Aula Cof 131

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(02) Com este texto de René Descartes começam certos processos que ainda estão desencadeando suas

consequências até agora. Não adianta você espernear contra René Descartes. Existem muitos livros —
por exemplo, O Erro de Descartes de Antônio Damásio — que procuram demonstrar efeitos
inconvenientes causados pela influência da obra de Descartes na nossa civilização. Mesmo depois de
tudo isso — já temos mais de meio século de literatura anticartesiana sendo distribuída por aí —, esses
hábitos criados — não só a partir deste livro evidentemente, mas nesta época — ainda desencadeiam as
suas consequências, porque o que eles tiraram de circulação é muito mais importante do que aquilo que
eles puseram.
Por exemplo, vimos nas aulas passadas que Descartes faz uma certa confusão entre o puro “eu”
pensante — o “eu” raciocinante — e o “eu” histórico real. Um ele diz que é constituído de puro
pensamento e o outro é um “eu” que decide, que quer, que sente, que sonha etc. Ele não deixa claro qual
é a relação entre esses dois “eus” e nem sequer dá mostras de perceber que existem dois. Ele não reduz
explicitamente os dois a um só, mas nessa indistinção entre o “eu” histórico e o “eu” pensante o que
acaba prevalecendo evidentemente é este último. Logo, parece que você reduz tudo ao “eu” pensante. Se
só existem duas realidades ou substâncias — o “eu” pensante e a coisa extensa, isto é, tudo o que existe
no espaço e cuja característica definitória é ter extensão —, então surge o problema de como uma dessas
coisas pode agir sobre a outra. Como é que um mero pensamento pode, por exemplo, mover um corpo?
Para resolver esse problema, Descartes teve de achar uma sede física da alma que ele achava estar na
glândula pineal. Mas não vemos como um pensamento possa estar na glândula pineal ou em qualquer
outro lugar. E como o dom da racionalidade define o “eu” pensante e o dom da extensão define a coisa
extensa, não se vê como a razão poderia atuar sobre um corpo. Esse é o enigma que está aí até hoje: o
problema das relações entre alma e corpo.

(04) Por um lado, o pensamento humano transcende os objetos fisicamente visíveis na medida em que
alcança a universalidade e a generalidade, ao passo que os seres da natureza não podem existir de
maneira genérica, só podendo existir sob a forma de substâncias individuais. Por exemplo, podemos
pensar uma espécie toda. Quando pensamos a espécie gato, estamos nos referindo a todos os gatos
existentes ou por existir — todos os gatos reais e possíveis —, ao passo que fisicamente nenhum gato
pode existir assim, só podendo existir sob a forma de uma substância individual num determinado
momento e lugar. Nesse sentido, o pensamento vai além dos seres fisicamente existentes, mas, por outro
lado, só vai além virtualmente, pois só acontece na mente do sujeito que está pensando; não acontece
realmente. Dessa forma, passamos do real para o virtual e do singular concreto para o universal abstrato.
Todavia, a racionalidade que está presente no pensamento é a mesma que está presente nos objetos.

Como é que se perdeu a visão disso? Como é que se chegou a um dualismo tal que, durante tanto tempo
— pelo menos isso se consolida desde o século XIX — a vivência que as pessoas têm do seu próprio
pensamento é ainda de tipo cartesiano, isto é, como se não houvesse comunidade entre o pensamento e o
mundo externo? Quando o sujeito está pensando, sente que está fazendo alguma coisa que não acontece
na natureza de maneira alguma. Aí se produz uma espécie de estranhamento entre o mundo do
pensamento e o mundo da natureza, e isso ainda é a vivência comum de praticamente toda a
humanidade ocidental hoje em dia. O cartesianismo entrou, talvez, mais profundamente nas almas dos
indivíduos do que no próprio horizonte filosófico. Dentro do horizonte filosófico, algumas pessoas
aceitaram Descartes, outras não. Mas esse dualismo cartesianismo se impregnou na civilização e nas
almas dos indivíduos.

Não podemos esquecer que, na época em que Descartes escrevia, toda a sociedade ainda era cristã. Às
vezes não conseguimos representar visualmente o significado desse fato, mas isso quer dizer que todas
as atividades humanas eram entremeadas de referências ao Cristianismo e havia celebrações religiosas
para praticamente tudo. Por exemplo, os exames universitários eram feitos dentro de igrejas antecedidos
e seguidos de celebrações religiosas. Se o sujeito ia fazer um negócio ou partir para uma viagem — no
livro de Johan Huizinga, ele descreve isso muito bem —, rezava-se uma missa naquela intenção e a
cidade inteira participava. Isso quer dizer que as referências bíblicas estavam onipresentes.
Entretanto, todas essas referências, se pensarmos bem, estão também entremeadas de alusões ao
simbolismo da natureza. Quando você lê a Bíblia, vê que os lugares onde as coisas se passam não são
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indiferentes ao curso da ação. Há coisas que só se passam em determinados lugares. Aquilo que se passa
num deserto não é a mesma coisa que se passa numa floresta ou no alto de uma montanha. Vê-se que
quando Abraão vai fazer o sacrifício de seu filho, vai para uma montanha; quando Moisés vai receber os
Dez Mandamentos, também vai para o alto de uma montanha. Por que ele precisa receber os Dez
Mandamentos no alto de uma montanha e não pode fazê-lo no fundo de uma caverna ou na esquina?
Isso quer dizer que em toda narrativa bíblica existe uma ligação bem próxima entre a paisagem e o
acontecimento. Isso é o que se chama simbolismo natural. Em todas as civilizações, sem exceção, a
montanha simboliza o limite entre o mundo humano e o mundo divino. É por isso que ali se dá a
revelação do Monte Sinai. No simbolismo astrológico existe o Capricórnio, que é a cabra-peixe. A
cabra-peixe é o bicho que representa a natureza completa, desde o fundo do oceano até o alto da
montanha. De certo modo é uma espécie de resumo da teoria da evolução. Essa cabra-peixe, sendo o
resumo do mundo fisicamente existente, assinala fronteira: aqui acabou a natureza; daqui para cima só
tem os anjos e Deus; é outro mundo. É justamente por isso que Moisés vai ao alto do Sinai para receber
a revelação.

Entretanto, se você suprimir todo esse simbolismo natural sobram apenas criações culturais. Desse
modo, a pantera só simbolizaria isso porque algum ser humano usou essa figura de linguagem. Isso quer
dizer que entre o sentido humano do texto e o seu sentido natural real cria-se um abismo, já que por um
lado só temos objetos da natureza que nada significam e que, portanto, consistem apenas em ter
extensão, e por outro lado temos o universo dos significados, das intenções, dos valores, que é
inteiramente criação humana, sem fundamento no mundo natural. Se não há fundamento significa que
qualquer coisa pode simbolizar qualquer outra se você quiser que assim seja.
É assim que as pessoas sentem hoje. Essa é a experiência real que as pessoas têm do mundo hoje. Por
isso, a simples ideia de simbolismo natural causa escândalo e estranheza hoje em dia. O pior é que todas
as artes e ciências tradicionais que eram baseadas em simbolismo natural foram banidas da civilização
por iniciativa de duas entidades: por um lado as universidades e a ciência, por outro lado a própria
Igreja. As referências dos autores cristãos a simbolismos naturais de outras civilizações sempre vêm
acompanhadas da palavra “superstição”. Estava lendo maravilhado um livro de um autor chamado
André Gandillon sobre a grandeza do cristianismo quando, de repente, ele menciona essas coisas todas e
chama tudo de superstição. Aí temos um problema, porque se achamos que é superstição tudo o que as
civilizações anteriores ao cristianismo — e a própria civilização cristã — apreenderam da experiência
da natureza como discurso da mesma natureza, isto é, como simbolismo natural, então Descartes tem
razão.

Em um mundo onde todo o simbolismo natural foi banido, o que pode sobrar do cristianismo?
Apenas um discurso humano, que dirão ter sido revelado. Mas que cristianismo é esse? É um
Deus infinito, onipotente, invisível, inacessível, que fala para um homem dentro da cabeça desse
mesmo homem. É o Deus de Descartes, que não passa pela natureza.

E o ser humano é feito dequê? Olivro do Gênesis diz que ele é feito da terra. Ele não é um ente
espiritual quefoi enxertado na terradesde cima.Então, na medida em que o ser humano provém dessa
natureza, ou seja,é feito dos mesmos materiais dessa natureza, mas ao mesmo tempo está colocado num
plano quase superior, é ele eminentemente quem pode ler a natureza, na medidaem que é o centro
unificador de tudo isso. Todavia,a leitura da natureza foi muito modificada na época de Descartes. A
leitura,daí por diante,passa a ser apenas uma medição, uma comparação quantitativa. Toda a noção da
razão interna que constitui o mundo natural e, portanto, a noção do discurso divino imanente na
natureza, desaparece completamente. E isso acontece com a ajuda da própria Igreja, que vai condenar
todo esse simbolismocomo superstição e reduzir, portanto, os próprios simbolismos bíblicos a meras
criações culturais. Depois disso, ainda se tem o desplante de querer que aceitemos que aquilo que consta
na Bíblia é revelado por Deus. Mas sesumiu o simbolismo da natureza, sumiu o cristianismo junto.
Nada pode sobrar. Por mais cristão quevocêqueira ser, acabará sendo um cristão cartesiano, onde você é
um puro pensamento que se comunica direto com Deus e tem, por assim dizer, uma linha direta com
Ele, sem passar [00:40]pela natureza. Seu interesse pela natureza passa, então, a ser meramente
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operacional, onde você vai olhar todos os seres da natureza como objetos de transformações técnicas
que você pretende introduzir ali para sua vantagem. Assim, a natureza transforma-se em matéria-prima
da economia apenas.
Como é possível que nesse mundo sobreviva algo do cristianismo? O sumiço das antigas artes ligadas à
interpretação da natureza foi um desastre cultural sem proporções. Mas o desastre não é só cultural, ele
entrou na nossa alma. Simplesmente não sabemos mais ler a natureza. A partir do momento em que não
sabemos mais lê-la, começamos a fantasiá-la.
Notem bem, quando falo “civilização”, não é uma coisa que está fora de nós. Civilização é aquilo que o
educa desde pequeno e que, portanto, modela seus sentimentos e sua percepção do mundo. Então, a
civilização somos nós mesmos. Isso quer dizer que, se os fatos da natureza—os animais, as plantas, os
astros etc. —não nos dizem nada, mas apenas consistem em estar aí sob a forma de coisas extensas que
podem ser medidas, comparadas e utilizadas tecnicamente, a natureza em torno de nós não faz sentido e
o sentido é puramente inventado pelo ser humano.

Essa consciência histórica não é externa, como de uma história que se passou fora de você, mas
uma história que está acumulada dentro de você. Ela está acumulada, em primeiro lugar, na
linguagem que lhe ensinaram e nos padrões de percepção que lhe foram ensinados desde
pequenino. Lembre-se da aula passada: as experiências sensíveis criam padrões que tendem a se
estabilizar e a ser repetidos em seguida, de modo que em tudo o que se vê, busca-se semelhança
com o que já foi visto, e quando as coisas são muito heterogêneas não se consegue ver nada.

Aluno: No vídeo sobre Santo Tomás de Aquino, você afirma que o esforço de Santo Tomás foi para
ordenar harmonicamente cultura sacra e cultura pagã. Essa ruptura entre o sacro e o pagão seria
efeito dessa perda do simbolismo natural gerada pelo cartesianismo?

Olavo: Sem sombra de dúvida! Essa pergunta está muito acertada. Na hora em que você perde o
simbolismo natural, perde tudo! O cristianismo vira um cristianismo etéreo, abstrato, que só existe na
mente humana, e tudo o que está fora é paganismo, é o diabo, está condenado. Foi exatamente o que
aconteceu na cultura moderna. Só que aquilo que os teólogos cristãos rejeitavam como pagão, a ciência
também rejeitava como superstição, e é incrível a rapidez com que as pessoas baixam a sentença de
superstição sobre aquilo que elas não compreendem, não estudaram, não têm a menor ideia do que seja.

Por exemplo, o historiador Jules Michelet, no livro La Sorcière, A Feiticeira, parte do princípio de que a
feitiçaria é inócua e não faz mal a ninguém. Mas como ele sabe? Se ao escrever uma história da
feitiçaria na Europa você achar a priori que tudo aquilo foi uma espécie de delírio, tanto da parte das
feiticeiras quanto da parte de seus acusadores e perseguidores, você verá a história de determinado jeito.
Se levar em conta que a feitiçaria pode ser eficaz em certos pontos, verá a história de um jeito
completamente diferente. Leia Lévi-Strauss, O Feiticeiro e sua Magia, e verá que ele dá uma explicação
antropológica sobre por que a feitiçaria funciona. A explicação pode até não ser certa, mas é um indício,
uma tentativa de verificar. Se você é católico não pode negar a eficácia da feitiçaria porque isso é
dogma da Igreja. A sentença, não lembro de qual papa agora, diz que a feitiçaria funciona e faz mal. Se
não funcionasse, se fosse inócua, não teria nenhum problema. Esse é um caso para estudar, mas se você
quer fazer a história das superstições precisa ver se são superstições mesmo. A palavra superstição tem
algo a ver com a decantação, isto é, aquilo que sobra no fundo do copo. Se sobrou alguma coisa é
porque alguma coisa havia. Frequentemente onde há uma superstição, há algum tipo de conhecimento,
que pode ser até muito tosco, mas que já esteve presente ali.

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