Jean P. Sasson - Sultana, A Vida de Uma Princesa Árabe

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JEAN P.

SASSON
SULTANA
A VIDA DE UMA PRINCESA ÁRABE
Este livro é dedicado a Jack W. Creech

Ele teve a certeza, desde o primeiro instante, de que era importante contar a história de
Sultana. Só ele conheceu a angústia por que eu passei ao reviver a minha velha
amizade com Sultana escrevendo este livro, e foi ele, mais que qualquer outra pessoa,
que me ofereceu generosamente a sua amizade e apoio emocional nos tempos difíceis
durante os quais este livro se foi transformando, lentamente, em realidade.
A história da princesa Sultana é verdadeira. Embora as palavras sejam da autoria da
escritora, a história é da princesa. As chocantes tragédias humanas aqui descritas são
factuais.
Os nomes foram mudados e procedeu-se a uma ligeira alteração de vários
acontecimentos, tendo em vista a proteção de indivíduos identificáveis.
Nem a escritora, ao contar esta história, nem a princesa tiveram a menor intenção
de denegrir a religião Islâmica.

Agradecimentos:

Assim que me decidi a escrever este livro, li e reli os apontamentos e diários de Sultana
que esta me confiara. Ao selecionar as aventuras da sua vida espantosa que retrataria
neste livro, senti a excitação de um detetive. E, no entanto, sentia sobre mim o peso da
responsabilidade solene que era ter de pôr cuidadosamente de parte os
acontecimentos que pudessem trazer-lhe problemas. As palavras são minhas mas a
história é de Sultana.
Estou-te grata, Sultana, por teres a coragem de partilhar a tua história com o
mundo. Ao assumires essa posição temerária, contribuíste para humanizar os árabes,
um povo mal compreendido pelo Ocidente. Tenho a esperança de que, ao revelar os
pormenores íntimos da tua vida na condição de mulher árabe, em todo o seu
sofrimento e glória, a tua história possa ajudar a desmistificar os numerosos
estereótipos negativos que se têm, por toda à parte, em relação ao teu povo. Quem ler
a tua história não poderá deixar de compreender que, tal como em qualquer país do
mundo, existem coisas boas e más. Nós, no Ocidente, ouvimos falar só mal da Arábia
Saudita. Eu sei, tal como tu, que apesar dos costumes primitivos que, cruelmente,
cerceiam a liberdade da mulher na tua terra, existem muitas árabes, como tu,
merecedoras do nosso respeito e admiração pela sua luta contra séculos de opressão.
Agradeço ainda, aqui mais perto de mim, a Liza Dawson, a minha editora na William
Morrow, que se apaixonou pela história de Sultana mal leu o manuscrito pela primeira
vez. Os seus comentários e sugestões contribuíram para enriquecê-la.
Também desejo agradecer a Peter Miller, o meu agente literário. Apreciei o
entusiasmo inabalável que demonstrou em relação a este livro.
O meu obrigado muito especial para Pat L. Creech, licenciada em Filosofia, que,
desde o início ajudou-me a dar forma a este livro.
Eu teria achado a narração da história de Sultana muito mais difícil se não fossem o
amor e o apoio da minha família. Fico particularmente grata a meus pais, Neatwood e
Mary Parks. Esse amor e esse apoio foram ainda mais profundamente sentidos no
decorrer da redação deste livro tão pessoal.

FATOS NACIONAIS

NOME OFICIAL: Reino da Arábia Saudita.


SUPERFíCIE: 2149690 quilômetros quadrados.
POPULAÇÃO: Aproximadamente 14 milhões de habitantes.
GOVERNO: Monarquia absolutista dominada pela família Saud. O rei nomeia um
Conselho de Ministros para o assistir na formulação da política.
RELIGIÃO: Islamismo; 95 % da população professa o islamismo sunita, e 5 % o
islamismo xiita, concentrando-se esta na Província Leste.
LíNGUAS: Árabe. O inglês é muito falado nos círculos comerciais.
CLIMA: Quente e seco. As temperaturas podem chegar aos 54 C nos verões quentes.
Durante os meses de Inverno, podem variar entre os 10 C e os 27 C.
MOEDA: Real saudita. Dólar = 3,73.
ECONOMIA: A riqueza baseia-se nas exportações petrolíferas. A Arábia Saudita é o
maior produtor dentro da OPEP. Um sexto do total mundial de petróleo é produzido
neste país.

Arábia SAUDitA E PAíSES VIZINHOS

Mar Mediterrâneo
Israel
Iraque
Irão
Egito
Kuwait
Qatar
Emirados Árabes Unidos
Sudão
Etiópia
Arábia

FACTOS SOBRE PAíSES VIZINHOS DA Arábia SAUDITA

EGIPTO: População: 54 milhões; Religião: islamismo sunita (90%); cristianismo copta


(10%)

ISRAEL: População: 4,7 milhões; Religião: judaísmo (82%), islamismo sunita (14%),
cristianismo (2,5%), outras (1,5%);

Jordânia.: População: 3,2 milhões (apenas na Área Leste); Religião: islamismo sunita
(93%), cristianismo (5%), outras (2%);
IRAQUE: População: 17,9 milhões; Religião: islamismo xiita (54%), islamismo sunita
(43%), cristianismo (3%)

KUWAIT: População: 2 milhões; Religião: islamismo sunita (63%), islamismo xiita


(28%), cristianismo (7%), hinduísmo (2%)

BAHREIN: População: 510000; Religião: islamismo xiita (48%), islamismo sunita (38%),
cristianismo (7%), outras (7%)

QATAR: População: 450000; Religião: islamismo sunita (93%), cristianismo (5%),


outras (2%)

Emirados Árabes Unidos: População: 1,9 milhões; Religião: islamismo sunita (74%),
islamismo xiita (21%), cristianismo (5%)

IRÃO: População: 56,7 milhões; Religião: islamismo xiita (92%), islamismo sunita
(7%), outras (1%)

OMÃ: População: 1,5 milhões; Religião: islamismo ibadi (69%), islamismo sunita
(18%), hinduísmo (13%)

IÉMEN: População: 11,8 milhões; Religião: islamismo sunita (53%), islamismo xiita
(47%)

Etiópia: População: 54 milhões; Religião: ortodoxismo etíope (53%), islamismo (32%),


tradicional (15%)

SUDÃO: População: 28,6 milhões; Religião: islamismo sunita (74%), tradicional (16%)
cristianismo (8%), outras (2%).

INTRODUÇÃO

Sou princesa numa terra onde os reis ainda governam. Devem conhecer-me apenas
por Sultana. Não posso revelar o meu nome verdadeiro, pois receio que possa
acontecer algo de mal a mim e à minha família pelo que vos irei contar.
Sou uma princesa saudita, membro da família real da Casa de AI-Saud, os atuais
governantes do Reino da Arábia Saudita. A minha qualidade de mulher num país
governado por homens não me permite falar-vos diretamente. Pedi a uma amiga e
escritora americana, Jean Sasson, que me ouvisse e, posteriormente, contasse a
minha história.
Nasci livre, no entanto hoje estou presa por grilhões. Invisíveis, mantiveram-se
lassos e passaram despercebidos até a idade da razão reduzir a minha vida a um
estreito segmento de medo.
Não me restam recordações dos primeiros quatro anos. Imagino que tenha rido e
brincado como todas as outras crianças pequenas, abençoadamente alheia ao fato de
o meu valor, dada a ausência de um órgão reprodutor masculino, não ser significativo
na minha terra natal.
Para compreenderem a minha vida, é necessário conhecerem aqueles que vieram
antes de mim. Nós, os AI-Saud do presente, somos a sexta geração que descende dos
primeiros emirados do Nadj, as terras beduínas que hoje fazem parte do Reino da
Arábia Saudita. Os primeiros AI-Saud eram homens cujos sonhos não os levaram além
da conquista de terras desérticas circunstantes e da aventura que eram os ataques
noturnos a tribos vizinhas.
Em 1891, a calamidade abateu-se sobre o clã AI-Saud quando este foi derrotado
em batalha e se viu obrigado a abandonar o Nadj. Abdul Aziz, que um dia seria meu
avô, era uma criança na altura. Foi com dificuldade que sobreviveu às agruras daquela
fuga pelo deserto. Mais tarde, recordaria a profunda vergonha que sentira quando o pai
lhe ordenara que se enfiasse num alforje grande que depois foi pendurado na sela do
seu camelo. Nura, sua irmã, ia encolhida num alforje pendurado no outro lado do
camelo que transportava seu pai. Amargurado por ser demasiado jovem para combater
e ajudar, assim, a salvar o seu lar, o jovem espreitou, irado, pela abertura do saco,
enquanto ia balançando ao ritmo das passadas do animal. Humilhado pela derrota
sofrida pela família, ao ver desaparecer de vista a beleza assombrosa da sua terra
natal, contaria, mais tarde, que aquele momento representara um ponto de viragem na
sua jovem vida. Após dois meses de travessia nômade do deserto, a família dos
AI-Saud encontrou refúgio no país do Kuwait. A vida de um refugiado era tão detestável
para Abdul Aziz que este jurou, ainda muito novo, reconquistar as areias do deserto
que outrora haviam sido o seu lar.
Assim, em Setembro de 1901, Abdul Aziz, então com vinte e cinco anos, regressou
à nossa terra. A 16 de Janeiro de 1902, depois de meses de grandes provações, ele e
os seus homens derrotaram estrondosamente os Rashid, seus inimigos. Nos anos que
se seguiram, a necessidade de consolidar a lealdade das tribos do deserto levou Abdul
Aziz a desposar mais de trezentas mulheres, as quais, a seu tempo, deram à luz mais
de cinqüenta filhos varões e oitenta filhas. Os filhos das esposas favoritas foram
honrosamente distinguidos; esses filhos, agora adultos, constituem o próprio centro do
poder na nossa terra. A mais amada de todas as esposas de Abdul Aziz foi Hassa
Sudairi. Os filhos de Hassa estão hoje à cabeça das forças combinadas dos AI-Saud e
governam o reino formado pelo pai. Fahd, um desses filhos, é hoje o nosso rei.
Muitos filhos e filhas desposaram primos dos ramos proeminentes da nossa família,
tal como os AI-Turki, os Jiluwi e os AI-Kabir. Os príncipes que resultaram destas uniões
e chegaram aos nossos dias encontram-se entre o número dos AI-Saud mais
influentes.
Presentemente, corre o ano de 1991, a nossa numerosa família é formada por
cerca de vinte e um mil membros. Deste número, aproximadamente mil são príncipes e
princesas que descendem diretamente do nosso grande líder, o rei Abdul Aziz.
Eu, Sultana, sou uma dessas descendentes diretas.
A minha primeira recordação nítida é de violência. Tinha eu quatro anos de
idade quando fui esbofeteada no rosto pela minha mãe, uma mulher que, normalmente,
era meiga. Porquê? Porque imitara o meu pai nas suas orações. Em vez de orar a
Meca, fi-lo ao meu irmão de seis anos, Ali. Tomei-o por um deus. Como poderia
imaginar que não era? Já lá vão trinta e um anos e não esqueci ainda a dor pungente
que aquela bofetada me provocou e o início das dúvidas na minha cabeça: se o meu
irmão não era um deus, porque o tratavam como tal?
Numa família de dez filhas e um filho, o medo imperava na nossa casa: medo de
que a morte levasse o único varão vivo; medo de que não viessem mais filhos varões;
medo de que Deus tivesse amaldiçoado a nossa família com filhas. A minha mãe vivia
cada gravidez aterrorizada, rezando por um filho macho, receando que viesse uma
filha. Estas foram nascendo, umas atrás das outras, até perfazerem dez.
O maior receio da minha mãe tornou-se realidade quando o meu pai procurou uma
esposa mais jovem com a finalidade de esta lhe dar mais filhos preciosos. A nova
esposa presenteou-o com três rapazes que nasceram mortos, antes de ele se divorciar
dela. Finalmente, no entanto, a quarta esposa ofereceu a meu pai uma abundância de
varões.O meu irmão mais velho, porém, seria sempre o primogênito e, como tal, o
chefe supremo. Eu, à semelhança das minhas irmãs, fingia venerá-lo, mas a verdade é
que o odiava como só os oprimidos sabem fazer.
A minha mãe casou com o meu pai aos doze anos. Ele tinha vinte. Estava-se em
1946 o ano em que a Segunda Guerra Mundial interrompera a produção petrolífera, O
petróleo, a força vital da Arábia Saudita do presente, ainda não trouxera, na altura,
grande riqueza à família de meu pai, os AI-Saud, no entanto o impacto que tinha sobre
os seus membros fazia-se sentir em pequenos pormenores. Os chefes das grandes
nações haviam começado a prestar vassalagem ao nosso rei. Winston Churchill, o
primeiro-ministro inglês, presenteara o rei Abdul Aziz com um luxuoso Rolls Royce.
Verde-metalizado, com um banco traseiro que fazia lembrar um trono: o automóvel
refulgia como uma jóia ao sol. Apesar de imponente, algo no automóvel o desiludiu
nitidamente, pois o rei ofereceu-o, depois de o inspecionar, a Abdullah, um dos seus
irmãos preferidos. Abdullah, que era tio e amigo chegado de meu pai, colocou-lhe o
automóvel à disposição para a sua viagem de lua-de-mel a Gidá. Ele aceitou, para
grande deleite de minha mãe, que nunca conhecera semelhante meio de transporte.
Em 1946 - deixando para trás séculos incontáveis -, o camelo era o meio de
transporte habitualmente usado no Médio Oriente. Passar-se-iam três décadas antes
de o saudita médio trocar o dorso de um camelo pelo conforto de um automóvel.
Assim, os meus pais atravessaram alegremente o deserto, durante sete dias e
sete noites, até chegarem a Gidá. Malogradamente, o meu pai, na sua pressa em partir
de Riade, esquecera-se da sua tenda; este descuido e a presença constante de vários
escravos levou a que o seu casamento só fosse consumado depois de chegarem a
Gidá. Aquela viagem poeirenta e cansativa tornou-se uma das recordações mais felizes
de minha mãe. Depois dela, dividiu sempre a sua vida entre "a altura anterior à viagem"
e "a altura a seguir à viagem". Em certa ocasião, disse-me que a viagem representara
o fim da sua juventude, pois era demasiado nova para compreender o que a esperava
no final da longa deslocação. Seus pais haviam morrido durante uma epidemia de
febre, deixando-a órfã aos oito anos. Aos doze casara com um homem temperamental,
propenso a crueldades tenebrosas. Não estava preparada para fazer outra coisa na
vida que não fosse servi-lo.
Após uma breve estada em Gidá, meus pais regressaram a Riade, pois era aí que a
família patriarcal dos AI-Saud dava continuidade à sua dinastia.
O meu pai revelou-se um homem impiedoso, e, como não podia deixar de ser,
minha mãe tornou-se uma mulher melancólica. A sua união trágica acabou por dar
origem a dezesseis filhos, dos quais onze sobreviveram a infâncias perigosas. Hoje, as
suas dez filhas levam vidas controladas pelos homens com quem casaram. O único
filho sobrevivente, um importante príncipe e homem de negócios saudita com quatro
esposas e numerosas amantes, leva uma vida de grande fausto e prazer.
As minhas leituras levaram-me a saber que sucessores mais civilizados de culturas
antigas sorriem diante da ignorância dos seus antepassados. à medida que a
civilização avança, o medo da liberdade individual é ultrapassado pelo esclarecimento.
A sociedade humana apressa-se, ansiosamente, a ir ao encontro do saber e da
mudança. Surpreendentemente, na terra dos meus antepassados pouco mudou desde
há um milhar de anos.
É certo que surgiram edifícios modernos, os cuidados de saúde mais avançados
estão à disposição de todos, no entanto a consideração pelas mulheres e pela sua
qualidade de vida continua a ser alvo de um encolher de ombros displicente.
É incorreto, porém, atribuir à nossa fé islâmica a responsabilidade pela posição
subalterna que a mulher ocupa na nossa sociedade. Embora o Alcorão determine que
a mulher vem a seguir ao homem, muito à semelhança da Bíblia, em que o homem é
autorizado a exercer o seu domínio sobre a mulher, o nosso profeta Maomé só
preconizou o bem e a justiça para quem pertence ao meu sexo. Os homens que vieram
depois de Maomé é que preferiram seguir os costumes e tradições da Idade das
Trevas, em vez de seguirem as palavras e o exemplo do Profeta. Este desprezava a
prática do infanticídio, um costume vulgar no seu tempo, segundo o qual as famílias se
livravam das meninas indesejadas. As próprias palavras do Profeta transmitem
veementemente a sua preocupação perante a possibilidade de as mulheres serem alvo
de maus tratos e indiferença:
"Que Deus conceda o Paraíso a quem teve uma filha e não a enterrou viva nem a
desprezou ou preferiu os filhos varões a ela."
No entanto, não há nada que os homens não façam nem tenham feito, nesta terra,
para assegurar o nascimento de uma prole masculina e não feminina. O valor de uma
criança nascida na Arábia Saudita ainda é medido pela ausência ou presença do órgão
reprodutor masculino.
Os homens do meu país acham que são o que conseguirem possuir. Na Arábia
Saudita, o orgulho da honra de um homem tem por base as suas mulheres, portanto
têm de fortalecer a sua autoridade e supervisão relativamente à sexualidade das suas
mulheres ou, então, enfrentar a vergonha pública. Convencidos de que as mulheres
não têm controlo sobre os seus próprios desejos sexuais, torna-se, assim, essencial
que o macho dominante guarde cuidadosamente a sexualidade da fêmea. Este
controlo absoluto sobre a mulher nada tem a ver com o amor, apenas com o medo de
que a honra masculina seja maculada.
A autoridade de um homem saudita não conhece limites; a sobrevivência da sua
mulher e filhos depende apenas da sua vontade. Na nossa casa, ele é a autoridade
máxima. Esta situação complexa principia na educação que os nossos rapazes
recebem. O rapaz é ensinado, desde muito novo, que as mulheres pouco valem: estas
existem apenas para seu conforto e conveniência. A criança testemunha o desdém
demonstrado por seu pai em relação à mãe e às irmãs; este desprezo indisfarçado faz
com que passe a desprezar todas as mulheres, impossibilitando a amizade com
alguém do sexo oposto. Ao ensinarem-lhe o papel de senhor sobre a escrava, é natural
que, ao ter idade suficiente para escolher companheira, a encare como um bem
pessoal e não em termos de igualdade.
Deste modo, as mulheres do meu país são ignoradas pelos seus pais, desprezadas
pelos irmãos e maltratadas pelos maridos. Este círculo é difícil de quebrar, pois os
homens que impõem esta vida às suas mulheres garantem a própria infelicidade
conjugal. Que homem poderá sentir-se verdadeiramente satisfeito rodeado de tanta
tristeza? É evidente que os homens do meu país procuram satisfazer-se em
casamentos sucessivos e arranjando, posteriormente, amantes atrás de amantes. Não
devem saber que a sua felicidade pode estar em sua própria casa, com uma mulher
que lhes seja igual. Ao tratarem as mulheres como escravas, como propriedade sua, os
homens passaram a ser tão infelizes como as mulheres que dominam, e tornaram o
amor e o verdadeiro companheirismo inacessível a ambos os sexos.
A história das nossas mulheres está enterrada por detrás do véu negro do
secretismo. Nem o nosso nascimento nem o nosso falecimento fica lavrado em
qualquer registro oficial. Embora o nascimento de filhos varões seja documentado em
registros familiares ou tribais, o das raparigas não consta em lado nenhum. A emoção
que vulgarmente se exprime diante do nascimento de uma menina é a de desgosto ou
vergonha. Embora os partos nos hospitais e os registros governamentais estejam a
aumentar de número, no campo, a maioria das crianças nasce em casa. O Governo da
Arábia Saudita não procede ao recenseamento da sua população.
Perguntei muitas vezes a mim mesma se o fato de nós, mulheres do deserto, não
sermos registradas nem à nascença nem na hora da morte, significará que não
existimos.Se ninguém sabe da nossa existência, não quererá isso dizer que não
viemos a este mundo?
Este fato, mais do que as injustiças que sofri na vida, levaram-me a assumir o risco
real que é contar a minha história. As mulheres do meu país podem estar escondidas
pelo véu e firmemente controladas pela nossa rígida sociedade patriarcal, mas a
mudança virá, pois o nosso sexo está farto da restrição de costumes. Ansiamos pela
nossa liberdade pessoal.
Com base nas minhas primeiras recordações e auxiliada pelo diário que comecei a
escrever aos onze anos, tentarei traçar-vos um retrato da minha vida como princesa na
Casa de AI-Saud. Farei por trazer ao de cima as vidas enterradas de outras mulheres
sauditas, dos milhões de mulheres vulgares que não nasceram na família real.
A minha paixão pela verdade é simples de explicar, pois sou uma dessas mulheres
que foram ignoradas pelo pai, desprezadas pelos irmãos e maltratadas pelo marido.
Não estou sozinha nesta situação. Existem muitas mais, iguaizinhas a mim, a quem
escapa a oportunidade de contar as suas histórias.
É raro a verdade escapar de um palácio saudita, devido ao grande secretismo que
reina na nossa sociedade, no entanto o que aqui disse e o que a autora escreveu neste
livro corresponde à verdade.

Infância

Ali deu-me uma bofetada que me atirou ao chão, mas eu recusei-me a entregar-lhe a
reluzente maçã vermelha que o cozinheiro paquistanês acabara de me dar. O rosto de
Ali começou a contorcer-se de raiva ao ver-me levar a maçã à boca e engolir,
rapidamente e sem mastigar, os pedaços enormes que lhe ia arrancando. Ao
recusar-me a ceder à sua prerrogativa superior de macho, cometera um ato grave e
sabia que em breve sofreria as conseqüências. Ali deu-me dois pontapés rápidos e
correu em busca de Oniar, um egípcio que trabalhava como motorista para o nosso pai.
As minhas irmãs tinham mais medo de Omar do que de Ali ou do meu pai.
Desapareceram no interior da vila, deixando-me sozinha para enfrentar a ira dos
homens da casa.
Momentos depois, Omar, seguido de Ali, entrava apressadamente pelo portão
lateral. Eu sabia que sairiam vitoriosos, pois os poucos anos que ainda vivera estavam
já cheios de precedentes. Aprendera, desde muito nova, que todos os desejos de Ali
tinham de ser satisfeitos. Ainda assim, engoli o último pedaço da maçã e fitei o meu
irmão com ar triunfante.
Debatendo-me, em vão, entre as mãos enormes de Ornar, fui erguida no ar e levada
para o gabinete do meu pai. Este desviou, relutantemente, os olhos do livro onde tinha
a sua contabilidade e lançou um olhar irritado à filha que, aparentemente, estava
sempre a aparecer-lhe pela frente, aborrecendo-o, ao mesmo tempo que, em
contrapartida, abria os braços à sua jóia mais preciosa: o filho mais velho.
Ali foi autorizado a falar, enquanto a mim proibiram-me que o fizesse. Dominada
pelo desejo de conquistar o amor e a aprovação de meu pai, senti a coragem renascer
em mim. Gritei o que, na verdade, se passara no incidente. Diante daquela explosão, o
meu pai e o meu irmão ficaram a olhar para mim de boca aberta, pois no meu mundo,
quem pertencia ao sexo feminino estava habituado a ficar resignadamente calado, sem
exprimir opiniões. Todas as mulheres aprendem, desde muito cedo, a manipular as
situações em vez de as enfrentar. O fogo que, outrora, ardia nos corações das
orgulhosas e impetuosas mulheres beduínas extinguiu-se; no lugar delas vêem-se hoje
mulheres submissas que poucas semelhanças apresentam já.
Quando me apercebi de que gritava, senti o medo convulsionar-me as entranhas.
Quando o meu pai se levantou da cadeira, as pernas tremeram-me e vi o movimento
do seu braço, porém não cheguei a sentir o golpe com que me agrediu o rosto.
Como castigo, todos os meus brinquedos foram dados a Ali. Para me ensinar que
os homens eram os meus senhores, o meu pai decidiu que Ali seria a única pessoa a
encher-me o prato às refeições. Ali, triunfante, dava-me as porções mais minúsculas e
os piores pedaços de carne. Todas as noites ia deitar-me esfomeada, pois Ali colocara
um guarda à minha porta e ordenara-lhe que me proibisse de receber comida da minha
mãe ou das minhas irmãs. Depois tentava-me, entrando no meu quarto à meia-noite,
carregado de pratos fumegantes de galinha cozinhada e arroz quente.
Por fim, Ali cansou-se da sua tortura, mas dessa altura em diante, ainda ele tinha
apenas nove anos, passou a ser o meu inimigo mais ferrenho. Embora eu ainda só
tivesse sete anos, "o incidente da maçã" fez com que me desse conta, pela primeira
vez, que eu não passava de uma fêmea ao sabor dos ímpetos masculinos. Via a
submissão sofrida da minha mãe e das minhas irmãs, no entanto continuava a
manter-me otimista e nunca duvidei de que, um dia, triunfaria e o meu sofrimento seria
compensado pela justiça autêntica. Esta determinação, que surgiu em tenra idade,
tornou-me a ovelha-negra da família.
Contudo, a minha infância também teve momentos agradáveis. Passei as minhas
horas mais felizes em casa da tia da minha mãe. Viúva, demasiado velha para
despertar a atenção e conseqüentes complicações por parte dos homens, tornara-se
então uma pessoa alegre e cheia de histórias maravilhosas dos seus tempos de jovem,
na época das batalhas tribais. Assistira ao nascimento da nossa nação, de modo que
nos encantava com as histórias de coragem do rei Abdul Aziz e dos seus seguidores.
Sentadas, de pernas cruzadas, sobre tapeçarias orientais, as minhas irmãs e eu
mordiscávamos pastéis de tâmara e bolinhos de amêndoa enquanto mergulhávamos
no drama das grandes vitórias alcançadas pelos nossos antepassados. A minha tia, ao
relatar-me as grandes façanhas dos AI-Saud em batalha, inspirou-me um novo orgulho
pela minha família.
Em 1891, a família da minha mãe acompanhara o clã AI-Saud na sua fuga de
Riade, após a derrota sofrida diante do clã Rashid. Dez anos mais tarde, os homens da
nossa família regressaram com Abdul Aziz e reconquistaram a terra; o irmão de minha
tia lutou ao lado de Abdul Aziz. Esta demonstração de lealdade valeu-lhe a entrada na
família real através dos casamentos das suas filhas. Estava montado o cenário para o
meu destino de princesa.
Na minha juventude, a minha família era privilegiada, embora não rica. Os
rendimentos provenientes da produção de petróleo asseguravam abundância de
alimentos e toda a assistência médica disponível, a qual parecia ser, na altura, o maior
dos luxos. Vivíamos numa vila ampla, feita de blocos de cimento e toda pintada de
branco. Todos os anos as tempestades de areia reduziam o branco a creme, mas os
escravos do meu pai voltavam a pintar obedientemente as pedras, substituindo o tom
de areia pelo branco. Os grossos muros de dez metros de altura que rodeavam o
nosso espaço sofriam o mesmo tipo de manutenção. O lar da infância a que me
habituei era uma mansão segundo os padrões ocidentais, no entanto, hoje vejo que,
comparada com as atuais exigências da realeza saudita, não passava de uma
habitação modesta.
Em criança, achava que a minha casa paterna era demasiado grande para ser
acolhedora. Os corredores, compridos, eram escuros e ameaçadores. Destes partiam
quartos de diversos formatos e tamanhos, escondendo os segredos da nossa vida.
Meu pai e Ali viviam nos aposentos destinados aos homens, no segundo piso. Eu tinha
o costume de ir espreitá-los, para satisfazer a minha curiosidade infantil. Reposteiros
de veludo vermelho-escuro tapavam a luz do Sol. A atmosfera pesada cheirava a
tabaco turco e a uísque. Dava uma olhadela tímida e apressava-me a voltar à área das
mulheres, no andar térreo, onde as minhas irmãs e eu ocupávamos uma vasta ala. O
quarto que eu partilhava com Sara dava para o jardim privado das mulheres. A minha
mãe mandara-o pintar de amarelo-vivo, tendo, por isso, o brilho de vida que tão
ausente estava do resto da vila.
Os criados e servos da família viviam em quartos minúsculos e pouco arejados, que
faziam parte de um edifício à parte, nas traseiras do jardim. Enquanto a nossa vila
dispunha de ar condicionado, as instalações dos trabalhadores não se encontravam
equipadas para suportar o clima quente do deserto. Lembro-me de ouvir as criadas e
os servos falarem do horror por que passavam quando chegava a hora de se deitarem.
O único alívio que tinham para o calor era a brisa gerada por pequenas ventoinhas
elétricas.
O meu pai dizia que se lhes pusesse ar condicionado nos quartos, dormiriam o dia
inteiro.
Omar era o único que dormia num pequeno quarto situado na casa principal. à
entrada da nossa vila estendia-se um longo cordão dourado. Este encontrava-se ligado
a um chocalho no quarto do motorista. Quando este era preciso, tocavam essa
campainha a chamá-lo; o seu som pô-lo-ia imediatamente de pé, quer fosse dia ou
noite, levando-o até à porta do quarto das minhas irmãs. Confesso que não foram
poucas as vezes em que puxei pelo cordão em plena sesta de Omar e a meio da noite.
Depois, a ofegar violentamente, precipitava-me para a minha cama e ficava quieta, qual
criança inocente profundamente adormecida. Uma noite encontrei a minha mãe à
minha espera quando voltava a correr para a cama. Com uma expressão de
desapontamento no rosto diante das maldades da filha mais nova, puxou-me uma
orelha e ameaçou contar ao meu pai. Mas nunca o fez.
Desde o tempo do meu avô que tínhamos ao nosso serviço uma família de escravos
sudaneses. A nossa população de escravos aumentava todos os anos, quando o
meu pai voltava de Haj, a peregrinação anual que os muçulmanos fazem a Meca,
trazendo mais crianças. Os peregrinos que iam do Sudão e da Nigéria vendiam os
filhos a sauditas abastados, a fim de poderem arranjar dinheiro para regressar às
respectivas pátrias. Uma vez sob os cuidados de meu pai, os escravos não eram
comprados e vendidos à maneira dos que eram negociados pelos Americanos;
participavam na vida doméstica e nos negócios do meu pai como se fossem seus. As
crianças eram nossas companheiras de brincadeira e não sentiam compulsão para a
subserviência. Em 1962, quando o nosso Governo libertou os escravos, a família
sudanesa que trabalhava para nós implorou ao meu pai que a deixasse continuar a
servi-lo. Ainda hoje vive em sua casa.
O meu pai manteve viva a memória do nosso bem-amado rei Abdul Aziz. Falava do
grande homem como se o visse todos os dias. Fiquei chocada, tinha então oito anos,
ao saber que o velho rei morrera em 1953, três anos antes de eu nascer!
Após a morte do nosso primeiro rei, o reino ficou em grande perigo, pois o sucessor
escolhido pelo velho rei, o seu filho Saud, não possuía, para grande pesar de todos,
qualidades de liderança, tendo dissipado a maior parte das riquezas provenientes do
petróleo em palácios, automóveis e adornos para as suas esposas. Daí que o nosso
país estivesse a resvalar para o caos político e econômico.
Recordo uma ocasião, corria o ano de 1963, em que os homens da família reinante
se reuniram em nossa casa. Na altura, eu era uma menina curiosa de sete anos. Omar,
o motorista do meu pai, irrompeu pelo jardim com ares de grande importância e gritou
às mulheres para que subissem ao piso de cima. Agitou as mãos na nossa direção
como se exorcizasse a casa de monstros, empurrando-nos escadaria acima qual
rebanho, até uma pequena sala de estar. Sara, a minha irmã mais velha, implorou à
minha mãe permissão para se esconder no balcão cheio de arabescos, a fim de poder
vislumbrar os nossos governantes a trabalhar, o que era raro. Embora víssemos os
nossos poderosos tios e primos em ocasionais reuniões familiares, nunca estávamos
presentes quando se tratava de assuntos de Estado importantes. Claro que, por altura
da menstruação de cada mulher e subseqüente recolhimento, o afastamento de
quaisquer membros do sexo masculino que não fossem os pais e irmãos era repentino
e total.
Levávamos uma vida de tal maneira enclausurada e entediante que até a nossa
mãe tinha pena de nós. Nesse dia chegou mesmo a juntar-se às filhas no andar do
corredor, para, através do balcão, espreitar e ouvir os homens que se encontravam na
ampla sala de estar, por baixo de nós. Eu, a mais nova, fiquei no colo da minha mãe.
Esta, como medida de precaução, tapou-me suavemente a boca com a mão. Se
fôssemos apanhadas, o meu pai ficaria furioso. As minhas irmãs e eu ficamos
fascinadas pela imponente parada dos irmãos, filhos, netos e sobrinhos do falecido rei.
Eram homens enormes, de túnicas esvoaçantes, que se juntaram com calma,
aparentando um ar profundamente digno e grave. O rosto estóico de Faiçal, o príncipe
herdeiro, chamou-nos a atenção. Nem mesmo os meus olhos inexperientes deixaram
de notar que parecia triste e terrivelmente acabrunhado. Por volta de 1963, todos os
sauditas tinham consciência de que o príncipe Faiçal geria o país com competência,
enquanto o rei Saud falhava rotundamente nessa missão. Sussurrava-se que o reinado
de Saud era apenas um símbolo da unidade da família tão ferozmente defendida.
Sentia-se que se tratava de uma situação estranha, injusta para o país e para o
príncipe Faiçal, e que não deveria durar muito mais tempo.
O príncipe Faiçal mantinha-se afastado do grupo. A sua voz habitualmente
tranqüila sobrepôs-se ao burburinho, a fim de pedir permissão para se pronunciar sobre
questões que eram de grande importância para a família e o país. O príncipe Faiçal
receava que o trono, tão difícil de conquistar, em breve se perdesse. Afirmou que o
povo estava farto dos excessos da família real e que se falava não só em afastar o seu
irmão devido à sua decadência, mas mesmo em desistir de todo do clã AI-Saud e
escolher, em alternativa, um homem de Deus para a liderança.
O príncipe Faiçal fitou duramente os príncipes mais novos ao declarar, em voz
clara e segura, que a indiferença destes pelo estilo de vida tradicional dos crentes
beduínos faria cair o trono. Disse que se sentia muito triste por serem tão poucos os
membros mais jovens da família real dispostos a trabalhar, contentando-se em viver
com o montante mensal que lhes vinha dos proventos do petróleo. Seguiu-se uma
pausa prolongada, enquanto esperava que os irmãos e parentes se pronunciassem.
Como nenhum tinha nada a dizer, acrescentou que se ele, Faiçal, controlasse a riqueza
petrolífera, o fluxo de dinheiro para os príncipes seria suspenso e arranjar-se-lhes-ia
trabalho. Dirigiu um aceno de cabeça a seu irmão Mohammed e sentou-se com um
suspiro. Reparei, do balcão, na agitação nervosa que percorreu os vários primos mais
novos. Embora a mesada mais alta não ultrapassasse os dez mil dólares, os homens
do clã AI-Saud estavam a enriquecer cada vez mais, graças à terra. A Arábia Saudita é
um país grande e a maioria das propriedades pertence à nossa família. Além disso, os
contratos de construção não são assinados sem que tragam algum benefício aos
nossos.
O príncipe Mohammed, o terceiro irmão mais velho vivo, tomou a palavra e, do
que conseguimos perceber, o rei Saud insistia agora no retorno ao poder absoluto que
lhe fora retirado em 1958. Corriam rumores de que andaria pelo interior do país a falar
contra seu irmão Faiçal. Era um momento devastador para a família de AI-Saud, pois
os seus membros tinham formado sempre urna frente unida diante dos cidadãos da
Arábia Saudita.
Lembro-me de meu pai ter contado a história que explicava o fato de o filho
mais velho vivo, Mohammed, ter sido preterido, na sucessão ao trono, em favor de
Faiçal.
O velho rei declarara que, se a propensão de Mohammed fosse apoiada pelo
poder da coroa, muitos homens morreriam, pois o seu temperamento violento era
sobejamente conhecido.
A minha atenção foi de novo atraída pela reunião e ouvi o príncipe Mohammed
dizer que era a monarquia em si que estava em perigo; abordou a possibilidade de se
destronar o rei e colocar o príncipe Faiçal no seu lugar. Este soltou uma exclamação
tão sonora que o som paralisou Mohammed. Faiçal falou calmamente, dando a
impressão de que o fazia chorando. Disse aos parentes que prometera ao seu adorado
pai, no leito da morte, jamais se opor à governação do seu irmão. Em nenhuma
circunstância poderia quebrar a sua promessa, nem mesmo que Saud levasse o país à
bancarrota. Se o destronamento de Saud se tornasse o cerne da reunião, nesse caso
ele, Faiçal, teria de se retirar. Seguiu-se um burburinho de vozes, enquanto os homens
da nossa família concordavam que Mohammed, o irmão mais velho a seguir a Faiçal,
devia tentar chamar o nosso rei à razão. Vimos os homens empunhar as xícaras de
café e declarar o seu voto de lealdade ao desejo de seu pai de que todos os filhos de
Abdul Aziz enfrentassem o mundo como uma força coesa. Quando a tradicional troca
de despedidas começou, vimos os homens sair ordeira e silenciosamente da sala, tal
como tinham entrado.
Mal eu sabia que aquela reunião era o principio do fim da governação do rei
Saud, meu tio. Assim, a nossa família e os cidadãos do país viram, entristecidos, os
filhos de
Abdul Aziz serem forçados a afastar um dos seus da sua terra. O tio Saud ficara
tão desesperado que, no fim, enviara uma mensagem ameaçadora ao irmão, o príncipe
Faiçal.
Este último ato determinara o seu destino, pois era impensável um irmão
insultar ou ameaçar outro. Não estava escrito em parte nenhuma, mas o certo é que
uma das regras de ouro dos beduínos era um irmão jamais virar-se contra o outro.
Gerou-se uma crise febril no seio da família e no país. Mais tarde, porem, viemos a
saber que a atitude ponderada do príncipe Faiçal é que sustivera a revolução
pretendida pelo tio Saud. Afastou-se e deixou que fossem os seus
irmãos e os religiosos a decidir qual o melhor programa de ação a seguir pelo nosso
jovem país. Ao fazê-lo, retirou o dramatismo pessoal ao movimento, de maneira a que
o fato de serem homens de Estado a tomar as decisões apropriadas se tornasse
menos transitório.
Dois dias mais tarde, soubemos da abdicação de uma das mulheres do tio Saud,
pois o nosso pai encontrava-se ausente na altura, juntamente com os seus irmãos e
primos.
Uma das nossas tias preferidas, casada com o tio Saud, veio até nossa casa
presa de grande agitação. Fiquei chocada ao vê-la arrancar o véu do rosto em frente
dos nossos criados do sexo masculino. Acabara de chegar do palácio de Nasriyah, a
casa do deserto do tio Saud (um edifício que, na minha mente, mostrava bem as
maravilhas que o dinheiro pode comprar, sendo um exemplo ruinoso do que estava
errado no nosso país).
As minhas irmãs e eu juntamo-nos à volta da minha mãe, pois a minha tia
descontrolara-se completamente e gritava acusações contra a família. Estava
particularmente furiosa com o príncipe herdeiro Faiçal, culpando-o pelo dilema em que
o marido se encontrava. Contou-nos que os cunhados tinham conspirado para tirar o
trono que fora dado pelo pai ao escolhido, Saud. Disse, chorosa, que o ulemá, o
conselho religioso, fora até ao palácio naquela mesma manhã e informara o seu marido
de que devia abdicar da coroa.
Fiquei quase em estado de choque pela cena desenrolada diante de mim, pois
raramente assistíamos a situações de confronto na nossa sociedade. Temos o hábito
de falar suavemente e concordar com quem está diante de nós, enfrentando depois as
dificuldades de maneira secreta. Quando a nossa tia, que era uma linda mulher, de
longos caracóis negros, começou a puxar pelos cabelos e a arrancar as dispendiosas
pérolas que trazia ao pescoço, percebi que o assunto era sério. Por fim, a minha mãe
conseguiu acalmá-la, levando-a até à sala de estar para tomar um chá calmante. As
minhas irmãs juntaram-se em frente da porta fechada e tentaram ouvir o que
sussurravam. Eu afastei as mãos-cheias de cabelo com o dedo grande do pé e
baixei-me para apanhar as pérolas enormes e macias. Deparei com uma quantidade
razoável, que, à cautela, fui guardar dentro de um vaso vazio que estava no corredor.
A minha mãe acompanhou a nossa tia em lágrimas até ao Mercedes preto que a
aguardava. Todas nós vimos o motorista ganhar velocidade, levando a sua
inconsolável passageira. Nunca mais voltamos a ver a nossa tia, pois esta
acompanhou o tio Saud e o seu séqüito até ao exílio. Mas a nossa mãe
aconselhou-nos a não pensar menos bem do nosso tio Faiçal. Disse-nos que a tia
falara daquela maneira por estar apaixonada por um homem bom e generoso, o
problema era que um homem assim não tinha de ser, obrigatoriamente, um bom
governante. Contou-nos que o tio Faiçal estava a conduzir o país para uma era estável
e próspera e que, ao fazê-lo, provocara a ira dos menos capazes.
A minha mãe, apesar de não ser uma pessoa culta, pelos padrões ocidentais, mostrava
grande sabedoria e ponderação.

FAMÍLIA

A minha mãe, encorajada por Mat, mulher do rei Faiçal, conseguiu proporcionar
alguma educação às filhas, apesar da resistência de meu pai, que, durante muitos
anos, se recusou sequer a considerar essa possibilidade. As minhas cinco irmãs mais
velhas não receberam outra aprendizagem que não fosse o estudo do Alcorão, com
uma professora particular que ia a nossa casa. Durante duas horas, seis tardes por
semana, repetiam as palavras de Fátima, a nossa professora egípcia, uma mulher
severa com cerca de quarenta e cinco anos. Esta pedira, certa vez, permissão ao meu
pai para incluir ciência, história e matemática na educação das minhas irmãs, porém
este respondera com um firme "não", de modo que somente a récita das palavras do
Profeta e nada mais que as palavras deste continuaram a soar pela nossa vila. à
medida que os anos foram passando, o nosso pai viu que muitas das famílias reais
estavam a permitir às suas filhas os benefícios da educação. Com a vinda da grande
riqueza petrolífera, que aliviou quase todas as mulheres sauditas, com exceção das
que viviam nas tribos beduínas e nas aldeias rurais, de qualquer tipo de trabalho, a
inatividade e o tédio tornaram-se um problema nacional. Os membros da família real
são muito mais abastados do que a maioria dos sauditas, no entanto, a abundância
proporcionada pelo petróleo trouxe servos do Extremo Oriente e de outras regiões
pobres a todos os lares.
Todas as crianças precisam de ser estimuladas, porém eu e as minhas irmãs
pouco ou nada tínhamos para fazer além de brincar nos nossos quartos ou deambular
ociosamente pelos jardins reservados às mulheres. Não havia aonde ir e pouco que
fazer, pois, nos meus tempos de criança, a cidade nem sequer dispunha de um jardim
zoológico ou de um parque.
A minha mãe, cansada de cinco filhas estudantes de energia, pensou que a
escola ajudaria a expandir as suas mentes, aliviando-a. Até que, por fim, conseguiu,
com a ajuda da tia Mat, levar o nosso pai a aceder, embora pouco convictamente. Foi
assim que as cinco filhas mais novas da nossa família, incluindo Sara e eu, usufruímos
da nova era em que se aceitava, com relutância, a educação das mulheres.
A nossa primeira sala de aulas foi em casa de um parente real. Sete famílias do
clã de AI-Saud davam trabalho a uma jovem de Abu Dabí, uma cidade vizinha nos
Emirados Árabes. O nosso pequeno grupo de alunas, dezesseis ao todo, era
conhecido, naquele tempo, como um "Kutab", um método de ensino em grupo, então
popular, para raparigas. Todos os dias nos reuníamos, das nove da manhã às duas da
tarde, e de terça a sábado, em casa da nossa prima real. Foi aí que Sara, a minha irmã
preferida, mostrou, pela primeira vez, a sua inteligência rara. Era muito mais rápida do
que as raparigas da sua idade. A professora chegou mesmo a perguntar-lhe se já fizera
o ensino básico, abanando a cabeça de admiração ao saber que não.
A nossa instrutora tivera a sorte de ter um pai com idéias modernas, que a
mandara estudar em Inglaterra. A deformidade de que padecia, um pé boto, fizera com
que não encontrasse ninguém disposto a desposá-la, portanto optara por um caminho
de liberdade e independência pessoais. Foi com um sorriso que nos disse que o seu pé
defeituoso fora uma dádiva de Deus para assegurar que a sua mente também não se
deformasse.
Embora estivesse em casa da nossa prima real (na Arábia Saudita ainda era
impensável uma mulher viver sozinha), ganhava um salário e tomava as suas próprias
decisões sem influências exteriores.
Eu gostava dela apenas porque era gentil e paciente quando eu me esquecia de
fazer os trabalhos de casa. Ao contrário de Sara, eu não era do tipo estudioso, de
modo que me sentia contente por não ver a professora demonstrar desilusão perante
as minhas falhas. Sentia-me muito mais interessada em desenhar do que em estudar
matemática, em cantar do que em fazer as minhas orações. De vez em quando, Sara
dava-me um beliscão quando me comportava mal, mas ao ver que eu me punha a
uivar, lançando a confusão na classe, desistiu de me corrigir. Não havia dúvida de que
a nossa professora fazia jus ao nome que lhe fora dado vinte e sete anos antes -
Sakina, o que, em árabe, significa "tranqüilidade".
A menina Sakina disse à minha mãe que Sara era a aluna mais brilhante que
alguma vez tivera. Depois de eu me pôr aos pulos e gritar "e eu"?, pensou durante um
bom bocado antes de responder. Com um sorriso, disse:
- E Sultana virá a ser, de certeza, famosa.
Nessa noite, ao jantar, a mãe transmitiu orgulhosamente ao meu pai a
observação que Miss Sakina fizera sobre Sara. Este, que ficou nitidamente satisfeito,
sorriu à minha irmã. A minha mãe não reprimiu o seu deleite, mas nesse momento o
meu pai observou, cruelmente, que nunca nenhuma criança nascida exclusivamente do
seu ventre poderia ter tido capacidade para aprender. Tão-pouco lhe atribuía a menor
contribuição na inteligência de Ali, que era o melhor aluno da sua classe numa
moderna escola secundária da cidade. Presumia, assim, que as capacidades
intelectuais dos filhos eram herdadas exclusivamente do pai.
Ainda hoje estremeço de constrangimento quando vejo as minhas irmãs mais
velhas tentarem somar ou subtrair. Continuo a dirigir pequenas orações de
agradecimento à minha tia 11fat por ter contribuído para mudar a vida de tantas
mulheres sauditas.
Corria o Verão de 1932 quando o meu tio Faiçal viajou até à Turquia; nesse
país, apaixonou-se por uma excepcional jovem chamada lffat ai Thunayan. Ao saber
que o jovem príncipe saudita estava de visita a Constantinopla, a jovem lffat e sua mãe
abordaram-no, tendo por motivo a disputa de uma propriedade que pertencera ao seu
falecido pai. (Os Thunayan eram, originariamente, sauditas, mas tinham sido levados
para a Turquia pelos Otomanos, durante o prolongado tempo em que governaram a
área). Extasiado pela beleza de Iffat, Faiçal convidou-a a ir, mais a mãe, até à Arábia
Saudita, a fim de aí encontrar solução para o problema da propriedade em questão.
Não só lhe deu a dita propriedade como também a desposou. Mais tarde diria que fora
a decisão mais sábia jamais tomada na sua vida. A minha mãe disse que o tio Faiçal
saltara de mulher em mulher, qual homem possesso, até encontrar Iffat.
Durante os anos do reinado do tio Faiçal, Iffat tornou-se a força motriz da
educação das raparigas. Sem os seus esforços, as mulheres sauditas não poderiam,
hoje, freqüentar uma sala de aulas. Fiquei encantada com a força do seu caráter e
declarei que, quando fosse crescida, seria como ela. Tivera mesmo a coragem de
contratar uma preceptora inglesa para os filhos, que eram, de toda a prole real, os que
a vasta riqueza menos afetava. Infelizmente, muitos dos primos reais perderam-se com
o súbito acesso aos bens materiais proporcionados pela abastança. A minha mãe
costumava dizer que o beduíno sobrevivera ao vazio árido do deserto, mas que nós
nunca sairíamos incólumes da enorme riqueza oferecida pelos campos de petróleo. As
tranqüilas façanhas da mente e as devotas convicções religiosas dos seus pais não
atraíam as simpatias da vasta maioria dos AI-Saud mais jovens. Estou convencido de
que a decadência dos filhos desta geração se deveu às facilidades de que gozavam, e
que a sua grande fortuna os privou de quaisquer ambições ou satisfações autênticas.
Não restam dúvidas de que a debilidade da nossa monarquia na Arábia Saudita é
provocada pelo nosso apego à dissipação. Receio que a nossa ruína esteja aí.
A maior parte da minha infância foi passada a viajar de cidade em cidade na
minha terra. O sangue beduíno nômade corre nas veias de todos os sauditas, de modo
que, mal regressávamos de uma viagem, começávamos a programar a seguinte. Nós,
Sauditas, há muito que não pastoreamos rebanhos, no entanto não conseguimos
deixar de almejar paragens mais verdejantes.
Riade era a sede do nosso Governo, mas nenhum dos membros da família de
AI-Saud gostou em particular da cidade; queixavam-se constantemente da monotonia
da vida em Riade. Era demasiado quente e seca, os homens ligados à religião eram
presumidos até mais não, e as noites eram excessivamente frias. A maioria da família
preferia Gidá ou Taif. Gidá, com os seus portos antigos, estava mais aberta à mudança
e à moderação. Nela, todos nós respirávamos mais facilmente com o ar marítimo.
Geralmente passávamos os meses de Dezembro a Fevereiro em Gidá.
Voltávamos a Riade para aí ficarmos Março, Abril e Maio. O calor dos meses estivais
levava-nos para as montanhas de Taif, entre Junho e Setembro. Depois
regressávamos a Riade para o mês de Outubro e Novembro. Como é evidente,
passávamos o mês do Ramadã e as duas semanas de Haj em Meca, a nossa cidade
santa.
Por volta dos meus doze anos, corria o ano de 1968, meu pai tornara-se uma
pessoa extremamente rica. Apesar da sua abastança, era um dos AI-Saud menos
gastadores. Mas construiu a cada uma das suas quatro famílias palácios em Riade,
Gidá, Taif e Espanha. Os palácios eram exatamente iguais uns aos outros em cada
cidade, do tom das carpetes ao mobiliário escolhido. O meu pai detestava as
mudanças e queria ter a sensação de estar na mesma casa mesmo quando se
deslocava de avião de cidade em cidade.
Lembro-me de o ouvir ordenar à minha mãe que comprasse tudo igual para
todas elas, incluindo a roupa interior das crianças. Não queria que a família se desse
ao trabalho de fazer malas. Eu achava esquisito, sempre que entrava no meu quarto
em Gidá ou Riade, encontrar roupas idênticas penduradas em guarda-fatos iguais. Os
meus livros e os meus brinquedos eram comprados aos quatro, sendo cada um
colocado em cada palácio.
A minha mãe raramente se queixava, mas quando o meu pai comprou quatro
Porsches vermelhos iguais para o meu irmão Ali, que na altura tinha só catorze anos,
não pôde deixar de barafustar que era uma vergonha - um autêntico esbanjamento -
quando havia tantos pobres no mundo. Mas, quando se tratava de Ali, não se olhava a
despesas.
Ao chegar aos dez anos, Ali recebeu o seu primeiro Rolex de ouro. Eu fiquei
particularmente aborrecida, pois pedira ao meu pai que me oferecesse uma grossa
bracelete de ouro que vira no souq (mercado), o que me fora recusado com
brusquidão. Durante a segunda semana em que Ali se pavoneou com o seu Rolex,
reparei que o deixava esquecido em cima da mesa que ficava ao lado da piscina.
Dominada pela inveja, peguei numa pedra e reduzi o relógio a pedaços.
Dessa vez a minha maldade não foi descoberta e tive grande prazer em ver o
meu pai repreender Ali por ser descuidado com os objetos que lhe pertenciam. Mas,
claro, passada uma semana ou duas já ele recebia novo Rolex, e o meu ressentimento
infantil voltava a instalar-se dentro de mim com toda a força. Era freqüente a minha
mãe falar-me acerca do ódio que eu sentia pelo meu irmão.
Mulher sábia, via bem que, mesmo quando me curvava perante o inevitável, eu
não deixava de me sentir revoltada. Eu fora, na qualidade de mais nova da família, a
mais mimada das filhas pela minha mãe, irmãs e outros familiares. Ao olhar para trás, é
difícil negar que eu tenha sido mimada até mais não. Por ser pequena para a idade, em
comparação com o resto das minhas irmãs, que eram altas e de estrutura larga, fui
tratada como um bebe ao longo dos anos da minha infância. Todas elas eram caladas
e contidas, como ficava bem a princesa saudita. EU barulhenta e indisciplinada, pouco
me importando com a minha imagem real. Como lhes devo ter dado cabo da paciência!
Mas, mesmo hoje, não tenho uma única irmã que não fosse capaz de vir
imediatamente em minha defesa ao menor sinal de perigo.
Contrastando tristemente com esta realidade, eu representava, para o meu pai,
a última de muitas desilusões. Por isso passei a minha infância a tentar ganhar o seu
afeto.
Por fim, desesperei de conquistar o seu amor e clamei por qualquer atenção da
parte dele, mesmo que fosse sob a forma de castigo pelos meus destemperos.
Imaginava que, se o meu pai olhasse suficientes vezes para mim, reconheceria os
meus traços específicos e acabaria por dedicar à filha o mesmo amor que tinha por Ali.
Mas os meus métodos truculentos acabaram por fazê-lo passar da indiferença a uma
antipatia indisfarçada.
A minha mãe conformara-se com o fato de a terra onde nascêramos ser um
lugar destinado ao desentendimento entre os sexos. Ainda criança, com o mundo à
minha frente, faltava-me andar muito antes de chegar a essa conclusão.
Ao recordar o passado, imagino que Ali também tivesse qualidades além de
defeitos, no entanto era-me difícil ultrapassar o maior destes: a crueldade. Via-o
martirizar o filho deficiente do nosso jardineiro. A pobre criança possuía braços
compridos e pernas de formato estranho. Era freqüente, quando Ali recebia a visita dos
rapazes seus amigos, mandar chamar o pobre Sami e ordenar-lhe que "andasse à
macaco". Ali nunca reparou na expressão patética do rosto de Sami nem nas lágrimas
que lhe escorriam pela cara.
Quando Ali encontrava gatos bebês, tirava-os à mãe e fechava-os,
comprazendo-se em ouvir os miados aflitivos da gata que tentava, em vão, alcançar os
filhos. Ninguém da casa se atrevia a contrariá-lo, pois o meu pai não via mal nenhum
nos atos cruéis do filho.
Depois de uma intervenção particularmente comovente da minha mãe
relativamente aos meus sentimentos por Ali, decidi experimentar o método saudita da
"manipulação" em vez da confrontação com o meu irmão. Além disso, a minha mãe
utilizava os desejos de Deus como sua plataforma, uma fórmula admirável para
convencer as crianças a mudar de atitude. Finalmente convenci-me, graças à influência
da minha mãe, de que os meus modos poderiam trazer-me grandes dissabores.
Uma semana depois, as minhas intenções caíam por terra diante do
comportamento pusilânime de Ali. As minhas irmãs e eu havíamos encontrado um
cachorrinho que se perdera da mãe. O bichinho gania, esfomeado. Excitadíssimas com
o achado, corremos a buscar biberão de boneca, que enchemos com leite de cabra
morno. Fazíamos turnos entre nós, para o alimentarmos. Dias depois, o cãozinho já
saltitava, gordinho. Vestíamo-lo com trapos e ensinamo-lo a sentar-se no nosso
carrinho de bonecas.
Se bem que a maioria dos muçulmanos não aprecie cães, é rara a pessoa
capaz de maltratar um animal bebê seja de que espécie for. Até a nossa mãe, uma
muçulmana devota, sorria perante as brincadeiras do cachorro.
Certa tarde, passeávamos nós o Basem, que em árabe significa "cara
sorridente, no carrinho, quando encontramos Ali por acaso, na companhia dos amigos.
Ao sentir o entusiasmo destes, Ali resolveu tomar posse do cão. As minhas irmãs e eu
choramos e debatemo-nos quando ele tentou arrancar-nos Basem dos braços. O nosso
pai ouviu o barulho e saiu do seu gabinete. Assim que Ali lhe disse que queria o
cachorro, ordenou-nos que lho entregássemos. Nada do que dissemos ou fizemos o
fez mudar de idéias. Ali queria o cachorro: Ali teria o cachorro.
Com as lágrimas a correrem-nos pelo rosto, ficamos a ver Ali afastar-se
arrogantemente, com o Basem debaixo do braço. A possibilidade de amar o meu irmão
perdeu-se para sempre, e o meu ódio ganhou contornos inabaláveis quando me
contaram que Ali depressa se fartou dos ganidos de Basem e, numa visita aos amigos,
atirou o cachorrinho pela janela do carro em movimento.

A MINHA IRMA SARA

Senti-me muito triste ao encontrar Sara, a minha irmã preferida, a chorar nos
braços da minha mãe. É a nona filha viva dos meus pais, três anos mais velha que eu.
Somente
o nascimento de Ali a separa de mim. Era o décimo sexto aniversário de Sara e esta
devia mostrar alegria, no entanto a minha mãe acabara de lhe transmitir novidades do
nosso pai.
Sara usava o véu desde que fora menstruada, dois anos antes. O véu relegara
a para o anonimato e em breve deixara de falar nos seus sonhos de infância de
grandes feitos.
Distanciou-se de mim, a sua irmã mais nova que ainda não precisava de se
preocupar com a obrigatoriedade do véu. A frieza que acompanhara o afastamento de
Sara fez-me ter saudades dos bons momentos que partilháramos na infância. De
repente percebi que só se dá pela felicidade quando esta nos falta, pois só soube que
fôramos felizes quando se me deparou a tristeza de Sara.
Sara era linda, muito mais bela do que eu ou alguma das minhas irmãs. A sua
notável beleza tornara-se uma maldição, pois muitos homens tinham ouvido falar dela
através das suas mães e irmãs e agora desejavam desposá-la. Sara era alta e magra e
possuía uma pele clara e acetinada. Os seus longos cabelos negros faziam a inveja de
todas as irmãs.
Apesar da sua beleza natural, Sara era genuinamente meiga e adorada por
todos os que a conheciam. Infelizmente, Sara não só não fora contemplada com a
maldição que acompanha as grandes belezas como também era excepcionalmente
inteligente. Na nossa terra, a inteligência numa mulher assegura a sua futura
infelicidade, pois jamais terá onde aplicar o seu gênio.
Sara desejava estudar arte em Itália e ser a primeira pessoa a abrir uma galeria
de arte em Gidá. Trabalhava nesse sentido desde os doze anos de idade. Tinha o
quarto atravancado de livros sobre os grandes mestres. Sara fez a minha cabeça andar
à roda com descrições da magnífica arte na Europa. Pouco antes do anúncio dos
esponsais, remexia eu à sucapa nas suas coisas quando encontrei uma lista dos
lugares que tencionava visitar em Florença, Veneza e Milão.
Foi com enorme tristeza que vim a saber que os sonhos de Sara jamais se
concretizariam. Ainda que seja verdade que a maioria dos casamentos na minha terra
é orientada pelas mulheres mais velhas da família, na minha, quem tomava todo o tipo
de decisões era o pai. Este decidira, fazia muito tempo, que a sua filha mais bonita
casaria com um homem de elevada situação social e riqueza.
Pois bem, o homem que ele escolhera para desposar a sua filha mais desejável
era um membro de uma família de comerciantes de Gidá com inegável influência
financeira na nossa família. O noivo fora eleito em vista exclusiva de negócios
passados e futuros.
Tinha sessenta e dois anos de idade; Sara seria a sua terceira esposa. Embora
ela nunca tivesse visto o velho, este ouvira falar da sua grande beleza através das
mulheres da sua família e estava ansioso por marcar a data do casamento. A minha
mãe tentara intervir a favor de Sara, mas meu pai, como era seu hábito, não mostrara a
menor emoção diante das lágrimas da filha. De modo que Sara soubera, naquele dia,
do seu casamento. Minha mãe ordenou-me que saísse do quarto, mas estava de
costas; fiz de conta que obedecia, arrastando os pés e batendo com a porta.
Esgueirei-me para dentro da porta aberta de um armário e chorei silenciosamente ao
ouvir a minha irmã amaldiçoar o nosso pai, a nossa terra e a nossa cultura. Ela chorava
tão violentamente que perdi a maior parte das suas palavras, no entanto ouvi-a
declarar, nitidamente, que iria ser sacrificada como um cordeiro.
A minha mãe também chorou, porém não podia consolar Sara, pois sabia que o
marido tinha todo o direito de dispor das suas filhas para os casamentos que muito
bem entendesse. Seis das dez já estavam casadas com homens escolhidos por ele. A
minha mãe sabia que as restantes quatro seguiriam o mesmo destino sombrio; não
havia poder na terra capaz de o impedir.
A minha mãe ouviu-me mexer dentro do armário. Olhou-me com severidade e
sacudiu a cabeça quando me viu, no entanto não fez menção de me expulsar do
quarto. Mandou-me ir buscar toalhas molhadas em água fria e depois voltou a focar a
sua atenção em Sara. Quando voltei, refrescou a testa a esta e reconfortou-a até
adormecer. Ficou a olhar para a jovem filha durante vários minutos antes de, por fim,
se levantar com ar fatigado. Suspirou profunda e tristemente, pegou-me na mão e
levou-me até à cozinha.
Embora não fossem horas de comer e a cozinheira estivesse a descansar,
preparou-me um prato com bolo e um copo de leite frio. Eu tinha treze anos mas era
pequena para a idade; aninhou-me no seu colo durante muito tempo.
Infelizmente, as lágrimas de Sara só serviram para endurecer o coração do nosso pai.
Ouvi-a, escondida, suplicar-lhe. O desgosto desequilibrara-a de tal maneira que acusou
o nosso pai de odiar as mulheres. Recitou-lhe, raivosamente, um verso de Buda: "A
vitória gera ódio, pois os vencidos são infelizes ...” O nosso pai, de costas hirtas pela
ira, virou-se e afastou-se. Sara gritou-lhe que mais valia não ter nascido, pois a dor
sobrepusera-se sempre à felicidade na sua vida. O nosso pai respondeu, em voz
desagradável, que lhe anteciparia a data do casamento para evitar prolongar-lhe a dor
da expectativa.
Normalmente, o meu pai vinha até à nossa vila de quinze em quinze dias. Os
homens que cultivam o islamismo e têm quatro mulheres, distribuem eqüitativamente
as suas nobres, de maneira a que cada esposa e respectivos filhos desfrutem de
período de tempo igual. Quando um homem se recusa a ir ter com a sua mulher, a
situação é grave, funciona como uma forma de castigo. A agitação era tão grande na
nossa vila por causa do desespero de Sara que o pai instruiu a nossa mãe, que, na sua
qualidade de primeira esposa, era a mais importante, para informar as suas outras três
mulheres de que dividiria o seu tempo entre elas, abstendo-se de estar na nossa casa.
Antes de sair da vila, meu pai ordenou secamente à minha mãe que fizesse
desaparecer os ressentimentos febris à filha e que a orientasse tranqüilamente para o
seu destino, que, nas suas palavras, era o de uma "esposa obediente e boa mãe".
Mal me recordo do casamento das minhas outras irmãs. Lembro-me vagamente
de lágrimas, mas era muito nova e ainda não tomara consciência do trauma emocional
que era casar com um desconhecido. Mas hoje sou capaz de fechar os olhos e reviver
cada pormenor dos acontecimentos que ocorreram durante os meses que antecederam
o casamento de Sara, a cerimônia em si e os tristes fato que tiveram lugar ao longo das
semanas que se seguiram.
Eu tinha fama de ser a criança difícil da família, a filha que mais esgotava a
paciência dos meus pais. Voluntariosa e indomável, provocava o caos no seio do nosso
lar. Fui eu quem deitou areia no motor do Mercedes novo de Ali; tirei, à sucapa,
dinheiro da carteira do meu pai; enterrei a coleção de moedas de ouro de Ali no pátio
das traseiras; deitava cobras verdes e lagartos horríveis para dentro da piscina da
família sempre que apanhava Ali a dormir no seu colchão flutuante.
Sara, com a sua serenidade e obediência, era a filha perfeita, além de ter tido
notas excelentes nos estudos. Apesar de a idolatrar, achava-a uma fraca. A minha
irmã, porém, surpreendeu-nos a todos nas semanas anteriores ao seu casamento.
Aparentemente possuía uma força interior oculta que lhe dava coragem, pois
telefonava diariamente para o escritório do nosso pai e deixava-lhe recados a dizer que
não se casaria. Chegou mesmo a ligar para o local de trabalho do homem a quem
estava prometida e deixar recado à secretária indiana deste, de que o achava um velho
nojento e que ele devia desposar mulheres e não raparigas. Ela deve, certamente, ter
pensado duas vezes antes de transmitir a mensagem ao patrão, pois os mares não se
dividiram e as montanhas não desabaram. Decidida, Sara telefonou de novo e pediu
para falar pessoalmente com o indivíduo! Este encontrava-se ausente. Sara foi
informada de que ficaria em Paris algumas semanas. O pai, farto do comportamento da
filha, mandou cortar os nossos telefones. Sara ficou confinada ao seu quarto.
A realidade que aguardava a minha irmã estava cada vez mais próxima. O dia
do casamento chegou. Duas semanas de pranto e lamentações não tinham conseguido
diminuir a beleza de Sara. Quando muito, haviam-na até acentuado, tornando-a quase
translúcida, uma criatura celestial não fadada para este mundo. A perda de peso
tomou-lhe os olhos ainda maiores e as suas feições quase pareciam talhadas a cinzel.
Os olhos de Sara pareciam imensos e as enormes pupilas negras deixavam
transparecer o que lhe ia na alma. O que eu via era medo.
As nossas irmãs mais velhas, assim como várias primas e tias, chegaram às
primeiras horas do dia do casamento, para prepararem a noiva para o noivo. A minha
presença indesejada escapou à atenção das mulheres, pois mantive-me sentada,
completamente imóvel, a um canto de um vasto quarto de vestir que fora adaptado
para os preparativos da noiva.
As mulheres que tomavam conta dos vários pormenores relacionados com o
casamento eram, nada mais nada menos, do que quinze. A primeira cerimônia, a
halawa, foi levada a cabo pela minha mãe e pela tia mais velha. Todos os pêlos do
corpo de Sara tinham de ser removidos, à exceção das sobrancelhas e do cabelo. Na
cozinha, uma mistura especial feita à base de açúcar, água de rosas e sumo de limão,
que seria espalhada pelo corpo da noiva, fervia em lume brando. Assim que a pasta
pegajosa secasse sobre a pele de Sara, seria retirada, levando consigo todas as
pilosidades corporais da noiva. O aroma era adocicado, mas os gritos de dor
fizeram-me estremecer de medo.
Preparou-se hena para uma última passagem pelos caracóis luxuriantes de
Sara; o seu cabelo ficaria a brilhar, cheio de matizes luminosos. As unhas foram
pintadas de vermelho-vivo, da cor do sangue, refleti sombriamente. O vestido de noiva,
em renda cor-de-rosa, estava pendurado ao pé da porta. Sobre o tampo do toucador
viam-se, amontoados, o obrigatório colar de diamantes com a pulseira e os brincos a
condizer. As jóias, apesar de terem chegado fazia semanas e fossem a prenda do
noivo, não tinham merecido um único olhar de Sara.
Quando uma noiva saudita está feliz, o quarto dos preparativos enche-se com o
som de risadas e da expectativa ansiosa. Os ânimos, para o casamento de Sara, eram
sombrios; dava a impressão de que as auxiliares preparavam o seu corpo, antes, para
a sepultura. Todas falavam através de sussurros. Sara não reagia a nada. Tendo em
conta as suas reações determinadas nas últimas semanas, eu estava a achá-la
estranhamente conformada. Mais tarde, vim a perceber a razão da espécie de estado
de transe em que mergulhara.
O pai, receoso de que Sara humilhasse a família declarando as suas objeções
em voz alta, ou até mesmo insultando o noivo, ordenara a um dos médicos
paquistaneses do palácio que a injetasse com um poderoso tranqüilizante que
exercesse efeito durante todo o dia. Depois vim a descobrir que o mesmo médico dera
ao noivo o mesmo tranqüilizante sob a forma de comprimidos, a fim de este os dar a
Sara. Disseram-lhe que a noiva estava muito excitada com o casamento, e o remédio
destinava-se a aquietar-lhe o estômago sensível. Como o noivo nunca vira Sara, nos
dias que se seguiram deve tê-la achado uma jovem invulgarmente dócil e tranqüila.
Mas o certo é que muitos homens de idade casam, no meu país, com rapariguinhas;
tenho a certeza de que estão acostumados ao terror das suas jovens noivas.
O rufar dos tambores assinalou a chegada dos convidados. As mulheres
acabaram, finalmente, de preparar Sara. Enfiaram-lhe o delicado vestido pela cabeça,
puxaram-lhe o fecho e calçaram-lhe as sandálias rosa. A minha mãe prendeu-lhe o
colar de diamantes ao pescoço. Eu declarei, alto e bom som, que era o mesmo que
uma corda para se enforcar. Uma das minhas tias deu-me uma pequena pancada na
cabeça e outra puxou-me as orelhas, porém Sara não proferiu um som. Ficamos todas
a olhar para ela, caladas e cheias de admiração. Nunca víramos noiva tão bonita.
No pátio das traseiras fora erguida uma enorme tenda, para a cerimônia. O
jardim encontrava-se inundado de flores vindas da Holanda. O local, cheio de luzinhas
coloridas penduradas, estava espetacular. Deslumbrada pelo esplendor, esqueci, por
momentos, o horror da situação.
A tenda já transbordava de convidados. As mulheres da família real, literalmente
vergadas sob o peso de diamantes, rubis e esmeraldas, partilhavam um evento social
com a plebe, uma ocasião rara. As mulheres sauditas das classes inferiores são
autorizadas a assistir aos nossos casamentos desde que não tirem o véu e não
convivam com as da realeza. Uma das minhas amigas contou-me que já tem
acontecido homens disfarçarem-se com o véu e juntarem-se a essas mulheres para
poderem ver os nossos rostos proibidos. Era suposto os convidados do sexo masculino
estarem a confraternizar num dos grandes hotéis da cidade, desfrutando dos mesmos
prazeres que as ali presentes: conversando, dançando e comendo.
Na Arábia Saudita, os homens celebram os casamentos num lado e as mulheres
noutro. Os únicos elementos do sexo masculino permitidos na celebração feminina são
o noivo, o seu pai, o pai da noiva e o religioso que procederá à curta cerimônia. Neste
caso, o pai do noivo já não existia, portanto este somente seria acompanhado pelo
nosso pai quando chegasse a altura de reclamar a noiva.
De repente, as escravas e servas começaram a destapar a comida. Verificou-se
uma corrida para o festim. As mulheres veladas foram as primeiras a atirar-se à
comida; as pobres enfiavam os alimentos na boca, por baixo dos véus. Outras
convidadas começaram a provar o salmão fumado da Noruega, o caviar russo, os ovos
de codorniz e outras delícias gastronômicas. Quatro mesas enormes balançavam sob o
peso da comida: os aperitivos ficavam à esquerda, os pratos principais no meio, as
sobremesas à direita e, à parte, estavam as bebidas. Não havia álcool à vista,
evidentemente, mas muitas convidadas da realeza levavam pequenos frascos
enfeitados com jóias na bolsa. De vez em quando davam uma fugidinha até às casas
de banho, às risadinhas, para tomarem um gole.
O centro da tenda foi depois ocupado por dançarinas do ventre egípcias. A
multidão de mulheres de todas as idades aquietou-se e assistiu aos movimentos das
dançarinas com graus de interesse variáveis. Era a parte preferida do casamento, no
entanto a maioria das mulheres parecia pouco à vontade com a exibição erótica. Nós,
Sauditas, encaramo-nos com demasiada seriedade e olhamos a alegria e as
gargalhadas com desconfiança. Mas foi com espanto que vi uma das minhas tias mais
velhas saltar do meio da multidão e juntar-se aos movimentos de ventre das
dançarinas. Dançava otimamente, contudo ouvi o murmúrio de desaprovação de várias
parentes minhas.
O som dos tambores encheu, mais uma vez, o ar e eu percebi que chegara a
vez de Sara aparecer. Todas as convidadas olharam para a entrada da vila com
expectativa.
Pouco depois as portas abriram-se e Sara, escoltada pela nossa mãe, de um
lado, e uma tia, do outro, dirigiu-se para a plataforma. Desde que vira a minha irmã
pela última vez haviam-lhe colocado um diáfano véu cor-de-rosa sobre o rosto, preso
por uma tiara de pérolas. O véu fino e transparente apenas servia para lhe acentuar a
beleza notável. Ouviu-se um murmúrio discreto, através do qual as convidadas
exprimiram a sua aprovação diante do ar adequadamente torturado da noiva. Afinal de
contas, era assim que uma jovem virgem devia mostrar-se: assustada até ao mais
íntimo do seu ser.
Dezenas de parentes do sexo feminino vinham atrás, enchendo o ar com os
sons de excitação e celebração próprias do deserto: o som vibrante e agudo que as
mulheres emitem ao fazerem vibrar a língua no céu da boca. Outras mulheres
juntaram-se com gritos estridentes. Sara cambaleou mas a nossa mãe segurou-a.
Não tardou que o meu pai e o noivo aparecessem. Eu sabia que este era mais
velho que o meu pai, no entanto a primeira visão que tive dele foi decididamente
revoltante. Parecia velho aos meus olhos jovens e lembrou-me uma doninha.
Imaginá-lo a tocar na minha irmã, tão sensível, fez-me encolher.
O noivo esboçava um sorriso de esguelha ao levantar o véu da minha irmã. O
medicamento tornara esta demasiado entorpecida para reagir, fazendo-a ficar parada a
olhar para o seu novo senhor. A verdadeira cerimônia já fora celebrada semanas antes
do casamento; nenhuma mulher estivera presente. Somente os homens haviam
participado nela, pois tratara-se de assinar os acordos relativos ao dote e
documentação. Naquele dia seriam proferidas as poucas palavras que faltavam para
completar o rito do casamento.
O religioso fitou o meu pai ao dizer as palavras simbólicas que declaravam Sara
estar agora casada com o noivo em troca do dote acordado. Em seguida, olhou de
relance para o noivo, que, em resposta, replicou que aceitava Sara como sua esposa e
que esta passaria a estar sob os seus cuidados e proteção, dali em diante. Nenhum
dos homens olhou para Sara em algum momento no decorrer da cerimônia.
O religioso abençoou então o casamento da minha irmã, lendo passagens do
Alcorão. As mulheres começaram imediatamente a guinchar e a ulular com a língua,
como mandava a tradição. Sara estava casada. O homem mirava-a, satisfeito.
Enquanto Sara se mantinha imóvel, o noivo tirou uma bolsinha do bolso da sua
thobe (túnica comprida usada pelos homens sauditas) e atirou moedas de ouro às
convidadas. Ao vê-lo aceitar, com ar convencido, os parabéns por ter desposado tão
linda mulher, estremeci. Pegou na mão da minha irmã e apressou-se a conduzi-la dali
para fora.
Os olhos de Sara prenderam-se nos meus ao passar; eu sabia que alguém
devia socorrê-la, no entanto tive a certeza de que ninguém o faria. De repente,
lembrei-me do que Sara dissera ao nosso pai: "A vitória gera ódio, pois os vencidos são
infelizes." A certeza de que o noivo nunca seria feliz numa união tão desoladoramente
aberrante não me trouxe consolo. Nenhum castigo seria suficientemente grande para
ele.

DIVÓRCIO

O pai proibiu-nos de visitar Sara nos primeiros três meses a seguir ao


casamento. Segundo ele, esta precisava de tempo para se ajustar à sua nova vida e
responsabilidades e ver a família só serviria para atear o seu desejo de regressar a
uma existência fútil, cheia de sonhos. Por mais que exprimíssemos o nosso repúdio
pela vida de cativeiro a que Sara estava sujeita, nada mais conseguíamos do que
acenos, de cabeça indiferentes. Do ponto de vista do pai, Sara estava a fazer aquilo
para que nascem as mulheres: servir e agradar ao homem e gerar os seus filhos.
Sara não levara nada do seu quarto. Talvez compreendesse que a presença
dos seus livros e outros objetos de deleite só serviria para tornar a sua atual situação
ainda mais desesperante. Para mim, era como se ela tivesse morrido; a sua ausência
deixara um vazio negro na minha vida. Lamentei o seu desaparecimento passando
horas e horas no seu quarto, junto dos seus objetos pessoais. Comecei a interessar-me
pelos passatempos de Sara e senti que assumia facetas da sua personalidade. Lia o
seu diário e tinha a impressão de que os seus sonhos se tornavam os meus; chorava
com a fúria de quem questiona a sabedoria de um deus que permite que o mal se
abata sobre os inocentes.
A minha mãe, depois de um dia me encontrar na cama de Sara, vestida com
uma das suas camisas de dormir e a ler os seus livros de arte, deu ordens para que
fechassem o seu quarto à chave. Não tivemos de suportar os três meses de espera
que o pai impusera antes de vermos Sara. Cinco semanas depois do casamento, a
minha irmã tentou suicidar-se.
Eu encontrava-me no jardim, entretido com alguns dos animais do nosso jardim
zoológico particular recentemente construído, quando vi Omar tropeçar nas suas
sandálias ao entrar pelo portão da frente, tal era a sua pressa. A sua pele,
normalmente de um bronze profundo, parecia esbranquiçada. Despiu
atabalhoadamente a sua thobe e sacudiu a areia das sandálias contra a parede.
Pediu-me que fosse a correr chamar a minha mãe.
A minha mãe era muito sensível em relação aos filhos de modo que, mal viu
Ornar, perguntou imediatamente o que acontecera a Sara. Nenhum árabe conta a
verdade a um parente quando o familiar está doente, moribundo ou morto. Somos um
povo que, pura e simplesmente, não suporta ser portador de más novas. Se uma
criança morre, o azarento que recebe a incumbência de notificar a família começará
por dizer que a criança não se encontra bem. Depois de interrogado, concordará que
será necessário levá-la ao médico, acabando por admitir que já está no hospital.
Depois de muita insistência, da parte da família, por mais informações, o mensageiro
confessará, finalmente, que a doença é grave e mais vale a família preparar -se para ir
até à cabeceira do doente. Mais tarde, a pessoa admitirá, penosamente, que a vida do
familiar corre sério perigo. Poderão ser precisas várias horas para descobrir o grau
exato de gravidade. Mas ninguém admitirá nunca a morte de um ente querido. O mais
longe que um árabe irá na transmissão de más notícias é preparar a família para
notícias ainda piores do médico.
Omar disse à minha mãe que Sara comera carne estragada e se encontrava, de
momento, hospitalizada numa clínica particular em Gidá. O meu pai mandara já fretar
um avião particular para transportar a minha mãe. Esta cerrou os lábios e foi a correr
buscar a sua abaaya (manto) e o véu.
Gritei e esperneei até a minha mãe consentir em que a acompanhasse - com a
promessa de que não faria nenhuma cena na clínica, se Sara estivesse muito doente.
Prometi e corri até ao quarto de Sara, batendo e dando pontapés na porta trancada até
uma das criadas encontrar a chave. Queria levar a Sara o seu livro de arte preferido.
Omar fez-nos passar pelo escritório do meu pai, pois esquecera-se da papelada
necessária para a viagem. Na Arábia Saudita, um homem tem de escrever uma carta a
dizer que autoriza as mulheres da sua família a viajar. Sem ela, podem fazer-nos parar
na alfândega e impedir que embarquemos. Meu pai também mandou os nossos
passaportes, pois, como disse à minha mãe, talvez fosse necessário levarmos Sara até
Londres para ser tratada. Carne estragada? Londres? O que ali estava estragado era a
história do meu pai. Pensei que o mais provável era a minha irmã ter morrido.
Fomos até Gidá num pequeno avião particular. A viagem correu bem, mas a
atmosfera que reinava no interior da cabina era bastante tensa. A minha mãe pouco
disse e manteve os olhos fechados durante a maior parte da viagem. Dera o seu
primeiro passeio de automóvel ainda poucos anos antes. Naquele momento via-a
mover os lábios e sabia que rezava a Deus pela concessão de duas graças: primeiro,
para que Sara estivesse viva e, segundo, para que o avião nos conduzisse, sãs e
salvas, até ela.
O piloto e o co-piloto eram americanos e eu senti-me imediatamente atraída
pelos seus modos abertos e francos. Perguntaram-me se queria ir sentar-me no
cockpit. A minha mãe acenou com a cabeça, concedendo uma permissão relutante aos
meus gestos freneticamente implorantes. Era a primeira vez que me sentava num
cockpit. Quem o fazia era sempre Ali.
Ao princípio, a visão do céu imenso assustou-me, além de me dar conta da
fragilidade do avião que nos mantinha entre o céu e a terra. Soltei um pequeno grito de
alarme e recuei. Jolin, o mais corpulento dos dois americanos, dirigiu-me um sorriso
tranqüilizador e explicou pacientemente as funções dos vários botões e mecanismos.
Para minha surpresa, dei comigo inclinada sobre o seu ombro, completamente à
vontade. Foi uma das poucas ocasiões, na minha jovem vida, em que me senti
descontraída na presença de homens. Para meu desgosto, sentia receio na presença
do meu pai e detestava Ali e os meus meios-irmãos. Era uma sensação estranha, no
entanto sentia-me inebriada pela verificação de que os homens, que toda a vida eu fora
ensinada a endeusar, podiam ser vulgares e amistosos. Era algo de novo em que
pensar.
Ao olhar pela janela do avião, percebi qual era a sensação que domina uma
águia quando paira no alto, e experimentei uma maravilhosa sensação de liberdade.
Os meus pensamentos desviaram-se para Sara e para a constatação chocante de que
as aves e os animais gozavam de mais liberdade que a minha irmã. Jurei a mim
mesma ser senhora da minha própria vida, independentemente das ações que tivesse
de empreender ou do sofrimento que precisasse de suportar.
Quando o avião aterrou, voltei para junto da minha mãe. Esta manteve-me
carinhosamente apertada entre os seus braços enquanto o aparelho se dirigia para o
terminal. Tinha o véu colocado, no entanto eu sabia que expressão tinha e ouvi-a dar
um suspiro profundo e torturado.
Despedi-me dos americanos simpáticos. Esperava que fossem. eles a levar-nos
de volta a Riade, pois ficara reconhecida àqueles dois homens por terem concedido
tamanha importância às perguntas tolas e agitadas de uma criança.
Ao chegarmos à clínica, ouvimos chorar e gemer enquanto percorríamos o
longo corredor. A minha mãe acelerou o passo e apertou-me a mão com tal força que
tive vontade de me queixar.
Sara encontrava-se viva, mas por pouco. Ficamos aterrorizadas ao saber que
tentara suicidar-se metendo a cabeça dentro do forno a gás. Estava muito quieta,
mortalmente pálida. O marido não se encontrava presente, mas enviara a sua mãe. A
velha começou então a ralhar severamente com Sara por ter embaraçado o seu filho e
a respectiva família. Era uma bruxa velha e má. Apeteceu-me arranhar-lhe a cara e
vê-la fugir, mas lembrei-me da promessa que fizera à minha mãe. Em vez disso, fiquei
quieta, mal respirando de fúria, a afagar as mãos macias e inertes da minha irmã.
A minha mãe atirou o véu para o alto da cabeça e enfrentou a velha. Contara
com muitas possibilidades, mas o conhecimento de que sua filha atentara contra a
própria vida era inesperado e devastador. Quando a vi voltar-se, furiosa e implacável,
para a mãe do genro, apeteceu-me aplaudi-la e louvá-la. Calou imediatamente a velha
ao perguntar-lhe o que fora que o filho fizera para levar uma jovem a desejar morrer.
Ordenou-lhe que saísse de junto de Sara, pois aquele lugar não era para os maus. A
velha retirou-se sem se lembrar de colocar o véu. Ouvimo-la implorar a ajuda de Deus
por tanta desconsideração.
A minha mãe virou-se para mim e reparou no meu sorriso de admiração.
Sentia-me maravilhada com a sua ira e achei, por um momento breve e deslumbrante,
que Deus não nos abandonaria. Sara salvar-se-ia. Mas sabia que a vida da minha mãe
ficaria muito complicada quando o meu pai soubesse das palavras que dirigira à velha.
Conhecendo-o como conhecia, tinha a certeza de que ficaria furioso com a mãe por
defender a filha.
Na Arábia Saudita, os mais velhos são verdadeiramente venerados. Não importa
o que façam ou digam, como se comportem, pois ninguém se atreve a contrariá-los. Ao
fazer frente à idosa, a minha mãe agira como um tigre-fêmea a defender a sua cria.
Senti-me quase a rebentar de orgulho diante da sua coragem. Depois de estar três dias
sem dar sinais de vida, o marido de Sara apareceu finalmente na clínica, para reclamar
a sua propriedade.
Nessa altura já a minha mãe descobrira o motivo da agonia de Sara. Tratou o
genro com desprezo. O novo marido de Sara era um sádico. Submetera a minha irmã a
uma horrível brutalidade sexual, até levá-la a sentir que a única maneira de lhe escapar
era a morte. Mas depois de o meu pai se deslocar a Gidá, até mesmo ele ficou
indignado ao inteirar-se do sofrimento da filha. No entanto, concordou com o genro em
como o lugar de uma esposa é junto do seu marido. O marido de Sara prometeu ao
nosso pai que as suas relações com ela não ultrapassariam as de uma vida normal.
Quando o meu pai transmitiu a sua decisão à minha mãe, a mão desta tremeu e a sua
boca abriu-se num uivo. Sara começou a chorar e tentou sair da cama, dizendo que
não queria viver. Ameaçou cortar os pulsos se a obrigassem a voltar para junto do
marido.
A minha mãe ergueu-se diante da filha como uma montanha e, pela primeira vez
na sua vida, desafiou o marido. Disse-lhe que Sara nunca regressaria à casa de um
monstro e que ela, a mãe, iria até ao rei e ao Conselho dos Religiosos contar a história,
certa de que não permitiriam que tal situação se mantivesse. O pai ameaçou a mãe de
divórcio. Ela não vacilou e disse-lhe que fizesse como entendesse, mas que a sua filha
não voltaria para tal antro de malvadez.
O meu pai nem pestanejou. Provavelmente percebera que o mais plausível era
os religiosos obrigarem Sara a voltar para junto do marido. A julgar por casos
precedentes, aconselhariam este a lidar com a sua esposa de acordo com os métodos
aconselhados pelo Alcorão e depois voltariam as costas a uma situação tão
desagradável. O meu pai ficou pensativo, analisando a vontade da minha mãe.
Olhando com ar desconfiado para a sua aparente determinação, mas querendo evitar a
interferência pública numa questão familiar, resolveu, por uma vez na sua vida de
casado, ceder.
O marido, como pertencíamos à família real e não queria cortar relações com o
meu pai, concordou, relutantemente, em conceder o divórcio a Sara. O islamismo dá
aos homens o direito de se divorciarem sem qualquer inquirição quanto ao motivo. No
entanto, a mulher tem muita dificuldade em fazê-lo em relação ao marido. Se Sara
tivesse sido forçada a requerer a separação, deparar-se-lhe-iam muitas dificuldades,
pois as autoridades religiosas poderiam ter determinado que "Repudias algo que Alá te
destinou para teu próprio bem" e obrigado Sara a ficar com o marido. Mas este cedeu e
proferiu as palavras "Divorcio-me de ti" três vezes, na presença de duas testemunhas
do sexo masculino. O divórcio ficou consumado numa questão de minutos. Sara ficou
livre! Voltou para nossa casa.
Todas as fases de convulsão são transitórias. O meu jovem mundo foi-se
transformando com o casamento de Sara, a sua tentativa de suicídio e o divórcio.
Comecei a ter pensamentos e idéias novas; a infância nunca mais voltaria. Passei
horas a refletir sobre as tradições que rodeavam o casamento na minha terra. Na
Arábia Saudita, a escolha de uma rapariga para o matrimonio é determinada por vários
fatores: o apelido da família, a fortuna desta, a sua perfeição física e a sua beleza.
Namorar é tabu, portanto um homem tem de depender do olho arguto da sua
mãe e irmãs para procurar, constantemente, pares à sua altura. Mesmo depois de a
promessa de casamento e a data marcada, é muito raro uma rapariga conhecer o
futuro marido antes do casamento, embora haja alturas em que cada família permite a
troca de fotografias.
Se uma rapariga é de boa família e não tem nenhuma deformidade, receberá
várias propostas de casamento. Se for uma beleza, muitos homens enviarão a mãe ou
o pai a pedir a sua mão, pois a beleza é um grande trunfo para as mulheres, na Arábia
Saudita.
Claro que não pode haver nenhum escândalo a macular a reputação de uma
beldade, caso contrário a sua vantagem desaparecerá; essa rapariga acabará por
casar, como terceira ou quarta esposa, com um velho de alguma aldeia distante.
Muitos homens sauditas deixam a decisão final do casamento das filhas às
esposas, cientes de que estas procurarão encontrar o melhor partido possível para a
família. Ainda assim, é freqüente a mãe também insistir num casamento indesejado,
mesmo que a filha proteste. Afinal de contas, ela própria desposou um homem que
temia e a sua vida progrediu sem o esperado horror ou sofrimento. A mãe avisará a
filha de que o amor e o afeto não são duradouros, que é melhor casar dentro de uma
família conhecida.
E depois há homens, como o meu pai, que baseiam a decisão do casamento
das filhas nos possíveis ganhos pessoais ou econômicos derivados da união, não
havendo autoridade maior com quem questionar o veredicto. Sara, com toda a sua
beleza, inteligência e sonhos de infância, acabou por não ser mais do que, um objeto
que o pai se serviu para aumentar a sua riqueza.
Esta visão intimidante do destino da minha adorada irmã fez-me tomar uma
decisão: nós, mulheres, devíamos passar a ter voz ativa na decisão final de atos que
viessem a alterar a nossa vida permanentemente. A partir daí, comecei a ter como
objetivo máximo da minha vida lutar pelos direitos da mulher no meu país, para que
esta pudesse viver com a dignidade e a realização pessoal que constituem o direito
inato do homem.
Alguns meses depois do regresso de Sara, Nura, a minha irmã mais velha,
convenceu o nosso pai de que Sara e eu precisávamos de conhecer o mundo exterior
à Arábia Saudita. Nenhuma de nós conseguira arrancar Sara à sua depressão crônica,
e Nura achou que o remédio indicado seria uma viagem. Eu ainda só fora até Espanha
duas vezes, mas era tão nova que poucas ou nenhumas recordações conservara.
Nura, casada com um dos netos do nosso primeiro rei, caíra nas boas graças do
nosso pai devido ao casamento que fizera e à sua maneira calma e plácida de estar na
vida. Era obediente, não fazia perguntas. O nosso pai chegou mesmo a afeiçoar-se
muito a ela, com o passar dos anos, pois poucas filhas suas manifestavam a mesma
complacência. Desde o divórcio de Sara, o nosso pai apontava sempre o exemplo de
Nura às restantes filhas. Casara com um desconhecido e o seu matrimonio revelara-se
satisfatório. Claro que a verdadeira razão assentava no feitio delicado e atencioso do
marido.
Na cabeça do meu pai, não havia dúvida de que fora Sara a provocar o
comportamento criminoso do marido. O homem, no Médio Oriente, nunca é culpado de
tal. Mesmo que assassine a esposa justificará o seu ato com razões "válidas" que
serão prontamente aceites pelos outros homens. Vi, no meu país, jornais onde vinham
artigos a louvar homens por terem executado a mulher ou a filha pelo crime de
"comportamento indecente". A mera desconfiança de má conduta sexual, como um
beijo, poderá decretar a morte de uma jovem. Além disso, os religiosos felicitam
publicamente os pais pelo ato "notável" de fazerem respeitar as ordens do Profeta!
Nura e Alinied estavam em vias de construir um palácio e a primeira queria ir até à
Europa comprar mobiliário italiano. No caminho, parariam no Egito, para os jovens
filhos de Nura poderem ver as pirâmides.
Era freqüente ouvirmos o nosso pai, que tinha vinte e duas filhas de quatro
esposas, murmurar por entre dentes: "As mulheres são a maldição de um homem.” O
fato de as suas filhas mais novas manterem uma espécie de rebelião contra o poder
absoluto do homem não contribuía para melhorar a sua atitude. As nossas palavras e
ações não tinham precedentes e não eram apreciadas. Perfeitamente cientes de que
os nossos desejos jamais seriam satisfeitos, as nossas conversas representavam já, só
por si, uma espécie de vitória, pois nunca nenhuma mulher saudita abordara sequer o
tópico que discutíamos com tanto à-vontade.
Nura queria que a minha mãe fosse ao estrangeiro conosco, mas esta andava
estranhamente calada desde o regresso de Sara. Era como se a sua grande e única
rebelião contra o meu pai a tivesse exaurido das forças. No entanto, encorajou a
viagem, desejosa de que Sara conhecesse Itália. Achava que eu era demasiado nova e
devia ficar em casa, mas, como de costume, um acesso de mau gênio fez-me
conseguir o que queria.
Sara não mostrava grande interesse nem mesmo perante a possibilidade de ver
as maravilhosas obras de arte daquele país, porém eu mal conseguia controlar tanta
felicidade. A minha alegria esfumou-se ao ouvir Ali anunciar, presunçosamente, que iria
conosco. O meu pai achava que eu precisava de um chaperon. A perspectiva de Ali dar
cabo das minhas férias com a sua presença indesejável fez-me perder a cabeça,
levando-me a decidir insultá-lo da pior maneira. Agarrei na sua ghutra e no seu igual
(cordão preto que assenta no topo da ghutra) novos e corri pela casa, em direção à
minha casa de banho. Não sabia o que iria fazer com aquelas peças de vestuário, mas
o homem saudita fica altamente ofendido se alguém lhe mexe no toucado. Eu sentia
necessidade de ferir Ali o mais rápido possível.
Quando Ali veio atrás de mim, gritando que contaria ao pai, atirei-lhe a porta da
casa de banho à cara. Como usava sandálias, partiu o dedo grande de um dos pés,
além de ferir a mão. Os seus gritos e gemidos levaram os servos a pensar que eu
estava a matá-lo, mas ninguém veio em seu auxílio.
Não sei o que me deu, talvez fosse o barulho do grande fanfarrão tirânico a
gemer e a implorar ajuda, mas o certo é que enfiei o toucado na sanita. O igual
recusou-se a seguir caminho, por mais que eu o empurrasse freneticamente com o
desentupidor de pia.
O cordão encharcado entupira a passagem! Quando Ali viu o que eu fizera,
atirou-se a mim. Caímos no chão a lutar um com o outro, até eu levar a melhor sobre
ele ao torcer-lhe o dedo partido. A minha mãe, ao ouvir os gritos de agonia de Ali,
interveio e salvou-o de anos de raiva acumulada por mim.
Eu sabia que estava em maus lençóis. Racionalizei que a minha situação não
podia ser pior, portanto, quando a minha mãe e Ornar levaram Ali até à clínica para lhe
tratarem do dedo do pé partido, entrei à sucapa no quarto do meu irmão e
arrebanhei-lhe os "tesouros" que tanto a nossa religião como o nosso país proibiam.
Estes "tesouros" eram os objetos habituais que todos os rapazes colecionam por todo o
mundo, mas a sua posse representa uma ofensa grave perante a lei religiosa na
Arábia. Eu já dera pela coleção de Playboys e outras revistas do gênero que Ali tinha
guardadas. Há pouco descobrira nova coleção de fotografias em slides. Curiosa,
levara-as para o meu quarto; perplexa, passei-as pelo meu projetor. Eram de homens e
mulheres nus a posarem em toda a espécie de posições; uma série delas mostrava
mesmo animais com mulheres. Ali emprestara-as, sem dúvida, a outros rapazes, pois
escrevera nitidamente o seu nome em cada um dos artigos proibidos.
Eu era, na altura, demasiado inocente para saber exatamente o significado de
tudo aquilo, mas tinha a noção de que aqueles "tesouros" eram maus porque ele tivera
sempre o seu esconderijo secreto numa velha caixa usada que tinha o rótulo
"apontamentos da escola". Os seus pertences não tinham o menor segredo para mim,
pois já remexia neles há anos. Selecionei, com todo o cuidado, as revistas e os slides.
Também encontrei sete garrafas em miniatura de bebidas alcoólicas que Ali trouxera
de uma ida ao Barhein. Enfiei tudo dentro de um saco de papel, sorrindo com o meu
plano.
Na Arábia Saudita há mesquitas em todos os bairros, pois o Governo deu
prioridade máxima à colocação de centros de oração próximos dos homens
muçulmanos. Como as preces são feitas cinco vezes por dia, o homem que está perto
de uma mesquita tem mais facilidade em realizá-las na totalidade. Embora as orações
possam ser feitas em qualquer lugar, desde que a pessoa se volte de frente para Meca,
ainda assim é preferível ter acesso a uma mesquita.
Como vivíamos numa das zonas mais abastadas, éramos servidos por uma
mesquita enorme, construída em mármore branco opalescente. Eram quase duas
horas da tarde, o que significava que as orações do meio-dia haviam terminado; levar a
cabo o meu plano sem que me vissem não oferecia, portanto, grande risco. O clima
quente da Arábia faz com que até os religiosos durmam a sesta.
Abri, temerosa, a porta da mesquita e espreitei cautelosamente antes de entrar.
Como ainda não andava velada, era provável que a minha presença despertasse
pouca curiosidade. Já tinha uma desculpa preparada para o caso de ser apanhada: se
me perguntassem o que andava ali a fazer, responderia que procurava o meu gatinho
novo que se escapulira para o recinto da mesquita.
Surpreendentemente, a mesquita estava fresca e convidativa. Nunca entrara no
interior do enorme edifício, no entanto já acompanhara, muitas vezes, o meu pai e Ali
até às orações. Desde os seis anos que Ali era incentivado a fazer as cinco orações
diárias.
Senti a respiração acelerar ao relembrar a dor que sentia ao ver o meu pai pegar
na mão de Ali e levá-lo, orgulhosamente, pela imponente entrada da mesquita -
enquanto eu ficava, na minha condição inferior de membro do sexo feminino, na beira
da estrada a olhar para eles com mágoa e raiva.
No meu país, as mulheres estão proibidas de entrar nas mesquitas. Apesar de o
profeta Maomé não ter proibido as mulheres de orarem publicamente nas mesquitas,
declarou que achava melhor que estas o fizessem na privacidade dos seus lares. Em
resultado disso, a nenhuma mulher, na Arábia Saudita, fora jamais permitida a entrada
num templo de oração.
Não havia ninguém à vista. Atravessei apressadamente o pavimento de
mármore; o bater das minhas sandálias parecia alto e estranho. Coloquei o saco,
contendo os objetos proibidos de Ali, na escada que levava à varanda onde estão os
alto-falantes que espalham a palavra do profeta Maomé pelas nossas cidades cinco
vezes por dia. Só de pensar na intensidade dos apelos do muezim, nos gritos que
chamam os fiéis às orações, comecei a sentir-me culpada pela minha maldade. Depois
lembrei-me do sorriso tolo e desdenhoso de Ali ao dizer-me que pediria ao pai que me
açoitasse e que ele, Ali, solicitaria o prazer de o fazer pessoalmente. Regressei a casa
com um sorriso de satisfação. Ali que se livrasse daquela.
Nessa noite, antes de o pai voltar do escritório, apareceram-nos três mutawas
(religiosos) ao portão. Eu e três dos nossos servos filipinos ficamos à espreita por uma
das janelas do piso de cima e vimo-los gritar a Ornar e gesticular freneticamente para o
céu e, em seguida, para alguns livros e revistas que, obviamente, pareciam
desagradar-lhes. Apeteceu-me rir, no entanto mantive-me muito séria.
Todos os estrangeiros e a maioria dos sauditas têm medo dos mutawas por
estes disporem de muito poder e andarem sempre à procura de sinais de fraqueza nos
outros. Até os membros da família real evitam chamar-lhes a atenção.
Duas semanas antes, uma nossa criada filipina indignara uns mutawas por
vestir uma saia pela altura do joelho. Um grupo de religiosos agrediu-a a pau e
pintou-lhe as pernas descobertas com tinta vermelha. Ainda que o Governo da Arábia
Saudita não permita a entrada de turistas no nosso país, temos muitas mulheres a
trabalhar como enfermeiras, secretárias e empregadas domésticas nas nossas cidades
principais. Muitas delas sentem a ira daqueles que transmitem a palavra de Deus e
que, no entanto, desprezam quem pertence ao nosso sexo. Se uma mulher tem a
ousadia de desafiar as nossas tradições expondo braços ou pernas, corre o risco de
ser açoitada e aspergida com tinta vermelha.
Esta criada esforçara-se ao máximo por retirar a tinta com diluente, no entanto
continuava a tê-las avermelhadas e quase em carne viva. Estava convencido de que a
polícia religiosa arranjara maneira de descobrir o seu rasto até à casa onde trabalhava
e estava ali para prendê-la. Correra a esconder-se debaixo da minha cama. Tive
vontade de lhe contar a natureza da sua visita, mas o meu segredo tinha de se manter
secreto, até mesmo para os criados filipinos.
Omar estava profundamente pálido quando entrou na vila a gritar por Ali. Vi este
apressar-se pelo corredor fora, caminhando desajeitadamente com a ponta do pé
direito no ar, apoiado no calcanhar. Fui atrás dele e juntei-me à minha mãe e a Ali na
sala de estar, onde Omar estava ao telefone, a ligar para o escritório do pai. Os
mutawas tinham ido embora, deixando amostras do contrabando incriminador com
Ornar; uma revista, vários slides e uma garrafinha de bebida alcoólica. O resto fora
guardado como prova da culpa de Ali. Olhei de relance para o meu irmão e reparei que
ficara mortalmente pálido ao ver o seu "tesouro secreto" à vista, no colo de Omar.
Ao ver-me, Omar disse-me que saísse da sala, mas eu agarrei-me às saias da
minha mãe, que me fez uma festa na cabeça. A minha mãe devia detestar a maneira
como Omar mandava nos seus filhos, de modo que olhou-o desafiadoramente nos
olhos.
O homem decidiu ignorá-la. Ordenou a Ali que se sentasse, pois o pai vinha a
caminho de casa e os mutawas tinham ido chamar a polícia. Ali iria ser preso, anunciou
com uma certeza inabalável.
O silêncio que se fez na sala fazia lembrar a calmaria antes da tempestade. Por
instantes senti-me aterrorizada, mas, logo a seguir, Ali recuperou a compostura e
quase cuspiu em Omar, declarando: "Eles não me podem prender, eu sou um príncipe.
Esses fanáticos religiosos não passam de mosquitos incômodos nos meus tornozelos."
De repente, ocorreu-me que a cadeia talvez fizesse bem a Ali.
O chiar dos pneus do carro do pai a travar anunciou a sua chegada. Este entrou
precipitadamente na sala, mal controlando a sua ira, pegando depois nos objetos um a
um.
Ao ver a revista, fitou Ali duramente. Atirou o uísque para o lado com desprezo,
pois todos os príncipes têm bebidas alcoólicas em suas casas. Mas quando ergueu os
slides contra a luz do candeeiro, gritou a minha mãe e a mim que saíssemos da sala.
Ouvi-o bater no filho com as mãos. Fora, de todo em todo, um mau dia para Ali.
Os mutawas deviam ter pensado duas vezes antes de chamar a polícia para
prender um dos filhos reais, pois voltaram passadas umas horas trazendo consigo
pouco mais do que uma fúria pia. Mas até o meu pai teve dificuldade em arranjar
desculpa para os slides que mostravam mulheres a copular com animais.
Estava-se no ano de 1968, e o rei Faiçal não se mostrava tão tolerante com os
delitos dos jovens príncipes como fora seu irmão Saud. Os mutawas sentiam -se numa
posição de poder, pois tanto eles como o meu pai sabiam que o rei ficaria
extremamente ultrajado se o conteúdo dos slides passasse a ser do domínio público.
Os receios dos mutawas em relação à atual modernização por que a nossa terra
passava eram sobejamente conhecidos. O rei Faiçal acautelava sempre os irmãos e
primos para que controlassem os filhos, a fim de evitarem que a ira dos religiosos se
abatesse sobre a cabeça dos homens que governavam o país. O rei assegurara aos
chefes religiosos de que estava a conduzir o país para uma modernização necessária,
não para uma ocidentalização degenerada (o melhor, não o pior, do Ocidente). Os
mutawas viam no comportamento dos membros da família real a prova de decadência
do Ocidente. A coleção de slides de Ali não contribuíra nada para os tranqüilizar
relativamente à decadência da família real, de que se falava à sucapa.
Ouvimos os mutawas discutir noite dentro sobre um castigo apropriado ao filho
de um príncipe. Ali tinha a sorte de pertencer à família dos AI-Saud. Os mutawas
sabiam que só com a autorização do rei é que o sistema judicial do país condenaria um
príncipe real. Era muito raro tal acontecimento se dar, se é que alguma vez tivera lugar.
Fosse Ali membro de uma família saudita vulgar e não se livraria de uma pesada pena
de prisão.
A nossa família estava familiarizada com a triste história do irmão de um dos
nossos motoristas filipinos. Quatro anos antes, o tal irmão, que trabalhava para uma
firma de construções em Riade, fora preso por possuir um filme pornográfico. O pobre
homem encontrava-se, naquele momento, a cumprir uma pena de prisão de sete anos.
Não só definhava na prisão como lhe fora destinado receber, todas as sextas-feiras,
dez vergastadas. O nosso motorista, que todos os sábados visitava o irmão, chorou ao
contar a Ali que sempre que via o desgraçado irmão o encontrava negro do pescoço
aos pés por causa da pancada do dia anterior. Receava que o irmão não sobrevivesse
ao ano seguinte. Infelizmente para Ali, a sua culpa foi estabelecida sem qualquer
dúvida - o seu nome estava ousadamente escrito em todos os artigos proibidos. Depois
de muita discussão, acabaram por chegar a uma espécie de compromisso: o nosso pai
daria uma generosa soma de dinheiro à mesquita e Ali estaria presente, cinco vezes
por dia, nas orações, para assim apaziguar os homens de Deus, assim como o próprio
Deus. Os mutawas sabiam que poucos dos jovens príncipes reais se davam ao
trabalho de rezar sequer, de modo que tal castigo seria particularmente maçador para
Ali. Dísseram-lhe que, durante os doze meses seguintes, teria de dar a sua presença a
conhecer ao mutawa-chefe da nossa mesquita em cada sessão de orações. A única
desculpa que poderia apresentar era estar ausente da cidade. Como Ali dormia,
geralmente, até às nove da manhã, só a perspectiva de ter de se levantar ao nascer do
Sol fê-lo franzir o cenho. Além disso, teria de escrever um milhar de vezes num bloco
de apontamentos a seguinte frase: "Deus é grande e eu desagradei-lhe indo atrás de
modas corruptas e imorais do Ocidente pagão." Como condição final, Ali teria de
revelar o nome de quem lhe fornecera as revistas e os slides. Quanto às primeiras, Ali
trouxera-as, às escondidas, de viagens ao estrangeiro, pois os príncipes passam pelas
alfândegas sem sequer um olhar de cortesia. Mas fora um ocidental, com quem travara
amizade numa festa, que lhe vendera os slides e Ali, ansioso para descartar parte da
pressão a que estava a ser submetido por causa de um estrangeiro, não se fez rogado
e forneceu imediatamente o nome e a morada do local de trabalho do mesmo aos
mutawas. Mais tarde, viria a saber que o homem fora preso, açoitado e deportado.
Senti-me muito mal. A minha travessura estúpida desgraçara toda a minha
família, submetendo-a a uma humilhação aflitiva. Não importava que a lição tivesse
prejudicado Ali, mas sabia que os meus pais tinham sido afetados e outras pessoas
inocentes prejudicadas. Além disso, tenho vergonha de admitir, tinha um medo terrível
de ser descoberta. Rezei a Deus e prometi-lhe que, se me deixasse escapar daquela
sem castigo, dali em diante passaria a ser uma criança bem-comportada.
Omar acompanhou os mutawas até à saída. A minha mãe e eu esperamos que
o pai e Ali voltassem para a sala de estar da família. O pai respirava agitadamente e
trazia Ali agarrado pelo braço, empurrando-o escada acima. Ali- olhou para mim e os
nossos olhares encontraram-se. Naquela fração de segundo eu soube que ele
percebera que fora eu a culpada. Vi, com tristeza, que ele pareceu ficar mais magoado
do que zangado.
Comecei a soluçar, pois senti o peso do ato terrível que cometera. O meu pai
fitou-me com pena. A seguir deu um empurrão a Ali e gritou-lhe que perturbara a
família inteira, incluindo as crianças inocentes. Pela primeira vez na minha vida, o meu
pai aproximou-se de mim, abraçou-me e pediu-me que não chorasse.
Senti-me então ainda mais miserável. O toque de afeto por que ansiara toda a
vida não tinha o sabor com que contara e a alegria que tantas vezes imaginara ficara
destruída pelo premio ilusório tão enganadoramente ganho.
A minha travessura atingira, apesar de tudo, o alvo. Não houve a menor
menção ao dedo partido do pé de Ali, tão-pouco ao toucado enfiado na sanita. Um
pecado sobrepusera-se de tal maneira ao outro que tinham acabado por se anular
mutuamente.

A VIAGEM

Apesar das complicações recentemente vividas pela família, a viagem a Itália e


ao Egito continuou de pé, no entanto eu já não sentia a mesma alegria. Fiz a minha
mala e organizei as minhas listas, enquanto via Ali passar penosamente em frente do
quarto.
No passado, Ali prestara-me pouca atenção. Era desprezada por ser rapariga,
alguém a quem antagonizar ou empurrar quando calhava - uma pessoa pouco
importante. Agora olhava-me de maneira diferente, pois fizera a surpreendente
descoberta de que, afinal de contas, eu, um membro do sexo feminino inferior e o
membro mais novo da família, era uma oponente perigosa e a ter em consideração.
No dia da nossa partida, foram precisas seis limusines para nos transportar até
ao aeroporto. Onze de nós viajariam por um mês: Nura, Alinied e três dos seus cinco
filhos, duas das suas criadas filipinas; Sara e eu; e Ali e Hadi, seu amigo.
Hadi, dois anos mais velho do que Ali, estudava no Instituto Religioso, uma
escola masculina, em Riade, destinada aos jovens que aspirassem a tornar-se
mutawas. Hadi impressionava os adultos citando o Alcorão e agindo de modo muito
piedoso na sua presença. O meu pai achava que o rapaz exerceria boa influência
sobre os seus filhos. Hadi declarava a quem o ouvisse que, na sua opinião, as
mulheres não deviam sair de casa; disse a Ali que estas eram a causa de todo o mal
na Terra. Saltava à vista que a presença de Ali e Hadi iria tornar a viagem muito
agradável...
A minha mãe não nos acompanhou ao aeroporto. Andara ausente e triste nos
últimos dias; calculei que as extravagâncias de Ali a tivessem preocupado.
Despediu-se de nós no jardim e ficou a acenar-nos do portão da frente. Tinha o véu
posto mas eu sabia que as lágrimas lhe corriam pelo rosto. Algo não estava bem com a
minha mãe, porém a perspectiva da viagem que tínhamos pela frente não me deu
tempo para refletir sobre as possíveis razões.
Alínied comprara um avião novo há pouco, portanto o nosso vôo era
estritamente familiar. Fui ver se os pilotos eram os mesmos que haviam levado minha
mãe e eu até Gidá; desiludida, vi que não. No cockpit estavam dois pilotos ingleses, de
ar moderadamente simpático. A família real tinha um vasto número de pilotos
americanos e ingleses ao seu serviço particular. Alimed foi falar com os dois homens
enquanto Nura e as criadas se instalavam com os mais pequenos.
Sara, que tirara o véu, já se embrulhara num cobertor, agarrada aos seus
preciosos livros. Hadi fitou o seu rosto descoberto com desdém e sussurrou iradamente
algo a Ali, que se voltou e ordenou a Sara que colocasse o véu até saírem da Arábia
Saudita. A minha irmã respondeu-lhe que não conseguia ver através do tecido grosso e
que se ele fosse esperto, fecharia a bocarra.
Ainda nem levantáramos vôo e já havia discussão na família. Tentei pisar o
dedo partido do pé a Ali, mas falhei, enquanto este me desferia uma pancada na
cabeça; baixei-me e ele não acertou. Ahmed, como a figura masculina de autoridade
mais velha, mandou todos sentarem-se e calarem-se. Ele e Nura trocaram um olhar
que me fez perceber que já estavam a ficar arrependidos do seu generoso convite.
Os três lugares mais sagrados do islamismo são Meca, Mediria e Jerusalém.
Meca é a cidade idolatrada por mais de mil milhões de muçulmanos espalhados pelo
mundo, pois foi aí que Deus revelou a sua vontade ao profeta Maomé. A nossa vida
religiosa assenta em cinco rituais obrigatórios, designados de pilares da religião. Uma
dessas obrigações exige que todo o muçulmano que tiver possibilidades financeiras vá
a Meca. Nenhum bom muçulmano se sente realizado sem fazer uma peregrinação a
Meca, pelo menos uma vez na vida. A nossa segunda cidade mais sagrada, Medina,
considerada "a cidade do Profeta", é o lugar onde Maomé está enterrado. E Jerusalém
é a nossa terceira cidade mais sagrada. Foi aí que Maomé recebeu a Revelação de
Deus, no monte de Hira. Os muçulmanos choram lágrimas amargas à menção de
Jerusalém, pois esta cidade, agora ocupada, deixou de estar livre e aberta ao nosso
povo.
Se, para um muçulmano, Meca, Medina e Jerusalém constituem os seus
grandes centros espirituais, então o Cairo é a coroa de glória da sua auto-estima. Esta
cidade representa cinqüenta séculos de sobrevivência titânica e é, para os Árabes,
uma das maiores civilizações jamais surgidas na Terra. O Egito é uma espécie de
grande orgulho de todo o árabe. O poder, a riqueza e os feitos dos egípcios antigos faz
com que a abastança petrolífera dos modernos árabes do Golfo pareça insignificante e
irrelevante.
Foi no Cairo, essa cidade a extravasar de vida desde o começo dos tempos, que
me tornei mulher. Na cultura árabe, onde tanta importância é dada à passagem da
infância à adolescência numa jovem, estas aguardam, com um misto de receio e
profunda satisfação, o indício da sua primeira menstruação. Quando amigas minhas
ocidentais me disse ram que desconheciam o que lhes estava a acontecer quando lhes
apareceu o primeiro período, e que imaginaram estar a morrer, fiquei estupefata. No
mundo islâmico, a chegada da primeira menstruação é tema amenamente debatido. De
repente, e de um momento para o outro, a criança transforma-se num adulto. A partir
daí, não há forma de regressar ao casulo protetor da inocência infantil.
Na Arábia Saudita, o aparecimento da primeira menstruação significa que é
tempo de escolher o primeiro véu e abaaya com o maior dos cuidados. Até os lojistas,
muçulmanos da índia ou do Paquistão, inquirem, tranqüila e respeitosamente, se a
menina se tornou mulher. Depois, com toda a seriedade, sorriem indulgentemente e
começam a escolher a abaaya e o véu que melhor assentem à jovem.
Embora o véu tenha de ser sempre preto, existem muitas possibilidades no que
diz respeito à escolha e peso do tecido. O véu pode ser de material fino,
proporcionando ao mundo um vislumbre fugidio do rosto proibido. Um tecido que seja
de peso médio é mais prático, pois permite ver através do tecido transparente sem ter
de aturar os olhares agressivos ou as observações mordazes dos defensores da fé. Se
uma mulher escolhe o espesso tecido preto tradicional, não há homem que possa
imaginar as feições por baixo de uma máscara facial que se recusa a esvoaçar à mais
forte das brisas. Claro que esta opção impossibilita examinar jóias no souq dourado ou
avistar carros velozes depois do crepúsculo. Além do véu espesso tradicional, há
mulheres conservadoras que gostam, ainda, de usar luvas e meias pretas, para que
não haja o menor vestígio de carne aos olhos do mundo.
Para uma mulher que precise de exprimir a sua individualidade e gosto pela
moda, existem maneiras de fugir ao infinito conformismo do vestir através de design
criativo.
Muitas compram lenços adornados com pedras preciosas e o movimento dos
pequenos enfeites faz virar a cabeça a muitos homens. Adornos caros e vistosos são,
muitas vezes, cosidos aos lados e à parte de trás da abaaya.
As mulheres mais novas, sobretudo, anseiam por se distinguir através de
escolhas muito a seu gosto. O lojista masculino desenhará os últimos modelos em véus
e abbayas e mostrará à rapariga a maneira de atirar o lenço sobre a cabeça, de
maneira a ter um ar de elegância e modernidade. O método de prender a abaaya,
mostrando a quantidade exata de pé que é permitida sem ser considerada arriscada, é
discutida com grande pormenor. Todas as jovens vão fazendo experiências, até
encontrarem o seu método próprio para usarem a abaaya com um toque elegante e
pessoal.
É uma criança que entra na loja, mas é uma mulher que sai, velada, e, a partir
desse dia, em idade casadoira. A sua vida muda numa fração de segundo. O homem
árabe mal olha para a criança que entra na loja, mas mal a mulher sai com a sua
abaaya e véu, começa imediatamente a dirigir-lhe olhares discretos e furtivos. Passa
então a tentar descortinar vislumbres de um tornozelo proibido e, portanto,
inesperadamente erótico. Com o véu, a mulher árabe torna-se imensamente tentadora
e desejável para o homem árabe.
No entanto, eu encontrava-me no Cairo na altura, não em casa, na Arábia
Saudita, de modo que o impacto inesperado da minha primeira menstruação pouco
mais fez do que irritar-me. Sara e Nura mostraram-me tudo o que uma mulher tem de
fazer. Ambas aconselharam-me a não contar nada a Ali, pois tinham a certeza de que,
se assim fizesse, ele obrigar-me-ia a pôr imediatamente o véu, mesmo no Cairo. Sara
fitou-me com grande tristeza e deu-me um abraço apertado. Sabia que, daquele dia em
diante, eu seria considerada um grande perigo para todos os homens, até ficar sob a
proteção do casamento e fechada atrás de paredes.
Alimed possuía um luxuoso apartamento de três pisos no Cairo, em pleno
centro da cidade. Alimed e Nura instalaram-se no primeiro por uma questão de
privacidade, no segundo ficaram as duas criadas filipinas, os três filhos pequenos de
Nura, Sara e eu.
Ali, Hadi e o segurança ocuparam o terceiro. Sara e eu abraçamo-nos de alegria
quando soubemos que Ali e Hadi ficariam separados de nós por um andar.
Na nossa primeira noite, estava combinado que Alimed, Nura, Ali e Hadi iriam a
um clube noturno ver a dança do ventre. Alimed era de opinião de que Sara e eu
devíamos ficar em casa com as crianças e as criadas filipinas. Sara não protestou, mas
eu defendi o nosso caso com tanta eloqüência que Alimed cedeu.
Com catorze anos, fiquei deslumbrada com a terra dos faraós e elegi
alegremente o Cairo como a minha cidade preferida de todos os tempos. Essa ligação
ao Cairo nunca vacilou. A excitação daquela cidade ínflamou-me com uma paixão
jamais sentida por mim antes e que, ainda hoje, não consigo explicar totalmente. As
ruas eram incessantemente percorridas por homens e mulheres em busca de aventura
e oportunidade. Dei-me conta da aridez e da falta de estímulo que a minha vida tivera
até ali, pois via que o Cairo era o oposto das nossas cidades árabes, estas, aos meus
olhos, estéreis e mortiças.
Sentia-me incomodada com a pobreza extrema, no entanto não era
desencorajante, pois via nela uma profunda força de vida. A pobreza pode transformar
uma pessoa numa tocha flamejante em busca de mudança e revolução, sem as quais a
humanidade nunca sairia da estagnação. Lembrei-me de novo da Arábia Saudita e
percebi que a nossa vida por lá deveria conhecer um pouco de pobreza e
necessidades para nos obrigar a renovar a nossa vida espiritual.
Com efeito, existem muitas classes de pessoas na minha terra, desde os vários
níveis da família real até aos trabalhadores assalariados inferiores. Mas ninguém,
incluindo os operários estrangeiros, fica com as necessidades básicas por satisfazer. O
nosso Governo assegura o bem-estar de todos os sauditas. Cada elemento masculino
da população dispõe de uma casa, assistência médica e medicamentosa, educação,
um negócio que lhe permita viver, empréstimos livres de juros e até, em caso de
necessidade, dinheiro para a alimentação. As nossas cidadãs estão sob a proteção dos
homens da família, quer se trate do pai, marido, irmão ou primo.
A satisfação das necessidades básicas faz com que, na minha terra, a centelha
de vida gerada pelo desejo material falte tristemente. É por causa desta situação que já
desespero de alguma vez vê-la evoluir. Nós, Sauditas, somos demasiado ricos,
estamos demasiado instalados na nossa apatia para mudar. Quando íamos a
atravessar a cidade atarefada do Cairo, dei voz aos meus pensamentos, no entanto
reparei que a única pessoa que me prestou atenção e entendeu a essência das minhas
idéias foi Sara.
O Sol começara a pôr-se e o céu a ficar dourado por trás dos contornos
definidos das pirâmides. O Nilo, generoso e lento, respirava vida por entre a cidade, até
ao deserto. Ao observá-lo, senti a vida correr em turbilhão pelas minhas veias.
Ali e Hadi estavam furiosos por Sara e eu - duas mulheres solteiras - termos tido
permissão para ir ao clube noturno. Hadi falou longa e seriamente com Ali sobre a
deterioração dos valores da nossa família. Declarou, com satisfação presumida, que
todas as suas irmãs tinham casado com catorze anos e eram cuidadosamente
guardadas pelos homens da sua família. Disse que, como religioso, teria de apresentar
queixa ao nosso pai quando regressássemos da viagem. Sara e eu, encorajadas pela
distância a que estávamos de Riade, fizemos cara de desprezo e afirmamos que ele
ainda não era religioso. Dissemos-lhe, no calão que aprendêramos ao assistir a filmes
americanos, que fosse "bugiar".
Hadi devorava as dançarinas com os olhos, fazendo observações rudes sobre
partes dos seus corpos, no entanto jurava a Ali que não passavam de prostitutas e que,
se dependesse da sua vontade, seriam apedrejadas. Hadi não passava de um cretino
pomposo. Até Ali se fartou da sua atitude superior e começou a tamborilar
impacientemente com os dedos sobre o tampo da mesa e a olhar em volta.
Depois dos comentários e da atitude de Hadi, fiquei desconcertada pelas suas ações
no dia seguinte.
Alímed contratou um motorista para levar Nura, Sara e eu às compras. Ele foi,
por seu lado, encontrar-se com um homem de negócios. O segurança, que também
fazia de motorista, levou as criadas filipinas e as crianças até à piscina do Mena House
Hotel. Quando saímos do apartamento, Ali e Hadi andavam por ali, ainda não refeitos
da noite anterior.
O calor asfixiante da cidade depressa fatigou Sara, de modo que me ofereci
para voltar com ela para o apartamento e fazer-lhe companhia até Nura terminar as
suas compras. Nura concordou e mandou o motorista levar-nos. Depois regressaria
para a buscar.
Quando entramos no apartamento, ouvimos gritos abafados. Sara e eu
seguimos na direção do barulho e fomos dar ao quarto de Ali e Hadi. A porta não
estava fechada e, de repente, apercebemo-nos do que se desenrolava diante dos
nossos olhos. Hadi estava a violar uma menina que não devia ter mais de oito anos de
idade, enquanto Ali a segurava. Havia sangue por todo o lado. O nosso irmão e Hadi
riam.
Ao ver a cena traumatizante, Sara ficou histérica, começou a gritar e afastou-se
a correr. O rosto de Ali transformou-se numa máscara de fúria e empurrou-me para fora
do quarto, atirando-me ao chão. Corri atrás de Sara. Ficamos encolhidas a um canto,
no nosso quarto.
Quando não fui capaz de continuar a ouvir os sons de terror que continuavam a
filtrar-se até ao nosso andar, desci silenciosamente a escada. Tentava,
desesperadamente, pensar numa ação a tomar quando tocaram à campainha. Vi Ali
abrir a porta a uma mulher egípcia com cerca de quarenta anos. Entregou quinze libras
egípcias à mulher e perguntou-lhe se tinha mais filhas. Esta respondeu-lhe que sim e
que voltaria no dia seguinte. Hadi acompanhou a criança chorosa até à porta. A mãe,
sem mostrar a menor emoção, pegou na mão da filha lavada em lágrimas e a coxear e
afastou-se.
Ahmed não se mostrou surpreendido quando Nura, furibunda, lhe contou o que
se passara. Compôs uma cara séria e disse que se inteiraria dos pormenores. Mais
tarde, disse-lhe que fora a própria mãe a vender a filha e que ele nada podia fazer.
Apesar de terem sido apanhados naquele ato vergonhoso, Ali e Hadi agiram
como se nada se tivesse passado. Ao escarnecer de Hadi e ao perguntar-lhe como
poderia ele ir para religioso, riu-se despudoradamente na minha cara. Voltei-me para
Ali e, ao dizer-lhe que contaria ao nosso pai que ele andava a atacar meninas, riu-se
ainda com mais força que Hadi. Inclinou-se para mim e declarou:
- Conta-lhe. Não me importo!
Disse que fora o próprio pai a dar-lhe o nome de um homem a contatar, tendo
em vista aquele mesmo tipo de serviço. Sorriu e observou que as meninas eram mais
divertidas e, além disso, o pai fazia o mesmo quando ia ao Cairo.
Tive a sensação de que era eletrocutada; o meu cérebro ardia, fiquei de boca
aberta e a olhar, pasmada, para o meu irmão. Foi a primeira vez que me veio à idéia
que todos - todos - os homens eram maus. Tive vontade de destruir a recordação que
me ficava daquele dia e deslizar novamente para as brumas da minha infância.
Afastei-me silenciosamente. Comecei a temer o que me viria a ser revelado a seguir no
mundo cruel dos homens.
Continuo a apreciar o Cairo como a cidade da luz, mas a decadência derivada
da pobreza fez-me repensar as minhas teorias anteriores. Mais para o fim dessa
semana, vi a mesma mãe egípcia bater à porta do edifício com outra menina pela mão.
Quis interrogá-la, descobrir como podia uma mãe vender as suas filhas. Ela viu o meu
ar determinado de curiosidade e afastou-se apressadamente.
Sara e eu conversamos longamente com Nura acerca do fenômeno e esta
suspirou, dizendo que Ahmed lhe contara que se tratava de um hábito vulgar em quase
todo o mundo. Quando exclamei, iradamente, que preferiria morrer à fome do que
vender as minhas filhas, Nura concordou, mas disse que isso era fácil de dizer por
quem nunca passara fome.
Deixamos o Cairo e as suas misérias para trás. Sara teve, finalmente, a
oportunidade de conhecer a Itália. Valeria o seu ar radiante as penas que a tinham
libertado para ir ali? Declarava, sonhadora, que a realidade se sobrepusera às suas
fantasias.
Passamos pelas cidades de Veneza, Florença e Roma. Ainda tenho nos
ouvidos a alegria e espontaneidade do riso dos Italianos. Acho que o amor que têm
pela vida é uma das grandes bênçãos da terra, bem mais importante, ainda, do que o
contribuiu que deram para a arte e a arquitetura. Nascida numa terra sombria,
consola-me a idéia de um país que não se toma demasiado seriamente.
Em Milão, Nura gastou mais dinheiro em poucos dias do que a maioria das
pessoas numa vida inteira. Dava a impressão de que ela e Ahmed compravam
freneticamente, com um desejo profundo de preencherem não sei que vazio de solidão
nas suas vidas.
Hadi e Ali passaram o tempo a comprar mulheres, pois as ruas de Itália estão
sempre cheias, dia e noite, de belas jovens, disponíveis para quem possa pagar. Via Ali
como sempre fora, um jovem egoísta e exclusivamente preocupado com o seu prazer.
Mas eu tinha a certeza de que Hadi era, de longe, mais desprezível pois comprava
mulheres e, no entanto, condenava-as pelo papel que desempenhavam no ato.
Desejava-as mas odiava-as, assim como ao sistema que lhes dava liberdade
para fazerem o que quisessem. A sua hipocrisia era, para mim, a essência da natureza
pérfida do homem.
Quando o nosso avião tocou no solo de Riade, preparei-me para mais situações
desagradáveis. Sabia que, com catorze anos, me considerariam uma mulher e que me
aguardava um destino impiedoso. Apesar de a minha infância não ter sido muito fácil,
sentia uma ânsia inesperada de me agarrar à minha meninice. Não tinha dúvidas de
que, como mulher, estaria em oposição constante à ordem social da minha terra, que
sacrifica quem pertence ao meu sexo.
Os meus receios em relação ao futuro em breve se esfumaram diante da agonia
que iria enfrentar. Ao chegar a casa, soube que a minha mãe estava a morrer.
FIM DA JORNADA

Uma das certezas da vida é a morte. A minha mãe, que acreditava piamente nas
palavras do profeta Maomé, não se sentia apreensiva em relação ao fim da jornada da
sua vida. Segui ra os preceitos exemplares de uma boa muçulmana e sabia que só
poderia esperá-la a recompensa. A sua única mágoa e receio eram as filhas que
deixava por casar.
Ela era a nossa força, o nosso apoio, e sabia que, quando se fosse embora, elas
ficariam entregues a si próprias. A minha mãe confessou que já sentia a vida a
desvanecer-se em si na altura da nossa partida. Não dispunha de outras bases para
esse conhecimento além de três visões extraordinárias que tivera em sonhos.
Seus pais haviam sucumbido a febres tinha ela oito anos de idade. Como única
menina da família, minha mãe tratara dos pais durante o breve período que durara a
sua doença.
Ambos pareciam estar a recuperar quando, no meio da fúria revoltante de uma
terrível tempestade de areia, o pai se erguera sobre um dos cotovelos, sorrira para as
nuvens, murmurara quatro palavras, "Eu vejo o jardim", e morrera. A sua mãe seguira-o
pouco depois, sem revelar o menor indício do que testemunhara aguardá-la. A minha
mãe, deixada aos cuidados dos quatro irmãos mais velhos, casara muito jovem com o
meu pai.
O meu avô materno fora um homem bom e compassivo. Amara a filha tal qual
os filhos. Enquanto os homens das outras tribos encaravam, de má cantadora, o
nascimento de uma filha, o meu avô ria e dizia-lhes que deviam louvar Deus por lhes
ter trazido um toque de amenidade ao lar. A minha mãe disse que, caso o seu pai
tivesse vivido mais tempo, jamais teria casado tão nova. Estava certa de que teria
podido dispor de mais uns anos entregue à liberdade da infância. Sara e eu
encontrávamo-nos sentadas à beira da sua cama quando nos confiou os seus
perturbastes sonhos. A primeira das suas visões deu-se quatro noites antes de termos
recebido notícia da tentativa de suicídio de Sara.
Encontrava-me numa tenda beduína. Era a mesma que a minha família tinha
nos meus tempos de criança. Fiquei admirada por ver os meus pais, jovens e
saudáveis, sentados ao lado de uma fogueira a prepararem café. Ouvia os meus
irmãos à distância, a trazerem o rebanho de carneiros ao fim de um dia de pasto.
Precipitei-me para os meus pais, mas eles não podiam ver-me nem ouvir-me a gritar
pelos seus nomes.
"Dois dos meus irmãos, os que já morreram, entraram na tenda e sentaram-se
ao lado dos meus pais. Beberam leite de camela em pequenas taças, enquanto o meu
pai triturava os grãos de café para preparar a bebida. O sonho acabou quando o meu
pai citou uns versos que fizera sobre o paraíso que aguardava todo o bom muçulmano.
Os versos eram simples, no entanto pareceram-me reconfortantes. Eram assim:

Rios serenos fluem,


árvores sombreiam o amarelo do sol.
Fruta amontoa-se aos pés,
O leite e o mel não têm fim.
Seres amados aguardam os que estão aprisionados na terra.
O sonho terminara. Minha mãe disse que pouca importância lhe deu, além de
achar que talvez fosse uma mensagem de alegria de Deus, assegurando-a de que
tinha os pais e a família no Paraíso. Cerca de uma semana depois de Sara ter
regressado, a mãe teve uma segunda visão.
Dessa vez todos os membros falecidos da sua família estavam sentados à
sombra de uma palmeira. Comiam alimentos deliciosos em recipientes de prata. Mas
agora viram-na e os pais levantaram-se e vieram saudá-la. Pegaram-lhe na mão e
convidaram-na a sentar-se e a comer.
A minha mãe contou que se assustou, no sonho, e tentou fugir, mas a mão do
seu pai apertou a dela com mais força. A mãe lembrou que ela tinha filhos pequenos de
quem cuidar e implorou ao pai que a deixasse ir, que ela não tinha tempo para se
sentar a comer. Disse que a mãe lhe tocara no ombro e lhe dissera: "Fadila, Deus
velará pelas tuas filhas. Está a chegar a altura de as deixares ao Seu cuidado."
A minha mãe acordou do seu sonho. Contou que tivera a noção de que o seu
tempo na terra estava a chegar ao fim e que em breve iria ter com aqueles que a
haviam precedido.
Duas semanas depois da nossa partida, a minha mãe começou a ter dores nas
costas e na nuca. Sentia-se tonta e enjoada. A dor era a sua mensagem; sabia que o
seu fim se aproximava. Foi ao médico e falou-lhe dos sonhos e da nova dor. Este não
ligou a menor importância aos sonhos mas aparentou um ar grave ao ouvir a descrição
da dor. Exames especiais mostraram que a mãe tinha um tumor inoperável na espinha.
O último sonho da minha mãe deu-se na noite em que o médico confirmou a sua
doença terminal. Nele, ela encontrava-se sentada com a sua família celestial, comendo
e bebendo com muito boa disposição e à-vontade. Tinha a acompanhá-la os pais,
avós, irmãos e primos - parentes que tinham morrido muitos anos antes. A minha mãe
sorriu ao ver bebês a gatinhar pelo chão de um prado, atrás de borboletas. A mãe dela
dirigiu-lhe um sorriso e perguntou: "Fadila, porque não prestas atenção aos teus
bebês? Não reconheces quem é do teu próprio sangue?"
De repente, a mãe percebeu que as crianças eram, de fato, suas - eram as que
perdera em tenra idade. Foram todos para o seu colo, aqueles cinco bebês celestiais, e
ela começou a embalá-los e a cantar-lhes, apertando-os bem contra si. A nossa mãe ia
para junto daqueles que perdera e abandonava os que conhecera. Deixava-nos.
Felizmente, a minha mãe não sofreu muito antes de morrer. Gosto de pensar
que Deus viu que ela passara pelas duras provações da vida como uma pessoa de
bem e não achara necessário magoá-la mais com a dor da morte.
As filhas rodearam completamente o seu leito de morte. A mãe ficou deitada,
envolta no amor daquelas que eram da sua própria carne e sangue. Os seus olhos
pousaram, demoradamente, em cada uma de nós, não foram proferidas palavras mas
sentimos que se despedia. Ao fixar o olhar em mim, vi as suas preocupações
crescerem como uma tempestade, pois sabia que eu, rebelde como era, acharia a vida
bem mais dura que as outras.
As tias mais velhas da nossa família banharam e prepararam o corpo da minha
mãe para o seu regresso à terra. Vi envolverem o seu corpo, que os inúmeros partos e
a doença haviam tornado franzino, numa mortalha de linho branca. Tinha o rosto
sereno, agora livre de preocupações terrenas. Achei a minha mãe mais jovem na morte
do que em vida. Custava-me acreditar que dera à luz dezesseis filhos, dos quais onze
haviam sobrevivido.
A nossa família mais próxima, juntamente com todas as esposas do pai e
respectivos filhos, reuniram-se em nossa casa; foi lido um versículo do Alcorão, para
reconfortar os presentes. O corpo amortalhado da mãe foi então colocado no banco de
trás de uma limusine preta conduzido por Omar.
Os nossos costumes proíbem a presença de mulheres nos locais de enterro, no
entanto eu e as minhas irmãs impusemos a nossa vontade ao nosso pai; este cedeu
quando lhe prometemos que não choraríamos alto nem puxaríamos pelos cabelos. Foi
assim que a família inteira seguiu o carro fúnebre, formando uma caravana triste mas
silenciosa pelo deserto a dentro.
No islamismo, mostrar desgosto pelo falecimento de um ente querido indica
desagrado perante a vontade de Deus. Além disso, a nossa família é oriunda da região
Nayd da Arábia Saudita, e o nosso povo não exprime publicamente luto pela morte dos
familiares.
Os criados sudaneses já haviam preparado uma sepultura aberta de fresco no
deserto infindável da nossa terra. O corpo da nossa mãe foi ternamente depositado na
cova e o pano branco foi afastado do seu rosto por Ali, o único filho terreno que tinha.
As minhas irmãs juntaram-se umas às outras longe da derradeira morada da nossa
mãe, mas eu não fui capaz de desviar os olhos da sepultura. Fora a última filha a sair
do seu ventre; ficaria junto do seu revestimento terreno até ao último momento. Ao ver
os servos deitarem a areia vermelha do Rub al-Khali para cima do seu rosto e corpo,
encolhi-me.
Enquanto via a areia cobrir o corpo daquela que eu tanto adorara, lembrei-me,
repentinamente, de um lindo verso do grande filósofo libanês Kalifil Gibran: "Quem
sabe se um funeral entre os homens não é uma festa de casamento entre os anjos."
Imaginei a minha mãe ao lado de seus pais, com os seus pequeninos nos braços.
Certa, naquele momento, de que um dia voltaria a sentir os seus afagos meigos,
sustive as lágrimas e aproximei-me das minhas irmãs, chocando-as com o meu sorriso
de alegria e serenidade.
Citei o poderoso verso que Deus enviara para aliviar a minha dor e as minhas
irmãs anuíram entendendo perfeitamente a sabedoria contida nas palavras de Kalifil
Gibran.
Deixávamos a mãe para trás, na vastidão vazia do deserto, no entanto eu sabia
que já não importava que não tivesse ficado nenhuma lápide a marcar a sua presença
ali, ou que não tivesse havido nenhum serviço religioso a falar da mulher simples que
fora uma chama de amor durante todo o tempo que passara na Terra. Em
compensação estava agora com os seus outros entes queridos, aguardando a nossa
chegada.
Excepcionalmente, Ali parecia perdido, e eu sabia que estava tão
profundamente sentido como nós. O meu pai pouco falou e passou a evitar a nossa vila
desde o dia da morte da mãe. Mandava-nos recados através da sua segunda esposa,
que passara agora para a cabeça do grupo em substituição da minha mãe.
Um mês depois soubemos, através de Ali, que o nosso pai se preparava para
casar de novo, pois, na nossa terra, o normal é haver quatro esposas entre os muito
ricos e os beduínos muito pobres. O Alcorão diz que todas as esposas devem ser
tratadas dentro dos mesmos parâmetros. Os abastados da Arábia Saudita não têm
dificuldades em proporcionar igualdade às suas esposas. Os beduínos mais pobres só
precisam de erguer quatro tendas e fornecer comida. É por estas razões que se vêem
os muçulmanos mais ricos e os mais pobres com quatro mulheres. Somente a classe
média saudita é que tem de se contentar com uma única esposa, pois é-lhe impossível
dispor dos fundos necessários para proporcionar padrões de classe média a quatro
famílias separadas.
O pai tencionava desposar uma das primas reais, Randa, uma jovem com quem
eu brincara em pequena há muito tempo atrás, parecia-me. A jovem noiva tinha quinze
anos, mais um do que eu, que era a filha mais nova que ele tivera da minha mãe.
Quatro meses depois do enterro da minha mãe, fui ao casamento do meu pai.
Estava intratável e recusei-me a participar nas festividades - sentia uma animosidade
terrível.
Sabia que a memória da minha mãe, depois de esta lhe ter dado dezesseis
filhos e muitos anos de obediência, estava a ser tranqüilamente desrespeitada pelo
meu pai.
Não só estava furiosa com ele como também sentia um ódio imenso pela minha
antiga companheira de folguedos, Randa, que agora iria ser a quarta esposa,
preenchendo o vazio criado pela morte da minha mãe.
O casamento foi grandioso, a noiva era jovem e bonita. Quando o meu pai a
levou da enorme sala de baile para o leito de núpcias, a minha raiva em relação a
Randa caiu por terra. Abri os olhos de espanto ao reparar no seu rosto preocupado. Os
seus lábios tremiam de medo! Tal como uma chama violenta se extingue
instantaneamente, a visão do óbvio desespero de Randa aquietou o meu ódio,
transformando-o em terna comiseração. Envergonhei-me da minha hostilidade, pois vi
que ela era, como todas nós, uma mulher indefesa diante da poderosa e dominadora
virilidade saudita.
O pai partiu com a sua noiva para uma viagem prolongada que os levaria até
Paris e Monte Carlo. A mudança dos meus sentimentos levou-me a aguardar o
regresso de Randa e, enquanto isso, jurei despertar a nova esposa do meu pai para
um objetivo: liberdade para as mulheres da nossa terra. Não seria apenas dar a
conhecer a Randa novos desafios e sonhos de poder, mas sabia que o despertar
político e espiritual da jovem esposa também feriria o meu pai. Não conseguia
perdoar-lhe o fato de ter esquecido, com tanta facilidade, a mulher maravilhosa que
fora a minha mãe.

AMIGAS

Quando o meu pai e Randa regressaram da sua lua-de-mel, foram viver para a
nossa vila. Apesar de a minha mãe já não fazer parte do mundo dos vivos, os seus
filhos mais novos continuavam a residir na vila do pai e contava-se que a nova esposa
assumisse os deveres de uma mãe. Como eu era a filha mais nova, apenas com um
ano a menos que Randa, esse costume parecia, na nossa situação, ridículo. Contudo,
na Arábia Saudita não há possibilidade de modificar ou alterar situações em face de
condições especiais, de modo que Randa foi instalada na nossa casa, qual criança
mascarada de mulher e senhora de uma casa enorme.
Randa voltou da sua lua-de-mel calada, quase apática. Raramente falava,
nunca sorria e andava lentamente pela vila, como se receasse provocar algum dano ou
prejuízo. O meu pai parecia satisfeito com a sua nova propriedade, pois demorava-se
longas horas nos seus aposentos com a jovem noiva.
Passadas três semanas de uma atenção constante do pai em relação a Randa,
Ali deixou escapar um gracejo sobre a perícia sexual do pai. Perguntei ao meu irmão
se pensava no que Randa sentiria relativamente à questão - estar casada com um
homem muito mais velho e a quem não conhecia nem amava. A expressão de
indiferença de Ali não me deixou a menor dúvida de que não só nunca pensara nesse
pormenor como também tal consideração jamais germinaria no seu limitado
entendimento. Lembrou-me, eficazmente, que nada penetraria nunca no tenebroso mar
de egoísmo que é a mente de um homem saudita.
Randa e eu tínhamos filosofias diferentes. Ela achava que "O que está escrito na
tua testa será visto pelos teus olhos." Eu penso: "A imagem que está na tua mente será
fotografada pela tua vida." Além disso, Randa era penosamente envergonhada e
tímida, enquanto eu enfrento a vida com uma certa impetuosidade.
Reparei que os olhos de Randa estavam sempre atentos aos ponteiros do
relógio; algumas horas antes do pai chegar para o almoço ou para a refeição da noite,
começava a ficar agitada. Ele dera-lhe ordens para tomar as suas refeições antes da
sua chegada e para depois banhar-se e preparar-se para o receber.
Todos os dias, ao meio-dia, Randa ordenava ao cozinheiro que lhe servisse o
almoço. Comia frugalmente e em seguida retirava-se para os seus aposentos. O meu
pai chegava à vila, geralmente, por volta da uma da tarde, almoçava e depois ia ter
com a nova esposa. Saía de casa cerca das cinco horas e voltava para o seu escritório.
(Na Arábia Saudita, o horário de trabalho divide-se em dois turnos: das nove da manhã
à uma da tarde e das quatro da tarde às oito da noite.)
Ao ver o ar atormentado de Randa, ainda pensei em perguntar ao meu pai se
estava a seguir os ensinamentos do Alcorão - era suposto Deus ter instruído todos os
muçulmanos para dividirem os seus dias e noites por quatro esposas. Desde que
desposara Randa, as outras três esposas tinham sido virtualmente votadas ao
esquecimento. Mas, depois de pensar melhor, resolvi abster-me de tal arrojo.
De modo que as noites eram uma repetição da hora do almoço. Randa pedia o
jantar por volta das oito da noite, comia e enfiava-se nos seus aposentos para tomar
banho e preparar-se para o marido. Geralmente, só voltava a vê-la depois de o meu pai
sair para o trabalho, na manhã seguinte. Ela tinha ordens para esperar no quarto, até
ele sair.
A ansiedade que a vida desconsolada de Randa me provocava incentivava-me
à revolta. Eu tinha duas amigas cuja ousadia chegava a assustar-me; quem sabe a sua
vivacidade encorajasse Randa a tornar-se mais firme. Ao formarmos uni clube de
mulheres, cujos únicos membros eram Randa, as minhas formidáveis amigas e eu, mal
sabia que forças iria desencadear.
Pusemos o nome de "Lábios Vivos" ao nosso clube, pois tínhamos por objetivo
falar sobre a necessidade de combatermos o papel de submissão passiva da mulher na
nossa sociedade. Juramos solenemente concretizar os seguintes objetivos:
1. Aproveitarmos todas as oportunidades para deixar o espírito dos direitos da mulher
manifestar-se através da nossa voz.
2. Cada membro devia arranjar uma nova recruta por mês.
3. O nosso primeiro objetivo seria impedir o casamento de raparigas com velhos.
Nós, as mulheres jovens da Arábia Saudita, reconhecíamos que os homens da
nossa terra nunca empreenderiam reformas sociais para o nosso sexo, que teríamos
de ser nós a forçar a mudança. Enquanto a mulher saudita aceitar a autoridade do
homem, este mandará. Concluímos que cada mulher tinha, em termos individuais, a
responsabilidade de fomentar o desejo pelo controlo da sua vida e da de outras
mulheres que constassem do seu pequeno círculo. As nossas mulheres estão tão
amesquinhadas por séculos de sujeição que o nosso movimento tinha de começar por
despertar-lhes o espírito.
As minhas duas amigas, Nádia e Wafa, não pertenciam à família real, no
entanto eram filhas de importantes famílias da cidade de Riade.
O pai de Nádia possuía uma enorme firma de contratação. A sua disponibilidade
para conceder generosas comissões aos vários príncipes fazia com que atribuíssem à
sua empresa vantajosos contratos de construção civil. Empregava milhares de
trabalhadores estrangeiros do Sri Lanka, Filipinas e lémen. O pai de Nádia era quase
tão rico como os membros da realeza; não tinha a menor dificuldade em sustentar três
esposas e catorze filhos. Nádia tinha dezessete anos e era a filha do meio de outras
sete. Vira, desconcertada, as três irmãs mais velhas serem casadas por motivos de
interesse e conveniência familiares. Surpreendentemente, os três casamentos não
desagradaram às irmãs, que se sentiam felizes, com bons maridos. Nádia dizia que
aquele tipo de sorte não aconteceria sempre. Receava, com um pessimismo crescente,
que a casassem com um marido velho, feio e cruel.
Nádia era, na verdade, mais afortunada que a maioria das mulheres sauditas: o
pai determinara que prosseguisse os seus estudos. Dissera-lhe que não teria de casar
até aos vinte e um anos. A imposição deste limite incentivou-a a entrar em ação.
Declarou que, como já só lhe restavam quatro anos de liberdade, iria experimentar
todos os aspectos da vida durante esse tempo, ficando assim com recordações para os
anos monótonos de casamento que a aguardavam ao lado de algum velho.
O pai de Wafa era mutawa e o seu radicalismo conduzira a filha, por sua vez, a
extremos próprios. O pai tinha apenas uma mulher, a mãe de Wafa, no entanto era um
homem cruel e perverso. Wafa jurava que não queria nada com a religião que nomeava
homens como seu pai para chefes espirituais. Wafa acreditava em Deus e que Maomé
fora seu Profeta, mas achava que as suas mensagens haviam sido, de certa forma,
deturpadas pelos seus seguidores, pois nenhum Deus desejaria tanto sofrimento às
mulheres, metade da população mundial.
Wafa não precisava de ir além da sua própria casa. Sua mãe nunca era
autorizada a sair de casa; vivia como uma autêntica prisioneira, escravizada por um
homem de Deus.
Eram seis filhos, cinco dos quais do sexo masculino e adultos. Wafa fora uma
surpresa tardia para seus pais, e o pai ficara tão desiludido por ter uma filha que a
ignorava virtualmente, exceto para lhe dar ordens. Uma delas era permanecer em casa
e aprender a coser e a cozinhar. Wafa fora obrigada a usar a abaaya e a cobrir o
cabelo desde os sete anos. Desde os nove anos que, todas as manhãs, o pai lhe
perguntava se já lhe viera a primeira menstruação. Alarmava-o que a filha se
aventurasse a sair de rosto descoberto depois de Deus a classificar como mulher.
Era permitido a Wafa ter algumas amigas. As poucas que arranjara depressa se
afastaram, pois o pai ganhara o hábito de lhe perguntar arrojadamente, à frente delas,
se já estava menstruada.
A mãe de Wafa, farta e cansada das regras rígidas impostas pelo marido,
tomara a decisão tardia de se recusar, silenciosamente, a ceder às suas exigências.
Ajudava a filha a escapulir-se de casa e quando perguntavam pelo seu paradeiro, dizia
ao marido que estava a dormir ou a estudar o Alcorão.
Eu tinha-me na conta de ousada e rebelde, mas Wafa e Nádia fizeram parecer a
minha posição de luta em defesa da mulher insignificante e frágil. Diziam que eu nada
mais fazia do que estimular com inteligência - que a minha resposta a um problema era
falar interminavelmente nele -, mas que, na realidade, os meus esforços para ajudar as
mulheres eram ineficazes. Afinal de contas, a minha vida não mudara. Dei-me conta de
que tinham razão.
Nunca me esquecerei do incidente que teve lugar num edifício de
estacionamento no centro da cidade, perto do local a que os estrangeiros chamam
"quarteirão dos cortes", pois é aí onde os nossos criminosos ficam sem a cabeça ou a
mão às sextas-feiras, o nosso dia religioso.
Eu escondera a chegada da primeira menstruação ao meu pai, pois não tinha
pressa nenhuma de me encafuar dentro das vestes negras usadas pelas nossas
mulheres. Infelizmente, Nura e Ahmed decidiram que eu já adiara o inevitável por
demasiado tempo.
Nura comunicou-me que, se eu não contasse imediatamente ao meu pai, ela
própria o faria. De modo que reuni as minhas amigas, incluindo Randa, e deitamos
mãos à missão de escolher o meu novo "uniforme", lenço negro sobre o véu e abaaya
da mesma cor.
Omar conduziu-nos até à entrada da área de souq e nós, quatro mulheres,
apeamo-nos, combinando que nos encontraríamos com ele dali a duas horas, no
mesmo local.
Omar acompanhava-nos sempre aos souqs, para assim manter as mulheres da
família sob vigilância, mas nesse dia tinha um recado importante a fazer e aproveitou a
oportunidade proporcionada pelas nossas compras. Além do mais, a nova esposa do
pai acompanhava a filha e a presença aquiescente de Randa tranqüilizou Ornar. Não
vira qualquer indício de que Randa começara já a despertar, lentamente, do seu
prolongado e enfadonho sono de submissão.
Deambulamos pelas lojas, examinando, com o auxílio das mãos, a variedade de
lenços, véus e abaayas. Eu queria algo especial, algo que me fizesse sobressair no
meio do oceano de mulheres trajadas de preto. Amaldiçoei-me a mim mesma por não
ter uma abaaya feita em Itália, com a belíssima seda italiana e os desenhos intrincados
de um artista, de modo a que, à minha passagem, as pessoas percebessem que, de
baixo daquela cobertura negra, havia uma mulher com estilo e classe.
Todas estavam veladas menos eu; quando íamos a caminho do centro dos
souqs para prosseguir a nossa busca, reparei que Nádia e Wafa, de cabeças juntas,
sussurravam e soltavam risadas. Randa e eu aceleramos o passo e perguntámos-lhes
o que se passava de tão divertido. Nádia fitou-me e falou-me através do véu. Disse que
estavam a lembrar-se de um homem que tinham conhecido na sua última ida às lojas.
Um homem? Olhei de novo para Randa. Estávamos ambas com dificuldade em
entender o que elas queriam dizer. Levamos uma hora a encontrar uma abaaya, véu e
lenço adequados; os produtos disponíveis pareciam deveras limitados na sua
variedade.
A vida mudou de um momento para o outro. Eu entrara no souq como uma
pessoa cheia de vida, o meu rosto exprimia as minhas emoções perante o mundo. Saí
da loja coberta dos pés à cabeça, uma criatura de preto e sem rosto.
Devo reconhecer que os primeiros momentos com véu foram excitantes. Para
mim, o véu era uma novidade e devolvia, interessada, os olhares que os rapazes
sauditas adolescentes lançavam àquela figura de negro em que eu me transformara.
Sabia que desejavam que uma brisa soprasse inesperadamente, afastando o véu do
meu rosto de maneira a poderem vislumbrar um pedacinho da minha pele proibida.
Senti-me, por um momento, algo de belo, um trabalho tão finamente talhado que era
preciso cobrir-me para proteger os homens dos seus desejos incontroláveis.
No entanto, a novidade de usar véu e abaaya depressa se desvaneceu, Quando
saímos da área fresca do souq para o sol abrasador, o ar faltou-me e tentei inalá-lo
desesperadamente através do tecido preto e transparente. O ar, filtrado pelo pano fino
e leve, chegava-me à boca seco e a saber a mofo. Comprara o véu mais fino
disponível, no entanto tinha a impressão de estar a ver a vida através de uma barreira
densa. Como conseguiriam as mulheres ver através de véus feitos de tecidos ainda
mais grossos? O céu deixara de ser azul, o fulgor do Sol diminuíra; de repente, dei-me
conta de que, a partir daquele momento, deixaria de poder apreciar a vida nas suas
verdadeiras cores, fora de casa. O mundo pareceu-me, subitamente, um lugar sombrio.
E perigoso, também! Hesitei e tropecei no passeio esburacado e fendido, com medo de
partir um tornozelo ou perna.
As minhas amigas, ao verem os meus movimentos desajeitados e os meus
esforços, infrutíferos, para ajeitar o véu, deitaram a rir à gargalhada. Esbarrei contra
várias filhas de uma mulher beduína e senti inveja por estarem livres do véu. A mulher
beduína usa o véu por cima do nariz, deixando os olhos Livres. Oh, como desejaria ser
uma beduína! Cobriria o meu rosto de boa vontade se, ao menos, pudesse deixar os
meus olhos livres para ver as infinitas mudanças da vida à minha volta.
Chegamos cedo ao local de encontro indicado por Omar. Randa consultou o
relógio; só dali a cerca de uma hora é que chegaria. Sugeriu que regressássemos à
área do souq, pois, ali, o sol estava demasiado quente. Nádia e Wafa perguntaram-nos
se nos queríamos divertir. Eu respondi imediatamente que sim. Randa descansava ora
sobre um pé, ora sobre o outro, procurando Ornar; não era difícil perceber que só a
palavra divertir a perturbava. Eu, graças ao meu maravilhoso poder de persuasão,
convencia a alinhar com Nádia e Wafa. Como nunca infringira nenhuma das regras
impostas sobre as mulheres, sentia curiosidade. Quanto à pobre Randa, esta
acomodava-se, simplesmente, a uma vontade mais forte.
As duas raparigas trocaram sorrisos e disseram-nos que as seguíssemos.
Dirigiram-se para um parque de estacionamento que ficava por baixo de um edifício
perto da área do souq. Era ali que os homens que trabalhavam nos edifícios próximos
estacionavam os seus automóveis.
Nós, quatro mulheres, apressamo-nos a atravessar a movimentada passagem
de peões. Randa deu-me uma palmada na mão quando ergui o véu para poder ver o
trânsito. Demasiado tarde, percebi que expusera o meu rosto a todos os homens na
rua! Estes pareciam aparvalhados com a sorte que tinham tido de ver a face de uma
mulher num local público! Apercebi-me imediatamente que mais valia ser atropelada
por um carro veloz do que cometer semelhante ato de exibicionismo.
Quando chegamos junto dos elevadores do parque de estacionamento, fiquei
siderada pela atitude das minhas amigas. Wafa e Nádia abordaram um estrangeiro, um
sírio extraordinariamente bem-parecido. Perguntaram-lhe se desejava divertir-se um
pouco.
Por um momento, o homem deu a impressão que ia dar um pulo e deitar a
correr; olhou à esquerda e à direita e carregou no botão do elevador. Por fim, achou
melhor não se afastar, tendo em vista a oportunidade rara de conhecer mulheres
sauditas disponíveis e, possivelmente, bonitas. Quis saber qual era o tipo de diversão.
Wafa perguntou ao sírio se tinha automóvel e apartamento privado. Respondeu que
sim, que dividia um apartamento com um libanês. Nádia perguntou se o amigo
precisava de uma namorada, ao que o sírio, sorrindo, respondeu que sim, que os dois
precisavam.
Randa e eu recompusemo-nos o suficiente para conseguir andar. Seguramos
nas nossas abaayas e corremos para fora do parque de estacionamento receando
pelas nossas vidas. Perdi o meu lenço no processo; ao virar-me para o ir buscar,
Randa embateu em mim. Caiu de costas e ficou estendida em cima da areia, com as
pernas proibidas à mostra.
Quando Nádia e Wafa se reuniram a nós, respirávamos ofegantemente,
apoiadas à montra de uma loja. Elas agarravam-se uma à outra, rindo. Tinham-nos
observado enquanto eu ajudava Randa a levantar-se.
Sussurrando, demos-lhes a conhecer a nossa fúria. Como podiam ter cometido
tão estúpido ato? Engatar homens estrangeiros! E que espécie de divertimento
planeavam, afinal de contas? Não sabiam que Randa seria apedrejada e nós três
aprisionadas ou pior? Brincadeira era brincadeira, mas o que elas estavam a fazer era
suicídio!
Wafa e Nádia limitaram-se a rir e a encolher os ombros diante da nossa
explosão. Sabiam que, se fossem apanhadas, seriam punidas, porém, não se
importavam. Para elas, o futuro próximo apresentava-se tão insípido que valia a pena
correr o risco. Além disso, podiam conhecer algum estrangeiro simpático e casar com
ele. Qualquer homem era preferível a um saudita!
Tive a impressão de que Randa ia ter uma síncope. Correu para o meio da rua,
olhando para um lado e para o outro à procura de Ornar. Sabia que o meu pai não teria
contemplações se a apanhasse naquela situação. Estava aterrorizada.
Omar, atento e perspicaz, perguntou-nos o que acontecera. Randa hesitou e
começou a falar, mas eu interrompia e contei a Omar que víramos um rapaz novo
roubar um colar no souq do ouro. O lojista espancarão antes de ser rudemente levado
para a prisão por um polícia. Ao dizer a Ornar que ficáramos perturbadas por ele ser
tão novo e sabermos que iria ficar sem a mão, a voz tremia-me. Reparei, aliviada, que
Ornar acreditara na minha história. Randa procurou a minha mão disfarçadamente, por
baixo da minha túnica preta, e apertou-ma com gratidão.
Mais tarde, Nádia e Wafa puseram-me a par do que chamavam de "diversão".
Travavam conhecimento, nos elevadores dos parques de estacionamento, com
homens estrangeiros, normalmente dos países árabes vizinhos, ocasionalmente algum
inglês ou americano. Escolhiam homens bonitos; homens por quem pudessem
apaixonar-se. De vez em quando, os indivíduos assustavam-se e saltavam para dentro
do elevador, zarpando para outro andar. Noutras ocasiões, mostravam-se
interessados. Se o homem abordado ficasse intrigado, combinavam encontrar-se
noutra altura, no mesmo elevador. Pediam-lhe que tentasse arranjar uma carrinha para
ir buscá-las. Mais tarde, em data e hora combinadas, as raparigas fariam de conta que
iam às compras. O motorista deixava-as na área do souq; compravam alguns artigos e
depois seguiam para o local de encontro. às vezes, os homens ficavam com medo e
não apareciam; outras, aguardavam-nas cheios de nervosismo. Se o homem
conseguira arranjar carrinha, as raparigas certificavam-se de que não havia ninguém
por perto e depois saltavam rapidamente para a parte de trás. O homem guiaria
cuidadosamente até ao seu apartamento, e o mesmo grau de precaução seria usado
para a entrada das raparigas. Se fossem apanhados, a sentença seria severa,
muito provavelmente a morte para todos os envolvidos.
A explicação para a carrinha era clara. Na Arábia Saudita, homens e mulheres
não podem andar no mesmo meio de transporte, exceto se forem parentes próximos.
Se os mutawas tivessem alguma suspeita, fariam parar o veículo e pediriam a
identificação.
Também é proibido homens solteiros receberem mulheres nos seus
apartamentos ou casas. à menor desconfiança de indecência, não é invulgar os
mutawas cercarem a casa de um estrangeiro e levarem todos os que ali se encontram,
homens e mulheres, para a cadeia.
Eu receava pelas minhas amigas. Alertei-as, vezes sem conta, para as
conseqüências. Elas eram jovens e descuidadas, cheias de tédio com a vida que
levavam. Relataram-me, rindo, outras atividades a que se entregavam por diversão.
Discavam números ao acaso, até algum estrangeiro atender. Qualquer homem servia,
desde que não fosse saudita ou iemenita. Perguntavam-lhe se estava sozinho e a
precisar de companhia feminina. De uma maneira geral, a resposta era positiva, pois
são muito raras as mulheres disponíveis na Arábia Saudita, e a maioria dos
estrangeiros vem trabalhar para este país com um visto para pessoa só. Uma vez
estabelecido a escolha de um homem, as raparigas pediam-lhe que lhes falasse sobre
o seu corpo. Lisonjeado, era comum o homem descrever graficamente o seu corpo,
pedindo-lhes, depois, que fizessem o mesmo. Nessa altura, Nádia e Wafa
retratavam-se dos pés à cabeça, com pormenores lascivos. Era extremamente
divertido, afirmaram, e por vezes encontravam-se com o homem em questão, mais
tarde, no mesmo estilo dos amantes do parque de estacionamento.
Tive curiosidade em saber até que ponto iriam as intimidades das minhas
amigas com esses amantes. Atônita, ouvi-as dizer que faziam tudo menos a
penetração. Não podiam arriscar-se a perder a sua virgindade, pois sabiam quais as
conseqüências que enfrentariam na noite de núpcias. Os maridos devolvê-las-iam aos
pais e estes também as rejeitariam.
Os mutawas investigariam. Poderiam perder a vida; mesmo que assim não
fosse, ficariam sem nenhum lugar para onde ir.
Wafa disse que, nos seus encontros com esses homens, ela e Nádia nunca
tiravam o véu. Despiam toda a roupa, exceto o véu. Os homens provocavam-nas e
imploravam que o tirassem, mas as raparigas diziam que se sentiam mais seguras se
eles não lhes vissem o rosto. Contaram que, se algum homem se tivesse mostrado
sério nas suas intenções, elas teriam considerado a possibilidade de exporem os seus
rostos. Mas, claro, não acontecera com nenhum deles. Também eles só procuravam
divertir-se. As minhas amigas tentavam, desesperadamente, encontrar uma "saída"
para a noite escura e interminável que um futuro próximo lhes reservava. Randa e eu
chorávamos quando falávamos sobre o comportamento das nossas amigas. Eu sentia
um ódio cada vez maior pelos costumes da minha terra. A total falta de controle e de
liberdade para o nosso sexo conduzia jovens como Wafa e Nádia a atos desesperados,
atos que lhes custariam, sem dúvida, a vida, se fossem descobertos. Perto do final do
ano, Nádia e Wafa foram presas. Tiveram a pouca sorte de membros do
autoproclamado Comitê dos Bons Costumes, que andava pelas ruas de Riade a tentar
apanhar pessoas em atos proibidos pelo Alcorão, ter sabido das suas atividades
secretas. Assim que Wafa e Nádia entraram na parte de trás de uma carrinha, um carro
carregado de jovens zelosas sauditas avançou para a frente do veículo,
bloqueando-lhe a passagem. Havia semanas que vigiavam a zona, depois de um dos
membros do comitê, na altura a trabalhar, ter ouvido um palestiniano falar de duas
mulheres veladas que o abordaram com propostas indecentes no elevador da cave.
A vida de Nádia e Wafa foi poupada pelo fato de terem os hímens intactos. Nem
o Comitê dos Bons Costumes nem o Conselho Religioso ou os pais acreditaram na
improvável invenção de que tinham, simplesmente, pedido uma boleia ao homem
devido ao atraso do seu motorista.
O Conselho Religioso interrogou todos os homens que trabalhavam na área e
localizou um total de catorze que declarou ter sido abordado por duas mulheres
veladas. Nenhum dos homens confessou ter participado em quaisquer atividades com
as mesmas.
Depois de três meses de prisão rígida, o comitê concedeu a liberdade a Nádia e
Wafa por falta de provas incriminatórias de atividade sexual, devolvendo-as aos pais
para serem devidamente punidas.
Surpreendentemente, o pai de Wafa, o inflexível homem da religião, teve uma
conversa com a filha e perguntou-lhe qual a razão de tais prevaricações. Ao ouvi-la
chorar e falar dos seus sentimentos de rejeição e desespero, exprimiu comiseração
pela sua infelicidade. Apesar da sua mágoa e compreensão, informou Wafa de que
decidira afastá-la de mais tentações. Aconselhou-a a estudar o Alcorão e a aceitar a
vida simples predestinada às mulheres, bem longe da cidade. Combinou um
casamento apressado com um mutawa beduíno de uma pequena aldeia. O homem
tinha cinqüenta e três anos e Wafa, que seria a sua terceira esposa, dezessete.
Ironicamente, foi o pai de Nádia a ser dominado por uma raiva terrível.
Recusou-se a falar com a filha e ordenou-lhe que não saísse do quarto até ele se
decidir sobre o castigo a dar-lhe.
Alguns dias mais tarde, o meu pai chegou cedo do escritório e chamou Randa e
eu à sua sala de estar. Incrédulas, ouvimo-lo contar que, na manhã seguinte,
sexta-feira, às dez da manhã, o pai iria afogar Nádia na piscina da família. O pai disse
que toda a família assistiria à execução.
Quando o meu pai perguntou a Randa se ela e eu tínhamos, alguma vez,
acompanhado Nádia e Wafa naquelas ações vergonhosas, senti um baque no coração.
Levantei-me e ainda comecei a negar veementemente, mas o meu pai gritou-me e
empurrou-me de volta ao sofá. Randa rompeu a chorar e relatou a história daquele dia,
já tão afastado, em que fôramos comprar a minha primeira abaaya e véu. O meu pai
deixou-se ficar sentado sem se mexer e sem pestanejar, até Randa terminar. Depois
interrogou-nos sobre o nosso clube de mulheres, o tal que se chamava "Lábios". Disse
que mais valia contarmos a verdade, pois Nádia confessara todas as nossas atividades
há dias. Ao ver que Randa não conseguia falar, tirou da sua pasta os nossos papéis do
clube. Passara o meu quarto em revista e encontrara os nossos registros e listas de
membros. Pela primeira vez na minha vida, senti a boca seca e os meus lábios como
que fechados a cadeado.
O meu pai voltou a meter, calmamente, os papéis dentro da pasta. Olhou Randa nos
olhos com firmeza e declarou:
- Divorcio-me de ti deste dia em diante. O teu pai mandará um motorista
buscar-te daqui a uma hora, para te levar de novo para a tua família. Ficas proibida de
contactar com os meus filhos.
Para meu horror, o meu pai virou-se lentamente para mim.
- Tu és minha filha. A tua mãe foi uma boa mulher. Ainda assim, se tivesses
participado naquelas atividades com Nádia e Wafa, eu respeitaria os ensinamentos do
Alcorão e decretaria a tua morte. Evitarás chamar a minha atenção e concentrar-te-ás
nos teus estudos até eu te encontrar um casamento adequado. - Fez uma pausa e
acercou-se de mim, fitando-me nos olhos com dureza. - Sultana, aceita
obedientemente o teu futuro, pois não tens alternativa.
O meu pai inclinou-se para pegar na pasta com os papéis e, sem dirigir um olhar
a Randa ou a mim, saiu da sala.
Humilhada, segui Randa até ao seu quarto, onde a vi juntar as suas jóias,
roupas e livros num monte desordenado, em cima da cama enorme. O seu rosto
mostrava-se completamente impassível. Não fui capaz de proferir uma palavra. A
campainha da porta tocou demasiado depressa e dei por mim a ajudar os criados a
levarem a bagagem de Randa para o carro. Esta, sem uma palavra de despedida, saiu
de minha casa, mas não do meu coração. às dez da manhã do dia seguinte, fui para a
varanda do meu quarto, sozinha, com o olhar perdido, sem ver, à distância. Pensava
em Nádia e imaginava-a envolvida em correntes pesadas, com um capuz negro enfiado
na cabeça, mãos a erguê-la do chão e a baixá-la para dentro das águas
azuis-esverdeadas da piscina da sua família. Fechei os olhos e senti o seu corpo a
debater-se, a boca a abrir-se em busca de ar, os pulmões a dilatarem-se com a entrada
violenta da água. Recordei os seus olhos castanhos brilhantes e a sua maneira
especial de erguer o queixo ao mesmo tempo que enchia a sala de riso.
Lembrei o toque sedoso da sua pele clara e imaginei, com um esgar de horror, o
trabalho rápido da terra cruel sobre tão grande macieza. Consultei o meu relógio e vi
que eram dez e dez e senti o meu peito comprimir-se com a certeza de que Nádia
nunca mais riria. Foi o momento mais dramático da minha jovem história, no entanto
sabia que os esquemas que as minhas amigas tinham para se divertir, por mais
condenáveis e lamentáveis que fossem, não deviam ter conduzido à morte de Nádia ou
ao casamento prematuro de Wafa. Aqueles atos, tão cruéis, eram o pior de todos os
comentários que se poderiam fazer sobre a sabedoria dos homens que consomem e
destroem, com indiferença e frieza, as vidas e os sonhos das suas mulheres.

MULHERES ESTRANGEIRAS

Depois da partida súbita de Randa, do casamento de Wafa e da morte de Nádia,


afundei-me no mais baixo nível de existência possível. Consigo lembrar-me de que
achava que o meu corpo já não necessitava do ar fresco da vida. Imaginava-me em
hibernação e queria sentir a respiração superficial e as batidas cardíacas diminuídas
com que os animais selvagens se mantinham recolhidos durante meses seguidos.
Deitava-me na minha cama, apertava o nariz com os dedos e cerrava a boca,
prendendo-a com os dentes.
Só quando os meus pulmões forçavam a expulsão do ar é que, contrariada,
reconhecia que pouco controlo tinha sobre as minhas funções vitais. Os criados da
casa sentiam profundamente a minha dor, pois conheciam-me como o membro
sensível da família que se preocupara com a situação de cada um. O magro salário
dado todos os meses por Omar parecia um preço alto a pagar por estarem tão
afastados daqueles que amavam.
Num esforço para despertar o meu interesse pela vida, Marci, a minha criada
filipina, começou a estimular-me os pensamentos, contando-me histórias de pessoas
do seu país. As nossas longas conversas serviram para atenuar o relacionamento
impessoal que existe entre patrão e empregado.
Um dia revelou, timidamente, a grande ambição da sua vida: queria poupar
dinheiro suficiente, trabalhando como criada para a nossa família, para regressar às
Filipinas e tirar um curso de enfermagem. As profissionais filipinas desta área têm
muita procura em todo o mundo, e essa carreira é considerada muito lucrativa para as
mulheres nas Filipinas.
Marci disse que, depois de se formar, voltaria à Arábia Saudita para trabalhar
num dos nossos hospitais modernos. Sorriu ao contar que as enfermeiras filipinas
auferem um salário de três mil e oitocentos reais sauditas por mês! (Aproximadamente
mil dólares mensais, em comparação com os duzentos que ganhava como nossa
criada.) Disse que um salário tão grande permitir-lhe-ia sustentar a família inteira que
tem nas Filipinas.
O pai de Marci morrera, tinha ela três anos, num acidente de mina. A mãe,
grávida de sete meses, esperava o segundo filho. A vida era difícil, mas a avó de Marci
tomava conta das duas crianças enquanto a filha trabalhava dois turnos como criada
em hotéis locais. A mãe de Marci dizia muitas vezes que o conhecimento é a grande
solução para a pobreza, de modo que poupava o mais que podia para a educação dos
filhos.
Dois anos antes de Marci se inscrever na escola de enfermagem, Tony, o irmão
mais novo, foi atropelado por um automóvel e sofreu ferimentos graves. As pernas
ficaram tão maltratadas que tiveram de ser amputadas. Os tratamentos médicos
necessários fizeram desaparecer por completo os fundos destinados aos estudos de
Marci.
Ao ouvir a história de Marci, chorei lágrimas amargas. Perguntei-lhe como
conseguia manter aquele sorriso rasgado dia após dia, semana após semana. Marci
sorriu esfuziantemente. Não era difícil, respondeu, pois tinha um sonho e uma maneira
de o concretizar.
As experiências vividas ao crescer numa área pobre das Filipinas levaram Marci
a sentir-se extremamente afortunada por ter um emprego e encher o prato três vezes
por dia. As pessoas da sua zona não passavam verdadeiramente fome, salientou, mas
sofriam de uma subnutrição que as deixava vulneráveis a doenças que não se teriam
desenvolvido numa comunidade saudável.
Marci contava as histórias da sua gente com tanta riqueza de pormenores que
eu sentia-me parte delas, da sua terra, da sua cultura rica. Eu sabia que subestimara
Marci e outros filipinos, pois, até então, pouca atenção lhes dera, além de os considerar
gente simples e com falta de ambição. Como me enganava!
Algumas semanas mais tarde, Marci arranjou coragem para falar na amiga
Madeline. Ao fazê-lo, pôs em aberto a questão dos valores morais da minha terra. Foi
através de Marci que vim a saber, pela primeira vez, que o meu país, a Arábia Saudita,
reduzia mulheres do Terceiro Mundo à condição de escravas sexuais. Marci e Madeline
tinham sido amigas de infância. Apesar de a família de Marci ser pobre, a de Madeline
era-o ainda mais. Madeline e os seus sete irmãos costumavam mendigar na
auto-estrada que ligava a sua região a Manila. De vez em quando, parava um carro
grande que transportava estrangeiros e enormes mãos brancas deixavam cair umas
moedas nas palmas estendidas. Enquanto Marci andava na escola, Madeline lutava
para arranjar comida.
Desde muito nova que Madeline tinha um sonho e um plano para o concretizar.
Aos dezoito anos, fez um vestido com uma bata velha da escola de Marci e foi até
Manila. Aí, procurou uma agência que arranjava trabalho para filipinos no estrangeiro;
Madeline candidatou-se ao lugar de criada. Era tão miudinha e bonita que o proprietário
libanês sugeriu manhosamente que seria capaz de lhe arranjar um emprego num
bordel de Manila; aí ser-lhe-ia possível ganhar muito mais do que uma criada
imaginaria sequer!
Madeline, apesar de ter crescido na maior das misérias, era uma católica devota;
a sua reação negativa convenceu o libanês de que ela nunca venderia o corpo. O
homem, suspirando de pena, disse-lhe que preenchesse a candidatura e aguardasse.
O libanês informou-a de que acabara de receber um pedido para fornecer mais
de três mil trabalhadores filipinos para a área do golfo Pérsico e que Madeline teria
prioridade, pois os árabes ricos pediam criadas bonitas. Quando ia a sair do escritório,
o homem piscou-lhe o olho e deu-lhe uma palmada no traseiro.
Quando recebeu a confirmação de que iria trabalhar para Riade como criada,
Madeline ficou simultaneamente entusiasmada e receosa. Foi nessa altura que se deu
a coincidência de os planos de Marci, para ir para a escola de enfermagem, irem por
água abaixo, levando-a então a resolver seguir o exemplo da amiga e procurar trabalho
no exterior das Filipinas. Quando Madeline partira para a Arábia Saudita, Marci
dissera-lhe, a brincar, que se calhar não tardaria a segui-la. As boas amigas
abraçaram-se à despedida e prometeram escrever uma à outra.
Quatro meses mais tarde, quando Marci soube que também iria trabalhar para a
Arábia Saudita, continuava sem notícias de Madeline. Ao chegar àquele país, a única
informação que tinha quanto ao paradeiro da amiga era o fato de se encontrar na
cidade de Riade. Como Marci ia trabalhar para uma família que morava na mesma
cidade, estava decidida a localizar a amiga.
Lembro-me da tarde em que Marci chegou a nossa casa. A minha mãe era a
responsável pela gestão doméstica e colocação dos empregados. Recordo-me de que
Marci parecia uma figurinha assustada que, de imediato, procurou proteção junto da
nossa criada filipina mais velha.
Tendo nós mais de vinte criados na vila, Marci passou despercebida. Como não
possuía experiência de trabalho e tinha só dezenove anos, encarregaram-na da
limpeza dos quartos dos membros mais novos da família, Sara e eu. Eu pouca atenção
lhe dei no decorrer dos dezesseis meses em que ela, paciente e silenciosamente, me
seguiu pela vila, disposta a satisfazer os meus desejos mais insignificantes.
Marci surpreendeu-me ao confessar que outras colegas filipinas a consideravam
cheia de sorte por Sara e eu nunca lhe termos batido ou ralhado. Indignada,
perguntei-lhe se ali em casa se batia em alguém. Respirei de alívio quando me
respondeu que não, não na vossa vila. Afirmou que Ali era conhecido pelo seu gênio
difícil, sempre a falar alto e com maus modos. Mas o seu único ato violento fora desferir
vários pontapés no queixo de Omar. Ri-me, sentindo muito pouca pena de Omar.
Marci segredava-me os mexericos dos empregados. Contou-me que a segunda
mulher do meu pai, oriunda de um dos estados vizinhos do golfo, beliscava e batia
diariamente nas criadas. Uma pobre rapariga do Paquistão estava com uma lesão
cerebral por ter sido atirada pelas escadas abaixo. Tendo sido informada de que não
trabalhava suficientemente depressa, descera-as precipitadamente com um cesto de
roupa cheio de lençóis e toalhas sujas destinadas à lavanderia. Como embateu,
acidentalmente, contra a esposa do meu pai, esta ficou de tal maneira furiosa que lhe
deu um soco no estômago, fazendo-a cair pelas escadas. Ao ver que a rapariga não se
mexia, gemendo, a mulher desceu as escadas precipitadamente e, aos pontapés,
gritou-lhe que fosse terminar as suas tarefas. Dado que a jovem continuava inerte,
acusaram-na de fingida. Acabaram por levá-la ao médico, mas ainda não estava boa,
andando sempre com a cabeça entre as mãos e às risadinhas.
O médico do palácio, obedecendo a ordens da segunda esposa do meu pai,
preencheu uma declaração em como a rapariga caíra e sofrera uma concussão. Mal foi
capaz de viajar, despacharam-na de volta ao Paquistão depois de lhe negarem os dois
últimos meses de ordenado, levando consigo apenas cinqüenta reais sauditas (quinze
dólares).
Marci quis saber porque parecia eu tão admirada. A maioria das criadas era
maltratada no meu país; a nossa vila constituía uma exceção rara. Lembrei-lhe que
estivera em casa de muitas amigas minhas e, apesar de reconhecer que pouca
importância davam aos criados, nunca assistira a nenhum ato de violência física. Vira
algumas amigas minhas falar rudemente às criadas mas pouca atenção prestara ao
fato, pois, na verdade, não houvera nenhuma agressão física.
Marci suspirou tristemente e disse que o normal era esconderem os maus tratos
físicos e sexuais. Lembrou-me de que vivia perto de um palácio que ocultava o
sofrimento de muitas rapariguinhas mas que, apesar disso, eu não tinha conhecimento
deles. Aconselhou-me, com brandura, a ter os olhos abertos, a observar como as
mulheres dos outros países eram tratadas na minha terra. Concordei, com tristeza.
Estas conversas fizeram com que Marci tomasse maior consciência do meu
feitio voluntarioso. Decidiu confiar em mim e contar-me a história completa da sua
amiga Madeline. Lembro-me bem da conversa que tivemos, como se tivesse decorrido
ontem. Recordo perfeitamente as palavras que trocamos e ainda hoje vejo nitidamente
o seu rosto à minha frente. Menina, gostaria de lhe falar de Madeline, a minha maior
amiga. A menina é uma princesa. Talvez um dia possa ajudar as pobres mulheres
filipinas.
Nessa manhã não tinha companhia e sentia que o dia iria ser enfadonho,
portanto concordei, ansiosa por uma manhã de mexericos reveladores, mesmo que
fossem de uma criada filipina. Instalei-me na minha cama; Marci colocou-me
delicadamente almofadas atrás da cabeça, tal como sabia que eu gostava.
Disse-lhe:
- Antes de começares a tua história, vai-me buscar uma taça de fruta fresca e
um copo de laban. (Laban é uma bebida parecida com o leite, muito vulgar no Médio
Oriente.) Depois de voltar com um tabuleiro de fruta e a minha bebida fresca, pus os
pés fora das cobertas e ordenei-lhe que os fosse massageando enquanto me falava da
amiga Madeline.
Olhando para trás, sinto-me profundamente envergonhada pelos meus modos
egoístas e infantis. A perspectiva de uma história trágica atraía-me, no entanto só me
aquietei depois de ver os meus desejos satisfeitos! Hoje, mais velha e ponderada, já
sou capaz de lamentar os hábitos que a minha cultura saudita me inculcou. Nunca
nenhum saudita meu conhecido demonstrara jamais o menor interesse pela vida de um
servo: o número de membros da sua família, os seus sonhos e aspirações. As pessoas
do Terceiro Mundo estavam ali apenas para nos servir a nós, sauditas ricos. Até a
minha mãe, que era delicada e bondosa, raramente expressara interesse pelos
problemas pessoais dos criados, embora eu atribua esse fato à responsabilidade
enorme de gerir uma casa cheia de gente e satisfazer, ao mesmo tempo, o meu
exigente pai. Eu não tinha essa desculpa.
Contrai-me o coração lembrar-me de que Marci e as outras criadas não
passavam, para mim, de meros robôs, ali colocados para me satisfazerem. E pensar
que Marci e as colegas me consideravam bondosa por querer saber da vida delas... É
uma lembrança dolorosa para quem se considera sensível. Pensativa e sem nenhuma
expressão no rosto, Marci começou a esfregar-me os pés, falando ao mesmo tempo.
Menina, antes de sair do meu país, pedi ao tal libanês que me desse a morada
do patrão de Madeline. Disse que não, que não tinha autorização para tal. Declarei que
tinha umas coisas da mãe para lhe levar. Depois de muito suplicar, acabou por aceder
e deu-me um número de telefone e o nome da zona de Riade onde a minha amiga
trabalhava.
- O patrão dela é algum príncipe?
- Não, menina. Vive no distrito chamado AI Malaz, a cerca de meia hora, de
automóvel, daqui.
O nosso palácio ficava em AI Nasiriyah, uma prestigiada zona onde muitos
membros da realeza viviam, a área residencial mais rica de Riade. Já fora uma vez,
fazia muito tempo, à zona de AI Malaz, e lembrava-me de lá ter visto lindos palácios
pertencentes à classe superior de comerciantes sauditas.
Eu sabia que Marci estava proibida de sair dos terrenos do palácio, exceto para
as deslocações mensais, especialmente destinadas a compras, que eram organizadas
por Omar para o pessoal feminino. Como os nossos criados, à semelhança da maioria
dos que trabalham na Arábia Saudita, tinham uma semana brutal de trabalho de sete
dias, cinqüenta e duas semanas por ano, não percebi como ela conseguia escapulir-se
para ir visitar a amiga. Dei-lhe a conhecer o meu interesse.
- Como é que conseguiste ir até AI Malaz?
Marci hesitou apenas uns segundos.
- Bem, menina, conhece o motorista filipino Antoine?
Nós tínhamos quatro motoristas, dois filipinos e dois egípcios. Normalmente
quem guiava o carro onde eu me deslocava era Omar ou o outro egípcio. Os filipinos
eram utilizados para a compra de mantimentos e para os recados.
- Antoine? Aquele que é jovem e está sempre a sorrir?
- Sim, menina, esse mesmo. Gostamos um do outro e ele concordou em me
levar até à minha amiga.
- Marci! Tens um namorado! - exclamei, deitando a rir. - E Omar? Como fizeram
para não ter problemas com ele?
- Esperamos que Omar levasse a família a Taif e aproveitamos a oportunidade.
- Marci sorriu ao ver o meu ar de satisfação. Sabia que nada me dava mais prazer do
que pregar partidas aos homens da casa. - Primeiro, telefonei para o número dado pelo
homem nas Filipinas. Ninguém me autorizou a falar com Madeline. Disse que tinha um
recado da mãe dela. Depois de ter um trabalhão a convencê-los, acabaram por me dar
o nome do local e a descrição da vila. Antoine foi até lá e descobriu o sítio,
deixando-lhe uma carta. Quem a recebeu foi um iemenita. Duas semanas depois,
recebi um telefonema da minha amiga. Mal conseguia ouvi-la pois falava num sussurro,
com medo de que a descobrissem a servir-se do telefone. Contou-me que se
encontrava numa situação muito má e implorou-me que a fosse ajudar. Traçamos um
plano através do telefone.
Afastei o pé e concentrei toda a minha atenção em Marci. Disse-lhe que
parasse de mos esfregar. Apercebi-me do perigo daquele encontro entre as duas e o
meu interesse por aquela filipina corajosa, que eu não conhecia, aumentou.
Passaram dois meses. Sabíamos que os meses quentes de Verão nos dariam
oportunidade para nos encontrarmos. Receávamos que Madeline fosse levada para a
Europa juntamente com o patrão, no entanto disseram-lhe que ficaria em Riade.
Quando a menina e a sua família saíram da cidade juntamente com Ornar, eu
escondi-me no banco traseiro do Mercedes preto e Antoine levou-me até Madeline.
Marci, com a voz a tremer sob os primeiros indícios de emoção, descreveu o dilema de
Madeline.
- Fiquei sentada no carro enquanto Antoine tocava à campainha da vila.
Enquanto esperava, não pude deixar de reparar no estado do muro da vila. A tinta
estava a lascar, o portão mostrava-se ferrugento e a pouca verdura que pendia
começara a secar por falta de água. Fiquei com maus pressentimentos. Não tinha
dificuldade em calcular que a minha amiga enfrentava uma situação perigosa ao
trabalhar naquela casa.
"Senti-me deprimida ainda antes de me deixarem entrar na casa. Antoine teve
de tocar quatro ou cinco vezes à campainha antes de ouvirmos sinais de que alguém
vinha atender. Tudo aconteceu tal como Madeline dissera. Era tenebroso! O portão foi
aberto por um velho iemenita com um pano axadrezado a envolver-lhe o corpo. Parecia
ter estado a dormir; o rosto feio mostrava-nos claramente que não ficara nada satisfeito
por lhe termos interrompido a sesta.
"Antoine e eu sentimo-nos assustados e apercebi-me do tremor na voz dele ao
perguntar se podíamos falar com Miss Madeline, das Filipinas. O iemenita mal sabia
falar inglês, mas Antoine percebe um pouco de árabe. Juntos, conseguiram
compreender-se um ao outro o suficiente para o iemenita recusar-nos a entrada.
Acenou-nos para que fôssemos embora e fez menção de fechar o portão. Eu saltei do
banco traseiro do carro e comecei a chorar. Contei, por entre lágrimas, que Madeline
era minha irmã. Acabara de chegar de Riade, onde trabalhava no palácio de um dos
príncipes reais. Pensara intimidá-lo, porém a sua expressão manteve-se impassível.
Mostrei-lhe um sobrescrito, dizendo-lhe que acabara de chegar das Filipinas. A nossa
mãe estava gravemente doente.
Tinha de falar com Madeline por instantes, a fim de lhe entregar a última
mensagem da nossa mãe moribunda.
"Rezei a Deus para que não me castigasse por tais mentiras! Penso que Deus
me ouviu, pois o iemenita deu mostras de mudar de idéias ao ouvir a palavra árabe
mãe. Vi que refletia. Olhou primeiro para Antoine e depois para mim, dizendo-nos, por
fim, que esperássemos um momento. Fechou o portão e ouvimos o toc-toc das suas
sandálias ao afastar-se em direção à vila. "Sabíamos que o iemenita voltava para
dentro, a fim de ir interrogar Madeline, pedindo-lhe que descrevesse a irmã. Olhei para
Antoine com um sorriso débil. Tudo parecia indicar que o nosso plano resultaria. Marci
fez uma pausa, recordando o dia de que falava.
- Menina, aquele iemenita metia medo. Tinha um ar mau e usava um punhal
recurvo à cintura. Por pouco Antoine e eu não nos metemos no carro e regressamos ao
palácio. Mas pensar na minha pobre amiga deu-me forças para ultrapassar o receio.
"Madeline dissera-me que a vila era guardada por dois iemenitas. Vigiavam as
mulheres da casa. Nenhuma das servas jamais tinha permissão para se afastar do seu
posto de trabalho. Madeline dissera-me, ao telefone, que o iemenita mais novo era
cruel e não abriria o portão nem que fosse à mãe moribunda em pessoa. Madeline
achava que seríamos mais bem sucedidos com o iemenita velho. "Como a família
inteira se encontrava de férias na Europa, o jovem iemenita recebera uma licença de
duas semanas e regressara ao lémen para casar.Naquela altura, o único homem
existente nos terrenos da vila era o iemenita velho e um jardineiro paquistanês.
"Consultei o meu relógio e Antoine o seu. Por fim, ouvimos o barulho das sandálias do
homem, que voltava. O portão rangeu lentamente nos gonzos ao ser aberto. Senti um
arrepio, pois tinha a impressão de que estava a passar as portas do Inferno. O velho
iemenita soltou um resmungo e fez sinal a Antoine, com as mãos, para que se deixasse
ficar do lado de fora, junto do carro. Somente eu poderia entrar.
Fiquei tensa, imaginando o medo que Marci devia ter sentido.
- Como foste arranjar coragem? Eu teria chamado a polícia!
Marci sacudiu a cabeça.
- Neste país, a polícia não ajuda os filipinos. Fariam queixa de nós ao nosso
patrão e depois seríamos presos ou deportados, consoante a vontade do seu pai.
Neste país, a polícia defende os fortes, não os fracos.
Eu sabia que era verdade. Os filipinos ainda ficavam abaixo de nós, mulheres.
Nem mesmo eu, uma princesa, receberia ajuda da polícia se tal significasse ir contra os
desejos dos homens da minha família. Mas naquele momento não queria pensar nos
meus problemas; estava completamente envolvida na aventura de Marci.
- Vá, conta-me, que foi que descobriste lá dentro?
Imaginava o antro de um monstruoso Frankenstein saudita.
Ao ver que era alvo de toda a atenção da sua patroa, Marci ganhou novo alento
e começou a fazer caretas e a descrever as suas sensações com intensidade.
- Enquanto ia atrás do homem, que andava muito devagar, pude olhar à minha
volta. Os blocos de cimento nunca tinham sido pintados. O pequeno edifício de cimento
mais próximo não tinha porta, apenas um espaço aberto com um farrapo pendurado. A
julgar pelo monte de esteiras sujas, latas abertas e cheiro a lixo, percebi que o velho
iemenita devia viver ali. Passamos pela piscina da família, que estava sem água,
exceto um vestígio imundo e escuro, na ponta mais funda. Três esqueletos minúsculos
- que pareciam de gatos bebês - jaziam na extremidade mais estreita da piscina.
- Gatinhos? Oh, santo Deus! - Marci sabia como eu gostava de todos os animais
bebês. - Devem ter tido uma morte horrível
- Pareciam gatinhos. Calculo que tenham nascido no fundo da piscina e que a
gata-mãe não tenha conseguido tirá-los de lá.
Estremeci de desespero.
Marci continuou.
- A vila era ampla, mas tinha o mesmo ar abandonado que o muro. Os blocos de
cimento tinham sido pintados com uma camada de tinta em determinada altura do
passado, mas as tempestades de areia haviam-na desafiado. Havia um jardim, mas as
plantas tinham todas morrido por falta de água. Vi quatro ou cinco aves numa gaiola
pendurada debaixo de uma árvore frondosa. Tinham um ar triste e definhado, sem um
trinado no coração para cantarem.
"O iemenita gritou algo em árabe pela porta da frente, dirigindo-se a alguém que
não se via; fez-me sinal, com a cabeça, para que entrasse. Hesitei ao chegar à soleira
da porta, pois o ar fétido chegara-me às narinas. Com grande receio e a tremer, chamei
Madeline pelo nome. O iemenita virou-se e voltou para a sua sesta interrompida.
"Madeline veio por um longo corredor escuro. A luz era muito fraca e, depois do
sol brilhante que reinava no exterior, mal conseguia vê-la a aproximar-se de mim. Ao
confirmar que se tratava, realmente, da sua amiga Marci, ela deitou a correr.
Abraçamo-nos e foi com espanto que vi que estava limpa e cheirava bem.
Encontrava-se mais magra do que quando a vira pela última vez, mas viva!
Senti-me aliviada, pois esperara que Marci me dissesse que encontrara a amiga
meio morta sobre uma esteira suja, juntando as últimas forças para lhe pedir que
mandasse o seu corpo para Manila.
- Que aconteceu depois?
Tinha pressa em saber o fim da história de Marci.
A voz de Marci reduziu-se a um sussurro, como se as recordações fossem
demasiado penosas para relembrar.
- Depois de acabarmos com as nossas exclamações e abraços, Madeline
empurrou-me pelo longo corredor. Deu-me a mão e levou-me até um quarto pequeno
que ficava à direita. Instalou-me num sofá e depois sentou-se no chão, à minha frente.
"Começou imediatamente a chorar, pois estávamos sozinhas. Enterrou o rosto no meu
colo, enquanto eu lhe afagava os cabelos e lhe pedia, em voz suave, que me contasse
o que lhe acontecera. Depois de secar as lágrimas, falou-me da vida que levara desde
que saíra de Manila, um ano antes.
"Madeline tinha dois criados íemenitas à sua espera ao chegar ao aeroporto.
Empunhavam um cartão com o seu nome escrito em inglês. Acompanhou os dois
homens, pois não sabia de que outra maneira proceder. Ficou alarmada com a sua
aparência selvagem e receou pela sua vida quando a levaram através da cidade,
guiando tresloucadamente. Já era noite alta quando chegou à vila; não havia luz, por
isso não reparou no mau estado em que os terrenos se encontravam.
"Era uma altura em que a família se encontrava ausente em Meca, na
peregrinação Haj. Uma velha árabe que não sabia falar inglês mostrou-lhe o quarto.
Deram-lhe bolachas e tâmaras para comer e chá quente para beber. A velha, antes de
sair do quarto, entregou um bilhete a Madeline, informando-a de que, no dia seguinte,
ficaria a saber quais os seus deveres.
- A velha devia ser a avó - observei.
- Talvez, Madeline não disse se era. Seja como for, não sei. Quando a luz do
Sol revelou o seu novo lar, a pobre Madeline sentiu um baque no coração. Ao ver a
cama onde dormira, deu um salto para fora dela, pois os lençóis estavam imundos; o
copo e o prato da noite anterior tinham sido invadidos por baratas.
"Desnorteada, Madeline foi à procura de uma casa de banho, descobrindo
então que o chuveiro não funcionava. Tentou limpar-se com um resto de sabão sujo e
água tépida.
Pediu a Deus, em vão, que lhe aquietasse as batidas do coração. A certa altura,
a velha bateu-lhe à porta.
"Como não tinha alternativa, seguiu a mulher até à cozinha, onde lhe
entregaram uma lista de responsabilidades. Madeline leu as palavras apressadamente
escritas e soube que lhe competia ajudar a cozinheira, limpar a casa e tratar das
crianças. A velha fez sinal a Madeline para que preparasse algo de comer para si.
Depois de tomar o pequeno-almoço, começou a tirar a sujidade das panelas e dos
tachos.
"Além de Madeline havia ainda mais três empregadas: uma cozinheira velha da
Índia, uma atraente criada do Sri Lanka e uma outra, simplória, do Bangladesh. A
cozinheira tinha, no mínimo, sessenta anos, e as outras duas deviam andar na casa
dos vinte.
"A cozinheira recusava-se a conversar com quem quer que fosse; regressaria à
índia dali a dois meses e só tinha cabeça para os seus sonhos de liberdade e lar. A
criada simplória era triste e calada, pois o seu contrato de trabalho só terminaria dali a
um ano.
A criada bonita do Sri Lanka pouco trabalhava e passava a maior parte do tempo
em frente do espelho. Manifestava de viva voz o seu desejo para que a família voltasse
depressa. Deu a entender a Madeline que o senhor da casa gostava muito dela.
Esperava que ele lhe comprasse um colar de ouro quando regressasse de Meca.
"Madeline contou que ficara admirada por a criada a mandar girar sobre si
mesma, a fim de poder apreciar a sua figura. Depois pousou as mãos nas ancas e
declarou, sorridente, que o patrão acharia Madeline demasiado franzina para o seu
gosto, mas que talvez um dos filhos a apreciasse. Madeline não entendeu o que ela
queria dizer e prosseguiu as suas limpezas intermináveis.
"Quatro dias depois, a família voltou de Meca. Madeline viu imediatamente que
os seus patrões eram de baixa condição; aparentavam rudeza e má educação e o seu
comportamento depressa demonstrou que não se enganara. Eram ricos por acaso,
sem que tivessem feito algum esforço para tal, e os únicos ensinamentos que tinham
recebido eram do Alcorão, que, na sua ignorância, haviam distorcido de maneira a
adaptá-los aos seus interesses.
"Para o dono da casa, o papel secundário das mulheres que o Alcorão apontava
era tido como a escravatura. Qualquer mulher que não fosse muçulmana era
considerada prostituta. Essa situação só piorava com a ida do pai e dos dois filhos à
Tailândia quatro vezes por ano, com a finalidade de freqüentarem os bordéis de
Banguecoque e comprar os serviços sexuais de mulheres tailandesas belas e jovens. A
família, sabedora de que algumas das mulheres do Oriente estavam à venda,
convenceu-se ainda mais de que as mulheres que não fossem muçulmanas eram para
comprar. Quando contratavam uma criada, era natural que a utilizassem como um
animal, ao sabor dos apetites dos homens da casa.
"Madeline soube imediatamente, através da dona da casa, que fora contratada
para servir sexualmente os dois filhos adolescentes. Informou-a de que deveria estar à
disposição de Basel e Faris dia e noite. Esta comunicação foi feita sem a menor
emoção perante o desespero profundo manifestado por Madeline.
"Para surpresa da criada bonita, o pai concluiu que Madeline lhe agradava.
Disse aos filhos que poderiam dormir com a criada nova assim que ele se fartasse.
Fiquei arquejante e depois sustive a respiração; sabia o que Marci me iria contar. Não
desejava ouvir.
- Menina Sultana, na primeira noite a seguir ao regresso da família, o pai violou
Madeline! - soluçou. - Foi apenas o começo, pois achou-a tão ao seu gosto que
começou a fazê-lo diariamente!
- Porque não fugiu ela, porque não procurou alguém que a ajudasse?
- Menina, ela tentou. Implorou às outras empregadas que a socorressem! A
cozinheira velha e a criada feia não queriam envolver-se, pois corriam o risco de perder
o ganha-pão. A criada bonita detestava Madeline e disse que fora por culpa dela que
ficara sem o seu colar de ouro. A esposa e a velhota não eram, por sua vez, muito bem
tratadas pelo dono da casa; não lhe ligaram nenhuma, respondendo-lhe que fora
contratada para satisfazer os homens da casa.
- Eu teria saltado pela janela e fugido!
- Ela tentou fazê-lo, muitas vezes. Foi apanhada e todos os ocupantes da casa
receberam ordem para a guardar. Uma vez, estavam todos a dormir, ela foi até ao
telhado e deixou cair bilhetes no passeio, a pedir ajuda. Uns vizinhos sauditas
entregaram os papéis aos iemenitas e Madeline foi espancada!
- Que aconteceu depois de a descobrires?
Marci continuou, com uma expressão de tristeza e conformismo no rosto.
- Fiz várias tentativas. Telefonei para a nossa embaixada em Gidá. O homem
que atendeu disse-me que recebia muitas queixas do gênero, mas ainda não podiam
tomar grandes medidas. O nosso país depende dos dinheiros enviados pelos
trabalhadores no estrangeiro, daí que não desejasse antagonizar-se com o Governo
saudita apresentando queixas formais. Que seria do pobre povo filipino sem o dinheiro
que chegava de fora?
"Antoine pediu a opinião de vários motoristas sobre a possibilidade de ir à
polícia, mas disseram-lhe que esta acreditaria em qualquer história contada por um
patrão saudita e Madeline poderia ficar em situação ainda pior.
Exclamei:
- Marci! O que poderia ser pior?
- Nada, menina, nada. Eu não sabia o que fazer. Antoine ficou assustado e
disse que não estava nas nossas mãos fazer algo mais. Finalmente, escrevi à mãe de
Madeline, que resolveu ir à agência de emprego em Manila, onde a mandaram embora.
Foi ter com o presidente da câmara da nossa cidade, que declarou nada poder fazer.
Ninguém se queria envolver.
- Onde está a tua amiga agora?
- Recebi uma carta dela há cerca de um mês. Felizmente voltou para as
Filipinas, terminado o seu contrato de dois anos. Foi substituída por duas filipinas, mais
novas do que ela. A menina quer crer que Madeline ficou furiosa comigo? Pensou que
eu a deixara entregue à sua sorte. Pode ter a certeza de que fiz tudo o que pude.
Escrevi-lhe a explicar tudo o que acontecera. Ainda não recebi resposta.
Sentía-me incapaz de proferir uma palavra em defesa dos meus conterrâneos.
Olhei para o rosto de Marci, embaraçado.
Ela, por fim, quebrou o silêncio.
- E isso, menina, foi o que aconteceu à minha amiga neste país.
Eu via bem que Marci estava com muita pena da amiga. Eu própria sentia-me
horrorizada. Como é que uma pessoa reage a uma história tão terrível? Eu não
conseguia.
Envergonhada pelos homens do meu país, deixara de me sentir superior à
rapariga que, momentos antes, era minha criada, minha inferior. Dominada pelo
remorso, enterrei a cabeça na minha almofada e, com um gesto de mão, mandei Marci
sair. Andei muitos dias calada e metida comigo mesma; pensei na maioria de relatos de
maus tratos que torturam a mente das pessoas, tanto sauditas como estrangeiros, que
vivem neste país a que chamo meu.
Quantas mais Madelines não andarão por aí, tentando pedir socorro a pessoas
indiferentes e deparando apenas com a frieza envergando o uniforme oficial daqueles
que são pagos para se preocupar? E os homens das Filipinas, a terra de Marci, eram
pouco melhores do que os do meu país, pois fugiam a qualquer envolvimento pessoal.
Quando despertei do meu inquieto sono de mortificação, comecei a interrogar as
minhas amigas, e deparei com a sua passividade em face do destino das suas criadas.
A minha tenacidade levou-me a ouvir relatos, em primeira mão, de atos inenarráveis e
vis cometidos por homens da minha cultura contra mulheres de todas as nações.
Soube de Shakuntale, da índia, que, aos treze anos, foi vendida por seiscentos
reais sauditas (cento e setenta dólares). De dia trabalhava e de noite era violentada da
mesma maneira que a insuspeita Madeline. Mas Shakuritale fora comprada. Era
propriedade que não seria devolvida - nunca mais poderia voltar para casa. Pertencia
aos seus atormentadores.
Escutei, horrorizada, uma mãe tratar com desprendimento e indiferença a
situação da sua criada Thai que era constantemente violada pelo filho da casa. Afirmou
que o filho precisava de sexo e que a santidade das mulheres sauditas obrigara a
família a fornecer-lhe uma mulher para se satisfazer. As mulheres orientais não se
importam de ir para a cama com quem quer que seja, declarou com firmeza. Aos olhos
das mães, os rapazes são reis.
Repentinamente alertada para algo de perverso, perguntei a Ali por que motivo
ele e o pai iam à Tailândia e às Filipinas três vezes por ano. Ficou carrancudo e
respondeu que eu não tinha nada a ver com o assunto, mas eu sabia qual era o motivo,
pois muitos dos irmãos e pais de amigas minhas empreendiam a mesma jornada até às
lindas terras que vendiam as suas raparigas e mulheres a qualquer monstro com
dinheiro.
Descobri que pouco sabia acerca dos homens e dos seus apetites sexuais. A
aparência superficial da vida nada mais é do que uma fachada; não precisei de muito
esforço para pôr a descoberto a perversidade que se oculta por baixo da tênue camada
de civismo entre os sexos.
Eu, pela primeira vez na minha jovem vida, compreendi a tarefa impenetrável
que se desenha diante de quem pertence ao meu sexo. Sabia que o meu desejo de
conseguir a igualdade entre os sexos era impossível, pois finalmente reconhecera que
o mundo dos homens alberga uma tendência mórbida para o egocentrismo. Nós,
mulheres, somos vassalas, e os muros da nossa prisão são inultrapassáveis, pois esta
doença grotesca da proeminência encontra-se no próprio esperma de todos os homens
e é transmitido de geração em geração - uma doença mortífera e incurável que domina
o homem e vitima a mulher. A posse do meu corpo e alma depressa transitariam do
meu pai para um desconhecido a quem chamaria de marido, pois fora informada pelo
meu pai de que dali a três meses casaria, logo após o meu décimo sexto aniversário.
Senti os grilhões da tradição apertarem-se violentamente à minha volta; só me
restavam seis curtos meses para saborear. Criança indefesa, aguardei, qual inseto
preso numa teia malévola tecida por outrem, que o meu destino se cumprisse.
Eram dez da noite do dia 12 de Janeiro de 1972, e as minhas nove irmãs e eu
ouvíamos, enfeitiçadas, a nossa velha escrava sudanesa Huda ler a sina a Sara. Esta,
depois do seu casamento e divórcio traumatizantes, dedicara-se ao estudo da
astrologia e estava convencida de que a Lua e as estrelas desempenhavam um papel
determinante no caminho seguido pela sua vida. Huda, que nos enchera os ouvidos,
desde tenra idade, com histórias de magia negra, deleitava-se em ser o centro das
atenções e proporcionar uma distração no meio da tristeza que era a vida na monótona
Riade.
Todas sabíamos que Huda fora, em 1899, tinha então oito anos de idade,
roubada à mãe pelos traficantes de escravos árabes quando esta se encontrava a
apanhar batata-doce para o jantar da família. Na sua juventude, entretivera as crianças
da casa, durante horas incontáveis, com a saga da sua captura e reclusão.
Para grande alegria nossa, Huda relatava sempre a sua história, por muitas
vezes que a repetisse, com renovado talento. Acocorava-se junto do sofá e cantava
suavemente, fazendo de conta que esgravatava na areia. Soltando um grito selvagem,
arrancava uma fronha de almofada e tapava a cabeça com ela, berrando e
esperneando contra os seus raptores imaginários. Gemia e atirava-se para o chão, aos
pontapés e a gritar pela mãe.
Por fim, saltava para cima da mesinha e espreitava pelas janelas da sala de
estar, descrevendo as águas azuis do mar Vermelho, que via do navio que a
transportava do Stidão para os desertos da Arábia.
Os seus olhos começavam a ficar com uma expressão cada vez mais selvagem
ao lutar contra todos quantos tentavam, imaginariamente, roubar-lhe a pequena porção
de comida. Roubava um pêssego ou uma pêra da fruteira e devorava-os
esfaimadamente, deixando apenas o caroço. Em seguida, marchava solenemente pela
sala, de mãos presas atrás das costas, simulando que ia para o mercado de escravos,
implorando a Alá, com voz cantante, que a salvasse daquela situação.
Vendida, a troco de uma espingarda, a um membro do clã Rashid, de Riade,
tropeçava, mostrando como fora levada pelas ruas de Gidá, por entre tempestades de
areia que cegavam, até à fortaleza de Mismaak, a praça-forte do clã Rashid na capital
do país.
Chegada a esse ponto da história revivida, Huda começava a esconder-se atrás
das várias peças de mobília. Nós guinchávamos de tanto rir ao vê-la saltitar pela sala,
tentando escapar às balas dos nossos parentes, o jovem Abdul Aziz e os seus
sessenta homens, que atacaram a praça-forte e derrotaram os Rashid, reclamando o
país para o clã dos AI-Saud. Deixando cair o corpo gordo sobre uma cadeira, tentava
proteger-se, enquanto os guerreiros do deserto dizimavam os seus inimigos. Falava do
seu salvamento pelo meu avô e finalizava a sua representação atirando-se a quem
estivesse mais próxima para a beijar repetidamente, como jurara ter feito ao meu avô
quando este a libertara. Foi assim que Huda veio para a nossa família.
À medida que íamos crescendo, Huda desviava a nossa atenção dos vários
dramas, sobressaltando-nos com afirmações sobrenaturais de bruxaria. A minha mãe
costumava afastar as manifestações com um sorriso, mas depois de eu, um dia,
acordar a gritar sobre bruxas e poções, proibiu Huda de divulgar as suas crenças junto
dos seus filhos mais novos. Agora que a minha mãe já não se encontrava mais
conosco, Huda retomou o seu velho hábito com gosto.
Vimos, fascinadas, Huda perscrutar as linhas das palmas das mãos de Sara e
estreitar os olhinhos negros como se visse a vida de Sara desenrolar-se diante de si
através de uma visão.
Sara, ao ouvir Huda declarar, solenemente, que ela jamais concretizaria as
ambições da sua vida, não pareceu ficar muito afetada. Eu resmunguei e fiz finca-pé;
queria tanto que Sara encontrasse a felicidade que merecia que fiquei irritada com
Huda e classifiquei as suas profecias de tretas, tal como desejava que fossem.
Ninguém me prestou a menor atenção, e Huda prosseguiu o seu escrutínio sobre as
linhas da vida de Sara.
A velha esfregou o queixo ossudo com a mão e murmurou:
- Hum, Sarinha. Vejo aqui que casarás em breve.
Sara soltou uma exclamação e tirou precipitadamente a mão de entre as de
Huda.
O que menos desejava ouvir era falar sobre o pesadelo de novo casamento.
Huda riu suavemente e aconselhou Sara a não fugir ao seu destino.
Acrescentou que esta conheceria agora um casamento por amor e que alindaria a terra
com seis pequeninos que lhe dariam grande alegria.
Sara franziu a testa, preocupada. Depois encolheu os ombros e deitou para trás
das costas o que não estava nas suas mãos controlar. Olhou para mim e dirigiu-me um
dos seus raros sorrisos. Pediu a Huda que lesse a palma da minha mão, dizendo que
se ela fosse capaz de predizer os atos que a sua imprevisível irmã mais nova viria a
realizar, nesse caso ela, Sara, passaria a acreditar nos seus poderes até ao fim dos
seus dias. As minhas outras irmãs riram com gosto, concordando com Sara, mas eu
podia ver, pela expressão dos seus rostos, que adoravam aquela irmãzinha mais nova
que lhe dava cabo da paciência.
Ergui a cabeça com uma altivez que não sentia e instalei-me em frente de
Huda. Voltei a palma das mãos para cima e exigi, em tom autoritário, que me dissesse
o que estaria eu a fazer dali a um ano.
Huda não ligou à minha rudeza juvenil e, antes de anunciar o meu destino,
observou longa e demoradamente a palma das minhas mãos. Surpreendeu-nos a
todas com a sua atitude; abanou a cabeça, murmurou entre dentes e refletiu em voz
alta, enquanto ponderava sobre o meu futuro. Por fim, fixou os olhos no meu rosto e
proferiu as suas profecias com tal confiança que receei a sua previsão e senti o sinistro
vento quente da magia nas suas palavras.
Huda declarou, numa voz assustadoramente profunda, que o meu pai em breve
anunciaria o meu casamento próximo. Eu encontraria tristeza e felicidade num homem.
Traria a desgraça a quantos me rodeavam. As minhas ações futuras fariam tanto bem
como mal à família que eu adorava. Seria alvo de grande amor e de intenso ódio. Eu
era uma força do bem e do mal; um enigma para os que me amavam.
Soltando um grito dilacerante, Huda ergueu as mãos e pediu a Alá que
interviesse na minha vida e me protegesse de mim mesma. Atirou-se sobre mim,
desequilibrando-me, e envolveu-me o pescoço com os braços, começando a
lamentar-se com um uivo selvagem e agudo.
Nura pôs-se de pé e correu a salvar-me do amplexo asfixiante de Huda. As
minhas irmãs reconfortaram-me, enquanto Nura levava para fora da sala Huda, que ia
implorando, entre dentes, a Alá que protegesse a filha mais nova da sua adorada
Fabíola.
O impacto da predição de Huda deixara-me a tremer. Comecei a soluçar e
gaguejei que, certa vez, Huda se vangloriara, perante mim, de ser bruxa, que já a mãe
o fora antes de si, passando-lhe esse poder através do leite com que a amamentara.
Tahani, uma das minhas irmãs mais velhas, disse-me que me acalmasse, que
não havia necessidade de dramatizar. Sara, tentando desanuviar o ambiente,
limpou-me as lágrimas e observou que a minha mágoa era recear não estar à altura
das arrojadas predições de Huda. Juntando-se aos esforços de Sara, as minhas outras
irmãs começaram a brincar e relembraram, no meio de grandes gargalhadas, algumas
das partidas pregadas por mim a Ali, ao longo dos anos. Recordaram-me uma das
suas preferidas que, no meio da nossa brincadeira, voltei a contar.
A partida começou quando pedi a uma das minhas amigas que telefonasse a Ali
e fizesse de conta que não resistia aos seus encantos. Ouvimo-lo, durante horas,
balbuciar disparates pelo telefone e traçar planos elaborados para se encontrar com o
motorista dela atrás de uma vila próxima, em construção.
A jovem convenceu Ali a levar um cabrito por uma trela, para que o motorista
pudesse identificá-lo. Contou-lhe que os pais estavam fora da cidade; Ali não teria
problemas em ir atrás do homem, a fim de ter um encontro secreto com ela em sua
casa.
A casa em obras ficava do outro lado da rua onde a minha amiga morava, de
modo que eu e as minhas irmãs juntamo-nos na varanda do quarto dela. Quase
morremos a rir ao vermos o pobre Ali ficar, horas a fio, de pé, com o cabrito pela corda,
esticando o pescoço em busca de indícios do motorista. Para grande diversão nossa, a
rapariga conseguiu atrair Ali para a mesma situação não uma, não duas, mas três
vezes! A ânsia de Ali conhecer a jovem era tanta que nem conseguia raciocinar.
Lembro-me de cogitar que aquela questão parva do véu tinha efeitos nos dois sentidos!
Encorajada pelo riso e confiança das minhas irmãs, consegui afastar da cabeça os
maus agouros de Huda. Vendo bem, a mulher já tinha oitenta anos e o mais provável
era que estivesse senil.
Quando, nessa mesma noite, o meu pai nos visitou e anunciou que encontrara
um marido adequado para mim, a minha consternação voltou a instalar-se.
Profundamente angustiada, só me ocorria que a primeira das predições de Huda se
concretizara. No meu terror, esqueci-me de perguntar ao meu pai o nome do meu
futuro marido e corri para fora da sala com a visão turva e um sabor a bílis na boca.
Fiquei acordada a maior parte da noite a pensar nas palavras de Huda. Pela primeira
vez na minha jovem vida, receava o futuro que me estava reservado.
Na manhã seguinte, Nura voltou à nossa vila para me avisar de que eu casaria
com Karim, um dos primos reais. Em criança brincara com uma irmã desse primo, no
entanto pouco recordava do que me dissera dele além de ser um irmão autoritário.
Tinha agora vinte e oito anos de idade e eu iria ser a sua primeira esposa. Nura
disse-me que vira uma fotografia dele e achara-o excepcionalmente bem-parecido.
Além disso, estudara Direito em Londres. E o que ainda era mais fora do comum,
distinguira-se da maioria dos primos reais, pois detinha uma posição importante no
mundo dos negócios. Abrira, recentemente, uma enorme firma de advogados em
Riade. Nura acrescentou que eu era uma rapariga cheia de sorte, pois Karim já dissera
ao meu pai que, antes de fundar uma família comigo, queria que eu completasse os
meus estudos. Não desejava uma mulher com quem não pudesse comunicar
intelectualmente.
Sem disposição para condescender, fiz cara feia à minha irmã e tapei a cabeça
com as cobertas. Nura suspirou fundo quando lhe gritei que quem tinha sorte ali era
Karim e não eu!
Depois de Nura sair, telefonei à irmã de Karim, a quem conhecia
superficialmente, e disse-lhe que aconselhasse o irmão a pensar bem antes de casar
comigo. Ameacei que se casássemos, ele não poderia arranjar outras esposas, pois
Envenena-las-ia a todas na primeira oportunidade. Além disso, contei-lhe que o meu
pai tivera grande dificuldade em arranjar-me marido por causa do acidente que eu
tivera no laboratório da escola. Quando a irmã de Karim me perguntou o que
acontecera, fiz-me de tímida e confessei que entornara, estupidamente, um frasco de
ácido, ficando com a cara horrendamente deformada. Ao ver que desligara o telefone
com toda a pressa, a fim de ir contar ao irmão, ri a bom rir.
Ao fim desse mesmo dia, o meu pai entrou intempestivamente na vila, trazendo
duas tias de Karim a reboque. Fui obrigada a manter-me de pé e em sentido, enquanto
as duas mulheres me observavam em busca de cicatrizes faciais ou membros
deformados. Fiquei tão furiosa com o exame que abri a boca e disse-lhes que me
examinassem os dentes, se atrevessem. Inclinei-me para elas e bati vigorosamente
com os maxilares um no outro. Olhando para trás, estupefata, precipitaram-se para fora
do meu quarto quando relinchei como um cavalo e ergui as solas dos meus pés até às
suas caras, o que, no mundo árabe, é um insulto terrível.
O meu pai levantou-se e fixou demoradamente o olhar em mim. Parecia
debater-se entre sentimentos, mas depois, para minha grande surpresa, sacudiu a
cabeça e começou a rir. Eu nada mais esperara do que um tabefe ou um sermão -
jamais me passara pela cabeça vê-lo rir. Senti um sorriso tremulo formar-se no meu
rosto e depois também eu desatei a rir. Sara e Ali entraram no quarto, cheios de
curiosidade, e ficaram a olhar para nós com um sorriso interrogativo.
O pai deixou-se cair num sofá, limpando as lágrimas do rosto com a ponta da sua
thobe. Olhou para mim e disse:
- Sultana, viste a cara delas quando tentaste mordê-las? Parecias mesmo um
cavalo! Filha, tu és um espanto! Não sei se deva invejar se ter pena do teu primo
Karim. - Assoou-se. - Não há dúvida de que a vida ao teu lado não será nada
monótona.
Delirante com a aprovação do meu pai, sentei-me no chão e inclinei-me para o
seu colo. Quando ele me apertou os ombros, sorrindo para a filha engraçada, tive
vontade de guardar aquele momento para sempre. Aproveitando os instantes de
intimidade, atrevi-me a perguntar ao meu pai se poderia conhecer Karim antes do
casamento.
O meu pai voltou-se e olhou para Sara. Algo na expressão desta enterneceu-o.
Deu uma palmadinha no sofá ao seu lado, fazendo-lhe sinal para que se sentasse. Não
houve palavras entre nós mas comunicamos através dos elos de gerações Ali,
cederão com a atenção dispensada às mulheres da família, encostou-se ao umbral da
porta de boca aberta; nem sequer conseguia falar.
Para grande espanto do meu pai e minha amarga desilusão, a família de Karim
não rompeu o nosso noivado. Em vez disso, Karim e o meu futuro sogro foram ao
escritório do meu pai na semana seguinte e pediram delicadamente permissão para
Karim me conhecer, sob adequada supervisão, evidentemente. Karim, que soubera do
meu comportamento pouco ortodoxo através das parentes, ficara decididamente
curioso para ver se eu era completamente louca ou apenas um pouco espirituosa.
O meu pai não dera resposta ao pedido que eu já lhe fizera para me encontrar
com Karim, mas uma solicitação do homem da família era completamente diferente.
Assim, depois de discutir demoradamente o assunto com várias tias da família e a
minha irmã Nura, resolveu aceder ao pedido de Karim.
Quando o meu pai me deu a novidade, dancei pelo quarto, louca de alegria. Ia
conhecer o homem que seria meu marido antes de o desposar! As minhas irmãs e eu
ficamos espantadíssimas, pois não se tratava de um costume aceite na nossa
sociedade; éramos prisioneiras que sentiam as grilhetas da tradição, sempre
presentes, aligeirarem-se.
Os pais de Karim, o meu pai e Nura determinaram a vinda de Karim e sua mãe
à nossa vila dali a duas semanas, para o chá da tarde. Karim e eu ficaríamos
acompanhados por Nura, Sara, duas das minhas tias e a mãe dele.
Com esta possibilidade de controlo sobre a minha vida a assomar no horizonte,
a esperança nascia, uma fantasia com a qual, ainda na véspera, não me atrevera a
sonhar.
Dei comigo cheia de excitação e curiosidade em saber se acharia Karim ao meu
gosto. Depois ocorreu-me um pensamento novo e desagradável: talvez eu não
agradasse a Karim! Oh, como eu gostaria de ser bonita como Sara, para que o coração
dos homens pulsassem de desejo...
Começara a passar horas em frente ao espelho - amaldiçoando a minha
estatura pequena e a retorcer os meus caracóis curtos e rebeldes. O meu nariz
parecia-me demasiado pequeno para o rosto, os meus olhos não tinham brilho. Talvez
não fosse má idéia Esconder-me por trás do véu até à noite de núpcias!
Sara ria-se com a minha agonia e tentava reconfortar-me: os homens adoravam
mulheres pequeninas, sobretudo as que tinham narizes arrebitados e olhos sorridentes.
Nura, cuja opinião era respeitada por todos, afirmou, rindo, que todas as mulheres da
família me consideravam muito bonita. Eu, simplesmente, nunca procurara sê-lo; talvez
fosse altura de valorizar os meus dons naturais.
Repentinamente consumada pelo desejo intenso de ser considerada uma
mulher bonita, disse ao meu pai que não tinha nada para vestir. Apesar de nós,
mulheres sauditas, andarmos veladas na rua, mal entramos em casa de uma amiga,
pomos o véu de lado.
Como não podemos encantar os do sexo oposto, além dos nossos maridos, com
as nossas toilettes cuidadosamente selecionadas, tentamos deslumbrar-nos umas às
outras.
A verdade é que, neste país, nós vestimo-nos para as outras mulheres! Por
exemplo, aqui as mulheres vão a um chá da tarde primorosamente vestidas com
rendas e cetim, com as suas fatiotas preciosamente adornadas de diamantes e rubis.
Muitas das minhas amigas estrangeiras ficaram boquiabertas perante os
decotes fundos e as roupas colantes ocultas debaixo das deselegantes abaayas.
Disseram-me que nós, mulheres sauditas, fazemos lembrar, com a escolha dos
adornos que usamos por baixo dos véus e abaayas negras, aves exóticas e coloridas.
Não há dúvida de que nós, mulheres de negro, gastamos mais tempo e despendemos
mais esforço com a nossa roupa individual do que as mulheres ocidentais, a quem não
falta liberdade para exibir as suas fatiotas.
O meu pai, satisfeito por me ver interessada num casamento que imaginara que
repudiaria, acedeu, de bom grado, aos meus pedidos. Nura e o marido foram comigo
até Londres, onde passamos três dias a fazer compras no Harrods. Custou-me muito
dizer às vendedores do estabelecimento que só iria conhecer o meu noivo na semana
seguinte.
Apesar de ser uma princesa saudita, não queria que presumissem que não tinha
qualquer poder de decisão sobre a minha vida. Fiquei desiludida ao ver que ninguém
exprimia espanto ou surpresa perante a minha declaração orgulhosa. Aqueles que são
livres não conseguem imaginar o valor que as pequenas vitórias têm para os que vivem
submetidos a rédia curta.
Durante a nossa estada em Londres, Nura tomou providências para que
determinassem o tipo de cosméticos e a cor das roupas que eu deveria usar. Quando
me disseram que o verde-esmeralda era o tom que melhor me assentava, comprei
dezessete fatiotas nessa cor. Puxaram-me o cabelo rebelde para trás, apanhando-mo
elegantemente, e eu fiquei a olhar, com uma sensação de deleite e espanto, para a
sofisticada desconhecida que as montras de vidro das lojas das áreas comerciais de
Londres refletiam.
No dia da festa, Sara e Marci ajudaram-me a vestir. A impossibilidade de recriar
o mesmo estilo de cabelo que usara em Londres ora me fazia chorar ora soltar
imprecações quando, a certa altura, Huda apareceu à porta do meu quarto.
- Não se esqueça - exclamou, reduzindo os olhos a fendas -primeiro conhecerá
a felicidade com o seu marido, mas depois ele trar-lhe-á a infelicidade.
Atirei-lhe com a escova e gritei-lhe que não me estragasse o dia com os seus
disparates. Sara puxou-me uma orelha e disse-me que tivesse vergonha; Huda não
passava de uma idosa. Eu não tinha o menor peso na consciência e disse-o a Sara.
Esta replicou que o problema estava no fato de eu não a ter, sequer. Amuamos até a
campainha soar; depois ela abraçou-me e disse-me que eu estava linda com o meu
vestido verde-esmeralda.
Ia conhecer o meu futuro marido em carne e osso! As batidas do meu coração
soavam-me nos ouvidos. Sentir todos os olhares fixos em mim, à espera da minha
reação, fez-me corar, o que deitou por terra a entrada sofisticada que planeara. Oh,
que bom seria regressar à segurança da minha infância!
Tantas emoções eram escusadas. Karim não só era o homem mais bonito que
eu já vira, como os seus olhos sensuais acariciavam cada movimento meu, fazendo-me
sentir a criatura mais adorável ao cimo da Terra. Minutos depois da nossa
apresentação tensa, tive a certeza de que ele jamais cancelaria o noivado. Descobri
em mim um talento surpreendente e até ali desconhecido, um talento que é da maior
utilidade para as mulheres que precisam de manipular para alcançar os seus objetivos:
descobri que tinha um jeito natural para flertar. Dei comigo a fazer boquinhas e a olhar
para Karim com as pálpebras semi descidas, sem a menor dificuldade. A minha
imaginação voava: Karim era apenas um dos meus muitos pretendentes.
A mãe de Karim observava-me com atenção, nitidamente descontente com os
meus modos de vamp. Sara, Nura e as minhas tias trocavam olhares constrangidos.
Mas Karim estava hipnotizado e nada mais importava.
Antes de Karim e a mãe saírem, o primeiro perguntou-me se poderia
telefonar-me numa daquelas tardes, dali a uns dias, a fim de falarmos sobre os nossos
planos de casamento. Escandalizei as minhas tias ao responder antes de lhes pedir
autorização:
- Com certeza, poderá ser em qualquer altura depois das nove.
Quando Karim se despediu, dirigi-lhe um sorriso de mulher cheio de promessas.
Enquanto Nura, Sara e as minhas tias me apontavam, com grande pormenor,
cada atitude incorreta que eu tivera, fui cantarolando uma balada de amor libanesa de
que muito gostava. Declararam ter a certeza de que a mãe de Karim insistiria na
anulação do casamento, já que eu praticamente lhe seduzira o filho com os meus olhos
e os meus lábios. Respondi-lhes que o que elas tinham todas era inveja por eu ter tido
a possibilidade de ver o meu marido antes do casamento. Deitei a língua de fora às
minhas tias e disse-lhes que eram demasiado velhas para entender os corações
jovens; deixei-as de olhos arregalados de choque perante a minha audácia. Depois
tranquei-me na minha casa de banho e comecei a cantar o mais forte que pude.
Mais tarde, refleti na minha atuação. Se eu não tivesse gostado de Karim,
ter-me-ia certificado de que este não ficava a apreciar-me. Como me agradara,
manobrarão para que se apaixonasse por mim. Os meus atos tinham sido bem
pensados. Se o achasse repulsivo e não quisesse casar com ele, comeria sem
maneiras, arrotaria na cara da mãe e entornaria chá no colo desta. Se, ainda assim,
Karim e a família não estivessem convencidos de que eu não seria uma esposa digna
dele, estava decidida a "descuidar-me". Felizmente para Karim e sua mãe, eu achara-o
atraente e de feitio agradável, salvando-os de uma tarde chocante. Fiquei tão aliviada
ao saber que não casaria com um velho embotado pela vida que achei que não seria
difícil haver amor na nossa união.
Com tão agradáveis pensamentos na mente, ofereci seis fatos do meu
guarda-roupa a Marci e disse-lhe que ia pedir ao meu pai que me deixasse levá-la
comigo para a minha nova casa.
Nessa noite, Karim telefonou-me. Contou-me, divertidíssimo, que a mãe se
mostrara contrária ao casamento. O meu arrojo fizera-a tremer de fúria, levando-a a
prever que] eu viria a trazer muitos desgostos ao seu filho mais velho e,
conseqüentemente, a toda a família. Sentindo-me confiante na minha astúcia feminina
recém-descoberta, repliquei secamente que era melhor ele seguir o conselho da mãe.
Karim sussurrou que eu era a rapariga dos seus sonhos: uma prima real, inteligente e
bem-humorada. Declarou que era incapaz de desposar o gênero de mulher que a mãe
desejava para si; uma que ficasse sentada, imóvel como uma pedra, pronta a satisfazer
o seu desejo mais ínfimo. Ele gostava de uma mulher com gênio; as vulgares
entediavam-no. Acrescentou, num murmúrio sensual, que eu era um prazer para os
olhos. Em seguida, Karim tocou numa questão. intrigante: perguntou se eu fora
circuncidada. Respondi-lhe que teria de perguntar ao meu pai. Ele acautelou-me:
- Não, não o faças. Se não sabes, é porque não foste.
Pareceu ficar contente com a minha resposta.
Na minha inocência, levantei a questão da circuncisão à mesa, durante o jantar.
Era a vez de o meu pai estar com a terceira esposa, de modo que a cabeceira era
ocupada por Ali. Horrorizado com a pergunta, pousou o copo com força e olhou para
Sara à espera de um comentário. Continuei a comer e, por um momento, a ansiedade
que surgiu no olhar da minha irmã escapou-me. Ao erguer os olhos, reparei que todos
estavam muito pouco à vontade.
Ali, imaginando-se o chefe da família, bateu com o punho na mesa e exigiu que
lhe dissesse onde ouvira tal palavra. Apercebendo-me de que algo não estava bem,
lembrei-me do conselho de Karim e respondi que ouvira a criadagem comentar algo
sobre o assunto.
Ali pôs de lado a minha ignorância com um olhar irritado na minha direção,
limitando-se a dizer a Sara que, na manhã seguinte, telefonasse a Nura e lhe pedisse
que viesse falar com "aquela criança".
Após a morte da nossa mãe, Nura, na qualidade de irmã mais velha, era agora
responsável pela minha aprendizagem em tais matérias. Chegou à vila ainda não eram
dez da manhã do dia seguinte e foi diretamente até ao meu quarto. Foi chamada por
Ali.
Fez uma cara muito pouco satisfeita por Ali a ter informado de que a sua
atuação como irmã mais velha deixava muito a desejar. Ele, Ali, tencionava informar o
pai das suas verificações e desagrado.
Nura sentou-se na beira da minha cama e perguntou-me, em voz branda, o que
eu sabia sobre as relações entre um homem e uma mulher. Repliquei, confiantemente,
que sabia tudo o que havia para saber.
A minha irmã sorriu ao falar:
- Receio que isso seja só da boca para fora, irmãzinha. É possível que não
saibas tudo sobre a vida. Como veio a descobrir., eu sabia muito sobre o ato sexual.
Na Arábia Saudita, tal como na maior parte do mundo árabe, o tema sexo é
considerado tabu. Daí que as mulheres falem de pouco mais. Todas as reuniões
femininas são dominadas por conversas sobre sexo, homens e filhos.
No meu país, onde existem tão escassas atividades para entreter a mente das
mulheres, a principal ocupação destas é reunirem-se em casa umas das outras. É
vulgar irmos a festas femininas todos os dias da semana, exceto às sexta-feiras, que é
o nosso dia religioso. Juntamo-nos, bebemos café e chá, comemos doces,
preguiçamos nos sofás excessivamente estofados e damos à língua. Assim que uma
jovem põe o véu, passa automaticamente a participar nestas funções.
Desde que eu pusera o véu, ouvia, fascinada, jovens recém-casadas falarem
da sua noite de núpcias; nenhum pormenor era demasiado íntimo para revelarem.
Algumas das jovens esposas chocavam as reuniões femininas ao declararem que
apreciavam as relações sexuais. Outras diziam que fingiam gostar dos avanços dos
maridos, para que estes não procurassem outra esposa. Outras havia que detestavam
de tal maneira o sexo que mantinham os olhos fortemente fechados e suportavam as
investidas dos maridos com temor e repulsa. Significativamente, havia as que se
mantinham caladas durante aquelas sessões, não se pronunciando sobre o tema; eram
as mulheres brutalizadas pelo homem com quem viviam, muito à semelhança do que
Sara sofrera.
Nura, convencida de que eu compreendia as implicações da vida marital, pouco
mais acrescentou ao meu conhecimento. Revelou que era meu dever de esposa estar
à disposição de Karim em qualquer ocasião, independentemente da minha disposição
do momento. Declarei que faria como me apetecesse, que Karim não poderia forçar-me
contra a minha vontade. Nura disse que não com a cabeça. Nem Karim nem nenhum
outro homem aceitaria uma recusa. Tinham o direito de exercer a sua vontade na cama
conjugal.
Afirmei que Karim seria diferente e nunca recorreria à força. Nura contrapôs que
não havia homem algum que se mostrasse compreensivo em relação a tal matéria. Eu
não deveria contar com isso, caso contrário arriscava-me a apanhar uma grande
desilusão.
Para mudar de assunto, pedi à minha irmã que me falasse da circuncisão. Nura
contou-me, em voz débil e baixa, que fora circuncidada aos doze anos. Disse que as
três irmãs a seguir a si tinham sido submetidas ao rito. As filhas mais novas da nossa
família haviam sido poupadas ao costume bárbaro graças à intervenção de um médico
ocidental que conversara com o nosso pai, durante muitas horas, sobre o ritual.
Acrescentou que eu tivera sorte em não sofrer semelhante drama.
Eu via que a minha irmã estava à beira das lágrimas; perguntei-lhe o que
acontecera. Há tantas gerações que as mulheres da nossa família eram circuncidadas
que Nura já lhes perdera a conta. A nossa mãe, tal como a maioria das mulheres
sauditas, fora circuncidada ao tornar-se mulher, umas semanas antes de se casar.
Nura atingira a puberdade aos doze anos, e nessa altura a nossa mãe seguira a única
tradição que conhecia e preparara tudo para que a circuncisão de Nura se realizasse
numa pequena aldeia a alguns quilômetros de Riade.
Organizou-se a celebração, preparou-se a festa. Uma Nura, muito jovem,
deleitava-se por ser o alvo das atenções concedidas à convidada de honra. Momentos
antes do rito, a nossa mãe disse a Nura que as mulheres mais velhas iam executar
uma pequena cerimônia e que era importante ela ficar muito quieta. Uma mulher fez
soar um tambor, outras cantaram. As mais velhas reuniram-se em torno da criança
assustada. Quatro mulheres seguraram em Nura, que, despida da cintura para baixo,
tinha sido deitada sobre um lençol branco estendido no chão. A mais velha delas
ergueu a mão no ar e Nura viu, horrorizada, que empunhava um instrumento que se
assemelhava a uma navalha.
Nura gritou. Sentiu uma dor lancinante na região genital. Entontecida com o
choque, foi levantada no ar pelas mulheres e felicitada pela entrada no mundo adulto.
Profundamente assustada, viu sangue a jorrar dos seus ferimentos. Foi levada para
uma tenda, onde lhe trataram das lacerações.
As feridas sararam rapidamente, porém ela só compreendeu as implicações da
operação na sua noite de núpcias, onde a dor foi insuportável e houve muito sangue.
Como a situação se manteve, passou a ter horror às relações sexuais com o seu novo
marido. Por fim, depois de engravidar, foi examinada por um médico ocidental, que
ficou horrorizado com as suas cicatrizes. Este informou Nura de que todo o seu
aparelho genital exterior fora removido e que, sem dúvida, o ato sexual rasga-la-ia
sempre, provocando-lhe dor e hemorragias.
Quando o médico descobriu que mais três irmãs de Nura tinham sido
circuncidadas e que as restantes seis sofreriam, de certeza, o mesmo destino,
pediu-lhe que arranjasse um encontro entre ele e os meus pais na sua clínica.
As minhas outras três irmãs consultaram o médico. Este declarou que a minha
irmã Baher estava em muito piores condições que Nura e que não sabia como
conseguia suportar relações sexuais com o marido. Nura testemunhara as cerimônias
de circuncisão das nossas irmãs, recordando que Baher se debatera com as velhas e
conseguira mesmo correr alguns metros para longe das suas carrascos. Mas fora
apanhada e levada de novo para a esteira, onde a sua inquietação originara ferimentos
mais graves e uma grande perda de sangue. Para surpresa do médico, era a minha
mãe quem insistia na circuncisão das filhas.
Ela própria suportara o rito; tinha a certeza de que era a vontade de Alá. Por fim,
o médico convenceu o nosso pai do perfeito disparate da mutilação, assim como dos
seus riscos para a saúde. Nura disse que eu fora salva de um costume cruel e inútil.
Perguntei a Nura porque quisera Karim informar-se sobre tal questão. A minha
irmã respondeu-me que eu tinha a sorte de ele ser um homem que achava que a
mulher devia ser completa. Afirmou que ainda havia muitos homens que faziam
questão que as noivas fossem circuncidadas. Era tudo uma questão da região de
origem ou da opinião da família no seio da qual a rapariga nascia. Algumas famílias
mantinham a prática, enquanto outras deixavam o costume no passado bárbaro, onde
ele pertencia. Nura disse que tinha a impressão de que Karim desejava uma esposa
que partilhasse o prazer, não se limitando a ser um objeto do mesmo.
Nura deixou-me com os meus pensamentos. Eu tinha consciência de que era
uma felizarda por ser uma das mulheres mais novas da família. Só de imaginar o
trauma sofrido pelas minhas outras irmãs, estremeci.
Sentia-me contente por Karim se preocupar com o meu bem-estar. Começava a
suspeitar de que havia mulheres que conseguiam ser felizes na minha terra, apesar
das tradições alheias a uma sociedade civilizada. Mas, ainda assim, a injustiça de tudo
aquilo persistia em não me sair da idéia. Nós, mulheres da Arábia, só podíamos ser
felizes se gozássemos das atenções do homem que se tornasse nosso senhor: caso
contrário, viveríamos na maior das tristezas. Independentemente do que fizermos, o
nosso futuro depende de um pré-requisito: o grau de bondade do homem sob cujo
domínio nos encontramos.
Sentindo-me ensonada, voltei a adormecer; sonhei que envergava um lindo
vestido de noiva verde-esmeralda e esperava pelo meu noivo, Karim. Este não
chegava e o meu sonho transformava-se num pesadelo que me fazia acordar tremou e
suada: era perseguida por velhas horripilantes que, de navalhas na mão, clamavam o
meu sangue.
Chamei Marci, pedindo-lhe que me trouxesse água fria. Estava angustiada, pois
reconhecia o significado da minha visão aterrorizante: o principal obstáculo à mudança
e abrandamento dos nossos costumes antiquados eram as próprias árabes em si. As
mulheres da geração da minha mãe eram incultas e pouco sabiam além do que os
seus homens lhes diziam; o resultado eram as tradições, como a da circuncisão, serem
mantidas vivas pelas próprias mulheres que no passado e presente, contribuíam para
fortalecer os homens nos seus esforços para nos manterem na ignorância e na
reclusão. A minha mãe, mesmo quando lhe falaram nos riscos para a saúde,
apegara-se ao passado tradicional; não era capaz de imaginar outro caminho para as
filhas que não aquele que ela própria trilhara, com medo de que qualquer desvio da
tradição prejudicasse as suas oportunidades de casamento.
Cabia somente a nós, mulheres com cultura, modificar o rumo da vida feminina.
Estava no nosso poder, dentro do nosso ventre. Eu aguardava o dia do meu
casamento com expectativa e determinação. Seria a primeira mulher saudita a reformar
o seu círculo interno. Os meus filhos e filhas remodelariam a Arábia, transformando -a
num país digno de todos os seus cidadãos, tanto homens como mulheres.
O CASAMENTO

As minhas parentes trocaram olhares preocupados, pois temiam o meu espírito


rebelde e só se sentiam à vontade com mulheres complacentes. O meu contentamento
com o marido escolhido para mim era considerado ao nível de um milagre, mas só
quando a cerimônia chegasse ao fim é que respirariam de alívio.
O meu vestido fora feito na renda vermelha mais viva que conseguira encontrar.
Eu era uma noiva arrojada e deliciava-me em escandalizar a minha família, que me
implorara que fosse em tom de pêssego suave ou, então, de cor-de-rosa. Recusei-me
a fazer-lhes a vontade, como de costume. Eu sabia que tinha razão. Até as minhas
irmãs acabaram por admitir que a minha pele e olhos beneficiavam com a cor garrida.
Quando Sara e Nura me enfiaram o vestido pela cabeça e apertaram os botões
delicados que tinha na zona da cintura, eu mergulhara num torpor de boa-venturança.
Quando Nura me rodeou o pescoço com o colar de rubis e diamantes oferecido por
Karim, houve um momento de tristeza. Não pude deixar de relembrar a minha mãe, no
dia triste do casamento de Sara, em que eu, criança, ficara sentada no chão a vê -la
colocar o adorno indesejado no pescoço de Sara. Só acontecera há dois breves anos,
no entanto parecia ter sido noutra vida, com outra Sultana. Afugentei a minha mágoa
quando me lembrei de que a minha mãe devia estar a observar-me, de muito longe,
com um brilho de satisfação no olhar. Quando me inclinei para pegar no bouquet de
flores primaveris, inteiramente feito de pedras preciosas, que Sara concebera
especialmente para a ocasião, o corpete apertado mal me deixava respirar. Olhando
para os rostos sorridentes das minhas irmãs, anunciei:
- Estou pronta.
Chegara a minha vez de iniciar uma vida nova.
O bater dos tambores abafou a música da orquestra que fora mandada vir do
Egito.
Levando Sara de um lado e Nura no outro, fiz a minha entrada grandiosa no
jardim onde os convidados aguardavam, expectantes e impacientes.
Tal como em todos os casamentos sauditas, a cerimônia oficial já fora realizada
anteriormente. Com Karim e sua família numa parte do palácio e eu e os meus na
outra, o xeque religioso fora de uma sala para a outra, perguntando-nos se nos
aceitávamos um ao outro. Karim e eu não tivéramos permissão para trocar diretamente
os nossos votos.
A nossa família já celebrava há quatro dias e quatro noites. A festa prosseguiria
durante mais três dias e noites, após o nosso aparecimento perante as convidadas
femininas. A cerimônia daquela noite não era mais do que um palco criado para que os
amantes expusessem a sua juventude e esperança à observação dos outros - a nossa
noite de glória.
Eu já não via Karim desde o nosso primeiro encontro. No entanto, o nosso
namoro continuara através de longas horas de conversa pelo telefone. Naquele
momento via Karim, escoltado por seu pai, caminhar lentamente em direção ao
pavilhão. Era muito bonito e ia ser meu marido.
Não sei por que razão estranha o pulsar do seu coração me fascinava. Observei
o latejar na sua garganta e contei as batidas. A minha imaginação arrastou-me para o
seu peito, aquela poderosa área romântica, e pensei; "Aquele coração pertence-me. Só
eu tenho o poder de o fazer bater de felicidade ou tristeza." Era, para uma rapariga, um
momento solene.
Finalmente, deteve-se à minha frente, alto e de porte ereto; de repente,
deixei-me dominar pela emoção. Senti os lábios a tremer e os olhos a encherem-se de
água, ao mesmo tempo que lutava contra a vontade de chorar. Quando Karim me
afastou o véu do rosto, desatamos os dois a rir, tão intensa era a emoção e a alegria de
nos vermos.
O público formado por mulheres começou a bater palmas vigorosamente e a
bater com os pés no chão. Na Arábia Saudita raramente se assiste a uma tal
demonstração óbvia de prazer entre um casal de noivos.
Eu e Karim comíamo-nos com os olhos. Sentia-me dominada por uma
emocionante sensação de incredulidade. Eu fora uma filha do obscurantismo e o meu
novo marido, em vez de ser o esperado objeto de terror, representava a doce libertação
para a infelicidade da minha juventude.
Ansiosos por estarmos a sós, depois da cerimônia ficamos pouco tempo para
receber os parabéns das nossas amigas e parentes. Karim espalhou moedas de ouro,
que tirou de pequenas bolsas de veludo, na direção dos vários grupos de alegres
convidados, enquanto eu me escapulia para mudar para roupas de viagem.
Quis falar com o meu pai, mas este saíra apressadamente do jardim mal
terminara o seu papel. Sentia-se aliviado; a filha mais nova e mais agitadora da sua
primeira esposa estava agora seguramente casada e deixara de ser responsabilidade
sua. Eu ansiava por estabelecer, entre nós, o elo com que sonhara mas que jamais se
tornaria realidade.
Karim prometera-me que, na nossa lua-de-mel, iríamos aonde eu quisesse e
faríamos o que eu desejasse. O mais pequeno desejo meu era uma ordem para ele.
Com o deleite de uma criança, fiz uma lista de todos os lugares que queria ver e de
todas as coisas que pretendia fazer. A nossa primeira paragem seria no Cairo e daí
seguiríamos para Paris, Nova Iorque, Los Angeles e, por fim, o Havai. Disporíamos de
seis preciosas semanas de liberdade em relação às cicatrizes da Arábia.
Envergando um fato de seda verde-esmeralda, abracei-me às minhas irmãs a
despedir-me. Sara chorava tão violentamente que não conseguia soltar-me.
Sussurrou-me vezes sem conta, "Tem coragem", e eu fiquei cheia de pena da minha
irmã. Compreendia muito bem que as lembranças da sua noite de núpcias jamais se
apagariam. Talvez o passar dos anos acabasse por diluir a recordação da sua
lua-de-mel.
Cobri o meu fato exclusivo com uma abaaya e um véu negros e deslizei para o
banco de trás do Mercedes, juntamente com o meu marido. As minhas catorze malas já
tinham sido levadas para o aeroporto.
Para uma maior privacidade, Karim reservara todos os lugares em primeira
classe de todos os vôos que tomaríamos naquela viagem. As hospedeiras de ar
libanesas exibiam sorrisos efusivos ao observarem o nosso comportamento tolo.
Parecíamos adolescentes, pois nunca aprendêramos a arte de cortejar.
Por fim chegamos ao Cairo, passamos a correr pela alfândega e levaram-nos
para uma opulenta vila nas margens do velho Nilo. A vila, que pertencia ao pai de
Karim, fora construída no século XVII por um abastado mercador turco. Restituída ao
seu esplendor original pelo meu sogro, dispunha de trinta divisões dispostas em níveis
irregulares, com janelas arqueadas que davam para o jardim luxuriante. As paredes
estavam cobertas por delicados azulejos em azul-seco, tendo por fundo criaturas
intrincadamente gravadas. Senti-me encantada com a casa. Disse a um Karim
orgulhoso que era um lugar maravilhoso para se iniciar um casamento.
A vila, impecavelmente decorada, fez-me lembrar as deficiências da
ornamentação extravagante do palácio de Nura. De repente apercebi-me de que,
mesmo na minha família, nem sempre o dinheiro era sinônimo de bom gosto.
Tinha apenas dezesseis anos, não passava de uma menina, no entanto o meu
marido compreendeu as implicações da minha juventude e facilitou-me a entrada no
mundo dos adultos com uma solução única. Tanto ele como eu discordávamos da
maneira como os casamentos se realizavam na nossa terra. Karim achava que os
desconhecidos não deviam ter intimidades entre si, mesmo que fossem marido e
mulher. Na sua opinião, homens e mulheres deviam dispor de tempo para entender os
segredos um do outro que fazem o desejo crescer. Karim. comunicou-me que decidira,
já há semanas, que nos namoraríamos depois de casar. E quando eu estivesse pronta
para ele, seria eu a dizer, "Quero conhecer-te todo". Passávamos os dias e as noites a
divertir-nos. Comíamos, andávamos a cavalo em volta das pirâmides, percorríamos os
bazares apinhados do Cairo, líamos livros e conversávamos. Os criados andavam
intrigados com aquele casal tão bem-disposto que se despedia com um casto beijo
antes de cada um seguir para o seu quarto.
Na quarta noite, puxei o meu marido para a minha cama. Mais tarde, com a
cabeça sonolenta apoiada no ombro de Karim, sussurrei-lhe que passaria a ser uma
das escandalosas esposas de Riade que admitiam alegremente que apreciavam o
sexo com o marido.
Eu nunca fora à América e estava ansiosa por formar uma opinião sobre um
povo que disseminava a sua cultura por todo o mundo mas que, não obstante, parecia
saber tão pouco sobre si mesmo. Os nova-iorquinos, com os seus modos apressados e
rudes, assustavam-me. Fiquei mais satisfeita quando chegamos a Los Angeles, com o
seu ambiente simpático e tranqüilo, onde os árabes se sentem mais à vontade.
Na Califórnia, depois de semanas a percorrer praticamente todos os estados da
União nos transportes americanos, disse a Karim que gostava daquele povo estranho e
barulhento, os Americanos. Quando quis saber porquê, tive dificuldade em verbalizar o
que sentia no meu íntimo. Por fim declarei:
- Estou convencida de que esta maravilhosa mistura de culturas contribuiu mais
para a civilização do que quaisquer outras da História.
Como percebi que Karim não entendera o significado das minhas palavras,
tentei explicar.
- São muito poucos os países que conseguem conceder liberdade a todos os
seus cidadãos sem criar o caos; isso tem sido conseguido nesta terra enorme. Parece
impossível que tão vasto número de pessoas se mantenha num percurso de liberdade
quando existem tantas opiniões. Imagina só o que aconteceria no mundo árabe; um
país com o tamanho da América entraria imediatamente em guerra, com cada homem
seguro de ser o único a possuir a resposta certa para o bem de todos! Na nossa terra,
os homens só vêem a solução que está mesmo em frente do próprio nariz. Aqui, é
diferente.
Karim fitou-me com espanto. Como não estava habituado a ver uma mulher
interessada no grande esquema das coisas, fez-me inúmeras perguntas noite dentro,
para ficar a conhecer a minha opinião sobre vários assuntos. Saltava à vista que o meu
marido nunca lidara com mulheres com opinião própria. O fato de eu pensar em
questões políticas e no estado do mundo, deixava-o completamente estupefato. Por
fim, beijou-me no pescoço e disse-me que, quando voltássemos para Riade, eu
prosseguiria os meus estudos.
Irritada com o seu tom de permissão, disse-lhe que não sabia que os meus
estudos eram assunto discutível.
As planeadas oito semanas de férias passaram para dez. Só depois de um
telefonema do pai de Karim é que voltamos, contrariados e relutantes, para junto das
nossas famílias. Tencionávamos viver no palácio dos pais de Karim até o nosso estar
construído.
Eu sabia que não agradava à mãe de Karim; a partir dali teria poderes para
tornar a minha vida insuportável. Pensei no meu tolo desrespeito pela tradição, que a
fizera desprezar-me, e amaldiçoei-me por me preocupar tão pouco com o meu futuro
que não hesitara em desagradar à minha sogra no nosso primeiro encontro. Sabia que
Karim, à semelhança de todos os homens árabes, jamais se aliaria à esposa contra a
mãe. Caber-Me-ia voltar de ramo de oliveira em punho para propor a paz.
Quando o avião se preparava para aterrar em Riade, tive um choque
desagradável. Karim lembrou-me a necessidade de voltar a colocar o véu.
Apressei-me, desajeitadamente, a cobrir-me de negro e senti uma saudade enorme do
doce perfume da liberdade que começara a diluir-se mal penetráramos no espaço
aéreo saudita.
Com a garganta apertada pelo temor, entramos no palácio da minha sogra para
iniciarmos a nossa vida de casados. Na altura, eu ainda não sabia que a mãe de Karim
me detestava tanto que já começara a conspirar sobre formas de pôr um ponto final na
nossa feliz união.

VIDA DE CASADA

Se houvesse uma palavra para descrever as mulheres sauditas da geração da


minha mãe, essa palavra seria espera. Passavam a vida à espera. As mulheres
daquela era não se cultivavam e não tinham oportunidade de emprego, portanto pouco
mais tinham que fazer além de esperar pelo casamento, pelos filhos, pelos netos e pela
velhice.
Em terras árabes, a idade traz grandes satisfações à mulher, pois todas as
honras são prestadas àquela que cumpriu os seus deveres produtivos parindo muitos
filhos do sexo masculino e garantindo, desse modo, a continuidade da linhagem do
nome da família.
A minha sogra, Nurah, passara a vida à espera de uma nora que lhe
concedesse a honra que achava que lhe era devida. Karim era o seu filho mais velho e
o mais adorado. Os costumes sauditas antigos mandavam que a esposa do
primogênito satisfizesse os desejos mais ínfimos da sua sogra. Eu, tal como todas as
jovens, estava a par dessa tradição, no entanto a realidade tende a manter-se afastada
dos meus pensamentos até eu ser confrontada com os fato.
É certo que o desejo de filhos varões é vulgar na maior parte do mundo, mas
nenhum lugar se compara à Arábia, onde todas as mulheres têm de suportar uma
tensão tremenda, ao longo dos seus anos produtivos, aguardando o nascimento de
rapazes. Os filhos do sexo masculino constituem a única razão de ser de um
casamento, a chave para a satisfação do marido. Os meninos são tão preciosos que se
estabelece um elo fortíssimo entre mãe e filho. Nada, além do amor de outra mulher,
pode separar os dois.
A mãe de Karim passou a considerar-me, desde o momento em que nos
casamos, como sua adversário, não como um membro bem-vindo à família. Eu era a
promessa de uma barreira entre Nurah e o filho; a minha presença só intensificaria a
sua penetrante sensação de infelicidade geral. Alguns anos antes, a sua vida dera uma
reviravolta abrupta que lhe envenenara as perspectivas.
Nurah, a primeira esposa do pai de Karim, dera ao marido sete filhos vivos, três
dos quais eram rapazes. Quando Karim tinha catorze anos, seu pai arranjara uma
segunda esposa, uma libanesa de grande beleza e encanto. A partir desse momento,
nunca mais houvera paz dentro dos muros que rodeavam os palácios das duas
esposas.
Nurah, uma mulher mesquinha, ficou completamente revoltada com o segundo
casamento do marido. O seu ódio levou-a a consultar uma bruxa da Etiópia - que servia
no palácio do rei, mas que também era contratada por outros membros da família real -
e pagou-lhe uma soma avultada para lançar uma maldição sobre a libanesa que a
tornasse estéril. Nurah, orgulhosa da sua própria fertilidade, estava convencida de que
o marido se divorciaria da libanesa se esta não pudesse dar-lhe varões.
No entanto, o pai de Karim amava a libanesa e disse-lhe que não se importava
de que esta não lhe desse filhos. à medida que os anos foram passando, tornou -se
óbvio para Nurah que a libanesa nem teria filhos nem se divorciaria. Como a grande
força motriz da vida de Nurah era afastar o marido da sua segunda esposa, consultou a
bruxa e pagou-lhe uma soma ainda mais avultada para fazer com que a libanesa
morresse.
Quando os mexericos sobre os estratagemas de Nurah no palácio chegaram
aos ouvidos do pai de Karim, este foi ter com ela enraivecido. Jurou que se a libanesa
morresse antes de Nurah, ele divorciar-se-ia desta. Seria mandada embora em
desgraça e nunca mais poderia ver os filhos.
Nurah, convencida de que a esterilidade da outra mulher resultara do poder da
bruxa, andava agora aterrorizada com a possibilidade de a mulher morrer; nada faria o
bruxedo voltar atrás. A partir daí, viu-se obrigada a proteger a libanesa. Agora levava
uma vida desgraçada, a esforçar-se por preservar a vida da mulher que tentara matar
por meio do vodu. Era uma família estranha.
Nurah, na sua infelicidade, desabafava sobre todos os que a rodeavam, com
exceção dos filhos. Como eu não pertencia ao seu sangue e Karím amava-me muito,
era o seu alvo de eleição. Todos davam pelo seu ciúme intenso, exceto Karim, que,
como a maioria dos varões, poucos defeitos via na sua devotada mãe. A maturidade
trouxera-lhe sabedoria, pois fingia grande afeição por mim - quando Karim se
encontrava nas proximidades.
Todas as manhãs eu acompanhava alegremente Karim até ao portão. Muito
empenhado na sua firma de advogados, saía de casa por volta das nove da manhã, o
que é cedo para qualquer pessoa começar a trabalhar na Arábia Saudita, sobretudo um
príncipe. Poucos são os membros da família real que se levantam antes das dez ou
onze da manhã.
Eu tinha a certeza de que Nurah nos observava da janela do seu quarto, pois
mal o portão se fechava depois de Karim sair, Nurah começava a chamar-me com
grande urgência. Nenhum dos trinta e três criados da casa serviam; exigia que fosse eu
a levar-lhe chá quente.
Como eu passara a minha infância a ser maltratada pelos homens da minha
família, não estava disposta a passar a segunda parte da minha vida a receber
vexames de uma mulher, mesmo que se tratasse da mãe de Karim.
Passei uns tempos sem me manifestar. Mas a mãe de Karim depressa
percebeu que eu enfrentara antagonistas bem mais temíveis que uma velha cheia de
tenebrosos meandros mentais. Além disso, há um velho provérbio árabe que diz: "A
paciência é a chave para todas as soluções". Numa tentativa de trocar o êxito pela
derrota, achei melhor atender à sabedoria transmitida de geração em geração. Seria
paciente e aguardaria uma oportunidade para atenuar o poder de Nurah sobre mim.
Felizmente, não precisei de esperar muito tempo. Munir, o irmão mais novo de
Karim, voltara recentemente da América, onde estivera a estudar. A raiva que sentia
por estar de novo na Arábia Saudita alterou profundamente o ritmo da casa.
Embora muito se tenha escrito sobre a monotonia forçada da vida das mulheres
na Arábia Saudita, pouca atenção se tem dado à vida desperdiçada de tantos dos
nossos jovens. É certo que a sua vida é abençoada em comparação com a das
mulheres; ainda assim, estão longe da perfeição e os jovens varões da Arábia passam
muitas horas lânguidas a ansiar por algo de estimulante. Não existem cinemas, clubes
ou restaurantes mistos, pois homens e mulheres não podem conviver uns com os
outros em refeições públicas, exceto se forem marido e mulher, irmão e irmã ou pai e
filha. Munir, apenas com vinte e dois anos de idade e habituado às liberdades da
sociedade americana, não estava satisfeito por ter regressado à Arábia Saudita.
Formara-se recentemente numa faculdade de gestão em Washington e tinha planos
para servir de intermediário em contratos com o Governo. Enquanto esperava pela
oportunidade para provar a sua aptidão para angariar grandes somas de dinheiro, uma
paixão inerente a todos os príncipes reais, começara a conviver com um grupo destes
que era conhecido, dentro da família real, pelo seu comportamento temerário. Davam e
freqüentavam festas mistas. Estas eram freqüentadas por mulheres estrangeiras de
moral duvidosa, ao serviço dos vários hospitais e companhias aéreas.
As drogas abundavam. Muitos dos príncipes tinham-se viciado no álcool e em
estupefacientes, ou em ambos. O torpor induzido pela droga ou o álcool tornava-os
ainda mais revoltados com os parentes que governavam o país. Não contentes com a
modernização, almejavam a ocidentalização; eram jovens ansiosos pela revolução.
Como não era de admirar, o ócio em que viviam gerava conversas e condutas
perigosas, de modo que não foi preciso muito tempo para que as suas intrigas
revolucionárias chegassem ao conhecimento de todos.
O rei Faiçal, em tempos um jovem despreocupado mas que se transformara,
depois, num rei dedicado, acompanhava diligentemente a atividade dos jovens da sua
família e tentava, com os modos solícitos que lhe eram peculiares, afastar os jovens
varões da família para longe dos excessos da vida ociosa. Alguns dos príncipes mais
aguerridos foram inseridos nos negócios da família, enquanto outros eram mandados
para o exército.
Depois de o rei Faiçal exprimir a sua preocupação ao pai de Munir sobre o
comportamento inadequado deste, ouvi gritos violentos e vozes iradas no gabinete. Eu,
à semelhança dos restantes membros da família, depressa descobri tarefas urgentes
na sala dos mapas. Com os olhos postos nestes e os ouvidos atentos à gritaria,
ficamos de boca aberta ao ouvir Munir acusar a família governante de corrupção e
esbanjamento. Munir jurou que ele e os amigos se encarregariam de desencadear as
mudanças tão necessárias ao reino. Saiu intempestivamente da vila, praguejando e
declarando rebelião.
Ainda que Munir clamasse que o país precisava de avançar para o futuro, o seu
empenhamento era vago e as suas atividades reais contraditórias. Era uma imagem
triste de juízo errôneo; o álcool e o dinheiro fácil haviam-no seduzido.
Poucos estrangeiros sabem, hoje em dia, que, até 1952, o álcool não era
proibido a não crentes (não muçulmanos) no reino da Arábia Saudita. Dois
acontecimentos independentes e trágicos envolvendo dois príncipes reais levaram o
nosso primeiro rei, Abdul Aziz, a bani-lo.
Em finais dos anos 40, o príncipe Nasir, filho do nosso monarca, regressou dos
Estados Unidos transformado num homem diferente do que saíra do reino. Descobrira
a sedução resultante da combinação do álcool com as desinibidas mulheres ocidentais.
Segundo ele, o álcool era a chave para que as mulheres o idolatrassem.
Como Nasir detinha a posição de governador de Riade, encontrava poucos
obstáculos à sua habilidade para manter secretas quantidades do apreciado líquido.
Nasir realizava festas proibidas', recebendo tanto homens como mulheres. No Verão de
1947, depois de um convívio até altas horas da noite, sete dos convivas morreram por
ingerir álcool etílico. Algumas das vítimas eram mulheres.
O rei Abdul Aziz, pai de Nasir, ficou de tal maneira indignado com tão inútil perda
de vidas que ele próprio agrediu o filho e ordenou o seu encarceramento.
Quando, mais tarde, em 1951, Misliari, outro filho do rei, disparou, embriagado,
contra o vice-cônsul inglês, matando-o e quase acontecendo o mesmo à mulher deste,
a paciência do velho rei esgotou-se. A partir dessa altura o álcool passou a ser proibido
no reino da Arábia Saudita, nascendo então esquemas de mercado negro.
O povo da Arábia Saudita reagiu à proibição muito à semelhança do de outras
culturas: o fruto proibido tornou-se mais apetecido. A maioria dos homens e mulheres
sauditas meus conhecidos bebem socialmente; um grande número viciou-se
seriamente. Nunca estive em nenhuma casa saudita onde não houvesse uma vasta
variedade das bebidas alcoólicas mais requintadas e caras para oferecer aos
convidados.
O preço da garrafa de uísque subiu, a partir de 1952, para seiscentos e
cinqüenta reais sauditas. A importação e venda de bebidas ilegais fez autênticas
fortunas. Como Munir e dois primos, príncipes de elevada estirpe, eram de opinião de
que o álcool devia ser legalizado, conjugaram esforços e não tardou que se tornassem
fabulosamente ricos fazendo contrabando de bebidas alcoólicas vindas da Jordânia.
Quando os guardas fronteiriços desconfiavam de alguma carga, eram
subornados. O único obstáculo à importação ilegal de bebidas alcoólicas são os
sempre ativos bandos dos comitês para a Propagação da Virtude e a Prevenção do
Vício. Esses comitês eram formados pelos mutawas, a polícia religiosa que treme de
fúria diante das afrontas dos membros da família real, os quais deviam, mais do que
todos, respeitar a lei islâmica e, no entanto, demonstram constantemente que se
consideram acima dos ensinamentos do Profeta.
Um desses comitês não tardou a estragar o negócio a Munir, providenciando a
solução para a minha intrometida sogra.
Era sábado, o nosso primeiro dia da semana (os muçulmanos celebram a sua
religião às sextas-feiras), um dia que nenhum dos membros da família de Karim
esquecerá jamais.
Karim entrou com ar mal disposto, depois de um dia de trabalho quente e
cansativo no seu escritório, deparando com a mãe e a mulher mergulhadas numa
discussão acesa.
Ao ver o filho, alargou o âmbito da guerra amena com a nora pondo-se a soluçar
e declarando a Karim que eu, Sultana, não tinha o menor respeito por ela e que, sem
razão nenhuma, começara a descompô-la.
Ao sair de cena deu-me um violento beliscão no braço e eu, cada vez mais
furibunda, corri atrás dela e ter-lhe-ia dado um encontrão se Karim não interviesse.
Nurah fitou-me com rudeza e voltou-se para Karim. Deu a entender, malevolamente,
que eu era uma esposa inadequada e que se ele investigasse as minhas atividades
não hesitaria em se divorciar de mim.
Noutro dia qualquer, Karim teria rido diante da nossa querela ridícula e infantil,
pois as mulheres que têm pouco que fazer tendem a entreter-se em brigas sem conta.
Mas nesse dia, o seu corretor em Londres informara-o de que perdera um milhão de
dólares no mercado de ações. O seu péssimo humor permitiu-lhe passar por cima
daquela situação. Como nenhum árabe jamais contradiz a mãe, Karim deu-me três
estaladas na cara.
O seu principal objetivo era insultar-me, ficando eu apenas com as faces
avermelhadas.
A minha personalidade forte formou-se aos cinco anos. Tenho tendência para
me enervar quando se avizinham problemas, mas, à medida que o perigo se aproxima,
vou ficando mais calma. Quando o tenho na minha frente, torno-me temerária. Na
altura em que caio sobre o meu agressor, não sinto o menor receio e luto até ao fim,
sejam quais forem as conseqüências.
A guerra estava declarada. Atirei a Karim um jarro raro e precioso que, por
acaso, tinha à mão. Protegeu o rosto com um movimento rápido para a esquerda. O
jarro embateu num quadro de Monet que valia milhares de dólares. O jarro e a pintura
com nenúfares ficaram arruinados. Completamente fora de mim, agarrei numa
dispendiosa escultura oriental de marfim e atírei-a à cabeça de Karim.
O estrondo e o estrépito, juntamente com os nossos gritos, alertaram o pessoal
da casa. Mulheres e criados precipitaram-se de repente sobre nós a gritar. Foi nessa
altura que Karim se apercebeu de que eu iria destruir a sala cheia dos adorados
tesouros do seu pai. Para me deter, desferiu-me um soco no queixo. Mergulhei na mais
profunda escuridão.
Ao reabrir os olhos, vi Marci debruçada sobre mim a passar-me uma toalha
embebida em água fria pela cara. Ouvi vozes a falar alto ao longe e presumi que a
excitação desencadeada pela minha luta com Karim continuava.
Marci esclareceu-me que não, que o motivo da nova perturbação era Munir. O
rei Faiçal chamara o pai de Karim para lhe falar sobre um contentor com bebida
alcoólica que deixara vazar o líquido ilegal, deixando uma trilha pelas ruas de Riade. O
motorista egípcio parara numa loja para comer um sanduíche e o cheiro intenso a
álcool fizera juntar uma multidão. Detido por um membro de um dos comitês para a
Prevenção do Vício, dera, atemorizado, o nome de Munir e de outro príncipe. O chefe
do Conselho Religioso fora alertado e contactara com o rei. Este ficara possesso.
Karim e o pai saíram da vila para voltar ao palácio real. Mandaram os motoristas
procurar Munir. Eu tratei do meu queixo inchado e maquinei um novo plano para me
vingar de Nurah. Ouvia-a lamentar-se em altos prantos; recompus-me e desci a
enorme escadaria circular, tentando localizar o seu paradeiro pelos soluços. Eu, uma
mulher que de santa nada tinha, queria ver e desfrutar plenamente do prazer de vê-la
desesperada.
As suas lamúrias conduziram-me até à sala de estar. Se não fosse o queixo
dorido, teria sorrido. Nurah estava enrodilhada a um canto, implorando veementemente
a Alá que poupasse o seu adorado filho Munir à ira do rei e dos religiosos. Mal me viu,
calou-se imediatamente. Depois de um momento prolongado de silêncio, fitou-me com
desprezo e declarou:
- Karim prometeu-me que se divorciará de ti. Também acha que "quem nasce
torto, morre torto" (provérbio árabe). No seio da nossa família não há lugar para uma
pessoa da tua laia.
Nurah, a contar com lágrimas e súplicas, atitude a esperar da parte de quem
está em maus lençóis, perscrutou atentamente o meu rosto quando repliquei que eu é
que iria pedir o divórcio ao seu filho. Declarei que Marci estava, naquele momento, a
fazer as minhas malas; sairia imediatamente daquela casa opressiva. Num insulto final,
declarei arrogantemente que iria influenciar o meu pai para que fizesse de Munir um
exemplo para quem desdenhava assim das leis da nossa fé. O seu precioso filho seria,
sem dúvida, açoitado, preso ou ambas as coisas. Deixei Nurah com o queixo pendente
de medo.
As cartas viraram-se a meu favor. A minha voz exprimia uma confiança que eu
não sentia. Nurah não tinha possibilidade de saber se eu dispunha de poderes para
influenciar os bastidores e concretizar as minhas ameaças. Se o filho se divorciasse de
mim, seria uma alegria; mas se fosse eu a procurar o divórcio, ficaria mortificada. Na
Arábia é difícil, mas não impossível, uma mulher divorciar-se do marido. Como o meu
pai era um príncipe de consangüinidade mais próxima do rei que o de Karim, Nurah
receou, por instantes, que eu concretizasse o meu desejo de castigar Munir
exemplarmente. Desconhecia que o mais provável seria o meu pai expulsar-me de
casa pela minha imprudência, ficando eu sem ter para onde ir.
Tornava-se necessário desenvolver ações conseqüentes com as minhas
ameaças arrojadas. Quando Marci e eu aparecemos à porta carregadas de malas de
viagem, foi o caos generalizado em casa.
Por coincidência, Munir, que fora localizado na casa de um amigo e recebera
ordens para regressar ao lar paterno, acabara de chegar com um dos motoristas.
Alheio à gravidade da sua situação, quando o informei de que a mãe conseguira
desencadear o divórcio iminente do seu filho mais velho praguejou.
Senti-me invadir por uma onda de otimismo perverso quando Nurah, obrigada a
agir perante a possibilidade da minha ira clamorosa, fez questão em que eu não saísse
de casa. A dupla crise enfraquecera a resolução de Nurah, fazendo-a emergir
profundamente enfraquecido da nossa amarga contenda. Depois de muito implorar,
acedi, relutantemente, em ficar. Estava a dormir quando Karim voltou, exausto depois
de uma tarde de humilhação.
Ouvi-o implorar a Munir que pensasse no pai de ambos antes de cometer atos
proibidos. Não tive de apurar o ouvido para ouvir Munir responder insolentemente,
acusando Karim de ajudar a olear a gigantesca máquina de hipocrisia que era o reino
da Arábia Saudita.
A maioria dos sauditas venerava o rei Faiçal pelo seu estilo de vida dedicado e
devoto. No seio da própria família era respeitado pelos príncipes mais velhos.
Arrancara o nosso país aos tempos tenebrosos em que vigoravam as leis do rei Saud,
levando-o a ocupar uma posição em que era muito considerado e, até, admirado por
parte de alguns quadrantes. No entanto, existia, no seio da família, uma profunda
divergência entre os príncipes mais velhos e os mais novos.
Estes jovens da família, devorados pelo desejo de um enriquecimento fácil,
odiavam o rei, que lhes cortava as mesadas, proibia a sua participação em negócios
ilegais e os admoestava sempre que se desviavam do bom caminho. Não havia o
menor sinal de compromisso entre os dois campos e os problemas surgiam
constantemente.
Nessa noite, Karim dormiu a grande distância de mim no nosso leito enorme.
Passou a noite muito agitado, às voltas. Eu sabia-o dilacerado por pensamentos
sombrios. Ao refletir na gravidade das suas preocupações, não pude deixar de sentir
um raro sentimento de culpa. Decidi que, se o meu casamento sobrevivesse às
lacerações dolorosas daquele dia, tentaria abrandar as minhas atitudes.
Na manhã seguinte, Karim levantou-se um outro homem. Não me dirigiu a
palavra nem demonstrou dar pela minha presença. As minhas boas intenções da noite
anterior diluíram-se à luz pálida da manhã. Disse-lhe, alto e bom som, que achava
melhor divorciarmo-nos. No meu íntimo desejava que apelasse à paz.
Fitou-me e replicou em voz seca e assustadora:
- Como quiseres, mas só trataremos desse assunto quando a crise desta família
for ultrapassada.
Dito isto, Karim continuou a barbear-se como se eu não tivesse falado em nada
de extraordinário.
Este inesperado antagonismo e indiferença aquietou-me, levando-me a sentar e
a cantarolar uma melodia, como se não fosse nada comigo, enquanto Karim acabava
de se arranjar. Abriu a porta do quarto e saiu, não sem antes me deixar uma idéia para
reflexão:
- Sabes, Sultana, enganaste-me com o espírito guerreiro que tens escondido
por trás do teu sorriso de mulher.
Depois de o meu marido sair, deixei-me ficar deitada na cama e chorei até me
cansar.
Nurah atraiu-me até à mesa da paz e demos por findas as nossas diferenças
com gestos de amor. Ela mandou um dos seus motoristas ao souq das jóias comprar
um colar de diamantes para mim. Desloquei-me apressadamente até ao souq do ouro
e escolhi o colar de ouro mais caro que encontrei. Gastei mais de 300000 reais
sauditas e pouco me importei com o que Karim pudesse dizer. Estava perante a
possibilidade de fazer as pazes com uma mulher que me causaria desgostos sem fim,
caso o meu casamento se salvasse.
Passaram-se semanas antes de o destino de Munir ser decidido. Mais uma vez,
a família não viu interesse em publicitar os desmandos dos filhos reais. A ira do rei foi,
de certo modo, atenuada pelos esforços do meu pai e vários príncipes, que procuraram
retirar importância ao incidente, atribuindo-o à influência maléfica do Ocidente sobre
um jovem tolo.
Nurah, pensando que eu influenciara, de certo modo, o meu pai, estava grata e
reagiu com estremecidas exclamações de alegria por ter alguém como eu como nora.
A verdade nunca foi revelada: eu nunca dissera uma palavra sequer ao meu pai sobre
o assunto.
O seu interesse derivava do fato, muito concreto, de eu fazer parte daquela
família e de ele não querer estar ligado ao irmão de Karim, caso houvesse algum
escândalo. A sua preocupação era por si próprio e por Ali. Ainda assim, fiquei
genuinamente satisfeita com o desfecho e tornei-me uma heroína, reconheço que sem
o merecer, aos olhos da minha sogra.
Mais uma vez, os mutawas foram aquietados graças aos esforços do rei. O
Conselho Religioso tinha tanta estima pelo rei Faiçal que os seus apelos foram ouvidos
e satisfeitos.
Munir ingressou no negócio do pai e foi enviado para Gidá, a fim de gerir os
novos escritórios ali abertos. Para amenizar o seu descontentamento, foram-lhe
concedidos vastos contratos do Governo. Passados alguns meses, informou o pai que
desejava casar-se, de modo que selecionaram uma prima adequada e a sua felicidade
aumentou. Meses mais tarde, começou a ganhar peso e juntou-se às fileiras dos
príncipes reais que vivem para fazer cada vez mais dinheiro, até as contas bancárias
ficarem a abarrotar e produzir rendimento suficiente para rivalizar com os orçamentos
de países pequenos.
No dia em que tivéramos a nossa conversa, Karim mudara-se para outro quarto.
Nada do que sua mãe e pai puderam dizer ou fazer o persuadiram a reconsiderar a
nossa decisão de divórcio.
Para grande horror meu, uma semana após o nosso desentendimento, descobri
que estava grávida. Depois de muito ponderar, concluí que não tinha outra opção
senão fazer um aborto. Sabia que Karim jamais concordaria com o divórcio se
soubesse que estava de bebê. Mas uma pessoa como eu não estava disposta a
suportar um marido por obrigação. Encontrava-me num dilema, pois os abortos não
são vulgares na minha terra - a maioria dos filhos é desejada - e eu não fazia a menor
idéia aonde ir ou com quem falar.
A minha investigação foi feita com todo o cuidado, até que, por fim, confiei o
meu segredo a uma prima real que me informou que, no ano anterior, a irmã mais nova
engravidara durante as férias passadas em Nice. Alheia ao seu estado, regressara a
Riade. O medo de que o pai descobrisse foi tal que tentou suicidar-se. A mãe ocultara
o segredo da filha e soubera de um médico indiano que, por somas avultadas, fazia
abortos a mulheres sauditas. Eu planeei cuidadosamente a minha fuga do palácio até
ao consultório do médico. Marci foi a minha confidente.
Encontrava-me à espera, desesperada, de ser atendida no consultório do
médico quando um Karim de rosto vermelho irrompeu pela sala. Eu era uma mulher
velada no meio de tantas outras, mas ele reconheceu-me pela minha abaaya em seda,
fora do comum, e pelos meus sapatos italianos vermelhos. Puxou-me e arrastou-me
porta fora, gritando à recepcionista que o melhor era fecharem imediatamente o
'consultório porque ele, Karim, não descansaria enquanto o doutor não fosse para a
prisão.
Eu sorria por baixo do meu véu, com a melhor das disposições, enquanto
Karim, alternadamente, professava o seu amor por mim e me amaldiçoava.- Exibia um
misto de êxtase e ira! Desfez os meus receios de o perder ao jurar-me que nunca lhe
passara pela cabeça divorciar-se de mim: a sua atitude fora uma combinação de
orgulho e raiva.
Karim descobrira o meu plano quando Marci revelara o segredo a outra criada
da casa. Esta fora ter diretamente com Nurah e a minha sogra, frenética, localizara
Karim no escritório de um cliente e informara-o, histericamente, de que eu ia matar o
seu neto por nascer. O nosso filho foi salvo por escassos momentos. Devia-o a Marci.
Karim arrastou-me para casa no meio de imprecações. Ao chegarmos ao nosso
quarto, cobriu-me de beijos, choramos os dois e fizemos as pazes. Tinha sido
necessária uma série de erros para atingirmos o ponto mais alto da nossa felicidade.
Milagrosamente, tudo terminara bem.

Nascimento

A expressão mais completa e poderosa da vida é o nascimento. Os atos de


conceber e dar à luz são mais profundos e belos do que qualquer milagre de arte. Foi o
que aprendi enquanto aguardava, com imensa felicidade e alegria, o nascimento do
nosso primeiro filho.
Karim e eu planeáramos meticulosamente o nascimento. Nenhum pormenor era
demasiado insignificante para não ser levado em consideração. Marcamos reservas de
avião para a Europa quatro meses antes da data prevista para o parto. Daria à luz no
Guy's Hospital, em Londres.
Como tantas vezes acontece com planos cuidadosamente traçados, a nossa
partida foi impedida por acontecimentos menores. A mãe de Karim, com a visão ainda
mais diminuída por um véu feito com um tecido novo ainda mais espesso, tropeçou
numa velha mulher beduína que estava sentada no souq e torceu o tornozelo; um
primo chegado, prestes a assinar um contrato importante, pediu a Karim que adiasse a
sua partida; e a minha irmã Nura pôs a família em alvoroço com o que o médico
pensou ser um ataque de apendicite.
Quando as crises ficaram ultrapassadas, comecei a ter falsas dores de parto. O
meu médico proibiu-me de viajar. Karim e eu aceitamos o inevitável e preparamo-nos
para que o nosso filho nascesse em Riade.
Infelizmente, o Hospital Especializado e Centro de Pesquisa Rei Faiçal que nos
ofereceria, por sermos membros da família real, os cuidados médicos mais modernos,
ainda não abrira. Eu daria à luz numa instituição muito modesta da cidade, conhecida
mais pela sua proliferação de micróbios do que pela competência do pessoal.
Como pertencíamos à família real, tínhamos acesso a opções não disponíveis a
outros sauditas. Karim tomou medidas para que três quartos da ala da maternidade
fossem convertidos numa suíte real. Contratou carpinteiros e pintores locais. Vieram
decoradores de Londres para tirar medidas e apresentar amostras.
O orgulhoso administrador do hospital acompanhou-nos, às minhas irmãs e a
mim, numa visita guiada pela unidade. A suíte exibia um tom azul-celeste
resplandecente, com cobertas de cama e reposteiros de seda. Haviam prendido ao
chão, com o auxilio de parafusos grossos, um berço primorosamente decorado, com
cobertas de seda a condizer, não fosse algum membro descuidado do pessoal dar-lhe
um encontrão e atirar o nosso precioso filho ao chão! Nura dobrou-se sobre si de tanto
rir quando lhe falei da precaução, avisando-me de que Karim poria a família maluca
com os seus esquemas para proteger a criança.
Quando Karim me informou de que em breve chegaria um grupo de seis
pessoas, vindas de Londres propositadamente para me assistirem no parto, fiquei de
boca aberta. Tratava-se de um obstetra de nomeada, que, juntamente com cinco
enfermeiras altamente especializadas, tinham sido principescamente pagas para se
deslocarem a Riade três semanas antes da data calculada para o nascimento.
Como eu não tinha mãe, Sara mudara-se para o nosso palácio perto do fim da
minha gravidez. Vigiava-me, tal como eu a ela. Eu observava-a atentamente,
apercebendo-me das tristes mudanças operadas na minha irmã querida. Disse a Karim
que receava que ela nunca viesse a recuperar-se do seu casamento odioso. Os seus
modos reservados eram agora uma componente sempre presente do que em tempos
fora um caráter alegre e otimista.
Como a vida podia ser injusta! Eu, com a minha agressividade, teria sido mais
merecedora de um marido prepotente, pois uma pessoa tende a refrear-se um pouco
diante de um adversário que lhe faça frente. Sara, com o seu temperamento tranqüilo e
doce, fora um alvo fácil para a arrogância do marido cruel.
Contudo, eu sentia-me grata pela sua presença tranqüilizadora. à medida que o
meu corpo aumentava de volume, ia-me tornando irritadiça e imprevisível. Karim, no
seu entusiasmo pela paternidade próxima, perdera todo o seu bom senso.
A presença de Asad, irmão de Karim, fazia com que Sara tivesse o cuidado de
se velar quando saía dos nossos aposentos, no segundo piso. Os homens solteiros da
família estavam alojados noutra ala, no entanto deambulavam pelo palácio a qualquer
hora. Sara estava em nossa casa há três dias quando Nurah lhe mandou um recado,
através de Karim, a dizer que não precisava de se velar quando entrasse nas áreas
principais de habitação ou nos jardins. Eu encarava com satisfação qualquer alívio nas
regras rígidas que imperavam sobre as mulheres. Ao princípio, Sara ficou apreensiva,
mas em breve dispensou de bom grado o excesso de pano preto.
Certa vez, ao cair da noite, Sara e eu encontrávamo-nos reclinadas em cadeiras
de encosto, de verga, a desfrutar a brisa fresca que soprava no jardim comum. (Na
maioria dos terrenos que circundam as vivendas sauditas, existem jardins exclusivos
para as mulheres, outros comuns e também familiares.) De repente Asad apareceu
com quatro amigos seus, de regresso de um compromisso tardio.
Sara, ao ouvir os homens aproximarem-se, voltou o rosto para a parede, pois
não queria desgraçar a família mostrando-se a desconhecidos. A mim não me
apeteceu imitar o seu movimento, de modo que fiz constar a nossa presença gritando a
Asad que havia mulheres não veladas no jardim. Os homens, juntamente com Asad,
passaram apressadamente por nós sem nos lançarem um olhar sequer, e entraram na
sala de estar masculina.
Asad, por cortesia, acercara-se de nós, a fim de se inteirar do paradeiro de
Karim quando os seus olhos pousaram, por acaso, no rosto de Sara.
A sua reação física foi tão inesperada que receei que tivesse tido um ataque
cardíaco. O seu corpo empertigou-se tão grotescamente que eu, movendo-me o mais
depressa que o meu ventre me permitia, sacudi-lhe o braço para lhe chamar a atenção.
Sentia-me sinceramente preocupada. Estaria doente? Asad tinha o rosto corado e
parecia incapaz de sair do mesmo sítio; levei-o até uma cadeira e chamei um dos
criados para lhe pedir que trouxesse água.
Ao ver que ninguém aparecia, Sara pôs-se de pé num pulo e correu, ela
mesma, a buscar água. Asad, embaraçado, tentou retirar-se, mas eu convenci-me de
que estava prestes a desmaiar. Insisti em que ficasse. Afirmou que não lhe doía nada
e, no entanto, não era capaz de explicar a sua imobilidade repentina.
Sara voltou com um copo e uma garrafa de água mineral fresca. Sem olhar para
Asad, serviu-lhe a água e levou-lhe o copo aos lábios. A mão de Asad roçou levemente
nos dedos de Sara. Os seus olhares ficaram presos um ao outro. O copo escorregou
da mão de Sara e partiu-se ao embater no chão. Sara correu para dentro da vila.
Deixei Asad com os amigos, que, impacientes, tinham começado a esvaziar o jardim.
Estavam mais perturbados por verem o meu rosto descoberto do que o meu ventre
protuberante. Caminhei desafiadoramente por entre eles e fiz questão em
cumprimentá-los cara a cara. Responderam com murmúrios constrangidos.
Karim acordou-me à meia-noite. Quando chegara ao palácio, fora interceptado
por Asad. Karim queria saber, por mim, o que acontecera no jardim. Sonolenta, relatei
a ocorrência do final da tarde e perguntei ao meu marido pela saúde de Asad.
Sentei-me, assustada, ao ouvir Karim dizer-me que Asad pretendia casar com
Sara. Anunciara a Karim que nunca seria feliz sem ter Sara por esposa. Que afirmação
da parte do maior de todos os playboys! Um homem que, ainda há poucas semanas,
entristecera a mãe ao jurar veementemente que jamais casaria.
Fiquei atônita. Disse a Karim que era fácil atribuir a atração de Asad por Sara ao
comportamento que ele tivera no jardim, mas aquela insistência no casamento era
inacreditável! Depois de uns momentos de prazer visual? Declarei que era uma tolice e
voltei-me para o outro lado.
Enquanto Karim tomava a ducha, voltei a refletir sobre o acontecimento e
levantei-me. Bati à porta do quarto de Sara. Como não houve resposta, entrei
silenciosamente.
A minha irmã encontrava-se sentada na varanda a olhar para o céu cheio de
estrelas.
Dirigi-me, com grande dificuldade, para um dos cantos da varanda e sentei-me,
em silêncio, estupefata perante aquele virar dos acontecimentos.
Sara, sem olhar para mim, falou com determinação:
- Ele quer casar comigo.
- É verdade - concordei em voz tênue.
Sara continuou, com olhar ardente:
- Sultana, quando o olhei nos olhos, vi a minha vida desenrolar-se diante de
mim.
Este é o homem que Huda viu quando me disse que eu conheceria o amor.
Também afirmou que este amor me faria trazer seis pequeninos ao mundo.
Fechei os olhos numa tentativa para recordar as palavras de Huda naquele dia
já tão longínquo, na casa dos meus pais. Lembrei-me de ouvir falar nas ambições não
concretizadas de Sara e da referência ao casamento, mas pouco mais me restara da
conversa. Ao dar-me conta de que muitas das previsões de Huda se tinham
transformado em realidade, estremeci.
Senti-me impelida a pôr de parte a idéia de amor à primeira vista. Mas, de
repente, recordei a emoção intensa que sentira no dia em que conhecera Karim. Mordi
a língua e não proferi palavra.
Sara deu-me uma palmadinha suave na barriga.
- Vai-te deitar, Sultana. O teu filho precisa de repouso. O meu destino
cumprir-se-á. - Voltou-se de novo para olhar fixamente as estrelas. - Diz a Karim que
aconselhe Asad a ir falar com o pai sobre este assunto.
Quando voltei para a cama, Karim estava acordado. Repeti as palavras de Sara
e ele, abanando a cabeça, declarou que, de fato, a vida era estranha, depois colocou
os seus braços em redor do meu ventre. O sono não se fez tardar, pois o curso das
nossas vidas estava gravado num mapa cuidadosamente traçado e nenhum de nós
esperava mudanças.
Na manhã seguinte, deixei Karim a barbear-se e desci, pesadamente, as
escadas. Ouvi Nurah antes de a ver. Esta citava um provérbio, como era o seu
passatempo preferido. Proferi imprecações entredentes, no entanto deixei-me ficar à
escuta.
- "... o homem que casa com uma mulher pela sua beleza será enganado;
aquele que a desposa pelo bom senso é que pode dizer, verdadeiramente, que é
casado".
Não tinha disposição para discutir, por isso pensei em tossir para anunciar a
minha presença. Quando Nurah recomeçou a falar. mudei de idéias. Contive a
respiração e apurei os ouvidos para ouvir o que dizia.
- Asad, a rapariga já foi casada. Pouco tempo depois estava divorciada. Quem
sabe porque foi? Reconsidera, querido filho, podes casar com quem quiseres. O
melhor que farias seria casares com uma mulher fresca, não uma que já está gasta
pelo uso! Além disso, meu filho, vês a bola de fogo que é Sultana. Será que a irmã é
diferente?
Segui a minha barriga até à sala de estar, sentindo-me agitada. Ela
aconselhava Asad a não casar com Sara. E não era apenas isso, tudo continuava
como dantes: Nurah mantinha o seu ódio secreto por mim. Para ela, eu era algo difícil
de engolir.
Como conhecia o caráter inconstante de Asad, não me sentira muito
entusiasmada com o romance entre ele e a minha irmã, mas a partir daquele momento
tornar-me-ia uma defensora inabalável dos seus desejos. Aliviada, não tive dificuldade
em ver, pela expressão de Asad, que nada o faria mudar de idéias. Era um homem
enfeitiçado.
A conversa parou quando viram a minha cara, pois dificilmente consigo
esconder a ira; estava furiosa por Nurah achar que a união entre o filho e a minha irmã
traria desgostos. Era certo que não podia argumentar contra a minha própria natureza
rebelde. Assumira esse papel desde muito nova e não me sentia inclinada a mudar.
Mas rotular Sara com a mesma reputação que eu, era de loucos!
Na minha adolescência, ouvira muitas velhas dizer: "Se te aproximares de um
ferreiro, ficarás coberta de fuligem, mas se chegares a um vendedor de perfumes,
trarás contigo um aroma." Compreendi que, na opinião de Nurah, Sara andava com a
fuligem da irmã mais nova. Sentia agora uma raiva imensa em relação à minha sogra.
A beleza de Sara despertara muitas invejas no seio do nosso sexo. Eu sabia que a sua
aparência não permitia pensar na sua personalidade afável e no intelecto brilhante.
Pobre Sara!
Asad levantou-se, dirígiu-me um aceno de cabeça ligeiro e retirou-se. Nurah
deu a impressão de estar mortalmente ferida quando o filho se virou para trás e
declarou:
- A decisão está tomada. Se ela e a sua família me aceitarem, ninguém me pode
deter.
Virou costas, enquanto Nurah, aos gritos, censurava a insolência da juventude e
tentava incutir-lhe um sentimento de culpa ao declarar que pouco tempo mais estaria
naquele mundo, que o seu coração estava cada vez mais fraco a cada dia que
passava. Ao ver que Asad não ligava a menor importância à sua chantagem óbvia,
abanou a cabeça com mágoa. De cenho franzido, sorveu, pensativamente, uma
chávena de café. Tramava, sem dúvida, alguma contra Sara, tal como fizera com a
libanesa.
Extremamente agitada, toquei à campainha da cozinha e ordenei que me
trouxessem iogurte e fruta para o pequeno-almoço. Marci entrou na sala e aliviou-me o
desconforto doloroso dos pés inchados com os seus dedos hábeis. Nurah tentou meter
conversa, mas eu estava demasiado furiosa para responder. Mal começara a penicar
nos morangos frescos (trazidos diariamente da Europa por avião), quando uma dor de
parto me atirou ao chão. Assustada, gritei em agonia, pois aquela dor esmagadora
vinha demasiado antes do tempo e era excessivamente violenta. Sabia que as dores
começariam com uma pontada aguda, tal como já me acontecera anteriormente no
rebate falso por que passara.
Gerou-se o caos assim que Nurah chamou, de uma só fiada vocal, Karim, Sara,
as enfermeiras especiais e os criados. Karim apareceu imediatamente, tomou-me nos
braços e instalou-me no banco traseiro de uma limusine extralonga, especialmente
adaptada para aquele acontecimento. Num dos lados, os bancos tinham sido
arrancados, dando lugar a uma cama. Três pequenos bancos estavam a postos para
acomodar Karim, Sara e uma enfermeira. O médico e as outras três enfermeiras de
Londres já haviam sido alertados e seguiam numa outra limusine.
Contorci-me com dores, enquanto a enfermeira tentava, em vão, medir-me a
tensão. Karim gritou ao motorista que conduzisse mais depressa, depois inverteu as
ordens e berrou-lhe que abrandasse, declarando, em voz alta, que a sua condução
descuidada custaria a vida a todos nós. Desferiu uma palmada na nuca do pobre
homem ao ver que este deixara outro carro meter-se na frente.
Karim começou a refilar consigo mesmo por não ter arranjado escolta policial.
Sara fez o possível para acalmar Karim, mas este parecia um temporal em forma de
gente.
A certa altura, a enfermeira inglesa falou-lhe com autoridade, avisando-o de que
a sua conduta estava a prejudicar a mulher e o filho. Ameaçou mandá-lo sair do carro
se não se aquietasse.
Karim, um importante príncipe real que nunca recebera a menor crítica de uma
mulher, ficou em estado de choque e sem fala. Respiramos todos de alívio. À espera,
à porta do hospital, encontravam-se o administrador e uma série de membros do
pessoal, alentados por alguém da casa de Karim. O administrador estava encantado
por o nosso filho nascer na sua instituição, já que, naquele tempo, muitos dos jovens
membros da família real viajavam até ao estrangeiro para terem os filhos.
O trabalho de parto foi longo e difícil, pois eu era jovem, de constituição
franzina, e o meu bebê era teimoso e grande. Do parto em si, pouco me recordo;
estava semidrogada, dando-me pouco conta do que me rodeava. A tensão nervosa do
pessoal enchia o quarto e eu ouvia o médico insultar as enfermeiras repetidamente.
Rezavam, sem dúvida, tal como o meu marido e o resto da família, para que fosse um
rapaz. Nesse caso, a sua recompensa seria generosa; caso fosse uma menina, a
desilusão seria enorme. No que me dizia respeito, queria ter uma menina. A minha
terra iria mudar e sentia-me a sorrir de expectativa com a vida agradável que a minha
filhinha teria.
As exclamações de alegria do médico e do seu pessoal arrancaram-me à
sonolência em que caíra. Era um rapaz! Tenho a certeza de que ouvi o médico
segredar à chefe das suas enfermeiras: "De certeza que o idiota do marido me vai
encher os bolsos de dinheiro com este prêmio!" Protestei mentalmente perante aquele
insulto ao meu marido, mas adormeci profundamente e só passadas muitas semanas é
que voltei a recordar-me daquela observação. Nessa altura já Karim oferecera um
Jaguar ao médico e cinqüenta mil libras. Cada enfermeira foi presenteada com belas
jóias de ouro do souq, mais cinco mil libras. O jubiloso administrador hospitalar egípcio
levou um generoso contribuiu destinado a ser aplicado na ala da maternidade. Ficou
ainda mais radiante com o bônus correspondente a três meses de salário.
Quando me colocaram o meu filho sonolento nos braços, nunca mais pensei no
meu desejo de uma menina. Essa viria mais tarde. Aquele varão receberia uma
educação mais correta que os da geração que o havia precedido. Senti o poder das
minhas intenções a criarem o seu futuro. Não teria idéias retrógradas, as suas irmãs
seriam respeitadas e poderiam expor livremente as suas idéias, e ele conheceria a sua
companheira e apaixonar-se-ia por ela antes de a desposar. As possibilidades imensas
que o esperavam brilhavam esplendorosamente. Disse a mim mesma que já muitas
vezes, ao longo da História, aparecera um homem que criara a mudança e influenciara
milhões. Enchi-me de orgulho só de pensar no bem que aquele corpo minúsculo que
tinha nos braços poderia trazer à humanidade. Uma nova era para as mulheres na
Arábia poderia, sem dúvida, começar com alguém do meu próprio sangue.
Karim não pensava muito no futuro do filho. A paternidade encantava-o e
levava-o a ponderar tolamente sobre o número de filhos varões que teríamos juntado.
A nossa felicidade era inebriante!

SEGREDOS TENEBROSOS

A nossa vida termina com a morte. Principia com uma única passagem; contudo,
existem inúmeras saídas. à maravilhosa concretização da promessa da vida segue-se
o modo de partida habitual e esperado. Quando a morte reclama alguém cheio de vida
e esperança, é o mais triste dos acontecimentos. Quando uma vida em flor termina às
mãos de outro homem, não há nada pior.
Na altura radiosa em que o nascimento do meu filho teve lugar, fui confrontada
com a morte sem sentido de uma rapariga nova e inocente.
Karim e o pessoal médico tentaram manter-me afastada das outras mulheres
sauditas que se encontravam a poucos passos da minha suíte. Enquanto o meu filho
dormia ao meu lado, cercado de proteção, outros filhos e filhas eram mantidos no
berçário. Eu, nos meus aposentos, mal conseguia reprimir a curiosidade que sentia em
relação às diversas histórias verídicas. Como acontecia à maioria dos membros da
realeza, eu levara uma vida afastada dos cidadãos vulgares, de modo que, naquela
altura, o meu feitio curioso levou-me a meter conversa com aquelas mulheres.
Não tardei a descobrir que se a minha infância fora desolada, a da maioria das
mulheres sauditas ainda o fora mais. A minha vida estava subordinada aos homens, no
entanto o nome da minha família proporcionava-me uma espécie de proteção. A
maioria das mulheres reunidas em frente da vidraça do berçário não tinham o menor
poder de decisão sobre o seu destino.
Tive o meu primeiro filho aos dezoito anos. Conhecia raparigas que já aos treze
anos eram mães. Havia outras raparigas, da minha própria idade, que já iam na quarta
ou quinta criança.
Fiquei intricada com uma certa jovem. Tinha os olhos negros, que fixava na
massa de bebês choramingues, ensombrados pelo sofrimento. Manteve-se tão quieta
durante tanto tempo que tive a certeza de que não via o que tinha na frente, estava,
isso sim, imersa num drama afastado do local onde nos encontrávamos.
Soube que era de uma pequena aldeia, pouco distante da cidade.
Normalmente, as mulheres da sua tribo davam à luz nas próprias casas, mas ela
estivera cinco longos dias e noites em trabalho de parto, de modo que o marido
resolvera levá-la para o hospital.
Travei conhecimento com ela, depois de vários dias, e descobri que casara, aos
doze anos, com um homem de cinqüenta e três. Era a terceira esposa, mas o marido
favorecia-a muito.
Maomé, o nosso profeta bem-amado do islamismo, ensinou que os homens
deviam dividir o tempo igualmente pelas suas mulheres. Naquele caso, o esposo
andava tão ocupado com os encantos da sua jovem esposa que as duas primeiras
cediam, de boa vontade, as suas vezes de enlace conjugal. A jovem contou que o
marido era um homem de grande poder e fazia "aquilo" várias vezes ao dia. Com os
olhos muito abertos, movimentou repetidamente o braço para baixo e para cima, para
melhor explicitar a idéia.
Naquele momento estava assustada porque dera à luz uma filha, não um filho.
O marido, quando a fosse buscar para a levar de volta para a aldeia, ficaria furioso,
pois os primogênitos das outras duas esposas tinham sido varões. Pressentia que, dali
em diante, passaria a ser desprezada por ele.
Pouco recordava da infância, que parecia agora já muito longínqua. Crescera
numa família pobre e pouco mais conhecera além de muito trabalho e sacrifício.
Explicou como ajudara a série de irmãos e irmãs a pastorear as cabras e os camelos e
a tratar de uma pequena horta. Sentia-me ansiosa por saber o que pensava sobre os
homens, as mulheres e a vida, mas a sua triste falta de cultura não lhe permitiu dar-me
as respostas que eu procurava.
Foi-se embora antes de me poder despedir dela. Pensar na vida triste que a
esperava fez-me sentir frio, de modo que voltei para a minha suíte em profundo estado
de desalento.
Num acesso de ansiedade em relação à segurança do seu filho, Karim colocara
guardas armados à porta dos meus aposentos. Ao fazer o meu passeio matinal até ao
berçário, fiquei surpreendida por ver guardas em frente de outro quarto. Calculei que se
tratasse de mais outra princesa. Pedi ansiosamente a uma enfermeira que me dissesse
o seu nome. Respondeu-me, de cenho franzido, que eu era a única princesa no
hospital.
Contou-me a história, não sem antes me advertir de que se sentia
profundamente escandalizada. A seguir, amaldiçoou todas as pessoas sobre a Terra,
antes de descrever o que se passava no quarto 212. Afirmou que no seu país jamais se
passaria algo de semelhante, que os Ingleses são muito civilizados, obrigada, e que,
em comparação com eles, o resto do mundo parece viver mergulhado na barbárie.
A minha imaginação não me permitia descer até tais profundezas de ira, pelo que lhe
implorei que me contasse o que estava a acontecer antes que Karim chegasse para a
sua visita diária.
Na véspera, relatou-me, o pessoal do hospital ficara perplexo por ver chegar
uma jovem prestes a dar à luz, com as mãos e os pés presos em grilhetas de ferro, que
foi escoltada até à ala da maternidade pelos guardas que a acompanhavam. Um grupo
de mutawas irados, seguido pelo amedrontado administrador, haviam ido atrás dos
guardas; tinham sido eles, não o administrador, a designar o médico que trataria do
caso.
Para consternação do médico, este foi informado de que a rapariga fora julgada
nos tribunais de Shari'a (a lei de Deus) e considerada culpada de fornicação. Como se
tratava de um crime de Hudud (um crime contra Deus), a pena era severa. Os
mutawas, escudados pela sua indignação, estavam ali para testemunhar a aplicação
do castigo merecido.
O médico, um muçulmano da índia, não protestou diante dos mutawas, no
entanto estava furibundo pelo papel que o obrigavam a desempenhar. Disse ao
pessoal que o castigo habitual para punir a fornicação era o chicote, porém, naquele
caso, o pai insistira na morte da filha. A rapariga deveria ser vigiada até dar à luz, após
o que seria apedrejada até à morte.
O queixo da enfermeira tremeu de indignação ao contar que a rapariga pouco
mais era do que uma menina. Calculou que teria à volta de uns catorze, quinze anos.
Poucos pormenores mais conhecia, de modo que me deixou deitada e foi tagarelar
com as outras enfermeiras que estavam no corredor.
Implorei a Karim que se informasse do que se tratava. Ele hesitou, dizendo que
não era nada que nos dissesse respeito. Depois de muitas súplicas e lágrimas
derramadas por mim, acedeu em inquirir o que se passava.
Sara iluminou o meu dia ao trazer-me novas ótimas sobre a evolução do seu
romance. Asad falara com o nosso pai e recebera a esperada resposta positiva. Sara e
Asad casariam dali a três meses. Fiquei radiante pela minha irmã, que até ali tão pouca
felicidade conhecera. Depois revelou outra notícia que me fez encolher o estômago de
medo. Ela e Asad tinham planeado encontrar-se no Bahrein no fim-de-semana
seguinte. Ao ver que eu protestava, Sara declarou que iria ter com Asad, com ou sem a
minha ajuda. Tencionava avisar o pai de que ficaria mais uns dias no meu palácio,
ajudando-me a desempenhar o meu novo papel materno. Diria a Nurah que regressava
à casa paterna. Afiançou que ninguém desconfiaria do contrário.
Perguntei como viajaria ela sem a autorização do nosso pai, pois sabia que este
guardava todos os passaportes da família num cofre que tinha no escritório. Além
disso, seria necessária uma permissão escrita do pai, caso contrário jamais entraria
num avião.
Encolhi-me de medo, quando Sara me contou que pedira um passaporte e uma
autorização emprestadas a uma amiga que tencionara deslocar-se ao Bahrein para
visitar familiares, mas tivera de cancelar a viagem por motivos de saúde de um dos
parentes. Como as mulheres sauditas andam veladas e nenhum guarda da segurança
do aeroporto se atreveria jamais a pedir para ver o rosto de uma mulher, muitas
sauditas pedem emprestados os passaportes umas das outras para tais ocasiões. O
outro problema era a carta com a autorização, mas também estas eram trocadas,
juntamente com os passaportes. Mais tarde, Sara retribuiria o favor marcando uma
viagem para um país vizinho e cancelando-a à última da hora, emprestando depois as
credenciais à mesma amiga. Era uma operação pormenorizada e clandestina que
nenhum dos nossos homens alguma vez imaginara. Eu sempre achara piada à
facilidade com que as mulheres ludibriavam os agentes do aeroporto, mas agora, que
se tratava da minha irmã, tremia de preocupação.
Numa tentativa para desencorajar Sara de algum ato irrefletido, relatei-lhe a
história da jovem que aguardava a sua execução por apedrejamento. Sara ficou
perturbada, tal como eu, mas os seus planos não vacilaram. Cada vez mais nervosa,
acedi em encobri-la. A perspectiva de se encontrar com Asad sem ser debaixo de
vigilância, fê-la rir a bom rir. Arranjara um apartamento emprestado por uma amiga, em
Manama, a capital do país minúsculo que é o Bahrein.
Sara, expectante em relação ao seu futuro, tirou o meu filho do seu berço de
seda. Examinou ternamente a sua perfeição, declarando que em breve também ela
conheceria os prazeres da maternidade, pois, tal como Asad, ansiava pelos seis
pequeninos que Huda previra com tanta certeza.
Eu exibia a alegria que a minha irmã esperava de mim, no entanto sentia as
entranhas contorcidas de medo.
Nessa noite Karim voltou cedo, com informações sobre a condenada. Contou
que era conhecida pela sua libertinagem e engravidara depois de ter relações sexuais
com uma série de adolescentes. Semelhante comportamento enojara Karim. Declarou
que o desdém da jovem pelas leis do seu país denegrira a honra da sua família, que
não tivera outro remédio senão tomar aquela decisão.
Perguntei ao meu marido qual o castigo que os rapazes que tinham participado
receberiam, porém, não me soube responder. Disse-lhe que o mais provável era terem
recebido um sermão severo em vez de uma sentença de morte, pois no mundo árabe,
a culpa pela prática não sancionada do sexo recai apenas sobre os ombros da mulher.
Karim decepcionou-me com a tranqüilidade com que aceitava a execução planeada de
uma menina, independentemente do crime. Apesar dos meus apelos para que fizesse
um esforço para intervir junto do rei, pessoa que podia levar um pai a ceder em relação
a algum castigo violento, Karim rechaçou as minhas exclamações de alarme com
irritação indisfarçada, insistindo em colocar um ponto final no assunto.
Quando se despediu de mim, mostrei-me retraída e amuada. Encheu o nosso
filho de beijos e promessas de uma vida perfeita, enquanto eu me deixava ficar
sentada, triste e indiferente.
Preparava-me para abandonar o hospital quando a enfermeira inglesa entrou na
minha suíte pálida de raiva. Trazia informações dramáticas sobre a condenada.
Possuía uma memória extraordinária e recordava, com perfeita clareza, cada pormenor
doloroso que o médico indiano contara. A rapariga condenada fora mãe de uma
menina às primeiras horas da madrugada. Três mutawas tomaram conhecimento da
indignação da comunidade estrangeira e colocaram-se, juntamente com os guardas
armados, à porta da sala de partos, a fim de se certificarem de que nenhum estrangeiro
compassivo ajudava a rapariga a fugir. A jovem, depois de dar à luz, fora levada de
novo para o seu quarto, numa cadeira de rodas. Os mutawas comunicaram ao médico
que seria levada naquele mesmo dia, a fim de ser executada por apedrejamento pelo
seu crime contra Deus. O destino da recém-nascida ainda não fora decidido, pois a
família recusara-se a acolhê-la.
A enfermeira, com o horror espalhado nos olhos, contou que a rapariga relatara
ao médico, no meio de lágrimas, os acontecimentos que haviam conduzido à sua
situação trágica. Chamava-se Amal e era filha de um comerciante de Riade. Tinha
apenas treze anos quando os fato que despedaçaram o seu mundo ocorreram.
Começara a usar véu havia pouco tempo.
Era uma noite de quinta-feira (equivalente ao sábado à noite no mundo
ocidental). Os pais de Arnal tinham ido passar o fim-de-semana aos Emirados e só
regressariam sábado à tarde. As três criadas filipinas da casa estavam a dormir e o
motorista vivia na sua casinha junto ao portão, a uma distância considerável da casa
principal. Os irmãos mais velhos de Amal, casados, viviam noutras zonas da cidade.
Da família, somente ela e um irmão de dezessete anos tinham ficado em casa. Este
ficara encarregue, mais as três criadas filipinas, de tomar conta da jovem. O irmão
aproveitara a ausência dos pais para receber um numeroso grupo de amigos. A noite já
ia adiantada quando Ainal começou a ouvir música alta e vozes, pois a sala onde a
festa decorria encontrava-se mesmo por baixo do seu quarto. Pensou que o mais
provável era o irmão e os amigos estarem a fumar marijuana, uma substância à qual
seu irmão começara a apegar-se nos últimos tempos.
A certa altura, quando as paredes do quarto de Amal começaram a vibrar com
os baixos da estereofonia, resolveu descer ao piso inferior e pedir ao irmão e aos
amigos que baixassem a música. Vestida apenas com uma fina camisa de dormir, não
tencionava entrar na sala, apenas enfiar a cabeça e gritar que queria paz e silêncio.
Havia pouca luz e a sala estava mergulhada na penumbra. O irmão não respondeu ao
chamado, de modo que a rapariga decidiu entrar para o procurar.
O irmão de Amal não estava em parte nenhuma. Os outros adolescentes que
estavam na sala encontravam-se, nitidamente, excitados pela droga consumada e pela
conversa sobre mulheres, pois Amal foi imediatamente agarrada por vários rapazes,
que a prenderam ao chão. Gritou pelo irmão e tentou fazer com que compreendessem
que era a filha da casa, mas as suas súplicas não entraram nas mentes drogadas.
Arrancaram-lhe a camisa de noite do corpo. Foi brutalmente violada pelos amigos do
irmão, que se tinham transformado numa turba enlouquecida. O barulho da música
abafou o som do ataque e ninguém ouviu os seus gritos a pedir socorro. Depois de o
terceiro jovem a violar, Amal perdeu os sentidos.
O irmão tinha ido à casa de banho, porém estava tão drogado que se deixara
escorregar para o chão, encostado a uma parede, e passara o resto da noite
mergulhado num torpor inconsciente. Mais tarde, quando a luz da aurora aclarara a
cabeça dos violadores e a identidade de Amal fora revelada, os rapazes tinham fugido
da vila.
O motorista e as filipinas levaram Amal até um hospital próximo. O médico da
sala de emergência notificou a polícia. Os mutawas meteram-se no assunto. A reclusão
a que Amal estava sujeita pela sua condição de mulher não lhe permitiu identificar os
seus atacantes pelo nome, apenas que eram amigos do irmão. Os seus nomes foram
obtidos através deste, mas quando isso aconteceu e os chamaram a prestar
declarações, já eles se tinham esforçado para apresentar uma explicação comum.
Segundo a sua versão sobre os acontecimentos da noite, não houvera consumo de
droga. Só confirmaram que tinham posto a música muito alta e divertiam-se
inocentemente. Afirmaram que a rapariga entrara na sala envergando uma camisa de
dormir transparente e induzira-os a praticar relações sexuais com ela. Disse aos
rapazes que estivera a ler um livro sobre sexo, no andar de cima, e sentia-se cheia de
curiosidade. Juraram que tinham começado por recusar, mas ela portara-se de maneira
tão ousada - sentando-se no seu colo, beijando-os e apalpando-os - que não foram
capazes de se conter por mais tempo. A rapariga fora deixada sozinha e estava
decidida a passar um bom bocado com os rapazes. Declararam que era insaciável e
implorara a todos que participassem.
Os pais regressaram dos Emirados. A mãe de Amal acreditou na história da
filha, mas, apesar de tresloucada pela dor, não foi capaz de convencer o marido da
inocência desta. O pai de Amal, que nunca se dera bem com as filhas, ficou abalado
pelo acontecido, mas achou que os rapazes só tinham feito o que qualquer macho faria
nas mesmas circunstâncias. Pesaroso, concluiu que havia que castigar a filha pela
vergonha que trouxera ao seu nome. O irmão de Amal, receoso de um castigo severo
por consumir droga, não tomou nenhuma iniciativa para limpar o nome da irmã.
Os mutawas proporcionaram ao pai apoio moral na decisão inabalável que tomou,
enchendo-o de louvores pela sua convicção religiosa. A rapariga morreria naquele dia.
Consumida por emoções de pena e temor, mal ouvi as exclamações incessantes
da enfermeira inglesa. Senti a minha felicidade diminuir consideravelmente ao pensar
na inocência da jovem e nos esforços infrutíferos da mãe para a salvar de uma morte
cruel. Eu própria nunca testemunhara um apedrejamento, mas Ornar fizera-o três
vezes e deliciara-se a descrever-nos o destino que aguardava as mulheres fracas que
não guardavam zelosamente a sua honra, tão prezada pelos homens. Lembrei-me da
descrição vívida de Ornar, que ficara gravada na minha memória.
Tinha eu doze anos quando certa mulher, que vivia numa das aldeias vizinhas
próximas de Riade, fora acusada de adultério. Condenaram-na a morrer por
apedrejamento. Omar e um motorista de um vizinho nosso resolveram ir assistir ao
espetáculo.
A vasta multidão começara a formar-se desde manhã cedo. Estava agitada e
ansiosa por ver quem se portara tão vergonhosamente. Ornar contou que,
precisamente quando já todos começavam a ficar enfurecidos de impaciência sob o sol
escaldante, chegou um carro da polícia, de dentro do qual tiraram rudemente uma
jovem mulher com cerca de vinte e cinco anos. Afirmou que era muito bonita, do
gênero daquelas que desafiam as leis de Deus. Amarraram as mãos à mulher. A
cabeça pendia-lhe para a frente. Um homem leu à multidão, em jeito de comunicação
oficial, o crime de que era acusada. Utilizaram um farrapo para a amordaçar,
prendendo-lhe, em seguida, um capuz preto à cabeça.
Obrigaram-na a ajoelhar-se. O carrasco, um homem corpulento, açoitou-a
cinqüenta vezes nas costas.
Chegou um caminhão carregado de pedras, que foram empilhadas num monte
enorme.
O homem que lera o crime informou a multidão de que a execução podia
começar.
Omar disse que o grupo de pessoas, na sua maioria homens, correu para as
pedras e começou a atirá-las à mulher. A culpada não tardou a ficar prostrada no chão
e o seu corpo contorceu-se espasmodicamente. Ornar disse que as pedras
continuaram a embater no seu corpo por tempo indeterminado. De vez em quando
havia uma interrupção, na altura em que o médico ia verificar o pulso da mulher. Cerca
de duas horas depois, o médico declarou, finalmente, a mulher morta e o
apedrejamento cessou.
A enfermeira inglesa interrompeu o triste fio dos meus pensamentos ao voltar a
entrar nos meus aposentos tomada de grande agitação. A polícia e os mutawas
estavam a levar a rapariga para a execução. Disse-me que se me colocasse no umbral
da porta, poderia ver-lhe o rosto pois não ia velada. Ouvi grande agitação no corredor.
Prendi rapidamente o meu véu em torno do rosto. Os meus pés impeliram o meu corpo
para a frente sem reflexão ou intenção.
A condenada tinha, no meio dos guardas altos e austeros que a levavam para
cumprir o seu destino, um aspecto frágil e infantil. Encostara o queixo ao peito e assim
era difícil ver a sua expressão. No entanto, percebi que era uma jovem bonita, uma
jovem que se teria transformado numa grande beleza se lhe tivessem dado a
oportunidade de crescer. Apavorada, olhou fugidiamente para o mar de rostos que a
mirava com grande curiosidade.
Vi que se sentia profundamente aterrorizada. Não estava presente ninguém de
família para a acompanhar à sua sepultura, apenas desconhecidos que a levavam para
a mais tenebrosa das viagens.
Voltei para a minha suíte. Agarrei ternamente no meu bebê e refleti, aliviada, no
alívio que sentia por ele não pertencer ao sexo fraco. Fixei, maravilhada, o olhar no
rosto minúsculo. Apoiaria ele o sistema que tão duro era para a sua mãe e irmãs,
fortalecendo-o, portanto? Considerei a possibilidade de, na minha terra, todos os bebês
do sexo feminino serem exterminados à nascença. Talvez a nossa ausência
amenizasse a atitude inflexível dos nossos homens. Estremeci e no meu cérebro
formou-se uma dúvida: como poderiam as mães proteger as filhas das leis daquela
terra?
Os olhos da decidida enfermeira inglesa estavam manejados de lágrimas.
Fungou e perguntou por que razão eu, uma princesa, não intervirá naquela loucura.
Respondi-lhe que não estava nas minhas mãos ajudar a condenada; na minha terra, as
mulheres não têm voz ativa, nem mesmo as que pertencem à família real. Cheia de
mágoa, disse à enfermeira que a rapariga não só morreria à hora marcada como a sua
morte seria horrenda e a sua passagem por esta vida não ficaria registrada. Pensei,
amargamente, naqueles que eram os verdadeiros culpados e continuavam livres,
alheios à morte trágica que tinham provocado.
Karim chegou com um rosto alegre. Organizara o nosso regresso ao palácio
como se tratasse de um plano de guerra. Escoltas policiais facilitaram a nossa
passagem através do trânsito intenso da cidade de Riade em crescimento. Quando
relatei o incidente no hospital, Karim mandou-me calar. Não desejava ouvir falar em
tristezas quando levava o filho nos braços, rumo ao seu destino de príncipe numa terra
que amparava e acarinhava os da sua estirpe.
Os meus sentimentos pelo meu marido ressentiram-se ao ver a indiferença com
que reagia ao destino de uma jovem inferior. Suspirei profundamente e senti-me só e
receosa do que as minhas futuras filhas pudessem vir a enfrentar nos anos vindouros.

A MORTE DE UM REI

O ano de 1975 deixou-me más recordações, período simultaneamente de


grande felicidade e tristeza desencorajante para a minha família e o meu país.
Abdullah, o meu adorado filho, celebrou o segundo aniversário rodeado por
aqueles que o amavam. Os nossos aviões particulares trouxeram um pequeno circo de
França para a festa. O circo ficou uma semana no palácio do pai de Karim.
Sara e Asad tinham sobrevivido ao seu namoro ousado e encontravam-se agora
casados e muito felizes, aguardando a chegada do seu primeiro filho. Asad,
entusiasmado pela chegada do primogênito, fora de avião até Paris e esvaziara três
enormes lojas de roupas de bebê. Nurah, a sua incrédula mãe, dizia a quantos a
escutavam que o filho perdera a cabeça. Envolvida em tão grande amor, Sara, a minha
irmã de há tanto sofredora, resplandecia, finalmente, de felicidade.
Ali estava a estudar nos Estados Unidos e deixara de se meter nos assuntos
respeitantes às suas irmãs. Pregou um susto de morte ao pai ao anunciar-lhe que
estava apaixonado por uma americana da classe trabalhadora, mas, para grande alívio
deste, tudo não passou de fogo de vista e em breve chegou notícia de que preferia
uma esposa saudita. Descobrimos, mais tarde, que a mulher atirara um candelabro à
cabeça de Ali quando este se mostrara beligerante e autoritário diante da sua recusa
em obedecer, à medida que os anos de esforços do rei Faiçal e de sua esposa 1ffat em
prol da educação e liberdade da mulher iam obtendo êxito, nós, os casais sauditas
modernos, íamos desfrutando do subtil abrandamento das severas restrições que
vigoravam sobre as mulheres.
A par da nossa educação surgiu uma determinação em mudar o nosso país. Já
havia mulheres que não tapavam o rosto, pondo de parte o véu e enfrentando
corajosamente os religiosos que se atreviam a provocá-las. Ainda cobriam a cabeça e
usavam abaayas, no entanto a determinação desse pequeno número transmitia
esperança a todas nós. As que pertenciam à família real não podiam gozar de tal
liberdade; quem mostrava maior bravura era a classe média. Estavam agora a abrir
escolas públicas para mulheres sem que tal originasse demonstrações de repúdio por
parte dos mutawas.
Estávamos certas de que a educação feminina acabaria por nos conduzir à
igualdade. Infelizmente, a punição das mulheres pela morte ainda ocorria entre os
fundamentalistas conservadores. Um passo de cada vez, lembrava melancolicamente
umas às outras.
De repente, Karim e eu tornamo-nos donos, num espaço de seis meses, de
quatro novas casas. O nosso novo palácio em Riade ficara, finalmente, pronto. Karim
achou que o crescimento do filho beneficiaria enormemente se a criança respirasse as
frescas brisas marítimas, de modo que adquirimos uma nova vila à beira do mar, em
Gidá.
O meu pai possuía um espaçoso apartamento em Londres, apenas a quatro
ruas do Harrods, e punha a propriedade, sem regatear, à disposição dos filhos que
estivessem interessados. Como as minhas outras irmãs e respectivos maridos já
tinham os seus próprios apartamentos em Londres, e Sara e Asad estavam prestes a
comprar um em Veneza, Karim e eu aproveitamos, de bom grado, a oportunidade de
termos de arranjar casa naquela cidade colorida tão do agrado dos Árabes. E por fim,
como prenda especial pelo nosso terceiro aniversário de casamento e por tê-lo
presenteado com um varão, Karim comprou-me uma linda vila no Cairo.
Quando Abdullah nascera, o joalheiro da família fora de avião de Riade a Paris
para escolher uma coleção de diamantes, rubis e esmeraldas para ornamentar sete
conjuntos individuais de colar, pulseira e brincos. Escusado será dizer que me sentia
ricamente compensada por fazer o que fora da minha vontade.
Karim e eu, sempre que era possível, deslocávamo-nos a Gidá. Por sorte, a
nossa vila estava situada num recanto privilegiado que era freqüentado pela família
real.
Jogávamos gamão ao mesmo tempo que observávamos o nosso filho, que,
rodeado pelas criadas filipinas, chapinhava nas tépidas águas azuladas cheias de
peixes exóticos.
Até nós, mulheres, podíamos nadar, embora conservássemos as abaayas
vestidas até a água nos chegar ao pescoço. Uma das criadas ia-ma buscar,
recebendo-a de uma das minhas mãos, podendo então eu nadar e deleitar-me sem
entraves dentro de água. Eu era o mais livre que é possível ser-se na Arábia Saudita.
Estava-se no fim de Março, um mês já não muito quente do ano, portanto já não
ficávamos muito tempo fora de casa depois do sol do meio-dia. Mandei as criadas
buscar o nosso bebê sorridente e darem-lhe banho no chuveiro de água quente portátil,
feito por encomenda. Ficamos a vê-lo gorgolejar e agitar as perninhas rechonchudas.
Os nossos sorrisos deixavam transparecer o orgulho que sentíamos. Karim apertou-me
a mão e disse-me que se sentia culpado por sentir tanta felicidade. Mais tarde, acusei-o
de ter atraído o azar ao expressar alto o seu bem-estar na vida.
A maioria dos árabes acredita no mau-olhado; nunca apregoamos a nossa
felicidade ou a beleza dos nossos filhos. É muito possível que algum espírito maligno
esteja à escuta e nos roube o objeto da nossa alegria ou nos cause um desgosto,
levando-nos um ente querido. Para manterem esses espíritos maus à distância, os
nossos bebês usam contas azuis presas às roupas. Por muito esclarecidos que
fôssemos, o nosso filho não fugia à regra.
Momentos mais tarde, recordo com horror que vi Asad vir ter conosco a correr,
gritando-nos:
- O rei Faiçal morreu! Foi assassinado por um membro da família!
Aparvalhados e trêmulos, deixamo-nos ficar sentados a ouvi-lo relatar os
poucos pormenores que ficara a conhecer através de um primo real.
Na origem da morte do nosso tio estava um diferendo sobre a abertura de um
canal de televisão, ocorrido cerca de dez anos antes. O rei Faiçal estivera sempre
firmemente a favor do processo de modernização da nossa terra atrasada. Karim disse
que o ouvira observar, certa vez, que quer nós, Sauditas, gostássemos ou não, ele iria
levar-nos de empurrão até ao século XX.
Os problemas que enfrentava com os cidadãos extremamente religiosos
residiam na manutenção de situações vergonhosas encontradas pelo nosso primeiro
monarca e pai de Faiçal, Abdul Aziz. Esses religiosos insurgiram-se violentamente
contra a abertura da primeira estação de rádio e Abdul Aziz ultrapassou as objeções
ordenando a leitura do Alcorão. Os religiosos não puderam encontrar defeitos de maior
naquele método rápido de pregação da palavra de Deus. Anos mais tarde, quando o rei
Faiçal quis oferecer estações televisivas ao nosso povo, também ele, tal como
acontecera com seu pai, encontrou forte oposição por parte da Ulemá (os xeques
religiosos).
Tragicamente, houve membros da família real que se juntaram a estes protestos
e, em Setembro de 1965, ainda eu era criança, um dos nossos primos foi morto a tiro
pela polícia enquanto liderava uma manifestação contra uma estação de televisão
situada a alguns quilômetros de Riade. O príncipe renegado, seguido dos apoiantes,
invadira a estação. O episódio terminara numa batalha campal com a polícia, durante a
qual fora morto. Tinham passado cerca de dez anos, no entanto o ódio fervilhara no
irmão mais novo desse príncipe até o levar a retaliar, matando o rei, seu tio, a tiro.
Karim e Asad partiram para Riade de avião. Sara e eu, juntamente com outras
primas da família real, reunimo-nos num dos palácios murados da família. Todas
pranteamos e gritamos a nossa dor umas às outras. Eram poucas as primas que não
gostavam do rei Faiçal, pois este representava a nossa única hipótese de alcançarmos
a mudança e a liberdade. Somente ele dispunha do prestígio, tanto junto dos religiosos
como das facções reais da nossa terra, para promover a transformação social. Uma
vez ouvi-o dizer que apesar de haver papéis distintos para o homem e para a mulher,
tal como Deus mandava, nenhum deles devia sobrepor-se ao outro com supremacia
inquestionável.
Declarou, em voz tranqüila, que não seria completamente feliz até cada cidadão
da sua terra, tanto homem como mulher, ser senhor do seu próprio destino. Acreditava
que a nossa causa só evoluiria através da educação, pois era a nossa ignorância que
nos mantinha, sem dúvida, no obscurantismo. O certo é que, depois do rei Faiçal,
nunca mais nenhum governante defendeu tanto a nossa causa. Olhando em
retrospectiva, a nossa curta mas decidida ascensão rumo à liberdade principiou a
resvalar a partir da altura em que as balas da falsidade, disparadas por um membro da
própria família, destruíram a sua vida.
Cada um de nós sente raiva e ódio pela família de onde saiu uma pessoa como
o nosso primo Faiçal ibn Musaid, o carrasco das nossas esperanças e sonhos. Uma
das nossas primas gritou que o próprio pai do assassino não era bom da cabeça. Ele,
que nascera numa posição de proeminência no esquema da realeza saudita, sendo
meio-irmão do próprio rei Faiçal, fugira a qualquer contacto com os membros da família
e com a responsabilidade do trono. Um dos filhos fora um fanático, sujeitando-se à
morte para impedir a inocente instalação de uma estação televisiva, e outro
assassinara o nosso bem-amado e respeitado rei Faiçal.
Nenhuma dor poderia ser pior do que a perspectiva da Arábia Saudita não
dispor da sua sabedoria ponderada para nos guiar. Eu nunca testemunhara, antes ou
depois, tão profunda tristeza nacional. Era como se toda a nossa terra e o seu povo
tivesse mergulhado em agonia. O melhor chefe que a nossa família tinha para dar fora
abatido por um dos nossos.
Três dias mais tarde, a filha de Sara surpreendeu a mãe nascendo de pés. A
pequena Fadila, assim lhe chamou a mãe, juntou-se a uma nação de luto. A nossa dor
era tão profunda que a recuperação foi morosa, no entanto a chegada da pequena
Fabíola veio animar-nos e trazer-nos uma mensagem de alegria.
Sara, receosa pelo futuro da filha, convenceu Asad a assinar um documento em
como a filha teria a liberdade de se casar com quem entendesse, sem a interferência
da família. Sara tivera um pesadelo horrível onde ela e o marido morriam num acidente
de avião, deixando a filha a ser criada segundo os moldes rígidos da nossa geração.
Sara, olhando firmemente Asad nos olhos, declarou que preferia matar a filha a vê-la
casada com um homem perverso. Asad, ainda profundamente apaixonado pela mulher,
reconfortou-a, assinando o documento e depositando uma conta num banco suíço, no
valor de um milhão de dólares, em nome da filha. A filha de Sara disporia
de meios legais e financeiros para fugir aos seus pesadelos pessoais em caso de
necessidade.
Ali regressou dos Estados Unidos para as férias do Verão, mostrando-se ainda
mais detestável, se possível, do que eu me recordava. Fez questão em nos relatar as
suas escapadelas com mulheres americanas e anunciou que, realmente, era verdade,
todas elas não passavam de prostitutas!
Quando Karim o interrompeu dizendo que conhecera muitas de elevada moral
em Washington, Ali riu-se e sugeriu que as coisas tinham mudado muito. Declarou que
as mulheres que conhecera em bares tomavam a iniciativa e propunham sexo antes de
ele ter a oportunidade de tocar no assunto. Karim retorquiu-lhe que aí é que estava a
diferença: se uma mulher estava sozinha num bar era porque, provavelmente, andava
em busca de um encontro efêmero ou de uma noite bem passada. Afinal de contas, na
América as mulheres eram livres, tal como os homens. Aconselhou Ali a freqüentar a
igreja ou acontecimentos culturais, onde ficaria surpreendido com a conduta de quem
pertencia ao sexo feminino. Ali manteve-se inabalável. Afirmou que pusera à prova a
moral de mulheres pertencentes a vários estratos sociais na América e não lhe
restavam dúvidas de que todas elas eram prostitutas.
À semelhança da maioria dos muçulmanos, Ali jamais veria ou compreenderia
os costumes e tradições de outra religião ou terra. O único conhecimento que a maioria
dos árabes tem da sociedade americana chega-lhes através do conteúdo de filmes de
baixo nível e espetáculos televisivos de má qualidade. Ainda mais importante, os
homens sauditas viajam sozinhos. A forte reclusão a que estão sujeitos na sua terra em
relação às companhias femininas, leva-os a interessarem-se unicamente pelas
mulheres estrangeiras. Tristemente, procuram apenas a companhia de mulheres que
trabalham em bares como strippers ou prostitutas. Este panorama estreito distorce a
sua opinião sobre a moralidade no Ocidente. Como a maioria das mulheres sauditas
não viaja, acreditam nas histórias relatadas pelos maridos e irmãos.
Conseqüentemente, a maioria dos árabes está piamente convencido de que quase
todas as mulheres do Ocidente são promíscuas.
É certo que o meu irmão possuía uma certa beleza exótica que devia atrair
muito o sexo oposto, mas eu não tinha a menor dúvida de que nem todas as mulheres
da América eram prostitutas! Disse a Karim que estava ansiosa por viajar com Ali.
Como seria divertido ficar atrás dele a segurar num cartaz que dissesse: ESTE
HOMEM DESDENHA-TE E DESPREZA-TE SECRETAMENTE! SE LHE DISSERES
"SIM", ELE DIRá AO MUNDO QUE ÉS UMA PROSTITUTA!
Antes de Ali regressar aos Estados Unidos, informou o nosso pai de que estava
pronto para arranjar a sua primeira esposa. A vida sem sexo era monótona, disse, e
gostaria de ter uma mulher à sua disposição sempre que viesse passar férias a Riade.
E o que era ainda mais importante, era tempo de ele, Ali, ter um filho varão, já que,
sem eles, um homem não tem valor na Arábia Saudita e é escarnecido por todos os
que o conhecem.
A sua nova esposa não poderia viver com ele nos Estados Unidos,
evidentemente, ficando antes na vila do pai, cuidadosamente guardada por Omar e os
outros criados. Ali declarou que queria ter liberdade para desfrutar da moral permissiva
da América. A única exigência que fazia à sua mulher - além da virgindade, claro - era
que fosse jovem, não além dos dezessete anos, excepcionalmente bonita e obediente.
Passadas duas semanas, Ali estava noivo de uma prima real; o casamento foi marcado
para Dezembro, altura em que disporia do mês de intervalo que separa cada período
letivo.
Ao observar Ali, dava-me por muito feliz por ter casado com um homem como
Karim. O meu marido estava, sem dúvida, muito longe da perfeição, mas Ali era um
machão saudita típico. Ter alguém assim como marido era uma cruz muito pesada na
vida.
Antes de Ali voltar dos Estados Unidos, a minha família reuniu-se nos jardins da
nossa vila em Gidá. Certa noite, os homens beberam de mais e tornaram-se
conversadores. Depois do jantar, veio à baila a questão de as mulheres deverem, ou
não, guiar automóveis. Karim e Asad foram da mesma opinião que eu e Sara em como
esse costume idiota, sem a menor razão de ser no islamismo, devia mudar. Apontamos
o exemplo das mulheres que pilotavam aviões nas nações industrializadas, enquanto,
no nosso país, nem os automóveis podiam dirigir! Muitas famílias sauditas não podiam
dar-se ao luxo de ter mais de um motorista, portanto em que situação ficavam quando
queriam deslocar-se? Que aconteceria se houvesse uma emergência médica na folga
do motorista? Os homens sauditas tinham tão fraca opinião sobre as capacidades das
suas mulheres que preferiam pôr rapazes de doze e treze anos ao volante (o que é
comum na Arábia Saudita) do que mulheres adultas?
Ali, o nosso pai e Ahmed achavam o assunto, só por si, de loucos. Ali declarou
que homens e mulheres marcariam encontros amorosos no deserto! Ahmed
preocupava-se com a falta de visibilidade que o véu provocava. O nosso pai trouxe à
baila a possibilidade de acidentes de automóvel e a vulnerabilidade das mulheres na
rua enquanto aguardavam a chegada do agente de trânsito. Dito isto, olhou à sua volta
à espera de ver os genros concordarem com ele em como uma mulher ao volante de
um automóvel poria em perigo não só a sua vida como também a dos outros, porém
estes estavam demasiado ocupados a preparar bebidas ou a ir à casa de banho.
Por fim, Ali, como se tivesse tido uma idéia luminosa que poria fim à discussão, a seu
favor, declarou que, como as mulheres eram mais influenciáveis que os homens,
imitariam a juventude da nossa terra, que ultrapassava os limites de velocidade nas
nossas ruas. Naturalmente, estariam apenas preocupadas em imitá-los, pelo que o
índice de acidentes, cada vez mais elevado, aumentaria ainda mais.
Como o meu irmão ainda conseguia enfurecer-me! Ali tinha a ilusão enganadora
de que eu deixara os meus impulsos juvenis para trás, mas o seu ar convencido
despertou o meu mau gênio. Para surpresa de todos, saltei sobre Ali, agarrei-lhe no
cabelo e comecei a puxá-lo o mais fortemente que pude. Foi preciso Karim e o meu pai
para me fazerem largá-lo. As minhas irmãs riram a bom rir, enquanto os respectivos
maridos me fitavam com um misto de espanto e receio.
No dia seguinte, o meu irmão tentou fazer as pazes comigo antes da partida
para a América. O meu ódio era tão inquebrantável que manobrei propositadamente a
conversa de modo a fazê-lo incidir no casamento e na mania que os homens tinham
em que as mulheres fossem virgens, apesar de eles experimentarem o maior número
possível delas.
Ali encarou as minhas palavras com seriedade e citou o Alcorão com a intenção
de me esclarecer sobre a necessidade absoluta da virgindade nas mulheres.
Foi sem dificuldade que voltei a ser a velha Sultana dos muitos truques. Abanei
a cabeça com tristeza e suspirei fundo. Ali quis saber o que se passava comigo.
Respondi-lhe que, daquela vez, ele me convencera. Concordava com ele em como
todas as mulheres deviam chegar virgens ao casamento. Acrescentei, com uma malícia
oculta de que ele não se apercebeu, que a natureza das jovens da nossa sociedade
mudara tanto que era muito difícil encontrar uma virgem autêntica entre elas. Ao ver o
olhar interrogativo de Ali expliquei que, de fato, as mulheres raramente se portavam
mal enquanto estavam na Arábia Saudita, pois para que quereriam elas arriscar a vida?
Mas quando viajavam, asseverei, procuravam parceiros sexuais e ofereciam a
desconhecidos o seu bem mais precioso.
Ali ficou enraivecido com a idéia de algum homem que não ele, um saudita,
desflorar uma virgem saudita! Perguntou-me, preso de grande agitação, onde colhera
eu tal informação. Compondo uma expressão implorante, supliquei ao meu irmão que
não contasse a nossa conversa, pois de certeza o pai e Karim ficariam escandalizados.
Mas admiti perante ele que eram informações que nós, mulheres, trocávamos, sendo
certo que as virgens tendiam a escassear na nossa terra!
Ali franziu os lábios imerso nos seus pensamentos. Perguntou-me o que essas
raparigas faziam na noite de núpcias; é que, se não houvesse sangue, a noiva ficaria
desgraçada e seria devolvida ao pai. Na Arábia, os lençóis ensangüentados ainda são
orgulhosamente entregues à sogra da noiva, para que esta possa mostrar às amigas e
parentes que uma mulher honrada e pura acabou de entrar para a sua família.
Inclinei-me para mais perto e contei a Ali que a maioria das mulheres mandava
reconstruir os hímens cirurgicamente. Acrescentei que quase todas as jovens
entregavam a sua virgindade repetidas vezes a homens que nem sequer desconfiavam
do logro. Era fácil e simples enganar um homem. Na Europa havia muitos médicos que
executavam a operação com perícia e havia até alguns que eram conhecidos, na
Arábia Saudita, por fazê-lo.
Depois, para completo horror de Ali, segredei-lhe que, se por acaso uma
rapariga não tinha tempo de fazer a cirurgia antes do casamento, não custava nada
enfiar um fígado de borrego dentro de si antes do ato sexual. O marido não daria pela
diferença. O que descorava era um fígado de borrego, não a sua esposa!
O meu egocêntrico irmão passou a ser atormentado por um novo temor.
Telefonou imediatamente para um médico seu amigo. Vi-o empalidecer ao ouvir o
amigo confirmar que essas operações eram possíveis. Quanto ao fígado de borrego,
nunca ouvira falar de tal, mas parecia ser um esquema viável que as mulheres imorais
acabariam por descobrir mais tarde ou mais cedo.
Nitidamente perturbado, Ali voltou à vila duas vezes naquele dia, pedindo-me
conselho sobre o melhor processo de se resguardar contra tal traição. Disse-lhe que
não havia maneira, a não ser que ele mantivesse a sua nova noiva debaixo de olho
noite e dia desde o seu nascimento. Ele, Ali, teria apenas de aceitar a possibilidade de
aquela que fosse desposar poder ter fraquezas e ter cometido erros na sua juventude.
Foi um Ali preocupado e desanimado que regressou aos Estados Unidos.
Quando contei a minha partida a Karim, Sara e Asad, a minha irmã mal pôde
conter o seu regozijo. Karim e Asad trocaram olhares preocupados e olharam de
relance para as suas mulheres com novos pensamentos a cruzarem-lhes a mente.
O casamento de Ali teve lugar na data marcada. A sua jovem noiva era
dolorosamente bonita. Como a lamentava... Mas Sara e eu rimos a bom rir ao reparar
no ar preocupadíssimo de Ali. Mais tarde, o meu marido repreendeu-me pela maldade
quando Ali lhe confessou que ele, Ali, tinha agora pavor do ato sexual. E se fosse
enganado?
Nunca saberia ao certo e seria obrigado a viver na dúvida em relação à mulher e
às outras que se lhe seguissem. O pior pesadelo possível para um homem saudita é
não ser o primeiro com a mulher desposada. Se trata de uma prostituta, não há
vergonha, mas a sua esposa representa o nome da sua família, dá-lhe os seus filhos. A
simples idéia de poder ser enganado era mais do que o meu irmão conseguia suportar.
Admiti prontamente ao meu marido que tivera momentos de maldade e reconheci, sem
hesitação, que teria de responder pelos meus pecados no dia do Juízo Final. No
entanto, na noite de núpcias de Ali sorri com uma satisfação jamais sentida. Descobrira
e explorara o maior dos seus receios.

O QUARTO DA MULHER

A mão de Nura tremia ao pegar no Alcorão, o nosso livro sagrado. Apontou-me


um versículo. Com emoção crescente, li a passagem em voz alta:
"Se as vossas mulheres cometerem a ação infame, chamai de entre vós quatro
testemunhas contra elas. Se os depoimentos forem realmente contra elas, fechai-as
em casa até que a morte as leve ou que Deus lhes conceda algum meio de salvação. "
Olhei para Nura e, a seguir, para as minhas outras irmãs, uma a uma. O meu
olhar deteve-se no rosto crispado de Tahani. Toda a esperança estava perdida para a
sua amiga Samira.
Sara, normalmente calada, falou:
- Ninguém pode ajudá-la. Foi o próprio Profeta a determinar esta forma de
punição.
Não pude conter a minha ira e declarei:
- Samira não foi culpada de lascívia, e não existem quatro testemunhas de
nenhum crime de Hudud (crimes contra Deus)! Ela apaixonou-se simplesmente por um
ocidental! Os homens da nossa terra determinaram que, para eles, é permissível terem
ligações amorosas com uma mulher estrangeira, uma mulher de outra religião, mas
nós, mulheres, estamos proibidas de fazê-lo! É algo insano! Esta lei, a sua
interpretação, é feita por homens e para homens!
Nura tentou acalmar-me, mas eu estava preparada para lutar tanto quanto
possível contra a inaceitável tirania agora centrada numa pessoa de quem nós todos
gostávamos, Samira.
Na véspera, Samira fora condenada, pelos homens da sua família e da sua
religião, a ficar fechada num quarto escuro até a morte a levar. Samira tinha vinte e
dois anos.
O fim demoraria a chegar a uma pessoa tão jovem e saudável. Que crime
cometera? Enquanto estivera a estudar em Londres, conhecera e apaixonara-se por
um homem que não professava a mesma religião que ela. Nós, mulheres sauditas,
somos ensinadas, desde tenra idade, que é pecado uma muçulmana apaixonar-se por
alguém de outra religião. Isto porque a fé dos seus filhos não pode ser garantida se o
marido for cristão ou judeu. Como a última palavra, na família do Médio Oriente, cabe
ao marido, as crianças correriam o risco de crescer dentro do cristianismo ou do
judaísmo; a esposa e mãe não poderia opor-se.
A todo o muçulmano é ensinado que o islamismo é a derradeira mensagem de
Alá à humanidade, sendo, portanto, uma fé superior a todas as outras. Os muçulmanos
não são autorizados a ser educados sob a proteção reconhecida de não muçulmanos
nem devem permitir que tal ligação se desenvolva. E, no entanto, muitos homens
sauditas casam com mulheres de outras fés, sem que o fato tenha repercussões.
Somente as mulheres sauditas pagam o preço supremo pela sua associação com um
herege. Os estudiosos da nossa religião dizem que a união de muçulmanos com
mulheres de qualquer outra fé é permitida, pois os filhos são educados dentro da
crença superior do pai.
Bastou-me pensar na injustiça de tudo aquilo para gritar de raiva. As minhas
irmãs e eu compreendíamos que, a partir dali, cada degrau da vida de Samira
conduziria, um a um, a uma enorme tragédia. E nós, as suas amigas de infância, nada
podíamos fazer para a salvar.
Samira fora a maior amiga de Tahani desde os oito anos. Era filha única; a mãe
tivera um cancro nos ovários e, apesar de se curar, soube que não poderia ter mais
filhos.
Surpreendentemente, o pai de Samira não se divorciara da esposa, agora
estéril, como seria costume entre a maioria dos homens sauditas.
As minhas irmãs e eu conhecêramos mulheres que, atacadas de doenças
graves, haviam sido postas de lado pelos maridos. O estigma social do divórcio é
severo e o trauma financeiro e emocional é arrasador para as mulheres. Se os filhos de
uma mulher divorciada já passaram a fase de lactação, também podem ser-lhe
retirados. Se a divorciada tiver sorte, terá pais extremosos que a acolherão em casa ou
um filho mais velho que lhe dará abrigo. Sem uma família que a apóie, porém, está
condenada, pois, na minha terra, nenhuma mulher sozinha ou divorciada pode viver só.
Existem lares, apoiados pelo Estado, destinados, especificamente, a estas mulheres,
porém a vida é muito triste e cada instante cruel. As poucas divorciadas que voltam a
casar têm sorte, pois ou são muito belas ou possuem grande fortuna. Como tudo o
mais na sociedade saudita, o falhanço do casamento e a culpa do divórcio é atribuída à
mulher.
A mãe de Samira fora uma das afortunadas. O marido amava-a sinceramente e
não pensara em pô-la de lado na altura em que mais necessitava de amparo. Nem
sequer tomara uma segunda esposa que lhe desse filhos varões. O pai de Samira é um
homem considerado estranho na nossa sociedade.
Samira e Tahaní eram grandes amigas. E, como Sara e eu tínhamos mais ou
menos a mesma idade de Tahani, também brincávamos com Samira. Nós três
invejávamos esta em muitos aspectos, pois o pai adorava a filha única. Ele, ao
contrário da maioria dos sauditas da sua geração, tinha uma mente moderna e
prometera à filha mantê-la livre dos antiquados costumes que vigoravam na nossa terra
em relação às mulheres.
Samira sentira a nossa dor perante as óbvias falhas do nosso pai. Mantivera-se,
em todas as crises, apaixonadamente firme pela nossa causa. Os olhos
encheram-se-me de lágrimas ao recordar como chorara no casamento de Sara.
Agarrara-se ao meu pescoço e murmurara, num gemido, que Sara morreria sob a
tirania da servidão! E agora era ela, Samira, a ficar prisioneira na mais escura das
prisões, onde até os criados estavam proibidos de lhe falar ao empurrarem-lhe as
refeições através de uma abertura especial feita na base da porta única. Samira nunca
mais poderia ouvir o som da voz humana. No seu mundo escutaria apenas o som da
própria respiração.
O pensamento era intolerável. Voltei-me para Sara e alvitrei uma interferência
da parte de Karim e Asad. Tahani ergueu os olhos, expectante. Sara sacudiu
lentamente a cabeça, respondendo que não. Asad já se informara; nem o tio de Samira
nem o ex-marido suspenderiam o duro castigo que representava a escuridão e o
silêncio até à morte. Tratava-se de uma questão entre a família e o seu Deus.
No ano em que me casei, Samira já tinha o seu futuro determinado com grande
cuidado. Desejava, desde muito nova e estranhamente, tornar-se engenheira. Nunca
nenhuma saudita tirara tal curso, já que éramos orientadas para carreiras consideradas
mais adequadas ao sexo feminino: pediatria, ensino ou assistência social a mulheres e
a crianças.
Além disso, as estudantes sauditas estão proibidas de ter professores do sexo
masculino, o que levara o pai de Samira a contratar uma tutora londrina para a filha.
Depois de anos de concentração e esforço a estudar em casa, Samira fora aceite num
instituto técnico em Londres. O pai, cheio de orgulho com a beleza e inteligência da
filha, acompanhara-a, mais à esposa, àquela cidade.
Os pais de Samira instalaram-na em casa própria. Contrataram duas criadas
indianas e uma secretária egípcia para viverem com a filha. Despediram-se desta e
regressaram a Riade. Claro, ninguém imaginava que nunca mais voltariam a ver-se. Os
meses passaram e, como era esperado, Samira obteve resultados brilhantes nos
estudos.
Durante o seu quarto mês de permanência em Londres, Samira conheceu Larry,
estudante da Califórnía. Os opostos atraem-se, como se diz, pois Larry era alto,
musculoso e louro, um californiano de espírito livre, enquanto Samira era exótica,
esguia e limitada pelas confusões criadas pelos nossos homens opressivos.
Escreveu a Tahani a dizer que o amor a entristecia porque sabia que estava
proibida de casar com um cristão. Larry era um católico que nunca concordaria em se
converter à fé muçulmana, processo que ajudaria a resolver a sua situação.
Passado um mês, Tahani recebeu uma segunda carta, esta ainda mais
desesperada que a anterior; Samira e Larry não conseguiam viver um sem o outro. Ela
iria morar com ele enquanto estivesse em Londres e depois, mais tarde,
escapulir-se-iam para os Estados Unidos, onde casariam. Nessa altura, dizia Samira,
seus pais poderiam comprar uma casa próxima da filha, na América. Tinha a certeza
de que os laços familiares estreitos que os uniam não se ressentiriam. Mas seria
forçada a abdicar da nacionalidade saudita. Nunca mais a veríamos no nosso país,
pois sabia que jamais poderia voltar à nossa terra depois do escândalo que era o seu
casamento com um herege.
Tragicamente, os pais de Samira nunca souberam do dilema em que a filha se
encontrava, pois ambos morreram instantaneamente, mais o motorista, quando um
caminhão cisterna cheio de água veio embater num dos lados do automóvel em que
atravessavam uma movimentada rua em Riade.
No mundo árabe, quando o chefe da família (sempre um homem) morre, o
controlo dos negócios dos membros da família sobrevivente é assumido pelo irmão
mais velho.
Com a morte do pai de Samira, o seu guardião passou a ser o irmão mais velho
do pai.
Nunca dois homens da mesma família tiveram tão poucas semelhanças um com
o outro. Enquanto o pai de Samira era liberal e bondoso, o seu irmão era conservador e
severo. Profundamente religioso, expressara muitas vezes o seu desacordo perante a
independência da sobrinha. Escandalizado, deixara de falar ao pai de Samira desde o
dia em que esta fora estudar para Londres.
Completamente contrário à educação das raparigas, achava melhor que estas
casassem, bem novinhas, com homens com muitos mais anos e sabedoria. Desposara,
recentemente, uma menina de treze anos. Esta começara a ser menstruada poucos
meses antes e era filha de um homem da idade dele.
O tio de Samira era pai de quatro filhas e três filhos. As raparigas tinham sido
cautelosamente casadas ao primeiro sinal de puberdade. Pouca escolaridade tinham
além das artes femininas da cozinha e da costura, embora soubessem ler muito bem, a
fim de poderem recitar o Alcorão.
No dia a seguir à morte dos pais de Samira, esta recebeu um segundo choque.
Seu tio, agora o chefe da família, ordenava-lhe que juntasse as suas coisas e
regressasse imediatamente a Riade. O temor do realismo brutal da vida sob as ordens
do tio levou Samira a encher-se de coragem e a mergulhar irracionalmente no
desconhecido. Samira e Larry fugiram juntos para a Califórnia, o que veio a provar ser
um erro cometido pela jovem. A desobediência descarada da sobrinha enfureceu o
novo guardião de Samira. Nessa altura ainda desconhecia a existência do amante
estrangeiro.'Não conseguia entender o capricho da rapariga, pois, até então, nunca
conhecera membros do sexo feminino rebeldes.
Ao chegar o fim do mês sem saber do paradeiro de Samira, o tio calculou que
tivesse morrido e que o seu corpo estivesse a decompor-se numa terra pagã. A sua
busca intensificou-se sem resultados, até que, por fim, perante a insistência do filho
mais velho, desistiu e recorreu aos serviços de uma agência particular de detetives
para descobrir o paradeiro da filha única de seu irmão.
Certa manhã, bem cedo, o tirânico tio de Samira chegou à vila de Taliani a
estrebuchar de raiva, brandindo o relatório da agência na mão crispada. Exigiu que a
minha irmã, confidente de Samira, revelasse o local onde se acoitavam a "sobrinha
herege e o seu amante pagão"!
Tahani, descrevendo a cena de olhos esbugalhados, ficara estupefata com
tamanha ira. O homem bateu com o punho nas paredes da casa; gritou a Alá a pedir
que o ajudasse a acabar com a sobrinha; jurou ferozmente punir o amante herege.
Amaldiçoou o dia em que a filha do irmão nasceu. Rezou em voz alta a Deus para que
cumulasse a sua sobrinha pagã de calamidades. Declarou que esta arruinara a honra
da família por muitas gerações.
Isolada como estava noutro país, Samira desconhecia que o tio, num esforço
incessante para a localizar, confiscava agora o correio que esta dirigia a todos os
membros da família. Ameaçando uma punição impiedosa a quem escondesse algum
contacto com a sobrinha, intimidou a família. A rapariga acabaria, certamente, por
desejar comunicar com os do seu sangue; quando a "grande pecadora", como
designava Samira, fraquejasse, não escaparia à sua vigilância. Só precisava de
esperar.
Entretanto, na Califórnia, o amor de Larry por Samira começou a fraquejar e
esta sentiu-se sem rumo. A indiferença que o amante começara a dedicar-lhe
deixava-a completamente desesperada; telefonou a Taliani confessando-lhe o seu
grande temor e incerteza em relação ao futuro. Que deveria fazer? Dispunha de
poucos fundos e ainda de menos amigos na sua nova terra. Se não casasse com Larry
não poderia permanecer na América. Habbib, se bem que permitisse a amizade de
Taliani com Samira, negou o pedido que a mulher lhe fez para mandar dinheiro a
Samira.
Vendo que já só lhe restavam alguns milhares de dólares no banco, Samira,
num ato de desespero, telefonou à sua tia preferida, a irmã mais nova do pai. A tia,
com medo do poder do irmão, informou-o obedientemente da chamada da sobrinha.
Notificado das dificuldades desta, o tio planeou cuidadosamente a sua captura e
retorno à sua influência.
Samira foi atraída ao Cairo com a promessa de uma reinserção pacífica na
família que abandonara. Enviaram-lhe dinheiro para as passagens. Samira telefonou a
Tahani e desabafou, em lágrimas, que não lhe restava outra hipótese. O amor de Larry
terminara e não lhe via vontade de a ajudar financeiramente. Ainda não dispunha do
seu diploma, portanto não podia empregar-se. Não tinha dinheiro. Telefonara para as
embaixadas sauditas em Washington e Londres. O pessoal mostrara-se indiferente.
Depois de explicar a sua situação, aconselharam-na, secamente, a voltar para junto da
família. Era impossível fugir à realidade: tinha de regressar à Arábia Saudita.
Samira disse a Tahani que esperava, receosamente, que as tias estivessem a
falar verdade, pois haviam-lhe jurado que o irmão abrandara e acabara por concordar
que prosseguisse o seu curso em Londres. Talvez, afinal de contas, o tio tratasse a
única filha do irmão com bondade. Tahani, certa de que a raiva do tio não diminuíra, foi
incapaz de lhe aconselhar cautela, pois via claramente a futilidade da posição de
Samira.
Samira foi recebida no Cairo por duas tias e dois primos. Aquietaram-lhe a
apreensão falando do seu regresso a Londres, uma vez reparado o seu afastamento da
família. Samira, feliz, concluiu que estava tudo bem. Regressou a Riade.
Tahani, ao ver que o esperado telefonema de Samira não chegava, entrou na
mais profunda depressão. Por fim, ligou aos parentes da amiga, que a informaram de
que esta estava com uma pequena febre e não se sentia suficientemente bem para
falar com as amigas. Asseguraram-lhe que Samira lhe telefonaria mal se
recompusesse.
Na segunda semana após o seu regresso, uma das tias de Samira cedeu às
súplicas de Tahani, informando-a de que fora combinado um casamento e que Samira
desejava que Tahani não voltasse a contatá-la, pois o futuro marido não olhava com
bons olhos as amigas de infância da nova esposa.
Samira conseguiu, finalmente, comunicar com Tahani. Contou-lhe que, mal vira
o tio, as suas esperanças tinham ruído de imediato. Ele aguardara o encontro cheio de
raiva, raiva esta que atingira o seu ápice na presença da sobrinha "herege".
Desde a noite do seu regresso que Samira não podia sair do seu quarto,
aguardando o veredicto do tio. Nenhum dos membros da família se atreveu a erguer a
voz para protestar contra aquele tratamento cruel. Segredou a Tahani que lhe haviam
arranjado um enlace adequado; dali a um mês estaria casada. A idéia aterrorizava
Samira, pois a sua relação com Larry fora de profundo amor: já não era virgem.
Não conseguimos descobrir muitos pormenores acerca do casamento, pois
ninguém além da família de Samira, fora convidado. Tínhamos a certeza de que não
era uma união feliz. Soubemos que o noivo estava na casa dos cinqüenta e que Samira
seria a terceira esposa.
Mais tarde, Habbib foi esclarecido por um dos primos de Samira. Contou-lhe
que, na noite de núpcias, a jovem lutara com tal força e determinação com o marido
que este mal sobrevivera à posse do que lhe pertencia. O esposo, contaram-nos, era
baixo, gordo e pouco musculoso. Claro que houvera perda de sangue, mas sim por
parte do marido; a peleja feroz mal lhe dera tempo para verificar a virgindade da
mulher.
Quando Taliani interrogou a tia de Samira, que já se arrependera de ter ajudado
a armar a ratoeira à sobrinha, soube que, no princípio, o marido apreciara a mulher
felina com quem casara. Os seus insultos e a corajosa defensiva pouco tinham feito
para o fazer desistir de a conquistar pela força. Mas, à medida que o tempo foi
passando, o homem fartou-se dos violentos gestos de desdém de Samira e começou a
sentir-se arrependido por ter acolhido aquela mulher sob o seu teto.
Samira confessara à tia que, na sua perturbação, se tornara ousada e gritara na
cara bochechuda do marido que não podia amar alguém como ele. Ela, Samira,
conhecera as carícias de um verdadeiro homem, um homem de força. Troçou da
perícia do marido na cama, comparando-o, cruelmente, ao seu americano alto e belo.
O marido divorciou-se de Samira sem cerimônia, deixando-a à porta do tio.
Irado, disse-lhe que aquela família não tinha honra e levara-o, enganadoramente, a
desposar uma mulher que já não era pura. Falou, com grandes pormenores, da
"vergonha" que fora Samira ir para o leito conjugal com lembranças de outro homem na
mente. Possesso de fúria, o tio procurou orientação nas páginas do Alcorão; depressa
encontrou versículos que cimentaram a sua decisão em dar um fim a quem desgraçara
o nome da família. O ex-marido, ainda irritado pelos insultos dirigidos à sua virilidade,
fortaleceu essa decisão badalando aos quatro ventos a falta de honra que reinava na
casa do tio de Samira, situação que só se alteraria se administrassem uma punição
severa à rapariga.
Habbib informou Tahiani da triste notícia de que Samira fora condenada ao
"quarto da mulher", uma punição particularmente cruel. Tinham-lhe preparado um
quarto especial no sótão da vila do tio. Tratava-se de uma cela desprovida de janelas,
assim preparada para manter Samira presa no seu interior. As janelas foram tapadas
com blocos de cimento. As paredes foram isoladas para não deixarem passar os gritos
que a prisioneira pudesse soltar. Colocaram uma porta especial, onde uma fenda
deixava passar apenas os alimentos. Fizeram um orifício no chão para a saída dos
detritos orgânicos.
A curiosidade dos trabalhadores estrangeiros foi satisfeita com a explicação de
que se tratava de um membro da família que sofrera danos cerebrais num acidente, por
isso receavam que pudesse atentar contra a sua vida ou a de outrem.
As minhas irmãs e eu reunimo-nos para consolar Tahani, que sofria
profundamente com o encarceramento da sua grande amiga. Cada uma de nós
lamentava-se juntamente com Samira, pois esta era uma de nós, uma mulher saudita
sem possibilidade de recorrer contra a injustiça.
Enquanto eu engendrava, interminavelmente, esquemas de fuga, as minhas
irmãs mais velhas viam a situação com maior clareza. Já tinham ouvido histórias de
outras mulheres e sabiam que não havia esperança de arrancar Samira ao isolamento
da sua vida condenada.
Passei muitas noites sem dormir; consumiam-me sentimentos de desespero e a
incapacidade de agir. Também eu ouvira rumores acerca de outras mulheres punidas
com o quarto da mulher, mas nunca tivera uma imagem mental da realidade do uivo
dilacerante e angustiado de alguém conhecido, uma mulher que personificara a vida e
a esperança da nossa terra, uma mulher que vivia agora no meio da escuridão total,
sem ver ou ouvir algo que servisse de suporte à sua vida.
Uma noite acordei com a impressão de ter tido um pesadelo. Estrebuchava,
tentando libertar-me de algo que me sufocava, percebendo então que o pesadelo era
real: aqueles que conheciam Samira e sabiam que nada poderia livrá-la dos tormentos
da sua clausura e isolamento totais, jamais teriam alívio. Veio-me à mente a pergunta
que nunca tinha resposta: que poder na Terra poderia restituir-lhe a liberdade? Ao
erguer os olhos para o céu da noite, no deserto refulgente de estrelas, vi-me obrigada a
concluir que não havia nenhum.

SEGUNDA ESPOSA

Terça-feira, dia 28 de Agosto de 1980, é um dia que jamais esquecerei; Karim e


eu acabáramos de regressar a Riade, vindos de Taif, uma estância fresca na
montanha. Eu preguiçava no sofá, enquanto uma das criadas filipinas me massageava
os pés. Os nossos três filhos encontravam-se num acampamento em Dubai, nos
Emirados, e eu, sem eles, sentia-me entediada.
Ao dar uma vista de olhos pela pilha de jornais acumulada durante os nossos
dois meses de ausência, a minha atenção foi atraída por uma notícia que sobressaía
na primeira página do número mais recente. Um dos meus parentes, o governador de
Asir, o príncipe Khaled al Faiçal, tomara, recentemente, medidas para diminuir os
custos crescentes do casamento na sua província, limitando o montante do dote que o
noivo tinha de pagar para adquirir uma noiva na sua área.
O príncipe estabelecera um limite de 25000 reais sauditas como o máximo que
os pais da noiva podiam pedir ao noivo pela mão da filha. O artigo salientava que a
diretiva fora bem aceite pelos homens solteiros interessados, pois em 1980 o preço
médio das noivas rondava os 100000 reais sauditas. Daí que muitos jovens da Arábia
Saudita não pudessem dar-se ao luxo de comprar uma esposa.
Li o artigo à criada filipina, mas esta pouco ligou, pois tinha mais com que se
preocupar do que com a condição da mulher saudita que era comprada e vendida. O
que preocupava profundamente a maioria dos filipinos resumia-se à mera
sobrevivência. Achavam-nos a nós, mulheres sauditas, criaturas cheias de sorte por
não termos nada que fazer e dispormos de grandes somas de dinheiro para gastar
conforme nos apetecesse.
Como mãe de duas filhas, pouco me importava o preço a que as noivas
estavam na altura, pois, quando chegasse a altura de elas se casarem, o preço nupcial
pouco nos importaria. Karim e eu éramos extremamente ricos, portanto o dinheiro não
entrava nas minhas preocupações do dia-a-dia. No entanto, via uma tendência
retrógrada nos homens da nossa família. No seio dos nossos lares, falavam
eloqüentemente na liberdade da mulher, mas, nas diretivas legais que eles próprios
escreviam, continuavam a exercer grande pressão no status quo e mantinham-nos
firmemente reprimidas no primitivismo.
Somente a supressão total dos dotes teria satisfeito a minha ânsia. Quantos
anos seriam precisos para nós, mulheres, deixarmos de ser compradas e vendidas
como mercadoria?
Andava agitada e começava a sentir-me enervada, pois todas as minhas irmãs,
com exceção de Sara, se encontravam ainda no estrangeiro. A mais querida de todas
aproximava-se do fim da sua quarta gravidez e dormia agora durante a maior parte do
dia.
A minha vida, tão bem planejada quando jovem, não se concretizara como eu
imaginara. Em vez disso, acomodara-me numa rotina muito semelhante à das minhas
irmãs e de outras princesas reais de quem era amiga.
Como eram os criados que davam a primeira refeição do dia às crianças e
organizavam o seu programa, geralmente eu dormia até ao meio-dia. Depois de
mordiscar umas frutas frescas, tomava um prolongado banho de imersão. Terminada a
minha toilette, ia ter com Karim ou, se este tivesse que fazer, com as minhas irmãs,
para um almoço tardio. Depois da refeição ficávamos a conversar e a ler, após o que
Karim e eu dormíamos uma pequena sesta. A seguir, o meu marido ia até ao escritório
ou visitar alguns primos reais, enquanto eu passava algumas horas com as crianças.
Ao fim da tarde ia a festas femininas e, por volta das oito ou nove horas da noite,
já estava de regresso ao nosso palácio. Karim e eu fazíamos questão em jantar com as
crianças, a fim de nos inteirarmos das suas atividades do dia. à noite íamos quase
sempre a uma festa, pois fazíamos parte de um grupo muito selecionado em que os
casais conviviam. Normalmente éramos todos da família real, mas de vez em quando
incluíamos no nosso círculo íntimo estrangeiros de nomeada, ministros de outros
países e famílias de negociantes sauditas abastados. Nós, os da nova geração, ao ver
que as nossas liberdades sociais se faziam tardar, decidíramos tomá-las pela força.
Sabíamos que os grupos religiosos ferviam de raiva perante os nossos convívios
mistos, no entanto abstinham-se de pressionar o nosso venerado rei Khaled.
As mulheres vestiam-se com garridice para essas ocasiões sociais pois
dispúnhamos de raras ocasiões para exibirmos as nossas jóias e vestidos. Karim e eu
ficávamos, muitas vezes, até às duas e três da manhã. A nossa rotina só se alterava,
de uma maneira geral, quando saíamos do país.
A eterna pergunta perseguia-me: não haveria nada mais do que aquilo?
Eu já não podia negar os fato: eu, a temperamental Sultana, tornara-me uma
mulher saudita vulgar, chata e indiferente, com os seus dias ocupados por assuntos de
pouca ou nenhuma importância. Detestava a minha vida ociosa e cheia de luxo, mas
não sabia bem que passos dar para alterar a minha situação entediante.
Terminada a relaxante massagem aos pés, apeteceu-me passear pelos jardins.
Quando os planeáramos, eu tomara como ponto de referência os adoráveis jardins de
Nura.
Nada me proporcionava mais prazer do que deambular pela sombra refrescante
da pequena floresta tão vigorosamente regada e tratada pela equipa de doze
trabalhadores do Sri Lanka. Vivíamos no meio de um dos desertos mais áridos do
mundo, no entanto as nossas casas estavam rodeadas por jardins verdes e luxuriantes.
Graças às intermináveis somas de dinheiro despendidas na fartura de água trazida dos
portos marítimos por caminhões próprios, assegurando assim quatro regas diárias, nós,
os sauditas abastados, conseguíamos escapar às inflexíveis areias vermelhas que
esperavam a menor oportunidade para invadir as nossas cidades e apagar a nossa
memória da face da Terra. O deserto acabaria, a seu tempo, por ganhar, mas de
momento éramos nós os senhores da nossa terra.
Detive-me a descansar um pouco no mirante especialmente construído para
Malia, a nossa filha mais velha, que em breve faria cinco anos. Era uma sonhadora e
passava muitas horas do dia escondida no meio da construção coberta de trepadeiras,
a fazer jogos complicados com amigas imaginárias. Lembrava muito eu própria naquela
idade. Felizmente, Malia não partilhava da personalidade revolucionária da mãe, pois
desfrutava do amor do pai e não precisava de se rebelar.
Toquei nas flores que pendiam sobre o canto preferido de Malia, que deixara
uma variedade de brinquedos amontoados a esmo. Sorri e refleti, admirada, na
diferença que existia entre o caráter dela e o da irmã mais nova, que, com três anos,
era uma criança amante da perfeição, muito à semelhança da tia Sara.
Pensar nos meus filhos fez-me voltar a depressão, poderosa e inabalável.
Lembrei-me de agradecer a Deus pelo meu filho e duas filhas saudáveis, mas
relembrar a impossibilidade de ter mais filhos trouxe-me lágrimas aos olhos.
No ano anterior, durante o exame de rotina no Hospital Especializado e Centro
de Pesquisa Rei Faiçal, tinham-me diagnosticado um cancro na mama. Karim e eu
ficamos em estado de choque, pois pensávamos que as doenças só aconteciam aos
idosos. Eu fora saudável toda a vida e dera à luz os meus dois últimos filhos com
facilidade. Os médicos estavam agora certos de que eu ficara livre de células
cancerígenas, no entanto aconselharam-me a nunca mais engravidar.
Como medida de precaução contra a possibilidade de o desejo de mais crianças
se sobrepor ao bom senso, Karim e eu decidimos que me iria submeter a uma
esterilização.
Sentira tanto medo de não viver o suficiente para ver os meus três filhos crescer
que, na altura, pouco me preocupei por ter uma família tão pequena. Na Arábia
Saudita, uma mulher raramente deixa de produzir filhos; a idade acaba com a aflição
de dar à luz, nada mais.
O som da voz de Karim interrompeu os meus pensamentos intensos e agitados.
Vi-o atravessar o relvado denso com as suas passadas rápidas. Tínhamos tido muitas
discussões no ano anterior, pois as nossas vidas pareciam ter ficado sob grande
tensão por causa da minha doença. Tomei a decisão súbita de voltar a ser a velha
Sultana, a rapariga que costumava fazer rir o marido com grande gosto e abandono. As
suas pernas compridas e musculosas, delineadas pelo tecido esticado da sua thobe,
fizeram-me sorrir. A sua visão ainda alegrava o meu coração.
Quando se aproximou, reparei que vinha preocupado. Pensei em várias
possibilidades, pois conhecia os estados de espírito do meu marido; ele levaria algum
tempo até revelar o que o ralava. Fíz-lhe sinal, com a mão, para que se sentasse ao
meu lado. Queria que ficássemos o mais perto que os nossos costumes rígidos
permitissem, o que significava os nossos membros tocarem-se através da roupa, desde
que ninguém visse.
Karim desiludiu-me ao sentar-se no canto mais afastado do mirante. Não me
retribuiu o sorriso de boas-vindas. Acontecera algum mal às crianças! Pus-me de pé
num salto e perguntei-lhe quais eram as más notícias que trazia. Pareceu surpreendido
por eu ter previsto problemas. Foi então que Karim proferiu palavras que eu jamais
esperara, nem em sonhos, ouvir do meu marido.
- Sultana, há uns meses atrás tomei uma decisão, uma decisão muito difícil.
Não discuti o assunto contigo por causa da tua doença.
Assenti com a cabeça, incerta quanto ao que me esperava, embora as suas
palavras me tivessem aterrorizado.
- Sultana, tu és e serás sempre a única mulher, esposa, no meu coração.
Continuava sem entender a mensagem que o meu marido queria fazer-me
chegar, mas uma coisa era certa: as suas palavras destinavam-se a preparar-me para
notícias que não seriam do meu agrado. Senti um torpor subir-me ao rosto; tinha a
certeza de que não queria que ele revelasse a mudança que em breve eu teria de
enfrentar.
- Sultana, eu sou um homem que pode dar-se ao luxo de ter muitos filhos.
Desejo dez, vinte, tantos quantos Deus quiser dar-me.
Fez uma pausa que pareceu durar uma eternidade. Temerosa, sustive a
respiração.
- Sultana, vou desposar outra mulher. Como segunda esposa, terá por função
dar-me filhos. Não desejo mais nada dela além de filhos. O meu amor será sempre teu.
O martelar do sangue na minha cabeça não me permitia ouvir mais nenhum som.
Sentia-me aprisionada numa realidade sombria em que não acreditava. Nunca,
nunca me passara pela cabeça tal possibilidade.
Karim aguardava a minha reação. A princípio, não fui capaz de me mexer. Por
fim, recomecei a respirar entrecortada e violentamente. O significado da declaração de
Karim penetrou lentamente na minha mente e ganhou vida; quando as forças me
voltaram, só fui capaz de lhe responder com um arroubo de paixão que nos atirou aos
dois para o meio do chão.
A intensidade da minha dor não podia exprimir-se em palavras. Precisava de
ouvir Karim implorar por misericórdia, enquanto lhe cravava as unhas no rosto, lhe
desferia pontapés nas virilhas e tentava, desesperadamente, matar o meu marido.
Karim esforçou-se por se levantar, mas a súbita loucura que me acometera
dera-me uma enorme força física. Para me imobilizar, Karim viu-se obrigado a
prender-me ao chão, sentando-se sobre o meu corpo.
Os meus gritos perfuraram o ar. Os nomes que chamei ao meu marido fizeram
com que os criados, que, entretanto, tinham acorrido, parassem estarrecidos. Cuspi no
rosto de Karim, qual criatura selvagem, vendo que ficava cada vez mais estupefato
diante da fúria que desencadeara. Por fim, os criados, receando o que testemunhavam,
fugiram para diversos pontos e esconderam-se em edifícios e atrás de arbustos.
A certa altura, a minha raiva esgotou-se. Senti cair sobre mim uma calma
mortal. Tomara uma resolução. Disse a Karim que queria o divórcio; jamais me
submeteria à humilhação de o ver arranjar uma segunda esposa. Karim replicou que o
divórcio estaria fora de questão, a não ser que eu preferisse abdicar dos meus filhos,
deixando-os aos cuidados da sua segunda mulher. Nunca permitiria que saíssem de
sua casa.
Imaginei rapidamente a vida que me esperava. Karim, muito longe da dignidade
e civismo de um homem civilizado, a tomar esposa atrás de esposa. A maioria dos
homens e mulheres tinha noção dos limites que podia suportar. E eu não possuía, em
termos filosóficos, estrutura para tolerar semelhante devassidão.
Karim podia dar as desculpas que quisesse, mas eu compreendia as
implicações do fato de arranjar uma segunda esposa. Não era o desejo de filhos que
estava por trás. Era uma questão primitiva. Estávamos casados há oito anos; o que ele
pretendia era um novo incentivo sexual. Saltava à vista que o meu marido estava farto
de comer o mesmo prato todos os dias e procurava uma presa nova e exótica para o
seu paladar.
Pensar que Karim me imaginara suficientemente indiferente para aceitar a sua
explicação bem urdida, enfureceu-me ainda mais. Sim, eu aceitaria o que Deus me
destinasse, mas isso não abrangia o meu marido terreno. Ordenei ao meu marido que
nunca mais me aparecesse pela frente. Naquele dia abster-me-ia de o matar.
Senti, pela primeira vez, uma sensação de desagrado pelo meu marido@ A sua
sabedoria e bondade não passavam de fachada; no íntimo, era ardiloso e egoísta.
Deitara-me ao seu lado durante oito anos, no entanto, de repente, parecia-me um
perfeito desconhecido. Pedi-lhe que desaparecesse da minha vista. Entristecia-me
verificar que, afinal de contas, não passava do invólucro de um homem com muito
pouco que o recomendasse.
Vi-o afastar-se, de cabeça baixa e ombros descaídos. Como era possível amá-lo
menos naquele momento do que há uma hora atrás? Mas, de fato, o fluxo do meu
amor diminuíra. Eu tivera o caráter de Karim em alta estima, considerando-o muito
acima dos outros homens da nossa sociedade. No entanto, e tristemente, não passava,
no fundo, de um indivíduo como todos os outros.
Era certo que vivêramos um ano cheio de dificuldades. Sim, o casamento
demonstrara ser restritivo e irritante. Desfrutáramos sete anos de imensos prazeres e
sofrêramos apenas um de perturbações e evolução. Fora talvez essa a razão pela qual
o meu companheiro se deixara dominar, insidiosamente, pela perspectiva de alegrias
renovadas e de uma mulher mais nova e menos complicada.
E o pior de tudo é que fora capaz de chantagear a mãe dos seus filhos.
Apresentara-me, descaradamente, a possibilidade sinistra de a sua segunda esposa
determinar a felicidade dos meus preciosos filhos. Esse aspecto manter-me-ia atenta à
realidade do meu mundo dominado por homens.
Pensei no meu marido com mágoa, ao mesmo tempo que ia congeminando um
plano na minha cabeça. Ele já não estava bem lembrado do temperamento da mulher
com quem casara. Karim teria muita dificuldade em me ultrapassar para conseguir a
posse dos meus filhos.

FUGA

Ao contrário dos maridos sauditas, Karim mantinha os passaportes e a


documentação da sua família ao alcance da esposa. Eu já era perita em imitar a sua
assinatura.
O seu selo pessoal estava guardado em cima da sua secretária, no gabinete que
tinha em casa.
Quando me recompus e voltei para casa, Karim já não se via por ali. O que
significava que, além do mais, era cobarde. Eu tinha a certeza de que ficaria no palácio
do pai uma noite ou duas.
De repente lembrei-me de Nurah. Espumei de raiva só de pensar no prazer que
a minha sina iria dar à minha sogra. O mais provável era já ter escolhido a segunda
esposa para o filho mais velho. Até ali ainda não refletira sobre a identidade da nova
mulher, mas era possível que se tratasse de alguma jovem prima real, pois quem é da
realeza tende a casar dentro do seu círculo.
Preparei calmamente uma mala de viagem e retirei as centenas de milhares de
dólares que tínhamos guardado num cofre secreto. à semelhança da maioria dos
príncipes, Karim tinha planos para a possibilidade de haver algum surto de fervor
revolucionário no país, ocorrência que se verifica muitas vezes em terras governadas
por monarquias.
Conversáramos sobre o seu plano para comprar as nossas vidas no caso de a
maioria fraca alguma vez se sobrepor à minoria poderosa. Rezei maquiavelicamente
para que a nossa minoria xiita da Província Leste se sobrepusesse aos nossos chefes
sunitas; imaginar a cabeça de Karim espetada num poste abriu um sorriso no meu
semblante taciturno.
Depois de embalar a minha riqueza em jóias numa maleta de viagem, não tive a
menor dificuldade em preparar os meus papéis. Finalmente, fiquei pronta.
Não podia confiar em nenhuma das minhas irmãs, pois podiam contar aos
maridos. E como os homens são unidos, Karim seria imediatamente informado.
Telefonei à criada em quem mais confiava, pois tinha a certeza que seria a
primeira a quem Karim interrogaria, e disse-lhe que ia passar uns dias a Gidá e que, se
o meu marido lhe perguntasse, era favor informá-lo do fato.
Telefonei ao piloto da família meu preferido e avísei-o de que queria partir
imediatamente para Gidá, portanto que se apressasse a ir ao meu encontro no
aeroporto. Telefonei aos meus criados no palácio de Gidá e informei-os de que ficaria
na cidade, em casa de uma amiga, mas que talvez passasse por lá de visita. Se Karim
ligasse para falar comigo, deviam dizer-lhe que me encontrava em casa de uma amiga
e lhe retribuiria a chamada assim que pudesse.
As minhas manobras ardilosas destinavam-se a manter Karím alheio, tanto
tempo quanto possível, aos meus verdadeiros planos de viagem.
Enquanto seguia para o aeroporto, observei, curiosa, o trânsito que enchia as
ruas de Riade, naquela tarde de quinta-feira. A nossa cidade transbordava de
trabalhadores estrangeiros, pois nós, Sauditas, não nos dispúnhamos a executar
trabalhos manuais. Um dia, os desprivilegiados cansar-se-iam do nosso tratamento
humilhante, e as nossas carcaças seriam disputadas pelas matilhas de cães selvagens
que deambulavam pelas nossas cidades.
Quando o piloto americano avistou a sombra negra que era eu a caminhar na
sua direção, sorriu e acenou-me com a mão. Levara-me em muitas viagens e fazia-me
lembrar os pilotos afáveis e abertos que, no tempo em que a minha mãe era viva, nos
haviam transportado, para junto de Sara. A recordação encheu-me de saudades da
minha querida mãe.
Assim que entrei no aparelho, informei o piloto de que os nossos planos tinham
sido alterados, pois uma das crianças adoecera em Dubai e eu acabara de receber um
telefonema de Karim a aconselhar-me a que fosse antes ter com a nossa filha em vez
de seguir para Gidá. Ele, Karim, seguiria para junto de mim caso fosse uma verdadeira
emergência.
Foi com a maior das facilidades que menti ao piloto dizendo-lhe que nós, claro,
imaginávamos que a nossa filha mais nova estava, simplesmente, com saudades de
casa e que a minha presença acalma-la-ia. Ri-me ao dizer que já se encontravam
ausentes há três semanas, demasiado tempo, sem dúvida, para a mais pequena.
O piloto alterou os seus planos de vôo sem fazer mais perguntas. Estava ao
serviço da nossa família há muitos anos e sabia que éramos um casal feliz. Não tinha
razão para duvidar das minhas ordens.
Quando chegamos a Dubai, disse ao piloto que se instalasse no hotel do
costume: o Sheraton, de Dubai. No dia seguinte, ou depois, telefonar-lhe-ia a informá-lo
dos meus planos. Disse-lhe que se considerasse de folga, pois Karim dissera que não
precisaria dele nem do avião por vários dias. Tínhamos três jactos Lear, dos quais um
estava sempre a postos para ser utilizado por Karim.
As crianças ficaram delirantes ao ver a mãe, pela qual não esperavam. O diretor
inglês do acampamento de Verão abanou a cabeça compreensivamente quando lhe
disse que tinham a avó doente. Voltariam comigo para Riade naquela mesma noite.
Apressou-se a ir ao seu escritório buscar os passaportes.
Ao despedir-me do homem com um aperto de mão, observei que não conseguia
localizar os criados que haviam acompanhado as crianças até Dubai. Ninguém
atendera quando lhes ligara para o quarto; imaginava que estariam a tomar a sua
refeição. Certamente ele não se importaria de lhes telefonar na manhã seguinte a
avisar que tinham o piloto Joel à sua espera no Sheraton, de Dubai, pois não?
Deveriam ir imediatamente ao encontro do piloto, entregando-lhe aquele bilhete. Dito
isto, passei ao diretor um sobrescrito dirigido ao piloto americano. Dentro ia um papel
onde lhe pedia desculpa por ter sido tão falsa com ele; acrescentava uma nota dirigida
a Karim, onde descrevia a minha duplicidade com o piloto. Eu sabia que Karim teria um
acesso de raiva com o homem, mas que, depois de considerar as circunstâncias, lhe
passaria. Joel, o piloto, era um dos favoritos de Karim. Não perderia o seu emprego de
certeza.
As crianças e eu subimos para a limusine que nos aguardava e seguimos
imediatamente para o aeroporto. Dali a uma hora sairia um avião para Londres. Eu
recorreria às mentiras que fossem necessárias para conseguir quatro lugares nesse
vôo.
Afinal, não precisei de ofender ainda mais Deus com mentiras. O vôo ia quase
vazio; a maioria das pessoas estava de regresso ao golfo vindo o Verão quente, não de
partida. As crianças iam sonolentas e fizeram poucas perguntas. Disse-lhes que teriam
uma surpresa à sua espera no final da viagem.
Enquanto os meus filhos dormiam, folheei nervosamente uma revista. Não vi
nada do que continha; refletia cuidadosamente no próximo passo a dar. O resto da
minha vida dependeria do que acontecesse nas semanas seguintes. A pouco e pouco,
comecei a dar-me conta de que havia alguém a olhar fixamente para mim. Teria a
minha fuga de Karim sido descoberta?
Olhei para o outro lado da coxia. Uma mulher árabe, com cerca de trinta anos,
não tirava os olhos de mim. Tinha no colo uma menina de três ou quatro anos de idade,
adormecida. Fiquei aliviada ao ver que se tratava de uma mulher, e mãe, pois os
homens sauditas nunca poriam uma pessoa assim ao seu serviço. Como o seu olhar
coruscante me intrigava, levantei-me, dei a volta ao carrinho com que estavam a servir
e sentei-me no lugar vazio ao seu lado. Perguntei-lhe se estava com algum problema
ou se eu a teria ofendido de alguma maneira.
O rosto de granito da mulher ganhou subitamente vida e quase cuspiu as
palavras com que me respondeu:
- Eu estava no aeroporto quando a vi chegar mais à sua família. - Olhou com
desprezo para os meus filhos. - Praticamente passou por cima de mim e da minha filha
ao chegar ao balcão dos bilhetes!
Fitou-me com os olhos negros a brilhar de raiva, salientando a minha
nacionalidade no insulto que, a seguir, me dirigiu:
- Vocês, os Sauditas, pensam que podem comprar o mundo!
O meu dia acidentado deixara-me esvaída de energias; quando rompi a chorar,
surpreendi-me ainda mais a mim mesma do que à mulher. Dei-lhe uma palmadinha
amigável no ombro por entre soluços e pedi-lhe desculpa. Estava a viver uma grande
tragédia na minha vida e apanhar aquele avião fora da maior importância. Voltei para o
meu lugar com as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.
A mulher era de natureza bondosa, pois não foi capaz de se manter longe de
mim depois da minha demonstração emotiva. Colocou cuidadosamente a filha no
banco e ajoelhou-se na coxia, ao meu lado.
Fiquei hirta e afastei-me, mas ela conseguiu aproximar o seu rosto do meu e
disse:
- Por favor, perdoe-me. Também eu tive uma grande tragédia. Se lhe contar o
que aconteceu à minha filha na sua terra, provavelmente às mãos dos seus
conterrâneos, compreenderá a minha amargura.
Depois de ter absorvido mais horrores do que a maioria das pessoas suporta
numa vida inteira, não tinha vontade de mergulhar em mais uma imagem de injustiça.
Incapaz de confiar na minha voz, murmurei: "Lamento". A mulher pareceu compreender
que eu estava à beira de um ataque de histeria e voltou para o seu lugar.
No entanto, não estava disposta a abster-se de me contar o que de tão horrível
lhe acontecera, de modo que, antes de o avião chegar ao destino, tomei conhecimento
da causa do seu desespero. Depois de ouvir a sua história, fiquei ainda mais revoltada
contra a degenerada sociedade patriarcal que põe em perigo todas as mulheres,
incluindo as crianças, que se atrevem a pisar o solo da Arábia Saudita, não importa a
sua nacionalidade.
Widad, assim se chamava a mulher, era do Líbano. A persistência da lamentável
guerra civil naquele pequeno país, outrora tão belo, levara a que a Arábia Saudita e os
Estados do golfo estivessem a transbordar de libaneses em busca de trabalho. O
marido de Widad fora um dos felizardos a arranjar emprego como executivo numa das
muitas empresas florescentes em Riade. Depois de um começo auspicioso, sentira -se
suficientemente seguro para mandar vir a mulher e a filha para viverem na capital do
deserto.
Widad gostara da vida em Riade. A guerra no Líbano anulara qualquer desejo
de regressar aos bombardeamentos intermináveis e à chacina dos inocentes que ali
decorria. Instalou-se alegremente numa terra muito diferente daquela que conhecia.
Alugaram uma vila espaçosa, compraram mobília e retomaram a vida em comum.
Widad ficara muito impressionada com a ausência de crime no nosso país. Os castigos
severos administrados aos culpados faziam com que poucos criminosos se atrevessem
a prevaricar na Arábia Saudita, pois os ladrões ficavam sem as mãos e os violadores
sem a cabeça.
A tranqüilidade sentida levou-a a descurar a segurança da filha pequena em
relação a desconhecidos.
Dois meses antes, Widad dera uma pequena festa para um grupo de amigas.
Tal como acontece com as mulheres sauditas, as estrangeiras também pouco têm com
que se entreter no meu país. Widad serviu refrescos e as suas convidadas jogaram às
cartas.
Duas delas tinham trazido os filhos, de modo que a menina de Widad esteve
muito entretida no jardim.
Depois de a última convidada se retirar, Widad ajudou as suas duas criadas
indianas a arrumar a casa antes da chegada do marido. O telefone tocou e Widad ficou
de conversa mais tempo do que imaginara. Ao olhar pela janela, reparou que já estava
completamente escuro. Chamou uma das criadas para que fosse buscar a menina.
Ninguém encontrou a filha de Widad em parte alguma. Depois de investigarem
freneticamente, a convidada a sair por último lembrou-se de que vira a menina sentada
no passeio, agarrada a uma boneca. O marido de Widad chegou a casa e iniciou-se
uma busca pela vizinhança. Ninguém vira a criança.
Depois de semanas a procurá-la, Widad e o marido só puderam concluir que a
sua única filha fora raptada e, muito provavelmente, assassinada. Perdida toda a
esperança de reencontrar a criança, Widad descobriu que não era capaz de continuar a
viver na sua vila em Riade. Regressou ao seio da sua família, no Líbano dilacerado
pela guerra.
O marido permaneceu na mesma vila, continuando a trabalhar para sustentar a
família. Dez dias depois de Widad chegar a Beirute, bateram violentamente à porta do
seu apartamento. Cheia de medo devido às recentes lutas da milícia no seu quarteirão,
fez de conta que não estava ninguém em casa, até ouvir a voz de um vizinho a
gritar-lhe que tinha notícias do marido em Riade.
O vizinho acabara de receber um telefonema do marido de Widad. A ligação
fora interrompida, mas não antes de ele tomar nota de um recado que pareceu
inverosímil a Widad. Esta deveria apanhar um barco para Chipre e, aí chegada,
dirigir-se imediatamente à Embaixada saudita naquele país. O visto para reentrar na
Arábia Saudita estava à sua espera. Deveria regressar a Riade o mais depressa
possível. A filha encontrava-se viva! Voltara para casa.
Foram necessários três longos dias para o barco a levar de Juniali, no Líbano,
para Larnaca, em Chipre, e para o seu visto ser carimbado, seguindo -se, então, a
viagem de avião para Riade. Quando chegou a esta cidade, inteirou-se da verdade
espantosa sobre o paradeiro da criança.
Assim que o marido de Widad recuperou do choque recebido ao chegar à vila e
encontrar a filha há tanto desaparecida, parada em frente do portão, levou-a a uma
clínica médica para indagar se fora violada, pois esse era o seu maior receio. Depois
de um exame minucioso, a descoberta foi arrepiante. O médico contou ao atônito pai
que a filha não fora molestada sexualmente, mas, em contrapartida, havia sido
submetida, recentemente, a uma operação cirúrgica. A filha de Widad fora utilizada
como doadora de um rim, disse-lhe o médico. A cicatriz da criança não fechara bem e a
ferida infectara com a sujidade.
As especulações no seio do corpo médico que examinou a criança foram as
mais variadas, pois levantaram-se muitas dúvidas em relação ao tipo sanguíneo do
doador e ao processo cirúrgico. Era improvável que a criança tivesse sido operada na
Arábia Saudita, pois na altura não era cirurgia que se fizesse no país.
Quando a polícia investigou, alvitraram que a criança fora levada para a índia
por um saudita rico com um filho a precisar de um transplante renal. Era possível que
essa pessoa tivesse raptado mais de uma criança, para depois escolher a mais
adequada. Ninguém podia determinar os acontecimentos que haviam antecipado a
cirurgia, pois a menina só se recordava de um carro preto muito comprido e de um
lenço a cheirar muito mal que um homem grandalhão tinha na mão. Acordara com
dores fortes. Isolada num quarto com uma enfermeira que não sabia falar árabe, não
vira outras pessoas. No dia da sua libertação, vendaram-na, andou muito tempo de
carro até, a certa altura, a deixarem à porta de casa.
Quem raptara a menina era indiscutivelmente rico, pois quando o pai saltara do
carro e correra a abraçar a filha, encontraras agarrada a um saco contendo vinte mil
dólares em dinheiro, juntamente com muitas peças de joalharia cara.
Como não podia deixar de ser, Widad desprezava a minha terra e as riquezas
petrolíferas que tinham levado as pessoas a achar que o dinheiro ultrapassava todos
os obstáculos da vida. Retiravam partes sagradas de crianças inocentes e deixavam
dinheiro para neutralizar a ira dos ofendidos! Widad, ao ver o meu ar de completa
incredulidade perante a sua história, apressou-se a ir buscar a filha adormecida e
exibiu a longa cicatriz avermelhada que mostrava, claramente, a baixeza moral a que
alguns homens são capazes de descer.
Só fui capaz de sacudir a cabeça de horror.
Widad fitou a filha adormecida com imenso amor; o seu reaparecimento fora um
perfeito milagre. As palavras com que Widad se despediu de mim apagaram o pouco
orgulho que eu ainda tinha pela minha nacionalidade:
- A senhora, na sua qualidade de mulher saudita, goza da minha simpatia. O
breve período que vivi no seu país permitiu-me ver como vivem. É claro que o dinheiro
facilitou a vossa vida, mas um povo como o saudita não durará. - Fez uma pequena
pausa de reflexão antes de continuar: - Apesar de ser verdade que o desespero
financeiro leva estrangeiros até à Arábia Saudita, continuam a ser odiados por quantos
vos conhecem.
A última vez que vi Widad no aeroporto de Londres, esta ia firmemente
agarrada à sua preciosa filha. Depois de ir às consultas médicas marcadas naquela
capital para a menina, Widad estava mais disposta a arriscar-se aos bombardeamentos
dos inimigos dos Libaneses do que a sujeitar-se à hipocrisia e à perversidade
inconcebível dos habitantes da minha terra, os Sauditas. Eu e as crianças passamos a
noite em Londres. Atravessamos o Canal da Mancha e chegamos a França no dia
seguinte. Daí, fomos de comboio até Zurique. Deixei os meus filhos num hotel durante
algumas horas, enquanto fui ao banco levantar todo o dinheiro da conta do meu filho.
Com mais de seis milhões de dólares na mão, senti-me segura.
Aluguei carro e motorista para nos levar a Genebra; daí voltamos para Londres
de avião e, depois, seguimos para as ilhas do canal. Aí chegada, depositei o meu
dinheiro numa conta em meu nome e guardei o que tirara do cofre de Riade para as
nossas despesas. Em seguida, seguimos para Roma, onde contratei outro motorista
para nos levar de volta a Paris.
Nessa cidade, contratei uma governanta, um motorista e um segurança a tempo
inteiro. Em seguida, aluguei uma vila nos arredores de Paris sob um nome falso.
Depois de uma pista tão complicada, estava certa de que Karim jamais nos encontraria.
Um mês mais tarde, deixei as crianças ao cuidado da governanta e fui até Francoforte
de avião. Aí, entrei num banco e disse que era de Dubai e desejava fazer um depósito
avultado. Escoltaram-me até ao gabinete do gerente do banco e recebi tratamento
deferencial. Retirei uma grande quantia de dinheiro de dentro da minha mala e
coloquei-a em cima da secretária do homem.
Enquanto este olhava, embasbacado, para o dinheiro, perguntei se podia fazer
um telefonema para o meu marido, que se encontrava em negócios na Arábia Saudita.
Como era evidente, eu estava disposta a pagar a chamada, de modo que meti uma
nota de quinhentos dólares na mão do sujeito. O gerente levantou-se apressadamente
e quase bateu com os calcanhares ao dizer-me que levasse o tempo que entendesse.
Declarou que estaria três gabinetes mais adiante no corredor, se precisasse dele, e
fechou a porta.
Telefonei para Sara. Sabia que naquela altura já devia ter tido o bebê e era
muito provável que estivesse em casa. Suspirei de alívio quando uma das criadas
atendeu e disse que sim, que a senhora estava em casa.
Sara gritou de alívio ao ouvir a minha voz. Perguntei-lhe rapidamente se tinha
os telefones sob escuta, ao que me respondeu que não estava bem certa.
Acrescentou, falando muito depressa, que Karim estava fora de si de preocupação.
Descobrira o meu rasto entre Dubai e Londres, mas perdera todos os indícios a partir
desse ponto. Contara o sucedido à família e estava verdadeiramente arrependido.
Nada mais desejava além do meu regresso e do das crianças a casa. Karim dizia que
precisávamos de falar.
Pedi a Sara que transmitisse ao meu marido um recado breve. Queria que
soubesse que o achava desprezível. Nunca mais nos veria. Além disso, eu tomara
medidas para mudar a minha cidadania e a dos meus filhos. Assim que me
encontrasse sob a proteção de outro país, avisaria as minhas irmãs do meu paradeiro,
mas Karim nunca deveria conhecê-lo. E, para ralar ainda mais Karim, pedi à minha
irmã que lhe dissesse que Abdullah, o seu filho, não queria voltar a ver o pai.
Dito isto, deitei a questão de Karim para trás das costas. Soube, encantada, que
Sara tivera outro rapaz e que o resto da família se encontrava bem de saúde.
Contou-me que o pai e Ali estavam furiosos e insistiam para que eu regressasse a
Riade e me submetesse a todos os desejos de Karim, como era meu dever. Eu não
esperara nada de diferente daquelas duas pessoas do meu próprio sangue.
Sara esforçou-se por me acalmar e perguntou-me se não seria melhor aceitar
uma outra esposa em vez de viver como uma refugiada. Perguntei-lhe se alguma vez
lhe passara pela cabeça semelhante combinação com Asad. O seu silêncio foi a minha
resposta.
Terminada a chamada, enfiei novamente o dinheiro dentro da mala e
escapuli-me do banco sem voltar a ver o prestimoso gerente. Senti uma ponta de
remorso pela minha partida, no entanto sabia que não podia arriscar-me a fazer a
chamada de uma cabina, pois a telefonista poderia perfeitamente denunciar o país de
origem da chamada através de escutas ligadas a Karim.
Profundamente embrenhada nas palavras de Sara, senti um sorriso abrir-se no
meu rosto. O meu plano estava a resultar. Mas achava melhor Karim sofrer uma agonia
adicional. Precisaria de algum tempo para reconhecer que eu nunca aceitaria a
existência de múltiplas esposas, fosse qual fosse o preço a pagar.
Na realidade, as crianças desconheciam por completo o drama por que as
nossas vidas estavam a passar. Eu contara-lhes uma história convincente, segundo a
qual os negócios do pai o tinham obrigado a ficar no Oriente durante muitos meses. Em
vez de permanecermos em Riade e aborrecermo-nos, ele achara que gostaríamos de
uma temporada em França, na província. Abdullah mostrou-se admirado por não
receber telefonemas do pai, mas eu mantive-o ocupado com os seus estudos e
numerosas diversões sociais. As mentes jovens adaptam-se muito melhor do que se
imagina. As nossas duas filhas ainda eram bebês e incapazes de considerar
circunstâncias lúgubres. Tinham passado a sua vida a viajar; o único elo em falta era a
presença do pai e eu fazia os possíveis por compensá-las.
Consolava-me a mim própria refletindo nas alternativas. A vida para os meus
filhos em Riade, com os pais em discussão permanente, era inaceitável, na minha
maneira de ver. A vida sem a sua mãe seria antinatural, pois se Karim trouxesse outra
mulher para as nossas vidas, o assassínio do meu marido era uma possibilidade muito
real. De que serviria eu aos meus filhos sem cabeça, já que de certeza ma separariam
do corpo se lhes matasse o pai! Lembrei-me, por momentos, da lâmina afiada da
espada do carrasco e estremeci com a perspectiva de, um dia, vir a sentir a sua frieza.
Sabia que a minha sorte era pertencer à realeza, pois eu, tal como Ali há muitos anos
atrás, conseguiria ultrapassar situações legais e éticas complicadas sem a interferência
dos religiosos. Não tivesse eu sangue real e o apedrejamento poria fim à minha vida
por tais ações. Mas nós, os da realeza, mantemos os nossos escândalos guardados
dentro das nossas paredes; ninguém fora da minha família tomaria conhecimento do
meu crime. Somente Karim poderia exigir a minha morte, e fossem quais fossem as
minhas ações, eu tinha a certeza de que o meu marido não teria estômago para pedir o
meu sangue.
Telefonava a Sara uma vez por mês. Durante esta prolongada ausência da
minha família e do meu país, os meus dias e as minhas noites eram agitados. Mas eu
sabia que iria vencer: a minha determinação e paciência acabariam por alterar a
intenção de Karim atravancar a nossa vida com outras esposas.
Cinco meses depois da minha partida, concordei em falar com Karim ao
telefone.
Fui até Londres para fazer a chamada. A nossa conversa convenceu-me de que
ele estava desesperado para nos voltar a ver, a mim e aos filhos. Entraríamos agora na
segunda fase da minha ratoeira cuidadosamente urdida.
Combinamos encontrar-nos em Veneza no fim-de-semana seguinte. O meu
marido ficou de boca aberta ao ver-me acompanhada por quatro enormes seguranças
alemães, Disse-lhe que já não confiava na sua palavra; ele poderia ter contratado
bandidos para me raptarem e levar para Riade, a fim de aí me submeter à injustiça com
que o nosso sistema legal trata as esposas desobedientes! Começou a ficar vermelho!
Praguejou, corando de vergonha. Calculei que fosse a raiva de se ver impossibilitado
de controlar a mulher.
O nosso impasse terminou com um compromisso. Eu só voltaria para Riade se
Karim assinasse um documento a declarar que, enquanto estivéssemos casados, ele
não arranjaria outra esposa. Se quebrasse a promessa, eu obteria o divórcio, a
custódia dos meus filhos e metade da sua fortuna. Além disso, ficaria com o dinheiro
retirado da conta do nosso filho na Suíça. Karim, reporia os fundos de Abdullah.
Depositaria, igualmente, um milhão de dólares no nome de cada uma das filhas, numa
conta de um banco suíço. Eu ficaria com os nossos passaportes e com documentos
atualizados que me permitiriam viajar sem restrições.
Disse a Karim. que, depois de ele assinar os papéis necessários, eu
permaneceria na Europa com os filhos durante mais um mês. Tomara consciência da
minha determinação, portanto talvez o desejo de me ter de volta se dissipasse após
reflexão. Não estava interessada em tocar a mesma canção duas vezes. As minhas
palavras, proferidas com uma dureza que ele raras vezes me ouvira, fizeram-no
estremecer.
Acompanhei Karim até ao aeroporto. O meu marido não era um homem feliz. E
eu afastei-me menos satisfeita do que imaginara, depois de a maior jogada da minha
vida resultar numa vitória tão retumbante. Descobrira que obrigar um homem a fazer o
que está certo proporciona muito pouca alegria.
Um mês depois telefonei a Karim. para me inteirar da sua decisão. Confessou
que eu era a sua força, a sua vida. Queria a sua família de volta, que tudo ficasse como
dantes.
Retorqui asperamente que ele não podia esperar que, depois de ter ferido o
nosso amor com o punhal frio da indiferença, a nossa relação prosseguisse sem
mácula. Fizéramos parte do número de casais mais afortunados, pois dispuséramos de
amor, família e riqueza sem limites. Ele é que deitara tudo a perder, não eu.
Regressei a Riade. O meu marido aguardava-me, de lábios trêmulos e com um
sorriso hesitante. Abdullah e as minhas filhas correram alegremente para o pai mal o
viram. A pouco e pouco fui ficando mais feliz por ver a reação dos meus filhos.
Descobri que era uma desconhecida indiferente e infeliz em minha casa.
Passara por demasiadas vicissitudes para poder voltar a ser a Sultana de há um ano
atrás. Precisava de um objetivo real, de um desafio. Resolvi retomar os estudos. No
meu país havia agora novas faculdades para mulheres. Descobriria a normalidade da
vida e deixaria para trás a rotina néscia de uma princesa real.
No que dizia respeito a Karim, eu só esperava que o tempo apagasse as más
recordações que o seu comportamento deixara. Eu passara por uma transição, na luta
para salvar o meu casamento da presença estranha de outra mulher. Karim fora a
figura suprema na minha vida até debilitar a nossa união ao propor-me arranjar uma
nova esposa. Uma parte substancial do nosso amor ficara destruído. Naquele momento
pouco mais era do que o pai dos meus filhos.
Karim e eu deitamos mão à reconstrução do nosso ninho e a providenciar aos
nossos filhos a tranqüilidade que tanto valorizávamos para as nossas crianças.
Afirmou-me que lhe custava muito a perda do nosso amor. Tentou, esforçadamente,
redimir-se aos meus olhos. Disse que se eu continuasse a julgar o seu comportamento
passado, nós e as crianças talvez perdêssemos a alegria do nosso futuro. Eu mal
respondi, no entanto sabia que era verdade.
O trauma da nossa guerra pessoal fora ultrapassado, mas o gosto da paz
estava longe de ser doce. Eu refletia muitas vezes nas cicatrizes emocionais que
contraíra num espaço de tempo tão curto. Tristemente, todas as minhas feridas tinham
sido abertas por homens. Daí que não me sentisse capaz de nutrir grande estima por
um elemento que fosse do sexo oposto.

A GRANDE ESPERANÇA BRANCA

De repente, estava-se em Agosto de 1990.


Decorria uma festa esplendorosa na nossa vila, em Gidá, quando nos chegou a
notícia aterradora de que dois dos nossos vizinhos travavam uma luta de morte num
país minúsculo que ficava mesmo no outro lado da fronteira: o Kuwait. Karim e eu
recebíamos vinte convidados do nosso círculo exclusivo quando a notícia foi gritada do
alto da escadaria pelo nosso filho, Abdullah, que estivera a ouvir a BBC nas ondas
curtas do seu rádio. Depois de um silêncio prolongado e gélido, gerou-se um
burburinho de incredulidade na sala.
Poucos sauditas, mesmo os membros da realeza envolvidos em negociações
entre o Kuwait e o Iraque, tinham acreditado verdadeiramente que Saddam Flussein
invadisse o Kuwait. Karim estivera presente na conferência realizada em Gidá que,
naquele mesmo dia, 1 de Agosto de 1990, terminara num empate forçado. O príncipe
coroado do Kuwait, o xeque Saud AI-Abdullah AI-Salem AI-Sabah, acabara de chegar
ao Kuwait, trazendo consigo a esperança de que a guerra seria evitada.
Quando o nosso filho nos gritou que as tropas tinham acabado de invadir a
Cidade do Kuwait, a gravidade do ataque não deixou dúvidas. Perguntei a mim mesma
se a enorme família dos AI-Sabah escaparia com vida. Como mãe, os meus
pensamentos foram para as crianças inocentes.
Reparei no rosto de Karim por entre a multidão: sob o semblante calmo, estava
furioso. Os Iraquianos não tinham cumprido a palavra dada; os líderes do nosso
Governo tinham, portanto, minimizado o perigo. Os seus olhos castanhos tinham um
brilho que me causou um arrepio pela espinha. Eu sabia que ele, assim como outros
AI-Saud presentes, não tardaria a retirar-se para uma conferência de família
apressadamente convocada.
Ouvira, muitas vezes, Karim falar do barbarismo do regime Baath no Iraque.
Afirmara, freqüentemente, que os Iraquianos eram agressivos por índole e propensos à
violência na sua vida privada. Achava que talvez fosse essa a explicação para a
aquiescência nacional perante a brutal polícia do Estado.
Eu própria pouco sabia da verdadeira política da área, pois os noticiários
sauditas são profundamente censurados, e os nossos homens pouco revelam da sua
atividade política às esposas. Mas a opinião de Karim era justificada por uma história
que eu ouvira a um iraquiano. Fazia já vários anos, numa altura em que Karim, Asad,
Sara e eu jantávamos fora, em Londres, que ouvíramos um nosso conhecido iraquiano
vangloriar-se de ter morto o pai devido a um problema de dinheiro.
O filho mandara ao pai o que ganhara com um investimento em Paris. O pai,
viúvo, apaixonara-se por uma aldeã e gastara o dinheiro do filho em prendas caras
para a amante. Quando o filho voltara ao Iraque de visita, descobrira que o seu dinheiro
fora esbanjado. Não ficou com dúvidas quanto ao que fazer, ou seja, matar o pai a tiro.
Karim protestara violentamente contra o inacreditável ato. O iraquiano ficara
surpreendido com a indignação e incredulidade do meu marido e respondera: "Mas ele
gastou o meu dinheiro! Era meu!" No parecer do homem, tivera um motivo plausível
para matar o pai.
O seu ato foi de tal maneira impensável e repulsivo a Karim que este,
abandonando os seus modos habitualmente afáveis, deu um pulo em direção ao
indivíduo e ordenou-lhe que saísse da nossa mesa. O iraquiano apressou-se a
obedecer. Karim murmurou que aquele tipo de atitude era vulgar no Iraque, no entanto
tinha grande dificuldade em compreender aquela aceitação social em relação ao
assassínio do próprio pai.
Karim, à semelhança de todos os homens sauditas, venerava o seu pai e
mostrava-lhe grande respeito. Nem lhe passaria pela cabeça erguer-lhe a voz ou,
mesmo, voltar-lhe as costas. Eu vira, em muitas ocasiões, Karim sair da sala onde
estava o pai.
Eu, tal como muitas árabes, lamento admitir, fumo muito, no entanto, nunca me
permitiram que o fizesse em frente do pai de Karim.
Karim, como membro de uma monarquia antiga, interessava-se
verdadeiramente pelos movimentos do Médio Oriente que tinham derrubado reis do
seu trono. A história árabe mostra que houve reis depostos sem cerimônia e que uma
boa série deles terminou com o corpo crivado de balas. Karim, na sua qualidade de
membro da realeza, receava a possibilidade de a agitação afetar a nossa vida.
Além disso, tal como a maioria dos árabes, Karim sentia grande vergonha
diante do espetáculo interminável das lutas fratricidas entre muçulmanos. Nós, a
grande maioria dos sauditas, depuséramos as armas quando o nosso país abandonara
a sua condição de terra de tribos para se tornar um reino unido. O derramamento de
sangue não é o processo que os nossos homens escolhem para combater o inimigo;
consideram a compra da vitória um método mais civilizado.
Contudo, naquele momento, as nossas vidas estavam alteradas com a
insanidade do drama da guerra autêntica. Enquanto os nossos homens se apressavam
a recorrer aos recursos determinantes da diplomacia, nós, mulheres, pedíamos a
Abdullah que trouxesse o rádio para a sala de estar. As notícias eram esparsas, mas
pareciam ir de mal a pior para os infelizes Kuwaitianos. Antes de nos retirarmos,
soubemos que aquele país se encontrava ocupado e que o nosso estava a ser invadido
por milhares de refugiados de guerra. Nós, Sauditas, sentíamo-nos fora de perigo e
não pensávamos na nossa segurança pessoal ou no perigo que a situação
representava para o nosso país.
A semana seguinte abalaria a confiança nos nossos pontos de vista. à medida
que os soldados de Saddam se acercavam das nossas fronteiras, começaram a correr
boatos de que o déspota tencionava matar dois coelhos de uma só cajadada!
Torrentes de sauditas juntaram-se aos kuwaitianos no êxodo da zona leste do
nosso país. Recebemos telefonemas desvairados de membros da família, nervosos,
relatando que Riade estava enxameada de milhares de pessoas em pânico. Não tardou
que muitos sauditas achassem que Riade deixara de ser segura. Os aviões e as
estradas estavam atravancados. No nosso tranqüilo país reinava agora o caos
completo.
Sara e eu ficamos entusiasmadas ao sabermos que as mulheres kuwaitianas,
que podiam conduzir e andar de rosto descoberto, guiavam nas nossas estradas, rumo
às ruas da nossa capital. Nenhum ocidental poderá sequer imaginar a amálgama das
nossas emoções. Uma tempestade desabava sobre nós, e ainda que a nossa
satisfação também tivesse uma componente de espanto, não deixávamos, ao mesmo
tempo, de morrer de inveja por as nossas irmãs árabes conduzirem automóveis e
exporem o rosto na nossa terra! Estariam os aspectos essenciais da nossa vida, o véu
e os costumes sauditas, a ser agora considerados apenas um empecilho que podia ser
facilmente posto de lado no calor da refrega? A vida fora fácil para aquelas mulheres
kuwaitianas, em total contraste com o pesado fardo machista que nós fôramos
obrigadas a suportar. Ardíamos de inveja. Apesar de termos pena daquelas mulheres
que tinham perdido o seu país, os lares e pessoas amadas, impávamos nitidamente de
ressentimento perante quem expusera o ridículo da nossa situação puritana. Como
ansiávamos pelos direitos que elas assumiam com tanta facilidade!
Os boatos eram constantes naqueles dias obscuros de Agosto. Quando Karim
me contou que o último era verdadeiro, ou seja, o nosso rei concordara em receber
tropas estrangeiras no nosso país, apercebi-me de que as nossas vidas nunca mais
voltariam a ser como dantes. Com a chegada das tropas americanas, os sonhos
feministas mais ambiciosos ressurgiram com toda a força. Nenhum saudita imaginara
jamais ver mulheres em uniforme militar a defender o último bastião do domínio
machista que é a Arábia Saudita. Era impensável! Os nossos religiosos estavam
consternados e vociferavam contra a vinda do mal para a nossa terra.
Nunca será possível quantificar o abalo que a nossa vida sofreu. Nenhum
terremoto nos teria desestabilizado mais.
Embora eu estivesse satisfeita com o desenrolar dos acontecimentos e sentisse
que as mudanças eram benéficas, muitas sauditas estrebuchavam de desprezo. Havia
aquelas, que eu considerava tolas, que receavam a possibilidade de as estrangeiras
lhes roubarem os maridos! Imagino que se tratasse de um perigo real, pois a maioria
das mulheres do meu país encara as deslocações dos maridos a outros países com
ansiedade, poucas acreditando que ficarão imunes às tentações louras do Ocidente.
Muitas das minhas amigas reconfortavam-se com a idéia de que somente uma
prostituta ou uma mulher com muito pouca auto-estima é que consideraria a
degradação de partilhar a cama com desconhecidos. As sauditas segredavam entre si
que as americanas só iam para a tropa para servirem os homens e mantê -los
sexualmente satisfeitos.
As nossas emoções estavam em conflito diante daquelas supermulheres que se
deslocavam de um lado para o outro, completamente à vontade num país que não era
o seu.
Pouco sabíamos das mulheres-soldados americanas, pois os nossos censores
cortavam todas as notícias que chegassem à Arábia Saudita sobre mulheres que
fossem senhoras do seu próprio destino. E durante as nossas pouco freqüentes
viagens ao estrangeiro, os nossos caminhos levavam-nos até aos centros comerciais,
não às bases militares. Quando Asad trouxe a Sara exemplares de revistas e jornais
americanos e europeus, ficamos atônitas ao ver que as mulheres-soldados eram
bastante atraentes. Muitas eram mães. A liberdade de que gozavam escapava à nossa
capacidade de entendimento. Os nossos modestos objetivos englobavam apenas a
exposição do rosto, guiar e trabalhar. A nossa terra acolhia agora elementos do nosso
sexo perfeitamente preparados para enfrentar homens em batalha.
Nós, mulheres árabes, vivíamos num turbilhão emocional. Por um lado,
odiávamos todas as mulheres estrangeiras, tanto kuwaitianas como americanas, que
estavam na nossa terra, por outro, as primeiras alertavam-nos com a demonstração de
desafio aos séculos de tradição de supremacia masculina. Ainda que conservadoras,
as primeiras não tinham sucumbido completamente ao hábito social insensato do
domínio machista.
No entanto, os momentos de ciúme tanto apareciam como desapareciam ao
apercebermo-nos de que, com a sua atitude, tinham, de certa forma, elevado o estatuto
de todas as mulheres muçulmanas, enquanto nós, sauditas, pouco mais fizéramos para
melhorar a nossa vida do que queixarmo-nos. Onde erráramos? Como tinham elas
conseguido desembaraçar-se do véu - e obter, ao mesmo tempo, liberdade para guiar?
Sentíamos a agonia da inveja, no entanto também nos extasiávamos. Confusas com
os acontecimentos que nos cercavam, nós, mulheres, reuníamo-nos diariamente para
analisar profundamente a mudança de atitudes e o súbito despertar universal para a
condição da mulher saudita. No passado, poucas mulheres se tinham atrevido a
exprimir o seu desejo por uma reforma na Arábia Saudita islâmica, pois a esperança
de êxito era muito diminuta e as penalidades imensamente severas para quem punha o
status quo em causa. Afinal de contas, o nosso país é o berço do islamismo: nós,
Sauditas, somos os "guardiões da fé". Para disfarçarmos a vergonha que sentíamos
pela repressão a que nos submetemos, falamos orgulhosamente às irmãs kuwaitianas
da nossa herança única: nós, mulheres sauditas, erguemos bem alto os símbolos da fé
muçulmana em todo o mundo. Até que, de repente, as mulheres sauditas da classe
média quebraram as algemas. Enfrentaram os fundamentalistas de cabeça erguida e
pediram ao mundo que, quando restituíssem a liberdade aos Kuwaitianos sitiados,
também as libertassem!
Sara fez-me tremer ao entrar no palácio a gritar. Só me ocorreu que poderiam
ser as armas químicas a invadir o ar que os meus filhos respiravam! Teria algum avião
inimigo, repleto de explosivos químicos, escapado ao radar de detecção das forças que
guardavam a nossa terra? Fiquei imóvel, sustendo a respiração, indecisa quanto ao
que fazer ou para onde ir. O mais certo era cair no chão a qualquer momento, ficando a
estrebuchar até morrer. Amaldiçoei-me a mim mesma! Devia ter obedecido ao desejo
de Karim e levado os meus filhos para Londres, para longe da possibilidade de uma
morte lenta e dolorosa para aqueles que carregara no meu ventre.
As palavras de Sara acabaram por penetrar no meu medo e as novidades que
me deu foram uma grande alegria para mim. Asad acabara de lhe telefonar a dizer que
havia mulheres sauditas, sim, sauditas, a guiar automóveis pelas ruas de Riade!
Soltei exclamações de alegria. Abracei-me a Sara e, juntas, pulamos e
dançamos.
A minha filha mais nova começou a choramingar de receio ao entrar no quarto e
ver a mãe e a tia a rolarem pelo chão aos gritos. tranqüilize-a, abraçando-a e
assegurando-lhe que todo aquele disparate se devia ao fato de termos recebido uma
grande alegria.
As minhas orações tinham sido atendidas. A presença americana iria alterar
maravilhosamente a nossa vida!
Karim entrou intempestivamente pela porta, com ar de poucos amigos. Queria
saber qual o motivo daquela agitação, pois os nossos gritos chegavam ao jardim.
Então ele não sabia? As mulheres tinham derrubado a primeira das barreiras
intransponíveis - reclamavam o seu direito de guiar! A resposta de Karim moderou a
nossa reação. Eu conhecia a sua opinião sobre a matéria: a nossa religião não faz
qualquer referência a tal assunto, diria. Ele, tal como tantos outros homens sauditas,
sempre achara absurdo as mulheres não poderem guiar.
Mas foi então que o meu marido disse o impensável, em tom cansado.
- Trata-se exatamente do tipo de ação que não queríamos que vocês, as
mulheres, empreendessem! Temos combatido os fanáticos pelas concessões mais
insignificantes.
O seu maior receio é que as nossas decisões levem as mulheres a querer mais
privilégios.
- O que é mais importante para ti, Sultana: ter soldados a proteger a nossa vida
da ameaça iraquiana ou escolher esta altura para guiar?
Estava furiosa com Karim. Ouvira-o protestar, muitas vezes, contra os costumes
idiotas que aprisionam as mulheres sauditas em suas casas. Mas naquele momento o
seu medo dos religiosos fazia prevalecer a sua cobardia. Como eu gostaria de ter
casado com um guerreiro, um homem que tivesse ideais elevados como objetivo na
vida...
Mal-humorada, repliquei que nós, mulheres, não podíamos ser "pedintes com
condições". Que luxo seria escolhermos o lugar e a altura certas! Tínhamos de
aproveitar as oportunidades mais ínfimas que nos aparecessem. Aquele momento
também era o nosso e Karim devia ficar do nosso lado. Certamente, o trono não ruiria
por terra pelo simples fato de mulheres guiarem pelas nossas ruas!
Era uma altura em que Karim se sentia furioso com todas as mulheres,
dizendo-me asperamente que aquele incidente faria a causa feminina retroceder
décadas. Declarou-nos que a nossa alegria transformar-se-ia em tristeza quando
presenciássemos o castigo dado às prevaricadoras. Esse dia chegaria, afirmou-nos,
mas não naquele momento. As suas palavras ficaram a pairar no ar depois de se
retirar. Falara um homem!
Karim tirara-nos o nosso pequeno momento de prazer. Soprei como um gato
assim que voltou costas e Sara mal conseguiu conter um sorriso. Não deu a menor
importância às palavras de Karim. Lembrou-me que os homens da nossa família
falavam dos direitos da mulher com simpatia, mas, na realidade, pouco diferiam dos
extremistas. Todos os homens gostavam de exercer autoridade absoluta sobre as
mulheres, Caso contrário, teríamos já visto um aligeirar do nosso pesado fardo. Se os
nossos maridos e pai, que pertenciam à família real que governava aquela terra, não
podiam ajudar-nos, quem
podia?
Os Americanos! - exclamei com um sorriso. - Os Americanos!
As palavras de Karim revelaram-se verdadeiras. As quarenta e sete corajosas
mulheres, que se manifestaram pelo fim da interdição de guiar para o sexo feminino,
tornaram-se o bode expiatório de todas as queixas possíveis que os mutawas tinham.
Eram mulheres da classe média, mulheres que eram professoras de outras ou
estudantes - as nossas intelectuais. A sua bravura deitou por terra a sua vida -
confiscaram-lhes os passaportes, perderam o emprego e as famílias foram molestadas.
Sara e eu andávamos a fazer compras numa alameda local quando ouvimos jovens
estudantes da religião incitar homens sauditas contra aquelas mulheres, afirmando que
eram mulheres de vício e viviam da prostituição. Tinham sido denunciadas na mesquita
por homens que sabiam o que diziam! A minha irmã e eu ficamos mais um bocado em
frente da montra da loja, ouvindo os jovens declarar, alto e bom som, que as tentações
trazidas do Ocidente deitariam por terra a honra de todos os sauditas!
Tinha vontade de ir ter com aquelas mulheres, de partilhar a sua glória. Ao
apresentar a idéia a Karim, a sua reação violenta cerceou a possibilidade. Ameaçou
fechar-me em casa se tentasse cometer tal ultraje. Nesse momento odiei o meu
marido, pois sabia que seria capaz de cumprir o prometido. Enchera-se repentinamente
de medo tanto pelo nosso país como pelo caos que nós, mulheres, poderíamos
desencadear no seio da família real.
Alguns dias depois, voltei a reunir a minha coragem e tentei saber do paradeiro
das corajosas mulheres. Regressei à zona de comércio. Ao avistar grupos de homens
reunidos em círculo, disse ao meu motorista filipino que fosse ter com eles a dizer
que era muçulmano (havia alguns filipinos muçulmanos na Arábia Saudita) e pedisse
um papel com os números de telefone das "mulheres caídas". Deveria afirmar que
desejava telefonar aos seus pais ou maridos a protestar pelo comportamento das filhas
ou esposas.
Voltou com o papel. Proibi-o de contar o sucedido a Karim. Felizmente, ao
contrário dos criados árabes, os filipinos tendem a evitar os nossos conflitos familiares
e não denunciam as nossas pequenas liberdades aos maridos.
O papel tinha uma lista de trinta nomes e os respectivos números de telefone. A
minha mão tremeu ao ligar o primeiro número. Em semanas de tentativas constantes,
somente três números atenderam. Dissesse eu o que dissesse, afirmaram que era
engano.
A perseguição às famílias fora tão insistente que estas preferiam negar ou não atender
as chamadas.
Ali, antes de sair do país, veio visitar-nos. Ele e a família de quatro mulheres e
nove filhos seguiam para Paris, onde permaneceriam algumas semanas. O meu irmão
afirmava que queria combater os Iraquianos, mas estava cheio de responsabilidades
comerciais, as quais, vendo bem, eram bem mais importantes para o nosso país do
que mais um homem de uniforme. Ele, Ali, devia cumprir o seu dever e sair da Arábia
Saudita.
Eu sabia que o meu irmão iria esperar em segurança que a guerra terminasse.
Naquele dia não estava com disposição de o confrontar com a sua cobardia; limitei-me
a sorrir e a desejar-lhe boa viagem.
O assunto derivou para as mulheres que se tinham colocado ao volante de um
automóvel quando o meu irmão tocou manhosamente no tema, contando que uma
delas fora morta pelo pai por ter envergonhado a família. O progenitor achara que,
executando a filha, os religiosos fanáticos deixariam de importunar mais o resto da
família. Na verdade, Ali chegou mesmo a sorrir. Como eu detestava aquele meu
irmão... Ele e uma terra que mantinha as mulheres subjugadas mereciam-se bem.
Combateria até ao fim para que as mulheres jamais tivessem os seus direitos, pois um
homem como ele ficaria aterrorizado diante de uma mulher de força e caráter.
Quando interroguei Karim, este declarou desconhecer o incidente, mas
aconselhou-me a não pensar nele. Observou que não se admirava, pois as famílias das
mulheres agitadoras também sofriam. Presunçosamente, observou: "Eu bem te avisei",
recordando-me o que previra no dia da manifestação. Eu tinha a sensação de que me
enganara com a conversa que, no passado, tivera sobre a libertação das mulheres,
pois naquele momento a sua maneira de pensar pouco mais progressista era que a de
Ali.
Não haveria um único homem, no meu país, que desejasse ver as mulheres
livres das suas algemas?
O boato da morte da jovem foi tão bem guardado na nossa terra que, ainda
hoje, não foi confirmado nem negado; paira sobre nós, mulheres, como uma ameaça
velada do derradeiro sacrifício que aguarda aquelas que têm coragem.
A guerra que tanto temíamos chegou e partiu. Os nossos homens combateram
e morreram, mas eu soube, através de Karim, que muitos dos nossos soldados não
tinham lutado com bravura. De fato, os aliados tinham achado necessário inventar
tácticas para assegurarem que nós, os Árabes, não ficássemos ofendidos quando a
verdade sobre o comportamento dos nossos combatentes fosse revelada. O meu
marido corou ao contar que os sauditas, em vez de correrem para o inimigo, faziam-no
no sentido inverso. O nosso único orgulho militar reduziu-se aos pilotos, que atuaram
honrosamente.
Asad foi de opinião que não nos devíamos envergonhar perante a constatação
mas sim sentir alívio. Um espírito militar aguerrido representaria um perigo para nós
mesmos; o trono não conseguiria sobreviver a uma máquina militar bem oleada. No
mundo árabe, uma força militar competente derruba monarquias, pois, na realidade, o
povo deseja ter uma voz na vida política da sua terra. A nossa família assistira a esses
acontecimentos, de modo que preferira manter uma organização dirigida por homens
desprovidos de espírito bélico. Não há dúvida de que a nossa família é astuta e
mantém, propositadamente, o soldado saudita desleixado e longe do seu melhor.
No final das contas, os acontecimentos relacionados com a guerra serviram
para derrubar a nossa confiança na lendária mudança social da mulher da Arábia
Saudita.
A contenda, que atraiu a atenção de todo o mundo para os males da nossa
sociedade, terminou demasiado depressa. O poder cada vez menor de Saddam, o
nosso inimigo, desviou o interesse do nosso empenho e transferiu os rumores de
promessas de ajuda para as condições aflitivas dos Curdos, que definhavam nas
montanhas cobertas de neve.
Terminada a guerra, os nossos homens puseram-se a rezar com grande
diligência, pois tinham sido salvos da ameaça de exércitos invasores - e de mulheres
livres.
Quem poderá dizer qual dos dois perigos os afligiu mais?

Epílogo

O som persistente que inunda de alegria o coração de todo o muçulmano


encheu o ar. Os fiéis estavam a ser chamados à oração: "Deus é grande, não existem
outros deuses senão Ele; e Maomé foi o Seu Profeta. Vinde orar, vinde orar; Deus é
grande; não existem outros deuses senão Ele."
Era a hora do crepúsculo. O enorme círculo amarelo que era o Sol desaparecia
lentamente por trás da linha do horizonte. Para os fiéis muçulmanos, chegara a altura
da quarta oração do dia.
Eu deixei-me ficar na varanda do meu quarto e vi o meu marido e filho saírem
dos terrenos do palácio e encaminharem-se, de mãos dadas, para a mesquita. Reparei
que muitos homens se reuniam, saudando-se uns aos outros com espírito fraterno.
Vieram-me à memória as recordações turbulentas da minha infância e vi-me de
novo menina, afastada do amor exclusivo do meu pai por Ali, o seu filho precioso.
Tinham passado quase trinta anos e, no entanto, nada mudara. A minha vida
tornara-se um círculo completo.
O meu pai e Ali, Karim e Abdullah, ontem, hoje e amanhã, práticas imorais
passavam de pai para filho. Homens que eu amava, homens que eu odiava, deixando
um legado vergonhoso na sua forma de tratar a mulher. Os meus olhos acompanharam
os movimentos dos meus entes mais queridos; o meu marido e o meu filho entraram na
mesquita de mãos dadas, sem mim. Senti-me a criatura mais solitária que alguma vez
existira.

Posfácio

Terminada a Guerra do Golfo de 1991, gerou-se um desejo universal de paz


para o turbulento Médio Oriente. Inúmeras propostas de chefes de muitas nações
foram apresentadas aos que detinham o poder, num esforço para colocar um ponto
final na violência incessante que reinava nesta parte do mundo.
Para além de desejarem a paz, muitos dos que se preocupavam com o Médio
Oriente e as suas gentes ansiavam por mudanças nas velhas tradições que, apesar de
não terem bases religiosas, servem para subjugar as mulheres árabes aos caprichos
dos homens, sob cuja autoridade se encontram ou que as desposam. Enquanto a
realidade da paz duradoura ganha força nas movimentações diplomáticas do
presidente George Bush, o ilusório sonho de liberdade da mulher esmorece na Arábia
Saudita. Os homens ocidentais que detêm o poder estão pouco interessados em
erguer a bandeira da liberdade por quem não dispõe de prestígio político, ou seja, as
mulheres.
A Guerra do Golfo para libertar o Kuwait acabou por, também, se tornar uma
guerra de conflitos nitidamente crescentes entre os homens e as mulheres da Arábia.
Onde as mulheres viram a esperança de mudanças sociais, os homens sentiram o
perigo de qualquer alteração numa sociedade que pouco difere daquela que se tem
mantido desde há dois séculos. Maridos, pais e filhos não se prestaram a desafiar as
forças religiosas radicais em prol dos direitos da mulher. A causa da liberdade para a
mulher na Arábia perdeu o fulgor no recuo a que se viu obrigada por parte dos
religiosos extremistas, pois a chegada de tropas estrangeiras desencadeara o seu
poder. A promessa de endurecimento dos religiosos espalhou o medo em todo o país.
Tristemente, em 1992, Sultana, juntamente com outras mulheres sauditas, foi forçada a
recuar para as trincheiras do passado.
Surpreendentemente, os ricos e poderosos são agora, pela primeira vez, alvo
da polícia religiosa e sofrem buscas e detenções tal qual os outros sauditas. Os
cidadãos vulgares, em vez de se preocuparem com a perda de liberdade de todos os
cidadãos, riem deliciadamente perante a idéia de os membros da realeza e os ricos
serem vítimas da mesma vigilância feroz dos mutawas, que eles conheceram desde
sempre. Liberdade para guiar, para não usar véu ou para viajar sem permissão são
sonhos perdidos no meio de preocupações mais importantes para a vida, como é o
caso da ameaça crescente de extremistas religiosos regionais. Quem sabe quando
voltará a surgir, para as mulheres da Arábia, outra oportunidade com tão grande
potencial para mudanças sociais como uma guerra?
Enquanto as sociedades modernas se esforçam por melhorar as condições de
vida de todos os povos, há mulheres, por esse mundo fora, que continuam a fazer face
a uma autêntica ameaça de tortura ou morte sob o domínio primitivo do sexo
masculino. As costuras do manto da escravatura feminina são cosidas com a linha forte
da vontade masculina em se apegar ao seu domínio histórico sobre as mulheres.
Na Primavera de 1983, conheci uma mulher saudita que transformou
definitivamente a minha vida. Os leitores conhecem-na sob o nome de Sultana. A
nossa simpatia mútua e o desejo de amizade floresceu, pois tornamo-nos amigas
quase no mesmo instante.
A paixão que Sultana nutria pela vida e a sua espantosa capacidade mental
alterou a minha incorreta percepção ocidental sobre as "mulheres de preto" que, na
altura, via como uma espécie insondável da raça humana.
Eu, na minha qualidade de americana a viver num bairro saudita desde 1978,
conhecera e convivera com muitas mulheres sauditas. Porém todas exibiam, perante
os meus olhos estrangeiros, a mesma máscara obscura de derrota. A vida, para a
opulenta classe de comerciantes ou para a família real das cidades a que pertenciam,
era demasiado confortável para alterar o equilíbrio precário das suas vidas. As aldeãs
beduinas suportavam a sua vida intolerável com surpreendente dignidade. Na verdade,
depois de me conhecerem, condoíam-se de quem, como eu, era "obrigada" a
aventurar-se naquele mundo cruel sem a proteção ou orientação de um homem
"Haram. [que pena!", diziam elas, dando-me palmadinhas afetuosas no ombro e
exprimindo o seu pesar por alguém como eu. A realidade da sua condição escondia-se
por trás de um desprezo ou comiseração aparentes.
Sultana expôs-me à raiva vociferante que raiava o desespero na mente de
muitas mulheres sauditas escondidas por trás do véu. Esta nova perspectiva
convenceu-me de que as mulheres sauditas pouca influência tinham na cultura saudita,
pelo contrário, esta é que as criara.
No Outono de 1988, Sultana veio ter comigo e perguntou-me se eu, sua amiga,
queria escrever a história da sua vida. Achava que muitos dos aspectos ligados à sua
jovem vida e à das outras mulheres sauditas suas conhecidas precisavam de ser
mudados. Mas o meu bom senso prevaleceu. Exprimi-lhe as minhas dúvidas sobre as
vantagens que ela retiraria de um empreendimento tão arriscado. Vieram-me à idéia
outros pensamentos relacionados com os meus interesses pessoais, de modo que
apresentei desculpas válidas para o meu pacifismo: adorava o Médio Oriente; as
minhas maiores amigas estavam ali; conhecia muitas mulheres sauditas felizes.
As minhas dúvidas e rejeição eram infindáveis, pois eu própria me cansara do
criticismo constante dos jornalistas ocidentais da terra a que naquela altura já chamava
de minha. O isolamento dos muçulmanos derivava, indiscutivelmente, de constantes
relatos negativos da imprensa mundial. Já havia grande abundância de artigos e livros
a censurar o Médio Oriente e eu não desejava aderir à moda do "desprezo pelos
Árabes" manifestado pelos que, normalmente, retiravam grandes benesses do poder
econômico da terra farta em petróleo.
Disse a Sultana:
- Não, não desejo condenar.
O meu desejo era mostrar os Árabes à luz favorável do entendimento, salientar a
sua delicadeza, hospitalidade e generosidade.
Sultana, a princesa feminista, obrigou os meus olhos a pousarem na verdade
nua e crua. Ainda que haja muitos aspectos positivos na Arábia Saudita, a vida não
poderá ser celebrada, nesta sociedade, até a mulher ter a liberdade de viver sem
temor. Sultana salientou o óbvio:
- Jean, como mulher, tens as lealdades trocadas!
Sultana não era capaz de encarar a derrota. Continuou a falar da realidade que
era a exploração de quem pertencia ao seu sexo. Era uma mulher mais válida do que
eu. Não hesitava em arriscar a pele pela causa que defendia.
Tal como na história da sua vida, Sultana ultrapassou todos os obstáculos,
incluindo a minha relutância teimosa. Depois de tomar a decisão tortuosa de colaborar
com ela na narração da história da sua vida, percebi, no meu íntimo, que não poderia
ter agido de outra maneira. O Ocidente cristão e o Oriente islâmico estão unidos por
um elo capaz de se sobrepor ao medo que senti na concretização deste
empreendimento. Este livro não poderia deixar de ser escrito.
Foram sacrificadas muitas pessoas ao escrever-se este livro: paz de espírito em
relação à segurança de Sultana e da sua família; receio pelos seus amigos que ainda
vivem na Arábia Saudita e ignoram a existência deste livro; mas, acima de tudo, a
perda da amizade, apoio e companheirismo de Sultana, a pessoa que me incitou e
inspirou com o seu espírito combativo. A triste realidade aponta para que, assim que
este livro for publicado, os nossos caminhos se afastem definitivamente. A minha
amiga mais querida ficará presa na escuridão do silêncio, longe de mim. Devo
acrescentar que esta decisão foi tomada de comum acordo. Revelar a nossa ligação
representaria um castigo muito severo para muitas pessoas e, acima de todas, Sultana.
Na última vez em que nos encontramos, decorria o mês de Agosto de 1991, a
minha alegria foi ensombrada por uma sensação de futilidade perversa, ao mesmo
tempo que me maravilhava com a onda de otimismo de Sultana. Sentia-se alegremente
esperançada em relação ao desfecho da nossa diligência e declarou que preferia
morrer a viver subjugada. As suas palavras fortaleceram-me para a tempestade que se
avizinhava: Só quando estas ocorrências desprezíveis vierem a público é que alguém
poderá receber ajuda. Este livro assemelha-se aos primeiros passos de um bebê que
nunca seria capaz de correr sem aquela primeira tentativa corajosa para se pôr de pé
sozinho. Jean, tu e eu atearemos a primeira chama da fogueira. Diz-me, como pode o
mundo vir ajudar-nos se não ouvir o nosso pedido de socorro? Estou firmemente
convencida de que este é o começo da transformação para as mulheres do meu país.
Passei muitos anos da minha vida adulta no Médio Oriente. Durante três anos li
e reli os apontamentos e diários de Sultana. Reuni-me clandestinamente com ela em
muitas das maiores capitais do mundo. Mostrei-lhe o manuscrito final, que ela leu com
o maior deleite - e dor. A minha amiga, depois de terminar a última frase deste livro,
começou a chorar. Quando se recompôs, disse que eu captara perfeitamente o seu
espírito e as experiências da sua vida como se tivesse estado ao seu lado; como, na
verdade, estive durante muitos anos. Pediu-me então que preenchesse os espaços em
branco da sua vida que não foram referidos nos seus diários. Aqui está o que Sultana
deseja que saibam: O pai de Sultana ainda é vivo. Mantém quatro esposas e quatro
palácios nas suas cidades favoritas, espalhadas pelo mundo. As suas esposas mais
jovens deram-lhe uma prole numerosa, que ainda é jovem. Infelizmente, o seu
relacionamento com Sultana não foi amenizado pelos anos. Raramente visita alguma
das filhas, porém orgulha-se imensamente dos seus filhos e netos.
Ali não chegou a amadurecer e os seus hábitos continuam a ser mais ou menos
os mesmos de uma criança mimada. A sua crueldade inata reserva-a ele para as filhas,
a quem trata como viu o pai lidar com as irmãs. Presentemente, Ali tem quatro esposas
e inúmeras amantes. Há pouco tempo, foi punido pelo rei, por excessiva corrupção,
mas não foi tomada nenhuma medida para atenuar a sua conduta.
Sara e Asad mantêm a sua beatitude conjugal. Nesta altura são pais de cinco
crianças cheias de vida. Quem sabe se a previsão de seis filhos feita por Huda virá a
concretizar-se... Somente Sara, de todas as irmãs, conhece a existência deste livro.
As restantes irmãs de Sultana e suas famílias estão bem.
Omar morreu num acidente de automóvel, na estrada para Darriman. A família
que tinha no Egito está a cargo do pai de Sultana.
O pai de Randa adquiriu uma vila no Sul da França, onde esta vive durante a
maior parte do ano. Não voltou a casar depois de se ter divorciado do pai de Sultana.
Na família corre o boato de que terá um amante francês, mas ninguém tem a certeza.
Sultana nunca mais ouviu falar de Wafa. Imagina-a numa aldeia, rodeada de uma
prole numerosa e levando uma vida que as jovens cultas da Arábia Saudita detestam.
Marci voltou para as Filipinas e concretizou a ambição da sua vida, tal como Sultana
previra que aconteceria. Trabalhou algum tempo em Riade, como enfermeira, mas
certa vez escreveu a Sultana a dizer-lhe que tencionava aceitar um trabalho no Kuwait.
As restrições na Arábia Saudita eram demasiado severas para suportar, afirmou.
Depois disso, Sultana nunca mais teve notícias da antiga empregada. Espera
sinceramente que não tenha sido violada ou morta durante a invasão do Kuwait, como
aconteceu a tantas mulheres bonitas.
Huda morreu faz anos. Foi enterrada nas areias da Arábia, bem longe da sua
terra natal, o Sudão.
E o mais triste de tudo: Samira continua presa no quarto da mulher. Taliani
soube, há dois anos atrás, que enlouqueceu. Os criados relataram que gritara durante
dias a fio até, por fim, começar a tagarelar de maneira ininteligível. De vez em quando
ouvem-na soluçar, mas, como o tabuleiro volta vazio todos os dias, depreendem que
ainda está viva. A família assevera que a jovem será libertada assim que o velho da
família morrer, mas este ainda se encontra de boa saúde. Seja como for, não se crê
que a liberdade venha já a beneficiar Samira.
Sultana recebeu o seu diploma de Filosofia há dois anos. Não exerce a
profissão, mas afirma que os conhecimentos que adquiriu lhe proporcionaram uma
tranqüilidade interior e uma sensação de unidade com o mundo. Descobriu, nos seus
estudos, que muitos outros povos sobreviveram a graves injustiças. Verificou que o
progresso humano é, de fato, lento; no entanto, os espíritos corajosos continuam a
fazer força para que as questões avancem no bom sentido e sente-se orgulhosa por
ser um deles.
Karim e Sultana mantêm uma relação baseada no hábito e no amor que ambos
nutrem pelos filhos, mas Sultana lamenta que o amor que sentiam um pelo outro nunca
mais tenha revivido após o incidente da segunda esposa.
Há seis anos, Sultana contraiu uma doença venérea. Depois de muitos
problemas, Karim admitiu que participara numa aventura semanal de sexo com
desconhecidas. Todas as semanas, vários príncipes de estirpe mais elevada mandam
um avião a Paris buscar prostitutas para uma viagem até à Arábia Saudita. Uma
madame que lá está escolhe as raparigas mais bonitas que, vindas de todo o mundo,
exercem esse seu ofício em França.
Todas as terças-feiras metem-se num avião rumo à Arábia; na segunda-feira
seguinte regressam, esgotadas, pelo mesmo meio de transporte. Karim falou de
palácios especiais, situados nas principais cidades da Arábia Saudita, que albergam
até uma centena de prostitutas. A maioria dos príncipes mais importantes da Arábia
Saudita são convidados a participar e a escolher livremente qualquer das mulheres.
Para estes homens, as mulheres continuam a ser objetos de prazer ou um veículo para
fazer filhos varões.
Depois do susto apanhado com a doença, Karim prometeu evitar os encontros
semanais, mas Sultana afirma saber que ele dificilmente resiste a tais prevaricações e
que continua a entregar-se a elas despudoradamente. Do amor maravilhoso que
tiveram um pelo outro, no passado, já só resta a recordação. Sultana diz que, pelo bem
das filhas, continuará junto do marido e manterá a sua luta.
Diz, ainda, que a maior tristeza que tem na vida continua a ser o fato de ver os
vultos negros das duas filhas jovens, agora envoltas no manto e no véu que, depois de
tantos anos de rebelião, ainda subjugam toda uma nova geração de mulheres na
Arábia Saudita. Como sempre, o papel da mulher continua a ser determinado por
costumes primitivos.
A presença das tropas americanas que, durante a Guerra do Golfo, tanta
esperança de liberdade trouxe a Sultana, só fortaleceu ainda mais os mutawas, que
agora se vangloriam de controlar o monarca.
Sultana pediu-me que dissesse o seguinte ao leitor: o seu espírito desafiador
continua a rebelar-se através das páginas deste livro, no entanto a sua revolta deve ser
secreta porque, embora fosse pessoa para suportar todas as agruras da vida, não se
sente capaz de encarar a possibilidade de perder os seus preciosos filhos. Quem sabe
que punição não cairia sobre quem se atreve a contar a verdade acerca da vida
escondida das mulheres na terra dos dois santuários mais sagrados do islamismo?
O destino de Sultana formou-se em Janeiro de 1902, quando seu avô, Abdul
Aziz, se bateu e reconquistou as terras da Arábia Saudita. Nasceu uma dinastia. A
princesa Sultana AI-Saud permanecerá ao lado do seu marido, o príncipe Karim
AI-Saud, na casa real dos AI-Saud do reino da Arábia Saudita.

APêNDICE A

O ALCORÃO' E AS MULHERES

O Alcorão é o livro sagrado do islamismo. Composto por cento e catorze Suras, ou


capítulos, este livro determina a conduta que deve ser seguida pelo povo que segue a
fé muçulmana. Os muçulmanos crêem que o Alcorão é a palavra de Deus tal como foi
revelada ao profeta Maomé pelo anjo Gabriel. Maomé teve as suas visões quando se
encontrava nas cidades de Meca e Medina, localizadas no território que hoje
conhecemos como a Arábia Saudita. Foi em Meca que o Profeta nasceu e é em
Medina que está o seu túmulo. Daí que estas sejam as cidades mais sagradas para os
muçulmanos. Os infiéisou "pagãos" não podem entrar dentro do perímetro da cidade.
Poucos ocidentais se apercebem do poder supremo e inquestionável que as palavras
do profeta Maomé têm para os muçulmanos. Todos os aspectos da sua vida são
orientados pelo Alcorão, tido como sagrado pelos muçulmanos. Embora haja muitos
ocidentais educados no cristianismo que não aceitam a existência de um ser superior,
é raro o muçulmano que não se agarre firmemente a uma fé inabalável no Deus de
Maomé.
No mundo muçulmano da Arábia Saudita, não existe a separação entre Igreja e
Estado como vemos no Ocidente. A religião islâmica é a lei suprema.
Durante os dez anos em que vivi em Riade, na Arábia Saudita, pedi a uma amiga
intima saudita que me traduzisse e explicasse determinados versículos do Alcorão.
Depois de reparar na discriminação total dos sexos que o islamismo determina,
interessei-me, em particular, nos que restringem o comportamento da mulher.

' Todas as citações do Alcorão foram retiradas da edição da Junta de Investigações


Científicas do Ultramar, Lisboa, 1980, numa tradução direta do árabe de José Pedro
Machado. (N. do E.)
Como esses versículos me foram traduzidos no contexto de conversas pessoais,
poderão detectar-se algumas discrepâncias menores entre a minha interpretação e a
dos estudiosos do Alcorão. No entanto, tendo em vista o fato de o Alcorão ser
considerado "intraduzível", e existir grande controvérsia em relação a muitas traduções
inglesas, é com confiança que revelo os versículos que se seguem sobre a questão da
mulher, que me foram diretamente lidos da versão árabe do Alcorão.
TEMA

As relações sexuais durante o Ramadã, altura em que todo o bom muçulmano jejua e
se abstém de prazeres durante as horas do dia.
Versículo do Alcorão:
Sura 11, 183
Praticai desde então jejum completo até à noite e não devereis coabitar com elas
quando estiverdes recolhidos nas mesquitas. Eis os preceitos de Deus, de que não vos
aproximareis [para transgredir! Assim apresenta Deus os seus prodígios aos homens,
para que eles sejam piedosos.

TEMA

O casamento de muçulmanos com infiéis. O Alcorão determina o mesmo conjunto de


regras tanto para homens como para mulheres, mas esta lei só se aplica às mulheres.
Muitos homens sauditas desposam mulheres cristãs, mas as sauditas estão
estritamente proibidas de casar com quem não for muçulmano.

Versículo do Alcorão:
Sura II, 220
Não desposareis mulheres politeístas, enquanto não aceitarem a unidade de Deus.
Uma escrava crente vale mais que uma mulher [livre], mesmo que esta vos agrade
mais. Não dareis aos politeístas as mulheres da vossa família como esposas. Um
escravo crente vale mais que um politeísta [livre], mesmo que este vos agrade mais.

TEMA

As relações sexuais durante a menstruação da mulher, as quais são rigorosamente


proibidas.

Versículo do Alcorão:
Sura II, 222
Hão de interrogar-te sobre as regras das mulheres. Responde-lhes: "Isso é um
inconveniente"; separai-vos então das vossas mulheres durante o tempo das regras e
não devereis unir-vos de novo a elas senão quando estiverem purificadas, tal como
Deus vos ordenou.

TEMA

Depois de um homem se divorciar de uma mulher, deve certificar-se de que não a


deixou grávida. Se a mulher for ter um filho seu, o marido deverá cuidar dela.

Versículo do Alcorão:
Sura II, 228
As repudiadas aguardarão que decorram três períodos de regras antes de voltarem a
casar e não lhes é permitido ocultar o que Deus criou nas suas entranhas, se crerem
em Deus e no Dia Derradeiro. É mais justo que os maridos as retomem quando se
encontram em tal estado, se desejarem a reconciliação; elas, então, devem proceder
com os próprios maridos como estes agiram com elas, com honestidade. Mas os
maridos conservam sobre elas graus de superioridade. Deus é poderoso e sábio.

TEMA

Depois de um homem se divorciar de uma mulher, pode voltar a casar com ela se esta
casou e se divorciou de outro homem depois disso. Se ele se divorciar dela uma
segunda vez, fica proibido de voltar a desposá-la.

Versículos do Alcorão:
ura 11, 229
O repúdio faz-se duas vezes. Conservareis a mulher com humanidade e repudiá-la-eis
com generosidade.

Sura II, 230


Se alguém repudia a sua esposa não a poderá retomar depois sem que ela tenha
casado com outro marido e que este, por sua vez, a tenha também repudiado.

Sura II, 242


às repudiadas é devido mantimento honesto, o que é dever dos tementes a Deus.

TEMA

O versículo seguinte fala do número de mulheres que um homem pode desposar e dos
dotes que lhes são devidos.

Versículo do Alcorão:
Rim9 TV '@
Se receais não ser justo com os órfãos, desposai então duas, ou três, ou quatro, de
entre as mulheres que vos agradarem. Se continuais a recear não serdes justos,
desposai uma só ou o que possuírem as vossas mãos direitas; isto vos ajudará a não
vos afastardes da justiça. Dai às mulheres os seus dotes, como dom espontâneo; se,
porém, lhes apetecer ceder-vos voluntariamente uma parte, gozai-a com alegria e
saúde.

TEMA

A herança para as crianças é explicado em baixo. Os filhos varões devem receber o


dobro das filhas.

Versículo do Alcorão:
Sura IV, 12
Deus ordena-vos, quando se fizer a partilha dos vossos bens pelos vossos filhos, que
cada rapaz receba as partes de duas raparigas.

TEMA
São dadas instruções concretas sobre a atitude a ter em relação a mulheres que
infrinjam a lei contra os crimes sexuais. Um segundo versículo fala da ação a ser
empreendida contra os homens nas mesmas circunstâncias.

Versículos do Alcorão:
Sura IV, 19
Se as vossas mulheres cometerem a ação infame, chamai de entre vós quatro
testemunhas contra elas: se os depoimentos forem realmente contra elas, fechai-as em
casa até que a
morte as leve ou que Deus lhes conceda algum meio de salvação.

Sura IV, 20
Se dois dos vossos homens cometerem a ação infame, castigamos a ambos; mas se
eles se arrependerem e se corrigirem, deixai-os tranqüilos, porque Deus é benigno e
misericordioso.

TEMA

O Alcorão determina concretamente quais as mulheres que os homens estão proibidos


de desposar.

Versículos do Alcorão:
Sura IV, 26
Não deveis casar com as mulheres que forem esposas dos vossos pais, exceto se
tratar de caso já consumado. É uma torpeza, é uma coisa abominável e um mau
costume.

Sura IV, 27
Fica-vos proibido casar com as vossas mães, com vossas filhas, com vossas irmãs,
com vossas tias paternas e maternas, com as filhas dos vossos irmãos e as filhas das
vossas irmãs, com vossas amas, vossas irmãs de leite, com as mães das vossas
mulheres, com as vossas enteadas que forem entregues à vossa tutoria e nascidas de
mulheres com quem haveis coabitado. Mas, se haveis coabitado com estas, não há
nenhum crime em casar com aquelas. Não deveis também casar com as mulheres dos
vossos filhos, gerados por vós, nem deveis unir-vos ao mesmo tempo a duas irmãs, a
não ser que se trate de caso já resolvido. Deus será indulgente e misericordioso.

Sura IV, 28
Não deveis também casar com mulheres casadas, exceto com as que estão nas
vossas mãos direitas.

TEMA

Um muçulmano não pode ir fazer as suas orações a Deus se tocou numa mulher. Há
um versículo especial, aconselhando-o no que deve fazer, caso tenha estado com uma
mulher mas não dispusesse de água para se lavar.
Versículo do Alcorão:
Sura IV, 46
][... ou terdes estado com mulheres, esfregai a cara e as mãos com areia fina, se não
houver água. Deus é indulgente e misericordioso.

TEMA

Crimes sexuais contra Deus. Está reservado um código severo para quem comete tais
atos.

Sura XX1V, 2
à fornicadora e ao fornicador dareis cem chicotadas a cada um. Que em nome da
religião de Deus a compaixão não vos detenha, se creis em Deus e no Dia Derradeiro.

Sura XXIV, 3
O fornicador só desposará uma fornicadora ou uma idólatra e a fornicadora só
desposará um fornicador ou um idólatra. Isso é interdito aos crentes.

TEMA

A acusação de fornicação ou adultério é tão grave que é necessário apresentar quatro


testemunhas.

Versículo do Alcorão:

Sura XXIV, 4
Os que acusam mulheres honestas, sem quatro testemunhas, serão castigados com
oitenta chicotadas e não mais admitíreis o seu depoimento, pois são perversos

TEMA

Se um homem acusar a esposa de adultério ou fornicação e não tiver testemunhas


que corroborem as suas alegações, terá de jurar, em nome de Deus, que falou
verdade.

Versículos do Alcorão:
Sura XXIV, 6
Os que acusarem as suas mulheres e que só eles se apresentarem como testemunhas
terão de jurar quatro vezes perante Deus que dizem a verdade.

Sura XX1V, 7
E ainda a quinta vez a invocar para si a maldição de Deus, se mentirem.

TEMA

Na Arábia Saudita, as muçulmanas cobrem o rosto ou sujeitam-se a ser molestadas


pelos religiosos. A discriminação sexual é absoluta em todos os aspectos da vida.

Versículo do Alcorão:
Sura XX1V, 31
Dize às crentes que baixem os olhos e observem a continência, que só deixem ver
objetos exteriores, que cubram os seus com véus, que só mostrem o seus ornamentos
a seus maridos ou a seus pais, ou aos pais de seus maridos, a seus filhos ou aos filhos
de seus maridos, a seus irmãos ou aos filhos de seus irmãos, aos filhos de suas irmãs,
ou às suas mulheres, ou aos escravos ou servos varões sem desejos [carnais], ou às
crianças que ainda não distingam os órgãos sexuais da mulher.

TEMA

O Alcorão diz que a mulher já mais idosa pode pôr de parte as suas peças de roupa
exteriores (véu, abaaya). O certo é que na Arábia, as mulheres andam sempre veladas,
independentemente da idade.

Versículo do Alcorão:
Sura XX1V, 59
As mulheres que já não podem [conceber] e que já não esperam casar, podem, sem
inconveniente, tirar os véus, sem que, no entanto, mostrem os seus ornamentos, mas
sempre será melhor absterem-se disso. Deus ouve e sabe tudo.

APENDICE B

AS LEIS DA Arábia SAUDITA

O Código Penal da Arábia Saudita adere aos rigorosos preceitos do islamismo. A


palavra "islamismo" significa "Submissão à vontade de Deus". O conceito mais
importante do islamismo é a Shari'a, ou o "caminho", que engloba todos os aspectos da
vida determinados por Deus. Todos os adeptos da religião islâmica devem conduzir a
vida de acordo com os valores tradicionais estabelecidos por Maomé, o profeta de
Deus, que nasceu em Meca em 570 depois de Cristo e morreu em Medina em 632
depois de Cristo.
A maioria dos ocidentais tem dificuldade em compreender a completa e total
submissão dos muçulmanos às leis do Alcorão em todos os aspectos da vida, no seu
dia-a-dia.
O Alcorão, juntamente com as tradições estabelecidas por Maomé, constitui a Lei na
Arábia Saudita.
Quando vivi na Arábia Saudita, uma vez pedi a um destacado estudioso do islamismo,
que era advogado, que descrevesse a aplicação da justiça na Arábia Saudita com base
nos ensinamentos do Profeta. A explicação que me deu ajudou-me a perceber melhor
a lei saudita.
Segue-se parte do relatório que me fez por escrito e que acho poder interessar ao
leitor:

1. A Sharí'a baseia-se em quatro fontes principais: o Alcorão, que tem milhares de


versos religiosos revelados por Deus através de Maomé, o Seu profeta; o Sunna,
constituído pelas tradições que o Profeta transmitiu mas que não estão registradas no
Alcorão; o Ijma, que reúne as percepções da Ulemá, ou estudiosos da religião; e o
Qiyas, que é um método através do qual juristas conhecidos concordam relativamente
a novos princípios, legais.
2. O rei da Arábia Saudita não está isento das regras estabelecidos pela Shari'a.
3. O sistema judicial é complicado, mas se houver um julgamento e for apresentado
recurso, aquele será revisto pelo tribunal de apelação. Este tribunal, que, normalmente,
é composto por três membros, aumentará para cinco se a pena impuser a morte ou a
mutilação. É ao rei que cabe a última palavra e a possibilidade de perdão.
4. Os crimes classificam-se em três divisões: Hudud, Tazir e Quisas-. Os crimes de
Hudud são aqueles que são denunciados por Deus; o castigo é referido no Alcorão. Os
crimes de Tazir são punidos por determinação da autoridade com essa função. Os
crimes de Qisas conferem à vítima o direito de retaliar.

CRIMES DE HUDUd)

Os crimes de Hudud incluem o roubo, a ingestão de bebidas alcoólicas, a difamação


do islamismo, a fornicação e o adultério.
As pessoas acusadas de roubo serão punidas com o pagamento de multas, prisão ou
amputação da mão direita. (A esquerda segue o mesmo destino se a direita já o tiver
sido.)
As pessoas dadas como culpadas de beber, vender ou comprar bebidas alcoólicas,
consumir drogas sob qualquer forma, são punidas com uma pena de oitenta
chicotadas.
As pessoas culpadas de difamação do islamismo são condenadas de acordo com as
circunstâncias. A dureza da pena depende do fato de serem muçulmanas ou não.
As pessoas culpadas de fornicação são flageladas. Os homens são-no de pé, as
mulheres sentadas. Os rostos, cabeças e órgãos vitais dos culpados são protegidos.
Normalmente são quarenta chicotadas, porém este número varia consoante as
circunstâncias.
O adultério é o mais grave dos crimes. Se a parte culpada for casada, ele ou ela
recebe a pena de morte por apedrejamento, decapitação ou tiro. O método habitual de
execução é o apedrejamento. Este crime deve ser provado através da confissão ou de
quatro testemunhas oculares do ato.

CRIMES DE TAZIR

Os crimes de Tazir assemelham-se aos crimes menores na América. Não existe


castigo predeterminado, no entanto todas as pessoas são julgadas individualmente e a
sua punição depende da gravidade do crime e do arrependimento demonstrado pelo
réu.

CRIMES DE QISAS

Se uma pessoa for considerada culpada de crimes contra uma vítima ou sua família, a
família ultrajada tem o direito de retaliar. A condenação é decidida pela família em
privado, e o castigo é levado a cabo igualmente em particular.
Se houver um assassínio, a família tem o direito de matar o assassino da mesma
maneira que o seu ente querido foi morto ou através de qualquer outro método
escolhido.
Se um membro da família for morto acidentalmente (como, por exemplo, num acidente
de automóvel), a família do falecido pode receber "dinheiro de sangue". Outrora,
era com os camelos que se pagava essa obrigação. Hoje em dia, a moeda de troca é o
dinheiro. Há somas estipuladas para as várias circunstâncias: o pagamento pode ir dos
120000 aos 300000 reais sauditas. Se a vítima for mulher, a soma é metade da
estabelecida para um homem.
Se uma pessoa mutilar alguma parte do corpo de outra, a família da vítima pode fazer
o mesmo ao culpado.

QUEM PODE TESTEMUNHAR EM PROCESSOS CRIMINAIS

A testemunha deve ser sã de espírito, de idade adulta e muçulmana. Os não


muçulmanos poderão não testemunhar em tribunais criminais. As mulheres não
deverão testemunhar, exceto se tratar de uma questão pessoal que não ocorreu na
presença de homens. Na verdade, o testemunho de uma mulher não é considerado
como um fato mas sim como uma conjectura. O tribunal poderá decidir sobre a
validade do testemunho, dependendo das circunstâncias.

POR QUE RAZÃO AS MULHERES ESTÃO PROIBIDAS DE TESTEMUNHAR


EM PROCESSOS CRIMINAIS

São quatro as razões que impedem os tribunais sauditas de considerarem válido o


testemunho das mulheres:
1. As mulheres são muito mais emotivas que os homens e, por isso, distorcerão o seu
testemunho.
2. As mulheres não participam na vida pública, portanto não serão capazes de
compreender o que observam.
3. As mulheres são completamente dominadas pelos homens, estes considerados
superiores pela graça de Deus; conseqüentemente, as mulheres prestarão testemunho
consoante o que o último homem lhes disser.
4. As mulheres são esquecidas e o seu testemunho não pode ser considerado fiável.

APENDICE C

GLOSSáRIO

O significado destas palavras árabes, expressões e lugares tem sido explicado, de uma
maneira geral, à medida que aparecem no texto.
Abaaya - Túnica comprida e preta que as mulheres da Arábia Saudita usam por cima
da roupa.

Abu Dhabi - Cidade localizada nos Emirados Árabes Unidos.


Alcorão - Livro sagrado do islamismo, que contém as palavras de Deus tal como foram
transmitidas ao profeta Maomé.

AI-Saud - A família que governa o reino da Arábia Saudita.

Asir - O nome tradicional dado à zona sudoeste da Arábia Saudita.

Baath - Movimento político iniciado na Síria e propagado ao Iraque. A sua doutrina


centra-se na unidade árabe.

Bahrein - País formado por uma ilha que está ligada à Arábia Saudita por uma estrada.

Beduíno - Os árabes originários, um povo nômade do deserto.

Buda - Filósofo indiano que fundou o budismo.

Constantinopla - A antiga capital da Turquia e do Império Otomano, a atual Istambul.

Curdos - Grupo étnico e lingüística que perfaz 18% da população do Iraque.


Nacionalista, aspirando a um território próprio, este grupo de pessoas continua a
bater-se pela autonomia curda.

Damman - A cidade da Arábia Saudita onde o petróleo apareceu pela primeira vez.

Darliyad - A cidade velha de Riade.

Dubai - Cidade situada nos Emirados Árabes Unidos.

Ghutra - O "toucado" que os árabes usam na cabeça.

Gidá - Linda cidade da Arábia Saudita situada nas margens do mar Vermelho. Gidá é
famosa pela população expatriada que nada e mergulha nas suas águas límpidas.

Raj - A peregrinação, um dos cinco pilares do islamismo. A jornada a Meca é a grande


ambição de todos os muçulmanos. Todos a devem realizar, caso tenham posses para
tal.

Halawa - Cerimônia em que todos os pêlos do corpo são removidos.

Haram - Expressão que significa "pena" ou "simpatia".

Harrods - Grande armazém em Londres, freqüentado por muitos árabes abastados.

Hejaz - Designação tradicional da zona oeste da Arábia. Gidá, localizada à beira do


mar Vermelho, encontra-se na área de Hejaz.
Hommous - Prato árabe feito com grão-de-bico, normalmente servido sobre um bocado
de pão de pita.

Hudud - Crimes graves denunciados por Deus no Alcorão.

ibn - Significa "filho de" (Khalid ibn Faiçal, filho de Faiçal).

Iémen - País situado no canto sudoeste da península Arábica. A mão-de-obra da


Arábia Saudita foi constituída, na sua grande maioria, por iemenitas. O fato de o
Governo do lémen ter permanecido leal a Saddam Hussein durante a Guerra do Golfo,
levou a que a maioria dos trabalhadores íemenitas fosse expulsa do reino.

Igaal - Cordão negro usado no topo do "toucado" dos Árabes.

fima - Percepções que os estudiosos do islamismo retiram do Alcorão.

Jerusalém - A terceira cidade mais sagrada do islamismo, presentemente sob o


controlo dos Israelitas.

Kutab - Método de ensino em grupo, habitualmente utilizado na Arábia Saudita antes


da implantação do sistema educativo para raparigas.

Laban -Bebida refrescante, semelhante ao leite, muito apreciada no Médio Oriente.

Malaz - Quarteirão residencial em Riade, famoso pelos sauditas ricos que nele vivem.

Manama - Capital do Bahreín, um país-ilha ligado à Arábia Saudita por uma estrada.

Meca - A cidade mais sagrada do islamismo, onde Deus revelou a sua vontade ao
profeta Maomé. É para ela que, todos os anos, convergem milhares de peregrinos
muçulmanos.

Medina - A segunda cidade mais sagrada do islamismo, designada "a cidade do


Profeta" e onde este foi enterrado.

Mena House - Hotel muito conhecido no Cairo, freqüentado por turistas.

Mismaak - A fortaleza, em Riade, que o clã Rashid utilizou na batalha de 1902 e que
regressou às mãos dos AI-Saud.

Mutawa - A polícia religiosa do islamismo.

Najd - Nome tradicional da Arábia Central. É nesta região que se situa a cidade de
Riade. Os habitantes são conhecidos, de um modo geral, pelo seu comportamento
conservador. Os membros da família AI-Saud são Naydis.

Nasiriyah - Zona residencial em Riade, habitada por membros da família real e sauditas
excepcionalmente ricos.

Qisas - O método de acordo de novos princípios legais no islamismo.

Ramadã - Mês islâmico do jejum, em que muçulmanos de todo o mundo celebram a


dádiva do Alcorão ao homem por Deus.

Real - O real saudita é a moeda de troca da Arábia Saudita.

Riade - Capital da Arábia Saudita.

Rub al-Khali - O grande deserto que ocupa o canto sudoeste da Arábia Saudita.

Sharila - A lei de Deus para aqueles que professam o islamismo.

Souq - Mercado local ou bazar.

Sunita - O ramo ortodoxo majoritário do islamismo. A Arábia Saudita é 95% sunita.

Sunna - As tradições do islamismo tal como foram transmitidas pelo profeta Maomé.

Suras - Os capítulos do Alcorão. Ao todo são cento e catorze Suras.

Taif - Estância nas montanhas da Arábia Saudita, situada perto de Meca.

Tazir - Crimes de má conduta dentro da lei islâmica.

Thobe - Vestimenta comprida, parecida com uma camisa, usada pelos Sauditas. A
tradição manda que a thobe seja feita de algodão branco, mas durante os meses frios
do
Inverno é freqüente usarem-na num tecido mais grosso e com uma tonalidade mais
escura. (Assim que os filhos varões aprendem a andar, vestem-lhes thobes e pequenos
"toucados" idênticos aos dos pais.)

Ulemá - Estudiosos da religião islâmica que regulam a vida religiosa na Arábia Saudita.

Mita - Ramo do islamismo que se destacou da maioria sunita devido à questão do


sucessor do profeta Maomé.

APENDICE D

CRONOLOGIA

570 d.C. - O profeta Maomé nasce em Meca, na Arábia Saudita.

610 - O profeta Maomé tem uma visão onde Deus o declara Seu mensageiro. Nasce o
islamismo.

622 - O profeta Maomé escapa a uma multidão enfurecido em Meca e foge para
Medina. Esta fuga passou a ser conhecida como "a Hégira", a grande crise na missão
de Maomé na Terra. O calendário muçulmano principia nessa data e tem o nome de
Hégira em honra dessa viagem.

632 - O profeta Maomé morre em Medina.

650 - Os conselhos do profeta Maomé são reunidos e escritos. Este livro, conhecido
pelo Alcorão, onde está registrada a palavra de Deus tal como a transmitiu a Maomé, é
a bíblia sagrada dos muçulmanos.

1446 - O primeiro AI-Saud documentado, antepassado de Sultana, abandona a vida


nômade do deserto e instala-se em Dar'iyad (antiga Riade).

1744 - Mohammed AI-Saud faz uma aliança com Mohammed AI-Wahhab, um professor
que procede a uma interpretação rigorosa do Alcorão. As forças combinadas de um
guerreiro e de um intelectual dão origem a um sistema rígido de punição para as
pessoas.

1802-1806 - Filhos de Mohammed AI-Saud e de Mohammed AI-Wahhab, inspirados


pelos ensinamentos do Alcorão, atacam e capturam Meca e Medina. Inabaláveis,
chacinam toda a população masculina de Taif, uma povoação a norte de Meca. Com
esta vitória, a maior parte da Arábia une-se sob uma única autoridade.

1843-1865 Os AI-Saud estendem a sua autoridade para sul, até Omã.

1876 - Nasce Abdul Aziz ibn Saud, avô de Sultana e fundador do reino.

1887 - A cidade de Riade é capturada pelos Rashid.

1891 - O clã AI-Saud foge de Riade para o Rub al-Khalí.

1893-1894 - O clã AI-Saud marcha através do deserto, em direção ao Kuwait.

Setembro de 1901 - Abdul Aziz, então com vinte e cinco anos de idade, sai do Kuwait
em direção a Riade, juntamente com os seus guerreiros.

Janeiro de 1902 - Abdul Aziz e os seus homens conquistam Riade. Começa a nova
dinastia AI-Saud.

1915 - Abdul Aziz AI-Saud faz um acordo com o Governo britânico, passando a receber
cinco mil libras mensais para combater os Turcos.

1926 - Nasce o pai de Sultana.


1932 - Unificação dos dois reinos: Hejaz e Nayd. Sob a designação de Arábia Saudita,
torna-se o décimo segundo maior país do mundo.

1933 - Nasce Fadila, mãe de Sultana.

Maio de 1933 - A América ganha concessões (em detrimento dos Ingleses) para
explorar o petróleo na Arábia Saudita.

1934 - A Arábia Saudita entra em guerra com o Iémen; a paz é assinada um mês
depois.

15 de Maio de 1934 - Em retaliação pela guerra com o lémen, o rei Abdul Aziz é
atacado por três iemenitas, armados de punhais, numa mesquita de Meca. Saud, o seu
filho mais velho, atira-se para a frente do pai e é ferido em vez deste.

20 de Março de 1938 - É descoberto petróleo em Damman, na Arábia Saudita.

1939 - A guerra na Europa incrementou a exploração petrolífera.

1944 - A extração de petróleo no reino sobe a oito mil barris por ano.

14 de Fevereiro de 1945 - O presidente Roosevelt encontra-se com o rei Abdul Aziz a


bordo do USS Quincy.

17 de Fevereiro de 1945 - Winston Churchill, primeiro-ministro da Grã-Bretanha,


encontra-se com o rei Abdul Aziz a bordo do USS Quincy.

1946 - A exploração petrolífera expande-se até aos sessenta mil barris por ano.

Dezembro de 1946 - Os pais de Sultana casam em Riade, Arábia Saudita.

14 de Maio de 1948 - É criado o Estado de Israel.

14 de Maio de 1948 - Começa a primeira guerra israelo-árabe.

1948 - Nasce a Rádio Meca, a primeira estação de rádio no reino, apesar da feroz
oposição da Ulemá (polícia religiosa).

1952 - O rei Abdul Aziz proíbe a importação de bebidas alcoólicas para os infiéis.

Novembro de 1953 - O rei Abdul Aziz, avô de Sultana, morre com setenta e sete anos.

Novembro de 1953 - O filho mais velho do falecido rei, Saud, de cinqüenta e um anos,
sobe ao trono. Faiçal, seu meio-irmão, torna-se príncipe herdeiro.

1956 - Sultana nasce na família de AI-Saud, sendo a décima filha de seus pais.
Março de 1958 - Com o reino a atravessar grave crise financeira, o príncipe herdeiro
Faiçal assume o controlo administrativo do Governo.

Dezembro de 1960 - O rei Saud afasta o irmão dos assuntos administrativos e assume
o controlo do Governo.

1962 - A escravatura é abolida no reino da Arábia Saudita. A maioria dos escravos


continua a viver com as famílias de que eram propriedade.

1963 - Abre a primeira escola feminina; os fanáticos religiosos desencadeiam um


motim.

3 de Novembro de 1964 - O rei Saud abdica e abandona o reino, partindo para Beirute.
Faiçal é eleito rei e Khaled, seu meio-irmão, príncipe herdeiro.

1965 - Apesar dos protestos, a primeira estação de televisão é inaugurada em Riade.

Setembro de 1965 - O príncipe Khaled ibn Musaid, sobrinho do rei Faiçal, é abatido
enquanto lidera uma manifestação armada contra a abertura da estação televisiva.

Junho de 1967 - Tem início a Guerra dos Seis Dias entre Israel e os seus vizinhos
árabes. A Arábia Saudita envia forças.

Fevereiro de 1969 - O ex-rei deposto, Saud ibn Abdul Aziz, morre em Atenas, Grécia,
depois de gastar mais de quinze milhões de dólares em cada ano do seu exílio.

6 de Outubro de 1973 - Em Outubro de 1973, novo conflito entre Israel e os árabes.


A Arábia Saudita envia tropas.

20 de Outubro de 1973 - Furioso com o auxilio militar prestado pela América a Israel, o
rei Faiçal anuncia uma guerra santa e um embargo petrolífero contra aquele país.

25 de Março de 1975 - O rei Faiçal é assassinado pelo sobrinho, o príncipe Faiçal ibn
Musaid, irmão do príncipe que foi abatido a tiro no decorrer de um motim em 1965.

25 de Março de 1975 - O príncipe herdeiro Khaled é nomeado rei. Falid, seu


meio-irmão, passa a ser o novo príncipe herdeiro.

1977 - O rei Khaled emite um decreto governamental em que proíbe as mulheres de se


deslocarem ao estrangeiro sem serem acompanhadas por um membro da família do
sexo masculino. Segue-se uma segunda ordem que as proíbe de irem para fora do
país estudar. Ambos os decretos resultam do incidente internacional da princesa
Misha'il, que foi publicamente executada depois de conhecer e apaixonar-se por outro
estudante saudita, na Universidade Americana no Líbano. O seu amado foi decepado.

Novembro de 1979 - A grande mesquita de Meca é atacada. Os manifestantes


queixam-se de que, no reino, as mulheres trabalham fora dos seus lares. Nos meses
seguintes, as liberdades das mulheres são restringidas, reagindo assim o Governo ao
receio do crescente descontentamento fundamentalista.

Junho de 1982 - O rei Khaled morre com um ataque cardíaco. Falid, seu meio-irmão,
ocupa o seu lugar; Abdullah, seu meio-irmão, é nomeado príncipe herdeiro.

5 de Agosto de 1990 - O Kuwait é invadido pelo Iraque. As Forças Aliadas Ocidentais


reúnem-se aos exércitos árabes na Arábia Saudita para rechaçar o exército de
Saddam.

1991 - Os mutawas reagem com medo e hostilidade à presença de mulheres-soldados.


O aumento da pressão obriga o Governo saudita a aumentar as restrições sobre a
população feminina de todas as nacionalidades, enquanto as facções religiosas
retomam uma interpretação rigorosa do Alcorão.

FIM

TRADUÇÃO de MARIA LUISA SANTOS

TITULO ORIGINAL: PRINCESS

1992, Jean P. Sasson

DIRECÇÃO GRáFICA DA COLECÇÃO JOÃO MACHADO


V edição: Abril de 1995
21 edição: Dezembro de 1995

Este livro foi informatizado por Américo Azevedo.


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