Aula Cof 146
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exemplo nas conferências de sir. Michael Dummett, que são As Bases Lógicas da Metafísica,
onde ele dá um exemplo de problemas filosóficos típicos: “Temos livre arbítrio?”, “Pode a alma
ou a mente existir fora do corpo?”, “Como podemos distinguir entre o certo e o errado?”, “Há
um certo e um errado, ou simplesmente os inventamos?”, “Podemos conhecer o futuro ou
afetar o passado?”, “Existe um Deus?”. Essas são perguntas caracteristicamente filosóficas.
Algumas delas foram impugnadas pela escola analítica e trocadas por perguntas sobre o
sentido da linguagem, o sentido das palavras, de modo que a atividade filosófica fica então
reduzida à análise da linguagem, onde transparece que alguns desses problemas filosóficos
vieram aparecer apenas por equívocos de linguagem, ou seja, houve uma certa suposição de
sentidos, sentidos mesclados que, uma vez analisados, revelam que a questão não faz sentido,
porque não possui um objeto próprio, e que tudo resultaria duma confusão da mente.
Algumas dessas questões são deixadas de lado e substituídas pelo problema do significado,
pela lógica da linguagem, etc. Somando esses problemas aos problemas novos trazidos pela
escola analítica, isso seria o repertório de problemas filosóficos. Outras escolas acrescentaram
outros problemas, como o do “Existe um sentido da História?”, “Quais são as leis do processo
Histórico?”, e assim por diante. Esses problemas constituem o repertório daquilo que se ensina
e se discute nas escolas de filosofia. Porém, neste encontro de Sócrates com Górgias não é
nada disso que se está discutindo. A pergunta é a seguinte: Quem é você? Em muitas
traduções essa pergunta aparece como O que é ele? A expressão grega ostin pode querer dizer
“que” ou pode querer dizer “quem”. Eric Voegelin preferiu “quem”, e acho que isto é mais
adequado à situação, porque a pergunta “que” poderia ser respondida apenas com um nome
de profissão, como de fato é: Górgias diz ser um retórico, mas Sócrates não se satifaz com essa
resposta, ele quer saber qual é a substância da retórica, em que consiste essa atividade
mesmo, ou seja, ele está procurando a identidade verdadeira de Górgias por trás do nome da
profissão. Portanto, acho que a tradução “quem” cabe muito bem no caso. Eu não sou
especialista em lingua grega, mas me parece que esse termo ostin, admitindo as duas
traduções, dá margem a esta tradução que Voegelin escolheu.
Esse influxo de homem a homem visa produzir um resultado que não afeta somente o
aspecto cognitivo do ser humano, [00:10] mas afeta justamente esta pergunta: Quem é
você? É evidente que se trata de uma transformação do ser humano, de um
melhoramento do ser humano. Isso não poderia jamais ser obtido somente pela instrução,
mas tem de ser passado pelo exemplo vivo. E notem bem que uma boa parte da obra de
Platão não é senão o registro da experiência que ele teve com Sócrates. Alfred Taylor
enfatiza que Sócrates não foi propriamente um mestre para Platão, mas foi alguém que
ele conheceu na juventude e que deixou um profundo impacto. Não é um mestre no
sentido de alguém que ensinou uma doutrina e que moldou as opiniões de seu discípulo,
mas alguém que por sua influência pessoal despertou em Platão a idéia de um tipo de
existência humana, a idéia de um tipo humano que não existia antes. O que era o
intelectual grego antes de Platão? Era evidentemente um artista, um dramaturgo, alguém
que escrevia peças, um poeta, ou então era um dos sofistas. O sofista era o sujeito que
dava o suporte intelectual da existência política de Atenas, ensinando aos membros da
classe dominante os instrumentos de persuasão necessários ao sucesso na vida política:
isso era tudo o que se conhecia até então.
No confronto com Polo, Sócrates percebe evidentemente que não há comunicação, que
ele está falando uma coisa e que Polo está falando outra completamente diferente, assim
como eu e o Paulo Ghiraldelli também jamais dialogaremos: não há comunicação possível.
Ele diz que esse afastamento, esse bloqueio, essa dificuldade de comunicação entre as
pessoas acontece na sociedade humana, ou seja, na rede de comunicações que há na
sociedade, mas que existe um nível mais profundo onde todos os seres humanos são de
certo modo obrigados a reconhecer as mesmas verdades. E ele chama esse outro nível
mais profundo de pathos, que é a emoção profunda, a emoção, por exemplo, diante da
morte, diante do perigo, diante do sofrimento extraordinário. Nesses momentos não
existe sofisma, não existe tecido de palavras sobre o qual você possa se esconder. Nesses
momentos todos os seres humanos são iguais e se dessem voz a esse sentimento
profundo, todos diriam mais ou menos as mesmas coisas. Nesse sentido é que dizia Ortega
Y Gasset que só têm validade as idéias dos náufragos, ou seja, aquela idéia que o sujeito
ainda acredita no instante em que o navio afundou e ele está tentando se agarrar a uma
tábua para tentar sobreviver. As idéias que não passam pelo teste do naufrágio não
merecem atenção.
Nesse momento intervém outro dialogante, Cálicles, que introduz uma distinção, tentando
esclarecer o ponto de vista de Polo. Ele diz: “Por um lado existe a natureza, por outro
existe a convenção. No nível da natureza Polo está certo, e no nível da convenção você
está certo.” Notem bem: na cultura contemporânea só se acredita em duas coisas: por um
lado existe a natureza material, tal como as ciências físicas a descrevem, e por outro lado
existem os produtos culturais: as instituições, os mitos, as leis, os costumes, a linguagem,
etc. É a mesma divisão que já estava dada em Cálicles, isso quatrocentos anos antes de
Cristo. Se vocês lerem direitinho os diálogos de Platão, verão que não há uma só teoria
filosófica que tenha aparecido em dois mil e quatrocentos anos que já não esteja lá
antecipadamente exposta e confirmada ou impugnada. Polo defende a teoria de que a
natureza prevalece, e que o fundo da natureza é constituído de egoísmo e autodefesa: é a
teoria que vai reaparecer em Thomas Hobbes, e depois em Nietzsche: ele usará o
argumento caracteristicamente nietzschiano [00:20] de que a tentativa de coibir o impulso
natural mediante considerações de ordem moral é um artifício usado pelos fracos para
contornar o poder dos fortes, para ludibriar os fortes de alguma maneira. E ele diz que
pela natureza o que deve predominar são os fortes, ao que Sócrates mui apropriadamente
responde: “Mas como os fracos são maioria, eles dominam facilmente os fortes. Então, na
verdade, são eles os fortes.” Polo diante disso não tem o que responder, e então entra
Cálicles com a distinção de natureza e convenção.
Ora, se nós reduzimos tudo à natureza e convenção – prestem atenção, isso é uma sutileza,
porque praticamente isso é tudo o que a cultura atual oficialmente reconhece - se só o que
existe é natureza e, por outro lado, a cultura, onde está o pathos, a emoção profunda? Ela não
pode estar nem em um lugar, nem em outro. Se a reduzimos a um efeito natural, então todas
as emoções profundas de extrema piedade perante o sofrimento, ou o horror perante a
maldade, tudo isso fica reduzido a reações do organismo egoísta que se defende, em última
análise, movido pelo medo ou pelo ódio: ou seja, tudo se reduz a desejo, ódio e medo! Não há
outras emoções além dessas. E se colocamos o pathos na esfera dos produtos culturais, isso
significa que ele é apenas outro nome, um nome mais elegante ou mais elaborado que demos
a emoções completamente diferentes, por exemplo, medo, ódio, para enfeitá-las, adorná-las
de alguma maneira, e o pathos desaparece. Nesse sentido a comunicação se torna
absolutamente impossível. Existem dois níveis de falsificação: o primeiro é aquele que coloca o
seu desejo egoísta acima de tudo e faz dele o princípio da moral, o caso de Thomas Hobbes e
Nietzsche; o segundo nível é um pouco mais elaborado, onde dividindo o mundo em natureza
por um lado, e cultura – nature and nurture, como dizem as ciências sociais modernas –, não
se deixa nenhum lugar para aquela emoção profunda que unifica os seres humanos.
Ora, o que quer dizer unificar os seres humanos? Se nos perguntarmos se existe uma espécie
humana vemos que no sentido biológico parece que sim. Só há um problema: não sabemos
exatamente qual foi a origem da humanidade: a única teoria que temos para explicar seria a
teoria da evolução, que é problemática sobre tantos aspectos. Mesmo assim não vejo como
essa teoria poderia explicar a unidade da espécie humana, pois teria de ter havido várias
evoluções distintas em lugares distintos, a partir de antepassados distintos pertencentes a
várias raças de antropóides completamente diferentes. Nesse caso a unidade da espécie
humana seria meramente casual, ou seja, vários antropóides que ao longo de milênios
evoluíram, um num sentido, outro em outro, produziram seres que são esquematicamente
parecidos.
Algum dia, então, isso teve de aparecer e ser percebido; até que se perguntou: “Onde está
a unidade da espécie humana?” A unidade da espécie humana não é objeto de
experiência; não pode ser percebida por meio nenhum, nem natural, nem cultural. Ela só
aparece quando conseguimos conceber a totalidade do destino humano perante um fundo
de eternidade. É o princípio da divindade transcendente e o princípio do Juízo Final que,
por assim dizer, unificam a espécie humana. A idéia da justiça transcendente, à qual todos
os homens estão submetidos, é o espelho em face do qual aparece a unidade da espécie
humana; retirado esse espelho, a unidade desaparece. Esse espelho, contudo, também
não é um objeto de experiência: ele aparece quando o buscamos, ou seja, quando nos
abrimos para aquilo que está para além de nossa experiência; e quando admitimos que o
círculo inteiro de nossa experiência é um pedacinho infinitesimal e que a verdadeira
estrutura da realidade não se constitui daquilo que conhecemos, que é como se fosse uma
bolha, uma esfera boiando no oceano do desconhecido, no ápeiron de que falava
Anaximandro.
É evidente que esses problemas filosóficos estão ao alcance de qualquer um, bastando algum
esforço de compreensão de textos; mas, em tudo isso, fica abolida a pergunta principal. Vocês
imaginem o que seria acossar um professor, numa faculdade de filosofia, com esta pergunta:
“Mas, afinal, quem é você?” Ela ficaria completamente deslocada. [00:40] Notem que essa é
a pergunta fundamental que Sócrates fez àquele que era, por assim dizer, o líder intelectual
da Grécia naquele momento: Górgias. É essa pergunta que sempre há de retornar para
mostrar a diferença entre o que é o filósofo e o que é o sofista, o representante da atividade
intelectual social que é e sempre será dominante.
Nós também não temos a experiência da ordem, pois toda ordem que vemos está
maculada por elementos de desordem. Então, a busca de onde está a ordem leva
Agostinho a uma experiência similar à de Sócrates. Da mesma maneira que a unidade da
espécie humana, a ordem só aparece no espelho da eternidade, e assim por diante. Eu não
preciso lhes falar da experiência de René Descartes que acabamos de ler e estudar. Vimos
a experiência terrificante que esse homem teve do confronto com uma força demoníaca
que abolia completamente o poder da sua capacidade cognitiva, que lhe negava a
capacidade de conhecer o que quer que fosse.
Notamos que desde o início a filosofia é esta busca de compartilhar essa experiência, por
assim dizer, imaginativa, da transcendência, e é essa experiência que puxa de dentro dos
estudantes o melhor que há neles, e faz com que eles reformem a sua vida. Notem bem,
não no sentido religioso ainda. O sentido religioso só começa no instante em que
conhecemos a lei divina, e a tomamos como um elemento constante e estrutural de
nossa pessoa, e isso não é fácil de maneira alguma. Tudo o que a filosofia faz é
preencher certas condições sem as quais a própria experiência de lei divina se torne
inacessível para nós, porque se não temos sequer a experiência da unidade
transcendente da espécie humana, como podemos conceber uma lei eterna que é válida
para todos os seres humanos? Isso quer dizer que a noção de lei divina para nós é
apenas uma palavra, e que, sobretudo, vamos confundi-la com as leis humanas; não há
como não confundi-las.
Olavo: Bom, se fosse possível defini-lo, não seria necessária uma experiência imaginativa para
alcançá-lo. Eternidade... Vou lhe dar uma pista; não é uma definição, é uma dica para você
meditar e deixar a sua imaginação trabalhar em cima. Tudo o que sucede no tempo é alguma
coisa, quer dizer, faz parte do ser; existe realmente. E aquilo que existe não pode voltar para o
nada, porque do nada nunca saiu nada, e nada volta para o nada. Então, se considerarmos
todos os momentos do tempo juntos, todos os momentos que já foram, e mais os que
serão, lá está tudo conservado, e nada nunca passou. Comece a meditar isso, e lembre-se:
a existência da eternidade é absolutamente necessária. Não há como escapar dela. Se
imaginarmos que a dimensão do tempo abarca tudo, então o próprio tempo será
identificado com a eternidade, mas isso é impossível, porque o tempo é a sucessão de
momentos que são incompatíveis entre si, eles não podem se encavalar. E eternidade é,
como definia Boécio, a posse plena e simultânea de todos os momentos. Quer dizer, tudo
aquilo que é, foi e será, está eternamente presente. Se não estivesse eternamente
presente na eternidade, também não poderia se suceder no tempo. Você pode fazer uma
imagem assim: você tem o sol, e tem vários raios do sol. Cada um desses raios segue uma
linha reta. É como se esta fosse uma linha de tempo, mas, no sol, todas aquelas linhas
estão presentes simultaneamente. Isso é um símbolo que talvez possa ajudá-lo a meditar.
A eternidade é aquele plano onde nada se perde; onde nada foi; tudo é eternamente, tudo
continua sendo. Esse momento que nós estamos vivendo aqui e agora está registrado na
eternidade, e no plano da eternidade, não passará jamais. De tudo o que aconteceu, no
plano da eternidade, nada se perde, é absolutamente impossível. O perder-se é
justamente a característica da linha de tempo na qual nós estamos. Na qual o passado foi
e não volta. Outra linha de meditação é aquela que eu dei no curso sobre a imortalidade: é
tentarmos ver esse aspecto de eternidade e permanência, não na dimensão cósmica como
eu estou falando (ou supracósmica), mas na nossa própria alma, na nossa própria
identidade. Sempre fomos nós mesmos, sempre soubemos que somos nós mesmos; no
entanto, tudo mudou em nós. Nosso corpo mudou, nossos pensamentos mudaram, nossas
emoções mudaram, nossas células corpóreas foram trocadas. Onde, então, está essa
identidade? Também não é possível dizer que essa identidade seja um pensamento, pois
os pensamentos vão e vêm. Existe algo dentro de nós que é nossa dimensão profunda,
nossa identidade permanente. Ela está lá e se não a tivéssemos, nossos pensamentos se
desfariam em pó, iriam para todas as direções, se perderiam sem termos um centro. E é a
referência a este centro permanente, que não está em nosso corpo, nem no pensamento,
não está nas nossas emoções, é ela que pode nos dar uma noção do que seja eternidade.
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Por que dou tanta importância à profecia de Fátima? Porque ela é exata, não é
aproximativa, não é alegórica, não é simbólica. Claro que tudo tem significado simbólico
também. Mas, para uma coisa ser símbolo de outra, é preciso primeiro que a primeira
coisa exista. Por exemplo, podemos dizer que o elefante simboliza tal ou qual coisa porque
ele existe. E o que simboliza a mula-sem-cabeça? Nada, pois a mula-sem-cabeça não
existe. O mesmo se dá com fatos históricos. Para sabermos o que um fato histórico pode
simbolizar no plano da história divina, primeiro ele tem de ser conhecido na sua
materialidade com todos os seus detalhes. Quando Nossa Senhora avisa que, se não
houver uma mudança imediata, vai haver uma guerra dentro de “x” tempo, que será
anunciada por sinais no céu assim e assado, e a guerra acontece nessas mesmas
condições, [temos um caso de previsão exata]. O fato de que possa estourar uma guerra
uma semana depois de o céu de Paris se iluminar repentinamente às dez horas da noite,
sem explicação, [se não o entendermos como comprovação do anúncio de Fátima,]
entraremos na esfera da pura coincidência.