Rejeitada Grávida pelo Milionário_Edvânia Voitzszn

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Copyright © 2025 Edvânia Voitzszn

Capa: Giovana Martins


Projeto Editorial: LIW
Autora: Edvânia Voitzszn
Redes Sociais: @evoitzszn_autora
Esta é uma obra de ficção.
Qualquer semelhança com a realidade com pessoas vivas
ou
mortas ou eventos reais é mera coincidência.
Todos os direitos reservados.
É proibido o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer
parte
dessa obra através de quaisquer meios sem o
consentimento da autora.
A violação autoral é crime, previsto na lei nº 9.610/98 com
aplicação legal pelo artigo 184 do Código Penal.
NÃO RECOMENDADO PARA MENORES DE 18 ANOS –
AS CENAS
NARRADAS PODEM CONTER CONTEÚDO SEXUAL.
SUMÁRIO
SINOPSE
NOTA DA AUTORA
UM
DOIS
TRÊS
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
OITO
NOVE
DEZ
ONZE
DOZE
TREZE
QUATORZE
QUINZE
DEZESSEIS
DEZESSETE
DEZOITO
DEZENOVE
VINTE
VINTE E UM
VINTE E DOIS
VINTE E TRÊS
VINTE E QUATRO
VINTE E CINCO
VINTE E SEIS
VINTE E SETE
VINTE E OITO
VINTE E NOVE
TRINTA
TRINTA E UM
TRINTA E DOIS
TRINTA E TRÊS
TRINTA E QUATRO
TRINTA E CINCO
TRINTA E SEIS
TRINTA E SETE
TRINTA E OITO
TRINTA E NOVE
QUARENTA
QUARENTA E UM
QUARENTA E DOIS
QUARENTA E TRÊS
QUARENTA E QUATRO
QUARENTA E CINCO
QUARENTA E SEIS
EPÍLOGO
SINOPSE
Eles se amaram desde o primeiro momento,
mas uma teia de mentiras, tramada por pessoas de
confiança, fez com que ele a rejeitasse grávida.

Gravidez inesperada + Reencontro + Second


chance + Criança fofa.

José Augusto Azevedo é um dos solteiros mais


cobiçados de São Paulo, um advogado de sucesso que há
anos não retorna à fazenda da família onde cresceu. Prestes
a embarcar para uma viagem ao exterior, ele decide visitar
sua mãe, uma mulher controladora e obcecada por seu
único filho.
Ele não esperava que algo pudesse mudar apenas
algumas semanas antes de sua partida, mas conhecer
Maria Clara, a jovem de cabelos ondulados e olhos
castanho-claros, mexeu profundamente com sua
cabeça e seu coração.

Maria Clara Martins perdeu a mãe há pouco tempo


e, ainda lidando com a dor da perda, ela foi acolhida por sua
madrinha em uma pequena casa na Fazenda Azevedo.
Ela se apaixonou pela fazenda assim que chegou,
sem imaginar o quanto aquele lugar mudaria sua vida:
apresentando a ela seu primeiro e verdadeiro amor.
Os sentimentos que envolveram Maria Clara e José
Augusto foram intensos e impossíveis de resistir. Ele estava
disposto a tudo para tê-la em sua vida, até acreditar que
havia sido enganado por ela e rejeitá-la.
Seis anos depois, eles se reencontrarão, e
segredos guardados ao longo do tempo virão à tona.

Ele fará de tudo para ter novamente a única


mulher que amou.
Poderá um coração ferido se curar e dar uma
nova chance ao amor?
EPÍGRAFE
“O amor é feito de paixões
E quando perde a razão
Não sabe quem vai machucar
Quem ama nunca sente medo
De contar o seu segredo
Sinônimo de amor é amar”.

Canção de Chitãozinho & Xororó e Zé Ramalho.


NOTA DA AUTORA
Algumas cidades retratadas neste livro são fictícias,
mas inspiradas em cidades reais.
Optei por utilizar "pra" e “pro” em algumas
passagens, buscando uma linguagem mais natural e fluida
em momentos específicos da narrativa. Essa escolha reflete
a cadência e a proximidade que quis transmitir, mantendo o
tom leve e envolvente da história.
UM
MARIA CLARA
O ônibus empoeirado corria pela estrada de chão,
passando por vários buracos. Não sabia se o motorista, um
senhor usando um boné azul escuro, tentava escapar deles
ou apenas os ignorava. Eu me agarrava à lateral do banco,
tentando diminuir os pulos que meu corpo experimentava
cada vez que passávamos por uma nova depressão no
caminho irregular.
— Você se acostuma — minha madrinha disse,
sentada no banco ao meu lado. — O sacolejo faz parte.
Depois de um tempo, mal percebe.
— Eu acho difícil não perceber que meu corpo está
quase sendo arremessado ao teto — falei em tom de
diversão.
Apesar da tristeza que eu ainda carregava, aquela
mulher ao meu lado estava tentando me ajudar desde que
minha mãe tinha falecido.
Há duas semanas, minha vida mudou em um piscar
de olhos. Em um momento, minha mãe estava na cozinha,
juntando os pratos do jantar e, no outro, caída no chão, com
a mão no peito. Acho que ninguém está preparado para
perder alguém que ama e menos ainda quando essa pessoa
parte tão cedo.
Infarto. Eu tive dificuldade para acreditar, minha mãe
não era idosa e nunca tínhamos suspeitado de problemas
cardíacos antes, no entanto, o médico garantiu que não
havia dúvidas.
Antes de chegar ao hospital, eu liguei para minha
madrinha, irmã do meu pai, falecido anos atrás em um
trágico acidente de carro. Ela era tudo o que tinha me
restado de família naquele mundo. Não precisei pedir duas
vezes, ela saiu às pressas da cidade de Santa Luzia, no
interior do estado de São Paulo, e em poucas horas chegou
à capital e me ajudou. Se ela não estivesse ao meu lado,
teria sido tudo mais difícil.
A paisagem não mudou conforme avançamos. Atrás
de nós, uma nuvem de poeira, e à frente, uma estrada que
parecia infinita. As folhas das árvores que seguiam a
margem estavam escurecidas pela camada grossa de pó,
escondendo seus tons de verde. Em alguns momentos,
passávamos por pastos com animais e algumas casas ao
longe. Apenas o veículo que nos transportava perturbava o
silêncio daquele lugar.
Olhei ao redor, o restante dos bancos estava vazio. O
último passageiro tinha descido na parada anterior. Apertei
a minha mala com mais força entre as pernas. Minha mãe
nunca tinha me trazido à Fazenda Azevedo antes. Na
verdade, nosso contato com a minha madrinha era apenas
por telefone. Eu lembrava de ter recebido apenas uma visita
da madrinha enquanto morávamos na capital, ela dizia que
não gostava da cidade, preferia a calmaria do campo.
Aquele era um mundo desconhecido para mim, que
tinha nascido e crescido em região urbana, mas talvez fosse
exatamente daquilo de que eu precisasse, do desconhecido,
de um recomeço.
Meus pais tinham partido e doía pensar na falta que
eles faziam. Ainda parecia irreal, ainda parecia que minha
mãe estava apenas... longe. Senti meus olhos arderem e as
lágrimas acumuladas nublarem minha visão, transformando
tudo em um borrão.
A mão levemente enrugada e marcada por pintas
marrons da madrinha se sobrepôs à minha. Não consegui
mexer minha cabeça enquanto lágrimas quentes desciam
por meu rosto.
— Está tudo bem, querida — ela disse baixinho
enquanto a dor na minha garganta crescia. — Eu estou aqui.
Eu poderia ter ficado na capital, tinha completado
dezenove anos, contudo, receber o apoio da minha
madrinha e seu convite para viver com ela por um tempo
fez tudo ser um pouco menos pior. Foi bom não me sentir
tão sozinha.
— Estamos chegando — ela avisou.
Afastei as lágrimas com as mãos e respirei fundo. O
ônibus diminuiu a velocidade e parou ao lado de uma
estrutura de madeira com um telhado simples. Dona Josefa
se despediu do motorista e descemos. Não havia qualquer
sinal de calçada ou muros de cimento à nossa volta, apenas
o chão de terra avermelhada.
Firmei minha mão, que trepidava ao arrastar a mala
que lutava para prosseguir entre as pedras de diferentes
tamanhos do caminho. Olhando para baixo, notei meu tênis
branco sujo pela poeira fina.
Menos de duzentos metros do ponto de ônibus, nos
deparamos com a entrada da Fazenda Azevedo, o lugar
onde minha madrinha trabalhava e morava, e dali em
diante, eu também. Não precisamos nos aproximar da
guarita para identificação, a madrinha tinha autorização
para entrar e me trazer junto com ela.
Ao atravessarmos o portão de ferro, caminhamos
pela estrada sem pavimentação, cercada por coqueiros que
pareciam terminar em frente à casa principal, contudo, não
iríamos até ela. Uma trilha lateral, no meio do caminho, nos
levaria até a casinha onde eu passaria a viver pelos
próximos anos, se nada mudasse de repente novamente.
Não havia muros ao redor da pequena casa branca,
apenas uma cerca de madeira baixa, pintada da mesma cor
da casa. Passei pelo pequeno portão depois da madrinha e
esperei que ela abrisse a porta de madeira.
Na frente da casa, diversas flores campestres se
estendiam como tapetes naturais, trazendo um colorido
selvagem à paisagem. Era adorável.
Bati as rodas da mala no pequeno degrau de cimento
do lado de fora da casa, retirando o excesso de sujeira, e
então tirei o par de tênis sujo dos meus pés e deixei ambos
ao lado da porta de entrada.
O piso não era revestido, era liso e vermelho,
contudo, estava impecável, cheirando a cera e brilhando até
onde meus olhos podiam ver.
A cozinha tinha uma pequena mesa retangular de
madeira no centro, com quatro cadeiras. Também havia
uma pia de inox, protegida por um tecido floral amarelo na
parte debaixo, e um armário grande na parede ao lado,
além de um fogão e uma geladeira branca.
— Deste lado fica o meu quarto. — Josefa apontou
para a direita. — Aqui é o banheiro. — Abriu uma porta que
separava seu quarto da cozinha. — E lá do outro lado, será
o seu quarto.
Andei até a direção que a madrinha indicou. Havia
uma cama de casal de madeira, coberta por um lençol
amarelo estampado, junto a travesseiros com fronhas da
mesma estampa. Ao lado da porta, uma cômoda escura.
Passei a mão na superfície plana, sentindo a textura do
material. Os móveis não eram novos, mas estavam em bom
estado.
— Você já tinha esse quarto pronto, madrinha? —
perguntei à senhora baixinha de cabelos grisalhos que
acompanhava cada gesto meu com seu olhar.
— Ele estava vazio, mas antes de sair, pedi ao
Joaquim para ajeitar tudo para você.
— Quem?
— Um peão aqui da fazenda. Está aqui há muitos
anos, veio para cá moleque ainda. Ele sempre me socorre
quando eu preciso de alguma coisa. É um bom rapaz, às
vezes passa aqui para tomar café comigo no final de
semana.
— Obrigada por tudo isso.
Ela andou até mim e me deu um abraço apertado,
permitindo-me soltar toda a tensão que eu vinha
carregando em meus ombros.
— Eu sei que não é o ideal, querida. O ideal é que
eles não tivessem partido, mas aqui será sua casa, pelo
tempo que quiser.
Ao me afastar de seus braços, agradeci novamente.
— Está com fome? — ela perguntou.
— Um pouco.
— Vou preparar um café para nós — disse, antes de
sair e me deixar sozinha no quarto.
Ao lado da cabeceira da minha cama havia uma
janela quadrada. Puxei as cortinas brancas e as abri. O
vento fresco que adentrou o ambiente fez o tecido ao meu
lado se agitar, afastei-os mais um pouco.
Uma imensidão verde, do chão às copas das árvores,
nos cercava. O silêncio era interrompido somente pelos
cantos dos pássaros. Por alguns minutos, debrucei-me ali,
fechando os olhos, tentando esvaziar a mente e aliviar o
peso que ainda se prendia ao meu coração.
— O café está pronto — avisou-me na porta. Virei-me
para minha madrinha.
— Essa porta também pode ser aberta? — perguntei.
Na parede contrária, havia uma porta dupla de madeira.
— Sim. A chave está no trinco. Deixa o quarto ainda
mais iluminado e menos quente nos dias de mais calor.
— Eu adorei o quarto, madrinha. A casa toda, na
verdade — disse sinceramente. A casa era pequena e
simples, mas aconchegante e bem cuidada.
— Vamos ficar bem aqui — falou, voltando à cozinha,
onde colocou um prato de bolinhos fritos sobre a mesa,
seguidos do café fresquinho que cheirava pela casa toda.
Puxei uma das cadeiras e sentei-me de frente para
ela. Após servir o café preto com açúcar em um copo
transparente, levei-o à boca, mas afastei-o logo em seguida,
estava muito quente.
Dona Josefa riu, fazendo-me rir também.
— O café está quente, tome devagar — aconselhou
ela.
— Eu deveria ter imaginado, está saindo vapor do
bule mesmo com esse calor. — Ri.
— Café tem que ser assim, frio não tem graça.
— Já tomou com sorvete? — perguntei, levando um
bolinho à boca.
— Com sorvete? Que loucura é essa?
— É uma delícia, madrinha. Tem que provar.
— Sei disso não.
Dei risada da estranheza em sua face ao pensar no
café com sorvete.
— Isso está uma delícia — falei, mostrando os
bolinhos. — Não sei nem se vou jantar depois de um café
desses.
— Imagina, dormir sem jantar. Vai sim, vou fazer
alguma coisa pra nós depois que eu voltar do casarão.
— A senhora vai trabalhar ainda hoje?
— Não, vou só avisar à dona Cassandra que eu voltei
e amanhã recomeço o serviço.
— Quer minha ajuda? Aquela casa é enorme para a
madrinha cuidar sozinha.
— Não precisa. A dona Cassandra não gosta de gente
entrando na casa dela. Além disso, como é só ela que mora
lá, não dá tanto trabalho manter.
— Ela mora sozinha naquele casarão?
— Sim. O marido morreu quando o filho deles era
menino ainda.
— E o filho?
— Foi estudar na capital e não voltou mais. O que é
estranho porque ele amava essa fazenda tanto quanto o
pai.
— Talvez ele tenha descoberto que amava mais a
cidade.
— Pode ser.
Terminei meu café e me levantei, em seguida, levei
meu copo até a pia. Limpei a mesa após.
— Eu vou lá ver a patroa e volto daqui a pouco. Fique
à vontade para tomar um banho e descansar um pouco, a
viagem foi longa.
— Me chama para ajudar com o jantar?
— Outro dia, hoje, eu faço e você descansa.
— Madrinha, eu não quero ser um fardo para a
senhora — falei, aproximando-me dela que estava em pé ao
lado da porta de entrada. Seus dedos finos tocaram os dois
lados do meu rosto com cuidado.
— Apesar das circunstâncias, estou feliz de ter você
aqui. Me lembra tanto seu pai. — Ela suspirou de saudade.
— Escute bem, você nunca vai ser um fardo, Maria Clara.
Suas mãos deixaram meu rosto e limparam seus
olhos molhados.
— Voltarei logo — disse, caminhando em direção ao
pequeno portão.
Em mim, havia aquela parte que estava triste por
todas as minhas perdas, mas também havia outra, feliz por
ainda ter uma família e não estar completamente sozinha.
Eu não sabia o que me aguardava naquele recomeço,
contudo, me sentia pronta para vivê-lo.
DOIS
MARIA CLARA
Os raios de sol atravessavam as frestas da cortina e
aqueciam minha pele. Mesmo que o despertador do meu
celular ainda não tivesse sido acionado, eu sabia que era
hora de levantar, sentia-me pronta e disposta para aquilo.
Ao abrir os olhos, lembrei-me de que estava em um
lugar diferente, bem longe da minha antiga casa, no
entanto, sentia que poderia me adaptar à nova vida. Afastei
o lençol que me cobria e calcei os chinelos ao lado da cama.
— Bom dia, madrinha — cumprimentei-a ao passar
pela cozinha, indo em direção ao banheiro. Ouvi sua
resposta enquanto lavava o rosto sobre a pequena pia
branca. Sequei a pele com a toalha de rosto pendurada ao
lado e voltei à cozinha.
— Eu ia deixar o café na garrafa para você.
— De onde saiu esse pão caseiro enorme? —
perguntei ao vê-la cortar duas fatias brancas e macias e
colocá-las sobre um prato ao meu lado.
— Eu fiz ontem à noite, depois que você foi dormir.
— Madrinha, não precisava. Tinha que ter ido
descansar como havia prometido.
— Estou acostumada a trabalhar bastante, o que eu
não sei fazer é ficar parada.
Ela colocou a manteiga ao meu lado. Servi-me de
uma fatia do pão e passei a pasta amarela sobre a massa.
Derreteu na boca na primeira mordida.
— Isso aqui está incrível — falei após engolir o
primeiro bocado, seguido de um gole de café preto.
— Prove com esse doce de mamão. — Colocou um
vidro à minha frente com uma geleia clara. — Eu fiz um
pouco antes de... você me ligar.
Tirei uma colher do doce e passei na outra fatia de
pão, levando à boca logo em seguida.
— É meu doce favorito a partir de agora — falei após
engolir. — Estou prevendo que vou engordar morando com
a senhora.
— E continuará linda — argumentou, enquanto eu
devorava mais uma fatia de pão com o café quentinho.
— A senhora vem almoçar em casa? O que eu posso
preparar para o almoço?
— Venho sim. Todos os dias. Não faço nenhuma
refeição no casarão.
— E que horas a senhora vem?
— Lá pelas treze horas, depois que a dona Cassandra
terminar o almoço dela.
— A senhora escolheu almoçar sempre na sua casa?
— Não. A dona Cassandra nunca permitiu que
nenhum empregado comesse no casarão. É cada um no seu
quadrado.
— E o que a senhora prefere que eu faça para o
almoço?
— Qualquer prato que fizer vai estar ótimo. Pode
pegar o que quiser dos armários ou da geladeira.
Ela tomou um gole de café preto em pé, ao lado da
mesa.
— Agora eu vou indo porque, quando a patroa
acorda, a mesa do café tem que estar pronta.
— Até depois, madrinha.
A senhora, usando um vestido azul que passava dos
joelhos, saiu pela trilha, descendo em direção ao casarão.
Terminei meu café da manhã ouvindo o som dos pássaros
acomodados nas árvores ao redor.
Depois de limpar a mesa e lavar a louça, abri todas
as janelas da casa. O vento fresco aplacava um pouco o
calor no interior da residência. No meu quarto, comecei a
guardar as roupas que ainda estavam na minha mala,
depois de esvaziá-la, fechei-a e a coloquei ao lado da
cômoda.
Da minha mochila, tirei meu notebook, comprado
pela minha mãe quando comecei a cursar pedagogia.
Lembrava-me do dia em que tinha me entregado o
presente, orgulhosa pela minha matrícula. Mesmo tendo
que pagá-lo em dois anos, ela se esforçou para que eu
pudesse ter o computador para estudar, já que meus
serviços pela vizinhança não me permitiam uma compra
como aquela. Senti a saudade de minha mãe apertar mais
uma vez em meu peito.
Respirei fundo, tentando me concentrar na tarefa que
fazia.
Organizar meu material de estudo também me
lembrava que precisava entrar em contato com a instituição
de ensino, atualizar meu endereço e verificar quando seria a
próxima prova no polo. Usei a internet do meu celular, logo
precisaria contratar um plano melhor para dar conta das
horas de videoaulas que eu assistiria.
Sentada na minha cama, verifiquei meu calendário,
fiz algumas anotações na agenda em meu colo. No relógio,
ainda faltavam algumas horas para o almoço. Não sabia se
o tempo ali passava mais devagar ou era o milagre de
acordar cedo e disposta.
Alcancei a mochila novamente e peguei meu caderno
e um dos livros de estudo. Selecionei um dos vídeos e
comecei a fazer anotações da aula.
Surpreendi-me ao perceber o quanto tinha avançado
sem me cansar ou me distrair. Busquei o celular ao lado,
não havia nenhuma notificação nova. Não que eu esperasse
que Bruno, meu ex-namorado, entrasse em contato. Ele
tinha terminado comigo exatamente por eu ter escolhido ir
embora, como se ficar em casa sozinha e desempregada
fosse uma opção.
Era estranho, apesar de ter ficado triste com o fim do
namoro, não me sentia tão afetada quanto imaginei que
ficaria ao ouvir Bruno dizer que devíamos terminar. Talvez
eu não gostasse tanto dele quanto imaginava.
Ouvi palmas fortes vindas de fora da casa, afastei o
material sobre meu colo e calcei meus chinelos ao sair da
cama. Andei devagar até a porta, não sabendo o que
esperar quando a alcançasse, não estava aguardando
ninguém além da minha madrinha.
Em frente ao pequeno portão de madeira estava um
homem de chapéu e botinas na cor marrom, vestindo uma
calça jeans gasta e uma camisa xadrez azul. Quando
levantou seu rosto, vi a face bronzeada pelo sol, ele devia
estar perto dos trinta anos. Talvez um metro e setenta de
altura ou um pouco mais, corpo largo e forte. Ele era bonito,
diferente dos rapazes que eu estava acostumada a
conhecer.
— Eu passei no casarão, pedi pra dona Josefa pra eu
vir aqui trazer umas coisas para vocês, fui até a cidade
ontem e fiz uma comprinha para ela. — Ele levantou uma
sacola cheia de mantimentos.
Atravessei a porta e caminhei até o portão onde ele
estava.
— Eu sou a Maria Clara — Estiquei a mão para
cumprimentá-lo.
— Joaquim — ele disse, aceitando o cumprimento.
— Você pode colocar em cima da mesa, por favor? —
perguntei, dando passagem.
— Claro.
Segui-o pelo caminho de volta até o interior da casa.
Joaquim deixou as compras sobre a mesa e deu um passo
para trás.
— Você quer um copo de água ou um café? —
ofereci.
— Um copo de água vai bem. Está um calor infernal
hoje.
Abri o armário ao lado e peguei um copo, servindo
água da garrafa de plástico mantida dentro da geladeira.
Ele tomou o líquido todo de uma vez.
— Então, você é a afilhada da Zefa.
— Sim. Apesar de ela não ter nos visitado muito nos
últimos anos e nem nós nunca termos vindo aqui, a
madrinha sempre se preocupou conosco.
— E você vai ficar muito tempo por aqui?
— Eu não sei ainda. Muita coisa mudou
recentemente, vamos ver como eu me adapto por aqui.
— Lamento por sua perda. A Zefa me contou antes
de sair correndo rumo à capital.
— Por falar nisso, ela me disse que foi você que
preparou o meu quarto. Obrigada por isso.
— Não foi nada, aqui a gente sempre se ajuda. Uma
das famílias da vila estava doando os móveis, então eu
aproveitei a oportunidade.
— Você quer se sentar? — Apontei para a cadeira à
sua frente. — Quero dizer, se puder ficar e me contar um
pouco sobre a fazenda e a cidade. Eu ainda não tive tempo
de sair e conhecer nada. A não ser que eu esteja
atrapalhando seu trabalho, não é minha intenção...
— Não se preocupe, moça. Não está atrapalhando
nada não. Estou no meu horário de almoço.
— Meu Deus! — Procurei o relógio na parede. — Eu
preciso fazer o almoço, a madrinha vem daqui a pouco.
Você não se importa de conversarmos enquanto eu preparo
a comida?
— De jeito nenhum. Fique à vontade.
— Você disse que fez a compra na cidade, tudo isso
vem de lá? Mesmo as frutas e verduras? — indaguei,
guardando os mantimentos da sacola dentro do armário.
— Aqui na fazenda tem uma horta enorme, tem mais
pés de frutas do que a gente pode contar, tem mais terra do
que a gente pode ver, mas nada é nosso. Tudo da dona
Cassandra e não podemos pegar uma laranja do chão sem
pedir.
— Sério? Mesmo que estejam estragando?
— Nada pode ser tocado sem pedir.
— Caramba.
Coloquei uma chaleira de água sobre uma das bocas
acesas do fogão.
— Lá na vila, o pessoal plantou uns pés de frutas,
mas o espaço é pequeno, não dá muito. A horta é boa, as
verduras que eu trouxe são de lá.
— A vila também é da dona Cassandra?
— Essa aqui dentro das terras dela, sim. Só os peões
moram lá com as famílias. E os que são mais antigos. O
resto mora na cidade mesmo, o ônibus traz eles de manhã e
eles voltam para casa quase de noite.
— Você mora na vila da fazenda?
— Sim. Eu morava com meu pai até ele falecer,
agora moro só eu.
— Lamento por sua perda também.
Ele assentiu com a cabeça em um movimento quase
imperceptível.
Voltei a prestar atenção no almoço, colocando o
feijão que estava de molho para cozinhar e o arroz em
seguida.
— Como é morar aqui? — perguntei, voltando-me
para ele.
— A gente trabalha muito durante o dia, só para no
almoço mesmo, mas de noite, o sossego deixa a gente
descansar bem. Em alguns finais de semana, a gente se
reúne na vila e faz um churrasco com as famílias.
— A dona Cassandra participa?
Ele soltou uma gargalhada espontânea.
— A patroa quer distância de nós. Só aguenta o povo
porque precisa dos nossos braços. Quem fez a vila e
apreciava nosso trabalho era o marido dela. Ele era um
homem bom, trabalhador e justo. Ele morreu em um...
acidente.
— Eu não conheço essa mulher, mas já não gosto
dela. Não sei, posso estar sendo precipitada.
— Não está não. É melhor ficar bem distante daquela
lá.
Continuei preparando o almoço enquanto Joaquim
contava sobre o pessoal da vila, da cidade e histórias
divertidas que tinham acontecido com ele enquanto crescia
na fazenda. Ele gostava de falar, eu queria ouvir, queria
saber mais daquele lugar que era meu novo lar.
— O cheiro está pra lá do portãozinho — minha
madrinha falou ao entrar em casa.
— Joaquim, obrigado por ter trazido minha compra.
Vou ali pegar o dinheiro para te pagar.
Josefa saiu em direção ao quarto e voltou com o
dinheiro em mãos.
— Não precisa, dona Zefa — ele tentou argumentar.
— Se não aceitar, não peço mais. É minha compra,
tenho que pagar, já me ajuda muito trazendo para mim.
— Certo — ele aceitou as notas. — Sempre que
precisar, é só pedir.
— Fica para almoçar conosco? — ela convidou.
— Outro dia, dona Zefa. Deu a minha hora de voltar.
— Ele se levantou e colocou a cadeira de volta no lugar.
— Mas você ao menos almoçou? Eu deveria ter me
apressado mais — falei.
— Não se preocupe, moça. Eu almoço cedo. Já tinha
batido um pratão [1]quando vim trazer as compras da dona
Zefa.
— Obrigada mais uma vez — eu disse antes de vê-lo
sair da casa.
— É um bom homem — a madrinha comentou ao
pegar um prato de vidro marrom e começar a servir-se da
comida no fogão. — Ele não costuma fazer amizade fácil
com desconhecidos e, para ter ficado tanto tempo aqui,
deve ter gostado de você.
— Ele parece um cara legal, acho que poderemos ser
bons amigos — falei, começando a me servir também.
TRÊS
JOSÉ AUGUSTO
O relógio marcava quinze horas e eu ainda não tinha
almoçado. Minha cabeça estava ocupada com os
documentos à minha frente, de uma das empresas que o
escritório de advocacia onde eu trabalhava defendia. Era
uma disputa judicial que tinha sido colocada em minhas
mãos pelo meu chefe em pessoa.
Eu não adorava meu trabalho, contudo, não o fazer
de forma excelente estava fora de questão, no final das
contas, eu tinha aceitado o Direito e, com merecimento, me
destacado na área.
A cidade de São Paulo se mostrava ao meu lado, e eu
observava os imensos prédios que se estendiam até onde
minha visão alcançava. Dentro da minha sala, o ar-
condicionado mantinha a temperatura agradável, longe do
calor quase sufocante que andava fazendo por aqueles dias.
Passei os olhos pela parede do outro lado, preenchida
pela estante de madeira escura, abrigando uma centena de
livros jurídicos que eu tinha comprado e lido durante a
faculdade e nos anos seguintes.
Não me lembrava de um único ano sem estudar
desde que tinha começado a frequentar a escola. O Direito
veio por insistência da minha mãe e a Administração por
escolha minha. Não me arrependia de tantos anos passados
imerso em aulas que pareciam não ter fim, eu gostava
daquilo, mas reconhecia que naquele momento, com vinte e
nove anos, precisava de um tempo e o convite dos meus
amigos para uma viagem por Londres tinha chegado na
hora certa.
Minha mesa, apesar de grande, estava com sua
superfície completamente ocupada. Ali estava meu
computador, vários documentos e alguns objetos pessoais,
dentre eles, uma foto minha quando criança ao lado do meu
pai, na fazenda.
Eu sentia falta dele, do lugar onde havia crescido e
que ainda amava, mesmo tendo passado tanto tempo
longe.
Direcionei meus olhos para os documentos mais uma
vez e tomei uma decisão importante: se encerrasse aquele
processo em um mês, voltaria à fazenda mais uma vez,
para passar alguns dias antes de embarcar para Londres. Eu
precisava daquilo.
A porta se abriu e um rosto conhecido apareceu na
fresta. Tamara entrou em minha sala sem fazer cerimônia, e
aquilo provavelmente não tinha a ver com o fato de seu pai
ser o dono do escritório onde eu trabalhava, e sim com o
nível de intimidade que tínhamos há anos devido à nossa
amizade e às vezes que compartilhamos a mesma cama.
— Você parece cansado — ela se aproximou devagar,
seus sapatos de salto não faziam barulho sobre o piso
vinílico e se tornou ainda menos perceptível ao alcançar a
tapeçaria que cobria metade do chão da sala. — Aposto que
ainda não almoçou.
— Ainda não — confirmei.
Tamara afastou os documentos do centro da mesa e
espalmou suas mãos no lugar, inclinando seu tronco para
frente. Seus seios ficaram à mostra pelo decote de sua
blusa. Seus lábios finos mostraram um sorriso carregado de
segundas intenções e, levando sua mão à frente, ela tentou
alcançar minha gravata, afastei-me.
— Você pode até tentar fugir de mim, mas não vai
conseguir. — Ela se ergueu novamente e arrumou sua
postura.
— Não estou fugindo — refutei. — Só não quero que
seu pai entre aqui e nos encontre em uma situação...
complicada.
— Ou o quê? Ele vai obrigar você a se casar comigo?
— Ela riu. — Não sou uma menina, José Augusto, tenho
vinte e oito anos.
— Não quero confundir as coisas, Tamara.
— E amigos? Podemos continuar sendo amigos?
— Como sempre — confirmei.
— Então, como sua amiga, vou te levar para almoçar.
Se é que isso é possível a essa hora. Vamos?
Ela jogou os cabelos claros para trás e me encarou,
esperando que eu me levantasse e a acompanhasse.
Suspirei cansado, deixei a caneta sobre os papéis e me
levantei, indo até ela.
Passamos em frente à recepção, onde avisei que
estava saindo para o almoço e voltaria em uma hora. A
secretária fez questão de mostrar que tinha notado quem
me acompanhava. Eu suspeitava que todos sabiam que
Tamara e eu já tínhamos nos envolvido, todavia, nenhum de
nós nunca se pronunciou sobre, até porque, nunca fomos
exclusivos. Todas as noites que passamos juntos foram
apenas por diversão, sem compromisso.
Descemos juntos até a garagem. Ela esperou que eu
abrisse a porta para que ela entrasse no banco ao lado do
motorista. Fechei a porta e dei a volta no veículo, ligando-o
e colocando-o em movimento em seguida.
— Vamos até o restaurante de sempre — avisou,
mexendo na tela do seu celular. — Eu avisei que
chegaríamos por volta das quinze e trinta e que deveriam
nos aguardar.
— Não precisava ter feito isso. Eu poderia ter comido
um lanche qualquer. As pessoas têm horário para encerrar o
expediente, não devem ficar esperando um cliente
qualquer.
— Eu não sou uma cliente qualquer. Eu gasto uma
fortuna naquele restaurante e sempre faço minhas festas
com eles. O mínimo que devem fazer é abrir algumas
exceções.
Eu não concordava, mas sabia que discutir com
Tamara era perda de tempo. Ela levaria aquele assunto por
horas até que eu me cansasse e aceitasse seu ponto de
vista, e eu já estava cansado e começando a ficar com dor
de cabeça.
Segui rumo ao restaurante que costumávamos
frequentar, não muito longe do prédio onde ficava o
escritório. Deixei o carro no estacionamento e logo
chegamos à entrada do estabelecimento. Passamos pela
porta de vidro e assim que um funcionário nos avistou,
acompanhou-nos até uma das mesas.
O local era sofisticado, mas eu raramente me
importava com aquilo. Todas as vezes que andei sobre
aquele piso de mármore polido tinha sido na companhia de
Tamara e por sua vontade, não minha.
— Só água para mim, por favor — pedi ao garçom
que estava prestes a colocar vinho em minha taça. Ele
assentiu e afastou a garrafa.
— Uma taça de vinho não vai te fazer mal algum —
protestou Tamara.
— Estou em horário de trabalho. Não é hora de
beber.
— Está com a filha do seu chefe, e meu pai faz tudo o
que eu peço. Se eu disser a ele que você precisa de uma
taça de vinho para relaxar mais e ser ainda mais eficiente,
ele vai te obrigar a começar a beber todos os dias — disse
com orgulho.
— Talvez você tenha razão.
— Tenho?
— Sobre relaxar. Não sobre o vinho — esclareci. —
Vou terminar esse trabalho e tirar uns dias de férias. Passar
um tempo na fazenda antes de ir para Londres.
— Você pode me levar com você! — falou
empolgada, colocando a taça ao lado. Mesmo com a luz
intimista das luminárias pendentes espalhadas pelo
ambiente, eu podia ver os traços de expectativa marcando
sua face branca. — Eu vou adorar conhecer sua mãe.
Depois que passamos a nos falar por telefone, fiquei ansiosa
para nos encontrarmos pessoalmente.
— Desde quando conversa com a minha mãe? —
Aquela informação me surpreendeu. Tomei um gole de água
enquanto Tamara se remexia na cadeira à minha frente,
parecendo estar levemente desconfortável.
— Teve uma vez que fui até o escritório falar com
você, mas estava em reunião. Antes de sair, ouvi a
recepcionista falando com sua mãe por telefone e pedi para
conversar com ela, e desde então passamos a nos
comunicar com certa frequência. Sua mãe é adorável.
Segurei uma gargalhada ao ouvir o seu elogio sobre
minha mãe. Eu a amava, é claro, era minha única família,
contudo sabia que minha mãe podia ser bem difícil e pouco
adorável.
— Não são muitas pessoas que pensam isso sobre
ela — eu disse.
— Cassandra é uma mulher incompreendida.
O garçom serviu nossos pratos, assim como a
reserva fora de horário, Tamara também havia feito o nosso
pedido antes mesmo de sairmos do meu trabalho.
Eu não sabia o quanto estava com fome até levar o
primeiro garfo de comida à boca. Estava mesmo precisando
daquilo.
— Então, sobre a fazenda, quando vamos? — ela
perguntou com seus olhos azuis me fitando.
— Eu ainda não decidi quando, mas não vou te levar,
Tamara. Eu não quero nem que minha mãe saiba que estou
indo.
— Por que não quer me levar? — Havia indignação no
tom de sua voz.
— Minha mãe vai entender tudo errado se eu
aparecer em casa, depois de tantos anos, na sua
companhia. Ela vai começar a planejar um casamento assim
que nos enxergar.
— E isso seria tão ruim?
— Tamara — falei devagar, chamando sua atenção.
— Nós somos amigos. Apenas amigos. Achei que isso
estivesse bem esclarecido.
— É claro. — Ela soltou o garfo devagar sobre o prato
de porcelana e trouxe os fios loiros do seu cabelo para
frente, enrolando o dedo em uma das mechas. — Eu estava
brincando com você.
Seu sorriso era largo, entretanto, não mostrava
sinceridade.
— E como vai explicar nossa viagem a Londres para
sua mãe? — Ela tomou outro gole de vinho.
— É uma viagem entre amigos, e não seremos
apenas nós dois.
— Certo. — Devolveu a taça à mesa.
Terminamos a refeição em silêncio. Eu não queria
acreditar que Tamara tinha alguma esperança quanto a nós
dois, sempre falamos que as noites que passamos juntos
não passavam de um momento de prazer. Nunca foi sobre
um relacionamento, longe disso.
Por outro lado, não queria machucá-la, precisaria ser
mais cuidadoso quanto à nossa proximidade e não dar
falsas esperanças à Tamara.
Voltei ao escritório e me debrucei sobre o trabalho,
mais tarde, falaria com o senhor Salomão, meu chefe, sobre
os dias de férias vencidas que eu tinha e precisaria tirar em
breve.
Eu não sabia se estava preparado para voltar para
minha casa depois de tanto tempo, mas precisava fazê-lo.
Sentia que era hora de retornar.
QUATRO
MARIA CLARA
UM MÊS DEPOIS
Fechei o notebook e esfreguei os olhos, tinha
estudado por mais de três horas consecutivas. Afastei o
caderno para o lado na cama e saltei do colchão, indo até a
cozinha para desligar a panela de pressão que cozinhava o
feijão para o nosso almoço.
— Clara, eu vou precisar da sua ajuda — minha
madrinha falou ao passar pela porta da pequena casa.
— Que susto, madrinha! — Levei a mão ao peito,
virando-me em sua direção. A mulher tinha surgido do nada,
ainda era cedo para ela vir almoçar. Ela deu uma risada
breve, mas logo voltou a ficar séria.
— Aconteceu um acidente lá na cozinha do casarão.
Um cano estourou e fez uma lambança[2]. A patroa está doida
com a zona na casa. Eu falei para ela que não dou conta de
arrumar tudo e ainda fazer o almoço, e então ela pediu para
vir te chamar para me ajudar.
— Tudo bem. Eu posso ir até lá.
Verifiquei as chamas do fogão para não deixar nada
ligado e, após fechar a casa, descemos a trilha que levava
ao casarão. Apesar de estar morando na Fazenda Azevedo
há um mês, era a primeira vez que eu ia até aquela casa.
O espaço à nossa frente começou a se abrir, um
gramado verde se estendia até uma escadaria de pedras
que dava acesso à varanda na frente do imóvel, que apesar
de aparentar ser antigo, estava em bom estado de
preservação.
Ao lado, uma mesa baixa de madeira e algumas
cadeiras com almofadas em branco e azul pareciam dar
boas-vindas, não a nós, é claro. As janelas em azul
contrastavam com as paredes brancas. O casarão era
realmente grande, nossa casa inteira cabia naquela sala à
nossa frente.
Segui a madrinha, atravessando o ambiente
preenchido por móveis rústicos, com belíssimos entalhes na
madeira. No chão estava parte da tapeçaria, encharcada
pela água que vinha da cozinha. Não pude ver além da sala,
mas pelo que enxerguei ali, a casa era linda por dentro.
Porém, naquele momento, a situação era um pouco caótica
por causa do vazamento recente. A cozinha estava com
tanta água no piso que ultrapassava os limites dos meus
chinelos, atingindo meus dedos.
Joaquim fazia um conserto um pouco acima da pia,
ele me viu chegar e sorriu para mim.
— Estava com calor, precisava de um banho —
brincou ao perceber que notei suas roupas molhadas. Dei
risada.
— Aqui está o rodo, alguns panos e um balde, o que
mais precisar de material é só pedir. Vá secando a sala que
eu vou cuidar da cozinha — orientou-me a madrinha.
— Tem um tapete enorme no meio da sala,
precisamos tirar ele primeiro.
— Bem lembrado. Você nem sabe o apego que a
dona Cassandra tem com aquilo lá, vamos tirar ele e depois
secamos o chão.
Voltamos à sala e eu olhei melhor o ambiente alto e
amplo. Havia uma pintura de uma mulher sobre uma lareira
de pedras no centro da parede, ao lado das janelas.
Suspeitava que fosse a tal Cassandra, senti um arrepio
percorrer por minha espinha ao encarar seus olhos no
retrato, havia uma sombra neles que me fazia estremecer.
— Vamos, Clara, depressa — minha madrinha
chamou, arrastando a mesa de centro pesada para o lado.
Peguei um canto e depois o outro, levantamos juntas,
a peça era enorme e, por estar molhada, ainda mais
pesada. Os bordados em cores escuras foram ocultados
quando dobramos ao meio, arrastando o tapete para a
cozinha e depois, pela porta dos fundos, até o quintal, onde
o estendemos no varal.
— Agora volte lá e seque tudo quanto antes, depois
me ajuda na cozinha.
— Sim, madrinha.
Na sala, comecei a puxar água com o rodo em
direção à varanda, porém, antes que eu chegasse à porta,
ouvi uma voz enjoada vindo das escadas. Levantei minha
cabeça e me deparei com a mulher do retrato, um pouco
mais velha, mas era ela.
— O que pensa que está fazendo? — ela falou como
se eu a tivesse insultado.
Cassandra era uma mulher alta, de corpo esguio e
cabelos claros presos em um coque apertado um pouco
acima da nuca. Seus olhos azuis eram intimidadores,
daqueles que nos faziam ter vontade de olhar para o lado
oposto. Apesar de viver na fazenda, ela usava roupas finas e
delicadas, nada perto do jeans e regata que eu vestia.
— Puxando a água para fora da sala? — falei em
dúvida.
— Não basta inundarem minha cozinha e sala e
agora você quer atingir minha varanda também.
Fiquei sem saber o que responder. Parecia a maneira
mais rápida de tirar a água, arrastando-a até a varanda e
deixando que escoasse pelo gramado. A terra iria absorver
tudo quase que imediatamente. Não víamos chuva há dias,
o solo estava completamente seco.
— Senhora, perdão. — Minha madrinha apareceu no
limite entre a cozinha e a parede da sala. — Esqueci de
avisar à Maria Clara que deveria retirar a água com o pano
e o balde.
Olhei, incrédula, para minha madrinha. Aquilo
parecia tão pouco produtivo. Arrastar a água com o rodo
para fora seria muito mais rápido e, pelo que eu havia
entendido, a madame tinha pressa.
— Não achei que precisasse explicar o óbvio à sua
sobrinha — a mulher voltou a falar. — Ela me parece
grandinha para entender de muitas coisas, é só do serviço
de casa que ela não entende?
— Eu vou retirar a água com o pano e o balde, como
a senhora deseja — falei. Não queria colocar minha
madrinha em uma situação ruim com a patroa dela.
— Traga o meu almoço até meu quarto assim que
estiver pronto, Josefa. Estou morrendo de fome.
A mulher nem se dignou a esperar minha madrinha
responder, virou as costas e subiu as escadas novamente.
Eu não precisava de um segundo encontro com dona
Cassandra para julgá-la como arrogante e detestável.
— Tudo bem, madrinha, pode voltar para a cozinha,
eu dou conta aqui. Vou fazer o mais rápido que eu puder.
— Obrigada, filha — ela falou tão rápido que mal
percebeu o que disse. Foi como ter ouvido a voz de minha
mãe. A saudade apertou em meu peito e meus olhos
arderam, segurei as lágrimas. Não podia chorar, precisava
ajudar a limpar aquela bagunça antes que aquela mulher
retornasse para reclamar de mais alguma coisa.
Enchi um balde atrás do outro, levando-os até a
lavanderia, atrás da cozinha, onde, um a um, fui
esvaziando-os. Não acreditei quando virei o último deles.
Meus braços ardiam e meus dedos estavam brancos e
enrugados de tanto lidar com a água.
A madrinha tinha terminado de limpar a cozinha, se
lavado no banheiro da área de serviços e começado a
preparar o almoço. O cheiro de cebola e alho sendo
refogados se espalhava pelo ambiente.
— Onde está o Joaquim? — Cassandra perguntou ao
entrar na cozinha.
— Ele terminou de arrumar o cano e foi para os
estábulos, como a senhora mandou mais cedo — disse
Josefa.
— Não precisa continuar com o almoço. Está muito
tarde, perdi a fome — falou, ajeitando a alça da bolsa
branca em seu ombro. — Vou até a cidade, comerei
qualquer coisa por lá e, ao retornar, espero que toda a casa
esteja impecável.
— Sim, senhora — minha madrinha respondeu. —
Deixo o jantar pronto?
— Não. Vou trazer alguma coisa da cidade.
— E quanto a você — virou-se para mim —, é lerda e
pouco caprichosa para o trabalho doméstico. Tomara que
não precise dele para se sustentar, mocinha.
Tive vontade de mandar aquela mulher ir à merda,
mas eu não podia confrontá-la, não quando eu morava na
fazenda dela e minha madrinha dependia do emprego em
sua residência.
— Não precisa voltar aqui. A Josefa dá conta do
recado sozinha — ela disse para mim.
Cassandra saiu andando em seus saltos finos,
produzindo um som irritante que ressoou à nossa volta. Pela
janela, vi-a entrar em sua caminhonete e pegar a estrada
em direção aos portões.
— Não fica chateada não — minha madrinha
acariciou meu braço fino. — Ela é assim com todo mundo.
Na cabeça dela, só o filho merece algum respeito.
— Se ela é assim, não imagino como deve ser o filho.
— Não sei como ele é hoje em dia, mas era um bom
menino quando vivia na fazenda. Era muito parecido com o
pai, não tinha nada da mãe.
— Eu duvido muito.
— Vá lá pra casa tomar um banho e trocar de roupa,
você está toda molhada.
— Tem certeza de que não precisa de ajuda com
mais nada? Ela deve demorar a voltar, eu posso te ajudar
enquanto isso.
— Agora que não preciso terminar o almoço, posso
fazer o serviço de casa. Quando a madame voltar, vai estar
tudo em ordem.
— A senhora precisa comer — avisei.
— Não estou com fome, quando eu chegar em casa,
como qualquer coisa.
— Madrinha...
— Vá — ela insistiu. — Eu sei o que eu estou fazendo.
Passei pela porta do casarão quase correndo e não
parei até estar de frente para a cerca da casinha da
madrinha. Saber que a casa adorável onde eu morava era
de uma mulher odiosa causava um aperto em meu peito.
Não queria nem pensar que aquele ser humano que eu
conheci podia ser capaz de mandar a madrinha embora
qualquer dia por puro capricho.
Pulei o portão ao invés de abri-lo, era tão baixo que
nem fazia diferença. Escancarei a porta e fui direto ao
banheiro, lavei o rosto vermelho e os braços, depois voltei à
cozinha e temperei o feijão que tinha cozinhado mais cedo.
Refoguei três folhas de couve, fritei um ovo, uma banana e
montei o virado [3]em uma marmita pequena, fechei-a com
um pano de prato, como tinha visto a madrinha fazer
quando mandava alguma comida para o Joaquim, e a levei
correndo até o casarão.
— O que você está fazendo aqui, menina? — minha
madrinha perguntou ao me ver de volta na cozinha.
— Eu vim trazer uma coisinha para a senhora comer.
— Mostrei a trouxinha que carregava.
— Não precisava, minha filha.
Meus olhos marejaram de novo, funguei quando uma
lágrima escapou.
Dona Josefa largou o material de limpeza que estava
usando no chão e veio até mim, abraçando-me forte.
— Tudo bem sentir falta dela — disse baixinho. —
Alguns dias a gente sente mais que outros, infelizmente é
assim mesmo.
— Talvez hoje seja um desses dias — falei com a voz
embargada.
— Vá para casa, tome um banho e descanse um
pouco — aconselhou ao se afastar.
— Nos vemos mais tarde — despedi-me.
Ao passar pela sala novamente, que, ao contrário do
que aquela mulher tinha insinuado sobre o meu serviço,
tinha ficado impecável, evitei olhar para a pintura acima da
lareira.
Ao retornar à casinha mais uma vez, ao invés de
atravessar o portão, contornei a cerca baixa de madeira e
segui em direção aos fundos. Eu precisava respirar um
pouco ao ar livre.
Joaquim tinha me mostrado uma parte da
propriedade em um dia em que a madame estava fora, e
enquanto ela não retornasse, era seguro andar por ali.
Caminhei até o rio, quase a um quilômetro do
casarão, mas a vista valia a pena. Havia alguns pés de
manga perto da margem e frutas maduras atiçavam meu
estômago ainda vazio.
Sem pensar muito, subi em um banco baixo de
madeira sob uma delas. Segurei em um dos galhos da
árvore e, apoiando os pés no tronco largo, comecei a
escalar. Escorreguei em uma das passadas, esfolando parte
da perna, mas continuei a subir, alcançando um fruto
maduro acima da minha cabeça.
Rasguei um pedaço da casca com os dentes e
comecei a comer. Eu sabia que a dona Cassandra não
permitia aquilo, no entanto, ela não estava na fazenda para
me pegar e, depois do que ela tinha feito naquela manhã,
pegar uma manga do pé não era nada, ao menos foi o que
eu disse para mim mesma.
Meu rosto estava sujo da fruta e meus dentes com
fiapos, mas eu não me importava. Tinha sido a melhor
manga da minha vida, desde que eu não fosse pega, estava
tudo certo.
Tive cuidado para descer da árvore, temendo cair e
me machucar. Limpei as mãos uma na outra ao alcançar o
banco de madeira com meus pés.
O som do riacho era calmante, se não precisasse
tomar um banho quanto antes, passaria um tempo ali,
escutando a natureza.
— Eu não acredito que você se tornou uma ladra de
mangas, Maria Clara. — Ouvi a voz de Joaquim quando me
aproximei da margem do rio.
— Se ninguém ficar sabendo, não serei ladra —
argumentei.
Ele quis rir, mas conteve-se.
Abaixei-me e, com a mão em formato de concha,
levei a água fria até meu rosto, limpando as marcas
amareladas da fruta. Voltei a ficar de pé e andei na direção
do meu amigo.
— Não pode fazer isso, vai acabar arrumando
encrenca. Você esteve com a patroa hoje, viu como ela é.
— Ela é horrível — falei, arrancando uma gargalhada
dele.
— Por isso mesmo. Fique longe de encrencas.
— Vou tentar.
— Vamos, eu te acompanho de volta. Não é bom ficar
andando por aí sozinha.
— Aqui não é seguro?
— Para uma moça bonita, em um lugar deserto,
nunca é muito seguro.
Bati meu ombro ao encontro do seu, levando seu
elogio como uma brincadeira entre amigos.
CINCO
JOSÉ AUGUSTO
Depois de muito tempo, aquele tinha sido o primeiro
dia em que eu passava em casa sem abrir o notebook para
trabalhar. Eu estava de férias e, daquela vez, realmente
deixaria o trabalho de lado por pelo menos trinta dias.
A mala estava aberta sobre a cama, tinha colocado
quase toda a roupa de que iria precisar para passar alguns
dias na fazenda antes de viajar para Londres com meus
amigos.
Do alto, na minha cobertura, pelas janelas de vidro
que se estendiam do chão ao teto, eu via que o sol
começava a baixar e logo seria noite. Eu não queria
demorar muito para pegar a estrada ou chegaria de
madrugada na fazenda.
Ouvi a campainha ser tocada, fechei a mala e desci
as escadas, atravessando a cozinha em ambiente aberto,
integrada à sala de estar, chegando à porta de entrada. Na
tela ao lado, o rosto de Tamara aparecia, sorridente.
Assim que a porta foi aberta, Tamara passou por
mim, empurrando-me. Seus cabelos bateram no meu rosto
e seu perfume adocicado impregnou minhas narinas.
— O que está fazendo aqui, Tamara? — questionei,
segurando meu tom para não ser grosseiro.
— Nossa! Isso é jeito de receber sua amiga? —
reclamou.
Cruzei os braços sobre o peito, não estava com
paciência e tinha pressa.
— Pode ao menos me oferecer um copo de água? —
pediu.
Fechei a porta atrás de mim e andei até a geladeira,
retirei uma jarra com água e servi um copo sobre a ilha de
pedra clara que se distinguia dos móveis escuros ao redor.
Tamara inclinou seu corpo, apoiando os cotovelos
sobre a bancada, e alcançou o copo, levando-o à boca em
seguida.
— Eu não contei para sua mãe que você está indo
até a fazenda, mas sinto que ela adoraria que você me
levasse — falou ao afastar o copo.
— Já te disse que não posso fazer isso.
— Faça isso por mim — suplicou. — Também preciso
de uns dias de descanso.
— Descanso do quê? — Segurei uma risada.
— De ficar trancada em casa, faz meses que não
viajo.
— Vamos para Londres em breve, você aguenta mais
alguns dias.
— Não tem nada que eu possa fazer para que mude
de ideia?
— Já conversamos sobre isso. Pare de insistir, só está
me atrasando, preciso pegar a estrada.
Ela suspirou e devolveu o copo à bancada.
— Tudo bem, não vou pedir mais. — Levantou as
mãos em sinal de rendição.
— Eu te acompanho até a porta.
O rosto de Tamara não escondia sua frustração.
Desde que soube que eu iria até a fazenda, ela passou a
insistir em me acompanhar, coisa que jamais aceitaria, não
conhecendo minha mãe como eu conhecia.
Os estudos sempre foram minha prioridade, mas logo
minha mãe começaria a falar em família, sabia disso, e
Tamara seria a candidata perfeita para ela, todavia, jamais
seria a minha escolha. Podíamos nos divertir passando
algumas horas juntos e até na viagem que faríamos,
contudo, Tamara não era o tipo de pessoa que eu queria
para dividir minha vida. Não me imaginava ao seu lado
todos os dias, ouvindo-a discursar horas sobre assuntos
fúteis e escândalos das mulheres que ela chamava de
amigas.
Ao me despedir de Tamara, voltei ao quarto, fechei a
mala e alcancei meus documentos. Estava pronto para
voltar para casa.
Não podia negar o cansaço após horas na direção,
mas sabia que faltava pouco para chegar à fazenda. Pela
estrada de chão, a única iluminação vinha dos faróis da
minha picape Ram. Ninguém entendia por que eu tinha
escolhido um carro tão grande morando na cidade, de
alguma forma, tinha a ver com as minhas origens rurais,
talvez fosse uma forma de preservar uma ligação ou talvez
eu só gostasse de carros maiores.
Depois de mais algum tempo levantando poeira por
onde passava, cheguei em frente ao portão de ferro escuro
cercado por um muro de pedras. O nome da fazenda estava
entalhado em uma placa de madeira, acima do portão,
preservando com orgulho o nome da família da minha mãe.
Após descer da picape, andei até a guarita e me
apresentei. Era perto da meia-noite, o único som ao redor
era dos animais noturnos que se escondiam na escuridão.
— Eu vou falar com a dona Cassandra, só um minuto,
por favor.
O funcionário não me conhecia e também não me
esperava, era normal que precisasse fazer uma verificação
antes de liberar minha entrada. Meu telefone começou a
tocar em seguida.
— Oi, mãe, sou eu sim — falei, adivinhando o que ela
iria perguntar.
— O que você está fazendo aqui, José Augusto?
— É bom falar com você também, mãe — brinquei. —
Se não se importar, pode liberar minha entrada, por favor?
Ela desligou o telefone sem dizer mais nada,
agradeci ao porteiro e voltei à direção do carro, avançando
assim que os portões foram abertos.
Assim que as luzes dos faróis atingiram a fachada do
casarão que preservava o estilo colonial no qual foi
construído, um misto de emoções me atingiu. Era como se
eu tivesse passado apenas um longo dia longe e, naquele
momento, finalmente, retornava para casa.
Desliguei o carro, peguei minha mala e segui para a
porta de entrada que foi aberta assim que pisei na varanda,
iluminada por arandelas tão antigas quanto eu podia me
lembrar.
Passei pela porta e deixei a mala ao lado. Minha mãe
me encarava como se estivesse vendo um fantasma.
— Eu sabia que ficaria surpresa, mas não que
rejeitaria minha visita — falei, segurando um sorriso. Estava
achando graça de sua reação à minha chegada inesperada.
— Filho, eu jamais rejeitaria sua companhia, mas
aqui não é lugar para você, sua vida é na capital.
— Faz anos que eu não piso na fazenda, só queria
passar alguns dias descansando em casa. A não ser que
esta não seja mais minha casa.
— É claro que é — falou um pouco desconcertada,
apertando a faixa do seu roupão. — Só me pegou
despreparada, depois de tanto tempo, achei que nunca
mais te veria aqui, afinal, costumo ir te visitar com
regularidade.
— Eu agradeço por isso, mãe, mas eu precisava
voltar.
— Por favor, ninguém precisa disso aqui. — Agitou os
braços, mostrando ao redor. — É só mato e pernilongo todos
os dias. A sua vida é muito mais interessante.
— Mesmo assim — insisti. — Sempre gostei da vida
aqui na fazenda, esses anos longe...
— Foram os melhores da sua vida — ela completou.
— Você se formou, se tornou um grande advogado,
conquistou seu espaço, seus bens, uma vida muito melhor
do que a que teria aqui.
Sorri, sabendo que aquela era uma discussão inútil,
minha mãe nunca entenderia o valor de estar onde você se
sente em casa. Todo o luxo, a praticidade da cidade e as
comodidades da minha vida eram boas, mas eu também
adorava a vida no campo, como meu pai, e talvez fosse isso
que a assustasse. Meu pai era um homem simples e feliz e
eu sabia que minha mãe abominava a ideia de eu me
parecer com meu pai.
— Já que está aqui, seja bem-vindo, mas não fique
muito tempo, não quero que atrase sua viagem para
Londres — falou, abraçando-me.
— Como sabe de Londres? Não me lembro de ter
comentado — disse ao me afastar.
— A Tamara me contou. Ela está tão empolgada.
Aquela mulher é de ouro, filho. Não demore muito para
oficializar as coisas entre vocês.
Aquela era a minha mãe.
— Não tem nada para ser oficializado, somos apenas
amigos.
— Vamos falar mais disso enquanto estiver aqui.
Balancei a cabeça em negação, mas me mantive em
silêncio, estava cansado e precisava de uma longa noite de
sono.
— Vou subir até meu quarto, tomar um banho e
descansar, amanhã conversaremos mais — avisei, levando
minha mala em direção às escadas.
Meu quarto permanecia o mesmo. A cabeceira da
cama de madeira ainda tinha marcas que eu havia feito
quando menino, com o primeiro canivete que ganhei do
meu pai.
Abri as janelas para deixar o ar fresco do início da
madrugada entrar e comecei a colocar minhas roupas no
armário ao lado.
Tomei um banho demorado, sequei meu corpo,
passando os dedos rapidamente pelo cabelo molhado e me
deitei sobre o lençol branco. Era bom estar em casa de
novo.
SEIS
JOSÉ AUGUSTO
Acordei cedo, como costumava quando morava na
fazenda. Depois de lavar o rosto, desci as escadas até a
cozinha. Dona Zefa preparava o café da manhã, distraída,
cantarolando alguma canção.
— Bom dia, dona Zefa — a senhora quase derrubou o
prato que segurava ao ouvir minha voz e se virar na minha
direção.
— Bom dia — disse, parecendo incerta.
— Lembra de mim? — perguntei, sorrindo.
— É claro, menino. Eu vi você crescer — retrucou.
— Estranho — comentei.
— O quê? — ela falou, pegando o bule para passar o
café.
— A senhora, como minha mãe, não parece muito
animada em me ver.
— Eu... eu só me assustei, foi isso.
Ela se virou para o fogão, continuando o preparo da
refeição.
— Que horas minha mãe costuma descer para o
café?
— Lá pelas oito horas.
Ouvimos uma batida firme na porta da frente.
Percebi que dona Zefa tremeu um pouco a mão ao despejar
a água quente da chaleira pelo coador de pano.
— Eu vou ver quem é — avisei.
— Eu posso ir. Se o senhor quiser.
— Não precisa, eu verifico do que se trata. E não
precisa me chamar de senhor, por favor.
— Deixe sua mãe ouvir isso — falou baixinho, como
se dissesse apenas para si mesma.
Andei até a porta de entrada e reconheci o homem
parado ao lado. Ele era o gerente da fazenda, eu o tinha
conhecido quando menino, quando corria por esses campos
com o meu pai. Seu rosto estava mais marcado pelo tempo
e pelo sol forte, mas ele ainda era o mesmo.
— Como posso ajudar, Joelson?
O homem estreitou os olhos em minha direção,
analisando minha face, procurando me reconhecer.
— Meu Deus! É você mesmo, José Augusto?
— Sou eu sim.
Um sorriso abriu-se, largo e firme, sob o bigode
branco bem aparado. Era a primeira pessoa que parecia
feliz ao me ver na fazenda. Ele ofereceu sua mão em
cumprimento, apertei-a em um movimento firme.
— Sua mão já teve mais calos — brincou ao soltá-la.
— Não tenho mais terras para cuidar.
— E isso aqui é o quê? — Apontou ao nosso redor.
Dei risada.
— Como está a sua família? Estão todos bem? —
perguntei.
— Estamos, sim. Os meninos foram para a cidade e a
mulher ficou comigo aqui. A gente visita eles de vez em
quando, mas nossa vida é aqui, enquanto a gente aguentar
o trabalho.
— E o que te traz aqui? Geralmente, não é coisa boa
quando você chega cedo no casarão.
— Uma família ficou doente e não veio trabalhar
hoje. O pior é que os meninos são da mesma equipe, então
eu vim avisar a senhora, sua mãe, que o serviço vai atrasar
um pouco hoje.
— Eu vou ajudar.
Joelson deu um sorriso largo. Não sabia se estava
admirado ou apenas se divertindo com a situação.
— Eu ainda sei trabalhar na terra — garanti.
— Não vou te dar moleza porque você é o patrão —
avisou.
— Como era quando eu seguia meu pai pela fazenda.
— Seu pai era um exemplo. Um homem como
poucos. — Havia respeito em seu tom de voz.
— Eu vou só tomar um gole de café e te alcanço lá
no curral.
— Tome um bom café, um de roça, você vai precisar
— avisou antes de voltar a colocar seu chapéu e se afastar.
Voltei à cozinha, o cheiro de café e ovos fritos abria o
meu apetite como há muito tempo não acontecia.
— Eu estou preparando um café reforçado, mas vou
avisando, sua mãe não vai gostar de saber que você está na
lida[4], no meio dos peões. Ela não gostava disso quando
você era moleque e agora que é doutor, então...
— Não se preocupe, Zefa, com a minha mãe eu me
entendo. A dona Cassandra ladra, mas não morde.
Terminei a refeição o mais rápido que pude, peguei
um boné, não havia nenhum chapéu guardado em meu
quarto e saí do casarão. Era cedo, mas o sol já mostrava sua
força.
— Essa camiseta branca não vai durar duas horas
nessa cor. — Riu Joelson ao me ver.
— Isso não será um problema.
— Tome — ele entregou-me um chapéu. — Eu
comprei para o meu filho, ia levar de presente na próxima
vez que fossemos lá pra cidade, mas ele não vai precisar
tanto quanto você.
— Obrigado por isso. — Tirei o boné e coloquei o
chapéu. — O que vamos fazer hoje?
— Os meninos que faltaram precisavam fazer uns
consertos nas cercas...
— Certo. Posso fazer isso. — Ajeitei melhor o chapéu
na cabeça.
— Acho que o doutor esqueceu o tamanho dessas
cercas. — Voltou a rir.
— Não esqueci, ainda tenho uma cicatriz enorme
embaixo do polegar direito de um dia de trabalho nas
cercas.
— Então, vamos lá. Temos muito o que fazer até a
hora do almoço.
Depois de carregar um dos postes de madeira
tratada até um dos locais que precisavam de reparo,
comecei a cavar em volta do palanque que estava
apodrecido e tinha se partido, provavelmente por um dos
animais do pasto.
Puxei o pedaço de madeira quebrado com esforço,
pois ainda estava preso ao chão. O suor escorria por minha
coluna e começava a umedecer o tecido da minha camiseta.
Passei o braço pela testa, aliviando a umidade da pele.
— O Joelson falou que você ia precisar de ajuda aqui
na cerca. — Ouvi uma voz atrás de mim. Virei-me e
encontrei Joaquim, parado, com as mãos na cintura.
Apesar de nossa idade ser a mesma e ele ter
chegado ainda criança na fazenda, nunca fomos próximos.
Ele não era do tipo que gostava de fazer amizades e, pelo
que eu via, aquilo não tinha mudado.
— Não vou negar que é difícil fazer isso sozinho, mas
não quero atrasar o seu serviço, pode ficar tranquilo, eu vou
fazendo aqui.
— Cuidado com esses arames farpados, se soltar eles
de uma vez, vão fazer um estrago.
— Eu tenho uma cicatriz que me lembra disso — falei
com bom humor.
— Eu vou estar lá no estábulo, se precisar, sabe onde
me encontrar.
Ele virou-se e saiu andando pelo pasto. Podia ser
apenas uma impressão equivocada, mas Joaquim parecia
ainda menos disposto a falar comigo do que eu me
lembrava.
Voltei a me concentrar no meu trabalho, havia muito
o que ser feito.
Tirei o chapéu e coloquei no encosto de uma das
cadeiras da mesa na cozinha. Zefa me olhou de canto, como
se estivesse desconfiada de algo.
— O senhor está bem?
— Cansado — falei. — Tinha me esquecido do quanto
o trabalho aqui é pesado.
Afastei a cadeira, mas antes de me sentar, minha
mãe adentrou o ambiente, andando em passos duros.
— Meu Deus! Olha para você, José Augusto! —
bradou. — Todo suado, sujo!
— Eu estava trabalhando, mãe. O que esperava? —
Não dei importância ao seu drama.
— Eu esperava que o meu filho, advogado, bem-
sucedido, não aparecesse na minha casa parecendo...
— Um peão? — completei, alcançando uma manga
sobre a fruteira no centro da mesa.
— Eu me esforcei tanto para você ter uma vida
diferente e você parece ter prazer em jogar tudo fora na
primeira oportunidade.
— Eu não voltei para pedir um emprego na fazenda,
mãe. Eu tenho minha vida na capital, no entanto, enquanto
eu estiver aqui, não vejo motivo para não ajudar. Meu pai
sempre ajudava no trabalho.
— Seu pai... — Não havia lamento em seu tom de
voz. — Não quero que você seja parecido com ele. A não ser
que queira me deixar maluca.
— Quero que não se preocupe tanto comigo. Se
estou gastando meu tempo trabalhando, é porque eu gosto.
Não tem nada de errado com isso.
— Eu vou até a cidade, precisa de alguma coisa de
lá? — perguntou, ignorando o que eu havia acabado de
dizer.
— Estou bem, mãe. Obrigado.
— Devo voltar apenas à noite, tenho muito o que
fazer hoje — avisou. — Josefa, me acompanhe, preciso
passar algumas orientações a você.
As duas saíram da cozinha, não pude ouvir o que
minha mãe dizia, mas não deveria ser nada relevante. Ouvi
seu carro ser ligado e deixar a fazenda quando Zefa
retornou.
— Eu vou até minha casa almoçar, não vou demorar
— disse Zefa.
— Pode almoçar aqui comigo, tem muita comida
aqui.
— O senhor sabe que eu não faço nenhuma refeição
aqui.
— Lembro que você fazia sim, quando meu pai era
vivo.
— Eram outros tempos. — Deixou um suspiro sair.
— Pode ir sem pressa — falei. — Eu vou almoçar
agora e descansar um pouco antes de voltar ao serviço nas
cercas.
Vi Zefa deixar o pano de prato que carregava no
ombro sobre o encosto de outra cadeira e sair apressada.
Ela parecia diferente, mais preocupada. Talvez fosse apenas
uma reação pela minha chegada inesperada, há anos ela
estava habituada a cuidar apenas da minha mãe e a
mudança na rotina podia estar mexendo com ela, ao menos
eu imaginava que fosse aquilo.
SETE
MARIA CLARA
Girei o botão do fogão e desliguei a chama abaixo da
panela de arroz. A refeição estava pronta, logo a madrinha
chegaria do casarão para almoçar. Separei os pratos e
talheres e coloquei-os sobre a mesa de toalha de plástico
que cobria a toalha branca por baixo.
— Madrinha! — disse ao vê-la chegar. Seu rosto
estava vermelho, ela parecia ter vindo correndo do casarão.
— Está tudo bem?
— Comigo está. E com você?
— Tudo.
— Nada diferente? Estranho? Novo?
— Aqui? — Estranhei sua pergunta. — Não, nada.
— Eu vou lavar o rosto e as mãos e volto já para
almoçarmos.
Assenti.
— O cheiro do almoço está indo longe — disse
Joaquim ao aparecer na janela da cozinha.
— Você não usa mais o portão? — indaguei.
— A cerca é tão baixa que dá menos trabalho pular
do que abrir ela — ele disse, passando pela porta de
entrada.
— Vamos almoçar então, estou morrendo de fome —
avisou a madrinha.
Dona Josefa alcançou um prato, andou até o fogão e
serviu-se da comida fumegante. Não importava o quanto
estivesse calor, comida fria não era uma opção.
Após ela se sentar, servi meu prato e puxei uma
cadeira. Joaquim, depois de colocar o chapéu no encosto da
sua cadeira, também serviu-se e tomou seu lugar à mesa.
Não era raro ele vir almoçar conosco. Ele tinha passado a
ajudar nas compras, trazendo mais mantimento para que eu
fizesse a refeição para nós.
— Você andou pela fazenda hoje, Maria Clara? — ele
perguntou, encarando o prato à sua frente.
— Não. Estudei na parte da manhã e demorei um
pouco mais fazendo o almoço.
— Pelos próximos dias, você não pode ir até o
casarão — disse minha madrinha.
— E nem ficar andando pela fazenda — completou
Joaquim. Seu olhar voltou-se para a madrinha como se
compartilhassem um segredo.
— E por que isso? Estamos em perigo? — questionei.
— A dona Cassandra não anda muito contente
contigo — a madrinha falou.
— E por quê? Eu não dei motivos para ela ficar
descontente comigo. — Levei o garfo com comida à boca.
— E desde quando a dona Cassandra precisa de
motivos para ficar descontente com alguém? — lembrou
Joaquim.
— Eu não sei, mas ela não gostou de mim desde que
me conheceu. Não que eu me importe, também não gosto
dela.
— Então, pronto. Você fica aqui, estudando, ajudando
no serviço de casa e tudo vai ficar bem — orientou a
madrinha.
Dei de ombros, eu realmente não me importava com
o que aquela mulher pensava de mim.
Terminamos a refeição em silêncio, o clima parecia
diferente naquele dia, tanto a madrinha quanto Joaquim
aparentavam estar tensos. Eu não gostava daquilo.
Dona Zefa levou seu prato vazio até a pia e, em
seguida, retornou ao casarão. Passei um pano úmido com
sabão sobre o plástico transparente para limpar a mesa.
— Você quer deitar um pouco na rede? Descansar? —
ofereci.
Eu sabia que o descanso no horário do almoço era
importante para os peões aguentarem o dia de trabalho
pesado na fazenda. Apesar de não ter contato com os
outros, conhecendo-os apenas de vista, via o quanto
Joaquim se cansava e imaginava que todos deveriam se
sentir igualmente exaustos.
Havia uma rede de tecido estendida do lado de fora,
de uma árvore a outra, próxima à cerca que rodeava a casa.
Eu costumava passar algum tempo nela, geralmente, com
um dos meus livros de estudos nas mãos.
— Acho que sim. — Ele se levantou, pegou o chapéu
nas mãos e segurou as bordas entre os dedos por um
momento. — Não saia de casa, por favor.
Seu semblante demonstrava uma preocupação
genuína. Imaginei que ele não quisesse que eu chateasse a
dona Cassandra e acabasse sendo mandada embora da
fazenda. Eu também não queria aquilo, apesar de saber que
aquela casa não era nossa, eu começava a me sentir em um
lar novamente.
Andei até ele e tomei suas mãos grossas e calejadas
nas minhas.
— Não se preocupe comigo. A dona Cassandra não
vai ver nem a minha sombra.
— Se fosse só ela — disse tão baixo que fiquei em
dúvida se tinha mesmo ouvido aquilo.
Joaquim se afastou, indo em direção às árvores onde
estava a rede, e eu voltei minha atenção à louça suja do
almoço e às tarefas da casa. Meu amigo só voltou a
aparecer na porta de entrada quando eu estava terminando
de limpar o piso vermelho.
— Até depois, Maria Clara, obrigado pelo almoço.
— Por nada.
Sozinha, depois de terminar a limpeza, fechei a porta
de casa, mantendo as janelas abertas. No banheiro, tomei
um banho quase frio para me refrescar, e então vesti um
short jeans e uma regata branca. Passei um pente de
madeira nos cabelos compridos e deixei os fios soltos para
que se secassem com o vento.
De volta à cozinha, procurei uma manga dentro da
fruteira, mas não encontrei. Eu já gostava daquela fruta
antes, mas aquelas da fazenda pareciam muito melhores do
que as que costumávamos comprar no mercado da cidade.
As dali eram maiores e mais doces.
Pela janela, vi que nem a madrinha e nem o Joaquim
estavam por perto. Fechei toda a casa e andei até o portão,
atravessando-o e seguindo pela trilha que levava ao
casarão, com cuidado e usando as árvores ao redor para me
esconder.
De longe, enxerguei a frente do casarão, não havia
sinal do carro da dona Cassandra, o que significava que ela
não estava na fazenda. Comemorei indo em direção ao rio e
ao pé de manga pegar algumas frutas.
Eu não sabia o motivo de a dona Cassandra não me
querer por perto. Desde o incidente na cozinha dela, eu não
tinha voltado ao casarão ou encontrado com ela pela
fazenda, mas como disse meu amigo, ela não precisava de
um para ficar descontente comigo e me querer longe.
Tirei os chinelos dos pés, eu adorava caminhar
descalça sobre o gramado verde. Fiz a rota mais afastada da
trilha principal, procurando me esconder durante o trajeto.
Senti o cheiro adocicado da fruta antes mesmo de
alcançar a árvore. Tinha se tornado um dos meus aromas
favoritos. Embaixo da árvore, não havia nenhuma fruta
caída. Levantei meu rosto, protegendo os olhos com uma
das mãos. Havia muitas frutas no alto, porém nenhuma
onde eu alcançava.
Subi no pé de frutas, cuidando para não me arranhar
ou teria que dar explicações à madrinha. Do alto, consegui
tirar uma manga do galho, rasguei um pedaço da casca com
o dente, estava muito doce. Afastei as folhas com a outra
mão, olhando a paisagem à frente com mais clareza.
Eu adorava aquela vista, a luz do sol deixava ainda
mais clara a água que corria entre as pedras. Diversas
árvores nativas e outras frutíferas de tamanhos variados ao
redor. Outro dia, eu tinha visto um macaquinho em uma das
minhas visitas ao rio e tinha ficado impressionada pelo
animalzinho chegar tão perto sem se assustar com a minha
presença.
Era apenas a segunda vez que eu pegava manga.
Das outras vindas àquele lugar, eu procurava apenas curtir
a paisagem e o som da natureza ao redor. Um cantinho
mágico que parecia só existir ali.
Ouvi um cavalo se aproximar, soltei as folhas,
tentando me manter oculta, Joaquim também não gostaria
de me encontrar ali, ainda mais com uma manga nas mãos.
Merda.
Entre as frestas verdes, vi um homem descer de um
cavalo preto. Não era Joaquim, era mais alto. Ele amarrou o
cavalo mais próximo à margem do rio e então tirou o
chapéu. Definitivamente, não era Joaquim, contudo, as
roupas sujas do trabalho na terra indicavam que ele era um
dos peões.
Ele deu alguns passos à frente e sentou-se no banco
de madeira debaixo do pé de manga, onde eu estava,
colocando o chapéu ao seu lado.
Distraída, escorreguei de onde estava e, para evitar
cair, soltei a manga das mãos e me agarrei em um galho
forte ao lado.
— Mas que porra? — Ouvi o homem dizer, olhando
para cima.
Comecei a descer tão rápido quanto eu podia, me
desculpando pelo acidente. Arranhei o braço quando um dos
galhos soltou-se rapidamente contra meu corpo, senti a
queimação no local, mas a ignorei, escorregando os pés até
alcançar o banco de madeira.
— Quem... é você? — Seus olhos azuis me fitaram
com tamanha intensidade que pensei que meu coração
tinha parado de bater.
Seu olhar percorreu meu rosto, da mesma forma que
o meu percorreu o seu. Seu maxilar marcado relaxou um
pouco e um sorriso começou a se formar nos lábios.
— Você acertou uma manga nas minhas costas, se
estava mirando na minha cabeça, precisa melhorar a
pontaria — ele disse, tentando conter uma risada.
— Me desculpa por isso. Eu não devia estar aqui. Por
favor, não conte a ninguém sobre isso — pedi, começando a
me sentir aflita.
— Por quê? Você é uma invasora? Mora em outra
fazenda? — indagou, parecendo se divertir com a situação.
— Não. Eu moro aqui com a minha madrinha, a
Josefa.
— Eu não sabia que a Zefa tinha uma afilhada.
— E ela vai ficar muito brava se souber que estava
pegando uma manga sem pedir, então, por favor, não conte
a ninguém. Eu juro que é só a segunda vez que eu faço isso.
— Não se preocupe com isso. — Ele deu um sorriso
largo. — Tem frutas por toda a parte. Muitas chegam a
estragar.
— Mas a dona Cassandra faz os peões recolherem
para os animais, então, não podemos pegar nenhuma. Mas,
de novo, foram só duas e não vai acontecer de novo.
— Eu não vejo problema nenhum nisso — insistiu. —
Mas, você ainda não me disse seu nome.
— Maria Clara.
— Prazer, eu sou José Augusto. — Ele estendeu a
mão na minha direção e eu aceitei o cumprimento.
Como se eu tivesse recebido um leve choque, uma
onda elétrica passou por meu corpo quando minha pele
tocou a dele. Afastei-me de repente, descendo do banco.
Seu olhar se manteve sobre mim, como se
desenhasse cada traço do meu rosto. O ar pareceu mais
denso... mais quente. Havia uma aura à nossa volta,
tentando nos jogar um contra o outro.
Fomos despertados do torpor quando ouvimos os
sons dos cascos de outro cavalo se aproximando com
rapidez em nossa direção.
OITO
JOSÉ AUGUSTO
Eu tinha ido até o rio para esfriar um pouco a cabeça
e descansar alguns minutos antes de retornar ao trabalho.
Aquele lugar era importante para mim, fazia parte das
minhas lembranças ao lado do meu pai. Contudo, não
esperava ser atingido por uma manga nas costas, nem que
a responsável pelo “ataque” fosse uma moça de rosto
angelical.
Maria Clara era mais do que linda, com seus olhos
escuros redondos e lábios rosados cheios, capturou minha
atenção imediatamente. Senti-me preso a ela como nunca
tinha acontecido antes. Quando minha mão tocou a sua,
meu desejo foi de trazer seu corpo junto ao meu, analisar
cada detalhe do seu rosto, tocar as curvas do seu corpo. Eu
não estava raciocinando direito naquele momento.
Um cavalo se aproximou, trazendo Joaquim até nós.
Ele notou nossa proximidade e, imediatamente, Maria Clara
deu um passo para trás, tomando distância.
— A sua madrinha está te procurando, Maria Clara —
ele disse, sem descer do cavalo.
— Eu já estava voltando — falou. Ela parecia
envergonhada, como se estivesse fazendo algo errado.
— O patrão vai voltar lá para cerca? Precisa de ajuda
agora à tarde?
O semblante de Maria Clara revelou preocupação ao
ouvir Joaquim.
— Patrão? — disse, sem entender.
— Eu sou filho da Cassandra, mas não sou o patrão
— revelei. Sua face ainda se mantinha assombrada. — Não
se preocupe, seu segredo está seguro comigo.
Ela sorriu timidamente, fazendo seu nariz pequeno e
arrebitado se enrugar e suas bochechas corarem
levemente. Levantei minha mão direita, desejando acariciar
seu rosto, entretanto, desisti em seguida. Estava sendo
impulsivo, o que não era comum para mim.
— Vamos, Maria Clara! — chamou Joaquim,
impaciente.
— Até mais, Clara — eu disse. — Posso te chamar de
Clara?
— Pode. — Ela sorriu novamente.
Acompanhei seus passos enquanto ela se afastava,
andando pela trilha no meio do campo. Os cabelos
ondulados castanhos batiam em suas costas quase até o
short jeans que agarrava sua bunda redonda.
Esfreguei as mãos no rosto como se pudesse afastar
as imagens de Clara da minha mente e fui até a margem do
rio para me refrescar um pouco. Não poderia perder muito
tempo se quisesse fazer o serviço render. Era nisso que eu
precisava pensar naquele instante: no meu dia de trabalho
na fazenda.

Além dos pastos, atrás das colinas distantes, o sol


estava se pondo e eu, encerrando meu dia. Juntei as
ferramentas e me encaminhei para o galpão, onde encontrei
outros peões. Eles conversavam e riam com Joelson,
pareciam alegres, apesar do dia de trabalho intenso.
— E aí, patrão? O dia rendeu? — perguntou Joelson.
— Sinceramente, eu esperava ter feito mais —
confessei.
— Depois de tantos anos, me admira que ainda se
lembre do serviço — voltou a falar.
— Você que trocou os palanques perto do rio? —
indagou um outro peão.
— Sim — confirmei.
— Até que foi um serviço bom — disse ele.
— Mas não ia durar na fazenda se rendesse só isso —
brincou um outro.
Joelson andou até mim, pegando algumas das
ferramentas em minhas mãos.
— Estes são Damião e Marco. — Ele apontou para os
homens com quem eu conversava. — Não são da sua
época, mas já estão há um tempo aqui.
— Eu sou José Augusto — cumprimentei-os.
— A gente sabe — falou Marco. — Na verdade,
estávamos apostando pra ver se você aguentava o dia todo.
Joelson gargalhou ao meu lado, segurei-me para não
rir também.
— Espero que tenha apostado alto — falei.
— O suficiente para pagar minha parte no churrasco
de amanhã. — Sorriu Marco enquanto Damião balançava a
cabeça negativamente, porém, parecendo levar a situação
com bom humor.
— Quer se juntar a nós, patrão? Vamos fazer um
churrasco amanhã à noite na vila — convidou Joelson.
— Até parece que ele vai querer se misturar com os
peões — Virei-me para trás e encontrei Joaquim.
— Na verdade, eu adoraria. Tenho certeza de que
não vou reconhecer muitos rostos, mas espero rever alguns.
Meu pai costumava me levar aos churrascos na vila quando
ele era vivo.
— O Joelson sempre fala do seu pai, lembrando o
quanto todos admiravam ele — comentou Damião.
— Meu pai foi um grande homem — eu disse com
orgulho e saudade.
— Se quiser aparecer, é só esperar a noite cair e
aparecer por lá. A fogueira vai estar acesa — disse Marco.
— Obrigado — agradeci o convite. — E obrigado,
Joelson, por hoje.
— Sempre estamos precisando de mais um homem
para o trabalho — declarou.
Saí do galpão e andei até o casarão. Era estranho
pisar naquela varanda sozinho depois de um dia de
trabalho. Fazia tempo que eu não sentia tanta falta do meu
pai como estava acontecendo desde que tinha retornado à
fazenda. Era difícil, doloroso, todavia, de certa forma,
sentia-me mais próximo dele.
Minha mãe tinha voltado, mas estava trancada em
seu quarto, sabia que ela não sairia de lá naquela noite.
Tinha visto ela agir daquela forma todas as vezes que foi
contrariada por meu pai. Minha mãe não conseguia lidar
bem com as coisas que não saíam conforme ela desejava, e
ela não desejava que eu trabalhasse na fazenda, que eu me
aproximasse dos peões ou que eu a lembrasse do meu pai.
A minha aparência já a lembrava bastante do marido que
ela tinha perdido.
Tomei um banho quase frio, desci até a cozinha para
jantar, quase em silêncio, acompanhado apenas pelos sons
dos animais noturnos que chegavam devagar. Eu não
conseguia explicar o quanto me sentia conectado àquela
vida. Era como se eu pertencesse àquele lugar e a nenhum
outro.
Depois de escovar os dentes, joguei-me sobre a
cama. Meu corpo estava cansado, cada músculo doía pelo
esforço físico intenso.
Fechei os olhos por um instante e um rosto novo se
desenhou em minha mente. Maria Clara, quase pude ouvir o
som de sua voz em meus ouvidos. Tinha algo nela que fazia
meu corpo vibrar. Eu queria muito vê-la novamente.
O meu celular tocou sobre a pequena mesa ao lado
da cama, na tela, o nome de Tamara aparecia. Eu não
queria falar com ela naquele momento, na verdade, só
havia uma pessoa com quem eu desejava conversar.
Silenciei a chamada, no outro dia eu enviaria uma
mensagem para Tamara, também precisava falar com meu
amigo sobre a viagem que faríamos em breve, não que eu
estivesse com pressa.
Estava sendo muito bom estar em casa novamente.
NOVE
MARIA CLARA
Eu tinha começado meu dia animada. Era sábado e
eu iria com Joaquim até a vila para um churrasco. Nunca
tinha participado dos encontros na vila e estava ansiosa
para conhecer outras pessoas que moravam na fazenda, um
pouco afastadas do casarão, mas ainda naquelas terras.
A madrinha tinha chegado tarde e cansada na noite
anterior, então não contei a ela sobre ter desobedecido às
ordens da dona Cassandra, porém contaria quando ela
chegasse para almoçar, não queria que soubesse por
Joaquim.
Terminei de temperar a salada em uma tigela e a
coloquei sobre a mesa. Desliguei as chamas acesas do
fogão, a refeição estava pronta.
— O cheiro da comida está lá no portãozinho —
avisou a madrinha ao passar pela porta.
— Terminei de preparar agorinha.
Coloquei os pratos e talheres sobre a mesa enquanto
a madrinha lavava as mãos no banheiro. Seu rosto estava
vermelho, parecia ter vindo correndo para casa.
Nos servimos e sentamos de frente uma para a
outra, como costumávamos fazer quando estávamos
apenas nós duas.
— Madrinha, preciso te contar uma coisa — iniciei.
Ela parou com o garfo no meio do caminho até sua boca,
prestando atenção em mim. — Eu fui até o rio ontem e
peguei uma manga.
— A dona Cassandra pediu para você não ficar
andando por aí — lembrou-me.
— Eu sei. Era para ser uma coisa rápida. Eu sabia
que ela não estava em casa e tomei cuidado para ninguém
me ver.
— E ninguém te viu, não é mesmo? — Seus olhos
cravaram-se nos meus.
— Só o filho dela — revelei, sem jeito.
Vi ela largar o garfo que bateu contra o prato de
vidro marrom. Ela pareceu assustada de repente.
— Você precisa ficar longe dele — avisou.
— Ele é perigoso?
— Ele não é como a mãe, mas a mãe dele... aquela lá
não é de confiança. Além disso, a dona Cassandra nunca
gostou do filho perto dos empregados.
— Eu não imaginei que ele fosse filho dela, quero
dizer, eu sabia que ela tinha um filho, porém não imaginei
que fosse ele quando o vi. Além do mais, estava com as
roupas sujas, como os outros peões. Só soube quem ele era
na hora em que Joaquim me chamou de volta, avisando que
a senhora estava me chamando.
— Eu não te chamei.
— Eu soube disso depois. Ele falou que mentiu para
me afastar do José Augusto, disse a mesma coisa que a
senhora sobre a mãe dele não querer ele perto dos
empregados.
— Eles já discutiram no casarão por causa disso. Eu
pensei que estava vendo ela brigar com o marido de novo.
Pelos mesmos motivos.
— Por que ela implica tanto com os empregados?
— Porque, para a dona Cassandra, empregados são
para servir a eles, não para companhia.
— Ela é uma pessoa horrível.
— Eu sei, mas desde que não fiquemos no caminho
dela, não temos com o que nos preocupar.
Minha madrinha remexeu devagar a comida no
prato, eu sabia que alguma coisa perturbava sua mente.
— Eu vou com o Joaquim para o churrasco na vila
hoje — avisei.
— Vá com ele e volte com ele. Não fique andando por
aí. A ordem da dona Cassandra ainda não mudou.
— Sim, senhora.
Ela levantou os olhos e me observou com carinho,
apanhando minha mão sobre a mesa.
— Aproveite para se divertir um pouco. Você tem
estudado muito e ficar presa aqui não deve estar sendo
bom.
— Não vou negar que, quando tenho permissão de
andar pela fazenda, é melhor. — Dei uma risada fraca.
— Daqui a pouco ela muda de ideia e as coisas
voltam ao normal, você vai ver.

O sol estava se despedindo pela janela do meu


quarto. Em frente a um espelho pequeno que eu tinha
ganhado da madrinha, prendi o cabelo no alto e passei uma
maquiagem discreta no rosto. Escolhi um vestido de tecido
leve, com um fundo preto e pequenas estampas de flores
vermelhas. As alças eram finas, mas sustentavam bem a
parte de cima, não sendo necessário usar um sutiã.
Coloquei uma sandália sem salto, rasteirinha, pois
precisava de um calçado leve para andar até a vila. Peguei
minha bolsa pequena redonda, de palha, e guardei meu
celular dentro.
Ouvi a voz de Joaquim na cozinha, mas não consegui
entender o que falava, parecia conversar em tom baixo de
maneira proposital. Abri a porta do meu quarto de repente.
— O que vocês dois estão cochichando? —
questionei.
— Nada — respondeu a madrinha. — Coisa do
trabalho na fazenda.
— Sei... — falei, desconfiada.
— Você está linda, Maria Clara — elogiou Joaquim.
Dei um pequeno sorriso.
— Obrigada.
— Vamos? O pessoal já está fazendo o fogo lá.
— Tem certeza de que não quer ir, madrinha? —
perguntei ao andar até eles.
— Tenho. Estou velha para essas coisas. Quero mais
é tomar um banho e dormir.
— Não vou demorar. Estarei de volta no máximo às
vinte e duas horas — avisei.
— Eu confio que o Joaquim vai cuidar de você, então,
aproveitem a noite. Não precisa voltar cedo.
Dei um beijo em sua bochecha antes de seguir
Joaquim. Ao passarmos pelo portão, seguimos pela trilha
que levaria até a vila.
— Eu estou um pouco nervosa por conhecer o
pessoal da vila.
— Todos são ótimas pessoas. Vai se enturmar logo.
A luz do sol tinha ido embora quando chegamos à
vila, a noite havia envolvido todo o lugar, mesmo assim, era
possível enxergar as pequenas casas de alvenaria,
coloridas, lado a lado com uma rua larga que as separava
em duas fileiras.
Alguns cachorros que estavam soltos correram até
nós quando nos aproximamos, balançando os rabos
alegremente ao reconhecerem Joaquim.
Um grupo de homens se reunia em torno de uma
grande fogueira, enquanto as mulheres ocupavam bancos
próximos a uma fogueira menor, mais afastada. Pelo pátio,
as crianças corriam animadas, divertindo-se.
— Boa noite, povo — Joaquim disse.
— Boa noite — responderam todos juntos.
— Essa aqui é a Maria Clara, afilhada da dona Zefa.
Uma das mulheres do outro lado caminhou até nós,
ela parecia ser um pouco mais velha do que eu, tinha
cabelos longos e escuros e um sorriso simpático no rosto.
Seu vestido longo não disfarçava o volume em sua barriga
de gestante.
— Sou Joana, mulher do Marco, aquele lá preparando
a carne para o fogo. E o menino correndo ao lado dele é
nosso filho mais velho. Tem cinco anos. — Ela estendeu a
mão para mim e aceitei o cumprimento. — Vem, eu te
apresento as mulheres aqui da vila.
Joaquim balançou a cabeça afirmativamente. Segui
os passos da mulher à minha frente até o grupo mais
afastado que conversava alegremente.
— Boa noite — disse a todas.
Elas me responderam e, então, Joana me apresentou
a cada uma delas. Eram esposas e irmãs dos homens que
moravam e trabalhavam na fazenda.
— Por que decidiu sair da cidade e vir morar com sua
tia? — uma delas perguntou.
— Minha mãe morreu... O convite da madrinha
pareceu uma boa oportunidade para recomeçar.
— Eu sinto muito. — A mão de Joana apertou a minha
levemente. Estávamos compartilhando o mesmo banco ao
redor do fogo.
— E como você está? — perguntou outra mulher.
— Tem dias que a saudade aperta bastante —
confessei.
— Que bom que a dona Zefa te trouxe pra cá. Temos
pessoas boas aqui.
Sorri, concordando.
— Você tem alguma coisa com o Joaquim?
— Ana! — reprendeu Joana.
— Ué! Todo mundo está curioso — defendeu-se.
— Você quis dizer que estão todos fofocando sobre
eles, não é? — brincou uma das mulheres que eu não tinha
gravado o nome ainda.
— Somos amigos. Apenas isso — declarei.
— Pronto! Agora todo mundo sabe e para de uma vez
de ficar tentando adivinhar o que o Joaquim faz tanto na
casa da dona Zefa — Ana falou.
Dei uma risada sem graça. Eu não sabia que nossos
almoços estavam causando fofocas sobre mim e Joaquim,
eu nem sequer almoçava sozinha com ele, a madrinha
sempre estava conosco.
— Ele sempre ajudou a minha madrinha, como eu
tenho que fazer almoço de qualquer forma, não custa
preparar um pouco a mais.
Achei melhor explicar o que acontecia, ou melhor, o
que não acontecia. Joaquim era um homem bonito, eu não
negava aquilo, mas éramos apenas bons amigos. Eu não o
via de outra maneira.
— Isso não é da nossa conta, Maria Clara. Não
precisa nos dar qualquer satisfação — falou Joana.
— Eu não me importo de esclarecer — afirmei.
— Ai! — reclamou Joana. Todas olhamos para ela, que
apalpava a barriga enorme. — Essa menina tirou o dia para
me chutar.
— Está com quantos meses? — perguntei.
— Cinco. O irmão dela não me chutou tanto em nove
meses como essa aqui em cinco.
— Mãe, quero mais refrigerante — um menino, de
cabelos e olhos escuros, chegou até nós, trazendo seu copo
vazio na direção de Joana.
— Pega lá em casa — ela disse.
— Está no alto, não alcanço — falou ele.
— Está bem. — Ela levantou-se devagar. — Quer vir
conhecer minha casa?
— Claro — respondi, levantando-me também.
Saímos da fogueira menor e passamos pela fogueira
maior. Os homens bebiam e riam ao redor da carne que
estava sendo assada. Ao olhar os rostos, reconheci José
Augusto. Seus olhos claros me fitaram com intensidade, foi
difícil desviar deles e seguir Joana para longe.
Joaquim estava rindo com uma cerveja na mão, do
outro lado, nem me notou passar perto. Eu não quis chamá-
lo e atrapalhar sua diversão com os amigos.
Passamos pela pequena varanda e, depois de Joana
abrir a porta, entramos na cozinha. A casa era um pouco
maior do que a da madrinha, com paredes brancas e alguns
móveis modestos. O cuidado de Joana com o seu lar se
mostrava na toalha branca sobre a mesa e nos tapetes de
crochê verdes no chão.
— Sua casa é adorável. Os tapetes são lindos.
— Obrigada. Eu mesma fiz. Os tapetes, não a casa.
Demos risada juntas.
— Aceita um copo? — Ergueu a garrafa de
refrigerante.
— Aceito um copo de água, por favor. A caminhada
até aqui me deu sede.
Ela me deu um copo que foi enchido no filtro de barro
sobre o balcão ao lado da pia. Apesar da noite quente, a
água servida estava fresca.
— Posso voltar lá com o meu pai? — pediu o menino.
— Pode — respondeu à mãe. O menino saiu correndo
de casa. — Ele é um grude com o pai.
— Seu filho é uma graça.
Joana sorriu, orgulhosa.
— Quer voltar? Acho que a carne deve estar pronta.
Pelo menos uma parte dela.
— Sim.
A jovem mulher deu dois passos antes de parar de
repente, levando a mão à barriga.
— Está tudo bem? — perguntei, preocupada.
— Só um pouco cansada. Como eu disse antes, essa
menina está me desafiando. — Riu ela. — Eu vou precisar
me deitar um pouco.
— Posso fazer algo para ajudar?
— Quando passar pela fogueira dos homens, diga ao
meu marido que eu precisei me deitar, por favor.
— Quer que eu o chame para vir cuidar de você?
— Não. Só avise ele. Não é nada demais, só preciso
descansar mesmo. Desculpe não poder te receber melhor.
— Não se preocupe com isso.
Despedi-me de Joana e fechei a porta de sua casa ao
sair. Ela garantiu que só precisava descansar um pouco.
Eu estava a três casas da fogueira maior, mesmo de
longe podia ver os homens conversando e comendo carne
com as cervejas em uma das mãos. Cheguei mais perto e
perguntei por Marco, dando o recado em seguida. Mesmo
dizendo que a esposa pediu para avisar que estava bem, ele
pegou o filho no colo e se encaminhou diretamente para sua
casa.
A sandália que eu tinha escolhido não era tão
confortável quanto eu esperava e meus pés estavam
doendo, o que me fazia desejar voltar para casa, não queria
comer carne assada, apenas descansar. Tentei enxergar
Joaquim, mas não o encontrei.
— Alguém viu o Joaquim? — perguntei.
— Ele bebeu demais e o Joelson levou ele para casa.
— Não sabia que ele costumava beber tanto.
— Ele não costuma — falou um outro.
— Bom, obrigada — disse ao me afastar. Andei até a
outra fogueira e me despedi das mulheres.
Andei alguns passos pelo caminho que levava de
volta ao casarão quando um cavalo parou ao meu lado e
José Augusto desceu.
— Quer que eu te leve até sua casa? A caminhada é
um pouco longa.
Eu nunca tinha andado a cavalo antes e tinha um
pouco de receio, contudo, meus pés estavam me matando.
— Me ajuda? — perguntei.
— Coloque um dos pés aqui, e depois o outro,
daquele lado — orientou-me.
Subi no cavalo e José Augusto se colocou atrás de
mim em seguida, passando seus braços ao redor da minha
cintura para segurar as rédeas. O cheiro do seu perfume
amadeirado era envolvente e marcante.
A respiração dele no meu pescoço me causava
arrepios, fazendo com que pequenas ondas de eletricidade
dançassem sob minha pele.
Eu nunca tinha estado tão consciente sobre minhas
reações a um homem antes como me sentia quando estava
próxima a José Augusto.
Seguimos o caminho em silêncio, ouvindo os cascos
do cavalo sobre as pedras do caminho e os animais
noturnos escondidos no mato que nos cercava.
Torci para que a madrinha estivesse dormindo e não
me visse chegar com José Augusto, eu suspeitava que ela
não fosse gostar de nos ver juntos.
Quando o cavalo parou perto do pequeno portão,
onde a iluminação acima da porta da casa nos alcançava,
senti a respiração de José Augusto acelerar, batendo mais
forte contra o meu pescoço, tornando a minha própria
irregular. Olhei para baixo, meu vestido tinha subido,
minhas coxas estavam completamente descobertas.
José Augusto apertou os braços ao redor da minha
cintura, sua cabeça baixou um pouco e seus lábios roçaram
meu ombro descoberto, foi tão suave que fiquei em dúvida
se aquilo tinha realmente acontecido. Então, ele desceu do
cavalo e me ajudou a descer também.
Suas mãos ainda estavam na minha cintura quando
seu nariz longo passou de leve por minha bochecha, senti
seus dedos afundarem mais um pouco em minha carne.
Pensei ter esquecido como respirar.
Ouvi um barulho dentro da casa, assustei-me e
recuei um passo. A casa estava fechada, mas a madrinha
devia estar acordada.
— Eu preciso entrar. Obrigada por me trazer — falei.
Ele assentiu e eu abri o portão e o atravessei. Da
porta, vi ele subir no cavalo novamente e sair em disparada
na direção do casarão. Só então senti que podia novamente
respirar.
Voltei a fechar a porta depois de passar por ela. As
luzes de dentro estavam todas apagadas, não havia sinal de
que a madrinha estava acordada. Talvez o vento tivesse
derrubado alguma coisa no banheiro.
Entrei no meu quarto e parei em frente à cama.
Passei os dedos pelo pescoço e pelos ombros. Meu corpo
parecia em chamas e, mesmo sabendo que aquele era um
jogo que eu não podia jogar, eu estava ansiosa pela próxima
partida.
DEZ
JOSÉ AUGUSTO
A casa estava silenciosa, a iluminação baixa vinha
das poucas luzes acesas nas paredes ao redor. Por um
instante, acreditei que iria dormir em paz, até um clarão
atingir minha vista e mostrar minha mãe no alto da escada.
— Não estava me esperando até agora em pé no
escuro, estava?
— Eu te ouvi chegando, José Augusto.
Andei até a cozinha, peguei um copo e, após enchê-
lo com água gelada, tomei quase todo o líquido fresco de
uma vez.
— A Tamara me ligou. A coitadinha está
preocupadíssima. Como pode ser tão insensível? Custava
ligar para sua namorada? — disse minha mãe ao aparecer
de repente atrás de mim.
Dei uma gargalhada alta ao devolver o copo à pia e
me virar para ela.
— Ela nunca foi e nunca será minha namorada.
— A Tamara é uma moça linda, de boa família, como
pode ignorar isso?
— Do mesmo jeito que você ignorou quando
conheceu o meu pai.
Vi suas mãos se fecharem em punho ao lado do
corpo. Os nós dos seus dedos se destacaram sob a pele
esticada.
— E foi o maior erro que cometi! Nunca vou deixar
que você faça algo parecido.
— A decisão de quem namorar ou não é apenas
minha, mãe.
— Não me diga que você conheceu alguém.
— Conheci, mas ainda não tenho muito o que falar
sobre isso. Sei que você gosta muito da Tamara. Ela é linda,
às vezes até divertida, mas não é a mulher que quero ao
meu lado pelo resto da vida. Eu já disse isso a ela.
— Disse isso a ela? Como pode ser tão cruel, José
Augusto?
— Você vê crueldade, e eu, honestidade. Não
teríamos sequer dormido juntos se isso não tivesse sido
esclarecido desde o começo.
— Eu não te reconheço. Esse lugar não está fazendo
bem para você. Acho melhor você voltar para a capital.
— Você está me expulsando da sua casa, mãe?
— José Augusto...
— Não pretendo voltar à capital agora. Se me
mandar ir embora, vou arrumar um quarto na cidade. — Era
verdade, eu não estava pronto para retornar ao meu
apartamento. Estava me sentindo realmente bem, como há
muitos anos não acontecia, não podia abrir mão daquilo
naquele momento.
Suas mãos se abriram, esticando todos os dedos
enquanto ela respirava profundamente.
— Nunca te expulsaria de casa, fique aqui. Não faz
sentido ir para um hotel com tantos quartos nessa casa.
— Ficarei. — Aproximei-me dela e deixei um beijo em
seu rosto.
— Tome um banho. Está fedendo a fumaça.
— Vou tomar. Durma bem, mãe.
Subi as escadas em silêncio, minha mãe não me
seguiu. Fechei a porta do meu quarto e tirei o celular do
bolso. Havia inúmeras chamadas de Tamara, eu tinha
esquecido de respondê-la durante o dia, talvez porque
minha mente estava sendo preenchida cada vez mais por
Maria Clara.
Apesar do horário, busquei o nome de Tamara na
agenda para fazer uma ligação e dizer que estava tudo
bem, porém a chamada não foi completada. Escrevi uma
mensagem avisando que estava na fazenda e que tudo
corria bem. Não fiz aquilo por termos um relacionamento
amoroso, nada daquela natureza existia entre nós, fiz
porque a considerava uma amiga e não queria que se
preocupasse comigo.
Depois do banho, encarando o teto sobre a cama,
demorei a dormir. Minha mente estava presa a um rosto que
não conseguia esquecer. Aquilo era completamente novo
para mim e me assustava um pouco, mas não a ponto de
me fazer ignorar, seria impossível fingir que nada estava
acontecendo.
Pela manhã, desci as escadas, a porta do quarto de
minha mãe estava fechada. Na cozinha, encontrei Zefa
passando o café. O aroma preenchia toda a cozinha, abrindo
meu apetite.
— Bom dia, Zefa.
— Bom dia — respondeu, fechando a garrafa de café
e colocando-a sobre a mesa.
— Você não deveria estar de folga hoje?
— Sua mãe pediu que eu viesse ajudá-la. Não me
custa nada.
— Minha mãe consegue preparar suas próprias
refeições por um dia.
— Eu não me importo. Quer ovos mexidos?
— Sim. Mas eu mesmo preparo.
— De jeito nenhum. — Ela quebrou os ovos em um
prato e começou a mexê-los. — Não quero problemas com a
dona Cassandra por bobeira.
— Tudo bem. — Levantei as mãos como se estivesse
me rendendo. — Zefa, a sua afilhada vai estar em casa
hoje?
A senhora se desconcertou e acabou derrubando o
prato no chão, que se quebrou, fazendo uma bagunça de
cacos de vidro e ovos crus. Aproximei-me para começar a
juntar os pedaços, mas sua mãe me afastou.
— Pode deixar que eu limpo. Estou acostumada —
ela falou.
Senti uma mudança no seu comportamento, no seu
tom de voz.
Puxei a cadeira na ponta da mesa e sentei-me. Zefa
tinha terminado de limpar a bagunça recente e lavava as
mãos na pia.
— Existe algum problema, Zefa? Comigo? —
perguntei. Não queria que soasse como uma ameaça, era
apenas uma pergunta que eu precisava fazer.
— De jeito nenhum, patrão.
— Eu tenho a impressão de que existe, e gostaria
muito que fosse franca.
Ela continuou a preparar o café da manhã. Logo que
ficou pronto, ela colocou os ovos mexidos sobre um prato e
o trouxe até mim. Servi uma xícara de café preto e alcancei
uma fatia de pão caseiro que estava disposto sobre a mesa.
A senhora puxou a cadeira ao meu lado e sentou-se,
colocando as mãos juntas sobre o seu colo.
— Você sempre foi um menino bom, muito parecido
com seu pai — ela iniciou. — Acredito que ainda seja, mas a
sua amizade com os empregados não é algo que sua mãe
deseje, nem mesmo suporte.
— Eu não sou mais uma criança, posso escolher
minhas amizades.
— Queria que fosse tão simples. — Ela suspirou. —
Se gosta da minha afilhada, fique longe dela. Não quero que
ela saia de perto de mim e muito menos que a machuque.
— Eu jamais escolheria machucá-la.
— E nem eu, mas às vezes, não temos escolha.
— A senhora não pode estar falando sério. Está
parecendo uma versão mais branda da minha mãe. O que
há de errado com vocês?
— Que barulho foi aquele mais cedo? — minha mãe
surgiu na porta da cozinha. Zefa se levantou imediatamente
para recebê-la.
— Eu quebrei um prato, senhora. Me desculpe por
acordá-la.
— Tenha mais cuidado, Zefa. Eu preciso descansar.
Meus últimos dias têm sido cansativos.
— Pode deixar, senhora. Vou ser mais cuidadosa.
— E você, filho, o que pretende fazer hoje?
Minha mãe sentou-se na cadeira onde Zefa estava e
alcançou uma de minhas mãos, fazendo um leve carinho.
— Vou dar uma volta pela fazenda. Andar um pouco
a cavalo.
— Tudo bem. — Ela soltou minha mão, segurando um
sorriso forçado no rosto.
— Vejo vocês mais tarde — avisei antes de me
levantar e sair da cozinha.
Selei meu cavalo e, com o chapéu na cabeça,
cavalguei em direção ao rio. Precisava colocar a cabeça no
lugar, pensar um pouco.
Ainda era cedo, não esperava encontrar alguém no
rio, no entanto, debaixo do pé de manga, com uma folha da
árvore nas mãos, estava ela, Maria Clara.
Assim que prendi o cavalo em um tronco ao lado do
rio, embaixo de uma sombra, Clara se levantou, fazendo
menção de se afastar.
— Não vá — eu disse imediatamente.
Ela se virou para mim novamente. Analisando-me.
Seus olhos estavam vermelhos, talvez tivesse chorado.
— É melhor eu ir. — Ela limpou as mãos no short
jeans.
Andei até ela, seu semblante parecia triste e aquilo
doeu em mim de uma maneira que eu não podia ter
previsto.
— O que aconteceu? — indaguei.
Ela abaixou o rosto, parte do seu cabelo cobriu a
face. Afastei os fios castanhos, colocando-os atrás da sua
orelha. Ela voltou a me olhar.
— Eu perdi minha mãe há pouco mais de um mês.
Essa noite, eu sonhei com ela. Sonhei que ela estava
tentando falar comigo, mas sua voz não saía. — Uma
lágrima correu por seu rosto, limpei-a devagar. — Ela
parecia quase... desesperada. Nada saía da sua boca, mas
eu sentia que ela queria me proteger de alguma coisa.
Um soluço carregado de dor passou por sua
garganta. Sem pensar, puxei-a para meus braços, passando
uma das mãos em suas costas enquanto ele chorava
baixinho. Eu conhecia aquela dor, a dor da saudade, de
saber que alguém que você ama foi embora para sempre e
você está... só.
Não sei quanto tempo ela ficou em meus braços até
se acalmar e as lágrimas e soluços cessarem, não
importava, tudo o que eu queria naquele momento era dar
algum tipo de conforto a ela.
— Eu soube que seu pai faleceu há muitos anos. Você
sente menos saudade do que antes? — ela perguntou ao
afastar seu rosto do meu peito.
Segurei sua mão com gentileza e a guiei de volta ao
banco de madeira. Sentei-me e ela fez o mesmo, colocando-
se ao meu lado.
— A saudade não passa, não completamente. Tem
dias que eu sinto mais falta dele do que em outros. Por
muito tempo, achei que voltar à fazenda seria terrível, por
ele não estar mais aqui, mas estava errado. De alguma
forma, me sinto mais próximo dele.
— Por que você foi embora?
— Para estudar. Direito. Depois fiz uma
especialização, depois administração. Para resumir, este é o
primeiro ano em que não estou envolvido com os estudos,
apenas com o trabalho. Os últimos anos foram agitados,
mas eu não estou reclamando, mantiveram minha cabeça
ocupada.
— Eu faço pedagogia. A distância. Amanhã tenho que
ir à cidade fazer prova.
— Gosta de crianças?
— Sim. Eu era a babá da vizinhança no bairro onde
morava. Todas as mães pediam socorro para mim quando
precisavam.
— Eu teria estudado agronomia, se pudesse.
— E por que não estudou?
— Minha mãe estava passando por um período difícil
desde a morte do meu pai. Ela estava depressiva e se
recusava a buscar ajuda. As discussões sobre meus estudos
e sobre eu continuar na fazenda estavam piorando muito o
estado dela. Ela é a única família que me restou e eu não
queria aumentar o seu sofrimento. Achei melhor aceitar
meu destino. Não era ruim, só era diferente do que eu
gostaria.
— Mas você está feliz e realizado, não está?
— Não tenho tanta certeza. Voltar para a fazenda
tem me feito questionar algumas coisas.
— Eu não me lembro do falecimento do meu pai, era
muito pequena, talvez por isso não tenha sido tão difícil
como está sendo agora. Mesmo assim, agradeço ainda ter a
madrinha por perto.
— Ela é uma boa mulher.
— É sim.
Passamos alguns minutos em silêncio, observando as
águas do rio correrem e ouvindo o som dos pássaros que
cantavam ao nosso redor.
— Eu conheço uma cachoeira não muito longe daqui.
Quer ir até lá comigo?
Seus olhos brilharam de entusiasmo e um sorriso
surgiu em seus lábios, aquilo me alegrou imediatamente.
Vê-la sorrir fazia eu me sentir bem de um jeito novo e
inesperado.
ONZE
MARIA CLARA
José Augusto me ajudou a subir no cavalo e então se
colocou atrás de mim. Seus braços se acomodaram ao redor
da minha cintura, como tinha acontecido na noite anterior.
Eu estava consciente de sua proximidade, do seu corpo
colado ao meu.
— Daquele outro lado, tem uma aérea enorme de
pasto. Os currais, galpões e tudo mais, contudo, nossa
direção é outra.
Ele puxou a rédea e o cavalo virou para o outro lado.
Não corremos, era mais uma caminhada devagar. Não tinha
como se esconder do sol quente o tempo todo, senti minha
pele começar a queimar.
José Augusto passou as rédeas apenas para uma das
mãos e tirou seu chapéu, colocando-o em minha cabeça em
seguida.
— Não precisa, você vai se queimar — falei.
— Fica muito melhor em você — disse, depositando
um beijo em meu ombro descoberto pela regata branca.
Meu corpo experimentou um arrepio que percorreu
minhas costas. Como eu podia sentir um arrepio com todo
aquele calor?
Atravessamos o campo e chegamos a uma parte de
mata. Era mais fechada do que as outras que eu tinha visto
pela fazenda. Iniciamos uma trilha pouco demarcada.
— Tem certeza de que é por aqui? — perguntei.
— Sim, faz anos, mas não poderia esquecer. Esse é o
meu segundo lugar favorito na fazenda.
— Qual é o primeiro?
— Aquele pé de manga ao lado do rio. Eu costumava
descansar depois do almoço com meu pai naquele lugar,
todos os dias.
— Acho que estou escutando a água — eu disse,
animada.
Chegamos a uma clareira, com pedras enormes ao
redor. José Augusto desceu do cavalo e me ajudou a fazer o
mesmo. Caminhamos devagar por entre as pedras,
descendo até a água que caía de uma altura de cerca de
dois metros, formando uma piscina de água verde-claro ao
redor.
Havia flores silvestres colorindo as margens,
desafiando as rochas que ocupavam boa parte do solo,
deixando o lugar ainda mais bonito.
Andei em direção ao rio, molhando os pés na
correnteza gelada enquanto José Augusto deixava o cavalo
matar a sede antes de prendê-lo em uma árvore próxima.
Devagar, sentei-me sobre uma das pedras, a
superfície era áspera, mas não chegava a ser
desconfortável. Olhei para cima, a luz do sol atravessava os
galhos e folhas e chegava em alguns feixes até mim. Fechei
os olhos, apreciando a maravilha daquele lugar.
— Vou nadar um pouco. — Ouvi a voz de José
Augusto ao meu lado.
Ele começou a tirar a camiseta e a calça em seguida.
José Augusto era um homem atlético, de ombros largos e
músculos desenhados.
Desviei o rosto ao ser flagrada observando seu corpo
por tempo demais, fazendo-o sorrir de lado.
Ele foi até onde a água caía, formando um arco-íris
logo à frente. Lá, ele mergulhou e voltou à superfície várias
vezes.
— Venha mergulhar também — convidou de longe.
— Não sei nadar — gritei para que ele pudesse ouvir.
Ele deu algumas braçadas de volta até poder andar
pelo riacho, chegando até mim.
— Por que não me disse? — Passou a mão nos
cabelos molhados. A água desceu por seu corpo, traçando
um fino caminho por seu abdômen marcado.
— Você não perguntou. — Sorri.
— Eu te levo. Pode se segurar em mim quando não
der pé.
Pensei por um momento: eu queria muito aquilo, mas
eu deveria? Com certeza não, ainda assim tirei minha
regata e aceitei sua mão quando ele a estendeu para mim.
As pedras estavam lisas sob nossos pés,
caminhamos devagar. A mão de José Augusto buscou a
minha e nossos dedos se entrelaçaram, sorri, ao perceber
que andávamos de mãos dadas.
— Acho que vamos somente até aqui — avisei
quando a água bateu no meu peito.
Seu corpo se juntou ao meu, senti suas mãos
agarrarem meu quadril e me impulsionar para cima. Minhas
pernas enlaçaram sua cintura.
— Quer ir um pouco mais adiante?
— Sim — sussurrei.
Ele deu mais alguns passos à frente, até ter metade
do seu tronco mergulhado na água gelada, contudo, notei
que meu corpo continuava quente. Prendi o lábio inferior
entre os dentes, segurando um sorriso.
Quando levantei a cabeça, os olhos azuis de José
Augusto me fitavam com intensidade. Minhas mãos
circularam seu pescoço devagar e minha boca se aproximou
da sua. Senti uma nova onda de eletricidade quando nossos
lábios se tocaram e nossas línguas buscaram-se
mutuamente.
A forma como meus lábios eram puxados, como sua
língua deslizava dentro da minha boca e a sua respiração
vinha ao encontro da minha me fazia desejar mais, muito
mais.
Suas mãos apertavam o meu quadril na medida em
que o beijo se aprofundava, me deixando sem ar.
Sua boca se afastou da minha e passou a explorar
meu pescoço, descendo até meus seios. José Augusto
afastou o meu sutiã, revelando meus mamilos endurecidos.
A sensação de prazer aumentou quando ele chupou cada
um dos montes, mordiscando um bico duro de cada vez.
Minha respiração ficou mais pesada e difícil.
— Eu quero muito você, Maria Clara — ele disse
contra meu pescoço. — Se não pararmos agora...
Eu entendia o que ele estava falando, eu me sentia
do mesmo jeito. Aquele seria um caminho sem volta.
— Vamos retornar para casa — pedi, quase sem
forças.
Ele assentiu e, então, cobriu meus seios novamente,
me carregando para fora da água.
Vesti minha regata seca novamente e, andando pelas
pedras com cuidado, chegamos à clareira, montando no
cavalo em seguida.
No caminho de volta, ignorando o que tinha
acontecido instantes antes, passamos a conversar sobre
nossas infâncias, ele ali na fazenda e eu em um bairro
comum da capital. Estávamos rindo de uma de suas
histórias quando avistamos o Joaquim sobre um cavalo
embaixo do pé de manga que nós dois adorávamos.
José Augusto parou o seu cavalo ao lado de Joaquim,
que não demonstrava qualquer sinal de felicidade em nos
ver.
— Patrão, a sua mãe pediu para chamá-lo, com
urgência.
— Ela está bem?
— Não sei. Estou apenas passando o recado —
respondeu Joaquim.
— Melhor você ir — falei, fazendo menção de descer,
no entanto, os braços de José Augusto se mantiveram
firmes ao redor de minha cintura.
— Eu te levo até sua casa — disse José Augusto.
— Não precisa. Posso voltar andando.
— Decidam-se logo — reclamou Joaquim.
Os braços de José Augusto se mantinham firmes em
volta do meu corpo, demonstrando que ele não cederia
facilmente.
— Tudo bem — concordei, evitando os olhos de
Joaquim que me fuzilavam.
Fomos em silêncio pela estrada, o clima leve e
descontraído tinha nos deixado no momento em que
encontramos Joaquim e precisamos encarar a verdade:
nada podia acontecer entre nós. Nem naquele dia, nem
nunca.
José Augusto desceu do cavalo e me ajudou a fazer o
mesmo, e então puxou meu corpo contra o seu. Sua mão se
enrolou em meus cabelos e sua boca tomou a minha em um
beijo intenso que roubou meu ar mais uma vez. Se
afastando apenas ao ouvir Joaquim pigarrear alto ao nosso
lado.
— Nos vemos amanhã? — ele perguntou.
Confirmei, ainda que não soubesse como seria o
amanhã. José Augusto e eu não tínhamos futuro juntos, eu
sabia, o que eu não sabia era como resistir a ele.
— Vamos? — ele chamou Joaquim após subir
novamente no cavalo.
— Eu já dei o meu recado, agora preciso conversar
com a Maria Clara.
— Pode ir, eu estou em casa — lembrei a José
Augusto, que pareceu em dúvida por um momento, mas
então, ele abaixou seu chapéu e saiu em disparada para
longe de nós.
Joaquim também desceu do cavalo, prendendo-o em
uma árvore próxima.
— Eu não posso mandar em você, Maria Clara, mas
eu já te avisei e vou falar de novo: fica longe desse aí. Essa
história não vai acabar bem. A mãe dele não é alguém que
se deseje como inimiga.
— Eu estou tentando — falei, contudo, nem eu
mesma acreditei naquela frase.
— Pois tente mais — disse bravo. — Você já tem
quase vinte anos, não pode ser tão desajuizada assim.
— Vocês falam como se fosse a pior coisa do mundo.
Até parece que eu não mereço ele.
Ele deu mais um passo, ficando muito próximo a
mim.
— Você está entendendo tudo errado. — Algo que se
parecia com dor saiu em sua voz. — Não é você que não
merece ele. É ele que não merece você. E eu não quero ver
outra tragédia manchando esse chão.
— Vocês estão aí! — falou a madrinha ao nos ver por
cima da cerca. — Venham almoçar, fiz uma galinha caipira
que está tão boa quanto a que a Maria Clara prepara.
Ouvi-la alegre tirou um pouco do peso em meu
coração. Forcei um sorriso no rosto e caminhei rumo ao
pequeno portão, seguida por Joaquim.
DOZE
JOSÉ AUGUSTO
Apressei os passos ao chegar no casarão, subi as
escadas até o quarto da minha mãe, que estava com a
porta aberta. Tirei o chapéu e dei duas batidas leves na
madeira, chamando sua atenção.
— Você parece péssimo. É melhor ir tomar um banho
— disse, sentando-se na cama, apoiando as costas na
cabeceira de madeira com entalhes em formato de círculos
de diversos tamanhos.
— O que houve? Por que pediu que me chamasse
com urgência?
— Estava... me sentindo mal, mas já passou.
— Pode se vestir, vou te levar ao médico.
— Eu estou bem agora — disse com um pouco mais
de firmeza.
— Joaquim me disse que seu chamado era urgente,
aí eu chego aqui e você não quer ir ao médico. Era para eu
entender alguma coisa disso?
— Entenda que sua mãe precisa de você. Então,
esteja por perto.
Bati o chapéu contra minha perna.
— Eu vou tomar um banho e descer para almoçar.
— Não precisa esperar por mim, já almocei. Você
demorou muito — reclamou.
— Estarei em casa, me chame se precisar.
Não sabia de onde tinha vindo aquela carência
súbita. Aparentemente, minha mãe estava bem, só queria
que eu estivesse por perto. Talvez ela se sentisse mais
sozinha do que era capaz de admitir.
Depois do banho, coloquei uma roupa limpa e desci
as escadas. Na cozinha, esquentei um prato de comida no
micro-ondas. Sentei-me na cadeira na ponta da mesa e
comecei a minha refeição.
Era difícil manter meus pensamentos no presente
depois de ter cedido aos meus desejos mais intensos. Maria
Clara era melhor do que eu tinha imaginado e eu sabia que
não conseguiria apenas esquecer o que tinha acontecido
naquela cachoeira. Eu queria mais, eu precisava de mais.
Lavei o prato após terminar e o deixei sobre a pia.
Andei até a varanda, onde me sentei em uma das poltronas
e encarei o céu azul. Eu me sentia bem como há muito
tempo não acontecia. As coisas estavam tão diferentes em
minha vida, no entanto, pareciam mais certas do que
nunca.
Ouvi um carro se aproximar. Levantei-me, não
estávamos esperando ninguém. Reconheci o carro assim
que ele se aproximou do casarão. Era Tamara. Mas o que ela
fazia ali?
Minha mãe surgiu ao meu lado de repente, usando
um robe branco. Ela apertou a faixa na cintura, sorrindo.
— Tamara, minha querida — minha mãe falou
entusiasmada quando minha amiga desceu do carro e
andou até nós. — Espero que a viagem tenha sido tranquila.
— Foi sim — confirmou, abraçando minha mãe como
se fossem velhas amigas.
— Oi, José Augusto. É bom te ver de novo. — Tamara
me abraçou e tentou beijar minha boca, contudo, eu desviei
a tempo.
Que porra era aquela? Eu não sabia o que estava
acontecendo e não ficaria no escuro por mais tempo.
— O que você está fazendo aqui, Tamara? —
perguntei, dando um passo atrás e cruzando os braços
sobre o peito.
— Isso é jeito de tratar uma convidada? — minha
mãe falou ofendida.
— Você a convidou? Porque, apesar de nossa
amizade, eu deixei esclarecido que não queria trazê-la à
fazenda.
— Sim. Eu a convidei. Não queria que você passasse
esse tempo aqui ocioso. Tamara será uma ótima companhia.
Dei uma risada fraca.
— É claro. Ficarei feliz em fazer companhia a você,
José Augusto. — Sua mão correu devagar por meu braço.
— Na verdade, Tamara, tenho trabalhado na fazenda
por esses dias, então, a menos que queira colocar um
chapéu, uma bota e encher suas mãos delicadas de calos,
acho que não passaremos muito tempo juntos.
— É cedo para decidir qualquer coisa, vamos entrar,
você deve estar exausta, querida — minha mãe pegou a
mão de Tamara e começou a guiá-la para dentro do casarão.
— Filho, seja gentil, traga as malas da Tamara para dentro e
coloque-as ao lado do seu quarto.
— Sim, senhora — falei antes de descer as escadas
da varanda.
Se a minha mãe achava que eu deixaria Tamara me
vigiar ou roubar meu tempo com quem realmente me
interessava, ela estava muito enganada. Não tinha como a
dona Cassandra saber sobre Maria Clara e eu, tínhamos
acabado de ficar juntos e estávamos completamente
sozinhos quando aconteceu, então, eu preferia acreditar
que aquela situação não passava de uma coincidência
infeliz.
Deixei as malas de Tamara ao lado da cama, no
quarto que ela ocuparia. Tudo estava no lugar, pronto para
recebê-la, me perguntei quando minha mãe tinha pedido à
Zefa que preparasse o quarto. Será que Zefa sabia que
Tamara viria e por isso pediu que eu ficasse longe da sua
afilhada?
— Filho — minha mãe me chamou quando passei
pela sala. — Venha até aqui, por favor.
Caminhei até elas. Ambas estavam em pé, ao redor
da mesa na cozinha.
— Chame Josefa para mim, por favor. Diga que estou
com visita e preciso que ela faça um café da tarde e prepare
o jantar.
— É domingo, mãe — lembrei-a. — Ela nem deveria
ter vindo aqui hoje pela manhã.
— E qual é o problema de ela me socorrer por
algumas poucas horas? A Josefa não deve estar fazendo
nada a essa hora — argumentou minha mãe.
— Não. Eu não vou chamá-la. Eu mesmo preparo o
café — anunciei.
Andei até a pia e lavei as mãos, secando-as em
seguida em um pano de prato limpo. Coloquei a chaleira sob
a torneira aberta e a enchi. Liguei a chama do fogão e soltei
a chaleira sobre a grade, sendo vigiado de perto por minha
mãe e Tamara.
— E sobre o jantar? Você vai fazer também? —
indagou minha mãe.
— Tem comida de sobra na geladeira. É só esquentar
— falei.
— Você não espera que sua namorada venha até
aqui para comer comida velha, não é?
— A Tamara é minha amiga e não minha namorada.
Todos aqui sabemos disso. Além do mais, ela é sua
convidada, não minha.
— Eu não me importo em comer o que tiver, não se
preocupem comigo — disse Tamara. A encarei um pouco
confuso, conhecendo seus luxos, não esperava que ela
aceitasse tão facilmente.
Ao perceber que a água tinha fervido, preparei o
coador de pano e o pó de café.
— Vocês duas podem esperar na sala de jantar, eu
levarei o café até vocês. Minha mãe nunca fez uma refeição
nessa cozinha e não acredito que esta será a primeira.
— Não será — confirmou ela, saindo do recinto com
Tamara.
Preparei as garrafas e uma bandeja grande com
pães, geleias e manteiga, como vi Zefa fazer muitas vezes.
Levei até a mesa onde estavam.
— Tome café conosco, José Augusto — pediu Tamara
ao ver que eu me afastava.
Eu não queria ser tão rude. Tínhamos uma amizade
longa, seu pai ainda era meu chefe e, em algumas
semanas, ainda viajaríamos juntos, então, tentando manter
o clima da melhor forma, aceitei.
Sentei-me na cadeira do outro lado da mesa, de
frente para elas.
— Você está mais bronzeado — notou Tamara
enquanto passava geleia em uma fatia de pão.
— Ele não está bronzeado, está queimado do sol —
retrucou minha mãe.
— Esse visual de camiseta e jeans não fica ruim em
você. Sempre o via de terno, é bom te ver mais casual, para
variar.
— Não sei se concordo — minha mãe voltou a falar.
— Eu quis dizer que seu filho fica lindo de qualquer
jeito.
— Isso é verdade — dona Cassandra disse,
orgulhosa.
Notei o quanto elas estavam em sintonia, minha mãe
não gostava fácil das pessoas, mas parecia adorar Tamara.
— Pode me levar para conhecer a fazenda?
Deixei a xícara sobre a mesa após tomar um longo
gole de café preto.
— Acho que deve descansar da viagem, Tamara.
Além disso, minha mãe pediu que eu não saísse de casa, ela
não está se sentindo bem.
— Eu? — minha mãe falou em tom de surpresa. — Eu
estou ótima, faço questão que desfile com a Tamara por
todos os cantos da fazenda.
— Quer mesmo conhecer a fazenda? — questionei.
— Com certeza, estou ansiosa por isso — confirmou.
— Então, amanhã cedo, quando eu sair para
trabalhar, peço ao Joelson para te acompanhar, ninguém
conhece essas terras como ele.
— O quê? — minha mãe falou. — Isso é um absurdo.
— Não importa quem vai mostrar a fazenda a ela,
mãe. — Levei um pedaço de pão à boca e tomei mais um
gole de café.
Os pés da cadeira rangeram no piso quando usei
minhas pernas para afastar-me da mesa.
— Não descerei para o jantar. Estou exausto, dormi
pouco essa noite e amanhã será um longo dia, então, vou
me deitar cedo.
— Mas, filho...
— Tamara — chamei sua atenção. — Apesar de você
não ter respeitado meu pedido, ainda tenho sua amizade
em consideração, espero que aproveite seus dias na
fazenda.
Saí da sala de jantar e subi as escadas, indo em
direção ao meu quarto. Fechei a porta e tirei o calçado. Não
demorou para que Maria Clara surgisse em meus
pensamentos. Ela tinha o poder de perturbar minha mente e
fazer-me sentir em paz ao mesmo tempo. Era de assustar e,
ainda assim, o que eu mais queria naquele momento era
estar com ela.
TREZE
MARIA CLARA
— Acorda, Maria Clara. — Senti meu corpo ser
balançado, virei-me sobre o colchão, esfregando os olhos.
— O que houve, madrinha? — perguntei, sentando-
me na cama.
— A dona Cassandra está com visita, pediu que eu te
chamasse para ajudar na casa.
— Ajudar? Como assim? Ela não tinha dito para eu
ficar longe? — indaguei, confusa.
— Sim, mas as ordens mudaram. Levante-se e
vamos.
— Vou colocar uma roupa e escovar os dentes —
avisei.
— Prenda os cabelos também, você vai me ajudar
com o café da manhã e almoço. Tenho uma lista de coisas
para fazer e servir.
— Madrinha — chamei-a após colocar os chinelos. —
Eu tenho prova no polo hoje. Na cidade.
— Eu tinha me esquecido disso. — Ela levou a mão à
testa. — Vamos fazer assim, você me ajuda como puder até
o horário do ônibus passar. Pode ser?
— Tudo bem.
Rapidamente troquei de roupa, lavei o rosto e
escovei os dentes, prendendo os cabelos longos na
sequência. Ainda não entendia o chamado repentino da
dona Cassandra, mas ignorei os pensamentos enquanto
caminhava atrás da madrinha pela trilha que levava ao
casarão.
Na cozinha, comecei a fazer um bolo de laranja
enquanto a madrinha fazia outro de milho. O cheiro de café
estava dominando todo o ambiente e a fome começava a
me apertar.
— Belisque [5]isso aqui. — Um pote de vidro com
biscoitos caseiros foi colocado à minha frente. Experimentei
um deles enquanto seguia as anotações da receita em um
caderno velho onde a madrinha mantinha seus segredos
culinários.
Ouvi um barulho vindo do outro lado, talvez na
escada. Parei de mexer a massa por um instante. Seria José
Augusto? Estava ansiosa para vê-lo novamente, mas não ali.
O que eu sabia sobre a mãe dele era suficiente para me
deixar desconfortável com a nossa possível situação.
— É só a dona Cassandra. — Ouvi a voz da madrinha.
— Vou colocar isso para assar.
Enquanto os bolos assavam, a madrinha preparou
uma torta salgada e eu, um patê de frango. Descascamos e
fatiamos algumas frutas para completar a refeição que seria
servida.
— Está parecendo café da manhã de hotel —
comentei.
— Vou levando algumas coisas para a mesa.
Ajudei a madrinha e assim conseguimos deixar a sala
de jantar preparada com uma refeição matinal farta. Eu
estava ao lado da mesa quando a dona da casa adentrou o
ambiente acompanhada de uma mulher jovem, alta e
magra, que parecia uma versão mais nova da própria
Cassandra.
Dei apenas dois passos em direção à porta antes de
parar ao ouvir dona Cassandra me chamar pelo nome.
— Preciso que fique à nossa disposição enquanto
tomamos café da manhã — disse ela, sentando-se na
cadeira na ponta da mesa. — E você, Josefa, chame o meu
filho para nos acompanhar.
— Ele saiu cedinho, dona Cassandra. Foi para o
campo.
— Sem comer nada? — questionou Cassandra.
— Fiz alguns ovos mexidos e um café. Ele comeu
com pão caseiro que tinha pronto.
Vi a mulher se remexer na cadeira, parecia mais do
que desconforto, ela estava insatisfeita.
— Então, pode voltar aos seus afazeres e não atrase
com o almoço.
— Sim, senhora — disse minha madrinha antes de
sair da sala.
Eu permaneci em pé do outro lado da mesa, com as
mãos juntas à frente do corpo. Era inegável a estranha
sensação de desconforto que crescia naquele ambiente.
— Então, minha querida, como pode ver, meu filho é
muito... preocupado com a fazenda. Por isso, saiu cedo —
Cassandra falou, direcionando-se à mulher jovem ao seu
lado.
— Não me surpreende, José Augusto sempre foi
muito responsável.
Eu não podia mostrar meu interesse na conversa
apenas por ouvir o nome de José Augusto sair da boca
daquela mulher. Então, forcei meus olhos para baixo,
fixando-os em minhas mãos.
— Eu estou tão feliz por você estar aqui conosco.
Além de mim, meu filho não tem companhia do seu nível
quando vem à fazenda.
Não precisei levantar a cabeça para saber que a mãe
de José Augusto me direcionava o seu olhar.
— Tenho planos para os dias que passaremos juntos.
Quero aproveitar ao máximo a companhia do seu filho —
disse a jovem mulher, animada.
— Mas não só a companhia dele, precisaremos de um
tempo juntas, e não apenas por eu ser a sua futura sogra,
mas também porque temos que falar sobre os preparativos
do casamento de vocês.
— Casamento, mas...
— Tamara, minha querida. É hora de oficializarmos o
compromisso de vocês. Meu filho não pode adiar mais, o
casamento vai acontecer e nós temos muito o que
conversar sobre.
Apertei firme meus dedos entrelaçados. Eu não podia
ter escutado direito, podia? José Augusto estava noivo e se
casaria em breve? Por que ele não havia me dito nada? Foi
impossível não me sentir enganada.
Meus olhos arderam, porém, segurei as lágrimas que
se formaram de repente. Eu não podia demonstrar a
confusão que acontecia dentro de mim, não na frente da
mãe de José Augusto e da sua... noiva.
— Senhora — minha madrinha apareceu na porta
novamente. — Preciso da ajuda da Maria Clara na cozinha.
Ela não vai poder passar o dia no casarão, tem uma prova
para fazer na cidade. Pode liberar ela agora?
Levantei minha cabeça na direção da minha
madrinha, ignorando as duas mulheres na mesa ao lado.
— Que dia péssimo para isso, Maria Clara —
reclamou Cassandra. — Mas, o que eu posso fazer? Vá
ajudar sua tia enquanto ainda está aqui.
Assenti e, sem pronunciar nenhuma palavra,
acompanhei a madrinha de volta à cozinha. Soltei o ar que
prendia no peito quando vi que estávamos sozinhas
novamente.
— É verdade que ele vai se casar, madrinha? —
Aquela pergunta passou por minha garganta como se
estivesse rasgando-a.
Eu não precisava dizer de quem eu estava falando,
ela sabia. Seu rosto marcado por rugas demonstrou tristeza.
A confirmação silenciosa doeu mais do que eu esperava.
Como eu tinha me apaixonado tão rapidamente? Em que
momento tinha acontecido que eu não tinha percebido?
— Filha. — Ela se aproximou e segurou minhas mãos
nas suas. — Não pense em José Augusto. Ele é de um
mundo distante do nosso, por mais que ele tente acreditar
no contrário.
Devagar, suas mãos deixaram as minhas e ela voltou
para a frente do fogão.
— Tome seu café da manhã. Você só comeu umas
bolachinhas até agora.
Passei manteiga em uma fatia de pão e peguei uma
xícara de café para acompanhar. Sabia que o café da manhã
farto não era para nós e não queria complicar ainda mais as
coisas para a minha madrinha.
Depois de descascar os legumes, lavar algumas
folhas para a salada, cortar e temperar as carnes, protegi os
alimentos com plástico filme e os deixei na geladeira.
— É melhor você ir ou vai perder o ônibus — disse a
madrinha ao retornar à cozinha. Ela tinha se retirado para
limpar a casa enquanto eu adiantava o que podia do
almoço.
— Eu vou. Preciso tomar um banho rápido, estou
cheirando a carne e temperos.
Dona Josefa enfiou alguma coisa no meu bolso de
trás da calça jeans.
— Para você comer alguma coisa na cidade —
avisou-me.
— Não precisa, madrinha.
— Não estou dizendo que precisa. Estou te dando o
dinheiro para você comer.
— Obrigada. — Forcei um sorriso.
Saí da cozinha e andei até o corredor que levava à
porta dos fundos. De longe, vi Joaquim indo em direção ao
estábulo. Ele tirou o chapéu, cumprimentando-me, acenei
de volta, tentando ocultar minha falta de entusiasmo.
Em casa, com o horário apertado, tomei um banho
rápido, escovei os dentes, passei uma maquiagem leve no
rosto. Abri a segunda gaveta da minha cômoda ao lado da
cama. Estava fazendo muito calor para passar o dia de calça
jeans, fechei aquela gaveta e abri a seguinte. Peguei um
vestido de tecido leve, soltinho na parte inferior. A cor de
fundo era clara, com estampa de pequenas flores azuis por
todo o tecido.
Prendi os cabelos novamente e peguei minha bolsa.
O relógio na parede mostrava que eu precisava sair
imediatamente de casa para não perder o segundo e último
ônibus do dia que iria para a cidade.
QUATORZE
JOSÉ AUGUSTO
— É melhor a gente mexer com esse gado depois do
almoço, José Augusto — disse Joelson.
Olhei para meu punho verificando a hora no relógio,
não daria tempo de fazer o manejo antes da pausa.
— Tem razão. Eu vou almoçar e retorno mais tarde.
— Até depois, então — disse o homem, afastando-se
em direção à vila onde morava com a esposa.
Eu estava indo rumo ao casarão quando passei pela
casa de dona Josefa, me encontrava a poucos passos da
cerca quando ouvi a voz de Joaquim atrás de mim.
— Ela tem prova hoje, deve estar apurada — ele
disse.
— Que horas o ônibus passa aí na frente?
Ele bufou.
— Daqui a trinta minutos.
— Obrigado.
Apressei meus passos em direção ao casarão. Eu
precisava tomar um banho e ainda voltar a tempo de levar
Maria Clara até a cidade para fazer sua prova, sabia que o
transporte público ali era ruim.
— Filho, preciso falar com você — minha mãe disse
assim que passei pela porta da sala.
— Agora não posso, mãe — falei sem me deter,
correndo pelas escadas.
Com pressa, caminhei até o banheiro no meu quarto,
tirando a roupa suja do trabalho. Debaixo da água quase
fria, enquanto lavava o corpo, só conseguia pensar no
passeio na cachoeira, em Maria Clara.
Eu tinha lutado para mantê-la longe da minha cabeça
nas primeiras horas do dia ou não conseguiria trabalhar.
Maria Clara mexia comigo de um jeito que eu não esperava
um dia experimentar.
Passei uma toalha seca pelo corpo e vesti-me com
rapidez, não tinha muito tempo. Peguei minha carteira e as
chaves sobre a mesinha ao lado da cabeceira da cama.
Passei a mão pelos cabelos molhados enquanto descia até a
cozinha.
Josefa pareceu tomar um susto ao me ver chegar.
Peguei um copo no armário e o enchi com água gelada.
— Está tudo bem, Josefa? — perguntei após o
primeiro gole.
— Sim, senhor.
Minha mãe e a Tamara apareceram na porta,
sorridentes.
— Que bom que você chegou, filho. Vamos almoçar e
depois você vai mostrar a fazenda à Tamara.
— Eu estou saindo, vou até a cidade. Não sei que
horas retornarei. Avisarei ao Joelson para acompanhá-la,
Tamara.
— Eu posso ir junto com você? Até a cidade? —
indagou Tamara.
— Não — eu disse, colocando o copo sobre a mesa.
— Mas fique à vontade para conhecer a fazenda. Você
queria tanto, não queria?
— Ela queria com você, meu filho — minha mãe
intrometeu-se. — Não deveria...
— Estou indo — cortei-a.
Saí da cozinha, passando pela sala e pela varanda,
indo até o meu carro. Liguei-o, direcionando-me até a
entrada da fazenda. Cheguei ao ponto de ônibus precário
logo após a passagem pelo portão.
Abaixei o vidro do lado do passageiro e inclinei-me
um pouco para o lado, na direção da linda jovem que
esperava o transporte público. Aquela mesma que era a
responsável por tirar o meu sono, dominando meus
pensamentos.
— Quer uma carona?
— Não. Obrigada. O ônibus já está vindo.
Estranhei não apenas sua resposta, mas também sua
postura. Clara parecia mais distante e fria.
— Eu posso te levar, não precisa pegar o ônibus.
Ela virou o rosto e olhou para a estrada. O que havia
acontecido?
— Clara — chamei-a. — Está tudo bem?
Ela voltou a olhar para mim. Não havia nada
amigável em seu semblante.
— Homens comprometidos não devem ficar se
agarrando com outras por aí. — Havia revolta em sua voz.
— Do que você está falando?
— Não se faça de sonso! Eu estive trabalhando na
casa da sua mãe essa manhã e conheci sua noiva. Tamara,
não é?
— O que? — indaguei sem entender sobre o que ela
estava falando. — A Tamara não é minha noiva. De onde
você tirou isso?
Um vislumbre de confusão passou por seu rosto.
— Sua mãe... — disse com a voz um pouco mais
baixa. — E a própria Tamara. Elas estavam falando sobre
seu casamento, que aconteceria em breve.
— Eu não estou noivo da Tamara — declarei. — Pode
entrar agora?
O som do ônibus vindo pela estrada chamou sua
atenção. Seus olhos se voltaram para ele, fixando-se na
poeira que se levantava. Devagar, ela andou até o carro,
abriu a porta e entrou, sentando-se no banco ao lado do
meu.
— Ei — Aproximei-me dela, levando minhas mãos até
seu rosto — Eu não estou noivo da Tamara e de nenhuma
outra mulher. Eu não sei por que elas falaram uma coisa
dessas, mas não é verdade.
Ela me fitou, e uma respiração pesada escapou de
seu peito.
— A única em meus pensamentos é você, Clara. —
Um sorriso tímido surgiu em seus lábios.
Quando eu trouxe sua face para mais perto, sua
respiração bateu contra meu rosto. Seus lábios
entreabriram-se e, enquanto o ônibus passava ao nosso
lado, minha boca tomou a sua, sentindo o sabor de seus
lábios. Minha língua pediu passagem e, em seguida,
explorou todos os cantos de sua boca.
Uma de minhas mãos desceu pela lateral de seu
corpo até sua bunda, e desejando mais contato, segurei ao
lado de seu quadril, prestes a puxá-la para o meu colo
quando Clara recuou.
— Ainda preciso ir à cidade fazer minha prova —
lembrou-me.
— Tem razão. Me desculpe, estar perto de você me
deixa pouco racional.
Um sorriso maior tomou conta do seu rosto, me
fazendo sorrir também.
Voltei ao meu lugar e Clara colocou o cinto de
segurança, fixando os olhos na estrada à nossa frente.
Deixei as músicas de uma rádio local tomarem conta
do som à nossa volta. Poucos minutos depois, ao meu lado,
percebi que a Clara havia tirado o celular da bolsa. Busquei
o meu próprio e desbloqueei a tela, colocando o aparelho
em seu colo.
— Salve o seu número — pedi.
Ela o fez, colocando seu nome na minha agenda.
Aquele seria meu contato favorito.
— Que horas é sua prova? — perguntei ao estacionar
ao lado da praça central da cidade.
— Daqui a quarenta minutos.
— Você almoçou?
— Não deu tempo. Vou comer alguma coisa quando
sair.
— Quer almoçar comigo? Eu também não almocei.
Ela pareceu pensar um pouco antes de aceitar o
convite.
— Aonde vamos? — indagou ao descer do carro.
— Eu costumava almoçar um prato feito com meu
pai quando vínhamos à cidade. Se o restaurante ainda
existir, vamos almoçar lá.
— Prato feito? Jura? Depois daquele café de hotel
servido na sua casa?
— Minha mãe é exagerada, eu sei, mas eu não sou
como ela.
Maria Clara me encarou com um pouco de
descrença.
— Não estou dizendo que não gosto de um pouco de
luxo ou que não aprecio as comodidades que o dinheiro
traz, mas, ao contrário da minha mãe, não deixo que minha
vida se resuma a isso.
Atravessamos a praça, passamos pelas sombras de
algumas árvores até encontrar o velho restaurante que eu
frequentava com meu pai. Meus pés se detiveram em frente
ao estabelecimento de alvenaria, pintado em amarelo e
com uma varanda coberta na frente.
— Está tudo bem? — Seus dedos finos se
entrelaçaram nos meus.
— Lembranças — respondi, sentindo o peito doer.
— Às vezes elas entram de repente em nossa mente
trazendo saudade.
Olhei para a Maria Clara ao meu lado. Ela tinha
perdido a mãe há pouco tempo, eu sabia como aquilo era
difícil. Abracei-a, sentindo seus braços se apertarem ao
redor da minha cintura. Beijei sua testa.
— Pode falar comigo, sobre qualquer coisa, a
qualquer momento — disse.
Ela balançou a cabeça, concordando, ainda junto ao
meu peito.
— Vamos entrar para você não perder a hora —
avisei antes de nos afastarmos.
Sentamos em uma mesa no canto da varanda, com
vista para a praça. Por um momento, senti-me aquele
menino de novo, vindo à cidade ao lado do pai. Eu nem
sabia o quanto sentia falta daquilo até estar ali novamente.
— Eu não acredito. Não pode ser. — Ouvimos uma
senhora dizer ao se aproximar da nossa mesa branca de
plástico. — É você mesmo, José Augusto? Filho do Samuel?
— Sim — confirmei, tentando reconhecer a mulher.
— Sou eu, a dona Marta. Eu sempre recebia você e
seu pai aqui no meu restaurante.
Eu me lembrava vagamente de seu rosto e de sua
voz.
— Nós vínhamos muito aqui — concordei.
— Seu pai faz uma falta. Aquele era um homem bom.
— Eu concordo — disse.
— E o que você e a linda moça vão querer hoje?
— Dois pratos-feitos e dois sucos de laranja.
— E eu achando que você tinha se tornado uma
cópia da sua mãe quando foi embora — disse ela, rindo e
anotando a informação no bloco de notas. — Volto já.
— Seu pai era mesmo adorado por aqui.
— Ele era — afirmei. — E sua mãe? Como ela era?
Um sorriso triste despontou em seu rosto. Coloquei
minha mão sobre sua que estava estendida na mesa.
— Tudo bem se não quiser falar sobre ela.
— Eu quero. É bom falar dela. Dona Fátima era
maravilhosa. Era animada, adorava sorvete com
refrigerante de cola e filmes de comédia. Era a pessoa para
quem eu sempre podia pedir colo.
Uma lágrima correu por seu rosto, limpei-a devagar.
— Eu gostaria de ter conhecido ela — falei.
Quando nossos pratos chegaram, foram colocados à
nossa frente. Começamos a refeição, ficando em silêncio a
maior parte do tempo. Assim como eu, Clara estava sendo
tomada por lembranças. Mantive-me ao seu lado, tocando
sua mão todas as vezes que eu podia. Queria que ela
soubesse que eu estava ali, e o que eu pudesse fazer para
que se sentisse um pouco melhor, eu faria, porque quando
eu a via sorrindo, meu mundo sorria também.
QUINZE
MARIA CLARA
Encerrei a prova no computador e fechei a aba onde
estava logada. Levantei-me da cadeira e deixei a sala. Tinha
sido a segunda a encerrar a avaliação. Havia estudado
bastante e as perguntas foram fáceis de responder.
Do outro lado da rua, em frente à picape preta,
estava ele, José Augusto, esperando-me com um sorriso
enorme no rosto que me fazia querer dizer sim a qualquer
coisa que ele pedisse.
Eu sabia que precisava ficar longe dele, todos diziam
aquilo, no entanto, não era o que o meu coração queria. Ele
queria José Augusto, de todas as formas possíveis.
Parte de mim sentia que estávamos trilhando um
caminho perigoso, arriscado, mas a outra parte se negava a
parar.
Com uma calça jeans, camiseta branca e chapéu na
cabeça, ficava difícil imaginá-lo dentro de um escritório,
usando terno o dia todo. Ele parecia ter vivido aquela vida
desde sempre, talvez fosse por eu tê-lo conhecido daquela
maneira.
Depois do almoço, aceitei passar a tarde ao seu lado,
na beira do rio. Estava ansiosa por aquilo, por estarmos
juntos e sozinhos de novo.
— Avisou à sua tia que vai demorar um pouco para
voltar?
— Mandei uma mensagem para o Joaquim.
— Por que para o Joaquim? — Seu tom de voz
mudou, tornando-se um pouco mais duro.
— A madrinha não tem celular. Ela usa o do Joaquim
quando precisa.
— Podemos resolver isso rapidamente, tem uma loja
de celulares aqui perto.
— De jeito nenhum. Se você comprar um celular para
ela, vai só jogar dinheiro fora. Ela nunca aceitaria.
— Dona Zefa é um pouco teimosa mesmo.
— Um pouco? — Ri.
— Vamos até o mercado? Será bom levarmos um
lanche e sucos para mais tarde — ele sugeriu, mudando de
assunto.
O centro da pequena cidade era marcado pela praça
central e pelos pequenos comércios ao redor. As pessoas se
cumprimentavam como se todos se conhecessem. Alguns
olhares curiosos eram direcionados para nós, mas parecia
não passar daquilo, curiosidade.
No mercado, entre os corredores, José Augusto pegou
salgadinhos, depois, na parte dos fundos onde ficava a
panificadora, alguns sanduíches prontos e por último, sucos
gelados do refrigerador.
Ele pagou a compra assim como tinha feito com o
nosso almoço. Retornamos ao carro e deixamos as sacolas
no porta-malas. Não demorou para que voltássemos à
estrada de chão que levava para longe do pequeno centro.
Saímos da estrada principal e acessamos uma
menor, mais fechada pelo mato ao redor. Alguns galhos
verdes e finos, tomados por folhas, bateram contra a janela
ao meu lado.
— Não se assuste, estamos chegando — ele disse.
Um pouco adiante, surgiu uma clareira. José Augusto
estacionou o carro e desligou o motor, deixando o silêncio
tomar conta do ambiente. Ao descer, meus olhos foram
atraídos pelo rio que serpenteava do outro lado. Suas águas
cristalinas e serenas revelavam as diversas pedras
pequenas espalhadas no fundo.
— Ainda estamos na fazenda — ele disse. — Mas
ninguém costuma vir aqui.
— É um lugar lindo — eu disse, ainda admirando o rio
e todo o verde ao nosso redor.
— Eu devia ter planejado isso melhor, não tem uma
manta no carro para te oferecer.
— Não me importo em sentar na grama, mas
gostaria de experimentar a água antes.
— Tudo bem — ele concordou, tirando a camiseta e a
calça em seguida.
Puxei o vestido pela cabeça e deixei a peça ao lado
de suas roupas, debaixo de uma árvore grande e com
muitas folhas. Caminhei descalça até a margem onde José
Augusto me esperava.
Segurei em sua mão e deixei que ele me guiasse até
uma parte mais funda, onde a água alcançava meu quadril.
Estremeci levemente, então seus braços circularam minha
cintura, levantei minha cabeça, encarando seus olhos azuis.
— Está com frio? — ele perguntou.
— Não — disse baixo.
Seu nariz deslizou por meu rosto, fazendo com que
sua respiração quente viesse de encontro à minha pele.
Meus lábios se abriram e sua boca tomou a minha, não era
um beijo casto, longe daquilo, era um beijo carregado de
urgência, da necessidade que sentíamos um pelo outro.
Ele mordiscou o meu lábio inferior e, então, desceu,
deixando uma trilha de beijos intensos por meu pescoço até
meus seios ainda cobertos. Suas mãos fortes circularam
minha cintura e meu corpo foi impulsionado,
imediatamente, minhas pernas contornaram seu quadril.
— Eu acho que já experimentei bastante dessa água,
podemos... — Apontei para o local onde nossas roupas
estavam.
José Augusto caminhou comigo em seu colo,
prestando mais atenção em mim do que no caminho que
seguíamos. Minhas costas tocaram nossas roupas sobre o
chão. Seus olhos encararam os meus, eu sabia que podia
me perder neles facilmente, se é que aquilo já não tinha
acontecido.
Puxei seu tronco para mais perto, seu corpo encobriu
o meu rapidamente. Sua boca voltou a atacar a minha,
roubando meu ar e minha capacidade de pensar em
qualquer coisa que não fosse... ele.
— Eu nunca pensei que pudesse enlouquecer por
alguém assim — ele sussurrou em meu ouvido.
Seus dentes arranharam de leve minha pele até
encontrar meus seios que foram descobertos. Sua língua
quente e molhada circulou meu mamilo endurecido, um, e
depois, o outro. Chupando-os na sequência, fazendo o meu
centro pulsar, desejando ainda mais contato.
Puxei seu corpo com minhas pernas ao redor do seu
quadril, sua ereção bateu de encontro à parte interna da
minha coxa. Ergui-me contra seu pau duro, esfregando-me
nele, ansiando por aplacar a necessidade que se espalhava
por todo meu corpo.
— Eu não vou conseguir parar se continuar com isso
— Sua testa descansou sobre a minha por um instante.
— Não quero que pare — eu disse.
Ele se afastou, seus olhos fitaram os meus, quase
desesperados.
— Eu quero você, José Augusto — confirmei.
Sua boca voltou a procurar a minha, com fome, com
desejo, com tudo o que estava nos consumindo por dentro.
Minhas mãos desciam e subiam por suas costas largas,
sentindo os músculos marcados.
Afastei-me do chão para que ele retirasse meu sutiã
por completo e, em seguida, a calcinha. Seu olhar faminto
varreu meu corpo devagar. Então, ele inclinou-se sobre mim
e sua língua desceu, saboreando todo o percurso até minha
buceta que pulsava.
Meus dedos afundaram na grama que cobria o chão
no mesmo momento em que sua língua quente circulou o
meu clitóris, chupando-o na sequência. Arrepios subiram do
meio para o restante do meu corpo, levantando meus pelos,
deixando-me sensível e, ao mesmo tempo, querendo mais
daquele contato.
Uma onda mais forte de prazer me dominou, arqueei
as costas, elevando-me. José Augusto segurou firme em
meus quadris, mantendo-me no lugar enquanto eu gemia,
gozando em sua boca.
Meu peito subia e descia com força. Aquilo que eu
tinha experimentado era inédito. Eu não era virgem, mas
tinha certeza de que meu corpo nunca tinha respondido
com tanto prazer antes.
— Você é deliciosa — ele disse, deixando beijos pela
minha barriga e seios.
Ao se afastar, puxou a cueca boxer preta e seu pau
duro pulou para fora. Eu podia enxergar as veias salientes, a
espessura larga do seu membro, o tamanho generoso, e
tudo o que eu conseguia pensar era em tê-lo dentro de
mim.
Sua boca tinha voltado aos meus seios, mordiscando
e chupando-os, causando novas sensações de arrepios e
necessidade. Meus tornozelos foram afastados e seu pau
ganhou espaço devagar até estar completamente dentro de
mim.
Beijei seu pescoço e depois sua boca enquanto suas
estocadas aumentavam de ritmo e intensidade. Não havia
mais nada em minha mente além daquele momento de
entrega. Todas as sensações que eu sentia me dominavam
por completo. Era como se meu corpo reconhecesse o dele,
não apenas a entrega, todos os toques, todas as carícias.
Uma de suas mãos voltou à minha cintura, apertando
seus dedos contra minha carne e então, seu corpo mudou,
tornando-se mais rígido para, em seguida, encontrar o
clímax, gozando também.
O suor descia de seu rosto até o pescoço,
desenhando linhas finas em sua pele bronzeada pelo sol.
Quando o seu corpo caiu ao lado do meu, seu braço
contornou minha cintura, levando-me para junto dele, e
então, ele beijou minha testa com carinho.
— Isso foi muito melhor do que eu poderia ter
imaginado — ele disse.
— Tenho que concordar. — Sorri.
Eu sabia que não poderíamos ficar ali para sempre,
mas pelo menos por aquela tarde, aquele seria o nosso
lugar, onde não teríamos medo e nem inseguranças, apenas
o que sentíamos um pelo outro.
DEZESSEIS
JOSÉ AUGUSTO
Era noite quando saímos da clareira próxima à
margem do rio e, mesmo tendo passado a tarde com a
Clara, depois de duas transas alucinantes, eu ainda não
queria me despedir dela. Eu não queria dizer até logo, eu
não queria dormir longe dela, eu a queria em meus braços e
por isso, dentro da picape, eu tentava convencê-la a ir
comigo para o casarão ao invés de tomarmos o rumo da
casa da dona Zefa.
— Isso é loucura! — disse ela. — Não posso. Não sei
como a madrinha vai reagir.
— Então, vai me deixar dormir sozinho? — brinquei.
— Você já é bem grandinho, José Augusto. — Riu.
— Tudo bem, mas vou te acompanhar até sua casa e
conversar com a dona Josefa.
— Não acho uma boa ideia.
— E o que vamos fazer? Nos esconder? — perguntei.
— Seria melhor. Ninguém quer que a gente fique
junto.
Virei-me para a Clara e, segurando firme em seu
quadril, trouxe-a para o meu colo. Era incrível como o seu
corpo se encaixava ao meu.
— Você quer ficar comigo, Maria Clara? — Tirei uma
mecha de cabelo do seu rosto e a coloquei atrás da sua
orelha, suavemente. Seus olhos castanhos fitaram os meus
como se precisassem de coragem para dar sua resposta.
— Sim — disse, finalmente. — E você? Quer ficar
comigo, José Augusto?
— Mais do que tudo — confessei, encontrando seus
lábios e saboreando-os mais uma vez. Sabendo que, mesmo
que eu prolongasse aquele beijo, nunca seria suficiente, eu
nunca teria o bastante de Clara.
— Então podemos falar com a madrinha — disse ao
se afastar. — Mas...
— Mas?
— Não vamos falar nada para sua mãe ainda. Eu
tenho certeza de que ela não vai lidar bem com isso e...
— A minha mãe não decide com quem eu namoro ou
não — declarei.
— Eu sei, porém... eu não quero que nada atrapalhe
a gente... vamos deixar isso entre nós, por enquanto.
Eu sabia que minha mãe não era uma pessoa muito
fácil de lidar, no entanto, não era ela quem decidia com
quem eu me relacionava, aquela era uma decisão que só
cabia a mim. Todavia, ver a aflição no semblante da Clara
me fez aceitar seu pedido.
— Tudo bem. Por enquanto, vamos contar apenas a
sua madrinha.
Um pequeno sorriso marcou seu rosto, passei o
polegar sobre os lábios cheios, fazendo-a sorrir ainda mais.
Descemos do carro que estava desligado no meio do
caminho e andamos até a casa da dona Zefa. Passamos
pelo pequeno portão de madeira e, na sequência, Clara
tirou a chave da bolsa e abriu a porta de entrada.
— Menina, finalmente você chegou, eu já estava
começando a ficar preocupa...
A frase de dona Josefa foi interrompida quando ela
viu que eu estava com a Clara. Seus olhos desceram até
nossas mãos entrelaçadas e um semblante assustado
tomou sua face.
— Dona Josefa, eu vim me apresentar como
namorado da sua sobrinha e afilhada, Maria Clara.
A senhora levou a mão à boca, tentando segurar um
suspiro de... medo?
— Não precisa se preocupar. Eu juro que as minhas
intenções com a Clara são as melhores — garanti.
— Não importam as intenções quando há maldade
por perto — ela disse depois de algum tempo.
— Do que a senhora está falando, madrinha? —
indagou Clara.
— Não faz diferença agora.
— Eu sei que a senhora está preocupada com a
Clara, mas não fique. Eu só quero o melhor para ela —
declarei.
— Eu também — disse a senhora.
— Então, tudo bem a gente namorar? — Clara
parecia insegura ao fazer aquela pergunta.
— Vocês dois são maiores de idade. Eu não posso
negar nada. — A senhora parecia lamentar a situação.
Clara soltou minha mão e deu dois passos adiante,
segurando as mãos de dona Josefa nas suas.
— Mesmo assim, gostaria que a senhora consentisse.
É a única que saberá de nós.
— Por enquanto — completei.
Ela concordou balançando a cabeça positivamente,
contudo, não disse nenhuma palavra. Clara a abraçou forte
e a soltou em seguida.
— Eu vou me despedir do José Augusto no portão.
Volto logo.
— Até mais, dona Josefa — eu disse antes de sair
pela porta.
Paramos ao lado do portão, meus braços circularam a
cintura de Clara, trazendo-a para mais perto de mim.
— Foi tão ruim quanto você esperava? — perguntei.
— Foi. — Ela riu. — Mas estou aliviada por ter
contado a ela.
— Logo todos saberão. Não faz sentido nos esconder.
— Vamos com calma, por favor — pediu.
— Está bem. Eu vou tentar ser paciente.
Levei minha mão até sua nuca, inclinando seu
pescoço e beijando seus lábios doces mais uma vez.
— Vou sentir sua falta.
— Passamos o dia juntos — ela me lembrou.
— Ainda assim...
Com muito esforço, consegui me afastar. Clara voltou
para dentro de sua casa, acenando para mim da porta. Meu
coração estava com ela, sempre estaria, eu não tinha
dúvida sobre aquilo.
Desliguei a picape dentro da garagem e entrei pela
porta da frente do casarão. Levei um susto ao ver minha
mãe saltar do sofá e correr em minha direção.
— Pelo amor de Deus, José Augusto! Onde você
estava? Por que não atendia a porcaria do telefone? — Suas
perguntas foram disparadas com raiva em minha direção.
— Eu fiquei sem bateria no celular. O que houve?
— A pobre coitada da Tamara. Passou mal o dia
inteiro. Você precisa levá-la de volta.
— Eu vou vê-la.
Subi as escadas com a minha mãe a um passo atrás.
Bati na porta do quarto que Tamara ocupava. Sua voz baixa
pediu que eu entrasse.
— O que aconteceu, Tamara? Você parecia muito
bem quando eu saí.
— Eu não sei — falou devagar. — Meu estômago dói,
já não tenho mais o que vomitar. Minha cabeça parece que
vai explodir. Tive febre também.
— Vou te levar ao hospital da cidade.
— De jeito nenhum — minha mãe se pôs entre mim e
Tamara, que estava deitada na cama. — O hospital daqui é
uma piada. Tamara não pode procurar tratamento naquele
lugar. Você deve levá-la de volta à capital imediatamente.
— Ela precisa de atendimento agora. Não daqui a
quatro ou cinco horas — argumentei.
— Eu prefiro ir até a capital — Tamara se manifestou.
— Do que estão falando? Tem uma pessoa doente
aqui e vocês querem viajar por horas para buscar
atendimento médico? — questionei, incrédulo.
— Ela quer assim — minha mãe declarou. — E o pai
dela, seu chefe, também.
— O quê?
— Eu falei com meu pai mais cedo, expliquei minha
situação e ele pediu para você me levar de volta e em
segurança.
— Eu?
— Sim, filho. A quem mais Salomão Gutierrez
confiaria a saúde e segurança de sua única filha?
Eu não acreditava que aquilo estava acontecendo.
Respirei fundo. Aquela ideia parecia loucura e apenas eu
enxergava aquilo. Até o pai da Tamara e, como minha mãe
fazia questão de me lembrar, meu chefe, concordava com
elas.
— Certo — falei, cedendo. — Coloque a mala da
Tamara no meu carro.
— Ajude-a a descer bem devagar. Ela não deve fazer
muito esforço agora. A mala já está lá embaixo, vou colocar
no seu carro — minha mãe fez a orientação e saiu
apressada do quarto.
Andei até Tamara, ajudei-a a colocar os seus
chinelos. Ela se apoiou em mim, andando lentamente.
— Você não está quente — falei.
— O quê?
— Seu rosto está encostado no meu braço. Não está
quente.
Ela afastou sua cabeça de repente, mas ainda
apoiando seu corpo no meu.
— Provavelmente por causa do remédio que a sua
mãe me deu. A febre deve ter baixado um pouco.
Chegamos à garagem, minha mãe esperava ao lado
da porta do meu carro.
— Está no porta-malas. Podem subir no carro e irem
embora — minha mãe falou, agitada.
Ajudei Tamara a sentar-se no banco do passageiro e
colocar o cinto de segurança, depois contornei o veículo e
me despedi de minha mãe antes de assumir o volante.
Passamos pelo portão da fazenda e pegamos a
estrada em direção à capital. A noite estava escura, a
iluminação vinha apenas dos faróis da picape.
Olhei para o lado, Tamara parecia ter adormecido.
Pisei no acelerador para chegar quanto antes à cidade de
São Paulo e então retornar para a fazenda, para a minha
Clara.

— Chegamos — avisei a Tamara.


— Onde estamos? — perguntou, assustada.
— Em frente ao hospital, na capital.
— Não — ela quase gritou. — Estou me sentindo
muito melhor. Não quero passar horas aguardando uma
consulta.
— Você está doente. Não foi por isso que saímos da
fazenda?
— Eu me sinto melhor. Podemos ir para a sua casa.
— Tamara...
— Eu não posso ficar sozinha agora, por favor, José
Augusto. Que tipo de amigo é você?
— O tipo que dirige quase cinco horas para te trazer
ao hospital onde você queria ser atendida — disse, tentando
manter minha paciência.
— Estou melhor. Preciso apenas de sua companhia.
— Ela passou a mão com leveza sobre meu braço direito. —
Só de estar com você já melhorei.
Ignorei sua tentativa de chamar minha atenção e
liguei o carro novamente, trafegando pelas ruas da capital.
Tamara voltou a se acomodar no banco ao lado, distraindo-
se na sequência com seu celular.
Ao chegarmos no condomínio, ainda dentro do carro,
identifiquei-me pelo interfone com câmera de segurança.
— O que estamos fazendo aqui? — indagou Tamara.
— Você não disse que não podia ficar sozinha?
— Não foi isso que eu quis dizer, José Augusto.
Estacionei em frente à mansão do meu chefe. E desci
do carro.
Pequenas luminárias embutidas no chão iluminavam
o caminho que levava à entrada, ladeado por arbustos bem
cuidados. A fachada da mansão era composta por longos
painéis de vidro em linhas retas, o design geométrico
destacava uma elegância atemporal. A porta era de
madeira escura, maciça, com alguns detalhes em metal.
Sem muito tempo a perder, apertei a campainha.
A porta foi aberta, pela fresta, o rosto gorducho do
meu chefe apareceu. Ele usava um roupão escuro, com uma
faixa amarrada em sua cintura.
— José Augusto? O que houve?
— Há poucas horas, sua filha me disse que estava
doente. Ela não quis ir ao hospital de Santa Luzia, exigindo
que eu a trouxesse para atendimento na capital. Eu a trouxe
e ela não quis ser atendida. Pediu para não passar a noite
sozinha, então, ao invés de deixá-la no apartamento dela,
trouxe-a para sua casa.
— Quando Tamara me ligou mais cedo, não me disse
que estava doente, apenas que você a traria para casa.
— Bom, para mim ela disse que estava, mas agora
insiste que está bem.
— Traga-a para dentro, por favor.
Andei de volta até o carro, abri a porta do passageiro
e ajudei Tamara a descer. Ela não parecia fraca como
quando a ajudei a sair do quarto que ocupava na fazenda.
— Vou buscar a mala dela — avisei, deixando-a junto
ao seu pai.
Ao abrir o bagageiro do meu carro, notei que não era
apenas a mala de Tamara que estava lá, a minha também,
voltei a fechá-lo.
— Aqui está — coloquei a mala dela ao lado da porta
de entrada da casa de seu pai.
— Obrigado por ser tão prestativo com a minha filha,
José Augusto.
— Fiz o que precisava ser feito — falei. — Agora vou
para o meu apartamento, está tarde e eu estou cansado
demais para pegar a estrada novamente.
— Pegar a estrada novamente? Você vai voltar para a
fazenda? — A voz de Tamara saiu forte, diferente do tom
frágil que ela tinha usado desde a minha chegada na
fazenda naquela noite.
— Sim. Eu ainda estou de férias e não quero ficar
longe da minha namorada.
— Namorada? Aquela coitada, sobrinha da sua
empregada?
— Eu nunca fui desrespeitoso com você ou com
qualquer pessoa com quem se relaciona, Tamara, e não vou
aceitar que você seja, muito menos com a Clara.
— Tenho certeza de que minha filha apenas se
expressou mal — defendeu o seu pai.
— Nos veremos quando eu retornar ao trabalho —
avisei. — Não se esqueçam de solicitar um guincho para
trazer o carro da Tamara de volta.
Voltei a assumir o volante e então dirigi até o meu
apartamento. Ao chegar em casa, mandei uma mensagem
de texto para a Clara, não queria que ela se assustasse com
a minha partida repentina, ainda mais depois de termos
transado. Eu a queria segura e feliz porque era daquela
maneira que ela fazia eu me sentir.
DEZESSETE
MARIA CLARA
Meu amor, precisei sair da fazenda com urgência
para trazer a Tamara de volta à capital. Retornarei assim
que possível. Tenha uma boa noite e bons sonhos.
Ainda estava com a mensagem aberta na tela do
celular quando a madrinha entrou no meu quarto, pedindo
que eu a ajudasse novamente no casarão. Eu tinha dormido
bem a noite inteira, porém, ao acordar, me deparei com
aquela notícia: José Augusto tinha voltado à capital na
companhia daquele projeto de Cassandra. Sua mensagem
tinha sido direta: ele foi apenas levá-la e retornaria em
breve, mas algo dentro de mim tinha ficado em alerta.
Talvez fosse apenas o ciúme.
Tentaria me apegar à única parte da mensagem de
que eu tinha gostado: “meu amor”. Era daquelas duas
palavras de que eu precisava para me sentir em paz.
Prendi os cabelos após me vestir e escovar os
dentes. Segui a madrinha para fora de casa.
No casarão, entramos pela porta dos fundos e nos
direcionamos à cozinha. Na porta da geladeira, havia um
recado escrito à mão em um papel branco.
“Café apenas para mim, Josefa”.
— Se o café é apenas para ela, eu posso ir
preparando a refeição e a madrinha vai limpando a casa,
adianta o serviço, não é?
A madrinha concordou e foi até a lavanderia buscar o
material de limpeza enquanto eu comecei a refeição da
madame. Fiz exatamente como a madrinha me orientou no
outro dia.
Achei que a dona Cassandra demoraria a sair do seu
quarto, entretanto ela apareceu na cozinha logo após eu
terminar de passar o café.
— Quando estiver tudo pronto, pode levar a bandeja
até a mesa da varanda. Vou aproveitar essa manhã linda.
Não acha que essa manhã está especialmente bonita, Maria
Clara?
— Ainda não saí lá fora, senhora. Não estava tão
claro quando a madrinha me acordou e pediu que eu viesse
ajudá-la.
— Isso não será mais necessário, é óbvio.
Coloquei as fatias de pão, um prato com bolo e uma
pequena travessa com frios sobre a bandeja que estava
preparando.
— Agora que meu filho retornou para a capital com a
noiva, não precisaremos mais de sua disponibilidade. Sabia
que José Augusto se casará em breve com a belíssima
Tamara?
Minha mão tremeu, quase derrubei a xícara de café
que segurava, parei por um instante, fitando o líquido preto
e fumegante.
— Eu não sabia, senhora — falei, usando o tom mais
casual que conseguia, terminando de preparar a bandeja. —
Posso levar seu café da manhã agora?
— Sim, é claro. Sirva-me e depois pode voltar para a
casinha da Josefa.
Andei até a varanda, servi a refeição da dona
Cassandra, me esforçando para não deixar suas palavras
tomarem espaço no meu coração. Lembrando apenas da
mensagem de José Augusto, confiando no que eu sentia por
ele.
Em casa, peguei um dos meus livros de estudo e
minhas canetas marca-textos e fechei a porta de entrada
por fora. Dei a volta na casa e, caminhando entre as
árvores, na companhia do sol que me atingia passando
pelos galhos e folhas, cheguei ao pé de manga onde eu
gostava de ir e onde eu tinha encontrado José Augusto pela
primeira vez.
Sentei-me no banco de madeira, coloquei o livro
aberto sobre as pernas e comecei a ler, marcando em
amarelo os parágrafos que continham informações mais
importantes.
Estudei dois capítulos inteiros, completamente
concentrada, até escutar ramos secos se quebrando, virei-
me para trás e encontrei Joaquim.
Ele estava com um chapéu marrom, calça jeans azul
com um rasgo no joelho e uma camisa de manga longa. Não
parecia de bom humor. Voltei ao que estava fazendo. Sem
avisar, Joaquim sentou-se ao meu lado.
— Então, você passou a tarde de ontem com o
patrão.
O traço amarelo na página do meu livro foi
interrompido, eu não sabia se respondia ao meu amigo ou
ignorava seu comentário.
— Quem te disse? — Continuei a marcar o texto no
livro.
— Ninguém precisou. O patrão falou que ia voltar pro
serviço depois do almoço, mas se perdeu pela cidade. E
você também não voltou no ônibus da tarde.
— Está me vigiando agora?
— Não, mas se eu percebi. Os outros também.
Ele alcançou uma folha longa de capim ao lado e
começou a cortá-la em pedaços cada vez menores.
— Isso não vai acabar bem, Maria Clara.
— Eu não entendo vocês — virei-me para ele — Eu
estou feliz, o José Augusto está feliz, qual é o problema?
— Se você não consegue enxergar o que está bem
na sua frente, não adianta falar.
Seu rosto chegou mais perto do meu, seu braço forte
juntou-se à lateral do meu corpo, eu pude enxergar as
poucas sardas abaixo de seus olhos e, apesar daquela
proximidade, não senti nada daquilo que eu experimentava
a cada olhar e a cada toque de José Augusto. Levantei-me
de repente, dando dois passos atrás.
— Eu vou voltar para casa, preciso começar a
preparar o almoço.
Dei as costas a Joaquim e andei apressada, querendo
afastar todas as vozes que me diziam que eu estava
cometendo um erro ao me apaixonar por José Augusto.
Na casa da madrinha, deixei o material de estudo
sobre a cama e fui para a cozinha começar a preparar o
arroz. Enquanto mexia na panela, o toque de chamada do
meu celular ecoou pelo ambiente. Larguei a colher de lado e
voltei ao quarto para pegar o aparelho que estava sobre a
cômoda.
— Alô — falei sem ver o nome identificado na tela.
— Bom dia, meu amor. — A voz de José Augusto
acalmou imediatamente meu coração.
— Bom dia, meu amor. Dormiu bem?
— É claro que não. Eu precisei dormir sem você.
Um sorriso se formou em meus lábios e um riso baixo
escapou por minha garganta.
— E como estão as coisas? Está voltando para a
fazenda?
Houve um momento de silêncio, pressenti que a
resposta não seria aquela que eu gostaria de ouvir.
— O meu chefe me ligou na primeira hora da manhã,
pediu que eu retornasse com urgência ao escritório, precisa
da minha ajuda. Nada que ocupe muitos dias, mas também
não posso negar o pedido.
— Mas e suas férias?
— Vou voltar às férias assim que resolver essa
questão.
Ficamos em silêncio por mais um momento.
— Eu sei que não é o ideal, mas preciso resolver isso
— explicou ele.
— É o seu trabalho, eu entendo.
— Entende também que isso não muda nada entre
nós?
Demorei mais um instante para responder. Aquela
estava sendo uma ligação cheia de pausas. Eu queria
acreditar nele, em cada palavra que dizia, porque o meu
coração já era dele.
— Sim — confirmei.
Ouvi uma respiração de alívio do outro lado.
— Eu vou te ligar todas as noites depois que eu sair
do escritório e chegar em casa.
Sorri.
— Eu não sei como isso é possível, mas eu já sinto
sua falta, Maria Clara.
— Também sinto a sua — confessei.
— Vou trabalhar agora, porém à noite,
conversaremos mais.
— Até de noite, então.
Encerrei a ligação encarando a tela do celular. Eu
podia estar cometendo um erro, como todos estavam
falando, mas não tinha como ser diferente. Meu coração não
aceitaria outro que não fosse ele. Uma escolha tinha sido
feita e essa escolha era José Augusto.
DEZOITO
JOSÉ AUGUSTO
UMA SEMANA DEPOIS
O relógio marcava quase dez horas da noite, eu não
gostava de ligar para a Maria Clara tão tarde, mas naquele
dia, precisei ficar algumas horas a mais no escritório, de
novo.
Com o celular em mãos, busquei o nome de Clara na
agenda e apertei na tela para iniciar a chamada. Ela
atendeu no quinto toque.
— Oi, amor. — Cada vez que eu a ouvia me
chamando daquele jeito, sentia vontade de sorrir.
— Estava dormindo?
Em pé, próximo ao sofá da minha sala, eu observava
os prédios da cidade ao meu redor. As luzes intensas por
todo lado, o barulho ensurdecedor mesmo naquela hora, tão
diferente das noites tranquilas e silenciosas na fazenda.
— Para falar a verdade, estava sim. — Deu risada. —
Dormi em cima do meu material de estudo. E você, chegou
em casa agora?
— Sim. Trabalhei até mais tarde de novo. Mas, a boa
notícia é que estarei livre nas próximas duas semanas.
— Você vai voltar? — perguntou, animada.
— Eu vou, meu amor.
— Que bom. Estou com saudade.
— Eu também.
— Que horas você vem?
— Saio da capital amanhã cedo.
— Certo. Me ligue quando chegar na fazenda.
— Você podia me esperar no casarão — sugeriu.
— José Augusto... já falamos sobre isso.
— Amor, eu tenho vinte e nove anos, não vou ficar
namorando escondido da minha mãe. Isso não faz sentido.
— Ainda não, por favor.
— Tudo bem, eu te encontro na sua casa, mas isso
não pode ficar assim por muito tempo.
— Conversaremos sobre isso quando você chegar.
— Durma bem, meu amor.
— Você também.
Abaixei-me e coloquei o celular sobre a mesinha de
centro. Eu suspeitava que minha mãe não ficaria feliz com a
notícia sobre meu namoro com Maria Clara, todavia, aquilo
não me impediria. O que eu estava sentindo por Maria Clara
era algo inédito, diferente de tudo o que eu já tinha
experimentado, e minha mãe precisaria aceitar minhas
escolhas.
Sentei-me no sofá, jogando o pescoço para trás,
encarando o teto no alto. Estava exausto, se não fosse pelo
toque de chamada do meu celular, teria adormecido
naquele lugar. O nome de Tamara aparecia na tela. O que
ela devia estar querendo tão tarde?
— O que foi, Tamara?
— Nossa! É assim que você atende a ligação de uma
amiga?
Bufei, sem paciência.
— Eu não quis ser grosso, mas está tarde e eu estou
cansado. Preciso dormir. Vou viajar amanhã cedo.
— Então é verdade? Meu pai disse que você estava
voltando para a fazenda, mas eu não acreditei. Sua mãe
sabe por que você está voltando?
— Ela não sabe, mas eu vou contar quando voltar.
— Duvido que a dona Cassandra vá aceitar a
sobrinha da empregada como nora. — Soltou um riso
debochado.
— Ela não terá escolha. Se ela machucar a Maria
Clara por puro preconceito e arrogância, vou me afastar
dela.
— Ela é sua mãe, José Augusto! Como pode dizer
uma coisa dessas?
— Eu já cedi a muitas vontades da minha mãe, ela
decidiu sobre quase tudo em minha vida, mas não vai
decidir quanto a isso. Eu... amo a Maria Clara.
Eu não deveria ter dito aquilo à Tamara. Não porque
fosse mentira, mas porque Maria Clara deveria ter sido a
primeira a ouvir que eu a amava.
— Ótimo! Depois que der tudo errado e você
descobrir o quanto foi precipitado e ingênuo, não venha
chorar no meu colo.
— Não vai acontecer.
— E a nossa viagem para Londres? O Levi me disse
que você mudou de ideia. Ele está enganado, não está?
— Não é hora de viajar.
— Você vai mesmo mudar seus planos, sua vida, por
uma garota que acabou de conhecer?
— Não é sobre o tempo que eu a conheço. Isso é
sobre o que eu sinto por ela e nunca senti por ninguém.
— Uau! Estou vendo que nada que eu diga vai fazer
você abrir os olhos.
Respirei fundo. Estava cansado e sem energia para
continuar aquela conversa. Eu sabia o que sentia por Maria
Clara e tinha certeza de que ela sentia o mesmo por mim.
Qualquer esforço valia a pena para tê-la ao meu lado.
— Boa noite, Tamara.
Ela encerrou a ligação sem me responder, não me
importei. Afrouxei o nó da gravata que me sufocava e
caminhei em direção às escadas que levavam até o piso
superior, onde ficava meu quarto. Eu precisava de um
banho, uma noite de sono e pegar a estrada assim que o dia
amanhecesse para finalmente ver a minha Clara de novo.
Uma semana longe dela tinha acabado comigo.
Não precisei parar para a identificação ao chegar no
portão da fazenda, a entrada foi liberada quase
imediatamente. Pelos vidros abertos, o cheiro de terra
molhada chegava às minhas narinas. A grama úmida
reforçava que ali tinha chovido recentemente.
Parei a picape em frente à varanda e, depois de
desligar o veículo, saí em direção à porta de entrada que
estava aberta. Andei até a cozinha onde Zefa preparava o
café da manhã.
— Você voltou mesmo. A Maria Clara me falou que
isso aconteceria, mas não acreditei.
— Eu disse que as minhas intenções com a sua
afilhada são as melhores.
— Quer uma xícara de café? — perguntou,
desviando-se do assunto.
— Não, obrigado. Quero saber da Maria Clara.
— Ela levantou cedinho. Está lá em casa.
— Então, vou vê-la. Até mais, Zefa.
Virei as costas e saí da cozinha. No meio da sala,
olhei para trás e vi minha mãe em pé, no alto da escada.
— Ainda de roupão, mãe? Não me diga que levantou
só agora? — brinquei.
— José Augusto, venha até meu quarto, precisamos
conversar.
Dona Cassandra desapareceu sem dizer mais nada.
Seu humor não parecia dos melhores. Subi as escadas com
pressa e entrei em seu quarto, que estava com a porta
aberta. Minha mãe estava ao lado da janela, seu olhar se
direcionava para o campo, longe.
— Tamara me ligou ontem à noite — iniciou ela. —
Não adianta ficar bravo com ela. Nós duas só queremos o
melhor para você.
— Como vocês podem saber o que é melhor para
mim?
— Ela é sua amiga e eu sou sua mãe. Então, escute
quando nós dizemos que você está cometendo um erro ao
se envolver com aquela... moça.
— Mãe, aquela moça se chama Maria Clara e eu
tenho certeza de que ela não é um erro. Talvez seja o
primeiro acerto em minha vida.
— Como pode dizer uma coisa dessas? — dona
Cassandra virou-se para mim. — Você tem uma carreira
brilhante, uma vida perfeita na capital!
— Isso é você quem está dizendo, mãe. Não sou eu.
— Você não vai cancelar a viagem a Londres —
declarou. — Eu já fiz as reservas em seu nome. A viagem
está paga.
— Não deveria ter feito isso. Cancele o quanto antes
se não quiser perder todo o dinheiro.
— Jamais! Não vou deixar meu único filho
desperdiçar a vida dele como...
— Como você fez?
Dona Cassandra respirou fundo.
— Sabe que essa moça está envolvida com um peão
da fazenda, não sabe?
— Isso não é verdade.
— Está chamando sua mãe de mentirosa?
— Estou dizendo que está enganada.
— Não estou. Todos na fazenda sabem do
relacionamento dela com o Joaquim.
— Eles são amigos — esclareci.
— Como você e a Tamara. — Sua risada estridente
ecoou pelo quarto. Não percebi que apertava os dedos
contra a palma da minha mão até sentir a pele arder por
conta das unhas que a marcavam, o que não passou
despercebido por minha mãe.
— Eu não tenho e nunca tive nada com a Tamara.
— Vocês dormiram juntos várias vezes, eu sei. Assim
como sei que a sua namoradinha fez o mesmo com o peão.
E ainda deve fazer, você que é ingênuo demais para
perceber que está sendo enganado bem debaixo do seu
nariz.
— A Maria Clara não está me enganando.
— Tem certeza? O peão é bonito, mas não é rico, já
você. Seria muito fácil para ela...
— O que está insinuando, mãe? — Tentei conter o
tom de voz.
— Você está caindo em um golpe, filho. Só você não
enxerga.
— Não conhece a Maria Clara.
— Conheço o tipo dela, são todas iguais, e você vai
descobrir isso da pior forma.
— Eu não acredito que Clara seja essa pessoa. Eu
tenho certeza dos sentimentos dela por mim.
— Veremos até quando durará essa certeza.
— Era só isso, mãe?
— Sim.
— Então, com licença, vou ver a minha namorada —
avisei.
Saí do quarto e desci as escadas quase correndo,
passei por Zefa que estava na sala. A senhora me encarou,
preocupada.
— Está tudo bem — garanti, saindo de casa e indo
em direção à única pessoa capaz de me acalmar naquele
momento.
Antes de chegar ao portão em frente à casa, vi Clara
sentada na abertura da porta dupla de madeira, em um dos
cantos que eu suspeitava ser seu quarto. Usava um vestido
verde curto que revelava parte de suas coxas. Com um livro
no colo e uma caneta amarela na mão, estava concentrada
em seus estudos.
Abri o portão, chamando sua atenção. O sorriso em
seu rosto fez com que meu peito se aquecesse. Daria tudo
para vê-la sempre sorrindo. Atravessei o pequeno gramado
até ela, que se pôs em pé, deixando o material de estudo no
chão.
— Por que demorou tanto? — perguntou.
Seus braços circularam meu pescoço e sua cabeça se
inclinou levemente enquanto seus lábios se abriam,
alcancei-os, saboreando o gosto doce. Minha língua dançou
em sua boca, explorando todos os cantos. Minhas mãos
desceram até sua cintura e depois até sua bunda redonda e
durinha, trazendo seu corpo para junto do meu.
— Preciso fazer o almoço, a madrinha vai voltar
daqui a pouco — falou ao se afastar.
— Eu te ajudo.
— Mesmo? Você sabe cozinhar?
— Não — confessei. — Mas posso ser um bom
ajudante.
— Isso eu que vou avaliar — disse, virando-se e indo
para o outro lado.
Segui-a até a pequena cozinha e, prestando atenção
a suas instruções, ajudei-a no preparo da refeição. Qualquer
coisa ao lado de Maria Clara deixava de ser comum.
Aquilo que minha mãe havia dito não era verdade, eu
sabia, e não deixaria que se infiltrasse em minha mente. Eu
não suportaria nem mesmo pensar naquela possibilidade.
Junto com tudo o que eu vinha experimentando ao me
apaixonar por Maria Clara, infelizmente também estava
descobrindo o ciúme. Logo eu, que achei que nunca seria
pego por aquele tipo de sentimento, que era apenas coisa
de gente insegura.
— Termine de lavar a salada que eu preciso temperar
— disse ela, passando-me algumas folhas verdes.
Coloquei as folhas limpas em uma tigela que ela
tinha me dado e a deixei sobre a mesa. Ao me virar na
direção da pia novamente, o corpo pequeno de Maria Clara
bateu contra o meu. Minhas mãos circularam sua cintura e,
abaixando minha cabeça, passei o nariz pela extensão do
seu pescoço livre.
— O cheiro da comida está ótimo, mas nada cheira
tão bem quanto você — falei.
— Eu concordo — Joaquim disse, passando pela porta
de entrada. — O cheiro da comida está passando do portão.
Ele tirou o chapéu e o colocou sobre o encosto de uma das
cadeiras.
— O que faz aqui? — perguntei ao homem que
entrou na casa da minha namorada como se fizesse aquilo o
tempo todo.
Ele puxou uma cadeira e deu uma risada leve.
— Eu sempre almoço aqui.
— O Joaquim faz as compras para nós, em troca, ele
almoça com a gente.
— Me parece uma troca exagerada. São só umas
compras. — Eu não queria demonstrar o ciúme que sentia
naquele momento.
— A Maria Clara não se importa em cozinhar para
mim.
— Eu cozinho para mim mesma e para a madrinha —
esclareceu. — Mas realmente não me custa fazer um pouco
a mais.
O peão me encarou sorrindo, vitorioso, e aquilo me
incomodou mais do que eu gostaria de admitir.
— A madrinha chegou — anunciou Maria Clara ao ver
a senhora atravessar o portão.
Depois de me servir, sentei-me na cadeira ao lado de
Maria Clara e Joaquim sentou-se à nossa frente, enquanto a
dona Zefa ocupou a ponta da mesa. Não gostei de notar o
quanto Joaquim olhava para Maria Clara enquanto
almoçávamos, ele parecia incapaz de olhar para outro lugar.
Puxei a cadeira dela, que se colou à minha, fazendo o
barulho dos pés de madeira sendo arrastados no piso
romper o silêncio à nossa volta. Apenas Maria Clara achou
graça do meu gesto.
— O almoço estava perfeito. Não fique brava, dona
Zefa, mas o tempero da Clara consegue ser ainda melhor
que o seu — brinquei, tentando ignorar Joaquim e aliviar o
clima.
— Estava ótimo, Maria Clara — disse Joaquim,
levando-se da cadeira e levando seu prato até a pia. —
Como em todos os outros dias.
Senti o meu maxilar travar imediatamente.
— Vocês exageram — ela respondeu.
Joaquim pegou o seu chapéu e o segurou nas mãos
por um instante antes de se dirigir a mim.
— Vai trabalhar hoje ou cansou de brincar de peão?
— Joaquim! — Maria Clara chamou sua atenção.
— Falei alguma mentira? O doutor chegou aqui na
outra semana agindo como se fosse um peão, mas o mundo
dele não é esse.
— Não acho que te devo satisfação da minha vida,
Joaquim — falei.
Ele colocou o chapéu novamente, soltando uma
risada baixa.
— Eu vou trabalhar. Algumas pessoas não podem
escolher quando querem ou não fazer o serviço.
— Não ligue para o que ele fala. O Joaquim não anda
muito bem — disse dona Zefa, também levantando-se da
cadeira. — Eu vou voltar para o casarão.
Instantes depois, estávamos novamente sozinhos em
casa. Clara passava um pano úmido na mesa, detive seu
movimento, tirando sua mão da superfície coberta pelo
plástico e trazendo-a até meu peito.
— Maria Clara — chamei-a, olhando em seus olhos.
— Seja sincera comigo, está acontecendo algo entre você e
o Joaquim.
— É claro que não. Eu já te disse que somos apenas
amigos.
Eu não deveria questionar mais nada, não tinha o
direito, no entanto, não consegui ficar quieto.
— E já tiveram alguma coisa?
— Não — respondeu com firmeza. — Apenas
amizade.
Suspirei, aliviado.
— Parece que você tem um lado ciumento, senhor
José Augusto.
— Só quando diz respeito a você.
Puxei seu corpo para junto do meu, segurando sua
nuca com uma das mãos enquanto a outra firmava-se em
sua cintura. E então, beijei sua boca com urgência, com
possessividade, com tudo o que estava dentro de mim.
DEZENOVE
JOSÉ AUGUSTO
Depois de almoçar com a Clara e prometer voltar à
noite para dormirmos juntos, procurei por Joelson e o ajudei
com algumas tarefas da fazenda. Não queria passar os
próximos dias desocupado, além do mais, apesar do serviço
pesado, minha cabeça se mantinha leve quando eu passava
as horas no serviço braçal. Eu nunca tinha chegado perto da
administração dos negócios, aquele era um território que
apenas minha mãe tinha acesso.
— Você está imundo e queimado do sol — minha
mãe comentou ao me ver passar pela porta de entrada do
casarão. Ela estava sentada no sofá da sala, com uma
revista nas mãos.
— Estava trabalhando.
— Que horas vai descer para o jantar?
— Estava pensando em convidar a Clara para vir
jantar conosco.
Dona Cassandra parou de passar as folhas da revista
e levantou sua cabeça em minha direção.
— Eu não vou aceitar aquela golpista dentro da
minha casa como convidada.
— Ela não é uma golpista, mãe. A Clara é minha
namorada.
— A Maria Clara é sobrinha da minha empregada.
— E minha namorada — declarei.
Minha mãe jogou a revista sobre a mesa de centro e
levantou-se, andando em passos firmes até mim.
— Acha que isso vai durar até quando? Você mora a
centenas de quilômetros daqui! O que pretende? Levar
aquela moça para viver com você na capital?
— Ainda é cedo, mãe, não falamos sobre isso, mas,
se quer saber, eu me vejo voltando a morar em Santa Luzia.
— O quê? — minha mãe levou a mão ao peito. —
Depois de tudo o que você lutou para conquistar?
— Eu posso trabalhar com você na fazenda ou abrir
um escritório na cidade.
— Não! — ela gritou, esfregando a mão sobre o peito.
— Não vou aceitar que faça isso pela sobrinha da
empregada!
— Não seja desrespeitosa, mãe — pedi.
— Desrespeitosa? — ela gritou mais alto. — Eu?
Depois de tudo, é assim que você me agradece? Me
ofendendo!
— Mãe, por favor — pedi novamente.
— Estou sem ar. — Ela começou a abanar-se. — Não
consigo respirar. Preciso do meu remédio.
Suas pernas cederam, consegui alcançá-la antes que
fosse ao chão.
— Mãe? — Seus olhos começaram a se revirar. —
Mãe? Por favor, fale comigo.
— O que houve, senhor? — Zefa apareceu na sala.
— Minha mãe está passando mal, vou levá-la ao
hospital.
— Não — sua voz saiu arrastada. — Quero ir para o
meu quarto, meu remédio está ao lado da cama. Me leve
para o meu quarto, meu filho, por favor.
— Mãe, eu não acho que...
— Não discuta ainda mais comigo — pediu,
enfraquecida.
Peguei-a no colo e a carreguei escada acima até seu
quarto. Coloquei-a sobre o colchão e depois a cobri com
uma manta.
— Esse é o remédio? — perguntei, mostrando a ela o
frasco branco com seu nome no rótulo.
— Sim. Preciso de dois comprimidos.
Dei o remédio a ela com um copo de água da jarra
que estava sobre a mesinha de cabeceira.
— Tem certeza de que não quer ir ao hospital, mãe?
— Sim, só preciso que fique aqui comigo.
Ela estendeu sua mão sobre a cama, sentei-me na
poltrona de couro marrom ao lado e segurei seus dedos
gelados até que adormecesse. Levou algum tempo para que
eu conseguisse me levantar e deixar o quarto sem acordá-
la.
Andei pelo corredor, cuidando para não fazer
barulho. Na tela do meu celular havia três mensagens de
Clara. Faltava pouco para a meia-noite. Sentei-me na
beirada da minha cama e enviei uma resposta a ela.
Desculpe, meu amor. Minha mãe passou mal e
precisei ficar com ela. Não poderemos dormir juntos hoje,
por mais que eu queira. Amanhã cedo, passarei aí antes de
ir ajudar o Joelson.
Tomei um banho demorado e, após me secar, joguei-
me na cama. Tinha esperado muito por aquela noite,
contudo, sabia que não podia deixar minha mãe sozinha
naquele momento.
Eu teria uma vida toda para dormir ao lado de Clara
e era isso que me confortava.

Desci para tomar café da manhã antes de ir até a


casa de Zefa. A senhora estava preparando a refeição da
manhã na cozinha do casarão.
— Café? — perguntou ela.
— Por favor. — Uma xícara com o líquido preto e
fumegante foi colocada à minha frente.
— Vou fazer os ovos — avisou, direcionando-se ao
fogão.
— Você ouviu o que a minha mãe disse ontem, Zefa?
A senhora se deteve por um momento e, então,
começou a quebrar os ovos em um prato fundo.
— Não, senhor.
Eu não acreditei, todavia, não era o melhor momento
para um novo confronto.
— Minha mãe pode ser um pouco... difícil, mas não é
ela que decide sobre minha vida.
Zefa virou-se para mim e encarou-me. Sua boca nada
dizia, porém, seus olhos duvidavam do que eu havia
acabado de falar. Ainda em silêncio, ela voltou a preparar os
ovos mexidos, servindo-os para mim em seguida.
Ficamos em silêncio enquanto eu fazia minha
refeição, até porque a senhora não parecia disposta a
conversar. Tomei mais uma xícara de café e voltei ao meu
quarto para escovar os dentes e pegar meu chapéu.
— Fica de olho na minha mãe, por favor — falei na
porta da cozinha.
— Sim, senhor.
Deixei o casarão e subi a trilha que levava até a casa
de Zefa para ver a pessoa que novamente deixaria tudo
melhor, minha Clara.
Abri o portão e passei pela cerca. Pela porta aberta,
observei Clara de costas, lavando a louça enquanto cantava
uma música, rebolando aquela bunda redondinha de um
lado para o outro.
— Eu não sei se vou conseguir sair daqui e ir
trabalhar — falei.
Clara se virou abruptamente, abandonando a louça
sobre a pia. Em seu semblante havia uma tristeza silenciosa
que parecia pesar no ar. Sem hesitar, aproximei-me e ergui
uma das mãos, pousando-a suavemente em seu pescoço.
Fitei seus lindos olhos castanhos.
— O que aconteceu?
— Eu... — Suspirou.
— Eu?
— Só lembrei de uma coisa ruim. Não é nada.
Ela ia abaixar a cabeça, mas não deixei que seu olhar
fugisse do meu.
— Sabe que pode me contar qualquer coisa, não
sabe?
— Sim — disse baixinho.
— Desculpe não ter vindo ontem.
— Tudo bem. Sua mãe precisava de você.
— Prometo vir hoje. — Inclinei-me e beijei seus lábios
doces demoradamente.
— Vem almoçar com a gente? — indagou ao se
afastar.
— Não. Vou almoçar em casa. Quero ter certeza de
que minha mãe está melhor — falei. — Mas vou jantar com
vocês.
— Combinado.
Despedi-me de Clara depois de mais um beijo longo,
não foi fácil me afastar dela, mas eu queria ocupar-me com
a fazenda, como meu pai fazia.
Joelson estava feliz com a minha ajuda, todos os
peões continuaram a me receber bem, exceto Joaquim. Ele
não fez questão alguma de fingir que minha presença o
agradava.
Meu telefone tocou duas vezes, era meu amigo Levi,
provavelmente querendo saber sobre as novidades. Depois,
eu enviaria uma mensagem a ele. Levi era o único que tinha
compreendido minha decisão de desistir da viagem a
Londres.
Mais tarde, quando encontrei novamente minha mãe,
ela parecia uma mulher diferente, estava até animada.
Nenhum de nós tocou no nome da Maria Clara. Esperava
que aquela situação não fosse permanente ou seria
insustentável.
O restante do dia passou mais rapidamente, depois
de encerrar o trabalho e tomar um banho, troquei de roupa
e peguei meu celular, pronto para ir até a casa da Maria
Clara.
— Você vai encontrar sua... namorada? — minha mãe
perguntou, sentada no sofá, digitando algo em seu celular.
— Sim. Eu vou. E espero não discutir por isso
novamente.
— Não vamos — disse, colocando o celular de lado.
— Eu aceitei que não podemos evitar que nossos filhos
tropecem e caiam. Mas saiba que, se eu estiver certa sobre
aquela moça estar te engando, não fecharei os olhos.
— Fique tranquila, mãe. A Clara me ama e eu confio
nela.
— Espero que esteja certo.
— Até amanhã.
Deixei o casarão e comecei a subir a trilha. A minha
mãe estava enganada sobre minha namorada. A minha
Clara não era uma golpista. Era uma jovem doce, estudiosa
e sorridente que fazia meu mundo mais leve e melhor.
Bati levemente na porta entreaberta, o som ecoando
suavemente pela casa. Dona Zefa estava ao lado do fogão,
inclinada enquanto acendia a chama e posicionava uma
panela sobre ela, os gestos precisos de quem dominava sua
rotina na cozinha.
— Ela está no quarto dela — avisou-me.
— Obrigado.
Atravessei a cozinha e, na outra porta, observei Clara
com o notebook sobre o colo e um caderno do lado, fazendo
anotações.
— É por isso que você não precisa se preocupar com
as provas e sempre tira notas excelentes.
Ela fechou o notebook e juntou seu material, ao se
levantar, colocou-os sobre a cômoda perto de sua cama.
— Tenho que estar preparada. Além disso, estudar
mantém minha cabeça ocupada.
Clara me puxou para perto de si. Meus braços
envolveram sua cintura, meu nariz deslizou por seu
pescoço, sentindo o cheiro suave de sua pele.
— A madrinha se ofereceu para fazer o jantar, temos
um tempinho para nós.
Seus dedos entrelaçaram-se aos meus e fui guiado
até sua cama. Sentei-me com as costas apoiadas na
cabeceira e puxei Clara para o meu colo. Ela soltou um riso
ao encaixar-se entre minhas pernas.
— Quando começa seu estágio?
— No próximo ano. Vou tentar um que seja
remunerado. Preciso voltar a ganhar dinheiro. Não vai ser
muito, mas poderei ajudar com as compras, mesmo a
madrinha dizendo que não preciso.
— Eu posso ajudar até que comece a trabalhar.
— De jeito nenhum — declarou com firmeza. — A
madrinha nunca aceitaria e eu também não. Nós estamos
bem assim.
— Por que o Joaquim pode ajudar e eu não?
De novo, aquele sentimento de ciúme me ameaçava.
— O Joaquim já ajudava a madrinha muito antes de
eu vir morar aqui. É uma situação completamente diferente.
— Não vejo assim. Sou seu namorado, eu que
deveria te ajudar.
— Estamos bem, porém, se precisarmos, eu pedirei.
Certo?
— Está bem — cedi.
Com uma batida leve na porta aberta, dona Zefa
apareceu. A senhora parecia se esforçar para manter um
semblante tranquilo.
— A comida está na mesa.
— Estamos indo, madrinha, obrigada.
Maria Clara deixou um beijo leve em minha boca
antes de se levantar. Juntos, seguimos até a cozinha para o
jantar.

Tanto Josefa quanto Maria Clara falaram pouco


durante a refeição, com sorrisos contidos. Eu não queria que
a situação permanecesse daquele jeito.
— Quer me contar o que está te preocupando? —
perguntei, abraçando sua cintura por trás. Maria Clara
estava com os braços apoiados na abertura da janela do seu
quarto, olhando o céu estrelado.
— Eu soube que sua mãe passou mal, ou melhor, eu
soube o porquê de ela passar mal. A madrinha me contou.
— Conversamos hoje mais cedo e a minha mãe
entendeu que...
— Que?
Ela virou-se, fitando-me. Minhas mãos circularam seu
pescoço com gentileza e, com os polegares, fiz um carinho
leve em suas bochechas avermelhadas.
— Que eu te amo.
Havia surpresa e felicidade em seu rosto. Um sorriso
genuíno se formou, abaixei-me e beijei seus lábios.
— Eu também te amo — sussurrou.
Suas mãos delicadas afastaram a minha camiseta e
seus dedos tocaram com suavidade meu abdômen,
contornando os músculos. Abaixei um pouco mais a cabeça,
deslizando o nariz por seu pescoço, sentindo o cheiro doce
de sua pele.
— Senti sua falta.
— O quanto? — Sua voz saiu baixa.
Com as mãos firmes em sua cintura, impulsionei seu
corpo para cima. Suas pernas entrelaçaram minha cintura.
Puxei seu vestido, tirando a peça do seu corpo. Os seios
redondos saltaram para frente, ela não estava usando sutiã.
Minha língua desceu da curva do seu pescoço até os peitos
expostos, chupei-os como se fosse a primeira vez, como se
nunca os tivesse experimentado antes.
— Muito — respondi à sua pergunta ao me afastar
por um instante.
Com a ponta da língua, contornei os mamilos duros,
depois mordisquei-os. Clara começou a rebolar devagar em
meu colo, esfregando o tecido fino de sua calcinha sobre o
meu pau duro.
Devagar, coloquei-a sobre a cama. Distanciei-me o
suficiente para retirar minha roupa, sendo observado pelo
olhar atento e guloso da minha garota.
— Gosta do que vê? — Passei uma das mãos pelo
meu pau ereto.
— Bastante. — Sorriu com malícia.
Avancei sobre o colchão, meu corpo encobriu o seu.
Seus olhos se prenderam aos meus e sua mão acariciou
meu rosto. Abaixei-me mais um pouco, experimentando
seus lábios saborosos devagar, deixando minha língua
explorar todos os cantos da sua boca.
Com uma mão apoiada ao lado de seu corpo, desci a
outra até sua boceta. Estava encharcada, aprofundei o
beijo, roubando seu ar na medida em que subia os dedos
lambuzados por seu prazer até o clitóris, circulando-o.
Meus dedos brincavam com a sua boceta, subindo e
descendo, provocando o grelo. Abaixo de mim, seu corpo
respondia, contorcendo-se sobre os lençóis.
— Eu te quero agora, José Augusto — gemeu.
Tomei-a no mesmo instante. Meu pau entrou gostoso,
deslizando por seu canal quente, fazendo um gemido
escapar por sua boca. Inclinei-me, chupando seus seios
mais uma vez, dando leves mordidas nos bicos duros,
mantendo as estocadas que iam cada vez mais fundo.
Quando ela arfou, busquei sua boca e, em seguida,
roubei os seus gemidos de prazer que eram liberados
enquanto ela gozava no meu pau. Sua respiração estava
ofegante e suas unhas desciam marcando minhas costas.
Aumentei o ritmo, meu corpo precisava ainda mais dela.
— Você me deixa louco, Maria Clara! — disse baixo,
quase sem fôlego.
O prazer aumentou, tornando meu corpo mais rígido,
eu sabia que não demoraria a gozar. As unhas de Maria
Clara foram cravadas em minhas costas, procurei o
travesseiro abaixo de sua cabeça e ali coloquei meu rosto
para deixar o urro sair no momento em que eu enchia a
boceta dela de porra mais uma vez, deixando as ondas de
prazer me dominarem por completo.
Puxei o corpo de Clara para junto do meu, sua
cabeça descansou em meu peito, que ainda estava em um
ritmo irregular por conta da respiração acelerada. Meu
braço contornou sua cintura, não deixando espaço para que
se afastasse.
— Você não poderá sair da minha vida nunca mais.
Eu não vou saber ficar sem você — falei.
— É só você não deixar isso acontecer.
— Eu não vou. Não posso mais viver sem você, Clara.
VINTE
MARIA CLARA
Acordei antes de o celular ativar o despertador. Pela
janela do meu quarto, a luz suave do sol entrava e aquecia
minha pele com delicadeza. As cortinas brancas dançavam
com o vento que refrescava o ambiente.
Eu nunca tinha me sentido tão feliz, tão em paz. Eu
estava experimentando um grande amor. Com José
Augusto, eu amava e me sentia amada na mesma
intensidade. Respirei fundo, apreciando o momento que
infelizmente não durou muito, pois, ao me lembrar que dona
Cassandra não me aceitava e, segundo a minha madrinha,
nunca aceitaria, uma nova sensação ameaçou brotar em
meu peito, como se algo precioso estivesse prestes a
escorrer por entre os meus dedos. Talvez eu estivesse
apenas com medo, depois de perder meu pai e minha mãe,
a felicidade, o sentimento de pertencimento, parecia algo
distante de alcançar e naquele momento, eu tinha ao meu
lado o homem que me dava tudo aquilo.
Eu não podia me deixar levar por medo. Não podia
estragar o melhor momento da minha vida. Estar nos braços
do primeiro e único amor da minha vida, sim, porque eu
sabia que José Augusto era o meu amor e nada superaria
ele. O que eu havia sentido um dia por meu ex-namorado
não era nada comparado ao que eu sentia por José Augusto.
Afastei seu braço devagar, com movimentos lentos, e
saí da cama, colocando um vestido qualquer antes de
deixar o quarto. Na cozinha, encontrei a madrinha tomando
um gole de café. Ela deixou o copo transparente sobre a
mesa e me observou.
— Você parece feliz — disse ela.
— Eu estou, madrinha. Eu amo o José Augusto e sei
que ele me ama também. Não estou dizendo que não
entendo a preocupação de vocês — falei, aproximando-me e
tomando suas mãos nas minhas. — Mas a gente se ama de
verdade e, quando isso acontece, não há mal em duas
pessoas de mundos diferentes ficarem juntas, não é?
— Enquanto você estiver feliz, eu estarei também. —
Levantou-se da cadeira. — Tem coisas que não podemos
evitar, faz parte do nosso destino.
— O meu destino é ele, madrinha, sei disso.
— Eu acredito — ela falou, antes de se despedir e ir
para o casarão trabalhar.
Comecei a preparar o café da manhã para José
Augusto, logo o celular ativaria o despertador e ele se
levantaria.
Sobre a mesa, coloquei a garrafa de café, o prato
com ovos mexidos, fatias de pão caseiro e duas fatias de
mamão. Não demorou para que ele aparecesse na cozinha,
sem camisa, com os cabelos bagunçados e um sorriso largo
no rosto. Ele estava perfeito.
— Bom dia, meu amor — disse, deixando um beijo
leve sobre meus lábios.
— Fiz o nosso café da manhã — avisei.
— Que bom, porque eu acordei morrendo de fome.
Sentamo-nos lado a lado e começamos a refeição da
manhã. José Augusto parecia tão feliz quanto eu, tentei me
apegar aquilo para afastar qualquer sensação de medo que
pudesse me assustar.
— Estive pensando em me mudar para Santa Luzia —
ele disse, pegando uma fatia de pão sobre a mesa.
— Mesmo?
— Sim. Eu nunca quis sair daqui, na verdade. O que
eu fiz foi me conformar com a vida na capital, mas desde
que eu voltei, lembrei do que realmente gostava.
— Entre a vida na capital e a vida no campo, prefiro a
no campo. Eu não imaginava que gostaria tanto. Também
deve ser melhor para criar filhos.
Um sorriso grande se mostrou em seus lábios.
— Teremos filhos? No plural?
— Quero dizer, eu quero, um dia. Você não?
— Eu quero tudo com você, Maria Clara.
— Então, teremos. Pelo menos dois. Eu queria ter
tido irmãos.
— Se for um menino, podemos dar o nome de
Samuel? Como meu pai.
— Podemos. É uma linda homenagem e um nome
muito bonito também.
— Então, você escolhe o nome da nossa menina ou
do segundo menino.
— Posso fazer isso — falei.
As mãos de José Augusto circularam meu corpo e,
com um movimento rápido e firme, fui levada até seu colo.
Seu nariz desceu deslizando por meu rosto, e então, sua
cabeça descansou na curva do meu pescoço.
— Você trouxe sentido à minha vida, Maria Clara.

Depois do café da manhã, José Augusto disse que


passaria no casarão para ver a sua mãe e então iria ajudar
Joelson no que ele precisasse na fazenda. Eu aproveitei para
fazer uma faxina na casa.
Eu estava lavando o banheiro, despejando água
pelas paredes de azulejo marrom com um balde de metal,
quando o som de passos em saltos finos chamou minha
atenção. Interrompi o que fazia e atravessei a porta,
encontrando dona Cassandra, parada bem à minha frente.
Meu corpo congelou por um instante, e o balde vazio
escorregou das minhas mãos, caindo no chão e provocando
um estrondo que ecoou pela casa.
— Se a senhora está procurando seu filho, ele não
está aqui. Ele...
— Eu sei onde meu filho está. Eu vim falar com você,
Maria Clara.
Ela cruzou os braços, olhando-me da cabeça aos pés.
Senti o desconforto da roupa molhada contra minha pele.
Passei as mãos pelos braços, tentando aquecer-me
rapidamente.
— O que a senhora quer falar comigo?
— Quero que deixe meu filho em paz.
— E por acaso estou atormentando ele, senhora? —
falei sem nem ao menos pensar.
— Não se faça de sonsa, menina. Sabe do que eu
estou falando.
— Eu amo seu filho e ele me ama — tentei firmar a
voz, mesmo que por dentro eu estivesse tremendo.
— Amor? — Ela disse com deboche. — Acha que isso
se manterá por quanto tempo?
— Por uma vida toda.
— Não acredita mesmo nisso, não é, menina?
— Meu filho merece mais, muito mais. Eu não me
esforcei tanto para que ele tivesse uma carreira brilhante,
uma vida perfeita, e então jogasse tudo para o alto por
causa da sobrinha da minha empregada.
— O José Augusto é quem decide o que quer para a
vida dele.
— Não se iluda. Isso nunca vai acontecer. Eu decidi
cada passo que ele deu até agora. E nada mudará isso.
— Ele está feliz. Talvez pela primeira vez na vida
dele.
Cassandra se aproximou mais de mim. Seu olhar
mostrava-se carregado de raiva, fixado ao meu, enquanto
seu dedo apontava em direção ao meu rosto, quase tocando
meu nariz. Por mais que eu estivesse com medo naquele
momento, não recuei.
— Meu filho era muito feliz antes de te conhecer. A
única coisa que você trouxe à vida dele foi destruição. A
ruína de tudo o que ele conquistou com anos de esforço e
dedicação, mas isso acaba aqui! Eu não vou esperar que ele
acorde um dia arrependido de ter deixado você entrar na
vida dele e ter estragado tudo. Você vai deixar o meu filho
hoje mesmo.
Meus olhos arderam com as lágrimas que se
formaram, contudo, segurei-as, eu não podia chorar. Não
queria dar espaço para a maldade daquela mulher me
atingir, porque ela era aquilo: pura maldade.
— Eu não vou. Eu o amo e sei que ele me ama
também. Não me importa o que diga ou faça, não vamos
deixar que nos afaste.
Ela abaixou a sua mão, mas manteve seus olhos
sobre mim. Os olhos azuis eram a única semelhança que ela
tinha com José Augusto, nada mais daquela mulher,
lembrava-me do homem que eu amava.
— Estou te dando uma chance de sair dessa situação
sem uma humilhação maior. Deixe o meu filho hoje mesmo
e eu vou fingir que você não existe mais.
— Isso não vai acontecer.
Dona Cassandra prendeu um fio loiro de seu cabelo
que tinha se desprendido do coque apertado, colocando-o
atrás da orelha.
— Eu te dei a chance de sair dessa situação. Lembre-
se disso.
Ela se virou e saiu, sem olhar para trás ou dizer
qualquer outra coisa.
Aquela sensação de medo voltou, ainda mais forte.
Um calafrio percorreu minha coluna, fazendo os pelos dos
meus braços se arrepiarem. Eu não estava gostando
daquilo, eu precisava que José Augusto voltasse logo para
casa e me dissesse que tudo ficaria bem.
VINTE E UM
MARIA CLARA
Eu não conseguia desviar os olhos do relógio na
parede da cozinha, verificando os segundos que passavam
lentamente. A visita indesejada de Cassandra e a ameaça
que ela havia feito estavam martelando em minha mente.
Busquei meu celular e enviei uma mensagem a José
Augusto, pedindo para falar com ele, porém, para minha
aflição, a mensagem não chegou imediatamente. Iniciei
uma chamada, mas ela não foi completada. Respirei fundo,
buscando algum controle. Eu devia estar exagerando,
Cassandra não podia me afastar de José Augusto, não
quando nos amávamos tanto.
Decidi retomar a limpeza da casa, tentando afastar
da mente o que tinha acontecido. Aquela mulher não podia
decidir sobre nossas vidas. Quando terminei a faxina, tomei
um banho quente, sentindo a água relaxante me ajudar a
aliviar a tensão. Depois de colocar uma roupa limpa e seca,
na cozinha, comecei a preparar o almoço, mas não
conseguia deixar de olhar para o celular repetidamente,
mais vezes do que eu podia contar, esperando encontrar
alguma novidade sobre a mensagem que havia enviado
para José Augusto.
As horas avançaram e a madrinha e o Joaquim não
apareceram para almoçar, aquilo não era normal. Coloquei
um pano de prato limpo sobre as panelas com tampa no
fogão e peguei meu celular mais uma vez. Liguei para José
Augusto novamente, mas não obtive uma resposta
diferente. Sem pensar muito, fechei a casa e saí pelo
portão, descendo a trilha até o casarão.
Eu precisava falar com a minha madrinha, a única
pessoa que eu sabia onde encontrar naquele exato
momento. José Augusto até podia estar no casarão,
contudo, depois da visita de sua mãe, eu não o procuraria
por lá.
Antes de sair da proteção das árvores e alcançar o
vasto gramado verde que cercava o casarão, enxerguei
Joaquim saindo pelos fundos. Ele estava batendo o chapéu
contra suas pernas, parecendo praguejar alguma coisa.
Agitei os braços para cima, chamando sua atenção. Meu
amigo levantou a cabeça e me viu, todavia, me ignorou.
Estranhei seu comportamento.
Andei até os fundos da casa depois de ter certeza de
que não havia mais ninguém por perto. Silenciosamente,
caminhei pelo corredor até chegar à cozinha.
— Madrinha? — chamei a senhora que almoçava
sozinha na mesa. — O que aconteceu? Por que não foi
almoçar em casa?
— Menina! O que faz aqui? — ela disse baixo,
olhando ao redor, preocupada.
— Ninguém apareceu para o almoço lá em casa —
expliquei.
— A dona Cassandra não te quer aqui.
— Eu sei. E não me quer com o filho dela. Ela me
procurou para deixar tudo bem claro.
Dona Josefa não pareceu surpresa ao me ouvir falar
aquilo.
— Você não vai mesmo deixar o José Augusto?
— Não vou.
Vi que seus lábios se apertaram e seus olhos
marejaram. Corri até ela, abaixando-me ao seu lado. Toquei
seu braço com gentileza.
— Madrinha, não tem com o que se preocupar. Não
importa o que aquela mulher fale. O que importa é o que o
José Augusto sente, e ele me ama. Eu sei.
— Não vai bastar — disse com dor. — Quando a dona
Cassandra quer uma coisa, ela consegue. Não importa o
quanto custe e nem quem atinja.
— E o que ela vai fazer para conseguir o que quer?
Me matar? — falei com descrença.
Seu braço me puxou para si com força. Ouvi um
choro ser sufocado entre meus cabelos soltos.
— Eu não vou deixar. Não importa o que eu precise
fazer.
— Madrinha, agora está me assustando — avisei.
Ela se afastou, limpando as lágrimas que escorriam
por seu rosto. Seus olhos estavam fundos, parecia cansada.
— Eu queria ter passado mais tempo com você. Ao
seu lado, eu sinto que ainda tenho um pedacinho do meu
irmão.
— Teremos muito tempo ainda, madrinha.
Ela balançou a cabeça afirmativamente e depois
deixou um beijo em minha testa.
— Vá para casa. Não fique andando pela fazenda.
— Não consegui falar com o José Augusto. Ele
apareceu por aqui?
— Ele veio cedo para ver a dona Cassandra e falou
que não ia almoçar aqui. Tinha alguma coisa para resolver
na cidade com o Joelson.
— Entendi. O celular dele deve estar sem bateria.
Tudo bem, falo com ele à noite. Ainda não sei como contar
sobre a visita da mãe dele, mas queria ter certeza de que
está tudo bem.
— Cassandra nunca vai admitir para o filho qualquer
coisa que tenha dito a você.
— Acha que ele não vai acreditar em mim quando eu
contar tudo a ele?
— Se fosse ao contrário, você acreditaria? Se a
pessoa por quem está apaixonada te dissesse coisas
horríveis sobre sua mãe, a única família que te restou nesse
mundo, e sua mãe negasse toda e qualquer acusação.
Acreditaria que sua mãe é uma pessoa fria e maldosa a
ponto de ameaçar quem você ama?
— Não sei.
Se fosse ao contrário, realmente não saberia dizer
como seria minha reação. Achamos que conhecemos quem
amamos e que eles nunca serão capazes de nos machucar
ou fazer ameaças.
— Vá para casa, filha. A dona Cassandra não pode te
ver por aqui.
Depois de receber mais um beijo carinhoso na testa,
levantei-me e deixei a cozinha, usando o corredor
novamente para sair pelos fundos.
Em casa, almocei sozinha, tentando não deixar o
medo e a insegurança que me ameaçavam serem maiores
do que a sensação de paz e a felicidade que eu tinha
experimentado ao lado de José Augusto.

No final do dia, depois de fechar o notebook, guardei


o material de estudo e arrumei minha cama novamente,
espreguiçando-me sobre ela. Em alguns momentos, ainda
sentia um desconforto estranho no peito, mas esperava que
passasse completamente no momento em que José Augusto
chegasse em casa.
A madrinha foi a primeira a passar pela porta de
entrada, corri até ela, não podendo deixar de notar que
parecia ainda mais abatida.
— Está tudo bem, madrinha?
Seu olhar se demorou em meu rosto. Eu senti que ela
tinha algo a dizer.
— Pode falar — pedi, dando dois passos à frente.
Segurei suas mãos, que estavam frias.
— Não é nada.
Eu não sabia o que a estava perturbando naquele
dia, mas tinha certeza de que havia algo.
— Deixe que eu preparo o jantar hoje, precisa
descansar.
A senhora de cabelos grisalhos e bochechas
avermelhadas nada respondeu. Apenas confirmou com a
cabeça lentamente.
Meu coração se apertou dentro do peito. A dona
Cassandra poderia estar ameaçando a madrinha também?
Eu não queria abrir mão do que estava vivendo com José
Augusto, mas também não podia machucar as pessoas à
minha volta, muito menos a minha madrinha, que me
acolheu quando eu mais precisei.
Comecei a preparar a refeição, colocando o arroz na
panela para cozinhar e temperando a carne. Na sequência,
passei a lavar as folhas para a salada. Não precisei descolar
o quadril da pia e me virar para saber que José Augusto
tinha entrado em casa. Nenhum tempero podia confundir-se
com o cheiro amadeirado do seu perfume.
Seus braços circularam minha cintura e sua boca
deixou um beijo suave na curva do meu pescoço, fazendo
um arrepio excitante percorrer sob minha pele.
— Desculpe, meu celular ficou sem bateria. Só vi
suas mensagens quando o coloquei para carregar, depois de
retornar da cidade e tomar um banho.
— Tudo bem. — Sequei minhas mãos em um pano de
prato que estava ao lado e virei-me para ele. — Que bom
que está aqui agora.
— E onde mais eu estaria?
Seu beijo quente começou devagar e foi se
intensificando, senti seus dedos descerem até minha bunda
e apertarem a carne. Sorri com os lábios grudados aos seus.
Ouvimos o portão ser aberto e nos viramos na
direção da porta de entrada. Dona Cassandra estava vindo
até nós e ela parecia furiosa, acompanhada de Joaquim.
Minha mão apertou o braço de José Augusto. Eu não
sabia o que estava acontecendo, contudo, pressentia que
não era algo bom. Sem pedir licença, Cassandra entrou e
Joaquim ficou ao lado da porta.
— Eu disse que não deixaria essa menina te enganar,
meu filho. — Ela apontou o dedo em riste em minha direção,
mantendo-se do outro lado da mesa que ocupava o centro
da cozinha. — Eu trouxe a testemunha e uma prova de que
ela só quer uma situação melhor de vida e está usando você
para conseguir isso.
— O quê? Do que a senhora está falando? — minha
voz saiu firme, apesar do tremor que eu sentia se
espalhando por meu corpo.
— Mãe — iniciou José Augusto. — Isso está indo longe
demais. A senhora não pode ofender a Maria Clara desse
jeito.
— É a verdade, meu filho! Eu tentei te proteger,
tentei te salvar dessa humilhação, mas você não me ouviu!
— Vamos para casa, agora, mãe! — José Augusto deu
alguns passos à frente, mas foi impedido de passar pela
porta por Joaquim, que se colocou em sua frente.
— Sua mãe não está mentindo, patrão. A sua...
namorada está apenas usando o senhor. Essa coisa de
menina estudiosa é só uma fachada.
— Joaquim! O que significa isso? — gritei!
Joaquim passou por José Augusto, batendo
propositalmente contra seu corpo, e depois de circular a
mesa de madeira, colocou-se ao meu lado.
— Eu cansei de a gente ter que se agarrar escondido
para você tentar dar o golpe no patrão. Não vou mais fazer
esse seu jogo, Maria Clara. Eu quero você só para mim.
José Augusto andou furioso até Joaquim, arrastando-o
pela camisa, levando seu corpo até a parede mais próxima.
— De que porra você está falando?
— Eu nunca deixei você me tocar, Joaquim! — gritei.
— Ela está mentindo para você, patrão. Ela é minha
há muito tempo — com esforço, Joaquim tirou um objeto do
bolso. — A Maria Clara está esperando um filho meu. Ela fez
esse teste logo após você voltar para a capital. Eu sou um
cara sentimental, é meu primeiro filho, por isso, guardei o
teste.
José Augusto soltou Joaquim, que entregou a ele um
teste de gravidez. Instantes depois, quando levantou a
cabeça e olhou para mim, vi em seus olhos azuis uma
mistura de raiva e dor. José Augusto nunca tinha me olhado
daquela maneira antes.
— Como você explica tudo isso, Maria Clara? — José
Augusto segurava o teste com força entre os dedos.
— É tudo mentira! A sua mãe e o Joaquim estão
tramando isso contra nós!
— Tramando contra o meu próprio filho? Menina,
você não tem limites, não é? Eu só estou o protegendo —
disse a mulher. — O Joaquim me procurou hoje no casarão
para acabar com essa farsa. Foi o seu amante que veio até
mim para contar a verdade sobre você e os seus planos!
Você nunca me enganou, Maria Clara. — Ela voltou a
apontar o dedo em minha direção.
Tirei o teste de gravidez das mãos de José Augusto e
o joguei no chão. Minhas mãos tremiam, procurei as suas,
ele resistiu, mas eu insisti até conseguir o contato de que eu
precisava.
— Eu juro, eu não sei do que esses dois estão
falando. Você precisa acreditar em mim. — Meus olhos
queimavam, segurei as lágrimas, eu precisava ser firme e
não perder o controle.
— Eu quero tanto acreditar em você. Não consigo
imaginar que você tenha me enganado. — Sua voz saiu
embargada.
— Não enganei! Eu nunca tive nada com o Joaquim
ou com qualquer outro desde que cheguei aqui. Você
precisa confiar em mim, meu amor. — As lágrimas
romperam meus olhos, descendo rapidamente por meu
rosto.
— Se você acha que o Joaquim está mentindo e que
sua própria mãe, a única mulher que realmente quer seu
bem, está sendo leviana ao fazer essa acusação, vamos
perguntar a outra pessoa que mora nessa casa. Eu duvido
que a Josefa terá coragem de mentir sobre a conduta da sua
sobrinha. Você conhece a Josefa, meu filho. Sabe que ela é
uma mulher de caráter e nunca mentiria sobre algo dessa
natureza.
Cassandra andou até o quarto da minha madrinha e
a trouxe, quase arrastada, puxando-a pelo braço. Seus olhos
estavam vermelhos, ela estava chorando também.
— Madrinha — andei até ela. — A senhora sabe da
verdade. Por favor, diga que essa história entre mim e o
Joaquim é loucura. Sempre fomos apenas amigos. Eu nunca
tive nada com ele, a senhora sabe...
Seus dedos finos limparam minha face com
gentileza, enquanto novas lágrimas escorriam sem parar.
— Me perdoa, filha. Eu faço isso para o seu próprio
bem — disse baixinho.
Aquelas palavras causaram desespero em meu peito.
Ela não teria coragem de mentir sobre aquilo, teria? A dor
em minha garganta começou a me sufocar, como se um nó
estivesse se fechando ao redor do meu pescoço lentamente.
E então, dando um passo para frente, enquanto encarava
José Augusto, minha madrinha, a única família que tinha me
restado, me deixou sozinha.
— A Maria Clara tem um relacionamento com o
Joaquim. Por isso, ele frequenta nossa casa todos os dias e
faz as compras para nós. Eu não sabia que ela estava
grávida, mas não estou surpresa. Ela me prometeu que ia
parar de te encontrar e te enganar. Como minha sobrinha,
esperei que ela agisse certo, mas infelizmente, ela não agiu.
No momento em que meus olhos encararam os de
José Augusto, eu soube. Ele não acreditaria em mim, não
mais.
VINTE E DOIS
JOSÉ AUGUSTO
Parecia um terrível pesadelo. Não queria acreditar
que tinha sido enganado daquela maneira. Como eu não
enxerguei quem era a Maria Clara? Como fui tão cego?
Agora entendia que o meu ciúme de Joaquim tinha
fundamento, havia mesmo alguma coisa entre eles, eu que
não quis enxergar. Senti minhas unhas cravarem na palma
da mão fechada. Eu estava com muita raiva.
— Então é por isso que você estava falando de filhos,
não é, Maria Clara? Queria empurrar o bebê para mim.
— Eu não estou grávida, José Augusto! Muito menos
do Joaquim!
— Chega! — gritei. — Todos aqui confirmaram o seu
relacionamento com ele. Até sua própria tia! Até quando vai
insistir em me enganar?
Maria Clara andou até mim, com lágrimas que
escorriam por seu rosto delicado. Em outro momento, eu
teria feito qualquer coisa para secá-las, para tirar o seu
sofrimento, contudo, ao descobrir sua verdadeira face, eu
não conseguia mais acreditar no que via, pois tudo não
passava de fingimento.
A única coisa real ali era a dor implacável que
esmagava meu peito, tentando me sufocar em um tormento
que me consumia por dentro. Suas mãos me buscaram,
facilmente as afastei de mim.
— Não faça isso, meu amor. Eu não sei por que todos
estão mentindo, mas nada disso é verdade. Você é o único
amor da minha vida e eu nunca trairia você.
— Todos estão mentindo, Maria Clara? — Segurei-me
para não gritar. — Minha mãe, seu namorado, e até a sua
tia? A pessoa que foi até São Paulo para te buscar e te dar
abrigo quando você ficou sozinha, agora está mentindo para
quê? Para te prejudicar?
— Você precisa...
— Eu preciso ir embora. É isso que eu preciso — falei,
cortando-a. — Não acredito mais em uma palavra do que
você diz. Você não é quem eu pensei que fosse.
Minha irritação se misturou à minha dor, ao meu
ciúme, ao meu desespero ao entender que nada daquilo
tinha sido real. Eu queria mudar minha vida para estar ao
lado de Maria Clara e ela só queria me usar.
— Eu sou exatamente a pessoa que eu disse ser —
ela insistiu, aumentando minha irritação e dor.
— Não se aproxime mais de mim — declarei,
sentindo meu peito rasgar por dentro.
— José Augusto, por favor... — Ela tentou me deter,
mas não deixei, passei por Maria Clara e atravessei a porta
sem olhar para trás.
Na escuridão da noite, deixei as lágrimas presas
rolarem. Eu queria gritar, expulsar tudo aquilo que estava
sentindo me matar por dentro.
— José Augusto! — Ouvi seus gritos de dentro da
casa, mas não me virei. Não aguentava mais aquele teatro.
Eu estava com tanta dor e raiva. Era a primeira vez em
muito tempo que eu tinha me sentido realmente feliz e tudo
não tinha passado de mentiras.
Atravessei a porta de entrada do casarão e corri em
direção às escadas. O ar parecia chegar com dificuldade aos
meus pulmões. Segurei-me na cômoda em frente à minha
cama.
— Eu te avisei que ela não era confiável, José
Augusto. Eu tentei evitar essa humilhação, mas você não
me ouviu.
— Mãe...
— Saiu lá da capital, onde tinha uma vida boa, de
prestígio, para quase levar um golpe da sobrinha da
empregada.
— Mãe — chamei-a novamente.
— Agora, imagine criar um bastardinho. Um filho de
outro homem como se fosse seu. E ela quase conseguiu, ela
teria...
Com o punho fechado, bati contra a superfície de
madeira do móvel, fazendo os itens em cima dele pularem.
— Chega! — gritei. — Já chega, por favor!
— Eu... — Minha mãe tentou se aproximar de mim,
esquivei-me.
— Me deixa quieto, por favor.
— Não pode ficar com raiva de mim, José Augusto, fui
eu que te livrei de um golpe.
— Foi você ou o Joaquim? Não foi ele que te
procurou?
— Sim — respondeu rapidamente. — Mas eu que o
levei até você. Eu poderia ter deixado essa história seguir e
assistido você quebrar a cara lá na frente, mas fiz o que
uma mãe deve fazer e impedi que o pior acontecesse.
Passei as mãos pelo rosto, limpando com força as
lágrimas da minha face.
— Só me deixa quieto, mãe. Por favor.
— Está bem. Mas espero que tenha aprendido a lição.
Você nunca deve se envolver com qualquer uma.
Assim que minha mãe saiu do quarto, fechei a porta.
Descansando a testa na madeira. Eu estava exausto, todos
os meus músculos estavam doloridos.
Não importava o quanto aquela cena recente se
repetisse na minha cabeça, ainda parecia irreal. Toda a
felicidade que eu tinha experimentado tinha sido uma
mentira.
VINTE E TRÊS
MARIA CLARA
— Eu não sei por que vocês fizeram isso comigo, mas
eu nunca vou conseguir perdoá-los — falei, entre lágrimas,
sentindo meu coração ser esmagado dentro do peito.
— Sabemos disso — disse a madrinha, limpando as
lágrimas do seu próprio rosto.
— Por que me traiu desse jeito, madrinha? — Havia
muita dor em minhas palavras.
— Sinto muito, filha. Não tive escolha, foi para salvar
você.
— Salvar de quê? — questionei sem entender.
— Da dona Cassandra — completou Joaquim. — Você
não a conhece como nós. Aquela mulher consegue qualquer
coisa que desejar. Não importa como. E ela queria você
longe do filho dela.
— Ela conseguiu o que queria porque vocês foram
fracos e covardes. Por que não contaram ao José Augusto a
verdade?
— Que verdade, Maria Clara? Que a mãe dele
ofereceu uma fortuna para eu mentir para ele? Que ela
ameaçou deixar a dona Josefa sem ter para onde ir?
— Ela ameaçou te despejar, madrinha? — Virei-me
para ela.
— Eu não me importaria com isso, tenho minhas
economias, poderia ir para a cidade e procurar emprego,
mas... eu vivi tempo o bastante nessa fazenda para
conhecer a dona Cassandra. Ela não é só mesquinha,
arrogante e preconceituosa. Ela... pode ser uma assassina.
— Como? — eu disse.
— Acreditamos que o pai do José Augusto não morreu
em um acidente — falou Joaquim. — Foi a dona Cassandra
que deu um fim nele.
— Isso... isso é muito grave! Vocês contaram isso à
polícia?
— A dona Cassandra manda nessa cidade mais do
que você possa imaginar — argumentou a minha madrinha.
— O José Augusto precisa saber disso. Ele precisa...
— Não — interrompeu-me a madrinha. — Nunca
tivemos provas disso e não precisamos colocar nossas
cabeças a prêmio.
— Madrinha, estamos falando de assassinato!
— Aquela mulher é capaz de qualquer coisa sim. Por
isso, não vamos enfrentar ela — disse Joaquim.
Limpei meu rosto das lágrimas novamente, tentando
normalizar minha respiração e meu corpo que ainda tremia.
Senti as mãos da madrinha fazendo um carinho leve nas
minhas costas. Tudo aquilo era demais para absorver.
— Eu preciso conversar a sós com o José Augusto.
Preciso que ele me ouça. Eu sei que...
— O que você precisa fazer é dar o fora das minhas
terras — A voz de Cassandra nos alcançou. Em poucos
passos, ela estava novamente dentro da cozinha da
madrinha.
— Eu não vou — disse com firmeza.
— Se você não for, vou colocar sua madrinha e seu
amigo na rua. E vou garantir que nenhum dos dois consiga
emprego mesmo a quilômetros daqui. Você vai sustentá-
los?
— Não pode fazer isso — falei.
— Posso e vou. Essas são minhas terras e minha
cidade. — Ela se virou para a minha madrinha. — Achei que
tinha deixado claro que a sua sobrinha deveria cooperar,
Josefa.
— A senhora deixou. A Maria Clara só está um pouco
nervosa.
O braço da minha madrinha se apertou ao redor do
meu, eu sabia que deveria ficar quieta, mesmo que eu
quisesse gritar naquele momento.
— Então — Cassandra abriu a bolsa e retirou de lá
três maços de dinheiro: um maior e dois menores —, aqui
está o pagamento de vocês. A Josefa vai continuar aqui na
fazenda, como prometi a ela. Mas o Joaquim e a... Maria
Clara precisam partir ainda hoje.
— O quê? — eu disse com dificuldade.
— Não achou que ficaria na minha fazenda ou
mesmo na minha cidade depois de me obrigar a fazer esse
teatro todo para livrar o meu filho das suas garras, achou?
— Eu... — comecei a dizer.
— Ela vai embora hoje mesmo, senhora — a
madrinha disse, apertando os meus dedos levemente.
Novas lágrimas escorreram por meu rosto, limpei-as com
pressa.
— Ótimo! Com tudo resolvido, vou dormir um sono
tranquilo e profundo. Amanhã, não quero ver nem sinal de
vocês dois por perto. — Apontou para mim e para Joaquim.
Assim que ela passou pela porta, joguei um dos
maços de dinheiro em suas costas.
— Leva o seu dinheiro sujo — gritei.
Cassandra virou-se para trás e me olhou da cabeça
aos pés, como se eu fosse completamente insignificante.
— Isso é migalha para mim. Você vai precisar mais
dele do que eu.
Joaquim passou por mim às pressas e pegou o
dinheiro caído na grama.
— Eu fico com isso — avisou.
Voltei para dentro de casa com ainda mais raiva.
— Vou te ajudar a fazer a sua mala.
Eu não tinha forças para fazer qualquer coisa, muito
menos para preparar minhas coisas para ir embora da
fazenda, para deixar José Augusto.
— Te encontro no portão daqui a uma hora — avisou
Joaquim, pegando o maço de dinheiro maior sobre a mesa e
devolvendo o que eu tinha atirado contra as costas da
megera.
— Eu não vou com você a lugar nenhum — falei.
— Você vai sim! — a madrinha disse. — O Joaquim
fez o que precisava ser feito. Ele também não teve escolha.
Além disso, já me prometeu te deixar em um lugar seguro,
bem longe daqui.
— Madrinha...
— Isso dói tanto em mim que eu nem sei dizer, mas
prefiro ter você longe daqui do que correr o risco de a dona
Cassandra te machucar de verdade.
— Então, vamos comigo! Se ela é tão perigosa,
vamos embora dessa fazenda, para bem longe dessa
mulher.
— A dona Cassandra não vai fazer nada comigo. Não
quando ela já conseguiu o que queria.
— Mas...
— Eu vivi a maior parte da minha vida aqui. Nunca
tive outro emprego. Essa é a vida que eu conheço —
argumentou. — Eu vou ficar bem, desde que eu tenha
certeza de que você está segura.
— Não temos escolha, Maria Clara. Te encontrarei
daqui a uma hora lá fora — reforçou Joaquim antes de nos
deixar.
— Vá tomar um banho, talvez isso te dê um pouco de
forças. Eu vou terminar de arrumar as suas coisas.
Concordei, mesmo sabendo que nada me daria
forças naquele momento. O chão sob meus pés tinha sido
tirado de mim. Eu tinha sido jogada em um mundo
completamente diferente do que eu tinha vivido naquela
manhã.
Juntei o teste de gravidez que eu não fazia ideia de
quem era e joguei no lixo. Eu tinha muito o que fazer
naquela noite ainda, e por mais que meu coração estivesse
em pedaços, eu sabia que precisava partir.
VINTE E QUATRO
MARIA CLARA
Eu passei todo o trajeto sem conseguir fechar os
olhos. Fizemos duas paradas rápidas em postos de gasolina
para usar o banheiro. A madrinha havia preparado um
lanche e uma garrafa de suco, que dividimos dentro do
carro enquanto seguíamos viagem.
Os primeiros raios do dia surgiam quando chegamos
a uma nova cidade. Devagar, passamos pela praça central
que era simples, porém acolhedora. Havia bancos de
madeira distribuídos sob a sombra de árvores frondosas. No
centro, um coreto pintado de branco e ao redor, canteiros
bem cuidados exibiam flores coloridas e um chafariz antigo,
com água cristalina. Pequenos comércios e a igreja matriz
se mostravam à volta, destacando-se em meio às ruas de
paralelepípedos. Descemos mais três quadras, onde
construções de arquitetura clássica, porém bem
preservadas, se alinhavam em uma rua residencial.
— Fique aqui, volto já — avisou Joaquim. Meu corpo
estava dolorido pela viagem longa, mas meu coração estava
pior.
Pelo para-brisa do carro, vi Joaquim bater na porta de
madeira marrom da casa à frente e uma senhora de cabelos
brancos e semblante amigável aparecer em seguida. Os fios
de seus cabelos eram brancos e estavam presos em uma
trança baixa. Ela usava um vestido simples na cor azul e um
xale branco de lã sobre os ombros. Eles trocaram um abraço
forte e depois, ao se afastarem, ela olhou diretamente para
mim, prestando atenção no que Joaquim falava.
Seus braços finos agitaram-se vigorosamente,
chamando-me. Desci do carro e segui até a pequena
varanda que protegia a porta de entrada da casa.
— Entrem, vou fazer um café para nós. Depois dessa
viagem longa, devem estar precisando de um.
Joaquim estendeu o braço, indicando que eu entrasse
na casa. As paredes eram claras, de um amarelo que
lembrava a areia fina da praia. Na parede da sala, alguns
quadros antigos com paisagens de pequenas cabanas em
meio à natureza, com riachos desbravando o campo, se
destacavam. Na estante de madeira havia vários anjos em
porcelana e uma televisão pequena. Porta-retratos da
senhora com outras pessoas e crianças marcavam quase
todos os cantos ao redor.
Quando cheguei à cozinha, Joaquim estava sentado
em uma cadeira, à frente da mesa retangular, coberta com
uma toalha plástica estampada com flores.
— Eu gostei da cor azul dos seus armários — falei,
notando a cor forte na madeira.
— Eu mesma pintei. Eram brancos quando novos,
com o tempo, ficaram amarelados, mas não um amarelo
bonito, só encardido mesmo. Então, escolhi uma cor e
comprei a tinta. Levou algum tempo, mas consegui.
— Maria Clara — chamou-me Joaquim. — Esta é a
dona Benedita. Ela foi amiga dos meus pais quando eu vivi
aqui em Nova Esperança.
— Sente, menina. Descanse um pouco — disse a
senhora enquanto passava o café pelo coador de pano. O
aroma delicioso se espalhou pela cozinha, aumentando
minha fome.
Sentei-me em uma cadeira na ponta da mesa.
Joaquim manteve-se na lateral, desviando os olhos de mim
sempre que eu o encarava.
— Aqui tem bolo de laranja. — Colocou um prato com
fatias do bolo branco com uma cobertura fina e durinha de
açúcar por cima.
De dentro da geladeira, ela tirou um pote com
pedaços de uma torta salgada. Esquentou-os no micro-
ondas e depois trouxe para nós.
— Não fiquem tímidos, sirvam-se — dona Benedita
disse.
Alcancei uma xícara marrom de vidro e despejei nela
o café fresquinho, depois peguei um pedaço quente de torta
de frango.
— Está uma delícia — elogiei.
— Obrigada — agradeceu a senhora. — Eu sempre
faço bolos, tortas e comida à vontade. Gosto de me manter
ocupada na cozinha, além do mais, vez ou outra recebo
visita dos meus vizinhos.
— A dona Benedita é uma figura conhecida na
cidade. Nasceu e cresceu em Nova Esperança, tinha um
restaurante na praça.
— Sim. Vivi aqui minha vida toda. Por isso, não aceito
ir morar na capital como meus filhos querem. Nesta cidade,
eu me casei, tive meus filhos, fiz amizades para a vida toda.
Se eu sair daqui, vou acabar morrendo de infelicidade.
Depois de sessenta e cinco anos, não vou a lugar nenhum.
— Eu entendo a senhora — disse Joaquim.
— Depois que terminarmos o café, vou levar vocês
dois para conhecerem a casa do lado.
— Você quer conhecer a sua nova casa, Maria Clara?
— Joaquim perguntou.
— Sim.
Eu não podia responder que não, estava naquela
cidade para recomeçar minha vida e com certeza precisaria
de uma nova casa.

Dona Benedita nos levou até a casa depois de


terminarmos o café da manhã. A estrutura era idêntica à
casa da senhora. Também havia uma pequena varanda na
frente, com uma cadeira de balanço. Na sala, um rack de
madeira e um sofá marrom de dois lugares.
Chegando à cozinha, ela nos mostrou a pia e o fogão,
juntos aos armários na cor bege. Uma mesa pequena, com
quatro cadeiras, estava no centro. Poucos passos, no final
do corredor, havia uma lavanderia com um tanque de
cimento e algumas cordas de varal que iam de uma parede
a outra.
Por último, conhecemos os dois quartos que eram de
um tamanho bom, um deles estava vazio e o outro possuía
uma cama de casal e um armário de roupas.
— Precisará comprar um colchão. As roupas de cama,
posso emprestar, se precisar — A senhora ofereceu.
— A casa é ótima, grande, mas me preocupa o preço.
Quanto a senhora está pedindo pelo aluguel? Só tenho o
dinheiro que trouxe da capital quando... fui para a fazenda.
— Eu vou até o carro e volto já — anunciou Joaquim.
— Posso esperar um pouco para receber. A casa está
vazia mesmo — dona Benedita disse.
— Não seria justo. O certo é eu encontrar um lugar
menor, que eu possa pagar.
— Esse é o valor por um ano de aluguel — Joaquim
entregou várias notas na mão da senhora. — Conforme a
senhora tinha me dito quando bati em sua porta mais cedo.
Na outra mão, ele carregava minha mala e uma
mochila, que foram colocadas ao meu lado.
— Não preciso desse dinheiro sujo, Joaquim —
protestei.
Ele virou-se para mim, com paciência.
— Maria Clara, sei que ainda está com raiva por tudo
o que aconteceu e que talvez nunca deixe de estar, mas
orgulho nesse momento não vai te ajudar em nada. Não vai
colocar um teto sobre sua cabeça ou comida na sua mesa.
Eu recebi o triplo do dinheiro destinado a você e sua tia por
causa da minha participação... importante. Além de uma
quantia suficiente, em transferência bancária, para ter
minhas próprias terras, finalmente.
— Eu não sei os detalhes do que houve, menina. Mas
aceitar ajuda não é sinal de fraqueza.
— Você precisa do dinheiro — reforçou ele, dando a
quantia à senhora e mais um montante para mim. — Isso é
para as compras dos próximos três meses.
Segurei entre os meus dedos o dinheiro que tinha
sido parte do que me separou de José Augusto, que me
levou para longe dele.
— Eu preciso voltar para a estrada, tenho um longo
caminho a seguir.
Joaquim chegou mais perto e abraçou-me, no
entanto, não pude retribuir, meus braços continuaram retos
ao lado do meu corpo.
— Eu sinto muito por tudo. Não tinha outro jeito,
mesmo assim, lamento que esteja sofrendo — disse ao meu
ouvido. Novas lágrimas verteram dos meus olhos, limpei-as
quando ele recuou.
— Por favor, cuide dela, dona Benedita.
— Não se preocupe, sua menina estará segura
comigo.
— Ela não é minha. Nunca foi.
Um choro silencioso tomou conta de mim, tornando
minha visão embaçada por causa das lágrimas que eu
derramava.
Joaquim saiu pela porta, de longe ouvimos o seu
carro ser ligado e se afastar lentamente.
— Quer descansar um pouco na minha casa? Depois,
vamos às compras.
— Se a senhora tiver disponibilidade, prefiro ir agora,
começamos pelo mercado e depois vamos às lojas. Preciso
comprar pelo menos o básico para a casa.
— Então, vamos agora, depois você toma um banho
e descansa. Pode ser bom para você se ocupar arrumando
seu novo lar.
Lar, aquela era uma palavra que andava sem sentido
para mim ultimamente. Primeiro, eu perdi minha mãe e o
único lar que conhecia. Depois, quando achei que tinha
encontrado um novo, ele se desfez rapidamente, e ali
estava eu, tentando dar sentido àquela palavra mais uma
vez.
VINTE E CINCO
JOSÉ AUGUSTO
Na noite anterior, depois de descobrir sobre as
mentiras de Maria Clara, tentei dormir, mas acabei
passando horas rolando de um lado para o outro na cama,
então desci até a sala e abri o armário de bebidas.
Nunca tinha sentido a necessidade de aplacar
qualquer coisa com álcool, mas naquele momento, eu só
queria embaralhar minha mente e afastar toda aquela
maldita dor.
Levei duas garrafas de uísque e uma de tequila para
o meu quarto. Depois de algum tempo bebendo, eu não
adormeci e sim, apaguei. Passava das quinze horas quando
acordei com uma dor de cabeça terrível.
Eu tinha conseguido fugir de tudo por algumas horas,
porém sabia que não seria suficiente. Precisava me afastar
do que me lembrava dela e de suas mentiras. Precisava
voltar para casa.
Dona Zefa estava na cozinha quando entrei. Não
consegui cumprimentá-la. Preparei um gole de café e um
pão com manteiga, apenas para não pegar a estrada de
volta à capital sem nada no estômago.
— Que bom que levantou. O dia não está lindo hoje,
meu filho? — minha mãe disse, adentrando a cozinha,
apoiando-se em uma cadeira ao lado da que eu ocupava. —
Eu soube que a sua ex-namorada foi embora com o outro
namorado.
Parei de mastigar a massa de pão na boca. De
repente, pareceu seca demais, impossível de engolir. Bebi o
café todo de uma vez para descer aquilo que estava prestes
a me sufocar.
— Nunca mais vamos ouvir falar dela.
— Eu vou preparar minha mala, quero ir embora
quanto antes — avisei, levantando-me e saindo da cozinha.
Não conseguia pensar no que fazia, apenas juntava
tudo e colocava de qualquer jeito na mala de viagem.
Verifiquei o banheiro e as gavetas dos armários para ter
certeza de que não estava esquecendo nada. Enquanto
fazia aquilo, precisei piscar repetidas vezes para evitar que
as lágrimas corressem por meu rosto. Maria Clara não
merecia minha dor e sofrimento.
Desci as escadas com pressa e levei a bagagem até
o carro. Minha mãe me esperava ao lado do veículo. Ela se
aproximou e me deu um abraço forte.
— Você vai ser muito mais feliz sem ela — disse.
— Estava indo embora sem se despedir? — falou
Joelson ao se aproximar.
— Eu estou com a cabeça cheia. Me desculpe por
isso — pedi, dando-lhe um abraço.
— Perdemos o Joaquim e agora você. As coisas serão
difíceis por aqui.
— Mas eu darei um jeito — minha mãe falou. — A
vida do meu filho é na capital e a do Joaquim é bem longe
daqui, com a sobrinha da Zefa.
— Pois então, fiquei sabendo que eles foram embora
juntos. Nem acreditei. Sempre achei que fossem apenas
amigos. Quer dizer, eu sabia que o Joaquim gostava da
moça, mas achei que não era recíproco.
— Todos estão surpresos com a revelação sobre os
dois e com o bebê que eles vão ter.
— Ainda assim, patroa, me estranha...
— O estranho foi um caso desses acontecer na
fazenda, com um dos seus peões sem você saber de nada
— disse minha mãe. — Espero que não tenham feito o curral
de motel. Seria absurdo e ...
— Mãe. Já chega. — Controlei-me para não gritar. Eu
não queria ouvir sobre Joaquim e Maria Clara de novo. Muito
menos imaginar onde teriam transado, aquilo era demais
para mim.
Despedi-me deles e assumi o volante do carro,
ligando-o em seguida. Deixei os portões da fazenda
sabendo que não voltaria àquele lugar tão cedo. Tinha sido
um erro olhar para trás e imaginar que eu podia ter a vida
com que tinha sonhado um dia.
DUAS SEMANAS DEPOIS
— Ainda não acredito que o Levi desistiu da viagem
de repente — falei, levando um copo de cerveja até a boca.
Depois de muita insistência de Levi, meu amigo, para
irmos a Londres, ele desistiu da viagem no dia do
embarque. Eu não queria ir à Inglaterra, estava tentando
colocar a cabeça no lugar em meu próprio apartamento,
bebendo muito e dormindo mais ainda até o dia de retornar
ao escritório e à minha vida antiga. Todavia, meu amigo, ao
saber do que tinha acontecido na fazenda, insistiu na
viagem que eu tinha desistido de fazer ao conhecer Maria
Clara.
Ao chegarmos no edifício com fachada clássica e
detalhes em madeira escura, onde uma placa pendurada na
entrada marcava o nome do pub[6], desejei que estivesse
lotado para que eu pudesse desistir e voltar ao hotel. Para o
meu desgosto, do lado de dentro, havia mesas vazias e um
enorme balcão com espaço livre.
Escolhemos uma mesa nos fundos com bancos de
couro escuro. Pedimos cervejas e fish and chips[7]. Tamara
retirou o casaco branco, revelando o vestido vermelho curto
e devagar, cruzou as pernas longas que estavam cobertas
pelas botas que passavam dos seus joelhos.
— O Levi está se envolvendo com os negócios do pai
dele. Ele disse até que pretende se mudar para a fazenda
da família em alguns anos. Você é a última pessoa que
deveria julgá-lo por priorizar o trabalho.
— Não estou julgando ele. Só esperava que ele
tivesse vindo também.
— Está com medo de ficar a sós comigo, José
Augusto?
Nosso pedido foi servido. Agradecemos e
começamos a comer e a beber.
Mesmo estando tão longe da fazenda, há dias
tentando não pensar em Clara, tudo de alguma forma me
fazia lembrar dela. Eu não conseguia entender como ela
tinha se enfiado tão profundamente em meu coração.
Não importava o quanto eu tentasse fixar os olhos
sobre os quadros antigos das paredes ou nas luminárias
com luzes amarelas, ou mesmo nos móveis de madeira
maciça que se mostravam gastos pelo tempo. Ainda assim,
meus pensamentos se voltavam para ela. Para o seu rosto,
a lembrança da sua voz e o seu cheiro.
Os dedos de Tamara alcançaram minha pele abaixo
da camisa que eu vestia. Bebi o resto da cerveja, pedindo
mais do líquido alcoólico e amargo. Sem pressa, ela subiu
com as unhas até meu peito. Minha cabeça se virou na
direção da sua, seus lábios chegaram até os meus e sua
língua invadiu minha boca. Deixei que o beijo se
aprofundasse, buscando aquela sensação que tinha sido
despertada em mim, que a Clara havia me dado e depois
tirado. Mas não aconteceu, não senti a mesma necessidade
que experimentei todas as vezes que beijei a única mulher
que amei e que me enganou. Afastei-me.
— Vamos terminar as bebidas e voltar ao hotel.
— Não deixe aquela garota estragar a nossa viagem
— disse ela.
— Acho que essa viagem foi um erro, Tamara. Eu não
deveria ter vindo.
— Não! Não foi um erro! É uma chance de recomeço
para nós dois.
— Eu não quero um recomeço. Prefiro que possamos
continuar apenas amigos como sempre fomos.
— Não posso prometer isso, José Augusto. Eu te amo
muito para ver você se destruir por alguém que não te
merece.
— Vamos voltar. Estou cansado — pedi, levantando-
me.
Tamara e eu andamos de volta até o hotel, não
estávamos longe do local onde tínhamos nos hospedado.
Seu braço se entrelaçou ao meu, o vento frio e a chuva fina
deixavam o clima ali fora desconfortável.
Abri a porta do meu quarto e, antes que eu pudesse
falar qualquer coisa, Tamara passou pela abertura,
agarrando-me em seguida. Seu beijo era bom, mas naquele
momento não passava de uma tortura. Segurei seu pescoço
com gentileza e a afastei.
— Preciso ficar sozinho — avisei.
— Não vou te deixar agora.
Dei dois passos atrás e segurei a porta aberta.
— Não quero te magoar.
— Eu não vou desistir fácil de nós, José Augusto —
ela disse antes de passar pela porta e entrar no quarto ao
lado.
Andei até o frigobar e tirei várias garrafas de lá. Eu
não tinha bebido o suficiente para esquecer, para tirar Maria
Clara dos meus pensamentos.
Na beirada da cama, eu segurava o celular firme em
uma das mãos, na outra, esvaziava as garrafas uma por
uma. Já embriagado, encontrei o nome dela na agenda e
iniciei a ligação. Eu não sabia que porra iria falar, só
precisava...
— Alô. — Era a voz da Zefa.
— Desculpe, esse número não é da Maria Clara?
— Não é mais. Ela deu o celular para mim quando foi
embora com o marido. Quem está falando?
Encerrei a ligação com aquela maldita palavra
ecoando em minha mente. Marido.
Eu tinha que aceitar de uma vez por todas que a
Maria Clara havia mentido para mim e me enganado
durante todo o tempo que estivemos juntos.
Não sabia como, mas eu precisava tirar Maria Clara
da minha cabeça e do meu coração.
VINTE E SEIS
MARIA CLARA
DOIS MESES DEPOIS
Eu tinha conseguido um emprego como recepcionista
no único hotel da cidade, que ficava à margem da rodovia.
Procurei vaga de trabalho nas duas escolas particulares que
a dona Benedita me indicou, no entanto, não estavam
procurando auxiliares de professores e, para a vaga de
professora, eu precisava avançar mais na graduação.
O salário de recepcionista não era grande coisa,
contudo, naquele momento, eu não estava tão preocupada,
pois quando fui desfazer minhas malas no meu segundo dia
em Nova Esperança, encontrei dois daqueles maços de
dinheiro que a Cassandra tinha dado como suborno para me
separar do José Augusto. Liguei para a madrinha na mesma
hora, eu não tinha concordado com aquilo, mas assim como
Joaquim, ela insistiu que eu deveria usar os valores para
recomeçar.
Depositei a maior parte do dinheiro em uma conta
poupança, quase vinte mil reais, e reservei uma quantia em
casa. Embora não tivesse certeza de que era a opção mais
segura, sentia-me mais tranquila sabendo que tinha um
valor acessível para uma possível nova fuga.
Cassandra não tinha motivos para me perseguir até
Nova Esperança depois de ter conseguido o que queria,
todavia, uma parte de mim sempre ficaria com receio
daquela mulher que fez o que podia para me separar do seu
filho.
Ainda doía muito pensar em José Augusto. Ele não
tinha confiado em mim, não tinha me defendido, ele mal
havia me ouvido, e apesar daquilo tudo, eu não conseguia
matar o que sentia por ele, não completamente. Esperava
que o tempo me permitisse esquecê-lo.
Olhei-me no espelho pendurado na parede ao lado do
armário de roupas, meu uniforme vermelho e branco estava
impecável. No relógio delicado que circulava o meu punho,
vi que faltava mais de uma hora para começar o meu turno.
Peguei minha bolsa, fechei minha casa e atravessei o
portão de ferro com menos de cinquenta centímetros que
marcava a entrada da minha casa, idêntico ao da residência
ao lado onde morava dona Benedita, minha vizinha e minha
única amiga até aquele momento.
— O café está pronto — avisou a senhora ao me ver
entrar em sua casa. — Sente-se, vou servir para você.
— A senhora é a melhor — agradeci.
— Aqui, torta de atum. Como você adorou aquela
outra, fiz essa fresquinha para você.
Um prato com pedaços da torta salgada foi colocado
à minha frente. O cheiro me causou certa estranheza.
Peguei um dos pedaços e o levei à boca. O gosto parecia
diferente, mesmo assim, engoli a massa.
— Está tudo bem, querida?
— Acho que sim. Deve ser o nervosismo pelo
primeiro dia de trabalho. Fiquei dois meses procurando
emprego, quase desesperada, não quero que dê nada de
errado.
— Vai dar tudo certo. Acredite em mim. — Sua mão
enrugada acariciou a minha sobre a mesa. — Que tal um
chá de camomila?
— Eu nunca fui de tomar chá — confessei.
— Você vai gostar desse que eu vou preparar. A
camomila é daqui da nossa cidade. De uma das fazendas da
redondeza. É naturalmente doce, nem precisa colocar
açúcar no chá.
— Tem falado com seus filhos? — perguntei enquanto
a senhora preparava o chá. Sem que ela percebesse,
coloquei a torta de atum em um pote e fechei com a tampa,
o cheiro estava me dando náusea.
— Eles estão bem, graças a Deus. Minha filha disse
que virá me visitar na próxima semana. Vai trazer minha
netinha.
— Que bom. A senhora deve sentir muita falta deles.
— Eu sinto sim. Mas entendo que a vida deles é
diferente da minha. Fico grata por ter eles me visitando
sempre que podem.
— Ontem, a madrinha me ligou. Disse que está bem,
que não preciso me preocupar com a...
— A?
Dona Benedita colocou a xícara com o chá amarelo à
minha frente. Levei à boca, tomando um gole pequeno por
conta da temperatura.
— Não é importante — voltei a falar.
— O dia em que estiver pronta e quiser me contar
tudo o que aconteceu, estarei aqui.
Assenti, tomando mais um gole do chá.
Devagar, bebi quase todo o líquido da xícara. A
náusea cedeu e eu consegui sair da casa da dona Benedita,
me sentindo um pouco menos nervosa com o meu primeiro
dia de trabalho.
Esperei o ônibus no ponto de parada perto das
nossas casas, a estrutura era de madeira e a cobertura de
telhas vermelhas. Era melhor do que aquele da fazenda
Azevedo. Não demorou para que o transporte aparecesse
virando a esquina. Havia muitos lugares vazios, sentei-me
perto da porta dos fundos. Como o hotel não era longe, em
quatro paradas cheguei ao local.
Na recepção, apresentei-me e pedi para falar com o
gerente. O senhor, que aparentava estar perto dos
cinquenta anos, apresentou-me as instalações com calma e
depois me levou de volta ao hall de entrada. No balcão,
indicou-me a colega que me ensinaria a usar o sistema e
me ajudaria nos dois primeiros dias, antes que eu assumisse
a função sozinha. Era um hotel pequeno e não necessitava
de mais atendentes. O próprio gerente ficaria no meu lugar
para que eu almoçasse.
O gerente me deixou com a nova colega, seu nome
era Simone. Ela era uma mulher jovem e bonita, alta, de
cabelos e olhos escuros. Era educada e passava as
instruções com clareza, não se importando de repetir aquilo
que eu não entendia.
Em pouco tempo com ela, descobri que minha nova
colega era casada, morava ali perto e tinha um filho de dois
anos. Não falei muito sobre minha vida, mesmo que ela
tenha perguntado mais de uma vez. Não queria que
soubessem da minha história.
No meu horário de almoço, direcionei-me à sala dos
funcionários. Algumas mesas de plástico branco e cadeiras
do mesmo material estavam espalhadas pelo ambiente.
Havia uma geladeira grande, pia e armários com louça que
podíamos usar.
O hotel oferecia marmitas aos funcionários, eram
identificadas com o nosso nome na tampa. Quando abri a
minha, o cheiro de peixe voltou a me causar náusea. Deixei
a carne de lado e aproveitei o restante, incluindo a salada.
Depois de escovar os dentes, voltei ao treinamento
com Simone. No geral, o lugar parecia tranquilo, com
hóspedes que estavam viajando e precisavam descansar
uma noite antes de seguir, depois de aproveitar o café do
hotel, é claro.

Meu primeiro dia tinha corrido bem, passava um


pouco das quinze horas quando deixei o hotel para esperar
o ônibus e voltar para casa. Ponderei se deveria ir andando,
aproveitar para fazer uma caminhada, mas desisti por causa
do mal-estar que ainda me incomodava.
Sentada em um dos bancos, nos fundos do
transporte público, comecei a ver tudo girando ao meu
redor, a náusea aumentou, fechei os olhos e tentei respirar
fundo, segurando-me até descer perto de casa.
Corri pela rua até chegar ao meu portão, abri a porta
de entrada com pressa. Dona Benedita estava em sua
varanda com um copo de café na mão. Ouvi ela perguntar
algo, mas não respondi, precisava chegar ao banheiro a
tempo.
Minhas pernas desceram ao chão em frente ao vaso
sanitário. Nunca tinha vomitado daquele jeito. Tudo o que eu
tinha me esforçado para comer durante aquele dia tinha
sido despejado.
Meus olhos estavam lacrimejando e o gosto amargo
na boca era bastante ruim. Levantei-me, acionei a descarga
e então lavei minhas mãos e a boca na pia ao lado.
Aproveitei para jogar um pouco de água por todo o rosto e
nuca.
— Você não parece nada bem. Está pálida — disse
dona Benedita, surgindo perto da porta do banheiro.
Minha visão escureceu, minhas pernas cederam.
— Maria Clara? Maria Clara? — A voz da senhora me
chamava cada vez mais perto.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Você quase bateu sua cabeça no chão, eu
consegui te segurar a tempo.
Nós duas estávamos no chão da minha casa, sobre o
azulejo marrom. Com cuidado, dona Benedita segurava
minha cabeça em seu colo.
— Preciso me levantar.
— Devagar — disse ela. — Eu vou te ajudar a ir até
sua cama.
Deitei-me sobre o colchão macio. Dona Benedita
colocou o travesseiro embaixo da minha cabeça. A luz
amarela do quarto ofuscava minha visão, incomodando-me,
virei-me de lado. A senhora me observava atentamente, aos
pés da cama.
— Eu estou bem agora, dona Benedita. Obrigada por
me ajudar. A senhora está bem? Não se machucou?
— Eu estou ótima. Mas estou preocupada com você,
menina.
— Foi só um mal-estar. Passei por um período
bastante estressante e estava um pouco nervosa com esse
novo emprego.
— Não acho que seja só isso. Faz dias que noto sua
indisposição em certos momentos.
— Do que a senhora está falando?
— Como anda a sua menstruação, Maria Clara?
Não pude evitar o susto com aquela pergunta. Meu
ciclo nunca tinha sido muito regular e, com todos os
acontecimentos desde minha saída da fazenda, sequer
pensei na possibilidade de estar... grávida.
— Pela sua cara, estou vendo que é uma
possibilidade.
— Não pode ser. — Tentei me sentar, mas desisti.
Sentia-me muito enfraquecida.
— Eu vou até a farmácia e volto rapidinho.
— Dona Benedita — chamei a senhora que já estava
com o pé na porta do quarto. — Tem dinheiro na minha
bolsa, para o teste.
— Tá bem. Eu vou lá rapidinho e já volto.
Afundei meu rosto no travesseiro como se pudesse
sufocar o desespero que brotava em meu peito.
— Fui correndo até a farmácia mais próxima. Aqui
está o teste — disse, entregando-me a sacola.
Com sua ajuda, caminhei até o banheiro novamente,
ainda me sentia fraca e com tontura. Tirei o teste da caixa e
li as instruções com calma. Minhas mãos tremiam e minha
mente tinha dificuldade para entender o básico naquele
momento. Respirei fundo e devagar, buscando me
concentrar no que precisava fazer.
Com o timer do celular ativado, esperei de olhos
fechados. Aqueles foram os minutos mais longos da minha
vida. Quando o alarme do aparelho me avisou que o tempo
havia acabado, olhei para o teste. Segurei-me na borda da
pia: positivo.
— Positivo — eu disse, tentando assimilar.
Abri a porta com o teste nas minhas mãos que ainda
tremiam, encarei a senhora do outro lado. Meus olhos
arderam com as lágrimas acumuladas e minha visão tornou-
se nublada.
— Eu... estou grávida.
— Vou ligar para o Joaquim agora mesmo. Ele não
pode fazer um filho e sumir no mundo.
— Não é dele. — Limpei uma lágrima que escapou. —
O filho é de outro homem, um que me rejeitou quando
acreditou em uma mentira tramada pela própria mãe dele.
— Valha-me Deus!
— O Joaquim me trouxe até aqui porque ele ajudou
na mentira e queria me deixar em um lugar seguro depois
do que houve, longe daquela mulher que, segundo ele e
minha madrinha, é capaz de coisas piores.
— Oh! Menina — ela me abraçou, passando as mãos
sobre minhas costas vagarosamente. Tentando me
acalentar. — Venha se deitar de novo. Vou preparar uma
coisa que você consiga comer, um caldo.
Com seu apoio, fui guiada até minha cama
novamente. Sentei-me sobre o colchão. Não enxergava
nada ao redor devido às lágrimas que desciam sem parar.
— Eu volto daqui a pouco com uma sopa de legumes.
Agarrada ao travesseiro, pensei em como seriam os
próximos dias, os próximos meses. Eu ia ser mãe. Era algo
que eu queria muito, mas naquele momento, sozinha, como
seria?
Não conseguia limpar o rosto com o tanto de
lágrimas que escorriam pela minha face. Meus olhos deviam
estar vermelhos e inchados.
— Fiz o mais rápido que pude. Também trouxe um
chá de hortelã para você tomar antes de dormir, deve
ajudar com a náusea.
— Obrigada por tudo isso. Eu nem sei como
agradecer.
— Agradeça, ficando bem — falou, sentando-se na
beirada da cama.
— Eu não sei o que pensar sobre isso. Fui
inconsequente. E agora, só de pensar no futuro. — Um
soluço forte passou rasgando por minha garganta.
— Você quer esse filho? — Sua pergunta foi séria.
— Como?
— Você quer esse filho? — repetiu.
Passei a mão pela barriga ainda plana. Eu sabia o
que a senhora estava me perguntando. Havia meios de não
ter um filho, mas só de pensar naquilo por um único
instante, senti o meu desespero aumentar. Eu nunca seria
capaz, mesmo sabendo que minha vida estava prestes a ter
mais desafios e dificuldades, com noites em claro,
preocupações constantes, perigos que nunca me deixariam
completamente tranquila...
— Eu quero esse filho — disse a ela.
— Então, não tema pelo futuro. Nós daremos um
jeito. Eu sei que esse não é o cenário ideal, porém, saiba
que enquanto eu estiver nessa terra, poderá contar comigo.
— A senhora é um anjo. Não existem muitas pessoas
como a senhora por aí.
— Eu acredito que nada nessa vida é por acaso. Eu
nunca quis ir embora desse lugar, talvez pelo meu apego a
essa cidade e à vida que conheci ou talvez porque a minha
missão aqui ainda não tinha terminado.
— Tive sorte por ter sido trazida para a senhora.
— Foi a vida. Ela tem desses mistérios.
Eu sabia que, apesar de todos os desafios que
surgiriam, mesmo com as dúvidas e inseguranças, eu não
estava completamente sozinha. Quando meu filho nascesse,
ele teria uma família pequena, entretanto repleta de amor e
carinho, pronta para acolhê-lo.
VINTE E SETE
MARIA CLARA
SETE MESES DEPOIS
Muitas mudanças tinham acontecido no meu último
ano: eu tinha perdido minha mãe, ido morar com minha
madrinha, me entregado completamente ao meu primeiro
amor, me decepcionado e machucado. E então, ao
recomeçar minha vida em uma cidade diferente, descobri
minha gravidez.
Depois que os enjoos melhoraram, passei a lidar com
outros desafios da gestação, principalmente no último
trimestre, com a fadiga, as dores nas costas, o inchaço nos
pés e tornozelos. Mais de uma vez, dona Benedita me disse
que, quando eu pegasse meu filho no colo, eu esqueceria de
tudo aquilo. E ela tinha razão.
Segurar meu bebê em meus braços era uma alegria
imensa, eu mal conseguia conter o que estava sentindo.
Meus dedos desenhavam os traços da sua mãozinha, era
tão pequeninha... As bochechas redondas, os olhos que
pareciam azuis. Será que seriam claros como os do seu pai?
Não tinha como não pensar em José Augusto ao olhar
para o meu filho. Ele teria se casado com aquela mulher?
Estavam planejando ter filhos? Eu sabia que não devia me
torturar com aqueles pensamentos. Eu tinha meu maior
tesouro bem ali.
Eu havia preparado o quarto ao lado do meu para o
meu bebê, pintando as paredes de azul-claro e comprando
um guarda-roupa branco pequeno durante a gestação.
Apenas o berço dele estava ao lado da minha cama e ali
permaneceria pelo primeiro ano.
— Quer que eu coloque ele no berço agora? — dona
Benedita perguntou, surgindo no meu quarto.
— Sim, por favor. Ele está dormindo tranquilamente.
A senhora esticou os braços em minha direção e,
com cuidado, pegou meu filho nos braços, colocando-o no
seu berço.
— Tudo pronto para a consulta dele amanhã?
Meu filho faria uma semana no dia seguinte e, com
aquilo, tínhamos marcado sua primeira consulta ao
pediatra.
— Sim. Eu até deixei a bolsa preparada.
— Amanhã vou ao mercado. Pode fazer a lista do que
precisa, eu compro para você.
Dona Benedita esteve ao meu lado desde a notícia
da gravidez, como disse que faria. Minha madrinha não
podia sair da fazenda, muito menos depois que mentiu para
a Cassandra alegando que tinha perdido o contato comigo.
Aquela mulher não podia desconfiar que eu havia tido um
filho do José Augusto. A ironia era que, naquele dia, eles
tinham me acusado de estar grávida, e eu estava, mas
esperando um bebê do filho dela.
Eu tinha consciência de que, sem a dona Benedita,
as coisas seriam muito mais difíceis. Desde o nascimento do
meu filho, ela chegava em minha casa logo pela manhã e só
ia embora depois de anoitecer.
Ela era um anjo na minha vida, o que me fazia ter
mais esperança sobre as pessoas. Nem todas eram
manipuladoras, mentirosas e... decepcionantes.
— O Samuel é um bebê lindo! — disse dona
Benedita, com as mãos sobre a grade do berço. — Por que
escolheu esse nome?
Eu tinha revelado o nome apenas no dia do
nascimento, quando peguei meu filho nos braços pela
primeira vez. Naquele momento, eu soube seu nome.
— Era o nome do avô paterno dele. Eu e o... pai dele
dissemos um dia que, se tivéssemos um menino, o
chamaríamos assim.
— Sinto por ele não estar aqui agora — lamentou a
senhora.
— Eu também.
— A máquina de lavar que o Joaquim mandou é
muito boa. Facilitou muito o trabalho com as roupas.
Dona Benedita recebeu uma ligação de Joaquim há
alguns meses. Ele queria saber se eu estava bem e ela
revelou que eu estava grávida. Imediatamente, ele me
telefonou e quis me enviar mais dinheiro, mas eu não
aceitei, contei a ele que a madrinha tinha colocado a
“parte” dela e minha na minha mochila. Poucos dias depois,
uma máquina de lavar roupas, daquelas que fazem o
trabalho completo, da lavagem à secagem, foi entregue na
minha casa.
Eu ainda não tinha perdoado Joaquim pelo que ele
tinha feito, mas entendia por que ele tinha agido daquela
maneira.
— Eu sei que ele está tentando ajudar, mas...
— Ainda está magoada com ele — completou a
senhora.
— Sim.
— De tempo ao tempo. Se achar que é possível
perdoá-lo um dia, faça isso. Ficar guardando rancor pode te
tornar uma pessoa amargurada.
— Eu prometo pensar nisso.
— Bem, eu vou indo para casa — disse dona
Benedita. — Deixei as roupas do Samuel no guarda-roupa
dele. Também lavei a louça e o banheiro.
— E ainda arrumou tempo e disposição para passar
pano no chão.
— Foi rapidinho. Nem me cansei.
— Me deixe pagar à senhora, pelo menos um pouco.
— De maneira nenhuma. Eu fico feliz em ajudar. Você
não imagina como me sinto bem podendo ajudar vocês
dois. Eu já os amo como se fossem minha própria família.
— Nós também amamos a senhora — declarei.
— Então, eu vou. Qualquer coisa, me chama. Estou
na porta ao lado, você sabe.
— Obrigada por tudo.
Levantei-me devagar da cama e caminhei até a porta
de entrada, acompanhando a dona Benedita. Passei a chave
na fechadura e andei até o banheiro. Eu precisava de um
banho, depois jantar e tentar dormir um pouco, antes que
meu bebê acordasse.
UM ANO DEPOIS
Na sala da minha casa, um arco de bexigas azuis
estava preso à parede, enquanto à frente, na mesa que
arrastamos da cozinha, coberta com uma toalha também na
cor azul, lanches cobriam a superfície em pratos grandes e
decorados.
Aquela era uma festa simbólica. Meu pequeno
Samuel tinha feito um aninho dias antes, mas esperamos o
final de semana para comemorar.
Eu ainda estava trabalhando na recepção do hotel,
porém esperava que, ao finalizar a graduação de
pedagogia, conseguisse um emprego em uma das
escolinhas da cidade.
Havia apenas uma escolinha com berçário em Nova
Esperança e o valor era absurdo. Eu gastaria quase todo
meu salário apenas com o preço da mensalidade.
Sugeri pagar um valor à dona Benedita, mas a
senhora brigou comigo ao ouvir minha proposta. Ela se
negou a receber qualquer quantia para cuidar do Samuel,
então eu fazia compras para ela e, quando conseguia pegar
algum boleto de cobrança na caixa de correio, eu pagava e
depois devolvia quitado. Era o mínimo que eu podia fazer
por ela cuidar do meu filho no período em que eu estava no
hotel.
Coloquei o celular sobre o rack para gravar um vídeo
enquanto cantávamos parabéns. Eu o enviaria para a
madrinha mais tarde. Ela gostava de acompanhar o
crescimento do meu menino, mesmo que de longe.
Samuel se agitava no meu colo enquanto
cantávamos para ele, sorrindo, alegre. Vê-lo feliz preenchia
meu peito de amor e alegria. Meus olhos marejaram de
felicidade ao comemorar o primeiro ano de vida do meu
filho.
Depois de fazer o vídeo, desliguei o celular e comecei
a preparar um prato para comermos.
— Vou confessar uma coisa — iniciou a senhora ao
sentar-se ao meu lado no sofá — Eu não achei que seria
uma boa ideia quando me contou que ia preparar a festinha
sem doces ou salgadinhos tradicionais.
— Peguei as receitas na internet. Os salgadinhos são
de frango, mas assados e não fritos. Os sanduíches são com
patê que eu mesma fiz.
— Você é muito dedicada — elogiou ela.
— Não vou dizer que não deu trabalho pensar em um
cardápio adaptável ao que o Samuel podia comer, teria sido
mais prático comprar um kit de festa da panificadora, mas
no final valeu a pena.
— Sim. É surpreendente. Tudo está uma delícia.
— Obrigada. Mas se a senhora não tivesse me
ajudado com o Samuel nesses últimos dois dias, não acho
que teria conseguido.
— É sempre um prazer cuidar desse menino.
Ela pegou o Samuel do meu colo, ele firmou as
perninhas em seus joelhos.
— Bisa... fala para mim... bisavó. — Ela o segurou
logo abaixo dos bracinhos. Meu menino sorria, levando os
dedinhos à boca.
— Mamã — ele balbuciou, olhando para mim.
— Tudo bem, colo da mamãe, então — disse com
bom humor, entregando-o de volta para mim.
— Eu vou ligar para a madrinha. Essa hora, ela deve
estar em casa.
Peguei o celular e iniciei a videochamada, ela
atendeu rapidamente.
— Que lindo esse neném — disse a madrinha assim
que nos viu. — Um aninho já!
— Olha a madrinha na tela. — Apontei para o rosto
no celular. Samuel costumava prestar atenção nas ligações
que fazíamos. Não era sempre que nos falávamos, para
evitar que qualquer um na Fazenda Azevedo desconfiasse
sobre nós. A madrinha só nos ligava ou atendia quando
estava em sua casa, com as portas e janelas fechadas.
— Como está dona Zefa? — perguntou dona
Benedita, aproximando-se do celular. As duas tinham virado
amigas desde que começaram a se falar.
— Eu vou bem. As coisas estão calmas por aqui.
Desde...
— Desde? — indaguei.
— Não importa. Hoje é um dia alegre. Não vamos
falar do passado, apenas do presente.
— É sobre ele, sobre o José Augusto, não é?
— Depois daquela viagem a Londres, que aconteceu
meses atrás, a dona Cassandra não tinha falado mais nada
sobre aquela Tamara.
Eu sabia que José Augusto tinha viajado com a
Tamara para a Inglaterra, a Cassandra fez questão de contar
à madrinha o quanto estava feliz com o retorno do
relacionamento dos dois. Doeu saber que ele tinha se
envolvido com outra tão rapidamente, mas eu não deixei
aquilo me machucar mais do que já tinha. Concentrei-me na
minha gestação, no filho que crescia dentro de mim.
— Eles vão se casar? — arriscou dona Benedita.
— Foi o que disse a dona Cassandra ainda hoje. Que
a Tamara vai finalmente se casar, que o pedido tinha sido
feito e ela tinha aceitado.
— Cassandra falou sobre isso quando eu ainda
estava na fazenda: que Tamara e o filho se casariam em
poucos meses. Levou mais de um ano, mas ela conseguiu.
Limpei uma lágrima que escapou do canto de um dos
meus olhos.
— Eu sinto muito — disse minha madrinha.
— Está tudo bem. Não dói mais do que já doía antes
— menti, porque a verdade era que doía infinitamente mais.
Imaginar José Augusto se casando com outra, amando
outra, era muito difícil. Aquilo abria em mim uma ferida que
nunca tinha cicatrizado.
— Eu queria estar aí com vocês dois. Espero que um
dia nosso encontro possa acontecer — disse a madrinha.
— A senhora deveria vir para cá, para Nova
Esperança, morar comigo — convidei-a. Não era a primeira
vez que eu a chamava.
— Não acho seguro. É melhor mantermos a distância.
Não terei como explicar minha saída. A dona Cassandra
acreditou que você sumiu no mapa com o Joaquim. Se eu
sair daqui, vou levantar suspeitas.
— Isso não é justo — lamentei.
— Vamos mudar de assunto e falar de coisas boas.
Hoje é um dia muito especial. Mais tarde, eu quero receber
vídeos, fotos, tudo — disse a madrinha.
Conversamos mais um pouco antes de eu encerrar a
ligação e, depois de se despedir da minha madrinha, dona
Benedita foi até sua casa buscar o presente de Samuel. Não
adiantou eu repetir várias vezes que ela não precisava se
incomodar em comprar um presente.
— Antes que você brigue comigo por gastar tanto —
disse, trazendo várias sacolas de tamanhos diferentes —,
adianto que apenas dois são meus. O restante foi enviado
pelo Joaquim.
— Ele não pode ficar enviando presentes assim.
— E aproveitando o momento, acho melhor confessar
que também enviei uma foto sua com o Samuel no colo.
— Para o Joaquim? Por quê?
— Ele me pediu, queria ter certeza de que os dois
estavam bem.
— Eu sei que ele me trouxe até a senhora e me
ajudou com algumas contas no começo. Sei que ele até se
preocupa conosco, mas não deveria, não depois de ter
armado aquilo para mim.
— Ele só quer ajudar agora. Eu sei que ele se sente
culpado pelo que se sujeitou a fazer.
Balancei a cabeça negativamente.
— Só não vou devolver porque a máquina de lavar
realmente ajuda e os brinquedos são para o Samuel.
— Ao ver a foto do menino, Joaquim disse que
Samuel é a cara do pai.
— Ele tem razão nisso. Quanto mais os dias se
passam, mais vejo o José Augusto no Samuel. — Beijei o
topo de sua cabeça com gentileza.
— Eu não deveria, mas vou comer mais desse
sanduíche com patê de frango — disse dona Benedita, se
direcionando à mesa com os lanches.
— Que bom que gostou, sirva-se à vontade. Depois,
vou preparar um pote grande para a senhora levar uma
porção de cada coisa.
— Vou aceitar, com certeza. — Riu dona Benedita.
Olhei para meu filho, que tirou o dedo molhado da
boca e passou nos meus cabelos, me fazendo rir. Eu o
amava mais do que podia medir. Não era daquele jeito que
eu esperava passar o primeiro aniversário do meu filho, mas
estava grata por tê-lo em meus braços. Mesmo com todos
os desafios, Samuel tinha sido meu maior presente.
VINTE E OITO
MARIA CLARA
QUATRO ANOS DEPOIS
A praça no centro da cidade começava a ser
preparada para a festa que aconteceria no final de semana.
Um pequeno palco era montado, enquanto diversas
barracas surgiam ao redor. A tradicional festa do milho,
patrocinada anualmente pela Fazenda Vale Verde, prometia
um fim de semana animado, com música ao vivo, barracas
de comidas feitas à base de milho em várias receitas e
versões, além de muita dança e diversão.
Eu sempre trazia Samuel para aquela festa, ele
adorava pamonha, milho cozido e outros pratos que eram
oferecidos. Dona Benedita nos acompanhava, sentávamos
em um banco mais retirado, mas sem perder a festa.
Meu filho estava com cinco anos e era uma cópia fiel
de José Augusto, não apenas a cor dos olhos claros. Os
traços do rosto, o sorriso... era tudo dele.
— Tudo isso precisa ficar pronto até as vinte horas de
hoje. Amanhã cedo começam as festividades. — Ouvi Levi
falar com um dos organizadores do evento. Tínhamos ido
comprar um sorvete para Samuel quando o vimos no meio
da praça.
— Tio Levi! — Samuel chamou. Não precisou de mais
para meu amigo vir em nossa direção.
Levi era filho do dono da Fazenda Vale Verde. Tinha
trinta e cinco anos e era o solteiro mais cobiçado da cidade.
Não dava para dizer que ele não tirava proveito daquilo,
trocando de namorada quase tão rápido quanto mudava de
roupa. Em parte, era pelo charme irresistível do homem de
cabelos loiros e sorriso fácil de um metro e oitenta,
entretanto, eu imaginava que ser o único herdeiro de uma
das maiores fazendas da região também devia chamar um
pouco de atenção.
— Ei, garoto, como foi na escolinha hoje? — Levi
pegou Samuel nos braços.
Depois de completar quatro anos, matriculei Samuel
na pré-escola. Ele passava a manhã com a dona Benedita e
à tarde no prédio ao lado de onde eu dava aula para as
crianças maiores. Dona Benedita ainda era uma pessoa
importante em nossas vidas, contudo a idade já estava
cansando-a bastante e, apesar de ela ter sido contra colocar
o Samuel na escolinha, sabia que aquela era a melhor
decisão.
— Foi bom. Fizemos desenhos de animais da floresta.
— Da floresta? Por que não da fazenda?
— Da fazenda foi outro dia. Eu te mostrei no caderno.
Esqueceu?
— Ah, é verdade! Falta de atenção minha. Desculpe
— falou, dando risada.
— Eu posso ir lá na fazenda hoje? Você disse que ia
me levar para ver o Trovão.
Trovão era um cavalo lindíssimo que Samuel
adorava. Sempre falava nele quando ia para a fazenda com
o Levi, muitas vezes eu ia junto com eles e passávamos
algumas horas nos divertindo juntos.
Eu tinha conhecido o Levi na praça da cidade, um dia
em que estava passeando com o Samuel e ele estava com o
pai dele, logo depois de voltar a morar na fazenda, após
anos na capital. Ele veio até mim com uma desculpa
qualquer para puxar conversa e conseguiu chamar a
atenção do Samuel antes da minha. Nos tornamos amigos
rapidamente, o que foi estranho no começo, já que eu não
tinha tido facilidade para fazer amizade com outras
pessoas.
Algumas vezes ele brincou sobre sairmos juntos, um
encontro, porém nunca levei aquilo a sério. Ele sabe que
meu coração está fechado, não tinha tempo ou disposição
para namoros. Não que eu não houvesse tentado. Namorei
um professor da escola, mas não durou.
— Está tarde, filho, outro dia vamos à fazenda. Além
disso, prometi à sua bisa [8]que jantaríamos na casa dela
hoje.
— Ainda temos umas duas horas de sol. Posso ligar e
pedir para selarem o Trovão, dá tempo de dar uma volta
com ele.
— Vamos, mãe, por favor — pediu Samuel, com a
boca lambuzada de sorvete.
Tirei o copo com o sorvete derretido de sua mão e
descartei na lixeira mais próxima. Com uma toalhinha que
estava em sua mochila, limpei seu rostinho.
— Eu tenho que ajudar a sua bisa com o jantar,
precisamos ir para casa.
— Mas eu queria tanto ver o Trovão — falou Samuel.
— Posso levá-lo. Prometo ser cuidadoso, como todas
as vezes que me confiou a segurança dele.
— Você não está ocupado com a organização do
evento? — perguntei.
— Já fiz o que eu precisava. Posso voltar mais tarde
apenas para a aprovação.
— Por favor, mãezinha — Samuel sabia que
conseguia as coisas quando apelava para o “mãezinha”.
— Tem que estar de volta até as dezenove horas
para tomar banho antes de jantar com a bisa.
— Posso jantar com a bisa também? — indagou Levi.
— É claro! Ela adora você.
— Então, vamos lá. Vamos ver o Trovão e depois
voltar para jantar com a bisa.

Terminei de vestir Samuel depois que Levi o trouxe


da fazenda. Meu filho não parava de falar sobre o Trovão e a
volta que deram até o milharal da fazenda.
— Certo. Agora vamos voltar à casa da bisa que eles
estão esperando por nós.
Samuel segurou firme em minha mão, eu adorava
quando seus dedos pequenos se agarravam aos meus. Meu
menino estava crescendo rápido e eu era grata por
acompanhar cada passo do seu desenvolvimento, cada
descoberta, cada aventura e por poder dar colo a ele
quando precisava.
Passamos pela porta de entrada e a mistura do
cheiro de frango assado com a maionese chegou às nossas
narinas. Ninguém fazia uma maionese caseira como a dona
Benedita.
— Tem maionese, bisa? — Samuel indagou, subindo
na cadeira ao lado da mesa, batendo as mãos em
comemoração. Ele também adorava a maionese da dona
Benedita.
— Tem maionese, meu menino. Tem frango, tem suco
de abacaxi e tem sobremesa.
— Adoro sobremesa, bisa. O que vamos ter? —
perguntou Levi.
— Mousse de chocolate — respondeu à senhora.
— Eba! Eu adoro mousse de chocolate! — Samuel
bateu uma colher, que estava próxima, contra a superfície
da mesa.
— Eu acho que vou vir jantar mais vezes na casa da
bisa — disse Levi.
— Pode vir mesmo. Você sabe que é bem-vindo
nessa casa.
— Vai falando isso e daqui a pouco ele não sai mais
daqui. A senhora já tem eu e o Samuel que damos muito
trabalho.
— Muito trabalho? Por mim, vocês nem fariam
comida na sua casa. Acho um absurdo você chegar cansada
e ainda ir fazer o jantar, sendo que eu posso cozinhar para
nós.
— A senhora já faz muito — lembrei-a.
— Bisa, o frango está pronto? Minha barriga está com
fome — Samuel disse, arrancando gargalhadas da senhora.
— Está sim — disse ela, tirando o assado do forno. —
Podem se servir à vontade.
Peguei um prato pequeno de plástico que o Samuel
usava na casa da dona Benedita e um garfo infantil. Servi as
porções adequadas, cortando a carne em pedaços menores
e coloquei à sua frente. Servi também meu prato e comecei
a refeição ao lado do meu filho. Levi e dona Benedita
ficaram à nossa frente.
— Não tem ninguém que prepare uma refeição mais
saborosa que a senhora, bisa — disse Levi.
— Que bobagem. É só uma comidinha normal —
disse ela, mesmo adorando o elogio.
— É melhor que a da minha mãe — soltou Samuel,
me fazendo quase engasgar ao rir.
— Sua sinceridade me mata, filho — falei,
recuperando-me.
— Eu não posso julgar isso porque a sua mãe nunca
me convidou para jantar na sua casa — disse Levi.
— Pode ir à minha casa, eu convido — disse meu
filho.
— Pode ser no próximo final de semana, já que nesse
tem o festival — opinou dona Benedita.
— Vamos com calma. A gente combina isso outra
hora. Como meu filho mesmo disse, a comida da bisa é
melhor.
— Mas eu quero provar a sua — Levi disse,
encarando-me. Não deixei que o momento se tornasse
estranho. — Acredite, não está perdendo nada.
O telefone de Levi tocou e ele afastou um pouco a
cadeira da mesa para retirar o celular do bolso da calça
jeans.
— Puta merda! — disse ele.
— Olha a boca! Tem criança aqui — chamei sua
atenção.
— Perdão — pediu. — Nunca repita isso. É muito feio
— falou diretamente com Samuel.
— O que houve? — a bisa perguntou.
— Um amigo meu vem passar uns dias na nossa
fazenda. Pedi para ele vir antes do festival para aproveitar a
festa, mas tinha me esquecido de que ele chegaria hoje. Ele
está me ligando, deve estar lá. Preciso ir agora mesmo.
— Não sem a sobremesa — dona Benedita levantou-
se e rapidamente preparou um pote com mousse de
chocolate para Levi levar para sua casa. — E traga esse de
volta. Você é adorável, mas nunca devolve meus potes —
fingiu reclamar.
Levi deu um beijo barulhento na bochecha da bisa,
fazendo ela e o Samuel rirem. Depois, bagunçou os fios
claros do cabelo do meu filho e, em seguida, deixou um
beijo rápido no meu rosto.
— Não esqueça que me prometeu uma dança
amanhã, Maria — lembrou-me Levi antes de sair apressado.
Há algum tempo, deixei de me apresentar como
Maria Clara. Era pelo nome de Maria que as pessoas da
cidade me conheciam, principalmente depois que me tornei
professora e conheci muitos pais de alunos da cidade.
A bisa deixou a travessa de mousse sobre a mesa.
Depois de terminarmos o jantar, servi uma porção para mim
e outra menor para Samuel, que lambuzou as bochechas de
chocolate.
— Está satisfeito? — perguntei ao meu filho após vê-
lo levar a última colher de sobremesa à boca.
— Sim, mãe.
— Agradeça à bisa pelo jantar e vá até o banheiro
lavar o rosto. Tem chocolate por tudo.
— Obrigado, bisa. Minha barriga não está mais com
fome.
— De nada, meu menino. Agora, vá lavar o seu
rostinho.
Samuel desceu da cadeira e caminhou até o
banheiro. A pia era baixa, ele conseguia abrir a torneira
sozinho.
— Então, o jantar com o Levi finalmente vai sair —
comentou a senhora.
— Mesmo que aconteça, não será nada além de um
jantar entre amigos.
— Eu já te disse que ele gosta de você. Não devia
perder tempo.
— E me envolver com outro filho de fazendeiro? Não,
obrigada.
— O pai do Levi não é aquela mulher odiosa. E a mãe
dele nem vive aqui. Além disso, Levi já tem trinta e cinco
anos.
— Eu adoro o Levi, de verdade, mas...
— Você não o ama.
— Não para termos um relacionamento amoroso.
— É uma pena, eu faria muito gosto.
— Está bom, mãe? — perguntou Samuel, voltando do
banheiro com o rosto e os cabelos molhados.
— Está sim, meu filho.
— Aqui está a tolha para secar ele — disse a bisa
entregando-me o tecido branco e macio.
Peguei Samuel no colo para secá-lo, seus olhos azuis
intensos me encararam, era muito difícil não lembrar dos
olhos de José Augusto quando aquilo acontecia.
Ainda na casa da bisa, conversamos sobre a nossa
semana e sobre os eventos do dia seguinte. Eu sabia que
seria cansativo, mas igualmente divertido. Sempre
aproveitávamos as festas da cidade ao máximo.
VINTE E NOVE
JOSÉ AUGUSTO
Os últimos anos tinham sido de muita dedicação ao
meu trabalho e aos negócios, eu tinha assumido sociedade
no escritório e feito alguns investimentos que aumentaram
o meu patrimônio.
Não havia voltado à fazenda Azevedo. Todas às vezes
que fazia menção de fazê-lo, minha mãe arrumava uma
desculpa para me manter longe. Ela até passou a me visitar
mais na capital para evitar que eu retornasse.
Naquele momento, eu estava chegando à Fazenda
Vale Verde, muito distante da Azevedo, porém, tinha
prometido ao meu amigo de longa data passar alguns dias
por lá nas minhas próximas férias, então, ali estava eu.
Identifiquei-me na guarita, tendo minha passagem
liberada em seguida. Desci pela estrada ladeada de árvores
enormes até a casa pintada de salmão e janelas brancas. A
construção não era nova, contudo, mostrava-se bem
cuidada.
Na frente, um gramado verde se estendia com uma
fonte de água próxima às escadas que davam acesso à
porta de entrada. Grandes coqueiros marcavam a lateral da
casa, junto com uma trilha que devia levar a outras
instalações da fazenda.
Desliguei o carro e subi as escadas de pedra. Na
varanda, um senhor usando um chapéu branco, sentado em
um banco de madeira, bebia uísque.
— Boa noite, senhor Jaime? — perguntei.
— Sim. E você deve ser o José Augusto. Meu filho
sempre falou muito de você. Ele avisou que chegaria, mas
deve ter perdido a hora de novo.
Aproximei-me daquele senhor e apertei sua mão em
uma saudação firme. Ele indicou que eu me sentasse no
banco ao lado.
— Quer uma bebida? — perguntou ao se levantar.
Aceitei a oferta. Estava exausto e precisando relaxar. — O
Levi sempre perde a hora quando vai ver a professorinha.
— Ele está namorando? Não me lembro de ele ter
comentado algo. — Aceitei o copo, levando o líquido
alcoólico até a boca.
— O Levi namora uma jovem diferente a cada dia,
mas eu acho que a única que vale a pena não está
disponível.
— Ela é comprometida com outro?
— Eu não sei. O que eu vejo quando ela vem aqui é
que ela não o leva a sério.
— Talvez ele só esteja se divertindo, talvez não seja
um interesse real.
— Pode ser.
Bebi mais um gole da bebida que desceu queimando.
— Ligue para ele ou quem sabe a que horas ele
voltará para casa — aconselhou o senhor, servindo-se de
mais uma dose.
Tirei o celular do bolso e, depois de buscar seu nome
na agenda, iniciei a chamada. A ligação caiu na caixa postal
depois de alguns segundos. Tentei mais uma vez, quando
estava prestes a desistir, a ligação foi atendida.
— Cara! Foi mal! Estou indo pra aí agora! — ele falou.
— Tudo certo, Levi. Já estou sabendo o motivo de
você não estar em casa para receber seu amigo de longos
anos — brinquei.
— Eu conto tudo quando chegar em casa. Não ouça
meu pai. Ele não sabe de nada — falou, rindo.
Encerrei a ligação e devolvi o celular ao bolso.
— Daqui a pouco ele chega — avisei.
A noite estava quente, mas na varanda, uma brisa
fresca chegava trazendo alívio. Inclinei meu corpo à frente,
ainda segurando o copo nas mãos. As estrelas no céu
brilhavam, da mesma maneira que eu as enxergava na
Fazenda Azevedo.
Meu coração quis se exaltar ao lembrar da fazenda
porque as lembranças de lá sempre me levavam a ela:
Maria Clara. Depois de seis anos, eu ainda não conseguia
pensar nela sem sentir a dor da traição e da maldita
saudade. Eu não entendia como podia me sentir daquele
jeito mesmo quando sabia de tudo o que ela havia feito.
Maria Clara era uma ferida em meu peito que tinha
se negado a fechar e cicatrizar. Eu sabia que sua vida tinha
seguido em frente ao lado de Joaquim e do filho que
tiveram, sabia que ela nunca tinha me amado, ainda assim,
não conseguia enterrar as lembranças e sentimentos por
completo.
Uma picape surgiu descendo pela estrada, freando
em frente à casa. Levi desligou o motor rapidamente e
desceu com pressa, caminhando diretamente até mim.
— Cara! Foi mal pelo atraso. Eu estava na cidade —
meu amigo disse, dando-me um abraço forte.
— Está tudo bem. Aproveitamos que você não estava
em casa para falar de você.
— Contei a ele sobre a professorinha — disse o
senhor.
— O nome dela é Maria e sim, eu gosto dela. É uma
das melhores pessoas que já conheci.
— Você cuida do menino dela como se ele fosse seu
— lembrou Jaime.
— Porque eu adoro ele. E você também — Apontou o
dedo para o seu pai.
— É claro — rebateu Jaime. — Ele é uma criança
adorável. Educado, gentil e parece ter o campo nas veias.
Nunca vi uma criança amar tanto estar na fazenda como
ele. Até fico pensando nos meus futuros netos quando ele
está por perto.
— E quando eu vou ter a chance de conhecer essas
pessoas incríveis?
— Amanhã. Na festa da cidade. A Maria vai me
encontrar lá, e então, você vai me entender.
— Eu tenho certeza de que ela é especial — falei.
— Vamos pegar a sua bagagem. Vou te mostrar o seu
quarto.
Voltamos até o meu carro, peguei a mala e a
mochila. Levi estava animado por me receber, não nos
encontrávamos pessoalmente desde que ele havia voltado
para a fazenda do pai e passado a auxiliá-lo nos negócios.
O quarto era grande, com piso de madeira e móveis
rústicos. Coloquei a mochila ao lado da cama e andei até a
porta de correr de madeira do outro lado que dava acesso à
varanda. O ar fresco da noite invadiu o ambiente
rapidamente.
— Não é muito diferente da sua fazenda, imagino —
disse Levi, parado ao lado da cama.
— A Fazenda Azevedo nunca foi minha. Sempre foi
da minha mãe e, depois do que aconteceu anos atrás,
nunca mais coloquei os pés naquela terra, mesmo sentindo
falta.
— Até hoje não entendo o motivo de você ainda
insistir no Direito. Sua vida sempre foi essa aqui. — Mostrou
ao redor.
— Não é fácil recomeçar do zero — expliquei.
— E a Tamara? Tem falado com ela? Faz anos que não
a vejo ou tenho notícias dela.
— Depois que ela se casou com aquele filho do sócio
do pai dela, fomos nos afastando.
— Sua mãe conseguiu te perdoar por você ter
perdido ela? — Riu.
— Às vezes ela ainda toca no assunto. — Balancei a
cabeça negativamente.
Tamara e eu passamos algumas noites juntos em
Londres, e até nos encontramos depois de retornarmos.
Contudo, a relação não foi adiante. Insistir em algo sem
futuro não fazia sentido, e, embora não tenha sido fácil, ela
acabou aceitando. Ela se envolveu com outro homem, o
casamento deles aconteceu meses depois.
— Eu vou deixar você tomar um banho e descansar.
Amanhã teremos um dia de festa — avisou antes de sair do
quarto e fechar a porta que dava acesso ao corredor.
Estar em uma fazenda trazia muitas lembranças de
volta e, junto com as memórias, dor e saudade. Não
importava quanto tempo passasse e nem o quanto a
verdade me machucasse. Clara seria para sempre meu
único amor, um amor irracional e que meu coração parecia
incapaz de superar.
TRINTA
MARIA CLARA
Em frente ao espelho, deslizei o pincel com blush
rosado nas bochechas e, na sequência, o batom cor de
pêssego nos lábios. Não marquei muito os olhos e usei uma
base de cobertura média, gostava da maquiagem daquele
jeito. Eu usava um vestido um pouco acima do joelho, de
fundo preto, com pequenas estampas de cerejas vermelhas
por todo o tecido. Coloquei uma sandália baixa e peguei
minha bolsa no cabideiro ao lado do guarda-roupa.
— Vamos? — eu disse a Samuel, que estava sentado
sobre o tapete do seu quarto, brincando com os carrinhos
que Joaquim tinha enviado em seu último aniversário.
Mesmo que ele nunca tivesse vindo visitar Samuel, fazia
questão de enviar presentes e ligar para mim ou para a
dona Benedita para ter notícias. Nunca falávamos sobre o
passado, pois era doloroso e desnecessário.
Meu filho juntou os brinquedos rapidamente e os
colocou no baú aos pés da sua cama. Abaixei-me quando
ele veio até mim. Arrumei a gola da sua camisa xadrez
vermelha e verifiquei o cadarço do seu tênis. Seus olhos
azuis acompanhavam cada um dos meus movimentos.
De repente, um sentimento estranho começou a me
incomodar. Era uma mistura de medo e incerteza. Parei o
que estava fazendo, tentando me lembrar da última vez que
tinha sentido algo parecido.
— Podemos ir, mãe? — A voz de Samuel mostrava
ansiedade. Ele adorava as festas da cidade e a do milho era
a sua favorita.
Respirei fundo, tentando afastar aquela sensação
que me deixava desconfortável. Não havia qualquer motivo
para me preocupar. Era só mais uma festa com meu filho e
com a senhora que tinha nos adotado em seu coração como
parte de sua família.
— Vamos chamar a bisa — anunciei.
Levantei-me e peguei em sua mão pequena.
Acompanhei Samuel, que foi quase correndo até a porta,
animado.
— Eu ia chamar a senhora agora mesmo — falei ao
ver a bisa prestes a passar pelo portão baixo da entrada da
nossa casa.
— Sabia que o Samuel estaria ansioso, achei melhor
me adiantar.
Ao encontrarmos a senhora, a mão livre do meu filho
alcançou a dela. Nós três atravessamos a rua e começamos
a subir em direção à praça onde o evento estava
acontecendo.
— Eu estou ouvindo música, mãe.
— Sim. Eu também — falei.
— Você está ouvindo também, bisa?
— Estou. É animada. Acho que podemos dançar um
pouco quando chegarmos.
— Depois de comer pamonha — disse Samuel.
— Sim, depois da pamonha — concordou ela,
sorrindo.
A praça estava lotada, ao redor do palco, muitas
pessoas dançavam. As barracas tinham filas para
atendimento. Procurei por bancos vazios e só os encontrei
longe, debaixo de algumas árvores.
A noite não demoraria a chegar, o céu estava sendo
pintado com tons de amarelo e laranja e o sol já se
despedia. Os cordões com luzes pendentes haviam sido
ligados sobre as pessoas, atravessando a praça em linhas
diagonais. O cheiro de comida, o calor e a alegria ao redor
eram contagiantes.
— Fiquem aqui, eu vou comprar pamonha. Quer
alguma outra coisa, bisa? — perguntei.
— Por enquanto, não.
— Volto já — avisei, indo na direção contrária de
onde estávamos.
Na fila de uma das barracas cobertas por lonas
verdes, eu aguardava sem olhar ao redor, esperando minha
vez de ser atendida.
— Achei você — Levi disse.
— Quer me matar de susto? — falei, rindo.
— O que está fazendo aqui?
— Esperando minha vez para comprar pamonha —
respondi o óbvio.
— Você não precisa ficar na fila. É só falar com o
gerente do evento. Pode pedir a ele qualquer coisa, a
qualquer hora.
— Agradeço, mas não precisa. Além disso, a fila nem
está tão grande assim.
— Você não gosta que facilitem sua vida, não é
mesmo? — ele brincou.
Quando minha vez chegou, fiz meu pedido e o
pagamento pela compra.
— Eu vou voltar para o Samuel e para a bisa — avisei
com a sacola de pamonhas em mãos.
— Vou te acompanhar, assim você não terá
desculpas para me negar a dança que prometeu.
— Eu prometi?
— Não saio daqui sem dançar com você essa noite,
Maria. Você precisa se divertir mais — avisou.
Caminhamos entre as pessoas que lotavam a praça
até o outro lado. Samuel estava em pé no banco, dando
alguns passos que ele provavelmente chamaria de dança.
— Tio Levi — gritou ele ao nos ver se aproximando.
Samuel se jogou nos braços de Levi, que o levantou
para cima, fazendo o menino rir.
— Está se divertindo, bisa? — perguntou Levi.
— Sim. A festa está linda! — respondeu ela.
— Trouxe minha pamonha, mãe? — perguntou
Samuel.
— É claro que eu trouxe — falei, levantando a sacola
que carregava em uma das mãos.
— Levi! — Um dos organizadores do evento veio em
nossa direção, passando pelas pessoas do meio da praça. —
Precisamos de você aqui!
— O trabalho me chama — disse ele, colocando
Samuel de volta ao banco. — Mas, não pense que vai
escapar daquela dança, senhorita.
Levi se juntou ao homem, passando pela multidão,
indo em direção à parte de trás do palco onde uma dupla de
músicos da cidade se apresentava.
— Acho que vamos ouvir mais duas músicas e ir para
casa — falei.
— Acabamos de chegar — a bisa disse, estranhando
minha pressa.
— É cedo ainda, mãe — protestou Samuel.
Eu quis sorrir ao ouvi-lo repetir o que a bisa sempre
dizia quando nos despedíamos depois de jantarmos em sua
casa, mas por algum motivo, meus lábios não
corresponderam. Eu sentia que alguma coisa estava
acontecendo. Não sabia o que era, mas aquilo estava me
perturbando.
TRINTA E UM
JOSÉ AUGUSTO
Eu estava ao lado do palco com uma cerveja gelada
nas mãos e na companhia do senhor Jaime, pai do Levi. Meu
amigo estava circulando pelo evento, atento para ter
certeza de que tudo estava correndo bem.
— Já é noite, daqui a pouco vou para casa —
comentou Jaime.
— A festa só começou.
— Já tive muitas dessas. Estou velho e cansado para
isso.
Percebi um grupo de mulheres lançando sorrisos
maliciosos em nossa direção. Eram bonitas, mas não
despertaram meu interesse. Já fazia algum tempo que eu
havia me cansado de encontros casuais.
De onde estávamos, podíamos ver todo o palco, com
pessoas animadas dançando em frente a ele. As conversas,
os risos e o som do povo se divertindo ecoavam ao nosso
redor.
Levi subiu ao palco e pediu que parassem a música
apenas por um instante.
— Gente, eu preciso fazer uma coisa aqui, rapidinho
— disse ao microfone. — Tem uma senhorita que está me
devendo uma dança e, antes que ela fuja sem pagar essa
dívida, vou chamá-la até aqui.
Todo mundo ficou em silêncio, esperando que Levi
chamasse a mulher. A tal Maria de que ele e o pai tinham
falado.
— Maria, venha até aqui, por favor.
As pessoas começaram a trocar olhares inquietos,
procurando alguém ao redor.
— Se você não vier. Eu vou te buscar. Te avisei que
essa dança sairia hoje — disse Levi com humor.
Um caminho estreito começou a se abrir entre a
multidão, alguém se aproximava do palco. Levi pediu que os
músicos tocassem uma música animada.
Ao descer da plataforma, sob as luzes artificiais que
iluminavam o espaço, Levi estendeu o braço à espera da
mulher que aceitaria a dança. Ela chegou, aceitou sua mão
estendida enquanto a outra foi levada até sua cintura. Os
cabelos castanhos estavam presos no alto da cabeça e de
costas para nós, eles começaram a dançar. Quando Levi a
girou, eu pude ver o rosto dela, senti como se meu coração
tivesse parado de bater.
Não podia ser.
Os anos haviam realçado sua beleza, dando-lhe uma
aura ainda mais encantadora. Seus traços delicados
permaneciam intactos. Eu não conseguia desviar os meus
olhos dela. O ar pareceu faltar quando a vi sorrir e as
lembranças invadiram minha mente novamente, mais vivas
do que nunca.
Eu não conseguia acreditar naquilo que eu via. De
todas as pessoas que eu poderia encontrar naquele lugar,
tinha que ser justamente...ela.
Na única vez que minha mãe tocou no nome da
Maria Clara, foi para avisar que ela e Joaquim haviam se
mudado para o Mato Grosso, então, o que ela estava
fazendo ali?
As pessoas voltaram a dançar ao redor do palco,
misturando-se a Maria Clara e Levi, que pareciam estar se
divertindo muito.
— Eu preciso falar com meu filho, assim que a dança
terminar, pode chamá-lo para mim, por favor?
— Posso fazer isso agora mesmo — falei, indo em
direção à multidão.
Sem pensar no que fazia, interrompi a dança deles,
segurando em um dos braços de Levi, que sorriu ao me
reconhecer.
— José Augusto — disse animado. — Deixa eu te
apresentar a...
— Seu pai quer falar com você agora.
Ele levantou a cabeça, buscando pelo pai acima da
multidão.
— Volto já, Maria — ele deu um beijo rápido na
bochecha dela e então saiu em busca do seu pai. E pela
primeira vez, em muitos anos, eu estava novamente em
frente à única mulher que tinha me marcado.
— Eu nunca pensei que te encontraria de novo, Maria
Clara. — Havia uma mistura de dor e saudade naquelas
palavras.
— Você está me confundindo — ela deu um passo
atrás, tentando se afastar, mas a segurei pelo punho.
Lentamente, levantou o rosto e seu olhar intenso cruzou
com o meu.
— Eu não te confundiria, nem que eu quisesse. Você
não faz ideia do quanto eu tentei apagar sua imagem da
memória. — Os dedos livres da minha outra mão deslizaram
por sua pele. — O seu gosto... — Contornei seus lábios
esculpidos com o polegar. — E o seu cheiro... — minha
declaração final saiu em um sussurro.
Ela fechou os olhos por um instante e, ao abri-los
novamente, pareceu assustada. Com um movimento rápido
e decidido, soltou-se.
Em cima do palco, o apresentador do festival
começou um discurso de agradecimento à família
Rodrigues, donos da Fazenda Vale Verde, que estava
patrocinando a festa anual do milho.
Ao ouvir o nome de Levi, Clara recuou mais um
pouco, parecendo procurá-lo na multidão.
— Está procurando o seu namorado ou o seu marido?
— perguntei, deixando o ciúme falar mais alto. Eu não
lembrava que ainda podia sentir aquilo.
— Não te devo satisfação da minha vida.
— O Levi sabe que você é casada? — Eu sentia o
ciúme se espalhar dentro de mim como veneno correndo
por minhas veias.
— Do que você está falando? Eu nunca fui casada.
— Estou falando do Joaquim, é claro. Ele também
está por aqui? Ainda aceitando te dividir?
Sua mão bateu forte contra a lateral do meu rosto.
Senti a pele arder após o impacto. No semblante de Maria
Clara havia indignação, raiva e... decepção?
— Fica bem longe de mim — avisou com o dedo em
riste, quase tocando meu nariz. Em seguida, ela virou-se e
desapareceu entre as pessoas aglomeradas.
Como eu podia precisar me controlar tanto para não
beijá-la? Eu sabia que ela não era quem parecia. Sabia que
seu rosto angelical era apenas uma ilusão e, no entanto, eu
sentia um ciúme profundo de quem ainda a tinha, junto a
uma vontade desesperada de lembrar a ela que tudo o que
vivemos foi real, e estava completamente vivo. Tudo aquilo
era confuso e frustrante pra caralho.
— José Augusto — chamou-me Levi. — Você viu para
onde a Maria foi? Não consegui apresentar vocês.
Eu deveria contar a ele que aquela Maria era a minha
Maria Clara. Levi sabia de tudo o que ela tinha feito comigo,
porém, tudo o que consegui responder é que não tinha visto
para onde ela tinha ido.
— Meu pai está cansado e quer ir embora. Eu vou
procurar a Maria e, se eu não a encontrar, vou embora
também. A organização do evento está com tudo sob
controle.
Assenti, concordando.
Abri caminho entre as pessoas e voltei até o senhor
Jaime. Ele estava conversando com alguém do evento, que
se afastou quando me aproximei.
— Está gostando da festa? — perguntou ele.
Respirei fundo, olhei ao redor e não vi nenhum sinal
de Maria Clara.
— Não esperava me surpreender tanto — confessei,
sem dar mais detalhes.
— Vamos? — disse Levi ao retornar.
Tínhamos ido todos no carro do Levi, que ficou em
um estacionamento próximo. Sentei-me no banco de trás do
veículo, repassando na minha mente o que tinha
acontecido.
— A professorinha fugiu de você de novo? — o
senhor Jaime disse em tom de brincadeira.
— Você acha graça? — disse Levi, bem-humorado.
— Acho. Porque ela nunca se jogou aos seus pés
como as outras moças da cidade — rebateu.
— Eu posso estar apaixonado, pai.
Aquilo foi como levar um soco no estômago.
— Se eu não te conhecesse, poderia concordar —
zombou Jaime.
Era difícil ouvir eles falarem da Maria Clara como se
eu não a conhecesse, como se não tivesse sentido na pele o
que ela podia fazer. E pior, como se não tivesse
desesperado para ter respostas sobre o que tinha
acontecido em sua vida nos últimos anos.
Parte de mim queria confirmar se ela estava
tramando algo contra Levi. Se queria conquistá-lo e usá-lo
como pretendia fazer comigo, quando lhe entreguei meu
coração, e sonhei com uma vida feliz ao seu lado.
Conversei pouco com Levi e Jaime, minha cabeça
estava muito cheia, dando voltas e mais voltas.
— Você ouviu, José Augusto?
— O quê? — disse, antes de colocar os pés nos
degraus que levavam ao piso superior.
— Quer tomar uma bebida?
— Quero.
— Boa noite, meninos — disse Jaime antes de ir em
direção ao seu quarto.
Respondi ao pai de Levi e sentei-me no sofá de couro
marrom. Jogando minha cabeça para trás.
— Você não parece com alguém que está de férias —
disse Levi, entregando-me um copo com uísque.
— Minha cabeça está... longe.
— No trabalho? Meu Deus! Você precisa beber mais.
— Nem faz ideia — disse, sem humor.
— Eu queria ter apresentado você à Maria. Não
queria que tivéssemos nos desencontrado — falou,
sentando-se ao meu lado, fazendo o couro ranger.
— Você a conhece há muito tempo?
— Cerca de um ano. Desde que voltei à fazenda.
— Está apaixonado por ela?
— Sendo sincero, ainda não. Brinco sobre isso com
meu pai e, às vezes, até com ela. Penso em tentar algo,
mas tenho medo de magoá-la. A Maria é uma mulher
incrível e eu não quero feri-la. E ainda tem o menino. Eu
adoro o garoto, não quero machucar nenhum dos dois.
Não era fácil admitir, contudo, o alívio que senti ao
saber que ele não estava apaixonado pela Maria Clara tinha
mais a ver com os meus sentimentos por ela do que com a
preocupação com meu amigo.
— Ela tem um filho, não é mesmo?
— Sim. O menino é adorável. Esperto, engraçado e
adora a fazenda.
— Você o traz aqui?
— Sim. Ele ama o Trovão, um de nossos cavalos.
— Conheceu o pai dele? Do menino?
— Não — ele disse, colocando o copo vazio sobre a
mesa de centro. — E a Maria não gosta de falar dele. Tudo o
que ela me disse é que eles tiveram um relacionamento
curto.
— E o menino não convive com o pai?
— Até onde eu sei, ele nunca viu o pai.
— Que tipo de homem abandona o próprio filho?
Aquilo não fazia sentido. Eu sabia que ela tinha ido
embora grávida do Joaquim e ao lado dele. Ela devia estar
enganando Levi, assim como me enganou.
— Um que não merece a Maria e o filho dela.
— Ou ela está mentindo sobre isso. — Meu
pensamento saiu em voz alta.
— De jeito nenhum. Ela mora aqui há anos e
ninguém nunca viu ou sequer soube do pai do menino. A
Maria é trabalhadora, um pouco orgulhosa quando se trata
de dinheiro, e ama o filho mais que tudo. Se o pai dele
quisesse estar presente, não acho que ela impediria. A
menos que ele oferecesse perigo a eles.
— Acha que pode ser esse o caso? Eles correm
perigo? — falei, sem acreditar muito naquilo.
— Como eu disse, ela não fala do passado e nem do
pai do menino. Eu imagino muitas coisas, mas não faço
ideia do que realmente aconteceu. Só sei que a Maria é
muito protetora com o filho.
Levi esfregou o rosto, bocejando. Seu semblante
demonstrava cansaço.
— Se não se importar, eu vou dormir. Estou exausto
e amanhã tem mais. Domingo costuma ser ainda mais
agitado, segundo meu pai.
— Vou descansar também — devolvi o copo sem
beber todo o uísque sobre a mesa.
Subimos as escadas, despedi-me e caminhei até o
final do corredor, onde ficava meu quarto.
Sozinho, andei até a varanda e me debrucei sobre o
parapeito. As estrelas pintavam o céu, lembrando-me das
noites que me marcaram tão longe dali.
Minha mente estava uma bagunça. Eu ainda não
entendia o que tinha acontecido com a Maria Clara ou quais
eram suas intenções. Eu queria dizer a mim mesmo que
nada daquilo era da minha conta, que deveria ignorar a
Clara, todavia, eu sabia que aquilo não ia acontecer. Talvez
por eu achar que precisava proteger meu amigo de passar
pelo que eu tinha passado ou talvez, eu não quisesse
admitir que eu queria desvendar aquela história apenas
porque meu fodido coração nunca a tinha esquecido.
TRINTA E DOIS
MARIA CLARA
Estava colocando o pijama de dormir em Samuel,
depois de explicar a ele que precisamos ir embora cedo
porque eu não estava me sentindo bem. Não podia dizer ao
meu filho que tinha saído correndo do festival na cidade
após encontrar seu pai.
Depois de tantos anos, eu pensei que tinha superado
o que sentia por José Augusto, contudo, ao encontrar seus
olhos azuis e intensos, as lembranças de nós dois juntos
invadiram minha mente sem que eu tivesse chance, e com
as boas, vieram as ruins. Aquelas que me lembravam que
José Augusto não era alguém confiável e que tinha me
rejeitado sem nem me ouvir direito.
E eu nem podia pensar naquela mãe dele, e no que
ela faria se descobrisse sobre mim e meu filho.
Será que eu precisaria sair correndo de novo? Me
esconder mais uma vez?
A bisa não tinha engolido minha desculpa para
sairmos às pressas da festa e me perguntaria sobre aquilo
na primeira oportunidade, eu tinha certeza.
— Eu não estou com sono, mãe — reclamou Samuel
após jantar, tomar seu banho e escovar os dentes.
— Vamos assistir um pouco de televisão juntos e
depois você vai dormir. Se não descansar, não vai poder ir
com a bisa na festa amanhã.
— Você não vai, mãe?
— Só se eu estiver melhor — avisei, pegando sua
manta sobre o baú de brinquedos.
Alcancei sua mão pequena e caminhamos até a sala.
Liguei a televisão e escolhi um programa infantil no
streaming. Meu filho se deitou em meu colo, puxando a
manta amarela sobre seu corpo.
Ele não quis admitir, mas estava cansado. Passei
uma das mãos em seu cabelo volumoso e macio, levemente
ondulado. Sua respiração ficou mais pesada, lutando contra
o sono enquanto assistia ao programa na televisão. Meu
coração se apertou dentro do peito.
O celular vibrou sobre o braço do sofá. Inclinei-me e
o peguei, vendo a notificação de mensagem. Era do Levi.
Desculpe sair correndo. Queria ter apresentado meu
amigo a você. Acredito que amanhã teremos mais tempo.
Como eu poderia fugir de Levi sem contar a ele sobre
o meu passado? Merda. Aquilo não era bom.
Escrevi uma resposta e enviei em seguida.
Minha semana foi bastante cansativa, amanhã vou
ficar em casa e descansar. Durma bem.
Meu filho se mexeu no sofá, ele havia adormecido.
Com cuidado, peguei-o em meu colo e o levei até sua cama.
Cobri-o com uma manta fresca por causa da noite quente e
o observei dormir por alguns instantes. Ele estava tão
tranquilo.
Fui até a cozinha e abri a geladeira, pegando um
vinho que tinha colocado na porta. Ao retirar a rolha,
despejei o líquido escuro em um copo grande.
Com o celular em uma mão e o copo com vinho na
outra, voltei ao sofá, desligando a televisão. Virei um gole
da bebida na garganta.
Minha mente voltou a ser tomada pelas lembranças
amargas do passado. Eu não podia evitar, era como uma
avalanche. Faziam-se seis anos, mas, ao revisitá-las,
pareciam ter acontecido há muito mais tempo, em outra
vida, quando eu acreditei no amor e me entreguei a ele sem
reservas.
A dor no meu peito cresceu e se espalhou. Senti as
lágrimas se acumulando, nublando minha visão, enquanto o
álcool descia em goles cada vez maiores por minha
garganta.
Por que José Augusto tinha que aparecer e trazer
tantos sentimentos à tona novamente? Por que eu não
podia simplesmente odiar ele por ter destruído meu coração
quando, anos atrás, acreditou naquelas mentiras que
contaram sobre mim? Eu queria esquecer que um dia tinha
sonhado em passar minha vida com ele.
Pensar naquilo tudo: em como nos conhecemos,
como eu me apaixonei e me vi feliz, sonhando com o futuro,
fez aquela dor chegar aos meus músculos. Era o passado
que eu tinha aprendido a ignorar, batendo na minha porta,
porém, daquela vez, eu tinha mais alguém para proteger.
As lágrimas escorreram em cascatas por meu rosto
sem que eu conseguisse manter a face livre delas. Um
soluço alto rompeu por minha garganta, tapei minha boca,
tentando sufocar tudo aquilo que estava explodindo dentro
de mim.
— Mãe? — Ouvi a voz de Samuel ao lado. — Por que
está chorando?
Não seria justo negar o que estava acontecendo.
Sempre dizia ao meu filho que chorar era natural, mas a
verdade também não cabia ali naquele momento. Ele tinha
apenas cinco anos.
— Venha até aqui — pedi, esticando o braço,
chamando-o. Ele andou até mim e eu o puxei para o meu
colo.
— Lembra quando você estava correndo, caiu na
calçada na semana passada e machucou o joelho? A dor fez
você chorar, e eu disse que tudo bem chorar quando
sentisse dor.
— Você caiu também, mãe? Se machucou? —
perguntou preocupado. Seu semblante aflito me fez chorar
mais ainda.
— Eu não caí, meu filho. Mas eu encontrei uma
pessoa que me trouxe lembranças que... machucam. E...
fiquei triste com isso.
— Espera aqui — ele disse, saindo do meu colo e
descendo até o chão. Limpei meu rosto das lágrimas mais
uma vez.
Samuel retornou um pouco depois, carregando a sua
pelúcia favorita. Um cavalo que ele tinha ganhado de Levi.
— Fica com o potro pra você. — Estendeu-me seu
bichinho favorito. — Eu não preciso dele.
Abaixei-me ao seu lado e dei um abraço apertado no
meu menino.
— Obrigado, meu filho. Você é a coisa mais
maravilhosa que eu ganhei nessa vida. Eu te amo.
Me afastei, fitando seus olhos azuis.
— Também te amo, mamãe. — Seus bracinhos
pequenos apertaram-se ao redor do meu pescoço, fazendo
um sorriso surgir em meio às lágrimas.
— Posso tomar um copo de leite? — pediu ele.
— É claro — respondi, me afastando. — Vou preparar
um para mim também.
— Depois, vamos assistir mais um pouco? Só um
pouquinho?
— Só um pouquinho — concordei.
Em meio ao caos, o meu maior presente estava ao
meu lado. Samuel era mais do que eu esperava, e eu era
grata por tê-lo em minha vida. Não podia correr o risco de
que aquela mulher soubesse da existência dele. No dia
seguinte, eu conversaria com a bisa, era hora de traçar um
novo plano, um que nos mantivesse longe da vista dos
Azevedo.

— Mamãe, mamãe. — Acordei com as mãozinhas de


Samuel batendo levemente contra o meu rosto.
Eu o havia trazido para dormir ao meu lado depois de
tomarmos uma caneca de leite morno e assistirmos uma
hora de televisão. Eu não conseguiria dormir sem ter
certeza de que meu filho estava em meus braços, seguro.
— O que foi, filho?
— Você ainda não está se sentindo bem? — Ouvi a
voz da bisa na porta do meu quarto. Ela tinha a chave da
nossa casa e tinha liberdade para entrar quando quisesse.
— Fiquei preocupada com a hora e resolvi vir até aqui para
ver vocês dois.
— Que horas são? — perguntei, sentindo minha
cabeça latejar.
— Passa das onze horas.
Tomei um susto e sentei-me depressa na cama, com
a sensação de que tudo girava ao meu redor.
— Você não parece nada bem, menina.
— Bisa, pode pegar um analgésico para mim na
bolsa de remédios, por favor? — pedi.
— É claro. — Ela entrou no quarto e alcançou a
necessaire no alto do guarda-roupa, procurando o remédio.
Até o pouco som daquele gesto piorava a dor na minha
cabeça.
— Não tem mais. Quer que eu veja na minha casa?
Acho que eu tenho lá.
— Quero sim. Mal consigo abrir os olhos por causa da
intensidade da dor.
— Você vai chorar de novo, mãe?
Virei-me para o lado, Samuel estava sentado, me
observando.
— Eu estou bem, meu menino. Pode levar o potro
para o seu quarto. Eu agradeço muito que você tenha
emprestado ele para mim, mas agora estou melhor.
Samuel saiu da cama devagar, levando a sua pelúcia
consigo.
— O que está acontecendo, Maria Clara? — bisa
questionou, preocupada.
— Eu vou explicar tudo assim que eu estiver melhor,
prometo. Pode buscar o remédio e cuidar do Samuel até lá,
por favor?
— É claro — respondeu prontamente.
— Vou colocar uma roupa nele e depois pegar o
remédio para você.
— Obrigada, bisa.
— Voltaremos logo.
A dor vinha em pontadas agudas na minha cabeça,
algo que eu nunca havia experimentado antes. Meu
estômago estava uma bagunça, parecia que eu seria
obrigada a expulsar tudo a qualquer momento. Eu tinha
muito o que conversar com a bisa, mas antes, eu precisava
estar em condições.
TRINTA E TRÊS
JOSÉ AUGUSTO
A noite anterior tinha sido uma merda. Não consegui
fechar os olhos e dormir mesmo com o cansaço. Minha
cabeça doía com tudo o que passava em minha mente. Eu
devia esquecer Maria Clara, seu filho, e tudo o que os
envolvia, mas algo dentro de mim não permitia aquilo.
Saí da cama e lavei o rosto no banheiro, na
esperança de aliviar um pouco o cansaço. Todavia, ao me
deparar com meu reflexo no espelho, notei o quanto eu
ainda parecia esgotado.
Desci as escadas e fui em direção à cozinha. Ouvi
vozes vindas de lá, uma delas era de Levi, a outra parecia
de uma criança.
— Bom dia — eu disse. Levi me respondeu sem olhar
em minha direção. Na mesa retangular de madeira, ele
ocupava uma cadeira ao lado de um menino que estava de
costas para mim.
Andei até o armário e peguei uma xícara para tomar
um gole de café. Paralisei o movimento, segurando a porta
de madeira ainda aberta ao ouvir o que o menino disse.
— Minha mãe estava triste ontem. Eu ouvi ela
chorando.
— Mesmo? O que houve?
— Ela estava com dor, mas ela não tinha machucado
o joelho.
— O quê? Acho melhor eu ligar para sua mãe. Eu
volto já. Tudo bem?
Levi saiu da cozinha apressadamente, e só então tive
coragem de me virar. O susto que levei quase me fez
derrubar a maldita xícara no chão.
— Quem é você? — Consegui dizer ao encarar o
menino que parecia uma versão de mim quando criança. Os
mesmos olhos azuis, o cabelo loiro, o nariz e até a boca.
— Meu nome é Samuel — disse o menino, colocando
um pedaço de pão na boca e tomando um gole de
achocolatado em seguida.
Minhas pernas estremeceram ao ouvir aquilo. Eu
precisava saber mais, contudo, sentia minhas forças
diminuindo.
— Quem é sua mãe, Samuel? — Minha voz saiu
trêmula.
— O nome dela é Maria Clara, mas todos a chamam
de Maria ou professora.
— E quantos anos você tem?
— Cinco anos — respondeu, estendendo uma palma
aberta na minha direção.
Era possível que aquele menino à minha frente
fosse... Não. Não podia ser. Podia? Eu sabia que Maria Clara
e eu não tínhamos nos prevenido. No calor da emoção, com
tudo tão à flor da pele, fui irresponsável. Entretanto, tinham
sido poucas vezes... Eu simplesmente não conseguia aceitar
aquela possibilidade.
Aquele menino não podia ser meu filho; ele era do
Joaquim. Apoiei-me no encosto da cadeira à minha frente,
tentando fazer contas que provassem que eu não era o pai
daquela criança.
— Onde está o seu pai?
— Eu não sei — ele respondeu. — Minha mãe disse
que nós tivemos que ir embora de onde ele morava porque
não era seguro. Ela disse que ele mora muito longe.
— Você sabe o nome dele?
— Não.
— Sua mãe nunca te disse?
— Ela fica triste quando eu pergunto, e eu não gosto
de ver ela triste.
Havia um nó se formando em minha garganta. Eu
estava com medo do que podia descobrir, dos caminhos que
minha mente percorria.
Eu queria me aproximar daquele menino, queria
abraçá-lo com força. Mas, ao mesmo tempo, uma voz dentro
de mim gritava que era loucura, que ele não podia ser meu.
— A sua mãe não está atendendo o celular, mas
consegui falar com a bisa. Ela disse que a Maria está
melhor, está descansando um pouco.
— Eu deixei ela ficar com o potro ontem, para ela
dormir.
— Você é o melhor — disse Levi, bagunçando o
cabelo do menino.
Meus olhos encheram-se de lágrimas, nublando
minha visão. Eu precisava sair dali antes que desmoronasse.
— Vou dar uma saída — falei sem olhar para Levi ou
para o menino. Subi até o quarto, peguei a chave do carro e
os documentos. Eu precisava ir atrás da verdade ou
enlouqueceria.
— Para onde você vai com tanta pressa? —
perguntou Levi ao me ver descendo as escadas.
— Onde está o menino?
— Na cozinha, terminando de tomar o achocolatado.
Vou levá-lo para dar uma volta com o Trovão daqui a pouco.
O que está havendo, José Augusto?
— Eu preciso falar com a mãe do Samuel. É urgente.
— Com a mãe dele? De onde você conhece a Maria?
— Não posso explicar agora, mas prometo que farei
quando retornar. Preciso que confie em mim.
— Isso é estranho. Por que você precisa...
— Por favor, Levi. É muito importante.
— Eu vou te passar o endereço dela, mas quero
saber exatamente o que está acontecendo quando você
voltar.
— Me envie por mensagem, eu atualizo o GPS no
caminho — avisei antes de sair correndo da casa.
Eu não sabia como faria aquelas perguntas, nem se
estava preparado para as respostas, mas sentia que não
conseguiria respirar enquanto não esclarecesse tudo,
mesmo correndo o risco de me destruir ainda mais.
TRINTA E QUATRO
MARIA CLARA
Passava das quinze horas quando me levantei e fui
até o banheiro lavar o rosto. Depois que a bisa trouxe o
remédio, tomei o comprimido e voltei a me deitar, enquanto
ela cuidava do Samuel em sua casa.
Sentindo-me melhor naquele momento, estava
pronta para fazer uma refeição e explicar à senhora o que
estava acontecendo. Coloquei um short jeans e uma
camiseta branca, deixei os cabelos soltos e calcei o chinelo.
Fechei a porta da minha casa, atravessei o portão e vi a bisa
sentada em sua varanda.
— Está se sentindo melhor, filha?
— Estou sim. Obrigada por cuidar de nós mais uma
vez.
Subi os degraus e cheguei à varanda, parando à sua
frente.
— Onde o Samuel está?
— Eu fui com ele até a praça e encontramos o Levi,
que tinha vindo ver alguma coisa da festa. O menino pediu
para ir à fazenda e...
— A senhora deixou — completei, quase sem ar.
— Sim. Ele sempre vai à fazenda com o Levi. Qual é o
problema, Maria? Você está branca.
— Ele vai ver o meu filho — disse, buscando me
apoiar na pilastra ao lado.
— Ele quem? Do que está falando, menina? — ela
perguntou, levantando-se e vindo em minha direção.
— E se ela souber de nós? Ela não pode saber, bisa
— disse em desespero.
— Meu Deus, menina! Você está me assustando.
Vamos entrar, vou te dar um copo de água com açúcar.
Senti sua mão pegar na minha, guiando-me para
dentro de casa enquanto meus pensamentos me
consumiam.
— Agora, me explique com calma o que está
acontecendo — pediu, colocando um copo de água à minha
frente. Sentei-me na cadeira e ela tomou o lugar ao meu
lado.
— Na festa de ontem, Levi trouxe um amigo que está
hospedado em sua casa.
— E?
— Esse amigo é o José Augusto.
A senhora levou as mãos ao rosto, assustando-se
quase tanto quanto eu.
— Por isso você ficou daquele jeito...
— Eu não sei o que vai acontecer quando José
Augusto encontrar o Samuel, se é que isso não aconteceu
ainda. — Tomei um gole grande de água. — Mas eu não
posso deixar que a mãe dele saiba sobre nós. Eu ainda
tenho medo daquela mulher. Eu sei que ela é capaz de
qualquer coisa para me manter longe do José Augusto e
duvido que queira Samuel na vida do pai.
— Eu vou até a fazenda. Vou buscar o menino. Talvez
ainda não tenham se encontrado.
Ouvimos um carro parar bruscamente na rua. Meu
coração acelerou, aquilo não era um bom sinal. A bisa e eu
saímos apressadas da cozinha e, na varanda, vimos a
picape preta estacionada em frente à minha casa. Da porta
do motorista, José Augusto desceu.
— É ele, não é? — disse a bisa.
— Sim.
— Vou com você.
— Não, bisa. Essa é uma conversa que eu preciso ter
sozinha.
— Mas... — Ela pegou em minha mão gelada,
apertando-a.
— Eu preciso — sussurrei.
Minha mão caiu ao lado do corpo quando a bisa a
soltou. Desci as escadas e atravessei o portão pequeno.
José Augusto virou-se e me viu. Seus olhos estavam em
choque, e naquele momento eu soube que ele já tinha
encontrado Samuel.
— Podemos conversar? — ele disse.
— Vamos entrar.
Abri o pequeno portão da minha casa e atravessei,
sabendo que José Augusto vinha logo atrás de mim.
Passamos pela porta, fechando-a em seguida, precisaríamos
de privacidade para termos aquela conversa. Na sala,
ofereci um lugar no sofá, mas ele preferiu ficar em pé. Fiz o
mesmo.
— Eu vi o menino, Maria Clara.
— Não era para ele ter ido à fazenda. Só foi porque
eu estava passando mal e a bisa não sabia que... você
estava lá.
— Bisa? Achei que não tivesse nenhum outro parente
além de sua tia.
— A dona Benedita é a nossa bisa do coração. Ela
nos adotou e cuidou de nós.
— Eu vi ele, Maria Clara — voltou a dizer. — Mais do
que isso... — Sua voz estava embargada. — Eu me vi nele.
— O que você quer que eu diga, José Augusto?
— Eu preciso que me diga que eu estou louco. Que
aquele menino idêntico a mim quando criança não tem a
menor chance de ser meu filho!
Uma lágrima correu por sua face, e ele usou uma das
mãos para limpá-la rapidamente. José Augusto deu um
passo à frente, aproximando seu corpo do meu, fazendo-me
notar seu peito largo subindo e descendo rapidamente,
acompanhado de sua respiração irregular.
— Me diga que ele não é meu, por favor. Me diga que
eu não te mandei embora carregando o meu filho. — Novas
lágrimas desceram por sua face. — Me diga que eu não
perdi cinco anos da vida dele. — Seus olhos azuis,
marejados, encaravam os meus.
— Você quer ouvir o que deseja ou você quer a
verdade, José Augusto?
— A verdade — sussurrou.
— Só posso te contar a verdade se prometer que sua
mãe nunca saberá dele.
— O que a minha mãe tem a ver com isso? —
indagou, confuso.
— Essa é a minha única condição. Se não me
prometer isso, eu vou embora com o meu filho, e desta vez,
eu juro que você nunca mais vai nos encontrar.
Ele levantou a cabeça em direção ao teto, talvez
tentando entender o meu pedido, ou talvez apenas
avaliando a minha proposta.
— Eu prometo — ele disse, voltando a me encarar. —
Mas preciso que me diga a verdade. Aquele menino é meu
filho?
— Sim. Ele é seu filho, José Augusto.
TRINTA E CINCO
JOSÉ AUGUSTO
Andei de um lado para o outro pela pequena sala da
casa de Maria Clara, enquanto a frase 'ele é seu filho'
ecoava em minha mente. Sentindo-me tonto, sentei-me no
sofá, inclinei o corpo para frente e apoiei os cotovelos nos
joelhos.
— Você sabia que o filho era meu quando deixou a
fazenda?
— Eu não sabia que estava grávida quando deixei a
Fazenda Azevedo.
Maria Clara parecia ser capaz de conter qualquer
emoção que pudesse surgir. Às vezes, sua voz falhava e
seus olhos marejavam, mas ela estava tentando a todo
custo manter-se no controle, já eu não podia dizer o mesmo.
— Aquele teste de gravidez não era meu — declarou.
— Mas... você estava envolvida com o Joaquim. Isso
ficou claro naquela noite. Você até foi embora com ele... —
Minha mente voltava ao que tinha acontecido, tentando
encaixar as peças daquele quebra-cabeça confuso.
— Você foi enganado, José Augusto, mas não por
mim.
— Do que você está falando? — Levantei a cabeça,
fitando-a. Uma lágrima escapou dos seus olhos e Maria
Clara a limpou rapidamente.
— Você não acreditou em mim quando eu te disse
que aquilo tudo era mentira. Não acreditou que eu nunca te
traí. Não acho que isso vai mudar.
Eu não tinha dúvida de que o menino era meu filho,
era impossível negar, ele era a minha cara. Não podia ser
do Joaquim, mas eu ainda me lembrava de que todos
naquela noite haviam confirmado o relacionamento deles.
— Eu posso conhecê-lo? Quero dizer, me apresentar
a ele. Eu o vi rapidamente na casa do Levi, não disse nada
sobre as minhas suspeitas.
— Vamos com calma — pediu ela. — Eu nunca falei
muito sobre você. Não sei como ele vai reagir.
— Eu não quero perder mais tempo da vida dele,
Clara.
Levantei-me novamente do sofá, limpando o rosto e
respirando fundo.
— Não era difícil me achar. Por que não me procurou
antes para contar sobre ele?
— Teria acreditado em mim? Ou teria me expulsado
da sua vida com ainda mais humilhação?
— Provavelmente eu teria exigido um teste de
paternidade — disse com sinceridade.
— Pode fazer o teste quando quiser. Eu sei que ele é
seu filho e não há qualquer possibilidade de ele ser de
outro.
— Eu soube que ele era meu assim que o vi, por isso
quase enlouqueci. — Ri, mesmo sem humor.
— Além disso, eu não permitiria que sua mãe
soubesse sobre nós. Nunca.
— Acha que isso é mesmo necessário? Quero dizer,
ela é a avó. Ficaria feliz em saber que tem um neto.
— Você me prometeu — disse ela, encurtando a
distância entre nós. — Se eu suspeitar que você contou
sobre nós, eu juro, José Augusto, nunca mais você...
— Eu entendi — disse, cortando-a. Não precisava
ouvir aquela ameaça novamente. Não queria me imaginar
desesperado atrás do filho que eu tinha acabado de
descobrir.
— Vou pensar em um passeio ou um jantar para que
se conheçam. Enquanto isso, espere um pouco. Seja
paciente. Preciso conversar com o Samuel.
— Não acredito que deu o nome de Samuel a ele —
falei, emocionado.
— Foi o que eu consegui salvar dos nossos sonhos
juntos. O nome do nosso filho.
Maria Clara deu dois passos atrás, colocando uma
distância maior entre nós.
— É melhor você ir agora. Daqui a pouco, o Levi deve
trazer o Samuel de volta, já está ficando tarde.
Tirei o meu celular do bolso e desbloqueei a tela,
deixando os números do teclado expostos.
— Anote o seu número de celular, por favor. Vamos
precisar ficar em contato.
Ela digitou rapidamente e me devolveu o aparelho.
— Estão precisando de alguma coisa? Tem algo que
eu possa fazer? Quero dizer, você cuidou dele sozinha todo
esse tempo.
— Nós estamos bem, José Augusto.
— De qualquer forma, vou falar com o meu contador
na segunda-feira e pedir que transfira uma quantia para sua
conta, para ajudá-los. Depois, fixaremos o valor da pensão.
— Não precisamos do seu dinheiro — disse com
rispidez.
— Isso não é sobre precisar, isso é sobre o direito do
meu filho.
— Teremos tempo para discutir sobre isso, agora é
melhor você ir. — Ela andou em direção à porta de entrada
e a segurou aberta. — Nos falaremos por telefone.
Maria Clara não voltou a olhar nos meus olhos.
Retornei ao carro, liguei o veículo e saí da rua onde morava
a mãe do meu filho e ele, o pequeno Samuel. Estava
ansioso para conhecer melhor o menino, saber como ele
era, do que gostava, além da fazenda e dos cavalos, e como
tinham sido seus anos anteriores, aqueles que eu havia
perdido.
Na fazenda Vale Verde, passei rapidamente pela
entrada da casa, encontrando o senhor Jaime no sofá da
sala.
— O Levi saiu com o menino. Ele deve estar
chegando de volta a qualquer momento.
Meu peito se apertou um pouco, parte de mim tinha
esperança de ver meu filho novamente naquele dia, mesmo
sem ainda poder dizer a ele quem eu era.
— Quando ele chegar, pede para ele subir até o
quarto, por favor? Tem algo urgente que precisamos
conversar.
O senhor assentiu e eu fui em direção às escadas.
Chegando ao quarto, sentei-me na beirada da cama.
Absorvendo os acontecimentos daquele dia. Eu tinha
encontrado novamente o único amor da minha vida e havia
descoberto que tínhamos um filho.
— Eu tenho um filho — disse para mim mesmo.
— O quê? Que história é essa de filho? — Levi estava
na porta do quarto.
— Entre, precisamos conversar — falei, fechando a
porta após sua passagem.
— Eu sei que você bebeu um pouco ontem, mas que
história é essa de filho?
Andei um pouco pelo quarto, organizando meus
pensamentos e o que eu precisava dizer ao meu amigo.
— Você se lembra da Clara?
— O quê? Não vai me dizer que ela reapareceu?
— Ela é a Maria — falei de uma vez. — O nome dela é
Maria Clara Martins.
— Puta merda! — exclamou Levi.
— Você não fazia ideia, não é?
— Claro que não! Eu a conheci apenas como Maria.
Nunca a associei à sua Clara. Espera, isso quer dizer que...
— O Samuel é meu filho — esclareci.
— Mas e aquela história de que ela tinha te traído e
estava grávida de outro?
— Ela continua dizendo que foi tudo uma mentira. Me
disse também que não sabia que estava grávida naquele
momento, que só descobriu morando aqui, e reafirmou que
nunca teve nada com o Joaquim.
— Eu sei que, quando soube da sua história com a
Clara, eu disse que você tinha sido enganado por ela, mas,
se essa Clara é a Maria. Eu acredito nela.
— Por quê? — questionei.
— Eu a conheço há um ano. Nunca a vi com outro
homem. Sei, pelos fofoqueiros da cidade, que ela só teve
um namorado, e foi decisão dela terminar com ele. A vida
dela é trabalhar, cuidar do filho e da bisa. Maria é uma das
pessoas mais admiráveis que eu já conheci. Se ela diz que
não te traiu com aquele tal peão, é porque ela não fez isso.
— Porra! — Sentei-me no colchão, escondendo a cara
entre minhas mãos. — Eu estraguei minha vida!
— Você ainda ama ela? — Levi perguntou.
Olhei para cima, meu amigo estava à minha frente,
encarando-me. Eu não podia mentir para ele.
— Eu sei do seu interesse por ela, Levi, mas não vou
mentir para você. Eu nunca esqueci a Maria Clara. Mesmo
acreditando que ela tinha me enganado.
— Imaginei que essa fosse a sua resposta.
— Eu posso ir embora, procurar um hotel — falei,
levantando-me.
— Não! Que isso? — ele disse. — Eu e a Maria nunca
tivemos nada, talvez um flerte de brincadeira, da minha
parte, é claro. Mas, sabendo que ela é a sua Clara, eu nunca
me intrometeria entre vocês. Eu estive lá quando você
desabou por ela.
— E o que eu faço agora? — perguntei, desesperado.
— Eu tenho o contato de um detetive particular, por
uma boa grana, ele consegue a ficha completa do peão.
— Está sugerindo que eu encontre o Joaquim? Para
quê? Para matá-lo?
— Eu não disse isso. — Deu risada. — Não que ele
não merecesse pelo que fez, mas, se for atrás dele, pode
descobrir por que ele fez essa merda. Não seria bom
esclarecer todas essas mentiras e segredos?
— O avião do seu pai está disponível? Será que ele
me alugaria?
— Você é da família, não precisa nem pedir.
— Me passe o contato desse detetive, quero ir atrás
do Joaquim quanto antes.
— Estou te enviando por mensagem agora mesmo.
Tirei o celular do bolso, verificando a mensagem que
tinha acabado de receber. Vi que havia algumas chamadas
perdidas da minha mãe, eu a responderia mais tarde,
lembrando do pedido desesperado de Maria Clara a respeito
do silêncio sobre ela e meu filho, aquilo era mais uma coisa
estranha que eu não conseguia entender.
TRINTA E SEIS
JOSÉ AUGUSTO
Na segunda-feira, assim que o dia clareou, com os
dados de que precisava, estava pronto para ir atrás da
pessoa que podia esclarecer de uma vez por todas o que
tinha acontecido naquela noite. Levi me levou de carro para
que eu embarcasse. A pista de pouso da fazenda ficava a
pouco mais de um quilômetro da casa principal.
— Vá atrás das respostas e, quando voltar, espero
que tome as decisões certas — disse meu amigo,
entregando-me minha mochila.
Entrei no jato com a cabeça a mil. Tinha tantas
perguntas e, em poucas horas, eu finalmente teria as
respostas.
Ao chegar a Cuiabá, notei a diferença na
temperatura. O calor estava sufocante ou seria minha
própria ansiedade me matando? Com um carro alugado, fui
em direção ao endereço que o detetive tinha me passado na
noite anterior. Foram mais duas horas de estrada de terra
até alcançar a propriedade de Joaquim. Uma placa simples,
ao lado da entrada, indicava o nome da fazenda. A porteira
estava aberta, então segui pelo caminho rodeado por pasto
até chegar a uma grande casa de fachada de pedra.
Desci do carro e um peão veio ao meu encontro.
— O que o senhor deseja?
— Meu nome é José Augusto Azevedo. Eu quero falar
com o Joaquim Santos.
— O patrão está no escritório. Vou chamar ele.
O peão, que devia ter menos de vinte e cinco anos,
atravessou a porta de entrada da casa. Aguardei alguns
minutos, debaixo do sol quente, até reconhecer Joaquim,
que vinha ao meu encontro. Ele tinha envelhecido um
pouco, ganhado peso e a pele estava mais marcada.
— Eu me perguntei muitas vezes se um dia você viria
atrás de mim. Demorou, mas aqui está você.
— Podemos conversar?
— Vamos entrar. Está um sol dos infernos aqui fora.
Segui Joaquim atravessando a porta de sua casa até
uma sala grande. Os móveis eram modernos, com grandes
tapeçarias ao redor e um bar bem abastecido em um dos
cantos.
— Quer beber alguma coisa?
— Não. Estou dirigindo — eu disse.
— Eu vou beber. — Ele andou até o bar e serviu-se de
uma dose de uísque, tomando um gole em seguida.
Atravessei a sala, parando do outro lado do balcão de
madeira escura onde ele estava.
— Eu não quero perder tempo aqui, Joaquim. Isso
não é uma visita.
— Então, diga logo o que você quer, José Augusto.
— Eu os encontrei.
Joaquim secou a bebida do copo e o soltou sobre o
balcão.
— E a sua mãe? Já sabe?
— Não.
— Então, eles ainda têm tempo de fugir de vocês.
— Do que você está falando? Por que eles fugiriam
de nós?
— Você ainda não entendeu nada, não é?
— É exatamente por isso que eu estou aqui. Anos
depois de você, minha mãe e até a dona Zefa confirmarem
que Maria Clara estava tentando me dar um golpe, mesmo
depois de vocês terem ido embora juntos, ela ainda assim
continua negando que tenha me enganado. Por quê?
— Porque é a verdade.
— Mas de que porra você está falando? — indaguei
exaltado.
— A sua mãe me ameaçou e ameaçou a dona Zefa
para mentirmos sobre eu estar em um relacionamento com
a Maria Clara.
— O quê? A minha mãe?
— Sim. Ela queria a Maria Clara longe da sua vida de
qualquer jeito. Primeiro, ela nos ameaçou e depois nos
subornou. Como acha que eu consegui essas terras? Eu não
tinha um tostão furado.
— Não. Isso é demais. A minha mãe não pode ter
feito isso.
— Viu? Por isso, nem eu e nem a Zefa te contamos a
verdade. Você não acreditaria.
— É porque isso é uma grande loucura! — exclamei.
— Posso te mostrar os documentos de transferência.
Sua mãe me pagou uma parte em dinheiro e outra muito
maior em transferência bancária. Eu guardei os
documentos. Espere aqui, vou trazer para você ver.
Andei de um lado para o outro com aquela
informação martelando em minha cabeça. O preconceito da
minha mãe em relação à Maria Clara seria tão forte a ponto
de ela tramar algo tão baixo?
Joaquim retornou com uma pasta preta e a entregou
em minhas mãos. Ao abri-la, encontrei os documentos de
transferência, um valor altíssimo, feito por minha mãe, para
Joaquim.
— Você conseguiu tudo o que queria, pelo jeito —
entreguei a pasta de volta a ele.
— Não. Eu queria a Maria Clara mais do que essas
terras.
Meus dedos fecharam-se contra a palma de minha
mão. Senti as unhas sendo afundadas na pele. Como aquele
maldito tinha coragem de dizer aquilo na minha cara?
— Mas ela nunca me quis — completou ele, servindo-
se de outra dose de bebida.
— Por que não me mostrou isso antes? Eu poderia...
— O quê? Ter confrontado sua mãe? — Ele riu. — A
dona Cassandra inventaria uma desculpa para esse
dinheiro. Talvez dissesse que era uma recompensa pelos
meus anos de serviço ou até pelos anos do meu pai. Ela
nunca admitiria o que fez.
— Ela foi embora com você — lembrei, deixando o
ciúme falar mais alto.
— Para se salvar.
— Do quê? Eu já tinha acreditado em tudo.
— Tem mais uma coisa que você precisa saber sobre
a sua mãe, José Augusto. O seu pai não sofreu um acidente
de cavalo, a sua mãe o matou e forjou o acidente.
— Não... isso...
— Meu pai viu tudo, mas ele não podia provar. Era só
uma testemunha contra a pessoa mais rica da cidade, que
sempre teve todos nas mãos.
Sentei-me no sofá, as pernas tremendo como se
pudessem desabar a qualquer momento. Meus dedos se
entrelaçaram em minha cabeça, tentando, em vão, parar os
pensamentos que se atropelavam. Tudo aquilo era insano.
As mentiras, as armações... e o assassinato. A cada palavra
que ecoava em minha mente, a dor em meu peito
aumentava, como se estivesse sendo esmagado por um
peso impossível de suportar.
— Eu sei que é muita coisa, José Augusto, mas você
veio até aqui pela verdade, e a verdade é essa. Sua mãe
nos ameaçou e depois subornou para que separássemos
você da Maria Clara. A Zefa também sabia do seu pai e,
com medo, aceitou o dinheiro para que Maria Clara tivesse
com o que fugir.
Esfreguei as mãos no rosto com força. Aquilo tudo
era um pesadelo!
— A Maria Clara soube de tudo depois que você saiu
cuspindo fogo pelas ventas. Ela queria ir atrás de você, mas
nós não deixamos.
Levantei meu rosto em sua direção. Eu estava
explodindo em confusão e raiva.
— Não podíamos deixar. Se sua mãe estava disposta
a fazer aquele circo para separar vocês, o que ela faria se
não desse certo?
— Eu já fui enganado por você uma vez. Por que eu
deveria acreditar em tudo isso agora?
— Acredite no que quiser. Veio aqui atrás da verdade,
e eu te disse. O que vai fazer com isso é problema seu. Eu
só sei de uma coisa: se realmente ama a Maria Clara, como
disse um dia, não precisa acreditar em mais ninguém,
apenas nela.
— Você conheceu o meu filho? — perguntei.
— A dona Benedita me mandou algumas fotos deles.
O menino é a sua cara.
Dei um riso sem humor.
— Queria não ter perdido tanto tempo da vida dele —
lamentei.
— Tome uma atitude então, homem! Vá atrás do
perdão da sua mulher e do seu filho.
Joaquim tinha razão. Eu ganhei uma nova chance de
viver a verdadeira felicidade ao lado do único amor da
minha vida e do filho que desconhecia até pouco tempo.
Não podia deixar aquela oportunidade escapar. Precisava
lutar por eles, lembrar da única pessoa capaz de fazer meu
coração parecer grande demais no peito e acreditar naquele
sentimento de pertencimento que compartilhamos um dia.
— Você está certo. Não posso ficar aqui parado com
medo ou pensando no tempo perdido. Eu preciso deles,
sempre precisei.
— Só tome cuidado com a sua mãe. Ela não vai
gostar nadinha dessa história de vocês.
— Ela não vai chegar perto da minha família.
Despedi-me de Joaquim com a cabeça ainda mais
cheia do que quando cheguei. Eu tinha vindo em busca de
respostas e eu as tinha. Era difícil aceitar tudo o que minha
mãe tinha feito, mas eu estava cansado de dizer a mim
mesmo que a única pessoa da minha família não era ruim,
mesmo vendo suas atitudes durante sua vida.
No fundo, era uma questão de escolha. Eu precisava
decidir em quem confiar de verdade, e meu coração sabia
que aquela pessoa era Maria Clara.
Eu havia errado e, se fosse necessário, passaria o
resto dos meus dias pedindo perdão a Maria Clara. Anos
atrás, ignorei o que meu coração dizia, porém, a partir
daquele momento, estava disposto a ouvi-lo. Maria Clara
era minha vida, e eu provaria isso a ela, custasse o que
custasse.
TRINTA E SETE
MARIA CLARA
No domingo à tarde, na mesa da nossa cozinha,
tivemos pamonha, bolos doces e salgados de milho, milho
assado e outros pratos deliciosos. A dona Benedita foi à
feira e fez uma compra enorme para comemorarmos o dia
da festa do milho sem sair de casa. Samuel adorou ver a
mesa farta com os quitutes.
Passamos boa parte daquela noite comendo e
assistindo televisão. Meu filho estava cansado por ter ido à
fazenda novamente e acabou dormindo logo após escovar
os dentes.
Conversei com a bisa sobre meus sentimentos e toda
a confusão que estava acontecendo. Era reconfortante tê-la
por perto para me ouvir e aconselhar. Por um momento,
mesmo com José Augusto dando sua palavra de que não
contaria nada à mãe sobre nós, cogitei a ideia de fugir. Eu
tinha uma boa quantia guardada para emergências como
aquela, mas sabia que talvez não fosse a melhor decisão.
Não queria impor uma vida de fugitivo ao meu filho. Ele não
merecia.
Eu não confiava completamente em José Augusto,
não depois da maneira como ele duvidou de mim e me
abandonou. Ainda assim, não acreditava que ele colocaria o
próprio filho em risco. Naquela manhã, Levi me ligou,
contando que José Augusto havia ido falar com Joaquim
pessoalmente. Eu não sabia o que esperar de seu retorno
do Mato Grosso.
— Até amanhã, professora — disse o último dos
meus alunos ao sair. Olhei para as carteiras de madeira
vazias, as paredes repletas de cartazes coloridos e os
trabalhos em cartolina expostos no fundo da sala. Pensei
em como seria começar do zero em outro lugar mais uma
vez. Por mais difícil que pudesse parecer, se Samuel
estivesse em perigo, eu faria aquilo sem hesitar.
Saí pelo corredor vazio e atravessei o portão da
escola, enquanto procurava o celular dentro da bolsa
pendurada no ombro.
— Oi, Maria Clara. Podemos conversar? — A voz de
José Augusto ainda mexia comigo, mais do que eu gostaria.
Ele parecia muito cansado. Os olhos estavam fundos
e vermelhos, a camisa estava amassada e o cabelo
despenteado. Eu nunca o tinha visto daquele jeito.
Olhei ao redor. Qualquer conversa entre nós seria um
espetáculo para os moradores daquela cidade, era melhor
que falássemos em lugar com privacidade.
— Eu vou pedir para a bisa cuidar do Samuel mais
um pouco e assim podemos conversar em minha casa.
Ele assentiu.
Mandei uma mensagem explicando à bisa que eu
precisava falar com o pai do Samuel e que buscaria o meu
filho mais tarde.
— Podemos ir com o meu carro? — perguntou ao me
ver guardar o celular novamente.
Concordei. O seu carro ainda era uma picape, porém,
de um modelo mais novo. Sentei-me no banco do
passageiro e coloquei o cinto de segurança.
— Precisa do endereço?
— Não. Já está salvo — respondeu ele.
O silêncio dentro do veículo me deixava ainda mais
tensa, no entanto, eu sabia que aquele não era o momento
de iniciar qualquer assunto que fosse, tudo poderia
desmoronar rapidamente.
Paramos em frente à minha casa e descemos do
carro. Abri o portão e depois a porta. Na entrada, deixei
minha bolsa no cabideiro.
— Quer um copo de água ou suco?
— Aceito um copo de água.
Andei até a cozinha, peguei um copo de água gelada
e entreguei-o a José Augusto. Nossos dedos se tocaram
levemente, fazendo-me recuar um passo. Eu não podia ser
tão fraca diante daquele homem.
— Você já sabe que eu fui até o Joaquim hoje —
iniciou, depois de beber metade do líquido. Assenti. — Ele
me disse coisas que até agora estão ecoando dentro da
minha cabeça.
— Eu imagino como você deve estar se sentindo.
— Posso me sentar?
— Sim. — Apontei para o sofá e ele se acomodou. —
Pode se sentar ao meu lado?
Sentei-me, mantendo os olhos à frente, fixados no
reflexo de nós dois na televisão desligada.
— Eu sei que errei — ele falou, girando o copo quase
vazio em suas mãos. — Deveria ter acreditado na única
pessoa que disse que aquilo tudo era mentira. Que tinha o
meu coração desde o primeiro momento em que eu a vi.
Meus olhos arderam enquanto as lágrimas se
acumulavam, ameaçando transbordar. Reviver o passado
me trazia dor. As boas memórias, que um dia me
aqueceram, tentavam sobreviver às ruins que ainda me
cortavam como facas afiadas. Pisquei rapidamente, lutando
contra a sensação sufocante no peito, tentando me segurar
para não ceder ao choro que se acumulava dentro de mim.
— Naquela noite em que tudo aconteceu, eu achei
que se... você tivesse acreditado em mim, nós dois
podíamos ter continuado juntos e felizes, mas...
Era difícil falar, lembrar da dor da rejeição e de ter
deixado para trás os sonhos que eu tinha acreditado que
realizaria ao lado de José Augusto. Aquela noite tinha sido
um pesadelo que por anos eu tentei esquecer.
— Eles te contaram o que minha mãe fez com o meu
pai — concluiu José Augusto.
— Isso mesmo.
— Uma vez eu escutei uma discussão deles —
comentou.
— Que discussão?
— Uns dias antes de meu pai morrer. Eu ouvi gritos
no andar debaixo e saí do meu quarto no meio da
madrugada. Mesmo com a iluminação do corredor apagada,
do topo das escadas, eu vi minha mãe arremessar um vaso
de flores contra o meu pai quando ele disse que ia deixá-la
e me levaria junto com ele.
— Acha que foi por isso que ela...
— Eu nunca havia considerado essa possibilidade
antes. Jamais imaginei minha mãe como uma... assassina,
mas agora algumas coisas começam a fazer sentido.
Ele tomou o restante da água e colocou o copo vazio
sobre a mesa de centro.
— Uma vez, meu pai me levou até a margem do rio e
me perguntou se eu conseguia me imaginar em uma
fazenda menor, com uma casa mais simples e mais trabalho
a fazer.
— E o que você respondeu?
— Perguntei se ele estaria lá. E ele respondeu que
sim. — Sua voz saiu com dificuldade.
Uma lágrima escorreu de seu rosto e José Augusto a
limpou rapidamente.
— “Tudo bem, pai”. Foi o que eu disse a ele. Porque
era verdade, não me importava onde moraríamos ou o
quanto trabalharíamos, desde que estivéssemos juntos.
— Eu sinto muito pelo seu pai. Sei que você amava
ele.
— Devia ter percebido, devia ter desconfiado, devia...
— Você não devia nada. Era só uma criança quando
ele morreu.
— Ainda estou absorvendo tudo isso. É difícil aceitar
que a sua única família, que a sua própria mãe é um...
monstro.
— Monstros são pessoas comuns e, às vezes,
infelizmente, são pais e mães.
— Ela me ligou várias vezes desde que cheguei,
querendo saber como estou, com quem estive e quando vou
voltar. Sempre encarei essa mania dela como uma forma de
preocupação, um cuidado, mas agora percebo que, na
verdade, ela queria apenas controlar os meus passos, minha
vida.
— Você precisa de um tempo para absorver tudo
isso, para poder voltar a respirar de novo.
— Não sei como vou conseguir falar com ela sem
revelar tudo o que descobri. Nunca senti tanta raiva. — Seus
dedos estavam tão apertados contra a palma da mão que
os nós ficaram brancos.
— Ei — peguei em sua mão, afrouxando os seus
dedos. — A raiva não é a melhor conselheira. Você não pode
se deixar dominar por ela agora.
Seus olhos me fitaram com intensidade e, então, sua
cabeça pendeu para frente e sua testa se apoiou na minha.
— A culpa é minha também — ele disse baixo. — Eu
não podia ter feito o que eu fiz. Me perdoa. — A dor com
que ele pronunciou a última frase terminou de rasgar a
ferida que nunca tinha se fechado em meu peito.
— Eu... não sei se consigo.
José Augusto me encarou novamente, o seu reflexo
mostrava uma mistura de dor e desespero que doía em mim
também. Eu queria dizer apenas “sim” e esquecer o
passado, mas não estava pronta para aquele passo e temia
nunca estar. Por mais que eu soubesse que José Augusto
tinha sido vítima de sua mãe, de seu funcionário e das
mentiras de minha própria tia, eu ainda sentia a dor de ter
sido culpada e abandonada por algo que eu não tinha feito.
— Vou passar o resto dos meus dias buscando o seu
perdão, Maria Clara. — Sua mão desceu do meu rosto até o
pescoço, queimando-me no local. Nunca nenhum outro
homem tinha mexido com meu corpo e com o meu coração
como ele, e aquilo tornava as coisas ainda mais difíceis.
— Com tudo o que você descobriu, acho que não
preciso reforçar o pedido para que sua mãe não saiba sobre
mim e sobre o Samuel.
— Ela não vai chegar perto de vocês dois.
Sua mão ainda estava em meu pescoço, espalhando
calor, lembrando-me da sua proximidade e dos desejos que
apenas ele era capaz de despertar em mim.
— Acho melhor você ir agora — sussurrei, temendo
não suportar a saudade que ainda permanecia em meio ao
caos do que eu sentia por José Augusto.
— Eu vou, mas preciso saber quando posso voltar e
conhecer o meu filho?
— Na sexta-feira. Eu vou conversar com o Samuel
com calma sobre a sua chegada, além disso, vai ser bom
para você descansar um pouco depois de tudo o que
descobriu.
— Eu vou morrer de ansiedade até lá, mas você tem
razão, é melhor que seja daqui a alguns dias.
Assenti, presa aos seus olhos azuis. Sua mão subiu
novamente para o meu rosto e seu polegar deslizou
devagar sobre meus lábios, separando-os levemente. Engoli
em seco, sua proximidade seria difícil de resistir.
— Senti sua falta — ele disse.
Meu telefone tocou, rompendo a atmosfera que nos
envolvia. Recuei rapidamente, passando as mãos por meu
vestido como se ele estivesse com o tecido amassado.
— Acho que é a bisa. Ela deve estar preocupada —
falei.
— Eu vou voltar para a Fazenda Vale Verde. Posso te
pedir algumas fotos e vídeos do Samuel? Dos anos em que
eu não o vi crescendo.
— Vou enviar para o seu telefone.
— Eu não esqueci o valor que prometi te transferir. O
contador me afirmou que até as vinte horas a quantia que
solicitei estará em sua conta bancária.
— Sinceramente, eu preferia que não. É melhor
fazermos o teste de paternidade antes. Não quero complicar
ainda mais as coisas.
— Não vamos fazer o teste, Maria Clara. Aquele
menino é meu filho e eu não tenho dúvida sobre isso. Eu já
duvidei de muitas coisas, mas não disso.
— Se você prefere assim...
O meu telefone voltou a tocar.
— É melhor eu atender antes que a bisa apareça aqui
com a polícia.
Acompanhei José Augusto até a porta e, de longe, vi-
o entrar em seu carro e sair dirigindo pela rua de
paralelepípedos.
— Eu estou indo, bisa. Desculpe a demora — falei ao
atender a ligação.
Assim que passei pela porta da casa de dona
Benedita, Samuel correu em minha direção, dando-me um
forte abraço.
— Tudo isso é saudade da sua mãe? — perguntei.
— A bisa disse que você teve um dia difícil e que um
abraço forte ia ajudar — falou, apertando seus bracinhos ao
redor do meu pescoço.
— Ela é uma mulher sábia. — Sussurrei “obrigada”
para a senhora que estava em pé, ao lado do seu sofá.
— Eu já jantei, tomei banho e escovei os dentes —
falou Samuel ao se afastar.
— Que bom, filho. — Beijei sua bochecha. — Vamos
para casa agora, busque sua mochila.
Samuel foi até o quarto de visitas onde ele
descansava quando ficava na casa da bisa.
— Como foi a conversa? — perguntou baixinho.
— Dolorosa.
— Ele já sabe de tudo mesmo? Até sobre a mãe dele
e o que ela fez com o pai dele?
— Sim.
— E como está seu coração, Maria Clara?
Soltei um riso frouxo.
— Uma bagunça — eu disse.
— As coisas vão se ajeitar. Eu tenho certeza. Não se
pode fugir do destino.
— Vamos, mãe? — disse Samuel, retornando com sua
mochila azul nas costas.
— Amanhã eu conto os detalhes — falei ao me
despedir da bisa.

Era quinta-feira à noite e eu ainda não tinha falado


sobre o José Augusto com o Samuel. Toda vez que eu pensei
em entrar no assunto, acabei recuando em seguida.
Depois de tomar o banho, jantar e escovar os dentes,
ajudei meu filho a vestir seu pijama de animais da fazenda.
Observei-o juntar alguns de seus brinquedos e os guardar
dentro do baú. Eu sabia que precisava falar sobre o pai dele,
não tinha mais tempo.
— Filho — chamei, ao vê-lo guardar o último carrinho
com os pequenos bois de plástico. — Venha aqui, por favor.
Sentei-me na beirada da sua cama e apontei o lugar
ao lado para que ele se sentasse também.
— Nós não falamos muito sobre o seu pai porque...
ele passou muito tempo longe, certo?
Vi Samuel balançar a cabeça, concordando. Passei os
dedos pelos seus cabelos ainda molhados, afastando os fios
que caíam sobre sua testa.
— Você gostaria de conhecê-lo?
Seus olhinhos claros quase saltaram.
— Você não parece triste — ele disse.
— Eu não estou.
— Ficava triste antes, quando falava dele.
— Você percebia isso?
Samuel confirmou, fazendo meu peito se apertar. Eu
não sabia que ele tinha percebido aquilo. Peguei suas mãos
pequenas nas minhas.
— Eu não estou mais triste, filho. Seu pai e eu
conversamos e estamos tentando nos entender, como dois
adultos.
— Os pais do Marcelo, da minha turma, são
separados também.
— Às vezes, os pais se separam, mas ainda podem
conviver bem.
Seus olhos fitaram os meus, ele parecia curioso.
— Tem mais alguma pergunta, filho?
— Quando meu pai vem me ver?
— Amanhã à noite, se você quiser. Se não estiver
pronto, podemos ir com mais calma.
— Eu quero — disse determinado.
— Então, combinado. Amanhã, seu pai vem jantar
conosco e vocês vão poder se conhecer. Tudo bem?
Ele balançou a cabeça, confirmando mais uma vez.
— Podemos assistir desenho antes de dormir?
— Só um pouco para não ficar tarde.
Com sua mão segurando a minha, caminhamos até a
sala. Liguei a televisão no seu desenho favorito, e ele
sentou-se ao meu lado, puxando uma manta para si. Sabia
que tinha adormecido alguns minutos depois, quando senti
seu corpo pequeno se apoiar ao meu.
Não podia dizer que estava tranquila com relação ao
jantar que aconteceria no outro dia, mas precisava dar
aquela chance a eles. Independentemente do meu
relacionamento com José Augusto, Samuel tinha o direito de
ter o pai presente em sua vida, e eu lidaria com meus
sentimentos como pudesse.
TRINTA E OITO
JOSÉ AUGUSTO
A semana parecia ter se arrastado, mesmo com Levi
me ajudando a me manter ocupado. Durante o dia, minha
rotina era ajudar na fazenda, o que era bom. À noite, não
havia como fugir da verdade e meus pensamentos vagavam
pelas descobertas que tinha feito. Eu podia ter vivido com
uma venda nos olhos durante toda a minha vida, mas não
permitiria que aquilo continuasse.
Após um banho relaxante, sequei o corpo com uma
toalha e, apesar da dor nos músculos causada pelo intenso
dia de trabalho, sentia-me mais disposto do que nunca.
Finalmente era sexta-feira e eu seria apresentado ao meu
filho.
Eu vi todas as fotos e vídeos que Maria Clara
compartilhou comigo, ela estava disposta a me ajudar com
o Samuel e eu era grato por aquilo. Não queria me torturar
mais pensando nos anos que eu havia perdido, e sim me
dedicar a ele no tempo que teríamos juntos.
Minha mãe tinha me ligado várias vezes naquela
semana. Eu tinha recusado todas as ligações e respondido
seus questionamentos por mensagem. Temia não me
segurar se tivesse que conversar com ela tão cedo.
Vesti minha roupa e abri as portas de correr que
davam acesso à varanda do quarto, deixando o ar fresco da
noite circular pelo ambiente.
— Está nervoso? — Levi apareceu na outra porta com
uma cerveja na mão.
— Bastante — confessei ao meu amigo. Desde que
descobri a verdade sobre minha mãe e tudo o que ela fez,
Levi me apoiou. Eu era grato por sua amizade e lealdade. —
Você vai sair?
— Tenho um encontro. — Sorriu, levando a bebida à
boca.
— E é sério?
— Não. — Ele riu. — Mas ela sabe.
Balancei a cabeça negativamente enquanto fechava
os botões do punho da camisa.
— José Augusto, você vai conhecer seu filho, não o
seu chefe. Coloque uma camiseta normal, uma calça jeans.
— Riu ele.
— Tem razão. — Olhei para o espelho, nervoso.
Aquilo estava demais para um encontro que deveria, ao
menos, parecer casual.
— Não me espere acordado — Levi falou, fazendo
piada enquanto saía do quarto.
Troquei de roupa e peguei o celular, a carteira e as
chaves do carro. Em breve, viveria um dos momentos mais
importantes da minha vida.
Desci do carro sentindo a agitação correr por meu
corpo. Assim que cheguei no pequeno portão, Maria Clara
veio ao meu encontro. Ela estava linda, usando um vestido
branco justo nos seios e cintura, deixando o tecido leve
dançar em seu corpo na parte debaixo que chegava até o
meio das coxas. Seu cabelo longo estava preso, como ela
costumava usar quando nos conhecemos anos atrás. A
saudade do que fomos um dia apertou meu peito.
— Ele está na sala. Já perguntou três vezes se você
estava chegando.
— Desculpe, devo ter me atrasado.
— Não. Você não se atrasou. O Samuel é que está
um pouco ansioso.
— Ele não é o único. — Sorri.
Caminhei atrás de Maria Clara, atravessando a porta
de entrada até a sala de estar no interior da casa. O meu
filho estava sentado no sofá, segurando um cavalo de
pelúcia. Seus olhos se arregalaram quando ele me viu ao
lado de sua mãe.
Senti um nó se formar na garganta. A poucos passos
de mim estava meu filho, Samuel. Não importava quantas
vezes eu olhasse para ele, sempre me surpreenderia com a
nossa semelhança.
Maria Clara caminhou até o menino, pegando-o pela
mão e guiando-o até mim. Abaixei-me, ficando de frente
para ele.
— Samuel, esse é seu pai, José Augusto.
— Eu já te vi. Na fazenda — disse ele.
— Sim — concordei com dificuldade. — Nos
encontramos lá há alguns dias.
— Você é mesmo meu pai? — perguntou, parecendo
em dúvida.
— Sim. Eu sou. — Minha garganta doía ainda mais e
meus olhos começavam a ficar marejados.
— Por que demorou tanto para vir me ver? — Não
havia qualquer sinal de raiva ou revolta, apenas...
curiosidade.
— Eu cometi muitos erros, meu filho. Espero que um
dia possa me perdoar.
— Minha mãe disse que pessoas de bom coração
perdoam.
— Sua mãe é uma mulher bondosa — falei sem tirar
meus olhos dos seus.
— Eu posso te perdoar.
Segurei-me para não chorar, mas não consegui,
lágrimas desceram por minha face sem que eu pudesse
controlar. Samuel se aproximou e seus braços circularam o
meu pescoço.
— Não fique triste — ele disse baixinho.
— Estou feliz, muito feliz, meu filho — falei,
retribuindo seu abraço e levantando-me com ele no colo.
Sua cabeça se aninhou em meu peito e mais lágrimas
fugiram dos meus olhos.
Eu mal conseguia respirar ao sentir tanta felicidade.
Samuel era muito mais do que eu merecia, e ainda assim,
ele estava ali, nos meus braços, tentando me consolar.
Levantei minha cabeça e enxerguei Maria Clara perto
de nós, limpando suas lágrimas rapidamente. Passei as
mãos nas costas do meu filho, mantendo-o pertinho de
mim.
— Vamos jantar antes que a comida esfrie? — pediu
Maria Clara.
Concordei. Peguei Samuel no colo e o levei até a
mesa da cozinha, colocando-o em uma cadeira ao lado do
meu assento. Maria Clara sentou-se à nossa frente, serviu
um prato para nosso filho e, em seguida, para ela mesma.
— Eu já sei que você gosta de estar na fazenda.
Temos isso em comum. Eu cresci em uma fazenda — falei
para o meu filho.
— Você também gosta de fazenda, pai? — ele
perguntou, animado. Olhei para Maria Clara, ela parecia tão
surpresa quanto eu ao ouvir Samuel me chamar de pai com
tanta naturalidade. Limpei mais uma lágrima que fugiu.
— Eu adoro, filho. Foi em uma fazenda que eu
conheci sua mãe.
— Me leva lá?
O semblante de Maria Clara mudou imediatamente,
era visível sua preocupação.
— Te levarei a outras fazendas. Naquela, não
poderemos porque eu nunca mais voltei lá.
— Pode ser em outras, então — ele disse, animado.
— Vou planejar alguma coisa para nós.
— Conta para o seu pai sobre a sua escola — disse
Maria Clara, tomando um gole do suco em seu copo.
— É bem legal. Hoje, nós recortamos um monte de
imagens do livro para colar no caderno. O Marcelo foi colar
e... abriu aquele negócio que fecha a cola...
— A tampa? — ajudou Maria Clara.
— É. Aí saiu um monte de cola na folha e grudou
tudo, e a profe[9] não conseguia arrumar de novo.
Ri de sua empolgação ao contar o que aconteceu na
sala de aula.
— Você gosta da sua escola? — perguntei.
— É legal.
— Não vai jantar, José Augusto? — Maria Clara
apontou para o meu prato ainda vazio sobre a mesa.
— Sim, claro. Estou um pouco distraído. — Comecei a
servir-me enquanto meu filho contava mais sobre a sua
escola, sobre os passeios na Fazenda Vale Verde e sobre
seus programas de televisão favoritos.
— A bisa não gosta muito de desenho, mas ela
sempre assiste comigo.
— Ela parece ser uma bisa incrível — comentei,
depois de engolir um pouco de comida.
— Ela ajuda a cuidar de mim, mas ela não tem só eu.
A outra família dela vem da cidade pra ver ela.
— E você gosta deles?
— Gosto.
— Não ficamos tanto com a bisa quando a família
dela vem visitá-la para não tirar o tempo deles, mas nós os
conhecemos, são pessoas gentis, como ela.
— É bom saber que tiveram alguém assim na vida de
vocês.
Consegui terminar a refeição entre tantas histórias
que Samuel contava, empolgado. Eu adorava saber mais
sobre o meu filho. Ele era um menino curioso, que amava
estar na fazenda e com os cavalos. De alguma forma,
gostava de pensar que era o nosso sangue que trazia
aquela ligação com o campo, a mesma que eu tinha com
meu pai.
Maria Clara lavou a louça, e eu e Samuel ajudamos a
secar. Ele comentou que sempre ajudava a mãe. Depois, ele
escovou os dentes e fomos assistir televisão na sala.
Samuel acomodou-se entre mim e Maria Clara,
segurando o potro de pelúcia no colo. Ele parecia cansado,
não demoraria a dormir.
— Pai — ele me chamou, esfregando os olhos claros.
— Sim, meu filho.
— Você vai morar comigo e com a minha mãe agora
ou vai ser separado igual ao pai e à mãe do Marcelo?
— Eu e a sua mãe não estamos mais juntos, mas isso
não quer dizer que não farei o que for possível para estar
sempre presente. Você entende isso?
— Sim — confirmou, bocejando. — Vou te ver de
novo então?
— Sempre. — Beijei o topo da sua cabeça. — Eu
prometo. Minha vida não existe sem vocês.
Seu corpo se acomodou na lateral do meu, e eu
passei um braço por seu tronco. Ali, ele ficou até adormecer.
Nunca pensei que seria tão reconfortante assistir alguém
dormir.
Eu poderia reviver aquele dia mil vezes e sempre
seria especial. Jantar com a Maria Clara e meu filho,
conversarmos sobre seu dia, sobre nossos gostos em
comum, vê-lo descobrindo a vida... Eu não sabia o quanto
precisava daquilo.
— Eu vou levá-lo para a cama — disse Maria Clara,
baixinho.
— Posso fazer isso? — pedi.
Ela assentiu.
Devagar, meus braços passaram por suas costas e
pernas. Meu filho era grande para um menino de cinco
anos, provavelmente seria alto como seu pai. Sorri ao
pensar em mais uma característica minha que ele teria.
Maria Clara afastou a manta da cama e eu o coloquei
sobre o lençol com estampa de animais. Após acomodá-lo
no colchão, dei-lhe um beijo na testa.
— Te amo, meu filho — disse baixinho.
Cobri Samuel com a manta e me afastei. Maria Clara
deixou a porta entreaberta. Retornei ao sofá da sala.
— Quer um copo de água ou suco?
— Por acaso, você não teria uma cerveja, teria?
— Por acaso eu tenho. — Ela sorriu.
Maria Clara foi até a cozinha e voltou um pouco
depois com duas garrafas de cervejas geladas. Tomei um
gole grande, a noite parecia mais quente naquele momento.
Ela sentou-se ao meu lado e encarou o vazio à sua
frente.
— Acho que foi tudo bem — ela falou.
— Foi muito melhor do que eu esperava.
Coloquei minha garrafa sobre a mesa baixa ao lado e
virei-me para ela, que fez o mesmo.
— Obrigado por tudo isso — falei, levando uma mão
até seu pescoço. Eu não conseguia evitar tocá-la. Era uma
necessidade que eu não conseguia conter.
— Você é o pai dele.
— Eu sinto tanto... por tudo. Nunca devia ter
permitido que você partisse.
Minhas mãos desceram até sua cintura e eu arrastei
seu corpo para o meu colo. Ela ainda se encaixava
perfeitamente em mim. Mantive uma mão em sua cintura e
a outra em seu pescoço descoberto. Meu polegar deslizou
por sua pele quente, um suspiro pesado passou por seus
lábios entreabertos.
Meus lábios experimentaram os seus, devagar,
saboreando o gosto de saudade. Minha língua pediu
passagem e, assim que recebeu, explorou cada canto de
sua boca. Conforme o beijo se aprofundava, minhas mãos
afundavam em sua carne e a respiração se tornava mais
irregular. Na ânsia por matar aquilo que nos consumia,
nossos dentes se chocaram. Meu lábio inferior foi mordido
com força, causando um pequeno corte.
Segurei sua nuca, mantendo-nos presos um ao outro,
sem tempo para respirar. As mãos de Maria Clara
espalmaram-se em meu peito, primeiro ela riscou minha
pele com suas unhas e então, como se acordasse de
repente, usou-as para se afastar.
Seus olhos se cravaram aos meus, eu sabia que ela
estava tão sedenta por aquilo quanto eu, mas também
havia um vislumbre de dúvida neles. Eu teria tempo para
lembrar a ela que nós dois pertencíamos um ao outro, não
importava o tempo, a distância ou qualquer armadilha. Eu
era de Maria Clara e ela era minha.
— É melhor você ir agora, está ficando tarde...
Ela levantou-se e saiu do meu colo, não disfarçando
seu olhar que correu diretamente para o meu pau duro.
— Combinaremos por telefone as próximas visitas.
— Mas, já que estamos aqui, posso visitá-los
amanhã? — falei, levantando-me também.
— Não vejo problema.
Aproximei-me dela mais uma vez, fitando seus olhos
com sinceridade.
— Não menti quando disse que faria de tudo pelo seu
perdão e nem quando eu disse mais cedo que minha vida
não existe sem vocês.
Na porta, dei um beijo leve em seus lábios, Maria
Clara não recuou. Desci as escadas sorrindo, passando a
mão pelo pequeno corte que ela tinha feito em minha boca
instantes antes.
Mais do que nunca, eu lutaria por eles. Faria qualquer
coisa. Maria Clara e Samuel eram minha família, minha vida.
TRINTA E NOVE
JOSÉ AUGUSTO
Eu estava voltando para a Fazenda Vale Verde com
meu filho no banco de trás, sentado no assento de
elevação, e Maria Clara ao meu lado. Na noite anterior,
depois de retornar do jantar na casa deles, fiquei acordado
por mais algumas horas. A agitação era tanta que o sono
simplesmente não vinha. Ouvi quando Levi chegou em casa
e corri para contar as novidades ao meu amigo.
Foi ele que sugeriu passarmos o dia na fazenda.
Assim, eu poderia aproveitar mais algumas horas ao lado da
minha família. Eu não me sentia tão feliz há muito tempo.
— Olha, o tio Levi — disse Samuel quando desliguei o
carro em frente à casa principal da fazenda.
Desci do veículo, ajudei Maria Clara e depois, o meu
filho.
— A minha família favorita — disse Levi ao
cumprimentar Maria Clara e Samuel.
O senhor Jaime, que estava sentado em um banco na
varanda, se aproximou de nós.
— Quem diria que você encontraria seu filho aqui —
comentou. — Estou feliz por você, José Augusto. O menino é
um bom garoto.
— Eu estou realmente muito feliz por tê-los
encontrado.
— Posso falar com você a sós? — pediu o homem. —
O Levi pode levar a sua família até a cozinha. A governanta
deixou uma cesta para vocês levarem para o passeio.
— Vamos lá? — chamou Levi, pegando na mão do
meu filho que aceitou o convite. Maria Clara me olhou em
dúvida, mas seguiu os dois para dentro da casa.
— A sua mãe ligou quando você saiu para buscá-los
— avisou Jaime.
— Você não contou a ela sobre eles, contou? — O
desespero brotou em meu peito ao imaginar que dona
Cassandra já soubesse sobre eles. Não que eu não pudesse
defendê-los, só não queria tirar a paz de Maria Clara.
— Não contei. Levi me colocou a par da situação.
Contudo, preciso te avisar...
— Avisar o quê?
— A sua mãe parece desconfiada de que algo está
acontecendo. Ela não disse nada claramente, mas sugeriu
que o seu tempo aqui estava se prolongando demais e que
isso devia estar atrelado a algum rabo de saia.
— Faz duas semanas que eu estou aqui. Tinha dito a
ela que ficaria apenas uma...
— Não vai poder esconder eles para sempre. Uma
hora, sua mãe vai saber da sua família.
— Eu sei disso. Mas preciso pensar em algo que os
mantenha seguros e em paz. Não posso voltar para a vida
deles para roubar o que tinham.
— Você vai conseguir cuidar deles. Eu tenho certeza
disso — falou, batendo a mão de leve em meu ombro.
— Tudo certo por aqui? — indagou Levi ao voltar até
nós junto com a minha família.
— Tudo em paz — disse Jaime.
— Vamos? — Levantei minha mão para que Samuel a
segurasse. Seus dedos pequenos se agarraram aos meus. —
Vamos estar naquele ponto do rio que você me indicou —
falei, me direcionando a Levi.
Peguei a alça da cesta de vime, que estava pesada
para um piquenique de apenas três pessoas, e seguimos em
direção à trilha que levava ao rio.
— A governanta foi gentil em preparar tudo isso —
comentou Maria Clara.
— Pelo peso, ela deve ter pensado que ficaríamos
uma semana no rio — brinquei.
Caminhamos lado a lado pela trilha coberta de
pedregulhos que rangiam sob nossos passos. Samuel parou
algumas vezes para nos mostrar o que despertava sua
curiosidade, fosse um inseto desconhecido ou uma planta
que parecia nova para ele.
Era um privilégio estar presente para vê-lo
explorando o mundo daquela maneira. Sorri ao perceber o
quanto estar com eles me fazia bem. Mesmo que pudesse
estar cansado de caminhar, ele recusou ser carregado,
determinado a continuar suas descobertas ao longo do
trajeto.
— É aqui? — Maria Clara perguntou.
— Sim — confirmei.
Escolhi uma árvore de tronco largo e galhos
compridos, repletos de folhas verdes. Debaixo dela, estendi
a manta quadriculada que havia na cesta. Samuel sentou-se
na beirada da manta e começou a tirar o tênis. Apesar da
dificuldade, conseguiu fazê-lo sozinho.
— Eu quero ir ali, mãe. — Ele puxou a barra de sua
calça para cima e apontou para o rio.
— Venha até aqui, vamos trocar essa calça por um
short. — Ele andou até ela.
— Agora sim, você está pronto — comentei, depois
que ele terminou de trocar de roupa.
— Você vem, pai? — Ele levantou seu braço e
estendeu a pequena mão em minha direção.
Ainda não tinha me acostumado a ouvir a palavra
"pai". Toda vez, meu coração parecia crescer dentro do
peito.
— Claro, mas vamos ficar no raso, naquela beirada
ali — disse, apontando para o local onde o rio estava mais
tranquilo. — Não é seguro ir muito fundo.
Samuel balançou a cabeça, concordando.
— Eu vou deixar você brincar na água com o seu pai
— disse Maria Clara.
— Vem também, mãe. — Ele ergueu o outro braço,
chamando-a.
— Eu não trouxe roupa para isso, filho. Esse vestido
que estou usando não pode ser molhado.
Maria Clara estava com o mesmo vestido da noite
anterior. Eu sabia o que ela queria dizer, o tecido branco
ficaria transparente, e eu nem podia pensar naquilo. Desviei
o olhar de seu corpo curvilíneo e fixei os olhos na água do
outro lado.
— Tudo bem, filho. Eu cuido de você — falei.
Ficamos à sombra de algumas árvores na margem do
rio. Samuel sentou-se sobre as pedras no fundo, bateu as
palmas das mãos contra a água e se divertiu com as folhas
secas que desciam pela correnteza. Ele estava alegre,
divertindo-se com tão pouco. Vê-lo feliz me lembrava da
minha própria infância, de como meu pai também me
proporcionava momentos como aquele. Eu tinha dinheiro e
muitas facilidades na capital, porém nada me deixava tão
leve e tranquilo como aquilo que eu estava vivendo.
Apesar de estar apenas duas semanas longe da
minha antiga vida, sabia que era aquela, a que acontecia
bem à minha frente, que eu queria viver pelo resto dos
meus dias.
— Vamos sair agora e comer alguma coisa?
Samuel interrompeu a brincadeira e olhou para mim,
aceitando deixar a água. Peguei-o em meu colo e o levei até
a manta, onde sua mãe estava nos observando.
— Vamos colocar uma roupa seca — disse ela,
estendendo os braços para pegar o nosso filho.
Eu estava de bermuda, tinha molhado apenas os pés,
não me preocupei em me secar.
Depois de trocar nosso filho, Maria Clara começou a
arrumar os potes com comida sobre a manta. Eu a ajudei
com as garrafas de suco e café.
— Eu quero aquele, mãe — pediu Samuel, apontando
para uma torta salgada.
Servi o suco de laranja em um copo de plástico com
tampa e bico e o entreguei nas mãos do meu filho. Ele
agradeceu antes de começar a beber o suco. Maria Clara
estava criando nosso filho muito bem, e eu desejava passar
a ajudá-la.
Enquanto fazíamos nossa refeição, os pássaros
acomodados em seus ninhos próximos cantavam. O rio
corria ao lado, produzindo um som relaxante, e, de vez em
quando, a luz do sol atravessava os pequenos espaços entre
os galhos e folhas, tocando nossa pele.
— Eu estou com sono, mãe — disse Samuel, após
terminar de comer e limpar-se com o guardanapo.
— Com o tanto que você brincou na água, não me
admira. — Sorriu, passando os dedos pelos fios do cabelo do
nosso filho.
— Eu vou guardar essas coisas de volta na cesta e
podemos descansar um pouco — sugeri.
Havia um leve declive onde estávamos, o que
favorecia o descanso ali mesmo. Assim que me acomodei
sobre a manta, ofereci o ombro para que Samuel se
deitasse, e ele o fez.
— Você pode deitar do outro lado, mãe — disse
Samuel.
— Eu estou bem, querido.
— Acho que ele está certo, Maria Clara, vai ser mais
confortável para você.
Eu queria que ela ficasse confortável, mas também a
desejava em meus braços mais uma vez.
— Tudo bem, eu vou me deitar do outro lado, porém
não vou dormir. Só quero descansar um pouco.
O corpo de Maria Clara se juntou ao meu, pude sentir
o calor da sua pele, seu perfume suave e os seios que foram
espremidos pela proximidade.
— Você não pode sair daqui, Samuel. Nada de ir ao
rio sozinho. É muito perigoso.
— Eu não vou, mãe — disse ele, sonolento.
— De qualquer forma, eu não vou dormir. Vou vigiar
vocês dois.
— Nós dois? — indaguei.
— Ele dormiu — ela disse baixo, fazendo sinal para
que eu ficasse quieto. E foi o que eu fiz, deixando os sons
da natureza à nossa volta nos fazer companhia.

Em algum momento, eu tinha pegado no sono,


provavelmente pelo cansaço da noite anterior. Maria Clara
se manteve desperta, um dos meus braços circulava a sua
cintura e o outro protegia o corpo do nosso filho que ainda
descansava.
— Acho melhor a gente acordar ele, não quero que
fique sem sono à noite.
Maria Clara levantou a cabeça que estava apoiada
em meu ombro e inclinou-se sobre meu peito, chamando
nosso filho. Seus seios roçaram no meu tronco, trazendo
lembranças do passado à tona. Não era seguro tê-la tão
perto de mim.
— Deixe que eu faço isso — avisei. Levantando meu
braço livre devagar e afastando-a.
— Filho, acorde. — Samuel abriu os olhos azuis
lentamente.
O som dos cascos de um cavalo se aproximando
chamou nossa atenção. Maria Clara se levantou da manta,
esticando-se para olhar atrás da árvore.
— Trovão! — Samuel disse, levantando-se em um
pulo.
— Não sei se o trovão, filho, ainda não consigo ver
direito — Maria Clara falou.
— É ele — garantiu nosso filho.
Levi apareceu ao nosso lado, montado no cavalo de
pelo preto e reluzente.
— Eu disse que era o trovão — comemorou Samuel.
— Vim buscar esse menino para almoçar, já passou
da hora. Depois, vamos dar uma volta pela fazenda. O que
me diz, Samuel? Quer ir almoçar?
— E a minha mãe e o meu pai?
— Eles têm comida aí nessa cesta. Vão ficar bem.
— Depois, vamos andar no Trovão?
— Pelo tempo que quiser — respondeu Levi.
— Eu vou. — Estendeu os bracinhos na direção do
cavalo. Levantei-me rapidamente para ajudar meu filho, que
adorava a companhia do tio Levi e do cavalo Trovão.
— Não sei se isso é uma boa ideia, talvez seja hora
de voltarmos para casa — disse Maria Clara.
— É cedo ainda, mãe. Eu quero almoçar com o tio
Levi e andar no Trovão.
— Deixe o menino se divertir, Maria. Ele não tem isso
naquele quintal de oito metros quadrados da sua casa.
— É um quintal pequeno, mas é seguro — ela
rebateu.
— Aqui também é — falou Levi. — O Samuel nunca
se machucou enquanto eu cuidava dele.
— Tem razão — ela cedeu. — Não foi o que eu quis
dizer.
— Eu sei que não. Estava te atormentando. — Riu
ele.
— Fique com o tio Levi — eu disse, ajudando meu
filho a montar na sela adaptada. — Nós nos encontramos
mais tarde, combinado?
Samuel balançou a cabeça, confirmando, empolgado.
— Não dê muito trabalho ao Levi — recomendou
Maria Clara.
— Deixe o menino. Se ele não der trabalho, não
estará sendo criança — disse Levi, antes de incitar o cavalo
a andar novamente.
Vimos nosso filho sair sorrindo, cavalgando com Levi
sobre o Trovão. Meu amigo parecia realmente feliz por
cuidar do nosso filho, mas eu sabia que ele havia tido
aquela ideia para me dar um tempo com Maria Clara. Mais
tarde, eu o agradeceria.
— Falando em segurança, casa... — começou Maria
Clara. — O dinheiro que foi depositado na minha conta é
absurdo, José Augusto.
— Foram cinco anos sem ajudar. Não é absurdo, é
apenas justo.
— Eu vou manter o dinheiro na conta por enquanto.
Estamos bem, vou usar quando for necessário.
— Administre como achar melhor. Esse dinheiro é de
vocês.
— Tudo bem, então. Obrigada.
Maria Clara olhou para as águas do rio que corriam
ao nosso lado.
— Você já sabe quando vai voltar para a sua casa?
— Eu... andei pensando muito sobre isso desde que
soube do Samuel. Só tenho mais duas semanas de férias e
não vejo sentido em partir.
— Mas e a sua vida? Sua carreira... sua casa...
Andei até Maria Clara e seus olhos se encontraram
com os meus. Minha mão subiu até a curva do seu pescoço,
sua pele estava quente.
— Você ainda não entendeu, Maria Clara? — disse
baixo. — Não tem vida sem vocês dois.
Sua cabeça se inclinou suavemente para o lado,
quase encostando na minha, e sua respiração quente tocou
meu rosto. Meus lábios roçaram os seus com lentidão,
explorando-os. Ela soltou um gemido baixo, e minha língua
invadiu sua boca, saboreando cada canto.
Minha mão, que estava em seu pescoço, deslizou até
a sua nuca, enquanto a outra percorreu suas costas,
alcançando sua bunda, apertando-a com força, trazendo seu
corpo para junto do meu.
Enrosquei uma mecha de seus cabelos em meus
dedos, puxando-a para baixo, liberando seu pescoço. Minha
língua desceu, saboreando sua pele, até chegar aos seios.
Rapidamente, posicionei minhas mãos em sua cintura,
impulsionando-a para cima. Maria Clara envolveu meu
quadril com as suas pernas, e eu a carreguei até o tronco da
árvore que nos protegia do sol.
De novo, senti o gosto da sua pele, puxei seu vestido
para baixo e faminto, chupei seus seios redondos,
mordendo os bicos duros enquanto gemidos baixos
escapavam da garganta de Maria Clara.
— Eu senti tanto a sua falta, amor — falei, quase sem
fôlego.
Maria Clara trouxe minha cabeça novamente para
cima, atacando minha boca com desespero até que meu
celular tocou em meu bolso, nos chamando de volta à
realidade.
Devagar, coloquei-a no chão. Maria Clara arrumou o
seu vestido novamente, depois passou as mãos pelos fios
de cabelos bagunçados.
— Pode ser o Levi — falei, tirando o celular do bolso.
Era o nome da minha mãe que aparecia na tela do
telefone. Encerrei a chamada e devolvi o celular ao bolso da
bermuda. Levantei a cabeça e olhei para Maria Clara, era
evidente sua preocupação. Dei um passo à frente, fazendo
seu corpo colar ao meu novamente. Minhas mãos se
juntaram com cuidado ao redor de seu pescoço e ergui sua
cabeça para que seus olhos encontrassem os meus.
— Ainda não sei como vou resolver tudo isso, mas
vou. Prometo cuidar de vocês dois. Dessa vez, nada do que
ela diga ou faça vai nos separar.
Maria Clara assentiu, mas ainda havia temor em seus
olhos.
— Podemos voltar agora? Vamos ver como o nosso
filho está.
— Podemos sim — concordei, deixando um beijo leve
em seus lábios.
QUARENTA
JOSÉ AUGUSTO
O sábado tinha sido incrível, e no domingo,
combinamos de nos encontrar à noite para jantar na casa
da bisa. A senhora me recebeu com simpatia, mas eu sentia
seu olhar atento, analisando cada coisa que eu fazia ou
dizia. Sabendo o quanto ela havia cuidado de Maria Clara e
do meu filho, me senti verdadeiramente grato por sua
proteção com eles.
— Vou pegar a sobremesa para você — avisou a
senhora, levantando-se para pegar uma travessa na
geladeira.
— A minha mãe não faz sobremesa todo dia, bisa —
denunciou Samuel, arrancando risadas da senhora e de
Maria Clara.
— Você sabe que a sua mãe trabalha muito.
Agradeça por ela fazer comida todos os dias para você.
— Obrigado por fazer comida, mãe — disse ele,
aceitando em seguida um prato pequeno com a sobremesa
oferecida.
— Por nada, filho — respondeu ela. — Agradeça à sua
bisa também. Ela preparou esse jantar delicioso para nós.
— Obrigado, bisa — falou, depois de engolir o
primeiro bocado do doce de chocolate.
Maria Clara e eu terminamos a refeição, e também
agradecemos à senhora que juntava a louça suja na pia de
inox.
— Pode deixar que eu vou lavar a louça, bisa.
— Na verdade, prefiro que o José Augusto me ajude.
Você e o Samuel podem ir assistir televisão na sala. Você
me ajuda, José Augusto? — ela perguntou, encarando-me.
— É claro — confirmei.
— Coloque o volume bem alto — recomendou a
senhora.
Dona Benedita começou a lavar a louça e, uma a
uma, me entregava para que eu secasse com um pano de
prato branco e colocasse sobre a mesa limpa.
— Você já sabe que eu cuido dos dois — ela iniciou,
entregando-me mais um prato molhado.
— Sim, senhora.
— São como minha própria família, por isso, vou te
avisar. — Ela parou e me encarou, apontando o dedo. — Não
os magoe.
— Não é minha intenção, eu juro.
Aquela senhora, de aparência frágil, falava com
convicção. Não se tratava de uma ameaça vazia, ela estava
me dando um recado sério. Admirei-a ainda mais por aquilo.
— Eu vi como ela chegou aqui desolada. Sozinha. E
quando descobriu que seria mãe... ela ficou assustada, mas
nunca, em nenhum momento, ela rejeitou o filho. Ela passou
madrugadas em claro, dias em filas de hospitais, estudando
e trabalhando muito, correndo atrás de um futuro melhor
para ela e para o menino.
— Tenho certeza de que ela foi dedicada e que nada
foi fácil.
— Agora, o menino está maior, mas ainda é criança,
e criança dá trabalho. Não é só passeio em fazenda.
— Sei disso. E estou preparado para o que for —
garanti.
— Você vai conseguir o perdão dela.
— Eu espero que sim. Estou lutando para isso.
— Ela ainda te ama, conheço a Maria Clara. Mas... —
A senhora ainda me encarava. — É bom não a machucar de
novo.
— Não vai acontecer.
Dona Benedita voltou a lavar a louça, entregando-me
um copo molhado para que eu o secasse.
— Quais são seus planos agora? — perguntou.
— Vou pedir demissão amanhã e procurar uma
propriedade na cidade. Posso me dar ao luxo de pensar na
minha carreira com calma. Ainda não sei se vou abrir um
escritório ou comprar uma fazenda e realizar um sonho
antigo.
— É mais fácil tomar decisões quando se tem
dinheiro e tempo para pensar.
— É sim. A única coisa de que não posso abrir mão...
são eles.
— Que bom que tivemos essa conversa. Vou dormir
mais tranquila essa noite. Confio no que me disse.
— Fique tranquila, farei tudo por eles.
— Está tudo bem por aqui? — Maria Clara apareceu
na porta da cozinha. Suas bochechas estavam vermelhas
por conta da noite quente. Ela ficava mais linda a cada dia
que passava.
— Sim. Terminamos a louça — avisou a senhora.
— Como está o Samuel? — perguntei.
— Adormeceu. Vim avisar que estamos indo para
casa.
— Podemos nos ver amanhã? — pedi.
— Venha jantar conosco às oito da noite.
— Estarei lá.
Na sala, nosso menino dormia tranquilamente,
agarrado a uma das almofadas com bordado vermelho, da
mesma cor do tecido do sofá.
— Posso levá-lo até sua casa?
Maria Clara pareceu pensar um pouco antes de
aceitar. Peguei Samuel com cuidado, mesmo assim, ele
começou a acordar.
— Pai?
— Sim, sou eu, filho. Vou te levar para casa — avisei.
Ele se aninhou em meu colo. Despedi-me da dona
Benedita e segui Maria Clara em direção à sua casa que era
ao lado. No quarto de Samuel, devagar, coloquei-o sobre a
cama. Saímos do quarto do nosso filho, deixando a porta
entreaberta.
— Eu te acompanho — avisou Maria Clara.
Desci o degrau em frente à porta de entrada, Maria
Clara ficou quase da minha altura. Seus olhos refletiam
indecisão, eu sabia que parte dela queria continuar o que
tínhamos começado no dia anterior, e a outra parte ainda
tinha medo.
— Boa noite — desejei, deixando um beijo leve em
seus lábios.
Estava prestes a me afastar, contudo, minha camisa
foi puxada e me mantive no mesmo lugar. Os braços finos
de Maria Clara envolveram meu pescoço, e seus lábios
encontraram os meus. Uma das minhas mãos se firmou em
sua cintura, enquanto a outra repousou em sua nuca. O
beijo nos roubou o ar, fazendo o mundo ao redor
desaparecer. Eu não conseguia mensurar o quanto a
desejava.
— Até amanhã — ela disse, ofegante.
— Vou passar o dia ansioso.
Ela me deu um beijo rápido antes de se afastar e
começar a fechar a porta. Desci a escada já certo de que
teria dificuldades para dormir novamente. Talvez minha paz
só fosse devolvida quando eu pudesse adormecer e
despertar com a mulher da minha vida em meus braços
novamente.

Depois de trabalhar durante toda a manhã ao lado do


gerente da Fazenda Vale Verde, com quem eu estava
aprendendo muito, almocei na companhia do Levi e do seu
pai. Depois, fomos descansar um pouco na varanda da
frente.
— Vai mesmo pedir demissão do escritório na
capital? — perguntou Levi, sentado no banco de madeira ao
lado do seu pai.
— Já pedi. Foi a primeira coisa que fiz pela manhã.
Terei que voltar à capital para resolver algumas pendências
e arrumar minha mudança daqui a duas semanas, quando
meu período de férias acabar, porém não ficarei lá mais que
o necessário.
— Está mesmo decidido — comentou Jaime.
— Sim. Agora à tarde, vou até a cidade, achei o
endereço de uma imobiliária, quero começar a procurar um
imóvel.
— Só tem uma na cidade, se não achar nada com
eles, vai ser difícil — disse Levi.
— Eu queria alguma coisa por aqui mesmo, afastado
da cidade.
Meu telefone começou a tocar e, ao tirá-lo do bolso,
vi que era minha mãe. Eu havia mandado mensagens para
ela no sábado e no domingo, mas fazia um tempo que não
atendia suas ligações. Encerrei a chamada e guardei o
aparelho de volta no bolso.
— Eu vou subir para tomar um banho e ir à cidade —
falei, encerrando mais uma chamada e ativando o modo
silencioso.
No quarto que eu ocupava, deixei o telefone sobre a
cama e segui para o banheiro. Retirei as roupas e entrei no
chuveiro. Não demorei no banho, ainda assim, quando
retornei, havia mais de dez chamadas perdidas de dona
Cassandra.
Sequei-me e vesti uma roupa limpa. Passei os dedos
pelos cabelos molhados e peguei minha carteira e a chave
do carro. O telefone continuava a tocar. Ela nunca tinha sido
tão insistente antes.
Respirei fundo e atendi a sua ligação.
— Finalmente, José Augusto. Pensei que não iria me
atender mais. O que está fazendo que não tem tempo para
falar com a sua mãe?
— Estou de férias, mãe. Lembra-se?
— E é sobre isso que eu quero falar.
— Vai me recomendar passeios turísticos? — zombei.
— A Tamara acabou de me ligar e me contou que
você pediu demissão essa manhã. O que deu em você, José
Augusto?
— Ainda fala com a Tamara?
— É claro. Ela é um doce, mesmo não sendo minha
filha e estando casada, tem mais tempo para mim do que
você.
Bufei.
— Sim. Eu pedi demissão.
— Como assim? Você estava bem e, do nada...
— Mãe — chamei sua atenção. — Essa é uma decisão
que cabe somente a mim. Eu passei anos fazendo algo de
que não gostava, acomodado, mas agora vou viver de
acordo com o que eu realmente quero.
— Em Nova Esperança? — Riu ela. — Você não está
pensando direito.
— Nunca estive tão lúcido, mãe. Vou reconstruir
minha vida aqui. Não pretendo voltar a morar na capital.
— Sabe que eu nunca vou colocar meus pés nesse
fim de mundo.
— Eu imaginei isso e, sinceramente, acho melhor
assim. Sua vida sempre foi na Fazenda Azevedo, e a minha,
bem longe. É a partir daqui que seguiremos caminhos
separados.
— Vai me abandonar? Depois do quanto eu me
sacrifiquei por você?
— Nossas vidas nunca seguiram o mesmo caminho,
mãe, e agora, mais do que nunca, devemos apenas... seguir
em frente.
— Seu ingrato! Eu nunca imaginei que ouviria coisas
tão horríveis logo de você, José Augusto.
— Tenha uma boa vida, mãe.
Encerrei a ligação. Se a insistência dela em me
procurar e tentar me fazer mudar de ideia continuasse, eu
não pensaria duas vezes em bloquear seu número e cortar o
contato por completo. Não a queria mais em minha vida
depois de descobrir tudo o que ela havia feito, e não podia
sequer cogitar a ideia de ver minha família em perigo.
Desci as escadas e, saindo da casa, despedi-me de
Levi e Jaime. Coloquei o endereço da imobiliária no GPS e
segui rumo à cidade. Torci para encontrar uma propriedade
que acomodasse Samuel e Maria Clara tranquilamente, um
lugar de que eles gostassem e que pudesse ser um lar para
nós.
QUARENTA E UM
MARIA CLARA
Na segunda-feira à noite, José Augusto me contou
que tinha rompido com a mãe. Ela não aceitou a sua
decisão de sair do escritório onde trabalhava na capital e
começar uma nova vida naquela cidade, e mesmo com José
Augusto me garantindo que Cassandra não sabia sobre nós,
algo dentro de mim não me permitia ficar completamente
em paz.
José Augusto também nos contou que estava vendo
algumas propriedades na redondeza e que pretendia
comprar uma delas nos próximos dias.
Durante nossos encontros naquela semana, trocamos
beijos e carícias íntimas, sempre depois que nosso filho
adormecia em seu quarto, mas eu ainda não havia
conseguido me entregar por completo novamente, eu tinha
medo daquele ser um caminho sem volta. Sabia que, depois
que estivesse mais uma vez em seus braços, não
conseguiria recuar.
Era uma briga interna todas às vezes. Eu o queria
tanto, mas ainda tinha medo. Em algum momento, um dos
lados teria que vencer.
Estava saindo da escola, depois de encerrar o
expediente em mais uma sexta-feira, quando recebi a
notificação de uma nova mensagem em meu celular. Era o
homem que dominava meus pensamentos.
Me desculpe avisar em cima da hora, mas não
poderei ir jantar com vocês hoje. Mais tarde, eu ligo para o
Samuel e falo com ele. Estou planejando uma surpresa para
vocês.
Digitei uma mensagem rápida e enviei.
Não sei se gosto de surpresas.
Vi que ele digitava outra mensagem, esperei,
ansiosa.
Vai gostar dessa. Amanhã, vocês vão jantar em
nossa nova casa. Foi difícil manter o segredo enquanto eu
preparava tudo, finalmente vou poder mostrar a vocês.
Traga uma mala de roupas para passarem o final de semana
ou, se preferir, a mudança toda...
José Augusto tinha falado em morar em Nova
Esperança e recomeçar a vida na cidade, porém tive minhas
dúvidas a respeito, pelo menos até aquele momento.
Vou pensar na sua proposta, sobre o final de
semana, é claro.
Guardei o celular na bolsa e só fui verificá-lo
novamente depois de buscar meu filho e chegarmos em
casa. Havia mais uma mensagem de José Augusto.
Nos vemos amanhã, às dezoito horas.
Notei que estava sorrindo, e eu gostava daquilo.
— Aonde estamos indo, pai? — perguntou Samuel
enquanto José Augusto o colocava no assento elevado no
banco de trás da picape.
— É uma surpresa. Você vai ver logo. Não é longe
daqui.
José Augusto me ajudou a subir e sentar-me no
banco ao lado do seu. Apertei os dedos sobre meu colo, não
sabia o porquê de me sentir tão ansiosa naquele momento.
José Augusto se colocou atrás do volante e, com o novo
endereço no GPS, ligou o carro, saindo do centro da cidade
em direção a uma das estradas rurais.
A poeira levantava conforme seguíamos, nosso filho
prestava atenção no caminho, chamando nossa atenção
para tudo o que ele via.
Em frente a uma porteira de madeira, que precisava
de alguns reparos, ele parou o carro e então desceu para
abri-la.
Avançamos pela estradinha que levava à única casa
da propriedade. Era uma casa maior do que a que tínhamos
no centro da cidade, com uma varanda grande na frente e
também em uma das laterais. Ainda havia um leve cheiro
das pinturas recentes das paredes amarelas flutuando no ar.
As portas e janelas de madeira eram marrons e o piso em
tons avermelhados.
— Corremos para que a casa estivesse habitável até
hoje. Consegui que terminassem a pintura, também uma
revisão na parte elétrica e na tubulação — explicou.
— Essa é sua casa, pai?
— É, sim, meu filho — José Augusto pegou Samuel no
colo. — É alugada, por enquanto. Se gostarmos de morar
aqui, vou fazer uma oferta ao dono.
— É uma casa bem grande — comentei.
José Augusto entrelaçou seus dedos nos meus, senti
o calor da sua pele na minha. Sem encará-lo, andei junto a
ele até uma cerca de madeira que também estava
precisando de reforma.
— Está vendo aquelas montanhas lá no fundo, filho?
A propriedade vai até lá.
— É longe, né, pai?
— É sim. O pasto precisa ser refeito, o capim está
tomado pelo mato. Essa cerca precisa de reforma, assim
como o curral e o galpão. Se decidirmos ficar com a
propriedade, teremos muito trabalho.
— Eu te ajudo, pai — disse Samuel, empolgado. Dei
risada de sua animação.
— Com certeza, vou precisar de você.
— E da minha mãe?
— Eu sempre vou precisar da sua mãe — ele disse,
virando-se para mim e me fitando com intensidade.
Desviei-me de seus olhos e encarei a imensidão de
terra à nossa frente. O sol estava se pondo, dando a nós um
espetáculo ao se despedir lentamente atrás das montanhas
verdes.
Eu conseguia nos ver ali com facilidade, vivendo
nossos momentos em família, aproveitando uma refeição
saborosa na varanda e correndo pelo quintal atrás do nosso
filho. Era fácil sonhar com a vida que eu queria, difícil era
fechar os olhos e me entregar mais uma vez, por mais que
eu quisesse.
— Vamos entrar, vou mostrar o quarto de vocês —
disse José Augusto.
Dentro da casa, as paredes foram pintadas da
mesma cor. Os móveis eram novos, mas não havia objetos
decorativos. Nenhum tapete, almofadas, quadros ou
qualquer coisa semelhante. Eu entendia que aquilo se devia
à pressa para ter a casa pronta para morar.
— Você pode decorar a casa como achar melhor,
quero que fiquem à vontade, que vejam essa casa como de
vocês — disse José Augusto.
No corredor central, o primeiro quarto era do nosso
filho. Havia uma cama e um guarda-roupa brancos. As
roupas de cama eram amarelas, e ao lado da porta, um baú
de madeira estava aberto, revelando os brinquedos ainda
lacrados.
— Isso é tão legal, pai — disse Samuel, indo
diretamente aos brinquedos.
— Não vamos acostumá-lo a tantos presentes fora de
datas comemorativas. Não queremos um filho mimado —
avisei.
— Estou só dando alguns brinquedos que não pude
dar nos anos em que estive longe. Prometo ser mais
consciente daqui para frente — ele disse, dando um beijo no
canto da minha boca.
— Vou buscar a mochila com as nossas roupas —
avisei.
Aquele homem ia me deixar doida. Não sabia até
quando continuaria resistindo, minhas defesas estavam
cada vez mais enfraquecidas.
Depois que o nosso filho dormiu, assistindo televisão
entre nós dois no sofá da sala, José Augusto o levou para o
seu quarto e o colocou na cama. Deixamos a luz do abajur
acesa, caso ele acordasse durante a noite, não queríamos
que ele se assustasse por estar em um lugar diferente.
— Me acompanha em uma taça de vinho?
Aquela era uma péssima ideia, mesmo assim eu
aceitei.
Sentei-me do lado contrário do sofá, recebendo uma
taça de vinho quando José Augusto retornou da cozinha.
Tomei um gole, saboreando o gosto levemente amargo e
alcoólico.
— Se o seu plano era me deixar bêbada, devia ter
aberto um vinho suave — avisei, colocando a taça sobre a
mesinha ao lado.
— Eu não te quero bêbada. Te quero muito
consciente, Maria Clara.
Minhas pernas foram puxadas em sua direção e meu
corpo foi levado até o seu colo. Sua mão desceu pela
abertura do vestido nas minhas costas, causando arrepios
em minha pele.
— O que achou da propriedade?
— Eu gostei.
— Que tal vir morar aqui comigo?
— Isso é um pedido de casamento? Porque, se for, foi
fraco. — Sorri.
— Meu amor — sua mão afastou uma mecha de
cabelo que caía em meu rosto —, você merece o pedido de
casamento mais elaborado que alguém possa imaginar,
mas, da última vez que eu quis planejar tudo, as coisas não
saíram como eu esperava.
— Está com medo de as coisas darem errado de
novo?
— Não. Mas também não quero perder tempo. Perdi
seis anos.
Inclinei-me sobre ele e beijei seus lábios, sem
demora. Quando sua língua pediu passagem, eu dei. Senti
sua outra mão pressionar minha nuca, meus batimentos
aceleraram... ele se afastou de repente e me fitou
intensamente.
— Casa comigo, Maria Clara? Eu te amo desde o
primeiro momento em que te vi. É você que faz meu
coração bater forte dentro do peito, que me faz sorrir como
um bobo e que me faz verdadeiramente feliz. O que eu sinto
por você, eu nunca senti por ninguém. Você é a mulher da
minha vida.
Fechei os olhos por um instante, respirando devagar.
Era aquele o momento de mergulhar de vez ou sair
correndo. Todo meu corpo pedia por ele e meu coração...
nunca tinha sido de outro.
— Sim — respondi ao abrir os olhos.
Suas mãos se firmaram ao redor de minha cintura e,
com um impulso, José Augusto se levantou do sofá
carregando-me em seu colo. Eu podia sentir seus lábios
sorrindo, colados contra a curva do meu pescoço.
Ele trancou a porta do quarto ao passarmos por ela
e, então, grudou minhas costas na madeira escura. Sua
língua atacou minha boca com desespero, ao mesmo tempo
em que uma de suas mãos brincava com meus seios,
cobertos pelo tecido fino do vestido.
— Eu te amo, Maria Clara — sussurrou ao meu
ouvido.
— Também te amo, José Augusto.
— Sabe quantas noites eu sonhei em te ter
novamente em meus braços? — ele falou, interrompendo os
beijos que distribuía do pescoço até meus seios.
Sua ereção firme era facilmente percebida entre
minhas pernas, rebolei contra, buscando mais contato.
Minhas mãos subiram dos músculos das suas costas até sua
nuca, grudando com força nos fios curtos. Aumentei a
velocidade do rebolado, o forte calor subia do meu baixo
ventre e se espalhava por todo o meu corpo, aumentando
meu desejo.
— Porra! Se continuar se esfregando em mim assim,
não vou conseguir fazer tudo o que eu quero!
José Augusto caminhou, carregando-me em seu colo
até a cama, colocando-me sobre o colchão macio. Sua
língua deslizou do meu pescoço até meus seios, circulando
o meu mamilo e o mordiscando devagar, fazendo ondas de
eletricidade correrem soltas abaixo da minha pele.
O meu vestido foi levantado, ajudei a tirá-lo por
minha cabeça e a peça foi jogada para longe rapidamente.
— Também quero te ver nu — avisei.
José Augusto se afastou e começou a tirar a camiseta
com pressa, retirando também o calçado e as calças com a
cueca boxer. Seu pau duro saltou para fora ao ficar livre da
roupa. Ele estava ainda mais gostoso do que eu me
lembrava.
Seu corpo inclinou-se sobre o meu e sua língua
saboreou minha pele mais uma vez, descendo lentamente
até o meio das minhas pernas, onde ele afastou a calcinha
para o lado e lambeu toda a minha boceta que já estava
molhada. Sua língua faminta invadiu meu canal e depois
subiu até o clitóris, circulando-o.
Empurrei a calcinha para baixo e me livrei da peça.
José Augusto afastou meus tornozelos para que pudesse me
chupar e lamber com mais vontade. Minhas costas se
afastaram do lençol ao sentir o prazer que recebia. A
sensibilidade causada pelos seus movimentos com a língua
me fazia ter vontade de me entregar e correr daquilo ao
mesmo tempo.
Os arrepios aumentaram, me levando para perto da
insanidade. Enfiei os dedos em seus cabelos e puxei os fios
com força quando uma onda de prazer maior me dominou,
fazendo-me arfar sobre o colchão.
Meus gemidos ecoavam pelo quarto e o prazer corria
por baixo da minha pele ao gozar na boca do homem da
minha vida. Sua cabeça se levantou entre as minhas
pernas, mostrando-me um sorriso largo e malicioso.
— Seu gosto é ainda melhor do que eu me lembrava.
— Eu não tive tempo de fazer o mesmo naquela
época, então acho que não devo perder a oportunidade.
— Porra! Eu vou adorar isso. — Ele sorriu ainda mais.
José Augusto se pôs em pé ao lado. Andei de quatro
até ele. Devagar, passei os dedos pelo seu pau que latejou
em minhas mãos, mostrando as veias saltadas com mais
força.
Deslizei minha língua por toda a extensão e então
engoli a cabeça, descendo até o fundo da minha garganta.
Era impossível colocá-lo por completo na boca, mas a
excitação em meu corpo fazia com que eu o levasse até o
meu limite.
Os dedos da mão direita de José Augusto se
enrolaram em meus cabelos, senti um puxão leve, porém,
continuei a chupá-lo. Vi sua cabeça tombar para trás, ele
estava tomado pelo prazer.
— Vamos parar agora ou eu vou acabar enchendo a
sua boca de porra — avisou ele.
— Eu não me importo. — Meus cabelos foram
puxados novamente, com mais força daquela vez.
— Na próxima, com certeza vou querer isso, mas
agora, eu quero gozar dentro de você, amor.
José Augusto voltou a colocar-me sobre a cama,
lambendo e mordiscando meus seios. Uma de suas mãos
desceu até o meio das minhas pernas, encontrando minha
boceta molhada. Dois dos seus dedos entraram no meu
canal e, logo depois, ele os tirou, colocando seu pau no
lugar, me fazendo gemer de prazer.
Sua boca brincava, indo do meu pescoço até meus
seios, enquanto arremetia contra mim. Abri ainda mais as
pernas, deixando que me preenchesse por completo. O suor
escorria de sua testa até o pescoço, brilhando sob a luz
amarela do quarto. Seus movimentos se tornaram mais
ritmados e o som de nossos corpos se consumindo ecoou ao
redor, junto aos nossos gemidos carregados de prazer.
Minhas unhas arranharam sua pele quando um urro
passou por sua garganta no momento em que ele gozou
dentro de mim.
José Augusto deitou-se ao lado, no colchão, e puxou
o meu corpo para si. Minha cabeça descansou em seu
ombro e minha perna circulou seu quadril.
— Nunca mais vamos nos separar — disse ele,
beijando o topo da minha cabeça.
Minhas defesas haviam cedido, tudo o que eu sentia
por ele estava ali, batendo forte contra o meu peito e me
lembrando que eu nunca o tinha superado. Eu amava José
Augusto e, novamente, estava me entregando a ele.
Fechando os olhos, pedi que daquela vez fosse diferente,
que pudéssemos ser felizes juntos, finalmente.
QUARENTA E DOIS
JOSÉ AUGUSTO
O rosto de Maria Clara estava deitado em meu peito
e seus longos cabelos ondulados, sobre o travesseiro ao
lado. Ela dormia tranquilamente, com a mão em meu
quadril. Meu braço estava ao redor de sua cintura,
mantendo seu corpo junto ao meu. Aquela era a visão que
eu queria ter em todas as manhãs pelo resto da minha vida:
minha mulher com seu corpo junto ao meu.
A luz do sol entrava pela fresta das cortinas que
cobriam a janela e alcançava parte dos nossos corpos sobre
a cama. Ter a minha Clara de volta era uma sensação que
eu não podia descrever. Ela era a mulher da minha vida,
nunca consegui esquecê-la, nem quando acreditei que tinha
sido enganado por ela.
— Precisamos mesmo levantar? — resmungou Maria
Clara.
— Você não precisa. Eu preparo o café da manhã e
trago aqui para você.
— Café na cama? — Ela levantou a cabeça para me
olhar nos olhos, seus cabelos bagunçados estavam ainda
mais bonitos.
— Sim. Vou levantar, preparar o nosso café e ver
como nosso filho está. Volto daqui a pouco, descanse.
Depositei um beijo leve em seus lábios antes de me
levantar da cama, à procura de minhas roupas. Vesti-me
com cuidado, sem fazer barulho, e deixei o quarto com a
porta apenas encostada. Caminhei pelo corredor até o
quarto do nosso filho e, ao espiar lá dentro, encontrei-o
ainda dormindo tranquilamente.
Coloquei a água para esquentar em uma chaleira
sobre a grade do fogão e comecei a preparar uma omelete.
Lembrei-me do meu apartamento na capital, onde eu usava
apenas eletrodomésticos para fazer qualquer coisa em casa.
Não me lembrava da última vez que tinha feito um café
coado ou preparado minha comida. Tudo vinha por
aplicativo, na porta de casa. No entanto, não sentia falta
daquelas facilidades, estava grato por aquela vida parecer
tão distante e, ao mesmo tempo, ter minha família tão
perto.
Meu celular vibrou sobre a mesa onde o havia
deixado. Larguei o que fazia no fogão e peguei o aparelho
para verificar a tela. Era uma mensagem de Levi,
perguntando se estava tudo bem. Decidi responder mais
tarde, para não interromper o preparo da refeição.
Coloquei o café na garrafa térmica e as omeletes em
um prato. Também preparei três sanduíches de frios e o
achocolatado do meu filho. Com cuidado, fui levando o
nosso café da manhã até a mesa da varanda. Nossa
refeição seria com a vista lateral das montanhas ao fundo.
Voltei à cozinha para pegar meu celular que vibrava
novamente sobre a mesa, aproximei-me pensando ser Levi,
impaciente para saber sobre as novidades, porém daquela
vez não era ele. O nome de minha mãe aparecia na tela,
dona Cassandra não tinha entrado em contato desde a
nossa última conversa, onde eu disse que ela deveria seguir
sua vida.
Eu não sabia o que aquilo significava, mas não
deixaria que atrapalhasse meu dia e roubasse a nossa paz.
Desliguei o telefone e o deixei sobre o armário ao lado. Não
precisaria dele nas próximas horas.
Ao retornar ao nosso quarto, encontrei minha mulher
saindo do banheiro. Ela tinha colocado seu vestido de volta
e seus cabelos não estavam mais bagunçados.
— E o café que você prometeu?
— Está na mesa da varanda.
Aproximei-me, enlacei sua cintura e a beijei. Eu
nunca tinha me sentido tão completo, tão feliz e tão
realizado. Faria qualquer coisa para não ter aquilo roubado
de mim outra vez.

— Essa propriedade tem potencial — disse Levi,


levando a garrafa de cerveja à boca. Estávamos na varanda
enquanto o sol se despedia mais uma vez. Era o final da
tarde de domingo, no outro dia, Maria Clara e Samuel
voltariam para a casa deles e eu ainda precisava falar sobre
aquilo com a Clara.
No dia anterior, passeamos pela propriedade, depois
visitamos a bisa na cidade e tivemos tempo para ficarmos
juntos. Doía em mim pensar em levá-los de volta, aquela ali
era a nossa casa.
— Precisa de reformas e uma estruturação para
qualquer que seja sua escolha de atividade nas terras. Não
será rápido ou fácil, mas com dinheiro isso se resolve —
disse Levi.
— Estou ansioso para colocar minhas ideias em
prática, mas antes, preciso ter certeza de que Maria Clara
quer viver aqui. Só então, vou fazer uma oferta. O corretor
disse que o dono pode aceitar vender.
Levi se levantou do banco de madeira perto da porta
de entrada da casa e andou até mim, do outro lado da
mesa. Ele observou ao redor, querendo garantir que
estávamos sozinhos.
— Sua mãe ligou lá em casa hoje de manhã.
— Porra! — reclamei.
— Ela fez umas perguntas estranhas. Parece que está
desconfiada de que você arrumou alguém por aqui.
— A última vez que eu quis trocar a capital pelo
campo foi por conta da Maria Clara. Ela não deve desconfiar
que nos reencontramos, mas desconfia que existe outra
mulher. Ela sempre culpa os outros pelas minhas decisões.
— Você tem falado com a sua mãe?
— Ontem, ela me ligou. Eu mandei uma mensagem
pedindo que não me incomodasse. Avisei que eu não
mudaria de ideia sobre voltar à capital e que ela deveria
seguir a vida dela.
— Isso é uma merda. Não sei se sua mãe vai se
contentar com um “siga sua vida”.
Bebi um gole grande da cerveja em minhas mãos.
— O jantar está pronto. — Clara surgiu na porta nos
convidando a entrar. Ela tinha se oferecido para preparar a
refeição quando Levi chegou para nos visitar.
Meu amigo jantou conosco e ainda passou um tempo
na sala comigo e com o Samuel, conversando e rindo. A
noite estava agradável e cada vez mais eu tinha certeza de
que precisava da minha família comigo.
— Não importa o que você vá fazer nessas terras
quando comprar, conte comigo para o que precisar — disse
Levi, despedindo-se antes de entrar em sua picape. — E
coloque logo um portão automático nessa entrada. Não vou
ficar parando para abrir a porteira toda vez que passar por
ela.
Soltei uma risada e acenei em despedida. Ao meu
lado, Clara acompanhou o gesto, enquanto Samuel,
aconchegado em meu colo, também acenou com sua
mãozinha.
— Agora, você vai escovar os dentes e colocar seu
pijama, mocinho — Clara disse ao nosso filho.
— Está cedo ainda, mãe — reclamou, abrindo a boca
de cansado.
— Sua mãe está certa, filho. Nos distraímos com a
visita do tio Levi. É hora de você ir dormir.
Ajudei Clara a colocar nosso filho na cama, mesmo
ele dizendo que não queria dormir, sua carinha cansada
mostrava que ele precisava. Deixamos a luz do abajur acesa
e a porta do seu quarto aberta.
— Vamos para o nosso quarto, senhora Azevedo? —
sussurrei ao seu ouvido.
— Ainda não nos casamos — lembrou ela.
— Vamos resolver isso em breve.
Levantei Clara do chão, pegando-a em meu colo.
Seus braços circularam meu pescoço e, devagar, seus olhos
castanhos se encontraram com os meus.
— Eu te amo — ela disse. Eu sabia que aquela não
era uma declaração qualquer pela forma como me olhava.
Senti meu coração se estufar dentro do peito. Ali estava ela,
a minha Clara.
— Eu te amo — disse de volta.
Coloquei minha mulher sobre a nossa cama,
demoradamente beijei seu rosto, seus lábios, seu pescoço.
— Você é minha vida, Maria Clara — sussurrei em seu
ouvido.
Voltei a beijar sua boca, aumentando a profundidade
do nosso contato aos poucos, saboreando aquele momento.
— Mãe, pai! — Ouvimos o grito de Samuel.
Pulei da cama no mesmo instante, indo correndo em
direção ao quarto do meu filho. Ele estava assustado,
encolhido sobre o colchão.
— O que houve? — perguntei, pegando-o no colo. Ele
estava com medo.
— Tinha uma mulher na minha janela. Uma mulher
velha e feia.
— Venha aqui — chamou Clara, entrando no quarto
logo atrás de mim. Ela se aproximou e pegou nosso filho no
colo, tentando acalmá-lo.
Andei até a janela que estava fechada, mas com a
cortina aberta. Não vi ninguém do lado de fora, apenas a
escuridão da noite.
— Eu vou verificar todas as portas e janelas mais
uma vez — avisei antes de sair do quarto.
Samuel devia estar tendo um pesadelo, talvez
impressionado com alguma coisa que viu na televisão, mas
eu não ficaria em paz se não conferisse todas as fechaduras
novamente. Eu tinha contratado um sistema de segurança e
vigilância para a propriedade, porém, como o serviço não
era da cidade, demoraria alguns dias para que eles viessem
instalar. Não achava que naquele lugar, distante e tranquilo,
precisaríamos nos preocupar tanto, entretanto, ao menor
sinal de que minha família podia estar em perigo,
preocupei-me.
— Não tem ninguém lá fora, filho, e mesmo se
tivesse, está tudo fechado. Estamos seguros aqui — avisei
ao retornar até eles. Estendi os braços para que ele voltasse
ao meu colo. Sua cabeça grudou no meu ombro,
escondendo-se.
— Eu vi ela. A mulher feia colocou a mão na janela e
ficou me olhando.
Passei a mão de leve em suas costas, tentando
acalmá-lo.
— Posso dormir com vocês?
Olhei para Clara, ela parecia preocupada com nosso
filho. Sentei-me em uma poltrona ao lado, mantendo-o em
meu colo, mas afastando seu rosto devagar para que ele me
enxergasse.
— Nós estamos seguros aqui. Acho que você
adormeceu e teve um sonho ruim, mas os sonhos não
podem nos machucar.
— Não era um sonho, pai. Eu escutei um barulho,
abri os olhos e ela estava lá. — Apontou o dedo na direção
da janela.
— Querido, o importante é que você está seguro aqui
— disse Clara, abaixando-se ao lado e segurando a mão do
nosso filho. — Mas, para você ficar tranquilo essa noite,
pode dormir conosco. Só hoje. Amanhã vamos sair lá fora e
te mostrar que não tem ninguém aqui além de nós. Está
bem?
Ele balançou a cabeça devagar, aceitando.
Voltamos ao quarto, Clara preparou os travesseiros e
a manta. Acomodamos nosso filho ao meio. Aos poucos, ele
foi se sentindo mais calmo até adormecer, com cada uma
de suas mãos agarradas aos nossos dedos.
— Ele nunca pareceu tão assustado — disse ela,
baixinho.
— Deve ter sido um pesadelo.
— Vamos tentar dormir também. Amanhã precisamos
acordar cedo, não posso perder a hora no trabalho.
Inclinei-me e dei um beijo rápido em seus lábios.
— Boa noite, meu amor — falei, retornando à minha
posição na cama.

Depois do susto da noite anterior, conseguimos


dormir por algumas horas. Samuel não voltou a ter
pesadelos. Pela manhã, acordei com minha família
parecendo tranquila ao meu lado. Levantei-me e preparei o
café para eles e, quando o celular acionou o despertador, a
refeição estava pronta.
Depois de nos alimentarmos na mesa da cozinha,
Clara pegou sua mochila no quarto e levou até o carro, e eu
me aproximei do nosso filho, que levava seu copo de
achocolatado vazio até a pia.
— Você está bem, filho? Conseguiu dormir?
— A mulher na janela não voltou — disse ele.
— Quer ir lá fora? Posso te mostrar que não tem
nenhuma mulher. Essa terra é apenas nossa.
Ofereci a mão, que foi aceita por ele. Caminhamos
juntos até a varanda e depois, circulando a casa, paramos
em frente à sua janela. Estremeci por dentro ao notar
marcas de dedos no vidro.
O que significava aquilo? Desde quando estavam ali?
Seriam dos trabalhadores que pintaram a casa? Eu paguei
por uma faxina extensa depois dos reparos, será que tinham
esquecido de limpar os vidros daquele quarto?
— Não tem ninguém aqui, mãe — ele disse à Clara,
que se aproximou de nós. Andei até ela, encurtando o
caminho, temendo que ela visse as marcas no vidro e se
assustasse também. Não havia motivos para alarmes,
tratava-se apenas de uma coincidência. Ninguém, além da
bisa e do Levi, sabia que estávamos ali.
QUARENTA E TRÊS
JOSÉ AUGUSTO
— E aí, como foi o final de semana na casa do seu
pai? — perguntou dona Benedita, recebendo Samuel com
um abraço caloroso.
Depois de deixar Maria Clara na escola onde
trabalhava, segui até a casa da bisa para levar Samuel.
Enquanto o deixava ali, não pude evitar o desejo de mudar
aquela rotina e passar mais tempo com o meu filho em
nossa casa.
— Foi bom, mas eu vi uma mulher feia na janela.
— O quê? — ela indagou, confusa.
— Mas o meu pai disse que ela não pode entrar em
casa.
— Ele teve um pesadelo — disse baixo, para que
Samuel não me entendesse.
— Que bom que vocês estão seguros lá, né? — a
senhora falou, passando as mãos sobre a cabeça do meu
filho com carinho.
— Quer entrar e tomar um gole de café, José
Augusto?
— Hoje não, obrigado. Eu preciso voltar para casa,
tenho bastante serviço na propriedade — falei, abaixando-
me e deixando um beijo na testa do meu filho. — Mais
tarde, eu volto para buscar a sua mãe no trabalho e ver
você.

Ao entrar no carro, fui interrompido pelo toque do


celular no bolso. Peguei o aparelho e vi o nome da minha
mãe na tela mais uma vez. Bloquear seu número parecia
extremo, eu sabia que aquilo só aumentaria suas
desconfianças. Ainda assim, sua insistência estava me
cansando.
Encerrei a chamada e joguei o celular ao lado, uma
mensagem saltou na tela no mesmo instante.
Precisa atender a merda do telefone, seu ingrato.
Estou na cidade e quero te ver.
— Porra! — Bati a mão contra o volante. Aquilo não
podia estar acontecendo.
Liguei imediatamente para dona Cassandra, que
atendeu no primeiro toque da chamada.
— Onde você está?
— No único hotel desse fim de mundo — respondeu
ela.
— Estou indo até aí — falei e encerrei a ligação em
seguida.
Acelerei até o hotel, mantendo uma velocidade alta.
Não queria minha mãe circulando pela cidade, com
possibilidade de encontrar Maria Clara ou Samuel.
Segui as orientações da recepcionista e fui até a área
do restaurante, onde o café da manhã do hotel era servido.
Minha mãe estava sentada em uma mesa nos fundos do
salão, fazendo uma careta após experimentar o café de sua
xícara.
Afastei a cadeira do outro lado da mesa que ela
ocupava e me sentei. Observei seus olhos fundos e sua
aparência cansada. Os cabelos, que sempre estiveram
penteados em um coque firme, estavam com vários fios
soltos, aparentando desleixo.
— Você chega e nem cumprimenta sua mãe? O que
está acontecendo com você, José Augusto?
Eu não queria me aproximar ainda mais daquela
mulher que, durante os últimos anos da minha vida, foi
minha única família. Entretanto, depois de saber tudo o que
ela fez, era difícil fingir que nada tinha mudado. Para não
piorar suas desconfianças, levantei-me e dei um beijo
rápido em sua testa, voltando ao meu assento logo após.
— Você não parece bem, mãe — comentei. Não
porque eu estava preocupado, mas sim porque era verdade.
— É isso que você me causa. Não consigo dormir
direito desde que você decidiu se enfiar nesse lugar, e ficou
ainda pior quando soube da sua insensatez de abandonar
tudo para viver aqui.
— Não é uma insensatez, mãe. É a decisão da minha
vida.
— Deixe de falar bobagem. Isso já aconteceu antes e
você se lembra no que deu. — Ela devolveu a xícara ao
pires que estava à sua frente. — Está fazendo isso por outro
rabo de saia?
— Não tem a ver com outra pessoa. Essa é uma
decisão minha.
— Me leve até onde você está morando. Quero ver
com meus próprios olhos o que você está trocando por sua
cobertura na capital.
— Não vou fazer isso.
— E por que não?
— Não há nada que possa fazer ou falar para que eu
mude de ideia. Essa é a minha vida agora. Volte para a sua
e me deixe em paz.
Levantei-me e encostei a cadeira vazia na mesa.
Minha mãe me encarava com desgosto.
— Volte para a sua casa, a sua fazenda e a sua vida.
Não tem nada para você aqui — reforcei.
Ao atravessar o salão, notei que não havia muitas
pessoas ao redor, ainda assim, senti como se os olhos dos
poucos presentes me acompanhassem.
Peguei o celular do bolso e abri a agenda de contatos
na tela. Eu deveria ligar para a Clara ou contar
pessoalmente sobre aquilo? Não queria que ela entrasse em
desespero. Depois de refletir um pouco, guardei o celular
novamente.
Estiquei a mão para abrir a porta do carro, mas
minha mãe agarrou meu braço com firmeza, impedindo que
eu continuasse.
— Eu te dou a fazenda — ela disse. — Volte para
casa, para a sua casa. Quer viver no mato, cuidando dos
bichos? A fazenda é sua. — Cassandra tentava demonstrar
tranquilidade, mas eu via o desespero brotando em sua voz,
em seus gestos, em seu semblante. Retirei a sua mão do
meu braço.
— Não quero a sua fazenda, mãe. Quero apenas
viver minha vida.
— E para viver sua vida, precisa me expulsar dela?
— Preciso que me dê espaço — argumentei.
— Você quer espaço? De mim? Sua mãe? Sua única
família?
Segurei-me para não dizer a ela que minha família
era Maria Clara e meu filho, não aquela mulher à minha
frente que tinha feito tantas coisas monstruosas.
— Eu não vou pedir de novo: volte para a sua
fazenda e me deixe em paz.
— Quem está fazendo a sua cabeça contra mim, José
Augusto? Alguma coisa aconteceu desde que você veio para
esse lugar maldito e eu exijo saber quem está tirando o
meu filho de mim! — bradou.
— Você não tem o direito de exigir nada. — Controlei
meu tom para não gritar.
— Tenho sim! Sou sua mãe! Fiz tudo por você! Tenho
todo o direito!
— Você é uma assassina! É isso que você é!
Os olhos de Cassandra se arregalaram, ela colocou
uma mão sobre o peito e começou a massageá-lo, como se
estivesse sentindo uma dor forte.
— Como ousa fazer uma acusação dessas contra
mim?
— Eu já sei da verdade sobre o meu pai — disse,
controlando o volume da minha voz. — Quer tanto saber por
que eu não te quero aqui? Por que não te quero na minha
vida? É por causa disso. — Aquela não era uma mentira
completa. Eu nunca a perdoaria pelo que fez com meu pai,
mas o meu maior temor em relação à sua presença era a
segurança de Maria Clara e do meu filho.
— Quem disse uma bobagem dessas a você? — Ela
tentou alcançar meu braço novamente, mas eu recuei.
— Não importa quem me disse. O que importa é que
eu sei a verdade.
— Você não pode acreditar nessa mentira, José
Augusto!
— Eu já acreditei em mentiras antes e aquilo destruiu
parte de mim, mas desta vez, eu sei em quem acreditar.
— Não! José Augusto!
Entrei no carro, ligando o veículo em seguida. Olhei
para o espelho retrovisor, verificando a rua.
— José Augusto! Não me deixe falando sozinha! —
gritou ela.
Abaixei o vidro da janela ao meu lado e encarei
minha mãe, cujo olhar transbordava de raiva.
— Vá embora e não volte mais. Não temos mais nada
para conversar — falei.
Pelo espelho, vi a minha mãe batendo os pés no
chão, esbravejando e mostrando um descontrole que eu
nunca tinha visto antes. Talvez porque sempre que
entrávamos em conflito, eu cedia, achando que estava
fazendo o melhor por ela, sentindo-me responsável por sua
felicidade e segurança desde que meu pai havia faltado. Era
doloroso pensar em sua morte como um acidente, mas
muito pior era pensar no fato dele ter sido assassinado pela
própria esposa, que era minha mãe.
Eu não conseguiria voltar para a minha casa depois
daquilo, ficaria na casa da bisa com o Samuel até ele ir para
a escola, e mais tarde, falaríamos sobre a presença da
minha mãe na cidade.
Apenas uma certeza continuava em minha mente:
Maria Clara e Samuel eram minha vida e eu não permitiria
que qualquer um os ameaçasse.
QUARENTA E QUATRO
MARIA CLARA
Ao sair do trabalho, avistei José Augusto ao lado do
seu carro segurando Samuel em seu colo. Vê-los bem quase
aliviou a sensação ruim que havia me acompanhado
durante todo o dia enquanto eu trabalhava em sala de aula
com os meus alunos.
— Vocês vieram me escoltar? — brinquei, mas José
Augusto não pareceu achar graça.
— O meu pai pediu ajuda à bisa para fazer as malas
— contou Samuel.
— Malas? Do que está falando, filho?
— Pedi à dona Benedita que preparasse três malas
com as roupas de vocês e os pertences pessoais mais
importantes — disse José Augusto. — Acabamos de colocá-
las no carro.
— Eu sei que está com pressa para irmos morar com
você, mas não acha que deveria ter esperado para falarmos
sobre isso?
Não estava brava com ele, eu também queria a
nossa família unida. Eu tinha aceitado o seu pedido de
casamento, não seria um problema vivermos em sua casa,
apenas gostaria que tivéssemos conversado sobre a nossa
mudança.
— Amor. — Ele deu um passo à frente, levando a sua
mão livre ao meu pescoço. — Tem uma coisa que
precisamos conversar. Vamos fazer isso quando chegarmos
em casa.
Aquela sensação ruim espalhou-se por todo o meu
peito. Respirei fundo, tentando não deixar o medo que veio
junto prevalecer.
Subimos no carro e fomos até a propriedade de José
Augusto. Ele tinha reforçado a porteira ou mandado alguém
fazer aquilo. De volta ao veículo, sua mão apertou a minha
levemente, mas ele não me direcionou o olhar. Havia
alguma coisa errada.
— Filho, fique no seu quarto até que eu ou sua mãe
te chame — pediu José Augusto, conduzindo Samuel até lá,
após verificar a fechadura de todas as portas e janelas da
casa.
De volta à sala, José Augusto segurou minha mão e
me levou até o nosso quarto, fechando a porta assim que
passamos por ela.
— O que está havendo, José Augusto? Você está me
assustando.
— Meu amor — ele se aproximou, segurou meu rosto
entre as mãos —, preciso que fique calma.
— Não posso ficar se não souber o que está
acontecendo.
— A minha mãe está na cidade.
O quarto começou a girar ao meu redor. Aquela
mulher não podia estar tão perto de nós. Ela... ia tirar tudo
de mim de novo.
— Amor — José Augusto me chamou. — Eu juro que
não vou deixar ela se aproximar de vocês dois. Ela não sabe
sobre vocês e não vai descobrir.
— Ela sabe — falei. — Ela sabia daquela vez e deve
saber agora também.
— Eu estive com ela hoje, precisei ir encontrá-la
quando ela me falou que estava na cidade, mas eu não
disse nada sobre você ou nosso filho. Usei o assassinato do
meu pai como motivo para o meu afastamento.
— Ela sabe — sussurrei, enfiando os dedos entre
meus cabelos, agitada.
— Maria Clara, mesmo que ela saiba, nada vai
acontecer com vocês ou conosco. Eu não vou deixar.
Meu corpo foi puxado contra o dele, e deixei minha
cabeça repousar em seu peito. O coração de José Augusto
batia acelerado. Ele podia saber quem a mãe realmente era
naquele momento e tudo o que ela era capaz de fazer, mas
o medo ainda me deixava assustada. Eu não queria perder
nossa segunda chance, e muito menos imaginar nosso filho
em perigo.
— Eu não vou deixar — repetiu ele. Sufoquei a
vontade de começar a chorar em seus braços.
— O que vamos fazer?
— Eu pedi urgência à empresa de segurança que vai
instalar câmeras e dispositivos de alarme na casa e ao
redor. Vão trocar o portão também.
— Quando? — perguntei, sem esconder a ansiedade
em minha voz.
— Daqui a dois dias. Ia demorar mais, paguei pelo
adiantamento do serviço. Tentei fazer com que viessem
ainda hoje, mas não foi possível.
— Isso será suficiente? — indaguei, afastando-me
devagar dos seus braços.
— Posso pedir uma equipe de segurança também —
sugeriu.
Respirei fundo, pensando em como seria ter um
monte de gente estranha ao nosso redor e no quanto aquilo
assustaria nosso filho. Eu devia estar sendo paranoica.
Cassandra não sabia sobre nós, estava ali para tentar
controlar a vida do filho. Desejei que ela desistisse logo e
fosse embora de uma vez por todas.
— Por enquanto, não. Vamos esperar para não
assustar nosso filho — falei.
— Por isso, eu peguei as malas, agora é melhor que
vocês fiquem aqui comigo.
— E o meu trabalho? A escolinha do Samuel?
— Serão apenas alguns dias, até a... minha mãe
voltar para a Fazenda Azevedo.
Respirei fundo, andando de um lado para o outro no
quarto. Talvez fosse melhor mesmo nós ficarmos longe do
centro da cidade até aquela mulher ir embora.
— Amanhã vou ligar para o meu trabalho e para a
escolinha do Samuel. Vamos ficar aqui até as coisas se
resolverem.
Voltei a me aproximar de José Augusto e seus braços
fortes envolveram minha cintura, soltei um suspiro pesado.
— Vocês vão ficar bem. Eu prometo — disse ele.
À noite, depois de jantarmos na cozinha, explicamos
a Samuel que ele ficaria alguns dias longe da escolinha.
Mentimos dizendo que José Augusto precisaria de nossa
ajuda na propriedade e, por aquele motivo, não voltaríamos
imediatamente à cidade. Nosso filho, alheio ao que
acontecia, se mostrou empolgado com a ideia de morarmos
com o seu pai e o ajudarmos.
— Eu posso dormir sozinho hoje, mãe — disse
Samuel, depois de escovar os dentes e vestir seu pijama.
— É que a mamãe está com medo hoje — falei baixo,
como se fosse um segredo.
— Você tem medo? — perguntou, arregalando os
olhos.
— Às vezes eu tenho. Todo mundo pode sentir medo
em algum momento. Só não podemos deixar o medo ficar
muito grande e impedir a gente de fazer as coisas. Hoje, só
hoje mesmo, eu vou me sentir melhor se você e o seu pai
dormirem perto de mim.
— Eu vou te proteger, mãe — disse o meu pequeno,
circulando meu pescoço em um abraço desajeitado.
Na porta do quarto do nosso filho, José Augusto
assistia à cena com um sorriso contido no rosto.
Na cama, nosso filho adormeceu rapidamente entre
nós dois. José Augusto acariciava minha cabeça com a mão
acima do travesseiro de Samuel.
— Pode dormir, eu vou ficar acordado e cuidar de
vocês dois.
— Obrigada — eu disse.
Talvez fosse exagero deixá-lo acordado para nos
vigiar, mas ouvir aquilo me acalmou e eu consegui
adormecer.
— Café na cama — avisou José Augusto, passando
pela porta do nosso quarto.
Estiquei os braços, sentando-me e apoiando as
costas na cabeceira do móvel.
— Onde está o Samuel? — questionei, quase
desesperada.
— Aqui, mãe — disse, aparecendo logo atrás de José
Augusto.
Sorri de alívio no mesmo instante. Nosso menino
passou por seu pai e subiu na cama.
— Nosso filho acordou quando eu estava me
levantando para preparar o café da manhã e quis me ajudar.
— Eu bati o ovo — contou ele, animado.
— Sim. E ajudou a colocar os temperos — completou
José Augusto.
— Isso.
— Obrigada aos dois por terem preparado o café da
manhã.
Sentamos na cama e começamos a refeição. José
Augusto parecia cansado, mas tentava disfarçar. Ele
realmente havia passado a noite acordado.
Eu esperava que o sistema de segurança, que seria
instalado na casa e ao redor, nos trouxesse mais
tranquilidade. Não queria continuar com medo.
José Augusto levou a bandeja que havia trazido com
a refeição de volta para a cozinha, acompanhado
novamente por nosso filho, que estava adorando ter o pai
em sua vida. Aquele momento dizia muito sobre a
necessidade de cuidar de nossa família. Estávamos juntos e
felizes, não podíamos deixar aquela mulher odiosa tirar
aquilo de nós.
— Amor — José Augusto voltou ao quarto. — O
corretor da imobiliária me ligou, disse que o dono da casa
está furioso porque teve um problema no pagamento que
eu fiz. Precisamos ir até a cidade para resolver isso. Com
certeza é um engano, vamos resolver rapidamente e voltar
para casa.
Olhei pela janela do quarto, o dia estava lindo com o
sol brilhando lá fora. Nossa casa era nosso refúgio, ninguém
sabia sobre nós e as coisas deviam continuar daquele jeito.
— Acho melhor nós ficarmos — falei. — Não quero
correr o risco de encontrarmos sua mãe na cidade. Aqui
estamos longe dela.
— Tem certeza?
— Sim. Ficaremos aqui. Só não demore, por favor.
— Não vou — garantiu ele.
José Augusto se aproximou de mim, inclinou-se e
deixou um beijo leve em meus lábios.
— Vou deixar a porta trancada. Não abra para
ninguém.
— Tudo bem — concordei.
Eu não gostava da sensação de ficar trancada em
casa, mas também não gostava de me sentir exposta com a
casa aberta. Torcia para que Cassandra voltasse logo para a
sua fazenda.
— O meu pai vai demorar? — perguntou Samuel,
retornando ao quarto.
— Não. Ele foi à cidade resolver uma coisa e já volta.
— Podemos ir lá fora? Eu quero brincar.
— Depois. Quando o seu pai estiver em casa —
respondi.
— O que vamos fazer agora?
— Vamos desfazer as malas com as nossas coisas.
Começar pelas suas, tem bastante espaço no seu guarda-
roupa.
— O seu é maior. — Apontou para o móvel na parede
à frente.
— Esse é meu e do seu pai. Por isso, é maior.
— Você e o meu pai vão morar sempre juntos, não
vão ser separados mais?
Chamei Samuel até a cama e, quando ele se
aproximou da beirada, trouxe-o até meu colo.
— Eu e o seu pai queremos ficar juntos e vamos fazer
isso. Nós nos amamos e também amamos muito você.
Esses dias, vamos ficar longe da cidade para ajudar ele com
esse lugar, como já te contamos. Depois, voltaremos à
nossa rotina de ir à cidade para trabalhar e estudar.
— Eu gosto de morar aqui.
— Que bom. Eu também gosto.
— Vou guardar minhas roupas — disse, fazendo seu
corpo deslizar do meu colo para descer da cama.
— A mamãe vai se trocar e já vai aí — falei alto para
que me ouvisse enquanto saía do meu quarto.
Escutei um estrondo ao longe, corri para o quarto do
nosso filho e encontrei Samuel com uma das malas abertas,
retirando as roupas de lá de dentro. Andei até ele e o peguei
no colo, meus braços estavam apertados ao redor do seu
tronco.
Caminhei em passos rápidos até a janela da sala. Um
carro descia em alta velocidade pela estradinha de chão em
direção à nossa casa. Parecia ter arrebentado a porteira ao
passar por ela. Senti meu sangue gelar e meu corpo
começar a tremer naquele instante.
— Não se mexa — ordenei a Samuel ao colocá-lo
sentado no sofá ao lado.
A porta do carro grande e preto se abriu, e dela
desceu a mulher que eu mais temia ver: Cassandra
Azevedo. Ela se inclinou para dentro do carro com a porta
ainda aberta e, ao se afastar, percebi que carregava um
machado nas mãos.
O que aquela louca pretendia fazer?
Deixei a cortina da janela cair e me abaixei, fazendo
sinal para que meu filho se mantivesse em silêncio.
— Eu sei que você está aí, Maria Clara. Abra a porta,
por bem ou por mal — disse sem gritar, tentando aparentar
um controle que ela claramente não tinha naquele
momento.
Peguei meu filho no colo, tapei sua boca com a
minha mão e corri para o meu quarto.
— Quem está na porta, mãe?
Meu corpo todo tremia, minha voz parecia não ser
capaz de romper-se através de minha garganta. Corri até a
janela, garantindo que estava trancada. Na sequência,
apertei o tecido da cortina, não deixando nenhuma fresta.
— É uma pessoa que não gosta de nós e, por isso,
você precisa ficar escondido aqui dentro — disse, abrindo
uma porta do guarda-roupa. — Coloque as mãos sobre os
ouvidos e não tire. Só saia daqui quando eu, seu pai ou seu
tio Levi abrirmos essa porta. Entendeu?
— Maria Clara, não teste a minha paciência! —
Cassandra gritou.
Samuel balançou a cabeça, confirmando que havia
entendido meu pedido.
— Repete o que eu te disse para eu ter certeza.
— Mão no ouvido, e só sair quando você, meu pai ou
o tio Levi abrir a porta do guarda-roupa.
— Não importa o que aconteça. Não me desobedeça.
Ele concordou novamente, se acomodando nos
fundos do armário com as mãos nos ouvidos. Fechei a porta.
— Eu vou contar até cinco, Maria Clara.
Procurei meu celular em desespero. Encontrei-o
sobre a mesa de cabeceira, sem bateria. Aquilo não podia
estar acontecendo. Peguei o carregador na gaveta e saí do
quarto, trancando-o em seguida. Fechei a porta do quarto
do Samuel também.
Na cozinha, coloquei o celular para carregar e, na
gaveta do armário, peguei a maior faca que eu encontrei.
Aquela mulher não chegaria até meu filho, nem que eu
precisasse enfiar a faca em seu peito.
Ouvi um som alto de madeira se partindo, corri até a
sala. Aquela louca estava tentando derrubar a minha porta
com o machado. Voltei ao celular, implorando para que ele
ligasse logo.
Três golpes fortes, quatro, cinco. Meu coração parecia
que sairia pela boca a qualquer momento e as lágrimas
acumuladas escureciam minha visão. Eu não podia deixar o
medo e o desespero me vencer, não quando meu filho
dependia de mim.
O celular iniciou, finalmente. Com os dedos trêmulos,
liguei para José Augusto e coloquei no viva-voz. A porta foi
arrombada.
Meu corpo todo tremia naquele momento. Eu não
podia deixar Cassandra chegar perto de Samuel. Joguei um
pano sobre o celular para que ela não o visse, caso entrasse
ali, e corri até a sala.
Cassandra estava completamente fora de si. Não
lembrava em nada a mulher que eu tinha conhecido anos
atrás. Seus cabelos estavam desgrenhados, sua maquiagem
borrada e suas unhas pareciam ter sido roídas
incessantemente.
— O que você quer aqui, Cassandra? — gritei, na
esperança de que José Augusto tivesse atendido o telefone
e pudesse ouvir minha voz.
— Eu quero livrar meu filho de você. E desta vez,
farei o que devia ter feito anos atrás.
— Vai me esquartejar com o machado?
— Não. Isso era só para o caso de você não me
deixar entrar.
Ela jogou o machado ao lado e, abrindo sua bolsa,
retirou um revólver, apontando-o para mim.
— Isso é para você.
— Vai me matar no meio da sala da casa do seu
filho? Acha que ele não vai saber que foi você?
— Não vou te matar aqui, bobinha. Nós vamos dar
uma volta de carro até o rio que divide a cidade e você vai
mergulhar e... não vai voltar. Será uma tragédia terrível.
Mas não se preocupe, vou consolar meu filho.
— E a porteira e a porta arrebentadas? Acha que ele
não vai ver?
— Vou colocar fogo nessa merda toda e vou contar
uma história triste sobre como eu, desesperada para entrar
na casa em chamas e salvar meu filho que supostamente
estava em casa, arrebentei a porteira com meu carro.
— Se você pensa que eu vou a qualquer lugar com
você, está muito enganada, Cassandra. Vai ter que me
matar aqui mesmo antes que eu entre naquele carro com
você.
— Maria Clara, você tem apenas duas escolhas:
morre afogada e deixa o seu filhinho bastardo viver ou
morre junto com a sua cria.
— Eu... eu...
— Achou que eu não sabia do bastardinho? — Soltou
um riso descontrolado. — Eu soube assim que cheguei
nesse buraco, um dia depois que meu filho fez a besteira de
pedir demissão do melhor escritório de advocacia de São
Paulo.
— Você esteve aqui todo esse tempo?
— Sim. Naquele hotel onde você trabalhou.
— Como sabe que eu...
— Acha que eu fiquei passeando por esse fim de
mundo? Eu estava trabalhando, tramando a sua... tragédia.
Do mesmo jeito que eu planejei o acidente do meu marido.
— José Augusto sabe que você o matou. Ele não vai
acreditar que eu, do nada, resolvi ir nadar e me afoguei.
— No começo pode ser que não, mas depois ele vai.
Segurei o cabo da faca com tanta força que meus
dedos ficaram brancos.
— José Augusto retornará logo para casa, você não
vai ter tempo de executar esse seu plano doentio.
— Eu garanto que o meu filho não sairá tão cedo
daquela imobiliária.
— Como sabe que ele foi até a imobiliária?
— Meu filho se apaixonou mesmo por você? Meu
Deus! Fui eu que mandei ele para lá. Precisava dele longe
de casa e com tempo para... resolver tudo.
— Você está completamente louca se acha que isso
vai dar certo, Cassandra.
— Não me importa a sua opinião, sua golpista. Eu
vou te matar de um jeito ou de outro. A única questão é: vai
ser só você ou seu filho vai junto?
Ela engatilhou a arma, levantando-a na direção da
minha cabeça.
QUARENTA E CINCO
JOSÉ AUGUSTO
ALGUNS MINUTOS ANTES
Dentro do carro, tentei ligar para o corretor
imobiliário mais uma vez e a ligação continuou caindo na
caixa postal. Repassei em minha mente o que ele havia dito
na ligação. Aquilo estava estranho.
Meu telefone tocou sobre o banco do passageiro ao
meu lado. Era a Clara, atendi a ligação imediatamente,
ouvindo um barulho alto na sequência. Pisei no freio no
mesmo instante.
— Clara! — chamei, mas não obtive resposta. —
Maria Clara! — Tentei novamente.
Vozes alteradas chegavam distorcidas ao meu
ouvido. O que estava acontecendo?
Manobrei o carro, pisando fundo no acelerador. Com
o telefone no viva-voz, tentei entender o que estava
havendo em casa. Quando ouvi o nome da minha mãe, a
tensão tomou conta de mim, fazendo todos os músculos do
meu corpo se enrijecerem. Cassandra não devia saber sobre
a Maria Clara, nem ter conhecimento do nosso endereço. O
último lugar em que ela deveria estar era em nossa casa.
Nunca tinha acelerado tanto na minha vida, a
adrenalina era quase tão alta quanto meu desespero por
estar logo em casa. Ao chegar em frente à porteira, vi que
estava destruída, com certeza por uma entrada forçada.
Desliguei o carro e desci correndo, temendo assustar
dona Cassandra com minha chegada repentina e o pior
acontecer.
Não usei a estrada, desci em velocidade entre as
árvores, como se minha vida dependesse daquela corrida,
porque dependia. Meu peito queimava com o ar que parecia
insuficiente ao mesmo tempo que meus pés mal tocavam o
chão.
De longe, vi o carro de minha mãe e a porta da
minha casa destruída. Porra! Cassandra tinha enlouquecido
de vez!
Desacelerei e contornei a casa, ouvindo a discussão
que acontecia no meio da sala.
— Maria Clara, você tem apenas duas escolhas:
morre afogada e deixa o seu filhinho bastardo viver ou
morre junto com a sua cria — minha mãe falou.
— Eu... eu... — Clara gaguejou.
— Achou que eu não sabia do bastardinho? — A
risada de Cassandra mostrava seu descontrole. Eu não
podia agir por impulso ou ela mataria a Clara. — Eu soube
assim que cheguei nesse buraco, um dia depois que meu
filho fez a besteira de pedir demissão do melhor escritório
de advocacia de São Paulo.
— Você esteve aqui todo esse tempo? — Clara
tentava manter sua voz firme.
— Sim. Naquele hotel onde você trabalhou —
respondeu Cassandra.
— Como sabe que eu... — Clara estava ficando cada
vez mais apavorada, eu precisava fazer alguma coisa. Olhei
ao redor e vi um pequeno pedaço de madeira, abaixei-me
devagar e o alcancei, voltando à minha posição, perto da
parede, ao lado da porta.
— Acha que eu fiquei passeando por esse fim de
mundo? Eu estava trabalhando, tramando a sua... tragédia.
Do mesmo jeito que eu planejei o acidente do meu marido.
Minha mão quase soltou o pedaço de madeira que
segurava. Eu sabia que minha mãe tinha matado meu pai,
mas ouvi-la confessar foi como levar um golpe diretamente
em meu estômago.
— José Augusto sabe que você o matou. Ele não vai
acreditar que eu, do nada, resolvi ir nadar e me afoguei.
— No começo pode ser que não, mas depois ele vai.
Meus dedos se apertaram ao redor do pedaço de
madeira. Eu precisava acertar um golpe em minha própria
mãe. Apesar de tudo o que ela tinha feito, aquilo não era
fácil para mim. Aquela mulher descontrolada, que colocava
a vida da minha mulher e do meu filho em risco, não era a
mesma que eu tinha me esforçado tanto para cuidar e amar
durante toda a minha vida.
— José Augusto retornará logo para casa, você não
vai ter tempo de executar esse seu plano doentio.
— Eu garanto que o meu filho não sairá tão cedo
daquela imobiliária.
— Como sabe que ele foi até a imobiliária?
— Meu filho se apaixonou mesmo por você? Meu
Deus! Fui eu que mandei ele para lá. Precisava dele longe
de casa e com tempo para... resolver tudo.
— Você está completamente louca se acha que isso
vai dar certo, Cassandra.
— Não me importa a sua opinião, sua golpista. Eu
vou te matar de um jeito ou de outro. A única questão é: vai
ser só você ou seu filho vai junto?
Avancei até a porta e vi minha mãe engatilhar a
arma em suas mãos, levantando-a na direção da cabeça da
Clara.
— Largue a arma, mãe — eu disse, parado na porta.
Aquela mulher se voltou para mim, seus olhos
estavam arregalados. Sua aparência desleixada pouco
lembrava a minha mãe.
— José Augusto? O que... O que você está fazendo
aqui? — ela indagou, abaixando a arma, mas ainda a
mantendo entre suas mãos.
— Estou aqui para impedir que cometa uma loucura
— avisei. — Jogue essa arma para longe.
— Não! — Cassandra disse, voltando a levantar a
arma na direção de Clara.
Corri até a minha mulher e me coloquei em sua
frente, protegendo seu corpo com o meu.
— Saia da frente, José Augusto! — gritou minha mãe.
— Eu vou tirar essa praga da sua vida de uma vez por
todas.
— Você está errada, mãe. Maria Clara não é uma
praga em minha vida. Ela é a minha razão de viver.
— Como pode dizer algo tão idiota depois de tudo o
que ela fez?
— Mãe, por favor, abaixe essa arma. Eu não vou
deixar que você machuque a minha mulher ou o meu filho.
— Eu vou te livrar deles e um dia você vai me
agradecer.
Cassandra deu dois passos para o lado, buscando
enxergar Maria Clara para atirar contra ela. Avancei sobre
minha mãe para tentar tirar a arma de suas mãos. Nossos
corpos se chocaram, busquei pela arma e, de repente, o
som alto de um disparo ecoou por toda a casa.
QUARENTA E SEIS
MARIA CLARA
Meus olhos acompanharam a cena que se
desenrolava à minha frente como se eu estivesse assistindo
a um filme em câmera lenta. José Augusto se jogou contra a
mãe, tentando tirar a arma de suas mãos, e durante a briga,
um tiro foi disparado.
Pensei ter perdido a capacidade de respirar quando
vi ambos caírem, e em seguida, uma poça de sangue se
formar ao redor de seus corpos. Mesmo com minhas pernas
amolecidas, corri até eles e puxei José Augusto pelo tronco,
tirando-o de cima de Cassandra. De joelhos no chão, segurei
a sua cabeça em meu colo. O líquido vermelho e pegajoso
marcava suas roupas, levantei a sua camisa, procurando o
ferimento causado pelo tiro.
Minhas mãos ficaram manchadas pelo sangue
enquanto eu procurava onde a bala havia entrado. Só
percebi que chorava quando as lágrimas passaram a cair
sobre o rosto de José Augusto e os soluços romperam minha
garganta.
— Por favor — sussurrei. — Não me deixe. Você
prometeu... Não...
A dor que invadia meu peito era a pior que eu já
tinha experimentado em minha vida. Sentir que eu estava
perdendo José Augusto e daquela vez, para sempre, estava
acabando comigo. Puxei o ar, mas ele não chegou aos meus
pulmões.
— Por favor — disse, tentando respirar. — Você não
pode.
Sua mão se levantou e, devagar, fez um carinho em
minha bochecha. Seus olhos azuis me fitaram, senti o ar
voltar a preencher meu peito.
— Eu não vou a lugar nenhum, meu amor — disse
ele.
Ele sentou-se ao meu lado, levantando a camisa suja
de sangue e passando a mão pelo tronco.
— O tiro não acertou em mim, acertou... a minha
mãe.
A sensação de alívio foi tão grande que eu chorei
mais ainda. Meus ombros tremiam conforme mais lágrimas
desciam. Os braços de José Augusto circularam minha
cintura e me puxaram para si.
— Está tudo bem agora. Ela nunca mais vai nos
machucar.
José Augusto ligou para a polícia, que chegou em
casa junto com o serviço de emergência, constatando a
morte de Cassandra no local.
Levi veio nos ajudar assim que atendeu o telefone.
Saiu da Fazenda Vale Verde e, em poucos minutos, chegou
até nós, levando nosso filho para longe dali pela porta dos
fundos para que ele não visse o que tinha acontecido no
meio da nossa sala.
Demos nosso depoimento na delegacia, explicamos
aos policiais tudo o que tinha acontecido. Não demorou para
que Jaime Rodrigues, pai de Levi, aparecesse na delegacia
também. Se Cassandra era o maior nome na pequena
cidade de Santa Luzia, Jaime Rodrigues era a referência de
Nova Esperança. Nós sabíamos que a verdade estava do
nosso lado, a arma disparou nas mãos de Cassandra quando
ela tentava me assassinar, mas era bom ter alguém do
nosso lado daquela vez.
— Vocês não devem voltar para lá agora. Esperem a
polícia liberar o local. O delegado me garantiu que não vão
demorar a resolver tudo. Está claro o que houve.
— Obrigado pela ajuda, Jaime — disse José Augusto,
ao meu lado. Ainda estávamos em frente à delegacia.
— Vamos para minha casa. Tem espaço para vocês
lá. Fiquem conosco por um tempo, vai ser bom para o
garoto ficar em um lugar familiar. Além disso, ele adora a
fazenda.
José Augusto olhou para mim, buscando minha
aprovação, assenti.
— Vamos assim que passarmos na bisa e falarmos
com ela. A essa hora, ela deve estar sabendo de tudo pela
boca do povo e deve estar assustada. Também vou
aproveitar e pegar umas roupas.
— Está certo. Espero vocês na fazenda.
Como eu imaginava, encontramos a bisa com os
cabelos em pé. Ela tinha ligado para a madrinha e contado
tudo, ambas estavam desesperadas. Conseguimos acalmá-
las, garantindo várias vezes que estávamos todos bem.
A madrinha nos contou que a dona Cassandra disse a
ela que estava indo para São Paulo para passar uma
temporada na casa da Tamara, e que nunca desconfiou que
a mulher estava vindo atrás de mim e do meu filho.
Ainda naquele dia, contratamos um serviço funerário
para o enterro de Cassandra. Não haveria qualquer
cerimônia de despedida, após a liberação do corpo, ela seria
enterrada no cemitério daquela cidade.
Chegamos à noite à Fazenda Vale Verde e
encontramos nosso filho brincando na sala da casa
principal, na companhia de Levi e seu pai. Soltei um suspiro
quando vi que nosso menino, apesar do que tinha
acontecido, estava bem.
— O tio Levi comprou um monte de brinquedos para
mim na cidade. Ele me levou na loja e deixou eu escolher —
contou Samuel, mostrando os carrinhos de vários tamanhos.
— Olha esse trator, mãe.
— É muito bonito — falei, abaixando-me para ficar na
sua altura e pegar o brinquedo que ele me mostrava.
— Obrigado por isso — disse José Augusto a Levi e
seu pai. Ambos acenaram com a cabeça como se aquilo não
fosse nada. Nós sabíamos que eles gostavam muito de
Samuel e queriam o seu bem.
— Vamos subir agora? Precisamos conversar com
você, meu filho — eu disse, oferecendo minha mão a ele.
— O jantar ficará pronto em uma hora. Se não
puderem descer, posso pedir para levarem a refeição no
quarto — ofereceu Jaime.
— Não será necessário, vamos descer para
acompanhá-los, vai ser bom um pouco de normalidade,
depois de tudo.
Subimos para o quarto que José Augusto havia
ocupado quando esteve hospedado na fazenda. Sentamo-
nos na cama, com nosso filho ao nosso meio, e
perguntamos o que Samuel tinha escutado. Para nossa
sorte, ele não tinha ouvido muito e entendido menos ainda.
Ele me obedeceu, permanecendo dentro do armário com as
mãos nos ouvidos.
Contamos a ele que houve um acidente em nossa
casa e, por aquele motivo, não poderíamos voltar lá, e que
uma pessoa tinha se machucado, mas nós ficaríamos bem.
Eu peguei meu filho no colo e José Augusto envolveu
a nós dois em seus braços. Pela primeira vez em muitos
anos, senti-me segura e em paz.

O caixão baixou e a terra começou a ser jogada.


Minha mão estava entrelaçada à de José Augusto, que
acompanhava os movimentos dos coveiros.
Naquela tarde ensolarada, Levi e seu pai nos
acompanhavam. Nosso filho tinha ficado com a bisa na casa
dela, achamos que seria melhor para ele não participar
daquele momento. Quando estivesse maior, capaz de
entender melhor o que tinha acontecido, contaríamos a ele.
José Augusto estava mais calado desde que... sua
mãe havia morrido. E eu não sabia bem como ajudá-lo.
Saímos do cemitério e passamos em minha antiga
casa para pegar mais algumas coisas. Samuel iria passar o
dia todo com a bisa e os nossos amigos retornaram para
sua casa, onde naquele momento estávamos nos
hospedando.
— Acho que é isso, por enquanto — falei, colocando
duas mochilas sobre o sofá da minha antiga sala.
— Eu liguei para o advogado da minha mãe essa
manhã. Devo receber seus bens como herança.
— Isso é um problema? — perguntei, aproximando-
me.
— Confesso que cheguei a pensar em doar para uma
ONG, mas a fazenda tem muitos funcionários, alguns que
nunca tiveram outro emprego, eu estaria abandonando eles
se fizesse isso.
— Talvez esse não seja o melhor momento para
tomar uma decisão como essa — falei, pegando em suas
mãos.
— Eu a queria longe de nossas vidas, mas saber
que...
— Não foi você que apertou aquele gatilho. — Minhas
mãos subiram até seu pescoço, puxando sua cabeça para
baixo, para que olhasse para mim.
— Eu sei, ainda assim, é difícil... Mesmo sabendo dos
horrores que ela cometeu e do que ela estava prestes a
fazer... O que aconteceu me assombra.
— Foi horrível de tantas formas, mas foi ela quem
selou o próprio destino. Ela podia ter desistido a qualquer
momento, porém não fez. Não se culpe.
Ele assentiu, limpando uma lágrima que escorreu em
seguida.
— Eu não estou bem com o que houve, não vou
mentir, porém, estaria morto por dentro se tivesse perdido
você e nosso filho.
Seus braços circularam minha cintura, levando meu
corpo para junto do seu. Minha cabeça foi colocada contra
seu peito, ouvi seu coração batendo forte.
— Eu não poderia viver sem vocês. — Havia dor em
sua voz. Abracei sua cintura com força.
— Entrei em desespero quando pensei que fosse
você que tivesse sido atingido naquele dia. Não sei o que
aconteceria se tivesse te perdido — confessei a José
Augusto.
— Estamos seguros agora. — Ele beijou minha testa.
— Vamos descobrir o que fazer nos próximos dias. Temos
tempo para isso.
Um mês depois
O lugar onde tinha mudado minha vida anos atrás
parecia exatamente o mesmo. O casarão da Fazenda
Azevedo preservava as mesmas cores e os mesmos móveis.
Eu estava na porta de entrada, observando José Augusto,
que mostrava o lugar ao nosso filho.
Depois de muito pensar, José Augusto tinha decidido
assumir a fazenda Azevedo. Apesar de tudo, aquele era o
legado de seu sobrenome e ele amava aquela fazenda.
Sabíamos que seria um desafio e tanto. Joelson havia ligado
para nós e contado que Cassandra estava sendo negligente
com os negócios há muito tempo e vários funcionários
estavam com medo de perder o emprego, mas meu futuro
marido estava pronto para aquele desafio e não deixaria o
pior acontecer.
— Eu fiz o que pediram, tirei tudo do quarto da...
falecida — disse a madrinha, voltando da cozinha com uma
jarra de água gelada.
Tínhamos passado em sua casa primeiro,
apresentado nosso filho pessoalmente a ela e conversado
um pouco sobre nossos dias seguintes. Eu estava vendo
uma outra pessoa para cuidar da casa, provavelmente da
vila mesmo, para aposentarmos a madrinha, não queríamos
ela trabalhando tanto como antes.
— Na próxima semana, uma arquiteta virá conversar
com a Clara, que decidirá sobre todas as mudanças na casa
— avisou José Augusto.
— Vamos manter o padrão colonial, mas queremos
mudar todos os móveis, decoração... queremos dar uma
nova imagem a essa casa, uma que combine mais conosco
— eu disse.
— Isso vai ser bom — a madrinha comentou.
— Onde é o meu quarto? — perguntou Samuel.
— Seu quarto é no andar de cima. Quer ver? — falou
José Augusto, direcionando nosso filho até as escadas.
Era estranho voltar àquele lugar depois de tantos
anos e depois de tudo o que tinha acontecido, mas eu me
esforçaria para que nossa história tivesse uma nova e feliz
fase. Sem precisar nos esconder ou viver com medo do
futuro.
EPÍLOGO
JOSÉ AUGUSTO
UM ANO E MEIO DEPOIS
Havia um arco decorado com margaridas, ramos de
lavanda e folhagens verdes de variados tamanhos e tipos,
posicionado atrás de uma mesa de madeira estreita, onde o
juiz de paz aguardava a chegada de Maria Clara para
celebrar o nosso casamento.
Anos antes, debaixo daquele mesmo pé de manga,
quando conheci a jovem mais linda e encantadora que
meus olhos já tinham enxergado, eu soube que ela mudaria
minha vida para sempre. Clara e eu enfrentamos muitos
obstáculos, mas nunca deixamos de nos amar.
Não foi fácil ver minha mãe morrer na minha frente,
quando ela ameaçou tirar a vida da minha mulher e do meu
filho. Aquela imagem ficaria para sempre em minha mente,
mas eu fiz o que precisava ser feito naquele momento. Eu
podia ter morrido, mas não deixaria que machucasse minha
família.
Com o amor da minha mulher e do meu filho, superei
os mais difíceis desafios. Eles me faziam sorrir todos os dias
e eu era imensamente grato por eles.
As cadeiras de madeira sobre o gramado verde
estavam enfeitadas com laços brancos e pequenos arranjos
de flores e folhagens, iguais às do arco. Dona Josefa, o
senhor Jaime e a bisa, que tinham vindo de longe, além de
vários peões da fazenda e suas famílias, ocupavam as
cadeiras enfileiradas à minha frente.
Os funcionários da fazenda estavam felizes com o
trabalho, fizemos muitas mudanças, valorizando mais o
serviço deles e, com o crescimento da fazenda, estávamos
ampliando e melhorando a vila.
Olhei para trás, o céu laranja mostrava o sol se
pondo, logo as luzes sobre nossas cabeças seriam acesas.
Pela hora no relógio do meu punho, Maria Clara já deveria
estar ao meu lado.
Soltei um respiro de alívio quando vi uma carruagem
branca se aproximando. Levi saltou e abriu a portinhola
para que Maria Clara e nosso filho descessem.
Ela estava linda, usando um vestido branco, ajustado
na parte superior e mais solto na parte de baixo, onde sua
barriga de quatro meses de gestação já aparecia. Ficamos
radiantes com a notícia de que seríamos pais novamente, e
nosso filho, ao saber da novidade, começou a planejar com
entusiasmo o que poderia ensinar sobre a vida na fazenda
ao irmão caçula.
Maria Clara andou pelo tapete vermelho coberto de
pétalas coloridas carregando um buquê de flores logo atrás
do nosso filho que trazia as alianças.
Samuel ficou de um lado e Maria Clara, do outro.
Pouco ouvi as palavras do juiz de paz, minha atenção estava
voltada à linda mulher ao meu lado. Seus lábios seguravam
um sorriso de felicidade genuíno, e eu sabia que, não
importava o que tivesse que fazer, sempre me esforçaria
para vê-la sorrir daquele jeito.
Depois da cerimônia, voltamos ao casarão, onde, à
sua frente, uma enorme tenda branca foi montada, com
mesas decoradas com enormes vasos de flores ao centro.
Na maior delas, sentei-me ao lado de minha esposa e filho.
Recebemos o carinho de todos os nossos convidados
e começamos a desfrutar do banquete servido. Depois de
algum tempo, saí da tenda, o céu estrelado brilhava mais
forte do que nunca.
— A sua família é linda — disse meu amigo Levi,
segurando um copo de bebida e trazendo outro para mim.
— É sim — falei com orgulho.
— Não vão mesmo viajar agora?
— A Clara prefere esperar o nosso filho nascer.
Fizemos algumas viagens antes de saber da gravidez, agora
ela prefere esperar. — Bebi o líquido alcoólico que Levi
trouxe para mim.
— O importante é estarem juntos.
— É isso mesmo — concordei.
— Estou muito feliz por vocês — disse com
sinceridade.
— Obrigado. Agora, vou sequestrar minha esposa por
uma hora ou duas.
— Ninguém vai notar que os noivos sumiram —
brincou ele.
— Não com você nos dando cobertura. Cada vez que
alguém perguntar, você diz que nos viu em uma direção
diferente.
Meu amigo gargalhou.
— Você não consegue se segurar por uma noite?
— Quando você encontrar a mulher da sua vida, te
devolverei o favor.
— Acho que vai ficar me devendo pelo resto dos seus
dias. — Deu risada.
— Eu não esperava encontrar o amor da minha vida
e, mesmo assim, ela cruzou o meu caminho. Vai acontecer
com você também, amigo, quando menos esperar.
— Certo. Vou te dar cobertura — concordou ele.
Atravessei a tenda, cumprimentei Jaime mais uma
vez e andei até um círculo onde minha mulher conversava
com sua madrinha, a bisa e algumas esposas dos peões da
fazenda.
— Boa noite, senhoras. Eu preciso ter uma conversa
particular com a minha esposa, por favor, nos deem licença.
Sorrindo, entrelacei meus dedos nos de Maria Clara e
comecei a afastá-la do grupo de mulheres com quem ela
conversava.
— Madrinha, bisa, fiquem de olho no Samuel, por
favor.
— Eu estou bem aqui, mãe — gritou nosso filho,
brincando com os amiguinhos, correndo ao redor das
mesas.
— Não se preocupe — responderam elas enquanto
tomávamos distância.
Ao chegarmos em nossa casa, que pouco nos
lembrava da decoração anterior, graças à reforma de Maria
Clara, peguei-a em meu colo e a carreguei pela sala.
Depois, subi a escada e a levei até nosso quarto. Tranquei a
porta para que tivéssemos a privacidade de que
precisaríamos.
As luminárias da parede estavam acesas, havia
pétalas de flores silvestres sobre o chão e sobre a cama.
Velas acesas nos cantos e um balde com bebida gelada e
petiscos sobre a mesa da varanda.
Coloquei Maria Clara no chão e ela olhou
atentamente ao redor e depois para mim. Seus olhos
estavam marejados e um sorriso lindo marcava seu rosto.
— Quando fez tudo isso? — ela perguntou.
— Pedi à cerimonialista que deixasse pronto antes de
irmos para a festa na tenda.
— Nosso quarto está lindo. Tudo nesse dia foi lindo!
Aproximei-me dela e, com um braço ao redor de sua
cintura, trouxe o seu corpo junto ao meu. Meus dedos se
enroscaram nos cabelos da sua nuca, desfazendo o
penteado com flores.
— Obrigada, meu amor. Foi tudo perfeito!
— Eu que tenho que agradecer por você. Você é
minha vida, minha razão de felicidade, Maria Clara.
Minhas mãos desceram até seu pescoço, erguendo
sua cabeça. Seus olhos castanhos encontraram os meus, e
eu deixei que minha língua experimentasse seus lábios mais
uma vez. Não importava quantas vezes já tivesse feito
aquilo, cada beijo parecia melhor que o anterior.
Afastei-me, segurando seu pescoço com cuidado
entre minhas mãos.
— Eu te amo, Maria Clara — declarei.
— Eu também te amo, José Augusto.
Cada vez que Maria Clara me chamava de amor ou
declarava seus sentimentos, eu sorria por dentro. Ter seu
amor, tê-la em meus braços, entregue e sem reservas, fazia
com que eu me sentisse o cara mais sortudo daquele
mundo. Não importava o que tínhamos passado, e sim o
nosso presente e o nosso futuro juntos. Minha vida era
completa e muito graças a ela: minha Clara, o amor da
minha vida, que tinha me apresentado a verdadeira
felicidade.

FIM.
Recadinho final
Minhas queridas leitoras,
Obrigada por mergulharem nessa história comigo.
Cada página ganha vida por causa de vocês, que sentem,
torcem e se emocionam junto com os personagens. Espero
que meu livro tenha aquecido seus corações tanto quanto o
carinho de vocês aquece o meu.
Ao final da leitura, peço que deixem uma avaliação.
Isso é muito importante para nós. Ah, e me sigam no
Instagram (@evoitzszn_autora) para não perderem
nenhuma novidade, vem muita coisa por aí.
E não deixem de conferir as próximas páginas, onde
vocês encontrarão indicações de outros livros meus já
publicados. Espero que eles também conquistem vocês!
Com amor,
Edvânia Voitzszn.
“Uma Bebê Surpresa Para o CEO
Milionário”

Ele estava em busca de recomeçar sua vida.


Ela queria colar os pedaços do seu coração.
Um momento de entrega deu a eles um laço
eterno.
Gravidez inesperada + chefe e secretária +
bebê fofa

Gustavo Alencar é um CEO milionário que estava


rodando com sua moto pelo Brasil, depois do fracasso de
seu relacionamento.
Foi assim que ele a conheceu, em um restaurante
beira de estrada.
A imagem da linda jovem de cabelos castanhos
ondulados e olhos cor de mel o deteve no lugar.
Seu olhar se prendeu ao dela, e ele soube que ela
poderia fazer com que ele se perdesse ainda mais.

Ava Mendes teve seu coração partido por quem ela


acreditava ser o homem da sua vida.
Depois de muito sofrer em casa, ela aceitou o desafio
da sua melhor amiga: uma viagem curta, sem roteiro, sem
planejamento, para viverem apenas um dia de aventura. O
que ela não imaginava, é o quanto aquele dia
mudaria sua vida após se render a atração pelo
motoqueiro que cruzou a porta do mesmo
restaurante onde ela estava.

Desde então, mais de um ano se passou. Ava não


esqueceu o homem com quem dividiu aquele momento
intenso, ainda assim, ela nem sonhava em reencontrá-lo.
E por isso o susto foi grande ao voltar da licença-
maternidade e conhecer o seu novo chefe. O mesmo
homem desconhecido do restaurante, o pai da sua
bebê.
Ava e Gustavo terão a chance de construir uma
nova história juntos ou poderão continuar presos as
dores e medos do passado. Qual caminho eles irão
escolher?
Click aqui para ler
"Uma Noiva de Mentira para o Milionário
Turco"

Ömer Yaman é o único herdeiro de um império: um


homem de negócios, bem-sucedido, e que nunca desejou se
casar, nem ter qualquer compromisso que não fosse
relacionado ao seu trabalho. No entanto, chegando aos
quarenta anos, seu pai não aceita que o filho ainda não
tenha se casado e construído uma família, ameaçando o seu
lugar de direito no comando das empresas que ele lidera há
anos.
Stella Fernandes é uma jovem batalhadora com
um grande coração, sempre apoiando a todos que ama. Ela
estava planejando seu casamento com André quando ele a
roubou e fugiu.
Temendo que sua vida fuja do seu controle, Ömer
propõe a Stella um acordo inusitado que poderá
beneficiar ambos: ela finge ser sua esposa por um ano, para
“acalmar” seu pai, e em troca, ele dá a ela um valor mais
que suficiente para que possa reconstruir sua vida como
desejar após o tempo que viverem a farsa do casamento.
Contudo, ao passarem a morar sob o mesmo
teto, descobrirão o forte desejo que sentem um pelo
outro, e isso fará com que quebrem regras que
criaram para o seu relacionamento fake.
Em meio a farsa e a novos sentimentos, eles
descobrirão que o destino pode ser surpreendente.
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[1]
Expressão para indicar que alguém já comeu bastante ou que
almoçou bem.
[2]
bagunça, sujeira ou algo feito de forma desordenada.
[3]
A receita geralmente leva bisteca frita, tutu de feijão, couve
refogada e banana à milanesa. Para complementar, arroz branco e ovo frito. Os
ingredientes podem variar.
[4]

Geralmente se refere ao trabalho pesado ou às tarefas do dia a dia na


fazenda, como cuidar dos animais, plantar ou realizar outras atividades
agrícolas.
[5]
Provar ou comer um pequeno pedaço ou porção de algo.
[6]
Estabelecimento que serve bebidas alcoólicas e refeições, sendo a
cerveja a principal bebida vendida.
[7]
O fish and chips é um clássico da culinária inglesa. O prato consiste em peixe
empanado com batata frita.
[8]
Bisavó.
[9]
Professora

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