Universidade Federal de Sergipe Pró-Reitoria de Pós-Graduação E Pesquisa Programa de Pós-Graduação em Direito
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BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________
Profª. Drª. Luciana Aboim Machado Gonçalves da Silva
Universidade Federal de Sergipe
Presidente
________________________________________________________
Profª. Drª. Flávia Moreira Guimarães Pessoa
Universidade Federal de Sergipe
Membro interno
________________________________________________________
Profª. Drª. Zélia Luiza Pierdoná
Membro externo
3
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
This master thesis is intended to analyze the right to health from the standpoint of ethics
provision by the State, having as main objective the promotion of the welfare of the human
being and the consequent dignified existence. Considering the principle of human dignity as a
guide, outlines to the historical evolution of human rights and the rise of the right to health the
category of fundamental social rights, particularly in the provision of health services in Brazil.
We seek to understand the health delivery model adopted in the country, which necessarily
involves the analysis of the structure of entities providers of public administration. In this
sense, we analyze the performance of Public Administration Network, always in search of
good governance that enables the effective and efficient delivery of the right to health. On the
other hand, and in the face of increasingly present role of the judiciary in health-related issues,
the objective is to see if this legalization solve the problem or turns out to further promote
inequality, as access to justice in Brazil has not yet reached desirable levels. The study aims to
discuss how ethics, bioethics and justice, using the ethical model of the responsibility of Hans
Jonas, can contribute to increased quality of the provision of national public health, in order to
guarantee the right to decent life This generation and also future.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 8
2 DIGNIDADE HUMANA E SAÚDE..................................................................... 12
2.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos................................................... 15
2.2 O direito a saúde como um dos elementos essenciais do direito à dignidade
da pessoa.................................................................................................................. 20
2.3 O direito a saúde no Brasil..................................................................................... 23
2.3.1 Sociedade de risco.................................................................................................... 24
2.3.2 A saúde na Constituição Federal de 1988................................................................. 27
2.3.3 Panorama da prestação da saúde no Brasil............................................................... 34
2.4 Sustentabilidade e direito ao futuro...................................................................... 39
3 ESTADO PRESTADOR DE SERVIÇO DE SAÚDE......................................... 44
3.1 Modelos de Administração Pública....................................................................... 46
3.1.1 O modelo gerencial inglês........................................................................................ 48
3.1.2 As reformas da Administração Pública no Brasil..................................................... 50
3.2 A prestação do serviço de saúde: gerencialismo e governança........................... 58
3.3 Políticas públicas: insindicabilidade ou intervenção obrigatória?..................... 66
3.4 A razoabilidade na determinação da implantação de políticas públicas pelo
Judiciário: a reserva do possível como limite....................................................... 73
3.5 Riscos do excesso de judicialização....................................................................... 77
4 A SAÚDE E A EFETIVIDADE DE SUA PRESTAÇÃO: IMPLICAÇÕES
ÉTICO-JURÍDICAS.............................................................................................. 84
4.1 A noção de pessoa na tradição filosófica............................................................... 86
4.2 Ética e justiça: bioética e biodireito...................................................................... 91
4.2.1 Bioética e Biodireito: relação com o direito à saúde................................................ 92
4.3 Ética da responsabilidade...................................................................................... 95
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 100
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 104
8
1 INTRODUÇÃO
O direito a saúde tem sido tema recorrente na mídia e em estudos que constatam, dia a
dia, a ineficiência da sua prestação pelo Poder Público. Alçado ao patamar de direito
fundamental no Brasil, garantido pela Constituição Federal de 1988 e respaldado pelo direito
internacional dos Direitos Humanos, inegáveis são os avanços adquiridos ao longo da história.
Notadamente com a implantação do Sistema Único de Saúde, no ano de 1990, considerado
um marco na história da saúde no país, concretizou-se a concepção consagrada na VIII
Conferência Nacional de Saúde (1986): a saúde como direito universal e dever do Estado.
Em razão dessa imbricação entre o direito à vida e o direito à saúde, este passou a
constar na agenda de preocupações dos países, não só com direito a ser constitucionalmente
garantido, mas também como direito que alcançasse cada um dos seus indivíduos.
O direito à saúde, por outro lado, representa a expressão máxima da atuação do Poder
Público. Nessa seara, o Estado põe em prática todo tipo de atuação possível, especialmente
quando, utilizando-se do poder discricionário que lhe é permitido, escolhe e implanta políticas
públicas de saúde. O entendimento doutrinário e mesmo jurisprudencial mais atual reza que,
no que diz respeito às políticas públicas que visam garantir um mínimo existencial à pessoa, o
poder discricionário do administrador público é quase zero. Em outras palavras, a implantação
de políticas públicas pelo Poder Público, especialmente aquelas que se referem à saúde,
9
Fato é que apesar dos esforços legislativos, a saúde pública no Brasil encontra-se em
situação precária. O objetivo central do direito à saúde previsto na Constituição de 1988 de
ser um direito universal, de todos e dever do Estado, na prática não se concretiza. Por essa
razão, as questões da saúde são, em muitos casos, judicializadas, cabendo ao Poder Judiciário
obrigar o Poder Executivo a resolver pontualmente cada caso.
Nesse sentido, o Estado, visando estabelecer a boa governança, deve agir com vistas a
promover Políticas Públicas que assegurem, dentro de um conjunto de metas e controles, uma
prestação da saúde eficiente, responsável e sustentável, objetivando, ainda, garantir o futuro
das gerações.
A dissertação que se apresenta, intitulada Direito à Saúde: por uma prestação ética,
constitui o trabalho central do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de
Sergipe - UFS, em curso de Mestrado, com área de concentração em Direito Público.
O tema será exposto através do raciocínio dedutivo, partindo de aspectos mais gerais
para os mais específicos, buscando demonstrar as posições concordes ou discordes da
doutrina acerca das posturas adotadas. Por sua vez, o objeto do estudo será tratado pelo
processo analítico, buscando-se decompô-lo em suas partes constitutivas para uma melhor
compreensão.
país, procurando demonstrar que nenhum avanço tecnológico ou jurídico será eficaz se não
retomar ao centro da questão a pessoa e a sua característica mais valiosa: sua dignidade.
12
O percurso histórico baseado nas lutas travadas pela sobrevivência conduziu, ao longo
do tempo, ao reconhecimento da pessoa como um valor, ou mesmo uma fonte, da experiência
ético-jurídica.
Segundo Comparato (2005, p.11), foi no período axial, compreendido entre os anos
800 a.C e 200 a.C, que se deu a evolução dos grandes princípios e diretrizes fundamentais da
vida em vigor até hoje. Citando o filósofo alemão Karl Jaspers, o autor afirma que nesse
período surgiram linhas análogas de pensamento em três regiões do mundo, a saber China,
Índia e Ocidente, tornando o homem mais consciente de si mesmo e de suas limitações,
compartilhando a ideia de que a sua salvação somente seria possível através da reflexão.
No século V a.C, na Grécia, nasce a filosofia, que pregava a superação, pela primeira
vez na história, do saber mitológico da tradição pelo saber lógico da razão. Ainda naquele
século, em Atenas, surgiram a tragédia e a democracia, que permitiram que a suplantação do
poder político, superior ao do próprio povo, ocorresse quase que concomitantemente com o
questionamento dos mitos religiosos tradicionais. A racionalização do período axial
possibilitou, ainda, que as religiões se tornassem menos ritualísticas e fantásticas, atuando de
forma mais ética.
O culto universal a um Deus único, sem intermediações, por sua vez, alcançou sua
faceta mais pura em Israel, culminando com a exigência de amor universal por parte do
cristianismo. As bases intelectuais para a compreensão do homem e o reconhecimento da
existência de direitos universais estavam lançadas.
13
O homem é o único ser vivo que direciona a sua vida em razão de preferências
valorativas. A motivação egoísta da ação conduz a uma ação má, visto que a hierarquia dos
valores pode não levar em conta a alteridade. Por isso, Kant (2006) indica que essa motivação
deve ser conduzida não pelo sentimento de satisfação, que logo se inclina para uma atuação
egoísta, mas conforme estabelecida no “dever” e por amor a esse “dever”. Isso é revelado pela
capacidade racional que temos de impor a nós mesmos uma obrigação moral, não como um
mandamento imposto por uma fonte exterior, mas emanado do próprio homem, quando age
em consideração a si mesmo e ao outro. A dignidade humana, para Kant, pressupõe e exige o
reconhecimento da capacidade humana da apreciação da moral.
14
Hill Jr (2003, p.444, V. 1), referindo-se a Uma teoria da justiça (1971) de John Ralws,
vai além e questiona a reflexão utilizada pela tradição Kantiana, ressaltando que o importante
não é saber o que fazer para ser uma pessoa que respeita a si própria, mas, sobretudo, como se
pode conceber uma sociedade fundamentalmente estruturada de maneira que se possa afirmar
e favorecer adequadamente o respeito de si entre seus cidadãos. Esse respeito de si abrange o
sentido do próprio valor, bem como a convicção íntima de que a sua concepção do bem, seu
projeto de vida, são dignos de serem realizados. Para tanto, é necessário refletir sobre quais
são os princípios e as instituições fundamentais de uma sociedade justa.
Cabe registrar a perspectiva de Kant sobre À Paz Perpétua (KANT, 1990, apud
TERRA, 2004, p. 51.), que se tornou lema da defesa dos direitos humanos: violar direitos em
qualquer lugar da Terra repercute em todos os outros. Assim afirmam-se os direitos humanos,
postos em uma hierarquia axiológica, prevalecentes no meio social, embora nem sempre
coincidam com aquela consagrada no ordenamento positivo.
No mesmo sentido, e por mais fundamentais que sejam, os direitos do homem são
direitos históricos resultantes de lutas em defesa de novas liberdades, apreendidos de forma
gradual. Exemplo disso, conforme citado por Jacintho (2009, p. 28), é o próprio conceito de
dignidade, que já esteve outrora vinculado à ideia de posição social ocupada pela pessoa, em
referência ao grau de deferência com a qual ela era brindada na comunidade a que pertencia.
Não se pode olvidar que os marcos simbólicos da Era Moderna, que representam ainda
a essência dos direitos humanos como foram conhecidos nos séculos XX e XXI, são extraídos
da Revolução Americana e Francesa do século XVIII, que pregavam os direitos do homem
como universais e inalienáveis. Embora seja certo que, na prática, os direitos proclamados nas
referidas revoluções de fato não atingiam a todos indistintamente, a exemplo das mulheres,
não há dúvidas de que contribuíram de forma incisiva para a consolidação dos direitos
humanos.
15
Ainda nesse sentido, Joaquim Herrera Flores1 (2005), ao tratar da complexidade dos
Direitos Humanos e da base teórica para criação de uma Teoria Crítica, afirmou que os
processos resultantes das lutas provisórias travadas pelos seres humanos tiveram como
objetivo a possibilidade de acesso aos bens essenciais da vida, não se confundindo com o
direito positivado, que se firma após esses processos de luta. Segundo ele, o acesso aos bens
materiais e imateriais conquistados através do processo de humanização requer a exata
compreensão do “porquê” e do “para que” desses direitos, no sentido de que reste evidente o
motivo de todas essas lutas, bem como de onde se quer chegar.
É importante compreender que os Direitos Humanos não existem apenas para garantir
a vida do indivíduo, mas principalmente para possibilitar que os seres humanos vivam
dignamente, já que necessitam ter acesso a um conjunto culturalmente determinado de bens
materiais e imateriais, de forma justa e igualitária. Não pode significar, desse modo, o simples
direito de ter direitos.
Foram necessários, portanto, muitos séculos até que a Declaração Universal dos
Direitos Humanos 1948 (OHCHR, 1948, p.2), em seu artigo primeiro, tenha proclamado que
“todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e
consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”
1
La Compejidad del los derechos humanos. Bases teóricas para una definición crítica.
16
Apesar do esforço exercido pelo Direito Humanitário, pela Liga das Nações, criada
para a proteção dos refugiados após o final da Primeira Guerra Mundial e, também, pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT), com o impacto da Revolução Russa de 1917 e
dos sucessivos movimentos em prol dos trabalhadores registrados na Europa e em outros
lugares do mundo, as duas grandes guerras mundiais acabaram por devastar cidades na
Europa e em diversas partes do mundo, expondo as atrocidades cometidas em nome do
exercício do poder.
Ainda segundo Arendt (2006, p. 324), “A Declaração dos Direitos do Homem, no fim
do século XVIII, foi um marco decisivo na história. Significava que doravante o homem, e
não o comando de Deus nem os costumes da história, seria a fonte da Lei”.
2
Inaugura o que se convencionou chamar direito humanitário, em matéria internacional; isto é, o conjunto das
leis e costumes da guerra, visando minorar o sofrimento de soldados doentes e feridos, bem como de populações
civis atingidas por um conflito bélico. É a primeira introdução dos direitos humanos na esfera internacional.
17
Segundo Sarlet (2012, p. 28), a dignidade da pessoa humana foi recepcionada como
princípio constitucional pela primeira vez, após a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, na Carta Constitucional da República Alemã, de 1949. Seu Artigo 1º previa que “A
dignidade da pessoa humana é inviolável. Todas as autoridades públicas têm o dever de a
respeitar e proteger”.
Ramos (2014, p. 97), citando Bonavides e outros estudiosos do tema, salienta que
estes autores passaram a defender a existência de uma quarta geração de direitos, resultante da
globalização dos direitos humanos, que passou a abarcar o direito à participação democrática,
à informação.
2.2 O direito à saúde como um dos elementos essenciais do direito à dignidade da pessoa
O direito à saúde, nos primórdios das civilizações, era voltado basicamente para as
ações curativas individuais, de modo que a preocupação em desenvolver um sistema de
prevenção de enfermidades somente surgiu após a proliferação de epidemias, como a peste
bubônica. Em realidade, foi apenas a partir da primeira metade do século XIX que o Estado
passou a fomentar efetivamente a proteção social dos indivíduos, especialmente dos
trabalhadores, em razão do processo de industrialização e urbanização que ocorriam
notadamente na Europa.
Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seu art. 25 estabeleceu
que “Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a
saúde e o bem-estar...”, restou claro que o direito à saúde passou a ser encarado como um bem
jurídico relacionado com o que se tem de mais importante: a vida. Através dos demais
21
tratados, pactos e leis que decorreram da Declaração Universal citada, o direito à saúde
passou a ser compreendido, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), como o
completo e prioritário bem-estar físico, mental e social, deixando de ser definido apenas como
ausência de doenças ou seus agravos.
Numa visão mais moderna desenvolvida pela OMS, a saúde passou a ser entendida
como um estado de completo bem-estar físico, psíquico e social em interação com o meio.
Nesse ponto, cabe destacar a citação de Reimão (2008, p. 139) sobre o pensamento de
Alcméon de Crotona, que viveu no início do século V a. C., e trouxe a primeira definição
conhecida de saúde:
Reimão (2010, p. 149) faz também uma interessante reflexão sobre o tema quando
afirma que “numa perspectiva hermenêutica, os seres humanos, para além de uma análise do
ponto de vista biológico, necessitam de ser considerados como sujeitos que reflectem e
vivenciam uma experiência subjetiva da doença”. E vai além quando sustenta a “necessidade
de um conceito de saúde que não perca de vista o indivíduo e tenha sempre como referência a
especificidade de cada pessoa”.
22
Apesar de todos os avanços das ciências naturais, bem como do progresso das técnicas
de diagnóstico e tratamento, a esfera do não racionalizado nessa seara da doença e da saúde é
especialmente ampla. Por isso o pensamento de Gadamer sobre o tema, fundamentalmente
antropológico, inclui o elemento ético (o bem-estar moral) na concepção de saúde,
aproximando-se muito da definição dada pela OMS.
Ainda no tocante a obra O caráter oculto da saúde, Gadamer observa que mesmo
tratando-se de doente incurável, o paciente “torna-se objeto de preocupação médica, pelo
menos na existência de uma maturidade de consciência médica que, com a perspectiva
filosófica, ande a par com a essência do logos” (GADAMER, 2011, p. 43).
Os direitos sociais, por sua vez, correspondem aos princípios morais que permitem que
os indivíduos possam satisfazer as suas necessidades básicas e possam respeitar a si mesmo e
aos outros dentro do conceito de vida digna. Traduzem-se, como já afirmado linhas acima,
como verdadeiros direitos de defesa, ou de crédito, do indivíduo em face do Estado, que tem o
dever correlato de prover a sua concretização.
tratamos da questão da saúde, pois, como veremos adiante, a prestação desse direito não pode
ser dissociada de uma atuação ética e diretamente relacionada à satisfação de condições
mínimas para a concretização de uma vida digna, sendo o indivíduo colocado sempre em
primeiro plano.
O direito não possui uma definição universal válida para todo tempo e lugar, e muito
menos as suas funções são únicas, já que trazem consigo uma carga histórica e diferenciada.
As diversidades de comportamento, o crescimento exponencial das populações e as
complicações daí decorrentes possibilitaram o surgimento de sociedades cada vez mais
complexas. Para oferecer a solução de problemas decorrentes do aumento da complexidade
social, também o direito se modificou ao longo do tempo para se adequar a cada nova
realidade. Na sociedade atual, o sistema do direito tem que dar respostas que ultrapassam seus
objetivos iniciais, quando houve a evolução do direito de uma sociedade na qual as regras
jurídicas confundiam-se com regras morais, para uma sociedade onde ocorre a diferenciação e
separação entre direito e regras morais.
Diante de novas demandas sociais e jurídicas, o direito baseado na perspectiva
dogmática precisa adequar-se às novas demandas da sociedade, e isso requer uma análise da
complexidade típica da sociedade moderna e de seus paradoxos. Tornar o direito à saúde
24
efetivo depende da exata compreensão do tipo de sociedade em que vai ser implantado, e
também da concretização da democracia, visto que a saúde é um direito fundamental. Não há
dúvidas de que o sistema jurídico se posiciona em um lugar especial no sistema social, motivo
pelo qual é preciso compreendê-lo não apenas como um fenômeno dogmático, mas
principalmente por sua imersão no processo de evolução do fenômeno social.
Na visão positivista de Herbert Hart, que considera que não há conexão entre direito e
moral e que um sistema legal seria aquele sistema lógico fechado, baseado em procedimentos
lógicos a partir de regras jurídicas predeterminadas, o projeto de Modernidade que repercutiu
na política fundadora do Estado Moderno passou a expressar-se no princípio da
universalidade dos princípios legais e filosóficos, ou seja, na razão legislativa.
Como constatado por Souza Neto (2002, p.87), “sob o prisma do ideal de segurança
jurídica, inserido no princípio da legalidade, pode-se perceber mais uma vez o vínculo estreito
entre liberalismo político e positivismo jurídico”, sendo a obra de Thomas Hobbes
identificada como a marca de nascença da ordem, ou seja, da consciência moderna, ou
simplesmente Modernidade.
propostas pela Modernidade, uma desincorporação das formas sociais industriais da Primeira
Modernidade para a incorporação de uma outra forma social, que Beck (1995, p. 12) chama
de Segunda Modernidade.
Essa modernização reflexiva, sob a ótica do campo político, gera inseguranças de toda
ordem que, como indica Cardoso (2010, p. 75), implicam no reconhecimento de uma
sociedade de risco, assim delimitada por Beck (1995, p. 14):
participação na sociedade. Toda essa discussão, como veremos adiante, inclui as questões
relacionadas à saúde.
A dignidade da pessoa humana, sintetiza Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 70), pode ser
compreendida como:
A dignidade humana não pode ser vista apenas como um direito, mas como um
atributo de todo ser humano, independente de nacionalidade, sexo, religião, posição social,
etc. Por isso, afirma Jacintho (2009, p. 205), “hoje já não se pode falar em Estado de Direito
democrático sem se falar em direitos fundamentais universais e indivisíveis, plenamente
assegurados...”.
A partir de 1988, e mais ativamente nos últimos dez ou quinze anos, a Constituição
Federal passou a gozar não apenas da supremacia formal que sempre teve, mas também de
uma supremacia material, axiológica, potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela
normatividade de seus princípios.
Dessa forma, e diante da sua íntima ligação com o direito à vida e a dignidade da
pessoa, o direito a saúde no Brasil, com seu caráter de essencialidade, foi previsto
genericamente no artigo 6º da CF/88, juntamente com todos os outros direitos fundamentais
sociais e, também, nos artigos 196 a 200 da mesma Carta.
Como “direito de todos”, a expressão direito à saúde abrange não somente o aspecto
individual, como também o coletivo, reconhecido como direito público subjetivo assegurado à
generalidade das pessoas, que conduz o indivíduo e o estado a uma relação jurídica
obrigacional. Contudo, cabe frisar que apenas com o advento da Constituição de 1988, fruto
de intensas reivindicações decorrentes de uma pluralidade de grupos sociais e políticos, a
saúde no país alcançou status de direito fundamental com prestação positiva do Estado.
Atribui-se, hoje, às ações e serviços de saúde o caráter de relevância pública, valendo, nesse
aspecto, transcrever paradigmática decisão do Supremo Tribunal Federal:
Por fim, no que diz respeito às “Ações e serviços para a promoção, proteção e
recuperação da saúde”, é certo que a eficácia social desse direito fundamental está muito mais
ligada à implementação e manutenção de políticas públicas do que com a estruturação de
legislação específica, como se verá adiante. A adoção de políticas sociais e econômicas de
caráter preventivo e reparativo, decorrente do acesso universal e igualitário já mencionado,
requer prestações materiais e jurídicas adequadas à proteção da saúde, não podendo a sua
materialização ficar à mercê das limitações econômicas do Estado.
Por outro giro, o artigo 197 da CF/1988 traz como seu elemento essencial, um
conceito jurídico indeterminado: a “saúde”. Desde a antiguidade, citado vocábulo é definido
como o funcionamento fisiológico harmonioso ou o exercício sem obstáculo das funções da
vida orgânica. Ou seja, saúde é um atributo da pessoa humana.
Nessa linha de pensamento, o art. 198 da Carta Maior passou a estabelecer que as
ações e serviços públicos de saúde devem integrar uma rede regionalizada e hierarquizada em
um sistema único, organizado com base na descentralização política e a autonomia dos entes
federados, conferindo liberdade de atuação da iniciativa privada de forma complementar.
3
A 8ª Conferência Nacional de Saúde, ocorrida de 17 a 21 de março de 1986, representou um marco político
para o processo de transformação da saúde no Brasil, consubstanciado no reconhecimento do direito a saúde
como direito fundamental do ser humano, tendo o Estado como seu garantidor. Vide
http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/Relatorios/relatorio_8.pdf.
4
“Humanizar na atenção à saúde é entender cada pessoa em sua singularidade, tendo necessidades específicas, e,
assim, criando condições para que tenha maiores possibilidades para exercer sua vontade de forma autônoma”.
Disponível em http://www.revistas.usp.br/sausoc/article/viewFile/7123/8597, em 20 de janeiro de 2016.
33
prevê que o Sistema Único de Saúde (SUS) é constituído pelo “conjunto de ações e serviços
de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da
Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público”. Prevê, ainda,
em seu art. 7º, que qualquer pessoa que se encontre no Brasil possa exigir, individualmente ou
coletivamente, a prestação de serviços de saúde, devendo ser atendida e assistida sempre que
necessitar, utilizando-se ou não de insumos públicos.
Depois da promulgação da lei que estabeleceu o SUS, e sob forte influência das
reivindicações do movimento de reforma sanitária e de diversos grupos e associações da
sociedade civil, visando estabelecer o controle social mencionado acima, foi promulgada a
Lei n.º 8.142/90. Esta lei regulamentou a criação e funcionamento dos Conselhos de Saúde e
Conferências de Saúde através de dois instrumentos, a saber: atuação dos Conselhos de Saúde
(Conselho Nacional de Saúde (CNS); Conselho Nacional de Secretários de Saúde
(CONASS); Conselho Nacional de Secretários de Saúde Municipais (CONASEMS) formados
nos termos da referida lei; realização das Conferências Nacionais de Saúde, que ocorrerão a
cada quatro anos, quando, então, a comunidade poderá opinar e acompanhar a execução e
fiscalização das ações de saúde nas três esferas de governo. Tais espaços representam
34
A todo instante, no país, noticia-se nos meios de comunicação um cenário cada dia
mais desconfortável para a sociedade, que suplica por socorro. Pacientes atendidos em macas
nos corredores de unidades hospitalares, hospitais beneficentes sendo fechados, relatos do
desespero de cidadãos que vão em busca de atendimento médico e padecem em filas
intermináveis. Faltam médicos, material hospitalar e infraestrutura de atendimento, vivendo o
usuário da saúde pública no Brasil uma situação de desespero.
ou não à saúde, ainda que relacionadas a proporcionar direitos, não nascem como norma
jurídica, carregando sua índole de escolha política, indissociável da sua própria existência.
funcional do princípio da separação dos Poderes, de modo que o controle judicial será
tendencialmente mais denso quanto maior for o grau de restrição imposta pela atuação
administrativa sobre os direitos fundamentais.
Por isso o direito, através dos seus agentes provocadores e aplicadores da lei, tem
demonstrado uma preocupação cada vez maior com a implantação de medidas que visam um
maior controle jurídico e social sobre os objetivos postos como direitos sociais pela
Constituição.
A teoria da reserva do possível surgiu na Alemanha dos anos 1970 e tornou-se notável
a partir de decisão da Corte Constitucional Alemã, conhecida como o caso Numerus Clausus,
posto que discutia a limitação do número de vagas nas universidades públicas alemãs. No
37
caso em comento, a Corte alemã foi provocada a decidir acerca de demanda ajuizada por
estudantes que não haviam sido aceitos em universidades de medicina de Hamburgo e
Munique, pois havia, naquela época, uma política de limitação do número de vagas nos cursos
superiores. Como apontado por Fernando Mânica (2007. p. 169), o objetivo perquirido pelos
demandantes baseou-se no artigo 12 da Lei Fundamental Alemã, que dizia que “todos os
alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de
formação”.
A Corte Alemã, para resolver a demanda, decidiu que o direito à prestação positiva, ou
seja, a disponibilização de vagas em universidades, dependia do que preceituava a inovadora
teoria da “Reserva do Possível”, firmando posicionamento de que o cidadão só poderia exigir
do Estado aquilo que razoavelmente se pudesse esperar.
Em outras palavras, como trazido por Sarlet (2005, p. 266), a Corte Alemã invocou a
razoabilidade da pretensão frente às necessidades da sociedade, de modo que, mesmo
dispondo de recursos e tendo poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação do
Estado de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável.
Cabe frisar que o controle judicial de políticas públicas visa exatamente garantir o
mínimo existencial, considerado este como um substrato mínimo de direitos que possam
assegurar uma vida com dignidade. Embora careça de conteúdo específico, não possuindo
dicção constitucional, o mínimo existencial não se confunde com o mínimo vital, capaz
apenas de garantir uma mera sobrevivência ou subsistência do indivíduo. Estamos falando
sobre a continuidade da vida calcada em uma tranquilidade física e psíquica que seja capaz de
promover oportunidades de evolução e desenvolvimento.
Convém mencionar, ainda, como destacado por Torres (1990, p. 69), que “o mínimo
necessário à existência constitui um direito fundamental, posto que sem ele cessa a
possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais de liberdade”.
Deixa de existir, portanto, uma verdadeira liberdade que caracterize uma democracia
substancial, e não apenas formal.
cidadão. A finitude dos recursos e a infinitude das demandas representam mais um agravante
nessa difícil equação, especialmente quando se está diante de escolhas administrativas que se
distanciam dos ditames constitucionais. A efetivação e efetividade da prestação da saúde
dependerá de escolhas do Poder Público que tracem políticas públicas voltadas a concretizar
esse direito. Escolhas trágicas poderão aniquilar o direito à saúde e ferir frontalmente os
preceitos constitucionais. Por esse motivo, os demais Poderes Públicos também devem
desempenhar um papel relevante nesse processo. Enquanto a atuação do legislador deve
definir os limites e orçamentos para o custeio das ações sociais, relacionadas diretamente com
a questão da responsabilidade fiscal, ao Judiciário compete atuar como guardião da
Constituição e zelar pela correta aplicação das leis.
Diante do cenário exposto, que denota um fracasso do Poder Público no que toca a
prestação do serviço de saúde, oportuno mencionar a interessante reflexão encontrada em
Freitas (2012), cuja obra procura justificar a elevação da sustentabilidade à categoria de
princípio constitucional que determina promover, em longo prazo, o desenvolvimento
propício ao bem-estar pluridimensional, com reconhecimento da titularidade de direitos
fundamentais das gerações presentes e futuras.
demais seres vivos. Na econômica, a sustentabilidade deve lidar com custos e benefícios,
combatendo o desperdício lato sensu, com uma atuação de regulação estatal do mercado que
propicie que a eficiência guarde comprovada e mensurável subordinação à eficácia. Na ética,
a sustentabilidade requer a exigência moral de universalização concreta, tópico-sistemática,
do bem-estar duradouro. Em sua dimensão ambiental, a sustentabilidade faz perceber que
não há qualidade de vida em ambiente degradado. Por fim, no que diz respeito à dimensão
jurídico-política, a sustentabilidade assume a feição de princípio constitucional, imediata e
diretamente vinculante (art. 225, § 3º e 170, VI), que requer uma nova interpretação jurídica
conducente ao Estado Sustentável.
Dessa forma, a sustentabilidade merece ser vista, ao mesmo tempo, como valor e
como princípio. Isso porque a dignidade humana, embora precise sempre estar em pauta, já
não se mostra suficiente, cumprindo agora proteger o dinâmico equilíbrio ecológico e o valor
intrínseco dos seres vivos capazes de sofrimento, com a vedação da crueldade prescrita no art.
225 da Constituição Federal.
Importante citar que desde o ano de 1987 a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente
já havia produzido o Relatório Brundtland, denominado “Nosso Futuro Comum”, onde o
desenvolvimento sustentável seria aquele que satisfizesse as necessidades presentes, sem
comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir as suas. Sustentável, pois, seria a
política que inserisse todos os seres vivos, de algum modo, neste futuro comum.
Para que haja a citada inserção, e como pressuposto da boa governança, é necessária a
mais larga participação na tomada de decisões, sem, entretanto, excluir os legitimados futuros,
que merecem igual acesso ao bem-estar, seja nas relações de direito público, seja nas relações
privadas.
5
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
42
Nesse contexto, vale mencionar a ética da responsabilidade de Hans Jonas, que será
delineada mais adiante, para quem a ética deve proteger o homem e a natureza dos riscos e
perigos da técnica. A ideia de homem remete à responsabilidade sobre a sua existência não
somente enquanto essência, mas também enquanto presença e corporificação no mundo,
caracterizando a fundamentação ontológica da ética do futuro.
44
Dentro do tema proposto neste capítulo, que tratará do Estado como prestador do
serviço de saúde no país, faz-se necessário compreender a trajetória do Estado de Direito, que
alcançou seu ápice no final do século XX inserido em um contexto político-social de profunda
internacionalização e redefinição de seu papel, naquilo que se convencionou denominar
processo de globalização.
Para Moreira Neto (1998, p.1), a interdependência dos países em todo o mundo, ou
simplesmente globalização, pode assim ser definida;
fenômeno pode ser explicado pela latente separação entre o Estado como agente nacional e as
empresas, transformadas em agentes mundiais. Essa mudança de paradigma de Estado e de
direito (constitucional, administrativo e econômico), teve também sua repercussão no Brasil,
que viveu, desde o momento do seu descobrimento, sob a batuta da Administração Pública
Patrimonialista, passando em seguida a ser gerido sob a égide de Administração Pública
burocrática de um Estado prestador e, finalmente, seguiu em direção à administração
gerencial de um Estado regulador, subsidiário. Este último modelo de Estado, com crescente
atribuição de competência para emissão de normas pelo Executivo, é, ainda nas palavras do
autor, o Estado da sociedade de risco.
A crise financeira dos anos 1970, mais precisamente a partir da crise do petróleo de
1973 e seu agravamento na década de 1980, fomentaram a reforma do Estado e o tema passou
a figurar como ponto central na agenda política mundial.
Existe hoje um consenso na identificação das duas principais causas para a reforma da
Administração, como citado por Cardoso (2006, p. 40-42): primeiro, a grandiosidade dos
déficits fiscais existentes em praticamente todos os países na década de 1980; e, segundo, a
baixa qualidade dos serviços públicos em razão da pouca receptividade às necessidades dos
usuários. Decorrente dessa constatação, o autor afirma que “O modelo de administração
burocrático, garantidor da aplicação da legislação, centralizado, rígido e organizado
hierarquicamente, não mais atendia aos reclames dos destinatários da atividade estatal.”
Seja qual for o modelo de Administração Pública adotado, entretanto, é preciso levar
em consideração que qualquer reforma administrativa requer um processo de adaptação da
máquina pública ao ambiente em que está inserido. O Estado, sendo um sistema que engloba
outros subsistemas, é formado de diversas partes que interagem entre si e relacionam-se como
um todo, buscando realizar os objetivos que pretende alcançar. Nesse processo, o
reconhecimento de suas bases culturais permite que qualquer proposta de mudança na forma
de administrar seja mais condizente com a realidade de cada país.
Para Bresser Pereira (2000) existem basicamente três formas de administrar ou gerir a
organização do Estado: a administração patrimonialista, a administração burocrática e a
administração gerencial.
Em que pese já ter decorrido um longo período desde 1930, não raro se depara com
um patrimonialismo escamoteado em muitos órgãos públicos, coexistindo com os modelos
burocrático e gerencial que serão abaixo tratados. Aliás, traços dessa velha forma de
administrar encontra guarida, atualmente, na discutida margem de
discricionariedade administrativa, utilizada inadequadamente por maus gestores para obtenção
de vantagens pessoais, fomentando os desvios e a corrupção.
Bresser Pereira aponta o modelo gerencial inglês como aquele que exerceu uma forte
influência em diversos países do ocidente, em especial no Brasil, resultado de uma profunda
49
reforma administrativa muito bem avaliada, na opinião do autor, nos mais de trinta anos de
sua implementação.
Note-se que apesar das mudanças significativas trazidas pelo modelo de administração
gerencial inglês, que rompeu com a administração burocrática até então existente e bastante
difundida, muitas críticas foram direcionadas a esse novo modelo, especialmente no tocante
às privatizações realizadas que, entretanto, não é objeto de análise nessa dissertação.
50
A primeira grande reforma ocorreu em 1936 e foi promovida por Maurício Nabuco e
Luiz Simões Lopes (BRESSER PEREIRA, 1998), afastando a administração patrimonialista
ainda vigente e nos moldes já mencionados, instituindo uma administração burocrática
baseada na teoria de Max Weber. Essa reforma foi instrumentalizada pela Lei n.º 284 de 28 de
outubro de 1936,6 tendo a Administração Pública federal sido organizada em quadros e
carreiras, vinculando os diferentes órgãos e empresas existentes a um determinado Ministério.
Com isso, foi instituída, ainda que de forma embrionária, a busca pela eficiência do serviço
público, a ser alcançada pela articulação do Conselho Federal do Serviço Público Civil com as
Comissões de Eficiência.7 Estruturou, em capítulo destinado ao funcionalismo, padrões de
vencimentos fixos e mensais, estabelecendo critérios para promoções, remoções. Nas
disposições gerais, institui o concurso público como regra para ingresso da carreira, bem
como o estágio probatório para a confirmação.8
Trinta anos depois, veio a reforma de 1967, veiculada através do Decreto-Lei n.º 200,
de 25 de fevereiro de 1967, sob o comando de Amaral Peixoto e inspiração de Hélio Beltrão
(BRESSER PEREIRA, 1998). Sem abandonar do modelo de organização burocrática já
instituído para a administração centralizada, a intenção era simplificar a máquina
administrativa federal. A delegação de atividades e a criação de centros de decisões, com a
expressa autorização para criação de autarquias, fundações públicas, empresas públicas e
6
Lei n.º 284/1936. Reajusta os quadros e os vencimentos do funcionalismo público civil da União e estabelece
diversas providências.
7
Lei n.º 284/1936, art. 15.
8
Lei n.º 284/1936, art. 41 e 40.
51
sociedades de economia mista, possibilitou regularizar uma situação que já ocorria na prática.
Instituiu como princípios de racionalidade o planejamento, o orçamento, a descentralização e
o controle de resultados. Na administração descentralizada, prevaleceu o regime celetista de
emprego, sem a necessidade de concursos públicos para a contratação.
A quarta reforma foi instituída pela Constituição Federal de 1988, com a criação de
mecanismos mais rígidos, merecendo destaque a crítica proferida por Moreira Neto (2001, p.
151):
Com a mesma visão, Bresser Pereira (1998, p. 246) chegou a afirmar que o capítulo
dedicado à Administração Pública da Constituição de 1988 representou um retrocesso:
A quinta reforma identificada por Cardoso foi aquela implantada através de uma série
de medidas, especialmente leis e emendas constitucionais, que objetivaram reverter o cenário
construído pela redação original da Constituição de 1988. A crise do Estado tradicional,
traduzida na incapacidade de realizar os investimentos necessários na consecução de todas as
atribuições originalmente impostas pela CF/88, propiciou entre nós a implantação daquele
novo modelo de administração pública gerencial calcada na eficácia, eficiência e
responsabilização por metas estabelecidas e controle (accountability), impedindo a
apropriação de bens públicos por setores privados e orientado por valores gerados pela própria
53
A ineficiência do Estado brasileiro, como acima mencionado, foi agravada com a crise
fiscal decorrente do fracasso do Plano Cruzado em 1987, da hiperinflação do final do governo
Sarney em 1990 e do total descrédito na administração central provocado pelo governo de
Fernando Collor de Melo, tendo todos esses fatores propiciado e impulsionado a reforma da
economia e do Estado.
9
Emenda Constitucional n.º 05/1995. Altera o § 2º do art. 25 da Constituição Federal.
10
Emenda Constitucional n.º 06/1995. Altera o inciso IX do art. 170, o art. 171 e o § 1º do art. 176 da
Constituição Federal.
11
Emenda Constitucional n.º 07/1995. Altera o art. 178 da Constituição Federal e dispõe sobre a adoção de
Medidas Provisórias.
12
Emenda Constitucional n.º 08/1995. Altera o inciso XI e a alínea "a" do inciso XII do artigo 21 da Constituição
Federal.
13
Emenda Constitucional n.º 09/1995. Dá nova redação ao art. 177 da Constituição Federal, alterando e inserindo
parágrafos.
14
Emenda Constitucional n.º 19/1998. Modifica o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração
Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo
do Distrito Federal, e dá outras providências.
15
Emenda Constitucional n.º 20/1998. Modifica o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e
dá outras providencias. Observa Eros Roberto Grau: “Desde que tomou posse como Presidente da República, o
Professor Fernando Henrique Cardoso passou a patrocinar a reforma da Constituição, pretendendo obter o que já
havia sido anteriormente objetivado pelo Presidente Fernando Collor de Mello. As propostas de alteração
constitucional de um e outro são muitos semelhantes. Ainda que não tenham comprometido as linhas básicas da
54
Lei Complementar n.º 101/2000,16 denominada Lei de Responsabilidade Fiscal, que também
se insere no âmbito da citada reforma.
Entretanto, foi no setor das atividades exclusivas e no setor dos serviços não-
exclusivos que a reforma foi mais sentida.
Nesse sentido, Nuria Cunnil Grau (1998, p. 237) esclareceu que se trata de “substituir,
nessas agências, a Administração Pública burocrática por uma ‘Administração Pública
gerencial’, baseada no controle a posteriori dos resultados e na competência administrativa.”
Bresser Pereira e Nuria Cunill Grau (1998) destacam que as organizações públicas
não-estatais (OPNEs) não são nem estatais nem privadas, não tendo fins lucrativos, mas
destinando-se a prestar serviços de interesse público de natureza concorrencial ou
competitiva, com financiamento público e métodos de funcionamento do setor privado,
submetidas a controle estatal e social. A razão principal para recorrer-se a essas entidades,
segundo a autora, não é porque sejam mais eficientes na provisão de serviços sociais, como se
poderia supor, mas sim porque elas desenvolvem papéis que nem o Estado nem o mercado
conseguem cumprir, havendo basicamente três grandes vantagens na sua forma de atuar: a
pluralização da oferta de serviços sociais, a desburocratização da gestão social e a
responsabilidade de dirigentes da organização.
formando o chamado Terceiro Setor, o qual recebe fomento estatal para desempenhar
atividades em colaboração com o Poder Público.
O estabelecimento dessa política que transfere para o setor particular a execução dos
serviços públicos e reserva para Administração Pública a regulação, o controle e a
fiscalização dessa prestação, passou a exigir uma atuação diferenciada do Estado.
conceituadas como plataformas colaborativas que permitem combinar essa colaboração com
um objetivo comum, conservando a autonomia relacionada a cada um dos seus pontos
cruciais. Por isso, permitem a implantação de um novo modelo que foge aos padrões da
excessiva centralização.
Contudo, é preciso esclarecer que trabalhar em rede não significa trabalhar sem
liderança. Existe, sim, um ponto focal que converge para as atividades conjuntas, mesmo que
ela fuja da sua estrutura hierárquica vertical original. Quem lidera essa administração em rede,
no caso da saúde, o Estado, tem que exercer autoridade e controle sobre serviços que não
estão sujeitos diretamente à sua disciplina hierárquica, e talvez aí resida a grande dificuldade
desse modelo.
É certo que uma parcela dos prestadores de serviços de saúde é regida integralmente
por regime jurídico de direito público, ou seja, pela Administração direta, indireta, autárquica
e indireta fundacional de regime público. Por outro lado, e ainda integrantes da Administração
indireta, mas regidos preponderantemente por regime de direito privado, integram o SUS
empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços de saúde, a
exemplo da administradora de unidades hospitalares denominada Empresa Brasileira de
Serviços Hospitalares (EBSERH), criada pela Lei 12.550/2011 para administrar os hospitais
universitários federais, além de fundações públicas instituídas pelo Estado sob regime de
direito privado.
O SUS pode, ainda, constituir consórcios públicos sob regime de direito público, com
natureza autárquica, ou de direito privado, com natureza de fundação privada, para a gestão
associada de serviços públicos.
O art. 4º, § 2º, da Lei nº 8080/90, que instituiu o SUS conforme já mencionado, prevê
que “A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em caráter
60
Tal assertiva, com a credibilidade de quem traz a informação, torna claro que apenas
uma pequena minoria dos atendimentos de saúde é prestada diretamente por entidades
públicas vinculadas às Administração direta – hospitais, postos de saúde e demais unidades de
atendimento da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios – ou integrantes da
Administração indireta, tanto em regime jurídico administrativo quanto em regime de direito
privado.
18
Em notícia do Correio Braziliense, apresentando o Seminário Terceiro Setor em Pauta, na Universidade
Católica de Brasília, o referido autor afirma que as atividades do segmento têm crescido no Brasil nas últimas
duas décadas. Na atualidade, de 50% a 70% dos atendimentos de saúde e educação no país são prestados pela
iniciativa privada sem fins lucrativos. “Essas entidades têm um papel muito importante no Brasil e no mundo ao
oferecer esses serviços, por isso, o debate tem que ser enorme.” (CORREIO BRAZILIENSE, 2014).
61
jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à
pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio
ambiente, à cultura e à saúde.
Adquire extrema relevância neste cenário a regulação do SUS, que se dá através das
centrais de regulação - Central de Regulação de Acesso ou Complexo Regulador. Dispõe a
Portaria/SAS/MS n. º 356, de 22 de setembro de 2000:
Como bem explicitado por Cardoso (2006, p. 85), “O advento do Estado Regulador,
ou mais precisamente a difusão em nível mundial da regulação, situa-se num processo global
de revisão das funções estatais”. Para tanto, a Administração Pública além de retrair-se no
exercício das atividades econômicas de natureza privada, deixa ao particular a prestação de
62
A proposta da Política Nacional de Regulação, definida pelo Pacto pela Saúde de 2006
(Portaria/GM nº. 399/2006), estabelece que a Política de Regulação da Atenção à Saúde deve
ter como objetivo implementar ações meio que incidam sobre os prestadores, públicos e
privados, articulando e integrando mecanismos que permitam aos gestores regular as ações e
serviços de saúde. Nesta linha de gestão, as unidades executantes (entes públicos e privados)
agirão sob regulação do gestor (municipal, estadual ou federal), através da observância de atos
administrativos (entes públicos da administração direta) ou da celebração de contratos
administrativos ou de convênios (demais entres públicos descentralizados ou privados),
ofertando sua capacidade física de atendimento, ou parte dela, para a central de regulação.
Fazem parte da rede assistencial do SUS e são incorporados às centrais de regulação por meio
do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES) (BRASIL, 2006).
A União, por exemplo, pouco possui de estrutura para prestação de atividade fim nos
municípios, à exceção das capitais dos Estados. Em realidade, trabalha em parceria com
instituições credenciadas que recebem, segundo tabela do SUS, valores pré-fixados para cada
um dos procedimentos prestados à população – ambulatorial, internação, urgência, cirurgia.
Nestes convênios figuram um conjunto de entes, tanto entidades sem fins lucrativos quanto
unidades hospitalares com fim lucrativo.
19
“Do conceito de regulação está excluída a atividade direta do Estado como produtor de bens ou serviços e
como fomentador das atividades econômicas privadas, que, junto com a regulação, constituem espécies do
gênero da intervenção do estado na economia.” (ARAGÃO, 2003, p. 23).
63
Inevitável, ainda, citar os atos de corrupção que assolam o país e atingem diretamente
cada um dos brasileiros. A desestruturação dos prestadores de saúde dentro do modelo
adotado pelo país possibilita, e até mesmo facilita, o desvio de dinheiro público, relegando o
indivíduo ao plano do total desrespeito.
Nardes (2014, p. 179), citando palestra intitulada “The next age of government”,
proferida por David Cameron, atual Primeiro Ministro do Reino Unido, informa que a
evolução da atuação do Estado e do poder de acompanhamento de suas ações pela população
teve, basicamente, três passagens históricas: a era pré-burocrática, a era burocrática e a era
64
Ultrapassada a grande crise de 1929 e as duas guerras mundiais, como apontado por
Nardes (2014, p. 179), os Estados passaram a se preocupar mais com a prestação de serviços
nas áreas sociais, buscando sempre preservar a lei e a ordem. Como consequência, houve o
inevitável incremento da carga tributária, que fez com que a população se manifestasse cada
vez mais acerca da qualidade dos gastos públicos e do baixo retorno dos serviços prestados
pelo Estado.
Como dito por Dias e Cairo (2014, p. 92), embora tenha se tornado um conceito chave
para abarcar diversos fenômenos, a governança deve significar que a atuação do Estado é
sempre dependente de outros atores. Isso porque, com as reformas neoliberais balizadas pelos
mecanismos de mercado (privatizações, terceirizações, contratos de gestão) e do New Public
Management (adoção de práticas da iniciativa privada, foco nos resultados), a prestação de
serviços públicos restou fragmentada.
Por isso, Dias e Cairo (2014, p. 96-97) esclarecem que surge a necessidade de um
modelo de Administração Pública onde as atividades de governo sejam idealizadas e
realizadas compreendendo que as demandas sociais não são uma responsabilidade isolada do
Estado, do mercado ou da sociedade civil, mas de todo esse conjunto.
manutenção do controle, o grau que cada modelo de governança requer de autoridade legal e
política e a força das organizações sociais e das redes (DIAS; CAIRO, 2014).
Portanto, para Nardes (2014, p. 206), uma boa Governança deve procurar:
Pode-se concluir, portanto, que a boa governança pode alcançar, com o mesmo
volume de recursos que se dispõe hoje, a melhora na qualidade do serviço prestado
especialmente na área da saúde, mesmo sem reformas estruturantes de natureza
previdenciária, trabalhista, política e fiscal.
Uma questão difícil de aceitar é que mesmo a saúde, que caracteriza um dos bens mais
importantes na vida do ser humano, tem preço e, portanto, limite. O Poder Público dispõe de
escassos recursos para serem alocados à saúde, de modo que as escolhas da Administração
67
Pública, inclusive em outras áreas, são capazes de repercutir na prestação desse serviço tão
essencial. Quanto à escassez de recursos, cabe mencionar uma didática distinção: utiliza-se a
expressão “escassez relativa” quando relacionada ao tanto de recurso que a Administração
Pública aloca para a área da saúde, em comparação com as demais áreas de sua atuação. Por
seu turno, a expressão “escassez absoluta” relaciona-se a como os recursos destinados
exclusivamente à saúde devem ser utilizados para atender às diversas necessidades da
população
Percebe-se que “o quanto” se investe nessa área diz respeito diretamente à valoração
da saúde em relação a outros interesses. Já “o como” investem-se os recursos demonstra as
prioridades elencadas pela administração, que envolvem diversas necessidades e distintas
possibilidades de ação na implementação de políticas públicas de saúde.
Diante do citado cenário caótico, a judicialização da saúde passa a ser a regra, posta
como condição para o recebimento de serviços negados em balcões de unidades hospitalares
em todo o país.
Nesse sentido, e apesar de outras citações sobre o assunto, cabe ainda lembrar as lições
de Grinover (2008, p. 15), para quem “o mínimo existencial é considerado um direito às
condições mínimas de existência humana digna que exige prestações positivas do Estado”.
68
Barroso (2012, p. 50) afirma que não só os princípios constitucionais gerais, mas
também os específicos – moralidade, eficiência, razoabilidade, e proporcionalidade –
permitem o controle da discricionariedade administrativa. Entretanto, neste controle, adverte o
autor, recomenda-se contenção e prudência.
Cassar a escolha da Administração não significa, por seu turno, que o juiz possa
substituir o Administrador em sua escolha. Se assim fosse, tudo se reduziria em substituir a
discricionariedade administrativa pela discricionariedade judicial, sem avançar no problema.
69
O que se pretende é a retirada do ato arbitrário. Como bem disse França (2000, p.
168):
No tocante às políticas públicas, importante estabelecer qual deve ser o papel do Poder
Judiciário. A Constituição Federal estabelece como direitos sociais a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, e a assistência aos desamparados.
Esclarece Alexy (1997, p. 111) que “não é nem necessário nem funcional ligar o
conceito de princípio ao conceito de direito individual”20, sendo preferível, em razão da
comunhão das propriedades lógicas comuns a direitos individuais e políticas públicas, a
utilização ampla do conceito. Esclarece o autor que a diferença entre regras e princípios
(incluindo-se as políticas públicas) é qualitativa:
20
“ no es ni necesario ni funcional ligar el concepto de principio al concepto de derecho individual”
21
“Esta consiste en que los principios son mandatos de optimización. Esto significa que son normas que ordenan
que algo sea realizado en una medida lo mayor posible dentro del marco de las posibilidades fácticas e jurídicas.
En cambio, las reglas son mandatos definitivos. De esta distinción se siguen todas las otras distinciones, por
ejemplo, que los principios, en tanto mandatos de optimización, son realizados en diferente grado mientras que
las reglas, en tanto mandatos definitivos, siempre pueden ser realizadas o no.”
71
normativa, deixa de ser impeditivo à sua efetivação. São normas cogentes especialmente em
se tratando de políticas públicas relacionadas ao mínimo existencial. Previstas na
Constituição, ou mesmo em leis, o Judiciário, provocado, pode obrigar o Executivo a
implementar os deveres do Estado Social.
Também de lavra do Supremo Tribunal Federal, outra decisão que, pela clareza das
ideias em que se lastreia, tornou-se importante precedente:
22
No mesmo sentido: AI 550.530-AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, julgamento em 26-6-2012, Segunda Turma,
DJE de 16-8-2012; RE 368.564, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgamento em 13-4-2011, Primeira Turma,
DJE de 10-8-2011; STA 175-AgR, Rel. Min. Presidente Gilmar Mendes, julgamento em 17-3-2010, Plenário,
DJE de 30-4-2010. Vide: RE 668.722-AgR, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 27-8-2013, Primeira Turma,
DJE de 25-10-2013; AI 734.487-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 3-8-2010, Segunda Turma, DJE
de 20-8-2010.
72
23
Em igual sentido: STF, AI 759.543-AgR, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 17-12-2013, Segunda
Turma, DJE de 12-2-2014.
73
qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea. [...] (sem grifo no
original)
De tudo o que foi dito até agora, em defesa da atuação do Judiciário para a garantia do
mínimo existencial, reflexo prático da dignidade da pessoa humana, pode-se chegar à
conclusão, errada, de que esses direitos não conhecem limites. E os direitos têm custos.
Por vezes, a concessão de direitos subjetivos pelo Juiz, refugindo aos critérios técnicos
e ao planejamento da Administração, embora satisfaça o interesse individual, pode representar
prejuízo para a sociedade como um todo, inclusive para os que se encontram em idêntica
situação do requerente. Não é rara a utilização da via judicial para subverter a ordem de
concessão de benefícios, numa tentativa de transformar o juiz no servidor responsável pela
ordenação e distribuição dos mais diversos bens e serviços públicos. Por vezes, sem qualquer
provocação ou negativa da Administração, há o ingresso de ações para assegurar direitos
prestacionais, com o nítido intuito de burlar os requisitos postos em normas da Administração
que selecionam e ordenam os beneficiários. O deferimento de requerimentos individuais
merece uma cautelosa análise pelo Judiciário, conferindo-se à Administração a oportunidade
de demonstrar a progressividade na implantação da prestação requerida, demonstrando seu
planejamento, sua execução e a situação peculiar do requerente ao ser inserido no respectivo
programa.
Essa contextualização é importante para que seja definido, também, o que seria uma
atuação razoável do Estado na implantação de políticas públicas de saúde pelo judiciário.
Por fim, pode ser elencada mais uma situação fática com repercussão na atuação
judicial: quando não se identificar risco na demora da prestação do serviço ou ainda for
detectado o elevado custo na implantação de política pública em ação coletiva de grande
espectro, poderá o juiz determinar ao Estado a inclusão de verbas relacionadas à medida no
orçamento seguinte, especificando o comando na sentença condenatória, determinando ainda
a obrigação de aplicar efetivamente os valores constantes da condenação.
universal igualitário, acabam afetando inúmeros indivíduos que não têm suas necessidades
atendidas, levando-os muitas vezes à morte.
O Poder Judiciário, sob uma ótica simplista, costuma ver a saúde através de uma
perspectiva unidimensional, de mero tratamento da doença, sendo as políticas públicas de
saúde reduzidas a apenas um de seus aspectos: o atendimento médico. Mas não é esse o
espírito trazido pela Constituição Federal e pela Lei do SUS.
A saúde, com base no que foi dito acima, é determinada, em grande medida, por
fatores socioeconômicos e biológicos diversos, como acesso à informação, escolaridade,
trabalho, renda, condições de habitação, sexo, idade, etnia, etc. As desigualdades sentidas em
um desses âmbitos repercutem inevitavelmente nas condições de saúde da população.
Por oportuno, visando uma melhor compreensão do tema, faz-se necessário traçar as
diferenças conceituais entre judicialização e ativismo judicial. Para Ramos (2010, p. 129), o
ativismo judicial deve ser assim compreendido:
Uma vez que a Constituição Federal erigiu à categoria de direito fundamental o direito
à saúde, o magistrado, instado a se manifestar sobre determinada situação, ajustará o texto
constitucional às novas circunstâncias da demanda e, como intérprete do Direito, procurará
assegurar sua efetividade através da fundamentação racional da sua decisão.
24
Os comandos da decisão que antecipa a tutela são para a União, através do Ministério da Saúde: “a)
providencie e custeie, integralmente, tudo que for necessário para que o Autor seja submetido a cirurgia de
transplante de intestino e aos respectivos tratamentos no Hospital Jackson Memorial Medical, em Miami, Estado
da Florida, nos Estados Unidos da América, durante o tempo que se fizer necessário, inclusive com o custeio de
tratamento ambulatorial, de nutrição e medicamentos, tratamento home care, e o que mais a equipe medica
daquele hospital no exterior recomendar; b) auxilie o autor e seus genitores na obtenção de vistos junto as
Autoridades Norte Americanas, inclusive solicitando urgência em virtude de sua grave situação de saúde, bem
como valendo-se dos serviços diplomáticos; c) providencie todo o transporte do autor e seus genitores, inclusive
com remoção aérea do Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba/PR, onde hoje está hospitalizado, até o local de
destino de seu tratamento até o local de destino de seu tratamento junto ao Hospital Jackson Memorial Medical,
em Miami, Estado da Florida, nos Estados Unidos da América, em veículos terrestres e aéreos equipados com o
aparelhamento necessário para a manutenção e suporte a sua vida; d) providencie deposito em dinheiro exigido
pelo hospital norte americano, bem como a adequada instalação para o autor e seus genitores com o
82
Jackson Memorial Hospital, na cidade de Miami/FL, nos Estados Unidos. A decisão judicial,
por certo, não é expressão do “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção” estabelecido na Constituição para o acesso à Saúde.
o acesso a um posto de saúde, ou a um médico, é muito mais direto e simples do que o acesso
ao aparelho judiciário, mediado necessariamente por advogados privados ou defensores
públicos.
84
O direito, como as demais ciências do espírito, ainda que reconhecido seu caráter
cognitivo, não opera conceitos de verdade do mesmo modo que as ciências da natureza. Sua
lógica é informal, argumentativa, servindo-se muito mais de fundamentos de validade postos
argumentativamente do que de certezas empíricas.
No âmbito específico da dissertação que se apresenta, buscou-se demonstrar nos
capítulos anteriores algumas premissas que, problematizadas, permitam avançar na
complexidade da compreensão do tema, e identificar algumas respostas possíveis para
compatibilização de expectativas de todos os envolvidos no processo de garantir do direito
fundamental à saúde: cidadão usuário, poderes públicos vinculados à prestação dos serviços, e
sociedade (usuária e pagante).
Boa Ventura de Souza Santos (2000, p. 159) propõe, como modelo dominante de
aplicação do conhecimento científico pós-moderno, o que denomina de aplicação edificante,
em substituição à aplicação puramente técnica do conhecimento. A aplicação edificante
possui, dentre suas características, a seguinte:
O que se torna relevante nessa questão é saber de quem deverá ser a palavra final
sobre determinada conduta: se das ciências empíricas, com seu know how técnico, ou das
ciências sociais, com seu know how ético.
A disputa entre ciências empíricas (ou da natureza) e ciências sociais (ou do espírito)
foi central à hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer. Observa o autor (2004, p. 213-
85
226) que a ciência dá a impressão de um conhecimento total, por trás do qual se escondem
preconceitos ou interesses sociais. A economia, a política, o direito e a guerra se definem
pelos especialistas, e não “pelas associações políticas, essas que representam a vontade da
sociedade.” Aponta que pretensão de uma ausência total de preconceitos é uma ingenuidade,
“seja na forma delirante de um iluminismo absoluto, seja como delírio de um empirismo livre
de todos os preconceitos da tradição metafísica, ou ainda como o delírio de uma superação da
ciência pela crítica ideológica.”
Alerta Gadamer, ainda, que a ciência é comumente caracterizada por possibilitar uma
formação de juízo livre acerca de seus objetos de pesquisa, sendo independente da política e
da opinião pública, e que, por gozar de enorme estima pública, é constantemente invocada por
sua autoridade para manipular “lutas políticas.” A ciência (da natureza), buscando superar sua
lendária incompreensibilidade pelo leigo, “desenvolve um recurso de linguagem próprio para
a fixação e o entendimento comunicativo no próprio processo de investigação” atingindo a
consciência pública.
A aplicação da ciência e sua técnica não são controladas pela ciência. Tampouco há
qualquer vinculação do saber às forças vinculantes da razão social. Sustenta Gadamer que a
separação extrema da ciência e de sua técnica de todo e qualquer contexto motivacional é algo
problemático. Por esse motivo, “A reflexão hermenêutica exerce assim uma autocrítica da
consciência pensante que retraduz todas as suas abstrações, inclusive os conhecimentos das
ciências, para o conjunto da experiência de mundo.” (GADAMER, 2004, p. 213-229).
Sem dúvidas, um dos temas mais abordados pelos pensadores do mundo antigo foi o
conceito de pessoa. Essa temática foi matéria de reflexão tanto dos filósofos clássicos (gregos
e romanos), como dos cristãos da Antiguidade, dentre os quais se incluem os chamados
Padres da Igreja, estando a noção de pessoa no centro do pensamento moral do Ocidente.
87
Severino Boécio (480-524), filósofo cristão de formação grega que viveu entre a
antiguidade e o período medieval, deixou como contribuição para a Antropologia Filosófica o
conceito etimológico mais difundido da palavra pessoa, situando-a no horizonte da
racionalidade, reiterando a posição de Santo Agostinho no tocante a uma definição metafísica
de pessoa humana, ligada à imagem da Trindade, considerando, entretanto, a sua
singularidade. Dele herdamos a noção de pessoa humana como substância racional de
natureza individual, elevando a discussão para um novo patamar de valorização do indivíduo
perante sua espécie. Para Boécio, a pessoa humana carrega uma dignidade ontológica
inalienável pelo simples fato de ser humano, sugerindo que aquele que faz o bem não é apenas
88
feliz, mas exerce a sua divindade. Apesar dessa afinidade com o divino, Boécio, assim como
Santo Agostinho, preocupou-se em destacar o livre-arbítrio do indivíduo e a sua capacidade
de autodeterminação.
No século XII, São Tomás de Aquino, ainda embasado na doutrina das relações
sustentadas na Trindade, concebe a ideia de que pessoa, em Deus, significa relação. Para
explicar o significado das pessoas divinas, ele procura esclarecer as relações delas com o
mundo e com os homens, buscando evitar a heresia de que em Deus a natureza é pessoa,
enquanto natureza. Concebe, em termos filosóficos, a pessoa como substância de natureza
individual, o que confere um caráter de unidade e totalidade ao sujeito, sobressaindo desta
concepção o caráter único do ser humano, bem como a ideia de que todos os seres humanos
são iguais em dignidade. O ser humano, portanto, não pode ser verdadeiramente pessoa se não
vivendo em uma rede de relações fundamentais e de reconhecimento mútuo. Sob essa
perspectiva, a dignidade não está condicionada e não se sujeita às convenções sociais ou
jurídicas, não dependendo de fatores externos para ser reconhecida. Ela deve ser considerada
a partir daquilo que o homem tem de mais individual e singular: a sua própria vida.
25
Renascença foi o período da história da filosofia na Europa ocorrida entre a Idade Média e o Iluminismo, a
partir do século XV, onde houve o renascimento da educação e da civilização clássica, marcado por
transformações que puseram fim à idade média, dando início à idade moderna. Seus principais efeitos foram
sentidos nas artes, na filosofia e na ciência.
89
indivíduo se torna um ponto central do pensamento dessa época. O ser humano passa a ser
visto como indivíduo e, como tal, ao invés de receber sua vida já esculpida pela ordem das
coisas, tem ele o poder de dar-lhe a forma que quiser.
Enquanto a reflexão teleológica cristã baseou-se na construção de uma noção
metafisica de pessoa, e sem abandonar as contribuições herdadas da escolástica, é em René
Descartes (1596-1650) que a construção da noção de pessoa é erigida, sob o manto de sua
filosofia da consciência, a partir do entendimento de que o fundamento de todo o
conhecimento do real encontra-se no intelecto.
Para Descartes, então, o pensamento é que possibilita o conhecimento, destinando-se a
razão não somente a permitir o conhecimento, mas também a impedir que a alma se alimente
apenas de determinadas paixões. A alma, portanto, tem a função de fazer prevalecer os
pensamentos que lhes são próprios, ao passo que cabe ao julgamento racional direcionar as
nossas vontades àquilo que se mostra menos danoso à nossa existência, não se deixando
sucumbir às paixões. O homem cartesiano, nessa linha de raciocínio, é composto de alma e
corpo, e é o pensamento que constrói as bases de todo conhecimento possível.
Não se pode olvidar que muito dessa construção da noção de pessoa dentro de um
conceito filosófico é atribuído a Immanuel Kant (século XVIII). Construiu ele uma moral
racional independente da religião, onde o “eu-pessoa” de Descartes deu lugar ao “eu” do
“dever ser”, a quem se pudesse imputar suas próprias ações. A pessoa, que segundo ele é o
homem enquanto ser racional, age conforme determinação de sua própria vontade, seja
consoante os ditames da razão pura, seja da razão prática, e por isso mesmo é considerado um
ser livre.
Na já citada obra Fundamentos da Metafísica dos Costumes, de 1785, Kant semeia as
bases de uma ética da pessoa, e desenvolve a ideia de que o homem é um fim em si mesmo,
não se confundindo com as coisas. Ao considera-lo como um fim em si, Kant passa a
26
Racionalismo é uma corrente filosófica que iniciou com a definição de “raciocínio” e cuja ideia central visava
priorizar a razão como caminho para se buscar a verdade. René Descartes, Baruch Spinoza e Gottfried Wilhelm
Leibniz introduzem o racionalismo na filosofia moderna.
27
Iluminismo é o movimento cultural da elite intelectual europeia que, visando reformar a sociedade e a tradição
medieval, procurou mobilizar o poder da razão. Momento de intenso intercâmbio intelectual onde procurava-se
conhecer a natureza para torna-la útil ao homem moderno.
28
Encyclopédie (1751-1772), editada por Denis Diderot e Jean Le Rond d'Alembert, compilou as contribuições
de centenas de líderes filosóficos, a exemplo de Voltaire e Montesquieu, e influenciou as novas forças
intelectuais que se difundiram para diversos centros urbanos da Europa, a exemplo da Inglaterra.
91
enxergar cada homem como uma pessoa, como um valor absoluto, do que advém aquilo que
se chama individualidade.
Assim, para Kant, o imperativo moral deve direcionar a conduta do homem, quer de
forma individual, quer coletiva, de modo que sempre haja respeito por si e pelo outro.
Portanto, é no século XVIII, dentro dessa perspectiva de que ao homem é permitido
agir com liberdade, respeitando os outros homens e cumprindo os deveres inerentes à vida
em sociedade, que os direitos se tornam efetivamente os valores mais importantes dessa
convivência humana. A dimensão psicológica do “eu” dá lugar à noção de pessoa como
resultado dos horizontes culturais que ditam o seu tempo. A consciência moral da pessoa, por
sua vez, é que irá determinar o sujeito como destinatário de direitos e deveres, caracterizando
a cidadania.
Por tudo isso, percebe-se que a noção de pessoa sob a ótica filosófica muito contribuiu
para a noção de dignidade que alicerça os direitos humanos. Seja como essência da pessoa
humana, ou como atributo que confere humanidade ao sujeito, a dignidade é considerada
qualidade intrínseca da essência do homem. A dignidade é aquilo que existe no ser humano
pelo simples fato de ele ser humano, e apesar de incondicional e inalienável, iguala os homens
na medida das suas desigualdades.
Porém, e diante de tudo que foi dito, há uma premissa que não pode ser esquecida. A
dignidade do homem fundamenta-se na pessoa humana, e esta pressupõe uma condição
objetiva para existir: a vida. A intangibilidade da vida humana é condição primeira que se
impõe e dá base jurídica à exigência de respeito à integridade física e psíquica e aos meios
que garantam um mínimo existencial, isto é, que assegure dignidade à vida do homem. Por
isso a importância da noção de pessoa e de dignidade humana para os estudos relacionados ao
direito fundamental à saúde.
Inicialmente, cabe fazer uma distinção entre os termos moral e ética. Para Ricouer
(2003, p. 591), se, por um lado, a etimologia não tem tanta utilidade, já que um dos termos
vem do latim e outro do grego e referem-se basicamente ao domínio comum dos costumes,
por outro há, sim, a necessidade de dispor dos dois termos. À moral, para o autor, é atribuída
uma dupla função: designar a área das normas, ou seja, dos princípios do permitido e do
proibido; desenvolver o sentimento de obrigação como face subjetiva da relação do indivíduo
92
com as normas. Esse seria o núcleo duro da moral. Em síntese (p.592), a ordem moral é
considerada auto referencial à media que “não pressupõe outra coisa senão um sujeito capaz
de afirmar-se ao afirmar a norma que o afirma como sujeito.”
Por sua vez, e ainda segundo Ricouer, a ética é concebida tendo como base o núcleo
duro da moral e também se reparte em dois ramos: a ética anterior, que está a montante das
normas; e a ética posterior, que está a jusante delas. Enquanto a ética anterior aponta para o
enraizamento das normas na vida e no desejo, a ética posterior objetiva inserir as normas em
situações concretas. Por sua vez, a única maneira da ética anterior tomar posse das normas é
mostrando seus conteúdos no plano da sabedoria prática, que não é outra coisa senão a ética
posterior.
Embora o termo ética seja utilizado para designar o que está a montante e a jusante do
reino das normas, oportuno fazer a distinção entre ética fundamental e as éticas posteriores ou
aplicadas. A primeira diz respeito à ética anterior, posto que relacionada a vertente subjetiva
da obrigação moral: o sentimento de ser obrigado. Já as éticas aplicadas são projetadas no
plano da sabedoria prática, convidando a colocar a palavra ética no plural e acompanhada de
um complemento, como, por exemplo, ética médica, ética jurídica, etc.
Diante desses conceitos, é razoável admitir que o homem não cria ou fabrica valores,
de modo que a noção individual dos bens da vida varia enormemente, sendo necessário um
consenso social acerca da forca ética de um rol hierárquico de valores.
A ética baseia-se, essencialmente, no respeito da pessoa humana. Nesse sentido,
Abbagnano (2013, p. 380) conceitua a ética como uma ciência da conduta humana, orientada
em função de valores.
O que se propõe nestas linhas é colocar a ética a serviço da prestação da saúde, tendo
sempre como objetivo final o tratamento da pessoa dentro de padrões que lhe garantam
dignidade. Em síntese, é colocar o progresso bioético e tecnológico a serviço da vida humana
e de toda a convivência social.
A bioética, segundo Pessini (2009, p. 30), nasceu há mais de vinte e cinco anos como
forma de reflexão da gestão responsável dos novos poderes que a medicina moderna adquiria.
É um neologismo derivado das palavras gregas bios (vida) e ethike (ética) que significa “ética
da vida”, ou o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da
93
Falar em bioética, por outro lado, requer a definição de um marco referencial ético
relacionado à prática da medicina e da assistência à saúde que visem solucionar os seguintes
problemas, como bem explicitado por Pessini (2009, p. 69): despersonalização dos cuidados
no interior dos hospitais; sistemática marginalização no interior dos serviços sanitários de
certas categorias de pacientes; tecnicidade da assistência; diluição da responsabilidade pela
fragmentação do ato médico numa sequência de relações parciais que colocam em risco a
eficácia da relação médico-paciente, dentre outras.
partir do “outro”, que é sempre anterior ao “eu”. Isto é, somente com a percepção do “outro”
como condição para a existência do “eu” pode-se compreender o verdadeiro sentido do todo,
do social. No campo da bioética, a alteridade serve como critério fundamental que significa
que toda a reflexão e toda a prática da saúde deve estar respaldada na pessoa, mas não como
pessoa isolada e fechada em si, e sim como pessoa enquanto relação consigo e com as outras.
Ademais, a alteridade deve ser considerada, também, como critério englobante que
ajuda a tematizar toda a bioética a partir do outro, em suas mais diferentes dimensões:
alteridade e meio ambiente, alteridade e flora, alteridade e pessoas, alteridade como critério na
relação médico-paciente, alteridade na comunicação, etc.
Por sua vez, o Biodireito tem por objeto de análise princípios e normas jurídicas que
tenha por fim imediato criar, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos decorrentes
de relações entre indivíduos, entre indivíduos e grupos, e entre estes com o Estado, quando
essas relações estiverem vinculadas ao início da vida, ao seu transcurso e ao seu término. Isso
porque o ser humano deixou de ser apenas sujeito de direito para tornar-se objeto de
manipulações, de modo que os antigos parâmetros de ética e de direito não mais serviam para
protege-lo.
outro lado, a normativa que afeta diretamente o Biodireito é a que se refere aos direitos
humanos e ao direito à vida.
Em sua obra mais conhecida, O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para
a civilização tecnológica (2006, p. 27), Jonas ressalta as transformações da ação humana no
contexto tecnológico, considerando que importantes desafios no campo da ética passaram a
demandar uma atenção especial. A isso o autor chama de “natureza modificada do agir
humano”.
humano e as demais formas de vida dos seus riscos”. Percebe-se que a preocupação de Jonas é
com a proteção da vida em todas as suas acepções, não apenas no presente e com base em
conhecimentos do passado, mas no amanhã e no futuro, utilizando saberes que serão ainda
construídos. É exatamente nesse agir futuro que deverá recair uma responsabilidade que não
comprometa esse futuro.
Levando a ética da responsabilidade para o campo das previsões científicas, estas não
devem limitar-se a um futuro próximo, devendo considerar um futuro mais longínquo para
que aquilo que puder ser feito um dia tenha um peso determinante no que se planeja fazer já
amanhã. Porém, como o sucesso da técnica pode representar uma ameaça à humanidade e à
natureza como um todo, o princípio responsabilidade passa a representa uma heurística do
medo e do perigo do que disso pode advir. Segundo a Beckert (2012, p. 104), o grande
diferencial entre o poder de transformação inerente à técnica, por um lado, e o poder de
previsão de ordem científica, por outro, constitui o objeto nuclear da responsabilidade ética.
O imperativo ético defendido por Jonas, portanto, tem uma base ontológica que
pressupõe que a ideia de homem remete à responsabilidade sobre a sua existência não
somente enquanto essência, mas também enquanto presença e corporificação no mundo. Por
essa razão, afirma-se que não é possível querer a extinção futura da humanidade e da vida em
geral porque a existência é sempre melhor do que a não existência.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por sua vez, a implantação de um sistema de saúde que abrangesse todos os cidadãos,
sem discriminação, e possibilitasse uma prestação integral, universal, gratuita e igualitária,
somente se deu em 1990, com o Sistema Único de Saúde, que passou a ofertar tanto os
serviços de atenção primaria quanto aqueles de maior complexidade e de alto custo.
Todavia, o que se constata com o presente estudo é que o Sistema Único de Saúde
proposto na Constituição Federal de 1988 está longe de alcançar os patamares idealizados, e
isso pode ser facilmente visualizado se for levado em conta a atividade-fim da prestação do
direito fundamental à saúde: tratar o usuário com dignidade e respeito. Na prática, a garantia
101
Para que o direito a saúde não existisse apenas como uma promessa insculpida no
texto constitucional, portanto, a atuação do Poder Público no tocante à escolha e execução de
políticas públicas torna-se essencial. Entretanto, muitas dessas escolhas têm se configurado
em escolhas trágicas, notadamente quando a atuação discricionária relacionada às políticas
públicas deixam de focar no tratamento digno ao indivíduo, para atender à satisfação pessoal
ou desarrazoada do Administrador Público.
Conclui, por fim, que em razão do caos na prestação do direito fundamental à saúde no
Brasil, o conceito de pessoa, portadora do direito inalienável e indisponível à dignidade, seja
retomado e garantido dentro de um processo de desenvolvimento virtuoso, baseado em três
103
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