Discurso e Análise Do Discurso
Discurso e Análise Do Discurso
Discurso e Análise Do Discurso
uma introdução
SUMÁRIO
Prefácio
1.1.
Convergências e hibridizações
1.2.
Na França
2. A noção de discurso
2.1.
Entre os linguistas
2.2.
Fora da linguística
2.3.
3.1.
Um discurso para cada texto?
3.2.
3.3.
Texto e corpus.
4. As disciplinas do discurso
4.1.
As abordagens
4.2.
4.3.
5.1.
5.2.
6. As unidades tópicas
6.1.
6.3.3. Os autores
7. As formações discursivas
7.3.1. As entidades
7.3.2. Os acontecimentos
7.3.3. Os cenários
7.3.4. Os nós
8. Percursos e registros
8.1. Os percursos
8.1.1. As fórmulas
9. Unidade e diversidade
9.1.1.
Os gêneros autorais
9.1.3. As conversações
10.1.3. A cenografia
12.3. A atopia
13.2. A memorabilidade
Conclusão
Bibliografia
PREFÁCIO
O estudante que precisa ter uma idéia mais precisa deste imenso campo de
pesquisa não está diante de uma tarefa fácil. Certamente, existe no mundo um
número considerável de manuais de introdução, a maior parte deles em
inglês, mas eles
Capítulo I
1.2. Na França
6 Nós sublinhamos.
Capítulo 2
A NOÇÃO DE DISCURSO
língua” (ver, por exemplo, Gee [2005:IX] ou Johannes [2008: 3]). Alguns
acrescentam a isso uma dimensão comunicacional, como Paltridge (2006:2),
para quem o discurso é “a linguagem além da palavra, do grupo de palavras e
da frase”, agenciada de maneira a que a “comunicação seja bem sucedida”.
Isto não quer dizer que todo o discurso se manifesta por sequências de
palavras de dimensões obrigatoriamente superiores à frase, mas que ele
mobiliza estruturas de outra ordem, diferentes das da frase. Um provérbio ou
uma proibição como “Proibido fumar” são discursos, formam uma unidade
completa, embora sejam constituídos por uma única frase. Os discursos,
quando são unidades transfrásticas, como é o caso mais frequentemente, são
submetidos a regras de organização. Elas operam em dois níveis: as regras
que governam os gêneros de discurso em vigor em um grupo social
determinado (consulta médica, talk-show, romance, tese de doutorado...) e as
regras, transversais aos gêneros, que governam uma narrativa, um diálogo,
uma argumentação, uma explicação...
O discurso é uma forma de ação
Considera-se que falar é uma forma de ação sobre o outro, e não somente
uma representação do mundo. Em relação a este ponto, a linguística retoma a
tradição retórica, que constantemente acentuou os poderes da palavra. A
problemática dos “atos de linguagem” (também chamados “atos de fala” ou
“atos de discurso”), desenvolvida a partir dos anos 1950 pelo filósofo da
linguagem Austin (1962), e depois por Searle (1969), mostrou que toda a
enunciação constitui um ato (prometer, sugerir, afirmar, perguntar...) que visa
modificar uma situação. Num nível superior, os atos elementares se integram
a gêneros de discurso determinados, que são outras formas de atividade
socialmente reconhecidas. Inscrevendo assim o discurso entre as atividades,
facilita-se sua colocação em relação com as atividades não verbais.
O discurso é interativo
O discurso é contextualizado
conversacionais”,
“leis
do
discurso”,
“postulados
Para dar uma medida desta plasticidade do termo “discurso”, convém evitar
duas atitudes que poderiam ser qualificadas de “cética” ou de “terapêutica”.
por sua vez, acaba por desqualificar os empregos de “discurso” que não
seriam unívocos e definidos rigorosamente.
Essa orientação filosófica crítica está presente desde as origens dos estudos
de discurso. Vimos que, na França, no final dos anos 1960, coexistiram
abordagens de orientação linguística e abordagens como a de Pêcheux, que
visava fundar “uma teoria do discurso como teoria da determinação histórica
dos processos semânticos” (Pêcheux e Fuchs, 1975: 8), uma teoria que não se
deixava encerrar em nenhuma disciplina ou teoria constituída, mas que
pretendia intervir nelas. Pode-se igualmente aproximar desta “teoria do
discurso” a filosofia da comunicação de Habermas, que desenvolve, com
base em uma pragmática transcendental, uma “ética da discussão” no quadro
de um “agir comunicacional” (1981).
Mas a maioria absoluta dos discursivistas não trabalha neste campo da teoria
do discurso; são analistas do discurso, com auxílio de múltiplos métodos,
estudiosos de corpus. São os que me interessam nesta obra. Pode-se distribuí-
los em duas populações com objetivos distintos.
Capítulo 3
Se, nas obras de introdução, a noção de discurso é discutida, mesmo que seja
para desenredar sua polissemia embaraçadora, não ocorre o mesmo com a de
texto. No entanto, embora os analistas do discurso focalizem naturalmente o
termo “discurso”, constata-se que empregam sem cessar o termo “texto”, que
interfere com “discurso” de uma forma que não é sempre controlada. Alguns
não consideram necessário estabelecer uma diferença entre eles: “neste
manual, os dois termos, discurso e texto, podem em geral ser considerados
sinônimos” (Dooley, Levinsohn, 2001: 3).
(Johnstone, 2008: 20). Mas, por cômodas que sejam essas soluções, elas não
estão à altura da complexidade das relações entre os dois termos.
(1)
No primeiro caso, os discursos existem para além dos textos particulares dos
quais são compostos. Isto é particularmente nítido para pesquisadores que se
situam em uma perspectiva próxima da de Foucault; o “discurso da
psiquiatria”, por exemplo, recobre um conjunto mais ou menos vasto de
textos de gêneros muito diferentes (obras teóricas, regulamentos de hospitais,
manuais...). Neste tipo de emprego, “discurso”
As pessoas produzem textos para fazer passar uma mensagem, para exprimir
idéias e crenças, para explicar alguma coisa, para levar outras pessoas a fazer
certas coisas ou a pensar de certa maneira, e assim por diante. Pode-se
designar este conjunto complexo de objetivos camunicacionais como o
discurso que sustenta o texto e é o motivo principal de sua produção. Mas,
finalmente, são os leitores ou ouvintes que devem construir o sentido a partir
do texto, para fazer dele uma unidade comunicacional. Em outros termos,
eles devem interpretar o texto como um discurso que tem sentido para eles.
(Widdowson, 2007: 6).
Encontra-se aqui uma forma corrente de gerir a relação entre os dois termos
que é condensada na fórmula: Discurso = Texto + Contexto. Mas, para
Adam, que, em um primeiro momento, contribuiu amplamente para difundi-
la, esta fórmula é enganosa:
(elipses,
pressupostos,
subentendidos),
“conexões”
(conectores,
organizadores
espaciais
e
temporais,
marcadores
enunciativos),
As relações entre estes dois tipos de texto-arquivo estão longe de ser simples,
como o sublinham Adam e Viprey, tomando como exemplo o conto de
Perrault A bela dormecida, para o qual dispomos, desde o começo, de
diversos modos de existência editorial:
Além disso, neste caso, a variação é limitada; ela pode ser atribuída à
iniciativa do próprio autor, no caso, Charles Perrault. Mas, quando se trata de
textos que são recopiados, reeditados, adaptados... durante longos períodos e
que circulam por áreas muito vastas em gêneros muito diversos, as coisas se
tornam muito complexas: qual é o texto que corresponde às milhares de
edições de A bela adormecida ou de Cinderela, surgidas no planeta no século
XVII, quando se sabe que esta contagem não cessa de ser modificada?
Como veremos ( infra, Parte II, capítulo 14), o pressuposto de que o texto
constitui uma unidade fechada e estável é hoje posto em questão pelo
funcionamento da Web, por razões completamente diferentes.
Uma distinção se impõe aqui entre os corpora que agrupam textos que
existem anteriormente e os corpora que resultam de uma transcrição. Uma
carta, um
jornal impresso, um livro... são textos prévios; por outro lado, uma
conversação, um debate na TV só existem como textos em um corpus porque
foram recortados e transcritos segundo certas convenções. É o que sublinha
Johnstone:
Capítulo 4
AS DISCIPLINAS DO DISCURSO
Antes mesmo de analisar o espaço de pesquisa consagrado ao discurso
utilizando categorias como “disciplina”, “abordagem”, “corrente”..., é preciso
nomeá-lo. Ora, em relação a este ponto, a situação é confusa. Em escala
internacional, nos manuais de introdução ou nas antologias, é claramente o
termo “análise do discurso” (“discourse analysis”) que domina. Mas vimos
desenvolver-se também, com base no modelo dos “studies” anglo-saxônicos
(“gender studies”, “gay studies”, etc.) o emprego do termo “discourse studies
10”, cujo acolhimento plural permite agrupar pesquisas extremamente
diversas.
4.1. As abordagens
A pesquisa realizada no quadro dos territórios não pode ser reduzida a uma
espécie de aplicação sem alcance teórico. Ela é parte integrante dos estudos
de discurso, que são, por natureza, situados em múltiplos cruzamentos das
ciências
humanas
sociais.
Há
uma
dinâmica
criadora
na
Capítulo 5
Algumas correntes dos estudos de discurso, desde os anos 1960, têm feito do
exercício deste poder crítico sua razão de ser. É o caso, como vimos, de
Pêcheux, que se apresentava como marxista. A partir dos anos 1990,
desenvolveu-se uma vasta corrente – essencialmente anglófona – que se
designa como “análise crítica do discurso” (“Critical Discourse Analysis
14”). Põe-se, então a questão
Mas também prolonga procedimentos que, pelo menos no Ocidente, são tão
velhos quanto a reflexão sobre a linguagem. Desde a antiguidade grega, a
desconfiança em relação aos poderes nefastos da linguagem natural foi
consubstancial ao empreendimento filosófico, que pretendia fundar a
diferença entre seu próprio discurso e o que a filosofia considerava um uso
pernicioso da linguagem. Assim, Platão critica a sofística, acusada de colocar
a linguagem a serviço das paixões e dos interesses, e lhe opõe um exercício
da linguagem de acordo com o Bem, a dialética. A crítica dos poderes
nefastos da linguagem acompanhou em seguida a história da filosofia, com
períodos de maior e de menor intensidade. Em nome de exigências diversas,
tratava-se de denunciar as “ilusões” que seriam engendradas pela linguagem,
e, em particular, esta ilusão recorrente que é a metafísica.
Isto passa por colocar à luz processos escondidos no discurso e que só uma
análise rigorosa pode revelar.
15 Nós sublinhamos
Nada é tão impetuoso quanto seus desejos, nada é tão escondido quanto seus
desígnios, nada é tão hábil quanto suas condutas; suas flexibilidades não
podem ser representadas16
Esta concepção de um discurso que seria governado por poderes ocultos torna
necessário o recurso a análises que decorram do que se poderia chamar uma
hermenêutica “obscura”, que se opõe ponto por ponto a uma hermenêutica
que se poderia dizer “clara”, que nos é mais familiar, a que estuda os
enunciados (literários, filosóficos, religiosos, políticos...) que têm autoridade
numa certa coletividade. Esta hermenêutica clara implica diversos
pressupostos:
- que o texto seja considerado singular, extraordinário: por meio dele, uma
Fonte transcendente nos envia uma mensagem;
- que esta mensagem trate de questões essenciais para nós, que as lemos; -
que esta mensagem esteja necessariamente oculta; - que seja necessária uma
exegese, uma “leitura” não imediata do texto para decifrá-lo: o comum dos
mortais não tem acesso direto a ela.
A questão crucial para mim era: O que torna possível a diferença nos usos da
língua?
Já pela própria escolha dos corpora que se atribui, o estudo do discurso opera
com avaliações. Em relação à infinidade dos corpora possíveis, os que são
estudados são “raros”; assim, o simples fato de interessar-se por eles implica
inevitavelmente assumir um posicionamento, ligado a interesses de ordem
muito diversa. Por exemplo, não é por acaso que, em seus inícios, a análise
do discurso francesa privilegiou os corpora políticos, e, entre eles, quase
exclusivamente os de esquerda. Foi necessário esperar os anos 1980 para que
corpora de direita fossem levados em conta, e mesmo assim, tratava-se
essencialmente dos de extrema direita. Se os partidos centristas ou da direita
moderada, que jogam, no entanto, um papel chave em política, foram pouco
abordados, foi sem dúvida alguma porque não havia interesse dos analistas,
que constroem sua autoridade por meio dos objetos que abordam. Sobre esta
questão, a sociologia das ciências multiplicou as pesquisas. Reconhecer a
existência de tais interesses é simplesmente reconhecer que a análise do
discurso também é discurso, e que, falando do mundo, os locutores procuram
também legitimar a posição de enunciação que constroem.
que estes diversos tipos de texto tenham o mesmo estatuto. Aliás, encontra-se
aqui um dos valores assumidos pela noção de crítica: no século XVII, falava-
se de “crítica” para caracterizar o estudo racional dos textos antigos e, em
particular, da Bíblia. A este respeito, pode-se evocar a Histoire critique du
vieux Testament (1678) de Richard Simon, na qual o texto sagrado era tratado
como um texto profano. Em um quadro muito diferente, a análise do discurso
tem como efeito dissipar a aura que cerca os textos mais valorizados, os mais
consagrados. Mas, igualmente, o de dar valor a uma infinidade de enunciados
até então invisíveis, que são objeto de análises tão sofisticadas quanto a dos
textos tradicionalmente prestigiosos.
Além disso, o estudo do discurso possui uma força crítica pelo simples fato
de que contesta um certo número de convicções enraizadas na ideologia
espontânea dos locutores: que o discurso reflete uma realidade prévia, que a
linguagem é um instrumento que permite “exprimir” o pensamento dos
Sujeitos, que o sentido está encerrado nos enunciados etc. Uma análise do
discurso religioso, jornalístico ou científico, por exemplo, não se contenta
com o estudo dos textos: ela os relaciona ao funcionamento das instituições
que os produzem e os gerem. A atenção prestada às instituições que tornam
um discurso possível e que este discurso torna possíveis é mais
desestabilizador do que muitas demonstrações que são relativas apenas a seus
conteúdos. A afirmação da existência de uma “ordem do discurso”
do discurso pode ter uma orientação crítica, que a diferença entre orientação
crítica e não crítica é uma questão de saliência, e não de natureza.
Mas isso não significa que qualquer pesquisa deva se atribuir o objetivo de
remediar uma disfunção social. É inevitável que existam pesquisas que não
sejam caracterizadas por um viés militante. De qualquer forma, as abordagens
deliberadamente críticas e as abordagens não críticas dependem uma da
outra. Uma boa análise crítica deve poder basear-se em bons conhecimentos
sobre o funcionamento do discurso; reciprocamente, o estudo do
funcionamento do discurso implica considerar o fato de que o discurso é
sempre marcado por interesses.
PARTE II
AS UNIDADES DA ANÁLISE DO DISCURSO
Capítulo 6
AS UNIDADES TÓPICAS
Os analistas do discurso, por sua vez, têm a ver com categorização em três
níveis complementares. É-lhes necessário, em primeiro lugar, refletir sobre o
sentido e os efeitos das categorizações efetuadas pelos diversos tipos de
usuários. Também devem, para um dado domínio da vida social (as mídias, a
educação, a política...), repertoriar e classificar as atividades discursivas,
apoiando-se em critérios que querem que sejam rigorosos. Por fim, devem
categorizar os tipos de unidades com as quais eles próprios trabalham,
unidades que são
É por este último tipo de unidade que vamos nos interessar agora. Não vamos
identificá-las tentando organizar uma lista a priori, mas observando quais
unidades são mais comumente utilizadas pelos analistas do discurso.
uma relação de reciprocidade: todo tipo é uma rede de gêneros; todo gênero
está relacionado a um tipo.
Além disso, uma esfera de atividade não é um espaço homogêneo: para seus
usuários, ele tem um “núcleo” e uma “periferia”, de naturezas variadas,
segundo os casos concernidos. O núcleo é constituído pelos gêneros de
discurso que parecem os mais próximos da finalidade que é normalmente
associada a esta esfera. O discurso escolar, por exemplo, tem por núcleo os
gêneros nos quais são postos em relação professores e alunos; mas o discurso
escolar integra muitos outros gêneros: as reuniões de professores, as
circulares do Ministério da Educação, os livros escolares etc. O núcleo do
discurso literário são os gêneros em que um escritor se dirige ao público
(romances, peças de teatro, poemas...); mas estes gêneros são indissociáveis
de um grande número de outros, relegados à periferia: críticas dos jornais,
reuniões para acertar preços, correspondência entre autores e editores etc.
6.1.2. Os campos discursivos
Entre as esferas de atividade, somente algumas – por exemplo, o discurso
político ou o religioso – são submetidos a uma lógica de campo, onde se
confrontam diversos posicionamentos. Esta noção de posicionamento
(doutrina, escola, teoria, partido, tendência...) implica que, em um mesmo
espaço, relacionam-se os enunciados à construção e à preservação de diversas
identidades enunciativas que estão em relação de concorrência, em sentido
amplo: sua delimitação recíproca não passa necessariamente por uma
confrontação aberta.
cada um visa modificar as relações de força em seu proveito. Não são nunca
espaços homogêneos: em um momento dado, há de fato um centro, uma
periferia e uma fronteira. Entre os posicionamentos centrais, alguns são
dominantes e outros, dominados. No que diz respeito aos posicionamentos
periféricos, pode tratar-se: de posicionamentos que, em um estado anterior, se
encontravam no centro do campo e foram marginalizados; de
posicionamentos que pretendem constituir um sub-campo relativamente
independente em relação ao centro.
6.1.3. Os lugares de atividade
A maior parte dos gêneros de discurso é produzida e/ou consumida em
lugares institucionais: um hospital, uma rádio, uma prefeitura etc. Pode-se,
então, propor estudar a rede de gêneros que estão em uso em tal ou tal lugar.
O “discurso do hospital” serão, assim, os gêneros de discurso que interagem
num hospital (reuniões de serviço, consultas, relatórios de cirurgias etc.).
Encontra-se, aqui, a noção de “sistema de gêneros” de Bazerman (2004), isto
é, os gêneros utilizados por indivíduos que trabalham juntos.
Muitos estudos de campo mostram que atividades verbais que poderiam ser
julgadas parasitárias ou marginais são, de fato, necessárias ao funcionamento
de uma instituição. Os trabalhos sobre hospital conduzidos por Lacoste
fornecem uma boa ilustração disso. Ao lado das conversas e das breves trocas
de palavras entre as enfermeiras durante a atividade de cuidar dos doentes,
existem atividades de fala “mais instituídas, mais formalizadas, mais
sistemáticas” que “asseguram o indispensável complemento” aos gêneros
oficiais:
É o caso das transmissões orais em uma “troca de turno”: três vezes por dia,
com importantes variações conforme os serviços, a equipe que sai transmite a
informação necessária à que entra. (Boutet, Gardin, Lacoste, 1995: 28).
Esta prática adquire todo o sentido quando posta em relação com um gênero
muito normatizado, o documento escrito no qual as enfermeiras anotam, para
as que virão depois, as informações sobre os cuidados prestados ou a prestar
aos doentes. A rotina da troca de turno associa, então, um gênero escrito
fortemente institucionalizado (documento escrito) e conversações orais muito
menos regradas e que não têm nada de oficial.
18 Por exemplo: “1,77 m homem bonito 46a não fumante solt proc mulher
bonita que precisa de atenção + se afinidade sem crianç, foto desejável para o
jornal s/ ref. XXX”; “Mulher 66 anos amante da natureza montanha procura
companheiro entre 67 e 74 anos, mesmo perfil, para amizade e + se afinidade
escr. p/ o jornal s/ ref: XXX”
Por exemplo, na França dos séculos XVII e XVIII, o sermão católico é uma
atividade que dura mais de uma hora, distinto da homilia, que é um episódio
da missa. Ele se apresenta sob duas formas: antes, como um texto manuscrito,
cuidadosamente redigido, destinado a ser memorizado pelo pregador; depois,
como uma performance oral, realizada numa igreja. Mas isso não é tudo:
frequentemente, cópias do manuscrito circulam no círculo mais ou menos
amplo de fiéis interessados. O autor tem um controle apenas relativo sobre
esta circulação. Se se trata de um pregador conhecido, o sermão pode
igualmente ser impresso em uma publicação “pirata” (a partir da performance
oral ou de uma cópia do manuscrito), com diferenças mais ou menos
importantes em relação ao enunciado original. Se é o próprio pregador que
publica seu sermão, em geral ele reescreve seu texto com vistas à publicação.
Esta noção de valência genérica interna precisa ser refinada. Como nosso
exemplo mostra, é preciso fazer uma distinção entre o núcleo e seus avatares,
que são de diversos tipos. No sermão, é a performance oral
versão do texto21.
6.4. As singularidades textuais
Até aqui, o analista do discurso pareceu alguém que reúne um número mais
ou mesmo grande de textos para constituir um corpus; quanto ocorre de ele
estudar um só texto, apresenta-o como representativo de uma série, e não
porque ele seria singular.
Capítulo 7
AS FORMAÇÕES DISCURSIVAS
Tive o cuidado de não admitir como válida nenhuma dessas unidades que me
podiam ser propostas e que o hábito punha a minha disposição (1969: 44/35)
Assim procedendo, Foucault pretende
Pode-se dizer que Diana e a enorme quantidade de palavras escritas sobre ela
formam um espaço discursivo (Gilbert et al., 1999; Silverstone, 1998). Ela é
o centro bastante enigmático de numerosas representações concorrentes da
realeza, da feminilidade, da democracia, da família, da moralidade, da
celebridade, da moda, do choque entre vida privada e vida pública. Tal
espaço discursivo é um lugar de debate (Wetherell, in Wetherell et al., (eds),
2001: 25)
7.3.3. Os cenários
7.3.4. Os nós
Estes temas podem ser de tipos variados; pode-se, por exemplo, agrupar sob a
etiqueta “malandro” um certo
Capítulo 8
PERCURSOS E REGISTROS
8.1. Os percursos
As formações discursivas têm por função integrar textos de diversos gêneros
em conjuntos mais vastos, reunidos em torno de um foco, eventualmente, de
vários. As unidades não tópicas não estão todas submetidas a esta restrição. É
o caso do que chamamos de percurso s, que relacionam materiais
heterogêneos em torno de um significante de dimensão variável (unidades
lexicais, grupos de palavras, frases, fragmentos de textos), não para constituir
um conjunto unificado por uma temática, mas para analisar uma circulação,
para dar a medida de uma dispersão. Não se trata de procurar o “verdadeiro”
sentido de tal ou tal expressão, mas, antes de tudo, de explorar uma
disseminação. Este tipo de pesquisa é hoje consideravelmente facilitado pelos
recursos que oferecem os aplicativos de análise do discurso feita com auxílio
de computadores, que permitem explorar corpora vastos.
Mesmo que não se possa efetuar tais “percursos” em um espaço sem limites
(em função do objetivo de sua pesquisa, o pesquisador é frequentemente
obrigado a definir a amplitude do espaço que vai levar em conta), o que
caracteriza
8.1.1. As fórmulas
“globalisation”
(globalização),
derivados
(“mondializer”,
“antimondialisation”,
“altermondistes”,
“démondialisation”...),
mas
aparece de maneira bem nítida nesta matéria produzida por uma agência de
notícias:
Neste texto, considera-se que Oscar Temaru disse uma “pequena frase” que o
jornalista se espanta que tenha passado despercebida. O autor do artigo
parece considerar que a “pequena frase” já estava no discurso do político,
esperando ser reconhecida como tal. Na realidade, ela só se tornou uma
“pequena frase” porque foi destacada e posta em circulação e assinalada
como desviante. O verdadeiro contexto de uma “pequena frase”,
Além disso, para um analista do discurso, o estudo do registro não poderia ser
uma finalidade em si: ela é necessariamente levada em conta nos jogos da
enunciação
Mas o estudo de práticas discursivas não é suficiente: para que uma polêmica
se desenvolva, é preciso que indivíduos que ocupam determinado lugar
percebam certos enunciados como intoleráveis do ponto de vista desse lugar,
a ponto de acharem necessário entrar em conflito com sua suposta fonte. A
análise do discurso é, então, levada a perguntar se a relação com tal
adversário é um acidente exterior ou se ela é constitutiva da identidade de um
posicionamento. A polêmica, então, é vista de uma perspectiva semântica:
não somente aquilo sobre o que se debate e aquilo que é dito, mas também a
maneira pela qual isso é dito depende da identidade dos interlocutores.
Vê-se, assim, mesmo se são de direito indissociáveis nos textos, que as três
dimensões da polêmica que evocamos (enunciativa, genética, semântica) não
interessam da mesma maneira à análise do discurso. Podemos dizer o mesmo
sobre os outros registros: por exemplo, há traços linguísticos, enunciativos e
pragmáticos que são característicos do registro didático, mas o didático é
igualmente indissociável das práticas discursivas que o assumem em um
espaço e por um momento dados. Disso resulta uma integração
particularmente complexa entre os registros e as categorias tópicas.
Para ter acesso a este “outro texto” que o texto foi construído para esconder, é
preciso, por meio de um método apropriado, contornar “esta estrutura do
desconhecimento que interessa sobretudo ao pesquisador da ideologia”
(Althusser, 1976: 34). As rupturas assim introduzidas na continuidade dos
textos estão a serviço de uma ciência da ideologia, que, como a psicanálise,
visa a desfazer as ilusões por meio das quais os Sujeitos se constituem.
Capítulo 9
UNIDADE E DIVERSIDADE
Bakhtin tem claramente uma concepção muito ampla do gênero, que recobre
para ele o conjunto dos esquemas preestabelecidos nos quais a fala pode fluir.
A maior parte dos analistas do discurso tem uma concepção mais restritiva de
gênero: se, para eles, a ata ou os diários íntimos são certamente gêneros, este
não será o caso das saudações ou das injúrias. De fato, eles apreendem o
gênero como uma instituição de palavra ao mesmo tempo social e verbal, um
dispositivo que regula uma atividade verbal autônoma; ora, as saudações e as
injúrias não são atividades autônomas: mais frequentemente, elas fazem parte
de uma interação oral.
Estes gêneros são atribuídos pelo próprio autor, eventualmente por um editor.
Em geral, são objeto de uma indicação paratextual, no título ou no subtítulo:
“meditação”, “ensaio”, “dissertação”, “aforismos”, “tratado”...
9.1.3. As conversações
É mais realista, então, substituir esta tripartição em três gêneros por uma
distinção entre apenas dois regimes complementares: um regime instituído,
que recobre gêneros autorais e rotineiros, para o qual a noção de gênero de
discurso é plenamente válida, e um regime conversacional, no qual dominam
“flexibilidade” e “desorganização relativa” (Kerbrat-Orecchioni, 1990: 115) e
para o qual a categorização em gêneros de discurso é altamente problemática.
È preciso evitar, porém, estabelecer uma hierarquia de valor entre estes dois
regimes, em um ou outro sentido. A opinião comum, sabemos, desvaloriza a
conversa, considerada um uso “descuidado” da língua. Um preconceito que é
reforçado pelo prestígio da escola, entre cujas funções está precisamente a de
permitir aos alunos o acesso a modos de expressão verbal, particularmente
escritos, que se afastam das conversas espontâneas.
Mas falta muito para que esta distinção entre conversações e gêneros
instituídos recubra a totalidade dos enunciados produzidos em uma
sociedade. No mundo do trabalho, por exemplo, um grande número de
atividades exige produções verbais que intervêm no interior
29 Idem
Não se deve ter ilusão, contudo, quanto à eficácia deste tipo de distinção.
CAPÍTULO 10
A metáfora teatral logo encontra seus limites, porém: se um(a) ator(riz) pode
afirmar sem dificuldade que não é Hamlet ou Engraçadinha, os que
participam dos gêneros de discurso, salvo situações muito particulares, não
podem deixar suas roupas nos camarotes. Nossa personalidade é tecida de
múltiplos “papéis”, que nos são atribuídos. Encontramo-nos sempre
confrontados com o paradoxo de uma teatralidade da qual não podemos sair.
31 Em português, este efeito se mantém mais claramente em expressões
como “quando ele entra em cena...” e “durante a cena do assassinato...” (N.
do T.) A cena de enunciação de um gênero de discurso não é um bloco
compacto.
Ela faz interagir três cenas (Maingueneau 1993, 1998a): a cena englobante, a
cena genérica, a cenografia.
10.1.1. A cena englobante
A cena englobante corresponde à definição mais usual de “tipo de discurso”,
que resulta do recorte de um setor da atividade social caracterizável por uma
rede de gêneros de discurso. Quando recebemos um folheto na rua, devemos
determinar a que título ele nos interpela, se pertence ao discurso político,
publicitário, religioso... Uma cena englobante política, por exemplo, implica
uma relação entre um “cidadão” dirigindo-se a “cidadãos” sobre temas de
interesse coletivo. Em uma cena englobante literária, um enunciado tem a
priori um certo número de propriedades específicas: seu autor pode ser um
pseudônimo, o que ele diz pode ser ficção (mesmo se enunciado por um
“eu”), pode tomar liberdades com as normas usuais da comunicação verbal
(insultar seu destinatário, revelar sua intimidade diante de desconhecidos...).
diferentes
respostas.
As
respostas
serão
eventualmente outras se a pergunta for feita a especialistas (no caso, os
professores ou os jornalistas que gerem essas atividades), e ainda outras, se
dirigidas a sociólogos da mídia, a
Como vocês, não acredito na alternância sem fim entre a direita dura e a
esquerda frouxa. Vocês têm nas mãos uma arma pacífica para pode dizê-lo:
sua cédula eleitoral. Há dois anos, as eleitoras e os eleitores se insurgiram
contra o projeto da Constituição européia.
Mesmo sem uma análise detalhada, vê-se que, neste texto, o enunciador se
institui como “porta-voz de um agrupamento...” e como “sindicalista
camponês, militante, altermundista, cidadão engajado...”; a isso se juntam
diversas características implícitas, em particular uma postura feminista que se
manifesta, entre outras coisas, pela inscrição reiterada de marcas do
feminino32 ou da primazia conferida aos termos de tratamento femininos
(“Cidadãs, cidadãos...”). Quando ao destinatário que o enunciador se dá, uma
série de relativas restritivas associadas ao “agrupamento” permite definir de
maneira oblíqua suas propriedades:
Se se sabe que um certo texto é um cartaz publicitário, isso não permite saber
por meio de qual cenografia ele vai ser enunciado. Para promover o mesmo
produto, por exemplo, um sabão em pó, pode-se importar cenas de fala muito
variadas: mostrar um sábio que explica a um colega a composição química e
os efeitos do produto, duas mães de família que conversam ao telefone, dois
jogadores de rugby que comparam no campo a limpeza de seus uniformes
etc. Mas esta criatividade se exerce no interior do quadro pré-estabelecido
pela cena genérica: normalmente, uma propaganda não põe em questão o
gênero ao qual se associa. A diferença entre gêneros de modo (2) e de modo
(3) pode ser ilustrada pela comparação entre uma canção que se apresenta
como uma carta (por exemplo, “Le déserteur”, de Boris Vian33) e a Lettre à
un provincial, de Pascal. Seus autores escolheram apresentar um texto que
pertence a um gênero (respectivamente, a canção e o panfleto religioso) por
meio de uma cenografia epistolar. Mas o autor de “Déserteur” teve que
inventar uma cenografia exógena (o gênero canção não
- Gêneros instituídos de modo (4): são os gêneros aos quais o autor associa
uma etiqueta (“meditação”, “tratado”, “confissão”, “utopia”, “enquete”...) que
dá sentido à atividade discursiva, especificando a que título o texto deve ser
recebido pelo destinatário. A etiqueta que ele escolhe não pode ser
substituída por outra (uma “confissão” não é uma “fantasia”, uma “enquete”
não é uma “pesquisa”...). Este gesto categorizador, que participa de um ato de
posicionamento no interior de um campo discursivo, é associado a uma
memória intertextual: qualquer um que, hoje, etiquetasse como “confissão”
um livro autobiográfico não poderia ignorar a existência das Confissões de
Rousseau, que, por sua vez, não ignorava que situava seu livro em relação a
outro, no caso, As confissões de Santo Agostinho.
10.3. Os hipergêneros
(nada impede que um autor categorize como “diálogo” um texto que não
apresente forma de diálogo), mas de textos que, por suas propriedades, se
mostram como diálogos, isto é, se apresentam como uma alternância de
turnos de fala entre pelo menos dois interlocutores.
Certamente, isso não quer dizer que não haja restrições; como o sublinha
Kerbrat-Orecchioni, ela “tem como especificidade tratar de um tema preciso,
de ter, ao contrário das conversas normais, uma questão central, e de repousar
sobre um „contrato de seriedade‟” (1990: 119). Além disso, ela se distingue
de interview34 pela “menor desigualdade entre os lugares dos participantes,
sem que por isso se possa falar de igualdade” (Charaudeau, 1986: 132). No
nível dos papeis de base, ela implica um triângulo elementar: um indivíduo
com alguma notoriedade é posto em relação com um público por meio de um
mediador considerado participante dos dois mundos que ele deve colocar em
contato: o mundo do indivíduo que ele entrevista e o mundo do público. No
entanto, a despeito de algumas restrições, a entrevista recobre práticas muito
diversas, gêneros de discursos diferentes. As entrevistas escritas nas quais os
parceiros não estão fisicamente na presença um do outro são submetidas a
restrições completamente diferentes das que afetam as entrevistas orais. Pode
até ocorrer que o mediador não seja um indivíduo, mas o nome próprio de um
coletivo: por exemplo, nas entrevistas na imprensa escrita ou na internet nas
quais as intervenções são atribuídas ao próprio periódico: Carta Maior, Le
Figaro... Existem, por outro lado, entrevistas que são gêneros autônomos (por
exemplo, certas emissões de rádio) e outras que são apenas parte de um
gênero autônomo: por exemplo, em uma revista, uma entrevista integrada em
um dossiê de algumas páginas consagrado a um escritor, um país, uma
época...
Para este tipo de fenômeno, é preferível falar de hipergênero (Maingueneau,
1998b35). Um “hipergênero” não é um gênero de discurso, mas uma
formatação com restrições pobres que pode recobrir gêneros muito diferentes.
Alguns hipergêneros, como o diálogo, o jornal ou a carta são antes de tudo
modos de apresentação formal, de organização dos enunciados: eles
restringem muito pouco a enunciação. Outros, como o relatório ou a
entrevista,
O que importa é que um gênero não se define apenas pelo formato do “texto”
e as etiquetas podem não captar este fato ou não (N. do T.).
CAPÍTULO 11
Uma forma de gerir as dificuldades que a existência dessas frases “sem texto”
levanta consiste em ver nelas um fenômeno marginal, que não põe em
questão o postulado segundo o qual a comunicação verbal é
fundamentalmente realizada por meio de textos. Este é o caminho que se
segue normalmente, e tanto mais facilmente
quanto em geral esses dados não são tratados em seu conjunto, mas estudados
separadamente: existem trabalhos sobre os provérbios, outros sobre os
slogans, outros sobre as citações etc.
Enunciação
Aforizante Textualizante
O que se chama “falar” pode, assim, realizar-se por meio de dois regimes
distintos, duas maneiras distintas de olhar a comunicação verbal e o Sujeito
da fala. Esta divergência funciona em diversos planos: - Todo gênero de
discurso define duas posições correlativas de produção e de recepção:
professor aluno, orador auditório, candidato eleitores, animador convidados
ou telespectadores... A enunciação aforizante, diferentemente, institui uma
cena de enunciação na qual não há interação entre protagonistas situados no
mesmo plano. O aforizador (isto é, o enunciador de uma aforização) fala a
uma espécie de auditório universal, para além do destinatário instituído por
tal ou tal gênero de discurso. Este tipo de enunciação sem alocutário
específico não deixa de evocar o dispositivo da retórica clássica, na qual o
orador se dirigia a um destinatário que estava além de seu público imediato.
Ele dirigia uma fala sem réplica ao conjunto de uma comunidade unida por
determinados valores. Como na aforização, esta fala enfática se dava em
espetáculo a um destinatário que devia recebê-la não como um uso ordinário
da linguagem, mas como um uso nobre: “o locutor cria uma cena de fala „à
parte‟, sem verdadeira interlocução, na qual há ao mesmo tempo dizer e
representação, no sentido teatral, espetacularização exemplar deste dizer”
(Grinshpun, 2008: 143).
Enunciação
Aforizante Autoral
Para parecer uma palavra primeira, mais próxima possível da verdade de uma
consciência, a enunciação destacada, seja fragmento de obra ou aforização,
deve, paradoxalmente, ser retomada. Na enunciação destacada, o enunciado é
retomado para ser levado para uma nova cena: só há aforização citada, só há
obra se o texto, que já foi dito, se vê re-presentado em uma unidade de outra
ordem. Quando ela se re-representa assim em outra cena, a palavra se carrega
de poder e de sentido. Nas fronteiras do texto, o aforizador e o auctor são ao
mesmo tempo a sombra de um locutor e os únicos Locutores verdadeiros: os
que, plenamente Sujeitos, estão em condições de dizer as palavras que
importam. Atribui-se ao filósofo Augusto Comte a aforização segundo a qual
“os mortos governam os vivos”; esta aforização deve ser entendida também
na ordem da linguagem: as palavras dos locutores mortos governam os vivos.
Com a condição de não esquecer que são os vivos que destacam textos para
que eles se destaquem dos enunciados comuns.
monológicas, seja nas práticas verbais, seja como momentos enunciativos nos
discursos.
CAPITULO 12
O ESPAÇO DO DISCURSO
Uma distinção deve ser estabelecida entre os discursos constituintes, que são
realidades históricas, e o próprio princípio da constituência. Se se considera a
imensa diversidade das sociedades através dos tempos e do espaço, não se
encontrarão necessariamente categorias como “discurso religioso” ou
“científico”, mas se encontrarão inevitavelmente palavras últimas de estatuto
paratópico, assumidas por seres cujo pertencimento ao corpo social é
problemático: xamã, feiticeiro, griô... Dado que se inscreve na História, a
lista dos discursos constituintes não poderia nunca ser fechada. Pode-se
pensar que a psicanálise, quando não se reduz a uma técnica terapêutica,
pretende ser um discurso constituinte (Bondiaux, 2009); isto é
particularmente evidente quando se considera a versão proposta por Lacan.
Hibridações inéditas são sempre possíveis; pode-se perguntar, por exemplo,
se, em torno da ecologia e/ou das novas tecnologias digitais, não emergirão
novos discursos constituintes que vão combinar elementos do discurso
religioso e do discurso científico.
Esta hierarquia, entretanto, não tem nada de fixo. Certos textos “segundos”
podem, por sua vez, tornar-se arquitextos: é o caso de um autor cristão como
Santo Agostinho ou das Epístolas de São Paulo, que, aliás, figuram na Bíblia
cristã e são lidas nos ofícios religiosos. O estabelecimento do cânone dos
arquitextos legítimos é objeto de debates incessantes entre posicionamentos,
cada um procurando impor seus próprios arquitextos e a interpretação que
julga ortodoxa.
texto sagrado precede logicamente seus comentários, mas o texto não pode
ser instituído como sagrado (e cultivado, em conseqüência) a não ser que seja
comentado... As palavras de Cristo parecem tanto mais incomensuráveis
quanto mais uma infinidade de comentários se esforça para torná-las claras.
Um texto que não fosse mais objeto de interpretação deixaria de ser
enigmático.
Ao lado do discurso político, mas por razões bem diferentes, outros tipos de
discurso apresentam um modo de pertencimento problemático. Basta pensar
nas mídias e na internet, que são estreitamente ligadas.
CAPITULO 13
tal como a entendemos, é mais restritiva; ela se limita aos enunciados que se
conservam, que se convertem em objetos susceptíveis de circular e de ser
submetidos a diversos tratamentos.
Para Foucault, deve-se, assim, poder estabelecer: o conjunto das regras que,
em uma época dada e para uma sociedade determinada, definem: - os limites
e as formas da conservação: quais são os enunciados destinados a passar sem
vestígio? Quais são destinados, ao contrário, a entrar na memória dos homens
(pela recitação ritual, a pedagogia e o ensino, a distração ou a festa, a
publicidade)? Quais
são anotados para poderem ser reutilizados, e para quais finalidades? Quais
são postos em circulação e em quais grupos? Quais são reprimidos e
censurados? [...]
é inseparável do tecido enunciativo do qual ele faz parte e não pode ser
atribuída, neste versão, a Sarkozy.
as passagens que lhe eram atribuídas, para publicá-las nas “obras completas”.
Seguindo nisto a lógica da enunciação que chamamos “destacada” (capítulo
11), eles, assim, relegaram ao segundo plano o fato de que se tratava de uma
correspondência, e recategorizaram os fragmentos para fazer deles
“opúsculos”, isto é, um gênero de texto característico de um pensador.
CAPITULO 14
NOVAS TEXTUALIDADES
41Publicada desde 1999 pelo editor Sage e dirigida por T. van Dijk O
discurso oral é multimodal por natureza, já que a comunicação ativa
simultaneamente a produção de um fluxo sonoro e a de movimentos
corporais associados. A comunicação verbal é um todo expressivo que
associa gestos e signos linguísticos, o que incita os pesquisadores a propor
modelos de produção da linguagem em que cognição verbal e cognição
espacial trabalham juntas. O problema, então, é saber quais são as relações
entre estes dois modos, sendo claro que a gestualidade não se contenta em
ilustrar o que diz a palavra: cada uma delas mantém relações de
complementaridade com a outra, em função do tipo de atividade verbal
exercida (descrição, explicação, narração...) e da atitude do locutor em
relação a sua própria enunciação e à do outro. Este tipo de fenômenos não
tem nada de novo; eles foram estudados desde o começo das pesquisas sobre
o discurso, em particular nos Estados Unidos, onde houve interesse especial
pelas interações orais.
olhar, captura parcial de uma totalidade que não se dá jamais como tal, que é
necessário destrinchar. Na maior parte dos sites, uma página da tela não é um
texto, mas um mosaico de módulos, que são heterogêneos, do ponto de vista
enunciativo e modal: sinais, diagramas, propagandas, começos de artigos,
slogans, vídeos... Bem frequentemente, estes módulos não são textos, nem
mesmo fragmentos de textos auto-suficientes, mas espécies de portas que,
num clique, podem dar acesso a outro espaço (outras páginas do mesmo site
ou de outros, um vídeo ou uma propaganda...). Não se pode falar aqui de
micro-textos, de textos curtos (como as máximas ou os pequenos anúncios
tradicionais, por exemplo), mas de uma subversão generalizada da lógica do
texto. Assiste-se, assim, a uma “profunda transformação da relação entre o
fragmento e a totalidade”, na medida em que
Na Web, o recurso a tal hipergênero ou a tal cenografia está longe de ser sem
sentido. Pelo contrário, permite dar sentido à atividade de comunicação,
instaurando certa relação entre os parceiros da comunicação, e estas escolhas
são sintomáticas de determinada configuração social. Por exemplo, no que
diz respeito à prostituição feminina, uma boa parte do que a polícia chama de
abordagem se faz atualmente por meio de blogs pessoais. Esta nova prática
contrasta com a prostituição tradicional que se exercia sob a proteção de
algum(a) cafetão(ina) e em zonas situadas nos arredores das cidades. O
recurso ao blog permite esmaecer a distinção entre prostituta profissional e
mulher comum, entre clientes e rede de amigos. As relações se estabelecem
entre indivíduos, não por intermédio de terceiros.
Formas de textualidade
Oral Escrita
CAPÍTULO 15
42 Para uma síntese sobre este contexto epistemológico, ver Winkin (éd),
(1981). Sobre o aspecto propriamente linguístico, ver Kerbrat-Orecchioni
(2004a).
Esta é comumente concebida como um fluxo sonoro que circula entre dois
interlocutores que estão face a face; quando estão fisicamente separados, os
sujeitos falantes podem valer-se de instrumentos, seja um telefone (que
preserva o caráter imediato da troca), uma caneta ou uma máquina de
escrever, que permitem uma comunicação diferida, no caso, a escrita. Mas
qualquer um pode constatar que hoje os locutores passam cada vez mais
tempo produzindo enunciados que dificilmente cabem nestes quadros.
podem
Mesmo zonas de atividade que se poderia pensar que estão livres destas
novidades são afetadas: o Parlamento, por exemplo. Em 2013, três quartos
dos deputados franceses dispunham de uma conta no Tuíter e estavam em
condições de enviar tuítes durante as sessões da Assembleia, para comentar o
que estava acontecendo. Não se trata mais, como no SMS, de enviar uma
mensagem a tal ou tal pessoa, mas de atingir o conjunto dos “seguidores”,
entre os quais um certo número está em condições de difundir imediatamente
a mensagem às mídias, que não hesitam em repercuti-las amplamente.
textos
publicitários,
administrativos,
políticos,
- ele não fala por sua própria iniciativa, mas sempre movido por algum outro;
é um simples portador de mensagens46;
CONCLUSÃO
Diferentemente, outros,
que mostra, aliás, a maneira pela qual foram constituídas: fazendo convergir
trabalhos e reflexões vindos ao mesmo tempo de diversas regiões das ciências
humanas e sociais e de certas correntes filosóficas.
Os estudos de discurso aparecem como um campo de pesquisa que se
alimenta de forças contraditórias, partilhado que é entre a multiplicação de
suas correntes e o crescimento das trocas entre elas, entre a fragmentação de
seus objetos de análise e o recurso a conceitos e procedimentos englobantes,
entre o trabalho empírico e a especulação filosófica, entre a vontade de
delimitar um espaço específico e a de absorver-se nas ciências humanas e
sociais. Mas este campo, por problemática que possa ser sua identidade,
constitui um novo sítio de observação das práticas de uma sociedade, um sítio
que modifica a forma pela qual apreendemos a linguagem, a subjetividade, a
sociedade, o sentido.