Disserta o Final Completa 2 PDF
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Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2013
Renata de Cabral e Castro
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2013
Para Jairo Rodrigues
(in memoriam)
AGRADEÇO
Mia Couto
Nelson Saúte
RESUMO
Buscamos analisar no romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de Mia
Couto, e nos contos reunidos no livro Rio dos Bons Sinais, de Nelson Saúte, o modo como a
performance dos narradores realiza, traduz e recria, no corpo da enunciação, a lógica dos
contadores tradicionalmente orais. Para tanto, averiguamos como se estruturam, nas
narrativas, o entrelaçamento, muitas vezes em tensão, das textualidades orais e escritas.
Embasamo-nos nas reflexões de Jean Derive, Hampâté Bâ e Kwane Anthony Appiah sobre a
importância da oralidade em África. Os conceitos de oralitura, tempo espiralar, ambos de
Leda Maria Martins, bem como o de narrador performático, de Teresinha Taborda Moreira,
foram cruciais para compreendermos e elucidarmos alguns dos processos da elaboração
ficcional. Contamos também com a noção de consignação, cunhada por Jacques Derrida, em
Mal de Arquivo.
Palavras-chave: Mia Couto; Nelson Saúte; narrador performático; tempo espiralar; oralitura.
ABSTRACT
We seek to analyze in the novel Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, by Mia
Couto, and in the tales collected in the book Rio dos Bons Sinais, by Nelson Saúte, the way in
which the narrators‟ performance accomplishes, translates and recreates, in the body of
enunciation, the oral story telllers‟ logic. In order to do so, we investigated how the
interlacement of oral and written textualities, often in tension, structures itself. We base
ourselves in the contemplations of Jean Derive, Hampâté Bâ and Kwame Anthony Appiah.
The concepts of oraliture, spiral time, both by Leda Maria Martins, as well as the
performative narrator, by Teresinha Taborda Moreira, were crucial to our comprehending and
the elucidation of some of the processes of the fictional drafting. We also count on the notion
of consignment, coined by Jacques Derrida, in Mal de Arquivo.
Keywords: Mia Couto; Nelson Saúte; performative narrator; spiral time; oraliture.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 88
1 INTRODUÇÃO
Numa das línguas banto do Congo, o mesmo verbo, tanga, designa os atos de
escrever e de dançar, de cuja raiz deriva-se, ainda, o substantivo ntangu, uma
das designações do tempo, uma correlação plurissignificativa, insinuando
que a memória dos saberes inscreve-se, sem ilusórias hierarquias, tanto na
letra caligrafada no papel, quanto no corpo em performance. (MARTINS,
2002, p. 88)
11
dos narradores que ali enunciam. Mia Couto evidencia seu projeto estético de explorar essa
linguagem em transe quando fala, em palestra ministrada na UFMG1, sobre a influência de
Guimarães Rosa sobre sua obra.
O autor deseja um texto que não se limita a ser texto, mas que nos lance para fora da
escrita, tal qual o dançarino de Moçambique que não se limita a dançar. Assume como
proposta literária, portanto, uma poética que, convergente com a de Manoel de Barros, busca
“voar fora da asa”2, um texto múltiplo, com “uma linguagem em estado de transe.” Tanto em
Mia Couto (2003), quanto em Nelson Saúte (2007), os limites entre prosa e poesia são
rasurados, a linguagem beira o encantamento. Justamente esse modo de narrar instigou nossa
pesquisa. Procuramos ao longo da dissertação analisar as estratégias utilizadas por esses
narradores, ou seja, buscamos demonstrar como se estrutura esse tipo de discurso
performativo. Por isso, nos detivemos na recorrência dos provérbios, máximas, lendas e
contos, bem como no uso das repetições, dos discursos diretos e indiretos livres, entre outros
recursos. Pesquisamos também a estruturação intergêneros, que propicia a mistura de fábulas,
mitos de origem, crônica, contos, cartas e romance.
Não há nas obras estudadas descrições demoradas e distanciadas, visto que os
narradores vivenciam, no tempo presente, a relação com as pessoas e os lugares. Captamos as
características do espaço, por exemplo, por meio da encenação de ações e fatos concretizados
pela palavra, pela estruturação discursiva. A narrativa instaura sua presença, não apenas por
meio de estratégias textuais, como o discurso direto ou indireto livre, mas também pelo modo
como esse narrador se apresenta, ele mesmo como presença de uma coletividade, pelo modo
1
A palestra Nas pegadas de Rosa foi ministrada em 2007, na FALE-UFMG, depois publicada como ensaio:
2
Verso e metáfora emblemáticos da obra do poeta Manoel de Barros. Disponível em:
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/05/voar-fora-da-asa/. Acesso em: 11 mar. 2013.
12
como é tomado por essa pluralidade. Singular, ele é todos. Sua voz é atravessada por diversas
vozes em temporalidades distintas, como vamos explicitar nos capítulos adiante.
A fim de melhor compreendermos esse processo de teatralização do discurso,
buscamos o embasamento no conceito de narrador performático, cunhado por Terezinha
Taborda Moreira, em O vão da voz:
Nas obras estudadas, essa narração performática acontece mediada também pela
rememoração, que mistura tempos e vozes distintas na enunciação, no corpo em presença
desses narradores, ou seja, a memória funciona como uma espécie de operadora das relações
dialógicas, das temporalidades diversas, o que permite aos narradores inscreverem, na
enunciação, esse mosaico de vozes e essa série de gestos. A análise desse processo narrativo
não se daria se não buscássemos compreender a concepção ancestral africana como uma
percepção cósmica e filosófica de mundo que faz coexistirem passado, presente e futuro. O
tempo não opera uma sucessão linear, não serve para ser mensurado e consumido em uma
sequência que descarta o que passou. Segundo Laura Padilha, a força ancestral “faz com que
os vivos, os mortos, o natural e o sobrenatural, os elementos cósmicos e os sociais interajam,
formando os elos de uma mesma e indissolúvel cadeia significativa.” (PADILHA, 1995, p.
10). Esses elos revelam a totalidade dos seres, em comunhão com a energia vital do universo.
Eduardo Oliveira, por sua vez, mostra que ancestralidade “é como um tecido
produzido no tear africano: na trama do tear está o horizonte do espaço; na urdidura do tecido
está o tempo. Entrelaçando os fios do tempo e do espaço cria-se o tecido do mundo que
articula a trama e a urdidura da existência” (OLIVEIRA, 2007, p. 245). O conceito está
ancorado no corpo e na corporalidade, remete-nos não somente ao conjunto dos nossos
ancestrais, como ao território e à territorialidade3. Consiste, portanto, em “estratégias
3
Percebemos a territorialidade como espaço de práticas culturais em que se criam mecanismos de representação
a partir da memória coletiva e de suas singularidades culturais.
13
sensíveis, para nos referirmos aos jogos de vinculação dos atos discursivos às relações de
localização e afetividade dos sujeitos no interior da linguagem”. (SODRÉ, 2006, p.10).
Buscamos examinar também o entrecruzamento da oralidade e das línguas
vernaculares com a língua de dominação, bem como a transcriação dos saberes ancestrais.
Intentamos perceber de que maneira esses registros, concepções e sistemas simbólicos se
confrontam ou dialogam. Para esse exame, os conceitos de encruzilhada e oralitura, ambos
de Leda Maria Martins, foram essenciais para a pesquisa e realização do trabalho. A
encruzilhada é
singular inscrição do registro oral que, como littera, letra, grafa o sujeito no
território narratário e enunciativo de uma nação, imprimindo ainda, no
neologismo, seu valor de littura, rasura da linguagem, alteração significante,
constituinte da diferença e da alteridade dos sujeitos, da cultura e das suas
representações simbólicas. (MARTINS, 2002, p. 21)
15
2 MEMÓRIA DAS ÁGUAS ANCESTRAIS
Neste capítulo, vamos analisar, nas obras Um rio chamado tempo, uma casa chamada
terra, de Mia Couto, e Rio dos Bons Sinais, de Nelson Saúte, a construção das temporalidades
que envolvem a morte e os desmembramentos simbólicos do significante rio. Pretendemos
ainda examinar como o processo narrativo das obras coloca em tensão os conceitos de
tradição, identidade, memória e modernidade – a partir das noções de transitoriedade,
errância e preservação. Para tanto, iremos averiguar como algumas personagens representam,
de maneira alegórica, a nação em ruínas.
Nas duas obras, a morte não representa o fim ou a extinção, ao contrário, significa uma
mudança de estado ou de plano existencial. Por meio da morte, os ancestres
agem sobre e com os vivos, ou seja, os mortos não desaparecem, mas continuam vivos de
uma outra forma. Os antepassados constituem o elo entre os homens e sua força primordial.
Na concepção banto, os homens, ao morrerem, reintegram-se à força vital que anima os seres.
Para compreendermos essa cosmovisão, é fundamental entendermos que o homem é integrado
à natureza. Conforme Amadou Hampâté Bâ, a noção de pessoa na África é muito complexa.
“Implica uma multiplicidade interior de planos de existência concêntricos e superpostos
(físicos, psíquicos e espirituais, em diferentes níveis), bem como uma dinâmica constante.”
(HAMPÂTÉ BÂ, 1977, p. 1). O autor ainda explica: “(...) a existência, que se inicia com a
concepção, é precedida por uma pré-existência cósmica onde o homem residiria no reinado do
amor e da harmonia (...)” (HAMPÂTÉ BÂ, 1977, p. 1). Por isso, o ser não termina em si
mesmo, amplia-se, na verdade, em múltiplas direções e dimensões que se comunicam. O
homem faz parte de um sistema de forças que inclui os reinos vegetais, animais e minerais.
Deve estar pronto para a morte, pronto para se transformar em ancestre. Precisa, então,
cumprir seu destino com ética e respeito aos seus familiares. Para tanto, é imperativo que os
rituais fúnebres sejam realizados e alguns segredos desvendados. Em vida, portanto, o homem
deve buscar o equilíbrio e a harmonia entre essas dimensões, qualquer transtorno pode
prejudicar o espaço onde reside junto à sua rede de parentesco.
16
A África tradicional concebe o mundo a partir de uma visão dinâmica que
observa todos os seres em perpétuo crescimento e numa interação constante.
A força vital está presente em todos os seres existentes: homens (tanto os
vivos quanto os antepassados), animais, vegetais, seres inanimados
(minerais, objetos, etc.), e mesmo nas qualidades ou modalidades desses
mesmos seres (entre os quais o belo, o feio, a verdade, a mentira etc.).
(SERRANO; WALDMAN, 2007, p. 138)
Essa circularidade aludida por Mia Couto (2011) revela-nos como a concepção de
homem e de ancestralidade fundamenta o romance, que, em tese, fluiria como a linearidade de
um rio. O tempo narrativo, entretanto, não é cronológico, é discursivo, isto é, resulta do
tratamento dado pelo narrador. Vários processos de anisocronia4 são utilizados, como as
elipses, as pausas, as analepses, as prolepses, entre outros (que serão mais detalhados no
capítulo 2). Além do mais, a diversidade voco-gestual estrutura-se de maneira a pluralizar e
performatizar a cena narrativa.
O tempo redondo – convergente, segundo Mia Couto (2011), com a lógica da
oralidade – está ligado aos ciclos da vida. Embora o conceito de circularidade seja coerente,
consideramos mais exata a noção cunhada por Leda Martins de tempo espiralar, que consiste
na “primazia do movimento ancestral (...) que matiza as curvas de uma temporalidade
espiralada, na qual os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estão em processo de
perene transformação”. (MARTINS, 2002, p. 84). A espiral, com seu número infinito de
4
Recurso literário que consiste na modificação do ritmo e da velocidade da narrativa, segundo definições de
Carlos Ceia (2005) e Moisés Massaud (2002) em seus dicionários de termos literários.
Disponível em: http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=569&Itemid=2.
Acesso em: 11 mar. 2013.
17
evoluções orbitais, consiste na interligação de círculos dispostos dentro de círculos. Por isso,
simboliza tanto a natureza cíclica da vida, quanto a interação dos diferentes ciclos do
universo, adequando-se mais, portanto, à literatura de Couto e Saúte.
O romance assume esse desenho espiralar que mimetiza as narrativas míticas e nos
coloca a morte como presença. Logo no início, o narrador afirma: “A morte é como o umbigo:
o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência.” (COUTO, 2003,
p. 15) No final do livro, a máxima (um pouco modificada) é retomada: “A morte é a cicatriz
de uma ferida nunca havida, a lembrança de nossa apagada existência.” (COUTO, 2003, p.
260). A morte umbilical nos remete não apenas à relação vital com a mãe (mulher e natureza),
como igualmente ao nascimento, ou mesmo a um renascimento simbólico. Cíclica, é essencial
para a cadeia de relações socioculturais de Luar-do-Chão. Essa anterior existência de Mariano
foi configurada e reconfigurada ao longo da narrativa. A cena em que a família pede
novamente ao médico para que chegue a um diagnóstico preciso sobre a saúde do velho nos
mostra a inconstância desse estado de “estar a morrer”
E o narrador conclui: “Enquanto vivo se dizia morto. Agora que falecera ele teimava
em não morrer completamente.” (COUTO, 2003, p. 37). A situação lhe parece mais do que
curiosa, irônica:
18
Esse homem “em desacordo de si” não consegue morrer, posto que não cumpriu seu
destino. Ele não se desliga do presente e comanda, por meio de misteriosas cartas, e com o
apoio de Marianinho, os rituais de seu próprio enterro. A morte ganha no contexto da obra
mais de um sentido, figura-se dinâmica, uma entidade viva e em movimento.
Este “Rio dos Bons Sinais” é uma deambulação pela história recente de um
país recém-chegado ao mundo e de gente que não se demarcou do estado de
fantasma. Há, nestas histórias, mortos que encontram a Morte, homens de
luto perpétuo que apenas visitam a vida nas cerimônias fúnebres, jovens que
amanhecem pendurados numa corda de sisal”5
5
COUTO, Mia. Comentário feito na contracapa do livro Rio dos Bons Sinais, na edição brasileira da Língua
Geral, de 2007.
6
CASTRO, Ruy. Comentário feito na orelha do livro Rio dos Bons Sinais, na edição brasileira da Língua Geral,
de 2007.
19
ao fotógrafo que sonhava com a libertação de Nelson Mandela. Ao mesclar ficção e
documentário, os contos “traçam um retrato poético, crítico e alegórico da Moçambique
contemporânea, de cujo contexto despontam inventários de ruínas, fragmentos, modulações
melancólicas de vozes a ecoar rastros de tradições, ritos e mitos de seu país.” (SCARPELLI,
2010, p. 244).
Nas duas obras, verificamos a impossibilidade de uma expressão coesa da nação. Essa
literatura que redesenha alegoricamente7 Moçambique faz emergir vozes normalmente
silenciadas e marginalizadas. A própria concepção de espaço nacional implica coletividade,
ideia de pertencimento a um grupo e a um local, que depreendemos como um conjunto de
diversidades e diferenças. Por isso, as ideias de preservação e errância convivem, mesmo
quando tensionadas nas narrativas.
Salientamos que
Mia Couto, em sua proposta literária, explicita para seu leitor o lugar
periférico de sua enunciação, construída em permanente tensão: rituais para
preservar e venerar a terra, metonímia da nação, convivendo em conflito,
com a diluição da fixidez de lugares e tradições; posição exilada do narrador;
processos globalizados de modernização violentando visões de mundo; a
casa, lugar de morada, de permanência, mas também aberta ao que vem de
fora e ligada ao cosmo. Tudo isso misturado, mestiçado a tantos outros
elementos em trânsito. (CURY; FONSECA, 2008, p. 83)
Essa transitoriedade, analisada por Maria Zilda Cury e Maria Nazareth Fonseca
(2008), é característica do narrador coutiano, um ser de fronteira que busca reinterpretar e
ressignificar as noções de identidade, em suas possibilidades cambiantes, longe do velho
preceito de fixidez ou solidificação. Afinal, “encontramo-nos no momento de trânsito em que
espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado
e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão.” (BHABHA, 2007, p. 19). A busca de uma
identidade fixa relaciona-se mal com a novidade – que se constitui como uma ameaça. É uma
ideia conservadora que nega a mudança, portanto não tem espaço na literatura de Mia Couto,
que desconstrói essa busca identitária única, como se fosse um re-conhecimento homogêneo e
fechado em si mesmo. As identidades culturais, ao contrário, não são rígidas, nem imutáveis,
21
discreto convívio social, destaca-se o medo da morte – embora ela seja tão comum naquela
região – e o seu insólito aliado: um guarda-chuva amarelo.
8
Segundo explica o narrador, quando uma mulher é infértil, costuma-se devolvê-la à família. Em muitas regiões
de Moçambique, ela não é considerada uma mulher verdadeira. (SAUTE, 2007, p. 17-19)
22
2.1 Pletora de Sentidos
Uma das lendas que ultrapassam as margens geográficas do rio é a de vida e morte de
Mariavilhosa. Ensimesmada, “ela falava tão baixo, tão baixo que nem a si se escutava.”
(COUTO, 2003, p. 231). Pouco se escutava também sobre a maneira como morreu, embora o
narrador buscasse conhecer a história de sua mãe, por isso insiste e questiona a avó:
Dulcineusa ainda completa: “– Água é o que ela era, meu neto. Sua mãe é o rio, está
correndo por aí, nessas ondas.” (COUTO, 2003, p. 105). A personagem não mimetiza a
23
história dos afogados, não segue, por exemplo, um fluxo linear como a virgem Ofélia 9, mas
verte-se em água como se se abraçasse, enamorada da ilha. A personagem de Shakespeare
simboliza, segundo Gaston Bachelard10 (2002), o suicídio feminino. Nasceu para morrer na
água, para encontrar seu próprio elemento – entendido nesse contexto como feminino e
orgânico. É uma afogada que, na superfície do rio, continua a sonhar, imagem explorada por
vários poetas e pintores ocidentais. Na versão de John Everett Millais (1851-2), uma das mais
conhecidas, prevalece a serenidade e a pureza dessa mulher idealizada em lago cristalino.
Entre pura e sedutora, virgem e ninfa, Ofélia é feito água lunar, um elemento melancólico e
triste. Já Mariavilhosa, ao adentrar o rio, torna-se – espectro e espelho – água. Passa a ser o
que já era. Mergulha em um rio impuro e desaparece. A personagem é feita da matéria água,
misteriosamente viva. Na cena, “(...) a água é também um tipo de destino, não mais apenas o
vão destino das imagens fugazes, o vão destino de um sonho que não se acaba, mas um
destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser.” (BACHELARD,
2002, p. 6).
Nas duas personagens, a simbologia feminina das águas é evidente, porém se
manifesta de maneiras bem distintas. Em Ofélia, uma pureza divinal em curso cronológico,
uma serenidade deslizante, um semblante de anjo. Em Mariavilhosa, uma divindade espiralar,
feito uma Dandalunda11, fonte e foz, um (re)encontro em águas profundas, cujo centro se
desloca em movimentos constantes. Ela “morreu no rio que é um modo de não morrer”
(COUTO, 2003, p. 196), conforme destaca avô Mariano.
O corpo de seu nome, uma espécie de mosaico de palavras, prediz a liquidez da qual é
feita. Ela é Maria, o que nos reporta de imediato à força feminina e à maternidade, ao morno
líquido uterino que simboliza a proteção e a morada do filho; maravilhosa, aquela que
encanta, como as divindades nagôs. Ainda dentro do nome, lemos o anagrama ilha e mar. Ou
seja, um ser que é margem e trajetória, sal e doce, superfície e profundidade, leveza e
violência. Um ser transitório, que nos incita à vertigem e ao mistério.
9
Ofélia é personagem da peça Hamlet, de William Shakespeare, escrita entre 1599 e 1601. Rainha Gertrudes é a
personagem que conta como se deu o afogamento de Ofélia.
10
O autor faz uma reflexão sobre a simbologia de Ofélia no livro A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
11
Inquice das águas, (CASTRO, 2005, p. 218).
24
A cena é de Fulano Malta quando joga-se no Madzimi. O personagem é enganado
pelas águas do rio, desorienta-se numa cegueira repentina que não lhe permite encontrar a
esposa. As águas estão violentas e sujas, como uma arrebentação, refletem o sangue e o choro
convulso dessa mulher que se travestiu de homem para tratar as sequelas de um aborto mal
feito com palmeira Lala, consequência de um estupro. A embarcação Vasco da Gama era só
para os brancos, “os marinheiros eram os únicos negros autorizados a embarcar” (COUTO,
2003, p. 104). A personagem não teve dúvida, vestiu-se de marinheiro e viajou, mas “o ventre
dessa mulher adoecera para sempre. Não havia cura de que a medicina fosse capaz. Das
costuras e cicatrizes escorria sangue sempre que na ilha nascesse uma criança.” (COUTO,
2003, p. 104)
Essa mãe-foz, voz ancestral que deságua na narrativa, modula a rede de relações e
reinventa a noção de fertilidade. Mariavilhosa foi, depois, acusada de impura, devido aos
costumes, por parir um natimorto – “O menino desnascido era um ximuku, um afogado. É
assim que chamam aos que nascem sem vida.” (COUTO, 2003, p. 231). Foi proibida de
adentrar a cozinha e de trabalhar nos campos, visto que sua impureza poderia “manchar a
terra inteira e afligir de infertilidade as machambas12” (COUTO, 2003, p. 231). A opacidade
desse costume entristece a personagem a ponto de ela quase não falar mais, ou dizer apenas
para si mesma. O filho que nasceu morto retrata um breve ciclo de vida, praticamente uterino,
permeado de segredos, e enseja, apesar do flagrante oxímoro, a confluência de morte e vida.
Em silêncio, ambos são água, elemento essencial à fertilidade e nutrição da ilha e à
sobrevivência de seus povos. A narrativa nos permite, então, ouvir o grão dessa voz
silenciada, à margem de uma lógica local ainda opressora à mulher, nos transporta, em sua
linguagem nascente, ao espaço simbólico da água e da metamorfose.
A morte de Mariavilhosa não assume um sentido literal, ressoa na pluralidade
simbólica do significante rio. Seu corpo líquido e transitório desfaz os conceitos totalizantes
sobre a mulher e a nação, “tornamo-nos conscientes de que o „pertencimento‟ e a „identidade‟
não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos por toda a vida, são bastante negociáveis e
revogáveis” (BAUMAN, 2005, p. 17). Para o teórico Zygmunt Bauman,
12
Plantação, roça. (CASTRO, 2001, p. 280)
25
O rio, portanto, configura-se também como o lugar da encruzilhada de sentidos, um
princípio múltiplo, um eixo (cujo centro se desloca) de indeterminações e transformações.
Nas ondas desse rio ambivalente, Marianinho vai se movimentando entre as fronteiras,
situando-se ao mesmo tempo dentro e fora, no centro e nas margens. Nesse entre-lugar13,
busca compreender sua história e dialogar com sua mãe.
Esse momento ritualístico mostra-nos um rio capaz de purificar o ser, “símbolo das
energias inconscientes, das virtudes informes da alma, das motivações secretas e
desconhecidas.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991, p. 21-22). Uma água que revigora e
gera um impulso inesgotável. Aos poucos, o protagonista vai aprendendo o sotaque da terra e
os matizes do idioma, um deles o silêncio, que, segundo Raquel Chaves,
O silêncio responde por que há quem o escute, quem respeite o diálogo com a natureza
em reverência ao sagrado. Dizer “Dá licença” junto ao gesto de pedir essa permissão é uma
ação performativa, na medida em que “o discurso produz a própria realidade que ele enuncia.”
(DERIVE, 2010, p. 38). Também performativo é o ritual de chegada de Marianinho:
13
O conceito de entre-lugar utilizado por Silviano Santiago é um operador de leitura ou resposta estratégica ao
pensamento colonizador. Passa a significar um movimento de resistência do colonizado à imposição dos valores
do colonizador europeu. Latino-americanizado, passa a ser também um locus de enunciação, espaço territorial,
geográfico, e também espaço discursivo. Esse “locus de enunciação do entre-lugar assume, então, na trilha do
pensamento de Derrida (1995), os sentidos do desvio semântico francês, operado pelo jogo da différance. Isso
significa ser, ao mesmo tempo, diferimento, ou repetição e diferença, marca de contestação e contrariedade – ou
para utilizar o termo de Silviano, marca de agressão”. (SOUZA, p. 8). É uma forma de testemunhar a
heterogeneidade e deslocar a única referência atribuída à cultura europeia, no momento da debilitação dos
esquemas cristalizados de unidade, pureza e autenticidade, amplamente trabalhados por Édouard Glissant e
Stuart Hall.
26
Quando me dispunha a avançar, o Tio me puxa para trás, quase violento.
Ajoelha-se na areia e, com a mão esquerda, desenha um círculo no chão.
Junto à margem, o rabisco divide os mundos – de um lado, a família; do
outro, nós, os chegados. Ficam todos assim, parados, à espera. Até que uma
onda desfaz o desenho na areia. Olhando a berma do rio, Tio Abstinêncio
profere:
– O Homem trança, o rio destrança.
Estava escrito o respeito pelo rio, o grande mandador. Acatara-se o costume.
Só então Abstinêncio e meu pai avançam para os abraços. Voltando-se para
mim, meu tio autoriza:
– Agora, sim, receba os cumprimentos!
Nada demora mais que as cortesias africanas. Saúdam-se os presentes, os
idos, os chegados. Para que nunca haja ausentes. Palavras que apertam tanto
quanto o entrecruzar de braços das mulheres que nos esperam. (COUTO,
2003, p. 26).
Por vezes, o jovem pretendente aparecia à beira dos seus sonhos, num
pangaio, e a resgatava dos demónios que a acossavam. Os dois partiam para
um destino oculto pela vegetação alta dos mangais em volta do rio dos Bons
Sinais. (SAÚTE, 2007, p. 134)
Sua vida uniu sonho, imaginação e mito. “Muitos eram os mitos sobre o luminoso
nome do rio dos Bons Sinais, sobretudo as histórias de amores com final feliz.” (SAÚTE,
2007, p. 125). Um deles, conforme assinala o narrador, foi (re)criado por ela. Maria
“inventara a lenda do rio e acreditava no espírito de Zúzu, invocado pelos velhos
nhamessoros15.” (SAÚTE, 2007, p. 122-123). Essa (re)invenção acompanhou sua vida,
penetrou seus sonhos e determinou sua morte. De tanto repeti-la, a lenda ganhou idade e
novos oradores: “numa madrugada de abril, rezava o mito, caminhara em direção ao rio
enquanto o sol ameaçava romper, anunciando um novo dia.” (SAÚTE, 2007, p. 133). É
crucial destacarmos que a personagem, apesar de sua família europeia, acreditava na filosofia
negra dos curandeiros, dos mais velhos, “que, na tradição banto, são as sombras dos
ancestrais.” (SAENGER, 2006, p. 53). Respeitava a força da palavra sagrada, “as saudações
às forças visíveis e invisíveis” (SAENGER, 2006, p. 60), expressa também em seu silêncio e
recolhimento.
O vasto rio de sua terra funciona na trama como um espaço ambíguo. É o lugar da
morte e do encontro do casal.
“Ali, à beira do rio, se tinham encontrado sessenta anos antes, naquele lugar
onde os residentes da cidade e os forasteiros se demoravam perscrutando o
silêncio das águas dolentes que fluíam e continuam a fluir sem pressa nem
destino.” (SAÚTE, 2007, p. 119);
Vale realçarmos que a morte de Maria é compreendida por ela como reencontro, não
como um fim. Ela acredita que vai viver nas águas o que não pôde experimentar na terra.
Personificado na figura ancestral de Zúzu, o rio abriga todos os homens, sem distinção de
credo e etnia.
15
Curandeiros (Tradução nossa)
29
2.2 Álbum de Retrato: Poético Rastro.
Uma das cenas curiosas que envolvem a morte de avô Mariano, em Um rio chamado
tempo, uma casa chamada terra, é a da fotografia familiar.
O teórico francês questiona o que a sociedade faz da foto, o que nela lê. A fotografia
funciona como advento de um eu com o outro. E quando nos vemos, já somos um outro que
lê esse eu fugaz. Se a fotografia, segundo Barthes, significa a morte do sujeito, na narrativa
coutiana, revela a morte do sujeito que morre, literalmente, no instante do clic. O retrato é o
flagrante de um momento que fica definitivamente suspenso para Mariano. O clic fisga o
presente do avô, transformado em passado num átimo de segundo. A câmara é como uma
máquina que guarda o tempo, o presente fugidio. É intrigante ver o avô fixo nesse álbum
30
empoeirado, matéria mnemônica de Admirança, pois ele, em catalepsia, é movimento, é
aquele que precisa contar seus segredos, diminuir suas culpas para morrer em harmonia com a
natureza.
Será que podemos ligar a morte de Dito Mariano à morte de sua representação?
Podemos ler a fotografia no romance como um requintado recurso de metalinguagem que
mata a representação do outro, daquele que é Dito, ou seja, narrado por alguém? Como um
índice que reflete a própria narrativa desse sujeito a morrer? O personagem morre na foto,
mas está a morrer no quarto da casa. Dito passou para o álbum de família, porém apresenta-se
nas cartas misteriosas endereçadas ao neto, nelas, é dono da própria voz, sem intermediários.
Barthes (1984) comenta ainda sobre um eu que não coincide com a imagem, a
fotografia traz o peso de fixar o sujeito, ou seja, contrapõe-se à leveza, fluidez e dispersão do
eu em movimento, ou do eu em trânsito, para aliarmos à situação de Mariano.
Essa inautenticidade descrita por Barthes é típica dos retratos posados, colados nos
álbuns de família, é como um arranjo de um momento vivido que é, na verdade, encenado.
Viver a experiência da morte e tornar-se espectro não deixa de ser um modo de
compreendermos o mais velho dos Marianos – que, fantasmático, desafia tanto a ciência de
Amílcar Mascarenhas quanto as crenças de Dulcineusa na feitiçaria. A ideia de que o retrato
rouba a alma da pessoa, crença comum em várias tribos, é registrada também por Henrique
Junod (1974) em algumas culturas banto. É como se a fotografia pudesse causar um
desdobramento do sujeito, um desligamento da alma e do corpo. Levar a foto de um lugar
para outro significa fragmentar o sujeito, gerar uma incompletude que afeta sua relação com a
natureza.
Podemos ler o álbum de família também como um espaço por excelência de
rememoração, cujo tempo suspende-se adormecido até que alguém abra o pesado livro para
31
desfolhar o passado. Como ler, no entanto, um álbum de retrato sem retrato? É o que fazem
Dulcineusa e Marianinho, cada um a seu modo.
O neto entra num jogo de invenção para tentar preencher as lacunas daquele álbum de
retratos, como se fosse capaz de afagar as cicatrizes da avó. Recria histórias, de modo a
incluir Dulcineusa no lastro sentimental do marido e da família como um todo. Terno e
cúmplice, participa de um jogo de ilusões e faz da palavra inventada uma outra maneira de
32
enxergar seus parentes. As “inexistentes” fotografias, cravadas pelo rastro do que já estivera
colado no álbum, revelam não apenas as ruínas de uma história em suas variadas versões,
como também os vestígios das imagens captadas num flash. O narrador avisa que, como ele,
as fotografias mentem, visto que não são sinônimos da realidade, apenas flagrantes de
instantes que podem ser lidos e relidos de muitas formas, como também salientou Roland
Barthes. É como se o narrador, nesse jogo, precisasse vivenciar uma compreensão étnica e
filosófica de mundo para dialogar com esses rastros e compor o álbum de família e sua
própria história.
A fotografia insiste em fazer durar o momento captado. No velho álbum de
Dulcineusa, os vestígios da cola fazem permanecer o que já esteve ali. Os “vazios” do álbum
metaforizam, em certo sentido, o próprio esgarçar da trama memorialista. Afinal, reconstituir
a memória é também folhear ausências.
O título Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra já explicita a relação da
casa com a terra, uma metonímia da nação moçambicana. Essa metonímia, entretanto, é
também problematizada no romance. A casa é simultaneamente o espaço que abriga os
parentes e seus costumes, como espaço das diferenças. O regional e o universal nela se
fundem.
Por fim, avisto a nossa casa grande, a maior de toda a ilha. Chamamos-lhe
nyumba-kaya, para satisfazer familiares do Norte e do Sul. Nyumba é a
palavra para nomear casa nas línguas nortenhas. Nos idiomas do sul, casa se
diz Kaya.
Mesmo ao longe, já se nota que tinham mandado tirar o telhado da sala. É
assim, em caso de morte. O luto ordena que o céu se adentre nos
compartimentos, para limpeza das cósmicas sujidades. A casa é um corpo –
o tecto é o que separa a cabeça dos altaneiros céus. Sobre mim se abate uma
visão que muito se irá repetir: a casa levantando voo igual a um pássaro (...)
(COUTO, 2003, p. 28-29).
33
discórdias. A visão que Marianinho tem logo na chegada, de que o voo da casa iria se repetir,
realmente acontece. Ele sonha com essa casa-corpo alçando voo junto aos pássaros de sua
terra. Uma (c)asa aberta para a pertença.
Gaston Bachelard, em A poética do Espaço, evidencia como a casa faz parte da nossa
primeira referência de universo, como cada canto, tal qual o sótão e o quarto simbolizam
nossos estados mais íntimos. Ainda segundo o autor, a casa, como um grande berço, significa
o lugar central dos nossos sonhos e devaneios. Porém, como é um espaço contraditório,
remete-nos aos nossos medos e inseguranças. Marianinho vivencia essa contradição em vários
momentos da narrativa. Quando adentra o sótão, é invadido pelo escuro:
Essa mulher misteriosa desvenda-se ao longo do romance como Nyembeti. Seu nome
significa lágrima, é a personagem que não apenas adentra a casa do sonho de Marianinho,
como a única capaz de umedecer e fertilizar a terra seca por meio de um ritual de amor.
(Des)orienta os olhares dos homens, corpulenta e nua sob a capulana. Não fala a língua
oficial, mas o dialeto da miséria, segundo diz o próprio irmão, o coveiro da cidade. Ela faz do
corpo a estadia de traficantes e “desenvolvimentistas”, que veem Luar-do-chão apenas como
uma possibilidade de lucro, e a mulher, apenas como um objeto descartável para saciar seus
desejos. Outros enigmas residem na história de vida da personagem, como a dificuldade de
falar e a ingestão de venenos curativos. Ela “representa a situação ambígua de um espaço
marginalizado” (CURY; FONSECA, 2008, p. 108). Seu corpo pode ser lido como metonímia
também da mulher africana, alvo da violência colonial, que persiste no país pós-
independência, dona de sabedorias e mistérios pouco valorizados pela lógica ocidental.
Essa casa feminina, que simboliza o colo da mãe e da avó, é um ser que precisa ser
afetivamente cuidado, regado, como num ritual de purificação. Essa casa-viva, que respira,
ganha também outras significações na obra.
35
– Deixe os búzios falarem. (COUTO, 2003, p. 100)
O personagem que está a apodrecer vivo é como um fantasma do que restou de si, um
ser dividido, em desarmonia com sua integridade física. Seu corpo é como o mapa da violenta
lógica de mercado que reifica o homem. Pensando com Derrida (1995), seu corpo é um
arquivo que reflete a sua experiência individual na história. O narrador o compara ao velho
prédio Pott, um personagem de 100 anos, que exibe seu estado de deterioração. O monumento
imponente do passado revela o abandono do presente.
O olhar que acende uma possibilidade de vida passa a habitar o narrador, fixa-se nele
como a inscrição de um sofrimento ambulante, capaz de adentrar sua solidão. Esse sujeito
36
desvestido de sua dignidade traça, com o vestígio de quem arrasta o corpo, a miséria dessa
cidade suja, maltratada.
Nada seria mais enganoso, até mesmo ilusório e ingênuo, do que acreditar
que o arquivo seria constituído por uma massa documental fixa e congelada,
tendo no registro do passado a sua única referência temporal, sem que os
registros do presente e do futuro estejam efetivamente operantes no processo
de arquivamento. (...) Esse engano e essa ilusão querem fazer crer que o
arquivo seja constituído por documentos patentes, isto é, tudo aquilo que de
fato ocorreu de importante no passado estaria efetivamente arquivado sem
rasuras e sem lacunas, ou seja, sem que estivesse em pauta qualquer
esquecimento. (DERRIDA, 1995, p. 49-54).
O corpo anônimo dessa mulher evidencia o paradoxo que o sustenta, ela está
imensamente magra, mal consegue carregar sua gravidez. O seu caminhar, repetido na
narrativa de modo a performar seus passos, deixa um vestígio de sua subjetividade
37
desconhecida, que se irmana à nossa também desconhecida biografia. A narrativa encena o
desenho dessa vida, grafada no movimento desse caminhar que é, ao mesmo tempo, vestígio
de uma subjetividade quase imperceptível e traço comum a muitos de nós. O narrador
sautiano se reconhece no anonimato dessa mulher que mal tinha visto, mas que enxerga
depois de ler o olhar daquele deambulante e sentir no próprio corpo a inscrição de um
sofrimento mais rotineiro na metrópole moçambicana do que ele gostaria de admitir.
16
VELOSO, Caetano. Alguma coisa está fora da ordem. CD Circuladô, de 1991.
38
“A água arrepiada pelo vento
A água e seu cochicho
A água e seu rugido
A água e seu silêncio
Caetano Veloso
3 ASA DA PALAVRA
Neste capítulo, vamos nos dedicar ao exame da transcriação dos saberes ancestrais –
representados pelas textualidades orais, que se configuram como elementos constitutivos do
tecido narrativo por meio de epígrafes, provérbios, máximas, contos, crônicas, lendas e
fábulas.
É crucial destacarmos que essas textualidades orais devem ser compreendidas como
um sistema de pensamento que representa um modo de ser e de se relacionar com a sociedade
e a natureza. Hampâté Bâ (1977) demonstra com exatidão o que significa a oralidade em
África:
Tanto o narrador de Mia Couto, no romance Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra, quanto os narradores dos contos de Nelson Saúte, em Rio dos Bons Sinais,
incorporam esse conhecimento tradicional e sua pluralidade epistemológica. Os saberes são
diversos e revelam-se de acordo com as aptidões de cada homem, como bem salientou
Hampâté Bâ (1977). Na tradição oral, “os conceitos encarnam-se na totalidade do ser.”
(HAMPÂTÉ BÂ, 1977, p. 14). Os narradores de Couto e Saúte, portanto, não falam sobre a
oralidade, eles a encarnam, vivenciam-na como um modo de expressão humana e uma forma
41
de interlocução. As narrativas rearticulam e reorganizam esses saberes, posto que são
flexíveis e mutáveis, e imprimem na língua do colonizador a performance dos contadores de
histórias, de modo a lacerar algumas estruturas já balizadas do português canônico, como
verificamos na opção pela pluralidade lexical e semântica que envolve diversas línguas banto
– chidindinhe, macua, cisena, emakhuwa, xichangana e elonwe. Não há uma tentativa de
traduzir para o português os termos e expressões, mas, sim, de usar a sonoridade, significação
e ritmo de cada vocábulo na composição da trama. Os tensionamentos vocabular e semântico
são pontuais, colocam a suposta unidade de uma língua oficial em xeque, criam uma lusofonia
própria, ou mesmo uma língua própria, desejo confesso do autor Mia Couto em diversas
entrevistas e depoimentos. É uma maneira de estar fora de um idioma, a ponto de a língua ser
do narrador. “De um lado um idioma que nos crie raiz e lugar. Do outro, um idioma que nos
faça ser asa e viagem. Ao lado de uma língua que nos faça ser humanidade deve existir uma
outra que nos eleve à condição de divindade.” (COUTO, 2011, p. 24)
Além do mais, esses termos revelam não apenas um falar típico dos homens da terra17,
mas também sua relação profunda com a palavra. Sábios, eles concedem à palavra o poder
mágico da criação, compreendem nela uma vocação que não seja meramente informativa, mas
divina.
A palavra é, entre os bantos, o que faz com que o homem seja o coroamento
da natureza. Ela dá a ele não somente o poder sobre qualquer coisa, mas
ainda o domínio dos fenômenos cósmicos. A palavra é, pois, a sublimação
da palavra. (SAENGER, 2006, p. 55)
17
Em Moçambique, com exceção dos falantes do xichangana, há um flagrante desequilíbrio dos dados de
falantes e leitores das línguas nacionais diante do português oficial, no que diz respeito à relação urbano/rural.
Na zona rural, não chega a 5% o número de pessoas que dominem a língua portuguesa, principalmente no que
tange ao letramento, segundo o Censo de 2007.
Disponível em: http://www.ine.gov.mz/Dashboards.aspx. Acesso em: 7 abr. 2013.
42
Além dessa atenção com o sotaque da terra e com a profundidade do vocábulo banto, o
narrador coutiano se vale também da invenção de adjetivos, substantivos e verbos; (re)cria
palavras e expressões, por meio da junção de dois ou mais termos, de um termo e um prefixo
ou sufixo. Os amálgamas aparecem em vários momentos e com intenções distintas. Em
alguns, o sentido precisa ser tão específico que só um neologismo o abrigaria, como
mortalecido (COUTO, 2003, p. 169), para descrever o estado do avô entre morto e
adormecido, ou como traumartirizado (COUTO, 2003, p. 215), usado pelo personagem
Ultímio para dramatizar sua situação na família. Sobre esse personagem, o narrador precisa
criar um verbo que revele sua personalidade em sua ação contínua: “Meu tio Últímio, todos
sabem, é gente grande da capital, despende negócios e vai politicando consoante as
conveniências.” (COUTO, 2003, p. 28) Em outros momentos, precisa descrever uma sensação
ou estado, como a quase cegueira de Miserinha: “Doença que lhe pegou com a idade.
Começou por deixar de ver o azul. Espreitava o céu, olhava o rio. Tudo pálido. Depois foi o
verde, o mato, os capins – tudo outonecido, desverdeado”. (COUTO, 2003, p. 20)
Em vários desses casos, os amálgamas revelam não apenas uma objetividade narrativa,
como também uma condensação de sentidos, como o anagramático nome Mariavilhosa, que já
fora analisado no primeiro capítulo, e o nome Abstinêncio, que retrata por si só o estado do
personagem. Notamos ainda uma recriação por meio de uma família comum, de maneira a
apresentar um lexema de partida, como em “Há ano que não visito a Ilha. Vejo que se
interrogam: eu, quem sou? Desconhecem-me. Mais do que isso: irreconhecem-me. (COUTO,
2003, p. 47)
O narrador não opta por apagar os conflitos evidentes na própria diversidade das
línguas vernaculares moçambicanas (algumas de etnias rivais), como evidencia a junção dos
idiomas do norte e do sul de Moçambique, por meio da invenção do substantivo composto
nyumba-kaya para nomear casa. Essa atitude nos mostra que o narrador não mistura
simplesmente a oralidade à escrita, mas tece uma trama que comporte, tanto no entrelace
quanto no cruzamento, sistemas de pensamentos diversos, ora assonantes ora dissonantes. É
uma escolha que resvala, inclusive, na opção política de unir a diversidade linguística e étnica
do país. Não há, portanto, uma manutenção do equivocado dualismo oralidade versus escrita.
Tramadas, as textualidades oral e escrita revelam a complexidade de cada personagem e
situação narrativa e determinam o ritmo dos textos. Gesto, voz e corpo participam da intenção
comunicativa, que consiste também em um espaço de trânsito, transe e migrações.
43
Mia Couto propõe um modo de pensar a literatura pela mobilização de vozes
encarnadas nas culturas marcadas pela oralidade e pela diversidade
linguística em seus respectivos territórios. A fala e a escrita possibilitam
caminhos significativos para a compreensão da ficção e da história.
(QUELHAS, 2012, p. 105)
44
foi aquele que lutou para que a riqueza fosse distribuída, mas que se percebeu em uma cilada
política no dia da consagração dos “heróis” nacionais; foi aquele que se incomodou com a
acomodação da instituição católica, “que parecia ajoelhar-se mais perante os poderosos que
perante Deus.” (COUTO, 2003, p. 88). A sua sabedoria, adquirida pela experiência, funciona,
na narrativa, como um ensinamento e como uma antecipação de certos episódios. Esse
“fulano qualquer”, em sua fala aparentemente ingênua, é capaz de nos alertar contra as
falácias da história oficial, daí a importância de seus dizeres, que podemos denominar, para
pensarmos com Michel Pollak (1989), de recuperação das memórias subterrâneas.
18
Feiticeiro, em Chidindinhe, um dos 25 idiomas de Moçambique. (Tradução do editor).
46
As reinvenções das máximas anelam passado e presente e transparecem uma maneira
particular de convívio com a coletividade. Alguns mistérios são desvendados no curso
narrativo, cuja antecipação já fora feita pelas personagens, como é o caso da morte de Juca
Sabão, dono da epígrafe do primeiro capítulo: “Encheram a terra de fronteiras, carregaram o
céu de bandeira. Mas só há duas nações – a dos vivos e a dos mortos.” (COUTO, 2003, p. 14).
Cabe perguntarmos qual é o sujeito da primeira frase de Juca, a quem ele se refere?
Evidentemente, há um distanciamento entre a sua voz e a ação de demarcar territórios, vinda
de fora. O motivo de sua enigmática morte só é revelado por avô Mariano no capítulo 13,
intitulado Uns pós muito brancos.
Quer saber dos pós brancos, esses que trouxeram sangue e luto para o nosso
lugar? Você, meu neto, está lançando a isca mais longe que o anzol. Fique
sabendo, meu xará: você não veio aqui chamado por funeral de pessoa viva.
Quem o convocou foi a morte de todo este lugar. Luar-do-Chão começou a
morrer foi quando assassinaram meu amigo Juca Sabão. (...)
Deflagraram no meu amigo um par de balas, por motivo de uns sacos que
trouxeram lá da cidade e deixaram na arrecadação lá de casa. O Juca não
sabia de nada. Só que havia uns sacos de desconhecido conteúdo, por baixo
de uma velha lona. Quem trouxe aquilo foi o sobrinho de Juca, o tal
Josseldo. Vinha com companhias bastante indesejosas, uns tantos
malfeitores de cabeças raspadas, uma tropa de quebrar respiros. E outros,
que mais se desenfeitavam: lenços amarrados na cabeça. (...)
Pois a Juca Sabão aquilo não cheirou bem. Coisa boa não seria. Por isso,
veio ter comigo e me disse de sua aflição.(...)
Juca Sabão e eu espalhamos os pós sobre as terras aráveis. Vazámos sacos e
sacos pelas paisagens, misturámos tudo com as areias para dar sustento ao
chão. (COUTO, 2003, p. 171-172).
Avô Mariano conta ainda que os mandriões disseram que os sacos trariam riqueza para
a ilha. Se trariam riqueza, havia de ser estrume; por isso, os personagens espalharam a cocaína
pela terra, na esperança de verdejá-la. Os malfeitores, entretanto, unidos ao sobrinho de Juca,
não confiaram no relato e espancaram-no, a fim de arrancar uma confissão que não ouviriam.
Juca, indefeso, agarrou um punhado de terra nas mãos, como se se irmanasse ao chão.
Miraram sua cabeça. Atiraram. “A terra que ele trazia nas mãos nunca chegou a cair. Tombou
foi ele, pesado e despenhado. Mas a terra sustida na concha de suas mãos, esta ficou para
sempre aninhada no gesto de Juca.” (COUTO, 2003, p. 173). Mariano prossegue:
47
Meu amigo levou em sua mão a devida porção da terra. Me compreende?
Juca não esperou que os outros lhe atirassem os torrões. Ele mesmo lançou o
primeiro punhado de areia sobre seu corpo. (COUTO, 2003, p. 173).
19
Encaixe consiste em uma técnica segundo a qual a história secundária se introduz na ação principal.
48
somos, na nossa pequenina travessia pela Terra, tanto o carvão que alimenta o fogo, quanto
sua brasa.
Tia Admirança também reflete sobre nossa relação com o fogo, sua fala é epígrafe do
capítulo 18- O Lume da Água: “Olhamos a estrela como olhamos o fogo./ Sabendo que são
uma mesma substância,/ apenas diferindo na distância em que a si mesmo consomem.”
(COUTO, 2003, p. 209). A personagem compreende a estrela como o poder ígneo e radiante
do fogo – elemento de uma simbologia ambivalente, pois ilumina e aquece, mas destrói e
consome. A simbologia de consumir, no entanto, pode ser relacionada à mudança e à
renovação. O mesmo fogo que destrói revigora os ciclos existenciais. Intuitiva, Admirança é a
personagem cuja sabedoria é mística e reveladora, ela ilumina e acende o narrador, abrasa seu
desejo e o remete à sensação de estar em casa.20
Compreendemos, assim, que a um elemento vital
Podemos afirmar que a prosa miacoutiana nos incita, portanto, a uma atenta escuta
desses personagens, cujos timbres e alturas são determinantes. Afinal, é “pela escuta que nos
chega o mundo.”21
É salutar percebermos que o espaço textual, modulado por essa coletividade, é também
concebido como ruína e incompletude. Produzimos sentido por meio de fragmentos, somos
constantemente deslocados de uma voz a outra, de uma concepção a outra, de Fulano Malta a
Padre Nunes, de Curozero Muambo a João Celestioso. É como se as alegorias de uma terra
20
Mariano descobrirá depois que tia Admirança é, na verdade, sua mãe.
21
Eliane Brum, em entrevista concedida a Claudiney Ferreira e a Sérgio Vilas Boas, para o programa Jogo de
Ideias. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=26shR0oQ2Is&feature=relmfu. Acesso em: 23 de
jul. 2012.
49
dilacerada, como analisamos no primeiro capítulo, desnudassem a impossibilidade de uma
representação total da nação e de seus atores sociais.
Marianinho modifica o dito popular fez dele gato e sapato para a pergunta retórica O
que dele a vida foi fazendo, gato sem sapato? A indagação reforça o sentido de que a vida fez
pouco de seu pai, tirou-lhe até os sapatos, o que pode, em um primeiro momento, soar
anedótico pelo jogo de palavras, mas, por certo, deflagra o desgosto de Fulano com os rumos
políticos de seu país, que já foram a motivação de sua vida. A estratégia de perguntar no lugar
de afirmar – sem recorrer simplesmente à paráfrase – é persuasiva, pois reforça ainda mais a
incompreensão do filho. É como se ele inquirisse a vida, como se pudéssemos ler
implicitamente “Como assim fazer tão pouco da vida de meu pai, um antigo idealista? O que,
vida, você foi fazer a meu pai?” O narrador confirma o significado original, porém relocando-
o a outro registro de representação.
Vale destacarmos ainda a maneira como a seriedade do assunto é trabalhada pelo
narrador – o gesto do velho a evidencia: “Naquele momento, meu velho sentou, grave”. E, por
meio do discurso indireto, a voz do pai perpassa a voz do filho: “Aqueles que, naquela tarde,
50
desfilavam bem na frente, esses nunca se tinham sacrificado na luta.” Conhecemos aí, em um
trecho curto, um dos seus motivos de desencanto para com a política: a apropriação indevida
da glória pela independência, típica dos políticos que assumiriam depois o poder e manteriam
a mesma prática corrupta e cínica dos colonizadores.
Em outro momento de diálogo entre pai e filho, Fulano desfia mais uma vez sua raiva
por Ultímio:
Pelo caminho, vou-lhe relatando o encontro com Ultímio. Meu pai reage
com fúria. Vocifera.
– Ultímio é um satanhoco!
– Não fale assim, pai. Ultímio é um nosso tio, temos que juntar a família,
num momento destes...
– Isso é conversa coçada. Aqui chamamos de cuspo de vespa.
Eu queria amolecer a pedra, mas não haveria água que chegasse. Eu que não
me desperdiçasse. Ultímio não merecia. Porque esse meu tio, sua mulher e
seus filhos se guiavam era por pressas e cobiças. Queriam muito e depressa.
E se sucediam aos colonos: olhavam uma terra e já estavam pensando: quem
dera fosse minha. Do que se sabe, porém: a terra não tem posse. Não há
dono vivente. Os únicos fiéis proprietários são os mortos, esses que moram
lá. Como o Avô que estava prestes a tomar posse do chão. (COUTO, 2003,
p. 168)
Novamente essa troca de palavras, fiada por coçada, ao mesmo tempo em que soa
zombeteira revela a raiva de Malta, que inclui ainda a expressão cuspo de vespa ao dito
conversa jogada fora, o que amplia e modifica o sentido original. Essa reinvenção mescla
tempos distintos e garante uma coesão singular à cena narrativa. Paul Zumthor (1993)
considera o provérbio um microdiscurso narrativo que encerra sua moral em si mesma. Mas
ao rearticulá-lo no contexto enunciativo, o narrador transporta-o para outra esfera de sentido,
ou mesmo joga com os sentidos.
Marianinho reflete sobre o breve diálogo com outra transcriação proverbial: “Eu
queria amolecer a pedra, mas não haveria água que chegasse.” Um jogo evidente com “Água
mole em pedra dura tanto bate até que fura.” Além de brincar com o dito popular, metaforiza
a relação entre pai e filho. O pai é tal qual a pedra, não apenas teimoso, mas endurecido diante
das agruras vividas. O filho é como a água, pois busca amolecer e enternecer o coração desse
pai, bem como acalmar sua fúria. Decide, no entanto, assumindo-se um ser de água, não “se
desperdiçar”, visto que Ultímio não merece a insistência do movimento da água a perfurar a
pedra. A reflexão narrativa contrasta, de certo modo, com o que disse ao pai – via discurso
direto – sobre juntar a família.
51
Esse tio, cujo nome22 já indica a pressa e o pragmatismo, corrompe a própria
concepção familiar moçambicana, pois desfaz de seus parentes, deixa-os em desamparo, além
de desrespeitar os rituais fúnebres. Mesmo sendo aquele que retorna de Portugal, Marianinho
conhece e respeita os valores tradicionais de sua terra. Ao contrário de seu tio, sabe respeitá-la
como espaço de um povo, chão dos parentes mortos (sempre em presença), uma nação
ancestral.
Já sobre os desencantos de Abstinêncio, Marianinho foi tomando ciência na conversa
com o indiano Amílcar Mascarenha. Além do uso do discurso direto para demarcar a fala do
médico – sua voz parece integrar a voz narrativa – conseguimos visualizar o diálogo entre os
dois personagens e como a fala de um vai se imiscuindo à do outro:
22
Podemos pensar a relação de Ultímio com o termo ultimato, que consiste nas últimas exigências de um Estado
a Outro em situações de conflito e/ou guerra, ou mesmo na declaração final e irrevogável para a satisfação de
certas exigências, segundo o dicionário Aurélio, edição de 1999. No caso, a declaração do personagem
satisfaria os poderes de fora contra a sua nação. Relacionamos o nome também ao termo último, no sentido de
ser o mais recente, moderno, ou mesmo atual (FERREIRA, 1999, p. 2026), visto que o personagem sente-se
como aquele que vive em sintonia com os processos de globalização.
52
singular para se referir às impressões do médico sobre Ultímio, comparsa dos poderosos.
Utiliza, nessa retomada de lugar, a repetição do termo ele, como uma forma de marcar sua
fala de narrador, que não se prolonga, logo é cedida novamente ao médico via discurso direto.
Este, por sua vez, encerra, categórico, o assunto: “No charco onde a noite se espelha, o sapo
acredita voar entre estrelas.” Expressa-se proverbialmente para criticar a ilusão desmedida de
Ultímio, que endossa o poderio e a ideologia de fora. As características didática e moral do
dito popular são mantidas. Além do mais, fica evidente o rastro de pensamento do colonizado,
quando assume o estereótipo sobre si mesmo imposto pelo colonizador como uma verdade
imutável, conforme salientam Maria Zilda Cury e Maria Nazareth Fonseca23: “enquanto o
colonizado não se torna crítico de sua situação de dominado, ele, invejando o lugar ocupado
pelo colonizador, torna-se presa dessa dicotomia própria ao sistema colonial.” (CURY;
FONSECA, 2008, p. 71). Ultímio será sempre sapo diante da estrela, apesar de seu poder
crescente, sentir-se-á sempre inferior diante do Outro. Ainda assim, desejoso de ser o Outro,
reproduz os abusos de poder contra os nativos de Luar-do-Chão e toda a sua família. Os
ilhéus, por sua vez, aceitam o papel de dominado, a obedecer e a “invejar os brilhos”, segundo
Marianinho – que assume, nesse momento, seu olhar estrangeiro sobre os moradores de Luar-
do-Chão.
Sobre essa dicotomia entre dominadores e dominados, Homi Bhabha faz a seguinte
reflexão: “É sempre em relação ao lugar do Outro que o desejo colonial é articulado: o espaço
fantasmático da posse, que nenhum sujeito pode ocupar sozinho ou de modo fixo e, portanto,
permite o sonho da inversão de papéis.” (BHABHA, 2007, p. 76)
Essa inversão de papéis, simbolizada por Ultímio, não condiz, por exemplo, com
Abstinêncio, que chega a ser “magro por timidez: para ser menos visto.” (COUTO, 2003, p.
119). Ele personifica, sob certa ótica, a ideia de invisibilidade social e de apagamento do
sujeito, torna-se, em alguns momentos do romance, uma mera sombra de si mesmo, daquilo
que ousou sonhar um dia. Zeloso funcionário, envelheceu junto às paredes da repartição,
deixando a marca de seu corpo no pedaço de madeira do condomínio, irmão de idade, de onde
não saiu nem para a nova pintura, preferiu cravar a marca de sua presença no corpo do prédio
e misturar-se à paisagem da vila. Vale questionarmos até que ponto essa “presença” não
significa justamente o avesso, um rastro de uma ausência que se fez presença ali,
pontualmente, naquele posto da repartição. Sabemos que a invisibilidade é um sintoma social
23
As autoras retomam a reflexão de Frantz Fanon em Os condenados da Terra (2005). Para o autor, colono
significa aquele que repete a ideologia da ordem colonial e acaba exercendo o papel de mediador dos
seguimentos sociais.
53
que busca anular o sujeito em sua completude e complexidade e cria um estigma sobre ele. Ao
estigmatizarmos uma pessoa, a anulamos, ela torna-se invisível, posto que vemos apenas o
reflexo da nossa própria intolerância, vemos apenas a máscara que projetamos nela. A
invisibilidade é um modo de cegueira que corrompe a ideia de comunhão social.
Há uma fome mais funda que a fome, mais exigente e voraz que a fome
física: a fome de sentido e de valor; de reconhecimento e acolhimento; fome
de ser – sabendo-se que só se alcança ser alguém pela mediação do olhar
alheio que nos reconhece e valoriza. Esse olhar, um gesto escasso e banal,
não sendo mecânico – isto é, sendo efetivamente o olhar que vê – consiste na
mais importante manifestação gratuita de solidariedade e generosidade que
um ser humano pode prestar a outrem. Esse reconhecimento é, a um só
tempo, afetivo e cognitivo, assim como os olhos que veem e restituem à
presença o ser que somos não se reduzem ao equipamento fisiológico. O
olhar (ou a modalidade de percepção fisicamente possível) que permite ao
ser humano o reencontro com sua humanidade é o espelho pródigo que
restaura a existência plena, reparando o dano causado pelo déficit de sentido,
isto é, pela invisibilidade. Esse olhar vê o outro, restituindo-lhe – ao menos
potencialmente – o privilégio da comunicação, do diálogo, da troca de sinais
e emoções, da partilha de valores e sentido, da comunhão na linguagem.
Esses olhos que veem tecem entre as pessoas a ligação que é a matriz do que
chamamos sociedade. (SOARES, 2005, p. 215/216)
A ausência desse olhar efetivo, que permite a existência plena, para pensarmos com o
antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, destitui o projeto de sociedade
independente pelo qual lutou Fulano Malta, e com o qual sonhou Abstinêncio, que fora
consumido pela tristeza – “às vezes lhe raspava a asa de um sonho e ele deslugarejava. Estar
bêbado era sua única emoção.” (COUTO, 2003, p. 120) Por algum tempo, foi considerado
louco, visto que passou a mudar de nome constantemente, a assumir os nomes dos mortos:
“Morria José e ele se nomeava José. Falecia Raimundo e ele passava a ser Raimundo. Quando
o médico o questionou sobre o porquê daquele saltitar de nome, ele respondeu: – É que,
assim, acredito, que nunca morreu ninguém”. (COUTO, 2003, p. 119).
Sua atitude demonstra como ele encarnava os amigos, colocando o eu em comunhão
com a coletividade. Os amigos mortos estavam presentes ali no corpo de Abstinêncio, que
revivia esses homens; fazia José, Raimundo, entre outros, permanecerem em Luar-do-Chão.
Era os amigos para ser ele mesmo. Esse homem que “deslugareja para abrir a asa do sonho” é
justamente o que faz de seu nome local para que outras vozes o habitem. O trânsito desses
nomes – metonímia dos homens que viveram na ilha e idealizaram também uma terra livre –
revela a encruzilhada de sentidos que perpassam Abstinêncio. Ele coabita saberes diversos,
faz do seu corpo um portal cósmico, um “lugar radial de centramento e descentramento (...),
54
de multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação.”
(MARTINS, 2002, p. 65)
Se por um espectro abster-se parece simplesmente sumir, tornar-se invisível aos olhos
do Outro (que assume sua cegueira social como única perspectiva possível), por outro, revela
o cansaço do personagem com a caricatura do funcionário dedicado, sempre a serviço de algo
ou alguém. Ele conviveu com a sombra desse estigma como se se abraçasse, como se se
projetasse à luz de uma verdade, calou-se diante das contradições, bebeu as mazelas da ilha,
mas guardou24 o saber fundante de seu povo e a palavra sagrada dos antigos. “Entre os Negro-
Africanos, o existir do além-mundo não é um simples conhecimento teórico: é uma convicção
muito prática que repercute na vida dos vivos.” (RICOEUR, 1994, p. 132).
A partilha de valores e a comunhão da linguagem, em Luar-do-Chão, acontecem na
periferia do poder; ocupam seu lugar de destaque, entretanto, no corpo performativo da
narrativa coutiana. Na abertura do capítulo 14- A Terra Fechada, a epígrafe é o lírico
provérbio africano “A lua anda devagar, mas atravessa o mundo.” (COUTO, 2003, p. 175),
que nos ensina a paciência, a capacidade de esperarmos o giro da lua. Não à toa, antecipa a
fracassada tentativa de enterrar Mariano na dura terra que não se abre para receber o corpo do
Avô. A terra está fechada por alguns motivos que ultrapassam a cega lógica cartesiana com a
qual lidam Ultímio e os traficantes de fora, como vamos entender melhor na análise das
cartas, mais adiante. O crucial agora é notarmos como o manuseio dos provérbios e ditos
populares, segundo já dissertou Terezinha Taborda Moreira, “revela o teor persuasivo de seu
discurso, expresso através do emprego constante de mecanismos retóricos calcados em
argumentos extraídos do saber da tradição ancestral.” (MOREIRA, 2005, p. 113). Esperar
pelo giro da lua, ou seja, pelo tempo certo, consiste em um saber que escapa aos supostos
donos da terra, isto é, àqueles que acreditam tomar posse da terra apenas pelo dinheiro ou pela
força das armas. Com essa epígrafe, o narrador endossa a voz oracular da tradição.
Em outros momentos, o narrador, nas suas brincriações25, redesenha os sentidos,
mesmo quando matizados pelos saberes ancestrais. O narrador coutiano não assume, no
corpo da linguagem e do discurso, os saberes tradicionais acriticamente, como bem salientam
Maria Nazareth Fonseca e Maria Zilda Cury (2008). As estratégias de tratamento linguístico
24
Usamos o verbo guardar também no sentido a ele atribuído pelo filósofo e poeta Antônio Cícero: Guardar uma
coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por/admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.// Guardar uma coisa é
vigiá-la, isto é, fazer vigília por/ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,/isto é, estar por ela ou
ser por ela.//Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro/Do que um pássaro sem voos. Disponível em:
http://www.releituras.com/antoniocicero_menu.asp. Acesso em: 13 fev. 2013.
25
Definição do próprio Mia Couto para seus jogos de palavras.
55
são postas em tensão e ressignificação. Afinal, a cultura é também atravessada por negações e
afirmações.
Conforme define Walter Benjamim, “os provérbios são ruínas de antigas narrativas,
nas quais a moral da história abraça um acontecimento, como a hera abraça um muro.”
(BENJAMIM, 1994, p. 221). As ruínas dessas micronarrativas constituem-se tanto como
reverência à sabedoria dos mais velhos quanto como atualização da tradição, como já
exemplificamos. Tempos diferentes dialogam nas vozes inventadas dos anciãos ficcionais,
que expressam um saber advindo da experiência, como vimos em Amílcar Mascarenhas e
Fulano Malta. Esse movimento de migração de um contexto enunciativo para outro resulta
não apenas na reunião, como na reutilização dessas ruínas narrativas que ganharão novas
formas e sentidos. São fragmentos de falas populares recolocados no puzzle-narrativo, que se
recusa à unidade e à pureza, visto que transfigura os saberes contidos nesses fragmentos. A
própria moral dos ditos pode ser ressignificada – quando o movimento do narrador tende à
paráfrase ou ao pastiche – ou mesmo desconstruída, por meio das paródias.
“A combinação dissonante da voz do narrador e da voz do outro transforma o discurso
em ação realizada em gestus.” (MOREIRA, 2005, p. 155). Paul Zumthor designa por gestus o
comportamento corporal em um todo – risos, lágrimas, feições, movimentos. Se a dicção do
narrador é de fato configurada em um gestus, ele se volta para um Outro, ou seja, existe e se
revela pelo diálogo26. Ora o narrador expressa sua particularidade, ora permite que ela se dilua
no coletivo. É crucial percebermos que
26
Tomamos o termo como assinalado por Mikhail Bakhtin na sua análise de Fiódor Dostoiévski (BAKHTIN,
1981). Todos os enunciados no processo de comunicação, independentemente de sua dimensão, são
dialógicos. Neles, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro.
Todo discurso é atravessado pelo discurso alheio. Nenhum discurso é só do indivíduo, como se estivesse fora
de um contexto. O dialogismo consiste, portanto, nas relações de sentido que se estabelecem entre dois
enunciados.
56
uma nova lógica estrutural. “Na filosofia africana cada um é porque é os outros. Ou dito de
outro modo: eu sou todos os outros.” (COUTO, 2011, p. 81). O narrador coutiano é
engendrado por essa diversidade linguística e cultural. É performático e dialógico; sua
narrativa constitui personas e comportamentos, vozes e ações, mas não de maneira a repeti-los
simplesmente ou a representá-los. Não há um narrador arbitrário a dizer em nome deles. Ao
contrário, o narrador é um performer apto a iniciar um diálogo. “E não necessariamente
concluí-lo, já que o diálogo se manifesta como abertura para a transcriação performática.”
(MOREIRA, 2005, p. 100).
Nesse cruzamento entre as textualidades orais e escritas que funcionam no fluxo
ficcional como um processo de transcriação dos saberes ancestrais27, verificamos a
notoriedade do saber comum a um povo, a uma nação, até mesmo a um continente, como na
citação do provérbio africano (utilizado como epígrafe) “Foi na água mais calma que o
homem se afogou.” (COUTO, 2003, p. 165). Genérico, esse ensinamento popular liga a moral
que encerra em si mesmo, na sua brevidade oracular, às novas significações internas do tecido
narrativo. No caso, ele abre o capítulo quatorze, antecipa acontecimentos e descobertas –
como a incapacidade de a mãe-terra se abrir para receber seu filho, Avô Mariano. Endossa,
portanto, a fala comum do homem africano. Aninha-se no novo contexto, re-elaborando o
enigma que o constitui. Por qual motivo o homem se afogaria em águas tranquilas? O que
essas águas metaforizam na narrativa coutiana como um todo?
Além da sabedoria proverbial que encerra uma verdade universal sobre os homens,
muitos desses dizeres, quando não colocam o mistério no eixo da micronarrativa, estruturam-
se como enigmas e nos exigem o exercício paciente da escuta e do silêncio para possíveis
decifrações.
27
Vale lembrarmos que a ancestralidade consiste numa percepção cósmica e filosófica de mundo.
57
citadas e incorporadas ao discurso de Marianinho, mostram esse elo geracional, bem como a
concepção ancestral africana, na qual são indissociáveis homem e natureza:
Quando já não havia outra tinta no mundo o poeta usou do seu próprio
sangue. Não dispondo de papel, ele escreveu no próprio corpo. Assim,
nasceu a voz, o rio em si mesmo ancorado. Como o sangue: sem foz nem
nascente. (Lenda de Luar-do-Chão). (COUTO, 2003, p. 219).
A voz nasce do poeta, de seu sangue, fluxo “em si mesmo ancorado”. “Sem foz nem
nascente”, um movimento que nos remete à espiral do tempo: o ato é final (“já não havia
outra tinta no mundo”) e inicial (“Assim nasceu a voz”), um indício mítico que embaralha
temporalidades. O corpo do poeta é espaço da e para a escrita; forma e conteúdo, um local de
saber – para pensarmos com Leda Martins (2002) – um lugar de memória e recriação dessa
memória. Ato e palavras intrínsecos – restauração e transcriação de saberes compartilhados –
figuram-se nessa cosmovisão. A interação entre os elementos cósmicos e sociais, a
compreensão telúrica e filosófica de mundo inscrevem-se na organização metanarrativa.
Afinal,
28
Padre, mestre de cerimônia. (Tradução do editor, p. 39)
29
Moeda de Moçambique.
30
Periferia da cidade de Maputo, Moçambique. Região conhecida pela disputa de espaço para abrigar um número
cada vez maior de mortos.
31
Vamos para casa! Vamos para casa! (Tradução do editor, p. 35)
58
Anchilo repetia em todos os discursos as mesmas palavras, fazia aqueles
seus gestos amplos, como se neles quisesse albergar toda a humanidade. Ele
conseguia, com suas palavras, apagar, por instantes, a solidão do mundo. (...)
Tinha as mesmas frases, não importava de que defunto se tratasse. (SAÚTE,
2007, p. 36).
O bordão “Vamos para casa” é reconhecido pela comunidade, e, por isso, aceito como
expressão sagrada da tradição. Naquele instante, mesmo em fingimento, mesmo vestindo-se
de outro para alimentar a família e fugir à humilhação de relatar sua demissão, cabia à
Anchilo o poder de um orador, de um mestre de cerimônia. Destacamos que “a palavra tem
geralmente uma função performática que corresponde à expressão de um poder social efetivo
(...)”.(DERIVE, 2010, p. 28). O protagonista conseguiu, por alguns meses, representar esse
papel social. Aliado às expressões e fragmentos que repetia nos funerais (com sua habilidade
de amenizar a solidão de todos), sua gestualidade garantia a teatralização – com aqueles seus
gestos amplos como se abrigasse não apenas os parentes, mas toda a humanidade. Além do
mais, “sua indumentária não enganava, trata-se de um representante divino.” (SAÚTE, 2007,
p. 41)
O protagonista, entretanto, foi desmascarado, em meio à algaravia de parentes no
funeral de um vizinho e à vergonha de sua mulher.
59
afinal, “todo discurso preservado pela cultura deve assumir uma forma que o torne
memorizável.” (DERIVE, 2010, p. 49)
Por meio de analepses – técnica narrativa que consiste nas retomadas e na mudança de
direção do tempo32 – conhecemos a história de Anchilo, que “estava na pele do pregador”
(SAÚTE, 2007, p. 35). O tom jocoso, que nos remete à frase lobo em pele de cordeiro, retrata
uma troca mais complexa do que a dicotomia bem versus mal, o protagonista, de fato, veste a
pele do pregador, vive outra relação social, na qual a palavra é o grande vetor de poder. O
torneiro-mecânico torna-se orador, um ministro de Deus, isto é, aquele capaz de celebrar o
retorno do morto a casa – metáfora de terra e de origem. O narrador trabalha com uma lógica
de edição e repetição típica dos contadores de histórias, capazes de fisgar nossa atenção,
mesmo com a dispersão comum à relação escuta/fala. Na narração performática, conforme
analisa Terezinha Moreira (2005), uma primeira série de gestos que a repetição gera nos
permite visualizar a cena. É como se o narrador teatralizasse o discurso.
Essa cena abre o conto e é retomada e relocada na lógica narrativa de modo a garantir
o clímax da história:
32
Segundo concepção dos dicionários de termos literários. Disponível em:
http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=558&Itemid=2. Acesso em: 11
mar. 2013.
60
A essa situação de impossível refúgio, diante da flagrante presença da mulher no
enterro do vizinho, resta ao marido desconsiderar a algazarra de vozes dos parentes e amigos
e encarar sua esposa. A importância dos provérbios é novamente salientada pelo narrador no
desfecho do conto, que coincide com o desfecho do enredo.
Com a mão direita livre – na esquerda tinha sua bíblia – limpou
vagarosamente as lágrimas da mulher e abraçou-a. Depois, da proverbial
sabedoria das suas palavras, que a mulher jamais haveria de por em causa,
fez o discurso mais curto da sua condição de pregador:
– É a vida!
E os dois saíram do cemitério de mãos dadas sob o espanto dos incautos.
(SAÚTE, 2007, p. 44-45)
Os gestos do protagonista, o afago com a mão livre e o abraço, são determinantes para
cessar a desarmonia do casal. Apesar de desmascarado, a mulher jamais questionaria a
sabedoria proverbial do marido, pois há uma hierarquia de poder do discurso, a palavra do
chefe de família, em princípio, é autoridade sobre a mulher e sobre as crianças, como destaca
Jean Derive (2010) ao analisar as instâncias de poder da palavra oral em África. Ressaltamos
que os provérbios geralmente guardam uma dupla significação, ou mesmo abrem-se como
possibilidades polissêmicas de compreensão. Na sua brevidade, incitam sempre um outro
sentido para além do imediatamente apreendido. Em “É a vida!”, o que não está dito é mais
significativo do que o próprio resumo que a sentença encerra. No caso de Anchilo, podemos
ler/ouvir É a vida, eu não tinha outra opção. A vida me trouxe a essa situação-limite de
sobrevivência. Ou ainda Faz parte da vida fingir, minto porque é a vida, faz parte da minha
vida de desempregado. A esposa compreende rapidamente a amplitude significativa da
máxima, colhe, em silêncio, os interditos, e responde à situação com o gesto de dar as mãos
ao marido, como se finalizasse, junto ao narrador, o enredo.
Como demonstramos, as narrativas analisadas, tanto de Mia Couto (2003), quanto de
Nelson Saúte (2007), assumem a característica de um evento, pois as performances orais dos
contadores de histórias de Moçambique são metamorfoseadas – corroborando o conceito de
Terezinha Moreira (2005) – de modo a configurarem-se na escrita como corpo da cultura oral.
As recriações literárias, via citação, paródia e pastiche, recuperam sensibilidades e relíquias
da linguagem, espelham, portanto, um modo de compreensão do mundo.
61
3.3 Gestos, Silêncios e Pausas
62
O gesto de apontar o dedo, signo de poder, visto que a avó é a mais velha, já indica
que a conversa não será tão fácil. Marianinho é o alvo, ele não compreende, de imediato, o
motivo. Sente culpa ao enxergar os dedos machucados da avó, porque foi aquele que ficou
distante da família. Essa viagem de retorno, no entanto, acaba por lhe mostrar,
paradoxalmente, o quão de fora e de dentro é.
A cena prossegue:
A palavra completa o gesto: a conversa é com neto. Essa voz “sumida” que se repete
entoa que a ordem não se assemelha ao grito, mas à atitude e ao lugar de poder destinado à
anciã. Os timbres, em suas nuances, são tão significativos quanto as palavras e os gestos. O
movimento de Admirança para sair, a fim de escapulir da difícil conversa que se anuncia,
rapidamente é respondido por Dulcineusa: “Você fica, Admirança!” Notamos que essa
teatralização da cena acontece também pelo uso, aproximado, da didascália – quando o
dramaturgo instrui o ator e o encenador sobre a ação dramática, sobre o gesto da personagem
antes da fala. O narrador miacoutiano presentifica a ação da personagem: “E virando-se para
mim” – jogo de corpo que antecipa a próxima fala. A pergunta da avó, na sua economia de
palavras, gera a tosse de Abstinêncio, o que deflagra a tensão do momento. A tosse é uma
ação do corpo para livrar-se de substâncias que irritam a passagem de ar, como poeiras e
fungos. Essa contração espasmódica repentina reflete a tentativa do tio de livrar-se da
pergunta, de salvaguardar as intimidades do sobrinho. A avó, entretanto, é decisiva, não
concede a fala a Abstinêncio.
Ela queria saber se o neto já tinha alcançado a idade de luto, ou seja, a idade de
cumprir os ritos do funeral. Já sabia que Mariano queria o neto (filho) para comandar as
cerimônias, mas temia que não estivesse pronto. Por isso, insiste em interrogá-lo. Queria
saber se já era homem, se fora circuncidado.
Abano a cabeça, negando. Meu pai nota meu embaraço. Calado, me sugere
paciência, com um simples revirar de olhos. (...) Um constrangimento nos
encolhe a todos. (...) Não chego a pronunciar palavra. A conversa rodopia no
63
círculo pequeno dos donos da fala, em obediências e respeitos. Tudo lento,
para se escutarem os silenciosos presságios. Após longa pausa, a Avó
prossegue:
– Falo tudo isso, não é por causa de nada. É para saber se você pode ou não
ir ao funeral.
– Entendo, Avó.
– Não diga que entende porque você não entende nada. Você ficou muito
tempo fora.
– Está certo, Avó. (COUTO, 2003, p. 32)
A negativa resposta de Marianinho é gestual, bem como o diálogo silencioso entre pai
e filho, ambos cientes do código de conduta da tradição. Marianinho não chega a pronunciar
palavra, mas todos o compreendem. Ficar calado reflete uma postura do personagem diante
dos parentes, diante dos donos da fala, ou seja, os mais velhos. A cena é emblemática, visto
que nos coloca diante desse ritual social da fala, conforme salienta Derive (2010) acerca das
tradições orais na África. Quem fala o quê? Quando? Como? A lentidão é outra característica
desse ritual, pois é fundamental um tempo para que esse silêncio coletivo, repleto de
significações, se processe e seja assimilado. Todos naquele ambiente devem escutar o silêncio
e seus presságios. A avó, dona da palavra, direito adquirido com a experiência, volta a dizer
depois de longa pausa – outra forma de expressão da oralidade. A pausa é determinante para
emissão e ritmo da conversa, ela só acontece nesse movimento de tensão e repouso, voz e
silêncio. Dulcineusa ainda interpela o neto ao dizer que ele não entende nada, pois ficou fora
da ilha por um longo período. Esse entendimento ele vai conquistando ao longo dos dias que
antecipam o funeral do velho Mariano, o neto, de fato, precisa vivenciar e rememorar a ilha.
Breve e respeitoso, confirma o dizer da avó.
Christophe Wondji, assim como Derive, reflete sobre o papel social da palavra: “A
palavra é ato. Vem do mais profundo do ser. Compromete. Por isso, um chefe – de família ou
de aldeia – só utilizará a palavra no tempo e no local apropriados.” (WONDJI, 1996, p. 10).
No romance, notamos tanto o compromisso com o que é dito, quanto com o que é silenciado.
Dulcineusa pode parecer, em uma primeira leitura, imprudente por insistir na conversa,
mesmo diante do constrangimento da família, mas essa sensação é desconstruída ao longo do
romance. A velha avó sabia exatamente por que e onde falar com o neto, que se descobre filho
de Mariano, portanto aquele destinado a cumprir os rituais do funeral. Mesmo assim, ela não
antecipa essa verdade, sabe a hora de silenciar. Marianinho a descobre pela via de outras
escutas. O narrador, “além de assumir a postura de escutador (dos conselhos, ordens,
ensinamentos) dos mais velhos, é também um observador dos silêncios que antecedem,
64
preenchem ou regulam as conversas.” (CHAVES, 2012, p. 26). A confissão de Malta ilustra a
análise de Rachel Chaves:
O ato de calar no romance ganha outros sentidos, como resistir, desistir de um enredo
por impaciência, submeter-se a alguém, sentir medo, entre tantos. Mas, em muitos deles, a
associação com guardar um segredo ou aninhar um mistério prepondera, como percebemos
nessa curtíssima conversa entre Marianinho e Abstinêncio.
Meu tio faz-me sinal para que me afaste da gorda. Mas não a posso deixar
sem cumprir esse favor de atravessar o mercado. Olho para o céu. Passa a
lenta garça, de regresso às grandes árvores.
– Veja, Miserinha, uma garça!
– Isso garça não é. É um mangondzwane.
É um pássaro-martelo, bicho coberto de lendas e maldições. Miserinha
reconhecia-o sem deixar de olhar para o chão.
– Fique atento a ver se ele canta.
Passa sem cantar. Um frio me golpeia. Ainda me lembro do mau presságio
que é o silêncio do mangondzwane. Algo grave estaria a ocorrer na vila.
(COUTO, 2003, p. 27)
3.4 Cartas
33
Quando dois ou mais gêneros se mesclam. Os diversos gêneros textuais são, como prática comunicativa,
dinâmicos, portanto passíveis de transformações. São aqui definidos por sua forma e função. O romance de
Mia Couto não perde sua função por mesclar-se à estrutura da carta.
34
Segundo os níveis conceituais de Ángel Rama (1983): o da língua, o da estruturação literária e o da
cosmovisão. Transculturação é um processo capaz de desencadear a relação de transitividade entre culturas
em confronto, desestabiliza a noção de hierarquia entre elas.
66
um sistema que não se altera e nem deve ser alterado, pois é um registro escrito fixo que
chega a um destinatário específico. Por mais que a carta seja considerada um gênero
subjetivo, que pode, inclusive, se aproximar da fala, manifesta-se tradicionalmente por meio
de um registro escrito inviolável que deve chegar ao seu interlocutor. Na narrativa coutiana,
entretanto, a carta “converte-se num palimpsesto reescrito pela voz.” (ROTHWELL, 2010, p.
98). O narrador “joga com os conceitos de ausência e presença” (ROTHWELL, 2010, p. 96),
a associação costumeira entre presença física e voz, ausência e suporte escrito é desfeita no
romance. Marianinho encontra folhas que surgem misteriosamente, a caligrafia é sua, mas a
voz é do velho Mariano.
1ª Carta
Ainda bem que chegou, Mariano. Você vai enfrentar desafios maiores que as
suas forças. Aprenderá como se diz aqui: cada homem é todos os outros.
Esses outros não são apenas os viventes. São também os transferidos, os
nossos mortos. Os vivos são vozes, os outros são ecos. Você está entrando
em sua casa, deixe que a casa vá entrando dentro de si. (COUTO, 2003, p.
56)
2ª Carta
Depois de ouvir um ruído na casa aparentemente vazia, a segunda carta aparece sobre
a cabeceira. Trêmulo, Marianinho mal consegue ler.
Essas cartas, Mariano, não são escritos. São falas. Sente-se, e em bastante
sossego e escute. (...) Visitará estas cartas e encontrará não a folha escrita
mas um vazio que você mesmo irá preencher, com suas caligrafias. (...) Eu
dou as vozes, você dá a escritura. Para salvarmos Luar-do-Chão, o lugar
onde ainda vamos nascendo. E salvarmos nossa família, que é o lugar onde
somos eternos. (COUTO, 2003, p. 64-65)
Espaço também de escuta dedicada, a carta expressa a sabedoria desse avô a morrer,
em trânsito. Marianinho no movimento de caligrafar a voz de seu avô, reconhecendo-se nela,
apreende sentidos.
68
O ouvinte escuta, no silêncio de si mesmo, esta voz que vem de outra parte,
ele a deixa ressoar em ondas, recolhe suas modificações, toda
„argumentação‟ suspensa. Esta atenção se torna, no tempo de uma escuta,
seu lugar, fora da língua, fora do corpo. (ZUMTHOR, 2010, p. 16).
(...) foi mesmo assaltado por súbita visão: ele esvoava, cruzando nos céus
com outros homens que, em longínquas nuvens, também sobraçavam
livros.(...) Correu até o cais e antes que subisse pelos ares gaivoteando sem
direção, ele deitou os livros todos no rio. Mas, porém, os cujos livros não se
afundaram. Demoraram-se na superfície como se ressentissem às fundezas,
as páginas abertas agitando-se como se fossem braços. E seu pai, no desvario
do medo, o que viu foi corpos sem vida, náufragos ondeando na respiração
do rio. E fugiu, aterrorizado. Até hoje, ele acredita que esses maldiçoados
livros estão flutuando no rio Madzimi. (COUTO, 2003, p. 66-67).
O embate entre a cultura letrada – que levaria seu filho para longe – e a sabedoria
popular e oral não impede Fulano Malta de se imiscuir na potência dos livros. Índices de
conhecimento, eles performam-se, humanos, nas águas de Madzimi e arrebatam esse pai a
ponto de livrá-lo de suas amarras, por instantes, para que vivencie a experiência do voo. Mas
o medo de voar sem direção, o mesmo de atravessar as águas e vivenciar o desconhecido, faz
com que Fulano coloque no rio os livros – metonímia de conhecimento e estudo formal. A
prosopopeia é ambígua, pois os livros representam esse conhecimento que o faz alçar voo,
mas são como náufragos a boiar no rio, são fantasmas que flutuam no Madzimi – que,
também personificado, respira, é fonte de vida e margem que divide a ilha. As páginas abertas
feito braços simbolizam o perigo do pensamento de fora, que pode impor o saber letrado
sobre a família, como se matasse a sabedoria dos fulanos. A história recria e poetiza o clichê
69
de que os livros nos transportam e nos levam além, em uma cena que, se por um lado tensiona
os saberes, por outro, os amalgama.
3ª e 4ª Cartas
O valor das vozes nas práticas de oralidade, nas relações face a face, é um
decisivo elemento na formação cultural e subjetiva da personagem que narra,
o que talvez explique e legitime sua habilidade em traduzir silêncios e
palavras, o invisível e o visível. (QUELHAS, 2012, p. 109-110)
70
Sou eu, Dito Mariano, o sombrio escrevente. Por que razão escrevo? Porquê
não lhe apareço em voz, falando dentro da sua cabeça? Escrevo porque
assim tem mais distância. Eu podia falar-lhe, enquanto você espreita na sala
sem tecto. Mas já não tenho voz que seja visível. (...) Assim eu uso a sua
mão, vou na sua caligrafia, para dizer as minhas razões. (COUTO, 2003, p.
139).
Essa voz invisível ganha novos timbres em Marianinho, que reescreve sua história. Ele
é surpreendido por Dulcineusa, que queima a terceira carta com a lamparina, com medo do
que elas poderiam significar.
Lhe pego nas mãos, a adocicar seu coração. Lhe afago os dedos, mesmo por
cima das cicatrizes, como se estivesse corrigindo seu passado. O suspiro dela
me dá coragem:
– Avó, quero lhe pedir uma coisa.
– E é o quê, meu neto?
– Não deixem que enterrem o avô agora. (COUTO, 2003, p. 130).
5ª, 6ª e 7ª Cartas
71
Mariano sabe que o silêncio é uma linguagem, bem como uma forma de aprendizado e sabe
dar voz a essa atitude de calar-se para aprender com o outro, para compartilhar com o outro
uma experiência de vida.
A sexta carta se inicia silente, mas em uma atmosfera mais opaca: “O silêncio se
intromete. Não há mais alma para conversa” (COUTO, 2003, p. 170). Nesse caso, o diálogo
precisa terminar, pois está pesado. Não há a leveza de admirar o ofício do amigo sapateiro ou
a leveza do desprendimento e introspecção para chegar a (D)eus. Marianinho resolve
escrever, vai anotando frases soltas, quando sua mão desobedece seu traço e se transfigura em
outra escrita. Nela, são relatados os detalhes da morte de Juca Sabão e a certeza de que o
poderio dos traficantes é capaz de matar a ilha como um todo, ou seja, é capaz de corromper a
tradição e o ensinamento dos mais velhos, bem como liquidar o modo de viver coletivo.
Essa morte de um jeito de viver e de pensar o mundo é o mote da sétima carta.
Querer abraçar uma “nova” forma de enxergar a vida e a comunidade, como ocorre
com a transformação do sujeito em indivíduo – que só existe porque consome, só se realiza
porque tem o carro do ano e o celular de última geração – é como assassinar a cosmovisão de
Mariano e seus parentes. É como cortar, com as lâminas do cartão de crédito e de promessas
vazias do marketing, a própria noção de família. “Em muitas línguas africanas a palavra
„pobre‟ é a mesma que diz „órfão‟. Na realidade, ser pobre é perder as redes familiares e as
teias de aliança social.” (COUTO, 2011, p. 84). As crianças perambulando pelas ruas, os
jovens invejando a riqueza dos traficantes e Miserinha dormindo em papelões sujos são cenas
que retratam o desamparo e o esgarçar desses laços familiares.
Por isso, Mariano começa a morrer vivo, vai falecendo aos poucos e chega a sentir
vergonha de sua velhice, que nomeia de “declínio”. Esse sentimento retumba uma visão de
72
mundo ocidental na qual os velhos valem pouco porque não produzem mais riqueza para o
país.
A carta é um apelo à escuta de Marianinho, que deve amparar a avó e sossegar os tios,
afinal o velho que tanto morreu em vida ainda não está pronto para sua morte e sepultamento.
O assunto mais doloroso precisa ser resolvido.
8ª e 9ª Cartas
Só por meio da oitava carta Marianinho toma ciência de que é filho de Mariano e
Admirança. O pai-avô detalha sua história de amor proibido com a cunhada, bem mais jovem
que Dulcineusa. Dito Mariano acredita que essa mentira fez a terra se fechar, negando-se a
recebê-lo. Além da vergonha de mentir aos parentes, ele guarda a culpa de ter vendido a arma
de Fulano Malta aos filhos de Ultímio para garantir um dinheiro, a mesma que matou seu
amigo Juca Sabão. “A terra não aceita o espinho dessa mentira. Agora deito mágoa na folha,
como se rasgasse o silêncio em que guardei essa má lembrança.” (COUTO, 2003, p. 238).
Sentindo-se pronto, pede para o filho-neto procurar o coveiro. E prossegue:
Sabe, Marianito? Quando você nasceu eu lhe chamei de água. Mesmo antes
de ter nome de gente, essa foi a primeira palavra que lhe deitei: madzi. E
agora lhe chamo outra vez de água. Sim, você é a água que me prossegue,
onda sucedida em onda, na corrente do viver. (...) Afinal, tudo o que escrevi
foi por segunda mão. A sua mão, a sua letra, me deu voz. Não foi senão você
que redigiu estes manuscritos. E não fui eu que ditei sozinho. Foi a voz da
terra, o sotaque do rio. (COUTO, 2003, p. 238)
O sotaque do rio flui no curso das redescobertas de Marianinho, quando busca sua voz
em meio à algaravia familiar e aos problemas da ilha. Ao mesmo tempo em que as cartas
revelam sua letra, reverberam os ecos do avô-pai. Quanto mais encena a voz do avô, mais se
torna Marianinho. Seu retorno a Luar-do-Chão não foi simples e desprovido de conflitos de
diversas ordens. A sensação de ser de fora, de não ser de nenhum lugar é explicitada em
vários momentos, em um deles, o narrador nos conta: “As ruas estão cheias de crianças que
voltam da escola. Alguns me olham intensamente. Reconhecem em mim um estranho. E é o
que sinto. Como se a ilha escapasse de mim, canoa desamarrada na corrente do rio.”
(COUTO, 2003, p. 91).
Quando pretende mostrar as cartas para Curozero Muando, elas se desfazem,
empapadas. O coveiro indaga sobre as cartas e o narrador lhe responde com um “gesto calado,
73
de mãos vazias” (COUTO, 2003, p. 240.). Muando entrega-lhe um caniço para que o espete
na cabeceira da tumba e comenta: “Foi uma caniço que fez nascer o homem. Estamos
repetindo a origem do mundo.” (COUTO, 2003, p. 240.). Essa repetição, dinâmica porque une
temporalidades distintas, simbólica porque mítica, concede aos personagens a experiência de
vivenciar as espirais do tempo, para pensarmos com Leda Martins (2002). A narrativa
performa, portanto, essa “temporalidade curvilínea” capaz de constituir os sujeitos da
memória e de reconfigurar a origem do mundo.
Esse jogo com a presença e ausência acontece ainda na última carta. Deitado sob a
maçaniqueira na margem do rio Madzimi, Marianinho sente-se como um viajante entre dois
mundos: dos vivos e dos mortos.
Mestre na ciência das águas, aquele que aprendeu a grafia das chuvas, o avô-pai
encerra: “Você, meu neto, cumpriu o ciclo das visitas. E visitou a casa, terra, homem e rio: o
mesmo ser, só diferindo em nome.” (COUTO, 2003, p. 258). A sensação de totalidade do ser
atravessa os Marianos, espelhados na simbiose letra e voz. As cartas, afinal, mediaram um re-
encontro em presença.
A imagem de missivas distanciadas se esvai diante das nervuras dessa folha que cai
esvanecida, um dos símbolos da efemeridade da vida. Na narrativa das cartas, a letra é voz,
vive no momento exato de sua expressão, “articula a sintaxe contígua através da qual se
realiza”, conforme ressalta Leda Martins (1997), performa-se de modo a unir os dois
Marianos.
74
3.5 Contos, Crônicas e Fábulas.
A narrativa de Nelson Saúte, em Rio dos Bons Sinais, concilia o lirismo e o ritmo dos
contadores à estruturação intergêneros, cuja ligação com o contexto histórico35 de seu país é
evidente. Elementos constitutivos da crônica jornalística são livremente misturados à lógica
fabular e ao conto. Segundo Jean Derive (2010), na lógica oral, os gêneros são definidos pelo
enunciado e enunciação ao mesmo tempo. Essa combinação dupla evidencia a confluência de
tipos e gêneros como uma organização discursiva pouco estável, marcada pela variabilidade.
Essa instabilidade é uma das características da escrita sautiana, apesar de a literatura não ter a
comunicação direta e imediata com a audiência. Derive destaca ainda como a concepção de
gênero nas comunidades orais da Costa do Marfim era mais ligada à temática do que à forma,
como conto de caça, mito da fertilidade, canto fúnebre, canto de casamento, entre outros.
Consideramos nesta análise o processo de atualização e readaptação das narrativas de
tradição oral, bem como a forma dos gêneros, com seus elementos constitutivos e suas
características mais específicas. O livro Rio dos Bons Sinais foi publicado no Brasil pela
editora Língua Geral, em 2007, com o título36 de conto moçambicano. Em vários desses
contos, no entanto, as características da crônica jornalística se evidenciam, como a mistura do
narrador ficcional com o cronista Saúte, bastante conhecido dos moçambicanos, por sua
atuação na mídia impressa, radiofônica e televisiva de Maputo.
Vamos examinar mais detidamente essa mistura no conto A terra dos homens sem
sombras, oitavo do livro. É uma narrativa que abriga diversas temporalidades, tanto o passado
histórico quanto o mítico encontram-se com o presente e com o futuro. Os mitos de guerra e
dos guerreiros naparamas – contos temáticos das textualidades orais de Moçambique – são
narrados em uma urdidura híbrida, que se vale também da estruturação tipicamente
jornalística, a de refletir sobre um fato, ou tomar o factual como mote para elaboração da
crônica. José Castelo, em seu ensaio Crônica, um gênero brasileiro37, comenta:
35
Há várias menções ao longo do conto à guerra civil do período pós-independência.
36
Linha editorial.
37
Originalmente publicado no suplemento literário Rascunho, em setembro de 2007. Disponível em:
http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=228&titulo=Cronica,_um_genero_brasileiro
Acesso em: 14 fev. 2013.
75
funciona. Lugar para quem prefere se arriscar, em vez de repetir. A crônica
confunde porque está onde não devia estar: nos jornais, nas revistas e até na
televisão – e nem sempre nos livros. Literatura ou jornalismo? Invenção, ou
uma simples (e literal) fotografia da existência? (CASTELO, 2007)
pode falar de si, relatar fatos que realmente viveu, fazer exercícios de
memória, confessar-se, desabafar. Mas pode (e deve) também mentir,
falsificar, imaginar, acrescentar, censurar, distorcer. A novidade não está
nem no apego à verdade, nem na escolha da imaginação: mas no fato de que
o cronista manipula as duas coisas ao mesmo tempo – e sem explicar ao
leitor, jamais, em qual das duas posições se encontra. O cronista é um agente
duplo: trabalha, ao mesmo tempo, para os dois lados e nunca se pode dizer,
com segurança, de que lado ele está. (CASTELO, 2007)
Nessa narrativa da memória, lacunar por sua natureza, com seus vazios a serem
preenchidos, a cena do ataque é repetida mais duas vezes:
38
Homens da Renamo. (Tradução nossa)
39
Domingo. (Tradução do editor, p. 102)
77
apelavam à vida, imploravam para que os matsangas não disparassem,
chamavam pelo nome dos pais, das mães, dos filhos. (SAÚTE, 2007, p. 101)
Não lhe recordo se lhe estendi a mão. De repente, perdi o medo e a noção de
onde estava. As vozes que ouvira antes de desmaiar pareciam conhecidas, os
rostos que entrevira naqueles minutos intermináveis pareciam-me familiares.
Tudo isso em mim reverberava ainda, de forma lancinante. (SAÚTE, 2007,
p. 101)
Em um primeiro momento, ele conta que Sonto lhe agarrou as mãos, depois que lhe
estendeu o braço e o ajudou a ficar de pé, adiante afirma que não se lembra direito se chegou
a estender a mão a Dominguinho. Alguns detalhes são retomados e modificados nesse jogo de
encaixe. As vozes que ecoam na sua memória, que lhe parecem familiares, marcam a
verossimilhança daquele momento vivenciado, rememorado e relatado. Essa imagem central,
o “cenário imperfeito da destruição” povoado de gritos e disparos, constitui-se como um
elemento significativo, importante de ser transmitido. O relato de sua experiência é repetido
em uma estruturação não-linear, na qual “entrecruzam-se a unidade da história, a narrativa na
qual ela se desdobra e a categoria atemporal que essa atividade provoca.” (MOREIRA, 2005,
p. 191)
Essa repetição de uma sequência narrativa revela-nos o gestual do próprio narrador.
Ele nos informa sobre seu corpo aturdido, cravado de farrapos de vozes, ou seja, sobre sua
maneira de estar e agir ali, naquele lugar destroçado (onde “tudo morreu”) e naquele tempo
incerto, imensurável, marcado por um desmaio – isto é, por uma síncope, um lapso no tempo.
De forma lancinante, tudo isso ecoa no corpo do narrador, em similaridade ao corpo da
narrativa.
Depois da caminhada, os dois são acolhidos com gentileza na comunidade. “Àquela
hora havia uma fogueira, distante das palhoças, onde se juntavam alguns dos habitantes da
aldeia. Contavam histórias e soltavam risadas estrondosas.” (SAÚTE, 2007, p. 103). As
personagens são apresentadas ao chefe, um carismático jovem. Salientamos que a cena difere-
se do costume local, em que os povos são geralmente chefiados por velhos. Jean Derive
assinala que nas comunidades tradicionalmente orais, “aquele que trata seu mais novo como
mais velho marca com isso o prestígio adquirido por este último.” (DERIVE, 2010, p. 35). Ao
jovem do conto é demarcado seu espaço de poder devido a sua habilidade com as palavras,
entre outros motivos segredados. Sabemos que as relações entre a palavra e o poder formam
78
um complexo sistema social. Por meio da e com a palavra instaura-se o lugar do sagrado e da
justiça, por exemplo. A sabedoria anciã fica destinada, no conto, ao conselho, responsável por
discutir os conflitos ou assuntos candentes da comunidade.
Freneticamente os batuques são tocados, o que consome os olhos do narrador,
encantado não apenas com as labaredas do fogo, como também com os “corpos das moçoilas
que dançavam, sem cessar, desconhecidas coreografias.” (SAÚTE, 2007, p. 103). A narrativa
é tomada por essa dança, o narrador torna-se, de certo modo, um incendiador de caminhos,
um cartógrafo a desenhar na paisagem a marca de sua presença. “Escreve como fogo essa
narrativa que é seu itinerário.” (COUTO, 2011, p. 75).
A dança é narrada em três momentos, e de maneiras distintas – cada uma condiz com
um tempo diferente de enunciação. Ora o narrador está na atualidade (que já foi um futuro
projetado), lembrando-se da inebriante visão que teve, ora está diante da fogueira, ora nos
conta a lembrança do sonho que teve com Constantino e sua comunidade. Tanto a cena
quanto a linguagem são performadas.
O bailado sensual e hipnótico das mulheres pulsa os ritmos sagrados e estabelece uma
roda da existência. Ali, a vida é celebrada, os personagens parecem distantes e protegidos dos
horrores da guerra. Os infortúnios reais são redesenhados na trama, aliados, por exemplo, ao
conto mítico dos naparamas – guerreiros imunes à bala, abençoados pelos feiticeiros da terra.
Os tambores, potencialmente curativos, aquecidos pelo estalar das lenhas, emanam um
conhecimento que escapa à compreensão imediata do narrador-personagem, mas,
sensorialmente, envolvem-no em um absoluto estado de paz. Sontinho, do outro lado da
fogueira, em largo sorriso, revela-nos um rosto sereno e sem marcas, como se, simplesmente,
não tivesse sido atacado pelos matsangas. A narrativa, dinâmica, modifica situações e estados,
repete-se de modos diferentes, aceita nuances e modulações. O narrador sautiano
79
de materiais humanos sublimes, de histórias individuais e coletivas
profundamente inspiradoras.40
40
Depoimento de Mia Couto para o Jornal de Letras, 2007, p.4.
41
Refere-se às armas conhecidas como bazucas.
80
Explicou-me o significado de alguns daqueles amuletos e repetiu o ritual de
atirar as pedras que juntava nas duas mãos, pronunciava algumas palavras
numa língua que me parecia ndau42 e terminava a fala numa espécie de
interrogação. (...)
– Não vou chegar à minha casa?
– Nada disso, vai em paz, meu filho.
Mais não disse a curandeira. Indicou-me uns amuletos pretos, encolhendo os
ombros.
– A ntima43... (SAÚTE, 2007, p. 106-107)
42
Etnia e língua do centro de Moçambique (Tradução do editor, p. 106).
43
A cor preta. (Tradução do editor, p. 107).
44
Segundo definições de Carlos Ceia (2005) e Moisés Massaud (2002) em seus dicionários de termos literários.
45
Homens. (Tradução nossa).
81
manter a coesão da coletividade. É um espaço de trocas e partilhas culturais e místicas, um
lugar social que espelha a cosmovisão da aldeia.
“Queremos te dizer que és bem vindo à nossa aldeia. Acontece, porém, que
não deverás permanecer aqui por muito tempo, pois os espíritos temem que
sejamos atacados pelo facto de tu trazeres contigo a tua cauda46.” (SAÚTE,
2007, p. 104).
A distinção entre as duas palavras, segundo Jean Derive47, envolve não apenas o eixo
temporal, mas o semântico. O termo cauda soa estranho ao protagonista, ele não consegue,
naquele instante, apreender o sentido da expressão, muito menos sua simbologia, mas sente a
gravidade da situação pelo timbre do chefe, um dos significativos elementos da oralidade:
“Quando ele proferiu aquelas palavras senti como se uma azagaia me tivesse dilacerado.”
(SAÚTE, 2007, p. 104). Ele era o único homem que tinha sombra.
Os que não têm sombra vivem sob a luz excelsa? Presentificados na luz, na altura do
meio-dia, meia volta da Terra, meio giro da Lua? Livres da escuridão e das trevas da guerra?
Livres dos ataques dos matsangas? Que seres são estes, plenos de luz, sem vestígio? “Hi
46
Sombra. (Tradução nossa)
47
O autor toma como base os Diolas de Kong, situados ao norte da Costa do Marfim.
48
É sacrilégio! (Tradução do editor, p. 105)
82
massinguita!” É um segredo que não se pode tocar, é como se o narrador suspendesse a
história, como bem fazem os contadores de sua terra.
Porém, perpassado por esse mistério, ele continua seu exercício de relembrar. Sabe
que conseguiu chegar a casa, apesar dos percalços. Abraçou o irmão de travessia, Constatino,
e chorou. Voltou por uma estrada morta, sem movimento, sem sequer levantar poeira. Na
estrada, casas abandonadas, vidros quebrados – restos emudecidos da chacina. O movimento
do “minibus” e o cansaço o fizeram adormecer e sonhar. É por meio de seu sonho que
conhecemos a narrativa de Sontinho sobre a aldeia. Entre os bantos, o sonho é tido como um
fenômeno vital, segundo Alexandre Von Saenger, visto que “ele é ao mesmo tempo a
expressão da vontade dos deuses e o meio pelo qual os ancestrais se dirigem a nós para nos
aconselhar” (SAENGER, 2006, p. 58)
Ao acordar, o narrador se depara com sua sombra na parede; nela, retumbam as vozes
e sons dos tambores. O narrador-personagem habita dois lugares e dois tempos distintos.
Ressaltamos que habitar, segundo Walter Benjamim (1994), significa deixar rastros. O
protagonista encontra-se com o narrador – luz e sombra, agora em sincronia e sintonia.
Retorna à dança feminina e seus requebros ao ouvir a própria voz do outro lado da fogueira,
enquanto a lenha consumida pelas labaredas do fogo ilumina seu quarto. A cena, em espiral,
fulgura o transe, manifesta um gestual e uma corporalidade sacralizados pelo fogo. Só nesse
instante de acordar, o personagem é tomado pela compreensão da palavra antiga, em sua
profundidade. A sombra fugidia, em oposição à luz, está sujeita a mudanças, a novos
desenhos. Significa, em seu conjunto, ânima e imagem, segunda natureza do ser, ou mesmo
uma manifestação do ser. Os homens daquela aldeia estão nas árvores, nas flores, nas
machambas e nas colheitas. Estão na chama que se move.
83
Esse desfecho, pós-clímax, nos remete à fusão das tradições culturais performáticas,
uma vez que elas indicam a presença de traços residuais e estilísticos, inscritos tanto na grafia
do corpo em movimento – aludindo a Leda Martins (1997) – quanto na vocalidade da
narrativa, para pensarmos com Paul Zumthor (1993). Os corpos das bailarinas no círculo de
fogo desenham a trajetória desse narrador. O conto, perpassado pelos traços da crônica
jornalística, da fábula e dos mitos dos guerreiros, tece-se de maneira a expurgar, via
enunciação, os horrores da guerra e a recorrência das mortes na Moçambique pós-
independência.
84
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essas inscrições são flagrantes de como há um deslocamento da cultura oral, com toda
a sua complexidade e potência simbólica, para o tecido literário, tramado de modo a
ressemantizar as tradições do país, por meio da recriação de provérbios, máximas, mitos de
origem, contos de guerreiros, entre outros registros orais. Refletimos ainda sobre como esses
narradores se configuraram e re-configuraram como arquivos de histórias residuais, de modo
a nos revelar no corpo da letra de oralitura – para pensarmos com Leda Maria Martins (1997)
– a rasura de uma história oficial única e homogênea, que insiste em negar as vozes
silenciadas dos atores sociais de Moçambique. Essas vozes, com seus diversos timbres e
nuances, soaram, heterogêneas, nas narrativas, por isso examinamos a estruturação dos
discursos diretos, indiretos e indiretos livres, recursos cruciais para que esse compósito de
vozes assuma as narrativas, sem a mediação de um narrador autoritário que diga pelos
personagens. A gestualidade faz parte dessa vocalidade, como bem salientou Pau Zumthor
(2007) em Performance, recepção, leitura. Vamos lembrar que gestus para o autor engloba o
comportamento corporal como um todo, com suas feições, expressões, risos e lágrimas, com
seus timbres e emissões. Os corpos desses atores sociais anônimos performam-se nas
narrativas, transformando-as em um evento, não em uma mera representação. Essa ação
acontece, muitas vezes, por meio da repetição – um valor estético típico da cultura oral – que
torna a experiência narrativa simultaneamente linear e não-linear.
85
Uma das nossas proposições foi a de averiguarmos a maneira como essas textualidades
orais se imiscuíram no corpo da letra literária, colocando em tensão as noções de identidade,
modernidade, pertencimento, preservação e transitoriedade. Buscamos, portanto, examinar
minuciosamente o entrecruzamento da oralidade e das línguas vernaculares com a língua
portuguesa, e como essa mistura se estabelece na urdidura das tramas também como uma
forma de transcriação dos saberes ancestrais. Intentamos perceber de que maneira esses
registros, concepções e sistemas simbólicos se confrontam ou dialogam.
Essa performance narrativa acontece mediada também pela rememoração, capaz de
mesclar tempos e espaços distintos, capaz de alinhavar vozes e silêncios, e de preencher
lacunas e vazios. Compreender como o silêncio é significativo e simbólico, bem como a
palavra – sempre acompanhada do gesto, ou seja, sempre ligada à inteireza do ser – desnuda
as relações sociais foi uma de nossas tarefas, amparadas por, entre outros teóricos, Jean
Derive (2010) e Hans Ruin (1996). Ambos autores destacam como o silêncio consiste em um
índice de sabedoria, uma maneira dialógica vital para que se conheça o outro. É uma atitude
sábia, votada, geralmente, ao ancião, que também é ciente de que se deve proferir a palavra
exata para cada momento. A palavra do velho advém da escola da vida, ligada à experiência e
à capacidade de dialogar com os ancestres. Por isso, segundo Hampâtê Bâ: “Em África,
quando um velho morre é uma biblioteca inteira que queima”. A máxima do malinense guarda
uma verdade oracular que é ressignificada nas duas obras.
O sentido deambulante dos narradores é também revelado pelas águas dos rios, com
suas histórias e mistérios trazidos e levados nas correntezas. As águas atravessam a
multiplicidade das vozes narrativas que compõem os textos e fluem em sentidos variados,
como se os eixos simbólicos se deslocassem, sem um centro único, se movimentassem de
maneira a desaguar metáforas diversas. O rio constitui-se também como espaço fronteiriço
entre dois mundos, o oral e o letrado, o do vivo e o dos mortos. Mas as duas margens se
banham nas mesmas águas, o que implica afirmar que se misturam, apesar de aparentemente
apartadas. Essa liquidez arrasta, em espiral, também a morte (sempre em presença) de
algumas personagens e a primazia da ancestralidade como princípio de convivência e
harmonia do grupo.
Não foi nossa intenção fechar a leitura sobre as obras, visto que há outras várias e
possíveis chaves analíticas, bem como outros pressupostos teóricos e críticos sobre os textos.
Tentamos apenas contribuir com a fortuna crítica sobre a literatura moçambicana de Mia
86
Couto e Nelson Saúte e ratificamos a importância das hipóteses levantadas e examinadas
nesta dissertação.
87
REFERÊNCIAS
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88
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COUTO, Mia. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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CURY, Maria Zilda Ferreira. FONSECA, Maria Nazareth Soares. Mia Couto. Espaços
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DERIVE, Jean. Palavra e poder entre os diolas de Kong. Tradução de Neide Freitas; Revisão
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89
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CD
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Acompanha livreto.
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