Dossiê FHC
Dossiê FHC
Dossiê FHC
A
política não é a ação de uma vontade soberana sobre uma situação
maleável; esta imagem só pode corresponder a regimes autoritários
e se destrói por si mesma, pois os resultados de um tal voluntarismo
são sempre opostos aos fins proclamados. A política é, ao contrá-
rio, um esforço para intervir num conjunto de limitações interiores e exterio-
res de todas as ordens, de modo a alargar o campo do possível, ou seja, a
diminuir o peso destas limitações. O mais importante, na análise de uma polí-
tica, é, portanto, avaliar a capacidade de ação política. Esta capacidade é tanto
mais fraca quanto os atores sociais, políticos e outros são, ao mesmo tempo,
mais fortes e mais autônomos; ela é mais forte, ao contrário, quando a autori-
dade do poder é exercida sobre uma sociedade fraca, em crise, até mesmo
perturbada. É por isto que as situações revolucionárias, nas quais o poder
político parece dominado pelos movimentos sociais, são, ao contrário, mais
favoráveis à formação de um Estado forte, já que a sociedade está mais em
crise do que em ação, e os atores políticos ou sociais particulares são ao mes- Diretor de Estudos da
mo tempo fracos e pouco autônomos, pois que se trata de uma crise geral. O EHESS - Paris
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TOURAINE, Alain. O campo político de FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 3-22, out. 1999 (editado em fev.
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que nos leva a uma constatação clássica. Sem democracia, o Estado é mais
forte; na democracia, ele é muito fraco; a ponto que certos liberais ou marxis-
tas sonharam com uma redução extrema do Estado, o que deixaria o papel
principal aos atores e sobretudo às contradições do sistema econômico. Faça-
mos aqui a hipótese, que tentaremos utilizar e a respeito da qual tentaremos
argumentar, de que o Brasil contemporâneo é um país de fraca capacidade
política, exceto em situações de crise extrema.
Esta formulação parece paradoxal. A história do Brasil não é, ao
contrário, desde os inícios da República, a de um Estado que unifica um terri-
tório vasto muito diversificado? Excelentes análises mostraram o fracasso da
construção de uma democracia liberal nos anos 20 e a frouxa predominância
de um Estado modernizador autoritário, mais que liberal, sob Vargas, assim
como sob a ditadura militar. A única exceção notável foi a presidência de
Juscelino Kubitchek, já que depois dele assistiu-se a uma rápida decomposi-
ção do poder. Este Estado forte conduziu com decisão uma política de indus-
trialização que acelerou a urbanização, mas também a distância entre a cidade
e o campo, os ricos e os pobres, que outrora no Brasil eram freqüentemente
fisicamente próximos uns dos outros, não somente nos domínios rurais, mas
que se expressava também pela presença de favelas no centro das grandes
cidades. Os anos 70 viram um país em grande expansão suportar desigualda-
des sociais cada vez maiores. O lento retorno à democracia não mudou a situ-
ação e o Brasil não empreendeu uma luta ativa contra a desigualdade. Foi
mesmo uma liberalização mal controlada e roída pela corrupção a que predo-
mina durante a presidência de Fernando Collor. Esta situação, agravada por
uma inflação que se aproximava de uma hiper-inflação, foi herdada por FHC.
Quando ele foi eleito presidente da República, o Brasil estava fraco.
A abertura liberal da economia foi feita em condições desastrosas. A situação
diante da qual o Brasil se encontrava nada tinha contudo de particular; era a
mesma de quase todos os países. Depois da Segunda Guerra Mundial, os regi-
mes de reconstrução nacional apoiavam-se sobre um forte movimento de
integração, ao mesmo tempo em que, no mundo inteiro, surgiram conflitos so-
ciais, num momento em que a economia internacional estava desorganizada e
numerosos países se encontravam numa situação de extrema fragilidade, em
particular os novos países nascidos da descolonização, que estavam quase sem
recursos. Este período durou relativamente pouco tempo. No início dos anos 70,
encerrou-se o crescimento na União Soviética, e, durante este decênio, os países
ocidentais industrializados deram prioridade para a abertura dos mercados in-
ternacionais. Vinte anos mais tarde, pode-se dizer que a resistência do
voluntarismo do pós-guerra cessou em toda parte. O que não quer dizer que o
mundo instalou-se de modo durável numa sociedade de mercado, mas antes que
vivemos a formação lenta e difícil de novos atores sociais e políticos capazes de
limitar os efeitos dos mercados internacionalizados, e de combinar a abertura da
economia mundial com a manutenção ou criação de garantias sociais e de uma
diversidade cultural real no nível internacional ou local. Na América Latina,
certos países tomaram claramente a via liberal. Foi o caso da Bolívia, depois da
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uma pressão mais direta das forças sociais sobre o Estado e em particular
sobre o Parlamento. É um modelo muito europeu, no qual as noções de direita
e de esquerda indicam uma forte ligação entre atores sociais e representantes
políticos. Mas, no período recente, este laço enfraqueceu-se muito, a ponto
que alguns chegaram a pensar que não havia mais diferença entre políticas de
esquerda ou de direita, o que certamente não corresponde à realidade, mas
indica uma crise séria deste modelo político.
O que caracteriza a situação brasileira é que a capacidade de ação
política do Presidente não somente não foi fortalecida, mas foi mesmo
enfraquecida pela fragmentação tanto dos atores políticos quanto dos atores
sociais. Mesmo que não exista no Brasil nenhuma tendência importante para
um regime autoritário, pode-se dizer que a sociedade política brasileira ofere-
ce melhores apoios a um dirigente autoritário do que a um dirigente democrá-
tico. A comunicação entre o Estado e as demandas sociais encontra dois obs-
táculos principais. Primeiro a fragmentação e a instabilidade do mundo políti-
co, onde quase não existem partidos organizados e autocontrolados. O PFL é
o que está mais próximo de ser um partido; o PMDB é o que está mais distan-
te. Esta fraqueza acarreta uma surpreendente mobilidade dos eleitos, que pas-
sam em grande número de um partido para outro durante uma mesma
legislatura. Esta situação é aparentemente favorável ao Presidente, que não
encontra resistência em partidos fortes; de fato, ela diminui a capacidade de
decisão política já que ele deve – como ocorre também nos Estados Unidos –
assegurar-se de uma maioria, obtendo não o acordo global de um partido, mas
antes o apoio, freqüentemente frágil, dos candidatos eleitos preocupados so-
bretudo em defender interesses locais. O próprio PT age pouco como um par-
tido e mais como uma coalizão de forças de oposição que se agrupam cada
vez mais em torno dos candidatos possíveis à próxima eleição presidencial,
como Lula ou Tarso Genro.
Em segundo lugar, a capacidade de ação política diminuiu por causa
da fraca integração da própria sociedade. Por mais que a integração territorial
tenha progredido e que tenham sido criados e fortalecidos pólos de desenvolvi-
mento fora de São Paulo, a integração social é fraca – desigualdades sociais
muito fortes, existência de uma população marginalizada, precarizada ou exclu-
ída nas cidades e no campo. Os progressos importantes realizados durante a
primeira presidência de FHC não impediram que o acesso à educação seja ainda
muito desigual, e os contrastes nas situações urbanas ainda impressionantes .
Este fenômeno não é apenas brasileiro, mas é preciso medir sua im-
portância para este país assim como para muitos outros. As categorias “não
integradas” – quer se trate de desempregados e dos que dependem de rendimen-
tos precários, dos participantes de uma economia criminosa ou, inversamente,
daqueles que vivem numa economia global mais do que numa sociedade nacio-
nal – representam uma parte importante da população. Há um terço de século os
intelectuais latino-americanos, em particular argentinos mas também brasilei-
ros, já debatiam e disputavam entre si para saber se aqueles que chamamos de
marginais formam um exército de reserva da força de trabalho ou um fenômeno
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mais global e mais permanente. Foi esta segunda interpretação que se impôs.
Não para satisfazer-se com o conteúdo vago e ambíguo da palavra marginalidade
mas, ao contrário, porque a análise deslocou-se das relações de trabalho para o
modo de desenvolvimento; em termos mais concretos, ela se deslocou da socie-
dade industrial para o que é mais propriamente o capitalismo, sobretudo inter-
nacional e financeiro, que orienta a mudança econômica e social em função dos
interesses dos acionistas. É impossível examinar qualquer ação política sem dar
uma importância central a esta transformação. Nós não temos mais face a face
um patronato e uma classe operária – ou, pelo menos, esta relação é cada vez
menos central – mas sim uma recentralização da atividade econômica em torno
do lucro mais do que da produção ou da repartição de bens. A cena sócio-políti-
ca esvaziou-se; ao invés de se falar em patrões, fala-se da globalização; ao invés
de exploração, fala-se de exclusão. Todo juízo que se refere ao conflito de clas-
ses como um eixo central da política tornou-se exterior à realidade e não nos
informa mais. Em contrapartida, é legítimo nos perguntarmos se a oposição
entre a direita e a esquerda foi substituída por aquilo que alguns denominam
pensamento único, ou seja, a subordinação dos principais dirigentes políticos ao
poder mundializado dos capitalistas, sejam eles oriundos da esquerda ou da
direita, expressão que designa tanto fundos de pensão sindicais quanto opera-
ções propriamente especulativas. Mas devemos rejeitar imediatamente esta tese,
como o fazem aliás os eleitores que não se dividem ao acaso entre os partidos, e
que, mesmo se a abstenção freqüentemente aumenta, consideram sua escolha
importante e representativa de seus interesses. De maneira mais realista, consta-
tamos que a cena social está mais vazia do que no passado, ao mesmo tempo em
que a capacidade de ação política enfraqueceu-se. A impressão do “vazio” so-
cial e político, assinalada por muitos, é justa. Os problemas são visíveis por
toda parte, na violência metropolitana ou na pobreza ou desemprego, mas, entre
estes fatos e sua expressão política há uma vasta distância que aumenta ao invés
de diminuir. As ciências sociais no Brasil – assim como no Chile, que estiveram
por muito tempo associadas graças ao CEPAL – foram o centro de criação de
idéias, de pesquisas, de debates sobre o Continente, entre os economistas e os
antropólogos, tanto quanto entre os sociólogos. Hoje em dia, entretanto, as ciên-
cias sociais no Continente e, em particular, no Brasil, fazem-se ouvir menos. O
Chile está quase silencioso e, mesmo se o México é mais criador de idéias, a
inovação intelectual no Brasil parece mais fraca do que antes, e, assim como em
outros lugares, tem-se a impressão que os intelectuais reagem mais como cate-
goria socioprofissional do que como analistas. Este juízo deve ser relativizado
pois diversas universidades elevaram claramente o seu nível. O Rio de Janeiro
tem ganho vida neste domínio assim como em outros, e São Paulo permanece
bem equipado. Fica contudo o fato de que, como em quase todos os lugares nos
anos 90, os intelectuais no Brasil estão na defensiva; eles denunciam,
freqüentemente de modo justo, as violências, as desigualdades ou o enriqueci-
mento de alguns, mas não definem claramente as causas destas situações nem
como elas evoluem, nem sobretudo qual é a margem do possível e as condições
de transformação de situações consideradas como inaceitáveis.
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dade. Se a queda do Chile autoritário em 1981 nos lembra que uma ditadura
militar não é proteção contra um fracasso econômico, o caso da Bolívia ou da
Argentina mostraram a possibilidade de uma intervenção nacional, enquanto
o caso do México e em parte o do Brasil mostraram a extrema importância de
garantias internacionais dadas aos países ameaçados. É difícil encontrar um
exemplo de país que tenha elaborado uma política de reajuste sem ruptura. O
Brasil foi o caso mais distante desta capacidade de ação autônoma. Bem re-
centemente, a Argentina, mergulhada na catástrofe econômica, soube reerguer-
se ao preço de um grande aumento do desemprego, mas levou a efeito várias
reformas profundas que dão à sua economia chances bem melhores do que no
passado. O Brasil fracassou por diversas vezes em sua luta contra a inflação.
Provavelmente, porque se esforçou para procurar na própria sociedade os re-
médios para a crise, para lutar contra a inflação. Esses fracassos mostraram a
incapacidade da sociedade para agir sobre si mesma e de modificar suas pró-
prias condutas. Os planos que obtiveram êxito, por mais distintos entre si que
tenham sido, tiveram como traço comum o de organizar-se em torno de medi-
das técnicas, não propriamente sociais, antes de tudo monetárias, e, portanto,
impondo-se ao país inteiro, independentemente das proposições, em geral fra-
cas, dos atores políticos. A planos tecnocráticos impostos, como dizem mui-
tos, juntam-se aqueles impostos pelo FMI. Esses juízos, mesmo se estão lon-
ge de corresponder à maioria dos casos, insistem muito justamente sobre o
fato de que os planos que permitiram ao país recuperar-se e vencer a inflação
foram aceitos por países em grande crise e em geral com a oposição ou a
reticência dos atores sociais, pois essas crises se situavam para além da capa-
cidade de ação política e social. Tais crises, e é preciso repeti-lo, tinham cau-
sas mais interiores do que exteriores.
No Brasil, como na Argentina, a principal medida foi a de criar uma
nova moeda ligada ao dólar, para impedir a dolarização selvagem da economia.
Este método de choque pôs um fim à inflação, o que acarretou no Brasil uma
grande redistribuição de renda em favor de categorias pobres e periféricas, já
que a inflação era para elas um imposto esmagador, enquanto as categorias que
dispunham de recursos e, portanto, de uma poupança maior protegiam-se da
inflação utilizando-se das escalas móveis. O Nordeste e os pobres puderam au-
mentar o seu consumo e o Presidente FHC recebeu um grande apoio da opinião
que correspondia mais ao sucesso de um plano do que à vitória de certas forças
políticas e sociais. Durante a primeira presidência FHC, o verdadeiro Presidente
foi o Real, muito eficaz no início e apoiado pelas categorias populares, enquanto
as classes médias públicas estavam reservadas ou hostis em relação a um gover-
no que queria reformar, ou seja, reduzir as vantagens relativas destas categorias.
Situação que pode parecer paradoxal: FHC, acusado de traição contra o povo
pela sua aliança com um partido de direita, foi apoiado pelas categorias popula-
res e criticado ou rejeitado por uma fração importante e crescente das classes
médias assalariadas. Mas, o sucesso do Plano Real não criou por si mesmo
condições interiores nacionais que teriam permitido ao país transformar-se, por
não conhecer uma nova crise e aumentar pois sua capacidade de ação sobre si
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ainda; o PMDB é quase apenas uma etiqueta eleitoral. Todas estas situações
fortalecem o PFL, a ponto que é em suas fileiras que se encontrava o sucessor
possível do Presidente, cujo prematuro desaparecimento não somente enfra-
queceu o clã Magalhães, como também deixou incerto o futuro da política
brasileira, embora, é verdade, assegurado ainda por vários anos.
Mas, o enfraquecimento mais importante da capacidade de ação
política vem do fracasso das políticas de integração social em todos os níveis.
O mais visível, neste país que se tornou amplamente urbano, é a miséria e
sobretudo a violência urbana. A população as vive de modo cada vez mais
difícil, tanto que os políticos e as polícias locais são sempre colocados em
questão. As violências sofridas pelas crianças de rua, dos maus tratos aos
assassinatos, não são fatos novos nem mais extremos do que aqueles que
Buñuel mostrava no México ou os que concerniam os meninos de Bogotá.
Mas esta miséria e esta violência tornaram-se mais pesadas nas cidades como
São Paulo, onde o desemprego aumentou, e são cada vez menos aceitas num
país no qual os lugares de modernidade e de riqueza são numerosos e espeta-
culares. Numa frase célebre, FHC disse que o Brasil não era um país pobre,
mas injusto. Esta injustiça vai além de extremas desigualdades; ela significa
que uma parte importante da população está excluída da produção e do consu-
mo modernos. O fim da estabilidade monetária destruiu aquilo que a popula-
ção considerava sua principal proteção. A angústia e a revolta estão, pois,
aumentando, o que diminui ainda mais a capacidade de ação do sistema polí-
tico. Mesmo se as comunidades de base, a teologia da libertação e o extremo
radicalismo político estejam em recuo, em particular por causa do fim do mo-
delo soviético e cubano, a consciência de que uma parte da população é, ao
mesmo tempo, sacrificada e não representada é muito difundida. Ela dificil-
mente se exprime em termos políticos ou sindicais, mas é difusa e manifesta-
se sobretudo pela perda de confiança no governo.
O Brasil não parece estar à procura de uma terceira via à moda
inglesa ou alemã, mas, ao contrário, existe uma polarização crescente entre,
de um lado, os que participam da sociedade mundializada, e, de outro, os que
são por ela rejeitados. Entre os dois, as classes médias, que estavam larga-
mente apoiadas sobre o Estado, estão cada vez mais descontentes com uma
política da qual se consideram vítimas.
É possível inverter esta situação e criar no Brasil uma forma parti-
cular de terceira via, tão freqüentemente mencionada na Europa? Os intelec-
tuais não parecem dispostos a criar uma tal ideologia. Eles dividiram-se em
dois grupos. Alguns se profissionalizaram ou mesmo, mais raramente, estão
perdidos na máquina complexa de economia mundializada; outros estão dila-
cerados entre a nostalgia dos combates passados e sua vontade de sair deste
passado sem olhar para trás, com os olhos baixos, às vezes sofrendo, às vezes
procurando no novo Presidente um bode expiatório, às vezes defendendo sim-
plesmente os interesses de sua categoria profissional, que julgam estar sendo
ameaçados. Os que se esforçam para compreender o que se passa, em tal ou
qual parte do mundo, sobretudo nos últimos dez anos, sentem que mergulham
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seu olhar num buraco negro. Procuram atores da história, vencedores ou ven-
cidos, dominados ou dominantes, e não vêem nenhum. Vêem apenas redes de
informação, defesas identitárias, consumações vazias de sentido ou a pobreza
que não conduz à revolta: estas são as quatro partes da sociedade que conse-
guimos extrair do vazio sobre os qual estamos inclinados. O barulho nos ator-
doa, mas não escutamos nenhuma voz, como escutamos ainda as vozes desa-
parecidas de Jan Pallach ou de Che Guevara, ou como vemos ainda o homem
de camisa branca de Tien-an-Men ou Vinícius Caldeira Brandt torturado em
São Paulo. Vivemos um eclipse de história, e o ato mais inteligente que pode-
mos praticar, dizem muitos, é o de aceitar nossa impotência, rejeitar tanto a
ideologia otimista da globalização quanto a ideologia mentirosa do apelo às
massas populares, que se tornaram fantasmáticas.
Tendo chegado a este ponto, que parece distante da análise que me foi
pedida, devo dizer que creio ao contrário ter-me aproximado dela. Em nome de
que, em nome de qual sentido da história, qualquer um de nós pode dizer que
conhece atores que não vê, e que pode falar em seu nome? É para evitar que
ouçamos juízos tão arbitrários que vou tão longe. É possível e necessário anali-
sar os mecanismos de uma crise econômica e financeira, os processos de decisão
política, os interesses dos Estados Unidos e da Fundo Monetário Internacional,
mas devemos também pensar a situação brasileira, assim como outras situa-
ções, a partir de atores sociais, de suas demandas, de seus conflitos e sobretudo
de sua capacidade de agir. Ora, esta é, no conjunto, tão fraca que é quase impos-
sível detectar a existência de atores sociais. Não há senão a extrema repressão
que abafa as vozes e estamos mesmo convencidos que conseguimos sempre
ouvir a voz de um Spartacus, de um negro clandestino ou de um fuzilado. Mas
estamos num momento no qual as ideologias, as representações, as palavras,
dissolveram-se e no qual um mundo puramente econômico, onde as informa-
ções circulam em tempo real, faz com que desapareçam as vozes e os atores
sociais. Existem sons, gestos, gritos, mas eles não formam mais frases, e, quan-
do acreditamos decifrá-las, é como se reaprendêssemos uma língua desapareci-
da. É certo que não existe silêncio completo e durável das sociedades; mas no
final de um século XX dominado por discursos, ideologias, sistemas de uma
força excepcional, ensurdecedora, vivemos um momento – que só pode ser mui-
to breve – no qual só ouvimos o ruído dos buldozeres que evacuam as ruínas
deste universo sonoro e onde não percebemos o barulho fundo das miríades de
informações que são trocadas a cada instante, e que não se referem mais a atores
sociais do que o fazem as ondas do mar.
O que nos conduz à nossa interrogação central: há ainda um espaço e
um tempo do possível? Mais concretamente, os dirigentes políticos, econômi-
cos e intelectuais ainda têm uma responsabilidade? E, se possuem um certo
espaço de escolha, eles decidiram bem ou mal? Não falo aqui daqueles que
denunciam os poderosos em nome de um discurso que outros já denunciaram e
nem daqueles que não crêem senão na ação econômica racional. A questão é:
como se pode restabelecer a comunicação entre uma economia cada vez mais
mundializada, instituições políticas nacionais ou locais e as demandas ou pro-
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dos brasileiros, que se expressou com mais força o que podemos chamar de
teoria política – e portanto não radical – da dependência. E foi FHC quem,
diretamente ou associado a Enzo Faletto, exprimiu-a de modo mais forte. Em
nome de um raciocínio simples e forte: sim, a dependência é uma dimensão
que está sempre presente em nossa existência, mas, as relações de classe tam-
bém estão sempre presentes bem como o conflito entre a integração nacional e
os poderes locais. A vida social e política é tridimensional; e como seus eixos se
cruzam ao invés de serem paralelos, existe sempre, em torno de seu cruzamento,
um espaço político, autônomo, espaço do possível e da decisão. Esta autonomia
do político, esta afirmação do possível me parece ter sido de maneira constante,
e até hoje, a principal afirmação intelectual de FHC, e sua formação marxista
explica em boa parte este conteúdo de seu pensamento. Aqueles que deploram a
transformação de um intelectual marxista num político liberal sustentam um
discurso que combina em poucas palavras todos os erros e contra-sensos possí-
veis. De início – é a observação mais simples – porque, exceto em regime auto-
ritário, o pensamento de um intelectual não pode transformar-se em programa
político. Este deve obter uma maioria e o voto popular nunca corresponde a uma
idéia, mas a alianças complexas e à expressão de interesses e convicções muito
diversas. Em seguida, porque não se pode situar uma política a não ser no inte-
rior de um espaço político e de um espaço do possível. Um intelectual ou um
ativista que contestam o conjunto de uma situação não podem ser considerados
como de esquerda ou extrema-esquerda se não querem mais referir-se ao siste-
ma de decisões possíveis. Eles fecham-se, seja na extrema-direita, seja na extre-
ma-esquerda, o que é bem diferente.
A partir desta constatação principal, a fraca capacidade política do
Brasil atual, como se pode analisar o uso que dela se fez durante a primeira
presidência de FHC? Ouvimos falar em Third Way na Grã-Bretanha, na Alema-
nha, e, em certa medida, na Itália, mas não na França, na qual a “esquerda plu-
ral” se define de modo diferente e onde se ouviu um Cohn Bendit opor a terceira
esquerda à terceira via. Outros governos, como o de Aznar na Espanha, decla-
ram-se de direita, mas suas práticas não estão muito longe das políticas do tipo
inglês. O Chanceler Schröder representa bem a instabilidade, a fragilidade de
uma ação rejeitada de um lado pelo patronato e seus aliados partidários do mo-
delo americano, e, de outro, por uma parte importante do SPD, apoiado sobre o
DGB e também pelos verdes, eles mesmos divididos entre “fundis” e “realos”.
Pode-se estabelecer uma tipologia comparável na América Latina? E
onde situar FHC nesta tipologia e em relação à tipologia européia? Estas duas
questões exigem respostas que é preciso formular claramente antes mesmo de
justificá-las. Em primeiro lugar, o espaço do possível é muito mais limitado na
América Latina do que na Europa e, em segundo lugar, no espaço do possível no
Brasil, FHC situa-se no centro, ou no centro-esquerda, e não no centro-direita. É
permitido àqueles que têm uma concepção diferente da esquerda dizer que a
ação de FHC, julgada segundo seus critérios pessoais, é uma política de direita.
Mas aqui estamos no domínio da opinião, e não no da análise.
A primeira afirmação é a mais importante, razão pela qual abordo o
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tica. O Uruguai é um dos raros países onde um partido político afirma sua
vontade de romper com uma política de acordo com os dois grandes partidos
cuja aliança se situa com efeito na centro-direita. Esta declaração, que pode
parecer brutal, é apenas a conseqüência do que foi dito: o laço entre as forças
sociais populares organizadas e certos partidos políticos quase não existe em
nenhum lugar. Considerar, no México, o PAN como de direita, o PRI como
centro e o PRD como esquerda é um equívoco, como mostram as pesquisas
atuais sobre o acordo entre o PAN e o PRD, ou ainda a semelhança entre os
meios pelos quais os diferentes partidos utilizam, quando podem, os recursos
do Estado. Centro-esquerda, portanto, e não esquerda.
O argumento que situa FHC na centro-esquerda porque durante sua
presidência o fim da inflação melhorou o nível de vida popular e portanto
diminuiu as desigualdades sociais e regionais não é válido, já que a razão de
ser do Plano Real era a luta contra a inflação, e que a melhora do nível de vida
popular foi uma conseqüência importante e desejada deste plano, mas não sua
causa explicativa. Contudo, esta classificação de FHC na centro-esquerda me
parece exata, mas por razões menos diretas e menos maciças. Tony Blair con-
sidera-se de centro-esquerda porque quis acabar com a política puramente
liberal de Madame Tatcher e seu fraco sucessor. Ele proclamou a grande ne-
cessidade de dar prioridade aos problemas da educação e da saúde; podemos
ter nossas reservas quanto à apreciação da política inglesa real, que continua
a dar uma forte prioridade às exigências da economia internacional. Mas não
se pode negar a diferença, muito bem percebida pelos eleitores ingleses, entre
Tony Blair e seu predecessor. FHC agiu, em situações em que era tão mais
simples levar a efeito uma política de pura liberalização, mantendo uma polí-
tica que permitia aos atores sociais apoiarem-se no Estado. Deve-se mencio-
nar, por exemplo, a política de Paulo Renato no domínio da educação; mas,
antes de tudo, a possibilidade de reconstruir um sistema aberto, ou seja, de-
mocrático, de decisões políticas e sociais, que seja melhor no final da presi-
dência do que no seu começo. Nada foi resolvido, mas as relações com a CUT
melhoraram e sobretudo o PT, apesar das divisões, torna-se lentamente, muito
lentamente e muito parcialmente, um partido de governo. Muitos homens po-
líticos brasileiros, no Rio como em Brasília, em Porto Alegre e em outras
cidades, falam da urgência de reorganizar a vida política no quadro da nova
política econômica. Aqueles que classificam FHC entre os de direita ou mes-
mo que o acusam de traição possuem uma linguagem sem conteúdo já que não
existe um só país no mundo que feche sua economia aos fluxos internacio-
nais. Podemos ficar indignados com as privatizações, mas deve-se dizer que o
governo Leonel Jospin na França é um governo de direita porque privatiza, e
considerar Massimo D’Alema, ex-dirigente comunista italiano como um re-
negado porque aplica o Tratado de Maastricht? Seria suficiente reconhecer
que num período de vida política e mesmo de grande pressão econômica exte-
rior, FHC não escolheu a mesma política do Presidente Menem, por exemplo,
para lhe atribuir este lugar na centro-esquerda que lhe é recusado com violên-
cia por aqueles que permanecem ligados, de maneira estimável mas irrealista,
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a um quadro de análise que não existe mais há vinte anos. Para melhor com-
preender este julgamento, não o consideremos como um juízo de valor. Pode-
se considerar que a política argentina, em particular depois do plano Cavallo,
permitiu uma transformação mais rápida e mesmo que deu mais certo do que
a do Brasil. A imagem de FHC liberal em sua ideologia e em sua ação está
longe da realidade. De modo mais justo, poderíamos assinalar que todos os
aspectos de um desenvolvimento “hacia adentro” ainda existem no Brasil,
país onde numerosas fronteiras avançam, frentes de produção se deslocam
rapidamente, país que é muito menos o do café do que o foi nos anos anterio-
res. Para o melhor e para o pior, economicamente, burocraticamente, cultural-
mente e politicamente, este país permanece muito mais voltado para si mesmo
do que para grandes horizontes. Pode-se mais facilmente compará-lo aos Es-
tados Unidos pela importância predominante de seu mercado interno do que à
Inglaterra vitoriana. O que explica o fraco espaço político deixado a um can-
didato de direita à Presidência, como era o caso de Paulo Maluf, cuja influên-
cia era reduzida fora de São Paulo. Acrescentemos enfim que no Brasil, como
em outros países do Cone Sul que sofreram ditaduras militares, um programa
de direita aparece retrospectivamente em oposição ao movimento democráti-
co que finalmente triunfou.
Mas não criemos mal-entendidos. Esta reconstrução política e so-
cial é agora cada vez mais possível, ao mesmo tempo que necessária. Mas, ela
ainda não foi realizada. Contudo, o juízo que se refere à primeira presidência
de FHC deve ser orientado pela seguinte observação: o Brasil, no momento do
Plano Real, era obrigado a levar uma política técnica que, de fato, deixava
para mais tarde o tratamento dos grandes problemas sociais. Estes problemas
não foram resolvidos, mas o Brasil agora efetuou uma mudança de época
histórica. Não somente saiu do voluntarismo civil ou militar, não somente
escapou de uma política fortemente liberal seja à maneira de Salinas, seja à
maneira de Fujimori, mas começou a reconhecer que seus principais proble-
mas são internos e, portanto, que as soluções a serem encontradas devem sê-
lo no país, e pelo jogo das reivindicações sociais e das iniciativas políticas.
Certamente, os atos essenciais desta Presidência ainda consistiram em acabar
com os perigos prementes, por meio de uma ação governamental e sem mobi-
lização popular. A crise monetária que explodiu no final da Presidência havia
sido retardada, pois o governo temia, ao desvalorizar a moeda, desencadear a
inflação que havia sido tão difícil de controlar, e ainda temia quebrar o pacto
de confiança que havia sido estabelecido entre o Presidente e o povo. Se esta
crise foi, no total, tão rapidamente superada, foi por causa da força da econo-
mia brasileira, cujo mercado interno é bastante forte para limitar a dependên-
cia em relação ao dólar; foi também e sobretudo porque a comunidade finan-
ceira internacional manifestou sua confiança em FHC, única personalidade
latino-americana que dispunha de um grande crédito pessoal junto aos diri-
gentes financeiros e políticos. Seria paradoxal não reconhecer que esta Presi-
dência abriu-se com uma queda vitoriosa da inflação e fechou-se com a limi-
tação e o controle de uma crise de causas profundas e sobretudo nacionais,
18
TOURAINE, Alain. O campo político de FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 3-22, out. 1999 (editado em fev.
2000).
vindicações se faz mais pela luta contra a desintegração social do que por uma
contestação geral do sistema econômico mundial. A violência e a inseguran-
ça, o desemprego e as diferenças extremas entre as rendas, que atingem os
mais fracos, ameaçam também a própria nação. É esta defesa social da nação,
mais distante possível de qualquer nacionalismo, que será e já é o tema das
novas reivindicações. É o caso também do México, onde as ONGs prolifera-
ram desde o terremoto de 1985 e os escândalos que foram denunciados nesta
ocasião. A eleição triunfal de Cárdenas no distrito federal deveu-se a este tipo
de inquietudes e reivindicações. A marcha do MST organizada em abril de
1997, e que chegou em Brasília no dia 17, tinha mostrado uma grande
integração entre os temas da reforma agrária e os do emprego e da justiça, que
figuravam no mesmo plano no movimento. De seu lado, o movimento nacio-
nal dos meninos e meninas do Rio de Janeiro chamou a atenção para a crise
urbana e o emprego. A opinião pública brasileira e internacional foi muito
sensível a estas ações, assim como ficou impressionada pelo livro de fotogra-
fias de Sebastião Salgado sobre os camponeses – com o apoio de Chico Buarque
e textos de José Saramago. Mesmo se a maior parte das ONGs urbanas são
sustentadas por fundos estrangeiros, pode-se concluir com Maria Glória Gohn1,
que o tema da cidadania tornou-se central nos movimentos populares. Trans-
formação profunda: ao invés de rebeliões armadas que se consideravam a
serviço das categorias menos favorecidas, vê-se a formação de movimentos
de massa que se associam a uma vontade de democratização de todo o país, ao
mesmo tempo que a afirmação dos direitos das categorias desfavorecidas.
Pode-se aqui fazer uma aproximação com os movimentos indígenas do Norte
do Continente, e, em particular, com o movimento zapatista de Chiapas, que é
o contrário mesmo da guerrilha já que associa a defesa dos povos maias à
democratização da política mexicana. A fragilidade deste movimento não o
impediu de suscitar em torno dele um vasto movimento de apoio mexicano e
internacional. O Brasil, durante muito tempo, foi definido pelos geógrafos
como um arquipélago; ele torna-se um continente. Seus problemas internos
de integração são cada vez mais importantes e, conseqüentemente, a ação
política dos dirigentes é considerada como cada vez mais indispensável para
resistir às ameaças internas e externas que pesam sobre o país. Não subesti-
memos a crescente integração do território associada a um vivo movimento de
urbanização que de início conduziu à constituição de grandes megalópoles e
que, mais recentemente, no interior do Estado de São Paulo em particular,
conduziu ao grande desenvolvimento de cidades médias do interior.
Estas tendências à integração – e a consciência de sua necessidade
– não são somente os produtos da ação do Presidente, mas convergem com a
vontade de reforçar em Brasília o poder central diante de uma autonomia am-
pla demais dos estados e municípios que acaba por deixar ao encargo do esta-
do federal as más gestões locais sendo responsável também por atos de vio-
1
lência. Muito tardiamente, mas agora de modo acelerado, o velho Brasil, aquele
Os sem-terra, ONGs e
cidadania. São Paulo, da aliança entre o poder central e os grandes chefes provinciais é substituído
Cortez, 1997. por uma integração maior do país, ao mesmo tempo que sua economia se
20
TOURAINE, Alain. O campo político de FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 3-22, out. 1999 (editado em fev.
2000).
tudo o que tende a agravar mais ainda esta fraqueza em nome de discursos e
programas sem relação com o campo de ação possível deve ser criticado mais
fortemente ainda. Se faço um juízo mais favorável do que outros sobre a primei-
ra presidência de FHC é porque, durante estes anos, o Brasil se aproximou do
realismo político sem ceder às ilusões liberais nem aos discursos denunciadores
rituais. Pouco a pouco, a sociedade brasileira toma consciência de si mesma. A
conjuntura poderia levar a fraqueza política a um ponto extremo e colocar em
perigo a democracia, como se vê em vários países do Continente. FHC nunca
cedeu a tais tendências; sua presidência, que, talvez, foi menos sua do que do
real, vai permitir à segunda presidência ver se reconstituir a ação social e polí-
tica, da qual, aliás, não é certo que o Presidente atual seja o beneficiário.
O que eu quis mostrar aqui é a necessidade de avaliar um governo,
um regime e um Presidente em função da capacidade de ação dos quais eles
dispõem e julgá-los antes de tudo a partir dos efeitos favoráveis ou desfavorá-
veis de sua ação para o aumento desta capacidade de intervenção política. É
deste ponto de vista, distante de qualquer julgamento ideológico tanto quanto
independente de uma avaliação puramente econômica, que o balanço da pri-
meira presidência de FHC me parece “globalmente positivo”, o que não está
em contradição com o julgamento inverso daqueles que avaliam esta presi-
dência seja do ponto de vista de suas convicções tradicionais, seja do ponto de
vista do funcionamento do sistema econômico. Mas o papel da sociologia,
assim como da ciência política, é o de analisar os personagens, as instituições
e os autores coletivos do ponto de vista de seus efeitos, positivos ou negati-
vos, sobre a capacidade da sociedade de agir sobre si mesma.
TOURAINE, Alain. The political field of Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol.
USP, S. Paulo, 11(2): 3-22, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).
UNITERMS: ABSTRACT: This article intends to show that the socialist and president FHC,
social mobilization, even having being severely criticized for having abandoned his old ideas and
global economy,
having turned to be part of the market dictatorship, in a balance of his first
liberalism,
capacity of political mandate, has not only a clearly positive mandate, but also situates him in the
action, middle-left domain, which makes us expect that his second presidency can
democracy. represent the reborn of the social and political life in Brazil.
22
SALLUM JR., Brasilio.
Tempo Social;O Brasil
Rev.sobSociol.
Cardoso:USP,
neoliberalismo
S. Paulo,e desenvolvimentismo.
11(2): 23-47, out.Tempo DOSSIÊ
1999Social; Rev. Sociol. FHC
USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em(editado
fev. 2000).em fev. 2000). o
1 GOVERNO
RESUMO: Este artigo tem três partes. Na primeira, faz-se o exame dos pro- UNITERMOS:
cessos de conquista do poder de Estado que culminaram na eleição de FHC Estado,
governo,
usando o conceito de hegemonia e a idéia de momento maquiaveliano, deriva- crise política,
da de Pocock. Na segunda parte, mostra-se que o novo bloco político no po- transição política,
der, para além de sua orientação liberal e internacionalizante, polariza-se en- hegemonia,
tre duas versões contrapostas de liberalismo, o fundamentalismo neoliberal e politica econômica,
desenvolvimento,
o liberal-desenvolvimentismo. Discute-se os efeitos socioeconômicos da ado- neoliberalismo,
ção pelo governo do neoliberalismo como eixo de sua política macroeconômica. Fernando Henrique
Na terceira parte, analisam-se as razões políticas que levaram a Presidência Cardoso.
reiteradamente a essa escolha. A hipótese explicativa sugerida é de que a
Presidência da República interpretou a manutenção do fundamentalismo
neoliberal como um meio decisivo para assegurar o necessário controle sobre
o sistema político. Sugere-se, ao final, que as mudanças macroeconômicas
iniciadas em janeiro de 1999 dão as bases para uma reorientação liberal-
desenvolvimentista do governo.
D
esde os anos 80, quase todos os países da América Latina vêm
passando por profundos processos de transição política. Não se trata
apenas de mudanças de regime político. Também tem se alterado a
relação entre poder político, sociedade e mercado e a forma de in-
serção internacional das economias nacionais1. Entretanto, em cada país lati-
no-americano, os ritmos e as formas particulares de transformação ocorridas Professor do Departa-
mento de Sociologia
nas várias dimensões têm sido muito diferentes. da FFLCH - USP
23
SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).
Estado sobre o mercado, numa sociedade que, embora mal alinhavada politi-
camente, havia avançado muito no caminho da democratização.
A mudança nas condições do mercado internacional de capitais, o
legado de Collor (positivo e negativo), a exacerbação da instabilidade políti-
co-econômica no período Itamar Franco e o crescimento avassalador do pres-
tígio popular do candidato das esquerdas à Presidência da República consti-
tuíram condições e alavancas poderosas para a tentativa seguinte, efetivada cial, que constrói a
em 1994, de “costurar” a superação da crise de hegemonia que corroía a so- ponte política para um
novo tipo de Estado em
ciedade brasileira desde o início dos anos 8012. que as forças em luta
Recordemos rapidamente as novas condições a que se fez referência. possam conviver (cesa-
Em primeiro lugar, o reinício do afluxo de capitais para a América Latina, como rismo progressivo) ou,
pelo contrário, é o elo
muitos já sublinharam, mudou completamente as condições para o exercício de de ligação entre a si-
políticas de estabilização pois a precariedade das reservas internacionais tinha tuação catastrófica e
uma forma política
sido uma severa restrição às políticas anti-inflacionárias desde os anos 8013. antiga, já ultrapassada
Quanto à herança do período Fernando Collor, há dois aspectos a (cesarismo regressi-
salientar. Mesmo com a repulsa que culminou no processo de impeachment, vo). O autor chave a
este respeito é Antônio
preservou-se – a despeito das objeções do presidente Itamar Franco – a estraté- Gramsci. O emprego
gia liberal que se começara a implementar em 1990 (abertura comercial e que aqui se faz é algo
privatizações). Isso sinaliza que, entre as forças político-partidárias majoritári- metafórico. Para um
balanço curto, mas
as que sustentavam o governo Itamar, o reformismo liberal já avançara tanto rico, dos significados
que inviabilizava qualquer volta ao nacionalismo desenvolvimentista. Ademais, do termo na literatura
especializada, cf. o ver-
depois dos experimentos heterodoxos de Collor, tornou-se muito arriscado – bete “Cesarismo” em
tanto do ponto de vista político quanto em função da eventual reação do Judici- Bobbio (1994).
12
ário – quebrar a indexação pelo controle ou congelamento de preços ou quais- Utilizo-me abundante-
mente da análise das
quer medidas legislativas de duvidoso valor jurídico. Se estas novas condições condições econômicas
restringiam o campo das possibilidades de desenhar uma “saída para a crise”, o e políticas que cerca-
crescimento do prestígio popular das oposições, impulsionado pela instabilida- ram a elaboração do
Plano Real que se en-
de política e econômica do período Itamar, recomendava às forças governistas contra em Sola &
não só eliminarem a causa do crescimento do adversário mas união para enfrentá- Kugelmas (1996).
13
O afluxo de capitais
lo, sob pena de naufragarem como no final da Nova República. começou a atingir o
Essas condições e alavancas deram especificidade à fortuna encon- Brasil em 1991 inten-
trada por algumas lideranças políticas que, bem situadas no seio do Estado, sificando-se a partir
de 1992, o que permi-
tiveram virtu suficiente para negociar a associação entre partidos de centro e tiu acumular reservas
direita em torno da continuidade das reformas liberais, da estabilização da de divisas considerá-
economia e da tomada do poder político central, corporificando tudo isso no veis – de algo como 9
bilhões em fins de
lançamento bem sucedido do Plano Real e na candidatura, afinal vitoriosa, à 1991, passou-se a qua-
Presidência da República do seu articulador, o então Ministro da Fazenda se 24 bilhões em 1992
Fernando Henrique Cardoso. para atingir cerca de
42 bilhões em meados
Esta referência ao encontro entre fortuna e virtu retoma, de modo um de 1994.
14
pouco diverso, a idéia de “momento maquiaveliano”, de Pocock, usada por Estes autores transfe-
rem para a experiên-
Lourdes Sola e Eduardo Kugelmas para enfatizar a atuação das lideranças na cia brasileira a idéia
reconstrução do Estado, na mesma situação histórica14. Eles lembram que nas de Pocock (1975) uti-
conjunturas críticas é central a capacidade das lideranças de aproveitarem ou lizada por Malloy &
Connaghan (1996), na
não “as janelas de oportunidade (no plano internacional, por exemplo) graças à análise dos países dos
recombinação de algumas das propriedades (genéticas) das instituições dadas Andes Centrais.
29
SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).
Jr., 1998, p. 63-115; p.157-199)17. Mas pode ser reconstruída a partir do de-
bate público, de conceitos esparsos aparecidos em documentos oficiais e do
17
No texto citado, ca-
“espírito” de iniciativas governamentais surgidas em reação a certas conse- racterizo o liberal-
qüências sociais e econômicas supostamente negativas da ortodoxia liberal. desenvolvimentismo
Para a corrente neoliberal dominante a prioridade era a estabilização de forma diversa, co-
mo uma estratégia em
rápida dos preços por meio das seguintes medidas complementares: a) manu- construção. O texto foi
tenção do câmbio sobrevalorizado frente ao dólar e outras moedas18, de forma a escrito em julho de
estabilizar os preços internos e pressioná-los para baixo pelo estímulo à concor- 1997 e havia sinais que
permitiam essa inter-
rência derivada do barateamento das importações; b) preservação e, se possível, pretação do processo.
ampliação, da “abertura comercial” para reforçar o papel do câmbio apreciado 18
A sobrevalorização
na redução dos preços das importações; c) o barateamento das divisas e a aber- cambial não é ineren-
te à perspectiva neo-
tura comercial permitiriam a renovação rápida do parque industrial instalado e liberal. Pelo contrá-
maior competitividade nas exportações; d) política de juros altos, tanto para rio, esta orienta-se por
um câmbio “de mer-
atrair capital estrangeiro – que mantivesse um bom nível de reservas cambiais e cado”. A versão abra-
financiasse o déficit nas transações do Brasil com o exterior, como para reduzir sileirada de neoli-
o nível de atividade econômica interna – evitando assim que o crescimento das beralismo, que domi-
nou a política econô-
importações provocasse maior desequilíbrio nas contas externas; e) realização mica, via na sobre-
de um ajuste fiscal progressivo, de médio prazo, baseado na recuperação da valorização um meio
carga tributária, no controle progressivo de gastos públicos e em reformas es- eficaz de obrigar as
empresas nacionais a
truturais (previdência, administrativa e tributária) que equilibrassem “em defi- buscar rapidamente
nitivo” as contas públicas; f) não oferecer estímulos diretos à atividades econô- padrões internacio-
nais de eficiência sob
micas específicas, o que significa condenar as políticas industriais setoriais e, pena de saírem do
quando muito, permitir estímulos horizontais à atividade econômica – exporta- mercado. Esta versão
ções, pequenas empresas, etc., devendo o Estado concentrar-se na preservação é fundamentalista no
sentido de que se cons-
da concorrência, através da regulação e fiscalização das atividades produtivas, titui numa política de
principalmente dos serviços públicos (mas não estatais)19. conversão forçada dos
Entre o lançamento do Plano Real e março de 1995, essa perspectiva que não se enqua-
dram. Sobre o neoli-
fundamentalista dominou plenamente a política econômica. Deixou-se o real va- beralismo, cf. Unger
lorizar até quase 0,80 por dólar, estancando de forma dramática a inflação, o que (1998). A respeito da
apreciação cambial e
aumentou extraordinariamente a renda disponível e a demanda das camadas mais sua quantificação, cf.
pobres da população. Com isso, apesar dos juros altos, a economia – que já vinha Schwartsman (1999).
19
aquecida desde o começo do governo Itamar Franco – apresentou um boom extra- Essa perspectiva neo-
liberal teve como re-
ordinário, amplificando a demanda por importações e tornando-se um desaguadouro presentantes político-
mais fácil para produtos usualmente exportados. Ademais, com o objetivo decla- intelectuais caracterís-
rado de evitar que a demanda maior resultasse em acréscimos de preços, decidiu- ticos: no governo, o ex-
presidente do Banco
se em agosto-setembro reduzir as tarifas alfandegárias em relação aos países do Central, Gustavo Fran-
Mercosul, antecipando a tarifa externa comum, a ser implantada apenas em janei- co, o ex-secretário de
ro de 1995. Isso tudo levou à reversão dos saldos no comércio exterior brasileiro, Política Econômica
Winston Fritsch e o
positivos desde 1987. Já em novembro de 1994 os déficits comerciais começaram ministro da Fazenda
a aparecer, chegando em dezembro a mais de 1 bilhão de dólares. Pedro Malan; fora do
governo, suas expres-
Do ângulo do fundamentalismo liberal, o desequilíbrio externo não sões mais notórias fo-
constituía grande problema. Como o essencial era chegar o mais rapidamente ram alguns economis-
à estabilidade dos preços, era preciso manter apreciada a taxa de câmbio por tas da PUC-Rio, den-
tre os quais Rogério
um longo período e reduzir, com importações, o poder dos oligopólios indus- Werneck e Marcelo de
triais fixarem preços. Eventuais déficits no comércio e nos serviços com o Paiva Abreu.
33
SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).
a urgência com que ela é perseguida aparece condicionada aos efeitos potenciais
destrutivos que as políticas antiinflacionárias ocasionarão no sistema produtivo.
Por isso, combate-se o radicalismo dos fundamentalistas, exigindo-se um câmbio
não apreciado, para evitar déficits na balança de transações correntes (comercial e
de serviços), e juros mais baixos para não desestimular a produção e o investimen-
to. De outra forma: a combinação de câmbio menos valorizado e juros “razoáveis”
não permitiria uma queda tão brusca da inflação, mas provocaria menos
desequilíbrios da economia doméstica em relação ao exterior e, assim, menor de-
pendência de aportes de capitais estrangeiros para equilibrar o balanço de paga-
mentos. Este desenvolvimentismo continua industrializante, mas seu foco am-
pliou-se para incluir as atividades produtivas em geral, desde a agricultura até os
serviços. Além disso, os seus partidários não aspiram, como desejavam seus
antecessores dos anos 50, construir no país um sistema industrial integrado. Aspi-
ram, sim, que a produção local tenha uma participação significativa no sistema
econômico mundial. No entanto, esse desenvolvimentismo limitado pelo molde
liberal apenas vê com bons olhos formas bem delimitadas de intervenção do Esta-
do no sistema produtivo. Assim, dentro dessa perspectiva, são favorecidas as po-
líticas industriais setoriais, mas desde que limitadas no tempo e parcimoniosas nos
subsídios. Tais políticas terão por objetivo não a substituição de importações a
qualquer preço mas o aumento da competitividade setorial e, quando muito, o
“adensamento das cadeias produtivas” para desenvolver no país o máximo possí-
vel de atividades econômicas com padrão internacional de produtividade21.
Não obstante certa flexibilização da política cambial e a adoção
paulatina de medidas “compensatórias” sob a inspiração liberal-desen-
volvimentista, o fundamentalismo liberal continuou sendo o eixo da política
econômica. Quer dizer, embora o ajuste fiscal “definitivo” fosse sendo sem-
pre postergado ao longo do governo FHC (em função das dificuldades e inte-
resses políticos imediatos do governo federal), valorização cambial e juros 21
Dentro do governo in-
elevados foram convertidos em instrumentos permanentes de estabilização. cluem-se nesta pers-
pectiva, dentre outros,
Este conjunto de políticas e/ou de ausência de políticas governa- o ministros José Ser-
mentais provocou uma distribuição de recursos econômicos que alterou deci- ra, Luiz Carlos Men-
sivamente, em relação ao passado, as posições relativas dos vários segmentos donça de Barros e
Luiz Carlos Bresser
socioeconômicos que estão na base do novo bloco hegemônico22. É o que se Pereira e o Secretário
verá esquematicamente na seqüência. de Política Econômica
Em primeiro lugar, o predomínio neoliberal na política macro- e, depois, da CAMEX,
José Roberto Men-
econômica fragilizou dramaticamente a economia nacional em relação ao sis- donça de Barros. Fora
tema financeiro mundial. É certo que a política macroeconômica não produziu do governo alinham-
o resultado sozinha. Somaram-se a ela, para desequilibrar as trocas da econo- se uma enorme quan-
tidade de economis-
mia com o exterior, os muitos anos de relativa estagnação econômica e insta- tas, tendo à frente
bilidade monetária e a abertura comercial. De qualquer modo, esse desequilíbrio Antônio Delfim Neto,
jornalistas econômi-
crônico ampliou o grau de dependência da economia nacional em relação ao cos, como Luiz Nassif
sistema financeiro mundial pois ela passou a demandar volumoso ingresso e Celso Pinto, etc.
22
líquido de capitais estrangeiros para equilibrar o Balanço de Pagamentos. Produzem-se efeitos
também sobre os domi-
Vejamos isso mais de perto. Em situações em que as relações entre nados, mas não pode-
uma economia nacional e o sistema financeiro mundial são normais, o grau de mos tratar disso aqui.
35
SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).
IV/93
IV/94
IV/95
IV/96
IV/97
III/92
III/93
III/94
III/95
III/96
III/97
str
II/92
II/93
II/94
II/95
II/96
II/97
I/92
I/93
I/94
I/95
I/96
I/97
Externa e Saldo da
me
Balança Comercial tri
BC IFE
23
O conceito de fragili- A crise mexicana do fim de 1994, a crise asiática de 1997 e a morató-
dade financeira origi- ria da Rússia, de agosto de 1998, deram lugar a ataques especulativos do tipo
na-se em H. Minsky
tendo sido reelabo- mencionado. Em todas as situações críticas, o Brasil perdeu grande quantidade
rado e adaptado para de reservas internacionais e o governo reagiu de forma similar: manteve a esta-
a economia brasileira
por Paula & Alves Jr.
bilidade da moeda, elevando drasticamente os juros para preservar reservas,
(1999, p. 79). para restringir a atividade econômica interna e o desequilíbrio externo25.
24
No artigo antes citado É verdade que, em função dos choques externos, se adotaram cada
encontra-se análise eco-
nômica da evolução da vez mais enfaticamente as políticas “compensatórias” antes mencionadas, in-
fragilidade durante o clusive uma leve desvalorização real da taxa cambial. Mas elas não foram
Plano Real e também suficientes para contrabalançar a fragilidade financeira externa, especialmen-
explicações quanto aos
cálculos dos índices a te à medida que a situação internacional tornou-se bem mais instável do que
partir dos dados do Ba- na época do lançamento do Plano Real. O resultado é conhecido: crises suces-
lanço de Pagamentos do sivas até o “ataque” final contra o real, já no início do segundo mandato de
Banco Central.
25
A política de desa- Fernando Henrique Cardoso, que acabou provocando a mudança completa do
quecimento adotada regime de câmbio (para câmbio flutuante) e a conseqüente desvalorização do
depois da crise mexica-
na provocou, segundo o
real em cerca de 50% até o fim de janeiro de 1999.
CNI, um ano de redu- Em segundo lugar, a estratégia de estabilização privilegiou a esfera
ção dos índices de financeira vis-a-vis as atividades de produção/comercialização de bens e serviços.
produção industrial
(abril de 1995 a mar- Assim, apesar da redução do peso das instituições financeiras no PIB, as políticas
ço de 1996), sendo que monetária e cambial têm funcionado permanentemente como bombas de sucção
36
SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).
população36. Pode-se até dizer sem receio que quanto mais o governo dispõe
de prestígio político, menos necessidade tem de recorrer à distribuição de re-
cursos específicos, no estilo clientelista.
Na arena da influência, onde Fernando Henrique podia obter parte
desse prestígio político para si e para seu programa, sua posição também era
muito favorável. Os órgãos de comunicação de massa e a maioria dos “forma-
dores de opinião” já aderira, há bastante tempo, à perspectiva mais liberal e
internacionalizante que orientava o novo bloco hegemônico. Em especial, o
próprio presidente da República era apresentado de forma extraordinariamente
favorável: intelectual brilhante, com prestígio internacional; político afeito ao
diálogo, reformista moderado, moralmente inatacável; e que, além de tudo
isso, mostrara a rara capacidade de administrar com muita habilidade, em
meio à turbulência econômica e política do governo Itamar Franco, um pro-
36
Argelina C. Figueiredo grama muito bem sucedido de estabilização. Contudo, a sintonia entre mídia e
e Fernando Limongi governo não é algo que se mantém “naturalmente”, por inércia; depende, em
têm acentuado em vá- parte, do grau em que a massa de consumidores das mídia mostra-se receptiva
rios artigos a força dos
controle político do às políticas governamentais.
Executivo e de seu É claro que o domínio governamental numa das arenas serviu como
“dispositivo partidá- reforço para controlar a outra. Contudo, o mais relevante é que tanto na arena
rio” sobre a base par-
lamentar no interior do institucional como na de influência a posição dominante do governo e do pre-
Congresso Nacional. sidente foi sempre alicerçada na simpatia da grande maioria da população,
Eles mostram força até
na aprovação de maté-
sentimento derivado da estabilidade dos preços obtida com o Plano Real e da
rias impopulares como subseqüente melhora temporária das suas condições de vida. Explica-se: ape-
a reforma da previdên- sar de difuso, o prestígio popular tinha possibilidades de se converter, eventu-
cia (cf. Figueiredo &
Limongi, 1998). almente, em formas específicas e variadas de apoio político ao governo – boa
37
A paralisação – que receptividade às suas mensagens ou impermeabilidade à opiniões contrárias a
entre outras deman- ele, disponibilidade para mobilizar-se em favor dele ou para votar em candi-
das exigia o cumpri-
mento de promessas datos a ele associados e assim por diante.
salariais feitas no pe- Mesmo na arena coercitiva, onde a oposição dispunha de mais re-
ríodo Itamar Franco –
durou cerca de dois
cursos, o referido sentimento difuso de simpatia popular teve relevância. Ele
meses. Ela tornou-se dificultou as mobilizações contrárias ao governo e facilitou o combate políti-
muito impopular por- co às organizações de oposição que conseguiam ultrapassar aquela barreira.
que, além da reivindi-
cação de aumento de Sublinhe-se, entretanto, que na arena coercitiva o efeito
salários ter sido estig- desmobilizador do prestígio popular difuso proveniente da estabilização teve
matizada pelo discur- apenas um papel suplementar. A própria estabilização quebrou o padrão cos-
so oficial como “exa-
gerada” e “perigosa tumeiro de luta distributiva, quer dizer, o estilo de mobilização e luta desen-
para o Plano Real”, volvido pelas organizações de assalariados para enfrentar o regime de infla-
ocasionou falta de gás
de cozinha e de com-
ção alta e indexada. Com isso, os resultados das mobilizações e paralisações
bustíveis. Essa impo- tornaram-se mais incertos e as reivindicações mais difíceis de obter.
pularidade abalou a Ademais, o governo tratou de reduzir ao mínimo as possibilidades
unidade do movimen-
to e facilitou sua der- da oposição operar na arena coercitiva, tentando derrotar politicamente a Cen-
rota para o governo, tral Única dos Trabalhadores. Para isso adotou, já no primeiro semestre de
cuja posição teve o 1995, uma posição não-negociadora e legalista para vencer a greve dos sindi-
suporte do Judiciário,
que caracterizou a catos de petroleiros37. Esperava quebrar, assim, a espinha dorsal do sindicalismo
greve como ilegal. de oposição e debilitar um dos principais ícones do estatismo e do nacionalis-
42
SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).
mo. É provável que tenha tido sucesso e que se possa atribuir à derrota dos
petroleiros algo da debilidade apresentada pelo movimento sindical ao longo
do governo Fernando Henrique.
A propósito da arena coercitiva, cabem duas pequenas mas impor-
tantes digressões. Em primeiro lugar, o governo Fernando Henrique não fez
esforço para obter a contribuição positiva de organizações societárias para a
execução de seu programa. Quer dizer, não apenas procurou desmobilizar a
oposição mas desprezou a mobilização social em seu favor. Quase sempre
procurou aprisionar a política nas arenas institucional e de influência38, iso-
lando a política da sociedade organizada (cf. Oliveira, 1996, p. 59-60; p. 69).
Apesar disso – e este é outro ponto a sublinhar a propósito da arena
coercitiva – o Movimento dos Sem-Terra (MST) manteve-se na ofensiva duran-
te todo o governo Cardoso e com alto grau de apoio popular urbano. Fustigando
o governo com invasões de terra e manifestações em todo o país, o MST obri-
gou a Presidência da República a transformar os órgãos dedicados ao tratamen-
to da questão fundiária e a adotar medidas inovadoras para melhorar o seu pro-
grama de reforma agrária. O inegável sucesso desse movimento em prol de mais
igualdade – mesmo sob as condições adversas que afetavam principalmente os
atores coletivos enraizados nas classes populares – indica que o movimento de
democratização da sociedade ainda continuará, por muito tempo, a ser uma das
molas básicas da transformação da sociedade brasileira.
Este balanço esquemático da situação nas três arenas consideradas
indica a enorme importância que tinha para o governo, e para a realização de
seu programa, a manutenção do prestígio popular difuso produzido pela pre-
servação da estabilidade de preços. Essa “simpatia” difundida no plano
psicossocial dava ao governo bases sólidas para produzir resultados favorá-
veis nos vários campos de luta política.
Cabe tornar mais precisa esta proposição em dois sentidos. O pri-
meiro deles é apenas uma reiteração. A ação política bem sucedida do gover-
no nas várias arenas políticas teve no apoio difuso recebido da população
apenas um dos seus componentes causais. Mesmo na arena político-
38
institucional, onde o governo Cardoso estava melhor posicionado, seu suces- Foram exceções a mo-
bilização e organiza-
so dependeu de outras condições tais como, do funcionamento dos sistemas ção do empresariado
de controle do “dispositivo governista” sobre sua base parlamentar, do con- agrícola junto ao Mi-
teúdo específico das medidas que pretendeu aprovar, etc. nistério da Agricultu-
ra no começo do go-
O segundo é quase óbvio mas muito importante: a valorização da verno e a tentativa de
estabilidade monetária foi socialmente produzida. Ela não teria ocorrido caso negociação com a CUT
de um aspecto da re-
a maior parte da população não tivesse sofrido a experiência traumática de forma da previdência
alta inflação no período anterior ao Plano Real. Conseqüentemente, caso o social. Sublinhe-se
status quo ante tivesse sido de estagnação econômica, baixa inflação e de- que, em ambos os ca-
sos, o rompimento do
semprego elevado, é provável que políticas orientadas para o crescimento rá- isolamento deu-se para
pido e o emprego teriam sido as de maior impacto popular. melhorar uma posição
A argumentação desenvolvida até aqui pretendeu sublinhar a lógi- governamental tem-
porariamente desvan-
ca política que explica, em parte, a preferência pelo fundamentalismo neoliberal tajosa na arena ins-
ao longo do primeiro governo Fernando Henrique. Essa escolha pode ter sido titucional.
43
SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).
Considerações Finais
45
SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).
SALLUM JR., Brasilio. Brazil under Cardoso: neoliberalism and developmentism. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 23-47, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).
UNITERMS: ABSTRACT: This article has got three parts. The first makes an exam of the
State, processes of conquest of the power of the State, which culminated in the
government,
reelection of FHC, using the concept of hegemony and the idea of Machiavellian
political crises,
political transition, moment derived from Pocock. The second part shows that the new political
hegemony, block in charge, besides its liberal and internationalizating orientation, polari-
economical policy, zes itself between two opposed versions of liberalism, the neoliberal
development,
fundamentalism and the liberal-developmentism. It also discusses the social
neoliberalism,
FHC. economical effects of the adoption of the neoliberalism by the government as
an axe of its macroeconomic policy. The third part analyses the political reasons,
which guided the presidency reiteratedly to this choice. The suggested
hypothesis are that the Presidency of the Republic interpreted the maintenance
of the neoliberal fundamentalism as a decisive way of assuring the necessary
control over the political system. At the end it is suggested that the
macroeconomical changes that started in January 1999 are the basis for a
liberal-developmentist reorientation of the government.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
47
SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).
48
FIGUEIREDO,
TempoArgelina Cheibub,
Social; Rev.LIMONGI, Fernando
Sociol. USP, & VALENTE,
S. Paulo, Ana49-62,
11(2): Luzia. Governabilidade
out. 1999 DOSSIÊ
e concentração de poder FHC
institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev.
(editado Sociol.
em fev. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado emo fev. 2000).
2000). 1 GOVERNO
Governabilidade e
concentração de poder
institucional - o Governo FHC
ARGELINA CHEIBUB FIGUEIREDO - FERNANDO LIMONGI
RESUMO: O artigo analisa o governo Fernando Henrique Cardoso como parte UNITERMOS:
de um padrão mais geral de relações Executivo-Legislativo que se caracteriza governabilidade,
relações Executivo-
por forte concentração de poder nas mãos do Presidente da República e dos Legislativo,
líderes partidários. A centralização decisória que se observa nesse governo produção legal,
tem bases institucionais, distinguindo-se do chamado “presidencialismo impe- apoio partidário,
rial”, de base personalista. Os poderes institucionais de agenda e o controle agenda legislativa,
governo FHC.
sobre o processo legislativo têm forte impacto na produção legal e na capaci-
dade do governo em obter apoio para a sua agenda legislativa.
Introdução
N
o governo Fernando Henrique Cardoso testemunhamos o pleno
funcionamento de um sistema decisório que se caracteriza por forte
concentração de poder nas mãos do Presidente da República e dos
líderes partidários no Congresso. A centralização decisória obser-
vada nesse governo é parte de um padrão mais geral de interação Executivo- Professora do Departa-
Legislativo que resulta da escolha institucional de constituintes e parlamenta- mento de Ciência Polí-
tica do IFCH - Unicamp
res1. Os extensos poderes legislativos do Executivo, constitucionalmente con- Professor do Departa-
feridos, e a alocação de direitos e recursos parlamentares em favor dos líderes mento de Ciência Polí-
tica da FFLCH - USP
partidários, garantida regimentalmente, criaram um modelo institucional que
favorece a governabilidade, entendida, em sentido restrito, como a capacidade Bolsista de Iniciação
Científica da Fapesp e
de fazer valer a agenda legislativa do Executivo. Estagiária do Cebrap
49
FIGUEIREDO, Argelina Cheibub, LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luzia. Governabilidade e concentração de poder
institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado em fev. 2000).
to, sob o manto protetor das medidas provisórias e do controle dos líderes
sobre o processo de apreciação e votação.
Os freqüentes pedidos de urgência para a tramitação de matérias, por
parte dos líderes de bancadas, permitiram que grande parte dos projetos de lei
fossem votados sem que as comissões tivesse apresentado um parecer sobre a
matéria e o processo de votação. Com isto foi possível neutralizar a influência
parlamentar nessa instância decisória, onde esta influência pode ser mais efeti-
va. Os líderes podem ainda influenciar no resultado dos trabalhos das comis-
sões por meio da prerrogativa de indicar e promover alterações na composição
das comissões e nas mudanças de seus membros. Usando dessa prerrogativa,
agiram muitas vezes no sentido de trocar um parlamentar, cujos vínculos eleito-
rais tornariam mais difícil seu voto favorável à matéria em questão. Com isto
influíam diretamente nos resultados das votações. Este tipo de prática, normal-
mente vista como manifestação de deformação ou fragilidade dos partidos bra-
sileiros, consistem, na realidade, em uma atuação que visa garantir os interesses
do partido como um todo, em detrimento de interesses de parlamentares a partir
de seus vínculos eleitorais. Conta, no entanto, com o acordo dos parlamentares
que são alvo deste tipo de ação, pois ela “protege” esses vínculos, impedindo
que sofram retaliações de suas bases.
A tramitação em urgência aumenta também o controle dos líderes
sobre o plenário. Por meio desse instrumento, são capazes de neutralizar tam-
bém a participação parlamentar em plenário, pois o regime de urgência res-
tringe a apresentação de emendas. A votação em urgência aumenta, também,
o controle das lideranças partidárias sobre as informações a respeito da maté-
ria em votação, tornando mais fácil a sua aprovação.
Todavia, tendo em vista a natureza da agenda do governo, a oposi-
ção adotou a estratégia de aumentar os custos de aprovação das medidas pro-
postas para a base do governo. Foi considerável o número de projetos levados
a votação nominal nesse governo. Como se sabe, a votação nominal de uma
matéria depende de solicitação das lideranças partidárias. Tendo em vista a
baixa capacidade de influir na pauta e no conteúdo dos projetos legislativos, a
oposição atuou no sentido de marcar sua posição política e aumentar a expo-
sição pública das decisões parlamentares, especialmente das medidas impo-
pulares. Para tanto recorreu freqüentemente a pedidos de votação nominal.
Cerca de dois terços foram solicitadas pelo PT e PDT. O embate entre líderes
oposicionistas e governistas girou muitas vezes em torno da atuação dos pri-
meiros para forçar votações nominais e a dos últimos para impedí-las.
O controle do processo de votação e do plenário pelos líderes governis-
tas adquiriu importância ainda maior na aprovação das reformas constitucionais.
Neste caso, o executivo não contava com os poderes legislativos de que dispunha
na implementação de suas propostas. Como se sabe, alterações constitucionais
requerem condições bastante exigentes para a os seus proponentes: votação nomi-
nal para cada alteração proposta e a sua aprovação em dois turnos por três quintos
de ambas as casas legislativas. Os seus opositores, por sua vez, contavam com um
recurso adicional para a exposição pública das decisões parlamentares: podiam
56
FIGUEIREDO, Argelina Cheibub, LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luzia. Governabilidade e concentração de poder
institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado em fev. 2000).
O Congresso e o governo 7
As votações definidas
como parte da agenda
Poderes institucionais de agenda e controle sobre o processo do governo são aque-
las sobre as quais o lí-
legislativo têm forte impacto na produção legal e na capacidade dos governos der do governo na Câ-
em obter apoio para a sua agenda legislativa. Esses poderes afetam a estrutura mara se manifestou.
59
FIGUEIREDO, Argelina Cheibub, LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luzia. Governabilidade e concentração de poder
institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado em fev. 2000).
FIGUEIREDO, Argelina C.; LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luiza. Governability and
institutional power concentration: the government of FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 49-62, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).
ABSTRACT: This article tries to analyses the government of FHC as part of a more UNITERMS:
general pattern of Executive-Legislative relationship which are featured by a strong governability,
Executive-Legislative
concentration of power in the hands of the President and the Party leaders as well.
relationship,
The centralization of the decisions that is noticed in this government has institutional legal production,
basis, distinguishing itself from the called “imperial presidencialism”, with party support,
personalistic basis. The institutional power and the control over the legislative legislative agenda,
FHC government.
process have a strong impact in the legal production and in the capacity of the
government in obtaining the support for his legislative agenda.
61
FIGUEIREDO, Argelina Cheibub, LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luzia. Governabilidade e concentração de poder
institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado em fev. 2000).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
62
KUGELMAS,
Tempo Eduardo & SOLA,
Social; Rev.Lourdes.
Sociol.Recentralização/Descentralização:
USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, dinâmica DOSSIÊ
do regime federativo
out. 1999 FHC
no Brasil dos anos
90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,em
(editado 11(2):
fev.63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).
2000). o
1 GOVERNO
Recentralização/Descentralização
dinâmica do regime federativo
no Brasil dos anos 90
EDUARDO KUGELMAS
LOURDES SOLA
RESUMO: Este artigo discute a evolução das práticas e instituições federati- UNITERMOS:
vas no Brasil dos anos recentes, enfatizando a simultaneidade de processos federalismo,
políticas públicas.
de recentralização e descentralização. A trajetória descentralizadora que cul-
mina com a Constituição de 1988, a crise fiscal do estado brasileiro e os efei-
tos do Plano Real são discutidos a partir de um quadro de referências de tipo
comparativo, que busca incorporar escritos muito recentes de Alfred Stepan.
T
omemos como ponto de partida uma metáfora amplamente utilizada
nas análises em torno do regime federativo no caso brasileiro, a da
sístole/diástole, ou seja, a da alternância de períodos de centralização
e de descentralização na história do país, identificando-se habitual-
mente a centralização com o autoritarismo e a descentralização com avanços demo-
cráticos. Assim, à monarquia de formato unitário seguiu-se a “Primeira Repúbli-
ca” (1889-1930), quando se institucionalizou o regime federativo no país, sendo a
Constituição de 1891 seu primeiro marco institucional. A Revolução de 1930 e a
ascensão de Vargas abrem um período centralizador que culmina com o Estado
Novo (1937-1945). O período democrático da Constituição de 1946 é interrompi-
do pelo regime militar de 1964 que se estende até 1985. Neste momento, a centra-
lização autoritária atinge seu ponto máximo, na década de 70, com os governos Professor do Departa-
Medici e Geisel. A transição democrática tem como momento emblemático a Cons- mento de Ciência Po-
lítica da FFLCH - USP
tituição de 1988, considerada um marco de descentralização federativa.
Este relato tantas vezes repetido é, porém, problemático. A tão se- Professora do Departa-
mento de Ciência Polí-
dutora metáfora, atribuída ao general Golbery do Couto e Silva e que tem sua tica da FFLCH - USP
63
KUGELMAS, Eduardo & SOLA, Lourdes. Recentralização/Descentralização: dinâmica do regime federativo no Brasil dos anos
90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).
O novo enquadramento
estoque da dívida fora crescendo de tal maneira que começa a parecer aos estados
um second best aceitável o atendimento, com menos resistências, às condições
apresentadas pelo poder central. O próprio peso da dívida conjunta dos Estados,
calculado em torno de 100 bilhões de dólares, maior que a dívida externa de quase
todos os países emergentes, demonstrava a gravidade e extensão do problema. O
governo paulista desiste da hipótese de manutenção do BANESPA e concorda
com sua federalização como preparação de uma futura privatização.
Outras manifestações de força da União neste período foram a pror-
rogação do FSE, agora denominado Fundo de Estabilização Fiscal e a insti-
tuição da chamada Lei Kandir, que isenta as exportações do pagamento do
ICMS (Setembro de 1996). A partir do final de 1996 vai-se consolidando o
novo formato, caracterizado por acordos caso a caso prevendo a troca da dívi-
da mobiliária por uma dívida de longo prazo com a União a juros preferenci-
ais, de 6 a 7,5% ao ano, comprometendo-se os estados em contrapartida à
utilização de parcelas entre 11 a 13% de sua receita líquida com os pagamen-
tos referentes a esta dívida. Os acordos incluíam também compromissos com
a privatização de empresas estaduais, cortes de despesa, incluindo a promessa
de obediência à Lei Camata, que limita as despesas com pessoal a 60% da
receita líquida e restrições ao endividamento futuro.
A nova situação assim foi descrita por um especialista no tema:
Os governadores, até então, haviam usado o poder po-
lítico para obter favores financeiros e sustentar gas-
tos acima do que seria possível com base nos recursos
fiscais... O programa do governo, ao negar este quadro
e forçar o ajuste patrimonial dos estados, aliado ao
programa de privatizações de órgãos federais, abriu
uma fase de transição a um novo pacto federativo...
As mudanças no ordenamento institucional, ora em
gestação, interferem com as articulações financeiras
presentes nas relações governamentais e restringem
as possibilidades dos estados usarem a vinculação com
as suas empresas e bancos para fugirem aos limites
dados pela órbita fiscal (Lopreato, 1997, p. 102).
Ainda não se vislumbra, porém, qual possa ser o novo desenho
institucional de relações intergovernamentais. O que se observa com nitidez é
a ausência de mecanismos cooperativos mais eficazes, quer entre União e es-
tados, quer nas relações entre estes. Tem sido utilizada a expressão “federalis-
mo predatório “para caracterizar a situação reinante, marcada pelo perpétuo
conflito em torno dos recursos a serem atribuídos a cada esfera e também pela
guerra fiscal entre os estados, ansiosos por atrair novos investimentos através
de mecanismos de renúncia tributária, principalmente isenções da cobrança
do ICM. A ineficácia do CONFAZ-Conselho de Política Fazendária, que se-
8
ria, em tese, o órgão harmonizador dos estados entre si é notória. Este assunto é analisa-
do em Lopreato (1997)
Uma avaliação recente dos problemas do modelo federativo brasi- e Garman, Leite e
leiro acentua este caráter predatório e a notável dificuldade em criar instru- Marques (1998).
73
KUGELMAS, Eduardo & SOLA, Lourdes. Recentralização/Descentralização: dinâmica do regime federativo no Brasil dos anos
90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).
Políticas sociais
Interrogantes e aporias
KUGELMAS, Eduardo & SOLA, Lourdes. Recentralization/Decentralization: dynamics of the federative regime in
Brazil 90’s. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).
ABSTRACT: This article discusses the evolution of the federative practice and UNITERMS:
institutions in Brazil in the past few years, emphasizing the simultaneity of the federalism,
decentralization processes. The decentralizing trajectory which culminates in public policies.
the 1988 Constitution, the fiscal crises of the Brazilian State and the effects of
Plano Real are discussed based in a set of comparative references, trying to
incorporate very recent works by Alfred Stepan.
79
KUGELMAS, Eduardo & SOLA, Lourdes. Recentralização/Descentralização: dinâmica do regime federativo no Brasil dos anos
90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
81
KUGELMAS, Eduardo & SOLA, Lourdes. Recentralização/Descentralização: dinâmica do regime federativo no Brasil dos anos
90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).
82
SCHWARTZ,
Tempo Gilson. Além da
Social; estabilização:
Rev. do Plano
Sociol. USP, S. Real à reconstrução
Paulo, da economia
11(2): 83-96, política brasileira.DOSSIÊ
out. 1999 Tempo Social;FHC
Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96,(editado
out. 1999 em
(editado
fev.em fev. 2000).
2000). o
1 GOVERNO
Além da estabilização
Do Plano Real à reconstrução da economia
política brasileira
GILSON SCHWARTZ
83
SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).
foram os surtos dos anos 80 e 90, “décadas perdidas”). Parece que surgiu uma
versão pós-moderna do conflito entre estatizantes e privatistas, estruturalistas
e monetaristas, industrialistas e oligarcas, abolicionistas e escravocratas e,
para alguns, até mesmo da velha rixa entre paulistas e cariocas.
Mas o debate não é apenas doméstico. A globalização também acon-
tece neste plano, e o mesmo debate transcorre internacionalmente. No mundo
inteiro discute-se novamente a questão do crescimento, especialmente em face
do que se consideram taxas medíocres nas principais economias da OCDE. Na
França e em toda a União Européia discute-se o custo social do apego a uma
norma monetária rígida. Nos Estados Unidos, até as estatísticas estão sendo
rediscutidas pelos que pretendem repensar, diante do vigor do processo de cres-
cimento não-inflacionário, a própria teoria do crescimento econômico.
A dificuldade maior, entretanto, parece radicar nos dilemas exis-
tenciais de uma geração que passou da aposta em projetos ao gerenciamento
passivo de um presente estreito, quase imobilizada pelo espectro de um “futu-
ro incerto e miserável”. Essa geração, no poder com FHC, foi até agora inca-
paz de formular uma agenda votada para o que está além da estabilização.
Conclusão
SCHWARTZ, Gilson. Beyond stabilization: from Plano Real to the reconstruction of the Brazilian political
economy. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, 11(2): 83-96, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).
ABSTRACT: This article analyses the general economical conditions associated UNITERMS:
to the process of stabilization of prices in Brazil, emphasizing some questions macroeconomy,
Brazilian economy,
related to the role of the definition of a model of economical development. Even
stabilization,
having external restrictions and a priority given to the stability, the author argues development,
that there is still space for new definitions in long term public politics. State,
inflation.
95
SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).
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(editado em
em fev.fev.
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2000). o
1 GOVERNO
Reforma agrária
o impossível diálogo sobre
a História possível
JOSÉ DE SOUZA MARTINS
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S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).
ativa entre Estado e sociedade para realizar o que pode ser uma importante expe-
riência de reinvenção social na história contemporânea do Brasil.
luta pela reforma agrária entre nós de uma intensa ambigüidade, da qual não
se libertou até hoje. Basta ter em conta que sob o mesmo rótulo de reforma
agrária havia desencontrados projetos de intervenção no direito de proprieda-
de, sempre em nome de terceiros, os trabalhadores rurais. Grupos mais do que
antagônicos, inimigos, preconizavam a reforma agrária. Uns em nome do
conservadorismo. Outros em nome da revolução. Sem contar que as esquer-
das estavam, a respeito, radicalmente divididas. De um lado, havia uma pro-
posta de reforma agrária claramente conservadora, sobretudo a mal definida
reforma católica. De outro, havia uma proposta de reforma agrária radical, a
das Ligas Camponesas, também ela não muito clara.
A Igreja estava preocupada com a questão social do campo, mais do
que com a questão agrária, em posição oposta à do Partido Comunista e por
oposição a ele. Na linha do conhecido documento pioneiro de Dom Inocêncio,
bispo de Campanha (MG), de 1950, a Igreja reconhecia o risco político das
migrações, do êxodo rural e do desenraizamento, que supostamente lançariam
os pobres do campo nos braços dos comunistas nas cidades de destino, como
Rio e São Paulo. A Igreja passava a pensar alternativas no sentido da preserva-
ção da unidade familiar de produção, do trabalho familiar e da família, trabalho
familiar que incluía o trabalho não autônomo dos colonos das fazendas de café
no Sudeste e dos moradores das fazendas de cana de açúcar no Nordeste, cuja
continuidade era comprometida pelas migrações para o meio urbano.
A reforma agrária, ainda sem qualquer definição, passava a ser um
objetivo para ela, porém contido e limitado pelo temor de questionar o direito de
propriedade e os direitos da classe de proprietários de terra. Era uma motivação
conservadora e de direita, menos construída em cima de uma práxis social, que
ainda não tinha lugar, uma espécie de antecipação preventiva, e muito mais deri-
vada de um claro antagonismo ideológico em relação às esquerdas. Justamente
por isso, Dom Inocêncio reuniu fazendeiros para produzir sua carta pastoral a
favor de uma reforma agrária, com base numa posição claramente anticomunista.
Uma exceção anômala nas esquerdas, que poderia ter representado
a alternativa de esquerda para a questão fundiária, foi a postura das Ligas
Camponesas. O socialista Francisco Julião, também em oposição ao Partido
Comunista e por ele hostilizado, mas igualmente hostilizado pelos católicos,
procurado pelos trabalhadores de um engenho, propôs que o problema se re-
solvesse pela Lei do Inquilinato, que já existia, na qual se enquadravam os
direitos de parceiros, arrendatários e moradores. Era apenas o preâmbulo da
reforma agrária radical por ele preconizada. Mesmo assim, um radicalismo
aquém do que entendiam alguns ser o necessário. Do que decorreu o extremis-
mo de Clodomir Moraes e seu grupo, seu afastamento das Ligas, e a fracassa-
da tentativa da guerrilha em Dianópolis (GO). Na base, portanto, uma pro-
posta conservadora, campesinista, e a inquietação camponesa como base de
um radicalismo político na superestrutura. Algo muito parecido com o que
ocorre atualmente. E na mesma linha, mais adiante, a ação do Partido Comu-
nista do Brasil, secessão filochinesa do Partido Comunista Brasileiro, que
preconizava uma via camponesa para o socialismo.
103
MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).
ros, sobretudo da Amazônia Legal, para terem seu direito à terra de trabalho
reconhecido e legalizado. As grandes lutas pela terra nos anos sessenta e setenta
e ainda nos anos seguintes foram fundamentalmente lutas pela regularização
fundiária. Então, as oposições à ditadura, a Igreja (e não só a CPT) e a Contag
definiam essas regularizações como reforma agrária e clamavam por ela com
base no Estatuto da Terra outorgado pela ditadura militar.
De fato, a regularização fundiária no Brasil é, na maioria dos casos,
legítimo ato de reforma agrária. Apenas quem não conhece a realidade social
do campo pode supor que a regularização é mero ato administrativo sem mai-
or alcance. A sofrida e sangrenta resistência dos posseiros à sua expulsão
violenta da terra para beneficiar grileiros e latifundiários e viabilizar a política
de consolidação da aliança da terra com o capital, fator de esvaziamento da
reforma, impôs ao Estado brasileiro nos anos mais difíceis e repressivos da
ditadura a necessidade de atenuar e redefinir parcialmente o seu projeto
fundiário. Foi o que salvou o país de se transformar num território de enclaves
do poder absoluto do capital latifundista. Esquecer disso ou não saber disso,
desqualifica qualquer análise pretensamente crítica da reforma agrária em
andamento. A regularização da situação fundiária dos posseiros de extensas
regiões do país foi e é um legítimo ato de reforma agrária porque impõe limi-
tes ao processo expropriatório que daria ao país uma estrutura fundiária mui-
to mais concentrada e latifundista do que a atual. Chamo a atenção para a
proliferação de municípios e cidades onde essa resistência ocorreu, conse-
qüência de ações que impuseram limites ao enclavismo do latifúndio.
Um segundo questionamento da ação governamental é o da
impugnação da política de assentamentos sob o pretexto de que assentamento
não é reforma agrária. Ora, assentamento é a forma da redistribuição da terra,
que é em que consiste, no essencial, qualquer reforma agrária. Reforma agrá-
ria é todo ato tendente a desconcentrar a propriedade da terra quando esta
representa ou cria um impasse histórico ao desenvolvimento social baseado
nos interesses pactados da sociedade. Pacto que só se torna eficaz através da
mediação dos partidos políticos e no âmbito do possível. Isto é, no âmbito das
concessões que as forças em confronto possam fazer para viabilizar uma trans-
formação institucional e social necessária e inadiável em favor do bem co-
mum. E não em favor dos interesses particularistas de uma classe, ou fração
de classe, ainda que beneficiando-a de algum modo, seja ela de pobres ou de
ricos. Quando os partidos não conseguem chegar a um acordo em nome da
sociedade para viabilizar uma reforma desse alcance, abre-se o caminho para
a revolução. Mas, a revolução não depende de irritações pessoais. Também
ela depende de um consenso básico a respeito do que é necessário, mas se
tornou inviável pela via da negociação. Quem se recusa à negociação desde o
início da proposição de um problema político, não só não viabiliza seu proje-
to por caminhos institucionais como não o viabiliza por caminhos revolucio-
nários. É o que se chama de voluntarismo.
Um terceiro questionamento da ação do governo diz respeito aos
“números da reforma agrária”. O bate-boca em torno desse tema é uma clara
107
MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).
to de propriedade, restrições redutivas, que não têm sido notadas pelos que se
preocupam com a reforma agrária, mas que em geral não as vinculam à ques-
tão agrária e à questão do território. Refiro-me à lenta retomada do senhorio,
do domínio, do território por parte do Estado e ao fato de que essa retomada
praticamente nada tem a ver com as lutas sociais no campo nem com as lutas
indígenas, sobretudo no período da ditadura. A Lei de Terras, de 1850, fôra
promulgada por um Parlamento constituído de grandes fazendeiros e senho-
res de escravos. Não havia nenhum grupo popular reivindicando um regime
fundiário diferente do aprovado em substituição ao regime de sesmarias que
cessara nas vésperas da Independência. Por essa Lei, dois distintos institutos
foram unificados num só: o domínio, que pertencia ao Estado, e a posse útil,
que era do particular. Por ter o domínio da terra, o senhorio, o Estado preser-
vava o direito de arrecadar as terras às quais o particular não desse utilidade,
não tornasse produtivas. Até o século XVIII, a Coroa com freqüência recorreu
a essa prerrogativa para redistribuir terras que não fossem devidamente utili-
zadas. A Lei de Terras, porém, transferiu ao particular domínio e posse, crian-
do uma espécie de direito absoluto que é a principal causa do latifundismo
brasileiro e das dificuldades para dar à terra, plenamente, uma função social.
Sobretudo a partir da Revolução de 1930, o Estado brasileiro co-
meçou uma lenta retomada do seu domínio sobre o território por meio de
medidas restritivas ao direito de propriedade. A primeira foi o Código de Águas,
que restringiu o direito de propriedade ao solo e dele excluiu o subsolo. Ou-
tras medidas na mesma linha: o senhorio da União sobre terras de marinha.
Mais tarde, o decreto de tombamento de bens históricos, que introduziu con-
dições restritivas ao exercício do direito de propriedade, legislação que foi
alargada para os bens de interesse turístico e ambiental; o reconhecimento da
posse imemorial das terras indígenas pelos respectivos povos, tutelados da
União; a separação de domínio e posse no território do Distrito Federal; a
proteção às reservas florestais e nesse sentido a imposição de restrições de
uso de uma parcela da propriedade fundiária. Na ditadura militar, o próprio
Estatuto da Terra, ao definir a categoria de latifúndio e estabelecer-lhe restri-
ções que o tornam passível de desapropriação por interesse social, estendeu
ao solo uma parcela de domínio regulamentar por parte da União, num certo
sentido próximo do regime sesmarial. Mais recentemente, na própria Consti-
tuição de 1988, o reconhecimento do direito de posse às terras dos antigos
quilombos por parte das comunidades negras. E por fim o estabelecimento do
confisco territorial das propriedades utilizadas para o cultivo de plantas tóxi-
cas que causem dependência física de seus usuários, como a maconha.
Desde o Estatuto da Terra, a reforma agrária se situa nesse proces-
so lento de retomada do domínio da terra por parte do Estado. Como menci-
onei antes, o Ministério de Política Fundiária promoveu, nas últimas semanas
de 1999, a anulação dos títulos de 3.065 propriedades, correspondentes a
93.620.587 hectares de terra, conforme o Livro Branco da Grilagem de Ter-
ras, duas vezes a área da França. Serão revertidos ao domínio da União, para
integrar o fundo de reforma agrária ou para projetos ambientais. O que cons-
122
MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).
titui uma poderosa indicação de que a questão agrária reaparece com toda sua
força histórica na questão do território e, portanto, no âmbito dos poderes do
Estado nacional. A questão agrária se redefine como forte componente da
questão da soberania e não mais exclusiva ou principalmente como
irracionalidade do processo de reprodução ampliada do capital. Redefine-se,
pois, como questão política engendrada pela questão social, o que confirma a
nossa tendência histórica de ter nos pobres e desvalidos os agentes sempre
indiretos das ações demarcatórias da História, ainda que delas destinatários,
mesmo que não reconheçam aí o seu “projeto social explícito”.
É necessário ter isso em conta quando se fala em reforma agrária no
Brasil. Sobretudo porque, por esse meio, a reforma se torna parte de uma ação
do Estado que reconhece a precedência das funções e dos interesses sociais e
do Estado em relação ao direito de propriedade. Por meio da União, o Estado
retira direitos territoriais do particular e os entrega à sociedade. São bens a
cujo uso e gestão se sobrepõem os direitos atuais e futuros da sociedade. Tra-
ta-se do estabelecimento de progressivas, ainda que lentas, limitações ao exer-
cício do direito de propriedade em nome não só de sua função social, mas
também de sua função política na soberania do Estado.
Houve, mesmo, outras intervenções para emendar a excessiva am-
plitude dos direitos transferidos aos particulares pela Lei de Terras, nos casos
em que o direito de propriedade passou a ser causa de problemas sociais.
Além do Estatuto da Terra, já mencionado, o regime militar, ainda no governo
Castelo Branco, reconheceu em relação ao Nordeste canavieiro o direito de
enfiteuse dos trabalhadores da cana sobre a parcela de terra utilizada na pro-
dução direta dos meios de vida pela família do morador. É um direito de uso,
em parte conforme uma possibilidade aberta pela Lei de Terras quando esta-
beleceu a possibilidade de reconhecimento da posse em fazenda alheia até
como propriedade do morador. Trata-se da chamada “lei do sítio”. Uma deci-
são surpreendente num regime nascido de um golpe de Estado para defender
os direitos do latifúndio e consumar de vez os propósitos da Lei de Terras.
Nessa perspectiva, trato do tema tendo em conta mudanças estrutu-
rais de longo curso e, por elas, o balizamento da questão agrária. Não obstante,
tanto do lado do MST, da Igreja e das oposições partidárias e civis ao gover-
no, quanto do lado do próprio governo, parece não haver a menor clareza
quanto a uma questão essencial que essa perspectiva sugere. Penso ter mos-
trado neste artigo, como já o fiz em outros trabalhos, os bloqueios gerados
pelo modo histórico como se deu a abolição da escravatura e a implantação do
correlato regime de propriedade fundiária que temos. Bem como os episódios
sucessivos, até mesmo com a participação de grupos que hoje têm uma con-
cepção radical do problema, que simplificaram a questão agrária e reduziram
a possibilidade de uma reforma na profundidade que muitos almejam.
Mesmo atenuado pelas sucessivas intervenções que apontei, o regi-
me de propriedade envolveu tão intensamente as instituições, em especial o
Judiciário, ao longo da história republicana, que se tornou impossível fazer
uma reforma agrária que não passe pelo pagamento de uma substancial renda
123
MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).
MARTINS, José de Souza. Agrarian Reform – the impossible dialogue about the possible History.
Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 97-128, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).
ABSTRACT: The misunderstandings between the government, on one side, and UNITERMS:
the MST, the Church and the opposition parties on the other side, when the topic agrarian reform,
agrarian matter,
is the agrarian reform, can only be understood if we keep in mind what this
social movements,
agrarian matter is in Brazil. In a country which the big capital turned to be the governability,
owner of the lands, the classical conception of the agrarian matter, and of the Fernando Henrique
reforms required by it, is substantially altered. These reforms are what really Cardoso.
propose the new conditions and limits to the reform in the country. Moreover,
they also point to a possible development of the History of Brazil based in this
structural reference. The agrarian reform turned to be a cyclical reform due to
the continuous entry and reentry of potential clients in this scene. The fact that
the MST and the landless have assumed the initiative of the occupations, being
the government only a proxy for the reform, does not indicate the debility of the
democratic State in doing the reform. It only indicates that the civil society, through
some organization and popular movement, started to have a new role in the
structure of the Brazilian State.
127
MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
128
ADORNO,
Tempo Sérgio. Insegurança
Social; Rev.versus direitos
Sociol. USP, humanos: entre11(2):
S. Paulo, a lei e a129-153,
ordem. Tempo 1999 Rev. Sociol.DOSSIÊ
out. Social; USP, S. Paulo,FHC
11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev.(editado
2000). em fev. 2000). 1o GOVERNO
129
ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).
defesa dos civis contra o arbítrio do Estado. Tinha-se em vista, entre outros
objetivos, conter a ação das agências encarregadas de controle repressivo da
ordem pública dentro dos limites da legalidade, inclusive aquelas responsáveis
pela implementação de políticas de segurança e justiça.
Os confrontos entre forças conservadoras e forças “progressistas”
logo se tornaram manifestos. E, com progressão quase explosiva. Por um lado,
assiste-se à constituição de movimentos de defesa de direitos humanos, em dife-
rentes partes do país, mas especialmente em cidades como São Paulo, Rio de
Janeiro e Recife, preocupados em conquistar/resgatar a cidadania para segmen-
tos da população, como as diferentes categorias de trabalhadores empobrecidos,
bem como protegê-los contra as arbitrariedades e violências perpetradas seja
pelo Estado, seja por grupos da sociedade civil. A constituição desses movi-
mentos foi, como se sabe, seguida de uma torrente infindável de denúncias de
toda sorte, sobretudo contra a violência policial e contra a violência nas prisões,
a par de outras práticas tais como visitas periódicas às instituições de contenção
e repressão ao crime, intervenções constantes na imprensa e na mídia eletrônica,
organização de inúmeros fóruns de debates dos mais distintos tipos – técnicos,
profissionais, acadêmicos –, reunindo especialistas, pesquisadores, profissio-
nais, formadores de opinião e público leigo em geral. Foram esses movimentos
responsáveis por descobertas surpreendentes, entre as quais a extrema intimida-
de e solidariedade entre as estratégias e táticas de repressão ao crime comum e
de repressão à dissidência política.
Do lado daqueles que se encontravam sob crítica dos movimentos de
defesa dos direitos humanos, as reações também não se fizeram por esperar.
Desconfiados dos rumos que tomava a redemocratização da sociedade brasilei-
ra, temerosos de eventuais represálias ou apuração de abusos cometidos durante
a vigência do regime autoritário, inseguros quanto a possíveis deslocamentos
dos tradicionais postos de poder aos quais haviam se apegado com afinco, logo
armaram estratégias de defesa e ataque. Desfrutando de posição privilegiada no
interior dos aparelhos de Estado e gozando de certo prestígio junto a alguns
segmentos da imprensa escrita – sobretudo da reportagem policial – e mesmo da
mídia eletrônica, representantes das forças conservadoras conseguiram, em cur-
to espaço de tempo, reascender o autoritarismo social que, não raro, caracteriza
certos traços da cultura política brasileira. Não somente mobilizaram sentimen-
tos coletivos de insegurança que já se anteviam no início dos anos 80, atraindo a
seu favor opiniões favoráveis a uma intervenção autoritária no controle da or-
dem pública; isto é, reforçando percepções coletivas populares segundo as quais
a única forma legítima e imperativa de conter a violência do delinqüente é o
recurso à violência policial sem interditos legais ou morais. Mais do que isto,
lograram enfraquecer argumentos caros aos movimentos de defesa de direitos
humanos. Iniciaram com êxito campanha contra os “direitos humanos do pre-
so”, qualificados como privilégios conferidos a bandidos em uma sociedade
onde o “homem de bem”, trabalhador honesto, não tem a proteção das leis, das
políticas sociais e do poder público (cf. Caldeira, 1991 e 1992; Cardia, 1994).
Neste domínio nunca é demais ressaltar que os sentimentos de medo
134
ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).
comum que segmentos de classe média organizem seus próprios movimentos contra
a violência e o crime, não raro levantando bandeiras de ordem contra a política de
direitos humanos ou mais recentemente contra as iniciativas governamentais e
não-governamentais em torno do desarmamento da população. Este certamente
não é um quadro geral, pois há outras experiências em sentido completamente
contrário que tendem a encarar o problema do crime e da violência como um
problema da cidade, que envolve por conseguinte o concurso de múltiplos seg-
mentos da sociedade na busca de um espaço comum a partir do qual seja possível
gerenciar programas e planos voltados para a pacificação da sociedade.
Este cenário estaria incompleto se a ele não se agregassem outros
componentes igualmente comprometedores ao êxito das políticas de seguran-
ça propostas. Um desses elementos é sem dúvida o crescimento da violência e
dos crimes. Não vou insistir muito nesta questão na medida em que ela já vem
sendo analisada com maior freqüência e há inúmeros estudos que já permitem
alcançar uma visão algo mais nacional, para além do que já se sabia a respeito
2
de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. De qualquer modo, a oportunida-
As estatísticas oficiais
de criminalidade com- de é ímpar para acentuar algumas características desse cenário.
portam não poucos pro- Inicialmente, é sempre bom lembrar que o crescimento da violência e
blemas, entre os quais do crime não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Michel Wieviorka (1997)
a suspeição de eleva-
das “cifras negras”, a identificou na contemporaneidade um novo paradigma da violência, manifesto
intervenção de critéri- por mudanças que se podem entrever em três domínios: fatos, percepções e
os burocráticos de ava-
liação de desempenho
explicação científica. A fenomenologia da violência mudou comparativamente
administrativo, as “ne- à tradição predominante no século passado e na primeira metade deste século.
gociações” paralelas No momento atual, assiste-se a emergência de novas ondas de violência cujas
entre vítimas, agres-
sores e autoridades, a referências gravitam em torno de lutas pela afirmação de identidades étnicas e/
implementação de po- ou religiosas. Mudaram, portanto, os fatos. Mas, não apenas os fatos, como
líticas determinadas de também as percepções coletivas a respeito da violência. Nos anos recentes, é
segurança pública que
conjunturalmente pri- flagrante a perda de legitimidade da violência no campo político. Por um lado,
vilegiam a contenção ela é condenada pelos seus excessos associados à diabolização do estrangeiro, à
de uma ou outra moda-
lidade delituosa e ain-
racialização dos perigosos, à alteridade dos diferentes. Por outro, ela é criticada
da a desistência da ví- por seus efeitos mediáticos que se expressam em sempre mais e mais
tima em denunciar o- dramatização intensificando o círculo cerrado: maior medo, maior insegurança;
corrência motivada por
desinteresse pessoal ou maior insegurança, maior medo. Paradoxalmente, a violência vem adquirindo o
descrença na eficácia estatuto de uma categoria explicativa do mundo contemporâneo que atravessa e
das instituições. A articula as relações sociais, desde o âmbito das relações internacionais até o
respeito, cf. Paixão
(1983), Coelho (1988), âmbito privado das relações domésticas.
Fundação João Pinhei- Embora o crescimento da criminalidade urbana seja matéria controver-
ro (1984), Robert et alii tida, as estatísticas oficiais de criminalidade2, base sobre a qual se realizam diag-
(1994), Wright (1987).
3
Os dados aqui apresen- nósticos, avaliações, análises e estudos científicos, estão apontando no sentido de
tados sobre a crimi- uma tendência mundial de crescimento dos crimes, em especial aqueles que envol-
nalidade na Europa,
nos Estados Unidos da
vem grave ameaça à integridade física dos indivíduos. Na Europa3, em especial
América e no Brasil nos países de tradição anglo-saxã, essa tendência vem sendo acompanhada e ob-
foram extraídos de servada desde meados da década de 1950. Na Grã-Bretanha, entre o final da II
Adorno (1996) e pu-
blicados em Adorno Guerra Mundial e o início da década de 1960, as estatísticas oficiais indicavam
(1998a; 1998b). menos de 750 mil ofensas criminais. A partir desse período, segue-se uma escala-
136
ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).
ADORNO, Sérgio. Insecurity versus human rights: between law and order. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 129-153, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).
ABSTRACT: The purpose of this article is to analyses the public security policy UNITERMS:
formulated and implemented by the government of Fernando Henrique Cardo- crime,
violence,
so in his first governoship (1995-1998). This analysis tries to inventory some
scare,
political constraints, which limit the target of the line of directions formulated insecurity,
and implemented. Initially it presents a social and political scenery wider than criminality growth,
the previous ones, which has contributed that public security and penal justice public security politics,
human rights,
problems occupy a central position in the governmental policies. Then, we
FHC government.
analyses the government of FHC's initiatives mainly in human rights, evaluating
some impacts and results, identifying ambivalence and impasses as well.
149
ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).
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ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).
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ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).
154
MARTINS,
Tempo Heloísa de Souza
Social; & RODRIGUES,
Rev. Sociol. USP, Iram
S.Jácome.
Paulo, O11(2):
sindicalismo brasileiro
155-182, segunda metadeDOSSIÊ
out.na1999 FHC
dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,(editado
11(2): 155-182, out. 1999
em fev. (editado em fev. 2000).
2000). o
1 GOVERNO
O sindicalismo brasileiro na
segunda metade dos anos 90
HELOÍSA DE SOUZA MARTINS
RESUMO: Este texto discute as relações capital/trabalho durante o primeiro man- UNITERMOS:
dato do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998). Se, de um lado, sindicalismo,
trabalho,
esse período trouxe a estabilidade da moeda e o fim da inflação, de outro, ele- relações de trabalho,
vou em muito as taxas de desemprego. Assim, o tema do emprego se transfor- estratégia sindical,
mou na questão central da agenda sindical. Este artigo procura responder às governo Fernando
seguintes indagações: 1. Qual a especificidade das relações capital/trabalho Henrique.
neste período? 2. Qual o tratamento que foi dado à questão trabalhista nestes
últimos anos? 3. Qual a relação deste governo com os sindicatos?
Apresentação
155
MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).
punições, de que o desconto dos dias parados será parcelado, de que a reivindica-
ção salarial será negociada. Enfim, o governo impôs ao ‘inimigo’ rendição incon-
dicional” (Folha de São Paulo, 16/06/1995). As palavras de Singer retratam muito
bem o desenrolar dos acontecimentos e o seu desfecho. O que teria levado o gover-
no a agir dessa forma? Aparentemente, o governo que se auto-intitulava social-
democrata, começava seu mandato, numa postura avessa às práticas da social
democracia e havia resolvido dar uma “lição” ao sindicalismo-CUT. Face à pro-
posta governamental de levar às últimas conseqüências o processo de
desregulamentação da economia, privatização das empresas estatais, reforma da
previdência etc., a atitude dura frente aos trabalhadores grevistas tinha como obje-
tivo, certamente, quebrar a espinha dorsal do movimento sindical.
Nos jornais e revistas da época aparecia com muita ênfase a “com-
paração” entre o governante que iniciava seu mandato e a Primeira Ministra
britânica Margareth Tatcher. Em outras palavras, o objetivo primordial da
política de “terra arrasada” inaugurada por FHC, no período mais recente,
seria minar e mesmo acabar com a possível força que os sindicatos ainda
tinham em nosso País. Era o início de novo governo e, em razão do Plano
Real, havia uma quase unanimidade em torno de FHC.
Mesmo agindo com rigor, só comparável à época do regime autori-
tário, o governo não conseguiu seu intento. Quatro anos e meio depois, na
última semana de julho de 99, os caminhoneiros fizeram um movimento que
durante quatro dias praticamente parou o País. O governo foi pego de surpre-
sa com a extensão do movimento e, de certa forma, cedeu em, praticamente,
todos os pontos reivindicados pelos caminhoneiros.
O que mudou nestes quatro anos? Simplesmente, o Executivo se
enfraqueceu, está com baixos índices de popularidade, que podem ser compa-
rados com os piores momentos dos governos Sarney e Collor. O Plano Real,
principalmente após a desvalorização cambial ocorrida em janeiro de 99, agra-
vou problemas que já vinham de antes, em particular o desemprego. As
melhorias anunciadas no início de 95 ainda não chegaram para a ampla maio-
ria da população. Essa é a principal diferença entre estes dois momentos...
Nos quatro primeiros anos do governo FHC ocorreram muitas ma-
nifestações trabalhistas, notadamente contra o processo de privatização das
empresas estatais. Foram, no entanto, movimentos com pouco poder de
arregimentação dos próprios trabalhadores. Foi um período de lutas extrema-
mente defensivas para os empregados.
No final do primeiro ano do governo de FHC, Vicente Paulo da
Silva, presidente da CUT, assinalava as principais questões que viriam a mar-
car as relações entre as entidades sindicais e o governo. Apesar de destacar as
mobilizações contra a política econômica realizadas durante o ano de 1995,
reconhece que “passamos o ano nos defendendo, lutando apenas para garantir
direitos e não para conquistar novos” (O Estado de S. Paulo, 17/12/1995,
p. B-13). É justamente essa imagem de um movimento sindical acuado diante
de uma situação de perdas constantes, tentando resistir às propostas da
flexibilização dos direitos trabalhistas e de desregulamentação do sistema de
159
MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).
os”. Agora, entretanto, contrariando a sua análise anterior, refere-se à greve como
vontade do trabalhador que, mesmo acuado, com medo do desemprego, “está ven-
do que sem lutar ele perde mais. Estão nos matando. Por isso a greve geral está
voltando à pauta. Apesar de todas as dificuldades, prevejo um ano de grandes
mobilizações, e dessa vez com trabalhadores e com sindicatos muito mais avança-
dos. Uma hora dessas vocês todos, que acham que o movimento sindical só nego-
cia mas não mobiliza, vão ver...” (O Estado de S. Paulo, 28/04/1996, p. B-7).
As previsões, entretanto, não se realizaram, pelo menos no que se refe-
re à greve geral. Finalmente marcada para o dia 21 de julho de 1996, a greve
convocada pelas três centrais sindicais – CUT, CGT e Força Sindical – não teve o
sucesso esperado. Os próprios sindicalistas reconheceram que não houve adesão
total, confirmando-se, assim, a resistência dos trabalhadores à proposta de greve
em um contexto de desemprego. A posição dos sindicalistas, especialmente os da
CUT, no que diz respeito à greve como forma de mobilização dos trabalhadores,
passou por uma grande transformação nos últimos anos. A maior expressão dessa
mudança é a proposta do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC de redução do
número de greves em sua base. Segundo Luiz Marinho, seu presidente, a greve,
que foi uma forma de luta eficiente nos anos 70 e 80, continuará a ser usada
“contra empresas e empresários que pararam naquele tempo e se recusam a nego-
ciar com seriedade”. Buscando a criação de alternativas sindicais, o sindicalista
afirma a importância da organização no local de trabalho, com a formação dos
comitês sindicais de base, “com pressão cotidiana e negociação constante”. Ante-
pondo-se ao que denomina de parcela atrasada e insignificante “com discurso
raivoso”, Marinho reconhece que o trabalhador não é mais atraído pela proposta
de greve e que esta já não tem a mesma eficácia. Por um lado, o discurso tem o
objetivo de atrair investimentos para a região, convencendo os empresários de que
a prática sindical mudou e, de outro, mostrar aos trabalhadores a necessidade da
organização no local de trabalho, como forma de preparar-se para o fim da unicidade
sindical (cf. O Estado de S. Paulo, 14/05/1997, p. B-1; 19/05/1997, p. B-4).
Ainda com referência à greve geral, cabe destacar os esforços para
garantir a união das três centrais durante a paralisação, superando as diver-
gências. Vicentinho, dirigente da CUT, e Canindé Pegado, da CGT, declara-
vam-se surpresos com o comportamento da Força Sindical não desistindo da
greve e negando a sua prática de negociação com o governo. O discurso de
Luiz Antônio de Medeiros, por exemplo, neste episódio, era de oposição e de
crítica ao governo. E segundo líderes da própria Força Sindical, “o ministro
do Trabalho, Paulo Paiva, ofereceu a presidência da Delegacia Regional do
Trabalho de São Paulo para a Força Sindical, em troca da desistência da gre-
ve” (O Estado de S. Paulo, 23/06/1996, p. B-4).
Na realidade, o ano de 1996 é marcado por tentativas de união, seja
de entidades sindicais, seja das centrais, em vários momentos, apesar das difi-
culdades de superação das divergências. Paulo Pereira da Silva, presidente do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, e Heiguiberto Navarro, presidente
do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, negociaram uma campanha
salarial conjunta, fora da data-base da categoria, para tentar repor as perdas
161
MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).
redução dos custos do trabalho que outro projeto, propondo o contrato de traba-
lho por tempo determinado, passará a centralizar as atenções do governo, em-
presários e sindicalistas. Desde o início do primeiro mandato, o governo FHC
vinha defendendo essa idéia. Em várias entrevistas o Ministro Paulo Paiva se
referia ao interesse do governo em estimular o contrato de trabalho por tempo
determinado, considerando-o fundamental para a redução dos custos e para a
formalização do mercado de trabalho, estimulando a criação de emprego e me-
lhorando a proteção ao trabalhador (cf. O Estado de S. Paulo, 14/01/1996, p. D-
2; 22/02/1996, p. B-1; 28/04/1996, p. B-7; 29/12/1996, p. B-5).
Uma das notícias informava que, por trás da iniciativa do Ministro,
estava o interesse em solucionar o impasse criado com o acordo assinado pelo
presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo com oito entidades
patronais e que fora considerado ilegal pela Justiça do Trabalho. O acordo
permitia a contratação temporária com menos encargos sociais e admitia mu-
danças nos direitos dos empregados. A Procuradoria Regional do Trabalho
entrou com medida cautelar no Tribunal Regional do Trabalho, que concedeu
liminar imediatamente, cancelando cinco cláusulas e obrigando as empresas a
contratarem segundo as normas da CLT. Enquanto os juristas apontavam a
ilegalidade do acordo, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Paulo Pe-
reira da Silva, via-o como “o melhor caminho para criar postos [de trabalho]
nesse momento” (O Estado de S. Paulo, 22/02/1996, p. B-3). Na mesma li-
nha, o presidente da Metalúrgica Aliança, a primeira empresa a contratar 35
trabalhadores segundo as normas do acordo5, enfatizava a sua importância
para o debate sobre as relações entre o capital e o trabalho. Entretanto, em
termos da redução dos custos do trabalho, a previsão deste mesmo empresário
era de uma diminuição de 15% nos encargos sociais.
De fato, o acordo favoreceu a discussão em torno da questão, acirrando
posições até mesmo no interior da Força Sindical e do Sindicato dos Metalúrgicos
de São Paulo. Dos 45 sindicatos de metalúrgicos filiados àquela central, no estado
de São Paulo, apenas o de São Caetano do Sul apoiou o contrato flexível. Houve,
também, divergências no nível nacional, com 34 dirigentes de todo o país man-
dando cartas de desfiliação, liderados pelo secretário-geral da Força Sindical,
Enilson Simões de Moura, o Alemão. Com isso, a Central ficou sem presidentes
em nove estados: Amazonas, Alagoas, Ceará, Pernambuco, Maranhão, Pará, Rio
5
Quando a empresa ofe- Grande do Norte, Espírito Santo e Minas Gerais.
receu 85 vagas de au-
xiliar de produção, Os dados mais contraditórios, entretanto, são fornecidos pelos traba-
dentro das novas re- lhadores. Em pesquisa realizada pelo InformEstado 72,2% dos metalúrgicos
gras, mais de mil pes-
soas se candidataram.
entrevistados, na base de São Paulo, eram contrários a qualquer alteração nos
Eram pessoas desem- direitos trabalhistas adquiridos. Entretanto, 47,4% deles aceitariam um empre-
pregadas e dispostas a go sem registro em carteira e sem alguns encargos sociais, enquanto 47,8% não
aceitar um contrato de
trabalho sem muitas aceitariam. Outros dados da mesma pesquisa evidenciam a dificuldade do tra-
garantias. Segundo balhador em assumir uma posição mais definida com relação ao acordo, especi-
uma delas “é melhor o almente quando colocados diante da possibilidade efetiva do desemprego: 47,4%
pingado que o seco” (O
Estado de S. Paulo, 18/ declaravam-se contra o acordo e 45,0% a favor; 71,3% achavam que as demis-
02/1996, p. B-3). sões não parariam; 54,5% que o acordo aumentaria o número de empregos e
168
MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).
família. Trabalha quando a empresa quer, folga quando a empresa quer”. Além
disso, o banco de horas significa acabar com o pagamento adicional de 100%
do salário sobre as horas extras, pois, de acordo com a nova lei, para cada
hora trabalhada a mais, a empresa deve dar a folga de uma hora. Para Spis,
“na CUT somos contra hora-extra. Mas, se ela é inevitável, queremos receber
em dinheiro”. (Folha de S. Paulo, 27/09/1998, p. 2-11).
A posição favorável ao banco de horas dentro dessa mesma corrente
é expressa por Luiz Marinho, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São
Bernardo do Campo. Segundo este sindicalista, os metalúrgicos do ABC foram
os pioneiros no Brasil na implantação do banco de horas, com experiências
realizadas desde 1995. Paralelamente à conquista da redução da jornada de tra-
balho – importante reivindicação sindical desde a década de 80 – os trabalhado-
res viram o avanço das propostas de flexibilização. Entretanto, na Ford, apesar
da criação do banco de horas, dois mil trabalhadores foram demitidos. Mas, na
avaliação do sindicato, a flexibilização conseguiu manter o emprego de 800
trabalhadores, na mesma empresa. Para Marinho, “o banco de horas não é re-
médio para todos os males” (Folha de S. Paulo, 27/09/1998, p. 2-1).
Nos dias 10 e 11 de outubro de 1998, contando “com a presença de
95 participantes, representando 43 entidades sindicais e instâncias da CUT de
15 Estados da Federação”, a Secretaria de Política Sindical da CUT Nacional
organizou um seminário onde foi tratada a questão da flexibilização da jorna-
da de trabalho e, em particular, “as conseqüências do banco de horas nas rela-
ções de trabalho”. Neste Encontro foram analisadas as seguintes experiências
de implementação de bancos de horas: radialistas de São Paulo, metalúrgicos
do ABC paulista, metalúrgicos do Rio Grande do Sul, trabalhadores em trans-
porte, petroleiros e metalúrgicos de Campinas.
A seguir, apresentamos algumas conclusões do seminário:
1. “O mecanismo conhecido como ‘banco de horas’ – nome dado à
flexibilização da jornada de trabalho – faz parte de uma ofensiva mais geral
de desregulamentação das relações de trabalho visando reduzir o ‘custo do
trabalho’, que hoje se desenvolve em escala mundial em nome da necessidade
de ‘competitividade das empresas’ num mercado ‘globalizado’; 2. Para o
empresariado, a implantação do ‘banco de horas’ ou jornada flexível, visa
essencialmente reduzir os custos da força de trabalho em função da competi-
ção no mercado, buscando adaptar a jornada às oscilações da produção e da
demanda. Vem daí uma crescente pressão patronal para incluir em conven-
ções e acordos coletivos a flexibilização da jornada de trabalho. Para os tra-
balhadores – além do fator de desorganização de sua vida provocada pela
jornada ‘flexível’ (folgas imprevistas, trabalho aos sábados e domingos,
sobrejornada etc.) – deixa-se de pagar horas extras efetivamente trabalhadas
(para além da jornada legal ou da jornada estabelecida por convenção ou acordo
coletivo) que passam a ser compensadas por folgas distribuídas ao longo do
tempo; 3. Tal como proposto pelo governo, em recente Medida Provisória
(MP 17/09/98), o ‘banco de horas’, com o período de compensação por fol-
gas estendido para 12 meses, configura-se como um fator de geração de de-
173
MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).
ação. Dessa forma, a MP cria, pela primeira vez entre nós, a obrigação de nego-
ciar. A PLR tem que ser negociada, não pode ser implantada unilateralmente
pela empresa. E mais: essa negociação deve ter a participação do sindicato dos
trabalhadores. Portanto, a MP da PLR trouxe a negociação coletiva para o âm-
bito da empresa, trouxe a negociação direta”.
Reeditada inúmeras vezes9, a MP significou um grande impacto
no processo de negociação coletiva, transferindo para o interior das empre-
sas o processo de negociação e contribuindo para a ampliação da remunera-
ção variável, na medida em que vincula a remuneração ao desempenho da
empresa. Essa flexibilização salarial é apontada, por alguns, como uma for-
ma de relativizar a rigidez salarial, permitindo que ajustes salariais sejam
feitos sem sacrificar os empregos (cf. Zylberstajn, 1999, p. 12). Para os
empresários, ela pode representar uma redução nos custos e, para os traba-
lhadores, algum ganho de remuneração. Mas os seus resultados ainda são
pouco expressivos no conjunto da economia.
Acompanhando a penetração da PLR, através de algumas pesquisas
realizadas, podemos perceber a luta das entidades sindicais para terem reconhe-
cidos os seus direitos à participação nas negociações realizadas. Especialmente
a CUT, que sempre foi favorável ao estabelecimento de uma política salarial e
ao contrato coletivo de trabalho, vinha questionando, na justiça, acordos estabe-
lecidos sem a participação dos sindicatos. Considerando esses acordos desfavo-
ráveis aos trabalhadores, essa central denunciava o estabelecimento de metas
impossíveis de serem atingidas, com ameaças à saúde do trabalhador, as dificul-
dades de terem informações sobre os resultados das empresas e, principalmente,
a ausência da representação sindical durante a negociação.
Vejamos, agora, os resultados de algumas pesquisas realizadas por
empresas de consultoria sobre a penetração da PLR. A Mercer MW Ltda. fez uma
pesquisa com 172 grandes empresas, que empregavam 594.172 pessoas e verifi-
cou que 32% adotavam o programa. Em pesquisa realizada anteriormente, em
maio de 1995, apenas 15% dessas empresas tinham o programa. Para o diretor de
outra empresa, Sérgio Amad Costa, da Trevisan Auditores e Consultores, o núme-
ro de adesões era ainda muito pequeno, pois apenas 1% de cerca de quatro milhões
de empresas tinham aderido ao programa. A explicação para esse baixo índice
estaria no temor dos empresários de que a distribuição dos lucros se transformasse
em um direito adquirido, na medida em que a Medida Provisória não oferecia total
segurança para as empresas (cf. Zylberstajn, 1999, p. 12).
Tanto a pesquisa da Mercer, quanto a da GDK & Associados, con-
firmavam aquilo que os sindicatos vinham denunciando: a sua exclusão do
processo de negociação. Na pesquisa desta última empresa, das 42 empresas
9
envolvidas, dois terços instituíram o programa sem o sindicato, se bem que Desde a sua versão ini-
cial até março de 1999,
em muitas delas tivessem ocorrido eleições diretas de funcionários (cf. O Es- a medida provisória
tado de S. Paulo, 09/06/1996, p. B-1). foi reeditada 55 ve-
Uma outra pesquisa, realizada pela Confederação Nacional dos zes, apresentando su-
cessivas reformula-
Metalúrgicos, da CUT, verificou que apenas 25% dos acordos da PLR tive- ções (cf. Zylberstajn,
ram participação direta do sindicato, que 35% deles resultaram de negociação 1999, p. 11).
177
MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).
ITENS %
Participação nos lucros e resultados 100,00
Qualificação/Formação Profissional 21,74
Participação do sindicato quando da introdução de inovações 17,39 I. Temas acordados entre
tecnológicas e organizacionais sindicato e empresas a
partir de 1993, conside-
Redução da jornada semanal média de trabalho 17,39
rados os mais importan-
(sem redução de salário) tes pelos representantes
Flexibilização da jornada 17,39 dos trabalhadores
Fonte: Carvalho Neto,
Não houve ganhos advindos do processo negocial no período 8,69 1999, p. 346 (entrevistas
Condições de trabalho 4,35 com 25 representantes
dos trabalhadores dos
Obs.: A soma da freqüência relativa é superior a 100% por terem sido dadas mais de uma resposta. sete setores pesquisados).
junto de medidas, entre outros: o contrato de trabalho por tempo parcial (jor-
nadas semanais de, no máximo, 25 horas), “que no mesmo período foi instituí-
do através de Medida Provisória” e a suspensão temporária do contrato de 11
Em dezembro de 1998,
trabalho. Neste caso, “de acordo com a proposta, a ser também aprovada no alguns dias antes do
Congresso Nacional, os trabalhadores poderão ter seu vínculo empregatício Natal, 2.800 trabalha-
suspenso por, no máximo, 5 (cinco) meses, durante os quais receberão uma dores (cerca de 41%
do total) da Ford de
bolsa equivalente ao valor do seguro-desemprego e participarão de programas São Bernardo do Cam-
de requalificação profissional. Ao término do período, a empresa poderá reinserí- po foram demitidos
los na produção, ou realmente demití-los. Se a demissão se efetivar a remunera- por carta, sem que isso
fosse discutido com o
ção paga durante a suspensão temporária será descontada do seguro-desempre- Sindicato dos Meta-
go a que o trabalhador teria direito” (Portella de Castro, 1999, p. 21)11. lúrgicos do ABC e com
a Comissão de Fábri-
Cabe registrar, no período referente ao primeiro mandato do ca. Sob a orientação do
governo Fernando Henrique, algumas das iniciativas que foram tomadas Sindicato, os demiti-
com relação às relações de trabalho, seja por meio de Projeto de Lei, seja dos ocuparam os seus
lugares na fábrica, for-
pela via de Medida Provisória. çando a negociação
179
MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).
Tema Iniciativas
PLR – Participação nos Lucros e • Focaliza a negociação na empresa;
Resultados • Abre a possibilidade da remuneração variável;
• Retira o foco da mobilização por salário real/produtividade;
com a empresa. Após
várias reuniões entre • Introduz os temas da agenda da empresa na negociação;
a empresa, o sindica- • É uma alternativa ao fim da política salarial, ao possibilitar
to e a comissão, foi algum ganho de remuneração sem reajuste nos salários.
aberto um programa
de demissão voluntá- Salário Mínimo: sem índice de reajuste • O salário mínimo, a partir de abril de 97, não tem um índi-
ce de reajuste previsto em lei. O seu reajuste dependerá da vonta-
ria que obteve, até 12
de fevereiro, a adesão de política do presidente.
de 882 trabalhadores. Trabalho temporário Portaria 2 (29/06/96) • Amplia a possibilidade de utilização da lei (6.019/74) de
Finalmente foi insti- contrato temporário, generalizando o contrato de trabalho precário.
tuído o programa de
suspensão temporária Trabalho por tempo determinado (Lei • A essência da lei está em desvincular o contrato por prazo
do contrato de traba- 9.061/98) determinado da natureza dos serviços prestados;
lho de 1.918 funcioná- • Muda os critérios de rescisão e reduz as contribuições;
rios, até 31 de maio e • Cria o banco de horas.
depois com prorroga-
ção por mais cinco Ultratividade dos acordos e convenções • Altera a Lei 8.534/92, que previa a validade dos acordos e
meses (cf. DIEESE, MP 1.620/98 convenções até que eles não fossem negociados entre sindicatos
1999, p. 20-21). de trabalhadores e empresários.
Trabalho em tempo parcial (menos de 25 • Jornada de até 25 horas semanais;
horas semanais) – MP 1709/98 • O salário e os demais direitos trabalhistas serão determina-
dos em conformidade com a duração da jornada trabalhada;
• Não prevê a participação do sindicato na negociação.
180
MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).
MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. The Brazilian syndicalism in the second
half of the 90’s. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, Oct. 1999 (edited Feb.
2000).
ABSTRACT: This text discusses the relationships between capital and work UNITERMS:
during the first mandate of the President Fernando Henrique Cardoso (1995- syndicalism,
work,
1998). If this period has brought the stability of the currency and the end of the
work relationships,
inflation, on the other hand it has raised the rates of unemployment. Therefore, syndical strategy,
the theme of unemployment has become the central matter in the agenda of FHC government.
the syndicates. This article tries to answer the following indagations: 1. Which
is the specificity of the relationships between capital and work in this period? 2.
Which is the treatment given for the work matter in the last year? 3. What is the
relationship between government and the syndicates?
181
MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
182
COHN, Amélia. Social;
Tempo As políticasRev.
sociais no governo
Sociol. USP,FHC. Tempo Social;
S. Paulo, 11(2):Rev. Sociol. USP,
183-197, out. S. DOSSIÊ
Paulo, 11(2): 183-197,
1999 out. 1999FHC
(editado em fev. 2000). (editado em fev. 2000). o
1 GOVERNO
As políticas sociais no
governo FHC
AMÉLIA COHN
RESUMO: O presente artigo busca fazer um balanço analítico do conjunto das UNITERMOS:
políticas sociais que vêm sendo implementadas desde 1995. Não se trata de políticas sociais,
políticas públicas,
um balanço dos gastos efetuados na área social, dos recursos efetivamente combate à pobreza.
apropriados pelos setores mais pobres da população. O objetivo aqui é averi-
guar em que grau se observa neste período uma efetiva mudança na forma de o
governo tratar da questão social. Reconhecem-se avanços efetuados, porém
constata-se a permanência do mesmo tipo de articulação entre política econô-
mica e política social, entre política social e representação das demandas dos
grupos não organizados da sociedade, favorecendo a ênfase na dimensão téc-
nica da conformação dos programas sociais, e sobretudo avalia-se a timidez do
governo em efetivamente enfrentar a equação pobreza-desigualdade.
183
COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
(editado em fev. 2000).
comum, e este é o rumo que também está sendo traçado pelo Brasil, é consti-
tuir-se paralelamente, no outro extremo desse sistema de proteção social de
caráter diretamente contributivo, um conjunto de políticas sociais de caráter
não contributivo, voltado para o atendimento de direitos sociais de cunho uni-
versal, e financiado portanto com recursos fiscais. Neste caso, essas políticas
sempre esbarram e são extremamente vulneráveis à imposição dos limites
cada vez mais estreitos ditados pelo compromisso do governo brasileiro com
agências internacionais de contenção da dívida pública.
De 1994 para cá, a tendência é exatamente a de se conformar no
país um sistema dual de proteção social, entendendo-se por sistema de pro-
teção social todo o conjunto de políticas sociais (aí incluída a previdência
social), com distintas lógicas na sua articulação com a dinâmica macro-
econômica. De um lado, o subsistema de proteção social relativo aos benefí-
cios sociais securitários – e, portanto, contributivos; de outro, o subsistema
relativo aos benefícios sociais assistenciais – e portanto, redistributivos, fi-
nanciado com recursos do orçamento fiscal.
Redefine-se assim, na atualidade, a articulação entre políticas econô-
micas e políticas sociais. O primeiro daqueles subsistemas, o que diz respeito aos
direitos contributivos, vincula-se às diretrizes macroeconômicas enquanto instru-
mento para a criação de poupança interna para se alavancar a taxa de investimento
da economia; e o segundo deles, de caráter não contributivo, fica à mercê da dispo-
nibilidade – sempre escassa – de recursos orçamentários da União.
Neste ponto deve-se registrar que, no caso dos direitos não contributivos,
o potencial redistributivo das políticas a eles vinculadas, na sua essência, é maior
se e sempre quando se tratarem de políticas universais e financiadas com recursos
orçamentários provenientes da contribuição fiscal. No caso brasileiro, no entanto,
não é isso que vem se verificando: essas políticas, exatamente por se contraporem
mais diretamente aos ditames da lógica macroeconômica em vigor de diminuição
do déficit público, acabam por ter seus recursos cortados, e em conseqüência sua
população-alvo restringida aos segmentos mais pobres da sociedade. É a conheci-
da focalização das políticas sociais, que se traduz, como testemunha nossa larga
experiência histórica, em políticas de cunho clientelista, de caráter imediatista e,
portanto, em políticas de governos e não em políticas de Estado.
Começa-se assim a deslindar o pleno significado do desabafo – ou
grito de desespero – da autora da epígrafe: diante de uma seca brutal, prevista
com anos de antecipação pelos especialistas da área, numa região cronicamente
vitimada pela aridez, ao invés de se tomarem medidas de caráter estrutural na
resolução de uma das principais causas da pobreza na área, lança-se um progra-
ma – mais um dentre tantos outros similares adotados no passado remoto e
recente – de frentes de trabalho. Uma vez mais, improvisam-se medidas de emer-
gência para um problema que é estrutural. E nesse sentido, de fato, ao não ter a
nossa interlocutora título de eleitor, vê-se desprovida até mesmo dessa moeda
de negociação tradicional e comum da nossa cultura política.
Mas, nesse ponto, deve-se tomar uma dupla cautela: a primeira consiste
186
COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
(editado em fev. 2000).
Brasil não gasta pouco com a área social, ao contrário, gasta muito e mal”.
Esta concepção de que as entidades públicas estatais desperdiçam
recursos tem servido de justificativa para a busca de racionalização dos gas-
tos sociais dentro de uma ótica demasiado estreita. Esta racionalização vem se
desdobrando na fixação de três parâmetros principais para as políticas so-
ciais: focalização, descentralização e novas formas de parcerias entre Estado,
Mercado e Sociedade.
Daí decorrem as propostas em debate na agenda pública, uma vez mais
por iniciativa do Executivo, e os programas que vêm sendo implementados na
área social, e que giram em torno da reforma do Estado. Tema sem dúvida polêmi-
co, que vem alimentando vigorosos debates sobre o papel do Estado e a questão
social, e que se desdobra em duas dimensões: uma de caráter mais estrutural, e que
diz respeito ao papel do Estado no campo das políticas sociais; e outra, enfatizando
a dimensão burocrático-administrativa do Estado, e que diz respeito às novas for-
mas de gerenciamento dos equipamentos sociais público-estatais.
Em ambas as dimensões há a opacidade na relação entre o social e
o político no enfrentamento da questão social, produto por sua vez do que
vem sendo denominado de “opacidade social” como traço das realidades so-
ciais atuais (cf. Fitoussi & Rosanvallon, 1996). Na primeira delas, de caráter
mais estrutural, o que está em jogo é a questão da amplitude das áreas de
responsabilidade de atuação do Estado no campo social. Neste caso, focali-
zação, descentralização e parcerias ganham um significado específico no de-
bate que vem sendo travado. Este debate diz respeito exatamente às compe-
tências do Estado diante das novas formas de regulação social vigentes em
nossa sociedade, e que cada vez mais se distanciam do fator trabalho, mas que
tampouco podem ter como parâmetro o padrão vigente nas sociedades ditas
avançadas (cf. Offe, 1984; Santos, 1999; Oliveira, 1999).
Neste caso, a defesa da focalização das políticas sociais reside numa
constatação dos limites estruturais do próprio Estado. Mas não só no sentido clássi-
co já apontado por Offe. No caso brasileiro, a insuficiência de recursos para cobrir
as necessidades sociais, respeitando os direitos universais dos cidadãos, se agrava e
reafirma não só pela crise fiscal do Estado, como do próprio modelo antes prevale-
cente de Estado desenvolvimentista (cf. Sallum Jr., 1994; 1996). Diante disso, e
reforçado por inúmeros diagnósticos e avaliações de programas e políticas sociais
implementadas e que registram evidentes distorções entre o público-alvo original-
mente definido e aquele efetivamente atingido, erige-se o postulado da ineficiência
intrínseca do Estado na área social e a exigência de se buscar novos modelos de
solidariedade social que permitam ao Estado ver-se aliviado de tamanha responsabi-
lidade de ser o provedor dos direitos sociais básicos dos cidadãos brasileiros.
No âmbito das políticas sociais, a tradução imediata desse ideário
está manifesta num processo social de naturalização da pobreza. Não só ela é
inevitável, como combatê-la eficazmente significa enfatizar a manutenção de
políticas econômicas de estabilização fiscal (o social se transmudando assim
em econômico). Em decorrência, os parcos recursos que o modelo econômico
188
COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
(editado em fev. 2000).
vigente permite disponibilizar para a área social devem ser dirigidos para os
segmentos mais pobres da população, ou no jargão das agências multilaterais,
para os “grupos socialmente mais vulneráveis”.
Isso vem redundando na definição das políticas sociais voltadas para
o combate à pobreza, e não para a superação da pobreza, o que tem duas conse-
qüências imediatas: a distância cada vez maior entre as instâncias política e
social, fazendo com que a questão social da pobreza se traduza em diagnósticos
de natureza técnica equacionados pelos limites da possibilidade econômico-fi-
nanceira do Estado; e a segmentação no interior da própria área social em polí-
ticas não só focalizadas em termos de determinados grupos sociais a que são
dirigidas, como focalizadas no interior dos próprios setores a que estão vincula-
das. Educação e saúde, por exemplo, tratam isoladamente o mesmo desafio,
comum a ambas: a universalização do acesso a um patamar básico de serviços.
Outra conseqüência diz respeito à conformação de um sistema dual de
proteção social, não mais referido à inserção ou não no mercado formal de traba-
lho, mas a níveis de renda traduzidos em graus distintos de capacidade contributiva
dos diferentes segmentos sociais, e que agora dizem respeito aos passíveis de
serem incluídos pelo processo de globalização, e aqueles definitivamente excluí-
dos desse processo, ou na afirmação de Fiori (1995), os “não globalizáveis” no
modelo econômico por ele definido como de “novíssima dependência”. Com isso,
encontram-se, de um lado, políticas de universalização de um patamar básico de
acesso a determinados níveis de serviços sociais, financiadas com recursos orça-
mentários e, de outro, um sistema privado, no geral continuando a ser subsidiado
pelo Estado (através, por exemplo, do instrumento da renúncia fiscal) e destinado
aos segmentos sociais de maior poder econômico.
Não só vão então se forjando novos modelos de solidariedade so-
cial – a cada um segundo sua capacidade própria de poupança durante seu
período ativo, e para os pobres um sistema estatal básico – como consolida-se
a concepção da responsabilidade do Estado no campo social como a respon-
sabilidade pelos mais pobres. A conseqüência imediata desse processo, em
termos da sedimentação do divórcio que sela entre as demandas sociais e sua
possibilidade de representação política, é um sistema igualmente dual e desi-
gual de formulação de demandas políticas na área social: o dos inseridos e os
dos não inseridos; ou dos organizados e dos não organizados; ou ainda, da-
queles segmentos capazes de construírem sua própria identidade social no
interior de um quadro de carências, e aqueles que não o são.
Diante dessa complexidade do quadro de demandas sociais, e seu
espelho na política, torna-se possível a concepção de que políticas sociais são
políticas de combate à pobreza – e portanto nada de muito novo com relação
ao passado recente – que tampouco transformam-se em campos estruturadores
de novas práticas sociais. Os próprios canais de participação social e de con-
trole público, previstos constitucionalmente, e mesmo quando incentivados
pelo governo, uma vez mais reforçam essa dicotomia entre os excluídos e os
incluídos: quem fala e defende os interesses de nossa sertaneja, que não pre-
189
COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
(editado em fev. 2000).
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COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
(editado em fev. 2000).
COHN, Amélia. Social Policies in FHC government. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
183-197, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).
UNITERMS: ABSTRACT: The aim of this article is to analyses the set of social policies,
social policies, which have been implemented since 1995. This is not a study of the money
public policies,
spent neither on the social area nor of the budget effectively appropriated by
fighting poverty.
the poorest members of the population. The objective of this paper is to check
to which degree the government has made an effective change in the way it
deals with the social problem. It is true that some advances were made, but
there is still the same kind of articulation between economical policy and social
policy, between social policy and representation of the demands of non organized
groups, putting an emphasis on the technical dimension of social programs of
the framework. Above all, this article evaluates the timidity of the government in
effective facing the poverty-inequality equation.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
198
OLIVA-AUGUSTO,
Tempo Social; Maria Helena & COSTA,USP,
Rev. Sociol. OlavoS.Viana. Entre11(2):
Paulo, o público e o privado
199-217, - a1999
out. DOSSIÊ
saúde hoje no Brasil. FHC
Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217,
(editadoout.em
1999 (editado
fev. 2000). em fev. 2000). o
1 GOVERNO
199
OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).
nacional da saúde pública, que passou a incluir, além dos itens referentes às
doenças infecto-contagiosas, também as enfermidades crônico-degenerativas,
as mortes por causas externas e os problemas ambientais, derivados do pro-
cesso de “modernização” social (cf. Monteiro et alii, 1995). Ao mesmo tem-
po, os recursos e cuidados oficiais dirigidos às atividades mais estritamente
vinculadas a essa finalidade, isto é, aquelas tradicionalmente encaradas como
responsabilidade estatal exclusiva, têm sido mais escassos e rarefeitos.
Este artigo tem por objetivo analisar a atuação governamental sobre
a saúde, visando perceber qual o sentido assumido pela intervenção pública
nessa área, no período 1995-19981, quais são os elementos em que converge e
em que pontos se diferencia de gestões anteriores e, principalmente, se tem con-
corrido para uma transformação substantiva no que se refere a algumas caracte-
rísticas históricas da atenção pública no setor, no Brasil. Concretamente, esses
quatro anos devem ser vistos naquilo que apresentam de continuidade em rela-
ção às dinâmicas em vigência anteriormente e, ao mesmo tempo, identificados
no que se refere às inovações que introduzem nesse mesmo percurso2.
Considerado desse modo, o ponto de partida da reflexão, sem dúvi-
da, situa-se uma década atrás, no momento de institucionalização de algumas
conquistas derivadas de um amplo movimento de luta que, constatando a pre-
cariedade da atenção pública à saúde no Brasil, apontou para a necessidade
do reconhecimento do acesso à saúde como direito social universal. Por isso,
de início, focalizam-se as decisões relativas à implementação do Sistema Úni-
1
Durante esse período, co de Saúde (SUS), cuja expectativa era consubstanciar o dispositivo da Cons-
o Ministério da Saúde tituição federal de 1988 que define a saúde como dever do Estado e prevê a
teve quatro ocupantes:
Adib Jatene (de 01/01/ integração das ações e serviços públicos do setor segundo os princípios de
1995 a 07/11/1996); descentralização, atendimento integral e participação da comunidade.
José Carlos Seixas (in- Em seguida, discutem-se os diversos aspectos que compõem esse
terino) (de 07/11/1996
a 13/12/1996); Carlos quadro para tentar evidenciar se, nos últimos anos, têm emergido formas es-
César Albuquerque pecíficas e distintivas da gestão pública nessa área. Isto porque as reformas
(de 13/12/1996 a 31/
03/1998); e José Serra
relativas à saúde, embora orientadas pela necessidade de contenção dos cus-
(desde 31/03/1998). tos de assistência médica e pela busca de maior eficiência, têm se caracteriza-
2
O que se deseja desta- do pela descentralização de atividades para estados e municípios, pela trans-
car é que a análise de
um tema, quando refe- ferência de responsabilidades para o setor privado e pelo “aumento da partici-
rida a um período es- pação financeira do usuário no custeio dos serviços que utiliza, sejam estes
pecífico, não se pode públicos ou privados” (Almeida, 1999b, p. 268).
fazer de forma pontu-
al. É necessário que Dessa forma, visando explicitar problemas cotidianos e crônicos da questão
esse período seja to- saúde no país, serão descritos alguns aspectos gerais relativos à organização e finan-
mado como parte de ciamento do SUS e apresentados os elementos que podem ser destacados no período
um processo mais am-
plo. Se, de certa forma, de interesse. De um lado, a busca por financiamento dessas atividades, com especial
esse fato condiciona e destaque para a defesa da instituição do CPMF como fonte específica de recursos
delimita o campo das
alternativas possíveis,
para ações de saúde e o tipo de uso que lhe foi posteriormente atribuído; de outro, a
não se deve, no entan- redefinição das modalidades de gestão, o acento dado à ação municipal e os incenti-
to, deixar de conside- vos dirigidos ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e Programa
rar o espectro de virtu-
alidades que pode fa- de Saúde da Família (PSF); e, por fim, os aspectos controversos da regulamentação
zer emergir. dos seguros e planos privados de assistência à saúde.
200
OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).
Organização do SUS
versação, desvio ou não aplicação dos recursos. Por sua vez, para receber os
recursos, além de constituir o fundo de saúde, os estados e municípios devem
criar conselhos e elaborar planos de saúde, apresentar relatórios de gestão e
assegurar a existência de contrapartida de recursos para a saúde no respectivo
orçamento. Desse modo, os três níveis de governo devem atuar conjuntamen-
te na administração da saúde pública.
Entretanto, foram muitas as dificuldades observadas na definição
das regras para o repasse regular e automático de recursos do governo federal
para estados e municípios. Este só foi implementado a partir de 1994, com a
entrada em vigor da segunda Norma Operacional Básica do SUS – a chamada
NOB/93, anexa à Portaria do Ministério da Saúde no 545, de 20/05/1993. Até
então, vigoravam as disposições constantes da primeira Norma Operacional –
a chamada NOB/91, anexa à Resolução da Presidência do Inamps no 258, de
07/01/1991 –, que estendiam aos órgãos públicos a mesma sistemática de
pagamento por produção tradicionalmente aplicada nos contratos firmados
com a iniciativa privada, transformando estados e municípios em meros ven-
dedores de serviços de saúde para a União (cf. Scotti, 1997).
Expedida na administração de Jamil Haddad à frente do Ministério
da Saúde, durante o governo de Itamar Franco, a NOB/93 estabeleceu um
novo padrão de relação intergovernamental na área da saúde (Barreto Júnior,
1999), detalhando responsabilidades, requisitos e prerrogativas para a habili-
tação de estados e municípios à condição de gestor local do SUS, sob três
modalidades distintas: gestão incipiente, gestão parcial e gestão semi-plena.
No modelo de gestão incipiente, o município assumia a responsabili-
dade sobre a contratação e autorização do cadastramento de prestadores; a progra-
mação e a autorização da quantidade de internações hospitalares e procedimentos
ambulatoriais a serem prestados por unidade; o controle e a avaliação dos serviços
ambulatoriais e hospitalares públicos e privados com ou sem fins lucrativos; o
gerenciamento das unidades ambulatoriais públicas existentes no município; a
incorporação à rede de serviços das ações básicas de saúde – nutrição, educação,
vigilância epidemiológica e sanitária; e o desenvolvimento de ações de vigilância
de ambientes e processos de trabalho e de assistência e reabilitação do acidentado
de trabalho e do portador de doença ocasionada pelo trabalho.
No modelo de gestão parcial, além de assumir as atribuições da
gestão incipiente, o município passava a receber mensalmente recursos finan-
ceiros correspondentes à diferença entre o teto financeiro e o pagamento efe-
tuado diretamente pela esfera federal às unidades hospitalares e ambulatoriais,
públicas ou privadas, existentes em seu território.
No modelo de gestão semiplena, além das atribuições dos modelos
anteriores, o município assumia a completa responsabilidade sobre a gestão
da prestação de serviços (planejamento, cadastramento, contratação, controle
e pagamento de prestadores ambulatoriais e hospitalares, públicos e priva-
dos); o gerenciamento da rede pública, exceto unidades de referência sob ges-
tão estadual; e o recebimento mensal da totalidade dos recursos financeiros
para custeio correspondentes aos tetos ambulatoriais e hospitalares.
203
OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).
89% dos 5.507 municípios existentes em 1998 estavam habilitados à gestão 2. Municípios habilitados
às condições de gestão
local do SUS, sendo 431 ou 8% na condição de gestão plena do sistema de local do SUS previstas
saúde (cf. Cardoso, 1998). pela NOB/96
A regulamentação da trans- Ano Brasil - 1998 e 2002
Fonte: Yunes, 1999, p. 66
ferência de recursos do governo federal Condição de gestão 1998(1) 2002(2)
e Cardoso, 1998, p. 166
Atenção básica 4.553 5.507
para estados e municípios, nos termos Notas: (1) Outubro de
Sistema municipal 449 1.500 1998 e (2) Previsão
da legislação orgânica do setor, requi-
sito indispensável para a implementação do SUS, é um fato muito recente
para assegurar a realização dos objetivos de disciplinamento da demanda por
serviços de saúde preconizados pelo movimento de reforma sanitária há mais
de 20 anos. Basta lembrar que, ainda hoje, dez anos depois da instituição do
SUS, mais de 50% das despesas do governo federal com saúde se destinam ao
pagamento de consultas, exames e internações em estabelecimentos próprios 3
Os donos de hospitais
ou contratados pela seguridade social (cf. Campino et alii, 1998). opunham-se contun-
dentemente, entre ou-
No debate sobre a questão, criticam-se o enfraquecimento e a perda tras coisas, aos valores
de funções das secretarias estaduais de saúde, em decorrência do processo de de retribuição que a
tabela do Ministério da
descentralização do SUS. Ao romper com o equilíbrio federativo, esse pro- Saúde conferia aos pro-
cesso caracterizar-se-ia pela concentração do financiamento e do poder cedimentos médicos
normativo na União e pela devolução de responsabilidades executivas direta- das instituições conve-
niadas, discordância,
mente aos municípios (cf. Mendes, 1998). aliás, que era consen-
sual. Eram as seguin-
Financiamento do SUS (A questão da CPMF) tes as remunerações
previstas para os atos
médicos, desde julho
Desde o início do período governamental em análise, ao lado das difi- de 1994: consulta mé-
dica: R$ 2,04; exame
culdades de obtenção de recursos para a atuação do Ministério da Saúde, o atendi- clínico: R$ 0,54; con-
mento público no setor tem sido objeto de intensas críticas, oriundas dos meios de sulta médica de pré-
comunicação, dos próprios profissionais de saúde e dos empresários atuantes na natal: R$ 2,86; psico-
diagnóstico: R$ 2,19;
área3. Por isso, antes mesmo de assumir a pasta e durante os quase dois anos em hemodiálise (sessão):
que o comandou, o Ministro Adib Jatene preocupou-se em encontrar mecanismos R$ 73,50; terapia em
cardiologia: R$ 8,94;
que possibilitassem a implementação das atividades sob sua responsabilidade. tratamento de Aids em
No orçamento de 1995, as verbas previstas para a Saúde, mesmo hospital/dia: R$ 12,56;
muito superiores às do ano anterior (R$ 13,9 bilhões sobre, aproximadamente, tomografia de osso em
dois planos: R$ 14,94;
R$ 6,5 bilhões), não eram suficientes para cobrir as necessidades da área, na- cesariana: R$ 35,00
quele ano, considerando o Ministério ser necessária a agregação de recursos (cf. Araújo & Martins,
adicionais da ordem de R$ 5,9 bilhões. Além disso, havia dívidas herdadas do 1995b, p. 17).
4
Tratava-se de contri-
governo anterior. Chegou a ser aventada a possibilidade de criação de um im- buição nos moldes do
posto para financiar o sistema público de saúde, o que, ao lado de aumentar o antigo Imposto Provi-
montante de seus recursos, diminuiria sua dependência em relação à Seguridade sório sobre Movi-
mentação Financeira,
Social (O Estado de S. Paulo, 29/12/1999; Folha de S. Paulo 29/12/1994). IPMF, que previa a co-
Considerando a necessidade de haver uma fonte de financiamento brança de alíquota de
0,25% sobre cada mo-
estável e segura para o SUS, foi encaminhada ao Congresso Nacional emenda vimentação financei-
constitucional, criando a Contribuição sobre a Movimentação Financeira – CMF4, ra. O potencial de re-
objeto de muitas controvérsias, interna e externamente ao governo, uma vez que ceita da CMF era esti-
mado em R$ 6 bilhões
existiam pontos de vista bastante divergentes sobre a oportunidade da medida, anuais (cf. Araújo &
seu caráter provisório ou definitivo, sobre o seu alcance, tempo de implantação Martins, 1995a).
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Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).
5
Publicação da FIOCRUZ Atualmente, o Congresso Nacional discute proposta de emenda cons-
apresenta outros núme- titucional que obriga União, Estados e municípios a investirem um percentual
ros, afrimando textual-
mente: “A proposta ini-
fixo do orçamento em saúde. Por essa proposta, já aprovada na Câmara Fede-
cial elevava o orçamen- ral, em primeira votação, em cinco anos, estados e municípios teriam de apli-
to do Ministério da Saú- car, respectivamente, 12% e 15% de seu orçamento com a saúde. A União,
de no ano 2000 para R$
25,8 bilhões (R$ 6,2 bi- por sua vez, seria obrigada a investir no setor 64% do que arrecadar com três
lhões a mais do que em impostos: a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins);
99). Pelo texto final- a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) – que se
mente aprovado, na Lei
de Diretrizes Orça- tornaria permanente; e a Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL). Com
mentárias (LDO) de isso, o gasto público com a saúde no Brasil aumentaria de R$ 28,5 bilhões,
2000 a saúde deverá re- em 1998, para R$ 39 bilhões, em 2003, o que representaria cerca de R$ 245
ceber no mínimo R$
22,5 bilhões. Para isso, per capita (Folha de S. Paulo, 21/09/1999)5.
o Governo Federal de- Por essa proposta, já aprovada na Câmara Federal, em primeira
verá apresentar nova
versão da LDO ao Con-
votação, a União deverá gastar com a saúde, em 2000, os mesmos valores
gresso ou apresentar empenhados em 1999, com um acréscimo de, no mínimo, 5%. A partir de
uma emenda modifi- 2001, deverá destinar à saúde o mesmo valor gasto no ano anterior, acrescido
cando o orçamento da
saúde” (Súmula Radis, da variação do PIB nominal. Quanto aos estados, a partir do ano 2000, terão
1999, p. 1-8). de gastar com a saúde um mínimo de 7% dos impostos arrecadados, chegando
206
OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).
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Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).
à saúde da família8, de tal forma que essas unidades passem a funcionar como
porta de entrada do sistema de saúde, disciplinando e intermediando o acesso
da população às unidades de maior complexidade tecnológica existentes em
âmbito local ou regional. Além disso, deve também observar os princípios de
integralidade e hierarquização (atenção integral e referência e contra-referência
para os diversos níveis do sistema quando os problemas identificados na aten-
ção básica assim o exigirem), de territorialização e adscrição de clientela (terri- 8
Para cumprir esses pre-
tório de abrangência e população residente na área previamente definida). ceitos, a unidade bási-
ca de saúde deve: ter
Seu objetivo maior é a reorganização da prática assistencial em no- uma área territorial
vas bases e critérios, em substituição ao modelo tradicional de assistência, previamente delimita-
centrado no hospital e orientado para a cura de doença. Assim, o PSF deve da sob sua responsabi-
lidade; trabalhar sob o
enfatizar práticas não convencionais de assistência, recorrendo à prevenção sistema de adscrição de
como forma de antecipar-se à demanda por serviços de saúde. A implantação famílias, o que pressu-
põe organizar e manter
do programa requer: cadastramento das famílias; implantação do Sistema de permanentemente atu-
Informação de Atenção Básica (SIAB); realização do diagnóstico da comuni- alizado um cadastro
dade; programação e planejamento do trabalho com base no diagnóstico; de- com os endereços de
todas as famílias ali
senvolvimento do trabalho com ações voltadas aos indivíduos, aos grupos residentes; organizar e
familiares, nos espaços do domicílio, da comunidade, da unidade de saúde ou manter uma equipe
no acompanhamento aos serviços de referência. mínima de profissio-
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OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).
atingir o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Concluem ser intenção clara
do governo federal querer se eximir de suas obrigações constitucionais, transfe-
rindo-as ao cidadão usuário, que teria de arcar com o ônus da manutenção de um
plano de saúde cuja carga superaria a capacidade operacional e financeira da
maioria das empresas de medicina de grupo em atividade no Brasil.
Para os dirigentes da Federação Nacional das Empresas de Seguros
Privados e de Capitalização (Fenaseg) (cf. Pereira Filho, 1999), responsáveis
pela cobertura de aproximadamente 5 milhões de pessoas em todo o território
nacional, a regulamentação dos planos e seguros privados de assistência à saúde
tem a qualidade evidente de garantir os direitos do consumidor, considerando a
situação anterior quando – à exceção das empresas de seguro saúde, regulamen-
tadas por legislação específica do setor de seguros, que data da década de 60 –
era comum a comercialização de produtos por operadoras sem capacidade de
atendimento nem reservas financeiras para honrar os termos do contrato. Nesse
caso – dos chamados planos de saúde do tipo “aspirina e copo d’água” (Serra,
1999) – o único caminho era recorrer aos órgãos de defesa do consumidor, que
ficaram notabilizados pelas ações impetradas contra essas operadoras.
Ao contrário dos dirigentes da Abramge, os da Fenaseg questionam
mais o processo da regulamentação da Lei no 9.656 pelo Poder Executivo, por
meio de sucessivas Medidas Provisórias, que alteraram a lógica subjacente à sua
elaboração, do que o seu conteúdo, já que este foi longamente discutido no Con-
gresso Nacional, com a participação de representantes de consumidores, empresas
médicas, associações profissionais, hospitais, etc. A lei teria levado em conta os
seguintes princípios: garantia de direitos ao consumidor, inclusive o de ser ampla-
mente informado sobre as condições do contrato; oferecimento obrigatório de um
contrato de referência, com coberturas de todas as doenças, sem prejuízo da esco-
lha pelo consumidor de contratos diferenciados, compatíveis com suas necessida-
des e condições pessoais; criação de obrigações para as operadoras no tocante aos
produtos oferecidos e quanto à fiscalização de sua situação econômico-financeira,
com vistas a assegurar o cumprimento futuro dos compromissos assumidos.
Para os dirigentes da Fenaseg, esses princípios harmonizavam-se per-
feitamente com o regime instituído pela Constituição que, ao dispor que a assis-
Consumidor S.A.,
tência à saúde é livre à iniciativa privada, deslocaria o foco da intervenção do 1998b, p. 23; 1999,
poder público para outras finalidades, tais como: preservar a liquidez e a solvência p. 13). Embora a lei
das operadoras; fiscalizar o cumprimento das obrigações por elas assumidas con- tenha sido ampla ao
proibir a exclusão de
tratualmente; assegurar a transparência e clareza das informações ao consumidor, atendimento de doen-
escoimando dos contratos as cláusulas abusivas; e promover a concorrência, evi- ças de alta complexi-
dade, a Medida Pro-
tando o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados. visória que acompa-
As Medidas Provisórias que alteraram profundamente a Lei no 9.656/ nhou a sanção presi-
98, porém, tiveram o efeito de colocar a regulamentação do segmento sob dencial possibilita ao
Consu diminuir a am-
outra ótica, mais afeita a ações e serviços públicos de saúde, impondo exigên- plitude das cober-
cias que acreditam não serem aplicáveis às operadoras de planos e seguros de turas, representando
saúde: a obrigatoriedade de aceitar todos os proponentes no seguro saúde; a uma redução do que
foi estabelecido na
substituição do conceito inicial do plano de referência com cobertura de todas própria lei (Consumi-
as lesões ou doenças, que deixou de ser de oferecimento obrigatório para ser dor S.A., 1998a, p. 2).
213
OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).
Considerações finais
intervenção estatal no setor (cf. Augusto & Costa, 1987, p. 59-61), que acaba
atribuindo ao usuário a responsabilidade quase total pelo cuidado com sua saúde.
Trata-se, sem dúvida, de uma situação paradoxal, pois o Estado
tampouco busca ampliar as possibilidades de consumo de serviços médicos para
além das necessidades mínimas da população assistida. Assim, não obstante de-
vam ser reconhecidos os esforços governamentais no sentido de dar maior eficiên-
cia ao uso dos recursos públicos – regulamentando sua aplicação, incentivando o
processo de descentralização e buscando o estabelecimento de um fluxo racional
para o atendimento ministrado –, não há como deixar de assinalar o fato de que,
exatamente no momento em que o texto constitucional a consagrou como direito
legítimo do cidadão, a saúde foi convertida em simples mercadoria e a luta pela
efetivação desse direito foi reduzida a um mero ato de consumo.
OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Between public and private - health in Brazil
today. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, 11(2): 199-217, 1999 (editado em fev. 2000).
ABSTRACT: The article analyses the Government Health Policy, in the 1995-1998 UNITERMS:
period, focusing the main decisions related to the SUS (Single Health System) government policy,
health policy,
organization and financing. It points out and discusses some among several fede-
health services.
ral government decisions: the regulation of the federal resources transference criteria
to states and municipalities and the resulting definition of the different kinds of
local health system administration; the basic health care reorganization strategy
via special incentives to the PACS (Health Community Agents Program) and to the
PSF (Family Health Program); the establishment of the CPMF (Temporary
Contribution on Financial Transactions) as an specific source of health services;
the regulation of private health care plans and insurance.
215
OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ARRUDA,
Tempo MariaSocial;
Arminda do Nascimento.
Rev. Sociol. AUSP,
nova S.
política de Pós-Graduação
Paulo, out. 1999 Social; Rev.DOSSIÊ
no Brasil.Tempo
11(2): 219-229, Sociol. USP, S.FHC
Paulo,
11(2): 219-229, out. 1999 (editado (editado
em fev. 2000).
em fev. 2000). o
1 GOVERNO
A nova política de
Pós-Graduação no Brasil
MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA
H
á bem pouco tempo, durante a apreciação dos últimos relatórios da
Pós-Graduação em Sociologia, tomamos conhecimento da intenção,
expressa no conjunto de objetivos pertinentes a um determinado
curso, de se perseguir posição mais elevada na grade conceitual
construída no processo de avaliação anterior. Sem considerar o caráter possi-
velmente singelo encerrado na formulação, impôs-se, inescapavelmente, a indaga-
ção sobre o propósito contido em manifestações dessa natureza, exprimindo cer-
tos significados atribuídos à formação pós-graduada que pressupõe direcionar
esforços intelectuais e institucionais de vulto. Toda uma concepção de vida acadê-
mica cristalizava-se nesse evento de aparência desimportante. A centralidade ad-
quirida pela avaliação de desempenho da pós-graduação no Brasil explicitava-se
de modo inconteste. Consolidavam-se e rotinizavam-se os procedimentos
avaliativos e as regras e formas, atualmente assumidas, de legitimação do trabalho
acadêmico. Finalmente, invertiam-se os princípios explícitos da avaliação, com-
prometidos em aquilatar as dimensões de qualidade assumidas pela pós-gradua- Professora do Depar-
tamento de Sociologia
ção no país, das quais o conceito é resultado. O exame desse conjunto de questões da FFLCH - USP
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ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).
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Paulo, 11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).
tivo particular que a define” (Chauí, 1998, p. 27). Ou, ainda, nas palavras de Irene
Cardoso, o modo de “representação da universidade como organização não está
apenas nela circunscrita, mas tem os traços de outras formas organizacionais tam-
bém contemporâneas, correspondendo a um “imaginário social nas sociedades
ocidentais contemporâneas (Lefort, citado em Cardoso, 1999, p. 52) para o qual
as “marcas do real tornam-se as da organização – signos de uma racionalização
em si do social – e as marcas de sua própria identidade lhe são fornecidas em
função de um suposto saber que a organização deteria sobre ele” (Lefort, citado
em Cardoso, 1999, p. 52).
Nesse enquadramento, na avaliação centrada nos Programas, “é a
instituição como tal que está em escrutínio” (Strathern, 1999, p. 20). A agência
financiadora concede um empenho materializado em recursos outorgados sob a
forma de bolsas e outras modalidades de financiamento. O desempenho é a
resposta esperada, expresso em produtividade, parâmetro de dimensionamento
da eficácia4. Daí deriva a concepção de contínuo aperfeiçoamento, ligado à ca-
pacidade de melhorar, responder a estímulos, corrigir o curso, aprimorar o pro-
cesso de cumprimento das metas pretendidas. “Aperfeiçoamento é um termo
bastante indefinido, porque descreve tanto o esforço como os resultados”
(Strathern, 1999, p. 17). Nesse diapasão, ficam nubladas as diferenças entre
articulação de meios tendo em vista a obtenção de um fim desejado, podendo
provocar o aparecimento da indistinção entre ambos, como aquela aludida no
início deste texto. Em situações desse tipo, o círculo se fecha, levando, efetiva-
mente, à desconexão entre a produção intelectual e os problemas sociais can-
dentes, construindo um universo não apenas auto-referenciado, mas, sobretudo,
esterilizado pela vivência de uma situação ritualística.
A questão da produtividade, nesses termos, teria que ultrapassar as
medições e ser capaz de estabelecer formas de dimensionar contribuições intelec-
tuais no plano qualitativo. O “Projeto Qualis”, implantado pela CAPES, com o
objetivo de classificar os veículos de divulgação dos trabalhos publicados, segun-
do a abrangência-local, nacional, internacional – e o nível A, B, C – representou a
tentativa de aproximação das expressões qualitativas. O trabalho incomensurável
realizado pelas comissões nesse setor, embora incompleto, expressou a busca de
ultrapassagem da pura quantidade. Não obstante, há ainda aspectos efetivamente
de substância qualitativa que escaparam à consideração. A pergunta que se põe,
no entanto, diz respeito à real condição de se efetuar apreciações pertinentes nesse
plano, quando se considera as dimensões atuais da Pós-Graduação no Brasil. Evi-
dentemente, a implementação de procedimentos dessa natureza, caso seja factível,
viria a alterar o Sistema de Avaliação ora vigente, por meio da agregação de novos
4
A CAPES concedeu, critérios. Se a Pós-Graduação é hoje extensa e volumosa, conhecemos pouco so-
em 1998, 12.721 bol- bre a densidade que assumiu ao longo desses anos.
sas de mestrado e de
doutorado aos Progra- No caso das Ciências Humanas, cujo processo de formação é
mas de Pós-Gradua- inescapavelmente longo, a percepção da contribuição efetiva deve absorver os
ção e investiu 392 mi-
lhões de reais nessa modos inerentes à construção desse saber. “As áreas são diferentes porque é diver-
modalidade de apoio. sa a natureza dos conhecimentos que o homem construiu ao longo da História. Há
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ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento.The new policy of Post-Graduation in Brazil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 219-229, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).
UNITERMS: ABSTRACT: This article deals with the policy of evaluation of the post-graduation
new policy, in Brazil built in 1998. It points the differences in the previous systematic and
post-graduation,
comes up with the resulting implications of the new model. It also calls the
evaluation system,
culture, attention to the functional feature of the evaluation, to its development in the
University. ambit of the intellectual production, of the formation of the students and of the
principles which outlined the post-graduation studies.
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ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).
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DURHAM,
Tempo Eunice Ribeiro. Rev.
Social; A educação no USP,
Sociol. GovernoS.dePaulo,
Fernando Henrique
11(2): Cardoso.
231-254, 1999Social; Rev. DOSSIÊ
Tempo
out. FHC
Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado (editado
em fev. 2000).
em fev. 2000). o
1 GOVERNO
A educação no Governo de
Fernando Henrique Cardoso
EUNICE RIBEIRO DURHAM
Considerações gerais
idade adequada ou que não lograram concluí-la. Essa meta incorpora, de forma
ampliada, a determinação constitucional de erradicação do analfabetismo, en-
tendendo que a alfabetização deve ser interpretada no seu sentido amplo, isto é,
como domínio de instrumentos básicos da cultura letrada, das operações mate-
máticas elementares, da evolução histórica da sociedade humana, da diversida-
de do espaço físico e político mundial e da constituição da sociedade brasileira.
Envolve ainda a formação do cidadão responsável e consciente de seus direitos.
Essa prioridade está incorporada na questão da Educação de Jovens e Adultos,
que merece uma atenção especial neste Plano Nacional de Educação...”.
“A terceira prioridade reside na ampliação do acesso aos níveis edu-
cacionais anteriores e posteriores ao Ensino Fundamental, envolvendo, desta
forma, a Educação Infantil, o Ensino Médio e a Educação Superior”.
“Por acesso não se deve entender apenas a garantia de vagas nas
redes de ensino, mas a oportunidade de uma formação adequada aos interes-
ses e necessidades das diferentes faixas etárias, assim como, nos níveis mais
elevados, às necessidades da própria sociedade complexa. Incluem-se, nesta
concepção, tanto as demandas do mercado de trabalho como as necessidades
de formação de lideranças científicas e tecnológicas, artísticas e culturais,
políticas e intelectuais, empresariais e sindicais” (Durham, 1997, Introdução).
Colocou-se também como prioridade, por constituir instrumento
indispensável para a gestão do sistema educacional, o desenvolvimento e aper-
feiçoamento de sistemas de informações e de avaliação em todos os níveis e
modalidades do ensino.
Permeando tudo isto, coloca-se a questão do montante e da distri-
buição dos recursos para a educação.
Temas mais específicos foram também incluídos na política de atu-
ação do Governo Federal, tais como educação indígena, a educação especial e
formação para a o trabalho.
Para atender as prioridades, a política se orientou no sentido de
definir as principais áreas de atuação, organizadas em programas:
• ampliação do acesso para garantir a democratização do ensino;
• formação de professores, associada a uma política salarial e a pla-
nos de carreira de forma a assegurar a melhoria da qualidade do ensino;
• utilização de novas tecnologias educacionais para suprir deficiên-
cias na formação dos professores e para enriquecer o currículo escolar; 1
Utilizamos sempre as
• racionalização na gestão dos sistemas escolares; estatísticas mais re-
• priorização de investimentos para as áreas onde se concentram os centes. Contudo, como
maiores déficits educacionais. elas se encontram em
fontes diversas, nem
Analisaremos mais adiante as políticas e os programas. Antes, en- sempre estão organi-
tretanto, convém apresentar os números que fornecem dados objetivos para zadas do mesmo modo
nem englobam os mes-
avaliar a evolução do sistema1. mos anos. Foi por isso
Quando se examinam esses dados, verifica-se que houve uma evo- impossível uniformizar
lução muito positiva no que se refere à educação básica e, mais especialmente, as tabelas que elabora-
mos, tanto em termos
ao ensino fundamental. O ensino superior é, entretanto, uma área onde se de intervalos de tempo
acumulam problemas. como de variáveis.
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).
Ensino Básico
A Pré-Escola
A pré-escola é uma instituição importante no sistema educacional. Para
as crianças de famílias pouco escolarizadas, como é o caso de grande parte da
população brasileira, facilita a integração na cultura escolar e a aquisição de com-
petências sociais e intelectuais que o ambiente familiar nem sempre provê.
Tratando-se, entretanto, de um nível de ensino que é de responsabilidade
dos municípios, é uma área de difícil atuação do Governo Federal, dada sua extrema
fragmentação. Programas de incentivo e apoio precisam ser conveniados indepen-
dentemente com mais de 5.500 sistemas autônomos. Por isso, o Governo Central
tende a um atendimento seletivo, organizado em torno de alguns projetos de alto
interesse social. A política tende portanto a ser mais fragmentada e menos eficaz.
Em 1996, isto é, logo após o início do Governo Fernando Henrique, a
taxa de Matrícula Bruta, calculada em função da Contagem da População realiza-
da naquele ano, indicava um percentual de 45,64% da faixa etária de 4 a 6 anos
atendida na pré-escola. Isto constituía um aumento muito significativo em relação
a 1991, quando o Censo Populacional indicava uma Taxa Bruta de 35,38%.
A Tabela 4, que utiliza os Ano Matrículas
Censos Educacionais, mostra a evo- 1991 3.628.285
4. Evolução da matrícula
lução da matrícula nesta década. 1996 4.270.376
inicial na Pré-Escola
O dado preocupante diz 1997 4.292.208
Brasil – 1991-1998
1998 4.111.120 Fonte: MEC/INEP/SEEC
respeito ao ligeiro declínio da matrí-
cula que se observa em 1998, após toda uma década de contínua expansão. A
razão provável deste declínio reside na relação entre o Fundo de Desenvolvimento
do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, o qual analisaremos mais
adiante, e a distorção série-idade. Há realmente uma tendência no Brasil, especial-
mente nas regiões mais pobres, de matricular na pré-escola crianças com mais de
6 anos, que não tiveram acesso a esse nível de ensino, como forma de facilitar o
trabalho posterior de alfabetização. Com a criação do FUNDEF, que aumenta os
recursos dos municípios para a educação em função do número de alunos matricu-
lados no ensino fundamental, a tendência dos municípios foi a de transferir para
esse nível de ensino todas as crianças de 7 anos ou mesmo menos. O enorme
aumento da matrícula que se verificou no ensino fundamental no mesmo ano jus-
tifica esta hipótese. Trata-se, provavelmente, antes de um ajuste entre os diferentes
níveis do que de um decréscimo de atendimento à população.
Por outro lado, parece existir hoje, em função mesma do FUNDEF,
uma tendência das prefeituras a privilegiar o ensino fundamental em detri-
mento da pré-escola. Se esta tendência se confirmar, haverá necessidade de
uma política para reverter esta distorção. Entretanto, os dados preliminares
do Censo Escolar de 1999, recém publicado, demonstram um novo cresci-
mento das matrículas que, dos 4.111.120 de 1998, passaram para 4.230.243
neste ano. A hipótese do ajuste parece assim ser a mais provável.
Se o Governo Federal não desenvolveu um programa específico
para o aumento das matrículas na pré-escola, tomou entretanto uma iniciativa
importante que foi a elaboração de Referências Curriculares para este nível de
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).
gando perto disso. Convém lembrar que, em 1970, a taxa líquida de escolarização
era de apenas 67%, conforme já mostramos na Tabela 6.
Os dados referentes ao número médio de anos de estudo confirmam
12. Número Médio de
um crescimento significativo da taxa de escolarização. anos de estudos por
Os dados da Tabela 12 mostram não só a evolução positiva, mas regiões
também confirmam a persistência da desigualdade regional. Brasil – 1960-1996
Fonte: Relatório Sobre o
1960 1970 1980 1990 1995 1996
Desenvolvimento Humano
Regiões no Brasil, 1996; PNUD/
Norte/Centro-Oeste 2,7 - 4,0 - - - IPEA, 1996.
Centro-Oeste - - - - 5,7 6,0 Dados de 1995 e 1996
Norte - - - - 5,5 5,8 calculados pelo MEC/
1,1 1,3 2,2 3,3 4,1 4,4 INEP/SEEC com base na
Nordeste
PNAD de 1995 e 1996
Sudeste 2,7 3,2 4,4 5,7 6,2 6,6
Exclusive a população
Sul 2,4 2,7 3,9 5,1 6,0 6,3 rural da Região Norte
remetem àquela que talvez seja a questão mais importante do sistema educa-
cional brasileiro hoje: a qualificação dos professores. Neste item também se
registrou uma evolução positiva durante o governo Fernando Henrique, mas o
problema continua sendo muito sério.
Os dados indicam um aumento do nível de escolarização dos do-
centes. Está havendo, portanto, algum progresso. Entretanto, pesquisas quali-
tativas mostram que a preparação dos professores, mesmo os que possuem o
ensino superior, não é ainda adequada às necessidades de aprendizagem dos
alunos. É preciso, portanto, melhorar a qualidade da formação inicial e conti-
nuada dos docentes brasileiros.
Vejamos, em primeiro lugar, os dados referentes ao nível de qualifi-
cação docente, em sua evolução recente. 17. Pré-escola
Função docente por grau
Valor Absoluto (%) Cresc. de formação Brasil
1991 1996 1998 1991 1996 1998 (%) 1991-1998
1o grau incompleto 9.734 16.198 23.115 5,8 7,4 8,9 137,5 Fonte: MEC/INEP/SEEC.
1o grau completo 21.851 19.069 22.720 13,1 8,7 8,8 4,0 O mesmo docente pode
2o grau completo 106.843 144.189 167.421 64 65,7 64,8 56,7 atuar em mais de um
nível/modalidade de
3o grau completo 28.489 40.061 45.285 17,1 18,2 17,5 59,0
ensino e em mais de um
Total 166.917 219.517 258.541 100 100 100 54,9 estabelecimento.
los econômicos que afastam da escola as crianças das famílias de menor renda. O
Programa da Merenda Escolar foi ampliado, regularizado e fortalecido, e constitui
hoje um dos programas mais amplos e bem sucedidos de suplementação alimentar
existentes nos países em desenvolvimento. O fornecimento de livros didáticos
gratuitos a todas as crianças da 1a à 4a séries logrou, pela 1a vez, distribuir os
livros antes do período letivo. Esse mesmo Programa foi ampliado para atender
também às crianças da 5a à 8a série e criou-se um sistema de avaliação da qualida-
de do livro didático que deve contribuir muito para a qualidade do ensino.
Um Programa de grande significado social, o da Bolsa-Escola, não
foi de iniciativa do Governo Federal, mas da administração Cristóvão Buarque,
do Distrito Federal. Em 1997, reconhecendo a importância deste programa, o
Governo Federal passou a apoiar, com recursos próprios, programas seme-
lhantes nos municípios mais pobres. É preciso reconhecer, entretanto, que o
Projeto dificilmente pode ser universalizado, dado seu custo elevado. Mesmo
no Distrito Federal, o programa só foi possível porquê todo sistema de ensino
básico é pesadamente subsidiado pelo Governo Central.
No que tange à qualidade de ensino, os recursos para a formação de
professores foram ampliados, especialmente para o Nordeste, onde as defici-
ências são maiores. Além disso, o Programa TV-Escola distribuiu televisões
e vídeos para todos os estabelecimentos escolares de mais de 100 alunos e
organizou a transmissão regular de programas educativos destinados tanto a
ampliar o conhecimento dos professores como a enriquecer e facilitar, através
de novas tecnologias educacionais, o trabalho em sala de aula.
Deve-se ainda mencionar, neste mesmo sentido, a articulação entre
Governo Central e Governos Estaduais na implementação de Classes de Acelera-
ção. Seu objetivo é regularizar o fluxo escolar e reduzir a defasagem série idade, a
qual é responsável pela diminuição da auto-estima dos alunos e pela evasão esco-
lar. Iniciado há pouco mais de dois anos, as Classes de Aceleração já atendiam, em
1998, 1.189.998 alunos, com concentração bastante alta na Região Nordeste.
Finalmente, é importante mencionar um Programa que não tem re-
cebido atenção suficiente: o do Dinheiro na Escola. Consiste na distribuição
de pequenos fundos que são repassados diretamente aos estabelecimentos es-
colares e são por eles utilizados para suprir necessidades menores tais como
pequenos reparos, pintura, aquisição de material didático. Este programa,
freqüentemente suplementado pelos Estados e Municípios, aumenta substan-
cialmente a autonomia das escolas, além de promover a democratização da
gestão por exigir de um Conselho Escolar constituído por docentes e pais, que
se responsabilize pela gestão dos recursos.
Dentro dos limites deste artigo, uma enumeração e descrição das demais
iniciativas é impossível. Mas é necessário mencionar, mesmo que de passagem, o
sucesso de outros programas como os da Educação Indígena, da Educação para
Portadores de Necessidades Especiais, assim como a iniciativa de elaboração e pu-
blicação dos Parâmetros Curriculares para o Ensino Fundamental e Pré-escola.
No que diz respeito ao Ensino Médio é preciso mencionar a ampla
reforma curricular em curso, associada à reorganização de todo o ensino técni-
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).
co, que era necessária, mas cujos resultados ainda não podem ser avaliados.
O que se pode verificar desta exposição sumária é que muito do su-
cesso da política educacional deste Governo deveu-se a uma articulação de pro-
gramas distintos no sentido de atingir os problemas mais graves e o
monitoramento dos resultados através de pesquisas e dos Censos Escolares.
Os problemas maiores ainda não foram resolvidos, nem podem sê-lo a
curto prazo, mas estão sendo enfrentados diretamente e se referem à desigualdade
regional, à qualificação dos professores, à regularização do fluxo escolar, à quali-
dade do ensino de forma geral, e ao ensino supletivo para jovens e adultos que não
completaram a escolaridade obrigatória de 8 séries. Aliás esta última área foi uma
das de pior desempenho, em termos quantitativos, de todo o sistema educacional
e, face a seu alto interesse social, precisaria ser reformulada em regime de priorida-
de. A atuação do Programa da Comunidade Solidária vem obtendo resultados
positivos, mas seria necessário ampliar a cooperação do Ministério com ONGs,
empresas, sindicatos e secretarias de educação. A ação recente de junção de esfor-
ços do MEC e do Ministério do Trabalho, alimentada com recursos do FAT, pode
representar a superação das deficiências que ocorrem nesta área.
Apesar do saldo positivo, há sinais preocupantes neste novo perío-
do presidencial, que se iniciou este ano. A crise fiscal do Estado vem amea-
çando o financiamento de programas que podem ser considerados essenciais
para a continuidade do processo de melhoria do ensino, especialmente o
FUNDESCOLA, a Bolsa-Escola e aqueles voltados para Jovens e Adultos.
Particularmente grave é a dificuldade que vêm ocorrendo para o aumento do
referencial de R$ 315,00 do FUNDEF, como está previsto na legislação.
Apesar destas dificuldades recentes, o saldo do primeiro período
do Governo Fernando Henrique foi muito positivo no que diz respeito ao
ensino fundamental.
Ensino Superior
Não se pode portanto dizer que tenha ocorrido, nestas últimas dé-
cadas, uma privatização de ensino superior.
O problema no que tange ao Governo Federal, é que este crescimento
do setor público que ocorreu a partir de 1990 se deveu à criação de diversas
instituições estaduais, ao passo que a matrícula nas IFES aumentou muito pou-
co, apenas 34,7%, apresentando, em todo o período, um crescimento inferior às
demais dependências administrativas e à média nacional, que é de 51,4%.
Não houve entretanto uma privatização do ensino superior federal
durante o Governo Fernando Henrique. O aumento da participação do setor
privado nos últimos 5 anos é muito pequeno, passando de 60,1% em 1995 a
60,7% em 1998 e não se deve a uma estagnação ou diminuição de crescimen-
to do sistema federal. De fato, o crescimento nas IFES, que foi em média de
8.681 matrículas por ano entre 1990 e 1994, subiu para uma média de 17.164
matrículas por ano entre 1995 e 1998, isto é, praticamente dobrou. O proble-
ma é que, dada a tradicional atribuição da responsabilidade pelo ensino supe-
rior ao Governo Federal, o crescimento durante esta gestão não é de molde a
sustentar a necessária ampliação do sistema.
A questão do crescimento é complexa. A estagnação da década de 80
246
DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).
puta o gasto com inativos. Isto aponta para uma irracionalidade na estrutura
de gastos que precisa ser corrigida.
A demonstração do custo excessivo do sistema pode ser facilmente
comprovada quando se fazem comparações internacionais. Os dados de 1994
são os mais comparáveis, porquanto as informações internacionais estão refe-
ridas a esse ano.
Como se verifica na Tabela 23, o gasto por aluno nos estabelecimen-
tos públicos federais é superior àquela observada na média nos países de OECD.
Procura-se, no Brasil, justificar este custo relativo excessivamente alto, pelo
fato da inclusão nos gastos das universidades, das despesas realizadas com os
hospitais. Entretanto, os hospitais universitários recebem recursos do SUS que
não são computados nos cálculos referentes ao financiamento efetuado pelo MEC.
Do mesmo modo, não se pode racionalizar em termos do custo da pesquisa, pois
esta conta tanto no Brasil como nos demais países considerados, com recursos
extra-orçamentários fornecidos pelas agências de fomento.
Países Gasto por Aluno
Usamos dados anteriores
Canadá 12.350 a este governo. Estimativas do MEC
Estados Unidos 11.800 para 1998 melhoram o quadro. De
Japão 11.850 acordo com esses, o custo-aluno, sem
Reino Unido 10.370
inativos, seria de R$ 8.922,00. É pre-
Brasil* 9.450
23. Gasto por Aluno em ciso reconhecer que, com um gasto-
Instituições Públicas de Holanda 8.720
Ensino Superior Diversos Suécia 7.120 aluno de quase R$ 9.000,00 há con-
Países Bélgica 6.850 dições de manter as universidades em
1994 em US$ Alemanha 6.550 níveis muito mais satisfatórios de re-
Fonte: OECD. Education França 6.020
at a Glance muneração e investimento em infra-
Itália 5.850
MEC-SPP. 1995
Espanha 3.770 estrutura do que acontece hoje. O
* Excluído o custo dos
inativos e pensionistas. Média OECD 5.900 problema localiza-se na estrutura do
sistema de financiamento, nas
distorções da política de pessoal e na irracionalidade dos orçamentos.
O gasto é também muito elevado quando se considerava o percentual
de gastos públicos nos diferentes níveis de ensino em relação ao número de
24. Matrículas versus alunos atendidos. Não há dados recentes sobre este problema, pois dependem
Percentual dos Gastos
Públicos com Educação
de pesquisas. O MEC fez este levantamento em, 1996, com dados de 1995.
no Ano de 1995 Os resultados deste trabalho revelam as distorções da estrutura de financia-
Todos os níveis de mento. Embora tenha havido alterações dos valores em dólares, a estrutura
Governo (R$ mil)
Fonte: Censo Escolar permanece a mesma e é esta que precisa ser alterada. Não o foi ainda e isto
SEEC/INEP/MEC e IPEA/ constitui uma omissão deste Governo.
DIPOS/MPO.
1
As matrículas incluem Matrículas Gastos
todas as modalidades de Níveis de Ensino No % No %
ensino. Educação Infantil 4.396.287 10,8 1.760.837 5,5
2
Distribuição dos gastos Ensino Fundamental 30.946.818 76,3 19.278.117 59,8
segundo metodologia Ensino Médio 4.434.645 10,9 2.998.398 9,3
adotada para o projeto
Ensino Superior 755.726 1,9 8.213.505 25,5
piloto WEI da OECD/
UNESCO. Todos os níveis 40.533.476 100 32.250856 100
do sistema de avaliação.
Antes deste governo, o Censo Escolar e o Censo do Ensino Supe-
rior eram publicados com três ou quatro anos de atraso. Hoje são publicados
no mesmo ano em que foram realizados, o que ocorre em muito poucos países
do mundo. Além disso, não só a metodologia estatística hoje utilizada é muito
mais sofisticada e confiável, como os resultados têm sido acompanhados de
pesquisas paralelas, contratadas com pessoal das universidades, que verifi-
cam e analisam os resultados. O esforço do Governo Federal no sentido de
informatizar e qualificar o pessoal das secretarias estaduais de educação cons-
titui um dos fatores que permitiu o avanço registrado nesta área, uma vez que
todo o processo se realiza em cooperação com os Estados.
O sistema de Avaliação do Ensino Básico (SAEB) foi reformulado, e
iniciou-se a avaliação do ensino médio, além do Exame de Final de Curso (SAEB).
Formulou-se o sistema de avaliação de cursos por Comissões de Especialistas.
Foi realizado, em 1997, o primeiro Censo do Professor, o qual, for-
neceu informações preciosas sobre nível de qualificação, características só-
cio-econômicas e nível salarial dos docentes.
O progresso nesta área foi enorme e a divulgação dos resultados de
todos esses processos tem tido impactos imediatos no conjunto do sistema.
DURHAM, Eunice Ribeiro. Education in the government of Fernando Henrique Cardoso. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 231-254, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).
ABSTRACT: This work presents the evolution of the educational system during
UNITERMS:
the government of Fernando Henrique Cardoso, in the context of the education,
transformations occurred in the last decade. The data demonstrates a clear FHC government.
progress in elementary education and the article analyses the implemented
educational policy and the transformation, which occurred in the system during
this time. A special part is dedicated to College, and it is demonstrated the
existence of a crisis which affects the public institutions, mainly the Federal
ones. It also shows the headway in the process of evaluation of the system.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
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Fontes
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