Artigo Lugar de Memória e Políticas
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Projeto acadêmico não lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto
ISSN Eletrônico 1983-7151
RESUMO
ABSTRACT
Testimonies of memory and identity are important tourism attractions, drawing visitors to the cultural
tourism sector in search of experiences and leisure activities that afford opportunities for learning and
education. This paper reflects on the relationship between place memory and tourism, based on the new
interpretations of the cultural heritage in contemporary society. Accordingly, issues related to memory (LE
GOFF, 1996; HALBWACS, 1991), identity (HALL, 2001; CANCLINI 2000) and cultural heritage (BARRETTO,
2001; BONFIM, 2005) are discussed, emphasizing the recognition and appreciation of place memories
(NORA, 1993; GASTAL, 2002) in public policies of heritage preservation. It reflects on the possibilities
and challenges involved in transforming the heritage into tourist attractions, including cultural tourism
as a factor for recovering the memory and local identity (ASCANIO, 2003; COSTA, 2009). Based on the
literature (OLIVEIRA, 1998; APOLINÁRIO, 2006), it appears that the combination of place memory and
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cultural tourism can contribute to increasing the potential of the spaces where the social identity and
memory are preserved, enriching the relationship between tourists and local residents, based on the
experience of representative elements of the local culture.
RESUMEN
INTRODUÇÃO
Revisitado, o patrimônio cultural passa a abranger também espaços e práticas socioculturais que
possuem um sentido emocional para as comunidades. Os lugares de memória materializam a noção
de patrimônio como produto e reflexo da sociedade e, enquanto processo, revela a dinâmica das
interações sociais, os valores e significados que tecem o cotidiano de uma determinada localidade.
Para a construção do corpus teórico recorreu-se à pesquisa bibliográfica com base nas
considerações de Oliveira (1998) e Apolinário (2006) acerca dos processos de investigação científica.
Assim, o estudo relaciona questões referentes à memória (LE GOFF, 1996; HALBWACS,1991), à
identidade (HALL, 2001; CANCLINI 2000) e ao patrimônio cultural (LEMOS, 2000; BONFIM, 2005),
a fim de apresentar as possibilidades e desafios na transformação dos espaços do cotidiano popular
em locais de visitação turística.
Parte-se do pressuposto de que a conjugação entre lugar de memória e turismo cultural pode
contribuir para a valorização dos espaços mantenedores da identidade e da memória social, bem
como para o enriquecimento da relação entre turistas e residentes, por meio da vivência dos
elementos representativos da cultura local.
Conforme Camargo (2002, p. 95), patrimônio no conceito clássico designa “bens culturais ou
monumentos de excepcional valor histórico e artístico nacional [...] traçado urbano, centros históricos,
cidades históricas e monumentos isolados”. Apenas eram valorizados os constructos sociais dotados
de valores de sacralidade e autenticidade, e que evocavam a memória de determinados feitos ou
acontecimentos históricos.
A criação do SPHAN (atual IPHAN) foi proposta por Rodrigo Melo Franco de Andrade e resultou
da apresentação de um projeto de lei que expediu o Decreto-Lei nº 25/1937, cujo objetivo era a
preservação do patrimônio cultural e a proteção de obras de arte e de história no país. Esse Decreto
regulamentou o tombamento como forma de proteção do patrimônio histórico nacional. Naquele
período o patrimônio histórico e artístico nacional era entendido como “o conjunto de bens móveis
e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a
fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico” (LEMOS, 2000, p.43).
Nota-se que o conceito de patrimônio adotado nesse período agregava resquícios da mentalidade
modernista disseminada durante a consolidação do Estado Novo e que sublevava os aspectos
intangíveis da cultura aos componentes materiais que atestavam a unicidade territorial e invocavam
uma pretendida identidade nacional. Entretanto, já se observavam tentativas de inserção e valorização
de bens culturais imateriais, como por exemplo, o anteprojeto de lei de criação do SPHAN idealizado
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por Mário de Andrade3 em 1936, a pedido de Gustavo Capanema. Esse anteprojeto, que não foi
integrado ao Decreto-Lei nº 25/37, previa a definição de patrimônio artístico nacional envolvendo
elementos tais como provérbios, cantos, lendas, magias, histórias populares, superstições, ditos,
danças dramáticas, medicina, culinária das etnias formadoras do povo brasileiro (GONÇALVES,
1996; MICELI, 2001).
Apesar de todas as transformações políticas ocorridas nos anos 1960, decorrentes de revoluções
em vários âmbitos da sociedade, incluindo-se aí as mudanças produzidas pela polêmica noção de
modernidade tardia ou pós-modernidade, que desestabilizaram conceitos como tempo, espaço,
história e subjetividade, o conceito de patrimônio cultural do país excluía ainda os bens imateriais.
A definição de patrimônio cultural era composta apenas de bens móveis e imóveis. Para corroborar
essa observação, vale destacar que na “lista de bens imóveis tombados pelo SPHAN, desde sua
criação até os anos 70 não se encontra nenhuma senzala, quilombo, terreiro de macumba, entre
outras demonstrações de movimentos de etnias minoritárias” (MARTINS, 2006, p.10).
De acordo com Martins (2006), o conceito de patrimônio histórico e artístico usado desde o século
XIX foi aos poucos sendo substituído pelo conceito mais amplo de patrimônio cultural, respondendo
a atualizações de estudos consoantes a uma concepção antropológica de cultura. A partir da década
de 1970-1980 ocorre um redirecionamento da política de preservação adotada pelo IPHAN, por
intermédio da atuação do Centro Nacional de Referência Cultural – CNRC, o qual propunha uma
nova visão sobre os bens culturais, baseado na dinamicidade dos sistemas culturais, ou seja, dos
processos identitários que compunham a diversidade do patrimônio cultural nacional.
Para Kersten (2000) o patrimônio cultural engloba as manifestações significativas presentes nas
relações sociais. Essa concepção apresenta um avanço na salvaguarda dos registros do patrimônio,
tornando-o menos restrito às edificações e mais aberto à imaterialidade, aos modos de viver, às
práticas e manifestações culturais. Nessa perspectiva, o patrimônio cultural confere sentido e
significado às vivências coletivas do homem em sociedade. O conjunto desses elementos estabelece
vínculos de temporalidade espaço-temporal entre os grupos sociais, contribuindo para a reconstrução
e o fortalecimento da memória e da identidade em uma determinada região:
O patrimônio é uma das partes mais visíveis da memória coletiva de uma sociedade,
história materializada em objetos e em ações carregadas de significados; são símbolos que,
continuamente, lembram que a realidade dos processos socioculturais atuais está no passado
e se articula constantemente com ele, ao redefini-lo e redefinir-se ao mesmo tempo ( DIAS,
2006, p.100).
Memória e patrimônio estão interrelacionados, uma vez que ao serem acionados, aludem às
reminiscências que conferem aos grupos sociais o sentido de pertencimento a uma determinada
cultura e sociedade. Nas palavras de Le Goff (1996, p. 476) “a memória é um elemento essencial
do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.
[...] As identidades não são nunca unificadas, que elas são na modernidade tardia, cada vez
mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são nunca, singulares, mas multiplamente
construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas.
As identidades estão sujeitas à uma historicização radical, estando constantemente em processo
de mudança e transformação.
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tecnológicos, a globalização estimulou a diminuição das fronteiras mundiais, por meio da fusão
entre culturas. O sujeito pós-moderno, erigido na diversidade de culturas do mundo globalizado,
tendo sua identidade construída e reconstruída permanentemente ao longo de sua existência, vive
assim num constante processo de identificação (AUGÉ, 1994; BAUMAM, 1998).
Inserido nesse contexto emerge o Decreto Lei nº 3551/2000 que instituiu o Programa Nacional
do Patrimônio Imaterial (PNPI) e os denominados Livros de Registro, tendo como objetivo a inscrição
dos bens de natureza imaterial em livros específicos do IPHAN concernente às suas particularidades
– Livro dos saberes populares, Livro das celebrações, Livro das formas de expressão, Livro do
registro dos lugares. Acresce-se a essa iniciativa ações de valorização, fomento e dinamização dos
fatos culturais. Ressalva-se que esse procedimento não equivale ao Livro do Tombo direcionado ao
patrimônio edificado (SANTA’ANA, 2003).
No que concerne ao patrimônio edificado, segue-se uma perspectiva relacional entre a ambiência
urbana e seus componentes, na qual a existência e a preservação de bens isolados e monumentais
não se tornam suficientes para se compreender o contexto sociocultural de sua produção. Nesse
sentido, as paisagens naturais, os sítios arqueológicos, artefatos e utensílios das classes populares,
os conhecimentos tradicionais, inserem-se nessa nova abrangência do campo patrimonial.
Esses locais apropriados simbolicamente pelos atores locais tornam-se significativos por
cristalizarem fatos ou acontecimentos pessoais, podendo vincular-se à infância, às atividades
corriqueiras, aos encontros sociais ou religiosos. Na visão de Gastal (2002, p.77)
Segundo Pierre Nora (1993), os lugares de memória caracterizam-se por serem dialeticamente
materiais, simbólicos e funcionais. Ampliando essa discussão, Berdoulay (2007) evidencia as relações
intrínsecas existentes entre as dimensões espaciais do lugar, corporificadas e objetivadas, e a sua
face imaterial ou intangível. Compreende o lugar de memória como espaço in situ, isto é, material,
construído e edificado ao longo das relações sociais, e in visu, posto que surge também no plano
mental ou subjetivo.
Nesse sentido, o espaço geográfico como lugar de memória constroi-se a partir das experiências
cognitivas, das significações, dos imaginários e das subjetividades dos diferentes grupos sociais.
Trata-se de um espaço de interação, carregado por um forte sentimento de territorialidade, apropriado
física e espiritualmente por um determinado grupo social. Lugares que enunciam manifestações
da cultura material e simbólica definem-se como lugares impregnados de reminiscências,
ressemantizados pelos segmentos populares.
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[...] Mas lugares mistos, híbridos e mutantes, intimamente enlaçados de vida e de morte, de
tempo e de eternidade, numa espiral do coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado, do
imóvel e do móvel [...] e é isso que os torna apaixonantes: que os lugares de memória vivem
de sua aptidão para a metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados e no silvado
imprevisível de suas ramificações (NORA,1993, p.22).
Esses espaços possuem ainda um sentido emocional, visto que através deles a comunidade
sente-se integrada ao meio onde vive, estabelece relações de reconhecimento e de troca, posto
que os lugares de memória também delimitam fronteiras culturais, relacionando-se à guarda de
marcos históricos significativos para os membros de uma sociedade. Revestidos de simbologias
e significados, os lugares de memória tornam-se locais de sociabilidade e reciprocidade cultural,
considerando o descentramento identitário e os constantes processos de hibridação e tradução
entre as culturas (CANCLINI, 2000).
Reconhece-se que embora as políticas públicas passassem a direcionar seu foco de atuação para
os lugares da memória popular, as polêmicas em torno do tombamento do Terreiro Casa Branca,
por exemplo, ilustrou a dificuldade de legitimação por parte dos órgãos oficiais de preservação
cultural, de outras formas de representação identitária, práticas e linguagens populares divergentes
daquelas consideradas insignes de uma memória e de identidade nacional unívoca (ARÉVALO, 2005).
Em outros casos, ocorreu a ausência de instrumentos legais compatíveis com a dinamicidade dos
processos culturais, como o do tombamento da Fábrica de Vinho de Caju Tito e Silva, Paraíba, no
ano de 1996, cuja produção “não resistiu ao declínio da demanda pelo produto e em poucos anos
a sua fabricação foi encerrada, restando hoje somente o prédio que a abrigava” (TOJI, 2009).
Embora apresentado alguns desafios, o reconhecimento dos lugares de memória insere-se num
processo mais amplo de cidadania cultural e da necessidade de democratizar o direito à memória
e à preservação dos patrimônios de grupos étnico culturais específicos, dos espaços sagrados e
profanos, reconhecidos e identificados por essas comunidades como legado herdado pelos seus
antecessores, lugares relacionais, que enunciam memórias presentes e passadas. Lugares de
memória e espaços de cidadania cultural.
Assim, o patrimônio cultural herdado e recriado pelos grupos sociais é visto também como
elemento de atratividade turística, estimulando fluxos de visitantes, e com eles, oportunidades
de preservação e geração de benefícios socioeconômicos para as comunidades locais. O turismo
como fenômeno que promove a articulação entre as culturas, oportuniza ou amplia as estratégias
de visibilidade às diferentes produções culturais, presentes ou passadas, agregando novos valores
aos bens simbólicos, redefinindo usos e significados, agenciando tradições, ao interpor heranças
específicas em zonas de contato em um movimento de constante interação.
Destaca-se ainda a sua dimensão econômica, cujos benefícios podem ser sentidos na valorização
comercial dos bens simbólicos no mercado de consumo, na formatação e comercialização do
patrimônio como produtos ou espaços de visitação turística e a importância da atividade para o
desenvolvimento social e econômico de diversas regiões. Na visão de Moesch (2000, p. 9) o turismo
constitui-se
Como fenômeno social, o turismo legitima a conexão local-global, promovendo a interação entre as
culturas e contribuindo nos processos de hibridação, assimilação e tradução cultural. O entrelaçamento
entre turismo e identidade assinala que essa atividade contribui para a reinterpretação da memória e
das tradições, restaurando e revigorando identidades a partir da aceleração dos contatos simbólicos,
atuando dessa forma, como vetor de reconstrução cultural (ASCANIO, 2003). O turismo é apreendido
como fator possibilitador da mudança cultural, readaptando os conteúdos simbólicos dos lugares para
atender às necessidades da demanda, “generando um processo constante de creacíon y recreacíon
del sentido de pertencia, pasado, lugar, cultura y posesíon” (TALAVERA, 2003, p.44).
Para alguns estudiosos como Beni (2004), o turismo cultural ou turismo com base no legado
cultural (BARRETTO, 2001) diferencia-se das formas tradicionais de turismo por ser caracterizado
por um público consumidor mais sensível aos impactos resultantes de sua visita aos destinos, ou
seja, consiste numa demanda seletiva que incorpora, em suas viagens, as preocupações em torno
da problemática de preservação do patrimônio cultural.
O Turismo Cultural, assim, pressupõe um público educado e informado que compartilhe com os
órgãos de patrimônio uma definição sobre o que constitui lugares, eventos e coleções corretas.
Por outro lado, o Turismo Cultural deve ser visto pelos órgãos de preservação como um meio de
arrecadar recursos para a manutenção de lugares e manifestações, bem como um instrumento
de informação ao público visitante (GOODEY, 2002, p. 135).
O turismo pode ser compreendido como uma experiência que permite a descoberta do eu e do
outro numa perspectiva de integração, com repercussões positivas no exercício de alteridade. Por
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meio dos patrimônios culturais, a atividade turística promove trocas recíprocas entre os grupos
sociais, o reconhecimento da diversidade cultural, a difusão de informações sobre o patrimônio,
fortalecendo, desse modo, as identidades locais em meio ao processo de globalização e à tendência
a padronização do capital simbólico no âmbito das sociedades contemporâneas.
O turismo cultural proporciona experiências de valorização dos bens culturais além de estimular
ações de preservação patrimonial, aproximando a comunidade de seus lugares de memória e
manifestações tradicionais. O intercâmbio sócio-educativo entre os diferentes grupos sociais
enriquece a vivência cotidiana, produzindo laços de significação e pertencimento cultural, ao mesmo
tempo em que a atividade turística contribui para o desenvolvimento sócio-econômico local.
No entanto, diversos autores (BARBOSA, 2001; SANTANA, 2009) discutem os efeitos nem
sempre benéficos às comunidades receptoras, resultantes do desenvolvimento turístico em diversas
localidades. Diante da valorização dos lugares de memória surgem implicações no que se refere
à transformação do patrimônio referência em patrimônio recurso (ARANTES, 1999), ou seja, à
distinção que se opera entre o valor de uso do patrimônio e seu valor de troca. Segundo o autor
na denominada “economia simbólica do patrimônio” ocorre uma distinção entre o valor do bem
patrimonial como símbolo, isto é, o conjunto de referências e sentidos enraizados na vida coletiva,
e como alegoria, vinculado ao prazer estético e lúdico proporcionado pelo turismo.
O segmento turismo cultural que antes se dirigia aos ícones ou cenários dos grandes
acontecimentos históricos, baseado, fundamentalmente, na contemplação passiva ou na fruição
estética do bem patrimonial, passa a privilegiar a história do lugar sob a perspectiva das diferentes
memórias e recordações nele impregnadas, dos saberes e fazeres tradicionais. A atividade vem
acompanhando, assim, a ampliação do conceito de patrimônio cultural e contribuindo para a
valorização dos lugares da memória popular por intermédio da busca por uma maior interação
entre turistas e comunidades receptoras e da experimentação - material e simbólica - de seus
patrimônios afetivos.
Nesse sentido, a busca pela novidade, autenticidade e qualidade das atrações tornam-se um
importante diferencial na competitividade entre os destinos, uma vez que os visitantes, de um modo
geral, possuem a tendência a adentrar o universo simbólico da comunidade visitada:
Nesse sentido, Gastal (2002) assinala que a incorporação da noção de lugar de memória no
âmbito do planejamento e gestão da oferta de turismo cultural insurge como fator capaz de promover
uma maior integração entre as memórias individuais e coletivas e a sociedade. No âmbito do turismo
cultural, a valorização dos conteúdos dos bens patrimoniais enaltece a experiência turística, ao
mesmo tempo em que fortalece os laços identitários entre a comunidade e o seu patrimônio.
Lugares de memória - a exemplo das feiras e mercados populares, santuários, locais de romaria
e peregrinações religiosas, dos territórios das comunidades quilombolas, das casas de culto afro
- apresentam-se como espaços de visitação turística em muitas localidades, sendo agenciados e
comercializados por órgãos públicos, associações e organizações não governamentais, traduzindo-se
em alternativas para a manutenção das tradições, usos e cotidianos de várias comunidades.
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No processo de formatação dessas áreas para a visitação turística, torna-se necessária a valorização
dos lugares de memória pelas comunidades que neles habitam, trabalham ou desenvolvem algum
vínculo afetivo ou emocional. À preservação dos patrimônios culturais perpassa o desenvolvimento
de ações educativas, de valorização e interpretação dos bens edificados e intangíveis, tencionando
a sua salvaguarda, difusão e promoção (MURTA; ALBANO, 2002).
Enfatiza-se que a transformação dos espaços do cotidiano popular, em suas múltiplas variações,
como produto ou bem de consumo cultural não se justifica apenas pelo viés econômico decorrente
do seu aproveitamento turístico. O planejamento turístico deve considerar os sentidos e significados
simbólicos desses espaços, entendidos como elementos referenciais para a construção e afirmação
de identidades. Na visão de Bhabha (1998), os lugares de memória podem ser vistos como ‘entre
lugares’ diante do contexto da globalização e de múltiplas referências identitárias a que os sujeitos
pós-modernos estão sendo submetidos. Segundo o autor, os lugares de fronteira, de intersecção são
estratégicos na elaboração das subjetividades individuais e coletivas, de novos signos de identidade
e, consequentemente, na formulação de um novo escopo ou projeto de sociedade. Dessa forma,
O turismo cultural pode permitir que as comunidades locais percebam a importância desses
espaços para a construção de sua identidade e possam atuar de forma eficiente e pró-ativa nas
estratégias de implantação ou dinamização da atividade turística nesses locais. Nesse patamar, as
propostas de visitação turísticas nos lugares de memória devem inserir os agentes construtores do
lugar na condução e interpretação das histórias, simbologias e significados da cultura apresentada
visando à apreciação de turistas, visitantes, e para os membros da comunidade, “os sujeitos dos
diferentes contextos culturais têm um papel não apenas de informantes, mas de intérpretes de seu
patrimônio cultural” (FONSECA, 2000, p.114 grifo da autora).
A partir dos poderes públicos e das agências de turismo poderiam ser planejadas ações, por meio
do estudo do patrimônio histórico e cultural, tanto nos sertões quanto nos espaços periféricos
urbanos, como oficinas, cursos, espaços de debates e sociabilidade, a fim de resgatar habilidades
específicas e atividades de trabalho, como artesanatos, gastronomia, folclore, danças típicas,
folguedos, religiosidade popular e criação de espaços da memória como os museus populares.
Em boa medida, o fruto desse trabalho poderia contemplar o direito à cidadania cultural, ou seja,
criar diversas frentes de inserção econômica e sociourbana (CARDOSO, 2006, p.72).
A transformação dos lugares da memória popular em suas múltiplas variações como produto ou
bem de consumo cultural não se justifica apenas pelo viés econômico decorrente do aproveitamento
turístico. O planejamento turístico desses locais deve considerar o seu sentido simbólico como
elemento referencial para a construção e afirmação de identidades, no sentido de contribuir para
uma maior compreensão intercultural e proporcionar experiências significativas, tanto para a
comunidade local, quanto para os visitantes:
[...] para que a atividade turística possa ser implantada é necessária a realização de estudos
preparatórios com as comunidades receptivas. Acima de tudo, é importante diagnosticar e
revelar as potencialidades locais - sobretudo culturais - que levem a melhorias qualitativas e
criem condições para a gestão participativa do turismo e para o desenvolvimento endógeno da
região, fomentando dessa maneira a mobilização dos atores locais em prol de alternativas que
despertem para a verdadeira concepção de desenvolvimento (OLIVEIRA, 2005, p.57).
Segundo Camargo (2002), para que haja o pleno desenvolvimento do turismo cultural, a
população residente, como agente produtora do patrimônio, deve ser conscientizada sobre a
importância dos bens culturais como suportes de memória, de continuidade de práticas socioculturais
e vetores de desenvolvimento econômico. O patrimônio cultural como produto turístico prescinde de
um gerenciamento racional e equilibrado, no qual os diferentes atores sociais interagem de forma
integrada e colaborativa.
No planejamento da oferta cultural deve-se promover uma interlocução permanente com os grupos
sociais construtores do lugar turístico, incorporando os lugares mantenedores de sua identidade,
no sentido de buscar uma maior integração entre turistas e residentes nos espaços de vivência
comunitária, além de possibilitar variadas leituras e interpretações dos bens culturais. Dessa forma,
o turismo cultural pode, efetivamente, contribuir para a compreensão intercultural e proporcionar
experiências significativas, tanto para a comunidade local, quanto para os visitantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A diversidade das relações humanas e sua produção cultural estão no cerne das discussões
sobre o conceito de patrimônio cultural e, por conseguinte, da preservação dos bens culturais.
Criação coletiva e locus privilegiado de compartilhamento da dinâmica social, o patrimônio cultural
representa o testemunho das diferentes experiências humanas, eco de memórias e identidades
plurais. Essas memórias e identidades corporificam-se nos espaços do cotidiano popular, onde os
diferentes grupos sociais manifestam suas tradições, estabelecendo relações de afetividade, e
edificando-os como lugares de memória.
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No âmbito do turismo cultural, a incorporação dos lugares de memória como espaços de apreciação
do legado cultual tende a se tornar um importante elemento diferenciador da oferta turística de uma
localidade e de implantação de modelos de gestão comunitária dos atrativos culturais, maximizando
as particularidades do patrimônio local, promovendo o seu conhecimento e sua preservação, por meio
de uma prática de turismo capaz de agregar valor à experiência dos visitantes.
As propostas de preservação do patrimônio cultural para o turismo devem ser buscadas a partir
dos contextos locais, das potencialidades e das sinergias de cada comunidade, ou seja, dos elementos
que constituem a sua memória e suas tradições. Busca-se, cada vez mais uma articulação entre
turismo e os órgãos de preservação patrimonial. No entanto, as transformações no patrimônio cultural
como bem de consumo turístico tornam-se um dos principais desafios a serem enfrentados pelos
representantes do IPHAN, sobretudo no que se refere à perda das características do bem protegido.
A comercialização do patrimônio pelo turismo pode acarretar, em alguns casos, homogeneização
dos marcos simbólicos e das identidades locais em prol da satisfação das necessidades de consumo
visual ou estético dos visitantes.
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NOTAS
1
Segundo Fonseca (1997, p. 85), isto já pode ser sentido a partir da década de 1920, quando o Estado já vê no patrimônio
uma questão politicamente relevante.
2
1937 é o ano em que o Estado Novo se estabelece no país.
3
Figura expoente do Modernismo, Mário de Andrade comungava o sentimento de brasilidade apregoado
pelo movimento. Mas a proposta inicial do SPHAN revela um intelectual atravessado por influências es-
trangeiras, já que os primeiros edifícios tombados como patrimônio nacional remetiam ao período colonial,
que tinham o barroco como arte maior e ápice da estética portuguesa colonial, o que aponta para uma
proposta de identidade ligada à Europa.
Revista Turismo Visão e Ação – Eletrônica, Vol. 13 - nº 2 - p. 149-165 / mai-ago 2011 165