Jean P. Sasson - Sultana, A Vida de Uma Princesa Árabe
Jean P. Sasson - Sultana, A Vida de Uma Princesa Árabe
Jean P. Sasson - Sultana, A Vida de Uma Princesa Árabe
SASSON
SULTANA
A VIDA DE UMA PRINCESA ÁRABE
Este livro é dedicado a Jack W. Creech
Ele teve a certeza, desde o primeiro instante, de que era importante contar a história de
Sultana. Só ele conheceu a angústia por que eu passei ao reviver a minha velha
amizade com Sultana escrevendo este livro, e foi ele, mais que qualquer outra pessoa,
que me ofereceu generosamente a sua amizade e apoio emocional nos tempos difíceis
durante os quais este livro se foi transformando, lentamente, em realidade.
A história da princesa Sultana é verdadeira. Embora as palavras sejam da autoria da
escritora, a história é da princesa. As chocantes tragédias humanas aqui descritas são
factuais.
Os nomes foram mudados e procedeu-se a uma ligeira alteração de vários
acontecimentos, tendo em vista a proteção de indivíduos identificáveis.
Nem a escritora, ao contar esta história, nem a princesa tiveram a menor intenção
de denegrir a religião Islâmica.
Agradecimentos:
Assim que me decidi a escrever este livro, li e reli os apontamentos e diários de Sultana
que esta me confiara. Ao selecionar as aventuras da sua vida espantosa que retrataria
neste livro, senti a excitação de um detetive. E, no entanto, sentia sobre mim o peso da
responsabilidade solene que era ter de pôr cuidadosamente de parte os
acontecimentos que pudessem trazer-lhe problemas. As palavras são minhas mas a
história é de Sultana.
Estou-te grata, Sultana, por teres a coragem de partilhar a tua história com o
mundo. Ao assumires essa posição temerária, contribuíste para humanizar os árabes,
um povo mal compreendido pelo Ocidente. Tenho a esperança de que, ao revelar os
pormenores íntimos da tua vida na condição de mulher árabe, em todo o seu
sofrimento e glória, a tua história possa ajudar a desmistificar os numerosos
estereótipos negativos que se têm, por toda à parte, em relação ao teu povo. Quem ler
a tua história não poderá deixar de compreender que, tal como em qualquer país do
mundo, existem coisas boas e más. Nós, no Ocidente, ouvimos falar só mal da Arábia
Saudita. Eu sei, tal como tu, que apesar dos costumes primitivos que, cruelmente,
cerceiam a liberdade da mulher na tua terra, existem muitas árabes, como tu,
merecedoras do nosso respeito e admiração pela sua luta contra séculos de opressão.
Agradeço ainda, aqui mais perto de mim, a Liza Dawson, a minha editora na William
Morrow, que se apaixonou pela história de Sultana mal leu o manuscrito pela primeira
vez. Os seus comentários e sugestões contribuíram para enriquecê-la.
Também desejo agradecer a Peter Miller, o meu agente literário. Apreciei o
entusiasmo inabalável que demonstrou em relação a este livro.
O meu obrigado muito especial para Pat L. Creech, licenciada em Filosofia, que,
desde o início ajudou-me a dar forma a este livro.
Eu teria achado a narração da história de Sultana muito mais difícil se não fossem o
amor e o apoio da minha família. Fico particularmente grata a meus pais, Neatwood e
Mary Parks. Esse amor e esse apoio foram ainda mais profundamente sentidos no
decorrer da redação deste livro tão pessoal.
FATOS NACIONAIS
Mar Mediterrâneo
Israel
Iraque
Irão
Egito
Kuwait
Qatar
Emirados Árabes Unidos
Sudão
Etiópia
Arábia
ISRAEL: População: 4,7 milhões; Religião: judaísmo (82%), islamismo sunita (14%),
cristianismo (2,5%), outras (1,5%);
Jordânia.: População: 3,2 milhões (apenas na Área Leste); Religião: islamismo sunita
(93%), cristianismo (5%), outras (2%);
IRAQUE: População: 17,9 milhões; Religião: islamismo xiita (54%), islamismo sunita
(43%), cristianismo (3%)
BAHREIN: População: 510000; Religião: islamismo xiita (48%), islamismo sunita (38%),
cristianismo (7%), outras (7%)
Emirados Árabes Unidos: População: 1,9 milhões; Religião: islamismo sunita (74%),
islamismo xiita (21%), cristianismo (5%)
IRÃO: População: 56,7 milhões; Religião: islamismo xiita (92%), islamismo sunita
(7%), outras (1%)
OMÃ: População: 1,5 milhões; Religião: islamismo ibadi (69%), islamismo sunita
(18%), hinduísmo (13%)
IÉMEN: População: 11,8 milhões; Religião: islamismo sunita (53%), islamismo xiita
(47%)
SUDÃO: População: 28,6 milhões; Religião: islamismo sunita (74%), tradicional (16%)
cristianismo (8%), outras (2%).
INTRODUÇÃO
Sou princesa numa terra onde os reis ainda governam. Devem conhecer-me apenas
por Sultana. Não posso revelar o meu nome verdadeiro, pois receio que possa
acontecer algo de mal a mim e à minha família pelo que vos irei contar.
Sou uma princesa saudita, membro da família real da Casa de AI-Saud, os atuais
governantes do Reino da Arábia Saudita. A minha qualidade de mulher num país
governado por homens não me permite falar-vos diretamente. Pedi a uma amiga e
escritora americana, Jean Sasson, que me ouvisse e, posteriormente, contasse a
minha história.
Nasci livre, no entanto hoje estou presa por grilhões. Invisíveis, mantiveram-se
lassos e passaram despercebidos até a idade da razão reduzir a minha vida a um
estreito segmento de medo.
Não me restam recordações dos primeiros quatro anos. Imagino que tenha rido e
brincado como todas as outras crianças pequenas, abençoadamente alheia ao fato de
o meu valor, dada a ausência de um órgão reprodutor masculino, não ser significativo
na minha terra natal.
Para compreenderem a minha vida, é necessário conhecerem aqueles que vieram
antes de mim. Nós, os AI-Saud do presente, somos a sexta geração que descende dos
primeiros emirados do Nadj, as terras beduínas que hoje fazem parte do Reino da
Arábia Saudita. Os primeiros AI-Saud eram homens cujos sonhos não os levaram além
da conquista de terras desérticas circunstantes e da aventura que eram os ataques
noturnos a tribos vizinhas.
Em 1891, a calamidade abateu-se sobre o clã AI-Saud quando este foi derrotado
em batalha e se viu obrigado a abandonar o Nadj. Abdul Aziz, que um dia seria meu
avô, era uma criança na altura. Foi com dificuldade que sobreviveu às agruras daquela
fuga pelo deserto. Mais tarde, recordaria a profunda vergonha que sentira quando o pai
lhe ordenara que se enfiasse num alforje grande que depois foi pendurado na sela do
seu camelo. Nura, sua irmã, ia encolhida num alforje pendurado no outro lado do
camelo que transportava seu pai. Amargurado por ser demasiado jovem para combater
e ajudar, assim, a salvar o seu lar, o jovem espreitou, irado, pela abertura do saco,
enquanto ia balançando ao ritmo das passadas do animal. Humilhado pela derrota
sofrida pela família, ao ver desaparecer de vista a beleza assombrosa da sua terra
natal, contaria, mais tarde, que aquele momento representara um ponto de viragem na
sua jovem vida. Após dois meses de travessia nômade do deserto, a família dos
AI-Saud encontrou refúgio no país do Kuwait. A vida de um refugiado era tão detestável
para Abdul Aziz que este jurou, ainda muito novo, reconquistar as areias do deserto
que outrora haviam sido o seu lar.
Assim, em Setembro de 1901, Abdul Aziz, então com vinte e cinco anos, regressou
à nossa terra. A 16 de Janeiro de 1902, depois de meses de grandes provações, ele e
os seus homens derrotaram estrondosamente os Rashid, seus inimigos. Nos anos que
se seguiram, a necessidade de consolidar a lealdade das tribos do deserto levou Abdul
Aziz a desposar mais de trezentas mulheres, as quais, a seu tempo, deram à luz mais
de cinqüenta filhos varões e oitenta filhas. Os filhos das esposas favoritas foram
honrosamente distinguidos; esses filhos, agora adultos, constituem o próprio centro do
poder na nossa terra. A mais amada de todas as esposas de Abdul Aziz foi Hassa
Sudairi. Os filhos de Hassa estão hoje à cabeça das forças combinadas dos AI-Saud e
governam o reino formado pelo pai. Fahd, um desses filhos, é hoje o nosso rei.
Muitos filhos e filhas desposaram primos dos ramos proeminentes da nossa família,
tal como os AI-Turki, os Jiluwi e os AI-Kabir. Os príncipes que resultaram destas uniões
e chegaram aos nossos dias encontram-se entre o número dos AI-Saud mais
influentes.
Presentemente, corre o ano de 1991, a nossa numerosa família é formada por
cerca de vinte e um mil membros. Deste número, aproximadamente mil são príncipes e
princesas que descendem diretamente do nosso grande líder, o rei Abdul Aziz.
Eu, Sultana, sou uma dessas descendentes diretas.
A minha primeira recordação nítida é de violência. Tinha eu quatro anos de
idade quando fui esbofeteada no rosto pela minha mãe, uma mulher que, normalmente,
era meiga. Porquê? Porque imitara o meu pai nas suas orações. Em vez de orar a
Meca, fi-lo ao meu irmão de seis anos, Ali. Tomei-o por um deus. Como poderia
imaginar que não era? Já lá vão trinta e um anos e não esqueci ainda a dor pungente
que aquela bofetada me provocou e o início das dúvidas na minha cabeça: se o meu
irmão não era um deus, porque o tratavam como tal?
Numa família de dez filhas e um filho, o medo imperava na nossa casa: medo de
que a morte levasse o único varão vivo; medo de que não viessem mais filhos varões;
medo de que Deus tivesse amaldiçoado a nossa família com filhas. A minha mãe vivia
cada gravidez aterrorizada, rezando por um filho macho, receando que viesse uma
filha. Estas foram nascendo, umas atrás das outras, até perfazerem dez.
O maior receio da minha mãe tornou-se realidade quando o meu pai procurou uma
esposa mais jovem com a finalidade de esta lhe dar mais filhos preciosos. A nova
esposa presenteou-o com três rapazes que nasceram mortos, antes de ele se divorciar
dela. Finalmente, no entanto, a quarta esposa ofereceu a meu pai uma abundância de
varões.O meu irmão mais velho, porém, seria sempre o primogênito e, como tal, o
chefe supremo. Eu, à semelhança das minhas irmãs, fingia venerá-lo, mas a verdade é
que o odiava como só os oprimidos sabem fazer.
A minha mãe casou com o meu pai aos doze anos. Ele tinha vinte. Estava-se em
1946 o ano em que a Segunda Guerra Mundial interrompera a produção petrolífera, O
petróleo, a força vital da Arábia Saudita do presente, ainda não trouxera, na altura,
grande riqueza à família de meu pai, os AI-Saud, no entanto o impacto que tinha sobre
os seus membros fazia-se sentir em pequenos pormenores. Os chefes das grandes
nações haviam começado a prestar vassalagem ao nosso rei. Winston Churchill, o
primeiro-ministro inglês, presenteara o rei Abdul Aziz com um luxuoso Rolls Royce.
Verde-metalizado, com um banco traseiro que fazia lembrar um trono: o automóvel
refulgia como uma jóia ao sol. Apesar de imponente, algo no automóvel o desiludiu
nitidamente, pois o rei ofereceu-o, depois de o inspecionar, a Abdullah, um dos seus
irmãos preferidos. Abdullah, que era tio e amigo chegado de meu pai, colocou-lhe o
automóvel à disposição para a sua viagem de lua-de-mel a Gidá. Ele aceitou, para
grande deleite de minha mãe, que nunca conhecera semelhante meio de transporte.
Em 1946 - deixando para trás séculos incontáveis -, o camelo era o meio de
transporte habitualmente usado no Médio Oriente. Passar-se-iam três décadas antes
de o saudita médio trocar o dorso de um camelo pelo conforto de um automóvel.
Assim, os meus pais atravessaram alegremente o deserto, durante sete dias e
sete noites, até chegarem a Gidá. Malogradamente, o meu pai, na sua pressa em partir
de Riade, esquecera-se da sua tenda; este descuido e a presença constante de vários
escravos levou a que o seu casamento só fosse consumado depois de chegarem a
Gidá. Aquela viagem poeirenta e cansativa tornou-se uma das recordações mais felizes
de minha mãe. Depois dela, dividiu sempre a sua vida entre "a altura anterior à viagem"
e "a altura a seguir à viagem". Em certa ocasião, disse-me que a viagem representara
o fim da sua juventude, pois era demasiado nova para compreender o que a esperava
no final da longa deslocação. Seus pais haviam morrido durante uma epidemia de
febre, deixando-a órfã aos oito anos. Aos doze casara com um homem temperamental,
propenso a crueldades tenebrosas. Não estava preparada para fazer outra coisa na
vida que não fosse servi-lo.
Após uma breve estada em Gidá, meus pais regressaram a Riade, pois era aí que a
família patriarcal dos AI-Saud dava continuidade à sua dinastia.
O meu pai revelou-se um homem impiedoso, e, como não podia deixar de ser,
minha mãe tornou-se uma mulher melancólica. A sua união trágica acabou por dar
origem a dezesseis filhos, dos quais onze sobreviveram a infâncias perigosas. Hoje, as
suas dez filhas levam vidas controladas pelos homens com quem casaram. O único
filho sobrevivente, um importante príncipe e homem de negócios saudita com quatro
esposas e numerosas amantes, leva uma vida de grande fausto e prazer.
As minhas leituras levaram-me a saber que sucessores mais civilizados de culturas
antigas sorriem diante da ignorância dos seus antepassados. à medida que a
civilização avança, o medo da liberdade individual é ultrapassado pelo esclarecimento.
A sociedade humana apressa-se, ansiosamente, a ir ao encontro do saber e da
mudança. Surpreendentemente, na terra dos meus antepassados pouco mudou desde
há um milhar de anos.
É certo que surgiram edifícios modernos, os cuidados de saúde mais avançados
estão à disposição de todos, no entanto a consideração pelas mulheres e pela sua
qualidade de vida continua a ser alvo de um encolher de ombros displicente.
É incorreto, porém, atribuir à nossa fé islâmica a responsabilidade pela posição
subalterna que a mulher ocupa na nossa sociedade. Embora o Alcorão determine que
a mulher vem a seguir ao homem, muito à semelhança da Bíblia, em que o homem é
autorizado a exercer o seu domínio sobre a mulher, o nosso profeta Maomé só
preconizou o bem e a justiça para quem pertence ao meu sexo. Os homens que vieram
depois de Maomé é que preferiram seguir os costumes e tradições da Idade das
Trevas, em vez de seguirem as palavras e o exemplo do Profeta. Este desprezava a
prática do infanticídio, um costume vulgar no seu tempo, segundo o qual as famílias se
livravam das meninas indesejadas. As próprias palavras do Profeta transmitem
veementemente a sua preocupação perante a possibilidade de as mulheres serem alvo
de maus tratos e indiferença:
"Que Deus conceda o Paraíso a quem teve uma filha e não a enterrou viva nem a
desprezou ou preferiu os filhos varões a ela."
No entanto, não há nada que os homens não façam nem tenham feito, nesta terra,
para assegurar o nascimento de uma prole masculina e não feminina. O valor de uma
criança nascida na Arábia Saudita ainda é medido pela ausência ou presença do órgão
reprodutor masculino.
Os homens do meu país acham que são o que conseguirem possuir. Na Arábia
Saudita, o orgulho da honra de um homem tem por base as suas mulheres, portanto
têm de fortalecer a sua autoridade e supervisão relativamente à sexualidade das suas
mulheres ou, então, enfrentar a vergonha pública. Convencidos de que as mulheres
não têm controlo sobre os seus próprios desejos sexuais, torna-se, assim, essencial
que o macho dominante guarde cuidadosamente a sexualidade da fêmea. Este
controlo absoluto sobre a mulher nada tem a ver com o amor, apenas com o medo de
que a honra masculina seja maculada.
A autoridade de um homem saudita não conhece limites; a sobrevivência da sua
mulher e filhos depende apenas da sua vontade. Na nossa casa, ele é a autoridade
máxima. Esta situação complexa principia na educação que os nossos rapazes
recebem. O rapaz é ensinado, desde muito novo, que as mulheres pouco valem: estas
existem apenas para seu conforto e conveniência. A criança testemunha o desdém
demonstrado por seu pai em relação à mãe e às irmãs; este desprezo indisfarçado faz
com que passe a desprezar todas as mulheres, impossibilitando a amizade com
alguém do sexo oposto. Ao ensinarem-lhe o papel de senhor sobre a escrava, é natural
que, ao ter idade suficiente para escolher companheira, a encare como um bem
pessoal e não em termos de igualdade.
Deste modo, as mulheres do meu país são ignoradas pelos seus pais, desprezadas
pelos irmãos e maltratadas pelos maridos. Este círculo é difícil de quebrar, pois os
homens que impõem esta vida às suas mulheres garantem a própria infelicidade
conjugal. Que homem poderá sentir-se verdadeiramente satisfeito rodeado de tanta
tristeza? É evidente que os homens do meu país procuram satisfazer-se em
casamentos sucessivos e arranjando, posteriormente, amantes atrás de amantes. Não
devem saber que a sua felicidade pode estar em sua própria casa, com uma mulher
que lhes seja igual. Ao tratarem as mulheres como escravas, como propriedade sua, os
homens passaram a ser tão infelizes como as mulheres que dominam, e tornaram o
amor e o verdadeiro companheirismo inacessível a ambos os sexos.
A história das nossas mulheres está enterrada por detrás do véu negro do
secretismo. Nem o nosso nascimento nem o nosso falecimento fica lavrado em
qualquer registro oficial. Embora o nascimento de filhos varões seja documentado em
registros familiares ou tribais, o das raparigas não consta em lado nenhum. A emoção
que vulgarmente se exprime diante do nascimento de uma menina é a de desgosto ou
vergonha. Embora os partos nos hospitais e os registros governamentais estejam a
aumentar de número, no campo, a maioria das crianças nasce em casa. O Governo da
Arábia Saudita não procede ao recenseamento da sua população.
Perguntei muitas vezes a mim mesma se o fato de nós, mulheres do deserto, não
sermos registradas nem à nascença nem na hora da morte, significará que não
existimos.Se ninguém sabe da nossa existência, não quererá isso dizer que não
viemos a este mundo?
Este fato, mais do que as injustiças que sofri na vida, levaram-me a assumir o risco
real que é contar a minha história. As mulheres do meu país podem estar escondidas
pelo véu e firmemente controladas pela nossa rígida sociedade patriarcal, mas a
mudança virá, pois o nosso sexo está farto da restrição de costumes. Ansiamos pela
nossa liberdade pessoal.
Com base nas minhas primeiras recordações e auxiliada pelo diário que comecei a
escrever aos onze anos, tentarei traçar-vos um retrato da minha vida como princesa na
Casa de AI-Saud. Farei por trazer ao de cima as vidas enterradas de outras mulheres
sauditas, dos milhões de mulheres vulgares que não nasceram na família real.
A minha paixão pela verdade é simples de explicar, pois sou uma dessas mulheres
que foram ignoradas pelo pai, desprezadas pelos irmãos e maltratadas pelo marido.
Não estou sozinha nesta situação. Existem muitas mais, iguaizinhas a mim, a quem
escapa a oportunidade de contar as suas histórias.
É raro a verdade escapar de um palácio saudita, devido ao grande secretismo que
reina na nossa sociedade, no entanto o que aqui disse e o que a autora escreveu neste
livro corresponde à verdade.
Infância
Ali deu-me uma bofetada que me atirou ao chão, mas eu recusei-me a entregar-lhe a
reluzente maçã vermelha que o cozinheiro paquistanês acabara de me dar. O rosto de
Ali começou a contorcer-se de raiva ao ver-me levar a maçã à boca e engolir,
rapidamente e sem mastigar, os pedaços enormes que lhe ia arrancando. Ao
recusar-me a ceder à sua prerrogativa superior de macho, cometera um ato grave e
sabia que em breve sofreria as conseqüências. Ali deu-me dois pontapés rápidos e
correu em busca de Oniar, um egípcio que trabalhava como motorista para o nosso pai.
As minhas irmãs tinham mais medo de Omar do que de Ali ou do meu pai.
Desapareceram no interior da vila, deixando-me sozinha para enfrentar a ira dos
homens da casa.
Momentos depois, Omar, seguido de Ali, entrava apressadamente pelo portão
lateral. Eu sabia que sairiam vitoriosos, pois os poucos anos que ainda vivera estavam
já cheios de precedentes. Aprendera, desde muito nova, que todos os desejos de Ali
tinham de ser satisfeitos. Ainda assim, engoli o último pedaço da maçã e fitei o meu
irmão com ar triunfante.
Debatendo-me, em vão, entre as mãos enormes de Ornar, fui erguida no ar e levada
para o gabinete do meu pai. Este desviou, relutantemente, os olhos do livro onde tinha
a sua contabilidade e lançou um olhar irritado à filha que, aparentemente, estava
sempre a aparecer-lhe pela frente, aborrecendo-o, ao mesmo tempo que, em
contrapartida, abria os braços à sua jóia mais preciosa: o filho mais velho.
Ali foi autorizado a falar, enquanto a mim proibiram-me que o fizesse. Dominada
pelo desejo de conquistar o amor e a aprovação de meu pai, senti a coragem renascer
em mim. Gritei o que, na verdade, se passara no incidente. Diante daquela explosão, o
meu pai e o meu irmão ficaram a olhar para mim de boca aberta, pois no meu mundo,
quem pertencia ao sexo feminino estava habituado a ficar resignadamente calado, sem
exprimir opiniões. Todas as mulheres aprendem, desde muito cedo, a manipular as
situações em vez de as enfrentar. O fogo que, outrora, ardia nos corações das
orgulhosas e impetuosas mulheres beduínas extinguiu-se; no lugar delas vêem-se hoje
mulheres submissas que poucas semelhanças apresentam já.
Quando me apercebi de que gritava, senti o medo convulsionar-me as entranhas.
Quando o meu pai se levantou da cadeira, as pernas tremeram-me e vi o movimento
do seu braço, porém não cheguei a sentir o golpe com que me agrediu o rosto.
Como castigo, todos os meus brinquedos foram dados a Ali. Para me ensinar que
os homens eram os meus senhores, o meu pai decidiu que Ali seria a única pessoa a
encher-me o prato às refeições. Ali, triunfante, dava-me as porções mais minúsculas e
os piores pedaços de carne. Todas as noites ia deitar-me esfomeada, pois Ali colocara
um guarda à minha porta e ordenara-lhe que me proibisse de receber comida da minha
mãe ou das minhas irmãs. Depois tentava-me, entrando no meu quarto à meia-noite,
carregado de pratos fumegantes de galinha cozinhada e arroz quente.
Por fim, Ali cansou-se da sua tortura, mas dessa altura em diante, ainda ele tinha
apenas nove anos, passou a ser o meu inimigo mais ferrenho. Embora eu ainda só
tivesse sete anos, "o incidente da maçã" fez com que me desse conta, pela primeira
vez, que eu não passava de uma fêmea ao sabor dos ímpetos masculinos. Via a
submissão sofrida da minha mãe e das minhas irmãs, no entanto continuava a
manter-me otimista e nunca duvidei de que, um dia, triunfaria e o meu sofrimento seria
compensado pela justiça autêntica. Esta determinação, que surgiu em tenra idade,
tornou-me a ovelha-negra da família.
Contudo, a minha infância também teve momentos agradáveis. Passei as minhas
horas mais felizes em casa da tia da minha mãe. Viúva, demasiado velha para
despertar a atenção e conseqüentes complicações por parte dos homens, tornara-se
então uma pessoa alegre e cheia de histórias maravilhosas dos seus tempos de jovem,
na época das batalhas tribais. Assistira ao nascimento da nossa nação, de modo que
nos encantava com as histórias de coragem do rei Abdul Aziz e dos seus seguidores.
Sentadas, de pernas cruzadas, sobre tapeçarias orientais, as minhas irmãs e eu
mordiscávamos pastéis de tâmara e bolinhos de amêndoa enquanto mergulhávamos
no drama das grandes vitórias alcançadas pelos nossos antepassados. A minha tia, ao
relatar-me as grandes façanhas dos AI-Saud em batalha, inspirou-me um novo orgulho
pela minha família.
Em 1891, a família da minha mãe acompanhara o clã AI-Saud na sua fuga de
Riade, após a derrota sofrida diante do clã Rashid. Dez anos mais tarde, os homens da
nossa família regressaram com Abdul Aziz e reconquistaram a terra; o irmão de minha
tia lutou ao lado de Abdul Aziz. Esta demonstração de lealdade valeu-lhe a entrada na
família real através dos casamentos das suas filhas. Estava montado o cenário para o
meu destino de princesa.
Na minha juventude, a minha família era privilegiada, embora não rica. Os
rendimentos provenientes da produção de petróleo asseguravam abundância de
alimentos e toda a assistência médica disponível, a qual parecia ser, na altura, o maior
dos luxos. Vivíamos numa vila ampla, feita de blocos de cimento e toda pintada de
branco. Todos os anos as tempestades de areia reduziam o branco a creme, mas os
escravos do meu pai voltavam a pintar obedientemente as pedras, substituindo o tom
de areia pelo branco. Os grossos muros de dez metros de altura que rodeavam o
nosso espaço sofriam o mesmo tipo de manutenção. O lar da infância a que me
habituei era uma mansão segundo os padrões ocidentais, no entanto, hoje vejo que,
comparada com as atuais exigências da realeza saudita, não passava de uma
habitação modesta.
Em criança, achava que a minha casa paterna era demasiado grande para ser
acolhedora. Os corredores, compridos, eram escuros e ameaçadores. Destes partiam
quartos de diversos formatos e tamanhos, escondendo os segredos da nossa vida.
Meu pai e Ali viviam nos aposentos destinados aos homens, no segundo piso. Eu tinha
o costume de ir espreitá-los, para satisfazer a minha curiosidade infantil. Reposteiros
de veludo vermelho-escuro tapavam a luz do Sol. A atmosfera pesada cheirava a
tabaco turco e a uísque. Dava uma olhadela tímida e apressava-me a voltar à área das
mulheres, no andar térreo, onde as minhas irmãs e eu ocupávamos uma vasta ala. O
quarto que eu partilhava com Sara dava para o jardim privado das mulheres. A minha
mãe mandara-o pintar de amarelo-vivo, tendo, por isso, o brilho de vida que tão
ausente estava do resto da vila.
Os criados e servos da família viviam em quartos minúsculos e pouco arejados, que
faziam parte de um edifício à parte, nas traseiras do jardim. Enquanto a nossa vila
dispunha de ar condicionado, as instalações dos trabalhadores não se encontravam
equipadas para suportar o clima quente do deserto. Lembro-me de ouvir as criadas e
os servos falarem do horror por que passavam quando chegava a hora de se deitarem.
O único alívio que tinham para o calor era a brisa gerada por pequenas ventoinhas
elétricas.
O meu pai dizia que se lhes pusesse ar condicionado nos quartos, dormiriam o dia
inteiro.
Omar era o único que dormia num pequeno quarto situado na casa principal. à
entrada da nossa vila estendia-se um longo cordão dourado. Este encontrava-se ligado
a um chocalho no quarto do motorista. Quando este era preciso, tocavam essa
campainha a chamá-lo; o seu som pô-lo-ia imediatamente de pé, quer fosse dia ou
noite, levando-o até à porta do quarto das minhas irmãs. Confesso que não foram
poucas as vezes em que puxei pelo cordão em plena sesta de Omar e a meio da noite.
Depois, a ofegar violentamente, precipitava-me para a minha cama e ficava quieta, qual
criança inocente profundamente adormecida. Uma noite encontrei a minha mãe à
minha espera quando voltava a correr para a cama. Com uma expressão de
desapontamento no rosto diante das maldades da filha mais nova, puxou-me uma
orelha e ameaçou contar ao meu pai. Mas nunca o fez.
Desde o tempo do meu avô que tínhamos ao nosso serviço uma família de escravos
sudaneses. A nossa população de escravos aumentava todos os anos, quando o
meu pai voltava de Haj, a peregrinação anual que os muçulmanos fazem a Meca,
trazendo mais crianças. Os peregrinos que iam do Sudão e da Nigéria vendiam os
filhos a sauditas abastados, a fim de poderem arranjar dinheiro para regressar às
respectivas pátrias. Uma vez sob os cuidados de meu pai, os escravos não eram
comprados e vendidos à maneira dos que eram negociados pelos Americanos;
participavam na vida doméstica e nos negócios do meu pai como se fossem seus. As
crianças eram nossas companheiras de brincadeira e não sentiam compulsão para a
subserviência. Em 1962, quando o nosso Governo libertou os escravos, a família
sudanesa que trabalhava para nós implorou ao meu pai que a deixasse continuar a
servi-lo. Ainda hoje vive em sua casa.
O meu pai manteve viva a memória do nosso bem-amado rei Abdul Aziz. Falava do
grande homem como se o visse todos os dias. Fiquei chocada, tinha então oito anos,
ao saber que o velho rei morrera em 1953, três anos antes de eu nascer!
Após a morte do nosso primeiro rei, o reino ficou em grande perigo, pois o sucessor
escolhido pelo velho rei, o seu filho Saud, não possuía, para grande pesar de todos,
qualidades de liderança, tendo dissipado a maior parte das riquezas provenientes do
petróleo em palácios, automóveis e adornos para as suas esposas. Daí que o nosso
país estivesse a resvalar para o caos político e econômico.
Recordo uma ocasião, corria o ano de 1963, em que os homens da família reinante
se reuniram em nossa casa. Na altura, eu era uma menina curiosa de sete anos. Omar,
o motorista do meu pai, irrompeu pelo jardim com ares de grande importância e gritou
às mulheres para que subissem ao piso de cima. Agitou as mãos na nossa direção
como se exorcizasse a casa de monstros, empurrando-nos escadaria acima qual
rebanho, até uma pequena sala de estar. Sara, a minha irmã mais velha, implorou à
minha mãe permissão para se esconder no balcão cheio de arabescos, a fim de poder
vislumbrar os nossos governantes a trabalhar, o que era raro. Embora víssemos os
nossos poderosos tios e primos em ocasionais reuniões familiares, nunca estávamos
presentes quando se tratava de assuntos de Estado importantes. Claro que, por altura
da menstruação de cada mulher e subseqüente recolhimento, o afastamento de
quaisquer membros do sexo masculino que não fossem os pais e irmãos era repentino
e total.
Levávamos uma vida de tal maneira enclausurada e entediante que até a nossa
mãe tinha pena de nós. Nesse dia chegou mesmo a juntar-se às filhas no andar do
corredor, para, através do balcão, espreitar e ouvir os homens que se encontravam na
ampla sala de estar, por baixo de nós. Eu, a mais nova, fiquei no colo da minha mãe.
Esta, como medida de precaução, tapou-me suavemente a boca com a mão. Se
fôssemos apanhadas, o meu pai ficaria furioso. As minhas irmãs e eu ficamos
fascinadas pela imponente parada dos irmãos, filhos, netos e sobrinhos do falecido rei.
Eram homens enormes, de túnicas esvoaçantes, que se juntaram com calma,
aparentando um ar profundamente digno e grave. O rosto estóico de Faiçal, o príncipe
herdeiro, chamou-nos a atenção. Nem mesmo os meus olhos inexperientes deixaram
de notar que parecia triste e terrivelmente acabrunhado. Por volta de 1963, todos os
sauditas tinham consciência de que o príncipe Faiçal geria o país com competência,
enquanto o rei Saud falhava rotundamente nessa missão. Sussurrava-se que o reinado
de Saud era apenas um símbolo da unidade da família tão ferozmente defendida.
Sentia-se que se tratava de uma situação estranha, injusta para o país e para o
príncipe Faiçal, e que não deveria durar muito mais tempo.
O príncipe Faiçal mantinha-se afastado do grupo. A sua voz habitualmente
tranqüila sobrepôs-se ao burburinho, a fim de pedir permissão para se pronunciar sobre
questões que eram de grande importância para a família e o país. O príncipe Faiçal
receava que o trono, tão difícil de conquistar, em breve se perdesse. Afirmou que o
povo estava farto dos excessos da família real e que se falava não só em afastar o seu
irmão devido à sua decadência, mas mesmo em desistir de todo do clã AI-Saud e
escolher, em alternativa, um homem de Deus para a liderança.
O príncipe Faiçal fitou duramente os príncipes mais novos ao declarar, em voz
clara e segura, que a indiferença destes pelo estilo de vida tradicional dos crentes
beduínos faria cair o trono. Disse que se sentia muito triste por serem tão poucos os
membros mais jovens da família real dispostos a trabalhar, contentando-se em viver
com o montante mensal que lhes vinha dos proventos do petróleo. Seguiu-se uma
pausa prolongada, enquanto esperava que os irmãos e parentes se pronunciassem.
Como nenhum tinha nada a dizer, acrescentou que se ele, Faiçal, controlasse a riqueza
petrolífera, o fluxo de dinheiro para os príncipes seria suspenso e arranjar-se-lhes-ia
trabalho. Dirigiu um aceno de cabeça a seu irmão Mohammed e sentou-se com um
suspiro. Reparei, do balcão, na agitação nervosa que percorreu os vários primos mais
novos. Embora a mesada mais alta não ultrapassasse os dez mil dólares, os homens
do clã AI-Saud estavam a enriquecer cada vez mais, graças à terra. A Arábia Saudita é
um país grande e a maioria das propriedades pertence à nossa família. Além disso, os
contratos de construção não são assinados sem que tragam algum benefício aos
nossos.
O príncipe Mohammed, o terceiro irmão mais velho vivo, tomou a palavra e, do
que conseguimos perceber, o rei Saud insistia agora no retorno ao poder absoluto que
lhe fora retirado em 1958. Corriam rumores de que andaria pelo interior do país a falar
contra seu irmão Faiçal. Era um momento devastador para a família de AI-Saud, pois
os seus membros tinham formado sempre urna frente unida diante dos cidadãos da
Arábia Saudita.
Lembro-me de meu pai ter contado a história que explicava o fato de o filho
mais velho vivo, Mohammed, ter sido preterido, na sucessão ao trono, em favor de
Faiçal.
O velho rei declarara que, se a propensão de Mohammed fosse apoiada pelo
poder da coroa, muitos homens morreriam, pois o seu temperamento violento era
sobejamente conhecido.
A minha atenção foi de novo atraída pela reunião e ouvi o príncipe Mohammed
dizer que era a monarquia em si que estava em perigo; abordou a possibilidade de se
destronar o rei e colocar o príncipe Faiçal no seu lugar. Este soltou uma exclamação
tão sonora que o som paralisou Mohammed. Faiçal falou calmamente, dando a
impressão de que o fazia chorando. Disse aos parentes que prometera ao seu adorado
pai, no leito da morte, jamais se opor à governação do seu irmão. Em nenhuma
circunstância poderia quebrar a sua promessa, nem mesmo que Saud levasse o país à
bancarrota. Se o destronamento de Saud se tornasse o cerne da reunião, nesse caso
ele, Faiçal, teria de se retirar. Seguiu-se um burburinho de vozes, enquanto os homens
da nossa família concordavam que Mohammed, o irmão mais velho a seguir a Faiçal,
devia tentar chamar o nosso rei à razão. Vimos os homens empunhar as xícaras de
café e declarar o seu voto de lealdade ao desejo de seu pai de que todos os filhos de
Abdul Aziz enfrentassem o mundo como uma força coesa. Quando a tradicional troca
de despedidas começou, vimos os homens sair ordeira e silenciosamente da sala, tal
como tinham entrado.
Mal eu sabia que aquela reunião era o principio do fim da governação do rei
Saud, meu tio. Assim, a nossa família e os cidadãos do país viram, entristecidos, os
filhos de
Abdul Aziz serem forçados a afastar um dos seus da sua terra. O tio Saud ficara
tão desesperado que, no fim, enviara uma mensagem ameaçadora ao irmão, o príncipe
Faiçal.
Este último ato determinara o seu destino, pois era impensável um irmão
insultar ou ameaçar outro. Não estava escrito em parte nenhuma, mas o certo é que
uma das regras de ouro dos beduínos era um irmão jamais virar-se contra o outro.
Gerou-se uma crise febril no seio da família e no país. Mais tarde, porem, viemos a
saber que a atitude ponderada do príncipe Faiçal é que sustivera a revolução
pretendida pelo tio Saud. Afastou-se e deixou que fossem os seus
irmãos e os religiosos a decidir qual o melhor programa de ação a seguir pelo nosso
jovem país. Ao fazê-lo, retirou o dramatismo pessoal ao movimento, de maneira a que
o fato de serem homens de Estado a tomar as decisões apropriadas se tornasse
menos transitório.
Dois dias mais tarde, soubemos da abdicação de uma das mulheres do tio Saud,
pois o nosso pai encontrava-se ausente na altura, juntamente com os seus irmãos e
primos.
Uma das nossas tias preferidas, casada com o tio Saud, veio até nossa casa
presa de grande agitação. Fiquei chocada ao vê-la arrancar o véu do rosto em frente
dos nossos criados do sexo masculino. Acabara de chegar do palácio de Nasriyah, a
casa do deserto do tio Saud (um edifício que, na minha mente, mostrava bem as
maravilhas que o dinheiro pode comprar, sendo um exemplo ruinoso do que estava
errado no nosso país).
As minhas irmãs e eu juntamo-nos à volta da minha mãe, pois a minha tia
descontrolara-se completamente e gritava acusações contra a família. Estava
particularmente furiosa com o príncipe herdeiro Faiçal, culpando-o pelo dilema em que
o marido se encontrava. Contou-nos que os cunhados tinham conspirado para tirar o
trono que fora dado pelo pai ao escolhido, Saud. Disse, chorosa, que o ulemá, o
conselho religioso, fora até ao palácio naquela mesma manhã e informara o seu marido
de que devia abdicar da coroa.
Fiquei quase em estado de choque pela cena desenrolada diante de mim, pois
raramente assistíamos a situações de confronto na nossa sociedade. Temos o hábito
de falar suavemente e concordar com quem está diante de nós, enfrentando depois as
dificuldades de maneira secreta. Quando a nossa tia, que era uma linda mulher, de
longos caracóis negros, começou a puxar pelos cabelos e a arrancar as dispendiosas
pérolas que trazia ao pescoço, percebi que o assunto era sério. Por fim, a minha mãe
conseguiu acalmá-la, levando-a até à sala de estar para tomar um chá calmante. As
minhas irmãs juntaram-se em frente da porta fechada e tentaram ouvir o que
sussurravam. Eu afastei as mãos-cheias de cabelo com o dedo grande do pé e
baixei-me para apanhar as pérolas enormes e macias. Deparei com uma quantidade
razoável, que, à cautela, fui guardar dentro de um vaso vazio que estava no corredor.
A minha mãe acompanhou a nossa tia em lágrimas até ao Mercedes preto que a
aguardava. Todas nós vimos o motorista ganhar velocidade, levando a sua
inconsolável passageira. Nunca mais voltamos a ver a nossa tia, pois esta
acompanhou o tio Saud e o seu séqüito até ao exílio. Mas a nossa mãe
aconselhou-nos a não pensar menos bem do nosso tio Faiçal. Disse-nos que a tia
falara daquela maneira por estar apaixonada por um homem bom e generoso, o
problema era que um homem assim não tinha de ser, obrigatoriamente, um bom
governante. Contou-nos que o tio Faiçal estava a conduzir o país para uma era estável
e próspera e que, ao fazê-lo, provocara a ira dos menos capazes.
A minha mãe, apesar de não ser uma pessoa culta, pelos padrões ocidentais, mostrava
grande sabedoria e ponderação.
FAMÍLIA
A minha mãe, encorajada por Mat, mulher do rei Faiçal, conseguiu proporcionar
alguma educação às filhas, apesar da resistência de meu pai, que, durante muitos
anos, se recusou sequer a considerar essa possibilidade. As minhas cinco irmãs mais
velhas não receberam outra aprendizagem que não fosse o estudo do Alcorão, com
uma professora particular que ia a nossa casa. Durante duas horas, seis tardes por
semana, repetiam as palavras de Fátima, a nossa professora egípcia, uma mulher
severa com cerca de quarenta e cinco anos. Esta pedira, certa vez, permissão ao meu
pai para incluir ciência, história e matemática na educação das minhas irmãs, porém
este respondera com um firme "não", de modo que somente a récita das palavras do
Profeta e nada mais que as palavras deste continuaram a soar pela nossa vila. à
medida que os anos foram passando, o nosso pai viu que muitas das famílias reais
estavam a permitir às suas filhas os benefícios da educação. Com a vinda da grande
riqueza petrolífera, que aliviou quase todas as mulheres sauditas, com exceção das
que viviam nas tribos beduínas e nas aldeias rurais, de qualquer tipo de trabalho, a
inatividade e o tédio tornaram-se um problema nacional. Os membros da família real
são muito mais abastados do que a maioria dos sauditas, no entanto, a abundância
proporcionada pelo petróleo trouxe servos do Extremo Oriente e de outras regiões
pobres a todos os lares.
Todas as crianças precisam de ser estimuladas, porém eu e as minhas irmãs
pouco ou nada tínhamos para fazer além de brincar nos nossos quartos ou deambular
ociosamente pelos jardins reservados às mulheres. Não havia aonde ir e pouco que
fazer, pois, nos meus tempos de criança, a cidade nem sequer dispunha de um jardim
zoológico ou de um parque.
A minha mãe, cansada de cinco filhas estudantes de energia, pensou que a
escola ajudaria a expandir as suas mentes, aliviando-a. Até que, por fim, conseguiu,
com a ajuda da tia Mat, levar o nosso pai a aceder, embora pouco convictamente. Foi
assim que as cinco filhas mais novas da nossa família, incluindo Sara e eu, usufruímos
da nova era em que se aceitava, com relutância, a educação das mulheres.
A nossa primeira sala de aulas foi em casa de um parente real. Sete famílias do
clã de AI-Saud davam trabalho a uma jovem de Abu Dabí, uma cidade vizinha nos
Emirados Árabes. O nosso pequeno grupo de alunas, dezesseis ao todo, era
conhecido, naquele tempo, como um "Kutab", um método de ensino em grupo, então
popular, para raparigas. Todos os dias nos reuníamos, das nove da manhã às duas da
tarde, e de terça a sábado, em casa da nossa prima real. Foi aí que Sara, a minha irmã
preferida, mostrou, pela primeira vez, a sua inteligência rara. Era muito mais rápida do
que as raparigas da sua idade. A professora chegou mesmo a perguntar-lhe se já fizera
o ensino básico, abanando a cabeça de admiração ao saber que não.
A nossa instrutora tivera a sorte de ter um pai com idéias modernas, que a
mandara estudar em Inglaterra. A deformidade de que padecia, um pé boto, fizera com
que não encontrasse ninguém disposto a desposá-la, portanto optara por um caminho
de liberdade e independência pessoais. Foi com um sorriso que nos disse que o seu pé
defeituoso fora uma dádiva de Deus para assegurar que a sua mente também não se
deformasse.
Embora estivesse em casa da nossa prima real (na Arábia Saudita ainda era
impensável uma mulher viver sozinha), ganhava um salário e tomava as suas próprias
decisões sem influências exteriores.
Eu gostava dela apenas porque era gentil e paciente quando eu me esquecia de
fazer os trabalhos de casa. Ao contrário de Sara, eu não era do tipo estudioso, de
modo que me sentia contente por não ver a professora demonstrar desilusão perante
as minhas falhas. Sentia-me muito mais interessada em desenhar do que em estudar
matemática, em cantar do que em fazer as minhas orações. De vez em quando, Sara
dava-me um beliscão quando me comportava mal, mas ao ver que eu me punha a
uivar, lançando a confusão na classe, desistiu de me corrigir. Não havia dúvida de que
a nossa professora fazia jus ao nome que lhe fora dado vinte e sete anos antes -
Sakina, o que, em árabe, significa "tranqüilidade".
A menina Sakina disse à minha mãe que Sara era a aluna mais brilhante que
alguma vez tivera. Depois de eu me pôr aos pulos e gritar "e eu"?, pensou durante um
bom bocado antes de responder. Com um sorriso, disse:
- E Sultana virá a ser, de certeza, famosa.
Nessa noite, ao jantar, a mãe transmitiu orgulhosamente ao meu pai a
observação que Miss Sakina fizera sobre Sara. Este, que ficou nitidamente satisfeito,
sorriu à minha irmã. A minha mãe não reprimiu o seu deleite, mas nesse momento o
meu pai observou, cruelmente, que nunca nenhuma criança nascida exclusivamente do
seu ventre poderia ter tido capacidade para aprender. Tão-pouco lhe atribuía a menor
contribuição na inteligência de Ali, que era o melhor aluno da sua classe numa
moderna escola secundária da cidade. Presumia, assim, que as capacidades
intelectuais dos filhos eram herdadas exclusivamente do pai.
Ainda hoje estremeço de constrangimento quando vejo as minhas irmãs mais
velhas tentarem somar ou subtrair. Continuo a dirigir pequenas orações de
agradecimento à minha tia 11fat por ter contribuído para mudar a vida de tantas
mulheres sauditas.
Corria o Verão de 1932 quando o meu tio Faiçal viajou até à Turquia; nesse
país, apaixonou-se por uma excepcional jovem chamada lffat ai Thunayan. Ao saber
que o jovem príncipe saudita estava de visita a Constantinopla, a jovem lffat e sua mãe
abordaram-no, tendo por motivo a disputa de uma propriedade que pertencera ao seu
falecido pai. (Os Thunayan eram, originariamente, sauditas, mas tinham sido levados
para a Turquia pelos Otomanos, durante o prolongado tempo em que governaram a
área). Extasiado pela beleza de Iffat, Faiçal convidou-a a ir, mais a mãe, até à Arábia
Saudita, a fim de aí encontrar solução para o problema da propriedade em questão.
Não só lhe deu a dita propriedade como também a desposou. Mais tarde diria que fora
a decisão mais sábia jamais tomada na sua vida. A minha mãe disse que o tio Faiçal
saltara de mulher em mulher, qual homem possesso, até encontrar Iffat.
Durante os anos do reinado do tio Faiçal, Iffat tornou-se a força motriz da
educação das raparigas. Sem os seus esforços, as mulheres sauditas não poderiam,
hoje, freqüentar uma sala de aulas. Fiquei encantada com a força do seu caráter e
declarei que, quando fosse crescida, seria como ela. Tivera mesmo a coragem de
contratar uma preceptora inglesa para os filhos, que eram, de toda a prole real, os que
a vasta riqueza menos afetava. Infelizmente, muitos dos primos reais perderam-se com
o súbito acesso aos bens materiais proporcionados pela abastança. A minha mãe
costumava dizer que o beduíno sobrevivera ao vazio árido do deserto, mas que nós
nunca sairíamos incólumes da enorme riqueza oferecida pelos campos de petróleo. As
tranqüilas façanhas da mente e as devotas convicções religiosas dos seus pais não
atraíam as simpatias da vasta maioria dos AI-Saud mais jovens. Estou convencido de
que a decadência dos filhos desta geração se deveu às facilidades de que gozavam, e
que a sua grande fortuna os privou de quaisquer ambições ou satisfações autênticas.
Não restam dúvidas de que a debilidade da nossa monarquia na Arábia Saudita é
provocada pelo nosso apego à dissipação. Receio que a nossa ruína esteja aí.
A maior parte da minha infância foi passada a viajar de cidade em cidade na
minha terra. O sangue beduíno nômade corre nas veias de todos os sauditas, de modo
que, mal regressávamos de uma viagem, começávamos a programar a seguinte. Nós,
Sauditas, há muito que não pastoreamos rebanhos, no entanto não conseguimos
deixar de almejar paragens mais verdejantes.
Riade era a sede do nosso Governo, mas nenhum dos membros da família de
AI-Saud gostou em particular da cidade; queixavam-se constantemente da monotonia
da vida em Riade. Era demasiado quente e seca, os homens ligados à religião eram
presumidos até mais não, e as noites eram excessivamente frias. A maioria da família
preferia Gidá ou Taif. Gidá, com os seus portos antigos, estava mais aberta à mudança
e à moderação. Nela, todos nós respirávamos mais facilmente com o ar marítimo.
Geralmente passávamos os meses de Dezembro a Fevereiro em Gidá.
Voltávamos a Riade para aí ficarmos Março, Abril e Maio. O calor dos meses estivais
levava-nos para as montanhas de Taif, entre Junho e Setembro. Depois
regressávamos a Riade para o mês de Outubro e Novembro. Como é evidente,
passávamos o mês do Ramadã e as duas semanas de Haj em Meca, a nossa cidade
santa.
Por volta dos meus doze anos, corria o ano de 1968, meu pai tornara-se uma
pessoa extremamente rica. Apesar da sua abastança, era um dos AI-Saud menos
gastadores. Mas construiu a cada uma das suas quatro famílias palácios em Riade,
Gidá, Taif e Espanha. Os palácios eram exatamente iguais uns aos outros em cada
cidade, do tom das carpetes ao mobiliário escolhido. O meu pai detestava as
mudanças e queria ter a sensação de estar na mesma casa mesmo quando se
deslocava de avião de cidade em cidade.
Lembro-me de o ouvir ordenar à minha mãe que comprasse tudo igual para
todas elas, incluindo a roupa interior das crianças. Não queria que a família se desse
ao trabalho de fazer malas. Eu achava esquisito, sempre que entrava no meu quarto
em Gidá ou Riade, encontrar roupas idênticas penduradas em guarda-fatos iguais. Os
meus livros e os meus brinquedos eram comprados aos quatro, sendo cada um
colocado em cada palácio.
A minha mãe raramente se queixava, mas quando o meu pai comprou quatro
Porsches vermelhos iguais para o meu irmão Ali, que na altura tinha só catorze anos,
não pôde deixar de barafustar que era uma vergonha - um autêntico esbanjamento -
quando havia tantos pobres no mundo. Mas, quando se tratava de Ali, não se olhava a
despesas.
Ao chegar aos dez anos, Ali recebeu o seu primeiro Rolex de ouro. Eu fiquei
particularmente aborrecida, pois pedira ao meu pai que me oferecesse uma grossa
bracelete de ouro que vira no souq (mercado), o que me fora recusado com
brusquidão. Durante a segunda semana em que Ali se pavoneou com o seu Rolex,
reparei que o deixava esquecido em cima da mesa que ficava ao lado da piscina.
Dominada pela inveja, peguei numa pedra e reduzi o relógio a pedaços.
Dessa vez a minha maldade não foi descoberta e tive grande prazer em ver o
meu pai repreender Ali por ser descuidado com os objetos que lhe pertenciam. Mas,
claro, passada uma semana ou duas já ele recebia novo Rolex, e o meu ressentimento
infantil voltava a instalar-se dentro de mim com toda a força. Era freqüente a minha
mãe falar-me acerca do ódio que eu sentia pelo meu irmão.
Mulher sábia, via bem que, mesmo quando me curvava perante o inevitável, eu
não deixava de me sentir revoltada. Eu fora, na qualidade de mais nova da família, a
mais mimada das filhas pela minha mãe, irmãs e outros familiares. Ao olhar para trás, é
difícil negar que eu tenha sido mimada até mais não. Por ser pequena para a idade, em
comparação com o resto das minhas irmãs, que eram altas e de estrutura larga, fui
tratada como um bebe ao longo dos anos da minha infância. Todas elas eram caladas
e contidas, como ficava bem a princesa saudita. EU barulhenta e indisciplinada, pouco
me importando com a minha imagem real. Como lhes devo ter dado cabo da paciência!
Mas, mesmo hoje, não tenho uma única irmã que não fosse capaz de vir
imediatamente em minha defesa ao menor sinal de perigo.
Contrastando tristemente com esta realidade, eu representava, para o meu pai,
a última de muitas desilusões. Por isso passei a minha infância a tentar ganhar o seu
afeto.
Por fim, desesperei de conquistar o seu amor e clamei por qualquer atenção da
parte dele, mesmo que fosse sob a forma de castigo pelos meus destemperos.
Imaginava que, se o meu pai olhasse suficientes vezes para mim, reconheceria os
meus traços específicos e acabaria por dedicar à filha o mesmo amor que tinha por Ali.
Mas os meus métodos truculentos acabaram por fazê-lo passar da indiferença a uma
antipatia indisfarçada.
A minha mãe conformara-se com o fato de a terra onde nascêramos ser um
lugar destinado ao desentendimento entre os sexos. Ainda criança, com o mundo à
minha frente, faltava-me andar muito antes de chegar a essa conclusão.
Ao recordar o passado, imagino que Ali também tivesse qualidades além de
defeitos, no entanto era-me difícil ultrapassar o maior destes: a crueldade. Via-o
martirizar o filho deficiente do nosso jardineiro. A pobre criança possuía braços
compridos e pernas de formato estranho. Era freqüente, quando Ali recebia a visita dos
rapazes seus amigos, mandar chamar o pobre Sami e ordenar-lhe que "andasse à
macaco". Ali nunca reparou na expressão patética do rosto de Sami nem nas lágrimas
que lhe escorriam pela cara.
Quando Ali encontrava gatos bebês, tirava-os à mãe e fechava-os,
comprazendo-se em ouvir os miados aflitivos da gata que tentava, em vão, alcançar os
filhos. Ninguém da casa se atrevia a contrariá-lo, pois o meu pai não via mal nenhum
nos atos cruéis do filho.
Depois de uma intervenção particularmente comovente da minha mãe
relativamente aos meus sentimentos por Ali, decidi experimentar o método saudita da
"manipulação" em vez da confrontação com o meu irmão. Além disso, a minha mãe
utilizava os desejos de Deus como sua plataforma, uma fórmula admirável para
convencer as crianças a mudar de atitude. Finalmente convenci-me, graças à influência
da minha mãe, de que os meus modos poderiam trazer-me grandes dissabores.
Uma semana depois, as minhas intenções caíam por terra diante do
comportamento pusilânime de Ali. As minhas irmãs e eu havíamos encontrado um
cachorrinho que se perdera da mãe. O bichinho gania, esfomeado. Excitadíssimas com
o achado, corremos a buscar biberão de boneca, que enchemos com leite de cabra
morno. Fazíamos turnos entre nós, para o alimentarmos. Dias depois, o cãozinho já
saltitava, gordinho. Vestíamo-lo com trapos e ensinamo-lo a sentar-se no nosso
carrinho de bonecas.
Se bem que a maioria dos muçulmanos não aprecie cães, é rara a pessoa
capaz de maltratar um animal bebê seja de que espécie for. Até a nossa mãe, uma
muçulmana devota, sorria perante as brincadeiras do cachorro.
Certa tarde, passeávamos nós o Basem, que em árabe significa "cara
sorridente, no carrinho, quando encontramos Ali por acaso, na companhia dos amigos.
Ao sentir o entusiasmo destes, Ali resolveu tomar posse do cão. As minhas irmãs e eu
choramos e debatemo-nos quando ele tentou arrancar-nos Basem dos braços. O nosso
pai ouviu o barulho e saiu do seu gabinete. Assim que Ali lhe disse que queria o
cachorro, ordenou-nos que lho entregássemos. Nada do que dissemos ou fizemos o
fez mudar de idéias. Ali queria o cachorro: Ali teria o cachorro.
Com as lágrimas a correrem-nos pelo rosto, ficamos a ver Ali afastar-se
arrogantemente, com o Basem debaixo do braço. A possibilidade de amar o meu irmão
perdeu-se para sempre, e o meu ódio ganhou contornos inabaláveis quando me
contaram que Ali depressa se fartou dos ganidos de Basem e, numa visita aos amigos,
atirou o cachorrinho pela janela do carro em movimento.
Senti-me muito triste ao encontrar Sara, a minha irmã preferida, a chorar nos
braços da minha mãe. É a nona filha viva dos meus pais, três anos mais velha que eu.
Somente
o nascimento de Ali a separa de mim. Era o décimo sexto aniversário de Sara e esta
devia mostrar alegria, no entanto a minha mãe acabara de lhe transmitir novidades do
nosso pai.
Sara usava o véu desde que fora menstruada, dois anos antes. O véu relegara
a para o anonimato e em breve deixara de falar nos seus sonhos de infância de
grandes feitos.
Distanciou-se de mim, a sua irmã mais nova que ainda não precisava de se
preocupar com a obrigatoriedade do véu. A frieza que acompanhara o afastamento de
Sara fez-me ter saudades dos bons momentos que partilháramos na infância. De
repente percebi que só se dá pela felicidade quando esta nos falta, pois só soube que
fôramos felizes quando se me deparou a tristeza de Sara.
Sara era linda, muito mais bela do que eu ou alguma das minhas irmãs. A sua
notável beleza tornara-se uma maldição, pois muitos homens tinham ouvido falar dela
através das suas mães e irmãs e agora desejavam desposá-la. Sara era alta e magra e
possuía uma pele clara e acetinada. Os seus longos cabelos negros faziam a inveja de
todas as irmãs.
Apesar da sua beleza natural, Sara era genuinamente meiga e adorada por
todos os que a conheciam. Infelizmente, Sara não só não fora contemplada com a
maldição que acompanha as grandes belezas como também era excepcionalmente
inteligente. Na nossa terra, a inteligência numa mulher assegura a sua futura
infelicidade, pois jamais terá onde aplicar o seu gênio.
Sara desejava estudar arte em Itália e ser a primeira pessoa a abrir uma galeria
de arte em Gidá. Trabalhava nesse sentido desde os doze anos de idade. Tinha o
quarto atravancado de livros sobre os grandes mestres. Sara fez a minha cabeça andar
à roda com descrições da magnífica arte na Europa. Pouco antes do anúncio dos
esponsais, remexia eu à sucapa nas suas coisas quando encontrei uma lista dos
lugares que tencionava visitar em Florença, Veneza e Milão.
Foi com enorme tristeza que vim a saber que os sonhos de Sara jamais se
concretizariam. Ainda que seja verdade que a maioria dos casamentos na minha terra
é orientada pelas mulheres mais velhas da família, na minha, quem tomava todo o tipo
de decisões era o pai. Este decidira, fazia muito tempo, que a sua filha mais bonita
casaria com um homem de elevada situação social e riqueza.
Pois bem, o homem que ele escolhera para desposar a sua filha mais desejável
era um membro de uma família de comerciantes de Gidá com inegável influência
financeira na nossa família. O noivo fora eleito em vista exclusiva de negócios
passados e futuros.
Tinha sessenta e dois anos de idade; Sara seria a sua terceira esposa. Embora
ela nunca tivesse visto o velho, este ouvira falar da sua grande beleza através das
mulheres da sua família e estava ansioso por marcar a data do casamento. A minha
mãe tentara intervir a favor de Sara, mas meu pai, como era seu hábito, não mostrara a
menor emoção diante das lágrimas da filha. De modo que Sara soubera, naquele dia,
do seu casamento. Minha mãe ordenou-me que saísse do quarto, mas estava de
costas; fiz de conta que obedecia, arrastando os pés e batendo com a porta.
Esgueirei-me para dentro da porta aberta de um armário e chorei silenciosamente ao
ouvir a minha irmã amaldiçoar o nosso pai, a nossa terra e a nossa cultura. Ela chorava
tão violentamente que perdi a maior parte das suas palavras, no entanto ouvi-a
declarar, nitidamente, que iria ser sacrificada como um cordeiro.
A minha mãe também chorou, porém não podia consolar Sara, pois sabia que o
marido tinha todo o direito de dispor das suas filhas para os casamentos que muito
bem entendesse. Seis das dez já estavam casadas com homens escolhidos por ele. A
minha mãe sabia que as restantes quatro seguiriam o mesmo destino sombrio; não
havia poder na terra capaz de o impedir.
A minha mãe ouviu-me mexer dentro do armário. Olhou-me com severidade e
sacudiu a cabeça quando me viu, no entanto não fez menção de me expulsar do
quarto. Mandou-me ir buscar toalhas molhadas em água fria e depois voltou a focar a
sua atenção em Sara. Quando voltei, refrescou a testa a esta e reconfortou-a até
adormecer. Ficou a olhar para a jovem filha durante vários minutos antes de, por fim,
se levantar com ar fatigado. Suspirou profunda e tristemente, pegou-me na mão e
levou-me até à cozinha.
Embora não fossem horas de comer e a cozinheira estivesse a descansar,
preparou-me um prato com bolo e um copo de leite frio. Eu tinha treze anos mas era
pequena para a idade; aninhou-me no seu colo durante muito tempo.
Infelizmente, as lágrimas de Sara só serviram para endurecer o coração do nosso pai.
Ouvi-a, escondida, suplicar-lhe. O desgosto desequilibrara-a de tal maneira que acusou
o nosso pai de odiar as mulheres. Recitou-lhe, raivosamente, um verso de Buda: "A
vitória gera ódio, pois os vencidos são infelizes ...” O nosso pai, de costas hirtas pela
ira, virou-se e afastou-se. Sara gritou-lhe que mais valia não ter nascido, pois a dor
sobrepusera-se sempre à felicidade na sua vida. O nosso pai respondeu, em voz
desagradável, que lhe anteciparia a data do casamento para evitar prolongar-lhe a dor
da expectativa.
Normalmente, o meu pai vinha até à nossa vila de quinze em quinze dias. Os
homens que cultivam o islamismo e têm quatro mulheres, distribuem eqüitativamente
as suas nobres, de maneira a que cada esposa e respectivos filhos desfrutem de
período de tempo igual. Quando um homem se recusa a ir ter com a sua mulher, a
situação é grave, funciona como uma forma de castigo. A agitação era tão grande na
nossa vila por causa do desespero de Sara que o pai instruiu a nossa mãe, que, na sua
qualidade de primeira esposa, era a mais importante, para informar as suas outras três
mulheres de que dividiria o seu tempo entre elas, abstendo-se de estar na nossa casa.
Antes de sair da vila, meu pai ordenou secamente à minha mãe que fizesse
desaparecer os ressentimentos febris à filha e que a orientasse tranqüilamente para o
seu destino, que, nas suas palavras, era o de uma "esposa obediente e boa mãe".
Mal me recordo do casamento das minhas outras irmãs. Lembro-me vagamente
de lágrimas, mas era muito nova e ainda não tomara consciência do trauma emocional
que era casar com um desconhecido. Mas hoje sou capaz de fechar os olhos e reviver
cada pormenor dos acontecimentos que ocorreram durante os meses que antecederam
o casamento de Sara, a cerimônia em si e os tristes fato que tiveram lugar ao longo das
semanas que se seguiram.
Eu tinha fama de ser a criança difícil da família, a filha que mais esgotava a
paciência dos meus pais. Voluntariosa e indomável, provocava o caos no seio do nosso
lar. Fui eu quem deitou areia no motor do Mercedes novo de Ali; tirei, à sucapa,
dinheiro da carteira do meu pai; enterrei a coleção de moedas de ouro de Ali no pátio
das traseiras; deitava cobras verdes e lagartos horríveis para dentro da piscina da
família sempre que apanhava Ali a dormir no seu colchão flutuante.
Sara, com a sua serenidade e obediência, era a filha perfeita, além de ter tido
notas excelentes nos estudos. Apesar de a idolatrar, achava-a uma fraca. A minha
irmã, porém, surpreendeu-nos a todos nas semanas anteriores ao seu casamento.
Aparentemente possuía uma força interior oculta que lhe dava coragem, pois
telefonava diariamente para o escritório do nosso pai e deixava-lhe recados a dizer que
não se casaria. Chegou mesmo a ligar para o local de trabalho do homem a quem
estava prometida e deixar recado à secretária indiana deste, de que o achava um velho
nojento e que ele devia desposar mulheres e não raparigas. Ela deve, certamente, ter
pensado duas vezes antes de transmitir a mensagem ao patrão, pois os mares não se
dividiram e as montanhas não desabaram. Decidida, Sara telefonou de novo e pediu
para falar pessoalmente com o indivíduo! Este encontrava-se ausente. Sara foi
informada de que ficaria em Paris algumas semanas. O pai, farto do comportamento da
filha, mandou cortar os nossos telefones. Sara ficou confinada ao seu quarto.
A realidade que aguardava a minha irmã estava cada vez mais próxima. O dia
do casamento chegou. Duas semanas de pranto e lamentações não tinham conseguido
diminuir a beleza de Sara. Quando muito, haviam-na até acentuado, tornando-a quase
translúcida, uma criatura celestial não fadada para este mundo. A perda de peso
tomou-lhe os olhos ainda maiores e as suas feições quase pareciam talhadas a cinzel.
Os olhos de Sara pareciam imensos e as enormes pupilas negras deixavam
transparecer o que lhe ia na alma. O que eu via era medo.
As nossas irmãs mais velhas, assim como várias primas e tias, chegaram às
primeiras horas do dia do casamento, para prepararem a noiva para o noivo. A minha
presença indesejada escapou à atenção das mulheres, pois mantive-me sentada,
completamente imóvel, a um canto de um vasto quarto de vestir que fora adaptado
para os preparativos da noiva.
As mulheres que tomavam conta dos vários pormenores relacionados com o
casamento eram, nada mais nada menos, do que quinze. A primeira cerimônia, a
halawa, foi levada a cabo pela minha mãe e pela tia mais velha. Todos os pêlos do
corpo de Sara tinham de ser removidos, à exceção das sobrancelhas e do cabelo. Na
cozinha, uma mistura especial feita à base de açúcar, água de rosas e sumo de limão,
que seria espalhada pelo corpo da noiva, fervia em lume brando. Assim que a pasta
pegajosa secasse sobre a pele de Sara, seria retirada, levando consigo todas as
pilosidades corporais da noiva. O aroma era adocicado, mas os gritos de dor
fizeram-me estremecer de medo.
Preparou-se hena para uma última passagem pelos caracóis luxuriantes de
Sara; o seu cabelo ficaria a brilhar, cheio de matizes luminosos. As unhas foram
pintadas de vermelho-vivo, da cor do sangue, refleti sombriamente. O vestido de noiva,
em renda cor-de-rosa, estava pendurado ao pé da porta. Sobre o tampo do toucador
viam-se, amontoados, o obrigatório colar de diamantes com a pulseira e os brincos a
condizer. As jóias, apesar de terem chegado fazia semanas e fossem a prenda do
noivo, não tinham merecido um único olhar de Sara.
Quando uma noiva saudita está feliz, o quarto dos preparativos enche-se com o
som de risadas e da expectativa ansiosa. Os ânimos, para o casamento de Sara, eram
sombrios; dava a impressão de que as auxiliares preparavam o seu corpo, antes, para
a sepultura. Todas falavam através de sussurros. Sara não reagia a nada. Tendo em
conta as suas reações determinadas nas últimas semanas, eu estava a achá-la
estranhamente conformada. Mais tarde, vim a perceber a razão da espécie de estado
de transe em que mergulhara.
O pai, receoso de que Sara humilhasse a família declarando as suas objeções
em voz alta, ou até mesmo insultando o noivo, ordenara a um dos médicos
paquistaneses do palácio que a injetasse com um poderoso tranqüilizante que
exercesse efeito durante todo o dia. Depois vim a descobrir que o mesmo médico dera
ao noivo o mesmo tranqüilizante sob a forma de comprimidos, a fim de este os dar a
Sara. Disseram-lhe que a noiva estava muito excitada com o casamento, e o remédio
destinava-se a aquietar-lhe o estômago sensível. Como o noivo nunca vira Sara, nos
dias que se seguiram deve tê-la achado uma jovem invulgarmente dócil e tranqüila.
Mas o certo é que muitos homens de idade casam, no meu país, com rapariguinhas;
tenho a certeza de que estão acostumados ao terror das suas jovens noivas.
O rufar dos tambores assinalou a chegada dos convidados. As mulheres
acabaram, finalmente, de preparar Sara. Enfiaram-lhe o delicado vestido pela cabeça,
puxaram-lhe o fecho e calçaram-lhe as sandálias rosa. A minha mãe prendeu-lhe o
colar de diamantes ao pescoço. Eu declarei, alto e bom som, que era o mesmo que
uma corda para se enforcar. Uma das minhas tias deu-me uma pequena pancada na
cabeça e outra puxou-me as orelhas, porém Sara não proferiu um som. Ficamos todas
a olhar para ela, caladas e cheias de admiração. Nunca víramos noiva tão bonita.
No pátio das traseiras fora erguida uma enorme tenda, para a cerimônia. O
jardim encontrava-se inundado de flores vindas da Holanda. O local, cheio de luzinhas
coloridas penduradas, estava espetacular. Deslumbrada pelo esplendor, esqueci, por
momentos, o horror da situação.
A tenda já transbordava de convidados. As mulheres da família real, literalmente
vergadas sob o peso de diamantes, rubis e esmeraldas, partilhavam um evento social
com a plebe, uma ocasião rara. As mulheres sauditas das classes inferiores são
autorizadas a assistir aos nossos casamentos desde que não tirem o véu e não
convivam com as da realeza. Uma das minhas amigas contou-me que já tem
acontecido homens disfarçarem-se com o véu e juntarem-se a essas mulheres para
poderem ver os nossos rostos proibidos. Era suposto os convidados do sexo masculino
estarem a confraternizar num dos grandes hotéis da cidade, desfrutando dos mesmos
prazeres que as ali presentes: conversando, dançando e comendo.
Na Arábia Saudita, os homens celebram os casamentos num lado e as mulheres
noutro. Os únicos elementos do sexo masculino permitidos na celebração feminina são
o noivo, o seu pai, o pai da noiva e o religioso que procederá à curta cerimônia. Neste
caso, o pai do noivo já não existia, portanto este somente seria acompanhado pelo
nosso pai quando chegasse a altura de reclamar a noiva.
De repente, as escravas e servas começaram a destapar a comida. Verificou-se
uma corrida para o festim. As mulheres veladas foram as primeiras a atirar-se à
comida; as pobres enfiavam os alimentos na boca, por baixo dos véus. Outras
convidadas começaram a provar o salmão fumado da Noruega, o caviar russo, os ovos
de codorniz e outras delícias gastronômicas. Quatro mesas enormes balançavam sob o
peso da comida: os aperitivos ficavam à esquerda, os pratos principais no meio, as
sobremesas à direita e, à parte, estavam as bebidas. Não havia álcool à vista,
evidentemente, mas muitas convidadas da realeza levavam pequenos frascos
enfeitados com jóias na bolsa. De vez em quando davam uma fugidinha até às casas
de banho, às risadinhas, para tomarem um gole.
O centro da tenda foi depois ocupado por dançarinas do ventre egípcias. A
multidão de mulheres de todas as idades aquietou-se e assistiu aos movimentos das
dançarinas com graus de interesse variáveis. Era a parte preferida do casamento, no
entanto a maioria das mulheres parecia pouco à vontade com a exibição erótica. Nós,
Sauditas, encaramo-nos com demasiada seriedade e olhamos a alegria e as
gargalhadas com desconfiança. Mas foi com espanto que vi uma das minhas tias mais
velhas saltar do meio da multidão e juntar-se aos movimentos de ventre das
dançarinas. Dançava otimamente, contudo ouvi o murmúrio de desaprovação de várias
parentes minhas.
O som dos tambores encheu, mais uma vez, o ar e eu percebi que chegara a
vez de Sara aparecer. Todas as convidadas olharam para a entrada da vila com
expectativa.
Pouco depois as portas abriram-se e Sara, escoltada pela nossa mãe, de um
lado, e uma tia, do outro, dirigiu-se para a plataforma. Desde que vira a minha irmã
pela última vez haviam-lhe colocado um diáfano véu cor-de-rosa sobre o rosto, preso
por uma tiara de pérolas. O véu fino e transparente apenas servia para lhe acentuar a
beleza notável. Ouviu-se um murmúrio discreto, através do qual as convidadas
exprimiram a sua aprovação diante do ar adequadamente torturado da noiva. Afinal de
contas, era assim que uma jovem virgem devia mostrar-se: assustada até ao mais
íntimo do seu ser.
Dezenas de parentes do sexo feminino vinham atrás, enchendo o ar com os
sons de excitação e celebração próprias do deserto: o som vibrante e agudo que as
mulheres emitem ao fazerem vibrar a língua no céu da boca. Outras mulheres
juntaram-se com gritos estridentes. Sara cambaleou mas a nossa mãe segurou-a.
Não tardou que o meu pai e o noivo aparecessem. Eu sabia que este era mais
velho que o meu pai, no entanto a primeira visão que tive dele foi decididamente
revoltante. Parecia velho aos meus olhos jovens e lembrou-me uma doninha.
Imaginá-lo a tocar na minha irmã, tão sensível, fez-me encolher.
O noivo esboçava um sorriso de esguelha ao levantar o véu da minha irmã. O
medicamento tornara esta demasiado entorpecida para reagir, fazendo-a ficar parada a
olhar para o seu novo senhor. A verdadeira cerimônia já fora celebrada semanas antes
do casamento; nenhuma mulher estivera presente. Somente os homens haviam
participado nela, pois tratara-se de assinar os acordos relativos ao dote e
documentação. Naquele dia seriam proferidas as poucas palavras que faltavam para
completar o rito do casamento.
O religioso fitou o meu pai ao dizer as palavras simbólicas que declaravam Sara
estar agora casada com o noivo em troca do dote acordado. Em seguida, olhou de
relance para o noivo, que, em resposta, replicou que aceitava Sara como sua esposa e
que esta passaria a estar sob os seus cuidados e proteção, dali em diante. Nenhum
dos homens olhou para Sara em algum momento no decorrer da cerimônia.
O religioso abençoou então o casamento da minha irmã, lendo passagens do
Alcorão. As mulheres começaram imediatamente a guinchar e a ulular com a língua,
como mandava a tradição. Sara estava casada. O homem mirava-a, satisfeito.
Enquanto Sara se mantinha imóvel, o noivo tirou uma bolsinha do bolso da sua
thobe (túnica comprida usada pelos homens sauditas) e atirou moedas de ouro às
convidadas. Ao vê-lo aceitar, com ar convencido, os parabéns por ter desposado tão
linda mulher, estremeci. Pegou na mão da minha irmã e apressou-se a conduzi-la dali
para fora.
Os olhos de Sara prenderam-se nos meus ao passar; eu sabia que alguém
devia socorrê-la, no entanto tive a certeza de que ninguém o faria. De repente,
lembrei-me do que Sara dissera ao nosso pai: "A vitória gera ódio, pois os vencidos são
infelizes." A certeza de que o noivo nunca seria feliz numa união tão desoladoramente
aberrante não me trouxe consolo. Nenhum castigo seria suficientemente grande para
ele.
DIVÓRCIO
A VIAGEM
Uma das certezas da vida é a morte. A minha mãe, que acreditava piamente nas
palavras do profeta Maomé, não se sentia apreensiva em relação ao fim da jornada da
sua vida. Segui ra os preceitos exemplares de uma boa muçulmana e sabia que só
poderia esperá-la a recompensa. A sua única mágoa e receio eram as filhas que
deixava por casar.
Ela era a nossa força, o nosso apoio, e sabia que, quando se fosse embora, elas
ficariam entregues a si próprias. A minha mãe confessou que já sentia a vida a
desvanecer-se em si na altura da nossa partida. Não dispunha de outras bases para
esse conhecimento além de três visões extraordinárias que tivera em sonhos.
Seus pais haviam sucumbido a febres tinha ela oito anos de idade. Como única
menina da família, minha mãe tratara dos pais durante o breve período que durara a
sua doença.
Ambos pareciam estar a recuperar quando, no meio da fúria revoltante de uma
terrível tempestade de areia, o pai se erguera sobre um dos cotovelos, sorrira para as
nuvens, murmurara quatro palavras, "Eu vejo o jardim", e morrera. A sua mãe seguira-o
pouco depois, sem revelar o menor indício do que testemunhara aguardá-la. A minha
mãe, deixada aos cuidados dos quatro irmãos mais velhos, casara muito jovem com o
meu pai.
O meu avô materno fora um homem bom e compassivo. Amara a filha tal qual
os filhos. Enquanto os homens das outras tribos encaravam, de má cantadora, o
nascimento de uma filha, o meu avô ria e dizia-lhes que deviam louvar Deus por lhes
ter trazido um toque de amenidade ao lar. A minha mãe disse que, caso o seu pai
tivesse vivido mais tempo, jamais teria casado tão nova. Estava certa de que teria
podido dispor de mais uns anos entregue à liberdade da infância. Sara e eu
encontrávamo-nos sentadas à beira da sua cama quando nos confiou os seus
perturbastes sonhos. A primeira das suas visões deu-se quatro noites antes de termos
recebido notícia da tentativa de suicídio de Sara.
Encontrava-me numa tenda beduína. Era a mesma que a minha família tinha
nos meus tempos de criança. Fiquei admirada por ver os meus pais, jovens e
saudáveis, sentados ao lado de uma fogueira a prepararem café. Ouvia os meus
irmãos à distância, a trazerem o rebanho de carneiros ao fim de um dia de pasto.
Precipitei-me para os meus pais, mas eles não podiam ver-me nem ouvir-me a gritar
pelos seus nomes.
"Dois dos meus irmãos, os que já morreram, entraram na tenda e sentaram-se
ao lado dos meus pais. Beberam leite de camela em pequenas taças, enquanto o meu
pai triturava os grãos de café para preparar a bebida. O sonho acabou quando o meu
pai citou uns versos que fizera sobre o paraíso que aguardava todo o bom muçulmano.
Os versos eram simples, no entanto pareceram-me reconfortantes. Eram assim:
AMIGAS
Quando o meu pai e Randa regressaram da sua lua-de-mel, foram viver para a
nossa vila. Apesar de a minha mãe já não fazer parte do mundo dos vivos, os seus
filhos mais novos continuavam a residir na vila do pai e contava-se que a nova esposa
assumisse os deveres de uma mãe. Como eu era a filha mais nova, apenas com um
ano a menos que Randa, esse costume parecia, na nossa situação, ridículo. Contudo,
na Arábia Saudita não há possibilidade de modificar ou alterar situações em face de
condições especiais, de modo que Randa foi instalada na nossa casa, qual criança
mascarada de mulher e senhora de uma casa enorme.
Randa voltou da sua lua-de-mel calada, quase apática. Raramente falava,
nunca sorria e andava lentamente pela vila, como se receasse provocar algum dano ou
prejuízo. O meu pai parecia satisfeito com a sua nova propriedade, pois demorava-se
longas horas nos seus aposentos com a jovem noiva.
Passadas três semanas de uma atenção constante do pai em relação a Randa,
Ali deixou escapar um gracejo sobre a perícia sexual do pai. Perguntei ao meu irmão
se pensava no que Randa sentiria relativamente à questão - estar casada com um
homem muito mais velho e a quem não conhecia nem amava. A expressão de
indiferença de Ali não me deixou a menor dúvida de que não só nunca pensara nesse
pormenor como também tal consideração jamais germinaria no seu limitado
entendimento. Lembrou-me, eficazmente, que nada penetraria nunca no tenebroso mar
de egoísmo que é a mente de um homem saudita.
Randa e eu tínhamos filosofias diferentes. Ela achava que "O que está escrito na
tua testa será visto pelos teus olhos." Eu penso: "A imagem que está na tua mente será
fotografada pela tua vida." Além disso, Randa era penosamente envergonhada e
tímida, enquanto eu enfrento a vida com uma certa impetuosidade.
Reparei que os olhos de Randa estavam sempre atentos aos ponteiros do
relógio; algumas horas antes do pai chegar para o almoço ou para a refeição da noite,
começava a ficar agitada. Ele dera-lhe ordens para tomar as suas refeições antes da
sua chegada e para depois banhar-se e preparar-se para o receber.
Todos os dias, ao meio-dia, Randa ordenava ao cozinheiro que lhe servisse o
almoço. Comia frugalmente e em seguida retirava-se para os seus aposentos. O meu
pai chegava à vila, geralmente, por volta da uma da tarde, almoçava e depois ia ter
com a nova esposa. Saía de casa cerca das cinco horas e voltava para o seu escritório.
(Na Arábia Saudita, o horário de trabalho divide-se em dois turnos: das nove da manhã
à uma da tarde e das quatro da tarde às oito da noite.)
Ao ver o ar atormentado de Randa, ainda pensei em perguntar ao meu pai se
estava a seguir os ensinamentos do Alcorão - era suposto Deus ter instruído todos os
muçulmanos para dividirem os seus dias e noites por quatro esposas. Desde que
desposara Randa, as outras três esposas tinham sido virtualmente votadas ao
esquecimento. Mas, depois de pensar melhor, resolvi abster-me de tal arrojo.
De modo que as noites eram uma repetição da hora do almoço. Randa pedia o
jantar por volta das oito da noite, comia e enfiava-se nos seus aposentos para tomar
banho e preparar-se para o marido. Geralmente, só voltava a vê-la depois de o meu pai
sair para o trabalho, na manhã seguinte. Ela tinha ordens para esperar no quarto, até
ele sair.
A ansiedade que a vida desconsolada de Randa me provocava incentivava-me
à revolta. Eu tinha duas amigas cuja ousadia chegava a assustar-me; quem sabe a sua
vivacidade encorajasse Randa a tornar-se mais firme. Ao formarmos uni clube de
mulheres, cujos únicos membros eram Randa, as minhas formidáveis amigas e eu, mal
sabia que forças iria desencadear.
Pusemos o nome de "Lábios Vivos" ao nosso clube, pois tínhamos por objetivo
falar sobre a necessidade de combatermos o papel de submissão passiva da mulher na
nossa sociedade. Juramos solenemente concretizar os seguintes objetivos:
1. Aproveitarmos todas as oportunidades para deixar o espírito dos direitos da mulher
manifestar-se através da nossa voz.
2. Cada membro devia arranjar uma nova recruta por mês.
3. O nosso primeiro objetivo seria impedir o casamento de raparigas com velhos.
Nós, as mulheres jovens da Arábia Saudita, reconhecíamos que os homens da
nossa terra nunca empreenderiam reformas sociais para o nosso sexo, que teríamos
de ser nós a forçar a mudança. Enquanto a mulher saudita aceitar a autoridade do
homem, este mandará. Concluímos que cada mulher tinha, em termos individuais, a
responsabilidade de fomentar o desejo pelo controlo da sua vida e da de outras
mulheres que constassem do seu pequeno círculo. As nossas mulheres estão tão
amesquinhadas por séculos de sujeição que o nosso movimento tinha de começar por
despertar-lhes o espírito.
As minhas duas amigas, Nádia e Wafa, não pertenciam à família real, no
entanto eram filhas de importantes famílias da cidade de Riade.
O pai de Nádia possuía uma enorme firma de contratação. A sua disponibilidade
para conceder generosas comissões aos vários príncipes fazia com que atribuíssem à
sua empresa vantajosos contratos de construção civil. Empregava milhares de
trabalhadores estrangeiros do Sri Lanka, Filipinas e lémen. O pai de Nádia era quase
tão rico como os membros da realeza; não tinha a menor dificuldade em sustentar três
esposas e catorze filhos. Nádia tinha dezessete anos e era a filha do meio de outras
sete. Vira, desconcertada, as três irmãs mais velhas serem casadas por motivos de
interesse e conveniência familiares. Surpreendentemente, os três casamentos não
desagradaram às irmãs, que se sentiam felizes, com bons maridos. Nádia dizia que
aquele tipo de sorte não aconteceria sempre. Receava, com um pessimismo crescente,
que a casassem com um marido velho, feio e cruel.
Nádia era, na verdade, mais afortunada que a maioria das mulheres sauditas: o
pai determinara que prosseguisse os seus estudos. Dissera-lhe que não teria de casar
até aos vinte e um anos. A imposição deste limite incentivou-a a entrar em ação.
Declarou que, como já só lhe restavam quatro anos de liberdade, iria experimentar
todos os aspectos da vida durante esse tempo, ficando assim com recordações para os
anos monótonos de casamento que a aguardavam ao lado de algum velho.
O pai de Wafa era mutawa e o seu radicalismo conduzira a filha, por sua vez, a
extremos próprios. O pai tinha apenas uma mulher, a mãe de Wafa, no entanto era um
homem cruel e perverso. Wafa jurava que não queria nada com a religião que nomeava
homens como seu pai para chefes espirituais. Wafa acreditava em Deus e que Maomé
fora seu Profeta, mas achava que as suas mensagens haviam sido, de certa forma,
deturpadas pelos seus seguidores, pois nenhum Deus desejaria tanto sofrimento às
mulheres, metade da população mundial.
Wafa não precisava de ir além da sua própria casa. Sua mãe nunca era
autorizada a sair de casa; vivia como uma autêntica prisioneira, escravizada por um
homem de Deus.
Eram seis filhos, cinco dos quais do sexo masculino e adultos. Wafa fora uma
surpresa tardia para seus pais, e o pai ficara tão desiludido por ter uma filha que a
ignorava virtualmente, exceto para lhe dar ordens. Uma delas era permanecer em casa
e aprender a coser e a cozinhar. Wafa fora obrigada a usar a abaaya e a cobrir o
cabelo desde os sete anos. Desde os nove anos que, todas as manhãs, o pai lhe
perguntava se já lhe viera a primeira menstruação. Alarmava-o que a filha se
aventurasse a sair de rosto descoberto depois de Deus a classificar como mulher.
Era permitido a Wafa ter algumas amigas. As poucas que arranjara depressa se
afastaram, pois o pai ganhara o hábito de lhe perguntar arrojadamente, à frente delas,
se já estava menstruada.
A mãe de Wafa, farta e cansada das regras rígidas impostas pelo marido,
tomara a decisão tardia de se recusar, silenciosamente, a ceder às suas exigências.
Ajudava a filha a escapulir-se de casa e quando perguntavam pelo seu paradeiro, dizia
ao marido que estava a dormir ou a estudar o Alcorão.
Eu tinha-me na conta de ousada e rebelde, mas Wafa e Nádia fizeram parecer a
minha posição de luta em defesa da mulher insignificante e frágil. Diziam que eu nada
mais fazia do que estimular com inteligência - que a minha resposta a um problema era
falar interminavelmente nele -, mas que, na realidade, os meus esforços para ajudar as
mulheres eram ineficazes. Afinal de contas, a minha vida não mudara. Dei-me conta de
que tinham razão.
Nunca me esquecerei do incidente que teve lugar num edifício de
estacionamento no centro da cidade, perto do local a que os estrangeiros chamam
"quarteirão dos cortes", pois é aí onde os nossos criminosos ficam sem a cabeça ou a
mão às sextas-feiras, o nosso dia religioso.
Eu escondera a chegada da primeira menstruação ao meu pai, pois não tinha
pressa nenhuma de me encafuar dentro das vestes negras usadas pelas nossas
mulheres. Infelizmente, Nura e Ahmed decidiram que eu já adiara o inevitável por
demasiado tempo.
Nura comunicou-me que, se eu não contasse imediatamente ao meu pai, ela
própria o faria. De modo que reuni as minhas amigas, incluindo Randa, e deitamos
mãos à missão de escolher o meu novo "uniforme", lenço negro sobre o véu e abaaya
da mesma cor.
Omar conduziu-nos até à entrada da área de souq e nós, quatro mulheres,
apeamo-nos, combinando que nos encontraríamos com ele dali a duas horas, no
mesmo local.
Omar acompanhava-nos sempre aos souqs, para assim manter as mulheres da
família sob vigilância, mas nesse dia tinha um recado importante a fazer e aproveitou a
oportunidade proporcionada pelas nossas compras. Além do mais, a nova esposa do
pai acompanhava a filha e a presença aquiescente de Randa tranqüilizou Ornar. Não
vira qualquer indício de que Randa começara já a despertar, lentamente, do seu
prolongado e enfadonho sono de submissão.
Deambulamos pelas lojas, examinando, com o auxílio das mãos, a variedade de
lenços, véus e abaayas. Eu queria algo especial, algo que me fizesse sobressair no
meio do oceano de mulheres trajadas de preto. Amaldiçoei-me a mim mesma por não
ter uma abaaya feita em Itália, com a belíssima seda italiana e os desenhos intrincados
de um artista, de modo a que, à minha passagem, as pessoas percebessem que, de
baixo daquela cobertura negra, havia uma mulher com estilo e classe.
Todas estavam veladas menos eu; quando íamos a caminho do centro dos
souqs para prosseguir a nossa busca, reparei que Nádia e Wafa, de cabeças juntas,
sussurravam e soltavam risadas. Randa e eu aceleramos o passo e perguntámos-lhes
o que se passava de tão divertido. Nádia fitou-me e falou-me através do véu. Disse que
estavam a lembrar-se de um homem que tinham conhecido na sua última ida às lojas.
Um homem? Olhei de novo para Randa. Estávamos ambas com dificuldade em
entender o que elas queriam dizer. Levamos uma hora a encontrar uma abaaya, véu e
lenço adequados; os produtos disponíveis pareciam deveras limitados na sua
variedade.
A vida mudou de um momento para o outro. Eu entrara no souq como uma
pessoa cheia de vida, o meu rosto exprimia as minhas emoções perante o mundo. Saí
da loja coberta dos pés à cabeça, uma criatura de preto e sem rosto.
Devo reconhecer que os primeiros momentos com véu foram excitantes. Para
mim, o véu era uma novidade e devolvia, interessada, os olhares que os rapazes
sauditas adolescentes lançavam àquela figura de negro em que eu me transformara.
Sabia que desejavam que uma brisa soprasse inesperadamente, afastando o véu do
meu rosto de maneira a poderem vislumbrar um pedacinho da minha pele proibida.
Senti-me, por um momento, algo de belo, um trabalho tão finamente talhado que era
preciso cobrir-me para proteger os homens dos seus desejos incontroláveis.
No entanto, a novidade de usar véu e abaaya depressa se desvaneceu, Quando
saímos da área fresca do souq para o sol abrasador, o ar faltou-me e tentei inalá-lo
desesperadamente através do tecido preto e transparente. O ar, filtrado pelo pano fino
e leve, chegava-me à boca seco e a saber a mofo. Comprara o véu mais fino
disponível, no entanto tinha a impressão de estar a ver a vida através de uma barreira
densa. Como conseguiriam as mulheres ver através de véus feitos de tecidos ainda
mais grossos? O céu deixara de ser azul, o fulgor do Sol diminuíra; de repente, dei-me
conta de que, a partir daquele momento, deixaria de poder apreciar a vida nas suas
verdadeiras cores, fora de casa. O mundo pareceu-me, subitamente, um lugar sombrio.
E perigoso, também! Hesitei e tropecei no passeio esburacado e fendido, com medo de
partir um tornozelo ou perna.
As minhas amigas, ao verem os meus movimentos desajeitados e os meus
esforços, infrutíferos, para ajeitar o véu, deitaram a rir à gargalhada. Esbarrei contra
várias filhas de uma mulher beduína e senti inveja por estarem livres do véu. A mulher
beduína usa o véu por cima do nariz, deixando os olhos Livres. Oh, como desejaria ser
uma beduína! Cobriria o meu rosto de boa vontade se, ao menos, pudesse deixar os
meus olhos livres para ver as infinitas mudanças da vida à minha volta.
Chegamos cedo ao local de encontro indicado por Omar. Randa consultou o
relógio; só dali a cerca de uma hora é que chegaria. Sugeriu que regressássemos à
área do souq, pois, ali, o sol estava demasiado quente. Nádia e Wafa perguntaram-nos
se nos queríamos divertir. Eu respondi imediatamente que sim. Randa descansava ora
sobre um pé, ora sobre o outro, procurando Ornar; não era difícil perceber que só a
palavra divertir a perturbava. Eu, graças ao meu maravilhoso poder de persuasão,
convencia a alinhar com Nádia e Wafa. Como nunca infringira nenhuma das regras
impostas sobre as mulheres, sentia curiosidade. Quanto à pobre Randa, esta
acomodava-se, simplesmente, a uma vontade mais forte.
As duas raparigas trocaram sorrisos e disseram-nos que as seguíssemos.
Dirigiram-se para um parque de estacionamento que ficava por baixo de um edifício
perto da área do souq. Era ali que os homens que trabalhavam nos edifícios próximos
estacionavam os seus automóveis.
Nós, quatro mulheres, apressamo-nos a atravessar a movimentada passagem
de peões. Randa deu-me uma palmada na mão quando ergui o véu para poder ver o
trânsito. Demasiado tarde, percebi que expusera o meu rosto a todos os homens na
rua! Estes pareciam aparvalhados com a sorte que tinham tido de ver a face de uma
mulher num local público! Apercebi-me imediatamente que mais valia ser atropelada
por um carro veloz do que cometer semelhante ato de exibicionismo.
Quando chegamos junto dos elevadores do parque de estacionamento, fiquei
siderada pela atitude das minhas amigas. Wafa e Nádia abordaram um estrangeiro, um
sírio extraordinariamente bem-parecido. Perguntaram-lhe se desejava divertir-se um
pouco.
Por um momento, o homem deu a impressão que ia dar um pulo e deitar a
correr; olhou à esquerda e à direita e carregou no botão do elevador. Por fim, achou
melhor não se afastar, tendo em vista a oportunidade rara de conhecer mulheres
sauditas disponíveis e, possivelmente, bonitas. Quis saber qual era o tipo de diversão.
Wafa perguntou ao sírio se tinha automóvel e apartamento privado. Respondeu que
sim, que dividia um apartamento com um libanês. Nádia perguntou se o amigo
precisava de uma namorada, ao que o sírio, sorrindo, respondeu que sim, que os dois
precisavam.
Randa e eu recompusemo-nos o suficiente para conseguir andar. Seguramos
nas nossas abaayas e corremos para fora do parque de estacionamento receando
pelas nossas vidas. Perdi o meu lenço no processo; ao virar-me para o ir buscar,
Randa embateu em mim. Caiu de costas e ficou estendida em cima da areia, com as
pernas proibidas à mostra.
Quando Nádia e Wafa se reuniram a nós, respirávamos ofegantemente,
apoiadas à montra de uma loja. Elas agarravam-se uma à outra, rindo. Tinham-nos
observado enquanto eu ajudava Randa a levantar-se.
Sussurrando, demos-lhes a conhecer a nossa fúria. Como podiam ter cometido
tão estúpido ato? Engatar homens estrangeiros! E que espécie de divertimento
planeavam, afinal de contas? Não sabiam que Randa seria apedrejada e nós três
aprisionadas ou pior? Brincadeira era brincadeira, mas o que elas estavam a fazer era
suicídio!
Wafa e Nádia limitaram-se a rir e a encolher os ombros diante da nossa
explosão. Sabiam que, se fossem apanhadas, seriam punidas, porém, não se
importavam. Para elas, o futuro próximo apresentava-se tão insípido que valia a pena
correr o risco. Além disso, podiam conhecer algum estrangeiro simpático e casar com
ele. Qualquer homem era preferível a um saudita!
Tive a impressão de que Randa ia ter uma síncope. Correu para o meio da rua,
olhando para um lado e para o outro à procura de Ornar. Sabia que o meu pai não teria
contemplações se a apanhasse naquela situação. Estava aterrorizada.
Omar, atento e perspicaz, perguntou-nos o que acontecera. Randa hesitou e
começou a falar, mas eu interrompia e contei a Omar que víramos um rapaz novo
roubar um colar no souq do ouro. O lojista espancarão antes de ser rudemente levado
para a prisão por um polícia. Ao dizer a Ornar que ficáramos perturbadas por ele ser
tão novo e sabermos que iria ficar sem a mão, a voz tremia-me. Reparei, aliviada, que
Ornar acreditara na minha história. Randa procurou a minha mão disfarçadamente, por
baixo da minha túnica preta, e apertou-ma com gratidão.
Mais tarde, Nádia e Wafa puseram-me a par do que chamavam de "diversão".
Travavam conhecimento, nos elevadores dos parques de estacionamento, com
homens estrangeiros, normalmente dos países árabes vizinhos, ocasionalmente algum
inglês ou americano. Escolhiam homens bonitos; homens por quem pudessem
apaixonar-se. De vez em quando, os indivíduos assustavam-se e saltavam para dentro
do elevador, zarpando para outro andar. Noutras ocasiões, mostravam-se
interessados. Se o homem abordado ficasse intrigado, combinavam encontrar-se
noutra altura, no mesmo elevador. Pediam-lhe que tentasse arranjar uma carrinha para
ir buscá-las. Mais tarde, em data e hora combinadas, as raparigas fariam de conta que
iam às compras. O motorista deixava-as na área do souq; compravam alguns artigos e
depois seguiam para o local de encontro. às vezes, os homens ficavam com medo e
não apareciam; outras, aguardavam-nas cheios de nervosismo. Se o homem
conseguira arranjar carrinha, as raparigas certificavam-se de que não havia ninguém
por perto e depois saltavam rapidamente para a parte de trás. O homem guiaria
cuidadosamente até ao seu apartamento, e o mesmo grau de precaução seria usado
para a entrada das raparigas. Se fossem apanhados, a sentença seria severa,
muito provavelmente a morte para todos os envolvidos.
A explicação para a carrinha era clara. Na Arábia Saudita, homens e mulheres
não podem andar no mesmo meio de transporte, exceto se forem parentes próximos.
Se os mutawas tivessem alguma suspeita, fariam parar o veículo e pediriam a
identificação.
Também é proibido homens solteiros receberem mulheres nos seus
apartamentos ou casas. à menor desconfiança de indecência, não é invulgar os
mutawas cercarem a casa de um estrangeiro e levarem todos os que ali se encontram,
homens e mulheres, para a cadeia.
Eu receava pelas minhas amigas. Alertei-as, vezes sem conta, para as
conseqüências. Elas eram jovens e descuidadas, cheias de tédio com a vida que
levavam. Relataram-me, rindo, outras atividades a que se entregavam por diversão.
Discavam números ao acaso, até algum estrangeiro atender. Qualquer homem servia,
desde que não fosse saudita ou iemenita. Perguntavam-lhe se estava sozinho e a
precisar de companhia feminina. De uma maneira geral, a resposta era positiva, pois
são muito raras as mulheres disponíveis na Arábia Saudita, e a maioria dos
estrangeiros vem trabalhar para este país com um visto para pessoa só. Uma vez
estabelecido a escolha de um homem, as raparigas pediam-lhe que lhes falasse sobre
o seu corpo. Lisonjeado, era comum o homem descrever graficamente o seu corpo,
pedindo-lhes, depois, que fizessem o mesmo. Nessa altura, Nádia e Wafa
retratavam-se dos pés à cabeça, com pormenores lascivos. Era extremamente
divertido, afirmaram, e por vezes encontravam-se com o homem em questão, mais
tarde, no mesmo estilo dos amantes do parque de estacionamento.
Tive curiosidade em saber até que ponto iriam as intimidades das minhas
amigas com esses amantes. Atônita, ouvi-as dizer que faziam tudo menos a
penetração. Não podiam arriscar-se a perder a sua virgindade, pois sabiam quais as
conseqüências que enfrentariam na noite de núpcias. Os maridos devolvê-las-iam aos
pais e estes também as rejeitariam.
Os mutawas investigariam. Poderiam perder a vida; mesmo que assim não
fosse, ficariam sem nenhum lugar para onde ir.
Wafa disse que, nos seus encontros com esses homens, ela e Nádia nunca
tiravam o véu. Despiam toda a roupa, exceto o véu. Os homens provocavam-nas e
imploravam que o tirassem, mas as raparigas diziam que se sentiam mais seguras se
eles não lhes vissem o rosto. Contaram que, se algum homem se tivesse mostrado
sério nas suas intenções, elas teriam considerado a possibilidade de exporem os seus
rostos. Mas, claro, não acontecera com nenhum deles. Também eles só procuravam
divertir-se. As minhas amigas tentavam, desesperadamente, encontrar uma "saída"
para a noite escura e interminável que um futuro próximo lhes reservava. Randa e eu
chorávamos quando falávamos sobre o comportamento das nossas amigas. Eu sentia
um ódio cada vez maior pelos costumes da minha terra. A total falta de controle e de
liberdade para o nosso sexo conduzia jovens como Wafa e Nádia a atos desesperados,
atos que lhes custariam, sem dúvida, a vida, se fossem descobertos. Perto do final do
ano, Nádia e Wafa foram presas. Tiveram a pouca sorte de membros do
autoproclamado Comitê dos Bons Costumes, que andava pelas ruas de Riade a tentar
apanhar pessoas em atos proibidos pelo Alcorão, ter sabido das suas atividades
secretas. Assim que Wafa e Nádia entraram na parte de trás de uma carrinha, um carro
carregado de jovens zelosas sauditas avançou para a frente do veículo,
bloqueando-lhe a passagem. Havia semanas que vigiavam a zona, depois de um dos
membros do comitê, na altura a trabalhar, ter ouvido um palestiniano falar de duas
mulheres veladas que o abordaram com propostas indecentes no elevador da cave.
A vida de Nádia e Wafa foi poupada pelo fato de terem os hímens intactos. Nem
o Comitê dos Bons Costumes nem o Conselho Religioso ou os pais acreditaram na
improvável invenção de que tinham, simplesmente, pedido uma boleia ao homem
devido ao atraso do seu motorista.
O Conselho Religioso interrogou todos os homens que trabalhavam na área e
localizou um total de catorze que declarou ter sido abordado por duas mulheres
veladas. Nenhum dos homens confessou ter participado em quaisquer atividades com
as mesmas.
Depois de três meses de prisão rígida, o comitê concedeu a liberdade a Nádia e
Wafa por falta de provas incriminatórias de atividade sexual, devolvendo-as aos pais
para serem devidamente punidas.
Surpreendentemente, o pai de Wafa, o inflexível homem da religião, teve uma
conversa com a filha e perguntou-lhe qual a razão de tais prevaricações. Ao ouvi-la
chorar e falar dos seus sentimentos de rejeição e desespero, exprimiu comiseração
pela sua infelicidade. Apesar da sua mágoa e compreensão, informou Wafa de que
decidira afastá-la de mais tentações. Aconselhou-a a estudar o Alcorão e a aceitar a
vida simples predestinada às mulheres, bem longe da cidade. Combinou um
casamento apressado com um mutawa beduíno de uma pequena aldeia. O homem
tinha cinqüenta e três anos e Wafa, que seria a sua terceira esposa, dezessete.
Ironicamente, foi o pai de Nádia a ser dominado por uma raiva terrível.
Recusou-se a falar com a filha e ordenou-lhe que não saísse do quarto até ele se
decidir sobre o castigo a dar-lhe.
Alguns dias mais tarde, o meu pai chegou cedo do escritório e chamou Randa e
eu à sua sala de estar. Incrédulas, ouvimo-lo contar que, na manhã seguinte,
sexta-feira, às dez da manhã, o pai iria afogar Nádia na piscina da família. O pai disse
que toda a família assistiria à execução.
Quando o meu pai perguntou a Randa se ela e eu tínhamos, alguma vez,
acompanhado Nádia e Wafa naquelas ações vergonhosas, senti um baque no coração.
Levantei-me e ainda comecei a negar veementemente, mas o meu pai gritou-me e
empurrou-me de volta ao sofá. Randa rompeu a chorar e relatou a história daquele dia,
já tão afastado, em que fôramos comprar a minha primeira abaaya e véu. O meu pai
deixou-se ficar sentado sem se mexer e sem pestanejar, até Randa terminar. Depois
interrogou-nos sobre o nosso clube de mulheres, o tal que se chamava "Lábios". Disse
que mais valia contarmos a verdade, pois Nádia confessara todas as nossas atividades
há dias. Ao ver que Randa não conseguia falar, tirou da sua pasta os nossos papéis do
clube. Passara o meu quarto em revista e encontrara os nossos registros e listas de
membros. Pela primeira vez na minha vida, senti a boca seca e os meus lábios como
que fechados a cadeado.
O meu pai voltou a meter, calmamente, os papéis dentro da pasta. Olhou Randa nos
olhos com firmeza e declarou:
- Divorcio-me de ti deste dia em diante. O teu pai mandará um motorista
buscar-te daqui a uma hora, para te levar de novo para a tua família. Ficas proibida de
contactar com os meus filhos.
Para meu horror, o meu pai virou-se lentamente para mim.
- Tu és minha filha. A tua mãe foi uma boa mulher. Ainda assim, se tivesses
participado naquelas atividades com Nádia e Wafa, eu respeitaria os ensinamentos do
Alcorão e decretaria a tua morte. Evitarás chamar a minha atenção e concentrar-te-ás
nos teus estudos até eu te encontrar um casamento adequado. - Fez uma pausa e
acercou-se de mim, fitando-me nos olhos com dureza. - Sultana, aceita
obedientemente o teu futuro, pois não tens alternativa.
O meu pai inclinou-se para pegar na pasta com os papéis e, sem dirigir um olhar
a Randa ou a mim, saiu da sala.
Humilhada, segui Randa até ao seu quarto, onde a vi juntar as suas jóias,
roupas e livros num monte desordenado, em cima da cama enorme. O seu rosto
mostrava-se completamente impassível. Não fui capaz de proferir uma palavra. A
campainha da porta tocou demasiado depressa e dei por mim a ajudar os criados a
levarem a bagagem de Randa para o carro. Esta, sem uma palavra de despedida, saiu
de minha casa, mas não do meu coração. às dez da manhã do dia seguinte, fui para a
varanda do meu quarto, sozinha, com o olhar perdido, sem ver, à distância. Pensava
em Nádia e imaginava-a envolvida em correntes pesadas, com um capuz negro enfiado
na cabeça, mãos a erguê-la do chão e a baixá-la para dentro das águas
azuis-esverdeadas da piscina da sua família. Fechei os olhos e senti o seu corpo a
debater-se, a boca a abrir-se em busca de ar, os pulmões a dilatarem-se com a entrada
violenta da água. Recordei os seus olhos castanhos brilhantes e a sua maneira
especial de erguer o queixo ao mesmo tempo que enchia a sala de riso.
Lembrei o toque sedoso da sua pele clara e imaginei, com um esgar de horror, o
trabalho rápido da terra cruel sobre tão grande macieza. Consultei o meu relógio e vi
que eram dez e dez e senti o meu peito comprimir-se com a certeza de que Nádia
nunca mais riria. Foi o momento mais dramático da minha jovem história, no entanto
sabia que os esquemas que as minhas amigas tinham para se divertir, por mais
condenáveis e lamentáveis que fossem, não deviam ter conduzido à morte de Nádia ou
ao casamento prematuro de Wafa. Aqueles atos, tão cruéis, eram o pior de todos os
comentários que se poderiam fazer sobre a sabedoria dos homens que consomem e
destroem, com indiferença e frieza, as vidas e os sonhos das suas mulheres.
MULHERES ESTRANGEIRAS
VIDA DE CASADA
Nascimento
SEGREDOS TENEBROSOS
A nossa vida termina com a morte. Principia com uma única passagem; contudo,
existem inúmeras saídas. à maravilhosa concretização da promessa da vida segue-se
o modo de partida habitual e esperado. Quando a morte reclama alguém cheio de vida
e esperança, é o mais triste dos acontecimentos. Quando uma vida em flor termina às
mãos de outro homem, não há nada pior.
Na altura radiosa em que o nascimento do meu filho teve lugar, fui confrontada
com a morte sem sentido de uma rapariga nova e inocente.
Karim e o pessoal médico tentaram manter-me afastada das outras mulheres
sauditas que se encontravam a poucos passos da minha suíte. Enquanto o meu filho
dormia ao meu lado, cercado de proteção, outros filhos e filhas eram mantidos no
berçário. Eu, nos meus aposentos, mal conseguia reprimir a curiosidade que sentia em
relação às diversas histórias verídicas. Como acontecia à maioria dos membros da
realeza, eu levara uma vida afastada dos cidadãos vulgares, de modo que, naquela
altura, o meu feitio curioso levou-me a meter conversa com aquelas mulheres.
Não tardei a descobrir que se a minha infância fora desolada, a da maioria das
mulheres sauditas ainda o fora mais. A minha vida estava subordinada aos homens, no
entanto o nome da minha família proporcionava-me uma espécie de proteção. A
maioria das mulheres reunidas em frente da vidraça do berçário não tinham o menor
poder de decisão sobre o seu destino.
Tive o meu primeiro filho aos dezoito anos. Conhecia raparigas que já aos treze
anos eram mães. Havia outras raparigas, da minha própria idade, que já iam na quarta
ou quinta criança.
Fiquei intricada com uma certa jovem. Tinha os olhos negros, que fixava na
massa de bebês choramingues, ensombrados pelo sofrimento. Manteve-se tão quieta
durante tanto tempo que tive a certeza de que não via o que tinha na frente, estava,
isso sim, imersa num drama afastado do local onde nos encontrávamos.
Soube que era de uma pequena aldeia, pouco distante da cidade.
Normalmente, as mulheres da sua tribo davam à luz nas próprias casas, mas ela
estivera cinco longos dias e noites em trabalho de parto, de modo que o marido
resolvera levá-la para o hospital.
Travei conhecimento com ela, depois de vários dias, e descobri que casara, aos
doze anos, com um homem de cinqüenta e três. Era a terceira esposa, mas o marido
favorecia-a muito.
Maomé, o nosso profeta bem-amado do islamismo, ensinou que os homens
deviam dividir o tempo igualmente pelas suas mulheres. Naquele caso, o esposo
andava tão ocupado com os encantos da sua jovem esposa que as duas primeiras
cediam, de boa vontade, as suas vezes de enlace conjugal. A jovem contou que o
marido era um homem de grande poder e fazia "aquilo" várias vezes ao dia. Com os
olhos muito abertos, movimentou repetidamente o braço para baixo e para cima, para
melhor explicitar a idéia.
Naquele momento estava assustada porque dera à luz uma filha, não um filho.
O marido, quando a fosse buscar para a levar de volta para a aldeia, ficaria furioso,
pois os primogênitos das outras duas esposas tinham sido varões. Pressentia que, dali
em diante, passaria a ser desprezada por ele.
Pouco recordava da infância, que parecia agora já muito longínqua. Crescera
numa família pobre e pouco mais conhecera além de muito trabalho e sacrifício.
Explicou como ajudara a série de irmãos e irmãs a pastorear as cabras e os camelos e
a tratar de uma pequena horta. Sentia-me ansiosa por saber o que pensava sobre os
homens, as mulheres e a vida, mas a sua triste falta de cultura não lhe permitiu dar-me
as respostas que eu procurava.
Foi-se embora antes de me poder despedir dela. Pensar na vida triste que a
esperava fez-me sentir frio, de modo que voltei para a minha suíte em profundo estado
de desalento.
Num acesso de ansiedade em relação à segurança do seu filho, Karim colocara
guardas armados à porta dos meus aposentos. Ao fazer o meu passeio matinal até ao
berçário, fiquei surpreendida por ver guardas em frente de outro quarto. Calculei que se
tratasse de mais outra princesa. Pedi ansiosamente a uma enfermeira que me dissesse
o seu nome. Respondeu-me, de cenho franzido, que eu era a única princesa no
hospital.
Contou-me a história, não sem antes me advertir de que se sentia
profundamente escandalizada. A seguir, amaldiçoou todas as pessoas sobre a Terra,
antes de descrever o que se passava no quarto 212. Afirmou que no seu país jamais se
passaria algo de semelhante, que os Ingleses são muito civilizados, obrigada, e que,
em comparação com eles, o resto do mundo parece viver mergulhado na barbárie.
A minha imaginação não me permitia descer até tais profundezas de ira, pelo que lhe
implorei que me contasse o que estava a acontecer antes que Karim chegasse para a
sua visita diária.
Na véspera, relatou-me, o pessoal do hospital ficara perplexo por ver chegar
uma jovem prestes a dar à luz, com as mãos e os pés presos em grilhetas de ferro, que
foi escoltada até à ala da maternidade pelos guardas que a acompanhavam. Um grupo
de mutawas irados, seguido pelo amedrontado administrador, haviam ido atrás dos
guardas; tinham sido eles, não o administrador, a designar o médico que trataria do
caso.
Para consternação do médico, este foi informado de que a rapariga fora julgada
nos tribunais de Shari'a (a lei de Deus) e considerada culpada de fornicação. Como se
tratava de um crime de Hudud (um crime contra Deus), a pena era severa. Os
mutawas, escudados pela sua indignação, estavam ali para testemunhar a aplicação
do castigo merecido.
O médico, um muçulmano da índia, não protestou diante dos mutawas, no
entanto estava furibundo pelo papel que o obrigavam a desempenhar. Disse ao
pessoal que o castigo habitual para punir a fornicação era o chicote, porém, naquele
caso, o pai insistira na morte da filha. A rapariga deveria ser vigiada até dar à luz, após
o que seria apedrejada até à morte.
O queixo da enfermeira tremeu de indignação ao contar que a rapariga pouco
mais era do que uma menina. Calculou que teria à volta de uns catorze, quinze anos.
Poucos pormenores mais conhecia, de modo que me deixou deitada e foi tagarelar
com as outras enfermeiras que estavam no corredor.
Implorei a Karim que se informasse do que se tratava. Ele hesitou, dizendo que
não era nada que nos dissesse respeito. Depois de muitas súplicas e lágrimas
derramadas por mim, acedeu em inquirir o que se passava.
Sara iluminou o meu dia ao trazer-me novas ótimas sobre a evolução do seu
romance. Asad falara com o nosso pai e recebera a esperada resposta positiva. Sara e
Asad casariam dali a três meses. Fiquei radiante pela minha irmã, que até ali tão pouca
felicidade conhecera. Depois revelou outra notícia que me fez encolher o estômago de
medo. Ela e Asad tinham planeado encontrar-se no Bahrein no fim-de-semana
seguinte. Ao ver que eu protestava, Sara declarou que iria ter com Asad, com ou sem a
minha ajuda. Tencionava avisar o pai de que ficaria mais uns dias no meu palácio,
ajudando-me a desempenhar o meu novo papel materno. Diria a Nurah que regressava
à casa paterna. Afiançou que ninguém desconfiaria do contrário.
Perguntei como viajaria ela sem a autorização do nosso pai, pois sabia que este
guardava todos os passaportes da família num cofre que tinha no escritório. Além
disso, seria necessária uma permissão escrita do pai, caso contrário jamais entraria
num avião.
Encolhi-me de medo, quando Sara me contou que pedira um passaporte e uma
autorização emprestadas a uma amiga que tencionara deslocar-se ao Bahrein para
visitar familiares, mas tivera de cancelar a viagem por motivos de saúde de um dos
parentes. Como as mulheres sauditas andam veladas e nenhum guarda da segurança
do aeroporto se atreveria jamais a pedir para ver o rosto de uma mulher, muitas
sauditas pedem emprestados os passaportes umas das outras para tais ocasiões. O
outro problema era a carta com a autorização, mas também estas eram trocadas,
juntamente com os passaportes. Mais tarde, Sara retribuiria o favor marcando uma
viagem para um país vizinho e cancelando-a à última da hora, emprestando depois as
credenciais à mesma amiga. Era uma operação pormenorizada e clandestina que
nenhum dos nossos homens alguma vez imaginara. Eu sempre achara piada à
facilidade com que as mulheres ludibriavam os agentes do aeroporto, mas agora, que
se tratava da minha irmã, tremia de preocupação.
Numa tentativa para desencorajar Sara de algum ato irrefletido, relatei-lhe a
história da jovem que aguardava a sua execução por apedrejamento. Sara ficou
perturbada, tal como eu, mas os seus planos não vacilaram. Cada vez mais nervosa,
acedi em encobri-la. A perspectiva de se encontrar com Asad sem ser debaixo de
vigilância, fê-la rir a bom rir. Arranjara um apartamento emprestado por uma amiga, em
Manama, a capital do país minúsculo que é o Bahrein.
Sara, expectante em relação ao seu futuro, tirou o meu filho do seu berço de
seda. Examinou ternamente a sua perfeição, declarando que em breve também ela
conheceria os prazeres da maternidade, pois, tal como Asad, ansiava pelos seis
pequeninos que Huda previra com tanta certeza.
Eu exibia a alegria que a minha irmã esperava de mim, no entanto sentia as
entranhas contorcidas de medo.
Nessa noite Karim voltou cedo, com informações sobre a condenada. Contou
que era conhecida pela sua libertinagem e engravidara depois de ter relações sexuais
com uma série de adolescentes. Semelhante comportamento enojara Karim. Declarou
que o desdém da jovem pelas leis do seu país denegrira a honra da sua família, que
não tivera outro remédio senão tomar aquela decisão.
Perguntei ao meu marido qual o castigo que os rapazes que tinham participado
receberiam, porém, não me soube responder. Disse-lhe que o mais provável era terem
recebido um sermão severo em vez de uma sentença de morte, pois no mundo árabe,
a culpa pela prática não sancionada do sexo recai apenas sobre os ombros da mulher.
Karim decepcionou-me com a tranqüilidade com que aceitava a execução planeada de
uma menina, independentemente do crime. Apesar dos meus apelos para que fizesse
um esforço para intervir junto do rei, pessoa que podia levar um pai a ceder em relação
a algum castigo violento, Karim rechaçou as minhas exclamações de alarme com
irritação indisfarçada, insistindo em colocar um ponto final no assunto.
Quando se despediu de mim, mostrei-me retraída e amuada. Encheu o nosso
filho de beijos e promessas de uma vida perfeita, enquanto eu me deixava ficar
sentada, triste e indiferente.
Preparava-me para abandonar o hospital quando a enfermeira inglesa entrou na
minha suíte pálida de raiva. Trazia informações dramáticas sobre a condenada.
Possuía uma memória extraordinária e recordava, com perfeita clareza, cada pormenor
doloroso que o médico indiano contara. A rapariga condenada fora mãe de uma
menina às primeiras horas da madrugada. Três mutawas tomaram conhecimento da
indignação da comunidade estrangeira e colocaram-se, juntamente com os guardas
armados, à porta da sala de partos, a fim de se certificarem de que nenhum estrangeiro
compassivo ajudava a rapariga a fugir. A jovem, depois de dar à luz, fora levada de
novo para o seu quarto, numa cadeira de rodas. Os mutawas comunicaram ao médico
que seria levada naquele mesmo dia, a fim de ser executada por apedrejamento pelo
seu crime contra Deus. O destino da recém-nascida ainda não fora decidido, pois a
família recusara-se a acolhê-la.
A enfermeira, com o horror espalhado nos olhos, contou que a rapariga relatara
ao médico, no meio de lágrimas, os acontecimentos que haviam conduzido à sua
situação trágica. Chamava-se Amal e era filha de um comerciante de Riade. Tinha
apenas treze anos quando os fato que despedaçaram o seu mundo ocorreram.
Começara a usar véu havia pouco tempo.
Era uma noite de quinta-feira (equivalente ao sábado à noite no mundo
ocidental). Os pais de Arnal tinham ido passar o fim-de-semana aos Emirados e só
regressariam sábado à tarde. As três criadas filipinas da casa estavam a dormir e o
motorista vivia na sua casinha junto ao portão, a uma distância considerável da casa
principal. Os irmãos mais velhos de Amal, casados, viviam noutras zonas da cidade.
Da família, somente ela e um irmão de dezessete anos tinham ficado em casa. Este
ficara encarregue, mais as três criadas filipinas, de tomar conta da jovem. O irmão
aproveitara a ausência dos pais para receber um numeroso grupo de amigos. A noite já
ia adiantada quando Ainal começou a ouvir música alta e vozes, pois a sala onde a
festa decorria encontrava-se mesmo por baixo do seu quarto. Pensou que o mais
provável era o irmão e os amigos estarem a fumar marijuana, uma substância à qual
seu irmão começara a apegar-se nos últimos tempos.
A certa altura, quando as paredes do quarto de Amal começaram a vibrar com
os baixos da estereofonia, resolveu descer ao piso inferior e pedir ao irmão e aos
amigos que baixassem a música. Vestida apenas com uma fina camisa de dormir, não
tencionava entrar na sala, apenas enfiar a cabeça e gritar que queria paz e silêncio.
Havia pouca luz e a sala estava mergulhada na penumbra. O irmão não respondeu ao
chamado, de modo que a rapariga decidiu entrar para o procurar.
O irmão de Amal não estava em parte nenhuma. Os outros adolescentes que
estavam na sala encontravam-se, nitidamente, excitados pela droga consumada e pela
conversa sobre mulheres, pois Amal foi imediatamente agarrada por vários rapazes,
que a prenderam ao chão. Gritou pelo irmão e tentou fazer com que compreendessem
que era a filha da casa, mas as suas súplicas não entraram nas mentes drogadas.
Arrancaram-lhe a camisa de noite do corpo. Foi brutalmente violada pelos amigos do
irmão, que se tinham transformado numa turba enlouquecida. O barulho da música
abafou o som do ataque e ninguém ouviu os seus gritos a pedir socorro. Depois de o
terceiro jovem a violar, Amal perdeu os sentidos.
O irmão tinha ido à casa de banho, porém estava tão drogado que se deixara
escorregar para o chão, encostado a uma parede, e passara o resto da noite
mergulhado num torpor inconsciente. Mais tarde, quando a luz da aurora aclarara a
cabeça dos violadores e a identidade de Amal fora revelada, os rapazes tinham fugido
da vila.
O motorista e as filipinas levaram Amal até um hospital próximo. O médico da
sala de emergência notificou a polícia. Os mutawas meteram-se no assunto. A reclusão
a que Amal estava sujeita pela sua condição de mulher não lhe permitiu identificar os
seus atacantes pelo nome, apenas que eram amigos do irmão. Os seus nomes foram
obtidos através deste, mas quando isso aconteceu e os chamaram a prestar
declarações, já eles se tinham esforçado para apresentar uma explicação comum.
Segundo a sua versão sobre os acontecimentos da noite, não houvera consumo de
droga. Só confirmaram que tinham posto a música muito alta e divertiam-se
inocentemente. Afirmaram que a rapariga entrara na sala envergando uma camisa de
dormir transparente e induzira-os a praticar relações sexuais com ela. Disse aos
rapazes que estivera a ler um livro sobre sexo, no andar de cima, e sentia-se cheia de
curiosidade. Juraram que tinham começado por recusar, mas ela portara-se de maneira
tão ousada - sentando-se no seu colo, beijando-os e apalpando-os - que não foram
capazes de se conter por mais tempo. A rapariga fora deixada sozinha e estava
decidida a passar um bom bocado com os rapazes. Declararam que era insaciável e
implorara a todos que participassem.
Os pais regressaram dos Emirados. A mãe de Amal acreditou na história da
filha, mas, apesar de tresloucada pela dor, não foi capaz de convencer o marido da
inocência desta. O pai de Amal, que nunca se dera bem com as filhas, ficou abalado
pelo acontecido, mas achou que os rapazes só tinham feito o que qualquer macho faria
nas mesmas circunstâncias. Pesaroso, concluiu que havia que castigar a filha pela
vergonha que trouxera ao seu nome. O irmão de Amal, receoso de um castigo severo
por consumir droga, não tomou nenhuma iniciativa para limpar o nome da irmã.
Os mutawas proporcionaram ao pai apoio moral na decisão inabalável que tomou,
enchendo-o de louvores pela sua convicção religiosa. A rapariga morreria naquele dia.
Consumida por emoções de pena e temor, mal ouvi as exclamações incessantes
da enfermeira inglesa. Senti a minha felicidade diminuir consideravelmente ao pensar
na inocência da jovem e nos esforços infrutíferos da mãe para a salvar de uma morte
cruel. Eu própria nunca testemunhara um apedrejamento, mas Ornar fizera-o três
vezes e deliciara-se a descrever-nos o destino que aguardava as mulheres fracas que
não guardavam zelosamente a sua honra, tão prezada pelos homens. Lembrei-me da
descrição vívida de Ornar, que ficara gravada na minha memória.
Tinha eu doze anos quando certa mulher, que vivia numa das aldeias vizinhas
próximas de Riade, fora acusada de adultério. Condenaram-na a morrer por
apedrejamento. Omar e um motorista de um vizinho nosso resolveram ir assistir ao
espetáculo.
A vasta multidão começara a formar-se desde manhã cedo. Estava agitada e
ansiosa por ver quem se portara tão vergonhosamente. Ornar contou que,
precisamente quando já todos começavam a ficar enfurecidos de impaciência sob o sol
escaldante, chegou um carro da polícia, de dentro do qual tiraram rudemente uma
jovem mulher com cerca de vinte e cinco anos. Afirmou que era muito bonita, do
gênero daquelas que desafiam as leis de Deus. Amarraram as mãos à mulher. A
cabeça pendia-lhe para a frente. Um homem leu à multidão, em jeito de comunicação
oficial, o crime de que era acusada. Utilizaram um farrapo para a amordaçar,
prendendo-lhe, em seguida, um capuz preto à cabeça.
Obrigaram-na a ajoelhar-se. O carrasco, um homem corpulento, açoitou-a
cinqüenta vezes nas costas.
Chegou um caminhão carregado de pedras, que foram empilhadas num monte
enorme.
O homem que lera o crime informou a multidão de que a execução podia
começar.
Omar disse que o grupo de pessoas, na sua maioria homens, correu para as
pedras e começou a atirá-las à mulher. A culpada não tardou a ficar prostrada no chão
e o seu corpo contorceu-se espasmodicamente. Ornar disse que as pedras
continuaram a embater no seu corpo por tempo indeterminado. De vez em quando
havia uma interrupção, na altura em que o médico ia verificar o pulso da mulher. Cerca
de duas horas depois, o médico declarou, finalmente, a mulher morta e o
apedrejamento cessou.
A enfermeira inglesa interrompeu o triste fio dos meus pensamentos ao voltar a
entrar nos meus aposentos tomada de grande agitação. A polícia e os mutawas
estavam a levar a rapariga para a execução. Disse-me que se me colocasse no umbral
da porta, poderia ver-lhe o rosto pois não ia velada. Ouvi grande agitação no corredor.
Prendi rapidamente o meu véu em torno do rosto. Os meus pés impeliram o meu corpo
para a frente sem reflexão ou intenção.
A condenada tinha, no meio dos guardas altos e austeros que a levavam para
cumprir o seu destino, um aspecto frágil e infantil. Encostara o queixo ao peito e assim
era difícil ver a sua expressão. No entanto, percebi que era uma jovem bonita, uma
jovem que se teria transformado numa grande beleza se lhe tivessem dado a
oportunidade de crescer. Apavorada, olhou fugidiamente para o mar de rostos que a
mirava com grande curiosidade.
Vi que se sentia profundamente aterrorizada. Não estava presente ninguém de
família para a acompanhar à sua sepultura, apenas desconhecidos que a levavam para
a mais tenebrosa das viagens.
Voltei para a minha suíte. Agarrei ternamente no meu bebê e refleti, aliviada, no
alívio que sentia por ele não pertencer ao sexo fraco. Fixei, maravilhada, o olhar no
rosto minúsculo. Apoiaria ele o sistema que tão duro era para a sua mãe e irmãs,
fortalecendo-o, portanto? Considerei a possibilidade de, na minha terra, todos os bebês
do sexo feminino serem exterminados à nascença. Talvez a nossa ausência
amenizasse a atitude inflexível dos nossos homens. Estremeci e no meu cérebro
formou-se uma dúvida: como poderiam as mães proteger as filhas das leis daquela
terra?
Os olhos da decidida enfermeira inglesa estavam manejados de lágrimas.
Fungou e perguntou por que razão eu, uma princesa, não intervirá naquela loucura.
Respondi-lhe que não estava nas minhas mãos ajudar a condenada; na minha terra, as
mulheres não têm voz ativa, nem mesmo as que pertencem à família real. Cheia de
mágoa, disse à enfermeira que a rapariga não só morreria à hora marcada como a sua
morte seria horrenda e a sua passagem por esta vida não ficaria registrada. Pensei,
amargamente, naqueles que eram os verdadeiros culpados e continuavam livres,
alheios à morte trágica que tinham provocado.
Karim chegou com um rosto alegre. Organizara o nosso regresso ao palácio
como se tratasse de um plano de guerra. Escoltas policiais facilitaram a nossa
passagem através do trânsito intenso da cidade de Riade em crescimento. Quando
relatei o incidente no hospital, Karim mandou-me calar. Não desejava ouvir falar em
tristezas quando levava o filho nos braços, rumo ao seu destino de príncipe numa terra
que amparava e acarinhava os da sua estirpe.
Os meus sentimentos pelo meu marido ressentiram-se ao ver a indiferença com
que reagia ao destino de uma jovem inferior. Suspirei profundamente e senti-me só e
receosa do que as minhas futuras filhas pudessem vir a enfrentar nos anos vindouros.
A MORTE DE UM REI
O QUARTO DA MULHER
SEGUNDA ESPOSA
FUGA
Epílogo
Posfácio
APêNDICE A
O ALCORÃO' E AS MULHERES
As relações sexuais durante o Ramadã, altura em que todo o bom muçulmano jejua e
se abstém de prazeres durante as horas do dia.
Versículo do Alcorão:
Sura 11, 183
Praticai desde então jejum completo até à noite e não devereis coabitar com elas
quando estiverdes recolhidos nas mesquitas. Eis os preceitos de Deus, de que não vos
aproximareis [para transgredir! Assim apresenta Deus os seus prodígios aos homens,
para que eles sejam piedosos.
TEMA
Versículo do Alcorão:
Sura II, 220
Não desposareis mulheres politeístas, enquanto não aceitarem a unidade de Deus.
Uma escrava crente vale mais que uma mulher [livre], mesmo que esta vos agrade
mais. Não dareis aos politeístas as mulheres da vossa família como esposas. Um
escravo crente vale mais que um politeísta [livre], mesmo que este vos agrade mais.
TEMA
Versículo do Alcorão:
Sura II, 222
Hão de interrogar-te sobre as regras das mulheres. Responde-lhes: "Isso é um
inconveniente"; separai-vos então das vossas mulheres durante o tempo das regras e
não devereis unir-vos de novo a elas senão quando estiverem purificadas, tal como
Deus vos ordenou.
TEMA
Versículo do Alcorão:
Sura II, 228
As repudiadas aguardarão que decorram três períodos de regras antes de voltarem a
casar e não lhes é permitido ocultar o que Deus criou nas suas entranhas, se crerem
em Deus e no Dia Derradeiro. É mais justo que os maridos as retomem quando se
encontram em tal estado, se desejarem a reconciliação; elas, então, devem proceder
com os próprios maridos como estes agiram com elas, com honestidade. Mas os
maridos conservam sobre elas graus de superioridade. Deus é poderoso e sábio.
TEMA
Depois de um homem se divorciar de uma mulher, pode voltar a casar com ela se esta
casou e se divorciou de outro homem depois disso. Se ele se divorciar dela uma
segunda vez, fica proibido de voltar a desposá-la.
Versículos do Alcorão:
ura 11, 229
O repúdio faz-se duas vezes. Conservareis a mulher com humanidade e repudiá-la-eis
com generosidade.
TEMA
O versículo seguinte fala do número de mulheres que um homem pode desposar e dos
dotes que lhes são devidos.
Versículo do Alcorão:
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Se receais não ser justo com os órfãos, desposai então duas, ou três, ou quatro, de
entre as mulheres que vos agradarem. Se continuais a recear não serdes justos,
desposai uma só ou o que possuírem as vossas mãos direitas; isto vos ajudará a não
vos afastardes da justiça. Dai às mulheres os seus dotes, como dom espontâneo; se,
porém, lhes apetecer ceder-vos voluntariamente uma parte, gozai-a com alegria e
saúde.
TEMA
Versículo do Alcorão:
Sura IV, 12
Deus ordena-vos, quando se fizer a partilha dos vossos bens pelos vossos filhos, que
cada rapaz receba as partes de duas raparigas.
TEMA
São dadas instruções concretas sobre a atitude a ter em relação a mulheres que
infrinjam a lei contra os crimes sexuais. Um segundo versículo fala da ação a ser
empreendida contra os homens nas mesmas circunstâncias.
Versículos do Alcorão:
Sura IV, 19
Se as vossas mulheres cometerem a ação infame, chamai de entre vós quatro
testemunhas contra elas: se os depoimentos forem realmente contra elas, fechai-as em
casa até que a
morte as leve ou que Deus lhes conceda algum meio de salvação.
Sura IV, 20
Se dois dos vossos homens cometerem a ação infame, castigamos a ambos; mas se
eles se arrependerem e se corrigirem, deixai-os tranqüilos, porque Deus é benigno e
misericordioso.
TEMA
Versículos do Alcorão:
Sura IV, 26
Não deveis casar com as mulheres que forem esposas dos vossos pais, exceto se
tratar de caso já consumado. É uma torpeza, é uma coisa abominável e um mau
costume.
Sura IV, 27
Fica-vos proibido casar com as vossas mães, com vossas filhas, com vossas irmãs,
com vossas tias paternas e maternas, com as filhas dos vossos irmãos e as filhas das
vossas irmãs, com vossas amas, vossas irmãs de leite, com as mães das vossas
mulheres, com as vossas enteadas que forem entregues à vossa tutoria e nascidas de
mulheres com quem haveis coabitado. Mas, se haveis coabitado com estas, não há
nenhum crime em casar com aquelas. Não deveis também casar com as mulheres dos
vossos filhos, gerados por vós, nem deveis unir-vos ao mesmo tempo a duas irmãs, a
não ser que se trate de caso já resolvido. Deus será indulgente e misericordioso.
Sura IV, 28
Não deveis também casar com mulheres casadas, exceto com as que estão nas
vossas mãos direitas.
TEMA
Um muçulmano não pode ir fazer as suas orações a Deus se tocou numa mulher. Há
um versículo especial, aconselhando-o no que deve fazer, caso tenha estado com uma
mulher mas não dispusesse de água para se lavar.
Versículo do Alcorão:
Sura IV, 46
][... ou terdes estado com mulheres, esfregai a cara e as mãos com areia fina, se não
houver água. Deus é indulgente e misericordioso.
TEMA
Crimes sexuais contra Deus. Está reservado um código severo para quem comete tais
atos.
Sura XX1V, 2
à fornicadora e ao fornicador dareis cem chicotadas a cada um. Que em nome da
religião de Deus a compaixão não vos detenha, se creis em Deus e no Dia Derradeiro.
Sura XXIV, 3
O fornicador só desposará uma fornicadora ou uma idólatra e a fornicadora só
desposará um fornicador ou um idólatra. Isso é interdito aos crentes.
TEMA
Versículo do Alcorão:
Sura XXIV, 4
Os que acusam mulheres honestas, sem quatro testemunhas, serão castigados com
oitenta chicotadas e não mais admitíreis o seu depoimento, pois são perversos
TEMA
Versículos do Alcorão:
Sura XXIV, 6
Os que acusarem as suas mulheres e que só eles se apresentarem como testemunhas
terão de jurar quatro vezes perante Deus que dizem a verdade.
Sura XX1V, 7
E ainda a quinta vez a invocar para si a maldição de Deus, se mentirem.
TEMA
Versículo do Alcorão:
Sura XX1V, 31
Dize às crentes que baixem os olhos e observem a continência, que só deixem ver
objetos exteriores, que cubram os seus com véus, que só mostrem o seus ornamentos
a seus maridos ou a seus pais, ou aos pais de seus maridos, a seus filhos ou aos filhos
de seus maridos, a seus irmãos ou aos filhos de seus irmãos, aos filhos de suas irmãs,
ou às suas mulheres, ou aos escravos ou servos varões sem desejos [carnais], ou às
crianças que ainda não distingam os órgãos sexuais da mulher.
TEMA
O Alcorão diz que a mulher já mais idosa pode pôr de parte as suas peças de roupa
exteriores (véu, abaaya). O certo é que na Arábia, as mulheres andam sempre veladas,
independentemente da idade.
Versículo do Alcorão:
Sura XX1V, 59
As mulheres que já não podem [conceber] e que já não esperam casar, podem, sem
inconveniente, tirar os véus, sem que, no entanto, mostrem os seus ornamentos, mas
sempre será melhor absterem-se disso. Deus ouve e sabe tudo.
APENDICE B
CRIMES DE HUDUd)
CRIMES DE TAZIR
CRIMES DE QISAS
Se uma pessoa for considerada culpada de crimes contra uma vítima ou sua família, a
família ultrajada tem o direito de retaliar. A condenação é decidida pela família em
privado, e o castigo é levado a cabo igualmente em particular.
Se houver um assassínio, a família tem o direito de matar o assassino da mesma
maneira que o seu ente querido foi morto ou através de qualquer outro método
escolhido.
Se um membro da família for morto acidentalmente (como, por exemplo, num acidente
de automóvel), a família do falecido pode receber "dinheiro de sangue". Outrora,
era com os camelos que se pagava essa obrigação. Hoje em dia, a moeda de troca é o
dinheiro. Há somas estipuladas para as várias circunstâncias: o pagamento pode ir dos
120000 aos 300000 reais sauditas. Se a vítima for mulher, a soma é metade da
estabelecida para um homem.
Se uma pessoa mutilar alguma parte do corpo de outra, a família da vítima pode fazer
o mesmo ao culpado.
APENDICE C
GLOSSáRIO
O significado destas palavras árabes, expressões e lugares tem sido explicado, de uma
maneira geral, à medida que aparecem no texto.
Abaaya - Túnica comprida e preta que as mulheres da Arábia Saudita usam por cima
da roupa.
Bahrein - País formado por uma ilha que está ligada à Arábia Saudita por uma estrada.
Damman - A cidade da Arábia Saudita onde o petróleo apareceu pela primeira vez.
Gidá - Linda cidade da Arábia Saudita situada nas margens do mar Vermelho. Gidá é
famosa pela população expatriada que nada e mergulha nas suas águas límpidas.
Malaz - Quarteirão residencial em Riade, famoso pelos sauditas ricos que nele vivem.
Manama - Capital do Bahreín, um país-ilha ligado à Arábia Saudita por uma estrada.
Meca - A cidade mais sagrada do islamismo, onde Deus revelou a sua vontade ao
profeta Maomé. É para ela que, todos os anos, convergem milhares de peregrinos
muçulmanos.
Mismaak - A fortaleza, em Riade, que o clã Rashid utilizou na batalha de 1902 e que
regressou às mãos dos AI-Saud.
Najd - Nome tradicional da Arábia Central. É nesta região que se situa a cidade de
Riade. Os habitantes são conhecidos, de um modo geral, pelo seu comportamento
conservador. Os membros da família AI-Saud são Naydis.
Nasiriyah - Zona residencial em Riade, habitada por membros da família real e sauditas
excepcionalmente ricos.
Rub al-Khali - O grande deserto que ocupa o canto sudoeste da Arábia Saudita.
Sunna - As tradições do islamismo tal como foram transmitidas pelo profeta Maomé.
Thobe - Vestimenta comprida, parecida com uma camisa, usada pelos Sauditas. A
tradição manda que a thobe seja feita de algodão branco, mas durante os meses frios
do
Inverno é freqüente usarem-na num tecido mais grosso e com uma tonalidade mais
escura. (Assim que os filhos varões aprendem a andar, vestem-lhes thobes e pequenos
"toucados" idênticos aos dos pais.)
Ulemá - Estudiosos da religião islâmica que regulam a vida religiosa na Arábia Saudita.
APENDICE D
CRONOLOGIA
610 - O profeta Maomé tem uma visão onde Deus o declara Seu mensageiro. Nasce o
islamismo.
622 - O profeta Maomé escapa a uma multidão enfurecido em Meca e foge para
Medina. Esta fuga passou a ser conhecida como "a Hégira", a grande crise na missão
de Maomé na Terra. O calendário muçulmano principia nessa data e tem o nome de
Hégira em honra dessa viagem.
650 - Os conselhos do profeta Maomé são reunidos e escritos. Este livro, conhecido
pelo Alcorão, onde está registrada a palavra de Deus tal como a transmitiu a Maomé, é
a bíblia sagrada dos muçulmanos.
1744 - Mohammed AI-Saud faz uma aliança com Mohammed AI-Wahhab, um professor
que procede a uma interpretação rigorosa do Alcorão. As forças combinadas de um
guerreiro e de um intelectual dão origem a um sistema rígido de punição para as
pessoas.
1876 - Nasce Abdul Aziz ibn Saud, avô de Sultana e fundador do reino.
Setembro de 1901 - Abdul Aziz, então com vinte e cinco anos de idade, sai do Kuwait
em direção a Riade, juntamente com os seus guerreiros.
Janeiro de 1902 - Abdul Aziz e os seus homens conquistam Riade. Começa a nova
dinastia AI-Saud.
1915 - Abdul Aziz AI-Saud faz um acordo com o Governo britânico, passando a receber
cinco mil libras mensais para combater os Turcos.
Maio de 1933 - A América ganha concessões (em detrimento dos Ingleses) para
explorar o petróleo na Arábia Saudita.
1934 - A Arábia Saudita entra em guerra com o Iémen; a paz é assinada um mês
depois.
15 de Maio de 1934 - Em retaliação pela guerra com o lémen, o rei Abdul Aziz é
atacado por três iemenitas, armados de punhais, numa mesquita de Meca. Saud, o seu
filho mais velho, atira-se para a frente do pai e é ferido em vez deste.
1944 - A extração de petróleo no reino sobe a oito mil barris por ano.
1946 - A exploração petrolífera expande-se até aos sessenta mil barris por ano.
1948 - Nasce a Rádio Meca, a primeira estação de rádio no reino, apesar da feroz
oposição da Ulemá (polícia religiosa).
1952 - O rei Abdul Aziz proíbe a importação de bebidas alcoólicas para os infiéis.
Novembro de 1953 - O rei Abdul Aziz, avô de Sultana, morre com setenta e sete anos.
Novembro de 1953 - O filho mais velho do falecido rei, Saud, de cinqüenta e um anos,
sobe ao trono. Faiçal, seu meio-irmão, torna-se príncipe herdeiro.
1956 - Sultana nasce na família de AI-Saud, sendo a décima filha de seus pais.
Março de 1958 - Com o reino a atravessar grave crise financeira, o príncipe herdeiro
Faiçal assume o controlo administrativo do Governo.
Dezembro de 1960 - O rei Saud afasta o irmão dos assuntos administrativos e assume
o controlo do Governo.
3 de Novembro de 1964 - O rei Saud abdica e abandona o reino, partindo para Beirute.
Faiçal é eleito rei e Khaled, seu meio-irmão, príncipe herdeiro.
Setembro de 1965 - O príncipe Khaled ibn Musaid, sobrinho do rei Faiçal, é abatido
enquanto lidera uma manifestação armada contra a abertura da estação televisiva.
Junho de 1967 - Tem início a Guerra dos Seis Dias entre Israel e os seus vizinhos
árabes. A Arábia Saudita envia forças.
Fevereiro de 1969 - O ex-rei deposto, Saud ibn Abdul Aziz, morre em Atenas, Grécia,
depois de gastar mais de quinze milhões de dólares em cada ano do seu exílio.
20 de Outubro de 1973 - Furioso com o auxilio militar prestado pela América a Israel, o
rei Faiçal anuncia uma guerra santa e um embargo petrolífero contra aquele país.
25 de Março de 1975 - O rei Faiçal é assassinado pelo sobrinho, o príncipe Faiçal ibn
Musaid, irmão do príncipe que foi abatido a tiro no decorrer de um motim em 1965.
Junho de 1982 - O rei Khaled morre com um ataque cardíaco. Falid, seu meio-irmão,
ocupa o seu lugar; Abdullah, seu meio-irmão, é nomeado príncipe herdeiro.
FIM