Madalena - Mediano Marcheti

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Porto/Post/Doc Essay - Isabela Pereira

Filme: Madalena, de Madiano Marcheti (2021)

O Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis no mundo (1). Tema central de
Madalena, de Madiano Marcheti, o filme aborda a violência e o descaso com essa parcela da
população, além de muitas outras questões enraizadas na cultura brasileira, mas
principalmente o conservadorismo. Ainda, os privilégios de classe, a cultura do "jeitinho” e
também os impactos do agronegócio. Sendo assim, para uma melhor compreensão do
longa-metragem de Madiano Marcheti, é preciso destacar algumas questões acerca de seu
palco, a região centro-oeste brasileira, mais precisamente do Mato Grosso do Sul. Vale
também ressaltar o contexto político do fim do ano de 2018, quando o filme foi rodado.

O processo da colonização brasileira teve grande influência na formação política e


econômica do país. A respeito do Mato Grosso (atualmente separado em Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul), a região serviu em um primeiro momento (século XVIII) à Portugal na
exploração de metais preciosos, o que originou seu processo de ocupação territorial. Foi ao
final do século XIX, já num contexto pós industrialização, que a região passou a se dedicar
principalmente à pecuária e ao extrativismo. Esse momento dá origem aos latifundiários -
proprietários de extensos lotes de terra - que viriam a se tornar a elite econômica, que mais a
frente acaba entremeada no cenário político. Segundo Esselin (2011, 12): “O Estado
confunde-se com o gado. A maioria de seus mais destacados representantes no meio político
tem estreita ligação com ele. São, geralmente, latifundiários e pecuaristas que exercem o
poder e nele se revezam a cada eleição” (3). Ainda mais recentemente, entre as décadas de 60
e 70, a ditadura militar impulsionava de maneira predatória a “Marcha para o Oeste”, visando
ainda mais a expansão agrícola e a colonização da população indígena local. Sendo o estado
com a segunda maior população indígena - atrás apenas do Amazonas - é natural que tal
movimento tenha gerado grandes conflitos por terras, que permanecem até hoje.(4)(5)

Politicamente, o Brasil encontrava-se inflamado no final de 2018. Em meados daquele


ano, tinha início a campanha eleitoral para a presidência da República, que viria a culminar
na eleição de Jair Bolsonaro. Marcado entre outros desastres pela extinção do Ministério da
Cultura e por discursos de ódio, o cenário político acabou fundamentando ainda mais a
proposta do filme, que segundo o próprio realizador, ganhou ainda mais sentido hoje em dia,
com a piora dos níveis de violência à comunidade LGBTQIA+ e a paralisação das
instituições de apoio e incentivo ao cinema.(6)

Com isso, vamos à análise fílmica:


Logo na primeira cena, somos apresentados a uma extensa paisagem da região,
seguido de alguns avestruzes que passeiam e se alimentam. Em um primeiro momento a
imagem nos remete a “natureza”, mas em seguida percebemos tratar de um campo agrícola,
com as enormes máquinas subitamente tomando a tela. Assim como os animais, nós enquanto
espectadores somos também perturbados pelos ruídos dos motores. Em mais uma grande
quantidade de cenas, o realizador mostra de diversas formas a infinitude das plantações, que
apesar de amplas revelam um vazio de florestas, de vida e de diversidade. Aqui, o som tem
papel complementar, através de um ruído quase silencioso, que denuncia essa ausência e nos
faz pensar em como o agronegócio modificou a natureza e a vida das pessoas daquele lugar.
Na próxima cena, um corpo é revelado em meio à plantação.

A partir daí, passamos a acompanhar 3 personagens cujas histórias se cruzam com a


de Madalena de alguma forma: Luziane, filha de uma costureira; Cristiano, filho de
fazendeiro, e Bianca, também mulher trans. Conhecemos primeiro Luziane, que em conversa
com sua mãe, nos apresenta a um diálogo riquíssimo de significados da cultura brasileira que
podem não ser notados por alguém de fora, por isso gostaria de comentá-los.

Primeiro, a mãe reclama das mensagens de “bom dia” que recebe no grupo da família.
Logo em seguida, de outra mensagem com fotos de uma pessoa morta em um acidente. “O
Everton, aquele besta", ela diz. Aqui, apenas consigo pensar sobre o termo “cidadão de bem”,
amplamente usado durante a campanha bolsonarista com o intuito de causar identificação nas
pessoas, já que o mesmo seria alguém correto, “ao lado dos valores positivos, em oposição
aos canalhas, ladrões, corruptos etc” (7). Uma vez que o próprio cidadão costuma se intitular
como “de bem”, já temos aí uma falha, uma vez que dificilmente alguém se reconhecerá
como pertencente ao lado oposto. Assim, o remetente da mensagem provavelmente se
intitularia dessa maneira, ao mesmo tempo em que naturaliza o compartilhamento de
conteúdo violento e explícito na internet.
Ainda no mesmo diálogo, vemos as duas comentarem sobre uma mulher da família
que decidiu se tornar policial. Temos um contraste entre a opinião da mãe, que defende a
decisão como louvável, uma vez que a mesma “após ter feito por merecer terá sua vida
garantida”. Aqui, é claro como o conceito de meritocracia permeia o imaginário de forma
romantizada e talvez até religiosa, de alguém que conquistou algo por merecimento, por ser
uma pessoa boa, “de bem”.
Depois, a mãe enaltece o fato da mulher “usar uma farda”, enquanto a filha apenas
diz: “ela é doida”. Apesar de os mais velhos ainda terem a polícia como figura de autoridade
e poder, as gerações mais novas desacreditam na instituição, que segundo o advogado
criminalista Roberto Darós, “está falida e à beira do caos''(8). Em uma pesquisa da Unicef
com jovens de 15 a 24 anos, 62% entre homens e mulheres afirmaram se sentir pouco seguros
com a polícia, enquanto 18% disse não confiar nem um pouco.(9) Tal resultado se deve à
corrupção, ao descaso e também, à truculência policial.

Em mais dois momentos, entendemos um pouco mais sobre o contexto familiar de


Luziane. Na conversa com seu avô, que pede ajuda para conferir a loteria e também quando
mãe e avô escutam rádio no quintal. Em ambas as cenas, notamos a presença forte da
religiosidade na vida daquelas pessoas, tanto de forma direta - ouvindo rádio - quanto de
forma indireta - no comentário do avô “é assim que se ganha”, sem nunca antes ter ganhado.
Segundo o professor Ricardo Mariano, da PUC-RS, "em geral, as religiões ajudam seus
adeptos a lidar com a pobreza, explicam e justificam sua posição social, oferecem esperança,
satisfação emocional e soluções mágicas para enfrentar problemas imediatos do
cotidiano"(10). Ou seja, as religiões também possuem o papel de ajudar na ordem social,
mantendo as pessoas conformadas, enquanto esperam algo melhor por vir.

Vale destacar um ponto interessante: a rádio religiosa convocando os ouvintes para


uma “Guerra contra o mal. Seu, que atinge seu corpo, sua vida, sua casa”. Enquanto os
dizeres tentam remeter a idéias abstratas, fantasmagóricas ou energéticas, somos afastados do
pensamento acerca de todo mal real que àquelas pessoas estão expostas: as consequências do
agronegócio, da sociedade conservadora, da religião e da pobreza. A qual mal deve-se de fato
declarar uma guerra?

Ainda acompanhando Luziane, a vemos trabalhando como hostess em uma boate. De


maneira educada ela avisa a um motorista que ali não é permitido estacionar. Rapidamente, o
homem assume uma postura de superioridade e pede pra falar com o dono do lugar, numa
tentativa de uso do “jeitinho”:

[…] o jeitinho é sempre uma forma “especial” de se resolver algum problema ou situação
difícil ou proibida; ou uma solução criativa para alguma emergência, seja sob a forma de
conciliação, esperteza ou habilidade. Portanto, para que uma determinada situação seja
considerada jeito, necessita-se de um acontecimento imprevisto e adverso aos objetivos do
indivíduo. Para resolvê-la, é necessária uma maneira especial, isto é, eficiente e rápida,
para tratar do ‘problema’.”(11)

O conceito possui uma ampla gama de significados, podendo transitar entre o positivo
- uso do jeitinho como um simples favor - e o negativo, como uma maneira de tentar garantir
vantagens, ou seja, como forma de corrupção.(12)

O comportamento do homem torna-se ainda mais agressivo ao saber que o dono do


lugar não se encontra e que então, Luziane é a responsável. Tendo seu desejo negado, ele
mais uma vez a ataca em fala. Quando a hostess percebe a situação, tenta intimidar o
motorista abrindo sua porta, e aí o mesmo diz que ela “não precisa ficar nervosa”, em uma
atitude extremamente machista com o intuito de desqualificá-la, como se sua reação fosse
descabida, um exagero ou até mesmo, loucura. O homem vai embora, mas não sem antes
atacá-la mais uma vez, encarando-a fixamente e mandando um beijo, em mais uma tentativa
de demonstrar sua posição superior na sociedade que, - por também ser machista - o
resguarda. Esse retrato da sociedade é perfeitamente visível na cena final, em que vemos o
carro indo embora. Através do vidro, motorista e amigos riem e fazem gestos de deboche,
enaltecendo o comportamento masculino que acabara de acontecer.

A cena seguinte nos leva à gravação de um clipe: um enorme campo de soja, uma
imponente máquina agrícola, em cima de onde se posiciona a dupla de cantores e no chão,
mulheres em trajes sensuais que dançam figurativamente. Somado a esses elementos, uma
música que diz: “Camarote eu vejo álcool, vou pra pista dar meu bote. Sai pra lá playboy, que
das cabritas eu sou o bode [...] Sou um trator, sou caçador. Vou pegando todas, pulverizando
meu amor.” O contexto expõe o retrato dessa sociedade: a máquina agrícola como símbolo de
poder e masculinidade, as mulheres como meras figuras dançantes e a letra machista, que
acaba sendo naturalizada, transformada em entretenimento. Ao final dessa cena, o som
torna-se mais uma vez perturbador e ruidoso, ao mesmo tempo em que contrasta com a
calmaria do campo. No set de filmagem, vemos a maioria esmagadora de homens.

Em seguida, vemos Luziane indo até a casa de Madalena para cobrar o dinheiro de
sua mãe. Ao chegar, ela encontra a porta aberta e entra. A casa está vazia, objetos de
Madalena espalhados e uma música toca ao fundo. Vemos Luziane encontrar onde a mulher
guarda dinheiro e nesse momento, a montagem é bastante sagaz ao nos revelar a música antes
quase inaudível, na letra que diz “ao bote da sucuri”. Enquanto isso, vemos pelo espelho a
filha da costureira pegando o que lhe é de direito. Reparamos aqui, a maneira impessoal com
que a personagem lida com o desaparecimento de Madalena. Não se sabe o seu paradeiro, e
talvez nem mesmo interesse saber, ainda mais com a dívida quitada. Apesar de uma sensação
constante de suspense, de que algo está prestes a acontecer, nessa cena o filme de fato flerta
com o gênero, ao sugerir uma presença estranha na casa, através de elementos como: a luz
que esmaece até que pareça noite, luzes coloridas vistas por um vidro, barulhos estranhos na
casa e ainda, uma porta que se abre sozinha.

Para concluir a história de Luziane, Madiano nos coloca diante de um diálogo dela
com a amiga. Ambas demonstram descontentamento com a vida que levam, ao mesmo tempo
em que buscam compensar as ausências daquele lugar, através de coisas bobas como a
suposta facilidade em observar discos-voadores e os meninos da cidade. Aqui, para mim,
temos uma das melhores sequências do filme. Logo a personagem diz isso, o diretor corta
para uma longa cena, em que diversos homens enfileirados empinam motos, fazem barulhos
ensurdecedores com o motor, brincam de derrapar, de empinar…a cena tem seu auge, quando
todos se reúnem em círculo e em uma espécie de masturbação coletiva, aceleram suas motos,
fazendo uma fumaça branca e espessa tomar conta do ambiente. O áudio, mais uma vez,
colabora para aumentar ainda mais a sensação de desconforto através dos altos ruídos. Ou
seja, apesar das tentativas de Luziane e a amiga, aquele lugar não tem nada de bom. Uma
sociedade altamente sexista, um modo de vida que impede o acúmulo de riquezas para a
grande maioria e ainda, explora a natureza, que pode ser pensada como uma grande
espectadora de tudo isso.

Terminada a história de Luziane, somos levados de volta para a fazenda. Em uma


segunda cena, vemos trabalhadores andando pelo campo enquanto diversos drones
sobrevoam. O barulho, novamente é irritante. Um zunido alto e constante que nos lembra,
que apesar da imensidão da paisagem e do céu aberto, o lugar é tomado por uma sensação de
vigilância constante, de aprisionamento, de impossibilidade de mudança. Lá, conhecemos
Cristiano, filho do fazendeiro e de uma senadora em campanha política, o que já seria
suficiente para perceber a privilegiada posição social que o rapaz ocupa: homem, branco e
rico.

Cristiano segue andando pelas plantações e aqui, mais um momento de suspense é


colocado. Repentinamente, vemos sua expressão se tornar perturbada: olhos que se enchem
de água enquanto mantidos fixos a determinado ponto. Ainda que não possamos ver o que o
assusta tanto, imaginamos se tratar do corpo de Madalena, já que o mesmo é visto no início,
em meio a uma extensa plantação. O pavor em seu rosto, nos remete a todos os problemas
que isso traria para ele e a partir daí, é curioso destacar como a personagem, apesar de
nomear o filme, não se encontra presente. Vemos a história sendo construída sempre a partir
de sua ausência, dos rastros que ela deixa, e de como esse vazio afeta aqueles que
permaneceram ali.

O fazendeiro sai dali desnorteado, e mais tarde, já em sua casa, podemos confirmar
sua privilegiada posição social. Lustres de cristal, paredes cobertas por espelhos, pé direito
alto, tapetes de couro… A tensão aumenta quando percebemos que alguém o espera na porta.
No entanto, trata-se apenas de um amigo de Cristiano, que chega com anabolizantes
injetáveis: “esse aqui que vai te deixar monstro. Precisa ficar com medo não, é o mesmo que
eu usei” ele diz, enquanto enrijece e exibe os músculos. Mais uma vez, Madiano retrata
brilhantemente o machismo intrínseco na sociedade e como ele também está presente nas
relações entre os próprios homens. Vemos que Cristiano não se sente muito à vontade com a
proposta do amigo, mas como dizer não diante de tamanha pressão? Não existe, mesmo entre
eles, outra possibilidade senão ser “homem suficiente”.

Depois, em conversa entre os amigos, notamos que Cristiano encontra-se bastante


ocupado com o trabalho na fazenda. Questionado sobre a necessidade de ir até lá diversas
vezes, ele devolve ao amigo que um dia, a fazenda será dele. Interessante pensar, que mesmo
esse personagem privilegiado, também sofre com a opressão. Primeiro, do amigo e agora,
justamente graças à posição social que ocupa. Como filho de fazendeiro, o caminho natural é
que ele continue o negócio da família, independente de sua vontade. Não há escolha para ele,
sua vida já está determinada. Aqui, sua trama se aproxima com a dos mais pobres, que
desejam sair desse contexto, mas não encontram oportunidades, caindo assim no
conformismo.

A seguir, vemos a cidade por outro ângulo: casas e prédios modernos, condomínios
imponentes, muros altos cercando ao redor, controle de entrada e saída…A paisagem muda
completamente, parece até que estamos em outro lugar. Aqui, estamos diante de outro
aprisionamento, embora esse seja amplamente aceito, sem ser questionado, já que o mesmo
se dá por motivos de segurança e de segregação dos mais pobres, daqueles que não pertencem
àquela realidade abastada. Apesar do grande contraste, rico e pobre se encontram também
muito próximos fisicamente, algo bastante comum nas cidades brasileiras.

Outra cena bastante interessante é quando vemos Cristiano dirigindo seu carro,
enquanto o rádio traz trechos de diversas notícias. Nos chama a atenção as seguintes:

“Menina de 11 anos denuncia o companheiro da avó por abusos”.


“... foi localizado na saída da cidade…o corpo ainda não foi identificado”.
“Multas por desmatamento em Mato Grosso do Sul são estimadas em 60 milhões de
reais”.
“...exportação recorde de soja. A expectativa de vendas…”
“...jovem assassinado…”
“A ouvinte Bianca tenta localizar a amiga Madalena…”

A última notícia passa despercebida por ele, assim como todas as outras. Embora
todos esses acontecimentos estejam à sua volta e façam parte de sua realidade, nada parece
afetá-lo. No momento, ele apenas parece estar preocupado em como se livrar daquele corpo,
em como fazer com que aquilo, não prejudique a reputação dele ou de sua família.

Existe uma total falta de empatia com aquele corpo que em vida, era alguém, possuía
uma identidade e se relacionava com pessoas queridas. Assim como em muitos casos reais,
Madalena continua marginalizada mesmo depois de morta. Seu corpo é apenas um lembrete
do problema, e não existe qualquer intenção de encontrá-lo, assim como também não se quer
investigar o crime, buscar um culpado. De acordo com o próprio Madiano durante entrevista:
“Há um silêncio narrativo nesse sentido, em evitar tais caminhos. É uma escolha estética e
política que pode causar certo desconforto, mas que, de alguma forma, acredito refletir como
parte da sociedade se posiciona (ou não se posiciona) e olha para esse tipo de crime
transfóbico no Brasil.”

Em mais uma cena do campo, vemos os drones monitorando o local e dessa vez,
conseguimos ver as imagens captadas por eles. Primeiro, a imensidão do campo, das
plantações, da propriedade. Depois, um vislumbre de uma vizinhança pobre: uma área
planejada, com casas iguais, sem qualquer identidade. De novo, voltamos a sobrevoar a
imensidão dos campos, mas agora as imagens tornam-se picadas e mais próximas do chão.
Não se trata mais de um plano sequência e é possível também reparar pequenos
deslocamentos repentinos na câmera. O que pode ter sido um pequeno erro de execução na
pilotagem do drone, acaba por trazer suspense para a cena, pois ficamos com a sensação de
que algo vai acontecer.. O áudio, torna-se desconfortável e ensurdecedor, com os ruídos dos
drones encobrindo qualquer som da natureza.

À medida que a câmera se afasta do chão, vemos andando em meio a plantação uma
mulher vestida com roupas claras. Aqui é o segundo momento apenas em que Madalena
aparece para nós, mas dessa vez como um espírito. A câmera pára e a personagem também,
de frente para o espectador. Um momento tenso e arrepiante, em que aquela presença é
finalmente revelada, de forma impactante.

Voltamos para a boate, onde Cristiano é visto dançando, claramente alcoolizado. Atrás
dele, uma parede repleta de espelhos. De costas, o rapaz dança empolgado, fazendo
movimentos intensos. Ao virar-se novamente para os espelhos, ele se vê dançando, mas à
medida em que se observa, vai deixando a dança de lado, como se aquilo não fosse permitido.
Ao meu ver, ele é um homem bastante oprimido pelo machismo e também pelo seu status
social, sendo os espelhos da cena, uma maneira de representar aquela sociedade sufocante,
que observa e julga tudo.

A música muda e conseguimos ouvir na letra “baby there is no other way”. Nesse
momento, parece que a decisão de se livrar do corpo - a fim de evitar futuros problemas para
ele e sua família - é tomada. Embriagado, ele volta para a fazenda com um amigo e lá, nossas
suposições se confirmam: o medo da culpa recair sobre ele, da notícia se espalhar e afetar os
negócios da família, principalmente a campanha política da mãe.

Cristiano caminha assustado pelo local na tentativa de encontrar novamente o corpo e


resolver a situação. Mais uma cena de grande suspense, em que vemos o personagem com
semblante assustado, sua face recortada pelas sombras da escuridão, ao mesmo tempo em que
ouvimos um barulho alto de vento, além de alguns ruídos sinistros. A câmera se afasta, e
agora vemos o rapaz de corpo inteiro, andando para trás à medida em que tenta sair do local.
Percebemos sua pequenez em relação à imensidão da fazenda, que parece ainda maior
durante a noite, uma vez que não conseguimos enxergar seus limites. Cada vez menor na tela
e ainda mais amedrontado, o vento aumenta consideravelmente e imaginamos ser o espírito
de Madalena mais uma vez.

Enfim, somos apresentados à Bianca, amiga de Madalena que enviou mensagem à


rádio procurando por ela. Importante destacar, que o diretor se preocupou em buscar uma
atriz trans, afim de não utilizar uma pessoa cis para interpretar alguém que existe, algo
bastante comum no cinema e conhecido como transfake. Além disso, Madiano também busca
retratar a personagem fora dos estereótipos trans: uma pessoa comum, com um trabalho
normal e uma vida também normal.

Com um grupo de quatro amigas, Bianca vai até a casa de Madalena e lá, elas
encaixotam e distribuem entre si os objetos que restaram. Apesar do luto, o momento é
retratado de forma leve, à medida em que elas relembram histórias com a amiga. Dentre elas,
Bianca parece ser a mais afetada pela morte de Madalena, muitas vezes com um semblante de
descrença e desapontamento.

As quatro então, embarcam no que parece ser uma viagem de carro. Na estrada,
iniciam uma discussão a respeito da decisão de Bianca em se mudar com o parceiro, um
homem. As amigas dividem opinião e enquanto uma diz que ela está certíssima em sair
daquela cidade pequena, sem futuro, a outra não apoia a decisão, explicitando um desconforto
enorme pelo parceiro da amiga, mesmo após os 2 anos de relacionamento entre eles. Tal
desconfiança na figura masculina provavelmente se dá por experiências próprias, de amigas,
ou ainda pela aura suspeita que carregam os homens em uma sociedade sabidamente
machista.
Ainda, aquela amiga que não apoia Bianca diz que “travesti se agarra no que tem”,
deixando clara a falta de esperança em relação às oportunidades da vida, devido
principalmente à marginalização dessa população. Também podemos entender essa fala como
resposta ao fato de que a expectativa de vida de uma pessoa trans é de apenas 35 anos (13).
Mais uma vez, o conformismo aparece nos personagens, mas dessa vez diante de uma
situação escancarada de violência, de impunidade, de desconforto e medo de viver.

O clima volta a ficar amistoso entre elas à medida que se aproximam do destino final:
um enorme campo, no qual pode-se ouvir os sons da natureza sem qualquer perturbação.
Uma borboleta de cor clara aparece no caminho delas e podemos vê-lá bem de perto. Para
mim, uma insinuação de que Madalena também estaria presente naquele momento,
aproveitando a natureza e a companhia das amigas. Elas continuam entrando mato a dentro,
até chegar em um rio, onde relaxam e parecem refletir. Como uma última homenagem,
Bianca tira o cordão que havia escolhido na casa da amiga e o deixa - junto com diversas
memórias - ser levado pela correnteza da água. Uma espécie de enterro no rio, uma vez que
das terras daquele lugar, não houve qualquer acolhimento.

O filme termina sem que nos sejam dadas respostas sobre o desaparecimento
Madalena. Para Madiano, um perfeito espelho de como a sociedade brasileira lida com
crimes transfóbicos.

BIBLIOGRAFIA

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4. Missio, F. J., & Rivas, R. M. R. (2019). Aspectos da Formação Econômica de Mato

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