja e não resistiu. Voltou. Esquecera-se de
Marcelino ou melhor, do garimpeiro de cabeça espatifada.
Entrou sem ser pressentida, devido ao grande movimento de sempre. Ali,
porém, era um ambiente onde constantemente havia caras diferentes, trajes diferentes.
Somente ela permanecia a mesma. Nua, metida no meio de tanta gente. Até a velha
Lina sabia disso.
Mas por que apenas sá Lina e o homem de sorriso sem-vergonha haviam
notado o seu vestido de algodão? Ritinha olhava tudo sem nenhuma atenção, pois sua
cabeça era pior do que um pião naquele momento. Estava até zunindo. De repente
sentiu um estremecimento.
Rolinha estava a um canto, olhando para ela, e de seus olhos saíam chispas de
sensualismo. Sorriu, piscou o olho.
Ritinha virou o rosto para o outro lado. Pregou-se ao balcão, como quem se
recostava a uma pessoa para se proteger. Na mão direita segurava o caldeirão. A outra
estava livre, aberta, sobre os rins.
Depois de alguns instantes naquela posição, sentiu qualquer coisa na palma da
mão. Apertou-a com força como se quisesse esmagá-la. Sentiu o chiar do papel de
seda que embrulhava um objeto pequeno. Fechou a mão, não olhou para lado nenhum,
e saiu correndo.
Ao chegar ao rancho, abriu o embrulho. Era um par de brincos. A moça fazia
aquilo com cuidado, porque sua mãe não era brincadeira, e por dá cá aquela palha em
questões de sem-vergonhice, era capaz de dobrar-lhe o relho nas costas. “Não receba
coisa de gente qui não conhece...”
Se sá Zefa descobrisse aqueles brincos era um deus-nos-acuda! Desejaria logo
saber da sua procedência. Arrependeu-se de não haver atirado o embrulho fora, logo
após sair da loja. Sabia perfeitamente que fora o homem descarado que lhe pusera o
embrulho na mão.
Era necessário esconder os brincos em lugar que ninguém descobrisse.
Sua mãe estava atarefada, fazendo umas rendas para vender. O barulho dos
bilros era semelhante ao ruído de máquina de escrever, manejada por um bom
datilógrafo.
A moça saiu sorrateiramente e dirigiu-se para umas catas abandonadas que
ficavam para os fundos do rancho. Iria esconder ali os brincos enfeitiçados que lhe
parafusavam a bola.
Ia aos saltos, tropeçando em blocos de cristal jogados de lado, por não
possuírem valor comercial. Estava presa de um pavor besta, como se fosse ao encontro
do demo numa encruzilhada, dia de Sexta-Feira Santa. Sabia que havia gente que se
encontrava com o diabo todo o ano, na Quaresma. O homem de botas sanfona devia
ser acostumado a isso. Os brincos teriam sido um presente de satanás?
Naquelas escavações largadas, esgotadas até o último pedaço de cristal, depois
de um trabalho contínuo, almas penadas de garimpeiros povoavam de assombrações as
redondezas. Os que acreditavam em aparições ouviam ali gemidos de cansaço,
respiração ofegante sob o peso do trabalho exaustivo, lá pelas caladas da noite.
Ao penetrar num desses buracos, o mais profundo e já habitado por aranhas,
lagartos e sapos, a mocinha soltou um grito de pavor e estacou com os olhos
esbugalhados.
Um homem estava de borco em uma das banquetas com a cara para o lado,
ensangüentado. Formigas e moscas passeavam-lhe pelo corpo, pelos olhos vidrados e
desmesuradamente abertos, pela boca escancarada, aberta talvez num último grito de
desespero ante a presença da morte.
A cabeça apresentava um profundo ferimento feito por machadada, e dois
buracos de faca, à altura dos rins e do pulmão esquerdo, apareciam do paletó branco de
linho, já surrado.
Ritinha pôs-se a correr para casa. Os brincos ficaram jogados perto do
cadáver.
Longe, num boteco imundo, os assassinos bebiam cerveja com o produto do
roubo, realizado à meia-noite. A vítima era um comprador de cristal que já havia feito
bastante dinheiro, e estava disposto a voltar para sua terra natal, São Luís do
Maranhão, onde tinha mulher e filhos.
Conhecedores desse fato, os assassinos convidaram Honorato Grajaú, nome
por que era o morto conhecido, para ver aquela cata velha. Afirmaram-lhe que lá havia
cristal como em nenhum outro lugar, e que os garimpeiros não haviam reparado num
dos cantos onde era o ninho do minério. Honorato Grajaú reclamou a impropriedade
da hora, já bastante avançada, ao que Toncheba, um dos facínoras retrucou:
– Se vosmicê qué qui a gente vai lá com o sol fervendo, tá tudo perdido. Os
garimpeiro vão reclamá. É preciso vê o cristal primero, dispois a gente cata ele é
dinoite mesmo. É um dispotismo de pedra! Só o sinhor vendo.
Grajaú era ambicioso. Foi com os salteadores. Mal desceu o primeiro degrau,
Nico descarregou-lhe forte machadada no crânio. Caiu sem um gemido. Toncheba
tirou a lambedeira calmamente e enterrou-a uma vez nos rins, outra no pulmão
esquerdo do capangueiro.
– Esse aqui nem Deus cum gancho e São Pedro cum garrancho dá jeito nele.
Tira os cobre do home, Nico!
O cinturão de Grajaú, cheio de notas de mil e de quinhentos cruzeiros, foi
retirado sem a menor cerimônia.
VIII
IX
Certo dia surgiu no Pium uma figura que chamou a atenção de todos – o dr.
Souza. Doutor José Linhares Cavalcante Souza. Afirmava ser advogado, especialista
em sindicalização.
Usava chapéu-coco. Antigamente quem usava chapéu-coco era engenheiro.
Agora qualquer garimpeiro aparecia com esse tipo de cobertura na cabeça. Os
cavadores de terra se confundiam com os engenheiros, médicos, advogados,
comerciantes, dentistas e farmacêuticos.
Confundiam-se coisa nenhuma!
Os outros não andavam descalços, maltrapilhos. Usavam botas de diversos
tipos. O dr. Souza trazia botas alinhadas, bem engraxadas, impermeáveis.
– Já enjeitei vários cargos na magistratura – afirmava ele. Tomava um ar todo
empavonado, gozando o efeito de suas palavras na ignorância e na credulidade dos que
o ouviam, e prosseguia. – Um amigo meu, que tem o maior e o melhor escritório de
advocacia em São Paulo, no edifício Martinelli, com sucursais no Rio e em outras
capitais, me convidou para trabalhar com ele, mas quero é ser independente. Para que
estudei? Depois... o meu fraco é sindicalização. Precisamos proteger os trabalhadores
contra a ganância dos exploradores do suor alheio. O homem nasceu para ser feliz, e se
não o é a culpa é toda sua, disse Rui Barbosa.
O dr. Souza ouvira isto de alguém ou lera em alguma parte, mas não sabendo
de quem era tal pensamento, jogou-o nas costas largas de Rui.
Os garimpeiros ficaram boquiabertos. Isto é que era falar bonito e acertado!
Agora sim! Tinham um defensor, um doutor formado, um bamba em questões sociais.
Sindicalização!
Não entendiam a palavra mas era bonita e reboou por todas as catas,
espicaçando a curiosidade dos garimpeiros, dando ferroadas no bestunto daquela gente
rude, vítima de exploradores de toda sorte. Sindicalização!
– Aqui é o dr. Souza, advogado, especialista em sindicalização. – O dr. Souza
estendeu a mão, com ar afetado. Seus olhos varreram a loja num instante.
– O senhor não terá por aí marmelada Colombo e vinho Madeira, do legítimo?
– O dr. Souza gosta de coisa boa, Domingos. Também comida de doutor deve
ser coisa do melhor...
– Isso é exagero do senhor, coronel Pacheco. Na sua mesa é que deve haver do
bom e do melhor. Fazendeiro, comprador de cristal, zebuzeiro...
– Isso é bondade sua. Dinheiro hoje anda vasqueiro. Essa garimpeirada é que
vive atolada na nota, mas bota tudo fora.
– O senhor tem charutos Havana?
– Charuto Havana? – Domingos engasgou, passou os olhos pela loja e, para
não mostrar inferioridade, respondeu sorrindo. – Ainda não temos, doutor, mas já deve
estar vindo por aí. Qualquer hora a gente tem. Já deve ter sido despachado o pedido.
Temos agora somente cigarros Odalisca, serve?
– Bem. Não tendo outra coisa... Quanto custa?
– Dez mil... dez cruzeiros. É barato, neste oco de mundo...
– O senhor é civilizado, acompanha a evolução econômica e social do Brasil.
O povo aqui só diz é mil réis, com exceção também aqui do coronel Pacheco...
O fazendeiro pigarreou, lisonjeado.
– Vamos entrar um pouquinho, doutor. Vai afundando, seu Pacheco. Helena
faz um cafezinho bom. O movimento hoje está pouco, pois a turma ainda não recebeu
a grana. Depois aqui não há perigo da gente deixar negócio sozinho por instantes.
Vamos tomar o moca lá dentro. A casa ainda está mal arranjada, doutor. Não repare. A
gente chegou há pouco tempo e precisa armar qualquer coisa para entrar debaixo. Se a
coisa for bem, faz-se uma casa regular.
O dr. Souza empertigou-se, para arrotar novamente a sua falsa cultura:
– O senhor está até muito bem instalado. Esses garimpeiros é que faz dó.
Vivem em ranchos imundos, coitados. É pena. Vou fazer o possível para tirá-los dessa
situação aflitiva.
– Lena!... – gritou Domingos para dentro da casa.
Helena apareceu. Estava bem arrumada, com um vestido modesto, pois estava
trabalhando. Cumprimentou o dr. Souza e sentiu na palma da mão a pressão do rubi do
anel de grau do advogado sindicalizador.
– José Linhares Cavalcante Souza, um seu criado.
– Helena Fernandes. Como vai, seu Pacheco?
– Meio pedra, meio tijolo, dona Helena. Aí o nosso dr. Souza vai agora fazer
um trabalhão pra esse povo, dona Helena. Os garimpeiros vão ser sindicalizados e vai
ser um progresso danado pra eles.
– Folgo muito em sabê-lo, doutor. Em qualquer parte do mundo surge sempre
um idealista. O senhor por certo já está preparado para enfrentar a reação que virá de
encontro às suas idéias.
– Estou habituado com a luta, minha senhora. No meu tempo de estudante...
Todo doutor tem várias histórias do seu tempo de estudante. Histórias que
fazem rir, outras que arrancam lágrimas, outras heróicas e que granjeiam admiração
para os seus protagonistas.
O dr. Souza não podia fugir à regra. Contava centenas de histórias do seu
tempo de estudante, cada qual de acordo com o ambiente em que se encontrava.
Aquele era um ambiente sério. Precisava impressionar bem a bela companheira de
Domingos Fernandes. Além disso o doutor era dado a conquistas. “Diabo de homem
feliz aquele comerciante caipira!”, remoía ele com os seus botões. “Como é que
conseguira casar-se com uma mulher instruída daquele jeito, bonita um bocado, e que
inspirava respeito pela modéstia, pelo seu ar simples e enérgico?”
– O meu fraco é a sindicalização, minha senhora. Cada louco tem sua mania.
O trabalhador hoje é o centro do interesse nacional, e portanto deve ser encarado pelo
prisma da justiça social. A sindicalização é o caminho mais curto para se atingir um
padrão de vida mais humano!
Essa tirada deveria ser de algum jornal. Não importava. Quem iria ler jornais
naquelas bibocas?
– César Lombroso e Freud (o doutor pronunciava fróid, como qualquer
entendido) são os pioneiros dessa jornada vitoriosa.
O coronel Pacheco sorriu, fazendo um gesto de confirmação com a cabeça.
Domingos continuava a olhar o dr. Souza fixamente, parecendo estar ausente dali.
Helena enrugou a testa, ficou séria. Justiça social, sindicalização, Freud e
Lombroso! O dr. Souza teria bebido?
Depois de concluído o seu curso no colégio Sagrado Coração de Jesus, em
Porto Nacional, ela lera bastante e assimilava muito bem o que lia. Conhecia, por
cima, é verdade, as teorias de Freud e de Lombroso, mas tinha noção perfeita do que
era justiça social. Estava a par das lutas de classes e se inteirava das reivindicações dos
trabalhadores. Aquela salada assim de repente, numa palestra simples, era digna de
nota.
O sindicalizador, notando a preocupação dela, mudou o roteiro de sua prosa,
bruscamente.
– O senhor tem feito bons negócios por aqui, seu Domingos ?
– Assim, assim, doutor. A gente tem algum lucro, mas as mercadorias estão
muito caras e o transporte está cada vez mais difícil.
Seu Pacheco ajeitou-se na cadeira, como se houvesse despertado. Estava com
a idéia desconjuntada, pelo efeito da conversa difícil do dr. Souza.
– Mas há muitos caminhões trafegando para este lado.
– De fato há, mas os choferes estão trazendo pouca carga porque o transporte
de passageiros para o garimpo dá mais resultado. Cobram um preço fabuloso para
carregar um garimpeiro até aqui. Mas assim mesmo minha lojinha vai bem. Pretendo
até aumentar mais o estoque, se Deus quiser.
Helena pediu licença e foi preparar o café. Os três ficaram conversando sobre
vários assuntos, sempre o dr. Souza com a iniciativa. A sua conversa ia muito bem até
certo ponto mas de repente dava como que um solavanco, um tropeção. O doutor
andava com a caixa do entendimento chocalhando os parafusos? Também doutor era
assim mesmo, conforme dizia seu Pacheco. Estudava muito e tinha razão de atrapalhar
as coisas. Uma cabeça pequena para tanta sabedoria era impossível.
Helena trouxe o café. Serviu-o aos três. Depois de esvaziadas as xícaras ela
apanhou a bandeja que havia posto sobre a mesa da sala.
– Aceita mais um pouco, doutor?
– Obrigado, minha senhora. O café bom é como o perfume bom. Usa-se
pouco.
– Bonita imagem, doutor. Obrigado pelo elogio ao café. E o senhor, seu
Pacheco?
– Repito aqui as palavras do dr. Souza...
O advogado sorriu lisonjeado. Helena saiu, conduzindo a bandeja. O dr. Souza
acompanhou-a com um olhar libidinoso, que foi notado por Domingos e pelo coronel
Pacheco. Meio desapontado por ter sido descoberta sua idéia suja a respeito de uma
senhora tão limpa, ele falou de repente:
– Vamos andando, seu Pacheco?
– É cedo ainda.
– Ora, meu amigo. Este “é cedo ainda” significa apenas mera cortesia social.
Diz-se por obrigação convencional, mas os homens conscienciosos sabem que ele
significa satisfação pela partida de quem nos está caceteando.
Que homem! Sabia de tudo! Até adivinhava!
Domingos estava cada vez mais impressionado com a figura do dr. Souza. Não
se cansava de fitar o seu anelão de grau.
Mas por que diabo fazia aquilo? Não estava habituado a encontrar-se com
médicos, engenheiros, advogados mesmo, e contemplar-lhes os anéis? O anel do dr.
Souza tinha qualquer coisa de esquisito, de diabólico, de fantasioso.
O advogado ergueu-se de repente, virou-se para Domingos:
– Bem. Então vamos buscar as minhas coisas. Apresente meus cumprimentos
à dona... bem, ela já vem ali.
Empertigou-se todo, ajeitou o paletó.
– Minha senhora, prazer em conhecê-la. Disponha de um criado, e se for ao
Rio minha casa está às suas ordens.
– O prazer é todo nosso, doutor.
– Senhor Domingos...
– Ainda vamos lá na loja, doutor.
– Ah, é verdade. Os meus cigarros, o vinho e a marmelada. Quando estou em
casa, no Rio, sempre gosto de vinho na mesa. A patroa está lá. Temos apenas um filho
que brevemente será matriculado na Escola Militar.
Seu Pacheco, procurando agradar o dr. Souza, movimentou a língua:
– Escolheu uma carreira pra lá de boa, doutor. O Zequinha, meu filho, já é
quase doutor, mas eu queria é que ele fosse general. A farda é que manda mesmo no
Brasil. Foi pra Belo Horizonte, para Escola de Farmácia.
– Minha senhora, mais uma vez...
– Passe bem, doutor.
Foram para a loja. Seu Pacheco, demonstrando profunda perícia no campo do
tabagismo, fez rapidamente um cigarro de palha. Acendeu.
– O senhor não fuma cigarro de palha, doutor?
– Algumas vezes, quando viajo pelo interior. É muito forte.
– Este fuminho aqui então... cabra que não tiver o peito bom, chega a soluçar.
O dr. Souza apanhou os embrulhos. Ritinha passou pela porta da loja com o
caldeirão de comida. O doutor e o coronel Pacheco só faltaram rasgar-lhe o vestido de
algodão com os seus olhares imorais. Domingos fingiu não perceber a gulodice
depravada dos dois visitantes.
Julgando que o dr. Souza, que havia chegado até a porta para olhar mais o
corpo da sertaneja, já se ia embora, Domingos falou distraidamente:
– Apareça sempre, doutor.
– Quando meus trabalhos m’o permitirem. Vou demorar poucos dias aqui.
Tenho que voltar a Cristalina, onde já preparei o ambiente para minha grande tarefa. O
senhor sabe muito bem que o registro de sindicatos demora um pouco e depende de
cobre, do grosso. A contribuição de Cristalina foi boa, pois pretendo também tratar das
questões de terra ali. Os garimpeiros de lá vão ter terra para trabalhar. Amanhã vai
haver uma segunda reunião de todos os garimpeiros que quiserem fazer parte do
sindicato. Vou ao Rio falar com o ministro do Trabalho. Faço o registro, trato das
questões das minas e volto. Acho que com menos de cinqüenta contos a gente faz o
serviço todo.
Cinqüenta contos? Domingos ficou com o fôlego curto. O coronel Pacheco
deu uma chupada mais forte no palheiro.
– Isto não vai ser nada para os garimpeiros – interrompeu o coronel. – O
resultado que eles vão ter com a sindicalização nem se calcula.
– Bem, seu Domingos. Tire a despesa aqui. Isto para o senhor é canja, está
acostumado com notas de quinhentos...
– Não tenho troco, doutor. Depois o senhor paga.
Logo depois da saída do dr. Souza, Zé do Carmo chegou à loja. Estava com ar
triste e abatido. O enorme chapéu de palha lhe ensombrava o rosto, cuja expressão
denunciava a sua desventura.
– Anda sumido, Zé. Já falou com o dr. Souza? Ele agora vai tratar de melhorar
a situação de vocês. Já foi à primeira reunião que ele fez?
O sertanejo balançou a cabeça negativamente.
– Mas por quê, Zé do Carmo?
– Não sei. Não vou com a cara desse fregueis, não sei pur quê. Impliquei com
ele. Dispois Zefa anda perrengue. Agorinha mesmo Rita me deu a cumida e disse qui
ela sofreu tonteira e caiu. A véia tá meia baquiada, seu Domingo.
– Você deve ver o dr. Souza. Ele é um cavalheiro distinto e sabe lei como
ninguém. Só você vendo.
– É por isso mesmo, seu Domingo. Tenho medo de gente sabida dimais. Os
companheiros ficaro zangado comigo, purque eu não fui nessa bestage. Vida de
garimpeiro é isso mesmo, de tanga, até esticá as canela.
Houve uma breve pausa. Zé do Carmo passeava os olhos pelas prateleiras, de
modo significativo.
– O que você vai comprar, Zé?
– Uns metro de pano pra véia, uns caroço de feijão, umas pedrinha de sal e
uma moiadura de criosena. Os retaio quero coisa barata, seu Domingo, mais qui não
rasgue à toa...
– Pra você tenho um preço especial, Zé. Você sabe disso, não?
– Agradeço muito, seu Domingo.
– Você anda triste, Zé do Carmo.
– Corpo mole, seu Domingo. A gente de uns dia pra cá anda só quebrando o
corpo, uma dor na carcunda qui responde na custela...
– Procure o médico.
O sertanejo fitou Domingos com ar de desaprovação.
– O dotô Alcide? Esse só mexe é cum cristal. Outro dia ele foi chamado pra dá
jeito na fia de cumpadre Tumé. A minina corria tempo panhou sezão. O pessoal foi
deixando, foi deixando, e quando chamou o dotô, já tava morrendo. Ele tacou a agúia
no braço dela, ante dela cabar de fechá os zóio. Também foi só. Sabe quanto ele
cobrou do pessoal? Treis conto! O cumpadre cavou chão pra podê pagá a conta. É
mais barato a gente morrê sozinho, seu Domingo. Bem, seu Domingo. Quando o
patrão soltá os cobre eu lembro do sinhor.
– Não tenha pressa, Zé do Carmo. Desejo que sá Zefa melhore. Como vai a
Ritinha?
Zé do Carmo correu os olhos pelo chão por alguns segundos antes de
responder.
– Tou meio banzeiro cum ela, seu Domingo. Zefa andou me contando umas
coisa... num sei. Ritinha tem andado meia nervosa, meia sem assunto... Acho qui é
coisa de criança. Té qualqué dia, seu Domingo.
– Até logo, Zé do Carmo.
XI
O baile ia varando a noite sem descanso, cada vez mais quente, cada vez mais
encharcado de suor, catingando à cachaça e a sarro.
Um lampião Petromax, pendurado na cumeeira da casa, arregalava o olho para
aquela gente endiabrada que saracoteava pela sala, naquela quadrilha salpicada de um
francês naturalizado, que era uma aberração num meio ignorante como aquele. Havia
até homens dançando com homens.
– Balanciê! Tuuu! Treversê! É mintira!
– Corre o dedo nesse fole, cabra macho! – gritou Aristides, o dono do frege.
O sanfoneiro firmou o queixo no instrumento e apressou o compasso.
A animação recrudesceu. O Petromax, de vez em quando, começava a ficar
empaludado, ia perdendo o fôlego, mas logo lhe davam umas bombadas e ele se
reanimava.
Lá fora a noite isolava o baile do resto do mundo. Essas noites escuras do
sertão eram piores do que velhas alcoviteiras.
Rolinha dançou um pouco e escapuliu sem ser visto. Pegou o fordeco e o
encostou próximo ao rancho de Zé do Carmo. Deu uma buzinada, que mais pareceu
um sujeito enxaguando a garganta.
O garimpeiro apenas se moveu na cama, com o barulho, mudando de posição.
Estava cansado demais para entender o significado daquela buzina fora de hora.
Sá Zefa simplesmente parou de roncar, engoliu a babeira, e começou a
ressonar santamente, sonhando que estava lavando roupa numa afobação anormal,
enquanto Zé do Carmo a chamava para ajudá-lo na contagem de um disparate de
dinheiro, que um molequinho de asa de borboleta havia trazido para eles, numa
carrocinha de ouro.
Ritinha disparou a tremer. Parecia que era um novo ataque de sezão. Até
aquela hora não havia conseguido dormir. As palavras do capitão, quando olhava o
cadáver de Grajaú, estavam pregadas à sua cabeça como piolhos, cutucando em
diferentes lugares. E os brincos? “Eu pego essa serelepe, pego mesmo...”
Levantou-se devagarinho. Chegou até a porta do rancho, isto é, ao que
convencionalmente se chamava de porta, pois era apenas uma esteira velha que ia e
vinha, submissa à inconstância do vento.
Deu uma olhadela. Mesmo na escuridão, pôde ver o braço de Rolinha
acenando. Parecia um pêndulo diabólico, marcando na treva uma hora fatal.
Aproximou-se do fordeco, empurrada por qualquer coisa que lhe era
desconhecida. Rolinha atirou para um lado o cigarro já chiando na saliva. Era o
décimo que havia fumado enquanto esperava. Começou a falar, cochichando.
– O capitão falou agorinha mesmo qui vem atrás de ti, por causa da morte do
Grajaú. Também tu é muito minina. Pra que foi jogar os brinco logo ali? O capitão
indagou daqui e dacolá e descobriu qui os brincos era teu. Logo que ouvi ele deixar
escapulir isso, corri logo para te falar pra você. Tenho uma tia em Anápolis. Se tu
quiser eu levo você pra lá. Lá tu fica garantida. Não diga nada pra ninguém seu, não;
dá porqueira no fim. Vamos logo daqui que é milhó.
Ritinha nada falava. Apenas tremia. Era um caniço bambo açoitado pelo vento
daquela noite muito preta. Tremia de bater queixo.
Rolinha ajudou-a a subir no carro, que momentos depois furava a noite,
espirrando e bufando pela estrada poeirenta.
– Balanciê! Tuuu! Traversê!
– Troquê de dame!
Se não existissem sanfona e viola, a vida do sertão seria um verdadeiro
purgatório. Os sertanejos desabafam suas mágoas pela voz fanhosa das sanfonas e pelo
repinicar das violas, nas noites de festança.
Aristides deixava extravasar a sua alegria naquela noite porque sua cata soltara
cristal fartamente. Estava às portas da riqueza. Por isso dera aquela festa a seus amigos
e companheiros de trabalho.
Dinheiro de garimpeiro saía da terra com dificuldade, mas não suportava a luz
do sol, desaparecia logo.
– Tá fazendo muita poeira, Aristide!
– Agoa essa casa, gente!
– Quem vai no corgo buscá água? Quem vai?
– Casa de festa na Bahia velha se agoa é cum cerveja, negrada!
– Manda buscá quantos saco de cerveja quiser, cabroeira!
– Adonde? Adonde tem cerveja?
– Seja no rabo da vó! Manda buscá essa cerveja, corja de gente mole. Não
danço com poeira!
O sanfoneiro foi reanimado com mais um gole de conhaque de alcatrão.
Achava-se gripado, e um litro dessa bebida já estava desprezado debaixo de sua
cadeira, completamente seco.
Momentos depois, ao invés da poeira, havia lama pela casa. Cada garimpeiro
empunhava uma garrafa de cerveja, arrancava a tampa com os dentes, quando os tinha
bons, ou apenas quebrava o pescoço das garrafas pelos portais. Bebiam a metade e
despejavam o resto na sala.
A fuzarca se prolongou até o dia seguinte, lá pelas sete horas da manha.
Estacou de repente, quando o sanfoneiro, já bastante encharcado do antigripal,
foi amolecendo no compasso, começou a dar notas em falso e... bumba!
Afrouxou os braços e começou a roncar com a cabeça recostada ao fole do
instrumento.
– Sanfoneiro fidamãe!
– Cadê essa musga, gente!
– Espia essa disgrama roncando feito um capado!
– Deixa o disgraçado, Tunico! Tu pensa qui todo mundo tem bucho igual a ti?
Tacaram trem misturado no pobre! Deixa ele roncá!
Aristides roncava também a um canto, escornado num banco, ensapatado e
engravatado. Mal tivera tempo de tirar o paletó, já dormente pela bebida.
Quando se levantou, à tarde, é que foi pensar no acontecido. Procurou
reconstituir os fatos da noite anterior, como quem quisesse fazer uma colcha de
retalhos e não soubesse onde estavam os pedaços de pano para isso.
Levantou-se como se estivesse aprendendo a caminhar de novo, firmando-se
pelas paredes, até encher uma cuia d’água com que procurou desfazer o azedume da
cara molhando bem a cabeça. Isto lhe produziu um efeito benéfico, como se fosse uma
cola que conseguisse unir novamente os pedaços de seu corpo, que estava em
frangalhos.
Acordou o sanfoneiro, de maus modos. Tinha vontade era de rasgar a sanfona
a pontapés, depois vazar o bucho do sanfoneiro também. Mas não valia a pena estragar
a sanfona à toa, quando ela estava era grudada na sua cabeça. Ressaca dos diabos!
Os ruídos daquela festança endemoninhada haviam dormido na sua cabeça e
logo pela manhã acordaram também, e ficaram numa insistência irritante. O resto do
corpo ficara quase morto até à tarde, quando resolveu levantar-se. Pegou do resto dos
cobres e pagou o serviço do sanfoneiro. Ao sair, o homem lhe disse, com uma
simplicidade que até dava vontade de matar!
– O sinhor não qué ir ali em baixo pra rebatê a ressaca, patrão?
Rebater a ressaca! Que fosse pros diabos com aquela sanfona nojenta!
– A festa foi só ontem. Vá beber sua pinga na baixa da égua, que vou tratar
dos meus negócios!
Mandou saber das contas que havia feito por todos os cantos. Seis mil e alguns
miúdos! Tudo feito a bico de pena.
Fez as contas do cristal que poderia vender. Dava somente quatro mil e alguns
centavos! Sua mulher estava doente em Anápolis, no Hospital Evangélico, onde os
médicos lhe haviam rasgado o bucho para retirar o apêndice velho, quase para estourar
de podre. Para cavar a barriga da mulher, coisa feita em poucos minutos, os médicos
cobrariam um absurdo, e agora ele teria de cavar chão sem descanso para pagar aquela
brincadeira de mau gosto.
Dinheiro de garimpeiro não pregava no bolso, escapulia imediatamente.
Estava num dilema chato. Ou nunca mais beberia cachaça, ou entraria num pileque
constante, para fugir a todas as suas responsabilidades de chefe de família desajuizado.
Por que não aceitara o convite do sanfoneiro? Eram da mesma laia, não havia dúvida.
A diferença era apenas que o músico não tinha nenhuma responsabilidade, não tinha
mulher nem filhos e vivia de forrobodó em forrobodó, dormindo pelos cantos, cheio de
pinga e abraçado com o instrumento, único meio de vida que possuía.
Ele, porém, era diferente. Tinha um nome a zelar. Efetivamente estava se
tornando um patife de marca maior naquele lugar depravado. Antes de ir para ali, na
ocasião em que mexia com tropas, não se metia naquelas bagunças. Mas quem fosse
ter preconceitos num lugar daqueles, corria risco até de apanhar, ou ficar como um
leproso, de quem se afastariam na certa.
O ruído da festa, aos poucos, se afugentava de sua cabeça, e ele agora estava
louco de raiva da mulher. Acostumada a comer paçoca a semana inteira, fora inventar,
logo naquela ocasião em que ele começava a ajeitar o pé de meia, a enganchar um
caroço de quiabo no demônio daquele pedaço de tripa vagabundo, que só servia para
tirar o gosto de um pobre mortal!
Pela casa toda recendia uma catinga de coisa azeda tão forte que até engulhava
o estômago mais resistente. A cerveja derramada, a cusparada pródiga por todos os
cantos, os tocos de cigarros, tudo isso concorria para dar à cara do ex-anfitrião a
máscara de uma angústia irremediável, de arrependimento tardio, de nojo da vida.
XII
A noite já ia alta, e Domingos pensava no tio Januário, que viera somente dar-
lhe um beliscão na memória, avivando-a e atirando-a, aos trambolhões, para uma
época já bastante empoeirada.
Quem voltava ao passado era como quem procurava uma jóia num montão de
pedras. Quantos anos já estavam amontoados!
Lá aparecia o tio Januário, trazendo para Porto Nacional uma tipografia, a fim
de montar um jornal. No dia da chegada do bote, que trazia o modesto prelo de Belém
do Pará, houve festança grossa, recheada de discursos e banquetes.
Januário Batista foi tachado de “o farol do progresso local”, a “encarnação do
espírito de Gutenberg”, e um padre, terminando o seu laudatório, atirou à cara do
homenageado um latim bem decorado, que alguém traduziu depois: “Glória a Deus
nas alturas, e paz na terra aos homens de boa vontade!”
No dia da circulação do primeiro número de O Libertador todo mundo o
queria ler. Quem era analfabeto pedia a outra pessoa letrada para o ler em voz alta. O
jornalzinho se afundara pelas fazendas, pelas roças, alastrando-se pelas cidades
vizinhas. Januário Batista era o homem do dia. Dona Corina estava orgulhosa de seu
marido, apesar de ser uma inteligente analfabeta.
– Isto é que é baiano de coco sadio – dizia ela às amigas. – Home qui faz
jornal é mais home qui os outro, ninguém duvida!
As amigas sorriam amarelas, com inveja da felicidade de Corina. Como era
bom ter um marido jornalista!
Mais tarde, porém, Januário meteu-se na política. Como era cabra
destabocado, ficou do lado da oposição.
– Nada de cambalachos! A posição do jornalista é ao lado do povo!
Artigos e mais artigos contra os chefes dominantes, em defesa do povo
espoliado. O homem entusiasmou-se tanto que começou a entrar na vida privada, cheia
de sujeiras inomináveis, de alguns elementos que estavam trepados no poleiro.
– É preciso puxar o rabo dessa canalha! Quem desejar saber de minha vida que
vá na Bahia fazer indagações. Sou um homem limpo, graças a Deus. Essa corja é que
tem rabo grosso. Não tenho nada atrás de mim que me envergonhe. Sou baiano velho
de vida sem bandalheira, sempre vivi de meu esforço.
É verdade que ele tinha uma vida limpa, mas os seus artigos cada vez mais se
apimentavam, cortavam como navalha.
– Você precisa comprar um 38 bom, Januário. Um homem prevenido vale por
dez. Você sabe que aqui já sumiu muita gente que quis se meter com esse povo.
– Qual 38, qual nada! O homem que não tem rabo e é idealista vale por cem!
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
– Você está se sentindo mal hoje, Lena? Não esconda nada, por favor. Pode
ser a chegada do momento que tanto esperamos.
– Não se aflija, Domingos. Não há de ser nada. Apenas mal-estar, um pouco
de tontura... Vou repousar um pouco.
Desde cedo, pela manhã, ela sentira novidades, mas se conservara calada para
não perturbar o marido nos negócios. Domingos, porém, lhe notara o ar de sofrimento
recalcado.
Helena foi para o quarto e Domingos correu imediatamente para chamar dona
Inhalica, que servia como parteira em casos de emergência.
A velha veio e foi logo tratando dos preparativos para o caso, numa tagarelice
descomunal. Domingos foi até o quarto e, à entrada, encontrou o olhar angustiado da
esposa, como a interrogar-lhe se era necessário sofrer tanto para chegar à ventura de
ser mãe.
Segurou-lhe as mãos, limpou o suor frio que lhe escorria pela testa.
– Não se aflija, querido. Tenho esperanças de ser feliz. Vá ajudar dona
Inhalica em alguma coisa, do contrário ela ficará atarantada, sem saber onde estão os
objetos de que necessita.
– Quero ficar junto de você, Lena.
Enquanto a velha lavava cuidadosamente uma bacia, Domingos atiçava o fogo
para que a água fervesse depressa.
– Se a festa demorar muito, eu sei de muita simpatia que ajuda a resolver o
negócio logo. Quem me ensinou essas coisa foi a defunta minha vó, que Deus tenha na
sua glória. Deixa aí de mão seu chapéu, um botão de ceroula e a chave da porta. Se
precisar, é só pôr o chapéu na cabeça dela, ela segura a chave, e a gente joga o botão
debaixo da cama. É tiro e queda!
Domingos passeava agitado de um lado para outro, inteiramente alheio à
conversa de dona Inhalica. De súbito um gemido longo veio de dentro do quarto. A
velha correu para lá, mas Domingos ficou pregado ao chão, indeciso e emocionado.
Foi para a loja, sem coragem de entrar no quarto, pois estava perseguido por
um pressentimento tremendo. Não conseguiu atender com precisão a dois fregueses
que ali apareceram. Encorajou-se e resolveu fechar a loja e ir para junto da esposa,
àquele momento mais necessitada do conforto de sua presença.
Quando se dirigia para o quarto, esbarrou-se com dona Inhalica que vinha de
olhos esbugalhados.
– Diz que tem hoje aqui um doutor formado, vai chamar depressa!
Domingos abriu a boca para perguntar qualquer coisa, mas as palavras lhe
engancharam na garganta. Antes que pudesse falar, dona Inhalica gritou mais uma vez.
– Vai depressa! Dona Helena tá dando uns ataque esquisito! Vai dipressa, que
eu cuido dela!
Domingos saiu correndo, numa agitação descomunal, para procurar o médico.
Era o dr. Alcides que estava por lá naquela ocasião. Encontrou-o fechando o negócio
de uma partida de cristal. Nem levantou os olhos para ver a fisionomia torturada de
quem lhe falava com aquela voz aflita.
– Doutor, peço-lhe a bondade de ir lá em casa ver minha esposa que está quase
à morte com um parto trabalhoso. Este menino aqui leva o senhor lá, pois preciso
voltar a toda pressa.
– A que horas começou isto?
– Não faz muito tempo, mas ela está muito mal.
– Não seria melhor esperar mais um pouco? Parto é assim mesmo,
especialmente o primeiro.
– Preciso do senhor lá, doutor!
– Vou dentro de poucos instantes. Quero conferir estas pedras, pois preciso
regressar amanhã para casa.
Domingos voltou mais preocupado ainda. Nem respondia às perguntas dos
amigos que o encontravam no caminho, curiosos pelo estado de saúde de Helena.
– Ela está melhor? – Indagou ele arquejante, logo ao entrar.
– Acho que o caso é sério, porque nunca vi esses ataques em mulher nenhuma,
mas Deus sabe o que faz. Estou rezando pra ela ser feliz. É preciso do doutor, pois eu
não entendo dessas coisas esquisitas assim.
Helena se debatia nas convulsões da eclampsia e suas forças se esgotavam de
momento a momento. Uma lesão cardíaca, sorrateiramente, lhe vinha corroendo a
existência, de modo sutil e perigoso, sem que ao menos ela o notasse.
Subitamente as convulsões se tornaram mais violentas, ela agarrou as mãos de
Domingos entre os dedos crispados, arregalou os olhos belos, àquele instante
apavorados com a ronda sinistra da morte, o coração baqueou pelo violento choque,
desmoronando-lhe a vida de repente.
Domingos ficou debruçado sobre ela por muito tempo, molhando-lhe os
cabelos com as gotas de sua alma, que se dissolvia num choro de desespero.
XIX
XX
XXI
Quarto imundo. Uma cama que chiava, como se debaixo dos lençóis houvesse
um ninho de ratos. Domingos olhou-se ao espelho quebrado, pendente da parede
encardida.
Teve um susto. Decididamente estava escangalhado. Aqueles poucos meses de
solidão, de acabrunhamentos, de semi-loucura, haviam feito grandes estragos em seu
físico, esburacaram-lhe a fisionomia.
Consolava-o a certeza de que, no dia seguinte, estaria livre de Pium, pois
entraria para a caserna, onde um sargento carrancudo o obrigaria imediatamente a
fazer a barba. Isto mesmo. Fazer a barba já era uma grande coisa. Somente obrigado
pelo férreo regulamento militar ficaria livre daqueles cabelos onde estavam
emaranhados, tinha certeza disso, Belinha e seu gorila engarrafado.
Não podia compreender uma coisa daquelas. Se fosse um viúvo sapeca, que
logo após a morte da esposa estivesse de olho em cima das moças carnudas, ou dos
brotinhos, que eram as meninotas sirigaitas e com ares de artistas, ainda vá lá.
Cumprira o dever social. Derramara lágrimas sinceras sobre o caixão de
Helena, vestia-se de luto, deixara a barba crescer, pagara todas as visitas de
condolências uma por uma.
Enfurnara-se no acabrunhamento, numa espécie de resguardo de janelas
fechadas.
Por que não conseguia ter contato espiritual com Helena? Por que aquela
angústia, aquela busca teimosa e improfícua? Seria a repulsa do espírito de Helena, por
ver que também ele não passava de um verme rastejante, nesta bola de cisco
condenada a girar eternamente no vazio?
Afonso, um dos seus amigos de infância, também ficara viúvo. Com menos de
seis meses já estava de namoro com uma franguinha de seios fartos, sua vizinha, e que
sempre o chamava de “ti Fonso”, quando passava pela porta. Muitas vezes até lhe
pedia a bênção.
Repetidas tardes ele viu Afonso com a menina ao colo, brincando como um
pai amoroso, e agora devia estar com ela daquela forma mas para qualquer
descaramento. Para realizar-se aquele casamento foi necessário ser aumentada a idade
da falsa sobrinha de Afonso.
Depois de casado, porém, Afonso sempre falava na primeira esposa,
elogiando-lhe as qualidades, provando assim que ela permanecia junto dele, mesmo
depois de conseguir libertar-se do império microbiano.
Afonso e Biloca transformaram-se num legítimo par de gatos. Amavam-se aos
gritos, arranhando-se mutuamente, num sadismo anormal.
E ele nem coragem tinha para falar no nome de Helena. Era a maldição de
Pium, onde a exploração do homem pelo homem corria de rédeas soltas, que pesava
sobre seus ombros.
Era o castigo daquela idéia fixa, a sombra daqueles dois monstros, Belinha e o
gorila, seguindo-o por toda a parte.