Turismo Patrimonial o Passado Como Experiência

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TURISMO PATRIMONIAL:

O PASSADO COMO EXPERIÊNCIA


Organizadores
Michel Constantino Figueira
Márcia Della Flora Cortes

TURISMO PATRIMONIAL:
O PASSADO COMO EXPERIÊNCIA

Pelotas
Edição do Autor
2020
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a
fonte.

Autores:
Amanda Basílio
Andréa Cunha Messias
Carla Rodrigues Gastaud
Cristiane Leticia Opperman Thies
Cristiéle Santos de Souza
Diego Lemos Ribeiro
Eliza Furlong Antochevis
Eunice Lopes
João Fernando Igansi Nunes
João Tomaz Simões
Juliana Porto Machado
Márcia Della Flora Cortes
Maria Rita Nunes
Mariana Estima Silva
Mayk Lenno Henrique Lima
Michel Constantino Figueira
Ronaldo Bernardino Colvero
Sthephane de Sousa e Silva Maia
Vanessa Dias Santiago

Fotografia de capa e contracapa: Cais do Porto Velho, Rio Grande - RS, 2019
Autoria de: Maria Claizi Lucas Machado

Revisão: Michel Constantino Figueira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

T938 Turismo patrimonial : o passado como experiência [recurso


eletrônico] / organizadores Michel Constantino Figueira e
Márcia Della Flora Cortes. – Pelotas: Ed. do Autor, 2020.
271 p. : il.

ISBN: 978-65-00-03210-9

1. Turismo. 2. Patrimônio. 3. Economia patrimonial.


I. Figueira, Michel Constantino. II. Cortes, Márcia Della Flora.
II. Título.

CDU: 338.48
Bibliotecária Laís Braga Costa - CRB10/2069
APRESENTAÇÃO

O livro Turismo Patrimonial: o passado como experiência é


resultado da disciplina Turismo Sustentável e Patrimônio Cultural
do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio
Cultural da Universidade Federal de Pelotas, ofertada no primeiro
semestre do ano de 2019 e ministrada pelo Prof. Dr. Michel
Constantino Figueira.
A realização desse livro resulta da avaliação geral da
disciplina na qual os pós-graduandos, mestrandos e doutorandos,
e colaboradores internacionais deveriam apresentar ensaios
sobre o turismo patrimonial e cultural e/ou sobre a economia do
patrimônio, memória social e passado, dentre outros temas afins,
considerando suas experiências pessoais, profissionais,
científicas e acadêmicas, e, principalmente, suas apreciações
subjetivas sobre os temas, bem como resultantes científicos de
projetos de investigação e/ou estudos de caso.
O Turismo Patrimonial, enquanto objeto de estudo, é um
tema literário-científico pouco explorado no Brasil e em países de
língua portuguesa e este livro reúne uma coletânea de ensaios
críticos escritos pelos alunos da disciplina, com a colaboração de
seus orientadores, bem como inclui texto internacional
desenvolvido por colegas europeus, mais precisamente do
Instituto Politécnico de Tomar, Portugal.
O livro tem por objetivo principal instigar o debate sobre as
diferentes interfaces do patrimônio, a partir de um olhar sobre o
passado como experiência turística, socioeconômica, cultural e
política, a partir de sua valorização institucional, estética,
comercial e emocional, tanto pelas comunidades, quanto pelo
Estado, bem como pelas instituições e organismos, nacionais e
internacionais, representativos do patrimônio, da memória e do
turismo.
SUMÁRIO

1 TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS:


EVOLUÇÃO DOS VISITANTES DE UM MUNICÍPIO – Eunice R.
Lopes, João T. Simões & Maria Rita Nunes ................................ 11

2 O PASSADO É UMA ILUSÃO – Michel Constantino Figueira


...................................................................................................... 43

3 TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE


VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO CEMITERIAL E DE OUTRAS
MEMÓRIAS – Amanda Basílio Santos & Ronaldo Bernardino
Colvero .......................................................................................... 77

4 A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO


FOMENTO AO DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM
MORRO REDONDO – RS – Andréa Cunha Messias & Diego
Lemos Ribeiro............................................................................... 95

5 TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO:


MÁRIO DE ANDRADE ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA-
Cristiéle Santos de Souza & Carla Rodriges Gastaud ..............117

6 O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE


PROMOTORA DE TURISMO – Cristiane Letícia Oppermann
Thies ...........................................................................................137

7 RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E


PATRIMÔNIO – Eliza F. Antochevis .........................................153

8 GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA


DISCUSSÃO SOBRE ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA –
Juliana Porto Machado & Ronaldo Bernardino Colvero............171
9 TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO-
Márcia Della Flora Cortes, João Fernando Iganzi Nunes &
Vanessa Dias Santiago ............................................................. 195

10 PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO


MUITO ALÉM DO VALOR SIMBÓLICO – Mariana Estima Silva
.................................................................................................... 217

11 NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS


POLÍTICAS DE FOMENTO À CULTURA E
DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ – Mayk Lenno
Henrique Lima ............................................................................ 233

12 O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS


POTENCIALIDADES E PROBLEMAS DE QUIXADÁ / CE –
Stephane de Souza e Silva Maia .............................................. 255
TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

1 TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS:


EVOLUÇÃO DOS VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

Eunice R. Lopes 1
João T. Simões 2
Maria Rita Nunes 3

Os recursos patrimoniais aliados ao turismo têm promovido


uma forte componente de desenvolvimento nos territórios,
permitindo traçar linhas condutoras mais consistentes nas
vertentes económica, social, cultural e ambiental, proporcionando
experiências aos visitantes e à população local que interagem nas
dinâmicas culturais dos territórios.
O município de Tomar encontra-se cada vez mais
referenciado como um destino de visita turística do centro de
Portugal, afirmando-se progressivamente no turismo cultural,
nomeadamente, através dos seus recursos patrimoniais.
O desenvolvimento de produtos turísticos é fundamental
para o progresso da região, havendo necessidade de identificar e
analisar a evolução da capacidade de atração do destino cultural
e turístico de Tomar.
O presente trabalho foca-se em identificar, analisar e
apresentar a evolução de visitantes do município de Tomar no

1 Instituto Politécnico de Tomar, Portugal. Techn&Art-IPT. E-mail: eunicelopes@ipt.pt.


2 Instituto Politécnico de Tomar, Portugal. Techn&Art-IPT. E-mail: jpsimoes@ipt.pt
3 Instituto Politécnico de Tomar, Portugal. Techn&Art-IPT. E-mail: mnunesd@ipt.pt.

Eunice R. Lopes João T. Simões Maria Rita Nunes


TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

período 2014 - 2018. A metodologia utilizada neste trabalho foi de


natureza quali-quantitativa, tendo por base a informação
disponibilizada pelo Posto de Turismo de Tomar sobre o número
de visitantes a cinco recursos patrimoniais da cidade,
nomeadamente, Capela de Santa Iria, Casa Memória Lopes-
Graça, Igreja de Santa Maria dos Olivais, Museu dos Fósforos
Aquiles da Mota Lima e Sinagoga, sendo que optou-se também
por incluir o número de visitantes que se deslocam ao Posto de
Turismo de Tomar para obtenção de informação turística e análise
bibliográfica.
A partir disto foi possível perceber a evolução dos visitantes
do destino cultural e turístico de Tomar. Em termos de resultados
obtidos, releva-se que no ano de 2015 existiu um pico anormal do
número de visitantes nos lugares analisados devido à grande
afluência de visitantes durante a Festa dos Tabuleiros de Tomar
(LEITÃO; FERREIRA; AZEVEDO, 2008) que apenas se realiza de
quatro em quatro anos. Os resultados também apontam que no
decorrer dos anos analisados (2014-2018), a afluência de
visitantes manteve-se equilibrada na sua globalidade. No entanto,
dos cinco locais em análise, o que mais registou visitas foi a
Sinagoga (com um total de 228 182 visitantes), revelando uma
representativa procura do turismo judaico.
A exemplo de Tomar, diante da globalização, a
salvaguarda, a interpretação e a valorização dos recursos

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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

patrimoniais, a diversidade cultural torna-se num mote desafiador,


na medida em que a gestão dos recursos patrimoniais é da
responsabilidade de todos, seja autarcas, comunidade,
instituições, etc.
O património, a cultura e o turismo possuem uma relação
mútua benéfica que pode fortalecer a atratividade e a
competitividade territorial. A distinção dos destinos turísticos está
cada vez mais condicionada pela valorização turística de recursos
patrimoniais. A integração do património nos processos de
desenvolvimento económico, social e cultural dos territórios e das
populações, são agentes fundamentais do desenvolvimento
territorial (LEITÃO; FERREIRA; AZEVEDO, 2008), revelando uma
tipologia ampla e complexa de estratégias e intervenções onde se
inclui o turismo cultural e o consequente desenvolvimento do
território.
A importância da criação de produtos identitários de
qualidade, podem tornar-se atrativos e criar fatores de
diferenciação, face à concorrência. Uma estratégia competitiva
consistirá na sustentabilidade da vantagem competitiva
(MOONEY, 2007). O património contribui para a gestão integrada
do território, na medida em que coopera para a diferenciação e
qualificação dos lugares, aumentando a sua atratividade e
evidenciando a sua autenticidade. A atuação abarca estratégias

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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

que devem envolver a redefinição da identidade e o


posicionamento territorial (PADDISON, 1993).
A autenticidade é uma palavra fundamental inscrita nos
mais variados temas teóricos e sempre relacionada com a matéria
de salvaguarda do património cultural e particularmente no que se
refere ao património edificado. Quando se fala em cultura pensa-
se em consciência coletiva, património histórico e riqueza
etnográfica na medida em que a cultura se encontra ancorada na
herança patrimonial e na identidade de um determinado território
(LEITÃO; FERREIRA; AZEVEDO, 2008). Neste sentido, a
valorização do património cultural pode converter-se num recurso
ou fator mobilizador da sociedade e a sua valorização cultural e
simbólica, pode igualmente, reforçar a coesão social e a sua
identidade, assim como o seu reconhecimento e valorização na
cooperação ativa para a atratividade de um local. Porém, de nada
serve existir territórios detentores de grande riqueza patrimonial,
se não houver capacidade de o promover, comunicar e explorar
de uma forma eficaz e sustentável (VINUESA; TORRALBA, 2016).
Um território só é verdadeiramente competitivo se souber articular
a sua oferta com a dos territórios envolventes. Os fatores de
competitividade traduzem-se em produtos novos (concorrência
pela inovação), produtos diferenciados (concorrência pela
diferenciação) e produtos estandardizados (concorrência pelo
preço) (LANÇA, 2003).

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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

É fundamental que os territórios tenham capacidade de


cooperação, através de redes de interação. A cidade de Tomar
neste caso específico, detém Património da Humanidade
(CONVENÇÃO PARA A PROTEÇÃO DO PATRIMÓNIO
MUNDIAL, CULTURAL E NATURAL, 2005) e, neste sentido, é
uma referência simbólica de autenticidade, qualidade e prestígio
para os turistas.

1.1 Turismo Patrimonial e Desenvolvimento Territorial

Parte da literatura especializada em bens culturais afirma


que objetos e lugares valorizados enquanto património são
atrativos turisticamente (BARRETTO, 2007; CALONGE REÍLLO,
2011; DE LA CALLE VAQUERO, 2001; TRONCOSO & ALMIRÓN,
2005). Tal valorização deve-se, sobretudo, ao surgimento dos
denominados “novos turistas” que são mais experientes, mais
envolvidos socialmente e eticamente, independentes e flexíveis
(POON, 1993). Além disso, estão bastante preocupados em
realizar um consumo consciente e longe do turismo de massas.
Logo, procuram uma alternativa diferenciadora de viagens e a
encontram em localidades de riqueza histórico-patrimonial, onde
a cultura e a história são valorizadas.
No entanto, o uso do património como forma de fomentar o
turismo em determinadas localidades é uma prática que causa
contestações em outra grande parte dos estudiosos da temática

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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

patrimonial (VINUESA; TORRALBA, 2016). De acordo com Prats


(2011), isso se deve ao facto de que no turismo patrimonial há a
junção de duas lógicas opostas, uma da gestão de património e
outra da gestão turística, que detém um enfoque bastante
empresarial. Assim, o turismo patrimonial acaba por conjugar
interesses distintos e muitas vezes improfícuos.
No entanto, ainda de acordo com o autor supracitado, há
apenas três vias possíveis para o uso do património enquanto
produto turístico. Tudo vai depender das infraestruturas existentes
nas localidades que detém o património e a capacidade que
determinado recurso patrimonial tem para atrair visitantes e
turistas. (PRATS, 2011), alega que há viabilidade turística no uso
do património quando: I) os recursos são capazes por si mesmo
de atraírem uma certa quantidade de público, interessados pelo
bem cultural devido à sua diferenciação e unicidade, como por
exemplo, as pirâmides do Egipto e Machu Pichu, no Peru. Locais
de importância histórica e cultural para a humanidade; II) um
património tenha uma capacidade atrativa menor, mas se localiza
em territórios metropolitanos, que possuem uma afluência de
pessoas e de possíveis interessados, como o muro de Berlim, ou
a muralha da China, e, III) a utilização de um património existente
em destinos turísticos que possuam infraestruturas turísticas já
consolidadas, como por exemplo, as cidades de Girona e
Tarragona em Espanha.

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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

Depreende-se nos exemplos apontados que a


responsabilidade do planeamento na gestão é grande, pois requer
iniciativas turísticas e culturais enquadradas num tipo de
planeamento estratégico, focado na procura e na oferta do
desenvolvimento de um turismo sustentável (LOPES et al, 2018:
35). Através dessa análise, é possível perceber a capacidade
produtiva que os recursos patrimoniais têm ao mobilizar visitantes
e turistas e a modificar estruturas territoriais em vias de aumentar
o fluxo turístico e consequentemente, fomentar a atividade
turística. O património apresenta-se assim como fator
multiplicador da economia (TRONCOSO; ALMIRÓN, 2005).
O município que se expõe neste trabalho como estudo de
caso, Tomar, no distrito de Santarém, em Portugal, apresenta-se,
de acordo com a abordagem criada por Prats (2011), como
detentora de recursos patrimoniais capazes de por si só atraírem
turistas, que é o caso do Convento de Cristo (Património da
Humanidade, classificado pela Unesco em 1983). Percebe-se
assim, que o território tem estruturas já desenvolvidas e um
conjunto diversificado de recursos patrimoniais (culturais e
naturais) capazes de fomentar e desenvolver ainda mais o turismo
cultural da cidade.
Os recursos patrimoniais assumem relevância, para a
qualificação de determinado local, sobretudo quando associados
ao turismo cultural. Compreender a capacidade do património na

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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

atração dos turistas, especialmente do turista cultural em Tomar


torna-se assim, fundamental para o seu futuro enquanto destino
turístico.
A “memória dos lugares atrativos” coloca o turista numa
posição de convivência com o diferente e, nesse sentido, o lugar
acaba por ser valorizado. A oferta turística engloba tudo aquilo que
o destino tem para oferecer aos turistas atuais e potenciais
(HENRIQUES, 2003). Ao existir uma identificação dos ícones
patrimoniais, de determinada região, promove-se a visitação
cultural e turística das mesmas, contribuindo para a sua
atratividade. Os recursos patrimoniais como particularidade
coletiva, são elementos fundamentais para a construção da
identidade cultural e social, e, simultaneamente, a materialização
da identidade de um determinado grupo inserido na sociedade
(CHOAY, 1992; PERALTA & ANICO, 2006).
Neste contexto, por exemplo, o marketing territorial pode
ser um importante componente para diferenciar determinados
lugares aliado a uma componente de competitividade entre locais.
Poderá, neste âmbito, ser crucial no planeamento estratégico dos
territórios, a partir das singularidades e especificidades destes,
projetando-as num contexto global de competitividade, tendo em
conta a sua vocação e visão, promovendo-as e afirmando-as
(FERNANDES; GAMA, 2006, p. 17). Uma das questões
fundamentais neste estudo prende-se com a forma como o

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património contribui para a diferenciação e qualificação do(s)


território(s). De acordo com Barranha (2016, p. 26), “o património
é o conjunto de obras do homem nas quais uma comunidade
reconhece os seus valores específicos e particulares e com os
quais se identifica”. Se por um lado, a diferenciação é uma
estratégia de gestão no turismo, que tem por intuito implementar
decisões, de forma a destacar, a enaltecer, e a diferenciar um
determinado produto turístico, existente num lugar ou território,
perante outros já existentes. Por outro, a qualificação tem como
função, atribuir uma qualidade turística a um determinado lugar
através do património. No entanto, para existir a qualificação do
património é necessário existir a valorização dos recursos
patrimoniais, associada à interpretação e apresentação dos
recursos patrimoniais.

1.2 Metodologia

O procedimento metodológico deste trabalho englobou


uma análise estatística sobre a evolução e a distribuição das
visitas a cinco atrativos turísticos da cidade de Tomar bem como
as entradas no Posto de Turismo entre os anos 2014 e 2018, com
base nos números por este disponibilizados. Pretende-se com
esta análise entender o fluxo e a evolução de visitação turística
dos últimos cinco anos nestes recursos patrimoniais específicos,
promovendo informação centrada nesta evolução concreta,

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conhecimento e o interesse neste estudo através da evolução dos


visitantes do município de Tomar na dinâmica de desenvolvimento
patrimonial territorial.

1.3 Análise dos resultados

Apresenta-se, nesta etapa do trabalho, os resultados apurados


e disponibilizados pelo Posto de Turismo da Câmara Municipal de
Tomar no período 2014-2018. A cidade de Tomar localiza-se na sub-
região do Médio Tejo (Mapa 1). Os seus habitantes designados
“nabantinos” devido à proximidade com o Rio Nabão.

Mapa 1 – Localização do Médio Tejo Com cerca de 40.677


habitantes, espalha-se por
uma área de 351 km2. O
concelho é composto por
16 freguesias e está
localizado no distrito de
Santarém, na província do
Ribatejo. As ruas e praças
do centro de Tomar
encontram-se organizadas
seguindo um padrão de
tabuleiro de xadrez.
Espalhadas por toda a
cidade há muitas casas
interessantes com
fachadas renascentistas,
barrocas e românticas.
(CM-Tomar, 2019a).

Fonte: Simões (2012, p. 9).

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Foram selecionados seis locais de análise, conforme mapa


2: (1) Capela de Santa Iria; (2) Casa Memória Lopes-Graça; (3)
Igreja de Santa Maria dos Olivais; (4) Museu dos Fósforos Aquiles
da Mota Lima e, (5) Sinagoga de Tomar, sendo que o Posto de
Turismo de Tomar (6) também é incluído nesta análise para
percepção e enquadramento do número total de visitantes que
recorrem a este tipo de serviço.

Mapa 2 – Localização dos recursos em análise

Fonte: Autor, em ambiente SIG (ArcGis) (2019).

No ano de 2015 realizou-se a quadrienal Festa dos


Tabuleiros (imagem 1), caraterizada como um marco no fluxo e
registo de operações turísticas. Esta Festa é considerada um
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fenómeno atípico comparativamente à conjuntura global, visto que


o impacto que ela gera é bastante acentuado. Esta Festa
apresenta caraterísticas excecionais das tradicionais festividades
em Honra do Divino Espírito Santo tanto na afetação de recursos
humanos (todas as freguesias do concelho) como na tipologia,
duração e quantidade de atividades que a compõem (na
preparação e usufruto), embora tenha sofrido várias alterações
desde o seu início no séc. XIII/XIV (CM-Tomar, 2019b).

Figura 1 - Festa dos Tabuleiros

Fonte: Medina (2003)

No ano referenciado a cidade recebeu cerca de 1 milhão de


visitantes, provocando desta forma um aumento bastante

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VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

significativo das visitas nos meses imediatamente anteriores e


posteriores, pelo que os dados apurados nestes anos irão sempre
refletir o impacto deste evento que acontece a cada quadriênio na
cidade de Tomar (Portugal), provocando o tal pico anómalo
comparativamente com os outros anos.
É importante também ressaltar que apenas em quatro
monumentos foi possível o acesso à nacionalidade do visitante.
Por consequência, a análise dos dados será mais detalhada em
alguns recursos patrimoniais, que em outros.
Iniciando esta análise quanto à evolução do número de
visitantes na Capela de Santa Iria, apresenta-se as entradas de
nacionais e internacionais em igual período (gráfico 1).

Fonte: Autor (2019).

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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
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Verifica-se que, de maneira geral, as visitas dos nacionais


à Capela de Santa Iria, foram sempre superiores a dos
internacionais, com exceção no mês de maio de 2017 onde se
verificaram 114 e 117 visitas, respetivamente. Verifica-se também
que não existem dados entre janeiro e junho de 2016 e, excluindo
o ano de 2015, que como já referido foi ano de Festa dos
Tabuleiros, o maior pico deu-se com 1636 visitantes nacionais e
624 internacionais. O total de visitantes nestes quatro anos (2014-
2018) foi de 24 602. Em seguida, pode observar-se mais
detalhadamente, o movimento neste monumento apenas no ano
de 2015 (gráfico 2).

Fonte: Autor (2019).

A Casa-Memória Lopes-Graça, local onde nasceu o


maestro e compositor Fernando Lopes-Graça, foi inaugurada a 13
de dezembro de 2008. Neste local podem ser encontrados, por
exemplo, milhares de recortes de imprensa feitos por amigos de
infância de Lopes-Graça e que os foram oferecendo à Biblioteca,

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VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

livros raríssimos, fotografias, gravações e outros documentos


(GONÇALVES, 2017). Seis anos após ter sido inaugurada ao
público, este local encerrou por questões de logística de recursos
humanos, voltando a reabrir em meados de 2016.
Em 2017 sofreu uma reabilitação e encontra-se aberta para
visitação novamente desde então. Por isso, os resultados entre
julho de 2015 e maio de 2016 são omissos quanto ao número de
visitantes embora possamos assistir a uma tímida, mas previsível
linha de resultados.

Fonte: Autor (2019).

Não são conhecidos também os registos de visitantes


internacionais entre o período de dezembro de 2016 e fevereiro
de 2017 e os que existem, indicam que à exceção do mês de
outubro de 2017 estes terão sido sempre menores que os

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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

visitantes nacionais. Sobre os quais se destacam cinco no mês de


janeiro de 2014, e 11 no mês de novembro de 2016.
Relativamente aos registos máximos, observamos 407 visitas no
mês de abril de 2015 (que mais uma vez prevê-se que tenham
sido influenciados pela proximidade à Festa dos Tabuleiros) e,
412 visitas no mês de agosto de 2016.
No que diz respeito aos visitantes internacionais, o mínimo
registado pertence ao mês de dezembro de 2017 e o máximo ao
mês de agosto de 2016.
A Igreja de Santa Maria dos Olivais foi construída “no
século XII, foi a sede da Ordem dos Templários no país, tendo
servido como panteão dos mestres da Ordem. Diante da extinção
da Ordem, esta igreja tornou-se a cabeça da Ordem de Cristo,
tornando-se na matriz de todas as igrejas do Império Português,
com honras de Sé Catedral. Classificada como Monumento
Nacional desde 1910, é um dos exemplares mais emblemáticos
da arte gótica em Portugal tendo servido de modelo às igrejas de
três naves construídas até ao período manuelino” (OLIVAIS,
2019a).
As visitas a este monumento registaram uma afluência total
de 68 349 em quatro anos (gráfico 4).

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VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

Fonte: Autor (2019).

Os meses menos favoráveis a nível de afluência foram o


fevereiro de 2014 (227 visitantes) relativamente aos nacionais e o
mês homólogo de 2016 para os internacionais. Quanto ao mês
com o maior valor registado, verificou-se que no caso dos
nacionais foi o mês de setembro de 2015 com 3508 visitantes e, o
mês de setembro de 2018 com 779 visitantes internacionais.
O registo de visitantes nacionais superou sempre o de
visitantes internacionais, à exceção de quatro meses,
nomeadamente, janeiro e fevereiro de 2014 com mais 71 e 31
visitantes respetivamente e, junho e setembro de 2017 com mais
54 e 79 visitantes, respetivamente. Este último, terá sido a maior
diferença registada entre visitantes nacionais e internacionais.

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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

Quanto à origem dos visitantes internacionais, apresenta-


se seguidamente a sua distribuição geográfica no mapa 3.

Fonte: Autor (2019).

Do total de 17 679 visitantes internacionais, 2892 são de


origem espanhola e representam a nacionalidade estrangeira que
mais visitou este monumento, seguindo-se imediatamente a
nacionalidade brasileira, francesa e americana com 2583, 2520 e
2215 respetivamente. Outro recurso patrimonial é o Museu dos
Fósforos que “representa a maior coleção filumenista da Europa,
coleção essa iniciada em 1953 pelas mãos de Aquiles de Mota

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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

Lima, reconhecido cidadão Tomarense, que se destacou em


atividades culturais de grande mérito. Esta coleção, viu o seu
início na viagem de navio que Aquiles de Mota Lima realizou para
Londres, onde iria assistir à coroação da Rainha Isabel II e onde
travou conhecimento com uma colecionadora americana de
caixas de fósforos. Desde essa altura, foi um multiplicar de caixas
que atualmente rondam as 43 mil, representando 122 países,
quadros de pintores famosos, instrumentos musicais, filmes,
vedetas, joias e pedras preciosas, mitos e lendas. Portugal como
não poderia deixar de ser também se encontra representado
desde os primeiros "amorfos". Atualmente esta vasta coleção é
pertença da Câmara Municipal de Tomar, uma vez que em 1980,
foi doada pelo colecionador e instalada no Convento de São
Francisco” (Olivais, 2019b).
O número total de visitas a este museu é de 69 906 que se
dividem em 54 377 nacionais e 15 529 internacionais. A menor
diferença entre a origem destes dois visitantes verificou-se em
janeiro de 2014. Verifica-se a distribuição dos visitantes no
período compreendido entre 2014 e 2018 (gráfico 5).

Eunice R. Lopes João T. Simões Maria Rita Nunes


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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

Fonte: Autor (2019).

A origem dos visitantes internacionais foi maioritariamente


francesa com 2347 visitantes, seguindo-se as nacionalidades brasileira
com 2104, a espanhola com 1625 e a holandesa com 1421. Para uma
melhor percepção destes dados, apresenta-se a distribuição espacial
sobre as nacionalidades estrangeiras a este museu (mapa 4).

Fonte: Autor (2019).

Eunice R. Lopes João T. Simões Maria Rita Nunes


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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

No Posto de Turismo de Tomar verifica-se (como seria


espectável), uma situação inversa aos restantes locais
apresentados neste documento, no que respeita à nacionalidade
dos visitantes, verificando-se a predominância, neste caso, dos
visitantes internacionais (gráfico 6).

Gráfico 6 - Número de visitantes do registados no


Posto de Turismo de Tomar, 2014-2018
4000
3500
3000
2500
2000
1500
1000
500
0
Mar-14

Mar-15

Mar-16

Mar-17

Mar-18
Nov-14

Nov-15

Nov-16

Nov-17

Nov-18
May-14

Sep-14

May-15

Sep-15

May-16

Sep-16

May-17

Sep-17

May-18

Sep-18
Jul-16
Jul-14

Jul-17

Jul-18
Jan-14

Jan-15

Jul-15

Jan-16

Jan-17

Jan-18

Visitantes Nacionais Visitantes estrangeiros

Fonte: Autor (2019).

Cerca de 70 205 visitantes passaram pelo Posto de


Turismo de Tomar entre janeiro de 2014 e dezembro de 2018.
Desse total, 44 000 visitantes eram internacionais e os mais
representativos foram os franceses com 14 058 registos, seguidos
dos espanhóis com 5978 e, os holandeses com 2836.

Eunice R. Lopes João T. Simões Maria Rita Nunes


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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

O mês com registo mais baixo de visitantes nacionais terá


sido janeiro de 2014 com 92, seguindo-se janeiro de 2015 e
janeiro de 2016 ambos com 93, maio e novembro de 2017 com 98
e 95 registos respetivamente. Ainda relativamente aos visitantes
nacionais, estes só ultrapassaram os internacionais neste Posto,
em quatro meses: outubro 2014 (54), dezembro de 2014 (77),
fevereiro de 2015 (71) e dezembro de 2015 (24). O registo de
maior destaque de visitantes internacionais deu-se em agosto de
2018 com 2426 visitas ao Posto e o mais baixo foi o mês de janeiro
de 2014, com 107 visitas.

Fonte: Autor (2019).

Eunice R. Lopes João T. Simões Maria Rita Nunes


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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

Verifica-se relativamente à distribuição geográfica da


origem dos visitantes (mapa 5), esta reparte-se por países como
a África do Sul, Alemanha, Argentina, Áustria, Austrália, Bélgica,
Brasil, Bulgária, Canadá, China, Chipre, Croácia, Cuba,
Dinamarca, Escócia, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Estados
Unidos da América, Finlândia, Grécia, Hungria, Irlanda, Israel,
Itália, Japão, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, México,
Noruega, Nova Zelândia, Peru, Polónia, Reino Unido, República
Checa, Roménia, Rússia, Suécia, Suíça, Turquia, Ucrânia e
Venezuela:

A Sinagoga de Tomar é o único templo hebraico proto


renascença existente no nosso país. A planta
quadrangular e a cobertura abobadada assente em
colunas e mísulas incrustadas nas paredes denotam
influências orientais. Foi construída no séc. XV e
encerrada em 1496, aquando da expulsão dos
Judeus de Portugal, após o que foi convertida em
prisão; no séc. XVII é referenciada como Ermida de
S. Bartolomeu e no séc. XIX foi utilizada como
palheiro, celeiro, armazém de mercearias e
arrecadação. Só o ano de 1921 lhe devolveria a
possibilidade de reaver a dignidade perdida, quando
foi classificada como Monumento Nacional. Samuel
Schwarz judeu polaco e investigador da cultura
hebraica, salvou-a do estado caótico em que se
encontrava, adquirindo-a em 1923 e doando-a, em
1939, ao Estado Português para o Museu Luso-
Hebraico de Abraão Zacuto. Escavações de 1985
mostraram estruturas de aquecimento de águas e
talhas, comprovando a existência de sala para
banhos purificadores. Na Idade Média, como outros
comerciantes, também os Judeus percorriam o país,
onde as suas passagens por Tomar não passariam
despercebidas ao Infante D. Henrique, que estimulou
a sua fixação na Rua da Judiaria. A referência mais

Eunice R. Lopes João T. Simões Maria Rita Nunes


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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

recuada no tempo a esta comunidade data de 1315,


sendo indesmentível o seu contributo para o
crescimento de Tomar nos séculos XIV, XV e XVI
(CM -TOMAR, 2019b).

A Sinagoga de Tomar registou 228 182 visitantes entre


2014 e 2018. O mês com mais registos de visitantes nacionais foi
julho de 2015 com 2498, provavelmente, a Festa dos Tabuleiros
contribuiu para este resultado.
Não contando com os restantes meses de 2015, os
melhores que se seguiram foram agosto de 2016 com 1898,
agosto de 2014 com 1836 e, abril de 2016 com 1807. Os mais
baixos registos foram os meses de dezembro de 2017 com 319,
janeiro de 2014 com 337 visitantes e, janeiro de 2016 com 418
(gráfico 7).

Gráfico 7 - Número de visitantes da Sinagoga de Tomar,


2014-2018
8000
6000
4000
2000
0

Visitantes Nacionais Visitantes estrangeiros

Fonte: Autor (2019).

Quanto aos visitantes internacionais, estes representam


159 597 do total verificado entre 2014 e 2018 (mapa 6).

Eunice R. Lopes João T. Simões Maria Rita Nunes


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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

Fonte: Autor (2019).

A nacionalidade mais representativa foi a israelita com


56 720 em oposição à Russa que apenas registou 26 visitantes.
Depois de Israel, França foi o país que mais visitantes remeteu
para a visita à Sinagoga, seguindo-se Espanha, com 13 714 e a
os norte-americanos com 10 390.

1.4 Considerações finais

O acentuado número de visitantes nos recursos


patrimoniais da cidade de Tomar, sinalizam a importância que o
património cultural tem no território do município. Os diversos

Eunice R. Lopes João T. Simões Maria Rita Nunes


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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

locais possibilitam ao visitante, seja nacional ou internacional,


uma diversidade de opções que dinamizam a experiência no
município.
Dos diversos monumentos apresentados, a Sinagoga,
aponta nos gráficos como uma das que recebeu maior número de
visitas, o que indica uma crescente procura de visitantes
interessados na cultura judaica. Uma tipologia turística que pode
vir a ser mais explorada na região, ou na localidade.
Diante disto, nota-se a importância que o património
histórico e cultural tem tanto na diferenciação territorial,
nomeadamente, a concorrência entre o desenvolvimento
patrimonial dos territórios, como na melhoria da experiência do
turismo cultural na cidade.
Através desta análise ficam duas considerações diretas
acerca da cidade de Tomar: a primeira é que os padrões típicos
do turismo se verificam, nomeadamente na variação das
deslocações turísticas ao longo do ano que cria flutuações entre
épocas, e portanto, épocas altas e baixas, que não traduzem
caraterísticas atípicas, indicando assim a existência de potencial
e margem de exploração para atrair mais visitantes; a segunda,
prende-se com o número de turistas registado que, para a
dimensão do território e comparativamente com outros destinos
com caraterísticas idênticas é bastante representativo.

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- 36 -
TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

Desta forma, o património está interligado ao


desenvolvimento local, porque este implica a valorização de
recursos endógenos. É, assim, importante referir o papel
fundamental do Estado no desenvolvimento local sustentável,
enquanto mediador de interesses públicos e privados que se
complementam entre si. Estas caraterísticas são fundamentais
para a criação de riqueza na medida em que refletem
caraterísticas únicas e por sua vez, produtos turísticos distintos.
Será nesta linha que a transformação dos recursos deverá
acontecer, qualificando os mesmos enquanto atrativos e,
potenciando assim, a sua capacidade de atração, que juntamente
com a fusão de determinados recursos, nomeadamente pacotes
de experiências, animação, entretenimento, etc. irão aumentar a
capacidade de retenção.
Por fim, destaca-se a Festa dos Tabuleiros como expoente
máximo das festividades da cidade, e como este fenómeno
exemplar de união da comunidade, solidariedade e fraternidade,
atraem a cada quatro anos, cerca de 1 milhão de visitantes ao
longo de quatro dias, a uma cidade com pouco mais de 18 mil
residentes.
Como conclusão global, refira-se a importância do
planeamento do turismo enquanto ferramenta estruturante da
política de desenvolvimento territorial através dos recursos
patrimoniais. No contexto das dinâmicas territoriais o património

Eunice R. Lopes João T. Simões Maria Rita Nunes


- 37 -
TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

natural e cultural é cada vez mais importante nas estratégias de


(re) qualificação territorial no que toca à criação e
desenvolvimento de novos produtos turísticos para uma oferta que
se pretende cada vez mais diferenciada.

Eunice R. Lopes João T. Simões Maria Rita Nunes


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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

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VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

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Eunice R. Lopes João T. Simões Maria Rita Nunes


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TURISMO CULTURAL E RECURSOS PATRIMONIAIS: EVOLUÇÃO DOS
VISITANTES DE UM MUNICÍPIO

Eunice R. Lopes João T. Simões Maria Rita Nunes


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

2 O PASSADO É UMA ILUSÃO

Michel Constantino Figueira 4

O fim das pretensões progressistas da modernidade é


celebrado com copos vazios, olhando-se para trás, com os olhos
lacrimosos. Uma mirada política, discursiva, social, emocional,
material e científica direcionada para significantes fictícios de
segurança física e mental de ordem identitário-comunitária-
memorial. O passado vislumbra-se, no imaginário atual, como a
ilha da fantasia do naufrágio civilizatório, no mar da intranquilidade
das relações humanas, no presente, onde o futuro se dispõe no
horizonte como um céu cinza-escuro, carregado de raios e
trovões, de uma tempestade iminente. Composto de areia
movediça, o passado se dispõe como a terra firme ilusória desses
navegantes sem rumo, dos náufragos do barco do progresso.
Mas o que o passado representa? Do que se constitui,
enquanto matéria escura que analisamos, criticamente, sob a luz
da interpretação científico-subjetiva? Como explicar a convicção
presente de que o outrora, o ontem, o estado anterior, representa
o que há de mais excepcional, segundo a lógica emocional
contemporânea, para a significação plena e perfeita da
experiência civilizatória?

4Doutor em Memória Social e Patrimônio Cultural. Professor da Universidade


Federal de Pelotas – UFPel. Email: michelhotelariaufpel@hotmail.com

Michel Constantino Figueira


O PASSADO É UMA ILUSÃO

O Sociólogo Zigmunt Bauman, em seu último livro


(RETROTOPIA, de 2017), explicitou que estamos sob uma névoa
fantasiosa de uma nostalgia compartilhada, uma “doença
incurável” que substituiu o sonho futurista pela magia do
deslocamento mental para o ontem – eu já fui melhor; nada é
como antigamente; era, assim, bem melhor do que hoje –; um
ontem que funciona como uma comunidade protetora,
independentemente de suas amarras tradicionais e protecionistas,
cheia de regramentos e deficiências estruturais; como um
contraponto ao desespero de uma vida mecanizada e acelerada,
de relações fragmentadas, de ausência de significado individual
na relação com os outros; de liquidez social e, sobremaneira, de
carência de afetividade humana, familiar e comunitária, onde o
passado confunde imaginação e sonho com realidade, com
desprezo ao presente e ao futuro, no reinado de uma percepção
crítico-discursiva que se tornou “dominante tanto nas ciências
sociais quanto entre as opiniões populares” (BAUMAN, 2017, p.
14).
Neste amor pelo território distante do outrora, nesta
retrotopia antagônica a utopia modernista-progressista, as visões
e expedições humano-emocionais se deslocam para trás e
buscam cravar uma estaca no solo infértil, no terreno irregular de
uma memória movediça, “em vez de se ligarem a um futuro” que
ainda nascerá (BAUMAN, 2017, p. 10).

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

O fato é que a modernidade impressa no presente e na


idealização tecnificada e libertadora do futuro, paradoxalmente,
forjou e amplificou uma derradeira dependência às tradições e aos
núcleos comunitários repletos de subjugações, restrições e
angústias que, teoricamente, só teriam sido minimizados e
apagados no deslocamento crítico-material e político-moral-
intelectual que estava no seio idealizado da própria modernidade
e sua alusão ao progresso. Contraditório? Inevitável, na medida
em que a ruptura moderna com o passado – visto aos olhos da
inovação humana, a partir das revoluções industriais e
informacionais como a representação do atraso, da fome, do
conformismo, do ostracismo, da guerra e do nacionalismo – fez
gerar outras dores e dilemas sociais, físicos e, agora,
desmedidamente, emocionais, nascidos da neurose da
competitividade e da dependência à tecnologia e à
homogeneidade material da globalização e do desenvolvimento
urbano, incluindo os excessos do liberalismo econômico, dos
julgamentos de mercado, do desejo por independência crítico-
estrutural, da inevitabilidade do individualismo e dos
autodestrutivos comportamentos no campo virtual, onde curtidas
e compartilhamentos de imagens, ideias e informações regem o
estatuto emocional das relações contemporâneas para além das
fronteiras geopolíticas e culturais.

Michel Constantino Figueira


- 45 -
O PASSADO É UMA ILUSÃO

Os dilemas só mudaram de nuance e morfologia,


escapando do físico (mais, notavelmente, presente no passado
antidemocrático de mortalidade infantil, precariedade sanitária,
guerras, trabalho excessivo, carência de estruturas médicas,
educacionais, de lazer e culturais), para o emocional (mais,
notavelmente, presentes no presente de neuroses, stress e baixa
autoestima, independentemente dos resultantes progressistas
impressos na formação educacional, na democracia, na
longevidade, na qualidade de vida, no prestígio ao lazer) o que,
consequentemente, também afetou o físico (doenças crônicas
como diabetes, hipertensão, obesidade, dentre outras) em um
círculo metadestrutivo combatido com muita psicoterapia,
exercícios físicos e incentivo a alimentação saudável: os novos
desafios à sempre necessária resiliência humana.
No passado, usavam-se as ervas para curar as feridas
físicas. No presente usam-se os comprimidos para curar as feridas
emocionais e as feridas físicas que advêm das emocionais. No
homem, tudo tem que ser sarado em sua constante insatisfação e
resiliência existencial. Essa insatisfação atinge o seu ápice no
dialético aprisionamento libertador do separatismo comunitário,
nuclear e tribal, diante da confusão entre independência total e
necessidade de pertencimento moral-cultural-emocional. Por isso,
no presente desfruta-se da liberdade, da longevidade e da
democracia, mas com base em muita terapia e administração de

Michel Constantino Figueira


- 46 -
O PASSADO É UMA ILUSÃO

medicamentos para o sono, para a constipação e para a


ansiedade, em virtude de divórcios, isolacionismo, individualismo,
competitividade, desenvolvimento pessoal e carência de grupo.
Nessa lógica, no adentrar da modernidade, como símbolo de
futuro, o que antes era puro entusiasmo progressista e liberal, hoje
é necessidade-esperança em busca do regresso a um útero
comunitário, espiritual, emocional e tribal, sem abdicar de uma
independência progressivamente conquistada:

À medida que os velhos medos caíam aos poucos no


esquecimento, e os novos medos ganhavam em
volume e intensidade, promoção e degradação,
progresso e retrocesso trocaram de lugar. Isso incitou
os pêndulos do humor e da mentalidade públicos a
dar a guinada de 180 graus: em lugar de investir as
esperanças públicas em um futuro incerto (BAUMAN,
2017, p. 11-12).

Sendo o presente, dialético e complexo, o verdadeiro ponto


material convergente das distintas centralidades do tempo
ideológico, pode-se pensar no futuro e, particularmente no
passado, como fenômenos típicos da modernidade. O passado e
o futuro são hologramas modernos. O futuro um holograma
inevitável e moldável. O passado um fenômeno intocável, (i)
materialmente imaginado e emocionalmente pavimentado como
uma estrada de esperança para peregrinos que, iludidos sobre
uma ponte pênsil discursiva, insistem na ficção da manipulação
viva e real do tempo, sobre o território da atualidade, por meio de

Michel Constantino Figueira


- 47 -
O PASSADO É UMA ILUSÃO

práticas, discursos e experiências política e economicamente


dominados pelas indústrias patrimonial, turística e cultural.
Contudo, partilhar de um “modo de vida antes praticado” é uma
“impossibilidade absoluta” (BAUMAN, 2017, p. 14). O passado
torna-se, assim, uma miragem no deserto emocional da
modernidade, uma retórica para os iludidos pela ampulheta do
progresso e um produto da imaginação para o consumo fictício do
tempo. O passado é uma ilusão.
No seio da era da nostalgia, o produto-passado representa-
se como uma cenografia perfeita de uma ilusão de acesso ao
ontem, conduzida por um imaginário fictício, ideológico e subjetivo
que orienta estudos, políticas e ações em torno da memória, além
de práticas, programas, projetos e serviços de experiências com
o tempo, incluindo utilitários industrializados e justificativas
emocionais para explicar tanto um comportamento e um estilo de
vida, quanto a ausência de crença no presente e no futuro. Qual
seja, o passado é uma tecnologia política de governos, uma
estratégia de mercado, um objeto de cunho científico, um recurso
de status e um ansiolítico antidepressivo. Enfim, nesta era da
memória, o passado é concebido como uma panaceia ideológica,
virtualmente necessária, para minimizar as dores do presente e o
temor do futuro, envolto de uma aura religiosa, pseudo-
racionalista, nacionalista e identitária, onde a carência por
revoluções culturais fez (res) surgir, com profunda veemência, um

Michel Constantino Figueira


- 48 -
O PASSADO É UMA ILUSÃO

movimento global excessivo de fascínio pelos tempos idos, o que


representa um deleite para os agentes mercadológicos,
governamentais e científicos que organizam a economia e a
sociedade e orientam e formatam o pensamento crítico-cognitivo.
Todavia, o passado é uma invenção, uma produção
imaginária construída e reconstruída, permanentemente, no
presente. Não possui nada de genuíno, nem estética pré
(definida), já que o passado nunca esteve no passado, está, aqui
e agora, como um produto da subjetividade analítico-individual
e/ou da objetividade coletiva, socialmente legitimada, quando,
neste último caso for justificar atos de resistência cultural, de
combate à opressão, de articulação comunitária, de nacionalismo
e quaisquer outras formas de legitimação de grupo. O passado é,
assim, e então, uma ficção crítica, criativa, enevoada e
exageradamente vangloriada da memória que o reconstrói
incessantemente como uma fênix estratégico-emocional das
cinzas dos atos heroicos que insistem na diminuição do valor do
novo, que insistem em decretar o fim dos tempos, que insistem
em pôr o passado acima dos outros tempos.
Os suportes de memória, cientifica, social e materialmente
chancelados de significados pelos investigadores, expertises,
cientistas humano-sociais, curadores de acervos, indivíduos e
grupos, incluindo os símbolos e signos impressos e destacados
neles e as memórias emergidas dos discursos de narradores dos

Michel Constantino Figueira


- 49 -
O PASSADO É UMA ILUSÃO

tempos idos não representam, oficialmente, a existência concreta


de um passado pronto, real e objetivado. A definição de um
suporte e as informações de memória traduzidas, transcritas e
chanceladas, em sua excepcionalidade morfológica e linguagem
temporal, são frutos da árvore interpretativa, do estado cognitivo
da arte, do imaginário mnemônico individual (com apoio coletivo)
e do resultante teórico da subjetividade crítica que, expostos na
atualidade (de contextualização de espaço-tempo), são
acrescidos de novos significados, simbolismos, determinantes
complexos e condicionantes emocionais que os preenchem de
estética, de paisagens de imagens vultosas ou espetaculares, de
explicações conceituais e fascínios iconográficos que
reconstituem o passado, ideologicamente, como a (i) matéria
autêntica da definição civilizatória, considerando, principalmente,
que esses elementos possam moldar e definir, no campo atual, o
pensamento político, os determinantes econômicos, a nobreza do
estado criativo, o prestígio funcional da ciência, o valor das
conjunturas sociais, o acesso exclusivo ao espírito tribal e a
permanência vitoriosa das ideologias culturais.
O passado é o nome fantasia do empreendimento maior
das ilusões modernas reveladas das necessidades e desejos do
homem presente em expressar o seu descontentamento em torno
desse mesmo presente e de sua desconfiança no futuro. Nesse
empreendedorismo, de reinado fictício, os empreendedores

Michel Constantino Figueira


- 50 -
O PASSADO É UMA ILUSÃO

refutam em inovar as perspectivas intelectual-criativas e oxigenar


as concepções teórico-críticas de ordem humano-social, refutam
os sonhos de progresso, desenvolvimento e razão, refutam a
aceitação das novas formas artísticas e humanísticas e refutam,
massivamente, o valor das novidades tecnológicas, (in)
conscientemente, mendigando por revolucionárias e significativas
transformações políticas, sociais, culturais, científicas e criativas,
mas sem colaborar com o advento destas. Neste culto ao antigo,
os fiéis ao passado desenham, permanentemente em sua
paisagem sensorial, uma exasperada e excessiva pretensão
revitalizante que, ilusoriamente, só pode emanar das luzes divinas
dos grandes acontecimentos, das grandes manifestações
culturais e dos grandes personagens desse passado,
mergulhando em sonhos e imaginários traduzidos pelas
produções modernas como reais, mas desconsiderando os
progressos adquiridos, a inevitabilidade do novo e a esperança no
futuro.
Por se tratar de uma ideologia emocional e material do
presente, de fato, o passado não existe. O passado é uma ilusão.
Seu acesso e descrição pormenorizada são irregulares,
fantasiosos e subjetivos e suas formas, traços, vultos e
materialidade são apresentados, valorizados e representados a
partir dos resultantes da mescla entre rememoração individual
(facilitada pela rememoração dos outros e pela intervenção de

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

especialistas) e valorização estético-emocional (explícita ou


despertada; individual ou coletiva) dos suportes de memória tais
como a fotografia, as pinturas de grandes artistas, os documentos
históricos, os monumentos e os conjuntos urbanos de séculos
passados, os cadernos de receitas, as fórmulas, mapas e
manuscritos antigos, os rolos originais dos primeiros filmes de
Charlie Chaplin e as cartas guardadas em uma caixa, na gaveta
de uma velha penteadeira.
O turismo, a fotografia, a escultura, a pintura, a expografia,
o gravador digital, a arqueologia, as câmaras de vídeo, as pinturas
rupestres, a indústria patrimonial e as reservas cerebrais (nossas
e dos outros) atuam juntos e/ou separados para evitar o
desaparecimento da imagem do ontem, o desaparecimento da
memória, o fim do passado. Por isso que o fascínio pelo passado
gera uma resistência moderna à lógica do esquecimento,
materializando ideias, projetos, produções tradicionais, estudos
científicos e ideologias nacionalistas de modo a satisfazer a sede
pelos heróis, pelos grandes acontecimentos, pelas grandes
revoluções, pelos líderes culturais. Para os que o produzem,
inventam, idealizam e o descrevem, o excessivo prestígio dado ao
passado é a estratégia político-social-econômica de congregação
universal de adeptos da ruptura com o progresso e com o futuro,
pois no passado encontra-se a promessa e a permissibilidade de
obtenção de equilíbrio emocional, de conforto existencial e, quiçá,

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

de desenvolvimento socioeconômico a partir de uma nutrição


sentimental viciante para as massas de desesperados que
marcham para trás, incluindo, obviamente, a concretização de
oportunidades pessoais/profissionais para aqueles que
trabalham, direta e indiretamente, com as infindáveis
possibilidades de uso material, experiencial e sensorial do
passado.
Ressaltando, a descrição do ontem, que se molda, se
apresenta, se publica, se defende e se debate, não tem nada de
um real definitivo e nada mais representa do que uma (ir) realidade
liquida para tentar explicar o próprio passado (e o presente), por
meio de uma constante reconstrução crítico-subjetiva e material
dos tempos idos, permitindo aos narradores, pesquisadores,
comunidades, políticos, empreendedores, indivíduos do tempo-
espaço atual, a confirmação do passado como um ato, um fato,
um acontecimento real, mas que não pode ser tocado, sentido,
manipulado sem que se desconsidere a sua alusão a um selo de
magia, de cosmogonia, de divindade, com base em pura
interpretação pessoal e em pura subjetividade para vangloriar um
sonho comunitário, para resolver uma necessidade afetiva, para
prestigiar, por meio de regras práticas e regulamentos técnicos,
uma excepcionalidade estética, para legitimar um reconhecimento
identitário e um sentido de pertencimento tribal, para publicar uma
ideia, para atrair os olhares e estimular os sentidos, gerando um

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

sono confortável que só o passado pode proporcionar àqueles que


vivem os pesadelos da vida moderna e àqueles que se deleitam
nas possibilidades nutritivas do ontem.
Por isso, por ser sonho, não importa quantas vezes se olha
para o passado, tudo o que se vê é uma sombra imaginária,
irregular e interpretativa do tempo, uma forma bela ou caótica e
um mapa descontínuo da memória enevoada e fictícia. Esse mapa
é constituído de um rico acervo de expressões e impressões
sensoriais para os amantes inveterados dessa memória em sua
resistência ao reconhecimento e aceitação do novo, em seu
deleite emocional pelo ontem, na sua tentativa de elucidar
concretamente os fatos, sob a luz de ideologias crítico-políticas,
onde busca-se retratar e significar a verdadeira beleza da arte e
do humanismo a partir da ressuscitação dos mortos e da exaltação
dos acontecimentos julgados como notáveis na formação da
humanidade. Isto, porque, os mortos, os personagens e os
acontecimentos memoráveis (memoráveis por serem, assim,
dignos, segundo a lógica político-crítica, de serem
constantemente rememorados e celebrados) só morrem e
desaparecem, de verdade, quando ninguém (nem nada) se
lembra ou nos faz lembrar deles.

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

2.1 O fascínio pelo passado e a ideologia do tempo

O passado é uma representação ambivalente, na medida


em que carrega uma imagem de fatos e experiências tanto
positivos, quanto negativos, permanentemente ressaltados nos
discursos “de um incoercível fascínio pela memória” (HUYSSEN,
2000, p. 76). Esse fascínio mnemaníaco por tudo que seja antigo,
pelos personagens e deuses carimbados da história e pela
humanidade de outrora, remonta, redundantemente, aos tempos
mais remotos, cujos protagonistas também exaltavam seus
tempos mais remotos, gerando, permanentemente, uma infinita
reprodução moral, intelectual, emocional, comportamental e de
valor estético de coisas antigas em contextualizações presentes
na natureza cultural do próprio passado.
O homem que pensa sempre recortou o tempo em lógicas
singulares que se compõem como peças em um quebra-cabeça
elucidativo do existencialismo: passado, presente e futuro
dividem-se no campo da interpretação e da ação humana sobre o
espaço geográfico, particularmente considerando as produções
humanas e a configuração da paisagem, elementos subjetiva e
objetivamente construídos no domínio da natureza através da
formação de redes cognitivas, sociais e culturais. O homem olha
para o mesmo foco e num piscar de olhos, a imagem desse foco
se transforma, deixando um rastro de memórias, um universo

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

interminável de interpretações, um campo infinito de imaginários


sobre a ilusão do tempo. Ter um passado, um presente e um
futuro é um recurso para o homem construir um muro crítico que
o separa, através da cultura, da natureza que o forjou. Olhar,
buscar, amar, depender, lutar pelo passado é marcar uma
identidade existencialista e dar-se um selo diferenciado de ordem
civilizatória: ter uma cultura, ter uma história, ter uma memória.
Por isso, o homem sempre foi fascinado pelo passado e
dependente de sua simbologia imaginária. O passado representa
o apogeu e a glória, mas também representa a dor, as agruras e
as dificuldades que não podem ser olvidadas, mas podem ser
ressaltadas e justificadas como elementos meritocráticos e
autoafirmativos: saudosismo, nostalgia, veneração,
rememoração, romantismo, emoção e sentimentalismo são
símbolos que projetam o passado como a representação
fundamental da humanidade em uma metamemória biológico-
cultural de autodefesa afirmativa diante das transformações do
tempo-espaço.
Notáveis e destacados, exaltados e reproduzidos, os
momentos imaginados da memória amplificam e legitimam a
simbologia dessa dependência do homem ao passado,
congregando fieis devotos da irmandade do tempo para o templo
sagrado de adoração de tudo que espelhe um selo de antigo, de
tudo que simbolize uma sacralização dos tempos idos: o advento

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

do Cristianismo, por exemplo, como um constante rito de


exaltação do filho de Deus e a indústria da memória religiosa que
se projetou no ocidente em uma constante e permanentemente
reatualizada proclamação da segurança diante da morte e de
redenção dos pecados cometidos; o advento do Renascimento e
da exaltação das artes da antiguidade, então ressignificadas na
liberdade do pensamento criativo, onde o homem toca o dedo de
Deus em sua permissiva liberdade estética para comparar a arte
às obras divinas; e, não diferentemente, no celibato dos modernos
amantes autoproclamados do ontem que exaltam seu desejo
constante e sua devoção ferrenha por tudo que explicite um
conceito memorial, cancelando qualquer permissibilidade de uma
troca de fluídos com a beleza do presente ou de um flerte animado
com o futuro.
Nessa lógica, a observância desse fascínio humano pelo
passado (como algum traço presente no DNA), faz subentender
que o culto ao mesmo não frutificou somente da desilusão pela
modernidade. A modernidade apenas amplificou, política,
científica e industrialmente, a ansiedade do tempo já presente no
genoma de todo ser humano: a curiosidade pelos acontecimentos
e civilizações desconhecidos, o fascínio pelos heróis, pelos
pioneiros, pelos grandes músicos, pelos grandes escritores e
filósofos, pelos artistas fenomenais, pelas guerras e conquistas e
pelos espíritos antigos, mitos imaginados que fundaram as bases

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

da diversidade material, filosófica e comportamental do homem do


presente.
A modernidade só atentou para um rompimento definitivo
com o passado em um lapso momentâneo de proclamação
tecnológica e entusiasmo progressista, de produção e consumo,
do excesso de informação, mas sem decretar o fim da história e
sem decretar o fim do passado, pois o passado é como um vírus
escondido, um traço genético, uma fênix que renasce das cinzas
do fogo da insatisfação e do desespero de sobrevida por raízes,
como um espírito do tempo que insiste em puxar os pés dos que
se sentem insignificantes, inutilizados, marginalizados e
impotentes diante do presente e tementes do futuro, tais como
patinadores do gelo fino e quebradiço de uma atualidade marcada
por avanços inimagináveis na longevidade, na democracia, na
paz, na tecnologia e no acesso à informação, mas que, no
pensamento conclusivo contemporâneo, não responde à
humanidade com novos heróis, novos deuses, com notáveis
explosões de arte e de acontecimentos marcantes e que, diante
do excesso de informação e de indiferença ao presente, mesmo
que surgissem não receberiam um selo de significado e de
exaltação social que os validariam como elementos humana e
culturalmente revolucionários, tendo que demandar muito esforço
para tal, por meio de muita orientação crítica associada à muita
valorização de imagem, já que os olhos cegos de passado não

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

vislumbram cores vibrantes no horizonte do futuro e nas flores da


atualidade.
Importante observar, ainda, que o sentido de modernidade
e sua palavra-mor – progresso – ao tentarem reparar o tempo e
apagar o passado, construir um muro temporal com o ontem e
uma ruptura com a memória, deram ao homem a esperança da
vida eterna na terra, o entusiasmo do acesso ao conforto físico,
mas ignorando, equivocadamente, que tudo no homem pertence
ao passado como resultado de transições e modificações
ambientais e culturais do tempo, na relação com o território, com
os espíritos, com os mitos, com os ídolos, com uma comunidade
real ou imaginada, com um bairro, com uma cidade, com um país,
com uma região, com os anciãos, com as marcas materiais das
antigas civilizações, e que foram esses elementos que permitiram
a esse mesmo homem seguir em frente na (re) construção
permanente do processo civilizatório. O passado é o verdadeiro
Deus da humanidade, ao se mostrar, ilusoriamente, como fonte
inesgotável de proteção mental e espiritual, como um antídoto
contra o veneno do presente, como uma prevenção contra os
males potenciais de um futuro desconhecido.
Dessa forma, e por isso, o passado nunca esteve no
passado. O passado é uma invenção, uma ilusão, uma ficção,
constantemente reatualizada no tempo presente, na lógica
nostálgica do “aqui e agora”, adquirindo um selo de base, de norte,

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

de baliza, de suporte, de energético, como a raiz que segura a


árvore da vida, oxigenando o existencialismo. E essa árvore do
existencialismo só seguirá seu ritmo de crescimento em direção
ao espaço, se estiver abastecida, se forem supridas suas
necessidades de nutrientes para se desenvolver e oxigenar a
humanidade, amparando-se em suas raízes, cumprindo sua
inevitável expansão na paisagem, sobre o solo do tempo.
Reiterando e aprofundando, a mesma modernidade que
promoveu a ruptura com o passado gerou um sentido de
libertação mental satisfatória, associada a ideias liberais e
pensamentos progressistas contra os desmandos da dureza
repressora das sociedades conservadoras e tradicionais, de
trabalho árduo, de carência de estruturas, dando ao homem a
idealização de um futuro próspero, o fogo de prometeu, a vida
eterna. Contudo, e paradoxalmente, os elementos e mecanismos
que se materializam, constantemente, no seio dessa modernidade
não minimizaram a angústia diante da frustação e do medo que o
presente e o futuro a ser atingido impõem ao homem
contemporâneo. Por isso, ao instigar nele essa ruptura com a
opressão do conservadorismo, da inserção tribal, do extremismo
religioso, do aprisionamento territorial e da moralidade
comunitária, a modernidade não minimizou a evidência implícita
que orienta os sonhos, os devaneios e as ilusões dos devotos da
memória, os quais delegam tanto esforço físico, crítico e

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

emocional, além de “tempo e energia à evocação do passado”


(DANN, 1998, p. 53).
Além disso, o futuro pretendido e imaginado, hoje
desconhecido e desacreditado, mostrou-se potencialmente
terrível ao aflorar falências emocionais aos espíritos comuns, uma
condição degradante que levou o homem moderno a uma
condição dialética em relação a suas escolhas temporais,
buscando ser e estar no seio da felicidade material, do acesso à
informação, da liberdade crítica e de todos os levantes estruturais
da tecnologia na vida moderna, mas sem soltar a corda do tempo
que, em seu balão que flutua em direção ao espaço sem fim, os
mantêm agarrados a terra sagrada do passado, um passado que
mexe com os nervos, com os comportamentos, que desloca a
mente de um eixo trêmulo para a busca constante de reequilíbrio
mental-emocional e que está presente no vazio dos lugares de
memória, na ferrugem das indústrias abandonadas, nas cidades
históricas chanceladas como patrimônio mundial, na paisagem
modificada pelas novas construções, nas rugas, nas lembranças
dos olhares que se perdem no trânsito caótico, nos sonhos de
corpos adormecidos e cansados, nas músicas antigas que tocam
nos smartphones e nas frases feitas dos grafites que adornam as
paredes das cidades: “Quem não sente ainda grande emoção ao
passear por áreas industriais abandonadas, fábricas

Michel Constantino Figueira


- 61 -
O PASSADO É UMA ILUSÃO

desocupadas, ou portos onde gruas enferrujam, ou por estações


desativadas”? (JEUDY, 2005, p. 25).
Particularmente, na idolatria por tudo aquilo que represente
o antigo, mesmo que não seja antigo, mesmo que seja ficção,
invenção, sem bases históricas, mas que expresse um conceito
de memória e um símbolo de passado, como dragões e monstros
de epopeias cinematográficas e literárias, por exemplo,
tematicamente ambientadas no medieval e na antiguidade e
repletas de experimentações sensoriais, as experiências com o
ontem servem de candelabros que iluminam os perdidos na
escuridão da aceitação do presente e do temor do futuro,
permitindo às crianças adultas abandonadas de qualquer
significante uterino-memorial, “ver os corpos, escutar vozes e
gritos, ter a sensação de uma atmosfera de vida comum que a
literatura e o cinema nos sugerem o tempo todo” (JEUDY, 2005,
p. 26).
Nesse amplificado e moderno “fascínio contemporâneo
pela contemplação daquilo que é histórico” (URRY, 2001, p. 144),
a necessidade esperançosa de refletir sobre a própria realidade
histórico-memorial, sobre a própria condição identitária e sobre a
perspectiva de continuidade, delega aos indivíduos e aos grupos
sociais uma urgência de olhar para trás e esticar os braços em
busca de um abraço, de um colo, de um retorno à barriga

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

existencial-comunitária, reequilibrando emoções diante da


inevitabilidade da jornada para a frente, para o futuro.
Sobremaneira, estar, ser, pertencer, acessar e adentrar
qualquer comunidade, real ou imaginada, com uma memória
social documentada (ou inventada), física ou virtual, mas que
permita o contato sensorial e ilusório com qualquer pedaço
material, imaterial, legitimado e idealizado do ontem, conforta os
órfãos do tempo a andar com segurança e equilíbrio, para frente,
mesmo que, dolorosamente, arrastando-se, desde que sintam
qualquer peso simbólico ou físico de raiz sob seus pés; por sentir-
se parte de qualquer confraria cultural, por sentir-se parte
indissociável da natureza, por sentir-se integrado a um grupo
social presente em um território particular, por ser humano, por
não ser mecânico, mas viver em um mundo mecanizado, por não
ser um robô, mas necessitar da robótica e por necessitar de um
escape, de fôlego, de uma muleta no seio da escravidão material
da vida moderna e das demandas que ela condiciona e determina.
Intensa ou timidamente, o homem se agarrará, para todo o
sempre, a ilusão do passado ideologicamente visto como um
revigorante enérgico, um calmante para a alma, a base de tudo.

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

2.2 O efeito placebo do passado e a urgência por revoluções


criativas

A resposta positiva de doentes, cujas doenças são tratadas


com falsa medicação baseada na administração de pílulas de
açúcar, por exemplo. Este é o efeito placebo, quando são
aplicados à pacientes pílulas ocas, ou feitas de açúcar, sem
quaisquer componentes sintéticos ou homeopáticos,
farmacológicos, mas que, por fim, resultam em melhoras notáveis
do ponto de vista físico e emocional.
Como um medicamento de efeito placebo, o vulto
enevoado do passado é constantemente idealizado, reatualizado
e ministrado para iluminar os sonhos, acalmar os nervos,
acarinhar o coração e curar as feridas abertas e as dores expostas
dos doentes emocionais, aflitos fartos de presente, apavorados
com o futuro.
Segundo a interpretação dos nostálgicos, a casa da mãe
era mais confortável, o vilarejo e a cidade pequena e pacata eram
mais calmos, os chás e curandeiros curavam todas as feridas, a
comida era mais saudável, trabalhava-se menos e conversava-se
mais, havia mais tempo para a interação, dançava-se bastante,
havia mais segurança, democracia e qualidade de vida e todos
eram mais unidos e felizes.
Mas há estudiosos do comportamento, da modernidade e,
também, do próprio passado, que não legitimam a ideologia da

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

beleza impressa no reinado da memória evocado nas vozes e


hábitos dos seus súditos fiéis, no presente. Em total discordância
à esta lógica devotada de hipervalorização espetacular do
passado e com um profundo entusiasmo e otimismo sobre o
presente e o futuro, o Psicólogo norteamericano Steven Pinker
(2018) explicita que estamos vivendo o auge da liberdade de
pensamento e de expressão, da democracia, da qualidade de
vida, da longevidade, da riqueza, da saúde, da igualdade de
gênero e da distribuição da renda, da proteção ao meio ambiente,
da paz, do conhecimento e da felicidade, elementos que
nortearam os ideais iluministas do século XVIII, os quais só foram
atingidos pelo despertar da modernidade e do advento do
progresso, da razão, da ciência e do humanismo, em resistência
e ruptura com as amarras e mordaças de ordem religiosa, política,
econômica e, sobremaneira, cultural, considerando as guerras, as
ditaduras, a concentração da renda, a morte precoce, o trabalho
infantil, o nacionalismo extremista, o desrespeito às mulheres e
aos grupos minoritários, as diásporas da fome, o conservadorismo
patriarcal e o papel intricado de opressão moral das religiões no
seio das sociedades tradicionais. Para o autor, em seu best-seller
“O Novo Iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do
humanismo”,

Com nossa compreensão do mundo desenvolvida


pela ciência e nosso círculo de solidariedade
expandido pela razão e pelo cosmopolitismo, a

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

humanidade pôde progredir nas esferas intelectual e


moral. Não precisa resignar-se aos sofrimentos e
irracionalidades do presente, nem tentar fazer o
relógio voltar a uma era dourada perdida (PINKER,
2018, p. 30).

A maioria das pessoas concorda que a vida é melhor


do que morte. Saúde é melhor do que doença.
Sustento é melhor do que fome. Abundância é melhor
do que pobreza. Paz é melhor do que guerra.
Segurança é melhor do que perigo. Liberdade é
melhor do que tirania. Direitos iguais são melhores do
que intolerância e discriminação. Inteligência é
melhor do que estupidez. Felicidade é melhor do que
tristeza. Oportunidades de usufruir a família, os
amigos, a cultura e a natureza é melhor do que uma
labuta incessante e a monotonia (PINKER, 2018, p.
75)

Com base em uma série de dados e gráficos estatísticos, o


autor comprova, cientificamente, que o mundo está mais rico, com
maior e melhor distribuição de renda, mais pacífico, com pessoas
mais saudáveis, livres, seguras, alfabetizadas e instruídas e com
menor índice de poluição ambiental e com menos ameaças à
existência – mesmo que seja evidente que a humanidade ainda
enfrente graves problemas - e que essa realidade positiva resulta,
particularmente, dos progressos na ciência e na tecnologia
(PINKER, 2018).
Por outro lado, Pinker (2018) não observa (ou desloca-se
de) que, diferentemente do olhar de Harari (2018), na crença
nostálgico-religiosa da procissão para trás e do culto às musas
invisíveis – onde é girando-se a cabeça até o limite, sobre os

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

ombros emocionalmente esgotados, que se pode caminhar com


segurança – para a maioria das pessoas progresso nem sempre
é sinônimo de esperança, felicidade e, principalmente, satisfação:
“uma vida cheia de sentido pode ser extremamente gratificante
mesmo em meio a adversidades, ao passo que uma vida sem
sentido é um suplício terrível independentemente de ser repleta
de conforto” (HARARI, 2018, p. 402).
Assim, na liquidez das relações modernas,
independentemente dos efeitos positivos do progresso, da
evolução tecnológica e do acesso ao conhecimento, as relações
táteis, empáticas, sinceras e comunitárias, imaginadas no ontem,
significam a esperança de realização do sonho utópico do
passado, com indiferença aos avanços do presente e desprezo às
possibilidades do futuro. E, mesmo quando se vislumbram
significados de valor no presente, os mesmos são justificados
como resultantes de planos forjados por personagens e projetos
desenvolvidos no passado.
O sucesso do turismo patrimonial, da moda retrô e do
cinema ambientado em acontecimentos históricos, como
exemplos de mercantilização da memória e da hipervalorização
do ontem, resultam, acompanham e permitem a materialização
experimental da cultura contemporânea de dependência a tudo
que seja antigo, através da permissão ilusória de contato com
aquilo que já passou e que, possivelmente, nem tenha acontecido,

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

mas que exerce um efeito placebo contra as agruras fisiológicas e


mentais que atormentam os desesperados por algum significado
existencial. Esse direcionamento resulta da produção cultural que
atrai um sujeito moderno, capacitado mental, cultural, financeira e
fisicamente para o deslocamento pendular, físico e sensorial, em
um espaço-tempo fictício, configurado sobre um território
identitário, inventado, virtual ou físico, a ser consumido como um
analgésico ilusório para a minimização da perda de identidade e
do sentimento de mundo, marcando o reinado de uma urgência
absoluta e permanente por uma baliza temporal, por uma muleta
memorial, por raízes comunitárias, que permitam segurar o
equilíbrio da vida moderna, que permitam aos súditos do outrora
respirar, seguir em frente, dormir em paz, sentir-se parte de algo
significativo no mundo onde vivem e, principalmente, encarar o
futuro.
Ao viver o momento, o imediatismo e a lógica de uma vida
mecanizada na estrutura tecnológica, econômica e social que os
cerca, sobretudo nas grandes cidades, os viajantes modernos em
busca de referências e bens do passado, bem como os viciados
em séries de TV que destacam povos antigos e os colecionistas
de coisas do ontem, sentem o seu mundo emocional
despedaçado pela interferência do excesso de informação, de
trabalho e competitividade e da insatisfação permanente que lhes
assola e lhes aprisiona a um cotidiano moderno mecanizado, sem

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

sentido e sem lógica comunitária e sem apelos estéticos,


apegando-se ao universo perdido dos povos antigos, seus
objetos, suas criações e suas ações em notáveis transformações
históricas: “o estilo de vida daquele tempo é projetado como mais
perfeito do que o modo como vivemos hoje, ou como poderíamos
viver em qualquer época” (DANN, 1998, p. 53).
Segundo os nostálgicos fervorosos, o ser humano
moderno, um mesmo ser da natureza, de olfato, paladar, visão,
audição, tato e percepção, outrora aguçados, agora, se vê
oprimido pelo predomínio de uma carência de função crítica,
criativa, motora, cognitiva e transformadora. É preciso uma
abstinência da atualidade, mas mergulha-se em uma outra
dependência, um outro vício que exige, também, um tratamento
psiquiátrico, diante da esquizofrenia nostálgica que assola
aqueles que perseguem, como lunáticos, imagens enevoadas de
seres, personagens, fatos e acontecimentos que aguçam a
imaginação, invocam memórias, estimulam idolatrias
nacionalistas e práticas excessivas de uma automutilação
temporal.
Diante do isolacionismo urbano, da competitividade
profissional, do atingir das metas e do cotidiano mecanizado,
surgem sociopatias que reverberam dores físico-emocionais que
resultam em problemáticas e doenças modernas tais como
ansiedade, neuroses, stress, cansaço extremo, insônia, câncer,

Michel Constantino Figueira


- 69 -
O PASSADO É UMA ILUSÃO

diabetes, infarto e suicídio. Para esses enfermos, é urgente e


necessário andar e olhar para trás, para se animar, para se
recuperar, para se curar: “nós fomos enredados em todas essas
preocupações e rotinas sem sentido, nas quais passamos a
acreditar como se fosse a receita infalível para confirmar nosso
status ilusório” (BAUMAN, 2017, p. 115). E, Harari (2018, p. 98),
complementa: “pensamos que estávamos economizando tempo;
em vez disso, colocamos a roda da vida para girar a dez vezes
sua velocidade anterior e tornamos nossos dias mais ansiosos e
agitados” (HARARI, 2018, p. 98).
Acompanhados por medicamentos que auxiliam na
qualidade do sono, na redução da ansiedade, no tratamento da
depressão, acompanhados pela literatura de autoajuda, pelos
cultos religiosos, pelas práticas de meditação e pelo
deslocamento turístico em busca de natureza e sociedades
tradicionais, os devotos do culto ao ontem creem, sem
ponderação, que o passado reina absoluto como um ser supremo,
como um medicamento ansiolítico que não apenas cura, mas
ameniza o desvanecimento diante das enfermidades psicológicas
e reflexivamente físicas, estimulando os sentidos e provocando
uma euforia necessária em torno do consumo de produções,
recursos, ideais, projetos e objetos que hipervalorizem tudo que
seja (ou represente) antigo, tradicional, memorial, comunitário e
histórico. Mas, logo, detêm-se a consciência de que se está no

Michel Constantino Figueira


- 70 -
O PASSADO É UMA ILUSÃO

presente e de que o futuro é inevitável, acordando-se do sonho


belo do passado, no pesadelo do aqui e do agora, vivo e real, no
olho do furacão de um presente que logo também será passado.
Por isso, de fato, só existe o presente. E a desilusão com a
modernidade não traz prejuízo a inevitabilidade do porvir. Por
hora, a iminência do futuro conforta os entusiastas e defensores
do reino do progresso, mas convoca às armas os “desiludidos e
irritados pelas esperanças” que “teimando em frustrações,
investem seus sonhos em voltar ao passado” (BAUMAN, 2017, p.
114).
Mas, existem significantes importantes no prestígio do
passado? De alguma maneira, o passado age como um filme
interessante que ajuda o corpo cansado de uma rotina diária a
adormecer profundamente e acordar revigorado. O progresso
trouxe conforto ao custo do excesso de individualismo, mas a
reconexão com o passado, com as tradições, com a natureza,
forjou, mesmo que timidamente, o (re) surgimento de movimentos
de solidariedade, comunhão, colaboração, consciência ambiental-
cultural, respeito às diversidades, revalorização do espaço rural e
prestigio de produções alimentares orgânicas, bem como a
valorização de práticas de associativismo compartilhado. Os
questionamentos prosseguem:

E se as pessoas nas sociedades afluentes modernas


sofrem muitíssimo de alienação e carência de
sentido, apesar de sua prosperidade? E se nossos

Michel Constantino Figueira


- 71 -
O PASSADO É UMA ILUSÃO

ancestrais menos abastados encontravam grande


contentamento na comunidade, na religião e em um
vínculo com a natureza? (HARARI, 2018, p. 390).

E se o passado, ilusório, imaginado, fictício e espetacular,


em seu efeito placebo, servir como um provedor da esperança de
um movimento de humanidade, qual a razão de motivarmos uma
indiferença ao ontem em prol de uma exaltação do porvir? E se
fosse estabelecida uma inevitável condição de seguir-se por duas
vias temporais – para frente e para trás – na justificativa de uma
explosão de qualidade emocional-material para os frustrados pelo
presente e temerosos de futuro?
As respostas para minimizar os excessivos calores
temporais não são complexas e estão na necessidade urgente de
grandes transformações civilizatórias, que sejam reconhecidas,
celebradas e socialmente chanceladas como tais, no presente.
O fato é que nem o passado ilusório, nem o futuro
idealizado, podem diminuir a necessidade cruel dos mendigos
culturais da atualidade pelo advento de grandes revoluções
artísticas, musicais, arquitetônicas, políticas e econômicas que
sejam, espetacularmente celebradas por serem significantemente
transformadoras, como a cura de doenças crônicas ou o
surgimento de outra magnífica banda de rock como os Beatles ou
o Led Zeppelin. O futuro virou símbolo apenas de tecnologia e
longevidade, mas o passado permanece símbolo de auge cultural.

Michel Constantino Figueira


- 72 -
O PASSADO É UMA ILUSÃO

E o presente imprime-se nos muros separatistas do


cotidiano global como um decreto de final dos tempos, sob o
reinado do conformismo e da ausência de grandes
acontecimentos. O documento histórico, a oralidade e os suportes
de memória permitem ler o ontem sob uma ótica crítico-subjetiva
quase (ou completamente) mística diante de uma total desilusão
cultural e de uma completa carência, no presente, por
transformações magníficas no seio civilizatório, mesmo com as
possibilidades e facilidades do progresso material.
Há uma urgência pelo novo no meio do novo, mas um novo
de estado da arte, do pensamento e da razão, pois o passado
ilusório foi escrito com base em pretensões evolucionistas,
realizações criativas, exercícios cognitivos e revoluções artísticas
e políticas presentes no despertar sensorial e na materialização
coletiva dos anseios evolutivos, fazendo surgir personalidades,
línguas, comidas, musicalidades, formas arquitetônicas e
transformações comportamentais, locais e universais, inovadores,
ousados e criativos. De Bach, Mozart e Beethoven à Tom Jobim;
de Cartola a Camarón de la Isla; de Sêneca à Montesquieu; de
Charles Darwin à Alexander Fleming; de Lewis Carroll à Gabriel
Garcia Marquez; de William Shakespeare à Oscar Wilde; do Egito
Antigo à Revolução Francesa; de Coco Chanel à Paco Rabanne;
de Sepé Tiaraju à Nelson Mandela; de Isacc Newton à Albert
Einstein; de Leonardo da Vinci à Salvador Dali; de Chopin à Pink

Michel Constantino Figueira


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O PASSADO É UMA ILUSÃO

Floyd: o mundo precisa de heróis, de personalidades expressivas,


de acontecimentos, de revoluções, de notícias de curas de
doenças, de grandes descobertas físicas, de novas formas
artísticas, elementos que, desafiando a ordem dos fatos, deem
esperança e balancem, estimulem, exaltem e valorizem uma forte
confiança no futuro; para o decorrer de uma história que
continuará sendo escrita e de uma memória que continuará sendo
produzida, para, adiante, serem interpretadas, prestigiadas,
exaltadas e imaginadas; e para a liberdade da dinâmica cultural,
material e imaterial, para além de seu purista congelamento
estético-conceitual.
A cura dessa doença individual e competitiva pelo
progresso e o tratamento desse desespero compartilhado pelo
passado devem passar, além das revoluções criativas e
cognitivas, no presente, pelo valor do humanismo, da razão e do
conhecimento, através, ainda, do prestigio da solidariedade em
torno de produções e ideias que permitam liberdade expressiva e
conforto físico-emocional, para além da conflituosa e dolorosa
escolha entre ser parte de uma comunidade ou ser livre para
pensar.
Essa liberdade deve considerar uma complexa e
necessária prática evolucionista que permita uma autossuficiência
libertadora de expressão e pensamento, mas, ainda, de
sentimento e prática de pertencimento flexível a um determinado

Michel Constantino Figueira


- 74 -
O PASSADO É UMA ILUSÃO

grupo. Isto, porque, em sua utopia circular, o nostálgico moderno


não vislumbra o retorno fiel às velhas degradações humanas, mas
também só abrirá, com ânsia e entusiasmo, as cortinas do futuro,
quando sentir-se plena e confiantemente seguro no palco de um
espetáculo presente que seja marcado pela celebração de
extraordinárias mudanças de ordem civilizatória, grandes
acontecimentos científicos e ousadas revoluções criativas.

Michel Constantino Figueira


- 75 -
O PASSADO É UMA ILUSÃO

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Retrotopia. Tradução: Renato Aguiar. Rio de


Janeiro: Zahar, 2017.

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Tradução Janaína Marcoantonio. 33. ed. Porto Alegre, RS: L&PM,
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Janowitzer. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.

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URRY, J. O olhar do turista: lazer e viagens nas sociedades


contemporâneas. São Paulo: Studio Nobel: SESC, 2001.

Michel Constantino Figueira


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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

3 TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE


VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO CEMITERIAL E DE
OUTRAS MEMÓRIAS

Amanda Basilio Santos 5


Ronaldo Bernardino Colvero 6

3.1 Cemitérios: entre o abandono e a ruína promissora

Muitos cemitérios brasileiros encontram-se em estado de


depauperação contínua, de modo que todo dia se perde
materialidade, e com ela se dissipa um registro histórico e
memorial de variados períodos históricos. A situação dos espaços
cemiteriais possui uma complexa conjuntura social e econômica
que acarreta no cenário atual de ampla depredação, seja ela
deliberada, fruto de mazelas sociais ou proveniente do abandono
e da ação do tempo. Podemos acompanhar por todo o país as
notícias que apontam para essas duas formas de perdas7. Tais
situações podem ser contornadas? Esta realidade que se abate

5 Doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGH –


UFRGS); Doutoranda em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade
Federal de Pelotas (PPGMP – UFPEL); Mestre em História (PPGH-UFPEL); Mestre em
Memória Social e Patrimônio Cultural (PPGMP – UFPEL); Especialista em Artes (PPGA
– UFPEL). E-mail: amanda_hatsh@yahoo.com.br.
6 Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-
RS). Professor Titular na Universidade Federal do Pampa – Campus São Borja. E-mail:
rbcolvero@gmail.com.
7 Apenas como uma amostra dessa situação:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/11/tumulos-de-presidentes-da-republica-
definham-em-cemiterio-de-sp.shtml; https://g1.globo.com/sp/sao-
paulo/noticia/2019/08/19/sao-paulo-registrou-467-furtos-em-cemiterios-em-2018.ghtml;
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/08/capela-que-restou-do-1o-cemiterio-
publico-de-sp-tem-estrutura-abalada.shtml; https://vejasp.abril.com.br/cidades/medo-
de-furtos-em-cemiterios-faz-familias-adotarem-medidas-alternativas

Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero


TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

sobre os espaços de enterramento serão o derradeiro fim destes


locais?
Em fato, o espaço dos mortos e a forma de vivenciar a
morte e com eles repartir da paisagem urbana se alterou
significativamente a partir do século XVIII, por conta de políticas
de higienização e de um novo modo de interpretação do luto. As
formas de vivenciar a morte e o luto da sociedade contemporânea
se dão em um ritmo muito mais solitário e acelerado do que
encontramos no período medieval, por exemplo.
Durante o medievo a prática do luto era compartilhada e
vivenciada em uma série de ritos religiosos e memoriais, de modo
comunitário e paliativo. A constância da presença dos mortos se
dava pela sua memória, ritualizada liturgicamente, em doses que
lentamente levavam ao afastamento da dor da perda e a aceitação
comunitária da partida, mas também se dava pela presença física
do falecido, que compartilhava do espaço de sua congregação,
nos cemitérios adjuntos às igrejas.
Atualmente os mortos têm o seu espaço bem delimitado
pelos muros dos cemitérios municipais e privados e os vivos não
precisam com eles compartilhar o seu cotidiano, a não ser que
assim desejem. O luto é instigado a ser vivido do modo mais
passageiro possível, acompanhando o ritmo da vida moderna que
não cessa ou pausa para a perda. Artifícios industrializados como
as flores de plásticos são o álibi para manter a aparência de

Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero


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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

simpatia com os mortos, sem a necessidade da presença dos


vivos para a manutenção das flores. E assim a lembrança em
torno da perda é acelerada e justificada, e o luto e o sofrimento
agora são vividos no interior nuclear das casas ou extrapolados,
de modo pontual, por meio dos recursos digitais que demonstram
a empatia efêmera que acompanha a velocidade dos conteúdos
midiáticos.
Acompanhando este novo luto e este novo lugar dos
mortos, temos a transformação dos cemitérios em locais agora
com data marcada e motivo para visitação. O cotidiano de um
espaço-tempo compartilhado organicamente entre os vivos e os
mortos no Ocidente é encerrado com o afastamento dos locais de
enterramento.
Todas estas transformações de sociabilidade, entre os que
aqui estão e os que já se foram, mostram que o cemitério é um
espaço dinâmico, construído socialmente. As formas de vivência
dentro deste local são definidas pela presença obrigatória dos
mortos e relações fluidas dos vivos dentro deste espaço. Em
determinados locais, como o famoso caso do Cemitério de
Manila8, nas Filipinas, o domínio dos mortos é invadido pelo
cotidiano da vida dos vivos, ao passo que a crise de moradia leva
milhares de pessoas a ocuparem o espaço cemiterial como sendo

8 Maiores informações a respeito: http://oubliettemagazine.com/2017/07/11/il-


cimitero-di-manila-nelle-filippine-quando-i-vivi-scelgono-di-aver-come-case-le-
tombe/. Acessado pela última vez em 11 de outubro de 2019.

Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero


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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

sua residência. Deste modo, as tarefas domésticas e do contexto


do lar tomam esta paisagem, se mesclam a ela, e novos usos são
atribuídos a mausoléus e tumbas. As atividades rotineiras, desde
brincadeiras de crianças ao preparo do alimento, são divididas
com a constante presença da morte. Neste cenário, há um retorno.
No medievo transações comerciais, casamentos, festas, batismos
eram realizados com os mortos logo ao lado. Aqui, por conta de
uma profunda crise social, os mortos retornam ao panorama dos
vivos (Figs 1, 2, 3 e 4).

Figuras 1, 2, 3 e 4 - Cemitério de Manila, Filipinas

Fonte: Daily Mail UK. 9

9 Disponível em: https://www.dailymail.co.uk/news/article-3080059/Living-dead-


shanty-town-created-Philippine-cemetery-s-home-6-000-people-school-transport-
system.html. Acesso em: 12 out. 2019.

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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

Para além de uma possibilidade de moradia, os cemitérios


são para estas famílias o potencial econômico de seu sustento,
dado que a manutenção que os mesmos dão aos túmulos e
mausoléus é uma prática remunerada pelas famílias dos mortos,
gerando um mercado de manutenção informal.
Esta situação, todavia, já se coloca como uma realidade,
em uma escala muito reduzida, no Brasil, nos cemitérios das
cidades de São Paulo e de Porto Alegre. Com o crescimento desta
realidade em nosso país, resta pensar em quais potenciais
financeiros os cemitérios podem render aos seus novos
habitantes inesperados. Na ilegalidade, a espoliação de materiais
dos túmulos é um cotidiano dos ambientes cemiteriais, onde
metais e pedras são furtados, continuamente, contribuindo, assim,
para o cenário de abandono e de desolação. Ao passo que o
poder público e o setor privado alegam incapacidade de
investimentos para a preservação destes ambientes, os laços
familiares, com o passar das gerações, vão se dissolvendo junto
da memória, levando a um abandono gradativo das construções
tumulares.
Na verdade, há uma indústria turística crescente que pode
ser unida a uma necessidade também crescente e oriunda de uma
calamidade urbana visível.
Basicamente, podemos dizer que o espaço cemiterial é o
que a sociedade dele faz: são os usos, os ritos e as práticas de

Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero


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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

convivência que podem surgir fora do esperado ou planejado em


sua construção. Um espaço dos mortos que é definido pelos vivos
e por eles é constantemente alterado.

3.2 O Dark Tourism e os cemitérios

Os mortos e os vivos já compartilharam de modo muito


mais íntimo o espaço físico e em situações limites vemos estes
laços de convivência serem novamente ampliados. Deste modo,
o que (de) limita as formas de compartilhamento entre os vivos e
os mortos? Quais atividades são possíveis de serem feitas em
uma coexistência espacial? O turismo pode ser uma atividade que
envolva estes dois momentos da existência humana?
Entre as práticas turísticas, temos uma em particular que
levanta suspeitas de um amplo público, ao mesmo tempo que
aumenta a sua procura. Denominada como Dark Tourism, ou
Turismo Macabro esta prática vem crescendo e ampliando as
atividades e locais para apelo do público, extrapolando as
fronteiras do que é tradicionalmente considerado como ponto
turístico.
Embora esteja adquirindo maior visibilidade nos tempos
atuais, a prática já é antiga e foi definida por Malcolm Foley e J.
John Lennon, ainda na década de 1990, como sendo “the
phenomenon which encompasses the presentation and

Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero


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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

consumption (by visitors) of real and commodified death and


disaster sites” (FOLEY; LENNON, 1996, p. 198).
Em 1999, Seaton estabeleceu categorias de locais próprios
do turismo macabro, elencando os seguintes tipos: viagens para
testemunhar execuções; viagens a locais de massacre, assim
como Auschwitz; viagens a locais de enterramentos ou memoriais;
viagens que envolvem encenações de batalhas e massacres;
viagens a locais onde objetos relativos a execuções, massacres
ou epidemias são guardados (como roupas de vítimas, armas de
execuções, diários de vítimas, etc), tais como museus com este
tipo específico de acervo.
Neste nicho específico do campo turístico, a busca é
atraída por elementos não tradicionais, como a ruína, locais
trágicos e/ou memórias traumáticas e morte. Os cemitérios
possuem um amplo atrativo para estas questões, embora o modo
tradicional de exploração destes locais renegue a ruína e a
depredação como um potencial a ser explorado, sendo
normalmente visto apenas como pesar e um fato irremediável.
Atividades lúdicas envolvendo o ambiente cemiterial estão
sendo cada vez mais desenvolvidas no âmbito patrimonial e
universitário. Projetos como Museu a Céu Aberto 10 – promovido
pelo Instituto Histórico de Passo Fundo (IHPF) e pelo Arquivo

10 Guia de Visitação do projeto disponível no link:


https://www.upf.br/_uploads/Conteudo/ahr/2018_GUIA%20DE%20VISITACA
O.pdf, acessado pela última vez em 15 de outubro de 2019.

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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

Histórico de Passo Fundo (AHR-PPGH/UPF), no Cemitério Vera


Cruz, em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil – ressaltam a
importância destes locais enquanto patrimônio histórico-cultural,
considerando as questões relevantes ao turismo cultural. Todavia,
no Brasil, o turismo macabro, que não se alicerça centralmente
nos aspectos históricos, mas, sim, na experiência emocional,
envolve o risco dos locais visitados e a decadência e/ou
amedrontamento pelos espaços de visitação, causando um
empecilho para o desenvolvimento da atividade, que dependeria
de maiores esforços de segurança pública, para que possa ser
aplicado em segurança.
Assim como no projeto, acima citado, estabeleceu-se nas
explorações e visitações dos cemitérios uma busca pela história e
pela beleza estética que estes locais oferecem, tendo o foco
principalmente nas exuberantes construções e esculturas (Figs 5
e 6), onde ideais estéticos patrimoniais clássicos ainda são vistos,
valorizando-se quase que exclusivamente os grandes
monumentos familiares. As construções em mármore com
tradição clássica são os mais procurados, criando um roteiro onde
a busca pela história está intimamente atrelada a uma valoração
estética, limitada pelo patrimônio estabelecido pelas linhagens
familiares locais dominantes economicamente, que acabam por
dominar o roteiro e a narrativa histórica destas atividades. Em

Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero


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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

semanas patrimoniais municipais, onde o cemitério é incluído nas


atividades programadas, esta é uma abordagem dominante.

Figuras 5 e 6 - Túmulos no Cemitério Ecumênico São Francisco


de Paula, Pelotas/RS.

Fonte: Autora (2019).

Contudo, neste mesmo espaço onde nos deparamos com


estas figuras locais ilustres, com sua memória dominando o
horizonte cemiterial na proporção da grandeza de sua construção
tumular, ignoramos uma série de sujeitos, histórias, estéticas e
memórias. Muitos destes já possuem sua morada final em estado
fragmentado, despido de seus detalhes decorativos ou
identificadores, ao passo que seus nomes estão perdidos, suas
ossadas estão à mostra em seu túmulo violado e depredado,
envolto em lixo, abandono e descaso (Figs 7 e 8).
Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero
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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

Figuras 7 e 8 - Túmulos no Cemitério Ecumênico São Francisco


de Paula, Pelotas/RS.

Fonte: Autora (2019).

Considerando que a experiência emocional é um fator


central da atividade turística ligado ao macabro, esta deve estar
em primeiro plano ao estabelecer mecanismos atrativos aos
visitantes desta linha turística. Deste modo, o turismo cemiterial
usual, que inclui um guia focando em fatores históricos biográficos
ou em análises pontuais de iconografia cemiterial pode ser
desapontador ou não atraente para este público. Possibilitar uma
experiência ao invés de uma visita guiada é fulcral ao estabelecer
uma rota de turismo macabro.
Uma possibilidade que, aqui, apontamos é a realização
controlada de acampamentos noturnos intramuros cemiteriais,
proporcionando um ambiente com iluminação, sonoridades e
Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero
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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

locais de trânsito turístico controlado para criar uma atmosfera


emocional, estabelecendo uma vivência com o ambiente de
enterramento. Esta proposta caminha em linha semelhante a um
projeto turístico inusitado, iniciado em 2015, na Inglaterra,
denominado Champing11 e que, basicamente, promove
acampamentos noturnos dentro de igrejas medievais, para a
vivência da atmosfera da experiência proposta. Um uso turístico,
que acarreta no levantamento de verba para a conservação do
patrimônio eclesiástico inglês, administrado pelo Churches
Conservation Trust12, pode parecer ofensivo para algumas
pessoas em um primeiro contato, pois transforma e reconfigura os
usos de um local de culto religioso, proporcionando experiências
não necessariamente conectadas ao divino e a religião, todavia,
nos mostra as modificações que o patrimônio sofre ao longo do
tempo, remodelando-se ao seu tempo e junto com o ganho
econômico está auxiliando na preservação do patrimônio histórico
inglês.
Os cemitérios, tais como as igrejas, ou qualquer bem
patrimonial ou cultural, dependem de uma fonte econômica para
a sua existência e manutenção. Ao enfrentar a crise para a

11 Maiores informações disponíveis em:


https://www.worldtravelguide.net/features/feature/camping-in-englands-
churches-2/, acessado pela última vez em 12 de outubro de 2019. Reportagem
BBC: http://www.bbc.com/travel/story/20170224-the-medieval-churches-you-
can-camp-in, acessado pela última vez em 12 de outubro de 2019.
12 Site: https://www.visitchurches.org.uk/, acessado pela última vez em 13 de
outubro de 2019.

Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero


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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

preservação das igrejas medievais e a relação de recursos


oriundos dos órgãos de financiamento, que se constituem por uma
ótica muito diferente daquela que encontramos no Brasil, as
igrejas inglesas buscaram outras ferramentas de usos destes
espaços de culto, assim os ressignificando, ao mesmo tempo que
respeitando sua função original.
Uma das principais preocupações que podemos ver no guia
lançado pelo English Heritage (BRUCE-LOCKHART, 2008) é a
preocupação com a gestão econômica dos bens patrimoniais. É
essencial que existam políticas que permitam que o patrimônio,
em si, enquanto um bem tangível e social, gere uma renda para
sua manutenção. Boa parte desta renda está vinculada às
atividades turísticas e educativas que são associadas ao
patrimônio histórico. Deste modo, é destacado que as políticas
patrimoniais devem sempre levar em consideração seu potencial
econômico.
A política patrimonial inglesa valoriza estas atividades ao
passo que a verba governamental representa uma parcela muito
pequena nas políticas patrimoniais (14% dos valores totais
investidos na manutenção patrimonial no país 13). Ao mesmo

13 Os valores que constituem a receita para conservação e ampliação de


políticas patrimoniais na Inglaterra constituem-se em 66% de renda gerada
através das ações econômicas promovidas através dos usos dos patrimônios
e da venda de material comercial (Self generated income); 20% de subvenção
de capital oriunda de doações institucionais, governamentais e privadas
(Capital grant) e 14% de financiamento governamental, dos quais o English
Heritage pretende encontrar-se independente até 2020 (Government funding).

Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero


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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

tempo que a verba que parte do governo é muito pequena no total


investido, o direcionamento deste investimento é posto nos bens
patrimoniais considerados de maior prestígio histórico/patrimonial,
normalmente sendo direcionado aos grandes bens patrimoniais e
arqueológicos, segundo parâmetros internos dos órgãos de
conservação de classificação deste patrimônio nacional.
Assim sendo, o income para a preservação e para
intervenções restaurativas parte, em sua esmagadora
porcentagem na Inglaterra, de agentes privados ou de valores
arrecadados por iniciativas turísticas/econômicas desenvolvidas
no próprio bem patrimonial. Isso envolve tanto os profissionais
diretamente responsáveis por práticas preservacionistas, quanto
a comunidade onde estes bens estão alocados, pois é envolvendo
a comunidade que é possível financiar a manutenção e a
existência desse patrimônio. Portanto, comunidade e patrimônio
são intercambiáveis, e um é essencial para a manutenção do
outro.
Pensar políticas turísticas, patrimoniais e comunitárias não
é algo inédito, pois é a base de toda a obra de Varine (2013),
assim como de praticamente todas as atividades turísticas
inglesas. Todavia, não é algo comumente empregado (ou bem

Maiores informações a respeito podem ser obtidas no site: https://www.english-


heritage.org.uk/, acessado em 12 de novembro de 2019.

Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero


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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

visto) em projetos no Brasil. Explorar a Cultura economicamente


é fundamental para sua manutenção, mas nem sempre apreciado.
O mesmo, aqui, pode e deve ser pensado ao ambiente
cemiterial, que como vimos ao exemplo do cemitério de Manila,
também se altera de acordo com as necessidades sociais,
modificando profundamente as relações estabelecidas entre o
mundo dos vivos e o mundo dos mortos, tão flexíveis quanto a
cultura. Segundo Prats (2006) o patrimônio não é um fato
congelado no tempo, e não deve ser visto como algo dado
naturalmente, mas sua adaptação às necessidades e realidades
sociais, sim, é natural, e deve ser entendida dentro dos processos
de construções sociais, fruto de discursos e das mais variadas
conjunturas socioculturais.
Deste modo, podemos e devemos pensar nos cemitérios
como estes locais dinâmicos, frutos das relações e imaginários
sociais. A configuração atual estabelecida com uma separação
artificial entre os mortos e os vivos não é algo dado naturalmente,
mas sim construído no decorrer de séculos de políticas públicas e
práticas rituais de enterramento e vivência do luto. O uso do
espaço cemiterial e de suas instâncias materiais e imateriais,
também é fruto destas construções e pode (e vai) alterar-se com
as necessidades sociais.

Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero


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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

3.3 Considerações finais

O patrimônio não é comunitário, enquanto não atende e


não serve à comunidade. Não é representativo de identidades
enquanto não há identificação com o preservado. Preservar,
baseando-se em conceitos meramente estéticos ou idealísticos,
ligados à uma função utópica, não atende às necessidades sociais
e apenas cristaliza uma concepção academicista do que o
patrimônio deveria vir a ser.
O turismo cemiterial, baseado na narrativa de um roteiro
marcado na última morada de uma casa senhorial fúnebre,
exuberante esteticamente e grandiosa na ocupação espacial, na
verdade oculta a história da maior parte dos sujeitos sociais que
ali também jazem dividindo o mesmo espaço, todavia sob o
esquecimento constante. O cemitério não é um local de memória
se o esquecimento e o abandono acompanham o passo curto das
gerações e os laços frágeis da memória individual, acompanhado
por uma narrativa histórica positivista dos grandes personagens.
Estabelecer outras formas de convívio entre os vivos e os mortos
e a experiência de compartilhamento do espaço cemiterial é uma
possibilidade para além de econômica, é uma forma de visibilizar
outras memórias ali contidas.
Propor modificações dos usos destes espaços e aceitar
(desprovido dos idealismos de congelamento patrimonial) que

Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero


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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

estas modificações ocorram (pois elas já ocorrem) abrem


possibilidades para novas políticas econômicas e turísticas,
explorando inclusive locais onde tradicionalmente estas não são
aplicadas. Além de ser uma fonte econômica para as políticas
patrimoniais e políticas turísticas - que não devem estar restritas
a nossa proposta de turismo macabro focado nos cemitérios - são
formas de complementação econômica para as comunidades
locais, movendo diversos setores que não tem conexão inicial
direta com o bem patrimonial (LEONES, 1995; ARDAHAEY,
2010). Não basta inventariar e tombar, é preciso que a sociedade
se aproprie dos espaços patrimoniais, incluindo os cemitérios.

Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero


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TURISMO MACABRO: UMA POSSIBILIDADE DE VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CEMITERIAL E DE OUTRAS MEMÓRIAS

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Amanda Basilio Santos Ronaldo Bernardino Colvero


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

4 A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO


FOMENTO AO DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM
MORRO REDONDO - RS.

Andréa Cunha Messias 14


Diego Lemos Ribeiro 15

4.1 Considerações iniciais

“O lucro é secundário!”
(RIBEIRO, 2019).

Este ensaio tem como objetivo analisar a relação entre


patrimonialização e desenvolvimento turístico em torno das
tradições doceiras no município de Morro Redondo, localizado no
sul do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Com aporte
metodológico na Teoria Ator-Rede Latouriana (LATOUR, 1989), o
trabalho visa demonstrar como os atores humanos e não-
humanos atuam na busca do desenvolvimento socioeconômico do
município de Morro Redondo, que caminha em direção ao
discurso de um turismo rural de base sustentável.

14 Bióloga (UESC); Mestranda no Programa de Pós-graduação em Memória


Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e
graduanda no Bacharelado em Museologia da UFPel. E-mail:
andreacmessias@hotmail.com
15 Doutor em Arqueologia pela Universidade de São Paulo – USP. Professor
Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio
Cultural e do Bacharelado em Museologia da Universidade Federal de Pelotas
- UFPel. E-mail: dlrmuseologo@yahoo.com.br.

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

Partimos das premissas de que todo processo de


patrimonialização perpassa por um jogo de disputa de poder, que
acarreta lembranças e esquecimentos. Entendemos também que
a patrimonialização do doce colonial não está consolidada em
Morro Redondo, sendo de sumo interesse analisarmos a
construção desse patrimônio – em se fazendo, antes da sua
estabilização – e as dinâmicas sociais que envolvem esse
processo, principalmente em relação à operacionalização das
tradições doceiras como atrativo turístico.
Lançando mão dos dados contidos em nosso caderno de
campo, serão analisados, primeiramente, os eventos que
estimulam o empreendedorismo produzidos pelo Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE).
Em seguida, nosso foco estará voltado às ações produzidas pela
Associação dos Empreendedores de Turismo de Morro Redondo
(AETMORE), através do Roteiro Turístico Morro de Amores e seus
parceiros.
Percebemos que, sob o discurso de um turismo rural
sustentável, as ações são realizadas tanto no âmbito jurídico –
com o intuito de promover políticas públicas – quanto no
planejamento de eventos para a divulgação de produtos turísticos.
Esses contam com a participação do SEBRAE, do IPHAN, da
AETMORE, além de doceiros artesanais, agricultores familiares,
poder público municipal e outras instituições da cidade.

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


- 96 -
A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

Analisaremos também, eventos que têm como


protagonistas os fundadores do Museu Histórico de Morro
Redondo (MHMR)16, juntamente com a equipe do Projeto de
Extensão do Bacharelado em Museologia da Universidade
Federal de Pelotas (UFPel), denominado “Museu Morro-
Redondense: Espaço de Memórias e Identidades”, coordenado
pelo Prof. Dr. Diego Lemos Ribeiro. Nesses momentos, o Museu
age como um mediador não-humano (LATOUR, 1989) ao buscar
ativar reconfigurações das teias que, por omissão ou
esquecimento, não incluíam discursos multiculturais em relação
às tradições doceiras - um dos focos do Turismo Rural que está
sendo desenvolvido no município.
Temos como argumento central do ensaio que o
desenvolvimento turístico de uma localidade pode alavancar a
economia local – que, no contexto em análise, encontra-se
enfraquecida em virtude de conjunturas econômicas e políticas,
porém deve proteger os moradores de futuras ações negativas

16 Em relação ao Museu Histórico de Morro Redondo (doravante MHMR),


ressaltamos que ele foi concebido, em 2006, a partir de uma vontade de
memória (NORA, 1993). Na ocasião, três moradores do município, o Sr. Osmar
Franchini, o Sr. Ervino Büttow e o Sr. Antônio Reinhard, fundaram o Museu.
Para formação do acervo, os fundadores do Museu realizaram uma campanha
na rádio local para incentivar outros moradores a doarem materialidades e
imaterialidades. Dessa forma, as coleções formadas representam a vida e os
costumes locais, principalmente aqueles atrelados à ruralidade, temática
principal da Instituição, que preserva a sua essência comunitária. Além das
atividades museográficas, o MHMR realiza ações externas no sentido de
aproximar moradores dos lugares de memórias (NORA, 1993) apropriados
pelos idosos como patrimônios.

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


- 97 -
A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

que uma atividade turística mal planejada costuma trazer.


Percebemos a importância da construção de políticas públicas a
nível municipal de forma a proteger a paisagem cultural, aspecto
de suma importância para fomentar as ações.

4.2 Como surgiu a ideia de desenvolver o Turismo em Morro


Redondo

Em relação ao desenvolvimento turístico em Morro


Redondo nota-se que existe um incentivo ao Turismo Rural
alicerçado no fortalecimento das tradições doceiras. Esse aspecto
relaciona-se ao fato das “Tradições Doceiras em Pelotas e na
Antiga Pelotas17” terem sido registradas no Livro de Saberes do
IPHAN como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, após
extenso trabalho de pesquisa.
O desenvolvimento do Turismo está acontecendo também
como uma saída à crise econômica que atingiu o município,
iniciada com o incentivo fiscal que propiciou a entrada do pêssego
argentino e a abertura de grandes indústrias de conservas
(década de 1970). Como consequência, houve um
enfraquecimento das pequenas fábricas de doces e conservas

17 A Antiga Pelotas caracteriza-se pelo conjunto dos quatro municípios


anteriormente pertencentes à Pelotas: Capão do Leão (emancipado em
03/05/1982), Turuçu (emancipado em 22/10/1985), Morro Redondo
(emancipado em 12/05/1988) e Arroio do Padre (emancipado em 17/04/1996).

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

que provocou o fechamento de muitas delas. Houve


concomitantemente um fortalecimento do êxodo rural de jovens,
com consequente diminuição das atividades no campo (BACH,
2009).
Em 2016, outro fato impactou negativamente a economia
local: o fechamento da unidade da Fábrica de Embutidos da
Cooperativa Sul-Rio-Grandense de Laticínios Ltda. (COSULATI).
A COSULATI gerava 260 empregos diretos e cerca de mil postos
de trabalho indiretos em Morro Redondo. O impacto pode ser
sentido através da descrição da unidade instalada no município:

Centro Integrado de Avicultura que conta com granjas


de matrizes para recria e postura, incubatório com
capacidade de produção de mais de 8 milhões de
pintos por ano e o abatedouro de aves com
capacidade de abate de mais de 12 milhões de
frangos por ano. (...) A comercialização é feita sob a
forma de cortes especiais, frangos inteiros,
resfriados, congelados e também uma linha nobre
sob a forma de bandejas, além da linha de embutidos
(JORNAL TRADIÇÃO. Edição de 16/05/2014).

Em um município com pouco mais de 6.227 habitantes


(IBGE, 2010), podemos considerar que houve desemprego em
massa e acirramento da crise econômica; fato este que transforma
a atividade turística na tábua de salvação da cidade, ao menos
para parte da população. Morro Redondo, município situado na
Serra dos Tapes, Sul do RS, emancipou-se de Pelotas no dia 12
de maio de 1988. Segundo o IBGE,

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

a principal emigração ocorrida no município foi a


vinda de portugueses oriundos principalmente do
Arquipélago de Açores, juntamente com a emigração
de alemães (a maioria de pomeranos). Outra etnia a
ser levada em conta é de italianos. O primeiro núcleo
de moradores estabeleceu-se na localidade por volta
de 1865, eram os imigrantes acima citados (IBGE,
2010).

No entanto, informações obtidas no Plano Decenal de


Educação (PDE) produzido pela Prefeitura Municipal demonstram
que “[a] etnia do município é composta em sua maioria por
descendentes de alemães, italianos, portugueses, negros e
outros” (PDE, 2015, p. 08). O documento ressalta a importância
da ruralidade atrelada ao cultivo e à produção de conservas e
doces de frutas – ambos iniciados de forma artesanal, até mesmo
nas indústrias de conserveiras.
Observações em campo demonstraram também que
muitas famílias deixaram de fazer doce para o consumo próprio.
Esse fato tem desencadeado uma série de questionamentos a
serem pesquisados, tais como: - Quais fatores estão contribuindo
para a desistência do feitio do doce? - Os negros que residem no
Quilombo Urbano Vó Ernestina e na zona rural do município se
identificam com as tradições doceiras? – Eles desejam participar
desse discurso em relação ao saber-fazer doceiro em Morro
Redondo? – Em caso afirmativo, quais são as contribuições
deles?

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

4.3 O cultivo da soja e a alteração da paisagem cultural

Atrelado aos aspectos elencados anteriormente, o trabalho


de campo18 realizado em abril de 2019, demonstrou que tem
ocorrido uma crescente modificação da paisagem rural, através
da inserção do cultivo da soja, substituindo pomares de
pessegueiros. Nesse ínterim, perguntamo-nos: – Quais serão as
consequências disso? - Essa transformação poderá causar
impactos na economia do município e um esmaecimento das
memórias e identidades sociais? – Elas poderão influenciar no
desenvolvimento da atividade turística que tem como base a
valorização do turismo rural e do patrimônio cultural imaterial,
registrado em 2018?
Nossos estudos nos levam a uma preocupação adicional
que decorre sobre um potencial problema para o turismo, visto que
em Morro Redondo também “se vende” a paisagem rural nesse
“pacote turístico”. No contexto, a paisagem não é apenas suporte
inerte dos modos de vida, ela compõe o cenário em que esses
fluxos e vivências são moldados. Alterar a paisagem transforma,
neste caso, negativamente, os modos de vida da região.

18 O trabalho de campo refere-se ao nosso objeto de pesquisa em realização no


Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural na UFPel, sob
orientação do Prof. Dr. Diego Lemos Ribeiro. Em nossos estudos, nos propomos a
analisar as ações de salvaguarda das tradições doceiras em Morro Redondo até o início
de 2021. Nesse contexto, vale ressaltar a nossa inserção no Projeto de Extensão desde
2014, ano a partir do qual o Museu começou a realizar as primeiras ações em função
da salvaguarda das tradições doceiras, mesmo antes desse patrimônio ter sido
registrado pelo IPHAN.

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

Em relação às mudanças que o cultivo da soja causou na


Região Sul do país, pesquisas alertam que:

O ‘boom’ da soja no Rio Grande do Sul levou ao


desaparecimento de 300 mil propriedades na década
de 1970 dando lugar a uma crescente concentração
de terras (BERTRAND et. al., op. cit.). (...) Além disso,
a relação do produtor rural com a terra foi
transformada, pois seu conhecimento foi
desqualificado pelo saber técnico-científico,
resultando em uma relação baseada na racionalidade
e instrumentalidade (DUARTE, 1998).

Pesquisadores explicam, também, que o avanço da


sojicultora foi decorrente da `Revolução Verde” - tecnologia
empregada no setor industrial agrícola com suporte técnico da
Química, Mecânica e Genética. Mueller (1992) e Cunha (1994)
alertam para os seguintes impactos negativos que a “Revolução
Verde” pode causar:

(...) compactação e impermeabilização dos solos


pelo uso intensivo de máquinas agrícolas; b)
erosão; c) contaminação por agrotóxicos nas
águas, alimentos e animais; d) impactos
detrimentais da retirada da vegetação nativa de
áreas contínuas extensas; e) assoreamento de
rios e reservatórios; f) aparecimento de novas
pragas ou aumento das já conhecidas
(MUELLER, 1992); g) risco à sobrevivência de
espécies vegetais e animais com a perda de
habitat natural devido a expansão agrícola
(CUNHA, 1994).

Para além da questão da contaminação ambiental causado


pela sojicultura em vários biomas ressaltamos que, em Morro

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

Redondo, a soja contribui para a modificação da paisagem cultural


em decorrência da perda do suporte de memória que os pomares
representavam em relação às práticas doceiras tradicionais,
aspectos que põem em risco as ações de salvaguarda das
tradições doceiras.

4.4 As tradições doceiras coloniais como fomento ao


desenvolvimento turístico em Morro Redondo

Em maio de 2018, as “Tradições Doceiras em Pelotas e na


Antiga Pelotas” foram registradas no Livro de Saberes do IPHAN,
após parecer favorável emitido pelo Conselho Consultivo com
base nos resultados do INRC e em visitas realizadas nos
municípios envolvidos. Ferreira, Cerqueira e Reith (2008)
informam que, para realização do INRC, estudos
multidisciplinares foram realizados por uma equipe de
antropólogos, arqueólogos e historiadores ligados à UFPel.
Segundo os autores, a partir dos trabalhos realizados, as lacunas
em relação à tradição doceira em Pelotas foram preenchidas, já
que a literatura disponível até então atribuía destaque apenas à
contribuição portuguesa.
Em se tratando das tradições doceiras, o dossiê de registro
dos doces, utilizado para a elaboração do INRC, revela os atores
sociais relacionados ao processo. Os pesquisadores relataram

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

que, a partir das trocas comerciais do charque pelotense pelo


açúcar nordestino “[...] os negros, desde o período da escravidão,
conviviam diretamente com a produção caseira de doces de
origem portuguesa, incorporando parte de seus saberes e
fazeres” (FERREIRA, CERQUEIRA, REITH, 2008, p. 107).
Em relação às demais etnias, os autores apontados
anteriormente demonstraram que os “[...] colonos, de origem
pomerana, alemã, italiana e sobretudo francesa, contribuíram
para a tradição dos doces de fruta, recriando saberes herdados
dos antepassados e adaptados aos recursos locais” (FERREIRA,
CERQUEIRA, REITH, 2008 p. 107).
Outro aspecto relacionado às tradições doceiras coloniais
que deve ser sublinhado diz respeito às contribuições dos idosos
para o processo de salvaguarda, por serem eles os principais
detentores do saber-fazer e protagonistas da transmissão
memorial no âmbito familiar. No mesmo compasso, parte das
memórias que orbitam este patrimônio se encerram no próprio ato
de mexer o tacho, seguida de afirmações, como: “assim que
fazíamos os doces com o que sobrou da colheita”. Por essas
razões, o Museu Histórico de Morro Redondo promove ações de
ativação patrimonial em vários cenários do município, tendo o
tacho e o mexedor como atores não-humanos e os idosos como
os atores humanos que compõe a rede voltada às ações de
salvaguarda (Fig. 1 e 2).

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


- 104 -
A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

Em relação à salvaguarda das tradições doceiras no


município, destacamos o apoio do IPHAN e autoridades
municipais, no que diz respeito à promoção de negociações e
políticas públicas que vão de encontro às normas da vigilância
sanitária. As ações da vigilância sanitária acabaram por provocar
a exclusão de doceiros tradicionais por conta do impedimento da
utilização do tacho de cobre e do mexedor de madeira, bem como
das exigências relacionadas à adequação do ambiente de
trabalho para o feitio do doce.
As observações em campo mostraram como alguns
doceiros “driblam” as normas da vigilância, preservando o cobre
no fundo do tacho de inox. Assim, percebemos a importância do
tacho e do mexedor como objetos biográficos e de resiliência, pois
as famílias defendem que o feitio do doce no tacho de cobre traz
consigo toda a tradição doceira, bem como ressalta o sabor do
doce colonial.

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

Figura 1 - O feitio do doce na III Festa do Doce Colonial

Fonte: Museu Histórico de Morro Redondo (2019).

Figura 2 - II Festa do Doce Colonial: trocas culturais

Fonte: Museu Histórico de Morro Redondo (2018).

Alguns eventos contaram também com oficinas gratuitas de


preparo de passas de pêssego que foram organizadas pelo

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

Roteiro Turístico Morro de Amores. A ação também atraiu a


atenção de várias pessoas durante a II Festa do Doce Colonial,
realizada em 2018 (Fig. 3).
O tacho e o mexedor servem também como agentes
potencializadores das ações de educação para o patrimônio. Ao
serem levados às turmas de alunos da rede pública de ensino pela
equipe do Museu Histórico de Morro Redondo eles agem como
atores não-humanos, cuja mediação cultural fortalece a
transmissão do saber-fazer doceiro e o despertar do olhar
patrimonial (Fig 4).

Figura 3 - Oficinas de preparo de passas de pêssego

Fonte: Museu Histórico de Morro Redondo (2018).

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

Figura 4 - O tacho e o mexedor como mediadores culturais

Fonte: Museu Histórico de Morro Redondo (2018).

Ao participarmos das ações, perguntamos também: - No


tocante à relação com o Turismo, quais são os efeitos que a
utilização do tacho de cobre e do mexedor podem ter para os
visitantes? Percebemos que os turistas gostam de conhecer as
trajetórias de vida desses objetos musealizados. Outrossim, nas
inúmeras vezes nas quais o feitio de doce no tacho foi realizado
nos eventos da cidade, atraiu a atenção de moradores e de
visitantes de todas as idades. Muitos deles queriam reviver a
experiência e narrar suas histórias relacionadas ao preparo da

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

iguaria. Outros, que nunca haviam visto esse feitio, queriam


experimentar como era o processo. Vale ressaltar, que doceiros
artesanais acompanhavam todo o preparo e dialogavam com
quem se aproximava. Um último aspecto que merece destaque
diz respeito ao comparecimento dos turistas. Em dias
ensolarados, os eventos costumam atrair mais de 2000 visitantes
para o município (Fig 5).

Figura 5 - Público na III Festa do Doce Colonial

Fonte: Studio I19 (2019).

19Imagem divulgada no Facebook na página do Roteiro turístico Morro de


Amores: https://www.facebook.com/morrodeamores/ ,em julho de 2019.

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

4.5 Outras potencialidades para o desenvolvimento turístico


em Morro Redondo

Em relação à Morro Redondo, percebemos ser possível


investir esforços no desenvolvimento turístico baseado nas
seguintes potencialidades:
• Apoio do poder público, instituições e de
empreendedores privados;
• Existência da Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Rural e Turismo; do Conselho Municipal de Turismo e da
Associação dos Empreendedores de Turismo de Morro Redondo
(AETMORE), além do Roteiro Turístico Morro de Amores e do
Museu Histórico de Morro Redondo – esse último, salvaguarda
acervos relacionados à vida no cotidiano rural, além de realizar
ações externas voltadas ao fortalecimento da diversidade cultural
local e suas manifestações, incluindo os saberes dos
protagonistas relacionados às tradições doceiras – dentro de uma
perspectiva multicultural;
• A oportunidade do visitante experienciar uma fuga da
rotina das grandes cidades, através do contato com o passado e
com a natureza;
• A vivência em pequenos espaços rurais nos quais as
próprias famílias “abriram as porteiras” de suas propriedades para
receberem os turistas;

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

• A existência de eventos anuais que divulgam às culturas


locais, tais como: as comemorações do aniversário da cidade, a
Festa do Colono, a Festa do Motorista, o Encontro de Músicos; a
Festa do Doce Colonial, os Eventos Religiosos; a Festa das
Flores, Cores e Sabores;
• Uma culinária atrativa;
• Segurança, tranquilidade e clima agradável;
• Narrativas memoriais tendo os idosos como
protagonistas de uma caminhada por cenários no município;
• Implementação em espaço doado pelo poder público
municipal para implementação de um Sistema Agro-florestal
visitável com espécies nativas voltadas à produção de frutos
utilizados para o feitio de doces em tacho de cobre;
• Diminuição do êxodo rural em decorrência da fixação do
jovem na propriedade familiar;
• Potencializa a conservação dos biomas – necessário ao
desenvolvimento do Turismo Rural;
• Nova alternativa de emprego e renda;
• Presença de um Quilombo Urbano com acesso
facilitado;
• Injeção anual de aproximadamente R$500.000,00
(quinhentos mil reais) na economia local;
• Promove as trocas culturais;

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

Dessa forma, ressaltamos que o turismo deve atender às


premissas do desenvolvimento sustentável, incluindo a população
local como atores culturais, aspectos, esses, reiterados por
autores como Varine (2013), Prats (1998, 2005), Tornatore (2009)
em relação ao caráter polissêmico do patrimônio cultural,
resultante de uma construção nunca apartada do seio social.

4.6 Desafios a serem enfrentados

Entendemos que, para que haja um desenvolvimento


turístico sustentável e amigável com a cultural local, alguns
desafios precisam ser vencidos, tais como:
• Qualificação do acesso aos empreendimentos na zona
rural – as vias de acesso ficam intransitáveis em decorrência das
chuvas, fazendo com que os estabelecimentos parem de
funcionar nos períodos chuvosos;
• Melhorias no fornecimento da energia elétrica. Com as
chuvas, há também constante interrupção do fornecimento que
acaba por prejudicar as ações;
• Fortalecimento da ideia de que não se deve explorar
economicamente o turista e sim a atividade turística;
• Incentivar os idosos a desenvolver experiências como
guias turísticos nos quais os percursos escolhidos por eles

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

mesmos serviriam para demonstrar as alterações sofridas na


cidade, tendo como base suas narrativas memoriais;
• Melhorias na divulgação das ações e na sinalização – os
turistas têm dificuldades para encontrar os lugares;
• Diversificação das experiências rurais – não dá para atrair
turistas somente com cafés coloniais e passeios por matas;
• Qualificação da mão-de-obra para saber acolher o turista;
• Inventário das potencialidades patrimoniais que possam
servir como atrativos culturais e turísticos;
• Preservação da paisagem cultural;
• Requalificação do Museu Histórico de Morro Redondo –
em decorrência do potencial do espaço como Centro de
Referência das Culturas Locais;
• Inserção do Quilombo Urbano Vó Ernestina no circuito de
trocas culturais.
Percebemos que alguns desafios são fáceis de serem
solucionados, outros exigem engajamento político dos envolvidos
para que haja um desenvolvimento turístico que traga benefícios
econômicos, mas também os socioculturais e humanos.

4.7 Considerações finais

Pelo exposto, podemos concluir que a patrimonialização


das tradições doceiras podem contribuir para o desenvolvimento

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


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A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO EM MORRO REDONDO - RS.

turístico em Morro Redondo, desde que a gestão dos patrimônios


elencados para servirem como atrativos turísticos respeitem os
desejos e contem também com o protagonismo e o desejo das
comunidades autóctones.
Ressaltamos também a necessidade de investimentos
público-privado no setor para que os problemas de base possam
ser resolvidos. Ressaltamos também a necessidade de
incrementação de políticas públicas capazes de fortalecer a
atividade turística voltada ao desenvolvimento sociocultural e
humano. Como consequência, o lucro virá, certamente.

Andréa Cunha Messias Diego Lemos Ribeiro


- 114 -
A PATRIMONIALIZAÇÃO DO DOCE COLONIAL COMO FOMENTO AO
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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

5 TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO:


MÁRIO DE ANDRADE ENTRE A ESCRITA E A
EXPERIÊNCIA

Cristiéle Santos de Souza 20


Carla Rodrigues Gastaud 21

Quero que você me indague aí qual a cidade mineira


que tem Semana Santa mais curiosa, mais
tradicional, mais interessante de ver e ouvir. Ando
mesmo com desejo de rever as velhices
mineiras(...).
(Mário de Andrade em carta a Carlos Drummond de
Andrade, fevereiro de 1932)

Foram precisos mais de dez anos para que Mário de


Andrade pudesse rever as “velhices mineiras” que tanto
influenciaram sua obra e seu pensamento sobre a cultura
brasileira. Sem cogitar a distância que as mundanidades da
política imporiam entre ele e o universo estético da arte e da
história gravada nas ruas, igrejas e lugares da memória colonial
brasileira, na carta citada em epígrafe, Mário planejava o
reencontro com as artes e as tradições religiosas de Minas Gerais.

20 Doutoranda em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade


Federal de Pelotas. Email: cristiele.hst@gmail.com
21 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande Do Sul.
Docente no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio
Cultural na Universidade Federal de Pelotas. Email: crgastaud@gmail.com

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

No mesmo ano, Mário escreveu ao seu amigo Carlos: “Não


sinto o Brasil mais, e ainda não readquiri a minha
internacionalidade. (...). Voltei ao menino estudante que ainda
tinha senso de pátria. E minha pátria é São Paulo. E isso não me
desagrada!”22 O poeta modernista vivia o trauma da luta armada
e da resistência paulista ao governo de Getúlio Vargas, mas não
haveria de romper por completo a busca pelos elementos
genuinamente brasileiros que, em sua concepção, compunham a
cultura nacional.
Paulista, nascido a 9 de outubro de 1893, Mário de Andrade
foi um intelectual multifacetado, que imbuído pelo desejo de
conhecer e dar visibilidade à cultura brasileira, promoveu junto a
outros intelectuais e artistas, o Movimento Modernista Brasileiro.
Missivista entusiasta, Mário de Andrade manteve muitas
“amizades epistolares”, por meio das quais pode-se, hoje,
empreender uma viagem pelo Brasil da primeira metade do século
XX, um Brasil que buscava a sua “brasilidade” nas artes plásticas,
na literatura, na música e no reconhecimento dos saberes
populares.
O Movimento Modernista se consolidava como uma nova
forma de ser e descobrir o Brasil, e ninguém o fez tanto e tão
apaixonadamente quanto Mário de Andrade. Neste ensaio,

22Carta escrita a Carlos Drummond de Andrade em 6 de novembro de 1932


durante a Revolução Constitucionalista que opôs São Paulo ao governo
provisório de Getúlio Vargas. (ANDRADE, 2015, p. 259-265).

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

propõe-se um olhar sobre o modo como este intelectual absorvia


e descrevia as experiências vivenciadas em suas viagens pelo
Brasil. Da mesma forma, propõe-se uma reflexão sobre a
importância dessas experiências para a construção do seu
entendimento sobre o patrimônio cultural brasileiro, para assim
pensar a prática do turismo patrimonial que se mostra, atualmente,
como uma alternativa de sustentabilidade para as cidades
históricas no Brasil.

5.1 O turista aprendiz e a experiência da escrita

Mário de Andrade se descrevia como alguém que sofria de


“gigantismo epistolar”. Esse gigantismo se expressava não
apenas nas longas cartas que escrevia, como também no grande
número de pessoas com as quais se correspondia. Dentre os
muitos diálogos epistolares que manteve, um teve início com a
viagem que ficou conhecida como “viagem da descoberta do
Brasil”, que poucos anos depois inspirou a realização de outras
duas viagens ao interior do país, descritas na obra O Turista
Aprendiz (1976)23.
Na apresentação à obra que reúne as cartas que recebeu
de Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade relatou que

23A obra Turista Aprendiz foi concluída em 1943 e editada pela primeira vez
em 1976. Em 2015, o IPHAN promoveu a reedição, utilizada neste ensaio.

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

foi o interesse pelo Modernismo e por figuras como Mário e


Oswald de Andrade que o levou a procurá-los no Grande Hotel de
Belo Horizonte, onde estavam hospedados em abril de 1924.
Depois desse encontro, teve início uma amizade epistolar que
daria origem a um conjunto de cartas, cuja leitura permite um
olhar, não apenas sobre a relação de amizade estabelecida entre
os poetas, mas, também, sobre as suas ideias relativas à cultura
nacional e à experiência da escrita.
A viagem da descoberta do Brasil, como mais tarde Oswald
de Andrade viria a denomina-la, teve início em São Paulo,
passando pelo carnaval carioca e chegando a Minas Gerais. O
grupo formado por Mário de Andrade, Olívia Guedes Penteado,
Godofredo Teles, Tarsila do Amaral, Blaise Cendrars, Paulo
Prado, René Thiollier e Oswald de Andrade Filho, percorreu o
interior do estado em busca de referências artísticas, históricas e
culturais remanescentes das cidades do ciclo do ouro mineiro24.
A viagem, que hoje poderíamos reconhecer como um
modelo de turismo patrimonial, inaugurou no cotidiano dos
modernistas um olhar sobre a experiência estética e cultural
proporcionada pelo contato direto com os lugares e com as

24De acordo com Santos (2012, p.54), as cidades mineiras visitadas pelo grupo
modernista foram: Belo Horizonte, Congonhas do Campo, Mariana, Ouro Preto,
São João Del Rey e Sabará. No que diz respeito aos integrantes da viagem, na
apresentação à obra “A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade”, não são citados como integrantes da viagem os
senhores Paulo Prado e René Thiollier.

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

pessoas que vivenciavam a herança histórica e cultural de um


Brasil que se construiu nas brechas do sistema colonial.
Diferentemente das viagens feitas por Mário de Andrade à
região amazônica e ao Nordeste do país nos anos seguintes, mais
especificamente em 1927 e 1928, a viagem às cidades históricas
de Minas Gerais não foi nomeada como uma das “viagens
etnográficas” descritas em O turista aprendiz. No entanto, de
acordo com Santos (2012, p. 54), “o contato com o passado e a
possível reconciliação histórica com ele é fruto dessa viagem a
Minas Gerais. E o retorno de Mário de Andrade a essa região
histórica talvez tenha sido fundamental para a sua redescoberta
do Brasil”.
Como já descrito anteriormente, dentre os excursionistas
estava o poeta Blaise Cendrars, figura chave do modernismo
francês, que buscava no Brasil um vislumbre da perspectiva
estética do Primitivismo. De acordo com Santos (2012, p. 53),
essa perspectiva viria a influenciar diretamente os rumos do
modernismo brasileiro tanto no Movimento Pau Brasil liderado por
Oswald de Andrade, como na busca de Mário de Andrade pelas
raízes populares do país. A viagem proporcionou uma dupla
influencia, tanto no sentido de pensar um Primitivismo brasileiro,
como no de expor as bases para o entendimento de Mário de
Andrade em relação à herança cultural brasileira, subsídio para a
sua concepção de Patrimônio Artístico, que mais tarde descreveu

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

como: “(...) todas as obras de arte pura ou de arte aplicada,


popular ou erudita, nacional ou estrangeira, pertencentes aos
poderes públicos, a organismos sociais e a particulares nacionais,
a particulares estrangeiros residentes no Brasil” (ANDRADE,
2002).
Embora Mário de Andrade já houvesse visitado as cidades
históricas mineiras e escrito sobre elas em 1916 (AMARAL, 1997),
a viagem da descoberta do Brasil em 1924 representou o encontro
entre o poeta e o escultor, isto é, entre o turista Mário de Andrade
e a obra de Aleijadinho, sobre a qual Mário viria a escrever nos
anos seguintes25. Da mesma forma, permitiu ao poeta um olhar
sensível sobre a arte cotidiana e utilitária produzida no interior do
país, influenciando, junto a outros fatores, na inclusão das artes
aplicadas entre os bens do Patrimônio Artístico Nacional descritos
em seu conhecido anteprojeto feito a pedido do ministro Gustavo
Capanema em 1936.
Durante a elaboração do anteprojeto, Mário escreveu ao
seu amigo Carlos Drummond de Andrade dizendo: “Se é certo que
quase tudo me apaixona, isso me apaixonou particularmente. Xi!
Se se realizarem pelo menos três quartos do que estou sonhando
estes dias, palavra que será uma boniteza”.26 É fato que os sonhos

25 Os escritos de Mário de Andrade sobre a obra de Aleijadinho foram


publicados na obra: O Aleijadinho e Alvares de Azevedo. Rio de Janeiro, R.A.
editora, 1935.
26 Carta datada de 8 de março de 1936. ANDRADE, 2015, p. 284.

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

de Mário não se realizaram integralmente, mas muitas das ideias


e reflexões defendidas por ele no texto datado de 24 de março de
1936, influenciaram a política do Estado brasileiro referente a
proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Da mesma
forma, o texto traz indícios da influência das viagens feitas por
Mário sobre a sua concepção de cultura e de patrimônio, como
por exemplo a inserção de manifestações imateriais da cultura
brasileira - música, lendas, saberes, danças, por exemplo - como
bens passíveis de tombamento.
Durante a primeira de suas viagens, a vida simples das
cidades históricas, as cores, a música, os hábitos, as tradições e
a imaginária religiosa, puderam ser experimentadas em meio a
arquitetura e a arte características do Barroco Mineiro. A viagem
da descoberta do Brasil foi uma viagem de conhecimento e de
reconhecimento de alguns dos lugares que anos mais tarde
receberiam a chancela da UNESCO como Patrimônios
Mundiais27. Da mesma forma, essa viagem representou o ponto
de partida para o ímpeto viajante de Mário de Andrade, que dizia
não se sentir confortável em viagens, mas que reconhecia a
importância da experiência que elas proporcionavam.

27Em 1980 a cidade histórica de Ouro Preto foi reconhecida pela UNESCO
como Patrimônio Mundial. Em 1985, foi a vez do Santuário do Senhor Bom
Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo. Minas Gerais possui, ainda,
outros sítios patrimonializados em diferentes instancias.

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

Em carta ao amigo Manuel Bandeira no dia 19 de março de


1926, Mário anuncia: “Pois é estou de viagem marcada pro Norte.
Vou na Bahia, Recife, Rio Grande do Norte onde vive um amigo
de coração que nunca vi pessoalmente, o Luís Câmara
Cascudo”28. Na mesma carta, o poeta explica como vai custear a
viagem: “Ele [Câmara Cascudo] me arranja duas conferências no
Norte, uma em Recife e outra em Natal. Com os dois contecos que
levarei daqui a viagem se paga e eu fico conhecendo o Nordeste”.
A viagem anunciada a Manuel Bandeira nunca aconteceu,
mas no ano seguinte Mário embarcou em um cruzeiro Lloyd da
Companhia Brasileira de Navegação, pelos rios da região Norte
do país. Acompanhado de Olivia Guedes Penteado, Margarida
Guedes Nogueira e Dulce do Amaral Pinto, Mário viajou por três
meses visitando cidades e vilarejos conforme o roteiro
estabelecido pela Companhia. O relato dessa viagem compõe a
primeira das duas viagens etnográficas feitas pelo poeta.
A segunda viagem etnográfica se deu, finalmente, para o
Nordeste, entre os meses de novembro de 1928 e fevereiro de
1929. Empolgado com a confirmação da viagem, Mário escreveu
ao amigo Luís Câmara Cascudo em 8 de março de 1928:

Em dezembro se Deus não mandar doutro jeito te


abraçarei em Natal. Mas daí sem acompanhamento
e disposto a ficar por aí pra escutar e registrar coisas
e passear e conversar com você com o Jorge com o

28 MORAES (Org.), 2000, p. 278-279.

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

Antônio Bento e escarafunchar depois o mais


possível Rio Grande do Norte e Ceará. Em março
próximo findarei a viagem por Pernambuco, visitando
o sertão dele e esperando o Carnaval em Recife. Que
tal o projeto?29

Na carta fica evidente o desejo do poeta em conhecer os


costumes, as artes e os saberes do povo nordestino. A viagem é
registrada em uma série de artigos publicados no Diário Nacional
(cf. ANDRADE, 2015). Mais tarde, em 1976, foram reunidos aos
relatos da viagem de 1927 e publicados com o título O Turista
Aprendiz.
É consenso entre os estudiosos da obra de Mário de
Andrade30, que as viagens a Minas Gerais e às regiões Norte e
Nordeste do Brasil, com um intuito etnográfico, influenciaram sua
concepção de identidade e de cultura brasileira. Da mesma forma,
balizaram sua proposta de criação de uma instituição de proteção
ao patrimônio histórico e artístico no Brasil. Todavia, a leitura de
suas cartas expõe um outro universo de representações
resultantes das experiências proporcionadas por essas viagens.
Nesse contexto, as cartas são a antessala da produção
criativa, no sentido de expor o processo de reconhecimento e
discussão de ideias provenientes da experiência, considerando
que “a correspondência é para alguns escritores,

29MORAES (Org.) Op. cit., p. 339-340.


30A título de exemplo: Telê Lopez (2002), Aracy Amaral (1997) e Alexandre
Eulálio (2001).

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

independentemente de seu valor estético, uma passagem


obrigatória, um meio privilegiado de ter acesso a uma obra, o elo
que falta entre o homem e a obra” (KAUFMANN,1990, p. 80). Para
compreender a relevância das viagens vivenciadas por Mário de
Andrade, na construção do seu entendimento sobre as questões
relacionadas à memória, à identidade e ao patrimônio cultural, é
preciso, antes, conhecer o Mário das cartas.
Embora mantivesse uma vasta correspondência, Mário de
Andrade não estava convencido da necessidade de tornar
públicas as suas cartas. Pelo contrário, defendia o direito de
privacidade que a escrita de foro íntimo representa. Em uma carta
escrita a Rodrigo Miranda, Mário afirma: “Devia ser proibido a
mostra pública de cartas particulares, por lei governamental.
Como si um escritor, um artista, pelo fato de ter uma vida pública,
não pudesse ter uma vida particular”31. No entanto, poucos anos
depois de sua morte, em 1945, um de seus maiores
correspondentes e amigo pessoal, Manuel Bandeira, editou e
publicou parte de sua correspondência, sob o argumento de que
as cartas escritas por Mário eram importantes documentos como
ponto de vista crítico-literário, biográfico e cultural. As cartas eram,
em suma, fontes para a história do pensamento brasileiro
referente à cultura e às artes.

31 ANDRADE, 1981, p. 158

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

5.2 Turismo: entre cultura e patrimônio

O Brasil descrito por Mário de Andrade em suas cartas e


em sua produção literária, era o Brasil que se descobria gigante,
diverso e autêntico. Nesse momento de descobertas, a herança
histórica materializada nos lugares e nos objetos do passado
integrou discursos que possibilitaram diferentes usos políticos da
noção de identidade nacional. O conceito de patrimônio cultural
era incipiente nesse período, mas já suscitava questões
fundamentais sobre os usos discursivos do passado.
Os lugares de outrora representavam a possibilidade de
conhecer um Brasil diferente do descrito pela tradição aristocrática
europeizada. Mário de Andrade, ao viajar pelo Brasil, se
descreveu como um turista aprendiz, antecipando em algumas
décadas o que ficaria conhecido como turismo cultural, do qual o
turismo patrimonial é um segmento particular.
O conceito de turismo está diretamente relacionado a uma
ideia de consumo, mas quando se trata de turismo cultural este
consumo pode ser “antropofágico” tal como concebiam os
modernistas. Um consumo que é experiência, reconhecimento e
memória compartilhada. Um consumo “contra a Memória fonte do
costume”, tal como defendeu Oswald de Andrade em seu
Manifesto Antropofágico (1928), um consumo que busca “A
experiência pessoal renovada”. Não se trata, contudo, de excluir

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

os muitos sentidos que a palavra “consumo” pode ter em um


contexto de turistificação, mas de ampliar as possibilidades de
compreensão desse fenômeno econômico e sociocultural
representado pelo turismo cultural.
A experiência pessoal renovada defendida pelos
modernistas não era, ao menos para Mário de Andrade, uma
ruptura com o passado, mas uma tomada de consciência em
relação à herança histórica e cultural que não podia mais ser
ignorada, mas que não precisava ser repetida. Em seu Prefácio
Interessantíssimo32, Mário de Andrade (1987, p. 75) escreveu que:
“O passado é lição para se meditar, não para reproduzir”. O poeta
que se dizia um “passadista” e que lançou as bases para a política
nacional de reconhecimento e preservação do patrimônio cultural,
pode também, ter deixado pistas para a compreensão dos
aspectos sensíveis da experiência vivida em viagens a lugares
com potencial patrimonial.
Os motivos pelos quais uma pessoa planeja e vive uma
experiência de turismo cultural são em parte comuns a todo turista
e em parte resultantes dos anseios e expectativas de cada
viajante. Há, portanto, o estabelecimento de uma relação de troca
entre o turista e o lugar, uma relação que extrapola os limites do
consumo mercantil e adentra o campo das trocas simbólicas, do

32O Prefácio Interessantíssimo é um texto de apresentação à obra Paulicéia


Desvairada (1924).

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

reconhecimento do outro e das afirmações identitárias. Nesse


sentido, o turismo patrimonial, enquanto “prática turística com foco
em bens de interesse cultural, material ou imaterial, tombados,
valorizados, registrados, salvaguardados, restaurados,
conservados e museificados por organismos públicos e privados
de proteção ao patrimônio cultural” (FIGUEIRA, 2016, p. 151),
insere nesse universo de trocas, a busca pelo passado, pelo
autêntico e pelo reconhecimento da excepcionalidade de um bem
patrimonializado.
Há, portanto, uma relação entre o viajante e a extensa rede
de valores, discursos e forças político-sociais que envolvem o
reconhecimento e a preservação de um patrimônio. Essa relação
expõe uma série de dilemas que opõem a exploração turística de
sítios patrimonializados à sua preservação física e simbólica.
Nesse contexto, torna-se premente compreender, quais valores
são mobilizados para o reconhecimento de um patrimônio
cultural? Como esses valores se relacionam com a prática do
turismo patrimonial?
Partindo da definição de patrimônio cultural como “una
invención y una construcción social”, defendida por Llorenç Prats
(1998, p. 63), compreende-se que a definição de um bem, material
ou imaterial, como patrimônio cultural situa-se no campo dos
discursos e das práticas em forma de retroalimentação, isto é, não
basta nomear um patrimônio, é preciso reconhecer e legitimar a

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

sua condição de patrimônio por meio dos usos que se faz dele.
Nesse sentido, a relação entre o turismo patrimonial e a
preservação do patrimônio cultural pode ser compreendida como
um processo de troca mútua, onde a chancela institucional de um
patrimônio atrai para si um interesse turístico, que por sua vez,
agrega valor ao reconhecimento desse patrimônio.
Evidentemente, essa relação de troca nem sempre se dá em
condições de equilíbrio, fato que pode resultar em processos de
espetacularização do passado, gentrificação e abandono. Dessa
forma, a transformação dos lugares e modos de vida relacionados
aos patrimônios culturais chancelados, deixa de proporcionar a
experiência sensível do contato com o passado preservado.
Cabe questionar, portanto, se é possível um turismo
patrimonial que não se baseie em um discurso reducionista de
“viagem no tempo”, mas em uma proposta de experiência sensível
junto aos lugares e aos modos de viver que trazem em si
fragmentos do passado e da produção artística de outros tempos.
O desafio reside em pensar formas de turismo patrimonial que
sobrevivam às exigências da civilização do espetáculo, tal como
define Mário Vargas Llosa (2013, p. 29), isto é, “a civilização de
um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigentes é
ocupado pelo entretenimento”, em franca oposição ao ócio e a
experiência criativa.

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

A experiência vivida pelo grupo modernista durante a


viagem às cidades históricas de Minas Gerais em 1924, foi o
marco inicial para o reconhecimento de Ouro Preto como
Monumento Nacional em 1933. Da mesma forma, o
reconhecimento dessa cidade como monumento desencadeou
uma série de transformações sociais e econômicas que
interferiram na dinâmica cultural da cidade. Na década de 1980,
com o reconhecimento de Ouro Preto como Patrimônio Mundial
pela UNESCO, essas transformações foram potencializadas.
Assim, a experiência proporcionada pelo turismo patrimonial
depende diretamente da gestão responsável desse patrimônio,
bem como dos diferentes valores atribuídos a ele, seja com
chancelas institucionais, seja com o uso pela comunidade local.
Nessa perspectiva, o turismo como uma prática predatória e
fetichista inviabiliza a experiência de um turismo
cultural/patrimonial como o vivido pelos modernistas brasileiros,
evidenciando que a linha entre viver o patrimônio e entreter-se
com ele é tênue e pode configurar experiências muito diferentes
em viagens aos mesmos lugares.
Patrimônio é, antes de mais nada, uma questão de valor,
como defende Josef Ballart Hernández (1996), no sentido de
perceber a construção de discursos que atribuem diferentes
sentidos aos bens culturais, mobilizando recursos para o seu
reconhecimento e preservação. Dentre os valores elencados por

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

Hernández (1996) estão: o valor de uso, referente à dimensão


utilitária; o valor formal, referente às qualidades inerentes ao
objeto ou manifestação; e o valor simbólico, referente ao potencial
comunicativo. No decurso de um projeto de turismo patrimonial
todos esses valores são mobilizados em maior ou menor grau. O
valor de uso, negligenciado em diferentes contextos de
preservação, ganha folego com a visibilidade e com a política de
novos usos do patrimônio. Da mesma forma, os valores simbólico
e formal são potencializados pelo discurso publicitário que envolve
a promoção turística.
No mesmo sentido, Françoise Benhamou (2016, p. 20)
chama atenção para o fato de que os valores atribuídos aos bens
patrimoniais não geram, instantaneamente, um potencial turístico,
de modo que “valores científicos ou simbólicos fortes podem
acompanhar um valor mercantil nulo ou muito fraco”. No entanto,
esses valores são mutáveis e atribuídos em consonância com os
diferentes contextos de patrimonialização. De modo que, o que foi
considerado um bem de valor estético excepcional há 95 anos,
durante a viagem do grupo modernista a Minas Gerais, pode hoje
não ser valorizado da mesma forma.
O turismo patrimonial exige, portanto, um planejamento
alinhado às políticas de reconhecimento e preservação do
patrimônio, tanto em suas propriedades físicas, quanto em sua
dimensão simbólica. Se a preservação do patrimônio e a

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

qualidade de vida das pessoas que o vivenciam cotidianamente


forem negligenciadas, o turismo patrimonial se torna inviável, e
facilmente substituído por uma atividade de entretenimento que
tem o patrimônio como cenário.
A viagem da descoberta do Brasil, assim como as duas
viagens etnográficas que se seguiram, mudaram a perspectiva de
Mário de Andrade em relação ao patrimônio cultural brasileiro e,
por conseguinte, influenciaram a política brasileira de
reconhecimento e proteção desse patrimônio. Quase um século
depois, as questões relativas ao reconhecimento da diversidade
do patrimônio cultural brasileiro avançaram em muitos aspectos,
em especial no que tange às manifestações, aos saberes e às
demais formas imateriais do patrimônio. No entanto, a falta de
recursos para a sua preservação, bem como a dependência
econômica em relação ao Estado, diante da progressiva
degradação física dos sítios tombados, continua mobilizando
pesquisadores e diferentes setores da sociedade que procuram
identificar formas de garantir a preservação desses patrimônios,
sem prescindir da qualidade de vida das comunidades que vivem
nesses sítios.
Como pensar, então, a gestão e a preservação do
patrimônio cultural em um contexto de primazia do
entretenimento? A chave de leitura para este enigma pode estar
na própria concepção de patrimônio, bem como na compreensão

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


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TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

de que existe uma memória do patrimônio e que seu


reconhecimento pode contribuir para o fomento de novas relações
sociais e econômicas entre as pessoas, os lugares e as
manifestações culturais. Embora a leitura das cartas e da
produção literária de Mário de Andrade, com o propósito de incitar
o debate em torno do turismo patrimonial, pareça estar na
contramão de uma sociedade em que a figura do intelectual
perdeu espaço de influência (LLOSA, 2013, p. 39)33, uma leitura
histórica de seus escritos pode apontar o caminho para uma
política de gestão que considere o turismo patrimonial como uma
ferramenta viável para promover o desenvolvimento econômico
local associado ao reconhecimento do valor patrimonial dos sítios
históricos no Brasil.

33 De acordo com LLOSA (2013, p. 39), “(...) um fato singular da sociedade


contemporânea é o eclipse de um personagem que há séculos e até há
relativamente poucos anos desempenhava papel importante na vida das
nações: o intelectual”.

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


- 134 -
TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

REFERÊNCIAS

AMARAL, A. Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas. São


Paulo: FAPESP/Editora 34, 1997.

ANDRADE, M. de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade


a Carlos Drummond de Andrade anotadas pelo destinatário. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015.

ANDRADE, M. de. Anteprojeto para a criação do Serviço do


Patrimônio Artístico Nacional. Revista do Patrimônio (anexos).
n. 30, 2002.

ANDRADE, M. de. O Aleijadinho e Alvares de Azevedo. Rio de


Janeiro, R.A. editora, 1935.

ANDRADE, M. de. O turista aprendiz. Brasília: IPHAN, 2015.

ANDRADE, M. de. Poesias Completas. São Paulo: Ed.


Universidade de São Paulo, 1987.

ANDRADE, O. de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto


Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro:
apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3.
ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.

BENHAMOU, F. Economia do patrimônio cultural. São Paulo:


Edições SESC São Paulo, 2016.

EULÁLIO, A. A aventura brasileira de Blaise Cendrars. São


Paulo: Edusp, 2001.

FIGUEIRA, M. C. O espetáculo turístico do patrimônio cultural


da humanidade: preservar para atrair os consumidores de

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


- 135 -
TURISMO PATRIMONIAL E MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO: MÁRIO DE ANDRADE
ENTRE A ESCRITA E A EXPERIÊNCIA

passado. 2016. Tese (Doutorado em Memória Social e Patrimônio


Cultural) - Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2016.

HERNÁNDEZ, J. B. et al. El valor del patrimônio histórico.


Complutum Extra 6, n. 2, p. 215-224. 1996. Disponível em:
https://revistas.ucm.es/index.php/CMPL/article/view/CMPL96963
30215A/29835. Acesso em: 15 set. 2019.

KAUFMANN, Vincent. L’équivoque épistolaire. Paris: Éditions


de Minuit, 1990.

LLOSA, M. V. A civilização do espetáculo: uma radiografia do


nosso tempo e da nossa cultura. Tradução: Ivone Benedetti. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2013.

LOPES, T. A. Estabelecimento do texto, Introdução e notas. In.


ANDRADE, M. de. O Turista Aprendiz. Belo Horizonte, 2002.

MORAES, M. A. de. (org.). Correspondência Mário de Andrade


& Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp/ Instituto de Estudos
Brasileiros, 2000.

PRATS, L. El concepto de patrimonio cultural. Politica y


Sociedad, Madrid, n. 27, p. 63-76. 1998.

SANTOS, M. B. P. dos. Viagens de Mário de Andrade: A


construção cultural do Brasil. 2012. Tese (Doutorado em Ciências
Socias) - Pontificia Universidade Católica de São Paulo, 2012.

Cristiéle Santos de Souza Carla Rodrigues Gastaud


- 136 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

6 O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE


PROMOTORA DE TURISMO

Cristiane Leticia Oppermann Thies 34

Uma atitude espontânea de formação de um brique de


produtos artesanais tem sido uma atividade de sucesso em uma
região histórica da cidade de Santa Maria, denominada Vila Belga.
Trata-se de uma vila ferroviária composta por casas geminadas
com traços da arquitetura eclética que foram construídas no início
do século XX para abrigar os ferroviários da região e suas famílias.
É um importante patrimônio histórico local, tombado pelo
município no ano de 1988 e pela Secretaria da Cultura do Estado
do Rio Grande do Sul desde o ano 2000. O lugar já sofreu com o
abandono, mas, a partir de 2013, houve um projeto de
revitalização das casas, calçadas e iluminação.
Nesse cenário, como meio de trazer movimentação ao
local, valorizar a região e ainda gerar renda à população, a
associação de moradores criou, no ano de 2015, o Brique da Vila
Belga, uma atividade que reúne vendedores e compradores de
produtos artesanais e manufaturados nas ruas da vila em

34Arquiteta e Urbanista formada pela Universidade Franciscana (UFN). Mestre


em Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Doutoranda em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade
Federal de Pelotas (UFPel). Email: cristianeot@gmail.com.

Cristiane Leticia Oppermann Thies


O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

domingos alternados. Essa atividade potencializou a valorização


e o uso do ambiente pela população, promovendo ações de
valorização de produções locais e do turismo na região e,
principalmente, aumentando o sentimento de pertencimento ao
local tanto pela parte dos moradores da vila quanto do restante da
cidade.
O turismo é uma das atividades que mais cresce em todo o
mundo e seu desenvolvimento em uma determinada localidade
pode alavancar ou recuperar o crescimento local, melhorando
tanto aspectos de infraestrutura como de qualidade de vida da
população. Nesse contexto, o planejamento da atividade tem
papel fundamental para que os impactos locais sejam positivos e
que as características diferenciais presentes, que na maioria das
vezes são um dos elementos atrativos, não se percam com a
invasão de referências externas.
Quando feito pela comunidade, o turismo tende a ser um
catalizador das perspectivas de seus membros em torno do
próprio legado patrimonial. Nesse viés, como exemplo concreto
de utilização das próprias referências patrimoniais como
estratégia de renovação, proteção e preservação do patrimônio,
cuja exigência técnica, legal, protetiva e estética demanda uma
série de ações, recursos e procedimentos, cita-se a Vila Belga.
A Vila Belga é uma vila ferroviária localizada no centro do
Estado do Rio Grande do Sul, em Santa Maria, cidade que teve o

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 138 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

início da sua urbanização em meados do Século XVIII, mas que


foi potencializada com a chegada da ferrovia no ano de 1884
(BELÉM, 2000), que mais tarde tornou-se um grande
entroncamento ferroviário do estado. A vila ferroviária em questão
foi construída nas proximidades da Gare da Estação, como forma
de manter os funcionários da ferrovia próximos ao local de
trabalho. O primeiro conjunto de casas foi inaugurado em 1907 em
estilo eclético, predominante na época (LOPES, 2002).
A vila é, hoje, considerada um importante patrimônio
histórico e artístico da cidade, o qual foi tombado pelo município
no ano de 1988 e pela Secretaria da Cultura do Estado do Rio
Grande do Sul no ano de 2000. O conjunto é formado por 44 casas
geminadas e pelos prédios administrativos e armazéns da antiga
Cooperativa dos Ferroviários (Diário Oficial do Estado do RS,
Decreto 030/2000). No ano de 1997, com a privatização das linhas
férreas, a maioria das casas da Vila Belga foi adquirida pelos
próprios moradores, através de leilão. Com as altas prestações do
financiamento, os moradores não possuíam recursos monetários
suficientes para realizar as obras necessárias para a recuperação
dos imóveis (QUERUZ, 2004).
As casas apresentam várias tipologias, e os desenhos de
fachadas e janelas são também diferentes entre si (LOPES, 2002).
A partir de 2009, foi realizada a revitalização da Vila Belga,
ocorrida em duas etapas: uma de melhorias urbanísticas na área

Cristiane Leticia Oppermann Thies


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O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

(nova pavimentação nas calçadas com implementação de


recursos de acessibilidade, retirada do asfalto das ruas,
substituição de parte da tubulação de esgoto, fixação de totens
informativos com dados históricos da área e instalação de postes
de iluminação pública); e outra de pintura das fachadas das casas,
as quais foram concluídas em 2012 (FACCIN, 2013).

Figura 1 - Vista de algumas casas da Vila Belga

Fonte: Dantanhan Baldez Figueiredo (2019)

A partir desse momento, houve o começo de algumas


iniciativas da prefeitura municipal para transformar a Vila Belga
em um polo turístico, em conjunto com a Gare da Estação, onde
seriam implementados centros culturais e museus, dentre outras

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 140 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

atividades que levariam o turismo ao local. Mas, infelizmente,


algumas dessas obras não foram concluídas, inviabilizando a
finalização do projeto.
No ano de 2016, foi implementada no município a lei
6057/2016, que criou o Polo Gastronômico, Turístico e Cultural da
Vila Belga, como outra tentativa de alavancar o turismo na região.
Através dessa lei, foi encorajada a instalação de 33 diferentes
atividades culturais e turísticas para o desenvolvimento do local,
assim como a recuperação e a manutenção dos bens tombados
através de incentivos fiscais. Com isso, foi possibilitada a troca de
uso dos imóveis tombados da área de moradia para a prática
comercial, bem como a promoção de mudanças físicas na
estrutura e transformações sociais para a população local. Apesar
da lei já possuir três anos de existência, ainda não foram
solicitados os benefícios por nenhum empreendimento.
Algumas políticas públicas são uma maneira de incentivo à
preservação do patrimônio cultural de um lugar através da
promoção do turismo e da economia local. A política pública pode
ser um meio de materialização das necessidades dos indivíduos
e não pode ser generalista, pois deve considerar as diferentes
realidades presentes no território e na sociedade. Então, faz-se
necessária a avaliação dessas políticas, pois isso pode significar
a possibilidade de correção das ações que impactaram de forma

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 141 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

negativa o espaço urbano, além da afirmação das que tiveram


resultado positivo.
Mas, especificamente no caso da Vila Belga, é
demonstrado, na prática, que nem sempre são obtidos os
resultados esperados com a implantação das políticas públicas.
Assim, por outro lado, esse caso indica que muitas vezes
processos que nascem e se desenvolvem nas próprias
comunidades moradoras de lugares tombados parecem ter mais
sucesso do que algumas leis ou políticas incentivadoras, pois vêm
ao encontro das necessidades locais, gerando renda e mantendo
a população no território.
Isso é o que acontece com o Brique da Vila Belga, um
movimento cultural que nasceu no ano de 2015 por iniciativa dos
moradores e entusiastas do local, que buscaram criar meios para
incentivar o convívio e a revalorização por parte da população do
patrimônio histórico, que sofria com o abandono e a falta de
reconhecimento. Um pequeno grupo de moradores iniciou a
exposição de seus produtos nas ruas da vila. A atividade acontece
em domingos alternados. Tal ação foi apoiada pela Associação de
Moradores e aos poucos foi ganhando adesão de mais pessoas.
Consequentemente, a população da cidade logo aderiu à
proposta, o que resultou em uma área de reunião e convívio. Aos
poucos, o brique foi aumentando o seu repertório, passando de
apenas um espaço de comércio para também um palco cultural,

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 142 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

com apresentações de bandas e peças teatrais cada vez mais


atenção para o lugar. Os componentes da programação cultural e
os integrantes da coordenação do brique, que hoje compõem uma
associação civil, participam de forma voluntária e espontânea
através de colaboração mútua.

Figura 2 - Dia de brique nas ruas da Vila Belga

Fonte: Dantanhan Baldez Figueiredo (2019).

A palavra “brique” tem origem na palavra francesa brique-


a-braque, que diz respeito a coleções de diversos e velhos objetos
e itens de pequeno valor, como artesanato, arte, antiguidades,
bijuterias, móveis, vestuários, entre outros. No estado do Rio
Grande do Sul, é uma palavra que caracteriza tanto essas feiras
eventuais como locais que vendem peças usadas de mobiliário.
Portanto, a palavra resume apenas a parte comercial do negócio,

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 143 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

mas não traduz o cunho turístico-cultural que veio associado à sua


criação.
A proposta do “Brique da Vila Belga” é divulgar elementos
culturais diferentes e promover a exposição de atividades que são
qualificadas como singulares da cidade. Além do comércio de
artesanato e de produtos alimentícios, ocorrem apresentações
artísticas como músicas, danças, teatros, rodas de conversa,
oficinas e palestras. Isso mostra que a programação cultural,
assim como a própria governança do brique, é produzida de forma
voluntária, lúdica, espontânea e colaborativa (RAMOS; BOBSIN,
2016).
Com o crescente número de expositores cadastrados, que
hoje ultrapassam 150, em relação aos 16 stands iniciais que
estavam presentes na primeira edição em 08 de março de 2015
(BRUN, 2015), foi necessária a institucionalização do brique, sendo
formada uma associação civil, com regimento interno e diretoria. A
partir disso, os interessados em expor precisam entrar em contato
com a comissão organizadora, participar de uma reunião sobre o
regimento interno do evento e assinar um termo de compromisso,
que traz regras básicas sobre o brique, como a exigência de não
esconder e não depredar o patrimônio histórico, além de pagar uma
taxa correspondente e definir um espaço disponível para
instalação.

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 144 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

No ano de 2018, a atividade do Brique da Vila Belga foi uma


das vencedoras do Prêmio Culturas Populares 2018, promovido
pelo Ministério da Cultura (MinC), no qual concorreram mais de 2200
projetos, ficando entre os 500 premiados. Um reconhecimento para
quem contribui para uma atividade sociocultural com a melhoria das
comunidades onde elas ocorrem (REDAÇÃO DIÁRIO DE SANTA
MARIA, 2018).
Ainda no ano de 2018, o tradicional Brique da Vila Belga
passou a ter edições noturnas, ampliando a sua programação e a
diversidade de expositores. Além disso, o brique foi um
dos 40 projetos aprovados pela Lei de Incentivo à Cultura de Santa
Maria (LIC-SM) para 2019, podendo captar um valor aprovado de 60
mil reais (MATGE, 2018).
O brique não se apresenta apenas como uma feira, ele é,
sobretudo, uma experiência sociocriativa inovadora e um espaço
de valorização do patrimônio histórico da cidade que resgata a
cultura popular, além de promover a interação do local com a
população. É um espaço saudável e convidativo para um passeio
de domingo, uma vez que promove a cultura de paz, o intercâmbio
cultural e a valorização/ revitalização dos espaços públicos
santamarienses (BLOG DO BRIQUE DA VILA BELGA, 2019).
Os lugares que detém elementos do patrimônio histórico já
são locais atrativos por si só, mas, por sua vez, quando
associados às ações comunitárias resultantes de economia

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 145 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

criativa, podem ter seu turismo potencializado. Ações de políticas


públicas podem ter efeitos semelhantes, mas isso depende da
maneira com que foram planejadas e colocadas em prática, pois,
se não houver público para implementar tal legislação, elas podem
não ser efetivadas da maneira como foram idealizadas. Por isso,
é muito importante um planejamento dos agentes públicos em
conjunto com a comunidade e com entidades locais, uma vez que
as diferentes visões e posicionamentos podem enriquecer as
políticas públicas de implementação do turismo.
O brique pode ser enquadrado como uma atividade de
economia criativa, que é aquela que se encontra voltada para
bens intelectuais e culturais e engloba setores e processos de
produção que têm como veículo principal a criatividade. As
cidades podem ter grupos organizados que visam a busca de
soluções de problemas sociais através de negócios sustentáveis
que estão fortemente relacionados à cultura e que se mostram
como exemplos de economia criativa. Dessa forma, quando
associada ao turismo, a economia criativa vem como forma de
implementar o desenvolvimento local e estimular as
potencialidades específicas e diferenciadas de determinada
localidade, incitando a capacidade de organização comunitária,
resultando em menos desigualdades e buscando o
desenvolvimento da comunidade como um todo.

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 146 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

Desse modo, pode acontecer a ativação patrimonial


através do desenvolvimento de atividades vinculadas à economia
criativa, acionando uma linha de comércio e de atividades que
promovem uma diferenciação do lugar, uma vez que exprimem a
cultura e os elementos de cultura e de criatividade local. Assim, a
produção e a expressão ficam voltadas para elementos
característicos da região e priorizam a produção artesanal
característica própria da localidade.
É certo que a arquitetura é um atrativo no local e que este
não deve ser tratado somente como uma vitrine para o turismo,
mas, sim, deve impactar positivamente a população, uma vez que
a simples manutenção das características físicas do território não
são suficientes para garantir a singularidade de tais locais. Para
manter a diferenciação da área, devem ser somados os aspectos
culturais imateriais vinculados unicamente a população ali
residente (BRAGA, 2007). Isso vem ao encontro do que o Brique
da Vila Belga representa: uma maneira da população se aproximar
de aspectos culturais peculiares do local histórico.
Dessa maneira, a atividade do Brique da Vila Belga trouxe
a população de volta à circulação do calçamento histórico, onde é
possível encontrar gastronomia local, artesanato, sebos e
atuações como teatros e apresentações musicais, além de
oficinas e rodas de leitura e conversa. Isso demonstra que
pequenas ações podem, sim, transformar a visão de um lugar,

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 147 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

uma vez que objetivam impulsionar as atividades culturais,


mantendo vivos os aspectos que constituem e consolidam a
cultura, devendo abrir as portas para novas possibilidades de
abordagem e difusão desses elementos.
A união desses elementos culturais enche o imaginário da
cidade, reativa, constrói e cria novas memórias através da
reconstrução da sua identidade diante de um público diferente.
Para viabilizar o surgimento de novos conceitos de cultura, a
memória e o imaginário tornam-se instrumentos aproximadores do
patrimônio e dos cidadãos dos lugares que configuram suas
cidades e que, por consequência, narram suas histórias.
Uma vez que o processo de patrimonialização cultural tem
por finalidade ou consequência o seu potencial turístico, e este
gera e movimenta a economia, justificam-se os investimentos nas
práticas de patrimonialização de conjuntos urbanos (FIGUEIRA,
2016). O turismo é, dessa maneira, uma forma de ativar os locais
e fomentar o desenvolvimento de regiões tombadas, uma vez que
o público busca não apenas o lugar histórico, mas também uma
infraestrutura mínima para poder usufruir e fazer a fruição estética
do lugar. Em um tempo em que há uma propagação de não
lugares (JAN GEHL, 2013), em que há uma uniformização das
características culturais pelo mundo, os sítios que guardam suas
características peculiares, as atividades turísticas tendem a

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 148 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

crescer, uma vez que este diferencial se torna um atrativo ao


turismo.
Nesse contexto, o Brique da Vila Belga atende a essas
expectativas, uma vez que muito mais que um local de compra e
venda, tornou-se um ambiente de convívio e troca de
experiências, o que, nos dias de hoje, com a vida corrida e com a
falta de tempo, acaba sendo muito valorizado. Nesse viés, o
brique revela-se positivo tanto para os usuários, como para os
moradores e, também, para o patrimônio cultural da cidade, que
é, dessa forma, utilizado e preservado através de novos usos.

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 149 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

REFERÊNCIAS

BELÉM, J. História do município de Santa Maria: 1797-1933.


Santa Maria: Ed. da UFSM, 2000.

BLOG DO BRIQUE DA VILA BELGA. Disponível em:


http://briquedavilabelga.blogspot.com/p/o-brique.html. Acesso em
17 set. 2019.

BRAGA, P. M. Intervenções urbanas e preservação do patrimônio


cultural: paisagens particulares e banalização da paisagem. In:
ENANPUR, 17., 2007 - Desenvolvimento, Crise E Resistência:
Quais Os Caminhos Do Planejamento Urbano E Regional? Anais
[...] São Paulo, SP, 2007.

FACCIN, D.; ZANINI, M. C. C. Percepções acerca do morar em


um lugar de memória: o caso da “Mancha Ferroviária” de Santa
Maria (1996-2013). In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS,
37.,2013, Lindoia, SP. Anais [...]. Lindoia, 2013.

FIGUEIRA, M. C. O espetáculo turístico do patrimônio cultural


da humanidade: preservar para atrair os consumidores de
passado. 2016. Tese (Doutorado em Memória Social e Patrimônio
Cultural) - Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2016.

FIGUEIREDO, D. B. “Uma tarde plena no Brique da Vila Belga”.


Álbum Facebook, Vila Belga, Santa Maria - RS, Setembro 2019.

GEHL, J. Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013.

LOPES, C. E. J. A Conpagnie Auxiliaire de Chemins de Fer au


Brésil e a Cidade de Santa Maria no Rio Grande do Sul, Brasil.
2002. 224 f. Tese (Doutorado em Arquitetura) – Universidade
Politécnica da Catalunha, Barcelona, 2002.

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 150 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

MATGE, P. R. Por que 2018 é um ano de avanços para Vila Belga.


Diário de Santa Maria. 02 Dezembro 2018. Disponível em:
https://diariosm.com.br/especiais/reportagem-especial/por-que-
2018-%C3%A9-um-ano-de-avan%C3%A7os-para-vila-belga-
1.2110885. Acesso em: 18 set. 2019.

RAMOS, S. S.; BOBSIN, D. Gestão da inovação social: o caso do


Brique da Vila Belga em Santa Maria – RS. In: SEMINÁRIOS EM
ADMINISTRAÇÃO, 19., 2016. Anais [...]. São Paulo: FEAUSP,
2016.

REDAÇÃO DIÁRIO DE SANTA MARIA. Brique da Vila Belga comemora


prêmio nacional. Diário de Santa Maria, 25 Outubro 2018. Edição
online. Disponível em: https://diariosm.com.br/cultura/brique-da-
vila-belga-comemora-pr%C3%AAmio-nacional-1.2103316.
Acesso em: 17 set. 2019.

RIO GRANDE DO SUL. Portaria nº 30. Tombamento do Sítio


Ferroviário de Santa Maria representado pela Vila Belga, Estação
Férrea e Colégio Manoel Ribas conforme parecer técnico nº 11/00
do processo nº000548-11.00/99.8. Santa Maria, 26 de outubro de
2000.

SANTA MARIA. Lei nº 6057 de 27/04/16. Dispõe sobre o pólo


histórico, cultural, turístico, gastronômico e de lazer da Vila Belga,
cria incentivos e dá outras providências. Santa Maria, 2016.
Disponível em:
https://www.santamaria.rs.gov.br/docs/noticia/2015/12/D03-
968.pdf. Acesso em: 19 set. 2019.

QUERUZ, F. Patrimônio tombado: estudo de caso – Vila Belga.


2004. 34 f. Artigo (Especialização em Conservação e Restauração
do Patrimônio Cultural) – Universidade Federal de Santa Maria,
Santa Maria, 2004.

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 151 -
O BRIQUE DA VILA BELGA COMO ATIVIDADE PROMOTORA DE TURISMO

Cristiane Leticia Oppermann Thies


- 152 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

7 RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E


PATRIMÔNIO

Eliza F. Antochevis 35

O presente trabalho tem como tema a ligação entre


patrimônio urbano/arquitetônico e economia. O objeto de pesquisa
é a Rua Riachuelo, que faz margem à Laguna dos Patos, no Porto
Velho da cidade do Rio Grande, Estado do Rio Grande do Sul,
Brasil. O objetivo geral é analisar como a atividade econômica
produziu o patrimônio material observado na rua, ao longo dos
séculos XIX e início do XX, e como esse patrimônio em parte
descaracterizado, por sua vez, poderia motivar a economia para a
cidade, através do turismo patrimonial. O texto foi dividido em três
partes.
A primeira abordou a atividade econômica como geradora
da Rua Riachuelo, a partir da década de 1820. Tratou da
construção do patrimônio urbano e arquitetônico da rua como o
cais, os sobrados e as casas térreas, durante um período de
apogeu que se estendeu até a primeira metade do século XX. A
segunda parte abordou as descaracterizações do patrimônio da
rua, a partir da segunda metade do século XX até os dias atuas.

35Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pelotas -


UFPel. Doutoranda em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade
Federal de Pelotas - UFPel. Email: eliza.antochevis@gmail.com.

Eliza F. Antochevis
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

Foi feito um panorama do estado atual de preservação do local e


de suas possíveis causas. A terceira parte tratou da Rua
Riachuelo como possibilidade de força geradora de economia. Foi
questionada a possibilidade da rua ainda originar economia
através do turismo patrimonial, após ações de revitalização.
Como conclusão, percebeu-se que a atividade econômica foi a
principal contribuição para o desenvolvimento da Rua Riachuelo.
Através do Porto Velho entraram ideias, técnicas e produtos que
se espalharam por todo o Rio Grande do Sul. No entanto, o
patrimônio cultural material, hoje parcialmente descaracterizado,
só terá um apelo turístico patrimonial se aceitar as modificações
contemporâneas que já foram realizadas e outras que poderão
transformar o espaço público em uma área mais qualificada.

7.1 A economia como geradora da Rua Riachuelo: o apogeu

As questões referentes ao patrimônio cultural tornam-se


cada vez mais amplas, envolvendo diversas áreas do saber.
Dentro de sua divisão entre patrimônio material e imaterial, o
primeiro grupo abrange desde paisagens naturais até cidades
históricas. Seguindo essa visão, o espaço de uma rua costeira é
tanto natureza quanto construção. Construção essa que pode
manter uma forte relação com as atividades econômicas
desenvolvidas em seu espaço.

Eliza F. Antochevis
- 154 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

Esse primeiro estudo, que busca desvendar a história do


bem cultural, pode ser chamado de investigação. É a primeira
etapa de uma sequência de atividades muito difundida dentro da
gestão do patrimônio, composta por investigação, conservação,
difusão e restituição (PRATS, 2006, p. 76).
A Rua Riachuelo, objeto de pesquisa deste trabalho, está
localizada na cidade do Rio Grande. Foi em 1737 que a cidade foi
fundada, como Presídio e Povoação do Rio Grande de São Pedro,
gerando o primeiro núcleo urbano do Rio Grande do Sul. Foi um
longo período até surgirem as condições necessárias para a
implantação de um conjunto urbano e arquitetônico que resistisse
aos desafios e pudesse ser considerado como patrimônio cultural
material.
O motivo inicial da fundação foi a questão militar, como o
avanço e a defesa do território português. No entanto, a ação
comercial esteve presente desde os primeiros anos da povoação.
Na década de 1780, as charqueadas da região Sul entraram em
funcionamento. O charque era produzido na atual cidade de
Pelotas, que se situava no território de Rio Grande. As
exportações de charque, couro e trigo, se davam pelo porto do Rio
Grande (TORRES, 2009, p. 11).
No início do século XIX, as atividades ligadas ao porto
atraíram comerciantes em busca de mercado para os seus
produtos. Em 1809, John Luccock (1987, p. 117), comerciante

Eliza F. Antochevis
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RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

inglês, permaneceu alguns meses em Rio Grande e afirmou que


havia uma fileira principal de casas, que corria na direção leste-
oeste, com janelas através das quais se via uma ilha do outro lado
de um canal. Por seu relato, pôde-se concluir que a fileira principal
de casas era o início da Rua da Praia, atual Rua Marechal Floriano
Peixoto.
Posteriormente, em 1820, o naturalista francês Auguste de
Saint-Hilaire passou algum tempo na cidade. Em seus escritos,
apontou a existência de seis ruas muito desiguais, atravessadas
por becos. Segundo Saint-Hilaire, na Rua da Praia estavam
situadas quase todas as casas comerciais (lojas de tecidos,
armazéns, farmácias, ferreiros, ourives, etc.) e residências com
telhas e janelas envidraçadas (SAINT-HILAIRE, 1999, p. 74).
Essas residências pertenciam aos comerciantes.
Em meio ao crescimento urbano e econômico atingido no
início do século XIX foram realizadas as primeiras obras de
construção do porto, que incluíram a dragagem do cais
(QUEIROZ, 1987, p. 157). Parte das areias retiradas foi usada
para a criação de um aterro e formação da Rua Nova das Flores,
atual Rua Riachuelo. A rua foi representada em documentos
iconográficos da década de 1820, como uma aquarela de Jean-
Baptiste Debret, de aproximadamente 1824 e um mapa, intitulado
Planta da Villa do Rio Grande de São Pedro, de 1829
(ANTOCHEVIS, 2015, p. 82-83).

Eliza F. Antochevis
- 156 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

Outro fato interessante foi que, no ano de 1865, por ocasião


da Guerra do Paraguai, desembarcam na cidade D. Pedro II e o
Conde D’Eu, seu genro. O Conde escreveu que a cidade tinha
muitas casas de comércio europeias e três ruas principais,
paralelas à praia (D’EU, 1980, p. 24). Foi por ocasião dessa visita
que a Rua Nova das Flores (posteriormente Rua da Boa Vista)
ganhou o nome de Rua Riachuelo.
Dando continuidade ao desenvolvimento do Porto, na
década de 1870 houve uma obra de ampliação do cais. Entre esse
momento e as primeiras décadas do século XX, a rua viveu um
período de apogeu, com um grande número de estabelecimentos
comerciais que funcionavam como casas importadoras. As
construções abrigavam os usos comercial, de serviços e
residencial. Esses estabelecimentos foram um exemplo direto da
relação entre as atividades econômicas e a sua produção urbana
e arquitetônica, ou seja, o seu patrimônio material.
Dentre elas, a empresa do italiano Raffaele Marsiglia
estabeleceu-se em Rio Grande na década de 1880, no ramo de
importação e exportação de secos e molhados (DOMECQ, 1916,
p. 368). A firma possuía alguns prédios na Rua Riachuelo, como
um sobrado de dois pavimentos, ocupado pelo escritório, e
algumas construções térreas que funcionavam como depósitos
(Fig. 1).

Eliza F. Antochevis
- 157 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

Em 1893, foi fundada a empresa Abel Asti & Cia, pelo


brasileiro Abel Asti e pelo português Antônio Alves d’Almeida.
Importavam produtos (secos e molhados) da Inglaterra, França,
Alemanha, Espanha, Portugal, Itália, Estados Unidos e Uruguai
(DOMECQ, 1916, p. 351). O sobrado apresentava um pavimento
térreo voltado aos usos de comércio e serviços e um primeiro
pavimento para o uso residencial (Fig. 2). Por sua localização
privilegiada, em frente ao cais do porto, a compra dos produtos
importados era facilitada (Fig. 3).
Como características gerais, o patrimônio material da Rua
Riachuelo, nas primeiras décadas do século XX, era formado por
edificações inicialmente da corrente luso-brasileira, que
receberam ornamentos em suas fachadas, como platibandas e
balcões de ferro, inserindo-se no período eclético. Somadas à rua
e ao cais do porto, formaram um conjunto urbano com muitas
especificidades, graças às atividades comerciais e portuárias
desenvolvidas.

Eliza F. Antochevis
- 158 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

Figura 1 - Propriedades da empresa Raffaele Marsiglia & Filho


na R. Riachuelo, entre as ruas Almirante Barroso e Coronel
Sampaio

Fonte: Domecq (1916, p. 368.)

Figura 2 - Empresa Abel Asti & Cia. na R. Riachuelo, entre R.


Benjamin Constant e Trav. do Afonso

Fonte: Domecq (1916, p. 357).

Eliza F. Antochevis
- 159 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

Figura 3 - Vista do cais em frente à empresa

Fonte: Domecq (1916, p. 359).

7.2 A descaracterização do patrimônio material da Rua


Riachuelo: o declínio

No ano de 1915, foi inaugurado o Porto Novo do Rio


Grande. O porto antigo, denominado então de Porto Velho,
continuou a receber algumas embarcações, de pequeno e médio
porte. A partir de seu cais eram transportados produtos e também
passageiros, entre Rio Grande e São José do Norte. Para apoiar

Eliza F. Antochevis
- 160 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

as atividades foram edificados os cinco armazéns, na década de


1920.
Acredita-se que a criação do Porto Novo tenha iniciado o
período de declínio e esquecimento da rua, embora esse tenha
demorado algumas décadas para se efetivar. É possível imaginar
as mudanças ocorridas no perfil da rua, principalmente no que diz
respeito aos usos, já que as atividades portuárias ficaram divididas
entre os dois portos.
No ano de 1941, uma enchente cobriu parte das ruas da
cidade. Pela distinção do evento, muitas fotografias foram tiradas.
Foi possível perceber que a arquitetura ainda estava preservada
e bem conservada. Algumas alterações ocorreram, como trocas
de vãos de portas para janelas. Ainda existiam algumas empresas
e armazéns, mostrando que a relação com a atividade comercial
continuava.
Não se sabe ao certo quando o período de declínio tornou-
se mais evidente, mas supõem-se que tenha sido na década de
1950. A industrialização da cidade entrou em decadência
provocando falências de empresas nos anos 1950, com o
fechamento de grande parte do parque industrial tradicional
(TORRES, 2011, p. 12).
Sobre os usos, é importante salientar que, ao retirarem-se
as casas importadoras, o uso residencial também foi perdido.
Apesar da sua localização central, muitos dos usos que surgiram

Eliza F. Antochevis
- 161 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

na segunda metade do século XX, como depósitos e casas


noturnas, não auxiliaram na real vivência da rua pela população.
Apenas algumas agências marítimas de importação e exportação
e alguns escritórios exercem esse papel, criando fluxo de pessoas
e, consequentemente, segurança.
Com relação aos sobrados e casas térreas, muitos
tornaram-se imóveis abandonados, sem uso e sem manutenção.
Por não terem o seu histórico valorizado, muitos prédios,
principalmente os inventariados, foram negligenciados de forma
proposital, para que a demolição fosse o único caminho possível,
visto que o habitar havia se tornado impraticável. No entanto, a
rua contém em torno de dez construções inscritas na Lista de
Bens Inventariados, cuja legislação solicita a integralidade das
fachadas públicas e da volumetria. É um pequeno número de
edificações com restrições, que não deveria justificar um número
tão grande de imóveis descaracterizados, com alterações
irreversíveis (Fig. 4).

Eliza F. Antochevis
- 162 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

Figura 4 - A Rua Riachuelo em um ponto próximo ao prédio da


Alfândega

Fonte: Autora (2019).

Observando o outro lado da Rua Riachuelo, percebe-se


que o cais e os armazéns também sofreram modificações. Não no
caráter estético, mas com relação a sua função. O cais recebeu
fechamento com portões de grade, afastando a população da
Laguna dos Patos e recebendo menos manutenção. Atualmente,
o Porto Velho é utilizado para a atracação de alguns barcos
pesqueiros. Da mesma forma, o Porto Novo, a Universidade
Federal do Rio Grande e a Marinha utilizam embarcações em seu
entorno para auxílio e pesquisa.
Os armazéns receberam diferentes usos ao longo do tempo
e atualmente também não se encontram em um bom estado de
conservação. Dois dos armazéns acolhem usos de museus, como

Eliza F. Antochevis
- 163 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

o Museu do Acervo Histórico do Porto (no Armazém 01) e o Museu


Náutico da FURG (no Armazém 04), com entrada pela Rua
Riachuelo e sem acesso ao cais.
É interessante notar que, durante o período de declínio do
setor industrial e da consequente estagnação econômica, não
foram ponderadas alternativas turísticas, para gerar empregos e
manter a segurança da via. A Rua Riachuelo, com toda a sua
história poderia ter recebido uma proposta de consumo turístico-
patrimonial, que tem o patrimônio como principal agente de
aquisição (PRATS, 2006, p. 73).

7.3 A Rua Riachuelo como geradora de economia: ainda é


possível?

Após a percepção do atual estado de preservação da Rua


Riachuelo, do seu cais às suas edificações, pode-se fazer uma
análise sobre as condições que ela apresenta para ser
revitalizada. Como o próprio nome sugere, revitalizar implica
transformar uma área degradada ou subutilizada em um espaço
de maior qualidade, mais passível de ser usufruído pela
população.
Além das alterações que os residentes da rua (ou de perto
dela) observarão no dia a dia, o resultado poderá ser a geração
de renda através do turismo, com ênfase no patrimônio cultural.

Eliza F. Antochevis
- 164 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

Esse chamado turismo patrimonial organiza-se como uma rica


oportunidade do contato com outras épocas, outros tempos,
outras culturas, outros povos (FIGUEIRA, 2016, p. 130).
Ao mesmo tempo em que o espaço, para ser considerado
revitalizado, deverá ter áreas públicas, o turismo patrimonial
exigirá testemunhos de uma época passada. Nesse sentido, a
Rua Riachuelo ainda tem benefícios a oferecer. A possibilidade de
um uso menos restrito do cais e dos armazéns e a existência de
algumas construções preservadas podem trazer a própria
população e turistas para viver e consumir.
Com relação ao espaço público, foi aprovado pelos órgãos
responsáveis um projeto de Revitalização do Porto Velho. O
projeto, de 2015, buscou a revitalização dos setores central e leste
(área da Rua Riachuelo) e foi elaborado pelos escritórios Macadar
Arquitetura e Consultoria e Lontra Arquitetura, sendo uma
atualização do projeto original, que envolvia a revitalização de
todo o Porto Velho, e foi vencedor de um concurso público em
1997.
Conforme o projeto, o cais será restaurado e aberto ao
público, acrescido de novos instrumentos para uso coletivo, como
palcos para apresentações e trapiches para observação da
Laguna (Figuras 5 e 6).

Eliza F. Antochevis
- 165 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

Figura 5 - Projeto de Revitalização do Setor Leste, vista geral do


cais, armazéns e Rua Riachuelo

Fonte: Londra Arquitetura (2019).

Figura 6 - Projeto de Revitalização do Setor Leste, vista do uso


público do cais

Fonte: Londra Arquitetura (2019).

Junto as remodelações citadas, o restauro dos cinco


armazéns incentivará novos usos (comércio, serviços, lazer) que

Eliza F. Antochevis
- 166 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

contribuirão para o uso do espaço ao seu redor e também para o


turismo patrimonial, pois mostram um local destinado às
atividades portuárias que remonta ao século XIX. O Porto Velho
pode ser considerado um patrimônio da arquitetura, do urbanismo
e da engenharia.
Com relação aos sobrados e casas térreas, sabe-se que as
descaracterizações foram muito intensas. No entanto, em alguns
pontos da via existem edificações com fachada frontal e
volumetria preservadas, como na esquina da Travessa do Afonso
com a Rua Riachuelo. Embora não formem um conjunto em um
mesmo quarteirão, a mesma ausência de recuos e o mesmo
número de pavimentos conferem uma unidade estética (Fig. 7).

Figura 7 - A Rua Riachuelo próxima à esquina com a Travessa


do Afonso

Fonte: Autora (2019).

Eliza F. Antochevis
- 167 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

A requalificação da arquitetura poderá ser feita através da


criação de uma nova legislação municipal, que permita diferentes
níveis de preservação de acordo com o valor histórico e
arquitetônico do prédio. A ideia seria preservar o que existe de
autêntico e restringir grandes alterações externas, em fachada e
volumetria, para os prédios descaracterizados e também para
novos prédios que vierem a ser construídos.
Com relação às alterações e aos fatos históricos que não
são evidentes ao visitar o local, algumas ações de educação
patrimonial poderão ser realizadas. As novas gerações,
principalmente, poderão aprender sobre o valor histórico da rua e
de seu porto, em seu período de maior apogeu.
Finalmente, a última etapa da gestão patrimonial, chamada
de restituição, se dará pelos próprios frutos colhidos pelo turismo
patrimonial. A devolução que a população espera do processo de
revitalização é a transformação, por meio do turismo, de um
patrimônio esquecido em um patrimônio capaz de gerar recursos
para se viver (PRATS, 2006, p.76).
É possível imaginar uma Rua Riachuelo “viva”, bem
utilizada e segura, integrando o patrimônio construído ao
patrimônio natural. O resultado não será uma imersão total ao
século XIX, mas um misto de raízes históricas da cidade mais
antiga do estado com alterações contemporâneas já realizadas e
outras necessárias à população do século XXI.

Eliza F. Antochevis
- 168 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

REFERÊNCIAS

ANTOCHEVIS, E. F. Da Catedral à Câmara do Comércio: o


Centro Histórico do Rio Grande. RS (1755-1941). Dissertação
(Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Programa de Pós-
Graduação da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2015.
Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1S8vLIUQ-
jXj3h1yKHRVPOCHA0_DMu3Cq/view>. Acesso em: 10 abr.
2017.

D’EU, L. F. M. F. d’O., Conde. Viagem militar ao Rio Grande do


Sul. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1981.

DOMECQ, M. R. O Estado do Rio Grande do Sul. Barcelona:


Monte Domecq e Cia, 1916.

FIGUEIRA, M. C. O espetáculo turístico do patrimônio cultural


da humanidade: preservar para atrair os consumidores de
passado. Tese (Doutorado em Memória Social e Patrimônio
Cultural) - Programa de Pós-graduação da Universidade Federal
de Pelotas. Pelotas, 2016. Disponível em:
<https://wp.ufpel.edu.br/ppgmp/files/2017/05/TESE-
DOUTORADO-MICHEL-CONSTANTINO-FIGUEIRA.pdf>.
Acesso em: 15 jul. 2019.

LUCCOCK, J. Notas Sobre o Rio de Janeiro e partes


meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Villa Rica, 1987.

PRATS, L. La mercantilización del patrimônio: entre la economia


turística y las representaciones identitarias. PH Boletin del
Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico. Sevilla, n. 58, 2006.
Disponível em:
<https://www.iaph.es/revistaph/index.php/revistaph/article/view/2
176>. Acesso em: 15 jul. 2019.

Eliza F. Antochevis
- 169 -
RUA RIACHUELO: RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E PATRIMÔNIO

QUEIROZ, M. L. B. A Vila do Rio Grande de São Pedro (1737-


1822). Rio Grande: FURG, 1987.

SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Belo


Horizonte: Itatiaia, 1999.

TORRES, L. H. Memórias do Cais: o Porto Velho do Rio Grande.


Rio Grande: Editora FURG, 2009.

________________. Águas de maio: a enchente de 1941 em Rio


Grande. Rio Grande: Editora FURG, 2011.

Eliza F. Antochevis
- 170 -
GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

8 GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA


DISCUSSÃO SOBRE ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

Juliana Porto Machado36


Ronaldo Bernardino Colvero 37

8.1 Um breve relato do surgimento da guasqueria no Rio


Grande do Sul

O artesanato em couro cru, guasqueria, pode ser entendido


como uma forma de representação cultural, enraizada no espaço
rural e essencialmente unida ao trabalho de peão. A origem deste
ofício não é precisa, estima-se que entre os séculos XV e XVI com
a introdução do gado vacum em território brasileiro e latino
americano, por meio dos invasores espanhóis e portugueses,
iniciou-se o desenvolvimento desta produção artesanal.
No território do Rio Grande do Sul (RS) a vegetação
possibilitou a sobrevivência dos animais trazidos pelos europeus,
principalmente os equinos e bovinos. No século XVI a chegada
dos Jesuítas38 e a criação das reduções fez com que esses
animais fossem utilizados para alimentação, capturados e

36Doutoranda
em Memória Social e Patrimônio Cultural, UFPEL, Bolsista
FAPERGS, contato: julianamachado209@gmail.com
37Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-
RS). Professor Titular na Universidade Federal do Pampa – Campus São Borja. E-mail:
rbcolvero@gmail.com
38Os padres Jesuítas tinham como missão capturar e catequizar com base no
catolicismo, o maior número de sujeitos de origem indígena que conseguissem.

Juliana Porto Machado


GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

condicionados a um lugar específico, como grandes piquetes


demarcados por muros de pedras, cercas de madeiras ou por
meio de regiões alagadas. A expulsão dos padres jesuítas por
volta de 1641, fez com que o gado confinado fosse abandonado,
ocasionando a reprodução livre e a formação de grandes
rebanhos indômitos, formando as chamadas Vacarias del Mar39.
Em um salto temporal, temos no início do século XVIII a
concretização e fortalecimento das chamadas estâncias de gado,
que passam a utilizar o método da domesticação para a formação
de seus rebanhos. Esse processo de doma e captura dos animais
apresenta a necessidade de materiais equestres, que viriam
auxiliar o trabalho do peão40 na realização da lida campeira. Neste
período, a carne passa a ser o cerne da comercialização,
principalmente com a indústria do charque. E o couro não
comercializado começa a ser utilizado na criação de objetos
equestres, tendo como produtor o peão/guasqueiro.
Em uma sociedade em que a economia está fortemente
estruturada na pecuária, o peão será também guasqueiro,
construindo uma técnica de saber e fazer a qual irá transmitir para
outros sujeitos, aprendendo um novo ofício e formando memórias
e criando tradições. Esse ofício foi voltado para a criação de peças
de montaria, assim, no século XIX, as estâncias passaram a

39Referência de Luvizzotto (2010).


40Trabalhador do campo, no ecossistema Pampa, no Estado do Rio Grande do
Sul.

Juliana Porto Machado


- 172 -
GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

contratar o guasqueiro como profissional que produz


artesanalmente peças em couro cru. Sendo que, as
transformações sociais e econômicas que ocorreram na
Revolução Industrial no Rio Grande do Sul, ocasionaram uma
diminuição significativa na procura por guasqueiros,
principalmente pelo fato da agricultura e da pecuária começarem
a disputar espaço no mercado econômico com a produção fabril.
Assim, a trajetória da guasqueria está entrelaçada com a
do peão, que realiza o trabalho braçal da lida de campo, domando
animais bravios, utilizando o cavalo como transporte e como
companheiro de trabalho. Em uma relação constante entre
homem, animal e campo. Diante disso, em pesquisas já
realizadas41 foi observado que a guasqueria apresenta uma
estrutura técnica de criação de seus objetos, que permanece no
contexto atual. A mesma consiste na obtenção da matéria-prima42
(o couro-cru animal principalmente de bovinos e equinos), no
estaquear o couro para secar ao sol, no lonquear (retirar os pelos
da pele), no cortar as guascas (tiras de couro), no sovar (amaciar)
as guascas e por fim no tirar os tentos (as tiras de couro de
diferentes espessuras) para assim produzir as tranças. Esta

41 Pesquisa realizada durante a realização de Mestrado no Programa de Pós-


graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal
de Pelotas. A pesquisa intitulada “Artesanato em couro cru, guasqueria, na
cidade de Jaguarão-RS”, teve como objetivo geral investigar a produção e a
reprodução da guasqueria.
42 Originalmente era realizado por meio carneada e atualmente é através da
compra da peça de couro em abatedouros ou cooperativas da cidade.

Juliana Porto Machado


- 173 -
GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

estrutura técnica torna-se elemento essencial para a identificação


dos interlocutores como guasqueiros.
Contemporaneamente, na cidade de Jaguarão, este ofício
de marcas e memórias rurais se encontra inserido no espaço
urbano de um munícipio reconhecido por seu patrimônio
edificado43, mas que não possui políticas públicas efetivas para o
incentivo do setor artesanal44. Em relação ao caso da guasqueria,
existe uma certa invisibilidade que cerca essa prática.
Ao atuar no meio urbano, os guasqueiros acabam por não
serem percebidos e reconhecidos. Uma das causas é a
localização de seus ateliês de produção que, na maioria dos
casos, são em suas próprias casas. Dessa forma, acabam por não
possuírem um espaço de comercialização e divulgação das obras
que desempenhe a função atrativa para possíveis compradores e
visitantes. Por outro lado, a guasqueria é reconhecida por aqueles
que possuem relações com o espaço rural e com a lida de cavalos.
Esses sujeitos formam uma rede de compartilhamento comum em
que reconhecem o trabalho do guasqueiro e adquirem suas
peças.
No contexto jaguarense, temos esse homem rural que

43 O Conjunto Histórico e Paisagístico de Jaguarão (RS) foi tombado pelo


Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), no ano de 2011.
44 Destaca-se a Casa de Economia Solidaria (ECOSOL) e a Associação dos
Artesãos que estão sempre em uma constante troca de espaços o que
prejudica a criação de uma memória de lugar e até mesmo dificulta o “ver” dos
turistas que visitam a cidade.

Juliana Porto Machado


- 174 -
GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

devido as dificuldades que existem nesse meio, desde a


massificação dos maquinários agrícolas até a redução da
pecuária bovina e ovina, acaba por ser forçado a deixar o campo
e fixar-se no espaço urbano. A partir daí, precisa se adaptar a uma
nova realidade social, passando por dificuldades como a busca
por um emprego e tendo como experiência a bagagem cultural da
atividade de peão.
Com isso, esse sujeito busca alternativas para se manter
economicamente e começa a produzir a guasqueria para a
comercialização e se inserindo no mercado informal. Ele passa a
trabalhar com encomendas de objetos em couro cru voltados para
atividades do campo, principalmente a equestre, não se
desvinculando de suas tradições, apenas as adaptando a um novo
contexto.

8.2 As transformações da produção artesanal e do espaço


rural

O ofício artesanal quando pensado sob uma perspectiva


social apresenta-se ancorado na memória local e na tradição
cultural, uma vez que, essa prática foi por muito tempo a única
maneira de criar objetos. A natureza modificada pela mão humana
acompanha o tempo e estrutura um mundo simbólico com uma
grande quantidade de objetos produzidos manualmente.

Juliana Porto Machado


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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

A habilidade de produção artesanal está relacionada com a


força das mãos empregadas pelo artífice, ou seja, a força de
trabalho provém da habilidade do corpo e da mente em uma
constante sincronia de movimentos. O artesão domina todas as
operações de criação do objeto, cada ação está interligada em
uma sintonia completa, como menciona o guasqueiro J.G (2018)
“o artesanato não é uma criação perfeita, ele apresenta falhas”,
mas são essas que o transformam em algo único, diferente do
produto industrializado produzido em massa, que não carrega em
si valor simbólico.
A produção industrial desconfigura o modo de trabalho
artesanal, desestruturando a forma de transmissão da técnica do
saber-fazer e modificando a relação da mente e do corpo. A
criação de larga escala de objetos padronizados proporciona ao
mercado objetos com valor econômico mais baixo e
consequentemente afetam a comercialização artesanal e
contribuem para sua queda. Sem embargo, apesar da
desvalorização econômica da produção de artesanato esse pode
ser inferido como uma ferramenta de resistência cultural, um modo
de sobrevivência econômica e social.
As formas de criar artesanato se modificam principalmente
por fatores como a moda, valores estéticos atribuídos pela classe
social com maior poder aquisitivo e pela procura de massificar os
objetos originados pela produção manual. Nessa situação

Juliana Porto Machado


- 176 -
GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

desenvolvemos uma percepção de que a globalização ataca


diretamente os artesãos, direcionando-os através de um olhar
preconceituoso a um estado de marginalização. E submetendo-os
a uma rede de mercadoria ligada a um intenso processo de
mercantilização e internacionalização do artesanato. Em
consequência disso, o artesão se encontra explorado pelas
grandes lojas e por agentes mediadores de venda e assim os
lucros reais são ínfimos para os artesãos.
Apesar dos poucos ganhos o artesão ainda segue na
produção, concepção e execução de peças únicas. Com a
habilidade das mãos deixa a marca de seu estilo e técnica em
suas obras. Se voltarmos nosso olhar ao século XVIII, temos a
mudança do modo de produção manual para o industrial que não
se preocupa com uma composição artística do objeto, apenas,
com a quantidade de produtos produzidos em menor margem de
tempo, em um segmento de acumulação. Esse novo modo de
trabalhar afetou o formato de organização entre
produção/consumo, diferenciando-se do modelo tradicional até
então vigente. O próprio objeto se modificou, seu valor simbólico
e memorial se perdeu em meio a produção padrão. A relação
criação e criador, objeto e artífice foi substituída pela relação
homem/máquina/objeto/mercado.

Juliana Porto Machado


- 177 -
GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

A produção industrial45 elabora um processo de


reconfiguração de um objeto simples em um item de
ornamentação, para assim despertar o interesse de compradores,
criando em uma ilusão de valor simbólico em que o produto
industrial também, carrega em sua construção memórias, apesar
de serem produzidos em larga escala. Em um contínuo
procedimento de imitações, em que a reprodução mecânica
facilita a cópia de objetos a um estado de perfeição, porém, acaba
saturando o mercado com produtos descartáveis. Como
mencionou Arruda (1995) estamos inseridos em “um mundo que
valoriza as máquinas e as ciências ditas tecnológicas e não o
homem e sua humanidade” (ARRUDA, 1995, p. 01).
Se rememorarmos a situação do espaço rural, nos anos 60,
o governo brasileiro busca pela modernização do setor agrícola,
afetando e transformando diretamente a realidade social do
campo. Esse marco de transformação causou o estabelecimento
das relações capitalistas no modo de produzir/trabalhar,
ampliando a geração de recursos para os grandes latifundiários.
O projeto de modernização estava calcado em incentivos estatais
e na rentabilidade industrial. A partir desta concepção esse projeto
de desenvolvimento acabou por prejudicar o campesino, visto
que, reduziu progressivamente a procura por mão-de-obra,

45 John Hesketi (1998) irá dedicar em sua obra “Desenho Industrial” a


aprofundar-se nas consequências que a produção industrial causa no setor
artesanal.

Juliana Porto Machado


- 178 -
GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

ocasionando o desemprego e não minimizando esse como se


esperava, de certa forma, obrigando o trabalhador rural a buscar
alternativas de sustentação no meio urbano.
Em outro ponto de vista, Santos (2007) situa que a
modernização do setor agrícola no Brasil produziu um aumento
significativo na exploração da cultura de grãos, devido ao uso de
mecanismos tecnológicos e insumos, como herbicidas, fungicidas
e fertilizantes químicos, concomitantemente com novas técnicas
de manejo e tratamento do solo. Já no setor pecuarista
desenvolveu-se o melhoramento genético e de alimentos para a
criação animal. O emprego de tecnologias permitiu ao país
competir e comercializar seus produtos no mercado externo.
Nesse viés, as transformações do campo influenciaram no
êxodo rural, devido ao difícil acesso que o produtor de menor porte
teria para aproveitar essas revoluções tecnológicas, pois seus
produtos sem elas acabavam por perder valor e mercado,
causando a diminuição dos recursos do pequeno agricultor.
Em meio as transformações, o trabalhador rural acabou por
perder seu meio de subsistência, quando não atingiu o mínimo
para manter-se, inserindo-se em um mercado moldado por juros
e impostos altos, onde a aquisição de subprodutos para trabalhar
a terra se tornou uma meta inatingível. Consequentemente, houve
a desvalorização do valor do produto do pequeno agricultor. Em
casos como este, a solução encontrada por este produtor é vender

Juliana Porto Machado


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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

sua mão de obra para as grandes propriedades. São


trabalhadores depostos de suas terras pela agroindústria
(VARINE, 2013).
Ao seguirmos nessa trajetória, temos o pensamento de
Silva (1996) o qual discute que o rural não pode estar vinculado a
atividades pastoris, com o sistema de força braçal tradicional.
Defendendo que o sujeito social que se adapta para dominar os
códigos da tecnologia mecanicista agrícola, não se identifica mais
com a identidade de homem rural. Estaria assim o campo
passando por uma transfiguração de urbanização na qual, a
logicidade urbana estaria movendo-se em direção ao espaço
rural. Como também, o método urbano de modernização
direcionado para o setor agrícola, voltando-se para modificar a
zona rural, cuja mão-de-obra tecnológica não tenha sido
efetivada, dispensando assim a presença do peão/campeiro.
Essa transformação do espaço rural é uma grande
problemática salientada pelos guasqueiros de Jaguarão. O
desalento que os mesmos possuem em relação a essa situação
torna-se nostálgico quando se pensa que o peão, esse
personagem tão atuante nos campos e na tradição campeira, não
possa mais existir, ou tenha que se remodelar a esse novo rural.
Pois, o guasqueiro também é peão.
A questão do espaço rural aqui trabalhado parte da
percepção dos guasqueiros que nasceram nesse meio, vivendo

Juliana Porto Machado


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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

por muito tempo como peões/campeiros em grandes estâncias,


nas quais, por meio da lida diária do campo acabaram por
iniciarem-se na produção da guasqueria. Temos uma realidade de
mudanças contínuas que afetaram diretamente o sujeito que
trabalha de peão, que não possui suas terras, nem recurso e que
acaba por trabalhar para os grandes proprietários de terra.
O guasqueiro M.T (2018) conta que desde menino
trabalhou no campo junto ao seu pai, com quem aprendeu a lida
e a guasqueria. Ele afirma que não conhecia nada além da vida
no campo e que sempre se considerou peão, mas teme que com
o avanço da soja por entre os campos, a produção de gado
diminua ainda mais. Em consequência disso, as estâncias
precisam de menos trabalhadores, ocasionando o aumento do
desemprego. Em suas palavras “daqui a mais uns anos as
estâncias vão terminar, quem foi peão foi [...] essa é a realidade”.
Nesta mesma direção, o guasqueiro M.C (2018) menciona
que começou a ser peão muito jovem, aprendeu a lida observando
o seu pai e o ajudando quando voltava da escola a qual andava
mais de dez quilômetros para frequentar, caminhando até chegar
a estrada de terra batida para esperar o transporte; devido as
dificuldades existentes no espaço rural, o mesmo acabou por
desistir de seguir adiante com sua formação escolar e voltou-se
para o trabalho de peão:

Juliana Porto Machado


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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

Decidi ser peão, era o que eu sabia fazer [...] morar lá


fora era difícil, vim para a cidade, tentei ser pedreiro,
ronda e outras tantas coisas, mas não adiantava eu
sou peão, daí consegui um emprego de peão nessa
estância aqui, ela é mais perto da cidade, o que
facilita para vender minhas guascas, mas eu prefiro o
campo (M.C, 2019).

O referido guasqueiro reside no espaço da estância junto


com sua família, nas acomodações destinadas aos empregados.
Localizada entre o rural e o urbano, esta estância está cercada
pela urbanização. Confirmando ainda mais as previsões dos
guasqueiros do termino da profissão de peão. O guasqueiro M.C
(2018) irá acrescentar que ele é o único peão dessa propriedade,
ele faz todo o manejo e lida dos animais, em sua maior parte,
sozinho, pois em certos dias sua companheira o auxilia no que
pode. Com o tempo que ele tem livre, pratica a guasqueria, “[...]
eu acordo tomo o mate e guasqueio enquanto ela seva, chego na
hora do almoço e aproveito para trançar e a mesma coisa à noite,
qualquer tempo que aparece eu uso para fazer guasqueria” (M.C,
2018).
Por outro caminho, para o guasqueiro P.G (2018) que
sempre foi peão, parando de exercer o trabalho apenas quando
se aposentou, o peão/guasqueiro irá continuar a existir; pode até
ser menos do que no passado, mas que esse ofício sempre se
manterá, por causa da valorização do cavalo e as festas
existentes em entorno deste, destacando os rodeios: “em época

Juliana Porto Machado


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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

de rodeio e de Semana Farroupilha a procura por trabalho em


couro aumenta, se vê muito gauchito desfilando a cavalo pela
cidade [...] o cavalo é nossa tradição, isso não se termina assim”
(P.G, 2018).
Em meio as transformações sociais, temos esses sujeitos
que viveram grande parte de suas vidas no meio rural, exercendo
a profissão de peão46 e devido a diferentes fatores acabaram por
ter de abandonar este espaço e passam a ocupar a zona urbana.
Nesta eles buscam manter uma ligação genuína com suas
memórias e identidades, através da guasqueria. Mesmo o
guasqueiro M.C, que vive entre o campo e a cidade, sente a
necessidade de se reafirmar como peão de campo e guasqueiro.
Afirmando que prefere o campo, assumindo que o único benefício
de estar próximo a cidade é a facilidade para comercializar a suas
peças.
Na situação atual, podemos afirmar que essa visão do
espaço rural surge idealizada pelo passado que viveram. Desde
jovens já se identificavam como tal, uma vez que eram filhos de
peão e essa era a realidade que estavam inseridos. Naturalmente,
esse fato influencia diretamente na escolha destes sujeitos em
praticarem a guasqueria. O guasqueiro M.T (2018) argumenta que
seu filho nunca se interessou em aprender o ofício e acredita que

46Deve se destacar que, assim como a guasqueria, o ser peão está além de
uma profissão...: corresponde a forma de identificação destes sujeitos.

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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

isso ocorra pelo fato dele ter residido sempre no meio urbano e
que, apesar de ter um cavalo, não tem uma ligação verdadeira
com esse como um peão tem. Na mesma perspectiva, o
guasqueiro A.S (2019) relata que seu filho, que veio para a zona
urbana muito jovem, também nunca buscou aprender a
guasqueria tal como ele que aprendeu com seu pai que era peão
e lhe ensinou a ser guasqueiro e domador, nos tempos que
morava para fora47.
Ao observar as transformações pelas quais passou o meio
rural, percebe-se que essas afetaram diretamente a economia e o
modo de subsistência dos trabalhadores do campo, que
encontram na guasqueria uma forma de conservarem as
memórias do campo e também, como uma alternativa para se
manterem economicamente. A comercialização de guasqueria
não é algo que possa ser percebida em uma situação secundária
ou até mesmo negativa, ao contrário a comercialização possibilita
a existência desse ofício.
Sendo que, a cultura apresenta uma forte relação estrutural
com a economia, como aponta Benhamou (2013), pode-se notar
que o patrimônio em sua materialidade e imaterialidade é um bem
econômico, que gera emprego e renda para a sociedade. E que
no caso do ofício de guasqueria permite a sobrevivência desse
homem rural (peão) em sua nova realidade social.

47 Expressão utilizada para indicar espaço rural.

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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

8.3 A guasqueria como um possível recurso turístico

O guasqueiro contemporâneo que atua nos centros


urbanos é moldado pela influência contínua da cultura rural na
criação de suas obras. De toda forma, conserva-se o jogo da
memória entre passado e o presente, em que a tradição é a
mediadora na construção e na transformação identitária que o
guasqueiro sofre. O passado é a base de apoio que o possibilita
ir adiante e enfrentar os desafios impostos pela modernidade.
A memória irá influenciar diretamente na transformação da
identidade do guasqueiro e em suas tradições. Será por meio da
rememoração das memórias do transmissor/mestre do saber
fazer que o receptor/artífice irá atualizar suas técnicas para o
presente de sua nova realidade social, o que lhe possibilita a
comercialização de suas obras.
Com isso, tem-se a possibilidade da guasqueria ser
ferramenta de potencial econômico e também, um recurso
turístico que pode despertar interesse por parte dos turistas em
adquirirem peças artesanais em couro cru, movimentando o
mercado interno da cidade. Nessa direção, temos uma nova
perspectiva, o guasqueiro começa a criar um objeto que se
distancia da função original, de peças voltadas para o trabalho
com o cavalo e passa a produzir obras com outro significado, mas
que representam o objeto original, como, por exemplo a criação

Juliana Porto Machado


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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

de chaveiros em formato de boleadeiras ou ainda colares que


representam laços. À vista disso, permanece a técnica base de
criação do ofício de guasqueria, porém com uma nova concepção.
Essa nova concepção está baseada na mudança da própria
identificação da guasqueria que passa a ser compreendida como
artesanato, ou seja, respondendo a uma demanda de mercado
que busca uma renovação constante de produtos. Nesse viés de
pensamento, temos o artesanato tornando-se um produto cultural
rentável, adequando-se em sua maneira de criação e
comercialização de objetos.
Este artesanato deve ser compreendido como um ofício
heterogêneo carregado de intricadas memórias e tradições,
estruturando-se, na contemporaneidade, nas dimensões material,
imaterial, econômica e cultural (LIMA, 2005) e fazendo com que
tenha sua relevância a partir da promoção de renda econômica,
para assim possibilitar a estabilidade financeira de seus
praticantes e a inclusão social desses.
Todavia, o artesanato se desenvolve as margens da
produção industrial, em confronto direto com a lógica de
acumulação do capital. Sua presença está em uma constante
oscilação entre o fazer manual e o industrial. À vista disso, o
artesanato acaba por ser condicionado à necessidade de
transformar/modificar sua forma de produção e atuação para se
manter na sociedade contemporânea.

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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

Vale ressaltar que o ofício artesanal, também,


considerando a guasqueria, apresenta uma escala de produção
em série, porém está é pequena, e por mais que a técnica e o
estilo do objeto sejam semelhantes, ainda assim, o objeto será
único, pois se afasta do padronizado, já que apresenta no
momento de sua criação, a memória, a tradição, a identidade e o
contexto do artífice que irão influenciar na obra final.
Apesar da inserção de materiais produzidos
industrialmente na composição do objeto artesanal, esse ainda se
destacaria em seu diferencial simbólico e estético. Em um período
em que o massificado domina o circuito econômico as
singularidades de um objeto tornam-se elementos essencial e
necessários para a renovação do mercado consumidor.
A guasqueria apresenta-se como um artesanato tradicional
que se posiciona no mercado de forma ativa e criativa,
transformando-se com o tempo e os processos sociais. Assim, é
possível identificar a autenticidade dos objetos, a carga simbólica
e a realidade de ser algo único, que consegue manter-se a uma
certa distância das influências externas, principalmente no que
tange a técnica-base de transmissão e construção do objeto em
couro cru.
É através do mercado informal que os guasqueiros
comercializam suas peças, principalmente por meio de
encomendas. É aí que temos o sujeito criador e o sujeito

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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

consumidor do objeto, que irá influenciar na peça, porque fará a


escolha do tipo de trançado, do material e do formato do objeto
que deseja adquirir. A partir disso, o criador/artífice começará a
criar a obra encomendada.
Assim sendo, temos o mercado informal como um espaço
de sustentação, esse compreendido como afastado do rigor
burocrático do comércio formal, possibilitando uma liberdade de
atuação para os artesões/guasqueiros que comercializam suas
peças em seus ateliês. Contudo, ao compreendermos o
artesanato guasqueria como produção de renda para seu produtor
e um patrimônio tradicional, devemos considerá-lo também, como
um elemento que possui potencial para o desenvolvimento local
principalmente como recurso turístico:

O desenvolvimento local é um assunto de atores


locais[...] e o patrimônio é húmus[...], é um quadro,
[...] é um recurso para o desenvolvimento. [...] O
desenvolvimento local é um processo voluntário de
domínio da mudança cultural, social e econômica,
enraizado no patrimônio vivido, nutrindo-se deste
patrimônio e produzindo patrimônios (VARINE, 2013,
p. 18-20).

O desenvolvimento do turismo, por exemplo, tende a


promover um olhar para as singularidades das pequenas
comunidades, como a produção artesanal que ao ser reconhecida
causa um grande impacto cultural e socioeconômico na sociedade
local (BEZERRA, 2013), aguçando as memórias do passado

Juliana Porto Machado


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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

(saber-fazer) por meio da criação de objetos no presente, obras


que serão consumidas e compartilhadas por aqueles que trilharem
o caminho do turismo. Além disso, “la vinculación del patrimonio
con el turismo equivale a su introducción en el mercado y produce
cambios cualitativos en las activaciones y su evaluación” (PRATS,
2006, p. 73).
Para que as manifestações culturais como a guasqueria
sejam potencializadas, há a necessidade do desenvolvimento de
projetos e programas municipais de turismo voltados para a
incorporação e reconhecimento do patrimônio local48. Partindo de
um prévio mapeamento dos sujeitos que produzem artesanato,
reconhecendo a originalidade de seu trabalho, exclusivo e único e
também, buscando um espaço para que esses sujeitos atuem e
sejam percebidos em meio a paisagem urbana da cidade.
Dessarte, a paisagem rural da cidade também pode ser
potencializada como recurso turístico, principalmente pela grande
procura, que se nota na contemporaneidade de vivenciar a
natureza, de conhecer os territórios e lugares de memória do meio
campestre, incentivando a permanência do peão/guasqueiro no
campo, com o auxílio da comercialização da guasqueria, essa,
defendida neste ensaio, como um recurso cultural, econômico e
turístico.

48Pensando nesse patrimônio local além das grandes edificações arquitetônicas da cidade, mas
também o patrimônio imaterial do saber fazer popular e da materialidade do objeto, como o
artesanato.

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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

Importante frisar que os projetos de valoração do


patrimônio local devem ser construídos em conjunto com a
comunidade, em uma relação de troca entre poder público e
sociedade, considerando uma produção coletiva de
reconhecimento dos bens culturais, para que assim se efetive de
fato, pois: “o patrimônio não é nem intocável, e inalienável. Ele é
essencialmente consumível, destrutível, mas somente em função
do desenvolvimento. [...] ele também é capaz de gerar um novo
patrimônio” (VARINE, 2013, p. 39).
Uma vez que, um patrimônio isolado não existe por si só,
ele precisa de um contexto e de bagagem cultural (memórias) para
se manter em sociedade e ser ativo, deve ser reconhecido e
vivenciado pela comunidade, para que não se perca e se torne
desconhecido, como no caso da guasqueria.

8.4 Considerações finais

O artesanato, então, pode ser considerado um recurso


turístico cultural que surge dos hábitos, das crenças, do cotidiano
e dos saberes populares. Com foco na guasqueria, surge através
da criação de objetos materiais, carregados de imaterialidade, em
que o uso de ferramentas industriais é mínimo, utilizando o lugar,
o espaço, as memórias e o ambiente como matriz de inspiração.
A produção de guasqueria quando compreendida pelo viés

Juliana Porto Machado


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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

de inserção da cadeia produtiva do turismo, acaba por somar valor


a essa prática social, principalmente se reconhecermos esse
saber fazer da tradição campeira como um patrimônio cultural
local, que se transmitido aos visitantes (turistas) proporcionará
inúmeras experiências de caráter único a esses sujeitos.
Já, a guasqueria, quando pensada em uma dimensão
tradicional manifesta o patrimônio cultural produzido e acumulado
pelo guasqueiro, principalmente quando voltado para a
transmissão de técnicas tradicionais entre gerações. Os
guasqueiros quando adotam a produção de novos objetos que se
diferem da função original (lida campeira), com a criação de
chaveiros, joias e objetos ornamentais (artesanato artístico),
abrem um leque de oportunidades de comercialização de seus
objetos, pois os sujeitos que não possuem uma ligação com o
cavalo (meio rural) irão adquirir peças que remetem a esse, porém
com uma nova significação, que preza pelo estético, o técnico e o
criativo da obra.
A trajetória de vida dos guasqueiros é cercada de memórias
das experiências no campo e do trabalho de peão, que ainda
permanecem no presente de cada um, apesar das dificuldades
enfrentadas para exercer esse ofício. Esses sujeitos retomam a
este passado constantemente com sentimento de saudosismo,
por meio da pratica da guasqueria. Essa é algo que eles criam,
em certo sentido para eles mesmos, para estarem sempre

Juliana Porto Machado


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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

reafirmando suas identidades em meio a troca existente entre


artífice e objeto.
Portanto, cada peça criada corresponde a uma memória do
processo de criar, do porquê criar, como criar, para quem criar e
como ela será utilizada. Estabelecendo assim uma forte conexão
com todas as etapas de desenvolvimento da obra. De certa forma,
o guasqueiro é uma extensão do ser peão.
Por fim, a produção de guasqueria é uma forma de retirar
esses sujeitos da linha da invisibilidade e lhes proporcionar
protagonismo político, cultural e inclusive, turístico, tanto no
espaço urbano quando no rural, desde que haja investimento na
elaboração de projetos municipais de reconhecimento e valoração
da produção artesanal local.

Juliana Porto Machado


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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

REFERÊNCIAS

ARRUDA, G. Para que serve o ensino de História? Revista


História e Educação, Londrina, v. 01, n. 01, 1995.

BEZERRA, L. T. Turismo e favela: A influência do imaginário


para o consumo da comunidade Santa Marta /Rio de Janeiro.
Monografia (Graduação em Turismo) - Universidade Federal do
Rio Grande, 2013.

BENHAMOU, F. A Economia da cultura. Cotia, SP: Ateliê


Editorial, 2007.

HESKETI, J. Desenho industrial. Tradução: Fábio Fernandes.


2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

LIMA, R. G. Artesanato: Cinco pontos para discussão. Brasília:


Ministério da Cultura - Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular, 2005.

LUVIZOTTO, C. K. As tradições gaúchas e sua racionalização


na modernidade tardia. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2010.

PRATS, L. La mercantilización del patrimonio: entre la economía


turística y lasrepresentaciones identitarias. Investigación. PH
Boletín del Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico, n. 58,
mayo 2006.

SILVA, J. G. da. A industrialização e a urbanização da agricultura


brasileira. In: BRASIL em artigos. São Paulo: SEADE, 1995.

VARINE, H. de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do


desenvolvimento local. Tradução Maria de Lourdes Parreiras

Juliana Porto Machado


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GUASQUERIA, ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ECONOMIA, TURISMO E MEMÓRIA

Horta. Porto Alegre: Medianiz, 2013.

Juliana Porto Machado


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TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

9 TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

Márcia Della Flora Cortes 49


Vanessa Dias Santiago50
João Fernando Igansi Nunes 51

Desde os primórdios da humanidade o homem desloca-se,


muitas vezes, motivado por catástrofes, pela fome ou mesmo por
guerras. A necessidade de sobrevivência forçou a movimentação
de várias comunidades expondo o homem a diversas situações e
riscos, entretanto, possibilitando, também, a aquisição de novos
conhecimentos.
O desejo de viajar e conhecer lugares é fundamental para
os indivíduos de uma sociedade em particular, uma vez que é
diante do outro que, muitas vezes, reconhecemos aquilo que é o
nosso patrimônio. A experiência de observar a cultura de diversos
povos é motivadora para uma sociedade perceber que aquilo que
compõe o seu país é tão grandioso quanto aquilo que representa
a cultura e o patrimônio de outros países. O turismo, não restringe-

49 Doutoranda em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade


Federal de Pelotas – UFPel E-mail: marcia.cortes@iffarroupilha.edu.br
50 Mestranda em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade
Federal de Pelotas – UFPel E-mail:santiagovanessa@bol.com.br
51 Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontífice Universidade Católica de
São Paulo – PUC/SP. Professor Programa de Pós-Graduação em Memória
Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas – UFPEL. E-
mail: igansi@ufpel.edu.br

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

se, apenas, a arte de viajar e conhecer culturas, mas, sobretudo,


é uma ponte para o (re) conhecimento da identidade local.
Viajar para conhecer o patrimônio arquitetônico, histórico e
gastronômico causa fascínio e porque não “viajar” na própria
história dos livros? O turismo em bibliotecas públicas é certamente
uma viagem ao passado, uma experiência única através de
rastros documentais que compõe nossa história. O potencial
existente em acervos raros e especiais dessas bibliotecas amplia-
se quando os livros são considerados muito mais do que fontes
de informação mas, sobretudo, uma materialidade carregada de
memória.
Os livros, especialmente de coleções raras e especiais, são
objetos de arte, expressam a cultura gráfica de uma época e são
constituídos de elementos que enriquecem a memória social e a
própria história do livro. Com isso, são recursos e potenciais
produtos culturais para o turismo que podem ser explorados em
exposições, visto que sua preciosidade não pode ficar trancafiada
em uma sala a espera de um leitor ou pesquisador.
Além do mais, o patrimônio bibliográfico é capaz de mover
pesquisadores até a biblioteca de uma cidade contribuindo para o
consumo de serviços e para o desenvolvimento da economia
local. Ainda, algumas bibliotecas podem vender souvenirs,
gerando renda para a sustentação de seus acervos, o que é

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


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TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

fundamental para a preservação, conservação e manutenção dos


materiais sob sua guarda.
Logo, se tais coleções representam uma comunidade e a
ela pertencem, são patrimônios bibliográficos. Com isso, é
interessante questionar como um grupo de pessoas irá (re)
conhecer como seu, um objeto que passa a maior parte do tempo
as escondidas e trancafiado em uma sala, longe dos olhos de um
simples leitor?
A partir dessa indagação, o objetivo desse ensaio é refletir
sobre o potencial de bibliotecas públicas, seus acervos raros e
especiais como produtos para o turismo cultural, considerando
como aproximar o público dos mesmos. Como procedimento
metodológico foi realizada uma revisão de literatura sobre cultura,
patrimônio e turismo em bibliotecas a partir de autores como
Varine (2013), Benhamou (2016), Dias (2006) e Sant’Ana (2001).

9.1 Cultura, patrimônio e bibliotecas

Abordar as relações da cultura com o patrimônio é


fundamental para compreendermos o contexto do turismo em
bibliotecas na atual sociedade global. A cultura é dinâmica e
bastante ampla, inclui os mais variados aspectos que formam os
diversos grupos sociais, as artes, o conhecimento, os costumes
até valores e normas seguidos pela sociedade.

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


- 197 -
TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

O patrimônio resulta do engajamento humano, de suas


atividades, dos modos de fazer e criar. O pensamento humano, a
mentalidade, o conhecimento, a forma como se realiza uma
prática cultural e os aspectos simbólicos de uma época são vitais
para enriquecer os estudos sobre cultura. Logo, a cultura é
intrínseca ao património, parte integrante do mesmo.
Varine (2013, p. 19) alerta que o patrimônio é um meio que
a sociedade dispõe para gerar seu desenvolvimento: “é, na
verdade, o único recurso, juntamente com a população, que se
encontra em toda parte e que basta procurar para encontrá-lo”.
A análise dos potenciais usos do património, através de um
mapeamento daquilo que a sociedade compreende como seu, é
uma maneira estratégica para promover aqueles bens que não
são reconhecidos, mas merecem ser valorizados. As bibliotecas
públicas, particularmente, são fonte de conhecimento,
complementares ao ensino básico e superior e são capazes de
gerar capital cultural, sem o qual, a sociedade viveria
desconectada de seu passado, presente e até mesmo futuro e em
decorrência não poderia desenvolver-se economicamente.
No contexto social brasileiro, destaca-se que a biblioteca
pública, é um espaço cultural pouco frequentando pela maioria da
população. A essa invisibilidade, pode-se associar o imaginário
social de que as bibliotecas são espaços restritos a
intelectualidade e a cultura dita oficial. Além disso, acervos

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


- 198 -
TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

defasados desestimulam a atração do público. Observa-se que


nem sempre um bem é construído com a finalidade de vir a ser
um patrimônio, ele pode tornar-se relevante, tanto pela
representação que adquiriu, quanto pela função exercida na
sociedade, no momento e no contexto histórico em que foi criado.
Destaca-se que bibliotecas públicas tem como atividade fim
atender demandas de leitura, conhecimento e cultura do público
que inclui crianças, jovens, adultos e idosos de bairros dentro de
um município. Essas instituições denominadas bibliotecas
públicas podem ser mantidas pela iniciativa privada ou pública. No
caso das que possuem mantenedoras públicas, devem seguir a
legislação que proíbe qualquer tipo de venda e lucro uma vez que
a mesma entende que as bibliotecas são apenas prestadoras de
serviços. Entretanto, as bibliotecas públicas que são mantidas
pela iniciativa privada, têm a possibilidade de realizar comércio e
com isso, vender souvenires e produtos culturais.
A biblioteca, atualmente, é, sobretudo, um espaço
democrático que visa a disseminação do conhecimento a toda e
qualquer pessoa, inclusive aquelas que nunca frequentaram uma
escola. Existem outras maneiras de levar informação à sociedade
para além do suporte tradicional “livro” que também promovem o
conhecimento e a inclusão de todos, considerando-se que a
biblioteca é um agente da cultura e pode ser considerado um

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


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TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

patrimônio em um determinado município de acordo com as


relações que mantém com a sociedade a sua volta.
Sendo assim, pode-se afirmar que o patrimônio é uma
construção social, uma confluência de memórias que representa
a sociedade e permite investigar e aproximar o passado do
presente. Logo, bibliotecas públicas podem tornar-se bens que
possuem valor dentro de uma sociedade ao promover serviços
que são reconhecidos, além de criar laços de afetividade que
desencadeiam o sentimento de pertencimento. A reafirmação da
identidade está condicionada a esses vínculos estabelecidos pela
comunidade com a sua cultura, a qual figura como um atrativo
para o turismo. Dessa forma a relação entre patrimônio e cultura
é a base para o turismo cultural.

9.2 O turismo

O turismo é um fenômeno sociocultural amplo que consiste


no deslocamento humano de um local para outro,
independentemente do motivo que leva ao seu movimento. Ainda
é definido como uma prática de lazer que se sustenta na utilização
de recursos e serviços, e por isso, possui múltiplas dimensões:
econômica, social, cultural, educativa, ambiental e outras.
Para Dias (2006, p. 12-13), “o turismo apresenta algumas
ideias-força que estão diretamente relacionadas com o ideário

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


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TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

geral de nossa sociedade, entre as quais: desejo de fuga do


cotidiano, de conhecer novos povos, novos lugares, volta à
natureza [...]”. Corroborando com esse autor, Urry (1996) diz que
o turismo é uma maneira que as pessoas tem de fugir de seu
cotidiano, relaxar e encontrar uma nova realidade, diferente da
sua, carregando consigo expectativas que são pré-requisitos para
a escolha do local de viagem.
Na mesma perspectiva que o turismo, as bibliotecas podem
provocar o sentimento de abstração e fuga da realidade através
de suas obras. O livro, por exemplo, pode tornar-se um
impulsionador do turismo ao despertar a mente do leitor que,
fascinado por uma obra lida, decide conhecer o cenário real
imaginado a fim de obter uma experiência autêntica. Atraído pelo
enredo, pelos personagens ou por outros elementos que compõe
a obra, o leitor desloca-se para reencontrar na realidade a vivência
literária e os personagens encarnados, que sabe de antemão,
jamais existiram, mas resta o desejo de viver, mesmo que de
forma passageira, a magia trazida pela literatura.
Como um segmento do turismo cultural, o turismo literário
tem como princípio a literatura e por meio de obras literárias
transforma os locais fictícios de um livro ou imaginados pelo leitor
em lugares atrativos turisticamente. Dessa forma, os livros e os
autores são agentes promotores do turismo literário.
Apesar de poucas iniciativas, o Brasil possui potencial para

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TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

desenvolver o turismo literário. Para Salvador e Baptista (2011, p.


8), “desenvolver esta vertente do turismo cultural valoriza e
preserva a história, o patrimônio construído, o incentivo a leitura e
movimenta e desperta o poder intelectual das sociedades”. Essa
reflexão mostra que o turismo literário extrapola a leitura e
incentiva o pensamento crítico aproximando o leitor de espaços
reais.
O percurso literário pode proporcionar ao visitante uma
experiência autêntica e transformadora, onde o turista relaciona
elementos vistos no trajeto com o referenciado na obra ficcional.
Além disso, pode simplesmente conferir um momento alegre e
divertido, descomprometido com aspectos culturais. O turismo
literário apresenta benefícios aos destinos turísticos, tais como:
a) Valoriza a cultura e fortalece tradições;
b) Promove o patrimônio e os diversos elementos tangíveis
e intangíveis presentes em um local;
c) Provoca o sentimento de orgulho e pertencimento nos
moradores que são procurados a partir de referências culturais
presentes nas obras literárias.
Dessa forma, a interconexão da literatura com diversos
aspectos culturais de um povo além de incentivar a leitura,
preserva e valoriza a história e motiva o deslocamento dos
leitores. O turismo literário deverá interagir com outros segmentos
patrimoniais e identitários de um local, como a arquitetura, a

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


- 202 -
TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

paisagem, a linguística, o regionalismo, dentre outros, a fim de


propiciar ao turista uma experiência cultural e ao mesmo tempo
criativa.
Assim, ao relacionar-se com outros elementos locais, o
turismo cultural permite o desenvolvimento econômico e social de
uma comunidade, com a criação e comercialização de produtos,
associados a bens e serviços fundamentais como rede hoteleira,
restaurantes e transportes. Tal proposição pressupõe a
conscientização da população quanto a preservação de seus
bens, uma vez que o patrimônio é uma fonte de sustento que
proporciona a geração de renda e emprego à sociedade.
No turismo cultural, o produto turístico é a própria cultura
local que proporciona uma experiência autêntica ao turista,
provocando uma sensação inovadora em relação ao que está
habituado em seu cotidiano. O produto turístico começa a ser
constituído desde que o viajante opta em fazer uma viagem até o
seu retorno à cidade de origem.

9.3 Preservação e economia patrimonial em bibliotecas

Considerando-se que o patrimônio é uma construção


social, que envolve uma comunidade e representa os seus mais
preciosos bens, então pode-se supor que o conhecimento

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TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

registrado, tão precioso quanto o suporte livro que guarda a


informação tem potencial para gerar economia.
Entre as características que conferem raridade a uma obra,
a unicidade é uma das que elevam o valor de um exemplar uma
vez que não se encontrará outro com as mesmas características
e representações. Segundo Benhamou (2016, p. 30) “no caso de
bens únicos, a não preservação constitui uma perda irreversível,
pois só podem ser encontrados substitutos imperfeitos, no melhor
dos casos, dos bens ameaçados pelo tempo”. Corroborando com
o autor, muitas vezes, em bibliotecas ignora-se a real situação de
desgaste de livros, bens duráveis, negligenciando-se e adiando-
se processos de restauração que deveriam ser urgentes para
manter a integridade dos mesmos.
Com isso, perde-se a história e a memória, visto que o
tempo e todos os agentes físicos, químicos e biológicos não
deixam de agir sobre o patrimônio. Um livro que é corroído por
traças, por exemplo, rapidamente poderá perder grande parte de
suas informações comprometendo e impossibilitando a
restauração do conteúdo informacional.
A partir do momento em que existe o reconhecimento do
valor dos acervos para uma comunidade, tem-se a possibilidade
de transformar aqueles objetos em verdadeiros produtos
turísticos. Logo, o patrimônio bibliográfico poderá ser inserido no
rol de produtos a serem consumidos turisticamente e cabe a

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TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

instituição detentora de acervos estabelecer políticas de acesso


com regras específicas para a exposição de livros que não
ameacem a conservação e proteção dos mesmos.
Sendo assim, ao se realizar exposições torna-se
necessário alternar as obras expostas a fim de não prejudicar a
sua integridade física visto que estarão sofrendo efeitos da
iluminação, temperatura, umidade, ventilação entre outros. Ao
adquirir um ticket para visita de obras consideradas valiosas, uma
pessoa estará consumindo um produto cultural autêntico e a sua
satisfação irá depender de um conjunto de fatores, como a
maneira com que o exemplar é disposto, a tranquilidade que o
visitante tem para apreciar o livro, sem congestionamento e os
ruídos a sua volta.
Cabe lembrar que nas bibliotecas, o turista ou visitante local
poderá ao final do roteiro, sentar-se em uma sala para tomar um
café e adquirir um pequeno souvenir para levar de lembrança, tais
como marca-páginas, camisetas de escritores, chaveiros da
instituição, quadros com a imagem de personagens literários,
bibliocantos decorados, entre outros objetos que compõe o
espaço de uma biblioteca.
Conforme Benhamou (2016), embora o patrimônio não
possua preço, ele possui valor e a partir disso entende-se que o
bem possibilita algum benefício, provoca reflexões, sentimentos e
agrega conhecimento aos visitantes. Existem serviços e produtos

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- 205 -
TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

que são ofertados e possuem um preço. Portanto, a possibilidade


de arrecadar fundos, a partir de uma cobrança, mesmo que
reduzida, será útil para a preservação de acervos bibliográficos
por exemplo.
No entanto, por outro lado, podemos pensar que tarifar a
cultura vai contra o princípio da disseminação do conhecimento
pregado por bibliotecas e centros de cultura, selecionando-se
ainda mais o público visitante. Por isso, é possível uma alternativa:
a instituição poderá oferecer uma exposição de maneira gratuita
em um dia da semana e oportunizar que públicos especiais, tais
como estudantes e pessoas carentes possam desfrutar dos
mesmos serviços e produtos. Essa medida não excluiria nenhum
potencial visitante em conhecer aquilo que está sendo exposto e
cativar as pessoas da mesma maneira.
Muitas instituições, por vezes, têm dificuldades em manter
a integridade de seus acervos, seja por motivos de falta de
recursos humanos qualificados, seja por falta de verba suficiente
para investir nos materiais para sua conservação e restauração.
Essa problemática abrange muitas bibliotecas públicas brasileiras
que acabam impossibilitadas de investir na real salvaguarda de
seus materiais.
A fragilidade dos acervos é determinante para que medidas
sejam tomadas para sua preservação, entretanto diante de tantas
dificuldades, as bibliotecas por vezes não têm condições de tomar

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- 206 -
TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

as atitudes cabíveis e necessárias para a manutenção do acervo.


Assim, a realização de exposições e a inserção dos acervos raros
e especiais em roteiros turísticos pode reforçar a economia
patrimonial promovendo e auxiliando em seu sustento.

9.4 Potencial turístico de bibliotecas: exposições de acervos


raros e especiais

Porque realizar exposições de acervos raros e especiais?


A partir dessa indagação podemos pensar que as bibliotecas
públicas primeiramente tem um compromisso social de promover
o acesso a toda e qualquer fonte bibliográfica. Em se tratando de
acervos raros e especiais, que compreendem obras consideradas
de maior valor, é necessário uma série de cuidados, como
segurança, ambiente adequado para não prejudicar a obra, e
ainda devem ser levadas em conta questões como luminosidade,
temperatura, umidade e ventilação.
Considerando-se a evolução dos processos de fabricação
dos livros, é evidente que um exemplar com tantas características
artesanais desperta mais curiosidade que aqueles que resultam
de uma produção em grande escala. Além de ser um objeto útil,
que por vezes passou por mãos que revolucionaram a história,
são impregnados de memória, tanto em sua materialidade quanto

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- 207 -
TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

em seu conteúdo, e, portanto, há motivos para serem tão


valorizados e reconhecidos como em uma exposição.
Os responsáveis pela guarda de um acervo reconhecido
como patrimônio bibliográfico de uma instituição e de uma
comunidade devem sobretudo preservar, dar visibilidade e
promover o conhecimento pela sociedade a qual pertence.
Atitudes que favoreçam a identificação de um acervo com a
comunidade local envolvem um papel ético da instituição
detentora de tais bens e muito mais que a simples guarda, é trazer
a comunidade para dentro da biblioteca.
Guardar um acervo bibliográfico em um sentido restrito é
prolongar a vida útil dos livros, dando a ele todas as condições
necessárias para a sua preservação material. Em um sentido
amplo, preservar vai além de livrar o acervo dos malefícios
causados pelos agentes físicos, químicos e biológicos que os
ameaçam, inclui inserir o patrimônio bibliográfico na memória, o
que significa provocar ressonância, estímulos no visitante que ao
observar um livro irá salvá-lo do esquecimento ou ampliar as
possibilidade de uso daquele exemplar.
Batista (2010, p. 199, grifo do autor) faz um alerta
importante sobre a situação de acervos raros de bibliotecas
brasileiras: “o livro considerado raro no Brasil é armazenado em
salas e sub-salas, como cofres de preciosidades, de tal forma que
dificilmente se tem acesso ao seu conteúdo. Justifica-se isso

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- 208 -
TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

como sendo um sistema de defesa contra o ‘mau usuário’”.


Corroborando com essa intrigante e lamentável realidade, temos
a morte do livro, que em nome da “preservação” e do sentimento
de posse de alguns gestores, ficam trancafiados e praticamente
esquecidos, uma vez que não podem ser apreciados, nem lidos.
Uma forma de possibilitar o visitante (re) conhecer um
patrimônio bibliográfico é expondo esse material, trilhando-se um
roteiro interno na biblioteca com obras que referenciam a própria
região e fazem o visitante ficar curioso também pela leitura da
obra. Ao ter contato com o patrimônio bibliográfico, o visitante
poderá:
a) Perceber de uma nova forma o acervo;
b) Despertar o sentimento de pertencimento;
c) Reconhecer como “seu” aquele patrimônio;
d) Valorizar a produção gráfica nacional;
e) Reconhecer a sua identidade;
f) Interessar-se por realizar o turismo literário.
Ao passar por uma exposição de livros, o turista entrará em
contato com a literatura, com a cultura local, com o conhecimento
e terá observado a grandiosidade cultural de uma biblioteca. A
exposição, pode ser uma amostra daquilo que compõe o acervo
instigando a escolha do próprio leitor por ler ou apenas observar
outras obras.

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


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TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

Nesse contexto, bibliotecas detentoras de acervos raros e


especiais poderiam utilizar seus livros como produtos turísticos a
ser expostos em roteiros no interior da biblioteca. Com isso, uma
taxa de visitação poderia ser cobrada ou mesmo uma colaboração
voluntaria poderia ser realizada. Essa cobrança seria uma
maneira viável de reverter a verba para manutenção do acervo e
suas necessidades, com isso a economia patrimonial a partir do
turismo iria contribuir para a salvaguarda do acervo.
A biblioteca como uma instituição que gira em torno de
serviços relacionados a disseminação da informação, mesmo sem
recorrer a incentivos lucrativos precisa satisfazer as necessidades
sociais. Entretanto, necessita de investimentos a fim de manter a
qualidade de seus serviços e ao mesmo tempo inovar e
acompanhar as transformações que advém das novas
tecnologias. É pertinente repensar e reavaliar maneiras para que
a biblioteca mantenha a sua sobrevivência e, com isso, tem-se a
opção de criar roteiros turísticos e inserir produtos do turismo em
bibliotecas uma vez que é um espaço de lazer e entretenimento.
Destaca-se que existem bibliotecas que, embora possuam
no nome a palavra pública, são instituições filantrópicas, mantidas
por associados e que poderiam aplicar a situação descrita,
utilizando o turismo para melhorar as condições de preservação e
conservação de seu acervo.

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


- 210 -
TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

Com isso, realizar exposições em acervos raros e especiais


é benéfico tanto para a instituição que cumpre com a sua função
social e de disseminação de seu patrimônio, quanto para a
população que é oportunizada em (re) conhecer aqueles bens que
pertencem a história de sua comunidade.
Os acervos raros e especiais constituem o local de maior
valor dentro de uma biblioteca, seja pelo seu conteúdo ou pela sua
materialidade. Cabe destacar que a raridade de livros é diferente
para bibliófilos e bibliotecários. Essa distinção é interessante para
compreender-se como constituem-se os acervos de tais
categorias, pessoas particulares e instituições públicas.
Para colecionadores, quanto menor o número de
exemplares de uma edição e maior a dificuldade em encontrar,
mais raro será. Ainda, conforme Sant’Ana (2001) um erro
tipográfico acidental poderá torná-lo valioso. Os bibliotecários
estão mais preocupados com a data de criação do livro, a
importância histórica e o conteúdo da obra.
Considerando-se a concepção de raridade de ambas
categorias, as bibliotecas poderão formar os roteiros turísticos
inspirados nas referidas características. Explorar esses acervos e
valorizar o património, tendo em vista a preservação da memória,
é reconhecer o potencial para o desenvolvimento turístico que ali
se encontra.

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TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

Muitas bibliotecas, ainda hoje, possuem um ambiente


austero e pouco acolhedor, atuando na contramão da boa
receptividade. O acolhimento é um importante fator para a atração
de usuários que ao serem bem recebidos terão vontade de
retornar, considerando-se que bem acolher envolve atenção,
gentileza e também faz a imagem de uma instituição bibliotecária
ser reconhecida. Além disso, é uma maneira prática de usuários
divulgarem através da conversa boca a boca com outras pessoas,
facilitando com isso, a ampliação do público.
Destaca-se que placas de localização poderiam incluir a
biblioteca em um roteiro local a fim de direcionar o público e,
principalmente, promover a biblioteca dentro do circuito de bens e
patrimônios da cidade. Afinal, as bibliotecas guardam a memória,
documentos e registros históricos que constituem patrimônios
documentais e bibliográficos.
Atualmente, a pluralidade de identidades nacionais
desperta o interesse de diversas pessoas em conhecer a
diversidade cultural existente nos lugares mais longínquos ou
tidos como exóticos. Nesse contexto, o turismo tem contribuído
como um fenômeno socioeconômico, preocupado com a
sustentabilidade e com a preservação dos vários tipos de
patrimônio.

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


- 212 -
TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

9.5 Considerações finais

Acervos raros e especiais são a memória documentada que


possuímos do passado e, além de rastros para acesso à história,
possuem um valor capaz de provocar o sentimento de
pertencimento. Logo, um acervo que representa a história de uma
localidade precisa ser visto, (re)conhecido, apreciado e
disseminado entre a comunidade, pois a ela pertence.
Com isso, é preciso que a informação sobre o patrimônio
bibliográfico chegue a todas as pessoas e não fique trancafiado
apenas no meio académico e nas salas de bibliotecas, só assim
estará salvo do esquecimento. Embora muitas bibliotecas
ofereçam o serviço de visita guiada de forma gratuita, é possível
que a instituição crie regras e critérios para oferecer roteiros
turísticos com livros raros e especiais e juntamente com outros
serviços, como souvenirs a venda, arrecadar verbas para a
manutenção, preservação e conservação do património
bibliográfico e documental.
O patrimônio bibliográfico, assim como outros tipos de
patrimônio, deve buscar por meio do turismo tornar-se sustentável
e inserir obras de acervos raros e especiais em roteiros visto que
são potenciais recursos a serem transformados em produtos
turísticos.
Portanto, a relação entre o turismo e patrimônio

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


- 213 -
TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

bibliográfico, presente em bibliotecas, acervos raros e especiais é


promissora. A gestão patrimonial ao incluir o turismo, se bem
concebida e envolver a comunidade como um todo, irá gerar
benefícios que vão desde a geração de renda ao reconhecimento
do patrimônio local.

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


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TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

REFERÊNCIAS

BATISTA, A. H. Estudo, catalogação e análise de obras raras da


biblioteca da faculdade de direito da UFPEL, datadas até 1840. In:
SEMINÁRIO INTERNACIONAL MEMÓRIA, PATRIMÔNIO E
TRADIÇÃO, 4, 2010, Pelotas. Anais [...] Pelotas, 2010. Disponível
em:
http://repositorio.ufpel.edu.br/bitstream/123456789/225/3/Estudo,
%20catalogacao%20e%20analise%20de%20obras%20raras%20
da%20Biblioteca%20da%20Faculdade%20de%20Direito%20da
%20UFPel,%20datadas%20ate%201840.pdf. Acesso em: 30 jul.
2019.

BENHAMOU, F. Economia do patrimônio cultural. São Paulo:


Sesc São Paulo, 2016.

VARINE, H. de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do


desenvolvimento local. Porto Alegre: Medianiz, 2013.

DIAS, R. Turismo e patrimônio cultural: recursos que


acompanham o crescimento das cidades. São Paulo: Saraiva,
2006.

SALVADOR, D.; BAPTISTA, M. M. Turismo cultural e origens


de um povo: uma rota turística literária para a cidade de
Fortaleza, baseada na obra “Iracema”, de José de Alencar. [2011].
Disponível em: http://estudosculturais.com/congressos/europe-
nations/pdf/0167.pdf. Acesso em: 23 jun. 2019.

SANT’ANA, R. B. Critérios para a definição de obras raras.


Revista OnLine Bibl. Prof. Joel Martins, Campinas, v. 2, n. 3, p.
1-18, jun. 2001.

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


- 215 -
TURISMO EM BIBLIOTECAS: UMA VIAGEM AO PASSADO

URRY, J. O olhar do turista: lazer e viagens nas sociedades


contemporâneas. São Paulo: SESC, 1996.

Márcia D. F. Cortes Vanessa D. Santiago João Fernando I. Nunes


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PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

10 PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO


MUITO ALÉM DO VALOR SIMBÓLICO

Mariana Estima Silva52

10.1 A preservação e o “simbólico”

Toda a decisão de salvaguardar determinado prédio ou


conjunto edificado deveria prever a necessidade de atualização
dos mesmos. O “proteger” no intuito de congelar uma memória,
acaba por não trazer grandes benefícios, nem ao imóvel, nem ao
entorno e nem mesmo à sociedade.
É preciso que fique clara a importância das ações que
promovem a proteção do patrimônio imóvel histórico e cultural. O
problema está no modo como muitas destas “ações” são
realizadas e seu verdadeiro significado. O fato de decidir que, a
partir de determinado momento, uma edificação não poderá mais
passar por alterações que a descaracterizem, é um tanto, quanto,
prepotente. Porque preservar um prédio é congelá-lo dentro de
um período histórico e não permitir que este se atualize, para que
siga sendo usado pela mesma sociedade que o manteve até o
presente momento?

52Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio


Cultural pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel. E-mail:
estimasilva.m@gmail.com.

Mariana Estima Silva


PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

Existe uma diferença entre preservar uma edificação para


garantir que seja conservada, tamanha sua importância, e
preservar para garantir uma lembrança simbólica de um tempo
que já passou. O que está por trás da necessidade de manter
prédios de épocas passadas, que fazem parte da história de uma
sociedade, intactos e alheios à passagem do tempo a partir de
uma outra determinada época?
Em um mundo ideal, a salvaguarda de um prédio, com valor
histórico ou cultural, seria idealizada no intuito de enaltecer a
importância que este desempenha sobre um determinado local,
para determinada sociedade, dentro de um determinado contexto.
Entretanto, sabe-se dos benefícios que municípios, estados e
países recebem com a patrimonialização, e está aí a grande
questão.
A decisão de preservar, tão bem estudada e apresentada
por profissionais do patrimônio, acaba por chamar a atenção dos
que possuem segundas intenções. Está clara a finalidade de
inserir imóveis históricos dentro de modelos pré-estabelecidos,
para que o Estado consiga captar recursos externos e influência
política, valendo-se equivocadamente de atividades turísticas.
A partir desse ponto, começa a bola de neve. Em grande
parte das vezes, os recursos recebidos a partir do processo de
salvaguarda são utilizados de maneira equivocada, sem

Mariana Estima Silva


- 218 -
PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

planejamento a longo prazo e não garantindo a conservação dos


prédios, que seria o objetivo principal da preservação.
Outro ponto que vale ser lembrado é a própria escolha dos
prédios tombados ou inventariados. Em grande parte dos casos,
a decisão é feita por uma pequena parcela que não está inserida
no contexto daquele lugar. Esse processo não dá para a
sociedade a sensação de pertencimento ou de responsabilidade
por aquele patrimônio, já que não foi uma escolha dela, não
garantindo sua conservação.
Além disso, quando um bem imóvel é relevante a ponto de
se idealizar sua preservação, é porque ele apresenta importância
para determinado contexto e não pode, de maneira nenhuma, ser
colocado em um modelo pré-estabelecido. Isto vem acontecendo
com frequência nas ditas “revitalizações urbanas”, com a criação
de cenários que pararam no tempo, transformando cidades em
seu próprio museu para incentivar o turismo, como diz Jeudy
(2005) no livro Espelho das Cidades.
A crítica nesse ponto, não é ao turismo em si, mas à forma
como a espetacularização do patrimônio edificado é criada, dando
aos prédios a função de cenário estagnado e que pode ser
consumido de maneira rápida por pessoas que não estão ali
inseridas, ainda concordando com Jeudy (2005).
A solução não é deixar de se pensar nas questões
econômicas ligadas ao patrimônio e pensar somente no aspecto

Mariana Estima Silva


- 219 -
PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

simbólico. Pelo contrário! A solução é pensar na cadeia


econômica ligada à preservação do patrimônio, a fim de se libertar
do preconceito de que ele não pode ser associado à economia.
No momento em que o patrimônio edificado e o desenvolvimento
local puderem ser considerados em conjunto, grandes questões
que hoje estão engessadas, poderão ser resolvidas.

10.2 O preconceito por trás do termo “economia do


patrimônio”

Manter um prédio tombado é bastante difícil, sendo motivo


para o abandono de diversas edificações por parte de seus
proprietários. Além disso, muitas destas construções pertencem
ao Estado ou Instituições Públicas, que não direcionam verbas
significativas para a cultura em geral. E quando se abordam essas
questões, também se aborda a economia que envolve o
patrimônio histórico edificado.
A economia está presente no patrimônio porque ele faz
parte da sociedade. O prédio só está ali porque foi construído e
para isso existiu também uma atividade econômica. Um exemplo:
os Casarões 2, 6 e 8 no entorno da Praça Coronel Pedro Osório,
na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, são hoje
tombados como Conjunto Histórico pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. O conjunto é fruto do auge

Mariana Estima Silva


- 220 -
PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

econômico da cidade, no período das charqueadas53, no século


XIX. Esses prédios existem porque havia uma atividade geradora
de riqueza para determinadas famílias, o que permitiu que fossem
construídos nos mesmos moldes das edificações ecléticas da
França. Logo, existem em razão de atividades econômicas. O
patrimônio está atrelado ao econômico!

Figura 1 - Conjunto de Casarões tombados na Praça Coronel


Pedro Osório

Fonte: Autora (2019).

53Empresas produtoras de um tipo de carne seca chamada de “charque”, cuja


economia balizou a formação sociocultural e o desenvolvimento econômico da
cidade de Pelotas, entre final do século XVIII e meados do século XX, atingindo
seu apogeu na segunda metade do século XIX.

Mariana Estima Silva


- 221 -
PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

Outro exemplo na cidade de Pelotas: a antiga Casa da


Banha – tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
do Estado do Rio Grande do Sul – IPHAE – foi construída como
quartel-general durante a Revolução Farroupilha (originada por
questões econômicas), servindo posteriormente para outros usos,
como Jornal Diário de Pelotas, além de comércios e pousadas.
Aqui também o patrimônio está atrelado a atividades econômicas!

Figura 2 - Antiga Casa da Banha, tombada pelo IPHAE

Fonte: Autora (2019).

Mariana Estima Silva


- 222 -
PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

Porque então não pensar no patrimônio como ator


importante na economia local? A questão está em como e por
quem esse processo tem sido pensado. Voltando um pouco no
texto, sabe-se que a escolha por determinados imóveis é, em
grande parte das vezes, pensada por pessoas e entidades
externas ao contexto dos mesmos, o que já provoca certo
desprezo por parte da sociedade e de agentes do patrimônio.
Além disso, a salvaguarda vem geralmente pensada como uma
atração turística, conforme já mencionado também. Esses dois
pontos são os principais responsáveis pela existência do
preconceito com questões econômicas associadas ao patrimônio.
Enfim, a forma como bens culturais imóveis podem
fomentar a economia local é que está equivocada. Nem só de
turismo vive o patrimônio:

O patrimônio, independentemente de sua antiguidade


ou de seu valor histórico ou artístico, só vale pelo uso
que dele pode se fazer, como residência de seus
proprietários ou por meio da exploração econômica
(visitação, hotelaria, moradia de aluguel, implantação
de empresas). (VARINE, 2012, p. 24)

Ou seja, espaços que são mantidos em uso, dentro de uma


escolha condizente com o contexto da sociedade e com uma
gestão prevista e bem planejada, são conservados com maior
facilidade. Não seria melhor pensar em novos usos mais
diversificados, notando as necessidades das pessoas que os

Mariana Estima Silva


- 223 -
PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

utilizam diariamente e assim desenvolver economicamente a


cidade? O turismo seria talvez uma consequência, que daria
continuidade ao desenvolvimento econômico da região. Claro que
para isso seria necessária a atualização destas construções,
pensando em sua conservação, mas também no conforto e na
qualidade para a execução das tarefas de seus novos usuários.

10.3 Os “novos usos” e o patrimônio

A sociedade passa por mudanças e as cidades são o palco


delas. O patrimônio imóvel é fruto dessas mudanças e, com o
passar do tempo, adquire significados para aquele lugar e aquelas
pessoas. Patrimonializar e salvaguardar é a demonstração da
importância daquela construção em seu contexto, justificando a
necessidade de conservação da mesma. Apesar disso, e sendo
repetitiva, não deve ficar estagnado e congelado, pois ele é, e
deve continuar sendo, parte das mudanças que ainda ocorrerão:

O cuidado de preservação deve harmonizar-se com


o de responder às necessidades do desenvolvimento
da cidade. De um lado, o patrimônio perde parte da
autenticidade pela necessidade de construção e
modernização. De outro, a política constitui um freio
ao desenvolvimento urbano, o abuso na preservação
monumental transforma os centros urbanos em
museus [...]. (BENHAMOU, 2005, p. 87)

Mariana Estima Silva


- 224 -
PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

Sendo assim, a preservação de prédios históricos deveria


ter como intuito a garantia de que o prédio siga presente na cidade
não só “contando sua história”, mas “escrevendo” também. Para
isso, é preciso que os usos dados a estes prédios sejam
adequados às necessidades da sociedade e às suas
características construtivas.
São conhecidas as dificuldades de adaptação desses
prédios às necessidades de usos atuais, já que existem diferentes
equipamentos e modos de ocupá-los, além de normas de
preservação para que não sejam descaracterizados. Do mesmo
modo, para que compense a sua utilização em relação à uma nova
construção, falando também em questões econômicas, é preciso
que o prédio ainda apresente valor de mercado e boas condições
de uso a seus ocupantes. É então que os profissionais do
patrimônio devem entrar em ação. Essa decisão deve ser
realizada interdisciplinarmente, por arquitetos, urbanistas,
engenheiros, agentes patrimoniais, historiadores, a sociedade,
dentre outros.
Equívocos no modo de utilizar prédios com valor histórico e
cultural podem causar efeito rebote à preservação. A decisão de
salvaguardar para a criação de atração turística, acaba por excluir
a sociedade local do patrimônio que antes lhe pertencia, gerando
dificuldades maiores com sua conservação e, até mesmo, ações
de vandalismo. Por outro lado, a escolha por usos não

Mariana Estima Silva


- 225 -
PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

condizentes com as características construtivas do prédio também


pode provocar mais danos que melhorias. A utilização de alguns
prédios como museus por exemplo, sem pensar nas exigências
quanto a determinadas condições de microclima para reservas
técnicas, dificulta a execução adequada das tarefas, provocando
problemas com sua gestão e por vezes, até seu abandono.
Todas as decisões exigem estudo, conhecimento do
contexto local e pensamento a longo prazo. Sem domínio dessas
questões o patrimônio imóvel, na forma de prédios com valor
histórico e cultural, não pode ser preservado e o desenvolvimento
local não pode ser incentivado:

Não se deve esperar uma rentabilidade econômica


imediata e direta desse tipo de iniciativa. Mas existe
o que poderíamos chamar de “retorno do
investimento” não financeiro: o desenvolvimento local
acrescenta valor ao capital patrimonial, contribuindo
para o enraizamento de famílias no território. Enfim,
o patrimônio “serve” realmente para alguma coisa e
justifica sua existência, bem como os esforços e
sacrifícios para mantê-lo (VARINE, 2013, p. 28).

Como resumo desse pensamento, e concordando com


Edgar Morin, “tudo aquilo que não se regenera não tem futuro”
(UNESCO, 2010).

Mariana Estima Silva


- 226 -
PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

10.4 A salvaguarda e o desenvolvimento

Hugues de Varine, em seu livro As raízes do Futuro


(VARINE, 2013), trabalha sobre a questão do patrimônio como o
principal fomentador do desenvolvimento local. Para o autor, é
imprescindível que o processo de desenvolvimento tenha início na
comunidade, pois de nada adianta pensar no desenvolvimento por
terceiros fora do contexto local.
Quando esta comunidade compreende, localiza, se
apropria e respeita seu patrimônio, ela está pronta para
desenvolver questões econômicas, sociais e culturais em
conjunto, de maneira sustentável – já que será contínua e não
dependerá de agentes externos. E entende-se por patrimônio,
nesse caso, elementos, materiais ou imateriais, que fazem sentido
e que são importantes para determinado grupo de pessoas.
Dessa forma, de nada adianta um agente patrimonial, ou
do desenvolvimento, impor para a sociedade o que deve ou não
ser salvaguardado. Nem mesmo usar do argumento de que a
conservação é a única maneira de cuidar do patrimônio. Esses
conceitos só distanciam os verdadeiros donos do patrimônio de
seus “pertences”. O patrimônio deve ser identificado pela
comunidade, para que esta conserve-o. E veja bem: a
conservação não é o objetivo, e sim uma consequência! O objetivo

Mariana Estima Silva


- 227 -
PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

é a utilização, a garantia de sua funcionalidade, principalmente no


caso do patrimônio histórico e cultural imóvel.
E como utilizar então esse patrimônio imóvel de maneira a
permitir o desenvolvimento de uma comunidade? Em primeiro
lugar, é imprescindível o pensamento a partir do local para o
mundial. É mais coerente que determinado bem tenha um valor
cultural local, já que não possuímos uma “cultura mundial”. Sendo
assim, a salvaguarda deve ser pensada no âmbito local!
Depois da decisão de salvaguardar, deve-se pensar em
como esse patrimônio pode servir para a sociedade de forma a
incentivar seu desenvolvimento. E é possível sim, conforme já
mencionado, pensar no retorno econômico do patrimônio.
Entretanto, deve-se sempre elevar, mesmo que ao mesmo nível,
seu valor cultural e social.
Então o turismo pode ser uma opção? Sim! Mas não o
turismo em massa, da espetacularização, do congelamento. E sim
um turismo cultural, que valoriza o cotidiano da comunidade, que
permite que ela siga “construindo” seu patrimônio, e que vise o
turista como um público pequeno e disposto a conhecer a vida
daquele determinado lugar, com suas belezas materiais e
imateriais.
Com esse pensamento, o desenvolvimento torna-se um
processo de mudança na forma de pensar e acaba acontecendo

Mariana Estima Silva


- 228 -
PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

espontaneamente, tendo o patrimônio um lugar de extrema


importância na comunidade.

10.5 Considerações finais

Ítalo Calvino, em seu livro As cidades invisíveis (CALVINO,


2003), expõe as cidades como reflexos das decisões de suas
comunidades. Uma destas descrições resume a ideia deste texto,
de que as cidades, e suas construções, devem seguir escrevendo
sua história e formando seu patrimônio a partir de seu próprio
patrimônio pré-existente, para que acima de tudo, exista a vida:
“[...] obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar a
memorização, Zora definhou, desfez-se e sumiu. Foi esquecida
pelo mundo.” (CALVINO, 2003, p. 10).
Dar maior importância a aspectos de conservação do
“simbólico” antes de garantir a utilização de um bem, já é um
assunto tratado com outros olhos atualmente. Entretanto, ainda é
preciso evoluir muito neste campo, trazendo à tona questões de
identidade da comunidade para o âmbito da preservação do
patrimônio, área que ainda possui conceitos elitistas e
ultrapassados sobre conservação.
Dar novos usos, pensar em retorno econômico, garantir
que a conservação seja uma consequência da nova função dada
ao bem imóvel, são maneiras de se pensar no patrimônio a longo

Mariana Estima Silva


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PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

prazo. E não o contrário! Tombar, musealizar, ressignificar para o


simbólico, são termos que não garantirão a proteção de
determinado patrimônio e, nem mesmo, permitirão a continuidade
da vida de determinado lugar.
Ou seja, o patrimônio deve ser visto sempre como uma
maneira de impulsionar a sociedade a produzir novos patrimônios.
Ele gera na comunidade a noção de identidade, de pertencimento
e eleva a autoestima do que é local. Com todos esses atributos, a
cidade se desenvolve de maneira mais igualitária e de forma
sustentável.
Talvez seja querer demais, mas é passando esse
pensamento adiante que criaremos a geração que cultivará a
cultura, tornando obsoletas e desnecessárias legislações para
preservação de bens imóveis com valor histórico e cultural.

Mariana Estima Silva


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PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

REFERÊNCIAS

BENHAMOU, F. A economia do patrimônio cultural. São Paulo:


Edições SESC, 2016. 144 p.

CALVINO, Í. As cidades invisíveis. Tradução: MAINARDI, Diogo.


São Paulo: Folha de São Paulo, 2003. 158 p.

JEUDY, H-P. Espelho das cidades. Tradução: JANOWITZER,


Rejane. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. 160 p.

UNESCO. Edgar Morin fala para 1.300 pessoas em Fortaleza.


2010. Online. Disponível em:
<http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-
view/news/edgar_morin_talks_to_1300_people_in_fortaleza/>.
Acesso em: 18 out. 2019.

VARINE, H. de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do


desenvolvimento local. Tradução: Maria de Lourdes Parreiras
Horta. Porto Alegre: Medianiz, 2013. 256 p.

Mariana Estima Silva


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PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: PRESERVANDO MUITO ALÉM DO VALOR
SIMBÓLICO

Mariana Estima Silva


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

11 NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO54: DIÁLOGOS SOBRE


AS POLÍTICAS DE FOMENTO À CULTURA E
DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

Mayk Lenno Henrique Lima 55

O Estado do Ceará tem passado nos últimos anos por um


processo de expansão do setor cultural e turístico. O Estado já é
reconhecido, internacionalmente, por sua região litorânea, com
praias como a de Jericoacoara, Canoa Quebrada e Cumbuco e
por sua diversidade cultural expressa nas tradições da música, da
literatura, dos espetáculos cênicos e da religiosidade. Da capital
ao interior, a cultura pulsa e revela um potencial econômico
explorado de maneira tímida pelas empresas culturais e até pelo
próprio governo.
A vocação para o desenvolvimento cultural sempre esteve
estampada nos programas de Governo do Estado. A secretaria da
Cultura foi a primeira do país a ser desmembrada da secretaria da
educação em 1966 e ter autonomia de trabalho e recursos
próprios.

54 Trecho da Música “No Ceará não tem disso não”. Autoria: Guio de Morais.
Interpretação: Luiz Gonzaga. Lançamento: setembro de 1950. Gênero musical:
Baião de Luiz Gonzaga.
55 Bolsista Capes no Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural da
Universidade Federal de Pelotas – UFPel. E-mail: mayklenno@gmail.com.

Mayk Lenno Henrique Lima


NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

Com a missão de executar, superintender e coordenar as


atividades de proteção do patrimônio cultural do Ceará, difusão da
cultura e aprimoramento cultural do povo cearense, a secretaria
tem construído uma política cultural que visa incentivar, estimular
e expandir a pesquisa em artes e cultura, fortalecendo a produção
e a difusão cultural e ainda respondendo pelas ações de
reconhecimento e preservação do patrimônio cultural56.
Sendo assim, apresentaremos no decorrer deste ensaio
como essas políticas impactam a produção cultural na capital e no
interior, não apenas no âmbito do desenvolvimento do setor e
ampliação do campo de trabalho, mas também na indução de
discursos, valores e fazeres que fomentam paralelamente o
crescimento turístico-mercadológico.
O recorte a ser aprofundado aqui envolve os profissionais
que lidam com a cultura, sejam eles produtores ou artistas, e as
localidades que recebem um índice elevado, ou não, de
investimento público para o desenvolvimento de atividades
culturais, analisando como o desenvolvimento turístico-econômico
está atrelado à essas ações.

56Dados disponíveis da página oficial da SecultCE <secult.ce.gov.br>. Acesso


em 30 de set de 2019.

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

11.1 Das legislações às primeiras ações

Antes de discutirmos ações feitas pelo Estado vamos


compreender como têm se desenvolvido as políticas de fomento
à cultura ao longo das últimas décadas. É possível dividir em duas
bases principais: a de incentivos ao apoio e difusão da cultura e a
de fomento.
A legislação funciona em uma rede de sistemas culturais,
diferente da filosofia que trata-se dos sistemas como uma carga
mais valorativa, os sistemas culturais estão voltados
pontualmente para a construção de ações legislativas que podem
ser desencadeadas no âmbito municipal, estadual e/ou federal,
visando que as políticas públicas para a cultura não sofram
processos de descontinuidade (BARRETO, 2015).
Esse trabalho de continuidade é necessário devido aos
vícios da política brasileira que corriqueiramente paralisa
atividades de gestões anteriores para se criar projetos similares
para uma nova gestão. Essas práticas acabam por fragilizar as
redes culturais e/ou turísticas, já que essas políticas exigem
planejamento e gestão continuada a um longo prazo para
apresentarem os retornos almejados.
O sistema cearense de políticas culturais pode ser
considerado avançado para sua época de publicação. E, como
qualquer legislação precisa ser revisado periodicamente, porém,

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

desde a criação, consegue-se o estabelecimento de diretrizes


norteadores para o desenvolvimento das ações de incentivo.
A professora Márcia Barreto (2015), em sua análise das
políticas de fomento do Estado destacou os princípios que
norteiam o funcionamento do sistema de cultura.

‘Dignidade da pessoa humana’, onde está a


construção das autobiografias coletivas e individuais,
‘a universalidade do acesso aos bens de cultura’, que
não se confunde com a cultura em si, porque o
acesso a ela não existe, já que o sujeito nasce
inserido nela. Nesse aspecto, ninguém vai lhe tirar o
acesso a algo que lhe é nato, contudo, o acesso aos
bens de natureza cultural requer uma universalização
e proteção. E, por último, o princípio que está
correlacionado ao Estado Democrático de Direito, no
caso, a ‘participação social’, trazido também para o
sistema de cultura do Estado do Ceará (BARRETO,
2015, p. 72-73).

Isso posto, significa dizer que todas as ações de apoio e/ou


fomento a cultura no Estado devem ser norteadas por esses
princípios.
No que diz respeito ao apoio cultural podemos citar alguns
planos elaborados pela Secretaria da Cultura do Ceará. O Plano
Estadual da Cultura57, lançado em 2016, apresenta uma série de
diretrizes que objetivam na ampliação das ações de investimento
cultural no Estado, garantindo de forma democrática e

57 Todas as leis de cultura do Ceará estão disponíveis em:


<https://www.secult.ce.gov.br/legislacao-cultural/> Acesso em 30 de set de
2019.

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

participativa o acesso aos equipamentos ou ações de natureza


cultural. Esse plano é um trabalho conjunto de coletivos e
profissionais da cultura junto ao Governo do Estado.
O Ceará ainda foi o Estado pioneiro na elaboração de
ações como o Projeto Agentes de Leitura do Ceará, a Lei dos
Tesouros Vivos do Estado e a aprovação do Plano Estadual de
Cultura Infância, servindo de referência para outros Estados e
para o próprio Ministério da Cultura.
A secretaria da cultura, quando trata do fomento às ações
culturais, costuma, na maioria das vezes, explicar os trâmites
através de editais. Para essa distribuição existem três formas de
financiamento:
1) A primeira é o Tesouro Estadual, e, nesse caso, trata de
renúncia fiscal do Estado em áreas específicas. Ou seja, os
recursos provenientes do tesouro são orçados pelos gestores
como renúncias fiscais e aprovados pelo legislativo. Porém, essa
renúncia depende da arrecadação tributária que será feita. Caso
a arrecadação não alcance o esperado os projetos podem não ser
executados. Por exemplo, festividades carnavalescas comumente
dependem dessas renúncias ficais para serem aprovadas, assim
como festividades da semana do município, entre outros;
2) A segunda forma de investimento dar-se pelo Fundo
Estadual da Cultura que, por sua vez, é regulamentado e tem
forma própria de alimentação de recursos. Esses recursos são

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

coordenados por um conselho gestor composto por membros do


governo e da sociedade civil organizada. Os recursos são
oriundos das renúncias fiscais, assim como no primeiro caso. Mas
para além desse, existe a possibilidade de alimentação a partir de
acordos ou convênios, multas penais de contratos/convênios
descumpridos e doações de pessoas físicas ou jurídicas. A
seleção dessa etapa é feita a partir de editais. A equipe da
SECULT (Secretaria da Cultura) acredita que essa é a forma mais
democrática para o acesso ao fundo de incentivo. Existe ainda um
quantitativo dividido pelas regiões do Estado, para que os
municípios concorram apenas com os pertencentes a sua região
e os projetos aprovados assumam uma porcentagem de
contrapartida do valor;
3) A terceira forma de financiamento é o Mecenato
Estadual. Como nas outras fórmulas, essa também se dá através
de renúncia fiscal. Neste caso, o Estado abre mão de até dois por
cento do ICMS58 para que empresas possam apoiar os projetos
aprovados através de edital e, posteriormente, essas empresas
apresentam o crédito do valor de apoio na prestação de contas.
Em nível federal, a Lei Rouanet funciona da mesma forma, a única
diferença é que a renúncia fiscal é feita no Imposto de Renda.
Assim como o Fundo Estadual da Cultura, o mecenas exige uma
contrapartida dos projetos aprovados. Tanto no Mecenato, como

58 Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Prestação de Serviços.

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

no Fundo Estadual, os proponentes precisam comprovar tempo


mínimo de atuação na área do projeto submetido. Ainda tratando
do Mecenato, a Secretaria da Cultura determina três
possibilidades para concretização do apoio:
a) A primeira é a doação: nesse caso o proponente do
projeto recebe do Governo do Estado do Ceará certificados que
equivalem aos papeis da bolsa. O proponente vai ao encontro de
empresas para firmar a doação do valor para a execução do seu
projeto. Quando uma empresa decide apoiar o projeto, o valor é
transferido para uma conta da Caixa Econômica Federal vinculada
pelo proponente à SECULT, anteriormente. Nesse caso não há
possibilidade de devolução do valor. O apoiador recebe os
certificados do proponente e apresenta junto aos órgãos estaduais
para ser feito o desconto do valor no ICMS. Nessa fórmula, será
descontado cem por cento do valor repassado e o apoiador não
poderá veicular sua marca ao evento;
b) A segunda forma é o patrocínio: nessa, a empresa que
apoiar a ação cultural e quiser ter compensação tributária de cem
por cento do ICMS, poderá ser veiculada apenas a uma menção
verbal na realização do evento. Porém, se a empresa quiser
veicular sua marca ao evento, ela repassará cem por cento do
valor e só serão compensados oitenta por cento, visto que haverá
o retorno a marca patrocinadora;

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

c) A terceira modalidade é o investimento, sendo possível


que o empresário investidor tenha um retorno financeiro com o
projeto. Neste caso a compensação do ICMS é de apenas
cinquenta por cento do valor doado pela Lei de Mecenato.
A maior dificuldade para quem trabalha com a produção
cultural no caso dos apoios pelo Mecenato é encontrar empresas
que tenham interesse em apoiar os projetos. Ainda cabe destacar
que projetos de festivais, por exemplo, têm mais facilidades de
serem aprovados do que projetos atrelados a pesquisa científica
ou literatura. No Fundo Estadual, os repasses dos valores de
apoio por vezes não são feitos com antecedência, ocasionando
desgastes e as vezes inviabilizando a execução do projeto.
A diferença entre o Mecenato e o Fundo Estadual de
Cultura está na forma de elaboração dos projetos. Os projetos que
são selecionados pelo Fundo Estadual precisam estar alinhados
à forma de trabalho que o governo pensa para a cultura do Estado,
já o mecenato não tem essa obrigatoriedade.
É importante garantir o campo democrático, já que todas
essas políticas culturais refletem, paralelo a iniciativa do Estado,
o trabalho de centenas de profissionais e artistas nas últimas
décadas.
Para concluir essa apresentação das estratégias de
fomento a cultura, quero destacar uma política cultural conhecida
como Mestres da Cultura. Nos últimos anos, a Secretaria da

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

Cultura tem investido fortemente na consolidação do


reconhecimento de pessoas que zelam pelas tradições dos
saberes e fazeres do Estado.
Os representantes das regiões que, atualmente, são
escolhidos por meio de edital recebem a titulação de Mestre
Honoris Causa pela Universidade Estadual do Ceará e
desenvolvem atividades educacionais junto às escolas públicas
do Estado. Esses ainda recebem financiamento vitalício para
difusão das técnicas do patrimônio imaterial.
Finalmente, é importante perceber os passos e os avanços
que as políticas culturais do Ceará deram nas últimas décadas e
compreender que muitas melhorias ainda precisam ser realizadas
para garantir as condições mínimas para o desenvolvimento
cultural do Estado.

11.2 O turismo cultural e o desenvolvimento criativo

Após a análise do funcionamento das legislações que


vigoram, atualmente, no Estado, segue-se o caminho do turismo,
especificamente a potencialidade do turismo cultural que funciona
de forma centralizada em determinados territórios, seja na capital
ou no interior.
Diferentemente da trajetória da cultura no Estado, a
abertura para o desenvolvimento turístico no Ceará tem seu

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

crescimento como órgão estatal a partir da criação de uma


secretaria própria nos anos 1990. Quem visita o Estado, ainda
hoje, é atraído pelas rotas turísticas desenvolvidas ao longo do
litoral, ou a partir da religiosidade popular que é efervescente nas
regiões dos sertões em Canindé e na Zona Metropolitana do
Cariri, formada pelas cidades de Crato, Juazeiro do Norte e
Barbalha, no sul do Estado.
Para além dessas áreas, se pode destacar, ainda, as
regiões serranas como Guaramiranga ou a Chapada do Araripe,
que atraem os turistas para camping, trilhas, cachoeiras e
experiências mais tranquilas sob um clima mais ameno.
O secretariado para o turismo cearense apresenta algumas
estratégias norteadoras dos seus trabalhos. Esse planejamento
estratégico visa elaborar estudos e pesquisas para o
desenvolvimento do turismo, monitorando os indicadores e
agregados turísticos para que se possa definir diretrizes e metas
para o turismo do Estado. Esses planejamentos aliados ao
marketing e captações de recurso desenvolvem linhas gerais para
o crescimento do setor59.
Para exemplificar essas ações, é possível citar o Programa
de Desenvolvimento de Destinos e Produtos Turísticos que visa
organizar as atividades turísticas no Estado. A ideia do projeto é

59As ações da Secretaria do Turismo estão disponíveis nas páginas oficiais


em: <https://www.setur.ce.gov.br>. Acesso em 15 de out de 2019.

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

diversificar a oferta de produtos de acordo com as especificidades


de cada região ou município turístico.
Detalhadamente, o programa trabalha sobre a organização
territorial da região, auxilia no planejamento e na criação de
produtos e destinos afim de descentralizar a atividade turística e,
ainda, desenvolve, qualifica, regulariza e capacita as equipes de
profissionais para prestação de serviços.
Uma gestão descentralizada é o foco, mesmo que a
descentralização seja o principal desafio, como trataremos
posteriormente. Até este ponto, já é clara a percepção de que o
turismo tem um significativo potencial para o desenvolvimento do
Estado, o que dentro de uma esfera teórica, pode-se apontar que
o

Turismo é um elaborado e complexo processo de


decisão sobre o que visitar, onde, como e a que
preço. Neste processo intervém inúmeros fatores de
realização pessoal e social, de natureza emocional,
econômica, cultural, ecológica e cientifica que ditam
a escolha dos destinos, a permanência, os meios de
transporte e o alojamento, bem como o objetivo da
viagem em si para a fruição tanto material como
subjetiva de sonhos, desejos, de imaginação
projetiva, de enriquecimento existencial histórico-
humanístico, profissional, de expansão de negócios.
Esse consumo é feito por meio de roteiros interativos
espontâneos ou dirigidos, compreendendo a compra
de bens e serviços da oferta original e diferencial das
atrações e dos equipamentos a ela agregados em
mercados globais com produtos de qualidade e
competitivos (BENI, 2003, p. 1).

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

Dada essa definição, fica claro que, independentemente da


motivação que seja dada a criação desses pontos e/ou roteiros
turísticos, o despertar econômico sempre será o foco para o
aumento de investimentos. Mas, a quem serve essa economia do
turismo? Até poucos anos atrás, claramente a economia do
turismo servia aos grandes empreendimentos do setor. Mesmo a
comunidade sendo minimamente inserida no desenvolvimento, o
turismo não garantia a estabilidade econômica das mais diversas
comunidades com potencial turístico.
Porém, o despertar para a valorização do turismo por parte
das comunidades e o respeito à sua cultura e suas relações
interpessoais, têm motivado a uma reformulação nos planos de
desenvolvimento turístico, para que o mesmo seja mais
sustentável com o lugar. Aqui cabe ressaltar que “é preciso
despertar a consciência de que, muito antes dos reflexos
econômicos, o turismo deve fazer sobressair a importância do
inter-relacionamento entre as pessoas dentro de uma consciência
de respeito de todos os elementos que formam a cultura do povo”
(CASTELLI, 1990, p. 123).
As comunidades que ativam seu potencial para o turismo,
identificam antes uma série de fatores básicos de sua cultura. A
“sociedade desenvolve suas próprias tradições, suas próprias
atitudes e um estilo de vida que pode ser mais ou menos

Mayk Lenno Henrique Lima


- 244 -
NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

identificativo. Este estilo de vida é o que normalmente se vincula


ao conceito de cultura” (LICKORISH; JENKINS, 1997, p. 99).
E esta cultura quando associada ao turismo desperta o que
conhecemos por turismo cultural. Um fenômeno que nas últimas
décadas tem levado milhões de pessoas a saírem de suas
localidades em busca de conhecimento e experiências em
culturas distintas, principalmente a partir do patrimônio cultural.
Compreendendo que o patrimônio é uma construção social
e que este é caracterizado pela transmissão feita por cada
geração que o herdou e pelo fato de que cada geração cria um
novo patrimônio para ser transmitido (BENHAMOU, 2016),
percebe-se que ao ser ativado, esse patrimônio possibilita o
desenvolvimento turístico para sua região, e consequentemente,
o desenvolvimento socioeconômico.
Em Fortaleza, a Capital do Estado, essa ativação
patrimonial já é uma potencialidade turística. Afinal, o Centro
Histórico da cidade, a Catedral Metropolitana, o Teatro José de
Alencar, o Centro Cultural Dragão do Mar, dentre outros,
fomentam uma relação econômica Centro-Litoral que reflete em
polos gastronômicos, varejistas, dentre outras sociedades
empresariais.
Fora desse eixo, pontualmente existem atrativos turísticos-
culturais como o Parque do Cocó, o Santuário de Fátima, museus
e centros culturais. Mesmo assim, é perceptível uma

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

concentração territorial de investimentos em equipamentos


culturais que possam fomentar o turismo.
Abaixo ilustramos essa concentração no mapa turístico de
Fortaleza idealizado para o lançamento do itinerário dos ônibus
que levarão os turistas para conhecer os principais pontos de
turismo da capital. A rota representa o que temos falado. É
importante evidenciar que existem pontos de potencial turístico-
cultural que não estão sendo aproveitados de maneira integrada.

Figura 1 - Mapa de Rota turística do Fortaleza Bus

Fonte: Jornal Tribuna do Ceará (2018).

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

O que acontece na Capital, reflete-se também no interior do


Estado. Nas regiões litorâneas, existem as rotas litorâneas leste e
oeste, um roteiro que perpassa por diversas praias e já fomenta a
economia dessas localidades. Dentre as principais praias das
regiões podemos citar Jericoacoara, na Rota do Sol Poente
(Oeste) e Canoa Quebrada, na Rota do Sol Nascente (Leste)60.
No interior do Estado, por décadas a Rota da Fé liga
Fortaleza à Canindé. Canindé possui uma basílica dedicada a São
Francisco das Chagas 61. O Estado, porém, tem investido num
roteiro para o Maciço de Baturité, uma região que faz a divisa entre
o sertão e a serra, contando com cidades históricas como
Redenção, que apresenta discursos acerca da escravidão no
Estado e Guaramiranga, que atrai turistas nacionais e
internacionais pelo seu clima com baixas temperaturas em meio
ao semiárido brasileiro.
Apesar do crescimento de regiões como o norte e o sul do
Estado, essas ainda recebem tímidos olhares para ativação da
cultura e do patrimônio local pelo turismo. A seguir fecharemos
esses diálogos com as propostas de trabalhos a serem
desenvolvidas para essas regiões.

60Detalhes das rotas nos sites das principais empresas de turismos do Estado.
61Uma das sugestões de visitas da Rota da Fé pode ser vista nesse guia:
<http://mundonajanela.com.br/rota-da-fe-conhecendo-o-sertao-do-ceara/>
Acesso em 20 de out de 2019.

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

11.3 Próximos passos

Muitos são os desafios para os setores cultural e turístico


do Ceará. O Estado possui um potencial para o desenvolvimento
sustentável em todos os setores. As gestões são, claramente,
desafiadas a construir projetos que deem continuidade as suas
ações de investimento, independentemente de sua gestão.
Mesmo tendo formação em Arquitetura e Urbanismo, desde
os treze anos de idade me envolvo com atividades culturais, e
mais recentemente, produzindo eventos e ações culturais no
Sertão Central. Depois de anos, e a partir de uma análise que
desenvolvo de forma paralela a minha pesquisa, visando
contribuir para o desenvolvimento do Ceará, recortarei,
brevemente, algumas ações que precisam ser tomadas para uma
futura expansão do turismo patrimonial no interior.
A reutilização de estruturas já existentes é um fator
importante para o desenvolvimento a curto prazo. O Estado possui
uma significativa malha ferroviária que liga a capital ao norte e ao
sul do Estado. A primeira etapa seria a recuperação desses
trechos e a implantação de uma rota denominada Trilhos do
Ceará.
Essa rota consistiria em uma rede de estruturação, visto
que o acesso aos demais municípios do Estado seria facilitado.
Para além do turismo, essa rota da malha ferroviária existente
poderia ser utilizada, ainda, para transporte comercial e cargas. A

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

conclusão do trecho que liga o norte ao sul do Estado seria


essencial para facilitar a integração do turismo em todo o interior.
O tralho cultural que já existe no Estado tomaria outras
proporções. Veja, a Rota da Ferrovia é apenas um viés estrutural
para a as regiões, os trabalhos de ativação do patrimônio cultural
seriam o segundo passo.
A diversidade de manifestações culturais e de produtores
nas mais diversas regiões do Estado entrariam em conjuntos para
a elaboração de roteiros culturais que sempre deverão partir de
uma estação ferroviária, visto que a chegada do visitante na
cidade seria por ela, e encerrando em outra estação, para o
visitante seguir outro percurso.
É importante esclarecer que nem todo patrimônio precisa
ser turístico e por mais que tenha exposto aqui o desenvolvimento
a partir da ativação do turismo, o cuidado e zelo ao patrimônio
cultural local, aos costumes e crenças deverão sempre estar em
primeiro lugar.
Outro ponto, é um investimento concreto nos municípios.
As cidades precisam deter de sistemas de saneamento básico, de
segurança pública e de constantes ações socioeducativas. A
formação de profissionais e a difusão de redes hoteleiras e outros
atrativos devem ser empreendidas respeitando as características
do lugar para evitar processos gentrificação desses lugares.

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

Dentro do conjunto de símbolos patrimoniais do Estado,


posso citar o recém patrimonializado conjunto arquitetônico do
Patu, em Senador Pompeu, lugar onde funcionou como campo de
concentração na seca de 1932. O centenário Açude de Cedro em
Quixadá, e o Complexo de Monólitos que atraem pessoas do
mundo inteiro para a prática de esportes radicais.
As cachoeiras nas regiões da Ibiapaba, Serra do Araripe,
Meruoca e Guaramiranga. Parques como o de Ubajara e tantos
outros pontos onde a natureza destaca-se.
No que diz respeito a cultura popular, movimentos juninos
são destaques nas comemorações que começam em maio e vão
até agosto. Os festivais de quadrilhas juninas movimentam o
turismo local em diversas regiões. Atividades voltadas ao reisado,
a festa de caretas, danças coloniais, forró pé de serra, xaxado,
baião, chorinho, jazz e blues, movimentam festivais da serra ao
sertão durante o ano.
A religiosidade do cearense é destaque cultural, para além
das festas de Iemanjá, Nossa Srª dos Navegantes e São Pedro
no litoral do Estado. O interior acolhe devoção popular através de
romarias em honra a São Francisco em Canindé e as “Almas da
Barragem” (vítimas dos campos de concentração da seca) em
Senador Pompeu.
A Região do Cariri, sem dúvidas, é a região que mais
desperta a devoção popular. As romarias em memória ao Pe.

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

Cícero Romão Batista e Nossa Senhora das Dores são as


principais em Juazeiro do Norte. A Romaria Nossa Senhora das
Candeias reúne milhares de fiéis, anualmente. A Festa do Pau da
Bandeira de Santo Antônio, em Barbalha, foi reconhecida como
patrimônio imaterial brasileiro em 2018. Cidades como essas tem
um potencial para reestruturar a Rota da Fé e ampliar o
desenvolvimento econômico dessas regiões.

Figura 2 - Romaria das Candeias (Juazeiro do Norte)

Fonte: Prefeitura de Juazeiro (2019); Jornal do Brasil (2018).

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

Figura 3 - Caminhada da Seca (Senador Pompeu)

Fonte: Jornal do Brasil (2018).

Por fim, o Ceará tem um longo caminho pela frente, onde a


gestão a longo prazo será definitiva para o desenvolvimento
social, cultural e econômico do Estado. Sempre salientando que
todas as ações a serem tomadas para o desenvolvimento cultural
e econômico deverão em primeiro lugar cuidar da comunidade
local, das pessoas que dedicam sua vida para as atividades já
desenvolvidas. Em seguida, promover um investimento em
capacitação para que essa comunidade possa se
autodesenvolver, respeitando seus limites e cuidando do seu
patrimônio para que, finalmente, o turismo possa chegar e, unido
à cultura, reacender o desenvolvimento cultural de um Estado tão
rico.

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

REFERÊNCIAS

BARRETO, M. S. V. Análise do sistema público de financiamento


à cultura no Estado do Ceará. In. VIEIRA, Marisa Damas.
Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania - Ciclos de Web
conferências. 1. ed. Goiânia: CIAR/UFG, 2015. v. 1. p. 69-80.

BENI, M. C. Análise estrutural do turismo. 3. ed. São Paulo:


SENAC, 2000.

BENHAMOU, F. Economia do Patrimônio Cultural. Tradução de


Fernando Kolleritz. São Paulo: Edições SESC, 2016.

CEARÁ. Decreto Lei n. 16.026, de 01 de jun. de 2016. Plano


Estadual de Cultura do Ceará, Fortaleza, CE, jun 2016.

Mayk Lenno Henrique Lima


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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO: DIÁLOGOS SOBRE AS POLÍTICAS DE
FOMENTO À CULTURA E DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO NO CEARÁ

Mayk Lenno Henrique Lima


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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
PROBLEMAS DE QUIXADÁ / CE

12 O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS


POTENCIALIDADES E PROBLEMAS DE QUIXADÁ / CE

Stephane de Sousa e Silva Maia 62

Entendendo o patrimônio cultural como um tema de


bastante efervescência, principalmente nos últimos anos no
Brasil, e dada sua complexidade, discutir seus problemas e
potencialidades tem se tornado bastante importante dentro das
diversas áreas do conhecimento, sejam elas ciências humanas,
sociais, econômicas ou da natureza. Essas discussões
contribuem para a ampliação dos debates e horizontes de
pesquisadores, gestores, promotores e atores culturais,
estudantes, comunidades e entusiastas do tema e podem vir a
servir de artifício para a promoção de desenvolvimento não
apenas cultural, mas, também, econômico de cidades,
comunidades, grupos, bairros, produtores locais e a toda uma
cadeia que alimenta o sistema complexo que é o patrimônio
cultural.
Tendo isso em mente, este breve ensaio pretende abordar
o caso da cidade de Quixadá, localizada no interior do Estado do
Ceará, no nordeste brasileiro, sob o olhar pessoal de uma

62Bolsista Capes. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Memória


Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas – UFPel. E-
mail: stephanearq@gmail.com.

Stephane de Sousa e Silva Maia


O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
PROBLEMAS DE QUIXADÁ / CE

arquiteta e urbanista acerca do patrimônio cultural dessa cidade.


Tendo em vista a importância de Quixadá e relevância dentro do
cenário cultural do Estado, o presente ensaio tem por objetivo
discutir o potencial da cidade como polo de desenvolvimento de
ações voltadas para a promoção do patrimônio cultural e
consequentemente o desenvolvimento local, em face do
subaproveitamento desse potencial e por vezes da desvalorização
do patrimônio local.
De modo a guiar o leitor, as ideias e considerações sobre o
tema foram distribuídas em três momentos bem demarcados ao
longo do texto. O primeiro momento, intitulado O patrimônio para
nós e para mim..., trata sobre a conceituação do patrimônio
cultural, partindo de um olhar enquanto pesquisadora no meio
acadêmico, seguido de apreensões pessoais sobre patrimônio,
que norteiam toda a escrita. Em um segundo momento,
adentrando na cidade de Quixadá-CE propriamente dita, O que é
que Quixadá tem? Do material ao imaterial potencialidades e
problemas apresenta para o leitor um pouco da história de
Quixadá e por que se configuraria, ao meu ver, como uma cidade
de destaque para debates e aprofundamentos sobre patrimônio
cultural, apresentando as potencialidades e os problemas. Por fim,
o terceiro momento, O que poderia vir a ser de Quixadá... traz
considerações e anseios de alguém antes de tudo quixadaense.
A relevância da escrita sobre o tema considera a presente

Stephane de Sousa e Silva Maia


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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
PROBLEMAS DE QUIXADÁ / CE

desvalorização do patrimônio e uma crítica às condições atuais do


mesmo em face do seu potencial como forma de
desenvolvimentos local.

12.1 O patrimônio para nós e para mim...

Para nós, como pesquisadores e agentes do patrimônio


cultural, pensar na conceituação de patrimônio cultural e em uma
trajetória histórica sobre as origens do tema, é nos apropriamos
da Revolução Francesa, no século XVIII. As primeiras noções de
patrimônio e ações se voltaram à preservação de monumentos e
edifícios que transmitiam referenciais de monumentalidade,
nobreza e riqueza, ideais diretamente ligados a conformação dos
estados nacionais e do conceito de nacionalidade. Esses valores
sempre estiveram envoltos à temática do patrimônio e, até hoje,
permeiam a discussão, muito embora tenham tomado outras
formas ao longo do tempo e com o avançar das discussões sobre
sua democratização.
No Brasil, inspirado nesses ideais da Revolução Francesa,
surge em 1937 o então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, SPHAN, atualmente IPHAN, Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, que durante muitos anos de
atuação, se limitou a preservação de bens patrimoniais através de
tombamentos de edifícios e monumentos que também

Stephane de Sousa e Silva Maia


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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
PROBLEMAS DE QUIXADÁ / CE

representavam monumentalidade e feitos ditos heroicos do


passado da nação.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, em seu
artigo 216, o patrimônio cultural brasileiro é constituído por bens
de natureza material ou imaterial portadores de referência à
identidade e memórias dos diversos grupos formadores da
sociedade brasileira, estando entre esses bens as formas de
expressão, modos de criar, fazer e viver, criações científicas,
artísticas e tecnológicas, documentos, edificações e conjuntos
urbanos e sítio de valores históricos, paisagísticos, artísticos,
arqueológicos, paleontológicos, ecológicos e científicos (BRASIL,
1988). Vale a pena ressaltar, no entanto, que apenas nos últimos
anos foi implementada uma política de patrimônio imaterial, que
tenta abarcar outras representações dessa nação brasileira, como
as manifestações culturais e religiosas, os saberes e fazeres, o
patrimônio genético, patrimônios de grupos que por muito tempo
foram invisibilizados – e continuam sendo – como indígenas e
quilombolas, entre outros.
Há que se levar em consideração, também, que essas
transformações no campo do patrimônio, embora tenham
acontecido há bastante tempo, acontecem principalmente, nos
grandes centros e em cidades que são núcleos dessas
discussões. Isso não quer dizer que em áreas interioranas, essas
discussões não cheguem, mas, sim, para que elas sejam incluídas

Stephane de Sousa e Silva Maia


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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
PROBLEMAS DE QUIXADÁ / CE

nos planejamentos locais e municipais, as vezes levam o dobro


de tempo. Acredito por isso que é importante fazer com que esses
debates que englobam, patrimônio, cultura, desenvolvimento,
turismo e memórias sejam levados para nossas cidades e
localidades, saiam da academia, sejam expostos de forma
acessível para a comunidade em geral, para que elas possam ter
o direito de escolha sobre suas escolhas e atuações nesse campo.
Como arquiteta e urbanista, pensar ou escrever sobre
patrimônio, sempre me remeteu a falar um pouco de história, o
que muitas vezes, dentro da área de atuação, se deteve,
principalmente, às memórias atribuídas à prédios históricos -
geralmente abandonados - o que, de alguma forma, sempre foi
um reflexo, de como o patrimônio é abordado e das políticas de
fomento a preservação do patrimônio no Brasil e fora dele, como
já exposto anteriormente. Ainda hoje, seja nos cursos de
arquitetura e urbanismo ou áreas afins, o patrimônio que mais
ganha notoriedade ainda é o famoso “pedra e cal”, muito embora
nos últimos anos esse cenário venha se remodelando.
Quando me questionavam sobre o que seria patrimônio, as
típicas frases como, “patrimônio é a nossa história”, ou “patrimônio
é o que nos ajuda a contar a nossa história para as próximas
gerações”, sempre me vinham a cabeça. Todas me parecem
válidas, porém entendo que ao lado dessa manutenção de bens
que representam um passado também há esquecimentos.

Stephane de Sousa e Silva Maia


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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
PROBLEMAS DE QUIXADÁ / CE

Quando escolhe-se contar uma história, apagamos outra; quando


escolhemos preservar um prédio que conta a história de uma
época, esta será muito bem marcada e fará referência a
determinados grupos. O que acredito ser o patrimônio cultural real,
está longe de ser algo tão romantizado e essencialista. Está mais
próximo das relações que cada comunidade ou grupo estabelece
com aquele bem, seja na cidade, no campo, no bairro e na rua.

12.2 O que é que Quixadá tem? Do material ao imaterial,


potencialidades e problemas

A partir dessa noção pessoal de patrimônio, e voltando os


olhos para minha cidade natal, percebo que esta apresenta
potencialidades e problemas nesse campo. Tendo sempre em
mente que patrimônio, história e memória estão intimamente
ligados, buscarei aqui apresentar as potencialidades e problemas
que a cidade apresenta. Cabe aqui ressaltar que essa escrita se
baseia principalmente no descaso e na desvalorização do
patrimônio quixadaense, que vem ocorrendo nos últimos anos.
Uma das citações que mais me fez pensar sobre patrimônio
no último ano foi a de Lowenthal (1994), no qual explicita como
sendo “patrimônio a palavra que melhor exprime a nossa
necessidade de passado” (tradução nossa), e isso me remete a
todas as vezes em que cheguei a comentar com minha mãe sobre

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
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o patrimônio em Quixadá, ela me soltava um sonoro: “Quixadá é


uma cidade sem história!”.
Com o tempo pude perceber, que aquele “sem história”,
não significava literalmente sem história, mas sim sem os
referenciais de histórias que se entrelaçavam com a própria
história de vida dela. Na cidade ela não encontrava mais o cinema
que ela costumava ir com os amigos de escola, não havia mais o
Monumento do Leão, da famosa Praça do Leão no qual ela
costumava passear – e que guardo vagas lembranças -, não
existe mais o prédio da maternidade em que ela nasceu, - a única
a nascer em maternidade, de nove irmãos -, não havia mais o
hotel, que abrigava histórias de terror que ela sempre me contava.
Acredito que minha mãe, assim como várias outras
pessoas perderam muitas referências que tinham sobre a história
que deveria ser lembrada e contada em Quixadá. Até mesmo, eu,
com pouco tempo de vivência, já venho perdendo alguns, porém
vendo com outros olhares. Mas antes de chegarmos ao ponto de
tensão sobre o patrimônio em Quixadá, ela tem bastante história
e é importante conhecê-la.
Quixadá é uma cidade localizada no interior do Ceará,
distante cerca de 170 quilômetros da capital Fortaleza.
Completará em 2020, 150 anos de emancipação uma das cidades
mais antigas do Estado. É bastante conhecida, seja pelos
atrativos turísticos, pelas peculiaridades ou pela relação que a

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
PROBLEMAS DE QUIXADÁ / CE

famosa escritora Rachel de Queiroz tem com a cidade, sendo a


primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras e
que tem como Quixadá o cenário de suas obras literárias, como O
quinze (1915), e onde morou durante alguns anos de sua vida.
Além disso, cidade abriga um rico arsenal cultural – muitas vezes
desconhecidos por parte dos moradores – que pode vir a ser uma
potencialidade de desenvolvimento para o município.
Seu nome, Quixadá, acredita-se ser de origem indígena,
que significaria “pedra de ponta curvada” (SOUSA, 1960, p. 20),
mas também é conhecida por Terra dos Monólitos, Cidade da
Pedra da Galinha Choca, Cidade do Açude Cedro, entre outros.
Tantos nomes que fazem referência às formações rochosas que
compõem a paisagem da cidade. Quixadá cresceu no semiárido
sertanejo, em meio a um grande vale, circundado por imensas
formações rochosas, chamadas de monólitos, que delimitam a
cidade. Ao primeiro sinal de grandes rochas, nas estradas da
capital ao interior, é sinal que Quixadá se aproxima. Entre essas
formações, a mais famosa é conhecida como Pedra da Galinha
Choca, que recebeu esse nome por assemelhar-se a uma galinha
enquanto choca seus ovos (Fig. 1).

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
PROBLEMAS DE QUIXADÁ / CE

Figura 1 - Pedra da Galinha Choca

Fonte: Blog Made in Nordeste Ceará (2014).

Em composição com a paisagem da Pedra da Galinha


Choca está o Açude Cedro (Fig. 2).

Figura 2 - Açude Cedro com Pedra da Galinha Choca ao fundo

Fonte: Alex Pimentel (JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE, 2015).

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
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A construção faz parte do plano de combate à seca,


implantado ainda no período imperial em Quixadá, e é a obra de
engenharia do tipo, mais antiga do Brasil e da América Latina,
responsável por represar a água do Rio Sitiá, que banha a região.
O Conjunto de Monólitos é protegido pelo IPHAN, desde 2004,
quando foi tombado e inscrito no Livro de Tombo Arqueológico,
Etnográfico e Paisagístico (SILVA, 2017, p. 13). Esse cenário, em
conjunto com galpões que foram construídos para dar suporte a
construção do açude – isto é, abrigo de maquinário utilizado na
obra – compõe um dos pontos turísticos mais visitados, tanto
pelos moradores, como por turistas.
Outras formações rochosas, espalhadas pela cidade,
também são famosas. Ao centro, tem-se a Pedra do Cruzeiro (Fig.
3), ao redor do qual o município se desenvolveu, e de onde se
pode ter uma vista panorâmica da cidade em seu cume.

Figura 3 - Pedra do Cruzeiro

Fonte: Folha de Aracati (2019).

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
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É comum ver grupos de pessoas que sobem a pedra para


assistir ao pôr do sol e ter uma vista panorâmica da cidade. Dada
a quantidade de formações rochosas também é comum a
presença de grupos de esportes radicais que praticam
montanhismo na região (Fig. 4).

Figura 4 - Praticantes de Montanhismo

Fonte: Alex Pimentel (JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE, 2015)

O município também é considerado um dos melhores


lugares para a prática do voo livre, na América Latina (Fig. 5). Por
toda relação íntima com a natureza e as atividades que são
desenvolvidas na cidade, Quixadá poderia ser caracterizada como
polo de ecoturismo.

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
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Figura 5 - Prática de Voo Livre

Fonte: Alex Pimentel (JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE, 2015)

De acordo com o Ministério do Turismo, o Ecoturismo se


configura como o desenvolvimento de atividade turística
sustentável como foco no patrimônio natural e cultural,
incentivando sua preservação (BRASIL, 2010, p. 17). Portanto as
atividades que são desenvolvidas nesses locais e que podem vir
a ser desenvolvidas se encaixam na promoção do ecoturismo. No
entanto mesmo com todo esse potencial, o uso desse bem não
ocorre de maneira sustentável em muitos casos. O próprio
complexo, onde se encontra grande parte dos monólitos, o Açude
Cedro e os galpões se encontram em estado de degradação, seja
ela resultado da ação humana, pelo intemperismo ou pelo
abandono.

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
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Atualmente, a pressão imobiliária nas proximidades vem


sendo um causador de problemas que resvala nesse patrimônio
do município. A área que corresponde ao Açude Cedro e os
monólitos, hoje abriga um Campus da Universidade Federal do
Ceará e um Campus do Instituto Federal. Isso, tem impulsionado
investidores para a construção de enormes loteamentos
residenciais nas proximidades sob a justificativa de atender a
demanda de desenvolvimento e crescimento da cidade. O
resultado disso é o impacto ambiental e a constante degradação
dessa área.
Partindo para o centro da cidade, alguns pontos se
constituem como referência para quem chega e para quem é
morador, como é o caso do Chalé da Pedra, construção localizada
no centro da cidade que se caracteriza por um casa construída
sobre um dos monólitos existentes na cidade; o Complexo da
Antiga Rede Ferroviária S.A – RFFSA; a Praça José de Barros,
porém mais conhecida como Praça do Leão, por ter tido o
monumento de um leão; A Igreja Matriz e a Catedral; a Fundação
Cultural Rachel de Queiroz e a estátua da escritora; a estátua do
poeta e violeiro Cego Aderaldo, entre tantos outros. Todos esses
elementos ajudam a contar um pouco da história da cidade e
também da história de vida dos moradores.
Além desses, outros prédios como o antigo Hospital
Maternidade; o antigo cinema da cidade; o prédio do antigo Hotel

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
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Nossa Senhora de Fátima, também conhecido como Hotel Viana,


são referências que se entrelaçavam com a vida dos moradores,
mas que hoje não existem mais ou se encontram em situação de
abandono e degradação (Figs. de 6 à 13).
O prédio que abrigava a antiga maternidade, de domínio
privado, foi o último a ser demolido até a presente escrita deste
ensaio. Hoje, os espaços que davam lugar a esses prédios, são
enormes vazios urbanos, servindo para estacionamento e
deposito irregular de resíduos, além de estarem localizados em
áreas de grande interesse imobiliário. Suas demolições ressaltam
várias questões, principalmente, sobre qual o tipo de
“desenvolvimento” está pautado para a cidade.

Figuras de 6 à 13 - Da esquerda para direita, antes e


depois da Antiga Maternidade, Hotel Viana, Cinema e Complexo
Ferroviário respectivamente
ANTES DEPOIS

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
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Fontes: 6 – Da esquerda para direita: IBGE (antes); 7 – Alan Ribeiro (2019)


(depois); 8 – Página de Instagram Quixadá, Ceará, Brasil (antes); 9 – Alan
Ribeiro (2019) (depois); 10 – Página de Instagram Quixadá, Ceará, Brasil
(antes); 11 – Alan Ribeiro2(019) (depois); 12 – Página de Instagram Quixadá,
Ceará, Brasil (antes), editada pela autora (2019); 13 – Alan Ribeiro (2019)
(depois).

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
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Para além dos bens materiais, Quixadá apresenta


manifestações culturais de recente valorização. Anualmente, é
realizado o Encontro de Profetas da Chuva, no qual sábios e
moradores antigos se reúnem para apresentar suas previsões
sobre a chuva que ocorrerá ao longo do ano. Suas previsões são
feitas com base no saber da relação com a vegetação, do
comportamento de animais e dos corpos celestes (Fig. 14).

Figura 14 - Encontro dos Profetas da Chuva

Fonte: Alex Pimentel (JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE, 2015).

Também é lar da Comunidade Quilombola Sítio Veiga que


há mais de 100 anos se estabeleceu no Distrito de Dom Maurício,
há aproximadamente 23 quilômetros do centro da cidade.
Anualmente, durante a Semana da Consciência Negra, a
comunidade realiza a Dança de São Gonçalo (Fig. 15), festejo em
homenagem ao Padroeiro dos Violeiros que se caracteriza pelo

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
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agradecimento pelo bom plantio e pela colheita, com dança,


pagamento de promessas, rezas e comidas doadas por
moradores e visitantes (GRANGEIRO; MAIA; NOGUEIRA, 2017,
p. 5).

Figura 15 - Dança de São Gonçalo

Fonte: Autora (2019)

Em outro distrito de Quixadá, Cipó dos Anjos, na localidade


chamada Boa Água, se encontra o Grupo de Caretas Reisado Boi
Coração (Figuras 16), que se estabeleceu na região na década de
1930. Assim como a Dança de São Gonçalo, os Mestres do Boi
Coração repassam para às novas gerações a tradição do reisado
(Secretaria da Cultura, 2017, s/n).

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
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Figura 16 - Reisado Boi Coração

Fonte: Blog Boi Coração (2014).

Essa efervescência cultural também não chega a ser


valorizada como deveria. Ações que poderiam levar cultura, saber
e lazer para os moradores dificilmente chegam na comunidade ou
são promovidas pelos gestores locais.

12.3 O que poderia vir a ser de Quixadá...

Após esse apanhado geral sobre Quixadá, com certeza não


é possível apontar todas as potencialidades que a cidade possui,
no entanto foram feitas algumas escolhas, buscando elencar as
situações com as quais tenho mais apego e conhecimento, e
dando destaque para os problemas relacionados aos bens
arquitetônicos do município. Tentar chegar em proposições para

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
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a cidade de Quixadá, com certeza não é tarefa fácil, e aqui, a


tentativa será carregada de anseios pessoais.
Claramente, a cidade de Quixadá se enquadraria em um
polo para desenvolvimento de ações voltadas para a exploração
– consciente – dos bens que possui, incluindo aqueles que foram
protegidos ou não e aqueles que foram considerados patrimônio
ou não, pois acredito que o patrimônio está para além disso, para
além do que é eleito e imposto de forma hierarquizada.
O ecoturismo, ao que parece, a atividade, minimamente,
mais consolidada, precisa ser impulsionado, porém, com cuidado
para o uso sustentável dessa paisagem cultural. Claramente, os
bens arquitetônicos de Quixadá necessitam de uma atenção
especial, pois há muito tempo se encontram em situação de
descaso. Os prédios abandonados, hoje, poderiam receber novos
usos que colaborassem com a própria gestão municipal ou para o
desenvolvimento de atividades culturais nesses locais, unindo-os
com as manifestações culturais, por exemplo, de forma a ampliar
o acesso à cultura por uma maior parcela da população.
Toda discussão sobre patrimônio cultural envolve questões
bastante complexas, um campo de disputas de interesses e
discursos que coloca os agentes do patrimônio, sejam eles,
arquitetos, antropólogos, historiadores, promotores culturais,
mestres de ofícios, comunidades tradicionais, gestores culturais,

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
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entre tantos outros, em meio a tensões e que muitas vezes não


encontram soluções de forma tão fácil.

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O PATRIMÔNIO NO SERTÃO: UMA ANÁLISE DAS POTENCIALIDADES E
PROBLEMAS DE QUIXADÁ / CE

REFERÊNCIAS

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Stephane de Sousa e Silva Maia


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