Fronteiras Da Paisagem

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Comissão Científica – Edital 01/2020

Antonio Carlos Queiroz Filho


Catia Pereira dos Santos
Fabiana Aparecida de Carvalho
Gustavo Maneschy Montenegro
Julia Batista Alves
Karina Ferreira Chueng
Mirleide Chaar Bahia
Sidelmar Alves da Silva Kunz

CNPJ: 75.365.387/0001-89
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Campo Mourão, PR, CEP 87303-100
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Diretora: Suzana Pinguello Morgado


Vice-Diretora: Fabiane Freire França
Coordenadora Consultiva: Ana Paula Colavite
Secretário Executivo: Jorge Leandro Delconte Ferreira
MARCOS ALBERTO TORRES
organizador

FRONTEIRAS DA PAISAGEM
Valdemir Paiva Paula Zettel
EDITOR-CHEFE DESIGN DE CAPA

Éverson Ciriaco Brenner Silva


DIREÇÃO EDITORIAL DIAGRAMAÇÃO E PROJETO GRÁFICO

Katlyn Lopes Elaine dos Santos


DIREÇÃO EXECUTIVA REVISÃO

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


BIBLIOTECÁRIA: MARIA ISABEL SCHIAVON KINASZ, CRB9 / 626
Fronteiras da paisagem
T693f Fronteiras da paisagem / organização de Marcos Alberto Torres – 1.ed. – Campo Mourão: Fecilcam; Curitiba:
Editorial Casa, 2022.
290p.: il.; 23cm

ISBN 978-65-88090-28-2

1. Geografia cultural. 2. Geografia humana. 3. Paisagem. I. Torres. Marcos Alberto (org.).

CDD 304.2 (22.ed)


CDU 911.3

1ª edição – Ano 2022

Fica terminantemente proibido qualquer tipo de comercialização de exemplares deste


livro, conforme o Edital 01/2020 Editora Fecilcam, por se tratar de uma publicação com
financiamento público.

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PREFÁCIO

L’exploration du paysage fascine les géographes parce


qu’ils leur parle de la réalité objective, des hommes qui
la peuplent et des liens qu’ tissent avec le milieu. Les
géographes du début du siècle privilégiaient les pay-
sages prodictifs du monde rural. Ceux d’aujourd’hui s’
interéssent à la ville, aux paysages `ephémères qu’y crée
la fête ou aux environnements modelés pour le rêve, la
dètente, le loiser ou la méditation que sont les jardins.
Paul Claval, 20011

Prefaciar esta obra, intitulada Fronteiras da paisagem, é uma


honra. O convite que o Marcos Torres nos fez é merecedor de toda
a minha gratidão, pois nossa parceria passou pela graduação, Labo-
geo e orientação na pós-graduação, mediada, sobretudo, por uma
significativa relação de amizade e pela “Paisagem Sonora”. Proeminar
uma obra de tal grandeza, escrita por intelectuais advindos de várias
áreas, proporciona interessantes reflexões acerca de um tema que
nos é muito caro, especialmente, no âmbito da Geografia Cultural.
O conjunto de textos que compõe esta obra provoca-nos
inquietações e remete incessantemente a um processo coletivo de
reflexão sobre o conceito de paisagem. O estabelecimento de inter-
faces com áreas do saber, como a Arquitetura, a Arte e a Filosofia,
está proporcionando ultrapassar as fronteiras, valendo-se, para isso,
do encontro com e entre tão ricas perspectivas. E não poderia ser
de outra maneira: um conceito tão complexo como o de paisagem
demanda, necessariamente, o estabelecimento de diálogos plurais,
com as mais diversas áreas. Certamente, os apreciadores do tema
sairão engrandecidos com sua leitura.
Pensar a paisagem remete-nos a uma visão de mundo muito
peculiar, geralmente referendada no real, no visível, no estético. Como

1  CLAVAL, P. Epistémologie de la géographie. Paris, Nathan, 2001.


ressalta Claval, os geógrafos do início do século XX privilegiavam o
real visível no estudo das paisagens rurais. Entretanto, com a virada
cultural, ocorrida na década de 1990, o olhar sobre as paisagens redi-
mensiona-se e os elementos relacionados à subjetividade passam a
ser considerados. Descortinam-se, assim, paisagens efêmeras, cone-
xas às festas, aos espaços de lazer, assim como aos jardins e parques,
paisagens que nos convidam à meditação. O reencantamento das
relações espaciais ganha contornos ainda mais nítidos.
O conceito de paisagem surge como apreensão estética do
espaço, pelo entrelaçamento de sentimentos, emoções, sensações
e percepções, imprimindo uma tonalidade mais humanizada e até
mesmo espiritual às paisagens. Nessa perspectiva, Andreotti (2013)2
faz-nos ver que pensar a paisagem é apreendê-la como espelho
de si mesmo, captando a “alma do lugar”. Sendo assim, a paisagem
constitui-se num poderoso aporte, capaz de alimentar repostas a
questionamentos que o pesquisador, desprovido de tal recurso, não
conduziria a bom termo sua empreitada.
A partir da problematização a respeito do significado de Natu-
reza em nossas vidas, estabelece-se que a paisagem é uma resposta
moderna à descontinuidade entre sociedade e natureza, ressaltando
que seu conceito não tem dono, tampouco possui fronteira. Afinal,
os fenômenos que se desenrolam no e pelo espaço articulam-se a
múltiplos aspectos, sejam eles econômicos, ambientais, culturais,
políticos ou sociais.
A análise do valor das paisagens nas poéticas artísticas revela
que as distintas percepções de sentido contribuem para alargar a
compreensão da essência da vida. Se a construção da paisagem
transita entre o real e o imaginário, então a fotografia, enquanto re-
presentação visual e simbólica, resultante de uma construção social,
possibilita ler e alcançar a paisagem. A reflexão sobre a paisagem
na pintura, por sua vez, permite estabelecer um paralelo entre seu
conceito no Oriente e no Ocidente, ao ressaltar o fulgor da natureza

2  ANDREOTTI, G. Paisagens Culturais. Curitiba, Editora da UFPR, 2013.


sempre que atravessado pelas concepções de espiritualidade no
mundo oriental e de sublime no ocidental. Enquanto chave de per-
cepção do espaço social, os espaços públicos refletem a paisagem
urbana, prestando-se para investigações acerca de fenômenos
urbanos invisíveis para o cidadão comum. Destarte, estudos sobre
as paisagens urbanas também podem ser apreendidos a partir das
transformações e interferências dos artistas performáticos no espa-
ço, ressignificando lugares e paisagens através do corpo.
A paisagem faz parte de “nosso estar no mundo”, uma “forma
de habitar”, ressaltando que é pelo corpo que habitamos o mundo
(BESSE,2014)3. Esse aspecto é ressaltado em um trabalho de campo
pelos espaços públicos das metrópoles brasileiras, demonstrando
que “a vivência na paisagem é plena de descobertas prazerosas,
em virtude da generosidade das pessoas, da beleza dos ambientes
construídos e dos lugares construídos por essa relação.”
A paisagem encontra-se atravessada por emoções capazes
de criar relações históricas, espirituais e simbólicas, as quais podem
externar as marcas de variados grupos. Assim, em diferentes lugares,
fatos, ideias, sonoridades, imagens, sonhos, mitos integram as pai-
sagens. Seria a paisagem uma “acumulação desigual de memórias”?
A paisagem, enquanto construção cultural, mescla, portanto, razão e
emoção, objetividade e subjetividade, realidade e imaginário nas múl-
tiplas representações, sejam elas individuais ou coletivas. Também
nessa perspectiva apresentam-se as paisagens sonoras, integrando
poética, geografia e música.
Decorre daí que, a partir de uma perspectiva simbólica, a
imaginação geográfica pode estruturar diferentes espacialidades, ou
seja, as paisagens culturais. Essas paisagens são fruto da imaginação,
bem como das emoções e da experiência humana que externaliza
o que percebe, vê e sente, em forma de arte, por exemplo. Assim,
pensar a imaginação na Geografia encontra-se associado à expe-
riência emocional dos sujeitos. Nós percebemos o mundo a partir

3  BESSE, J. M. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014.


daquilo que é expressivo para nós: o mundo das coisas, o mundo da
vida. Cabe ressaltar que é possível pensar a paisagem cultural como
processo e resultado do ato de imaginar, que, por sua vez, também é
emocional, assegurando a conexão com o que é significativo.
Os trabalhos que compõem esta obra propiciam-nos mergulhar
nas searas da paisagem através do espaço e do tempo, perpassando
pela pintura, pelas gravuras, pela fotografia, além das performances,
das artes visuais, da música, da poética, potencializando as reflexões
sobre a paisagem, configurando-se em uma leitura instigante e reve-
ladora, capaz de projetar ainda mais luzes sobre o tema.
Recomendo esta obra, uma vez que sua leitura assegura ultra-
passar as fronteiras da paisagem, proporcionando um novo olhar e a
revalorização dos lugares... o desvelar da “alma dos lugares”.

Salete Kozel
Maio de 2020
SUMÁRIO

SOBRE AS FRONTEIRAS DA PAISAGEM: DIÁLOGOS E CONSTRUÇÕES. . . . . . . 11


Marcos Torres

MANIFESTO PAISAGÍSTICO POR UMA SOCIEDADE DIFERENTE DA NATUREZA . 19


Reginaldo José de Souza, Paula Vanessa de Faria Lindo
e Éverton de Moraes Kozenieski

ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL:


O CRESCIMENTO POÉTICO DO YARIPO, POR CILDO MEIRELES . . . . . . . . . . 39
Maria Cristina Mendes

ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS: ESTUDO DE


CASO DAS PRODUÇÕES VISUAIS DE PONTA GROSSA POR LUIZ BIANCHI. . . . 69
Patricia Camera

AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM . . . . . . . . . . . . . 107


Camilla Carpanezzi La Pastina

DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:


A GRAVURA COMO ESTRATÉGIA DE INTERVENÇÃO URBANA. . . . . . . . . . . . 143
Renato Torres

PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA: PAISAGENS, TERRITORIALIDADES E


OS SEUS DESDOBRAMENTOS NA VIDA URBANA . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177
Thays Ukan e Marcos Alberto Torres

UMA EXPERIÊNCIA PAISAGÍSTICA NA METRÓPOLE BRASILEIRA. . . . . . . . 203


Alessandro Filla Rosaneli

TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA? SOBRE IMAGINAÇÕES, EMOÇÕES


E PAISAGENS CULTURAIS A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA SIMBÓLICA. . . . . . 221
Marcia Alves Soares da Silva

O MUNDO NA PONTA DOS DEDOS: EPIGRAMAS DE CECÍLIA MEIRELES


E CARLOS ALBERTO ASSIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257
Beatriz Helena Furlanetto

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281


SOBRE AS FRONTEIRAS DA PAISAGEM:
diálogos e construções

Marcos Torres

Estar numa área de fronteira possibilita uma leitura, ao mesmo


tempo, dos elementos que compõem o lugar onde estamos e do que
se refere ao outro lado do limite, o que pode gerar a sensação de
confusão com a mistura de línguas, cheiros e elementos visuais que
contrastam com o lugar de onde estamos vindo, mas também reve-
lador do que podemos encontrar do outro lado da linha que separa
um território do outro, no lugar para onde estamos indo. Nesta obra,
as fronteiras indicam interações, referem-se metaforicamente a uma
área que está sobre um limite e que possibilita perceber o entrecru-
zamento de elementos de um lado e do outro deste, quando temos
coisas “daqui” e “de lá” em relação. Este livro apresenta algumas das
fronteiras da paisagem para dialogar e contribuir na construção de
novas ideias sobre essa importante categoria espacial.
O estudo da paisagem conduz-nos para as fronteiras do
pensamento, pois é possível encontrar reflexões a respeito nas mais
diferentes áreas, seja nas artes, na filosofia, nas ciências humanas,
nas ciências da terra, dentre outras. Este livro nasce de diálogos e
experiências compartilhadas, de um esforço coletivo de pessoas de
diferentes contextos que encontram afinidades em suas pesquisas
e reflexões no tema da paisagem. Os diálogos iniciados numa escala
íntima expandem-se para outras escalas, costurando amizades e
ideias em torno da paisagem.
Ao estabelecermos contato com os lugares, atentamos aos
detalhes que encontramos na paisagem, seja o tempo atmosférico,
os cheiros, os sons, a fala das pessoas, os gestos e movimentos, os

11
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

tipos de construções, os meios de transporte, os modos de viver das


pessoas: tudo nos chama a atenção e, conjuntamente, compõe o que
chamamos de paisagem, que se relaciona aos elementos dos lugares
que nos afetam e marcam a nossa experiência espacial. Para Dardel
(2011), a paisagem é a geografia compreendida como o que está em
torno do homem, como ambiente terrestre. Segundo ele, “muito mais
que uma justaposição de detalhes pitorescos, a paisagem é um con-
junto, uma convergência, um momento vivido, uma ligação interna,
uma ‘impressão’, que une todos os elementos” (DARDEL, 2011, p. 30).
Aplica-se, portanto, o conceito de paisagem para representar uma
unidade do espaço, um lugar, o que remete às percepções que se
tem sobre ele. Tal compreensão já seria suficiente para pensarmos
na necessidade de nos colocarmos nas fronteiras do conhecimento
para compreender a paisagem, na busca de um diálogo com as dife-
rentes áreas do saber.
Simon Schama (1996), em sua obra Paisagem e memória, apre-
senta uma breve retomada das origens do termo paisagem. Segundo
ele, a palavra landscape [paisagem]

[...] entrou na língua inglesa junto com herring [arenque]


e bleached linen [linho alvejado], no final do século XVI,
procedente da Holanda. E landschap, como sua raiz
germânica, Landschaft, significava tanto uma unidade de
ocupação humana – uma jurisdição, na verdade – quanto
qualquer coisa que pudesse ser o aprazível objeto de
uma pintura. Assim, certamente não foi por acaso que
nos campos alagados dos Países Baixos, cenário de uma
formidável engenharia humana, uma comunidade desen-
volveu a ideia de uma landshap, que, no inglês coloquial da
época, se tornou landskip. [...] Nos Países Baixos, contudo,
o desenho e uso da paisagem por parte do homem – su-
gerido pelos pescadores, vaqueiros, caminhantes – era
a história, espantosamente auto-suficiente. (SCHAMA,
1996, p. 20, 21)

Além de contribuir com parte da história do termo paisagem,


desde sua raiz germânica até seus distintos usos, Schama (1996)

12
SOBRE AS FRONTEIRAS DA PAISAGEM

apresenta a relação da paisagem com a pintura. Seu texto chama a


atenção para o fato de que as representações da paisagem por meio
do desenho e da pintura eram a própria história do lugar – autossu-
ficiente, como diz ele –, pois, por meio delas, havia o registro do que
era e de como era a paisagem do lugar. A história contada por meio
da pintura da paisagem era um recorte selecionado, o belo, que ali-
mentava o sentimento topofílico daqueles que habitavam o lugar da
paisagem. Naquele período, o pensamento renascentista era vigente
e considerava “o olho a ‘janela da alma’, por meio da qual o homem
torna-se capaz de perceber o mundo” (ABRÃO, 1999, p. 144). Neste
sentido, a pintura seria o “olhar mágico que capta, fixa e eterniza na
tela o mundo recriado e reordenado pelo artista” (Ibidem).
Com um pensamento que concorda com o de Schama, Sal-
gueiro (2001) pontua que a descoberta da paisagem no Ocidente
deu-se pela pintura, utilizada, primeiramente, para descrever uma re-
presentação pictórica do campo. Na perspectiva da autora, mesmo no
século XIX, “os pintores continuaram a produzir paisagens bucólicas,
ignorando totalmente as transformações que, entretanto, ocorriam
no real” (SALGUEIRO, 2001, p. 39). Em contrapartida, Jorge Gaspar, ao
discutir o surgimento do conceito de paisagem, apresenta a hipótese
de que os viajantes podem ter antecedido o período renascentista
no estímulo ao uso e definição da paisagem. Nas palavras de Gaspar:

Creio que o interesse pela paisagem foi sempre estimu-


lado pela viagem, pela abertura ao mundo, aos mundos.
E isso aconteceu, decerto, muito antes do conceito e da
palavra terem sido elaborados no Renascimento. Não te-
rão sido então as viagens e as descobertas – marítimas e
terrestres – que catalisaram o processo de invenção da
paisagem? (GASPAR, 2001, p. 85).

Ainda que os viajantes tenham antecedido o período renas-


centista no processo de invenção da paisagem, é certo que a sua
ideia construída no referido período pode ter rendido ao conceito
hodierno de paisagem a alusão aos elementos visíveis e belos do es-

13
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

paço. Entretanto, ainda que a arte contemporânea tenha extrapolado


a ideia de belo que havia no Renascimento, questionando também
o espaço sob distintas formas, inclusive extrapolando o espaço das
galerias de arte e atingindo os espaços “comuns” das pessoas, tais
discussões ainda não foram suficientes para mudar o senso comum,
o que torna recorrente a ideia de paisagem ligada a lugares belos ou
a momentos de contemplação do belo, como, por exemplo, o pôr do
sol na praia ou numa montanha.
Na presente obra, diferentes perspectivas de paisagem são
apresentadas e, juntas, mostram a complexidade e a riqueza dos
estudos da paisagem na contemporaneidade. Os capítulos estão
organizados a partir de um encadeamento de ideias que possibilita
mostrar tanto a densidade de interconexões que se estabelecem na
construção dos conceitos, como a expansão das áreas de estudo
que se voltam às questões da paisagem. Assim, somos colocados,
primeiramente, diante de um manifesto assinado por Reginaldo José
de Souza, Paula Vanessa de Faria Lindo e Éverton de Moraes Koze-
nieski, onde os autores e a autora compreendem a paisagem como
“emergência da apreensão estética do espaço” e reivindicam, ou-
sadamente, a retomada da dicotomia sociedade-natureza para que
cada ser humano possa reposicionar-se ante a natureza e por meio
da paisagem possa avaliar suas ações na terra e reconsiderar seus
valores junto à sociedade. As reflexões contidas nesse capítulo são
construídas a partir do diálogo entre os pensamentos de geógrafos
e filósofos, perpassadas pelas experiências empíricas dos autores, o
que evidencia a interdisciplinaridade no repensar da paisagem vivida
na contemporaneidade, assim como a representação da paisagem
contida nas artes.
Os quatro capítulos que seguem o manifesto inicial voltam-se
à discussão da paisagem a partir do universo das artes visuais e
demonstram que, mesmo na área tida como o berço da paisagem
no Ocidente, a aproximação com outras áreas do saber continua a
acontecer na construção de novas formas de pensar a paisagem. Dois

14
SOBRE AS FRONTEIRAS DA PAISAGEM

desses capítulos voltam-se à análise de obras de arte de terceiros e


dois inserem-se numa perspectiva poética, em que a reflexão dá-se
a partir da produção e do processo criativo do próprio autor.
Maria Cristina Mendes analisa um trabalho do artista Cildo
Meireles e, para tanto, excursa pela história da arte, retomando as di-
ferentes concepções de paisagem na arte nos principais momentos
de sua história. Além da paisagem, a autora aborda outras categorias
geográficas, como território e fronteira, tudo para analisar a obra Arte
física: mutações geográficas: fronteira vertical e sua relação com a
land art. Maria Cristina destaca, em seu texto, que a estratégia ado-
tada por Cildo Meireles em sua referida obra foi apontar a conexão
entre a pintura de paisagem e as alterações socioculturais, pois, nas
palavras da autora, “na irônica resposta à necessidade de crescimen-
to econômico do país, a obra dialoga com cosmogonias ancestrais,
conduzindo à revisão de conceitos de valor e de mundo.”
Seguindo a mesma linha de análise de trabalhos artísticos,
Patrícia Camera reflete sobre as fotografias de paisagens da cidade
de Ponta Grossa, feitas pelo fotógrafo Luiz Bianchi na primeira déca-
da do século XX. Para tanto, apresenta e analisa registros históricos
que remontam à história da fotografia desde o daguerreótipo e dos
registros das transformações urbanas na cidade de Ponta Grossa no
início do século XX. Discute sobre o uso da técnica fotográfica para
o registro da paisagem, compreendendo-a como unidade que con-
grega os valores de um lugar e do seu povo. A autora assinala que a
fotomontagem sugere que a paisagem fotográfica é uma construção
e que, como tal, influencia o imaginário popular da cidade. A concep-
ção de uma paisagem fotográfica é, portanto, também a construção
de uma narrativa sobre a cidade.
Em “As Águas da Montanha na Pintura de Paisagem”, Camilla
Carpanezzi La Pastina narra a sua relação com as águas das monta-
nhas da Serra do Mar paranaense e o resultado disso em sua pro-
dução artística de paisagens, que pode também ser comprovada na
capa desta obra, a qual foi produzida por ela. Para tanto, estabelece

15
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

um interessante diálogo entre a concepção de paisagem oriental e


a obra de William Turner, perpassando o conceito de sublime numa
perspectiva kantiana. A autora apresenta a ideia de paisagem desde
o mundo oriental até a concepção ocidental de paisagem. Apresenta
elementos da história ocidental da paisagem na pintura, desde o
início do século XVI, quando a paisagem era ainda fundo para figuras
religiosas, passando pela pintura de paisagem na Holanda com o
conceito de landtschap, para então chegar no período romântico na
Europa, com uma discussão acerca do sublime na filosofia de Burke
e Kant, que chega às pinturas de paisagem por meio de pinturas
dotadas de sentimentos, para relacionar tal conceito aos trabalhos
de Turner, estabelecendo paralelos com seu trabalho poético sobre a
pintura de paisagens a partir de suas vivências na Serra do Mar.
Também dentro de uma perspectiva de pesquisa em poéticas
visuais, Renato Torres tece reflexões sobre o processo de criação em
Artes Visuais, utilizando o método de pesquisa em arte, no capítulo
intitulado “Deslocamentos na Paisagem Contemporânea: a gravura
como estratégia de intervenção urbana”. O autor indica a emergência
de um conceito de paisagem na arte que contemple a dinâmica e a
complexidade da contemporaneidade, enfatizando a intervenção ur-
bana como possibilidade de ação artística sobre a paisagem urbana.
As performances artísticas na paisagem urbana são o tema
central do capítulo assinado por Thays Ukan e Marcos Torres. Tal
estudo foi privilegiado pela dupla formação da autora principal, que
é formada em Artes Visuais e em Geografia, e tem como campo de
estudos a espacialização da arte no meio urbano. Assim, no capítulo
“Performances artísticas em Curitiba: paisagens, territorialidades e os
seus desdobramentos na vida urbana”, a autora e o autor discutem
sobre a mobilidade dos artistas que se apresentam nas ruas e so-
bre as territorialidades artísticas que compõem a paisagem urbana,
apontando para as transformações e ressignificações que estas
recebem a partir das intervenções dos artistas performáticos.

16
SOBRE AS FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Reflexões sobre experiências paisagísticas a partir de cami-


nhadas por espaços públicos de diferentes cidades são tecidas em
“Uma experiência paisagística na metrópole brasileira”. Alessandro
Filla Rosaneli traça paralelos entre espaço público e paisagem urbana
e revela elementos que integram as características físicas, simbólicas,
sensoriais e sociais do cotidiano das metrópoles brasileiras. O texto
traz uma importante base metodológica para o estudo do cotidia-
no urbano, apresenta ricas dicas sobre a realização do trabalho de
campo, pautadas nas experiências vividas pelo autor, o que sugere
os cuidados necessários quando se vai a campo, como também as
possibilidades de uma maior compreensão da paisagem a partir da
organização, prática e persistência, características que devem acom-
panhar o pesquisador no estudo da paisagem no cotidiano.
O cotidiano também tem centralidade no trabalho de Marcia
Alves Soares da Silva, que reivindica o direito de imaginar na ciência
geográfica ao apresentar uma perspectiva simbólica para um estudo
da paisagem que contemple as emoções humanas. Com base na fi-
losofia de Ernst Cassirer, a autora compreende as paisagens culturais
como “parte do mundo expressivo e representativo do ser simbólico”
e busca interpretar as paisagens a partir das artes urbanas de lugares
de sua vivência. Com isso, aponta interessantes caminhos à compre-
ensão da paisagem, valendo-se das emoções humanas advindas da
experiência estética das expressões artísticas contidas na paisagem,
apoiada na Geografia das Emoções ou Geografias Emocionais.
Perpassando o universo da música, Beatriz Helena Furlanetto
contribui com “O mundo na ponta dos dedos”, um texto onde ge-
ografia e música encontram-se de modo a “traduzir” as paisagens
sonoras contidas nos Epigramas de Cecília Meireles musicalizados
por Carlos Alberto Assis. A análise da autora também se fundamenta
na Geografia Emocional para a compreensão da paisagem, de modo
que a compreensão dos lugares relaciona-se diretamente à compre-
ensão das emoções e dos sentimentos humanos. Assim, ao explorar
a música de Assis, a autora elucida a subjetividade do compositor

17
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

capaz de mobilizar em seus ouvintes uma “viagem emocional que


desvela íntimas paisagens”.
Os textos presentes nesta obra mostram-nos que o estudo da
paisagem envolve a experiência estética, as emoções e percepções
humanas, o material e o imaterial, a concretude do espaço e os sen-
tidos e valores simbólicos atribuídos aos lugares. As reflexões per-
passam, aqui, as formas impressas das artes visuais, a corporeidade
dos artistas e das demais pessoas nas ruas, o olhar atento e analítico
sobre o cotidiano, os sons e sonoridades musicais e, principalmente,
as construções teórico-metodológicas de cada autora e autor sobre
essa significativa categoria espacial.

Referências

ABRÃO, Bernadette Siqueira. (Org.) Os pensadores: História da Filosofia. São


Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.
DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo:
Perspectiva, 2011.
GASPAR, Jorge. “O retorno da paisagem à Geografia: apontamentos místicos”.
Finisterra – Revista Portuguesa de Geografia, Lisboa, v. 36, n. 72, p. 83-99, 2001.
SALGUEIRO, Teresa Barata. Paisagem e Geografia. Finisterra – Revista Portu-
guesa de Geografia, Lisboa, v. 36, n. 72, p. 37-53, 2001.
SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.

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MANIFESTO PAISAGÍSTICO POR UMA
SOCIEDADE DIFERENTE DA NATUREZA

Reginaldo José de Souza


Paula Vanessa de Faria Lindo
Éverton de Moraes Kozenieski

Introdução

O presente foi pensado no formato de um ensaio/manifesto


em que nos colocamos de maneira arriscada ao sugerir o retorno e o
reforço da dicotomia sociedade-natureza. Sim, caros leitores, acredi-
tamos na necessidade de reforçar essa dicotomia. A finalidade disso?
Revalorizar o antropocentrismo na contemporaneidade marcada por
discursos, no mínimo, equivocados sobre salvaguarda de recursos
para gerações futuras em contraponto à existência de pessoas a
morrer de fome no tempo presente.
A questão ambiental apresenta lacunas que precisam ser pre-
enchidas com elementos humanizadores. Um desses elementos cha-
ma-se paisagem. A paisagem é a emergência da apreensão estética
do espaço que pode conduzir uma séria reflexão sobre o significado
da natureza em nossas vidas.
A sociedade caminha em passos arriscados quando se releva
o ser humano como eterna espécie vivente na Terra. Não somos e não
seremos eternos, até que se prove o contrário. Por outro lado, a visão
de que a natureza é frágil e que a humanidade está a devastá-la tam-
bém é outro perigo. É muito difícil admitir que uma pessoa miserável
em Serra Leoa ou em qualquer periferia brasileira seja responsável
por danos ambientais, embora elas façam parte da humanidade.
Então, a humanidade é mesmo algoz da natureza?

19
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Assim, consideramos ser pertinente retomar a dicotomia so-


ciedade-natureza a fim de nos colocarmos em nosso devido lugar:
somos indignos diante da natureza, lutamos inutilmente contra a
morte, suprimimos os semelhantes em função de ambições terríveis,
continuamos a promover a violência e a guerra, muitos não se im-
portam com os famintos enquanto fazem todas as suas refeições.
Ademais, da banalização dos nossos piores problemas sobressaem
posturas que mais se aproximam de atitudes animalescas. As guerras
matam inocentes em função da garantia de recursos para alguns
nada inocentes!
O pior problema ambiental é a desigualdade social, pois sub-
mete as pessoas sem recursos às dinâmicas naturais que se tornam
ainda mais agressivas para quem não tem como se proteger delas.
Como pensar em soluções para isso? Pensamos que o ponto de
partida é reposicionarmo-nos perante a natureza. Sempre seremos
menores do que ela em termos de força, afinal, todos somos predes-
tinados à morte desde o nascimento. Mas, sempre seremos maiores
do que ela pelo pensamento, pelo intelecto, enfim, pelo conhecimen-
to. E essa potencialidade humana deve ser empregada para proteger
a própria humanidade sem a intenção de controle do caos natural,
mas, apenas para que, por elevação ética, sejamos todos respon-
sáveis pelo bem viver de todos. Utopia? Pois, que assim seja. E que
ela nunca se perca no horizonte das nossas paisagens, nos lugares
onde o céu e a terra tocam-se (COURAJOUD, 2013) e demonstram a
magnitude estupefaciente da natureza.
São essas reflexões que estão presentes neste manifesto.

Do não humano ao pós-humano: uma sublimação perigosa

A vida social segue composta por muitas fronteiras desneces-


sárias, enquanto uma necessária ainda não foi estabelecida. O que
pretendemos dizer é que, em um aspecto fundamental da existência
humana neste planeta, ainda não foi delimitada a principal fronteira

20
MANIFESTO PAISAGÍSTICO POR UMA SOCIEDADE DIFERENTE DA NATUREZA

que se deve, com certa urgência, traçar. Para não cair em rodeios
misteriosos ou confusos, posto que não há intenção de confundir
ou conduzir o leitor a quaisquer pensamentos nublados, desde já
apresentamos a ideia a ser defendida neste manifesto: a sociedade
deveria, finalmente, estabelecer uma clara fronteira com a natureza.
Neste ponto, o leitor deve projetar em seus pensamentos
algum tipo de perplexidade. O que é compreensível, afinal, vivemos
em um mundo cheio de artifícios que parece ser a expressão mais
convincente da realização do meio técnico-científico-informacional
em escala planetária e, quiçá, extraplanetária. A Geografia contempo-
rânea é qualquer coisa como um Édipo diante de uma nova esfinge,
uma nova natureza ou uma nova sociedade que se pretende cada vez
mais híbrida ou mais cyborg (HARAWAY, 2009; SWYNGEDOUW, 2001;
SOUZA, 2011; SOUZA, CATALÃO, 2016).
Nos espaços urbanos e rurais, vivenciamos processos refinados
de automação produtiva, onde a tônica da simples mecanização já se
parece algo ultrapassado. Não são mais as máquinas, enquanto meios
de aceleração da produção, que nos surpreendem por sua capacidade
de transformação das matérias primas em mercadorias. Mas, isto sim,
o aparecimento de outra lógica com base nos sistemas artificialmente
inteligentes e inteligíveis. A ordem mecânica está em derrocada para
autômatos cada vez mais potentes em comunicação. Mas, isso não
se dá pelo abandono das máquinas, pois elas continuam existindo e,
assim, será durante muito tempo. A questão central reside na nova
maneira de conduzir essas máquinas por sistemas de comunicação
que estão, cada vez mais, dispensando o trabalho humano.
Aqui, vale dizer, não se faz referência à simples substituição do
trabalho manual, não especializado/qualificado, pelos mecanismos
mais eficientes. E quando se afirma “simples” é para reforçar o ocaso
do passado econômico, mecânico com o surgimento de um futuro
informacional que se apresenta como horizonte de atrações e be-
nesses. No entanto, esse futuro, já presente, é trágico.

21
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

E a tragédia consiste na presciência de que o trabalho es-


pecializado vem sendo, ele mesmo, substituído pela inteligência
artificial. Sem intentar cair em quaisquer previsões pessimistas, po-
der-se-ia intuir que a inteligência artificial demandaria por trabalho
humano e tal necessidade inverteria a premonição da tragédia em
premonição de um novo mundo ainda mais eficiente. Porém, há dois
problemas. O primeiro diz respeito à incapacidade de os sistemas
autossuficientes absorverem a mão de obra de todos os mais altos
cientistas e engenheiros computacionais e de robótica. Esse primeiro
problema produz o segundo, que será posto em forma de perguntas:

I. A contemporaneidade seria demarcada por uma lógica


econômica em que não mais o trabalho humano conduzi-
ria à criação de sistemas produtivos artificialmente inteli-
gentes, mas, o contrário: a parafernália ultratecnológica é
que estaria a conduzir a criação, cada vez mais seletiva, de
trabalho humano?
II. Quais as consequências disso para grande parte da
população que sequer tem um curso de nível técnico ou
universitário?

Essas perguntas são inquietações. Porém, não significa dizer


que estão desconectadas da realidade. De maneira bastante preo-
cupante, parece que estamos vivenciando processos crescentes de
superação – e supressão – do humano em uma sociedade que ainda
não concluiu a si mesma como humanidade.
Procuraremos ser mais objetivos quanto a isso: pela superfície
terrestre, está distribuída uma rede de metrópoles, cidades secun-
dárias, médias, pequenas, todas ligadas umas com as outras por um
complexo de redes de comunicação, os espaços rurais estão cada
vez menos próximos dos ritmos naturais de produção, as sociedades
são capazes de planificar os territórios, controlar a distribuição de re-
cursos da natureza, as cidades são espaços fascinantes em qualquer

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MANIFESTO PAISAGÍSTICO POR UMA SOCIEDADE DIFERENTE DA NATUREZA

momento do dia. Sob a luz do Sol, a ordem urbana reproduz, na terra,


o cosmos que não vemos no céu diurno. À noite, não sabemos se as
luzes competem com o firmamento ou apenas querem ser qualquer
coisa como uma continuidade dele.
Certamente, não desejamos expor aqui uma visão romantiza-
da sobre os feitos humanos no espaço geográfico, afinal, as cidades
também são territórios de conflitos e sérias desigualdades sociais.
Contudo, é preciso uma pausa para refletir sobre o simbolismo da
própria urbanização. Somos todos platônicos porque não aceitamos
a desordem como bela. Demiúrgicos, recriamos cópias de uma or-
dem cósmica que, de algum modo, representa a tentativa de superar
o caos natural.
Besse (2014) lembra-nos que a Terra não é humana, é in-
diferente à nossa presença. Isso faz todo sentido, na medida em
que exercitamos nossa imaginação e criamos, em nossa mente, a
imagem de uma descomunal massa rochosa que deambula em altas
velocidades pelo espaço sideral, recebendo altas cargas constantes
de radiação, armazenada numa camada atmosférica em constante
atrito com sua superfície que, por sua vez, também está em atrito
constante com material incandescente abaixo de si... Tudo isso é
realmente indiferente à presença humana, não se trata de nenhuma
especulação teórica!
No intento demiúrgico de remodelar a natureza, os artifícios
são perfeitamente compreensíveis enquanto estratégia pela qual
nós, humanos, buscamos proteção: é porque a incerteza da natureza
contrapõe-se à previsibilidade do meio tecnológico e é nessa nossa
incapacidade de lidarmos com o teor imprevisível do caos natural
que reside todo o ímpeto de progresso.
A complexidade das escalas de apreensão dos fenômenos
naturais adverte a razão de sua própria incapacidade de compreen-
são da natureza como um todo. Kant já falava sobre o descompasso
entre imaginação e razão, apreensão e compreensão, quando o pen-
samento busca entender a verdadeira medida da natureza. Com o

23
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

fato de que o entendimento não abarca a infinitude cósmica, então,


a razão cria uma estratégia de superar o próprio desconforto perante
o desconhecido e a intuição do absoluto desconhecimento: essa
estratégia é a redução da natureza perante o pensamento, em que o
subterfugio é valorizar a ideia de que, embora seja a natureza imensa-
mente desconhecida, a única maneira possível de se ter consciência
desse desconhecimento é através do pensamento.
Assim, é possível considerar que o pensamento é maior do
que natureza (WHITEHEAD, 1993) e, dessa forma, a sociedade cada
vez mais tecnificada procura enclausurar a natureza na arquitetura e
engenharia das cidades, concretizando o que Milton Santos já men-
cionou, ou seja, o fato de que, no presente, os eventos da natureza
parecem ocorrer nos interstícios dos eventos sociais e não o contrá-
rio, como acontecia no passado pré-técnico.

A humanidade ainda não se fez humanidade

A miséria e a fome estão entre os mais assustadores problemas


que o mundo contemporâneo enfrenta (enfrenta?). Existem mais de
800 milhões de famintos que morrem em inanição e tal informação é
perturbadora, afinal, que mundo é esse onde nós ainda não consegui-
mos superar a desigualdade na distribuição de alimentos e a fome?
Sabemos que, desde o passado neolítico, quando da seden-
tarização humana e domesticação de plantas e animais, germinaram
aldeias que, mais tarde, seriam consideradas as primeiras cidades
na Terra (SPOSITO, 2000). Nesse contexto, o modo de organização
e comando dos grupos sociais voltavam-se para a produção de
alimentos que culminou com a formação de excedentes. Com isso,
o trabalho social foi se tornando, pouco a pouco, mais complexo e
criou-se a necessidade de incursões em territórios alheios a fim de
garantir o reabastecimento e manutenção da dinâmica social dos
grupos protegida de prováveis colapsos por escassez de comida.

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MANIFESTO PAISAGÍSTICO POR UMA SOCIEDADE DIFERENTE DA NATUREZA

A essência geopolítica das atuais relações entre os estados


ainda está baseada na necessidade de prevenir o colapso. Com os
desdobramentos do crescimento econômico, como, por exemplo, o
progresso tecnológico e o conhecimento detalhado da geografia da
distribuição dos recursos no planeta, o modo de se fazer as incursões
em territórios alheios foi ganhando novas faces. No entanto, partimos
do pressuposto que o motor primeiro dos conflitos territoriais conti-
nua sendo praticamente o mesmo daquele passado mais distante: a
tentativa de se garantir a sobrevivência. Nos dias de hoje, certamente
há outras tessituras que permeiam tudo isso, como é o caso da de-
manda dos lucros e da especulação financeira.
Na atualidade, a guerra pode até ser conduzida por tecnolo-
gias muito refinadas, porém, ela não deixa de ser uma espécie de
produto da irracionalidade. Uma faceta do humano que ainda existe
como permanência dos mais primitivos comportamentos admitidos
nos animais, que não possuem o pensamento complexo, a linguagem,
a religião, a ciência e a filosofia como meios de tomada de consciên-
cia de sua própria condição de ser e estar no mundo. Não é horrível
que um animal mate para satisfazer sua fome. Inclusive, ele pode até
mesmo matar o seu semelhante. Contudo, seres humanos que ma-
tam uns aos outros, muitas vezes, nem para saciar sua necessidade
de alimento, mas, por riquezas materiais, controle político, poderio
econômico ou supremacia militar... bem, isso é extrapolar os limites
do absurdo.
Se Besse (2014) já nos lembrou que a Terra não é humana
porque, enquanto fenômeno natural, é indiferente à nossa existência,
então, nós, seres humanos, somos praticamente capazes de poten-
ciar tal inumanidade planetária na medida em que permitimos fluir o
que há de mais animalesco, posto que irracional, em nós: a prática do
assassinato, da eliminação do outro vivente semelhante.
Assim, consideramos que a humanidade deve humanidade a
si mesma. Isso porque compreendemos que a plena realização da
humanidade em nossa sociedade demanda a realização do humano

25
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

em todos nós, no sentido de uma valorização da nossa capacidade


de enfrentamento e superação dos nossos instintos pela via da ra-
cionalidade, dos acordos, do diálogo, da ampla diplomacia – política,
econômica, ecológica e emocional.
Em uma tarde de finais de inverno, na Universidade de Lisboa,
um dos autores deste manifesto dialogava a respeito dessas inquie-
tações e desânimo com a falta de beleza no mundo junto com sua
então supervisora de pós-doutorado, a Professora Adriana Veríssimo
Serrão, e, sempre se lembrará do modo como ela, naquele momento,
expressou-se: “Falta-nos paisagem”.

Nós tememos a pobreza porque tememos a natureza

A natureza humana não é autossuficiente e pressupõe cone-


xões materiais, energéticas e emocionais com a natureza total. Por
sua vez, a natureza, em sua totalidade ou, ao menos, na presciência
de sua totalidade, é algo que causa aquele sentimento ao qual Kant,
em sua Crítica da Faculdade do Juízo, chamou de comprazimento
negativo. Isso significa que, de alguma forma, o ser humano sente
receio daquilo que não compreende do mundo.
Ainda em Kant, como referência, vale lembrar que ele tratou
do belo e sublime natural e, especificamente, a respeito deste último
atributo, a sublimidade da natureza estaria em sua capacidade de
gerar um descompasso entre imaginação e compreensão. Quando
o pensamento depara-se com o absolutamente grandioso da natu-
reza, ou seja, suas forças, sua dinâmica, sua infinitude ou eternidade
cósmica, há a tendência de respeitosamente reconhecermos a nossa
pequenez diante dela.
Mas, pela via da razão, o pensamento reconhece a si mesmo
como qualidade estritamente humana e, portanto, superior à natu-
reza. Logo, através da autoconsciência, o ser humano colocou-se e
coloca-se como capaz de superar sua impotência perante as forças
naturais por meio da artificialização. Com isso, produzimos uma es-

26
MANIFESTO PAISAGÍSTICO POR UMA SOCIEDADE DIFERENTE DA NATUREZA

pécie de relação das mais contraditórias, a tragédia da modernidade,


a dicotomia ser humano-natureza, algo que se assemelha a uma
relação baseada na negação (um absurdo!): nós nos relacionamos
com a natureza, negando-a.
Assim, a natureza, que nos cria e recria todos os dias, não existe.
Ela tornou-se recurso ou matéria prima, ou seja, uma etapa da exis-
tência da mercadoria, cuja dinâmica é puramente econômica e não
ecológica. O pensamento tende a disfarçar a natureza por não suportar
a sua desmesura, então, imprime nela formas compreensíveis, passa
a considerá-la meio ambiente, que é sinônimo de palco de recursos.
Enquanto meio ambiente, somos nós que a ameaçamos e não o con-
trário. Ver a natureza como meio ambiente é uma tentativa fantasiosa
de autoproteção e segurança para a sociedade, porque, nessa con-
cepção, o ser humano apoia-se na ideia (ou desejo) de sua eternidade,
em que é preciso proteger o meio ambiente (num intento de controle)
para as gerações futuras (num intento de infinitude humana).
Mas, ver a natureza como natureza deveria despertar o simples
entendimento de que finitos somos nós, seres humanos. Milhares
nascemos e morremos todos os dias e, por força natural, estamos
todos condenados a não mais existir em uma data sempre mais pró-
xima. Por mais que consideremos aquela interpretação de que, nos
tempos de agora, os fatos da natureza ocorrem nos interstícios dos
sociais, a verdade é que a natureza enquanto dinâmica ininterrupta,
como na paradigmática intepretação da physis aristotélica, bem, esta
é que continua a determinar as datas da nossa presença e ausência
na superfície do planeta. Com tais argumentos intentamos dizer que
urge tratarmos da “questão ambiental”, por exemplo, de maneira
mais lúcida. Não podemos insistir na ideia de que seres humanos
serão infinitos enquanto o “meio ambiente” é composto de recursos
escassos ou a natureza ou o planeta precisam ser “salvos”.
A natureza não demanda salvação. Isso sempre nos assustará.
Essa liberdade da natureza coloca-nos diante da necessidade de en-
frentarmos nossos traumas de impotência: somos pequenos, somos

27
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

frágeis e efêmeros. Não há paraíso ou inferno. Tudo que temos é o


tempo presente e, nesse tempo, há pessoas que morrem famintas
ou vítimas de bombardeios de guerras e outras tantas formas de
violência. Não pode existir humanidade, no mais ético sentido da
palavra, enquanto nossos presentes forem marcados pela espoliação
do humano pelo próprio humano, em que, muitas vezes, desvia-se a
atenção desse problema concreto para invenções de problemáticas
que não estão e nunca estarão sob o controle da sociedade, como é
o exemplo das apocalípticas versões sobre o aquecimento global. A
sociedade jamais combaterá a mudança climática, mas possui todos
os meios para combater a fome, a miséria, a desproteção, a desigual-
dade socioeconômica.
Essa é a urgência da nossa relação com a natureza, ou seja,
não é salvá-la, mas resguardamos a nossa dignidade perante a ela.
Enfrentar a natureza sem condições materiais e emocionais é dolo-
roso. Quando vemos pessoas em situação de mendicância pelas ci-
dades, quando pensamos naquelas desnutridas em quaisquer partes
do mundo espoliado pela ganância, quedamos sempre apreensivos e
desejosos de que tal coisa jamais nos ocorra.
Agradecidos por nossos trabalhos, diplomas, por nossas ves-
tes, moradas e alimentação, alienamo-nos em um cotidiano no qual a
preocupação com o “meio ambiente” é sinônimo de luta por causas
fracas, nas quais algumas ações paliativas não são suficientes para
resolver o problema da fome ou da falta d’água para os desabrigados.
O temor à pobreza é plenamente compreensível, porque,
na pobreza, a natureza é ainda mais caótica: a atmosfera, sentida
cruamente, é implacável para as doenças respiratórias; a escassez
ou abundância de águas pluviais, para quem vive nas ruas, só pode
resultar em prejuízos à saúde, em função da sujeira (na seca) e do-
enças de veiculação hídrica (nas enxurradas); a luz solar, sem filtros
ou hidratação, fere a pele, envelhece, provoca câncer; o sono noturno,
ao relento, desdobra-se em perturbações psicológicas e fisiológicas;
em estado de subnutrição, experimentar a rotação e a translação

28
MANIFESTO PAISAGÍSTICO POR UMA SOCIEDADE DIFERENTE DA NATUREZA

do planeta acelera o percurso para a morte. Dessa forma, talvez seja


lúcido temer mais a pobreza do que a natureza.
Nesse momento, recorda-se de Ulrich Beck (1998) quando
ele afirmava que a sociedade do risco é democrática e a socieda-
de capitalista é hierárquica, referindo-se ao fato de que toda sorte
de riscos pode ser igualmente distribuída entre as pessoas, mas a
determinante econômica é que fará a capacidade de resposta ao
risco ser diferente. No mesmo sentido, podemos observar a natureza
como democrática, pois, por natureza, nascemos e morremos, sem
distinção de dinheiro, cor, sexo ou gênero. Nós todos podemos viver
envoltos em artifícios, mas, nossa constituição corpórea é biológica
e, assim, submetida ao processo de concepção, maturação e morte.
Assim sendo, resta a pergunta: sendo a natureza capaz de
colocar a todos na mesma dinâmica de efemeridade, devemos in-
sistir em nos condenarmos uns aos outros através da espoliação, da
guerra, da violência e ambições mesquinhas?
Os artifícios humanos jamais serão capazes de controlar ple-
namente todas as dinâmicas naturais em favor dos interesses sociais
e muito menos individuais. Logo, é melhor aceitar resignadamente a
implacabilidade da passagem da grande natureza e procurar fazer
uso da razão como estratagema para “superá-la” no seio da própria
humanidade. Isso não significa assumir quaisquer posturas de negli-
gência diante dos ideais de preservação ou conservação ambiental.
Pelo contrário, o pensamento ecológico deve ser valorado e motivo
de programas de educação ambiental. Mas, ele não pode ser um
elemento central das preocupações com o dito meio ambiente.
É necessário assumir um posicionamento mais antropocêntri-
co e não somente eco ou, ainda pior, egocêntrico. Aqui, levantamos
uma hipótese: a paisagem, que não tem fronteiras, pode ser defini-
dora de uma clara fronteira entre sociedade e natureza em nome do
que chamaremos de antropocentrismo revigorado.

29
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

A paisagem: um retorno à natureza

Uma das dádivas da paisagem é a liberdade. Certa vez, em fi-


nais de setembro de 2014, um dos autores deste manifesto estava em
um trabalho de campo no município de Anaurilândia, Mato Grosso do
Sul, percorrendo longamente uma estrada ladeada pela monocultura
da cana, quando avistou a usina local de processamento da matéria
prima. Ele rapidamente parou seu carro diante do acesso ao equi-
pamento e fotografou-o. Durante muito tempo, não ficou claro o que
realmente motivou-o a parar o carro para fazer aquela fotografia ali.
Talvez, naquele momento, ele apenas quisesse alimentar o banco de
imagens que seriam utilizadas em sua tese.
Tratou-se de uma situação curiosa, pois, quando ele retornou
ao carro, que estava muito próximo – realmente foi apenas uma foto
– deu a partida e, em menos de quinze segundos, um automóvel da
guarda da usina pedia-lhe para encostar com um sinal de luz. De ma-
neira bastante desconcertante e imperativa, o funcionário da empresa
pedia a câmera para verificação. Mas o que se passa? Ele questionou.
Você bateu uma foto da usina e a informação chegou ao meu chefe. O
guarda respondeu. E qual é o problema? Ele questionou. Você é jor-
nalista? O guarda perguntou. Não, sou professor de Geografia e faço
uma pesquisa sobre a paisagem. Ele disse. Qual é sua faculdade? O
guarda questionou. Apague esta foto. Desastradamente, ele mandou.
Volte lá e diga ao teu chefe, seja lá quem for, que ele pode mandar na
usina, mas ele não é dono da paisagem. O pesquisador opôs-se e o
guarda somente calou-se e saiu.
Hoje, ao resgatarmos essa lembrança e refletirmos sobre ela,
ainda podemos não compreender exatamente o motivo pelo qual
um de nós teve o impulso em tomar aquela foto, mas a reflexão que
provocou é ainda mais instigante: A paisagem não tem dono, ou seja,
não tem território. Ela pode conter território, mas não é território.
Logo, pode ser tida como uma dimensão da liberdade da experiência
humana no planeta.

30
MANIFESTO PAISAGÍSTICO POR UMA SOCIEDADE DIFERENTE DA NATUREZA

O filósofo italiano Rosario Assunto (2013) oferece ao nosso


entendimento os atributos estéticos da paisagem. Primeiramente,
o autor observa a paisagem como algo diferente do espaço, por-
que se trata de uma apreciação estética dele. Mas, para que essa
apreciação estética seja paisagística, algumas condições especiais
são necessárias: a exterioridade, a abertura, o limite e a presença do
infinito no espaço limitado. Estas duas últimas condições parecem
contraditórias, contudo, são complementares.
A exterioridade e a abertura implicam no entendimento de
que, em espaços interiores ou enclausurados, não há paisagem, por
exemplo, o interior de nossas casas ou uma caverna. A abertura vem
como complemento à exterioridade, porque, em outro exemplo, o
claustro de um convento é aberto, mas, pelo próprio nome, enclau-
surado, não paisagístico. Quanto ao limite e infinitude, poder-se-ia
pensar que, onde um existe, o outro é uma impossibilidade. No en-
tanto, a paisagem tem tal característica de conjuminar os contrários
sem confundi-los.
O limite paisagístico pressupõe ser absurdo uma paisagem
total. Mesmo porque a paisagem total seria o cosmos ou a natureza,
a eternidade. O super limite das barreiras para a ampla visão também
não é paisagístico, por isso, uma avenida metropolitana ladeada de ar-
ranha-céus pode ser considerada muito mais uma negação da própria
paisagem do que uma paisagem. O limite paisagístico é comensurado
com o infinito para que exista equilíbrio visual: sobre a terra devemos
ver, exterior e abertamente, a representação do infinito.
A paisagem é uma resposta moderna à descontinuidade
sociedade-natureza. Uma noção vinda das artes para retratar os
cenários da natureza bela ou sublime e a pequenez da presença hu-
mana diante dela. Também, historicamente, a semântica paisagística
demonstra qualquer tipo de relação com o chão onde se pisa. Nas
línguas latinas, sempre com a referência ao país – a pays-age, paese-
-aggio, pais-aje. Nas línguas germânicas, as land-scapes; land-schaft,
land-chip. Portanto, uma vinculação constante com a terra (do país)
e a organização que se impõe (age) sobre ela.

31
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Em visita ao Museu de Belas Artes de Buenos Aires, no verão


de 2019, despretensiosamente, encontramos um estudo de pintura
flamenca datado do século XVII. A autoria era tida como anônima.
O quadro chamava-se “A luta contra a morte”. Uma cena das mais
intrigantes estava ali retratada: nessa luta contra a morte, todas as
personagens pertencem a um mesmo exército, reis, camponeses,
soldados, artesãos. A ideia que veio em mente foi conceber a pintura
como um retrato do dilema inerente à vida humana: por mais que
sejamos diferentes, ou que as condições de vida sejam muito desi-
guais, nós sempre perdemos na luta contra a morte. Neste sentido,
a morte funciona como o maior equalizador social, pois, ela finaliza a
existência de qualquer um sem atenção à quantidade de riqueza ou
poder de uma pessoa.
Pelo estudo da escola flamenca, com seu destaque para a
pintura de paisagem, não deixaríamos de associar o fato de o tal
exército de personagens diferentes lutar contra a mesma morte...
na própria paisagem! Uma perfeita forma de exemplificar o debate
que propomos sobre essa categoria como dimensão da existência
humana capaz de nos fazer refletir sobre as nossas relações com a
natureza e as nossas relações sociais.
A matéria de composição da paisagem sempre foi e sempre
será a natureza, não há como escapar disso. Toda contemplação pai-
sagística impõe considerar a projeção do olhar e do pensamento para
a natureza que nos desafia enquanto infinitude. E esse desafio está
mais no plano da imaginação do que da razão. Isso porque a natureza
apresenta-se para todos nós como um grande desafio intelectual.
Por mais que o mundo contemporâneo pareça ceder mais aos
prazeres da artificialidade, enquanto imposição da ordem racional
sobre o universo de formas e dinâmicas naturais, é inegável a cons-
tatação de que a natureza e sua dimensão caótica continuam como
uma determinante de forças que escapam do controle humano. À
(des)ordem natural não há previsões ou leis de enquadramento
quando tentamos compreender a natureza em escalas ampliadas de

32
MANIFESTO PAISAGÍSTICO POR UMA SOCIEDADE DIFERENTE DA NATUREZA

apreensão cósmica. Quando pensamos a natureza em sua magnifi-


cência, a certeza da nossa própria existência desfaz-se. E isso não
significa que a certeza da nossa existência desfaz-se unicamente
pela concretização da efemeridade, ou seja, pelo fato de que o curso
natural desenvolve-se partindo do nascimento à verdade da morte,
que é o fim do pensamento, da consciência e da razão.
Na escala cósmica, perdemos o planeta de vista e a nossa
vida também desaparece, torna-se relativa, faz emergir o sentimento
de desconforto existencial. O comprazimento da paisagem reside
justamente em tal potencialidade que exerce sobre a faculdade de
julgamento do mundo e do eu. A força da natureza torna-se signifi-
cativa pela paisagem e, ao mesmo tempo, acende a consciência da
insignificância do humano na superfície terrestre que, por sua vez,
não é superfície de nada, mas, isto sim, a desconhecida profundidade
de uma massa universal densa que não se sabe de onde veio, para
que veio e para onde nos levará.
Diante disso, o que nos resta? Talvez, retornar os olhos para
a natureza como grandeza escapável a fim de redimensionar o sen-
tido humano como uma de suas expressões. Assim, insistiremos na
necessária fronteira entre o humano e o natural. Porto Gonçalves afir-
mou que homem e natureza são partes de um mesmo processo de
constituição de diferenças e estamos de acordo com ele. No entanto,
não pretendemos ater-nos ao mesmo processo, mas à constituição
das diferenças.
Negar o pensamento, a consciência e a razão como os eixos
estruturantes da nossa diferença em relação à natureza é um suicí-
dio e, ao mesmo tempo, um assassinato em massa. Pensamos, logo
existimos (DESCARTES, 1996). Pensar é um produto e processo da
consciência, que, por sua vez, conduz à busca pela verdade. A pro-
dução de valores e atitudes éticas entre as pessoas depende disso.
Caso optemos pelo caminho do abandono da razão, então, recaire-
mos no estado de brutalidade e da indiferença natural, ou melhor, da
semelhança com a natureza.

33
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

A natureza indigna-nos (seja no sentido de nos embasbacar


ou de nos tirar a dignidade), porque, muitas vezes, não somos capa-
zes de compreender que aquilo que atribuímos como sua dimensão
brutal é, na verdade, o simples fluir de suas dinâmicas. No seio dessa
incompreensão, reside a personificação da natureza ou sua adjetiva-
ção: julgamo-la como vingativa, avassaladora e assim por diante.
Porém, em certos casos, a maior dificuldade do pensamento
está em reconhecer-se como vingativo e brutal na medida que é
utilizado para eliminar o outro, suprimi-lo, usurpá-lo. Se aceitarmos
que homem e natureza são partes de um mesmo processo de cons-
tituição de diferenças, então, impõe-se a faculdade de elevar tal
diferença para níveis cada vez mais distantes daquele da hibridação
humano-natural, pois, ser humano não significa ser como a natureza,
guiar-se pelo instinto brutal, a frieza, o agir indiferente. Se a natureza
indigna-nos, o arcabouço de conhecimento acumulado na história
deve fazer-nos dignos perante a natureza. Essa é a fronteira urgente
a ser delimitada.

Considerações finais

Não defendemos aqui nenhuma perspectiva que possa ser


vinculada a quaisquer posicionamentos de descarte da vida, dos
ecossistemas, das dinâmicas naturais. Não defendemos aqui a pos-
sessão da natureza, até porque, por uma questão óbvia, seria algo
de absurdo arrogarmo-nos o estatuto de controladores daquilo que,
no final das contas, é o que realmente determina a nossa presença
passageira no cosmos.
No entanto, somos guiados pelo dever pedagógico de insistir,
quantas vezes for necessário, que não adianta preocuparmo-nos
com a nossa sobrevivência e agirmos em nossas cidades, aldeias,
vilas, espaços rurais como se fôssemos todos infinitos enquanto a
natureza demandaria por salvação. Definitivamente: não é possível
orientar a ordem política, econômica e cultural na relação com a na-

34
MANIFESTO PAISAGÍSTICO POR UMA SOCIEDADE DIFERENTE DA NATUREZA

tureza como se, para sempre, os seres humanos fossem permanecer


no mundo.
Por natureza, todas as pessoas no tempo estão predestinadas
a morrer, independentemente de classe social, cor, gênero, idade,
nacionalidade ou orientação sexual. Neste sentido, a natureza é uma
força democrática na medida em que é a mais poderosa equalizadora
de desigualdades sociais. Ao retirar de cena a perspectiva simplista
que trata a natureza como pura ordem e beleza, destaca-se outra vi-
são sobre a sublimidade e o caos natural exemplificados pelos even-
tos aterradores que descompassam a capacidade da própria razão
em concebê-los: a força descomunal do mar revolto, das dinâmicas
endógenas da terra, dos giros de rotação e translação, da potência
solar, da magnitude da galáxia etc.
Se, diante da continuidade cósmica, seres humanos cessarem
de pensar que toda ela foi demiurgicamente elaborada para sua exis-
tência, então, o primeiro passo para abandonar o ego-eco-centrismo
já assume o importante significado de uma mudança para um novo
paradigma antropocêntrico. Há uma fronteira que demanda ser com-
preendida e ultrapassada e essa passagem é cada vez mais urgente.
A fronteira é delimitada pela diferença ontológica entre natureza e
ser humano, cuja base reflexiva foi há muito tempo bem colocada por
Descartes: cogito ergo sum. Pensar é o que nos faz humanos, a razão
é o que nos afasta da animalidade inocente.
Contudo, a animalidade instintiva nos seres humanos nem
sempre é um pecado passível de perdão. A guerra, a ganância, a
irresponsabilidade material, intelectual, afetiva com o semelhante é a
transmutação da animalidade natural em um tipo de lógica absurda,
onde impera o poder da ignorância e não do conhecimento. Sobre a
base dessa lógica amorfa não há inocência, apenas intencionalidades
obscuras. A violência da guerra, por mais tecnológica que seja, relança
o ser humano no reino natural, irracional, instintivo. Não é possível ser
humano sem ter respeito pela integridade dos outros seres humanos.
É inválido tentar garantir a manutenção de recursos para gerações

35
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

futuras, enquanto gerações presentes morrem de fome. Então, o que


nos falta?
Como afirmou Adriana Veríssimo Serrão: paisagem. Falta-nos
paisagem, porque, enquanto categoria do pensamento, ela dimensio-
na a existência entre o natural e o antropológico. A paisagem é aquela
porção da natureza humanizada, responsável por fazer as pessoas
não estranharem o mundo. A estética da paisagem orienta o olhar
para os atributos de beleza e sublimidade da natureza. A bela paisa-
gem sempre será uma síntese da aparente ordem e do caos natural,
porque conterá a unidade da natureza dentro de limites específicos
e, ao mesmo tempo, uma intuição das forças e massas descomunais
da natureza grandiosa.
A paisagem confere sentido ao espaço vivido do ser huma-
no, permitindo-nos avaliar nossas ações na superfície terrestre e
reconsiderar constantemente os nossos valores éticos sobre nos-
sas relações sociais (SOUZA, 2018). Por que isso ocorre? Porque a
magnitude da paisagem funciona contraditoriamente como uma
ínfima e, ao mesmo tempo, gigantesca amostra da natureza maior
que o próprio pensamento. Embora essa natureza embale e permita
as nossas vidas, ela também nos retira a dignidade por envelhecer
e matar nossos corpos, por não compreendermos os motivos da
nossa existência aqui, por não sabermos a sua origem e destino, por
relativizarmos a nossa própria existência.
Essa natureza é verdadeiramente uma potência, mas apenas
pelo fato de que somos nós que a classificamos dessa forma. Assim,
o pensamento é maior que a natureza e o intelecto é a salvação para
os instintos cruéis. Se a humanidade deve humanidade a si mesma,
urge entender que, para resolver esse dilema, deve-se reconhecer a
fronteira entre nós e a natureza; entre razão/emoção e a ausência de
pensamento/sentimento; entre o espontâneo e o planejado; enfim,
entre entendimentos e acordos políticos ou os conflitos e guerras ani-
malescas. A paisagem pode servir, antes de mais nada, para fazer a paz.

36
MANIFESTO PAISAGÍSTICO POR UMA SOCIEDADE DIFERENTE DA NATUREZA

Referências

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37
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

______. Paisagem e Socionatureza: olhares geográficos-filosóficos. Chapecó:


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SOUZA, Reginaldo José de; CATALÃO, Igor. Da “Cidade-Cyborg” à “Atmosfera-
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lidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: D, P & A, 2001.
WHITEHEAD, Alfred. O conceito de natureza. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

38
ARTE FÍSICA:
MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL:
o crescimento poético do Yaripo, por Cildo Meireles

Maria Cristina Mendes

Introdução

Olha a democracia imperante nessa equação,


a atração da gravidade chegou atrasada
à extrema gravidez da situação,
por vir praticando os círculos reflexivos
em todo o largo do percurso vivo.
Paulo Leminski (2010, pp.107-108).

Em 2002, Cildo Meireles (1948) proferiu três palestras no Ateliê


de Criação Teatral, um espaço criado por Luiz Alberto Melo, ator curi-
tibano reconhecido nacionalmente, para fomentar a cultura local. Nas
conversas, Meireles divertiu os ouvintes ao narrar o assalto sofrido
em um ônibus carioca, quanto tinha, no bolso, apenas notas de Zero
dólar1; discorreu sobre a produção industrial a partir das garrafas de
coca-cola2 e mencionou a existência de trabalhos não realizados:
um aumentava em um centímetro a altura do Brasil, colocando uma
pedra no seu pico mais alto; outro fazia voltar o tempo em hipotéticas
circum-navegações anti-horárias, próximas ao polo norte. A vontade
de subverter a geografia e fazer voltar o tempo pareciam indicar a
inviabilidade de ambos os projetos, destinados a permanecer no
plano das ideias.

1  Nas décadas de 1970 e 1980, Meireles imprimiu notas de Zero dólar e Zero cruzeiro,
numa evidente reflexão sobre o sistema capitalista.
2  A obra integra a série “Inserções em Circuitos Ideológicos” e consiste na colocação
de adesivos que abordam questões colonialistas norte americanas em garrafas de vidro,
abordando questões de produção e distribuição de informação.

39
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Esta pesquisa tem como meta desvelar alguns possíveis sen-


tidos da ação: Arte física: mutações geográficas: fronteira vertical, um
dos trabalhos mencionados por Meireles nas palestras em Curitiba.
A obra, registrada em papel milimetrado no ano de 1969, foi realizada
entre 2014 e 2015, para o 34° Panorama da Arte Brasileira – Da pedra
Da terra Daqui. A exposição do Museu de Arte Moderna de São Paulo
reúne cerca de sessenta zoólitos3 e obras de seis artistas contem-
porâneos brasileiros4. Ao tomar a ideia de território como ponto de
partida, a mostra propõe a possibilidade de se pensar o Brasil de
modo simultaneamente contemporâneo e ancestral. Os objetos
pré-históricos incitam discussões contemporâneas ao colocar em
pauta, entre outros fatores, critérios das demarcações geopolíticas
do país, os quais se estruturam mais por questões históricas do que
por imperativos da natureza.
No primeiro tópico, “Reflexões sobre a poética da paisagem”,
são elencadas características da utilização da paisagem ao longo da
história da arte europeia ocidental, de acordo com Kenneth Clark.
Desde a função simbólica adotada pelos artistas medievais até a
retomada do espírito científico que regeu parte da Arte Moderna, o
historiador demonstra a forte relação entre a produção de arte e sua
conjuntura histórica, destacando características, entre outros movi-
mentos artísticos, do Renascimento, do Romantismo e do Realismo.
A identificação de tais atributos da pintura, que acontecem ao longo
de cinco séculos, propicia a contextualização da análise da obra de
Meireles, numa espécie de investigação das transformações que
acontecem na produção de arte nas últimas décadas, tanto no que
concerne ao suporte da obra, quanto aos processos de fruição.
“Poéticas artísticas: obras do espírito” é o título do segundo
tópico do ensaio, no qual são estabelecidos critérios acerca do que

3  Zoólitos são objetos esculpidos em pedra; medem de dez a setenta centímetros


de comprimento e apresentam características humanas ou animais; são encontrados nos
sambaquis, complexos funerários construídos por civilizações que habitavam o litoral sul do
Brasil há cerca de seis a dois mil anos.
4  Os artistas convidados para a mostra são: Berna Reale, Cao Guimarães, Cildo Meireles,
Erika Verzutti, Miguel Rio Branco e Pitágoras Lopes.

40
ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

se constitui a poética artística e quais são as suas contribuições para


o campo da pesquisa em arte. De acordo com Helio Fervenza (2002)
e Icleia Cattani (2002), o aprofundamento do conhecimento acerca
das diversas etapas do processo de criação amplia as possibilida-
des de fruição da obra de arte, ao mesmo tempo em que assegura
o espaço das pesquisas qualitativas nas investigações acadêmicas.
Imbuído do desejo de elucidar o que caracteriza as obras do espírito,
para Paul Valery, este é um tipo de pesquisa pautado na desordem e
na atenção em detalhes que, em outros tipos de investigação, podem
ser desconsiderados.
No terceiro tópico, denominado “Land art: o culto aos ances-
trais”, critérios da land art são estabelecidos e destacados alguns
dos trabalhos icônicos do movimento, como Lightning fields e Spiral
jetty. De acordo com Camille Paglia, a adoção da terra como suporte
para as obras de arte revela atenção à ancestralidade e, para Robert
Smithson, a inter-relação entre ser humano e natureza pode ser
identificada em tal tipo de trabalho. A obra de Meireles, ao concreti-
zar-se com uma intervenção no Pico da Neblina, retoma questões da
land art, no que tange à retomada de questões ancestrais, ou seja, no
respeito à sacralidade atribuída pelos indígenas à montanha cultuada
desde tempos imemoriais.
“Cildo Meireles: apropriações da paisagem” é o quarto tópico
do texto, no qual são elencadas obras do artista que dialogam com os
princípios da land art. Caixas de Brasília, Cordões/ 30 quilômetros de
linhas estendidos e recolhidos e Mutações Geográficas: Fronteira Rio
– São Paulo, são obras de 1969 e 1970 que, discutidas à luz de Aracy
Amaral, Paulo Myada, Cristina Freire e Frederico de Morais, apontam
para questões que envolvem a qualidade da vida no planeta. As obras
tratam, também, da alteração de medidas e de escalas, em subver-
sões que complexificam as percepções de sentido e os processos
de subjetivação.
O quinto e último tópico tem como subtítulo o nome da obra
de Meireles, “Arte física: mutações geográficas: fronteiras verticais”, a

41
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

qual norteia a investigação. São explicitados detalhes da expedição


que concretizou o projeto de Meireles, bem como evidenciadas as
relações que os yanomamis mantêm com o local. A região onde se
encontra o Yaripo, nome indígena da montanha sagrada, assim como
as demais demarcações de terras indígenas do país, padece diante da
exploração predatória, que coloca em risco a sobrevivência de uma
das últimas tribos do país a entrar em contato com o homem branco.
Acreditamos, dessa forma, tornar explícita a poética de Meireles, cujo
simples gesto acarreta um complexo sistema para sua concretização.

Reflexões sobre a poética da paisagem

Desabam as muralhas do mundo,


revelando por detrás
as formas que se escondiam
sob as espécies dos nimbos do éter.
Paulo Leminski (2010, p. 89)

A natureza proporciona variados tipos de percepção em pe-


ríodos civilizatórios distintos. O caráter mágico que lhe é atribuído
por povos primitivos gera cosmogonias nas quais os deuses podem
tanto trazer graças quanto causar infortúnios. Divindades ancestrais,
ao espelhar atributos de uma natureza indomável, permitem que os
humanos elaborem estratégias de sobrevivência mediante a con-
sagração de objetos e rituais que fogem à compreensão racional.
Para Mircea Eliade (2013), são os esforços para manter a memória de
acontecimentos contemporâneos e a vontade de conhecer o pas-
sado da humanidade que caracterizam a civilização ocidental desde
o período medieval. Segundo ele, o resgate do passado, realizado
através de variados tipos de anamnesis historiográficas, possibilita o
encontro profundo do ser humano consigo mesmo, ao mesmo tempo
em que desperta uma espécie de solidariedade com os povos peri-
féricos ou minoritários. Percebemos que a retomada de processos
culturais na contemporaneidade reverbera questões ancestrais.

42
ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

A história da arte, reduto da manutenção das tentativas de


coadunar passado e presente, é um fecundo manancial de infor-
mações sobre as transformações socioculturais que conduzem a
humanidade. Ao longo da história europeia ocidental, é na pintura
que as transformações da representação da paisagem acontecem
de modo evidente. Inicialmente, utilizada como pano de fundo para
retratos, a paisagem adquiriu autonomia a partir do século XVII e os
modos com que seu uso foi adotado no século XIX são fundamentais
para a compreensão da pintura de paisagem no século XX e para as
apropriações da terra como suporte, prática da arte contemporânea.
Kenneth Clark, no livro Paisagem na arte5 (1961), tece reflexões
que partem da Idade Média, quando a natureza selvagem deu lugar à
proteção dos jardins. As formas de tratar a paisagem na pintura, de
acordo com o historiador britânico, dividem-se em quatro: simbólica,
dos fatos, fantástica e ideal. Tais critérios de análise são aplicados a
obras do século XIX e XX em três designações distintas: visão natural,
luzes do norte e retorno à ordem.
A primeira subdivisão refere-se à paisagem dos símbolos,
característica das iluminuras, nas quais predominam elementos
individuais, cujo agrupamento independe da relação com o todo.
Segundo o historiador britânico, a força dos símbolos estrutura-se na
hegemônica mitologia medieval cristã:

Se a nossa vida terrena não é mais do que um breve


interlúdio, o ambiente em que é vivida não deve absorver
a nossa atenção. Se as ideias são a imagem de Deus, e as
sensações viciosas, a nossa interpretação das aparências
deve ser tanto quanto possível simbólica, e a natureza,
de que nos apercebemos através dos nossos sentidos,
torna-se positivamente pecaminosa (CLARK, 1961, p. 20).

Considerada o ponto máximo da abordagem simbólica, a pin-


tura Adoração ao cordeiro, de Hubert Van Eyck, também inaugura a

5  O livro parte de conferências proferidas por Kenneth Clark no final da década de 1940,
na Universidade de Oxford.

43
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

paisagem dos fatos, pois, ao preservar o valor simbólico dos elemen-


tos isolados, ao mesmo tempo abre-se a uma percepção distinta,
cujo fio condutor é a unidade da iluminação: “Os fatos tornam-se
arte através do amor, que os unifica e eleva até ao mais alto plano
da realidade. E na paisagem, esse amor que tudo abarca, exprime-se
pela luz” (CLARK, 1961, p.36).
As grandes navegações colocaram em xeque o que se co-
nhecia do mundo e o antropomorfismo renascentista fez com as
medidas de Deus e dos homens aproximarem. A luz que banha o
mundo de forma equânime contribui para a subversão da relação
simbólica, introduzindo a verossimilhança como parâmetro norteador
da representação. A paisagem dos fatos, segundo a forma com que
Clark divide a prática da pintura de natureza, é pautada em relações
matemáticas e a colocação dos objetos na tela é determinada pela
perspectiva científica6. Para os artistas do Renascimento, pouco
importa o caráter monocular do ponto de vista; tal fato, contudo,
gera mudanças radicais na produção e fruição da arte moderna e
contemporânea (CLARK, 1961).
Ao definir como fantástica a terceira das formas de abordar a
paisagem, o historiador lembra que, no século XV, pintores7 voltavam-
-se para o aspecto misterioso e desconhecido da natureza. Muitos
artistas viviam em cidades e podiam encarar as ameaças da natureza
com certo alheamento. Luzes, incêndios, árvores retorcidas e rochas
denteadas expressam sentimentos que se aproximam do Expressio-
nismo e do Romantismo8. Os ecos da paisagem fantástica podem ser
encontrados em pinturas de Turner e Monet (CLARK, 1961).
A quarta subdivisão de Paisagem na arte é a ideal9. Nela, a
verdade poética opõe-se à científica de forma delicada. Inspirados
nas sugestões paisagísticas de Virgílio, os artistas remetem ao “mito

6  Muito embora a perspectiva científica raramente possa ser utilizada sem adaptações,
é um modelo que permanece vigente, devido à sua capacidade de comprovação matemática.
7  Clark adota como exemplos as obras de Bosch e Brueguel.
8  Os pintores mencionados por Clark são Atldorfer, Grünewald e El Greco.
9  Artistas representativos dessa abordagem são: Giorgione, Ticiano e Poussin.

44
ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

da Idade do Ouro, no qual o homem vivia dos frutos da terra, pacifi-


camente, religiosamente, e com uma simplicidade primitiva” (CLARK,
1961, p.79). Ao combinar realismo e sonho, a pintura ideal opõe-se à
pintura fantástica e aproxima-se da simbólica, pois se inspira na ideia
de paraíso terrestre e aspira à harmonia entre ser humano e natureza.
O que Clark denomina visão natural10 relaciona-se à percep-
ção do real dos pintores realistas e impressionistas. Os dois estilos
mantêm algo do espírito divino em suas formas, ainda que a Filosofia
do século XVIII tenha transformado a natureza em um universo me-
cânico (CLARK, 1961).
As luzes do norte11 denotam uma atitude romântica para com
a natureza e os artistas são reconhecidos por estreitar a relação
entre experiência e imaginação. Valorizam a banalidade dos fatos e
a emoção da infância, cedendo espaço para a força expressionista
que, conforme Clark (1961, p. 142), pode ser “o único meio possível de
a alma humana individual poder afirmar sua consciência”.
O regresso à ordem12, última subdivisão do livro, aborda a
concepção científica da cor e o rigor disciplinar, os quais afastam
preocupações dramáticas e destacam qualidades pictóricas. Os
processos de construção da composição, com atenção simultânea
à superfície e à profundidade, são ordenados pela pincelada e pela
cor. Questões ligadas à representação pictórica de imagens macro
ou microscópicas são evidenciadas, abrindo portas para a abstração
(CLARK, 1961).
As obras de arte, quando correlacionadas às sociedades em
que se desenvolvem, explicitam o estreito vínculo entre o pensamen-
to social e a produção artística. Do mundo simbólico à concepção
da concretude dos fatos, da ideia de fantástico ao conceito de
ideal, a arte parece transitar entre o naturalismo, o romantismo e o

10  A visão natural destaca-se em Constable, na Escola de Barbison, em Le Duannier


Rousseau e Monet.
11  A potência das luzes do norte é identificada na obra de Turner, Van Gogh e Monet.
12  O regresso à ordem pode ser compreendido em pinturas de Seurat e Cézanne.

45
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

cientificismo, em configurações e reconfigurações que permanecem


acionando a sensibilidade humana.
No mundo ocidental, a história das imagens percorre duas di-
reções opostas: uma debruça-se sobre questões de verossimilhança
e outra busca externar percepções subjetivas. Ambas as direções
têm como objetivo traduzir aquilo que se entende por realidade. No
período medieval, artistas anônimos, trabalhando muitas vezes em
coletividade, reproduziam retábulos e iluminuras similares aos mode-
los adotados. Não existe a ideia de originalidade na produção artística
e, na maior parte das vezes, o objetivo da obra de arte é recontar
histórias do panteão cristão ou rememorar períodos adequados à
colheita e ao plantio, registrando, na arte, o conhecimento necessário
para a sobrevivência das comunidades.
O reconhecimento social de pintores e escultores surgiu com
o Renascimento, quando os artistas trabalhavam, de maneira cientí-
fica, as questões da representação perspectivada. O estilo barroco
exaspera a comedida emoção renascentista, numa resposta católica
ao novo modo de pensar a religiosidade, que havia sido introduzido
por Martinho Lutero. Os excessos do Rococó antecipam a Revolu-
ção Francesa, numa planaridade efusiva marcada pelo desinteresse
em dar vistas às questões de profundidade. O estilo neoclássico e
o romântico evidenciam o embate simultâneo na produção de arte,
enfatizando a perda de inequívoca verdade e dando início ao esti-
lhaçamento investigativo que marcou a produção de arte a partir do
Século XX.
A popularização da fotografia fez com que os artistas procu-
rassem outras razões de ser para a produção pictórica e os movi-
mentos que precedem o Modernismo, tais como o Impressionismo,
que deixam de priorizar a representação verossímil para enfatizar
questões subjetivas. A Arte Moderna do século XX é permeada por
uma série de movimentos, como Dadaísmo, Cubismo e Futurismo, os
quais representam uma quebra efetiva dos moldes representativos
tradicionais. Em busca da essência de cada modalidade artística, tais

46
ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

movimentos insurgiram-se contra políticas vigentes e, na segunda


metade do século, diante do possível auto-extermínio humano evi-
denciado pelo final da Segunda Guerra Mundial, a arte passou a trilhar
caminhos pautados por questões majoritariamente conceituais.
Termos como arte conceitual, body-art e land-art evidenciam essa
espécie de deslocamento do objeto de arte para instâncias menos
materiais, nas quais o pensamento assume papel fundamental. Sob
o termo pós-moderno, a década de 1980 valorizou o retorno ao
passado, com apropriações e retomadas de questões, cujo sentido é
potencializado em função das dificuldades enfrentadas pela super-
população mundial e a consequente qualidade de vida no planeta.
Explicitadas algumas questões básicas acerca da presença
da paisagem na arte e evidenciadas transformações ocorridas nos
modelos de representação da arte ocidental, no próximo tópico, são
apresentados conceitos acerca das poéticas artísticas, destacando
que a inserção de tais pesquisas no âmbito acadêmico e científico
apresenta questões peculiares. Ancoradas em análises qualitativas,
as pesquisas poéticas são realizadas no campo das Ciências Huma-
nas, procurando compreender os processos que regem a criação de
uma obra de arte, desde as primeiras ideias, até seus desdobramen-
tos interpretativos. Depois de tais esclarecimentos, são explicitadas
questões acerca da land art, movimento de cunho conceitual, no qual
se insere Arte física: mutações geográficas: fronteira vertical, obra de
Cildo Meireles que pauta este estudo.

Poéticas artísticas: obras do espírito

Peregrino, erva no nervo!


A saúde do espírito, câncer do corpo.
Corpos o vento leva pelos campos,
o último suspiro já sopra pó!
Paulo Leminski (2010, p.80)

47
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Os estudos sobre poéticas artísticas voltam-se para a Filo-


sofia grega na estruturação de suas bases e no estabelecimento de
algumas definições acerca dos processos de criação poética. Para
Aristóteles, toda poética tem origem em duas causas naturais: a pro-
pensão à imitação e a busca pelo prazer. O conceito de mimesis, já
presente em Platão, adquire um caráter estético basilar no pensamen-
to aristotélico, pois é a partir de processos de imitação da natureza
que a produção poética pode ser mais bem compreendida. Tratar
a poiesis a partir de critérios de imitação e de suas diferenciações
na construção de narrativas conduz à compreensão dos diferentes
tipos de expressão, aos quais se adequam os artistas. Ao enfatizar
que o ser humano é o mais imitativo de todos os animais e que por
meio da imitação experimenta-se o prazer, Aristóteles destaca que:

[...] o conhecimento proporciona regozijo não apenas aos


filósofos, como igualmente a todas as demais pessoas,
embora estas últimas tenham nisso uma menor parti-
cipação. Olhar imagens faz as pessoas experimentarem
prazer, porquanto essa visão resulta na compreensão e
no raciocínio em relação ao significado de cada elemento
das imagens, conduzindo ao discernimento em relação a
essa ou àquela pessoa (ARISTÓTELES, 2011, p.44).

Ao enfatizar a capacidade de discernimento promovida pela


observação de imagens que podem ser reconhecidas e a possibi-
lidade de sentir prazer mesmo que diante de imagens de aconteci-
mentos desagradáveis, Aristóteles salienta que, ao observar imagens
desconhecidas ou nunca vistas anteriormente, a sensação de prazer
acontece graças à qualidade de execução da obra, seja por suas cores
ou em função de outros elementos compositivos que se destacam
na observação de um desenho ou de uma pintura.
Muito embora a definição de poética ancore-se em conceitos
do estagirita, a inclusão de tais estudos no âmbito das universidades
teve início no final da década de 1930, quando Paul Valery criou a
cadeira de Poéticas na Universidade Paris - Sorbonne. Ele retomou o

48
ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

conceito aristotélico, esquivando-se de fórmulas correntes à época e


procurando valorizar as singularidades da produção literária. Buscou
compreender o surgimento de obras do espírito, as quais, segundo
ele, possibilitam ao produtor e ao consumidor: “a compreensão, o
interesse excitado, o esforço [...] para uma posse mais completa da
obra” (VALERY, 1991, pp. 188 - 189). Ao priorizar a desordem no lugar da
ordem, abre-se, segundo o escritor, espaço para que o espírito seja
tocado pela produção de arte.
Do final da década de 1930 até os dias atuais, tais estudos são
ampliados e, da esfera literária, passam a abranger os demais campos
da criação artística, dentre os quais está a produção de Artes Visuais.
As discussões sobre poéticas artísticas desenvolvem-se no Brasil
com forte influência francesa, a partir dos anos 1990, com pesquisa-
dores debruçando-se sobre seus próprios trabalhos ou sobre obras
de outros artistas, na tentativa de desvendar critérios herméticos e
aspectos enigmáticos dos processos de criação. Com os estudos em
poéticas, são colocadas em xeque muitas das metodologias aplica-
das em outras áreas, pois a ineficácia de critérios quantitativos para
esse tipo de pesquisa implica a potencialização do caráter qualitativo
das investigações, os quais partem de premissas singulares, permea-
das pela subjetividade e pelo aspecto sensível do conhecimento. As
dificuldades de explicitar tais critérios de análise são superadas pela
presença do teor estético da obra de arte, condutor do aprimora-
mento do espírito e da percepção de novos sentidos.
As metodologias adotadas nas pesquisas em arte são inú-
meras e variam de acordo com os interesses de cada artista. Sobre
essa espécie de proliferação das possibilidades investigativas, Helio
Fervenza esclarece que os caminhos são muitos e difíceis, com bifur-
cações, desvios, pontes e derivas: “Muitas vezes jogamos pedras no
escuro, para que estas nos indiquem a presença ou a ausência dos
abismos. O caminho está indissoluvelmente ligado ao caminhante e a
seu andar” (FERVENZA, 2002, p.67). O trajeto inicialmente programa-
do, segundo o pesquisador, é constantemente revisto e alterado, fato
que explicita a complexidade desse tipo de pesquisa.

49
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Poética e metodologia aproximam-se e fundamentam a con-


cretização do trabalho de arte. Enquanto a poética é encarregada da
coordenação das ideias, a metodologia torna-se responsável pela mate-
rialização de tais ideias. É o próprio pesquisador que define os métodos
investigativos e os processos de pesquisa enquanto etapa da produção.
Impossibilitado de seguir critérios preestabelecidos, ele mesmo vê-se
diante da necessidade de definir os parâmetros da investigação.
Para além da análise da criação poética pessoal, os estudos dos
processos poéticos voltam-se também para a análise de trabalhos de
outros artistas, buscando compreender os processos que fundamen-
tam o surgimento de um objeto ao qual se atribui o título de obra de
arte. Tal procedimento distingue-se de uma análise crítica tradicional,
por evidenciar os desvios e mudanças de sentido que ocorrem no
transcorrer da realização do trabalho. Ao coadunar prática e teoria,
razão e emoção, pesquisadores tecem conclusões provisórias, apos-
tando no processo e no caráter conceitual da obra de arte.
A intraduzibilidade da arte faz com que todo discurso sobre
ela seja parcial; nenhuma interpretação conterá um tipo absoluto de
verdade, mas pode contribuir para sua compreensão. O que carac-
teriza as pesquisas em poéticas artísticas, para Icleia Cattani, é ter,
como norte, o pensamento visual.

O pensamento visual é uma modalidade de pensamento


essencialmente não verbal, o que cria sua diferença
irredutível em relação às outras modalidades. Ele se
expressa através dos formantes da forma, dos forman-
tes da cor, das questões espaciais, independente de
qualquer conteúdo narrativo ou de compromisso com a
representação do mundo visível (CATTANI, 2002, p.39).

A estruturação das pesquisas sobre o tema, ainda que fortemente


marcadas pelo discurso verbal, tem se efetuado fortemente e suas maio-
res contribuições são: ajudar os artistas em seus processos expressivos,
manter o sistemático espírito investigativo, aprofundar e enriquecer a
obra e ampliar a qualidade processual da obra (CATTANI, 2002).

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ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

A análise da obra Arte física: mutações geográficas: fronteira


vertical, ao identificar características da poética de Cildo Meireles,
não busca esgotar seus sentidos, mas ampliar suas possíveis leitu-
ras, destacando que a problemática indígena é um dos elementos
fundamentais para a poética do artista e que a potencialização do
pensamento visual é um dos marcos do trabalho.

Land art: o culto aos ancestrais

Ao norte - choveu flechas a noite inteira, ao sul, atrás,


- aquilo que convém a saber: trinta córregos
dessas dúzias não davam um rio,
a pompa dum nome como das antas, das tantas,
não sei das quantas,
feito esse que nos aparta das soledades andinas
da cordilheira,
aruandas dos quiçá de adundas.
Paulo Leminski (2010, p.193)

As tecnologias de produção e reprodução de imagens condu-


zem a arte para novos e variados caminhos. A apropriação de objetos
industrializados, como os ready made duchampianos, reconfiguram
o conceito de arte, complexificando a questão sobre o que é e o que
não é arte. Os sucessivos movimentos que acontecem ao longo do
século XX culminaram em proposições conceituais e processuais, nas
quais o trabalho concretiza-se. A contemplação advinda do contato
direto com a obra, para os criadores da Arte Moderna, cede lugar às
percepções acerca da compreensão dos processos de criação.
A pintura de paisagem perdeu parte de seu poder de repre-
sentação e os anos 1960 atestaram o despertar de diversos gêneros
artísticos, os quais, em adaptações e apropriações, balizam a sensi-
bilidade do mundo atual. Ligada à arte conceitual e ao minimalismo,
a land art foi criada por Walter de Maria e Michael Heizer nos Estados
Unidos, ao mesmo tempo em que Richard Long desenvolveu con-

51
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

ceitos similares na Inglaterra sob o nome de earth work. A paisagem


está presente na produção de arte, com sua própria materialidade
e capacidade de abrigar novas poéticas artísticas. A efemeridade
de alguns trabalhos e a preservação do registro por fotos, vídeos e
texto caracterizam a land art; a noção de Site Specific complexifica
o mercado da arte, fazendo com que surjam novos tipos de lugares
dedicados à criação, abrigo e manutenção da arte. As tentativas de
dar sentido à vida, que orientam a produção e o consumo de arte,
voltam-se para a paisagem, destacando singularidades sociocultu-
rais. Domesticada em um jardim ou observada na natureza selvagem
que não se rende à razão, as paisagens são fonte de inspiração para
elaborações do sensível e objeto de investigação para os artistas da
land art.
Destacar a ruptura com a alta cultura de origem europeia e
valorizar características das civilizações americanas pré-colombia-
nas, de acordo com Camille Paglia, são outras qualidades da land art.
O interesse pela cultura indígena, de certa forma, retoma questões
mágicas, pois o que hoje consideramos arte era uma espécie de ora-
ção ou de conversa com os deuses, por meio de sinais encontrados
na natureza, ou intervenções humanas realizadas nela. Esse mundo
mágico é rememorado por Michael Heizer que, ao criar gigantescas
esculturas na terra, potencializa narrativas poéticas acerca das Linhas
de Nazca, no Peru13.
Walter de Maria realiza Lightning fields, um retângulo com mais
de um quilômetro quadrado, no qual quatrocentos postes de aço ino-
xidável, com seis metros de altura média cada, são geometricamente
posicionados. O clima desértico do Novo México faz com que os pos-
tes de aço, elementos que funcionam como para-raios, possibilitem
o surgimento de um inigualável espetáculo de relâmpagos.

Os postes, que se flexionam ao vento, parecem des-


vanecer ao meio dia, mas ressurgem avermelhados ao

13  City é outra obra do artista que, criada no deserto de Nevada, em um processo que
dura mais de vinte anos, ainda não está finalizada.

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ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

nascer ou ao pôr do sol, ou prateados ao luar. Embora os


relâmpagos jamais se propaguem de um poste a outro,
os ápices às vezes desenham saltitantes globos de fogo
de santelmo (PAGLIA, 2014, pos. 2793)

Lightning fields atribui uma dimensão metafísica à paisagem,


pois a grade de postes conduz, mais do que à efetiva presença dos
relâmpagos, à sua espera. A imprevisibilidade das forças da natureza
transcende o domínio da ciência e desconserta as certezas humanas.
Metáfora para a ira divina ou possibilidade de epifania, os fenômenos
naturais lançam indagações acerca das relações entre ser humano e
natureza, retomando o aspecto mágico da vida.
A escala monumental que marca alguns dos trabalhos da land
art surgiu com o intuito de subverter o sistema de arte, fortemente
vinculado a galerias e museus. Muito embora esse tipo de subversão
na produção artística tenha se fortalecido na contemporaneidade,
o mercado de arte acaba por incorporá-lo, realizando a venda de
fotografias e vídeos como forma de preservar a comercialização da
arte. Alguns artistas, com foco na ampliação da divulgação de seus
trabalhos, exibem tais obras em espaços oficiais do circuito artístico
e/ ou produzem trabalhos em menores dimensões, em estratégias
que visam atender a demanda do público e criar elos entre as gran-
des obras, muitas vezes impossíveis de serem apreciadas in loco.
Talvez a mais conhecida obra de land art seja Spiral Jetty,
de Robert Smithson, uma espiral feita através de terraplanagem,
localizada no Great Salt Lake no estado norte americano de Utah. A
obra faz referência ao Great Serpent Mound, monumento indígena
pré-colombiano localizado em Ohio. Para Smithson:

A mente e a terra encontram-se em um processo cons-


tante de erosão: rios mentais derrubam encostas abstra-
tas, ondas cerebrais desgastam rochedos de pensamento,
ideias se decompõem em pedras de desconhecimento,
e cristalizações conceituais desmoronam em resíduos
arenosos de razão. Faculdades em amplo movimento
se apresentam nesse miasma geológico e se movem da

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FRONTEIRAS DA PAISAGEM

maneira o mais física possível. Embora esse movimento


seja aparentemente imóvel, ele arrebenta a paisagem da
lógica sob os devaneios glaciais (2009, pos. 3141).

Ao defender que a visão individual de tempo é o elemento


que singulariza a produção de cada artista, Smithson evidencia a
possibilidade de aproximação e afastamento das percepções tem-
porais, enfatizando a fragilidade da visão de mundo pautada em uma
abordagem temporal linear. As analogias entre a mente humana e os
fenômenos da natureza remetem a tempos ancestrais quando, de
acordo com Eliade (2013), as mais diversas mitologias estruturam
suas bases em fenômenos cósmicos.
As caminhadas de Richard Long são pautadas pelo desejo
de medir distâncias e tempos. As esculturas que realiza em terra,
madeira ou pedra, são inseridas na paisagem ou exibidas em galerias
e museus; espécies de reorganizações da natureza, a questão da
efemeridade é um efeito das obras e não o resultado de uma busca.
Reconhecido por sua produção fotográfica, capaz de trazer ao mun-
do a ideia do trabalho, o artista reitera o interesse por civilizações
ancestrais, voltadas ao culto da natureza.
Para Gil Crisóstomo Bartolomeu (2017), o ritmo da natureza
distingue-se do ritmo das cidades contemporâneas, por ser mais
brando e menos veloz. A cadência da caminhada é o que concretiza
a poética de Richard Long, cuja relação com o sublime evidencia-se
na percepção dos elementos da natureza. Na solidão das paisagens
naturais, o tempo lento e mensurado a partir de elementos diversos
pode proporcionar a sensação do sublime que, em Richard Long,
dialoga com a memória de uma natureza sagrada.
A retomada de resquícios do sagrado, realizada por muitos
artistas da land art, evidencia que a obra de arte flerta com o inson-
dável. A análise do valor das paisagens nas poéticas artísticas mostra
também que as distintas percepções de sentido contribuem para a
ampliação da compreensão da vida humana.

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ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

Cildo Meireles: apropriações da paisagem

Falou o homem e disse isso,


falou o homem e disse o nome disso tudo:
quem aparecer, as aparências enganam;
compareça ao engano dos enigmas,
as aparências de bem parecer, videlicentia!
Paulo Leminski (2010, p. 92)

Em 2015, o 34° Panorama da Arte Brasileira – Da pedra Da terra


Daqui (MAM/ SP) exibiu Arte física: mutações geográficas: fronteira
vertical (1969/ 1998 - 2015). Fotos, vídeos, texto e maquete são os
elementos que conduzem ao entendimento do que é a obra: uma
expedição14 ao Pico da Neblina, que aumenta em cerca de um centí-
metro a altura do Brasil. O trabalho que, nas palestras proferidas por
Cildo em Curitiba parecia irrealizável, foi concretizado.
O registro da obra é exposto num contexto que privilegia
questões antropológicas, pois a mostra adota zoólitos como núcleos
condutores da exposição. De acordo com Aracy Amaral (2015), tal
aproximação possibilita repensar a crescente dissolução do que
se entende por arte e o caráter sagrado e ritualístico dos objetos
pré-históricos. Para a curadora da mostra, não importa que os zoó-
litos possam ser considerados arte ou não: “[...] o fundamental é que
sejam manifestações do homem, sua cultura, e de suas relações com
o meio ambiente e seus contemporâneos” (AMARAL, 2015, p.15). O
projeto curatorial, ao promover o encontro de objetos da pré-história
e da arte contemporânea, levanta questões acerca da arte produzida
no país, diante de um confuso conceito de brasilidade que se depre-
ende das novas articulações globalizadas.
A forte relação com questões indianistas, ainda de acordo
com a curadora, é uma das justificativas da escolha de Cildo Meireles
para integrar a exposição. Dentre os trabalhos do artista que abor-

14  A expedição foi liderada por Edouard Fraipont e Miguel Escobar, pois Meireles não
apresentava condições físicas para realizar o projeto pessoalmente.

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FRONTEIRAS DA PAISAGEM

dam o indianismo estão Cruzeiro do Sul (1970), um cubo de quase um


centímetro, com uma metade de pinho e outra de carvalho; Sal sem
Carne (1975), disco de vinil com sons de indígenas e ocidentais; Zero
Cruzeiro (1974/ 1978), notas impressas em off-set, que possuem, em
um lado, a figura de um indígena e, no outro, a de um louco; e Missão/
Missões, como construir Catedrais (1989), instalação realizada para
uma exposição comemorativa dos trezentos anos dos Sete Povos
das Missões.
A partir de questões indianistas, Cildo Meireles aproxima-se
da land art, pois tanto a ação do artista diante da terra quanto a
transformação de elementos da paisagem são características do
movimento. Em 1969, Meireles produziu trabalhos nos quais caminhar,
cavar ou aumentar são ações de um corpo físico sobre a paisagem,
redimensionado a relação entre artista e natureza. Meireles deno-
minou tais obras de Arte física, propondo discussões, entre outros
temas, sobre territórios, política e arte (MEIRELES, 2013).
O distanciamento da fruição retiniana, que era predominante
na estética pictórica tradicional, diante de tais experiências multis-
sensoriais, aponta distinções entre as possibilidades de autonomia
da obra de arte e sua contextualização, potencializando o debate que
singulariza a arte moderna e a contemporânea. Cristina Freire (2006),
ao tratar da obra de Meireles: Tiradentes: totem-monumento ao
preso político15, ação realizada para a mostra Do corpo à terra (1970),
lembra que:

O corpo e as ações [...] passam a ser o locus privilegiado


onde o social, o político e o subjetivo se configuram em
seus múltiplos sentidos e direções. O conceito conven-
cionalizado de obra de arte e os locais institucionais para
sua exposição tornam-se, então, insustentáveis (FREIRE,
2006, pos. 258).

15  A ação consiste em atear fogo em dez galinhas vivas amarradas em um poste, para
evidenciar a crueldade da política vigente no período.

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ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

Surgem novas matrizes interpretativas para os novos tipos


de trabalho, as quais incorporam, entre outros campos de estudo,
a Antropologia, a Psicanálise, a Linguagem e a Sociologia. As obras
físicas de Meireles, ligadas à ação e à land art, abrem-se para surpre-
endentes chaves de leitura, evidenciando de forma significativa seu
caráter polissêmico.
Em Caixas de Brasília/ Clareira (1969), o artista abre uma cla-
reira nas margens do rio Paranoá, queima as plantas retiradas do local
e coloca-as em três caixas de trinta centímetros. Quando mostrada
em exposições de arte, a obra é composta por uma das caixas, um
painel com fotos da ação e um mapa de Brasília identificando o lugar
da clareira/ queimada. As duas outras caixas foram enterradas no lo-
cal da ação e o cunho político da obra é potencializado em metáforas
do fogo. Ao mesmo tempo em que cria enigmas insolúveis, Meireles,
na região preconizada por Dom Bosco para ser o início de uma nova
civilização16, remete a procedimentos ritualísticos ancestrais.
Cordões/ 30 quilômetros de linhas estendidos e recolhidos
(1969) é o resultado da caminhada do artista no litoral do Rio de
Janeiro. A obra é exposta em uma caixa de madeira, a qual, além dos
fios enovelados, contém um mapa com o itinerário percorrido por
Meireles. Outras obras com a ideia de medição por fios ou cordas
ainda não foram realizadas; dentre elas, destaca-se o projeto de
refazer o percurso do Tratado de Tordesilhas.
O trabalho Mutações Geográficas: Fronteira Rio – São Paulo
(1969/ 70) consiste em uma caixa de madeira subdividida diagonal-
mente por dois bolsões de couro, os quais separam a terra de duas
cidades vizinhas: Parati, no Rio de Janeiro, e Cunha, em São Paulo.
Em cada lado do espaço triangular interno da caixa, um bolso menor
contém terra do outro lugar. Espécie de tradução do Yin Yang chinês,
que separa dois princípios e mantém, em cada um deles, o núcleo de
seu opositor, a obra coloca em questão, entre outras coisas, a (im)
permanência e a complementaridade da diferença.

16  De acordo com José Gatti (2011), em 1883, Dom Bosco sonhou com uma nova
civilização no exato local onde foi instalada a capital do Brasil.

57
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

A questão territorial é o ponto de partida para indagações


sobre medidas, limites e fronteiras. Para Frederico de Morais, Meireles
realiza tentativas de apreender o Brasil geograficamente.

Sua preocupação fundamental era trabalhar grandes


distâncias e grandes dimensões, demarcando áreas e
territórios, e, logo a seguir, transformar, metaforicamente,
a face física do país. [...] Ou então deslocar montanhas,
aumentar ou diminuir pontos extremos do território
brasileiro, alterar fronteiras etc. Num caso e noutro, bus-
cando a confluência entre geografia (espaço) e história
(tempo) (MORAIS, 2015, p. 170).

As obras de Arte física, assim denominadas por necessitarem


de um corpo físico que as realize, apresentam propostas em aberto.
Nos projetos de Meireles, contam também a delimitação de áreas
políticas, religiosas e econômicas. Ao dilatar os limites da arte, Meire-
les dialoga com o mercado sem negá-lo, em obras que garantem seu
reconhecimento internacional, pois “no âmago da discussão sobre
a existência da arte enquanto antena da humanidade, as obras de
Meireles são evidências incontestes da importância da experiência
estética para a compreensão da vida” (MENDES, 2019, p. 1238).
Explicitadas características das obras de Meireles que dialo-
gam com a land art, tentamos identificar singularidades na obra Arte
física: mutações geográficas: fronteiras verticais.

Arte física: mutações geográficas: fronteiras verticais

De duas uma: ou as águas dão febre,


cujos delírios simulam a metamorfose, ou a
mudança de veras sucede.
Neste caso, os problemas a resolver da ordem de
toda a desordem entre os seres
abririam precedente a uma metamorfose de todo
o nosso pensar.
Paulo Leminski (2010, p.25)

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ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

Aumentar em cerca de um centímetro a altura do país é uma


proposta intrigante, da qual surgem inúmeros questionamentos. Se-
riam também alterados os dados oficiais e os livros escolares? Qual
parcela da população tem acesso à informação de tal transformação?
Ou ainda, até que ponto os dados oficiais com que lidamos são reais?
No ano em que Meireles concebeu Arte física: mutações geo-
gráficas: fronteira vertical, acreditava-se que o ponto culminante do
país era o Pico da Bandeira. Embora algumas dúvidas permaneçam,
um complexo sistema de mensuração, em 2004, definiu que o Pico
da Neblina é o ponto mais alto do país, com 2.993,78 metros de altura.
Se o trabalho tivesse sido executado, anteriormente, como quase o
foi, teria sido realizado no Pico da Bandeira e deixaria de ter o sentido
proposto (MEIRELES, 2013).
Para chegar ao cume do Pico da Neblina, é necessária a auto-
rização dos povos yanomamis, pois o Yaripo, nome indígena da mon-
tanha sagrada, está localizado na reserva que abrange os estados de
Roraima e Amazonas, em uma área que engloba cerca de nove mil
e quinhentos hectares em solo brasileiro e abriga mais de duzentas
e cinquenta aldeias. A reserva é dividida entre o território nacional
brasileiro e o venezuelano17, sendo que cerca de vinte mil yanomamis,
divididos em quatro etnias, vivem no território nacional. De acordo
com Moisés Ramalho, ao enfatizar que tais tribos entraram em con-
tato com os não indígenas apenas no século XX:

A aldeia yanomami geralmente é formada por uma gran-


de casa comunal (xapono ou yano) em forma circular,
contando com um espaço vazio no centro, em torno do
qual cada família dispõe de seu próprio espaço, onde
dorme e cozinha. O exterior desmatado é tomado por
um emaranhado de plantas e detritos que se acumulam
com o passar do tempo. Na maioria dos casos, as roças
se situam a alguns minutos de caminhada da aldeia (RA-
MALHO, 2008, p.31).

17  O território ocupado pela Reserva da Biosfera Alto Orinoco-Casiquiare, na Venezuela,


é de 8,2 milhões de hectares.

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FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Para o pesquisador que conviveu por uma década com os


yanomamis, a aldeia é um dos nós do tecido social e a pertença ao
coletivo é permeada por complexos e intricados laços de parentesco
e afetividade. As crenças tribais incluem a existência de espíritos da
floresta, a que dão o nome de hekura. O xamamismo praticado pelos
indígenas inclui a inalação de epena, substância alucinógena que pro-
picia o contato com o mundo espiritual. Os animais míticos que se
apresentam aos xamãs, muitas vezes em sua forma humana, podem
ainda transmutar-se em plantas ou outros seres da natureza, pois,
para os yanomamis, a existência humana acontece em consonância
com os demais elementos que compõem a paisagem. Na cultura
yanomami, segundo Ramalho (2008), predominam as dimensões
simbólicas e as fronteiras entre humanos e não humanos não são
bem definidas. Esse conteúdo mágico, inevitavelmente, permeia a
expedição organizada pelo MAM – SP, pois os guias encarregados da
visita ao Yaripo são membros da comunidade yanomami e, em suas
escaladas, aproveitam para entrar em contato com os elementos e
seres que compõem suas crenças.
Antes de escalar a montanha, a equipe havia coletado o frag-
mento de um tipo específico de formação rochosa vulcânica, a qual,
usualmente encontrada abaixo da superfície terrestre, pode trans-
formar-se em diamante. No Pico da Neblina, retira-se um pouco da
rocha local e em seu lugar é colocado o kimberlito (Virola calophylla),
em quantidade superior a que fora retirada. O Brasil cresce um pouco
e, com sua nova altura, pode, com o passar do tempo, produzir um
tipo de pedra que está entre as mais valiosas do planeta.
A jornada para escalar o Pico da Neblina costuma levar de dez
a quinze dias e inclui viagens de barco e caminhadas por trilhas que
duram cerca de quatro dias, já que os perigos existentes na floresta
são muitos e as trilhas devem ser percorridas com cautela. São ne-
cessárias cerca de dez horas para escalar e descer a montanha no
mesmo dia. Até a altura de mil metros, predominam plantas de grande
porte, típicas da floresta equatorial; nos próximos setecentos metros,

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ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

as árvores são menores e a vegetação é mais aberta. Depois dos mil


e setecentos metros, encontram-se apenas vegetações rasteiras. No
primeiro quilômetro da subida, pode chover muito e, nos setecentos
metros de altitude, a montanha costuma ficar coberta pela neblina. A
partir de dois mil e quinhentos metros, o clima torna-se seco (ICM-
BIO, s/a).
De acordo Paulo Myada, curador adjunto do 34° Panorama da
Arte Brasileira, a impossibilidade de homogeneização do país é uma
das questões levantadas pela obra de Meireles.

Além de poético, o aumento do maior cume do país –


esse crescimento nacional – pode ser lido como uma
extrapolação, por absurdo, dos discursos desenvolvi-
mentistas brasileiros. Por mais que existam divergências
de gestão e ideologia, nenhuma das mal-acabadas
lideranças políticas atuais ousa duvidar das premissas
embutidas na aposta constante na aceleração da econo-
mia como índice da melhora da vida no país. Para os que
agem segundo esta visão tão tacanha, o artista oferece
um efetivo – e obviamente inútil – crescimento nacional
(MYADA, 2015, p.139).

Ao propor um singelo gesto que simbolicamente interfere em


todo o país, apelando para medidas e números, cria-se um significa-
tivo embate com desafios culturais e geográficos. Ao mesmo tempo,
ao depositar um elemento sobre a montanha sagrada, Meireles rea-
liza uma espécie de tributo aos yanomamis, povo que acredita que o
cume da montanha é “a Casa dos Espíritos e base de sua cosmogonia
e das relações espirituais que mantém o equilíbrio das forças da na-
tureza” (BOCARDE, apud ICMBIO, 2015, s/p).
Os servidores do Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade - ICMBio e os representantes do Povo Yanomami
que se uniram ao grupo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, no
período de 22 de agosto a 2 de setembro de 2015, permaneceram
três dias no teto do Brasil, retirando detritos deixados por visitantes.
Fechado para visitação pública desde 2002 por ordem do Ministério

61
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Público Federal, a montanha sagrada dos yanomamis tem sido local


de treinamento das Forças Armadas e, de acordo com os vestígios
encontrados, os militares são os principais responsáveis pela de-
predação ambiental. Além dos problemas encontrados ao longo da
subida da montanha, sabe-se que o garimpo ilegal e a escassez de
alimentos são alguns dos graves problemas enfrentados pelos povos
nativos que habitam o Parque Nacional do Pico da Neblina, região que
abriga uma imensa quantidade de nióbio. De acordo com Salomão
Mendonça Ramos, conselheiro yanomami:

Yaripo é uma montanha-casa dos espíritos. O Yaripo foi


descoberto na visão espiritual pelo ancestral Yoyoma.
Antes dos séculos, anos atrás, o Pico da Neblina já tinha o
nome de Yaripo, colocado pelos espíritos que moram no
Yaripo. Ao longo do caminho do Yaripo, há diversos luga-
res sagrados espirituais e de decoração funeral. Devido
a tudo isso, nós yanomami não aceitamos o desenvolvi-
mento de atividades sem haver consulta e conhecimento
do objetivo das atividades que se pretendem realizar no
Parque Nacional do Pico da Neblina. Os nossos pajés fa-
mosos já se foram, praticamente na vida eterna, porém a
presença deles não se distanciou, eles continuam fazen-
do a proteção de nossas vidas espirituais aos espíritos
maus acompanhados e relacionados com a natureza.
Portanto, diante disso, desejamos ser respeitados com
conceito, de acordo com a cultura diferente de todos
os povos indígenas do Brasil, inclusive pelas autoridades
federais. Yoyoma é considerado o haprapi [grande pajé]
que habita aquela região (RAMOS, 2015, p.170)

Compreender o valor de um território sagrado para as tribos


nativas deveria ser uma atitude natural para as autoridades governa-
mentais, desde que a ambição por enriquecimento material não fosse
um dos interesses mais evidentes nas organizações políticas. A obra
de Meireles, ao trazer à tona discussões acerca de situações que co-
locam cada vez mais em risco a sobrevivência dos povos ameríndios,
abre-se para sentidos diversos, coadunando experiência estética e
respeito ao sagrado. Ficam em suspenso os destinos da reserva e

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ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

das tribos que habitam nela. A poética de Meireles, ao adentrar con-


ceitual e formalmente as questões indianistas, movimenta sentidos
políticos, estéticos e sociais. Possibilita também que, ao se levar em
conta o desejo de crescimento nacional, sejam colocados em pauta
os interesses dos verdadeiros povos nativos.

Considerações finais

Terra, move o pé que te ara!


Descem à terra espécies das coroas do céu?
Paciência: a dor, enfim!
Paulo Leminski (2010, p. 129)

Apontar o imbricamento entre a pintura de paisagem e as


alterações socioculturais foi a estratégia adotada para introduzir a
reflexão sobre os possíveis sentidos da obra Arte física: mutações
geográficas: fronteira vertical, de Cildo Meireles. Destacamos a re-
lação entre a vida social e a representação da paisagem na pintura,
com bases em Kenneth Clark, para quem a arte abrange questões
simbólicas, factuais, fantásticas e ideais.
Antes de encerrar esta investigação, cumpre suprir uma
lacuna acerca da permanência dos processos pictóricos na arte
contemporânea. Inicialmente acuada pela fotografia, a pintura traça
outros caminhos, muitas vezes, ligados à abstração, garantindo sua
vitalidade. Nos anos 1980, houve uma retomada do interesse pela
pintura figurativa e até hoje grandes pintores, como Anselm Kiefer
e Dudi Maia Rosa, permanecem dando o devido valor às questões
paisagísticas. O primeiro destaca-se pelas grandes telas e pela rela-
ção que estabelece entre profundidade e planaridade; o segundo, em
delicadas aquarelas, cujas paisagens liquefeitas constroem-se entre
o desejo do pintor e as peculiaridades da tinta.
As elucidações acerca do que é uma pesquisa poética, a
história de seu surgimento e da consequente migração da literatura

63
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

para as Artes Visuais, teve como objetivo destacar a valorização do


processo de criação de uma obra de arte, em detrimento do enal-
tecimento de um tipo de fruição estética que se encerra no próprio
corpo da obra. Ao mesmo tempo, ressaltou-se a relação entre as po-
éticas artísticas e as pesquisas universitárias, evidenciando o caráter
qualitativo que permeia esse tipo de investigação.
A ênfase dada à land art foi realizada com o objetivo de pos-
sibilitar uma maior compreensão do caminho escolhido por alguns
artistas, dentre os quais se inclui Meireles. Os trabalhos escolhidos
para análise são icônicos no campo da produção de arte contempo-
rânea e os artistas nominados estão presentes em depoimentos de
Meireles acerca de interesses artísticos pessoais. Destacamos, ainda,
a retomada da ancestralidade nas obras em questão, com o intuito
de fundamentar o diálogo estabelecido com Arte física: mutações
geográficas: fronteira vertical.
A relação de Meireles com a paisagem, elencada através de
algumas de suas obras consagradas, foi trazida para a discussão,
com o intuito de destacar a recorrência do tema em sua produção.
Enfatizamos o entrelaçamento de natureza/ paisagem e ser humano/
indígena, realçando, ainda, o interesse por demarcações geográficas
e por alterações de escalas e medidas. Tais obras, entre outras qua-
lidades, representam uma espécie de justificativa para que o artista
fosse um dos seis convidados para o 34° Panorama da Arte Brasileira
– Da pedra Da terra Daqui.
Arte física: mutações geográficas: fronteira vertical é um traba-
lho embasado em um sofisticado processo mental, que, ao aumentar
em aproximadamente um centímetro a altura do Brasil, passa a habitar,
para além de sua materialidade, a interioridade do pensamento e da
imaginação. Estas são características de movimentos artísticos como
a land art, que, em um parentesco próximo à arte conceitual, coloca
em destaque os aspectos imateriais da obra, potencializando o sur-
gimento de um tipo específico de pensamento: o pensamento visual.

64
ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

Conforme expresso no início do texto, procuramos, a seguir,


destacar alguns dos sentidos que se depreendem da análise desta
obra de Meireles. O que se percebe, de imediato, é a sutil ironia no
que concerne aos possíveis significados do termo crescimento. Sub-
versões de medidas e alterações de escalas, elementos que integram
a poética do artista, conduzem a percepções de apequenamento e/
ou gigantismo. Na irônica resposta à necessidade de crescimento
econômico do país, a obra dialoga com cosmogonias ancestrais,
conduzindo à revisão de conceitos de valor e de mundo.
O kimberlito encravado no topo da montanha sagrada é um
simbólico diamante oferecido aos ancestrais. Os expedicionários,
conduzidos por conhecedores dos locais imantados pelos deuses,
participam da cultura yanomami. Este é um dos fatores que acen-
tua o sentido do sagrado e faz com que a chegada ao cume pareça
transformar-se em uma espécie de ritual, cuja simbologia hermética
não pode ser apreendida em sua totalidade. A imaginação, diante do
pensar sobre a obra, é assolada por espíritos da natureza, fantasmas
de índios que se transmutam em animais e que somem na neblina em
busca da solução para a preservação da natureza. O que não se con-
segue apreender acerca da realização da obra, de seu processo e de
sua concretude material, quanto metaforizado na imagem da neblina,
poeticamente dirige-se às imagens de afastamento e esquecimento,
lembrando que o Yaripó é algo muito distante da vida da maioria dos
brasileiros. Coube a Meireles e sua equipe trazer o Pico da Neblina
para o campo da arte.
O caráter sociológico do texto no catálogo da mostra contribui
para a conscientização acerca da problemática indígena, enquanto o
material disponível no site do Instituto Chico Mendes relata os abusos
cometidos por militares no que concerne à preservação e respeito ao
lugar. Para que a compreensão da obra seja ainda mais significativa,
é importante recorrer aos duvidosos destinos da reserva yanomami,
pautados por crescentes preocupações ambientais, tais como a
possibilidade de liberação da caça para não índios, a legalização do
garimpo e a liberação do parque para turismo.

65
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

A sutil ironia, a retomada do sagrado e a problemática indíge-


na foram os sentidos destacados nesta leitura de Arte física: muta-
ções geográficas: fronteira vertical. Percebemos que as alterações
formais e conceituais das obras de arte contemporâneas ainda são
capazes de redimensionar a radicalidade das atuais transformações
socioculturais. Muito embora a humanidade tenha perdido a fé na
estabilidade da ordem natural das coisas, cabe à arte a lida com as
emoções e com outros tipos de percepção do sensível. O temor geral
do fim do mundo que assombra a humanidade por mais de cinco
séculos (CLARK, 1961) foi agravado a partir das décadas de 1940 e
1950, quando o ser humano passou a produzir artefatos capazes de
liquidar a vida no planeta. A obra de Cildo Meireles comprova que
esse medo ainda tem suas razões para existir.

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66
ARTE FÍSICA: MUTAÇÕES GEOGRÁFICAS: FRONTEIRA VERTICAL

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67
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

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68
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA
FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS:
Estudo de caso das produções visuais
de Ponta Grossa por Luiz Bianchi

Patricia Camera

Considerações sobre a gramática fotográfica

O estudo sobre a produção de fotografias de paisagens urba-


nas envolve análises sobre a práxis fotográfica e a história da cidade.
Alguns exemplos são marcantes na história da fotografia como é o
caso do daguerreótipo1 que mostra uma vista do Boulevard Du Temple
feita em 1839 em Paris. O seu reconhecimento na história da fotografia
deu-se por ser um dos primeiros processos fotográficos que mostrava
o espaço urbano daquela cidade. Apesar de sua fama, esse processo
não possuía, naquele momento, a qualidade para captar as carruagens
e as pessoas em movimento. Isso porque eram necessários aproxi-
madamente quinze minutos de exposição à luz para que o suporte de
cobre captasse a imagem formada pela câmera escura2. Mesmo assim,
o sucesso do resultado da imagem obtida sem a interferência da mão
humana foi irrevogável. Isso pode ser avaliado seguindo os comentários
sobre o pintor e físico Samuel Morse.

Very few people would have been allowed to ook at a da-


guerreotype before the official announcement in August
1839. Among them, the American painter and physician,
Samuel F. B.Morse - who invented the electric telegraph

1  Imagem positiva em suporte de cobre. Ver DAGUERREÓTIPO. In: ENCICLOPÉDIA Itaú


Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019.
2  Aparato usado para captar determinada imagem. Ver CAMERA Obscura. In:
ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019.

69
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

had the privilege of a meeting with Daguerre on March 7,


1839. Shortly afterwards, he told his family about his visit,
describing the new object he had been able to admire,
a daguerreotype, with its “metallic surface” and having
“the appearance of an aquatint engraving” (uncolored).
[…] Morse was particularly enthusiastic about the detail
of the “drawing”. “You cannot imagine how exquisite is
the fine detail portrayed. No painting or engraving could
ever hope to touch it. For example, when looking over a
street one might notice a distant advertisement hoarding
and be aware of the existence of lines or letters, without
being able to read these tiny signs with the naked eye.
With the help of a handlens, pointed at this detail, each
letter became perfectly and clearly visible, and it was the
same thing for the tiny cracks on the walls of buildings or
the pavements of the streets.” […] “Moving objects leave
no impression. The boulevard, though constantly crossed
by a flood of pedestrians and carriages, appeared com-
pletely deserted, apart from a person who was having his
boots polished. His feet must, of course, have remained
immobile for a certain time, one of them being placed on
the boot-black’s box, the other on the ground.”3 (FRIZOT,
1999, p. 28).

Conforme apresentado por Frizot, o artista e cientista enalte-


ceu o dispositivo automático da câmera. Em suas observações, ele
comparava o resultado estético da imagem a uma matriz de gravura,

3  “Poucas pessoas teriam permissão para conhecer um daguerreótipo antes do


anúncio oficial em agosto de 1839. Entre elas, o pintor e médico americano Samuel Morse -
que inventou o telégrafo elétrico, teve esse privilégio por encontrar-se com Daguerre em 7 de
março de 1839. Pouco depois, ele contou à família sobre sua visita, descrevendo o novo objeto
que ele havia conseguido admirar, um daguerreótipo, com sua “superfície metálica” e tendo “a
aparência de uma gravura em metal (água-tinta sem cor)”. [...] Morse estava particularmente
entusiasmado com os detalhes do “desenho”. “Você não pode imaginar o quão requintado é
o detalhe fino. Nenhuma pintura ou gravura jamais poderia tocá-lo. Por exemplo, ao olhar para
uma rua, pode-se notar um anúncio distante e estar ciente da existência de linhas ou letras,
sem ser capaz de ler esses pequenos sinais a olho nu. Com a ajuda de uma lupa, apontado para
esse detalhe, cada letra se tornou perfeita e claramente visível, e foi o mesmo para as pequenas
rachaduras nas paredes dos prédios ou nas calçadas das ruas”. [...] “Objetos em movimento
não deixam impressão. A avenida, embora constantemente atravessada por uma avalanche
de pedestres e carruagens, parecia completamente deserta, além de uma pessoa que estava
com as botas polidas. Seus pés devem, é claro, permanecer imóveis por certo tempo, um deles
sendo colocado na caixa de botas e o outro no chão”. (Tradução nossa).

70
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

gerada pelo processo de água-tinta4. Morse, também, ficou entusias-


mado com a precisão nos detalhes adquiridos com o uso desse novo
processo. Da citação, é interessante observar que o entendimento
sobre a representação de um espaço urbano de Paris passava pela
percepção e aceite da ausência de elementos visuais, como o trans-
porte e as pessoas que circulavam pela metrópole. Esses desacertos
entre o que era vivido e o que era observado na fotografia são minimi-
zados pelo observador, uma vez que tal “acordo” estava vinculado ao
desejo e à possibilidade de captar rapidamente e de modo preciso
alguma cena em determinado instante. Assim, o registro fotográfico
era compreendido como um ato inovador, quando comparado ao
uso da técnica do desenho, pintura ou gravura. Dessa maneira, ainda
que o referido processo não registrasse no suporte de cobre alguns
elementos observáveis, tal forma de captura estava relacionada com
a noção de cópia da realidade. Philippe Dubois (2000, p. 25) analisa
essa proposição:

Existe uma espécie de consenso de princípio que pre-


tende que o verdadeiro documento fotográfico “presta
contas do mundo com fidelidade”. Foi-lhe atribuída uma
credibilidade, um peso de real bem singular. E essa virtu-
de irredutível de testemunho baseia-se principalmente
na consciência que se tem do processo mecânico de
produção da imagem fotográfica, em seu modo especí-
fico de constituição e existência: o que se chamou de
automatismo de sua gênese técnica.

Esse entendimento vai ao encontro da necessidade de captar


com rapidez a urbe que se mostrava em contínuo desenvolvimento.
Essa validação da representação do espaço urbano por meio do
“olhar tecnológico” é notada como uma prática social vivenciada
desde os primórdios da fotografia. Por exemplo, Charles Marville
fotografou, a partir de 1862, os bairros parisienses, antes, durante e

4  Processo de gravura que utiliza ácidos para corroer o suporte onde é gerada a
imagem. Ver ÁGUA-TINTA. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São
Paulo: Itaú Cultural, 2019.

71
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

depois das modificações sofridas junto ao projeto de modernização,


resultando em uma documentação de aproximadamente quinze anos
de transformações. O mesmo pode ser observado nos trabalhos
exercidos por Max Missmann que, a partir de 1899, documentou os
processos de construção de Berlim ao longo de aproximadamente
40 anos (POSSAMAI, 2008).

No Brasil, as pesquisas sobre a história da fotografia


trazem importantes informações sobre a presença da
cidade nos registros fotográficos. Em 1840, o primeiro
daguerreótipo brasileiro retratou o Paço Imperial no Rio
de Janeiro. Também no Brasil houve a preocupação em
fazer o registro das transformações urbanas, como ates-
ta a contratação do fotógrafo Marc Ferrez para acompa-
nhamento das obras de construção das edificações da
Avenida Central no Rio de Janeiro. A fotografia, ao captar
as imagens das mudanças em curso, acabou sendo
concebida como capaz de registrar e reter a memória
de diferentes aspectos das cidades brasileiras. Nessa
direção, foi valorizada principalmente pelo seu aspecto
testemunhal, o que explica a presença de grande número
deste tipo de documento em muitos de nossos arquivos
e museus (POSSAMAI, 2008, 70-71).

As exposições nacionais e universais são eventos que também


assimilaram a fotografia como instrumento moderno, exibindo retra-
tos, vistas e panorâmicas. Neste sentido, Claudia Beatriz Heynemann
esclarece sobre a importância desses acontecimentos.

As exposições universais ultrapassaram o objetivo pri-


meiro de disseminar os avanços da indústria, do comér-
cio entre as nações, de um padrão de comportamento,
e de impor uma pedagogia do progresso às massas para
se tornarem “manifestações de todo um pensamento”
sendo preciso, assinala Helena Barbuy, que se entenda
as exposições universais como algo muito maior do
que meras feiras comerciais, a despeito de seu caráter
industrial. Eram antes salões de arte que privilegiavam as
manifestações intelectuais, mais do que o comércio ou
as atividades produtivas, o que se poderia constatar na

72
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

própria premiação por meio de medalhas e honras, e não


por valores em dinheiro. (HEYNEMANN, 2018, s/p.)

A inserção da fotografia produzida no Brasil nos eventos


nacionais ocorreu na Exposição Geral da Academia Imperial de
Belas-Artes em 1842, na Exposição Provincial de Minas Gerais (Ouro
Preto) e de Pernambuco (Recife) em 1861, e na Exposição Nacional
(Rio de Janeiro) em 1861-1862 (LUZ, 2006). No exterior, o Brasil foi
representado por Henrique Guilherme Doère com Vistas do Jardim
Botânico; Joaquim Insley Pacheco com retratos da família imperial e
por Augusto Stahl com fotografias na Exposição de Londres em 1862.
Em 1867, o Brasil participou da Exposição Internacional do Porto com
fotografias de E.J.Van Nyvel e Joaquim Insley Pacheco e na Exposição
Universal de Paris com nove representações. Desta última, Frish (Casa
Leuzinger) recebeu menção honrosa com as fotografias de índios do
Amazonas. Em suma, a busca pela legitimação da produção brasileira
ocorreu pelo registro documental de imagens do Império ou de re-
presentações de natureza tropical.
Interessante notar que Ado Kyrou (apud FERNANDES JÚNIOR,
2011, p. 45) afirma que a Exposição Universal de Paris, em 1900,
pode ser considerada o marco inicial da explosão da cartofilia e que
o período de 1900 a 1920 é a idade de ouro dos postais. Além dos
cartões-postais, os cartões de visita5 contribuíram para ampliar o
circuito social da imagem. Maria Eliza Linhares Borges descreve sobre
o produto, explicando os motivos de sua disseminação:

Em 1854, o fotografo francês André Adolphe Eugène Dis-


déri (1819-1889) cria um aparelho que permitiria a tomada
de até oito clichês simultâneos, iguais ou diferentes, em
uma única chapa. Estava inventando o chamado cartão
de visita, um retrato de cerca de 9,5 x 6,0 cm montado
sobre um cartão rígido de 10 x 605 cm, aproximadamen-

5  Formato de apresentação de fotografias inventado pelo francês André Adolphe-


Eugène Disdéri (1819-1889), em 1854, e, assim, denominado em virtude de seu tamanho reduzido.
Ver CARTÃO de visita. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo:
Itaú Cultural, 2019.

73
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

te. Essa inovação técnica baratearia sensivelmente o


custo da fotografia. (BORGES, 2003, p. 50)

Outro fator importante que esteve relacionado à difusão da


fotografia é o desenvolvimento da tecnologia de reprodução das
cópias em grande escala. Isso é visível quando se estuda a história
do cartão postal.

A partir da segunda metade do século XIX, com a evo-


lução dos processos de impressão, o cartão-postal
rapidamente se transformou num revolucionário e útil
veículo de comunicação. Em 1865, o secretário de Estado
para os Correios da Alemanha, Heinrich von Stephan,
propôs que as correspondências pudessem circular sem
envelopes. Essa ideia não foi bem aceita, mas finalmente
a partir de 1º de outubro de 1869, no Império Austro-Hún-
garo, essa modalidade foi iniciada graças ao empenho de
Emmanuel Hermann, inicialmente com o bilhete-postal,
sem ilustração. Na década de 1870, apareceram os pri-
meiros cartões ilustrados e a Alemanha foi pioneira ao
adotá-los, em julho de 1872. O modelo foi reconhecido
e regulamentado pela União Postal Universal em 1880.
(BORGES, 2003, p. 42).

A vontade de consumir esse produto pode ser avaliada com


os números publicados por Émile Strauss em La Carte Postale Ilus-
tré, conforme citado por Rubens Fernandes Júnior (2011). Segundo
consta, a Alemanha produziu oitenta e oito milhões de postais em
1899, considerando que o país era formado por aproximadamente
cinquenta milhões de habitantes. A Inglaterra comercializou quatorze
milhões de postais e apresentava trinta e oito milhões e quinhentos
mil habitantes; a Bélgica produziu doze milhões de postais e tinha seis
milhões e duzentos mil habitantes; e a França fabricou oito milhões
do produto em questão e possuía trinta e oito milhões de habitantes.
O conhecimento dessa produção interessa ao pesquisador, pois ela
tece a cultura fotográfica, que é constituída por uma historicidade
mediada por relações de grupos ou de campos que buscam ou
constroem a identidade coletiva e/ou individual. Dessa forma, cada

74
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

caso estudado apresenta suas peculiaridades. Por exemplo, antes de


fabricar o postal fotográfico no Brasil, usava-se o “bilhete-postal” que
mostrava o selo do imperador Dom Pedro II. Ao lado desse bilhete
era reservado um espaço para escrever o endereço de destino. No
verso, existia um espaço em branco. No início da República, o padrão
modificou-se. Em um lado do postal, era impressa a imagem da Casa
da Moeda e reservado um espaço para o selo. Já o outro lado, era
dedicado para escrever a mensagem. Nesse exemplar, o cartão era
uma correspondência lacrada.

[...] a liberação para edição de cartões-postais por


empresas particulares só ocorreu em 14 de novembro
de 1899. [...] estima-se que os primeiros cartões-postais
que trazem referências urbanas circularam em São Paulo
em 1897, e foram editados em agosto do mesmo ano, em
cromolitografia, pelo Estabelecimento Graphico V. Stei-
del & Cia. A primeira série tem aproximadamente quinze
cartões (incluindo vistas do Rio de Janeiro, Campinas e
outras cidades); um segundo conjunto ampliado contou
com 27 cartões. São os conjuntos mais antigos conhe-
cidos até agora. Victor Steidel posteriormente vendeu
sua gráfica para os irmãos Weisflog, Alfredo e Otto, que a
transformaram no embrião da futura Companhia Melho-
ramentos de São Paulo. (BORGES, 2003, p. 42).

De fato, as produções em massa dos cartões de visita e


dos cartões postais democratizaram a memória social, enfatizando
retratos de personalidades, paisagens urbanas ou de sujeitos e na-
turezas compreendidas como exóticas. Várias visões sobre o mundo
começaram a ser compartilhadas. Alguns lugares passaram a ser (re)
conhecidos, modificando os “modos” de ver. O consumo foi incenti-
vado pela vontade de enviar um postal ou de colecionar fotografias
de cidades, do país ou de determinados eventos. Da mesma forma,
simplesmente para colecionar fotografias e ter a sensação de reme-
moração, pertencimento ou desejo de visitar o lugar. Nesse circuito,
esses objetos fotográficos avulsos ou que compõem coleções e

75
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

álbuns com temas diferenciados sobre a cidade apresentam-se nas


modalidades panorâmicas6, vistas ou estereoscópicas.

Predominam nas primeiras fotografias brasileiras pano-


ramas da paisagem que enquadram, em meio à natureza
pródiga, os conjuntos de construções que definiam as
vilas, povoamentos e cidades. Os fotógrafos pioneiros
aparentemente interessavam-se pela paisagem brasilei-
ra de uma maneira ampla, na qual a paisagem natural e a
construída pelo homem integravam-se em composições
únicas. O casario, a vegetação e os recortes topográficos,
eram elementos que se harmonizavam, retratando a pai-
sagem brasileira de uma forma abrangente. (WOLFF DE
CARVALHO; SANTOS WOLFF, 1991, p. 161).

Apesar de a gênese automática figurar com propriedade para


a obtenção desse tipo de documentação, as especificidades técni-
cas da fotografia para a produção de uma cena urbana são limitadas
quando pensadas para a “tradução fiel” do espaço urbano. Isso gera
tensões entre o que é visto e o que é representado, instaurando novas
formas de representação dentro mesmo da linguagem fotográfica.
Uma delas recorre aos aparelhos esteresoscópicos, com o objetivo
de exprimir o espaço tridimensional em sua profundidade. O verbete
“fotografia estereoscópica” da Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e
Cultura Brasileiras apresenta a seguinte definição:

Foi desenvolvida pelo inglês David Brewster (1781-1868),


amigo do fotógrafo William Henry Fox Talbot (1800-
1877), em 1849, a partir dos estudos de visão binocular
desenvolvidos no passado pelos italianos Giovanni
Battista della Porta (ca.1542-1597) e Leonardo da Vinci
(1452-1519). A fotografia estereoscópica só foi comer-
cializada, no entanto, a partir de 1851, consistindo em
pares de fotografias retratando uma mesma cena que,
vistos simultaneamente num visor binocular apropriado,
produzem a ilusão da tridimensionalidade. Este efeito

6  Fotografia que apresenta uma vista contínua de uma paisagem, significativamente


maior do que aquela abarcada pelas câmeras convencionais. Ver PANORAMA. In: ENCICLOPÉDIA
Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019.

76
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

era conseguido porque as fotografias eram tiradas ao


mesmo tempo com uma câmara de objetivas gêmeas,
tendo os centros das objetivas separados entre si por
cera de 6,3 cm - a distância média que separa os olhos
humanos (ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileiras, 2020, s/p).

O sucesso desse objeto fotográfico foi acompanhado pelo ato


de colecionar imagens. O ápice de sua produção aconteceu entre
as décadas de 1860 e 1870, apresentando-se como daguerreotipia,
ambrotipia, calotipia, papel albuminado ou de gelatina e autocromos.
No Brasil, Revert Henrique Klumb e Marc Ferrez foram os fotógrafos
que se dedicaram à produção desse tipo de imagem com cenas do
Rio de Janeiro (TURAZZI, 2000).
Maria Inez Turazzi (TURAZZI, 2000, p. 27) explica: “entre as
décadas de 1860 e 1920, a fotografia mudou radicalmente e, ao longo
de toda a sua extensa e intensa atividade como fotógrafo, Ferrez
experimentou quase todas essas mudanças”. A sua dedicação vai
desde a invenção de aparelhos até a divulgação e difusão nas ex-
posições nacionais e internacionais do que foi praticado por ele em
terras brasileiras.

Diferente da pintura, os critérios de julgamento da foto-


grafia nas exposições costumavam levar em conta, além
da “perfeição das provas”, a descoberta – ou ao menos a
prioridade na introdução - de novos processos, formatos
e materiais fotográficos, o que por um lado representava
um estímulo à pesquisa e experimentação e por outro
lado acabava convertendo os preceitos estéticos vigen-
tes no meio fotográfico em convenções que não chega-
vam a ter vida longa diante da intensidade e rapidez das
inovações. (TURAZZI, 2000, p. 27).

Uma das preocupações de Ferrez foi obter a visão de um


espaço alargado (horizontalmente) na fotografia. Após três anos de
pesquisa, mostrou, na Exposição de Filadélfia (1876), o resultado da
impressão de quatro clichés de 80 centímetros em um papel sem

77
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

emendas. Apesar do sucesso da fotografia panorâmica acontecer


na exposição de Filadélfia e Paris (1878), o fotógrafo comentou, em
seu caderno de anotações, que, “contudo [a panorâmica] tem o
defeito de não apresentar os objetos em seus verdadeiros planos e
nem guardar a perspectiva em sua precisão matemática, sendo mui
sensíveis as aberrações que contém” (TURAZZI, 2000 , p. 29). Então,
quando Ferrez retornou da França em 1878, ele aprimorou o aparelho
panorâmico inventado e construído por M. Brandon. O seu aparelho
funcionava “girando em um eixo de 120° a 190°, no tempo mínimo
de três e máximo de vinte minutos (dependendo da luz e da cena
fotografada)” (TURAZZI, 2000, p. 29). Esse aparato “[...] é sem con-
testação, o primeiro do mundo, pois que até hoje não fizeram vistas
fotográficas iguais às que ele produziu” (TURAZZI, 2000, p. 30).
Outro fotógrafo que se destacou na história da fotografia bra-
sileira com a produção de panorâmicas foi Valério Vieira. Em 1905, ele
fez uma grande exposição no salão Progredior e mostrou a primeira
panorâmica de São Paulo no tamanho onze metros por 143 centíme-
tros. A obra recebeu o prêmio Grand Prix por bater o record mundial
no tamanho da fotografia sem emendas no papel. O sucesso ocorreu
em 1922, quando ele montou um panorama de dezesseis metros por
vinte e dois metros para a Exposição do Centenário da Independên-
cia no Rio de Janeiro (BALADY, 2012, p. 114).
Esses fragmentos da história da produção de Marc Ferrez e
Valério Vieria mostram que a busca, os procedimentos e o aceite nos
modos de representar são construídos socialmente. Anne Cauque-
lin (2007, p.7) comenta que “atualmente se admite que a ideia de
paisagem e sua percepção dependem da apresentação que se fez
delas na pintura do Ocidente no século XV, que a paisagem só parece
natural ao preço de um artifício permanente”. Ela, também, observa
que a gramática da paisagem está relacionada à cultura grega que
apresentou a água, o fogo, o ar e a terra como elementos essenciais
da física natural.

78
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

Com os “quatro elementos” - o ar, a terra, a água, o


fogo - a tradição pré-socrática chegou até nós por meio
da doxa, portadora de imaginário. O mito, aqui, é po-
deroso. Devaneios em repouso, sonhos em nuvens, os
quatro adquirem direito de cidadania. Eles frequentam
nossos medos e nossas esperanças, e temos acerca
deles atitudes de crença milenares. O fogo é puro (com
o trocadilho etimológico entre o grego pyr, pyrós e o
latim purus) e, ao mesmo tempo, destruidor, guerreiro.
A água é ao mesmo tempo salvadora e imunda, a terra
é germe e túmulo, o céu é portador de tempestades e
luminoso, num a hora noite, noutra dia. Os quatro geram,
em consequência de si, vários atributos que valem
como substância, uma corte de lendas que simbolizam
atitudes. E como ocupam no espaço do mundo lugares
privilegiados, o alto e o baixo, o horizontal e a vertical,
eles vetorizam nossos comportamentos – a caminha-
da, a corrida, o vôo, o nado — e traçam círculos de
opostos com os quais devemos contar: o quente e o
frio a sombra e a claridade, o úmido e o seco. A força
de sua imagem, duplo para cada qual dentre eles, nos
leva muitas vezes a esquecer que há outros elementos:
a carne e o sangue, a pedra e o ferro, e alguns outros
mais sem nome em nossas línguas e sem representação
simbólicaa alguma. (CAUQUELIN, 2007, p. 143).

Essas observações impulsionaram a seleção de dois conjuntos


de produções de cenas urbanas feitas por Luiz Bianchi. Um deles é a
série de vistas que serviram para elaborar a paisagem panorâmica da
cidade de Ponta Grossa. A outra série de negativos mostra imagens
que documentam o evento do voo de Cícero Marques na cidade. Am-
bas estão ligadas às questões de representação do espaço urbano
de Ponta Grossa, entrelaçando indagações sobre os procedimentos
técnicos de produção e seus resultados visuais.
Assim, propõe-se tratar a imagem da cidade de Ponta Grossa
(figuras 01 e 02) e do evento do voo de Cícero Marques7 (figuras
03, 04, 05, 06 e 07), considerando algumas propriedades do objeto

7  O artigo 15 da lei 1395-A de 1913 apresenta o aviador Marques, brevetado na França,


como primeiro instrutor da Escola de Aviação da Força Pública de São Paulo (PEIXOTO, 2008).

79
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

único (negativo) (CAMERA; LIMA, 2018). Adicionalmente, a pesquisa


se debruçará em questões que são pertinentes ao caráter de sua
cópia fotográfica (BENJAMIN, 2000).

Figura 01: Imagem positiva do negativo mostra o processo de elaboração da paisagem


panorâmica de Ponta Grossa. Primeira década do século XX.
Fonte: Luiz Bianchi. Fundo Foto Bianchi. Casa da Memória Paraná.

80
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

Figura 02: Negativo de uma vista que compõe a montagem da figura 01. Primeira
década do século XX.
Fonte: Luiz Bianchi. Fundo Foto Bianchi. Casa da Memória Paraná.

Figura 03: Fotografia de Cícero Marques em Ponta Grossa. 19 de abril de 1914.


Fonte: Luiz Bianchi. Acervo fotográfico. Museu Campos Gerais.

81
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Figura 04: Fotografia do retrato de Cícero Marques em Ponta Grossa. 19 de abril de


1914.
Fonte: Luiz Bianchi. Acervo fotográfico. Museu Campos Gerais.

Figura 05: Imagem positiva do negativo do voo de Cícero Marques em Ponta Grossa.
19 de abril de 1914.
Fonte: Luiz Bianchi. Fundo Foto Bianchi. Casa da Memória Paraná.

82
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

Figura 06: Fotografia do voo de Cícero Marques em Ponta Grossa. 19 de abril de 1914.
Fonte: Luiz Bianchi. Acervo fotográfico. Museu Campos Gerais.

Figura 07: Imagem positiva do negativo do voo de Cícero Marques em Ponta Grossa.
19 de abril de 1914.
Fonte: Luiz Bianchi. Fundo Foto Bianchi. Casa da Memória Paraná.

83
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Dessa forma, apresentam-se os diferentes tipos de imagens,


associando-as às discussões sobre a técnica praticada e os modos
de representar a cidade de Ponta Grossa. Com essa abordagem, ten-
ta-se pensar a imagem fotográfica como sendo resultante de uma
construção social (CAMERA, 2013a). “Vilém Flusser no livro A filosofia
da caixa preta (1983) enfatiza a relação do fotógrafo com o aparelho
(câmera fotográfica). Alerta para a complexidade desta, uma vez que
o sistema da câmera é pré-determinado pela indústria das imagens”
(LUZ, 2006, p. 118).
Assim, nesta pesquisa, entende-se que o instrumento foto-
gráfico é uma caixa preta que deve ser desvendada e articulada com
as ações e intenções do fotógrafo, considerando os contextos de
produção e consumo. Como consequência, as fotografias de Ponta
Grossa são analisadas como um documento histórico, que está atre-
lado à ideia de uma imagem-acontecimento (POIVERT, 2002, 2009),
trazendo referências para indagar determinada narrativa. Além disso,
a sua difusão traz consigo elementos que monumentalizam o even-
to e/ou a própria imagem. Em outras palavras, interessa pensar as
proposições de Jacques Le Goff (1996) quando afirma que a foto-
grafia pode ser simultaneamente uma imagem-documento (índice) e
imagem-monumento (símbolo). Esses conceitos fornecem subsídios
para compreender que o registro e a difusão dessas imagens estão
associados a um processo de documentação, que busca determinar
a paisagem dessa cidade como sendo uma representação visual
simbólica ou, ainda, um monumento.

Luiz Bianchi: um produtor de imagens

A existência e o acesso a um acervo ou fundo constituído pre-


dominantemente por negativos em suporte de vidro é raro no Brasil,
quando comparado aos que são formados por cópias fotográficas e /
ou negativos em rolo de filme. Patricia Camera (2018, p. 1) elencou as
coleções do Instituto Moreira Salles, a Coleção Dona Thereza Christina

84
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

Maria na Biblioteca Nacional e a Coleção Militão Augusto de Azevedo


no Museu Paulista da Universidade de São Paulo como alguns dos
exemplos. Ademais, ampliando o cenário brasileiro, encontra-se a
Coleção Francisco Rodrigues, da Fundação Joaquim Nabuco no Recife
(Pernambuco). Ao sul, localiza-se a coleção Guilherme Glück, no Mu-
seu da Imagem e do Som e a de Arthur Wischral, na Casa da Memória,
ambas em Curitiba (Paraná). Rumo ao interior, encontra-se a coleção
do Museu Antropológico Diretor Pestana (MADP), em Ijuí (Rio Grande
do Sul), e o Fundo Foto Bianchi em Ponta Grossa (Paraná). Este último
merece destaque pela sua grandiosidade física e temática, resultante
dos trabalhos exercidos pelos fotógrafos Luiz Bianchi, Rauly Bianchi
(filho) e Raul Bianchi (neto), a partir do início do século XX.
A produção dessas três gerações da família Bianchi pode ser
encontrada na Casa da Memória Paraná, localizada em Ponta Grossa.
O Fundo Foto Bianchi conta com aproximadamente 45 mil negativos,
cadernos de controle de serviços e caixas de negativos, além de
alguns objetos, instaurando questões e percepções sobre esse tipo
de documento visual.
Para compreender sobre a práxis fotográfica de Luiz Bianchi é
interessante pontuar alguns conhecimentos sobre as formas como
ele atuou, indicando o perfil de sua formação, o local e período de
trabalho, sua clientela e rede de sociabilidades, além dos produtos
ofertados aos clientes, assim como os equipamentos e processos
fotográficos utilizados. Para isso, uma das fontes consultadas foi o
projeto “Fotógrafos Pioneiros do Paraná”, desenvolvido pela Fun-
dação Cultural de Curitiba e MEC-FUNARTE (Escritório Regional de
Curitiba), tendo a pesquisadora Roseli Terezinha Boschilia (1982)
como coordenadora técnica.
A principal entrevista analisada é a conversa do filho de Luiz,
Rauly Bianchi, com o entrevistador e pesquisador Loreno Luiz Zatel
Hagedorn, que ocorreu no dia 03 de novembro de 1982. No docu-
mento, localizado na Casa da Memória de Curitiba, verificou-se que
Luiz Pedro Bianchi nasceu na Argentina e faleceu aos 66 anos em

85
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

1943 com o diagnóstico de isquemia. No jornal Diário dos Campos,


Dropa (2002) explica que Luiz era filho dos italianos Carolina e Carlos
Bianchi. “Seu pai era dono de uma fábrica de portas (entalhes) e de
um jornal, e começou a se dedicar à fotografia, o que levou o filho
Luiz a aprender o ofício fotográfico desde cedo”. No entanto, segundo
conta Rauly Bianchi na entrevista feita por Loreno Hagedorn para o
projeto Fotógrafos Pioneiros do Paraná (BOSCHILIA,1982), seu pai
aprendeu as técnicas no exército. Leandro (1996, p. 4) completa que
“Luis aprendeu o ofício da fotografia em Buenos Aires. Ali permane-
ceu até cumprir suas obrigações com o exército, quando engajou-se
(muito provavelmente como fotógrafo) em um navio Mercadante
inglês”. No mesmo documento, Leandro explica que Luiz trabalhou
entre 1906 e 1907 com um fotógrafo alemão na Lapa (Paraná). Em
1909, retornou à Lapa e permaneceu durante um mês e meio nesta
cidade para ajudar o fotógrafo que havia adoecido. “Sabemos que
entre 1904 e início de 1905 ele produziu algumas imagens já na região
dos Campos Gerais” (LEANDRO, 1996, p. 4). Mais tarde, uma de suas
itinerâncias é constatada no anúncio publicado no jornal curitibano
A República, em setembro de 1908 (S/ AUTOR, 1908), que noticia
sobre o exercício de suas habilidades artísticas como fotógrafo em
Palmeira. A figura 08 comprova a sua atuação, pois mostra um ne-
gativo da vista daquela cidade, acompanhada de sua assinatura LB
(Luiz Bianchi) e com a legenda “Palmeira 1908 – Paraná”. Uma breve
leitura dessa paisagem indica a parte central da cidade, com sua
igreja e alguns poucos sobrados, que já eram disputados em 1907
pela comunidade. Na revista O Olho da Rua (1907, p. 22), lê-se um
diálogo onde são problematizados os usos e as funções do “sobrado
do largo”, incorporando-o à discussão simbólica de uma cidade que
valoriza a cultura (figura 09).

86
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

Figura 08: Negativo da paisagem de Palmeira (PR) em 1908.


Fonte: Luiz Bianchi. Fundo Foto Bianchi. Casa da Memória Paraná.

87
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Figura 09: Recorte da revista O Olha da Rua em 08 de julho de 1907.


Fonte: Fundação Biblioteca Nacional8.

Dentre outras informações levantadas na entrevista dada por


Rauly, ele conta que Luiz buscou alternativas de trabalho na Lapa
plantando batata e cebola. Neste mesmo projeto (BOSCHILIA, 1982),
encontra-se a entrevista feita com o fotógrafo Guilherme Glück.
Esse fotógrafo relembra que, ainda quando criança, Luiz retratou a
sua família no interior da Lapa. Além disso, ele cita que o fotógrafo
praticava a fotografia registrando o vento (céu), enquanto trabalhava
como agricultor na fazenda de Arthur Suplicy, fundada em 1838. De
fato, alguns negativos de vidro foram encontrados no Fundo Foto
Bianchi que mostram as nuvens e os registros da Casa Lacerda9.

8  http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=240818&pasta=ano
%20190&pesq=theatro&pagfis=128
9  Construída entre 1842 e 1845, funcionou durante a Revolução Federalista (1894) como
quartel da Segunda Brigada e, neste local foi assinada a Ata de Capitulação da Lapa (http://
www.turismo.pr.gov.br).

88
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

Dessas informações, é possível supor que Luiz fotografava


na região da Lapa para complementar a renda que obtinha como
agricultor, não possuindo um ateliê fixo na cidade. No entanto, o que
chama atenção é a produção de fotografias das nuvens. Uma ação
que pode ser compreendida como um hobby e que talvez tivesse
uma repercussão maior em outra cidade e período. Essa atribuição
é tomada com base na história da fotografia, pois esse tipo de re-
gistro aproxima-se da proposta de fotografias de nuvens iniciada
em 1922 pelo fotógrafo norte-americano Alfred Stieglitz (1864-1946).
Uma produção que deve ser contextualizada. A princípio, a captura
fotográfica prevalecendo as nuvens na composição parece ser uma
expressão banal quando analisada na contemporaneidade. No en-
tanto, quando contextualizada, ela promove algumas relações entre a
arte e a filosofia da imagem. Isso pode ser analisado quando Luciana
Swarowsky explica sobre o ato fotográfico de Stieglitz e suas reper-
cussões na história da fotografia:

Valorizando as características do meio, a partir de 1922 o


artista realiza a série fotográfica intitulada Equivalentes.
Consideradas as primeiras fotografias abstratas já feitas,
as suas imagens de nuvens - carregadas de símbolos e
significados, segundo Krauss, “postulam a ausência de
fundamento da composição, exatamente como um rea-
dymade de Duchamp”. Realizada entre 1922 e 1931, a série
de Stieglitz é, segundo Dubois, o “recorte no estado puro”
ou, conforme Krauss, “imagens arrancadas com cortador
do tecido contínuo da extensão do céu”. Utilizando-se
apenas da técnica de recorte, Stieglitz extraiu da na-
tureza a sua abstração pura e, assim, transformou em
diferentes mensagens a mistura de claro e escuro das
nuvens. Estas, enquanto traço do real (enquanto massa
de vapor suspensa na atmosfera), uma vez desprovidas
de um sentido de orientação que conforte o nosso olhar
e que, as conecte com as nossas relações de mundo
(neste caso o chão) e, ainda, distantes de sua horizon-
talidade, passam a abandonar o seu valor de significação
primário, de mímeses do real, e tornam-se impressões
diversas. (SWAROWSKY, 2012, p. 831).

89
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Tal observação é singular, porque localiza a produção de Luiz


e ainda aponta algumas considerações sobre a leitura do espaço
fotográfico:

• A prova de que Luiz Bianchi fotografava o céu com as


nuvens na cidade da Lapa, no ano de 1909 (ou anterior a
isso), indica que o fotógrafo tinha uma percepção aguçada
sobre as diferentes possibilidades de representação.
• Essa prática foi exercida por Luiz Bianchi, antes de Alfred
Stieglitz, em um local desprovido de uma recepção para o
julgamento artístico. Dessa forma, sua atitude foi isolada,
ou seja, sem a oportunidade de desmembrar análises por
parte do universo artístico10.
• Outro aspecto interessante é pensar sobre o enquadra-
mento que pode ser feito para fotografar as nuvens. Dentre
eles, existe a possibilidade de escolher em registrar o hori-
zonte. Como consequência, observa-se a linha que delimita
o solo. Nessa opção, determina-se a representação de um
local específico, indicando uma cidade, um campo etc. Por
outro lado, caso a escolha do enquadramento seja para
excluir a linha do horizonte, tem-se a representação de um
espaço genérico. Então, a ação de fotografar a nuvem e a
sua tradução imagética tornam-se o foco da análise.

Dessas observações, conclui-se que a postura do fotógrafo


para elaborar o espaço fotográfico é fundamental para determinar qual
é esse local na paisagem representada. Além disso, salienta-se que a
leitura da imagem pode ser tratada entre documento e arte (ROUILLÉ,
2009). Essa discussão é pertinente para compreender a fotografia
(figura 05) que compõe parte da série de postais sobre o voo de Cí-
cero Marques em Ponta Grossa (figuras 03 até 07). O acontecimento

10  Basta lembrar que, mesmo adiante, a Semana de Arte Moderna de 1922, no Brasil,
desconsiderou a fotografia nesse processo de “atualização” das artes.

90
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

ocorreu em 19 de abril de 1914, conforme publicado no dia seguinte no


jornal Diário dos Campos. Ao mesmo tempo em que ele documenta o
evento na cidade, traz relações estéticas de uma expressão inovadora,
dominando as dificuldades técnicas do instantâneo fotográfico e do
enquadramento feito com uma câmera de grande formato. O resultado
é uma paisagem que busca a representação simbólica de uma cidade
que se mostra integrada aos avanços tecnológicos do transporte aé-
reo (figuras 06 e 07). O consumo dessas imagens provoca a sensação
de pertencimento àquele momento, mesmo que a pessoa não tenha
estado presente no dia do evento.
Ainda que o conjunto de negativos de imagens com nuvens
ou os negativos do avião chame atenção, o trajeto de Luiz para Ponta
Grossa e sua permanência na cidade interessa para as próximas
análises. Primeiro, é importante apresentar que quando Luiz decidiu
permanecer em Ponta Grossa, já existia um circuito profissional que
foi se fortalecendo junto com o desenvolvimento da cidade. Entre
os principais nomes, figuravam Frederico Lange, José Weiss, José
Ruhland, Miguel e Anna Herdage, assim como outros fotógrafos que
passaram pela cidade.
Nas entrevistas dadas ao projeto Fotógrafos Pioneiros do Pa-
raná (1982), Rauly e Gluck comentam que o fotógrafo permaneceu na
Lapa até iniciar os serviços para a São Paulo Railway. Os serviços para
a companhia são verificados no conjunto de negativos e algumas
anotações que aparecem somente no caderno de clientes de 1913.
Dentre as cidades anotadas no caderno, estão Jaguariahyva, Rio Ne-
gro, Porto União, Três Barras, Linha São Francisco e Estação Serrinha
(Serra). Alguns dos negativos observados possuem uma legenda do
local, indicando o uso documental e possivelmente comercial como
cartão-postal (figura 10). Outros apresentam uma inscrição numérica
no canto do negativo, mas grande parte das imagens referentes à
paisagem ou à construção da estrada de ferro não tem uma identi-
ficação exata nos cadernos. Isso indica uma possível existência de
outra lista ou caderno sobre as paisagens feitas especificamente
para a companhia férrea.

91
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Apesar dos negativos sobre a ferrovia estarem vinculados ao


segundo caderno de registro dos serviços de 1913 até 1916, a valida-
ção da instalação definitiva de Luiz em Ponta Grossa é inexata. Se-
gundo informações dadas por Rauly Bianchi (BOSCHILIA,1982) e Raul
Bianchi (NETTO, 2001), o fotógrafo fixou-se na cidade após casar-se
com Maria Thomenn (cujo apelido era Mike). Na coluna Sociedade do
jornal curitibano A Republica, de 28 de outubro de 1909 (S/ AUTOR,
1909), consta o anúncio dessa união. No entanto, seu neto Raul (NET-
TO, 2001) conta que os serviços em Ponta Grossa tiveram início em
1904. Contudo, a fotografia mais antiga que foi catalogada no Fundo
Foto Bianchi mostra a legenda “Collocação da primeira pedra para o
edificio da Santa Casa de Misericórdia em Ponta Grossa 31-7-907”.
Já o alvará de seu ateliê foi feito em dezembro de 1913. Dessa retros-
pectiva, é possível observar que Luiz esteve presente já nos primeiros
anos do século XX em Ponta Grossa, desenvolvendo trabalhos que
documentam visualmente a paisagem da região e tratam de temas
diversificados (cidade, ferrovia, natureza etc.).

Figura 10: Imagem positiva do negativo do registro fotográfico da divisa entre Paraná
e Santa Catariana.
Fonte: Luiz Bianchi. Fundo Foto Bianchi. Casa da Memória Paraná.

92
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

Os jornais da cidade também indicam que Luiz colaborava


com a sua esposa em uma loja de armarinhos. O primeiro anúncio
dessa parceria é comprovado na publicidade veiculada no jornal Diá-
rio dos Campos, do dia 14 de dezembro de 1909 (THOMMEN & BIAN-
CHI, 1909). Adiante, esses anúncios repetem-se, colocando a loja em
evidência. No entanto, um estudo detalhado sobre a inserção de Luiz
nas redes sociais de Ponta Grossa aparece diretamente relacionada
à profissão de fotógrafo.

Interessante notar que o prefeito Theodoro Rosas está


entre os clientes. Seu retrato foi feito em 15-12-1912. Isto
significa que foi retratado três meses depois de sua pos-
se na Prefeitura de Ponta Grossa, representando o Parti-
do Republicano Liberal. Durante seu exercício, contraiu
empréstimo para a construção de rede de água e esgoto.
Em 1913, inaugurou a Santa Casa de Misericórdia, que já
havia sido fotografada em 1907 por Luis Bianchi, quando
da colocação da primeira pedra fundamental. Após dois
anos de existência, o estúdio se estabilizou. Assim, o
proprietário seguiu uma solicitação à Prefeitura de Ponta
Grossa para a abertura do Athelier Photographico em
1913 (CAMERA, 2013b, p. 5)

Ao mesmo tempo em que atuou em Ponta Grossa, sua proje-


ção fora dela pode ser verificada no pequeno informativo do jornal
O Progresso, de 08 de junho de 1912, quando é anunciado que Luiz
atende a chamados em qualquer parte do estado. Essa informação
corresponde para alguns negativos e anotações encontradas no
primeiro caderno (1911-1912), que mostram conexões com outras ci-
dades do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A figura 11 é sim-
bólica, pois mostra a ponte de ferro no Rio Uruguai, que foi construída
no lugar da primeira obra. A ponte anterior foi feita de madeira e foi
destruída por uma enchente. Essa construção de ferro está localizada
entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, ou seja, na
região do Contestado.

93
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Figura 11: Imagem positiva do negativo do rio Uruguai e sua ponte de ferro, c. 1913.
Fonte: Luiz Bianchi. Fundo Foto Bianchi. Casa da Memória Paraná.

Apesar de suas atividades profissionais, consta, na reportagem


escrita por Dropa (2002), que, “em 1917, Bianchi resolveu emigrar para
a Inglaterra, mas seus amigos Francisco Búrzio e João Milasch con-
venceram-no a permanecer na cidade”11. Com o passar dos anos, os
serviços cresceram e o ateliê mudou quatro vezes de endereço, loca-
lizados sempre em lugares estratégicos da cidade. Primeiro, em frente
à estação ferroviária em Ponta Grossa (Estação Saudade). Segundo, na
Rua XV de Novembro, esquina com a Rua das Tropas (atual Rua Augus-
to Ribas), depois, na Rua XV de Novembro, antigo n° 7, logo em frente à
Casa Romano e ao lado do Banco Francês e Italiano e, por último, com
sede própria a partir de 1940, na Rua Sete de Setembro, 592.
A consolidação do Foto Bianchi na cidade foi acompanhada
pelo crescimento urbano. Ponta Grossa foi impulsionada, entre 1908
e 1910, pela construção da linha Sul da EFSPRG, sendo, desde 1907,
incorporada à Brazil Railway Company (ESPIG, 2008).

11  Sobre o médico Francisco Búrzio e o farmacêutico João Von Milasch ver a tese de
doutorado “Manifestações autoritárias. O integralismo nos Campos Gerais (1932-1955)” de
autoria de Carmencita de Holleben Ditzel (2004).

94
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

Neste contexto Luis participou como fotógrafo de Ponta


Grossa, uma “cidade encruzilhada”, conforme nomeada
pelo escritor pontagrossese Eno Theodoro Wanke em
“O voo da pombinha” (1964). Uma justa colocação, se
observado que as chapas de vidro registraram um trecho
férreo de grande excelência para a economia nacional e
internacional de erva-mate e madeira e que a cidade foi
sede de dois importantes entroncamentos da estrada de
ferro. Com esta singularidade, a cidade passou a exibir
visualmente algumas particularidades. Por exemplo, Luis
fotografou o desmatamento das matas com Araucária
e a indústria madeireira, que devido sua função possui
características nômades. Ele retratou a construção da
estrada de ferro São Paulo – Rio Grande com destaque
para a nova ponte do Rio Iguaçu que deixou de ser de
madeira e foi elaborada em ferro, após ser destruída por
uma enchente. Fotografou em estúdio as famílias po-
lonesas, russas-alemãs e holandesas que vieram habitar
as regiões próximas da estrada de ferro. Documentou a
urbanização da cidade, mostrando suas principais edi-
ficações: o Banco Francês-Italiano, o Instituto do Mate,
a Empresa Telefônica e a Santa Casa da Misericórdia.
No ambiente cultural e no ramo comercial a ação do
fotógrafo expôs algumas formas de sociabilidades como
os retratos festivos do Clube Literário e das bandas
marciais e de jazz, divulgou a fachada de importantes
lojas do período como a Casa Romano e documentou a
concentração dos ponta-grossenses que observavam
a aterrissagem do aviador Marques. Neste cenário de
transformações urbanas, alguns dados são relevantes
para legitimar esta cidade como sendo a segunda de
maior importância do Paraná para a época (CAMERA,
2013a, p. 3).

Para fazer as fotografias, Luiz utilizava uma câmera de origem


alemã e outra italiana, com um chassi que comportava negativos de
tamanho máximo de 18 x 24 centímetros ou tamanhos menores. Essas
informações mostram especificidades sobre a construção do espaço
fotográfico, pois a sua constituição é baseada nas possibilidades de
cada equipamento e produto. Disto, pode-se pontuar que a câmera
de grande formato possibilita construir cenas específicas, achatan-

95
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

do os planos na imagem e distorcendo ou emparelhando algumas


linhas verticais, horizontais e diagonais. Ademais, a grande área do
negativo facilita aplicar a técnica do retoque e fazer a inscrição de
legendas nos negativos. Todos esses detalhes são importantes, pois
cada fotógrafo vivencia realidades diferentes, cada qual busca agir
de acordo com o seu conhecimento e disponibilidade técnica com
o objetivo de efetivar a representação de determinado local. Isso é
notável quando se reflete sobre a produção da paisagem panorâmi-
ca feita por Marc Ferrez, Valério Vieira e Luiz Bianchi. Dos exemplos
apresentados, observa-se que existem duas formas de construir um
panorama. Utilizando as palavras de Dubois (2005, p. 215),

Parece-me que se podem distinguir, esquematicamente,


dois grandes tipos de panorama fotográfico (e vários
subtipos): de um lado, os panoramas no sentido estrito
(tipo I), isto é, oferecendo uma vista panorâmica numa
única imagem (realizada numa só tomada); de outro lado,
os panoramas no sentido amplo - se assim se pode falar
- (tipo II), isto é, obtidos por meio de montagem de várias
vistas (cada uma destas mais ou menos convencional),
de modo a poder reconstituir a continuidade espacial de
um campo estendido.

Desse modo, pode-se concluir que a fotografia é um tipo


de imagem que ajuda a ler a paisagem. A exploração dos limites e
transgressões desse tipo de representação é evidente quando se
aplica o uso da montagem de vários negativos para obter uma única
paisagem panorâmica. As diferenças entre o que o olho vê e o que a
imagem mostra é irrefutável.

A escrita da paisagem: o caso da montagem de vistas urbanas


e a série de cartões-postais do voo de Cícero Marques

Dessa explanação, pontua-se que Luiz Bianchi estava agindo


profissionalmente dentro das perspectivas de sua época, isto é, foto-
grafando as transformações urbanas, econômicas e sociais, indicando

96
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

as expressões humanas sobre a natureza, como, por exemplo, fazen-


do o registro do voo de Cícero Marques, das construções da estrada
de ferro, das ampliações das cidades que procurava adequar-se às
suas carências, culturas e relevos. Algumas representações seguem
uma narrativa composta por séries de cartões-postais ou cartões
de visitas. Outras são apresentadas por um olhar “mágico” como no
caso da fotografia panorâmica.
Disso importa tratar a gramática fotográfica sobre a paisagem.
O objeto negativo é raro e importante por mostrar uma etapa do pro-
cedimento da elaboração da fotografia panorâmica (figuras 01 e 02).
O negativo não é a imagem que circula na sociedade, mas é aquela
que possibilita obter a cópia final para a fotografia ser comercializada.
Assim, entende-se que o negativo expõe especificidades próprias e
que aponta questões pertinentes ao fazer fotográfico (CAMERA; LIMA,
2018). Adicionalmente, a sua leitura pode ser feita com base em al-
gumas orientações elaboradas por Ana Maria Mauad (2004, p.19-36).
Dessa forma, a interpretação da imagem panorâmica, ela-
borada por Luiz Bianchi, passa pela percepção de que o espaço
fotográfico é a soma do recorte espacial de três vistas consecutivas
(figura 01). Para obter esse resultado, o fotógrafo observou e regis-
trou a natureza de cada espaço de forma individualizada, tomando o
cuidado de manter um padrão homogêneo de sua visualidade (tons,
luz, profundidade, foco, enquadramento, etc). Com a sua reorgani-
zação, lado a lado, obteve-se uma única paisagem alargada em sua
dimensão linear (horizontal). A alta qualidade da fotografia mostra a
experiência do fotógrafo em fazer a fotometragem para cada negativo.
Adicionalmente, Luiz conta com o conhecimento do uso adequado
para os tempos de revelação do negativo e do papel, garantindo a
linearidade do espaço construído, como se tivesse realizado uma
única captura dessa cena. A reprodução desse conjunto, ou seja, da
imagem resultante dessa montagem, acompanhada por criteriosos
procedimentos laboratoriais, é o que garante o êxito da escrita da

97
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

paisagem fotográfica. Caso contrário, ela poderia ser vista como uma
grande aberração.
A escolha de construir especificamente a paisagem desse
local provavelmente deu-se com base no conhecimento selecionado
da vista documentada por Frederico Lange em 1901 (figura 12). A com-
posição visual dessa panorâmica busca representações simbólicas
da cidade, mostrando a igreja, as casas e as ruas principais. Contudo,
a fotografia feita por Lange mostra uma cidade onde predomina a
ausência de pessoas, transporte, pavimentação e iluminação pública.
Assim sendo, a fotografia de Bianchi seria como uma busca para
traçar a trajetória das mudanças da cidade. Os atributos visuais da
paisagem parecem encaixar-se harmoniosamente nas duas pro-
duções. O espaço da figuração em ambas exibe a perspectiva das
ruas, a igreja ao alto, exibindo uma hierarquia de forças das figuras
natureza, cidade e sujeitos. Tudo parece obedecer ao contorno do
relevo. Ainda, na fotografia feita por Bianchi, o espaço de vivência
indica como são os modos de pertencer a essa cidade. A fotografia
toca o imaginário sobre o andar e descer pelas ruas, o ser visto pelos
vizinhos através das cercas, os modos de viver nas casas de madeira.
Tudo isso ultrapassa a percepção do visível.
Por fim, o que chama atenção, na fotografia que mostra o
processo de construção da vista panorâmica (figura 01), é o espaço
extra-fotográfico, definido como sendo “o que é visto no negativo e
que provavelmente não foi mostrado no produto final (CAMERA; LIMA,
2018). Neste caso, ele é constituído pela parede de madeira e pelas
tachinhas que unem as três fotografias para obter um único espaço
fotográfico. Então, o valor do negativo é surpreendente quando pen-
sando sob a perspectiva de ofertar essas informações, denunciando
explicitamente o processo de montagem.
Nessa análise, é importante considerar o próprio ato fotográfi-
co. A atitude de fazer uma panorâmica coloca em evidência a própria
perspectiva moderna de fazê-la, mas, sobretudo, de difundir essa
imagem. Mesmo que o método não seja tão glamoroso, eficiente ou

98
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

tecnológico, como o que foi praticado por Marc Ferrez, a satisfação


de ter ou de presentear alguém com o cartão-postal da panorâmica
de Ponta Grossa já se conforma em uma atitude moderna, confluindo
com os costumes da época.

Figura 12: Fotografia panorâmica de Ponta Grossa feita por Frederico Lange em 1901.
Fonte: Acervo Foto Elite. Museu Campos Gerais.

A paisagem em formato de cartão-postal é um objeto foto-


gráfico de afirmação simbólica, moderna, que narra sobre a cidade.
Neste caso, ela contempla uma narrativa de continuidade do que
foi mostrado por Frederico Lange em 1901. Ela é um documento do
discurso visual da cidade e integra-se à esfera da história das repre-
sentações de grandes cidades. Neste caso, a fotografia é um relato
visual de que as crianças seguem a rua abençoada pela catedral. Uma
cidade que se mostra ordenada ao relevo ou, ainda, que se funde
à ordem natural. A cidade continua pacata, apesar do crescimento
ordenado das residências. Por fim, ela é uma imagem que explicita
a artificialidade de sua constituição. Somente com o contato desse
documento visual (negativo) é que se tornou possível visualizar os
procedimentos executados anteriores à sua comercialização (figura
01). Ter acesso a esse negativo é pensar que ele pode ser nomeado

99
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

como um pré-cinema. Em uma suposta movimentação linear des-


sas três vistas, obtém-se uma imagem fílmica. Essa imagem mostra
um espaço artificial que não perde sua configuração como cidade
e aponta significados simbólicos próprios a ela como, por exemplo,
uma imagem moderna no sentido de sua visualidade (panorâmica),
mas não sendo em seu caráter técnico (modos de fazer).
Assim como essa narrativa “fílmica” está presente na história
visual da paisagem de Ponta Grossa, a narrativa das legendas foto-
gráficas nos cartões-postais acompanha as notícias atuais no jornal
da cidade. No Diário dos Campos, em 20 de abril de 1914 (figura 13),
encontra-se a principal reportagem do dia, comunicando os frag-
mentos do acontecimento do dia anterior:

O vôo de Cícero Marques, ontheim, no prado “Campos


Geraes”, foi um verdadeiro assombro. O movimento do
povo – A chegada do aviador – Os preparativos – Porque
demorou a ascenção – O policiamento mal feito – Um
castigo... de pó… – A ascenção – A descenção – Ac-
clamações do povo – O Triumpho do, aviador – Outras
notas” [sic].

Figura 13: Reportagem sobre o voo de Cícero Marques em Ponta Grossa.


Fonte: Diário dos Campos, 20 de abril de 1914. Casa da Memória Paraná.

100
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

No caso da série de postais (figuras 03 até 07), o fotógrafo


busca contar uma história, prevalecendo à junção de momentos des-
se evento. Esse tipo de documento visual é importante, pois oferece
elementos únicos, visuais, que são complementares à reportagem do
jornal. A análise dessa série sugere a interpretação de que, em cada
imagem, o protagonista é a máquina voadora. No caso do jornal e das
legendas, Cícero Marques é o ator principal. Os momentos documen-
tados por Luiz Bianchi comportam uma narrativa lógica, apesar dos
registros serem avulsos. Uma montagem em um único cartão postal
poderia ter sido feita, seguindo o raciocínio: preparativos para o voo;
o aviador pronto para voar; o momento em que o avião destaca-se
no céu; o final do voo e, finalmente, as pessoas admirando o avião.
É interessante notar que, tanto na fotografia panorâmica
quanto na série dos postais de Cícero Marques, a ferrovia não apa-
rece na constituição da paisagem. Assim, essas produções buscam
valorizar a cidade distanciando-se das tradicionais representações
simbólicas, que é a cultura tropeira, a instalação ou o uso da ferrovia
na cidade. Então, para esses dois casos, a monumentalização da
cidade não está focada no transporte ferroviário, mas na representa-
ção da religiosidade, em que o símbolo é a igreja localizada no topo
do relevo. Da mesma forma, Ponta Grossa não está representada nas
edificações das estações de trem (conhecidas atualmente como
Estação Paraná e Estação Saudade), mas em uma paisagem marcada
pela atuação do famoso aviador Cícero Marques.
Essas fotografias constroem narrativas sobre a modernida-
de, sendo a fotografia panorâmica sustentada pela importância de
incluir-se no circuito desse tipo de produção e representação. Já
os postais seguem a proposta de difundir a cidade como lócus de
marcantes eventos que proclamam os avanços da época.
A discrepância dessas representações está na prova de que
Luiz Bianchi não possuía um equipamento moderno. Ele teve que ex-
plorar seus conhecimentos fotográficos e laboratoriais para garantir
a qualidade da montagem da paisagem. No caso dos postais sobre o

101
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

evento do voo, que aglutinou quase três mil pessoas, os jornais rela-
taram situações que ferem à lógica de uma cidade moderna e ideal.
Na reportagem, consta a ocorrência de algumas atitudes indesejáveis
como a falta de colaboração para distanciar-se do avião na hora do
voo, a presença de pessoas que não tinham ingresso e o caso de um
furto acompanhado pela falta de policiamento no local.
A panorâmica estudada tem sua valorização no sentido de
mostrar que apesar das dificuldades de execução, por falta de uma
tecnologia avançada, o fotógrafo produziu uma imagem dentro dos
moldes de representação que eram desejados na época. Uma paisa-
gem que buscava explorar o relevo e as suas inserções culturais, que,
para este caso, prevaleceu a representação da religiosidade local.
Além do mais, uma vista já explorada por Frederico Langue, propondo,
assim, um documento visual que possibilita verificar as modificações
da cidade.
No caso da produção dos postais, a especificidade em si
de sua reprodutibilidade promove a repetição de sua visualização.
Esse ato fortalece o estatuto da imagem e de seu conteúdo (a ci-
dade como lócus de um evento moderno). Os postais individuais e
em conjunto tornam viável tratar o acontecimento como sendo um
evento histórico que monumentaliza a cidade de Ponta Grossa.
Por fim, esta pesquisa pode ser localizada para dialogar com a
proposta de Cosgrove (2004, p.111) quando escreve:

A Geografia Humana estuda a repartição dos homens, de


suas atividades e de suas obras na superfície da terra, e
tenta explica-la pela maneira como os grupos se inserem
no ambiente, o exploram e transformam; o geógrafo de-
bruça-se sobre os laços que os indivíduos tecem entre
si, sobre a maneira como instituem a sociedade, como a
organizam e como identificam ao território ao qual vivem
ou com o qual sonham.

Dessa forma, a experiência do (in)visível, “ver” e “ser” notado


“na” e “pela” paisagem está atrelada às referências sobre o fazer

102
ENXERTOS SOBRE A GRAMÁTICA FOTOGRÁFICA DE PAISAGENS

fotográfico e na importância de difundir a representação visual de


determinada paisagem. Assim, pode-se pontuar que a construção
da paisagem tramita entre o real e o imaginado. Em seu âmago, o
valor da paisagem fotográfica está inculcado na leitura da gramática
visual, que deve considerar seus limites, apropriações, negações e
extrapolações investigadas em conjunto com outros documentos
(visuais, verbais, escritos).

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FRONTEIRAS DA PAISAGEM

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106
AS ÁGUAS DA MONTANHA
NA PINTURA DE PAISAGEM 1

Camilla Carpanezzi La Pastina

Introdução

Este artigo trata do processo de criação de pinturas e de-


senhos resultantes de reflexões sobre os conceitos de pintura de
paisagem no Oriente e no Ocidente. O foco principal recai sobre a
concepção original da paisagem na China, shanshui, que significa li-
teralmente “as águas da montanha”. A pesquisa estrutura-se na linha
de poéticas visuais, na qual a artista-pesquisadora confronta teoria
e prática. Assim, serão abordadas pinturas de diversos artistas que
embasam a minha própria produção.
A experiência da montanha fez parte de minha vida há al-
guns anos e deu-lhe um significado singular2. Assim, essa vivência
passou a fazer parte de minha produção artística, ora aparecendo
como assunto dos trabalhos, ora como a própria matéria utilizada
(pigmentos naturais).
Ainda estudante na Escola de Belas Artes, minhas primeiras
produções pictóricas traziam visões da montanha e da névoa encon-
trada na Serra do Mar paranaense. As pinturas chinesas já estavam
na origem das minhas referências, pois tinha conhecimento sobre as
antigas filosofias chinesas por meio do livro I Ching e da prática de
Tai Chi Chuan.

1  Parte deste texto foi apresentada no 28º Encontro Nacional da ANPAP, Goiás, 2019.
2  Neste texto utilizo tanto a primeira pessoa do singular quanto a primeira pessoa do
plural. Isso se deve ao fato do texto conter momentos em que a redação é pessoal, referindo-se
às minhas memórias e ao meu trabalho artístico, e outros em que refere-se à história da arte
em geral.

107
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Embora tivesse também referências da história da arte oci-


dental, as quais persistem até hoje, era diante das paisagens orientais
que eu encontrava as maiores similaridades com meus propósitos: a
neblina, a monocromia, a valorização dos espaços vazios. Portanto,
muitas características encontradas nas antigas pinturas chinesas e
japonesas são recorrentes em minha própria produção artística.
Posteriormente, vim a conhecer o trabalho de Joseph Mallord
William Turner, pintor inglês do período romântico que pintava paisa-
gens etéreas, quase abstratas. Assim, essas duas referências (pintura
chinesa e William Turner) serão trabalhadas neste texto em diálogo
com o espaço físico observado, mais especificamente as montanhas
do Paraná.
É importante situar geograficamente o local de minhas inspi-
rações. “A paisagem é caracterizada por montanhas isoladas e rios
em vales profundos. O relevo é acidentado, com escarpas que, por
serem paralelas à costa do Oceano Atlântico, recebem o nome de
Serra do Mar” (RESERVAS, 2020). A fotografia, que segue (figura 01),
foi tomada no cume da montanha Itapiroca, na Serra do Ibitiraquire/
PR. À esquerda, vê-se o Pico Paraná, a montanha mais alta do estado,
e, no fundo, à direita, o oceano.

108
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

Figura 01: Serra do Mar paranaense, vista do cume do morro Itapiroca.


Fonte: arquivo pessoal.

A Serra do Mar paranaense é coberta pela Mata Atlântica, a


floresta de maior biodiversidade do mundo. No Brasil, restam apenas
7% da sua cobertura original (RESERVAS, 2020). O trecho contínuo
mais preservado do país vai de Peruíbe (São Paulo) até a Baía de
Paranaguá (Paraná). São 25 áreas protegidas que, juntas, formam as
“Reservas de Mata Atlântica do Sudeste”, o último trecho conservado
de Mata Atlântica do Brasil, declarado Patrimônio Natural da Humani-
dade, em 1999 (MATA ATLÂNTICA, 2020).
Outra característica que merece destaque é a umidade típica
da Floresta Atlântica, que cria cenários com neblina, o que nos remete
também às paisagens orientais. Ocorre que as montanhas funcionam
como barreiras para as nuvens formadas pelas águas do oceano,
assim, é comum encontrarmos neblina na montanha no fim da tarde,
como se observa na figura 02.

109
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Figura 02: Nuvens/ neblina na montanha.


Fonte: arquivo pessoal.

A neblina possui a capacidade de velar e desvelar imagens


com uma rapidez impressionante. No cume de uma montanha, a
visão torna-se ampliada, quilômetros de horizonte descortinam-se
ao nosso olhar em todas as direções (360 graus) e também para
o alto em direção à abóbada celeste. Em segundos, vem a neblina
e não se enxerga nada além de um plano branco rente aos olhos. A
neblina possui ainda a capacidade de velar as cores, deixando-as
mais apagadas ou dessaturadas.
A concepção de paisagem na China surge imbricada aos prin-
cípios taoístas. Destacamos a pintura de paisagem da Dinastia Song,
que mostra grandes montanhas em meio a picos enevoados. Encon-
tramos ali o espaço vazio da composição como forma de reafirmar o
princípio passivo taoísta. A névoa, além de ser um elemento obser-
vado nas paisagens montanhosas chinesas, é um elemento capaz de
fazer a transição entre o cheio e o vazio, o material e o imaterial.

110
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

No Ocidente, destacamos o paisagista romântico William Tur-


ner (século XIX). Encontramos, no Romantismo europeu, o conceito
de sublime a partir dos filósofos Edmund Burke e Immanuel Kant. O
sentimento do sublime, de algo que nos ultrapassa, é percebido nas
pinturas de Turner, sendo também analisado nos relatos de mon-
tanhistas paranaenses, como veremos no decorrer do capítulo. Por
fim, observamos que o pintor de montanhas busca, nessas paragens,
algum conhecimento superior. Independente da época ou do local, o
sentimento de grandiosidade da paisagem torna-se evidente.

A origem do conceito de paisagem no Oriente

Para compreendermos o significado da pintura de paisagem


no Oriente, é necessário antes conhecer alguns conceitos relativos
ao antigo pensamento chinês.
A antiga China desenvolveu uma rica cultura que influenciou
o Japão, a Coréia e o Vietnã. Suas bases são encontradas no Livro
das Mutações, o I Ching, um livro tão antigo que não se sabe ao
certo quando foi escrito, acredita-se que tenha surgido no século XI
a.C, antes da dinastia Chou (1150-249 a.C.). O I Ching é simultanea-
mente um oráculo e um livro de filosofia. Tanto o Taoísmo quanto o
Confucionismo baseiam-se nesse antigo livro. O I Ching poderia ser
consultado como um oráculo, sendo que a resposta mostraria o ciclo
que a pessoa encontra-se e algumas sugestões de ação.
De acordo com o Livro das Mutações, o universo é uma totali-
dade/ unidade, que se manifesta em duas forças opostas e comple-
mentares (yin e yang). Da combinação dessas duas forças, surgem
todos os fenômenos. Tudo no universo provém da interação entre
yin e yang e tudo está em constante mudança: “tudo que existe ou
está começando a existir, ou está crescendo, ou está envelhecendo
ou está desaparecendo” (BLOFELD, 1971, p.45). Os fenômenos estão
sempre mudando, como os ciclos da natureza. Quando um ciclo yin
atinge o seu máximo, ele começa a tornar-se yang, e vice-versa. A

111
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

mutação é, portanto, o caráter invariável do mundo. Yang representa


a ação, expansão, o dia, o calor. Yin representa a não-ação, o recolhi-
mento, a noite, o frio. O equilíbrio entre yin/yang é fundamental para
a saúde.
O I Ching apresenta 64 trigramas (desenhos compostos por
três linhas) derivados da combinação de oito trigramas que repre-
sentam céu, trovão, água, montanha, terra, vento, fogo, lago. Porém,
tudo surge a partir da dualidade básica yin/yang correspondente ao
trigrama terra (yin) e céu (yang).
É importante destacar o conceito de Wu Wei ou Não Ação,
pois este é muito importante para essas filosofias e para as artes
em geral, como se verá mais adiante no estudo do espaço vazio na
pintura de paisagem.
No século V a.C., surgiu o Taoísmo, uma filosofia compilada
por Lao Tse (Lao Tzu, Laozi) no livro Tao Te King. A escrita do Livro é
cercada de lendas. Lao Tse era um sábio, estudioso do I Ching, que
viveu entre 604 e 517 a.C. Aos 80 anos, ao cruzar a fronteira da China,
um guarda reconheceu-o e disse que ele não poderia abandonar o
seu país sem deixar uma contribuição de seus conhecimentos. Então,
Lao Tse sentou-se em uma pedra e escreveu os 81 versos que com-
põem o Tao Te King (TORNAGHI, 1989). O livro reforça os conceitos
encontrados no Livro das Mutações (I Ching), como os princípios yin/
yang e a importância do Wu- Wei.
O Taoísmo busca o Tao, o Caminho. Preza a natureza e a ob-
servação dos seus ciclos, observa a mutação das coisas através dos
ciclos de yin/yang. “O taoísmo nos ensina a viver perto da natureza,
a observar processos naturais e usá-los como modelo para nossas
atividades” (BLOFELD, 1971, p. 51).
Também no século V a.C., encontramos Confúcio, que viveu
entre 551 e 479 a.C. na China. Foi um sábio com vários discípulos.
Empreendeu diversas viagens e ocupou cargos no governo em alguns
períodos de sua vida. Suas lições buscam observar a ética, a moral
e o respeito aos antepassados. Tinha como ideal o “cavalheiro”, uma

112
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

pessoa de caráter elevado. Confúcio enfatizou a importância da


ética para os governantes, que, assim, teriam o apoio do povo pelo
bom exemplo e não sofreriam rebeliões. Confúcio estudava o Livro
das Mutações arduamente e escreveu inúmeros comentários que
passaram a fazer parte das edições posteriores. Disse que gostaria
de ter uma vida inteira só para dedicar-se ao estudo do livro. Após a
sua morte, seus discípulos reuniram suas ideias no livro “Analectos”
ou “Diálogos” (O’DONNEL, 2007).
Enquanto, na China, encontramos os sábios Confúcio e Lao
Tse, no mesmo período na Índia, viveu Sidarta Gautama (563 a.C. a
483 a.C), o Buda. Sidarta era um príncipe e sua família abraçava a reli-
gião hinduísta, mas Buda abandonou o palácio e seguiu em sua busca
interior, procurando compreender a existência do sofrimento. Tendo
atingido a iluminação, passou o restante da sua vida a ensinar um
caminho para cessação do sofrimento. Morreu aos 80 anos e deixou
vários discípulos, que compilaram seus ensinamentos e formaram as
bases da religião Budista. Assim, nos séculos posteriores, o Budismo
difundiu-se pela Índia e, finalmente, alcançou a China entre os séculos
I e V d.C. Penetrando na China, mesclou-se com as antigas filosofias
chinesas encontradas no Livro das Mutações. Assim, o Zen Budismo
floresceu na China e Japão com grande dedicação às artes da cali-
grafia, poesia, pintura, cerâmica, entre outras (O’DONNEL, 2007).
Imerso nessa cultura, o poeta e pintor chinês Zong Bing es-
creveu, no século IV d.C., o primeiro tratado de pintura de paisagem.
Segundo Zong Bing, o Tao, ou espírito divino, habita nas formas da
natureza: “o espírito divino é infinito (literalmente, sem delimitação),
mas habita em formas e inspira semelhança, e assim a verdade se
transforma em formas e signos.” (ZONG BING, 1962, p.103).
Assim, a concepção de paisagem surgiu, no Oriente, cerca de
mil anos antes que no Ocidente. O geógrafo Augustin Berque (1995)
trata dessas questões e mostra que encontramos, na China, a origem
do termo paisagem. Foi nesse período que surgiram as primeiras
anotações e o uso da terminologia. Era um período de guerras e ins-

113
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

tabilidade política levando muitos homens da elite a refugiarem-se


no interior. Os servos trabalhavam a terra e os literatos, como eram
conhecidos, dedicavam-se às artes da poesia, pintura e caligrafia, por
meio da contemplação da natureza (MARANDOLA e OLIVEIRA, 2018).
Segundo Marandola, “o poeta Zong Bing (375-443) foi o pri-
meiro a escrever um tratado sobre pintura de paisagem, e é conside-
rado por Berque como a primeira reflexão explícita sobre paisagem”
(MARANDOLA e OLIVEIRA, 2018, p.144). O pouco que se sabe sobre
ele é que foi um poeta e pintor que vivia isolado nas montanhas em
busca do conhecimento. Quando estava velho demais para percorrer
as montanhas, passou a pintá-las, para sentir-se próximo a elas. Foi
nesse período que ele escreveu Introdução à pintura de paisagem
(ou Hua shanshui xu).
Segundo Yu (s/d), a obra de Zong Bing (ou Tsung Ping) traça
“paralelos diretos entre a pintura de paisagem e os hexagramas de
I Ching” (YU, s/d, p.3). Conforme Yu (s/d), Zong Bing afirma, em seu
tratado, que é possível adquirir ensinamentos da paisagem, assim
como é possível adquiri-los através das palavras de um sábio. Para
isso, “é preciso submergir-se fisicamente na natureza e observar e
ler as imagens naturais. [...] Isso pode incluir viajar na paisagem, ver
a paisagem de longe e de perto, cheirar a paisagem, contemplar a
paisagem, imaginar a paisagem e, eventualmente, pintar a paisagem“
(YU, s/d, p. 9). Esse processo de observação/ leitura da paisagem foi
denominado por Zong Bing de “gan” e é pré-requisito para pintá-la.
Também de acordo com Schachter (2011), é possível esta-
belecer uma relação entre a pintura e a filosofia, ou seja, a pintura
pode trazer conhecimento através da imagem. “Quando os homens
sagrados e virtuosos de antanho se dirigiam às montanhas, o faziam
com a gravidade de quem busca o mais alto princípio, o supremo
saber. [...] A montanha é então a imagem desse conhecimento [...]”.
(SCHACHTER, 2011, p.10).
Em suas reflexões, Zong Bing utiliza a palavra shanshui para
designar paisagem. Essa palavra foi composta pela fusão de dois

114
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

caracteres: shan (montanha) + shui (água) (figura 03). Assim, “a pa-


lavra chinesa shanshui, antes de receber o significado de paisagem,
significava literalmente “as águas da montanha” (MARANDOLA e
OLIVEIRA, 2018, p.144).

Figura 03: Ideogramas shanshui.

Shanshui acabou tornando-se um estilo de pintura de paisa-


gem, composta por picos enevoados e árvores retorcidas. Trata-se
da paisagem presente nas Montanhas Amarelas (Huangshan), China,
local onde muitos poetas e pintores viveram. “[...] Essa paisagem e suas
inúmeras rochas grotescas e árvores antigas e retorcidas inspiraram o
influente Shanshui (“montanha e água”), escola de pintura de paisagem,
fornecendo uma representação fundamental da paisagem oriental na
imaginação e arte do mundo” (MONTE HUANGSHAN, 2020).
Atualmente, o local é considerado Patrimônio da Humanidade
pela sua beleza cênica e pela importância para a arte e cultura chi-
nesa. O local “atraiu muitos visitantes, incluindo eremitas, poetas e
pintores, todos elogiando o cenário inspirador da montanha através
de pintura e poesia, criando um rico corpo de arte e literatura de
importância global” (MONTE HUANGSHAN, 2020).
Conforme Schachter (2011), a montanha e a água possuem
significados simbólicos anteriores ao surgimento do termo shanshui.
Esses significados referem-se ao antigo pensamento chinês relacio-
nado ao livro das mutações (I Ching), ao Taoísmo e ao Confucionismo.
Possivelmente, essas relações culturais tenham contribuído para a
construção do termo. Segundo a análise dos elementos apresentada

115
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

no I Ching, temos a terra (montanha) como exemplo de firmeza e


quietude, enquanto a água aparece como sinônimo de movimento e
flexibilidade. O Confucionismo também mostrava as qualidades de
solidez da montanha e fluidez da água.

É bem provável que o termo shanshui guarde relações


com uma passagem dos Analetos, em que podemos
ler: “Os de sabedoria se regozijam com a água. Os de
benevolência, com a montanha. Os de sabedoria se
comprazem no movimento. Os de benevolência, na
quietude. Os sábios alcançam o júbilo. Os benevolentes,
a longevidade.” (SCHACHTER, 2011, p. 9).

Também no Taoísmo, “as virtudes da água são especialmente


louvadas. A água não ataca obstáculos inexpugnáveis, mas sempre
acha um meio de contorná-los” (BLOFELD, 1971, p. 51). A água era,
portanto, um tema digno de ser observado e pintado. O pintor Ma
Yuan (século XIII) produziu um álbum de pinturas da água, com 12
imagens em aquarela sobre seda, cada uma mostrando um compor-
tamento da água: turbulenta, calma, com neblina, entre outros (LEE;
SILBERGELD, s.d).
Nos anos de 2019 e 2020, realizei algumas pinturas em pe-
queno formato, trabalhando a água de rios da Serra do Mar, ou seja, a
água das montanhas. Foram feitas com tinta a óleo sobre madeira e
possuem 20 x 20 cm cada uma. As imagens partiram de fotografias,
às vezes minhas, às vezes apropriações. As imagens resultantes não
são cópias fiéis da fotografia, esta é apenas um ponto de partida.
Algumas coisas podem ser mudadas no processo, as cores geral-
mente vão para uma escala mais acinzentada, formas podem ser
modificadas. No caso dessas quatro imagens (figuras 04 a 07), por
exemplo, apenas a última foi tirada por mim. Trata-se de um detalhe
do Salto Morato em Guaraqueçaba, PR, um dos trechos das Reservas
de Mata Atlântica do Sudeste, citadas no início do capítulo.
As outras imagens partiram de fotografias que me chamaram
atenção inicialmente pelo tema, mas também pela luz e pelas formas.

116
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

São rios de pedras e cachoeiras que costumamos encontrar nas pai-


sagens da Serra do Mar. A água da montanha é sempre límpida e não
há como não nos sentirmos maravilhados diante dessas águas. Como
dizia o antigo poeta: “Montanhas e rios nas suas formas prestam ho-
menagem ao Tao, e o virtuoso se deleita nelas. O sábio, as montanhas
e os rios não têm muito em comum? (ZONG BING, 2000, p.606).

Figuras 04 a 07: Camilla Carpanezzi, Sem título, Série Água da montanha, 2019/2020.
Óleo sobre madeira, 20 x 20 cm.
Fonte: arquivo pessoal.

117
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Nos tópicos, a seguir, abordaremos algumas características da


pintura Zen (vazio, névoa, monocromia) e relacionaremos com outros
trabalhos artísticos dessa série.

Vazio e monocromia na pintura zen

A pintura Zen desenvolveu-se na China nas dinastias Tang


(618-906) e Song (ou Sung 960-1278) e, posteriormente, alcançou o
Japão, na medida em que o Zen Budismo instalou-se no país.
A Dinastia Song apresenta uma pintura de paisagem com
características especiais: a presença das neblinas, os espaços vazios
e as figuras humanas em minúscula escala diante da imensidão da
paisagem (figura 08). Os dois maiores pintores do período foram Ma
Yuan e Xia Gui, motivo pelo qual o período ficou conhecido como
escola de Ma-Xia (BLUNDEN e ELVIN, 1997).

118
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

Figura 08: Pintura de paisagem. Ma Yuan, Olhando a lua, Século XIII. Rolo de pendurar,
aguada sobre seda, 149,7 x 78,2 cm.
Fonte: Acervo do National Palace Museum, Taipei.

119
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Na figura 08, de Ma Yuan, vemos algumas características da


pintura Ch’an / Zen já mencionadas. No canto inferior esquerdo, en-
contra-se um grupo de pessoas que, de acordo com o título, estão
olhando a lua, que, em uma pequena reprodução, é difícil de visualizar.
As figuras são pequenas, de modo a enfatizar a importância do alto
rochedo. Os rochedos e os pinheiros são provavelmente característi-
cos da região das Montanhas Amarelas, um refúgio taoísta há muitas
gerações. No lado direito, aguadas de nanquim conferem a sensação
de distância e da névoa característica dos microclimas montanho-
sos. Nesta pintura, percebemos ainda a monocromia e a composição
vertical (kakemono).
Ma Yuan costumava colocar os elementos da pintura de um
lado do papel, deixando o outro lado vazio. Isso lhe valeu o apelido de
“Ma-Um-Canto” (BLUNDEN e ELVIN, 1997). Isso pode ser observado
na imagem a seguir (figura 09), que possui muitos elementos do lado
esquerdo e poucos do lado direito.

Figura 09: Pintura de paisagem. Ma Yuan. Em um caminho de montanha na primavera.


Folha de álbum, tinta e seda, 27.4 x 43.1 cm.
Fonte: Acervo do National Palace Museum, Taipei.

120
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

O espaço vazio é uma característica essencial das pinturas


orientais. Trago essa influência e podemos observá-la em dois dese-
nhos realizados por mim no ano de 2018, da série Desenho Pictórico.
A série é composta por cinco desenhos realizados com pigmentos
como grafite em pó, carvão, terra, fuligem, entre outros.
Os desenhos foram construídos por massas, praticamente
não foram usados lápis, mas pigmentos em pó, provavelmente uma
herança de minhas pesquisas com elementos naturais na pintura.
Esses materiais foram lançados sobre o papel e friccionados com
tecidos e grandes chumaços de algodão.
Não há aqui uma paisagem em sentido literal, apenas a forma
curva da natureza encontrada em raízes de árvores ou em um ciclone
(estas eram as imagens que me vinham em mente no momento da
confecção desses desenhos).
Alguns materiais foram criados ou coletados por mim, como a
terra preta coletada da montanha e a fuligem (negro de fumo), que foi
preparada com esse fim específico. A fuligem foi produzida utilizando
um pavio de querosene colocado abaixo de uma superfície metálica.
Ao queimar, a chama deixava ali o seu resíduo, que, posteriormente, era
recolhido e utilizado para desenhar. O negro de fumo é considerado o
preto mais escuro dentre diversos pigmentos com essa coloração. Ao
manusear a fuligem, percebemos que a partícula produzida é muito
fina e sua tonalidade extremamente escura, ou seja, um material de
excelente qualidade. O preto obtido pelo negro de fumo foi utilizado
em pequenas áreas do espaço das obras, concentrando tonalidades
em oposição ao espaço vazio, que é parte significativa dos trabalhos
(Figuras 10 e 11).
Nas pinturas orientais, o espaço vazio refere-se ao princípio
passivo do taoísmo ou yin. Como não há hierarquia entre yin e yang,
o princípio passivo (yin) é tão importante quanto o ativo (yang) e o
espaço vazio é tão importante quanto o cheio. O vazio é o conceito
de Wu Wei e é o que dá alma ao trabalho.

121
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Segundo Brinker (1995, p.29), o espaço vazio é muito “mais


do que apenas uma parte não pintada na composição do quadro”,
o espaço vazio de uma composição artística zen budista refere-se
ao conceito de vazio do budismo, relacionado à iluminação. O vazio
relaciona-se, assim, ao imaterial, ao espiritual.

O vazio é muito mais do que um mero fator integrante da


composição artística – mais do que apenas uma parte
não pintada na composição do quadro. Em última ins-
tância, o vazio, desprovido de forma, de cor ou de qua-
lidade (ku em japonês) alcançou o mais alto significado
na compreensão do Zen como símbolo abstrato. O fundo
vazio do quadro é identificado com o fundamento vazio
do ser [...]. (BRINKER,1995, p.29).

Figuras 10 e 11: Desenhos verticais. Camilla Carpanezzi, Sem título, Série Desenho
pictórico, 2018. Mista sobre papel, 300 x 100 cm.
Fonte: acervo pessoal.

122
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

A névoa é o elemento que realiza a transição entre o espaço


vazio e o espaço cheio, entre o imaterial e o material, como observa-
mos na figura 12 a seguir, uma obra considerada Tesouro Nacional do
Japão.

Figura 12: Pintura de paisagem. Hasegawa Tōhaku, Pinheiros, Século XVI.


Aguada sobre papel, biombo com 6 folhas.
Fonte: Acervo do Museu Nacional de Tóquio3.

A pintura (figura 12) foi realizada pelo pintor japonês Hasegawa


Tohaku, no século XVI. Trata-se de um biombo com seis folhas de
papel, que hoje se encontra no Museu Nacional de Tóquio. O espaço
vazio e a neblina compõem a maior parte desse trabalho: das seis
folhas, três estão praticamente vazias, e apenas duas possuem a
imagem do pinheiro em primeiro plano.
A arte da caligrafia já era consolidada na China antes do de-
senvolvimento da pintura de paisagem. A tinta utilizada era o nanquim,
uma tinta preta, de forte pigmentação, solúvel em água. Naturalmen-
te, a tinta de caligrafia passou a ser utilizada também para a pintura.
A monocromia é a técnica artística na qual se utiliza apenas
uma cor. Porém, infinitas variações de luminosidade podem ser obti-
das por meio da diluição do nanquim na água. Assim, as pinturas atin-

3  https://www.tnm.jp/modules/r_free_page/index.php?id=657&lang=en

123
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

gem enorme expressividade com apenas uma cor e suas variações,


atingindo contrastes que vão do branco do papel ao preto, passando
por diversos tons de cinza.
Outra característica das pinturas orientais é o seu formato
peculiar, bastante longo. As pinturas chinesas e japonesas possuem
formatos estendidos, podendo ser verticais (kakemono) ou horizontais
(makemono). A pintura de rolagem, ou pintura em rolo, é uma forma de
arte praticada em toda a Ásia oriental (SCROLL, 2019). Pinturas verticais
eram facilmente penduradas, mas as horizontais eram contempladas
sobre uma mesa, dada a dificuldade de sua exposição na parede.
O comprimento que essas pinturas podem atingir é impres-
sionante. A obra “Vista remota de córregos e colinas”, do pintor
Xia Gui (Dinastia Song) tem o tamanho aproximado de quase nove
metros por apenas 46,5 centímetros. Essas pinturas panorâmicas
mostravam diferentes pontos de vista na paisagem, como se pode
depreender dos seguintes títulos de Xia Gui: “As doze vistas de uma
cabana de sapé”, “Dez mil quilômetros do rio Yangzi” (CAHILL, 2019).
O pintor Guo-Xi desenvolveu a teoria das três distâncias que uma
pintura deveria ter: distâncias altas (olhando a montanha de baixo
para cima), distâncias profundas (olhando a montanha e grandes
extensões de terra atrás) e distâncias niveladas (olhando de uma
montanha para outras próximas) (BLUNDEN e ELVIN, 1997).
As pinturas em rolo eram visualizadas individualmente e ape-
nas em ocasiões especiais. Pegava-se o rolo e abria-se um pequeno
pedaço lentamente, da direita para a esquerda. A ideia era visualizar
uma pequena porção da pintura de cada vez. “Apenas cerca de 60
centímetros de tal pergaminho deveriam ser vistos de uma vez ou o
espírito do trabalho seria violado” (SCROLL PAINTING, 2019). Assim,
as pinturas de rolo proporcionam uma experiência íntima entre o
espectador e a imagem:
Olhar para uma pintura em rolo é uma experiência íntima. Seu
tamanho e formato impedem um grande público; os espectadores
são geralmente limitados a um ou dois. Ao contrário do espectador

124
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

da pintura ocidental, que mantém certa distância da imagem, o es-


pectador de uma pintura em rolo tem contato físico direto com o
objeto, rolando e desenrolando o pergaminho em seu próprio ritmo
desejado, demorando-se em algumas passagens, movendo-se rapi-
damente em outras (CHINESE, 2019).
Muitas características das pinturas chinesas são encontradas
nos desenhos que realizei nos anos de 2018-2019. A verticalidade das
pinturas orientais foi uma influência nesses desenhos (figuras 13 e 14).
Os trabalhos possuem três metros de altura por um metro de largura.
Na confecção deste trabalho, enquanto desenhava uma parte, perdia
a noção do restante, devido ao tamanho. Era preciso circular o su-
porte para construir a imagem.

125
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Figura 13: Desenho com influência orien- Figura 14: Desenho com influência orien-
tal. Camilla Carpanezzi, Cachoeira, 2018. tal. Camilla Carpanezzi, Canyon, 2018.
Mista sobre papel, 300 x 100 cm. Mista sobre papel, 300 x 100 cm.
Fonte: acervo pessoal. Fonte: acervo pessoal.

126
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

Nesses desenhos, a monocromia própria do grafite remete à


monocromia do nanquim e é possível visualizar diversas gradações
de cinzas que vão do branco do papel ao preto da fuligem. Porém, nas
aquarelas chinesas, apenas o nanquim é responsável por inúmeros
tons cinza e, nestes desenhos, foram usados diversos materiais, cada
um apropriado a uma tonalidade de cinza, indo do mais claro ao pre-
to. O grafite em pó foi utilizado no início do trabalho, na construção
de cinzas claros. Os cinzas escuros não foram feitos com grafite, pois
esse material possui uma limitação: em excesso, torna-se brilhante e
causa confusão visual. Assim, usamos carvão, terra preta e giz pastel
com essa finalidade. Para a cor preta, a fuligem mostrou-se a melhor
opção, pela sua opacidade e forte coloração.

Abismos e tempestades: o sublime na paisagem romântica

No Ocidente, o conceito de paisagem surgiu na Europa a partir


do século XVI. Naquele período, abandonaram-se as representações
esquemáticas do estilo medieval e passou-se a retratar o mundo na-
tural com a mesma atenção destinada às figuras religiosas de então
(MADERUELO, 2010). Porém, a paisagem encontrava-se ainda como
fundo e não como motivo principal. Essa paisagem de fundo deveria
conferir uma sensação de profundidade ao quadro, de acordo com
as leis da perspectiva.
Durante a Reforma protestante (século XVI), na Holanda, os
artistas foram impedidos de representar cenas bíblicas e passaram
a dedicar-se à pintura de paisagens. Surgiram subgêneros da pintu-
ra de paisagem: marinhas, paisagem campestre, vistas de cidades,
“necessitando então de uma palavra concreta para nomear esta
florescente atividade, o que originará o termo holandês landtschap,
do que deriva landscape” (MADERUELO, 2010, p. 23, tradução nossa).
Com o tempo, a figura humana na paisagem foi progressi-
vamente diminuindo de tamanho e artistas barrocos, como Nicolas
Poussin e Claude Lorrain, retrataram cenas bíblicas com figuras mi-

127
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

núsculas na paisagem, procedimento também observado nas antigas


paisagens chinesas da Dinastia Tang e Song. Seja no Oriente ou no
Ocidente, percebemos o sentimento de grandiosidade na paisagem.
Porém, a autonomia da paisagem no ocidente só ocorreu no período
romântico (século XIX), momento em que teorias filosóficas também
a punham em evidência por meio de discussões acerca do conceito
de sublime.
No período romântico (século XIX), a paisagem alcançou maior
destaque entre os pintores europeus. À época, a paisagem não era
mais um simples fundo, era o próprio motivo a ser retratado. A natu-
reza aparece sozinha nas pinturas, sem necessitar do apoio de figuras
humanas: “altas montanhas, glaciares, cascatas, abismos, desfiladei-
ros, mares agitados e tempestades irão substituir as histórias como
tema nos quadros” (MADERUELO, 2010, p. 25). Surgiram representa-
ções grandiosas, mostrando a natureza em todo o seu esplendor. A
paisagem passou a ser dotada de sentimento, capacidade que só
se imaginava possível diante de pinturas de pessoas (MADERUELO,
2010, p. 27).
No Romantismo, a figura humana pode aparecer de costas,
procedimento adotado pelo pintor Caspar David Friedrich (figura 15),
de modo a enfatizar que o assunto principal do quadro não é a pessoa,
mas a contemplação da paisagem. As relações com a pintura chinesa
de paisagem novamente impuseram-se ao olhar, pois a imagem de
Caspar Friedrich assemelha-se à de Ma Yuan (figura 09), vista ante-
riormente. Em ambos os casos, a natureza apresenta-se como o local
onde o ser humano sente-se pequeno e percebe a existência de uma
força grandiosa. Enquanto os orientais buscavam o Tao na natureza,
os ocidentais viam-na como porta para experiências sublimes.

128
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

Figura 15: Caspar David Friedrich. Caminhante sobre o mar de névoa, 1817.
Óleo sobre tela. 94,8 cm x 74,8 cm.
Fonte: Hamburger Kunsthalle4.

4  https://online-sammlung.hamburger-kunsthalle.de/de/objekt/HK-5161/wanderer-
ueber-dem-nebelmeer?term=caspar%20friedrich&start=60&context=default&position=73

129
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

No século XIX, as discussões sobre o conceito de sublime


estavam em voga. “A categoria do sublime permitiu julgar esse tipo
de pinturas nas quais as forças da natureza, sem limites nem atadu-
ras, se expressam dominantes e impetuosas ante o olhar oprimido
de algum espectador ocasional que aparece minimizado no quadro”.
(MADERUELO, 2010, p. 25).
O conceito de sublime vem sendo discutido desde a antiga
Grécia, mas ganhou impulso em 1757 quando Edmund Burke, filósofo
irlandês do século XVIII, que escreveu Uma investigação filosófica
sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Burke “dis-
tingue o conceito do sublime, com as suas associações ao infinito, à
obscuridade, à solidão e ao terror, do conceito do belo, que consiste
na relativa pequenez, na delicadeza, na suavidade e na luminosidade
das cores.” (PEIXOTO, 2009, p.3).
Burke considera ainda o sentimento do sublime como algo
próximo do assombro, que gera admiração e respeito. O momento
da admiração é um momento em que não é possível raciocinar, a
sensação é de arrebatamento.

A paixão a que o grandioso e o sublime na natureza dão


origem, quando essas causas atuam de maneira mais
intensa, é o assombro, que consiste no estado de alma
no qual todos os seus movimentos são sustados por um
certo grau de horror. Nesse caso, o espírito sente-se tão
pleno de seu objeto que não pode admitir nenhum outro
nem, consequentemente, raciocinar sobre aquele objeto
que é alvo de sua atenção. Essa é a origem do poder do
sublime, que, longe de resultar de nossos raciocínios,
antecede-os, e nos arrebata com uma força irresistível.
O assombro, como disse, é o efeito do sublime em seu
mais alto grau; os efeitos secundários são a admiração, a
reverência e o respeito” (BURKE, 1993, p. 65).

Segundo Burke, podemos ter a experiência do sublime diante


das forças da natureza se estivermos suficientemente protegidos.
Neste caso, sentimos uma certa apreensão e ficamos admirados
com a altura de um precipício ou a força de uma tempestade, por

130
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

exemplo. Porém, se estivermos em perigo real diante do precipício


ou da tempestade, então não teremos nenhuma experiência sublime,
mas simplesmente medo ou pânico.
Burke define alguns elementos como fontes do sublime: obs-
curidade, poder, vastidão, infinitude, dificuldade, magnificência, entre
outros. “A grandiosidade de dimensões é uma fonte poderosa do
sublime” (BURKE, 1993, p.77). O autor diferencia a dimensão em com-
primento (planície), altura (montanha ou rochedo) e profundidade
(abismo). Uma dimensão em comprimento não é tão impressionante
quanto em altura ou profundidade.
Em seguida a Burke, outros filósofos dedicaram-se ao conceito
de sublime, especialmente Immanuel Kant, filósofo do século XVIII. Kant
analisou o sublime em dois momentos: em 1764, em Observações sobre
o sentimento do belo e do sublime e, em 1790, na Crítica da Faculdade
do Juízo. Para Kant, o belo encontra-se ligado ao prazer, enquanto o
sublime está ligado ao estado de arrebatamento, comoção: “o sublime
comove, o belo encanta” (KANT, 2012, p. 33). Para Kant, semelhante-
mente a Burke, as forças da natureza produzem esse sentimento de
comoção desde que nos encontremos protegidos:

Rochedos audazes sobressaindo-se por assim dizer


ameaçadores, nuvens carregadas acumulando-se no
céu, avançando com relâmpagos e estampidos, vulcões
em sua inteira força destruidora, furacões com a de-
vastação deixada para trás, o ilimitado oceano revolto,
uma alta queda d’água de um rio poderoso etc. tornam
a nossa capacidade de resistência de uma pequenez in-
significante em comparação com o seu poder. Mas o seu
espetáculo só se torna tanto mais atraente quanto mais
terrível ele é, contanto que, somente, nos encontremos
em segurança [...] (KANT, 1995, p. 107).

Kant usou como exemplos forças grandiosas (vulcões, furacões


etc) que nos fazem sentir pequenos diante de seu poder ameaçador.
Embora o sublime seja muitas vezes associado a algo assustador, ele
também descreveu experiências positivas de grandiosidade inexplicá-
vel. Burke colocou a magnificência como uma fonte de sublime e Kant

131
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

menciona o “sublime magnífico” em seu primeiro livro (1764), quando a


beleza é tanta que pode atingir uma dimensão sublime. Esta é precisa-
mente a sensação que se tem no cume de uma alta montanha, como
veremos a seguir nos relatos de montanhistas paranaenses.
Relatos de artistas e aventureiros deixados nas montanhas
expressam o sentimento sublime há várias gerações. O Conjunto
Marumbi (PR), de inigualável beleza, é frequentado desde o século
XIX. Na década de 1930, alguns artistas e poetas, entusiastas do mo-
vimento paranista, empreenderam uma caravana ao ponto mais alto
do Conjunto Marumbi. Após dois dias de caminhada difícil, chegaram
ao cume e o poeta Odilon Negrão relatou suas impressões:

Ah! Foi então que eu senti a minha pequenez, a migalhice


da minha carcaça deante da natureza monstruosamente
bella!

E imaginei, que essa mesma natureza prodigiosa e rica,


deslumbradora e empolgante, éra um ínfimo grão de
areia perante o explendor, a grandeza immensurável de
Deus!… [sic] (NEGRÃO,s/d, p.17).

Nas palavras do poeta, percebemos o assombro de que trata


Burke, a natureza monstruosamente bela. Na mesma caravana, estava
o artista e cientista Lange de Morretes (1892-1954). Antes de morrer,
Lange expressou o desejo de ser enterrado de pé com a face voltada
para o Pico Marumbi e, dessa maneira, foi sepultado no pequeno
cemitério de sua cidade natal.
O esplendor do alto da montanha leva-nos ao arrebatamento,
como observamos a seguir em alguns relatos deixados no cume da
montanha Tucum entre os anos de 1999 e 2002:

Descrever o que sinto até é possível, porém o que eu


estou vendo é difícil ou impossível. (montanhista 1. ME-
MÓRIAS DE CUME, 1999)

132
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

É magnífico (sic) a vista das montanhas. Aqui vemos o


quão somos pequenos perante a criação do Grande
Homem... (montanhista 2. MEMÓRIAS DE CUME, 2001)

A alegria é tanta que eu fico pensando, como nosso


“Deus” é grande e como ele criou coisas tão belas como
esse lugar. (montanhista 3. MEMÓRIAS DE CUME, 2001)

Depois que cheguei aqui, enxerguei Deus. Vi que Deus é


isto que você observa. Deus é perfeito, aqui é perfeito,
logo Deus é isto aqui. (montanhista 4. MEMÓRIAS DE
CUME, 2002)

O morro Tucum (Serra do Ibitiraquire, trecho da Serra do Mar


paranaense) foi escolhido por ser um local que eu costumava frequen-
tar. Todo cume possui um pequeno caderno, denominado “caderno
de cume”, no qual os montanhistas podem deixar um registro. Para
proteção da chuva, o caderno fica envolto em um plástico, dentro
de um cano de PVC ou lata. Quando o livro está completo, o último
montanhista que o assinou deve encaminhá-lo ao Clube Paranaense
de Montanhismo, responsável pela guarda desses registros, que hoje
já estão disponíveis também na internet.
Na manifestação do montanhista 1, percebemos a sensação de
arrebatamento, na qual é impossível descrever o que vê. As palavras
mostram-se insuficientes e tal como coloca Burke, não há como “ra-
ciocinar sobre aquele objeto que é alvo de sua atenção” (BURKE, 1993,
p. 65). O montanhista 2 utiliza a palavra magnífico para descrever a
vista das montanhas, o que nos remete ao sublime magnifico de Kant e
a magnificência de Burke. “Uma grande profusão de coisas esplêndidas
e preciosas em si mesmas é magnífica”. (BURKE, 1993, p. 84).
O montanhista 2 diz ainda sentir-se pequeno, o que nos lem-
bra Kant “de uma pequenez insignificante em comparação com o seu
poder”. O montanhista 3 parece estar embebido do sentimento de
magnificência que Burke classifica como uma fonte de sublime. Ele
diz sentir uma enorme alegria e lembra-se de Deus, assim como o
antigo poeta Odilon Negrão e o montanhista 4, que diz ter encontra-

133
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

do Deus por meio de uma dedução lógica. Não é nosso objetivo neste
capítulo entrar em discussões acerca de Deus, porém, fica evidente
a sensação de algo grandioso na natureza, que nos ultrapassa. Isso
pode ser estudado pela filosofia do sublime, pode ser chamado de
Deus, ou pode ser visto como o próprio Tao, a harmonia da natureza
como o Caminho. Após essas divagações, necessitamos retornar à
paisagem romântica do século XIX e destacamos, como referência, o
pintor inglês William Turner (1775 - 1851).
Joseph Mallord William Turner foi um pintor romântico, que
viveu na Inglaterra entre 1775 e 1851. Considerado um dos maiores
nomes do Romantismo, foi um grande paisagista, de estilo muito
arrojado para a época. Costumava empreender viagens em busca de
novas paisagens para explorar e pintar.
Uma de suas inspirações iniciais foi o livro Observations on
the River Wye de William Gilpin, do qual copiou as estampas na
juventude (MADERUELO, 2010). O livro foi um sucesso na Inglaterra
do século XVIII, quando eram organizados grupos de pintores ama-
dores ou curiosos com o objetivo de visitar/pintar estas paisagens.
A publicação fez grande sucesso na época e lançou um novo estilo
de turismo até hoje presente na região: a observação de paisagens
pitorescas. Muitos turistas faziam uso de um espelho negro para
observação da paisagem conhecido como Claude Glass, por lembrar
o estilo do pintor Claude Lorrain, com cores escuras.
Gilpin disseminou a teoria pitoresca que, assim como o subli-
me, influenciou os artistas românticos. Podemos definir o pitoresco
como uma categoria situada entre os conceitos de belo e de subli-
me. Enquanto o sublime mostra aspectos grandiosos da paisagem,
o pitoresco observa detalhes da sua simplicidade: motivos rústicos,
texturas ásperas, grupos de árvores retorcidas, ruínas.
Porém, o conceito de sublime discutido anteriormente é o
que melhor se encaixa na obra de Turner que retrata a natureza em
toda a grandiosidade e sua fúria: tempestades, incêndios, nevascas,
abismos. Turner era um exímio aquarelista e, muitas vezes, buscava,

134
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

no óleo, o estilo da aquarela usando tintas bem diluídas. O desfiladei-


ro de São Gotardo (figura 16) é uma aquarela de 1804. Foi realizada
após a viagem de Turner pelos Alpes Suíços, em 1802. O pintor fez
muitos esboços desse desfiladeiro, que se encontram agora na Tate
Gallery em Londres. Ao ver essa imagem pela primeira vez, lembrei
imediatamente de um local conhecido na Serra do Mar paranaense,
a Garganta do Diabo (figura 17). Curiosamente, o local visitado por
Turner também se chama Ponte do Diabo, demonstrando os perigos
encontrados na natureza.

Figura 16: A Passagem do Monte St Figura 17: Fotografia da Garganta do


Gothard, Vista do Centro do Teufels Broch Diabo. Serra do Mar, PR.
(Ponte do Diabo), Suíça. Fonte: acervo pessoal.
Fonte: William Turner. Aquarela sobre
papel (1804). Tate Modern. London,
Inglaterra. Dimensões da obra: 98,9 x
68,6 cm5.

5  http://warburg.chaa-unicamp.com.br/obras/view/1875.

135
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Então, com tais imagens em mente, criei minha própria versão


do desfiladeiro (figura 18). Realizei a obra em óleo sobre tela, baseada
no trabalho de Turner, porém inserindo a cor verde escura caracterís-
tica da Mata Atlântica. A tela foi trabalhada em camadas, inicialmente
com terra e, posteriormente, com tinta a óleo bastante diluída.
A imagem dessa grande fenda, desse abismo, não denunciava
um sentimento alheio ou metafórico, mas as experiências visuais
decorrentes de minhas caminhadas pela Serra do Mar paranaense,
pois a Garganta do Diabo era um local que costumávamos passar
com frequência. Sempre que passávamos pelo local sentíamos certa
apreensão, mas também um maravilhamento, características do
sentimento sublime. Para Kant, tanto uma altura elevada quanto uma
profunda depressão são sublimes, porém, a altura gera admiração
enquanto o abismo gera assombro (KANT, 1995). Também em Burke
encontramos a seguinte afirmação: “É lícito supor, igualmente, que a
altura seja menos imponente do que a profundidade e que nos cho-
que mais olhar para um precipício do que para um objeto de altura
equivalente [...]” (BURKE, 1993 p. 77).

136
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

Figura 18: Camilla Carpanezzi, Homenagem à Turner - o desfiladeiro de São Gotardo,


2005. Terra e óleo sobre tela, 110 cm x 70 cm.
Fonte: acervo pessoal.

O estilo particular de Turner floresceu entre 1830 e 1840, perío-


do considerado pelos críticos como de sua maturidade artística. Foi o
momento em que o artista abandonou os detalhes, organizando suas
pinturas em grandes massas de cor. Na época de sua pintura tardia,
os objetos perdem importância, restando apenas imagens difusas de
cor e luz. São trabalhos muito diferentes da estética romântica da
época, beirando a abstração e prenunciando o impressionismo.
No trabalho de Turner, percebemos a capacidade da água de
refletir o céu, confundindo-se com ele e criando panoramas mágicos

137
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

como observamos na figura 19, de um lago ao pôr do sol, provavel-


mente o Lago Lucerna, destino comum do artista na década de 1840.
Já na figura 20, uma marinha com tempestade aproximando-se,
em que percebemos toda a agitação do mar e do céu diante de um
perigo iminente. Os trabalhos são realizados com velaturas, empas-
tes, raspagens, o que demonstra o total domínio do pintor sobre as
técnicas utilizadas.

Figura 19: Pôr do sol sobre um lago Figura 20: Paisagem marinha com
William Turner. Óleo sobre tela (1840). tempestade chegando
Tate Modern, Londres, Inglaterra. William Turner. Óleo sobre tela (1840)
Dimensões da obra: 91 x 122 cm6 Tate Modern, Londres, Inglaterra.
Dimensões da obra: 91 x 121 cm7

No período maduro de Turner, como observamos nas obras


anteriores, percebemos a importância do espaço vazio. Em ambas
as obras, quase metade da tela encontra-se em branco, o que nos
remete ao espaço vazio das antigas pinturas chinesas. Porém, aqui, o
“vazio”, diferentemente das pinturas orientais, não é o espaço vazio da
tela em branco, mas um espaço construído com inúmeras camadas
de tinta sob o branco e uma intrincada combinação de pinceladas
espessas e diluídas.

6  https://www.tate.org.uk/art/artworks/turner-sun-setting-over-a-lake-n04665
7  http://www.tate.org.uk/art/artworks/turner-seascape-with-storm-coming-
on-n04445

138
AS ÁGUAS DA MONTANHA NA PINTURA DE PAISAGEM

O interesse recai sobre as condições atmosféricas e sobre a luz.


“O significado da luz foi para Turner a emanação do espírito de Deus,
e foi por isso que ele refinou o assunto de suas pinturas posteriores,
deixando de fora objetos e detalhes sólidos, concentrando-se no jogo
de luz na água, no brilho dos céus e nos fogos” (TURNER, 2020). Turner
faleceu em 1851 e diz-se que suas últimas palavras foram “o sol é Deus.”

Considerações finais

Em síntese, percebemos algumas características similares em


relação à paisagem tanto no Oriente quanto no Ocidente: 1) A natu-
reza como fonte de conhecimento, sabedoria e elevação espiritual;
2) A pintura de paisagem em sua dimensão épica e a pequenez do
homem diante da sua grandiosidade. Enquanto os orientais bus-
cavam o Tao na natureza, os ocidentais viam-na como porta para
experiências sublimes. Seja no Oriente ou no Ocidente, o sentimento
de grandiosidade da paisagem é evidente.
Observamos, neste estudo, que o pintor de paisagem é antes
de tudo um apaixonado pela natureza, que busca, nela, o conheci-
mento. Os pintores de paisagem vivem a experiência da montanha
antes de pintá-las. Zong Bing passou a pintar montanhas quando
estava velho demais para percorrê-las. Muitos monges, poetas e
pintores viveram na região das Montanhas Amarelas, China. Já os
paranistas admiravam especialmente o Pico Marumbi. William Turner
foi um viajante incansável, que fazia esboços nos locais visitados.
Inúmeros outros artistas e movimentos poderiam ter sido
incluídos neste estudo, porém, nosso objetivo foi delimitar algumas
referências. É difícil tratar de paisagem e não mencionar os impres-
sionistas, que modificaram completamente esse gênero de pintura,
passando a pintar de maneira rápida, ao ar livre, estudando atenta-
mente a incidência da luz do sol sobre as cores da paisagem. Refe-
rências da arte brasileira contemporânea também poderiam ter sido
citadas, mas deverão ficar para outro momento. Encontramos nos

139
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

artistas brasileiros Thiago Rocha Pitta, Marianitta Luzzati e Francisco


Faria diferentes olhares sobre a paisagem e linguagens como pintura,
desenho, fotografia, vídeos e instalações. Assim, existem inúmeras
formas de ressignificar a paisagem na contemporaneidade.
Diante dos conceitos de paisagem aqui estudados, as
questões de espiritualidade presentes no pensamento oriental e o
conceito de sublime encontrado no Romantismo contribuíram para
embasar nossas reflexões. Após realizar este estudo, reafirmamos
nosso propósito de produção artística tendo a paisagem como tema,
pois a teoria ajuda a fomentar o processo de criação.

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142
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:
a gravura como estratégia de intervenção urbana

Renato Torres

Introdução

A paisagem enquanto conceito já foi explorada de diversas


maneiras em produções artísticas. Já foi considerada como elemen-
to secundário ao compor o fundo de retratos; já ganhou destaque
ao representar o ambiente natural e conquistou novos horizontes ao
tratar do ambiente urbano. Todavia, por se tratar de uma pesquisa de
arte produzida no tempo corrente, torna-se necessário considerar
outras referências de produções artísticas que procuraram dialogar
com a paisagem na contemporaneidade. Partindo dessa premissa,
o presente capítulo tem como objetivo refletir sobre a utilização da
gravura de arte como elemento de intervenção na paisagem urbana.
Para estruturar a pesquisa, foi utilizado o método de pesquisa
em arte,1 que contempla a interconexão entre a prática e a teoria,
considerando as relações entre o processo de criação em Artes
Visuais e os referenciais artísticos e teóricos (REY, 1996). A pesquisa
em poéticas visuais contribuiu para tomada de consciência sobre
a criação artística e sobre as operações conceituais implícitas nas
escolhas de processo. Neste sentido, o pesquisador “[...] concebe
seu fazer artístico como práxis, sendo portador de uma dimensão
teórica e, consequentemente, articulando o seu fazer de atelier com
a produção de conhecimento” (REY, 1996, p. 82).

1  A pesquisa em arte compreende a pesquisa em que o autor investiga seu próprio processo
de criação em Artes Visuais, considerando questões teóricas, técnicas e poéticas decorrentes
de situações levantadas durante a prática artística e em momentos de instauração da obra.
Esse método de pesquisa diferencia-se da pesquisa sobre arte que se volta para investigações
teóricas, após a conclusão do trabalho artístico, normalmente desenvolvidos nas linhas de
Teoria, História e Crítica de Arte (REY, 1996).

143
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Conforme Marco Buti (2002, p. 15), “em arte há inúmeras ma-


nifestações em que a intervenção física do artista é inseparável da
criação de sentido. Essa prática não é nunca uma finalidade em si,
mas continuidade entre pensar e fazer”. Na obra gráfica, o pensa-
mento e a prática estão interconectados.
Para organizar esta reflexão, o texto está dividido em três mo-
mentos, sendo o primeiro destinado a discutir os conceitos: desloca-
mento, efêmero e lugar a partir da produção de arte contemporânea,
sobretudo aquelas que tratam de aspectos da paisagem. No segundo
subitem, a reflexão parte do mesmo contexto para pensar avanços
nos processos de criação em gravura. Por fim, a produção artística
é discutida à luz da teoria desenvolvida nos tópicos anteriores, en-
fatizando a intervenção urbana como possibilidade de ação artística
sobre a paisagem urbana.

A paisagem na arte contemporânea: o deslocamento, o


efêmero e o lugar

Os artistas aqui apresentados localizam-se em diferentes


temporalidades, todavia, ajudarão a visualizar uma série de opera-
ções artísticas que contribuíram para mudanças na forma de apro-
priação da paisagem. A produção artística abriga o diálogo com seu
tempo e contexto histórico. Não obstante, a criação de obras que
tem como base a temática da paisagem não pode ignorar as relações
simbólicas desenvolvidas em épocas anteriores. A paisagem foi con-
vencionalmente representada na pintura sob a visão estereotipada
do artista em frente ao cavalete, no alto da colina, como uma espécie
de janela que recorta parte do horizonte. Para Nelson Brissac Peixoto
(2004, p. 9), essa perspectiva não dá conta da contemporaneidade,
pois encontra-se “no horizonte, um mundo cada vez mais opaco”.
Aparentemente a paisagem na arte apresenta-se como algo
pronto, uma espécie de fórmula utilizada em mecanismos de repre-
sentação. “A percepção da paisagem é uma evidência, uma injunção

144
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

implícita, e que não é preciso dizer que a paisagem é bela. Nada se


pode igualar a uma bela paisagem. Ela está dada, apresentada aos
sentidos, como uma fruição, um repouso” (CAUQUELIN, 2007, 103).
Todavia, para Anne Cauquelin (2007), tais premissas necessitam de
reflexão, pois a expectativa de encontrar uma bela paisagem ao abrir
a janela só pode gerar a consciência de que se trata de um projeto de
imagem, sobretudo quando se depara com algo fora do lugar, como
um azul não tão intenso no mar ou um tom distorcido no céu. “É no
desapontamento, na ‘falha’ e na ausência da história que esse quadro
surge” (CAUQUELIN, 2007, 103). Na modernidade, por exemplo:

As paisagens de Cézanne contém uma alteração profunda


da representação do espaço. Na pintura, ela deixa de ser
físico, objetivo e exterior, passando a ser intelectual, sub-
jetivo e perceptivo. Sua concepção pictórica é cerebral.
A pintura perde sua profundidade; o plano da tela é res-
saltado como expressão prioritária (MEIRA, 2000, p. 103).

Para Meira (2000), a paisagem moderna na arte pode ser


compreendida como resultante da relação entre o repertório visual do
observador e a construção da tradição das imagens, valendo-se do
campo da percepção e não propriamente sobre a realidade circundan-
te. Neste sentido, Peixoto (2004, p. 11) afirma que: “Cada obra de arte
se apresenta então, como um mero fragmento, uma minúscula peça
arbitrariamente recortada de um tecido infinitamente mais amplo”,
como um recorte feito através de uma janela, que nunca dá conta de
toda a paisagem. Contudo, na modernidade, os processos de criação
eram constantemente questionados. Artistas como Henri Matisse, por
exemplo, exploraram a pintura de paisagem em meio a novas formas
de composição e de estrutura de imagem. De acordo com Avancini:

Nosso pintor chega a uma conclusão elaborada no gê-


nero paisagem com a série de obras murais executadas
depois de 1946, inspiradas nos motivos vistos na Oceania
e recuperados pela memória. Neles, Matisse adquiriu uma
capacidade de síntese e, pela primeira vez, tomou o céu

145
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

e o mar como tema central na pintura dos painéis, não os


representando na tradição verista, mas elaborando um
código de imagens que agem por sugestão, que atuam
na memória e na fantasia do espectador. (AVANCINI,
2000, p. 152)

Para o autor, na elaboração dos painéis, Matisse reinterpreta


a paisagem, “dando-lhe uma nova dimensão simbólica e afetiva, po-
tencializando as imagens, trabalhando com uma nova concepção de
espaço alargado, sem limites, e integrando as figuras num conjunto
em constante movimento e equilíbrio” (AVANCINI, 2000, p. 152). Em
carta a Henri Clifford, Matisse ([1948] 2007) confirma tais premissas
declarando que: “Um artista deve apropriar-se da Natureza. Ele deve
se identificar com seu ritmo, por meio de um esforço que lhe permi-
tirá adquirir esse domínio com o qual, mais tarde, poderá se exprimir
em sua linguagem própria”.
Neste sentido, Matisse não está preocupado em representar a
paisagem tal como ela é, mas busca construir uma linguagem moder-
na que se apropria da paisagem e reconfigura-a como parte de seu
projeto poético. Nos anos seguintes, Matisse dedicou-se à Capela de
Vence. Ao tratar sobre essa produção, Matisse destacava sua opção
por construir uma linguagem artística própria:

Durante toda minha vida, fui influenciado pela opinião


corrente na época em que comecei, segundo o qual só
se aceitava o registro do que era observado na natureza,
quando tudo o que vinha da imaginação ou da lembrança
era chamado de ‘feito de cabeça’, sem valor para a cons-
trução de uma obra plástica. Os mestres das Belas-Artes
diziam aos alunos: ‘Copiem cegamente a natureza’. Em
toda minha carreira reagi contra essa opinião à qual não
podia submeter-me, e essa luta foi a fonte de diversas
metamorfoses de meu percurso, durante o qual procurei
possibilidades de expressão fora da cópia literal, como o
pontilhismo e o fauvismo. (MATISSE, [1951] 2007, p. 298)

O trabalho desenvolvido para a Capela de Vence, além de


explicitar a linguagem, levanta outra questão, o local onde a obra

146
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

encontra-se. Produzir obras em igrejas não era novidade, pois há inú-


meros exemplos na história da arte, mas obras que ressignifiquem o
lugar, seja por questões formais ou conceituais, merecem uma análise
mais aprofundada. Na obra de Mark Rothko, por exemplo, é possível
repensar tal relação entre obra e espaço físico. De acordo com Pei-
xoto (2004, p. 310), o artista “defronta-se com Nova York quando já
havia se tornado evidente que aqueles grandes ângulos haviam sido
impostos artificialmente a um solo urbano caótico, com o qual não
mantinha qualquer ligação”. Diante disso, o desafio para o artista
seria pensar formas de encontrar um lugar adequado e silencioso
para seu trabalho, em meio ao barulho caótico da vida urbana. Rothko
estava pensando na interação entre várias obras suas, na tentativa
de criar um lugar, estabelecendo um questionamento entre espaço
arquitetônico e presença humana (PEIXOTO, 2004).

Entendendo que os grandes museus são mausoléus,


Rothko propõe pequenos locais distantes, como capelas
onde o viajante poderia entrar para contemplar um qua-
dro. O que indica seu conhecimento da obra de Matisse,
os murais desenhados e os vitrais para uma capela em
Vence, França. Capelas que liberem as obras das narra-
tivas históricas que as instalações museológicas criam,
do itinerário pelas mãos de colecionadores que sempre
acaba num lugar institucional: o museu. Uma capela afas-
tada, fora da cidade, por onde não se passaria por acaso,
mas onde se devesse ir: uma destinação. As pinturas
deveriam ensejar uma peregrinação até o lugar (PEIXOTO,
2004, 313).

A capela de Rothko foi criada, mais tarde, em Houston. Assim,


o conjunto formado pelo local, a obra e a presença humana criariam
um momento de silêncio, um hiato no ritmo frenético das cidades. Tal
proposição cria um deslocamento no local consagrado para a Arte,
como se a função do museu deixasse de atender às necessidades da
obra. Operações artísticas que se valem do deslocamento ganharam
força a partir da década de 1960. Para Cauquelin (2008), o próprio

147
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

deslocamento pode ser pensado como obra. Tal argumentação dire-


ciona-se para as produções da land art.

Com efeito, sabemos que os sítios da land art americana


são de acesso extremamente difícil, ou categorica-
mente invisíveis, como o Spiral Jetty, Robert Smithson,
recoberto de água a maior parte do tempo. Se, para os
espectadores, o deslocamento para o ‘lugar da obra’ se
faz em raríssimas ocasiões, quando não é desnecessário,
se o deslocamento do artista é sugerido e suposto, mas
não é certo – só se tem como prova os documentos que
o próprio artista apresentou-, de que deslocamento se
trata, então? Com a obra permanecendo fora de visão,
entramos no campo da ficção, da incerteza: o que vejo
aqui (na galeria) é crível? O objeto – indicado como au-
sente – existe realmente? O deslocamento que se exibe
como tal não oculta muito simplesmente a desaparição
ou a inexistência? (CAUQUELIN, 2008, p. 70-71)

Tais indagações dão luz a um jogo de vazio e lugar, que embora


esteja vinculado à galeria, o local ideal da obra de arte passa a ser
questionado. Conforme Sandra Rey (2010, p. 272), na land art “[...] a
natureza não é simplesmente representada, mas é no interior de si
mesma (in situ) que os artistas trabalham, tomando-lhe emprestado
do material e a superfície de inscrição, como nas culturas primitivas
originárias [...]”. Assim, na land art, obras feitas no deserto ou em locais
distantes passam a valer-se de interferências na paisagem como
obra, sendo muitas de dimensões tão grandes que, para serem vistas
em sua totalidade, necessitam ser sobrevoadas.

Spiral Jetty tem 457 m de comprimento e 4,5 m de


largura. Na construção, foram usadas 6.650 toneladas
de material – rochas terciárias compostas de basalto
(vulcânico) e cascalho, portanto, elas próprias agregados
de elementos heterogêneos – transportadas por cami-
nhão. A realização da obra, financiada por duas galerias,
foi equacionada inteiramente no sistema de produção do
mercado de arte. Smithson arrendou a área junto ao lago,
pertencente ao estado de Utah, e obteve as permissões
dos órgãos reguladores do uso da terra. Para a constru-

148
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

ção, ele contratou uma empresa, a Parsons Construction


Inc. (PEIXOTO, 2010, p. 265).

Outras questões apresentam-se nessa obra, como um traba-


lho que questiona o local da obra de arte sendo financiada por duas
galerias e o desafio do artista em coordenar uma série de variáveis
na execução dos trabalhos de engenharia, com o propósito de alte-
rações na paisagem.
O artista Walter De Maria, também pertencente à land art, em
sua obra mais emblemática constrói um campo de raios, manipulan-
do estados físicos da natureza. Sobre essa obra, descreve Michael
Archer (2001, p. 98-100):

[...] no Novo México ele colocou hastes de ferro verticais


a espaços regulares numa área de 1.600 metros para
fazer o seu Campo relampejante (1971-77). Campo Re-
lampejante é permanente, porém isolado: ‘o isolamento’,
disse De Maria, ‘é a essência da Land Art’. Aqueles que
desejam vê-la podem fazê-lo em pequenos grupos, com
um pernoite na cabana próxima, que lhes dá o tempo
suficiente para fazer a caminhada necessária pela área.
O modo como a obra é vista não é extrínseco à sua con-
dição e significado, mas parte deles. Em suas anotações
de trabalho, De Maria salienta, por exemplo, que observar
Campo relampejante do alto não teria nenhum valor uma
vez que a relação entre céu e terra é muito importante; a
centralidade dessa relação é claramente visível do solo,
especialmente quando o relâmpago, tão comum naquela
área, vem se bifurcando pelo ar.

Nas obras de De Maria, a natureza passa a fazer parte integrante


da obra. “A visita aos seus trabalhos na natureza, como separação do
mundo da arte, instaura assim, a problemática do endereçamento e da
presença de uma esfera pública nessa arte” (FERREIRA, 2010, p. 183).
Para a autora, ao deslocar-se até a obra, o público afasta-se tanto dos
grandes centros, quanto do próprio universo da arte, gerando relatos
que passaram a incorporar a descrição das obras. Por extensão, pas-
sou-se também a valorizar a experiência temporal do observador.

149
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Não são mais os ‘lugares’ como os museus, galerias ou


lugares predeterminados na cidade ou desertos que es-
tão em causa, mas o deslocamento em si, portador, com
novas tecnologias, de outra concepção dos lugares e do
vazio, concepção que só pode ser abordada em termos
de suportes móveis e de incorporeidade (CAUQUELIN,
2008, p. 73).

Se a land art questionou o lugar da obra de arte, participantes


dos eventos Fluxus contestaram a própria arte como instituição.
Conforme Cristina Freire (2006), entre 1962 e 1978, um grupo de
artistas de diferentes nacionalidades produziram arte e organizaram
eventos principalmente na Europa. Participaram do Fluxus artistas
como: George Maciunas, Nan June Paik, Joseph Beuys, John Cage,
Yoko Ono, George Brecht, Robert Watts (que explorou a gravura com
trabalhos que personificavam dinheiro, selos e digitais), Robert Filliou,
Bem Vautier, Wolf Vostell, La Monte Young, Paulo Bruscky, entre tantos
outros. As ações Fluxus abrangiam publicações de textos de artistas
de vanguardas, performances, vídeos e festivais organizados em
cidades como Copenhagem, Paris, Düsseldorf, Amsterdam e Nice. “O
efêmero das ações Fluxus misturava arte e cotidiano, buscava des-
truir convenções e valorizar a criação coletiva de artistas, músicos e
escritores” (FREIRE, 2006, p. 15). Procuravam estreitar as fronteiras
entre arte e vida, explorar o acaso e criar instruções/ações artísticas.

O Fluxus não estava essencialmente preocupado com os


objetos. A sua tendência era para evocar o efêmero. O
seu nome faz tanto parte da história da arte de ação e
do livro de artista como da história da escultura. Porém,
também aponta para uma crise produtiva que envolve o
objeto. [...] Os aspectos antiburgueses e anticomerciais
da arte, a mistura da realidade cotidiana e do absurdo,
a partitura e o puro acaso, a atuação ocidental e a liber-
dade anarquicamente divertida eram publicitados com o
intuito de os transformar em artigos de fé (SCHNECKE-
NBURGER, 2010, p. 521).

150
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

Neste sentido, tendo como base os questionamentos sobre o


comércio da arte, o efêmero tornou-se uma das principais caracte-
rísticas das ações Fluxus. “Os eventos Fluxus eram espontâneos na
medida em que suas execuções dependiam dos participantes e dos
materiais, presentes e ausentes” (FRICKE, 2010, p. 587). Na visão de
Susan Tallman (1996), George Maciunas foi a figura central do Fluxus,
pois atuou como administrador, arquivista, editor e protetor da ideo-
logia do grupo. As tentativas anárquicas do Fluxus em reestruturar a
produção, distribuição e consumo foram precursores da arte concei-
tual e de uma série de criações de gravuras alternativas, como: livros
de artistas, arte xerox, e arte postal.
Para Maciunas, o ponto em comum entre os participantes
era a ‘preocupação com insignificâncias’. Em meados dos anos
60, o Fluxus estava operando mais como uma editora, distribuindo
suas mercadorias através de correios e de lojas-Fluxus em diversos
países, dirigidas por artistas adeptos da iniciativa. As caixas-Fluxus
continham: matérias impressas, objetos achados, jogos e registros de
performances de diversos de artistas. As caixas eram organizadas de
acordo com a demanda, ocasionando diferentes composições a baixo
custo e, portanto, apesar de serem vendidas, desafiavam o conceito
de arte como um consumo de luxo. Maciunas idealizava o Fluxus
como um coletivo, questionando a noção do artista como alguém
superior (TALLMAN, 1996). As ações Fluxus não tratam diretamente
do assunto paisagem, contudo, criam situações que interferem na
paisagem urbana. De acordo com Freire (2000, p. 357):

A partir do final da década dos anos 1950, especialmente


nas décadas de 60 e 70, os artistas passam a se valer da
paisagem – entendida aqui enquanto contexto em seus
múltiplos significados – como condição de elaboração
e de lugar de apresentação de suas obras. Procuram
investigar e, frequentemente, agir nas camadas históri-
cas, sociais e simbólicas do ambiente urbano. O trabalho
artístico torna-se registro de um ‘processo’, na maioria
das vezes efêmero, que não poderia ser reduzido às ca-
racterísticas formais de um objeto autônomo. São muitas

151
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

vezes, proposições transitórias que permanecem como


registros. Ao dispensar os artifícios da representação, os
artistas operam revelando a espessura de significações
que constituem os lugares.

Para Freire (2000), essa produção contemporânea de arte


busca apreender da melhor forma possível a experiência no espaço
por meio de intervenções ativas, operando com os aspectos físicos e
afetivos. Essa arte não mais se concentraria nos objetos físicos, mas
nas proposições e ideias que operassem com a noção de lugar. “Dois
conceitos são fundamentais aqui: ‘espaço’ e ‘lugar’. A obra de arte
moderna, autônoma por definição e, portanto, descontextualizada,
ocupa o espaço neutro da galeria, sendo indesejável qualquer refe-
rência e contexto” (FREIRE, 2000, p. 358). Em um polo oposto, há o
conceito de lugar para tratar de questões da Arte Contemporânea,
pois, “o lugar é pleno de sentidos simbólicos relacionais, identitários,
históricos, sociais e políticos” (FREIRE, 2000, p. 358). Neste sentido,
as intervenções urbanas não ocupam espaços, mas criam lugares.
Para exemplificar tais ações, seguem algumas produções artísticas
nacionais, que problematizaram o contexto político-social na década
de 1970. Em uma das intervenções, a obra atrai e repele aqueles que
se aproximam.

Trouxas ensanguentadas aparecem à beira de um riacho,


num parque municipal, em Belo Horizonte. As trouxas
não eram consequência de atos de tortura e repressão,
comuns naquela época, mas um projeto de Artur Barrio
chamado Situação T.E. (Trouxas Ensanguentadas). A
surpresa, o nojo e o medo surgiam dessa situação, nada
relacionada com a fricção desinteressada de que falava
Kant. Aqui, a arte mobiliza, convoca à participação e pro-
voca o incômodo, não apenas intelectual, mas também
físico (FREIRE, 2000, p. 361).

Cristina Freire (2000) argumenta que as paisagens em que


essas obras foram inseridas intensificam-se pelo espanto e pela

152
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

surpresa, provocando ação e reação, configurando-se como matéria


viva que, por meio da arte, pode constituir-se como lugar.
Com uma operação poética diferente de Barrio, tem-se o gru-
po Poro, um coletivo de Belo Horizonte que desenvolve suas ações
artísticas em diferentes cidades brasileiras. “O Poro se apropria de
elementos do cotidiano para estabelecer novas relações com faixas,
cartazes e panfletos” (CARVALHO, 2011, p. 191). Nas faixas, por exem-
plo, aparecem frases como: ‘Perca tempo’, ou ‘Viva a borda desloque
o centro’, sendo expostas na rua em meio ao trânsito. Essas sutis e
anônimas interferências no ritmo da cidade podem ou não ser per-
cebidas. Em ‘Azulejos de papel’, outro trabalho do coletivo, papéis
com desenhos de azulejos são colados em muros e construções de
diversos bairros, valendo-se da efemeridade para resgatar a memó-
ria urbana com simplicidade e sem espetacularização (CARVALHO,
2011). Nas proposições do Poro, existe uma constante tentativa de
ressignificar o lugar.
O terceiro exemplo concentra-se na obra de Rubens Mano,
intitulada “Detentor de ausências”, de 1994.

A instalação consiste em dois grandes refletores, de 12


mil watts de potência, instalados ao lado do viaduto do
chá. Cada cilindro é colocado sobre torres de cerca de
13 metros de altura, erguidas a partir do piso do vale,
de modo que cortem a passarela na altura da calçada.
Lançam fachos de luz paralelos, não coincidentes, de 1,5
metros de diâmetro, que atingem perpendicularmente o
fluxo de pedestres. Ao atravessá-lo, à noite, o passante
tem sua silhueta instantaneamente recortada. Por um
momento, as figuras fugidas brilham sobre iluminação
intensa, antes de desaparecerem novamente na escuri-
dão. Momento em que se pode perceber essa presença
efêmera, evidência da perda iminente (PEIXOTO, 2004,
p. 50).

Essas imagens transitórias criadas pelos fachos de luz reme-


tem ao veloz crescimento da cidade e ao anonimato do indivíduo.
Peixoto (2004, p. 51) questiona: “Onde ocorre a paisagem? Os feixes

153
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

luminosos, percorrendo o vale obscurecido, apenas deixam antever


os prédios que o contornam, enfatizando sua grande extensão, que
escapa à vista. Uma paisagem de luz”. Um lugar destacado pela inter-
venção artística, ainda que isolado. “A emissão de linhas de luz que
cruzam o viaduto e vão se perder nos fundos do vale cria uma situ-
ação que valoriza a duração, a passagem do tempo na cidade. Tudo
o que nela se manifesta – os passantes – é como acontecimento”
(PEIXOTO, 2004, p. 51).
De acordo com Yi-Fu Tuan (1983, p.179), lugar pode ser definido
como “qualquer objeto estável que capta nossa atenção”. Para o autor,
normalmente, não conseguimos olhar uma cena por completo, pois
estamos procurando pontos de repouso. A visualidade e as relações
afetivas fornecem significado e sentimento de pertença ao lugar.
Diante disso, as obras apresentadas podem contribuir para a constru-
ção de lugares, intermediados pelas relações de deslocamento e por
acontecimentos, mesmo que ressignificados por obras efêmeras.

Processos de criação em gravura: conquistas e permanências

Ao propor uma interferência urbana, a técnica de gravura


pareceu muito promissora. Dada essa escolha, surgiu a necessidade
de identificar qualidades estéticas, sobretudo as formais, derivadas
de questões conceituais em processos de criação de obras gráficas.
Os estudos nessa área ajudam na tomada de consciência de cada
decisão. A ideia inicial, a escolha da técnica, os primeiros testes, a de-
finição do assunto e a escolha da estética final, demonstram apenas
alguns dos vários momentos em que o artista precisa fazer escolhas.
Conforme Todd Lubart (2007), a criatividade desenvolve-se
em consonância entre as escolhas, o contexto e a época, pois a cria-
ção de um objeto artístico, além de atender a anseios pessoais, tende
a confrontar o julgamento consensual dos pares e de especialistas.

Os valores transmitidos pelo ambiente cultural estimulam


ou refreiam a atividade criativa, em particular, conforme

154
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

a importância dada ao indivíduo ou à coletividade. As


sociedades mais individualistas, norte-americanas ou
europeias, tendem a considerar o indivíduo como um ser
independente e autônomo, contrariando as sociedades
ditas ‘coletivas’, por exemplo, a chinesa ou taiuanesa, que
definem a pessoa, sobretudo, em relação a seu contexto
social (LUBART, 2007, p. 85).

Não obstante, mesmo em sociedades individualistas, a cultura


pode influenciar de outra maneira, quando o artista vale-se da pró-
pria cultura como base para seu processo de criação.
De acordo com Lubart (2007), é possível definir quatro etapas
para os processos criativos: Preparação; Incubação; Iluminação e
Verificação.
A etapa de ‘Preparação’ compreende a ideia inicial, bem como
as primeiras tentativas conscientes de solução e análises, das quais
resultam a definição do problema. É possível que, nessa etapa de
trabalho, os resultados sejam insatisfatórios, o que demanda um
esforço mental na continuidade do projeto. A etapa de ‘Incubação’
acontece de forma inconsciente, pois mesmo que a pessoa relaxe ou
concentre-se em outras atividades, o cérebro continua fazendo as-
sociações. A etapa de ‘Iluminação’ inicia-se quando surge uma pos-
sibilidade de solução do problema, como um flash ou uma iluminação
súbita. Por fim, a etapa de verificação implica uma análise consciente
mais criteriosa sobre o problema, conduzindo ao desenvolvimento
nem sempre linear de solução. Assim, as fases podem sobrepor-se e
reiniciar o processo (LUBART, 2007).
Cecília Almeida Salles (2006), ao estudar os modos como as
redes de pensamento em criação desenvolvem-se, define os pro-
cessamentos associativos como: expansões associativas; matrizes
geradoras, embriões ampliados; experimentações perceptivas im-
pulsionadoras; dúvidas geradoras; e erros e acasos construtores. Tais
propostas de categorias são aproximadas, pois as criações sempre
indicam singularidades.

155
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

As expansões associativas tratam das relações entre o


surgimento do interesse por determinada imagem, a consequente
observação dela em diferentes contextos e sua utilização como pon-
to de partida para a criação da obra de arte. Como exemplo, Salles
descreve a operação na obra de Senise:

Algumas imagens dos livros de Daniel Senise aparecem


de forma recorrente. Um novo desenho não apaga os
anteriores, mas parece ser contaminado pelos outros e
está, assim, impregnado pela sua história no processo
criador do artista. Os livros mostram, deste modo, a
construção de um vocabulário pessoal de imagens que
vão impregnando suas definições, em cada desenho
novo, por meio de uma série de associações visuais,
gerada por uma justaposição prolixa de imagens. Essas
associações parecem atuar como campo de testagem
do artista, na aparente tentativa de encontrar imagens
eleitas que irão para as telas, onde passarão por um
processo de construção pictórico. (SALLES, 2006, p. 124)

As imagens iniciais passam por experimentações, podendo


gerar composições junto a outros elementos visuais.
As matrizes geradoras são formas de armazenagem de dados
que funcionam por combinação. Em Artes Visuais, podem ser con-
sideradas, como matrizes geradoras, as maneiras de produzir, como
trabalhar por isolamentos de áreas em pintura, ou por repetição de
uma mesma matriz com diferentes cores em gravura. Já os embriões
ampliados referem-se a obras iniciais que servem como base para
outras obras. Tais obras “parecem conter células germinais daquilo
que sustenta sua busca maior; têm portanto, forte potencial gerador,
isto é, têm desdobramentos que seriam as expansões de embriões”
(SALLES, 2006, p. 127).
As experimentações perceptivas impulsionadoras são as
vivências cotidianas que podem gerar obras, como a capacidade
de uma luz diagonal sobre uma cadeira antiga roubar a atenção do
artista, de tal modo que essa imagem seja levada para o processo de
criação da obra. As dúvidas geradoras tratam de questionamentos

156
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

ativadores do processo de criação. Acontecem quando as questões


levantadas desestabilizam as certezas, que podem estar relacionadas
a técnicas ou a regras durante os processos de produção de obras.
Os erros e acasos construtores estão relacionados aos desvios não
programados que passam a incorporar processos de criação.
Ao tratar de gravura, atende-se às premissas dos processos
de criação já apresentados, todavia, os artistas que a utilizam como
linguagem mantém uma relação muito estreita com o fazer, da etapa
de construção da imagem até a impressão. Para Marco Buti, no pro-
cesso de criação em gravura: “Há trabalhos que devem ser realizados
com precisão mecânica, outros exigem a colaboração sensível de
uma equipe, alguns só adquirem sentido se executados pessoalmen-
te pelo artista” (BUTI; LETYCIA, 2002, p. 11). Contudo, a concepção de
arte e o envolvimento com a arte contemporânea fazem com que
os artistas gravuristas criem novos procedimentos técnicos para
atender seus projetos poéticos.
Em se tratando das modalidades tradicionais de gravura
(xilogravura, calcogravura, litogravura e serigrafia), apesar do conhe-
cimento técnico ter um papel fundamental, é o pensamento sobre a
arte que leva o artista a concluir seu projeto artístico, muitas vezes,
subvertendo a própria técnica. “A gravura tem um complicador a
mais: a falta de resultado imediato. É um procedimento indireto, cujo
resultado só é conhecido no fim, com a impressão” (BUTI; LETYCIA,
2002, p. 16). Basicamente, existem três etapas de processo presen-
tes em ambas as técnicas: a preparação da matriz, a construção da
imagem e a impressão. Todavia, durante o trabalho em cada etapa,
existe a necessidade de tomar uma série de decisões, pois o artista
não consegue prever exatamente como ficará a imagem no final, ele
lida com probabilidades. O artista, para Buti:

Não dispões da resposta imediata da pincelada ou da


tela eletrônica no momento da construção da imagem,
que nem por isso deverá ser menos articulada. Existe
um esforço mental constante para visualizar algo que
ainda não existe, fazer cada signo gravado corresponder

157
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

às necessidades construtivas da imagem impressa.


Trabalha-se por antecipação, procurando controlar um
fenômeno que só se realizará plenamente no futuro.
Cada lance da gravação implica uma cadeia de outros
em busca de uma estrutura visual sujeita às variáveis da
tinta, dos processos de entintagem e impressão e das
qualidades dos papéis (BUTI; LETYCIA, 2002, p. 16).

É possível acrescentar ainda variáveis nas três etapas: Na ma-


neira como a matriz foi preparada, se a placa de madeira foi mais ou
menos lixada; na construção da imagem, se for considerada a maneira
como cada artista manuseia ferramentas, como o corte da goiva ou o
traçado da ponta seca; e na impressão, se o papel foi umedecido de
maneira satisfatória ou se a pressão da prensa foi adequada. A própria
escolha da técnica define encaminhamentos e possíveis resultados.
A xilogravura impõe a aceitação da incorporação do desenho dos
veios da madeira como parte da imagem. Diante disso, há artistas
que optam por madeiras nobres, por conter uma trama mais fechada
e há artistas que trabalham com grandes dimensões, optando por
madeiras mais baratas por fornecem uma trama mais aberta. Além da
escolha da madeira pela dimensão do trabalho, o projeto de imagem
mais detalhada praticamente exige uma madeira nobre que facilite
o controle do corte. Já uma imagem com menos detalhes pode ser
entalhada em madeiras mais fibrosas e mais moles.
A gravura em metal exige outras escolhas. Uma imagem cons-
truída por linhas, por exemplo, pode ser executada pela técnica da
água forte. Porém, se uma imagem necessita de manchas e tonali-
dades, indica-se a utilização da técnica de água tinta com diferentes
tempos de banhos de ácido. A própria escolha do mordente, se o
ácido nítrico ou o percloreto de sódio, fornecerá diferentes resulta-
dos na qualidade da gravação.
Assim, diferentes técnicas fornecem diferentes resultados
imagéticos. O linóleo fornece áreas chapadas, sem textura. A seri-
grafia permite a utilização da imagem fotográfica como base para o
processo gráfico. A monotipia proporciona cópias únicas em proces-

158
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

sos de impressão e a fotogravura une a fotografia à gravura em metal.


Diante das mais variadas possibilidades técnicas, é o projeto poético
e a experiência gráfica vivida pelo artista que o ajudarão a escolher
seu meio de produção e auxiliarão nas decisões necessárias durante
o processo de criação.
Esta é a questão central para compreender a técnica como
processo intelectual, pois, a partir do momento em que associa a
gravura a um projeto poético, o artista seleciona, no arsenal técnico
disponível, apenas o necessário para produzir os signos, que são
correspondentes à manifestação integral de seu pensamento afetivo,
incluindo dúvidas e desejos (BUTI; LETYCIA, 2002). A experiência
técnica pode levar a alterações do fazer inicial para se alcançar um
resultado desejado. Contudo, “é uma atividade de risco, que opera
sempre no limite das possibilidades, na linha divisória entre a rea-
lização plena e o fracasso” (BUTI; LETYCIA, 2002, p. 17). A satisfação
com a imagem final dependerá de uma análise crítica por parte de
seu criador.
Na arte contemporânea, além das variáveis apresentadas, al-
gumas mudanças no pensamento sobre a natureza da arte implicaram
novas escolhas no processo de criação, pois passou-se a questionar
as modalidades tradicionais de arte como a pintura, a gravura, o de-
senho e a escultura. Neste sentido, ao analisar obras tridimensionais
contemporâneas, Rosalind Krauss (1984) cunhou o termo campo
ampliado. Em suas considerações, “o campo estabelece tanto um
conjunto ampliado, porém finito, de posições relacionadas para
determinado artista ocupar e explorar, como uma organização de
trabalho que não é ditada pelas condições de determinado meio de
expressão” (KRAUSS, 1984, p. 136). Posteriormente, esse alargamento
do conceito de uma categoria de arte como a escultura passou a
servir como base para compreender as demais, como o desenho ou
mesmo a gravura. Seguindo esse raciocínio, Tadeu Chiarelli (2002, p.
128) afirma:

159
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Deixando de pensar a gravura enquanto reunião de


técnicas de gravar imagens sobre superfícies para
pensá-las enquanto modo de reprodução de imagens, a
situação se modifica. É possível lembrar então da obra
de Andy Warhol e, mais recentemente, a obra de Barbara
Kruger, por exemplo. Porém, tanto o primeiro como esta
última investem em meios de reprodução de imagens
mais identificados com a sociedade pós industrial, onde
a despersonalização e a seriação do produto é, mais do
que nunca, o que conta.

Essa mudança de pensamento sobre as categorias de arte


também afeta os processos de criação em gravura, pois a execução
das obras passa a dar-se também em espaços não convencionais,
como, por exemplo, quando o artista gráfico deixa de usar um atelier
tradicional e passa a contratar serviços de uma gráfica comercial.
Ao deparar-se com tal mudança durante uma visita ao ateliê
do artista Jim Dine, Ricardo Resende (2000) descreve que, estando
diante de um ateliê contemporâneo de gravura, percebeu que se
tratava de um novo conceito de espaço de produção. “Sem ácidos,
sem tanques nem pias, sem aquelas enormes mesas de trabalho,
sem varais para secagem das obras, sem artistas e impressores com
as mãos e os aventais sujos de tinta, vestígios de um trabalho artesa-
nal” (RESENDE, 2000, p. 228). Mesmo parecendo improvável, o ateliê
continha “apenas computadores e obras empilhadas prontas para
serem assinadas e numeradas pelo artista, num ambiente organizado
e limpo, mais parecido com um laboratório” (RESENDE, 2000, p. 228).
Tal mudança no ateliê indica também alterações nos proces-
sos de criação. A gravura agora precisa de um acompanhamento do
artista durante a execução de seu projeto, que, muitas vezes, tradu-
z-se no encontro direto com a obra impressa e não durante o feitio,
como acontece nos processos gráficos tradicionais. Retomando a
reflexão sobre o processo de criação nas obras de Wahrol e Kruger,
Tadeu Chiarelli (2002, p. 128) afirma:

160
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

Não por nada, os dois utilizam a fotografia, offset e seus


derivados: eles se apropriam da lógica objetiva da pu-
blicidade (a única ‘arte’ possível para a sociedade atual)
e para tanto valem-se dessas modalidades, rivalizando
com os produtos feitos para a massa. Nos trabalhos
‘politizados’ de Barbara Kruger – que tentam revitalizar
os códigos visuais dos revolucionários soviéticos-, meio
e mensagem comungam no mesmo propósito: a objeti-
vidade de um emissor anônimo porém conscientemente
poderoso que precisa, no caso, despertar o(a) consumi-
dor(a) anônimo(a) de sua letargia narcísica.

Na obra dos dois artistas, a crítica à sociedade funde-se com


seu processo de criação, valendo-se de meios gráficos comerciais
para confeccionar suas obras. Nas últimas décadas, houve uma série
de avanços tecnológicos voltados ao mercado gráfico. “A arte, atenta
a essas novidades, vem incorporando imediatamente algumas dessas
inovações” (RESENDE, 2000, p, 235). Ao abordar a produção nacional
de gravura, Carlos Martins (2012, p. 13) assinala:

O aporte dos recursos fotomecânicos e das novas tec-


nologias digitais contribui grandemente para as possibi-
lidades gráficas e, consequentemente, para o universo
da imagem impressa. Popularizada desde os tempos da
nova figuração e das manifestações pop, a incorporação
dos processos fotográficos para a construção da ima-
gem traz em si uma particularidade: a de evidenciar, com
os avanços tecnológicos, os caminhos percorridos e as
sucessivas superações de suas limitações técnicas.

Assimilando tais transformações no mundo da arte, a paisa-


gem urbana transforma-se. Em proposições de artistas como Bar-
bara Kruger e Felix Gonzalez Torres, que utilizam mídia externa como
outdoor em suas obras, a paisagem altera-se, assim como na Land
Art acontece um deslocamento da obra. De acordo com Martins
(2012), a gravura também é utilizada em obras urbanas no Brasil. Em
projetos “como aqueles da arte pública, utilizam-se desse pensar
gráfico, sob diferentes prismas. Assim, estão gravadas no concreto de

161
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

amplas fachadas e empenas da cidade de São Paulo as veementes


ranhuras de Maria Bonomi” (MARTINS, 2012, p. 15). Também na estação
Sumaré, Alex Fleming serigrafou cidadãos que dialogam diariamente
com os passageiros do metrô. “Muitas vezes, para serem realizados,
esses diálogos com a arquitetura e a cidade envolvem um trabalho
de criação coletiva ou projetos de inclusão social, conferindo à ação
uma dimensão mais ampla e participativa” (MARTINS, 2012, p. 15).
Em especial nessa obra de Flemming, na estação Sumaré, questões
como identidade, companheirismo e solidão são levantadas. Sobre
seu processo de criação, Magalhães (2002, p. 107-110) declara:

O artista utilizou duas séries de vinte e duas imagens,


colocadas enfileiradas nas plataformas e ordenadas uma
no sentido inverso da outra, com vinte e dois poemas,
um para cada imagem. São retratos anônimos para tipos
raciais diferentes, brancos, pretos e asiáticos, fotografa-
dos frontalmente como nos passaportes, nas carteiras
de identidade, ampliados e gravados sobre vidros. Nos
fotolitos ampliados em alto contraste algumas zonas de
cinza são eliminadas, outras se transformam em áreas
granuladas, ou em massas de negro.

Flemming acompanhou a aplicação da imagem na própria


fábrica. Durante os preparativos, preocupou-se em explorar a trans-
parência do vidro e a sobreposição de poemas aos retratos. “Os
personagens sem nome de Alex Flemming na estação Sumaré são
documentos de nós mesmos, que chegamos e partimos, que espe-
ramos o trem. Eles perpetuam nossa passagem fugaz” (MAGALHÃES,
2002, p. 110). Assim, Flemming interfere na paisagem da grande São
Paulo, instigando o usuário do transporte coletivo a refletir sobre
sua presença e sobre a solidão nas metrópoles. Em seu processo de
criação, utiliza meios de comunicação, mas mantém singularidades
em questões estéticas formais e conceituais.
Com operações artísticas semelhantes a Alex Flemming,
diversos artistas utilizaram a gravura como meio de intervenção
urbana. Mônica Nador trabalha com estêncil, de forma colaborativa

162
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

em comunidades de periferia, transformando a paisagem urbana


e ressignificando os lugares junto aos próprios moradores. Richard
Artschwager, por sua vez, em seu projeto Locations (1969), criou
adesivos em formato de elipse, para aplicar na cidade nos locais que
seus proprietários desejassem (MARTINS, 2012; TALLMAN, 19996).
Nos exemplos artísticos elencados, observamos que, em se tratando
de gravura, o projeto poético determina a maneira como a obra será
executada, seja por meio de técnicas tradicionais ou por métodos
comerciais de impressão.

“Segurando o ar”: a gravura no espaço público

Pensar a obra de arte como pesquisa implica seguir um méto-


do aberto, que abarque tanto questões teóricas quanto a dimensão
prática. As pesquisas em Poéticas Visuais não pretendem esgotar as
leituras de uma obra, mas dar visibilidade a momentos do processo
de criação que nem sempre chegam ao conhecimento do observa-
dor. Diante disso, essa reflexão propõe-se a trabalhar determinados
aspectos da obra que tratem de discussões contemporâneas sobre
paisagem e sobre o processo de criação em gravura.
A ideia inicial da obra surgiu durante a prática da caminhada
pela cidade, há cerca de uma década atrás, o que pode configurar-se
como uma experiência perceptiva impulsionadora, como indica Sal-
les (2006). A prática da caminhada em si pode gerar uma experiência
estética. De acordo com Sandra Rey (2010, p. 273), tal atividade popu-
larizou-se “durante as primeiras décadas do século XX, num primeiro
momento enquanto forma de antiarte, depois como ato primário de
transformação simbólica do território e posteriormente como forma
autônoma de arte”. Como exemplo, a autora cita as deambulações
dadaístas, surrealistas, as derivas da Internacional Situacionista e,
mais tarde, as experiências da Land Art, as quais se configuravam
como ações no espaço real, propostas como práticas artísticas.

163
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Nessas situações, os participantes deixavam-se guiar pelo


trajeto e pelos possíveis encontros no caminho. Neste aspecto, Rey
complementa: “As ações de deslocamento na paisagem concebidas
como experiências estéticas envolvem o caminhar, mas não somente
isso: caminhar, deslocar-se, levando consigo a máquina fotográfica,
para guardar o traço dessas ações” (2010, p. 275). É possível acres-
centar ainda os pensamentos, devaneios, ideias e projetos que sur-
gem durante o deslocamento.
No caso desta pesquisa visual, após observar uma sequência
de árvores, dispararam lembranças do prazer de subir em árvores.
Esse momento pode pertencer a etapa da preparação indicada por
Todd Lubbart (2007). Posteriormente, várias imagens mentais foram se
formando sobre possibilidades de materialização da obra. Uma delas
seria a edição de gravuras com imagens iguais penduradas em uma
sequência de árvores, em uma mesma rua; outra imagem se formaria
por gravuras de crianças nas árvores, em diferentes posições (em pé,
subindo, quase caindo); por fim, teriam também gravuras de diversas
crianças fixadas em árvores, mas em locais de grande circulação.
Após decidir iniciar a produção da obra, surgiu o primeiro de-
safio: a escolha da imagem. Comecei a fotografar minha filha quando
brincava nas árvores (figura 01). Mas ao analisar as imagens, elas
pareciam não corresponder ao objetivo do projeto. Durante as expe-
rimentações, uma fotografia pareceu promissora, contudo, o fundo e
os demais elementos não agradavam.

164
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

Figura 01: Estudo fotográfico inicial.


Fonte: Imagem produzida pelo pesquisador.

Mesmo reconhecendo o potencial da imagem, os testes em


fotografias continuaram (figura 02), porém, sem sucesso. Alguns de-
senhos foram feitos, que também não foram satisfatórios. A captação
de imagens por meio de vídeos curtos com o celular, foi uma terceira
tentativa, tendo como propósito estudar os frames dos movimentos.
Todavia, os resultados continuavam sem lograr êxito.
A imagem tinha se tornado um problema. Certo dia, durante
uma caminhada na Serra do Mar, surgiu a ideia de refazer a fotografia
inicial e adequá-la ao projeto. Essa tomada de decisão, aparente-

165
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

mente ao acaso, corresponde à etapa que Lubart (2007) chamou


de incubação, quando o cérebro permanece tentando resolver um
problema, sem que o criador tenha consciência dessa atividade. Em
seguida, houve a necessidade de editar a imagem para adequá-la
à linguagem da gravura. Dentre as operações formais, destacam-se
a retirada do fundo e a alteração para escala de cinza, executada
principalmente por tratamento de texturas. Como a proposta era
trabalhar em escala humana, a técnica mais indicada foi o linóleo
(figura 03), principalmente por facilitar a construção de imagens e
a separação de figura e fundo. Essa projeção de ações destinadas à
construção da matriz de gravura corresponde ao esforço mental para
visualizar algo que não está pronto, como afirmou Marco Buti (2002).

Figura 02: Conjunto de estudos de movimentação.


Fonte: Imagens produzidas pelo pesquisador.

166
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

Figura 03: Matriz em linóleo.


Fonte: Imagem produzida pelo pesquisador.

Ao entalhar a matriz, a preocupação voltou-se para a ideia de


reinterpretar a paisagem, contudo, não como pensavam os modernos
relatados por Avancini (2000), mas com vistas para uma interferência
na paisagem. Diante disso, algumas dúvidas geradoras colocaram-se,
como: a definição das áreas com texturas; os espaços sem corte,
para serem totalmente preenchidos pela tinta; os tipos de hachuras,
para determinar tonalidades de preto; o uso de linhas de diferentes
espessuras; e as áreas totalmente abertas, para dar a impressão
de espaços de recepção de luz. Esses questionamentos ajudaram
a definir ações no momento da gravação da matriz. Outro ponto a
considerar foi o fundo da imagem, que poderia ser trabalhado ou re-
tirado totalmente. Tendo como propósito colocar a figura da criança
na árvore, tirar o fundo se fazia mais promissor.
Em seguida, um novo problema colocava-se, a escolha do su-
porte. Inicialmente, foram feitas várias provas de estado. Ao analisar a

167
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

primeira impressão, ficou perceptível a necessidade de retirar a ima-


gem da árvore e os demais elementos do fundo. Assim, a gravura da
criança de ponta cabeça, solicitava um suporte transparente. Devido
à experiência de impressões em trabalhos anteriores, o tecido voil
foi eleito o material ideal para essa obra, pois proporcionava leveza e
integrava a impressão ao lugar. O tecido teria também mais durabi-
lidade em espaço aberto que o papel. Essa sequência de decisões,
tomadas por meio de uma análise consciente e meticulosa corres-
ponde à etapa de incubação definida por Lubart (2007). Concluídos
os trabalhos de gravação e impressão, a obra estava pronta para ir
para as ruas.
A primeira intervenção urbana aconteceu na Cidade de Goiás,
em setembro de 2019, durante o 28º Encontro da Associação Nacio-
nal de Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP. Embora estivesse
participando do evento e apresentando um artigo sobre gravura, a
ação na cidade dava-se de forma espontânea, sem relação direta
com o evento. A gravura intitulada “Segurando o ar” (figura 04), foi
instalada em uma árvore na ‘Praça do Coreto’, um lugar com grande
circulação de moradores. Nesse local, aconteciam diversas mani-
festações culturais, como performances, apresentações musicais,
encontros de grupos religiosos, além da existência de uma sorveteria,
de bares e restaurantes.
A gravura integrava-se a um lugar já frequentado pela comu-
nidade. Durante a semana, foi possível acompanhar essa integração
e, em alguns momentos, receber devolutivas de colegas que tinham
percebido a gravura no local. Como não houve divulgação, vale desta-
car os relatos de surpresa ao se depararem com a imagem na praça.
Diferente das obras da Land Art que se propunham a ser visitadas,
gerando o próprio deslocamento físico dos visitantes, a gravura,
embora apresente uma imagem em escala humana, não se propôs a
esse tipo de operação artística, explorando apenas o deslocamento
da obra de um espaço consagrado para um local comum.

168
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

Contudo, por se tratar de uma obra que se constitui em


múltiplo, pode gerar cópias com outros destinos, como coleções
particulares ou o circuito oficial. A tiragem2 das gravuras ficará em
aberto por tempo indeterminado. A regra comercial de possuir tira-
gem numerada e fechada deixa de fazer sentido para uma obra efê-
mera, pois poderá desaparecer a qualquer momento. Normalmente,
a numeração das gravuras garante aos colecionadores que todas as
obras são originais e sinaliza quantas cópias existem no mundo. Em
uma operação artística efêmera, esse controle pode indicar somente
quantas ações foram propostas, pois a gravura pode deixar de existir
no exato momento em que o artista deixa-a em um local público ao
ar livre. Diante disso, para esse trabalho em específico, somente as
cópias em papel recebem numeração.

Figura 04: Instalação da gravura na Cidade de Goiás.


Fonte: Imagem produzida pelo pesquisador.

2  Tiragem: quantidade de cópias de gravura tiradas de uma mesma matriz.

169
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

A segunda cópia foi instalada em um local pouco frequentado


pela comunidade, a ‘Praça Jardinete Cardec Bahia’ (figura 05). Um
local que se encontra vazio quase que diariamente, sendo rara a
presença de crianças. De início, achei que a gravura poderia ajudar a
ressignificar o lugar, mas, no momento da instalação, optei por inserir
a gravura de forma anônima, sem publicidade. Pensei em uma sutil
contribuição e não em uma transformação.

Figura 05: Instalação da gravura na Praça Jardinete Cardec Bahia, em Curitiba.


Fonte: Imagem produzida pelo pesquisador.

Há um tempo atrás, eu e minha esposa colocamos um balanço


de madeira em uma árvore, nessa praça. Um balanço simples feito
apenas de uma corda e uma madeira. Passados dois meses, o balanço
tinha sumido. Posteriormente, o balanço reapareceu em outra árvore
e, meses depois, tinha surgido mais um balanço. Essas mudanças
indicavam que outras pessoas também se importavam com o local,
o que poderia ser um critério positivo para instalar a gravura. Se cada

170
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

frequentador contribuísse de uma forma, seria possível ressignificar


o lugar aos poucos. Para tanto, a obra in situ precisaria permanecer
por um tempo considerável.
A escolha da gravura como técnica de obra múltipla abriu a
possibilidade de a obra ser instalada em locais públicos com dife-
rentes características. Assim, a terceira obra (figura 06) foi instalada
no campus Uvaranas, na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Um
espaço amplo, com bastante área verde e com acadêmicos circulan-
do a todo instante. O local escolhido foi uma árvore próxima à central
de salas, um dos prédios do campus que abriga aulas de diversos
cursos, inclusive do curso de Licenciatura em Artes Visuais. A gravura
foi posicionada em uma paineira, a cerca de 3,00 metros do chão,
próximo a uma calçada.

Figura 06: Instalação UEPG, em Ponta Grossa.


Fonte: Imagem produzida pelo pesquisador.

171
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Por trabalhar nas proximidades, foi possível receber o retorno


de vários amigos e de alunos. Alguns procuravam saber mais sobre a
proposta e outros relatavam suas percepções a respeito da gravura.
Tais reações levavam a acreditar que a obra permaneceria no local
por bastante tempo. Diante disso, a paisagem poderia intensificar-
-se pela surpresa, por reações, pelo deslocamento ou mesmo pela
simplicidade, pois não contou com uma espetacularização (FREIRE,
2000; CARVALHO, 2011; PEIXOTO, 2004).
Mesmo com a expectativa de certa durabilidade, uma semana
após instalar a terceira obra, para minha surpresa, ela já havia sumido.
O motivo talvez nunca seja revelado. Seja pela força do vento, por
incomodar algumas pessoas ou mesmo por alguém ter gostado do
trabalho, aquela possibilidade de pertencer ao lugar deixou de existir.
Talvez a força do efêmero afirme-se mesmo na não permanência do
trabalho, na possibilidade da obra existir apenas para aqueles que
tiveram a oportunidade de estar no local na hora exata. Diante disso,
o deslocamento tratará também do momento de apreciação, assim
como acontece nas performances.
Diferente da obra instalada em Goiás, as obras de Ponta
Grossa e Curitiba não permaneceram muito tempo no local. Talvez
a própria dinâmica de um local com maior movimentação cultural,
como no caso do evento de Goiás, seja um dos motivos de perma-
nência por um tempo maior. Para o artista, o desapego à sua criação
é um desafio imenso. Se uma obra está com um colecionador ou em
um acervo público, existe a intenção de preservação. Já em uma obra
deixada em um espaço aberto, não há controle algum. Para que essas
gravuras tenham uma durabilidade um pouco maior é preciso rever
a estratégia, não se trata de criar um espaço consagrado, como fez
Rothko, mas talvez se resolva com soluções simples como reforçar
o suporte ou posicionar a gravura em um galho mais alto de árvore.
Esses questionamentos irão gerar mudanças para os próximos des-
locamentos em paisagens urbanas.

172
DESLOCAMENTOS NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA:

Considerações Finais

A gravura, dada a sua multiplicidade, pode compor uma obra


efêmera e permanente ao mesmo tempo. Efêmera quando instalada
em espaços abertos e permanente quando uma cópia passa a per-
tencer a um acervo. Diferente da Land Art, que tem a fotografia como
índice de uma obra existente em um local reservado, a cópia desse
conjunto de gravuras, se pertencente um acervo, pode funcionar
como um dispositivo que contém simultaneamente a característica
de índice e obra. Em síntese, gravuras que operam dessa maneira
podem ser consideradas obras/índices, contendo intrinsecamente
o registro do processo, como afirmou Freire (2000) ao abordar as
produções Fluxus.
O encontro com um objeto inusitado em um local público faz
parte da construção de memórias individuais e coletivas, criando
ou mesmo reafirmando relações com o lugar. Todavia, uma ação
artística pode ser mais significativa se a obra permanecer no local
por longo tempo e/ou se as pessoas considerarem-na interessante
para compor o lugar. O sentimento de pertencimento pode partir
também da relação entre o coletivo e o espaço público. Nesse caso,
a obra poderia ser solicitada pela comunidade ou mesmo construída
de forma coletiva, fortalecendo uma relação mais afetiva, como nas
obras de Mônica Nador.
Na instalação proposta, uma gravura pertencerá à subjetivi-
dade de quem a encontra, podendo ou não gerar uma experiência
estética. A experiência pode ser tão intensa que a pessoa queira
possuir a obra. Pode também ser tão incômoda que o observador
queira destruí-la. Prazer ou desprazer são emoções possíveis de se-
rem provocadas com as imagens. Desagradável é imaginar que nada
aconteceu, que uma simples ação do vento, por exemplo, pode ter
arrancado o tecido da árvore. Contudo, o mais interessante é pensar
que tais questionamentos só foram possíveis devido ao desloca-
mento da obra, saindo de um espaço protegido, como o museu ou

173
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

a galeria, para um espaço público, sem vigilância, sem reverência e


desprovido do status de obra de ‘Arte’.

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175
PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA:
Paisagens, territorialidades e os seus
desdobramentos na vida urbana

Thays Ukan
Marcos Alberto Torres

Introdução

São diversos e simultâneos os fenômenos que ocorrem nas


cidades, a qual, com toda sua complexidade, torna-se repleta de sig-
nificados e expressões que são, entre uma série de manifestações, os
reflexos das vivências de seus habitantes. No campo do urbanismo,
diz-se que a ocupação do mundo é urbana e que as cidades, são
hoje, um modo urbano de habitar o espaço (ARAÚJO, 2008). Neste
trabalho, a cidade foi entendida sob uma dimensão que extrapola os
limites físicos, sendo o resultado de constantes processos e trans-
formações que ocorrem a partir da ação de agentes. Para Lefebvre
(1991), é a partir dessas relações que se desenvolvem os sistemas de
objetos e valores que, por sua vez, dão suporte a um modo de viver
especificamente urbano, ao qual o autor chama “tecido urbano”. Para
Lefebvre (1991), as cidades são centros de vida social e concentram
riquezas, conhecimentos, técnicas e obras, sendo “a própria cidade
uma obra”. Para o historiador Giulio Carlo Argan, a cidade é, também,
uma obra em si, pois ela não é somente o agrupamento de produtos
artísticos, mas ela mesma é o produto (ARGAN, 2014). Para o autor,
com a superação da estética idealista, a obra de arte deixa de ser a
expressão de uma única e bem definida personalidade artística, pas-
sando a ser a soma de uma série de componentes que se expressam
nas cidades.

177
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Partindo dessa perspectiva, a pesquisa desenvolveu-se tendo


como objetivo a compreensão das transformações e ressignificações
que a paisagem urbana sofre a partir das intervenções de artistas
performáticos, ou seja, aquelas intervenções que têm o corpo do ar-
tista como suporte. A coleta de dados, que foi realizada entre os anos
de 2016 e 2017, contou com nove trabalhos de campo, entrevista com
sete artistas e questionário eletrônico.
A partir dos desdobramentos metodológicos e de uma revi-
são bibliográfica que parte, principalmente, do campo da Geografia
Cultural e da Sociologia, voltou-se a pesquisa às análises sobre como
os corpos dos artistas marcam a cidade, gerando processos de ter-
ritorialização – entendendo que “o território (posse) emerge com a
expressão” (HAESBAERT, 2012, p. 120) – e resulta em paisagens. Para
isso, foram trazidos para a discussão os conceitos de territorialidade
e de paisagens culturais, com o objetivo de compreender a relação
que os que transitam pela cidade de Curitiba desenvolvem com esse
espaço e com os artistas, uma vez que estes são itinerantes e não se
estabelecem em pontos fixos, são móveis.
O propósito da pesquisa foi observar e analisar como essas
interferências de artistas nos fluxos urbanos modificam a paisagem.
Portanto, o foco deste estudo foi tanto os artistas, quanto aqueles
que vivem e transitam por Curitiba, sendo que, através dos dados
coletados, foram analisadas as suas relações diante das perfor-
mances artísticas e suas considerações acerca do que observam
no que compõe a paisagem urbana. Perceber, na fala e nos gestos
do público, as mudanças nos movimentos urbanos e como esses
trabalhos podem ressignificar lugares e paisagens, interferindo nos
deslocamentos e experiência dos indivíduos na cidade, foi um dos
objetivos deste estudo.

178
PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA

Performances artísticas de rua: aproximação com a geografia

O corpo é um tema recorrente trabalhado nas artes desde os


primórdios das representações pelas mais variadas linguagens. Em
meados da década de 1960, um movimento que trazia elementos
que não correspondiam mais às normas artísticas tradicionais pas-
sou a ser reconhecido e seus trabalhos, que tinham como principal
elemento estético o corpo do artista, passaram a ser chamados de
performance arte (CUNHA, 2013, p. 15). Atualmente, segundo Cunha
(2013, p.16), pode-se notar que as linguagens artísticas tornaram-se
ainda mais variadas, inclusive as performances, incorporando ele-
mentos que tradicionalmente não faziam parte do processo artístico.
Para Cohen (2002, p.35), a performance é uma “arte de fronteira”
que rompe com a arte estabelecida e penetra por caminhos e situ-
ações que anteriormente não seriam reconhecidos como arte, além
de procurar uma aproximação com a vida, estimulando o natural, o
espontâneo, não se prendendo meramente às questões estéticas,
em que “a idéia é resgatar a característica ritual da arte, tirando-a
de “espaços mortos”, como museus, galerias, teatros, e colocando-a
numa posição “viva”, modificadora” (COHEN, 2002, p.35).
Nessa perspectiva, pode-se encarar a performance como um
acontecimento recente e que modificou a estrutura já estabelecida
da arte, em contexto mundial (CUNHA, 2013, p. 15). A arte performática
que, na década de 1960, passou a ser institucionalizada e incorporada
ao mercado fazendo parte do circuito de Arte, antes já estava presen-
te no cotidiano humano. A Arte, que, no passado, estava intimamente
ligada à técnica, incorporava as mais diversas manifestações, sendo
que muitas incluíam a utilização do corpo que manipulava objetos
com precisão. De acordo com Duprat e Bortoleto, a arte circense é
um conhecimento milenar, servindo de entretenimento e permeando
a vida de diferentes povos que, nela, traziam suas crenças, ritos e
fantasias (p.173, 2007). Atualmente, as artes circenses desdobram-se
como fenômeno independente, sendo utilizadas como subsídio téc-

179
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

nico para uma série de manifestações culturais, as quais ocorrem em


diversos espaços, inclusive nas ruas das cidades contemporâneas.
As manifestações culturais podem ser entendidas como uma
expressão humana carregada de significados. Na Geografia, diversos
autores entendem a cultura como um fenômeno que deve ser estuda-
do por trazer possibilidades e reflexões sobre a sociedade e o espaço.
Para Cosgrove (2012 [1989]), a cultura está intimamente relacionada à
paisagem, entendendo que isso dá-se particularmente na Geografia
norte americana quando Carl Sauer, na década de 1920,  originou uma
escola de Geografia da paisagem, que tem como propósito compre-
ender o papel do ser humano na transformação da Terra.
A partir disso, os estudos culturais em Geografia têm se
aproximado cada vez mais da paisagem, sendo a cultura um agente
formador e transformador das paisagens. Giuliana Andreotti (2013),
que se debruçou sobre os escritos de Lehman acerca da paisagem,
compreende que se faz necessário um olhar histórico e uma atitude
espiritual para abordar a paisagem, de modo que o observador possa
encontrar os elementos temporais que transmitem a emoção do
lugar. A paisagem, nessa perspectiva, é ainda psicológica, cabendo
ao observador mediar os elementos perceptivos dos lugares para
que possa compreender os valores dos lugares e, assim, alcançar
a paisagem. A paisagem, portanto, está repleta de emoções que se
deixam transbordar e criam relações que Andreotti (2013) chama de
histórico-espirituais.
Assim como as paisagens naturais, as paisagens urbanas es-
tão repletas de significados projetados, que as marcam de maneira
simbólica ou física. As cidades, que são o resultado de uma série de
processos e que estão repletas de manifestações e reflexos dos seus
habitantes, têm se tornado, para muitos, mero local de passagem.
Muito disso está relacionado ao modo como esse espaço urbano
foi projetado, priorizando corredores que facilitam o deslocamento
humano. Para Sennett (2008, p. 18), “a condição física do corpo em
deslocamento reforça a desconexão do espaço [...] sendo que os

180
PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA

deslocamentos são mais rápidos num meio ambiente cujas referên-


cias tornam-se secundárias”. Nesse contexto, os corpos passam a
mover-se passivamente para seus destinos. Porém, mesmo em um
ambiente como o descrito, existem corpos ativos, que marcam a
paisagem e que modificam essas estruturas, criando uma relação
que cria mundos e onde ocorrem histórias e encontros. Esses corpos,
frequentemente, são de artistas e essa relação gera um mundo de
experiências pessoais que pertencem, também, à cidade.
Nesse processo de reconhecimento do próprio corpo que se
vincula à cidade é desenvolvido um sistema de “reconhecimento ge-
ossimbólico” (BONNEMAISON, 2002, p. 110), em que agenciamentos
passam a ser ajustados entre si, desenvolvendo um sistema de terri-
torialidades (HAESBAERT, 2012, p. 123). Para Bonnemaison, “o território
não é forçosamente fechado, ele não é sempre um tecido espacial
unido, ele não induz somente a um comportamento necessariamente
estável” (BONNEMAISON, 2002, p. 99). Conforme Haesbaert, a cons-
trução de territórios gera territorializações e as territorializações são
um produto “agenciado” (2012, p.123). Para o autor, ainda, “o processo
de territorialização diz respeito ao movimento que governa os agen-
ciamentos” (HAESBAERT, 2012, p. 124).
Entende-se agenciamento por meio de uma noção ampla
de agrupamento de componentes heterogêneos, tanto biológicos
quanto sociais que estejam conectados, tenham consistência. Nos
agenciamentos, segundo Haesbaert, existem dois componentes: os
coletivos de enunciação e os maquínicos de corpos. O primeiro diz
respeito a um regime de signos, o segundo a relações entre corpos
humanos ou não (HAESBAERT, 2012, p 124 e 125). Ambos são sociais
e ocorrem concomitantemente no espaço, entendendo-se que a
territorialidade engloba simultaneamente aquilo que é fixação e
aquilo que é mobilidade (BONNEMAISON, 2002, p. 99). Desse modo,
um corpo no mundo, que marca a paisagem de maneira cultural, não
pode ser separado da ideia de território. Um artista, que quebra fluxos
urbanos, com um corpo ativo, territorializa o espaço.

181
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Aquele que presencia uma performance artística é exposto


ao processo dialético de desterritorialização e territorialização pelo
artista. Suas percepções e apreensões acerca da paisagem são
modificadas no contato com um corpo que desestabiliza a homo-
geneidade que urbanistas tentaram impor às cidades para doutrinar
os corpos (SENNETT, 2008, p 1 8). Este trabalho propõe compreender
a territorialização a qual o público das performances artísticas, na
cidade de Curitiba, está sujeito, como os artistas são territorializados
pelo seu público e também como as performances criam novas pai-
sagens, através desse processo.

Os corpos e as territorialidades

À medida que um corpo movimenta-se, ele percebe o mundo,


descobre o espaço, relaciona-se com objetos e ambientes. Para
Merleau-Ponty, a percepção de um corpo no mundo envolve a ex-
pressão que ocorre conforme o movimento realiza-se, sendo que
um corpo é capaz de comunicar coisas, ainda antes das palavras,
onde “ser corpo [...] é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo
não está primeiramente no espaço: ele é no espaço” (2008, p.205).
Entender o corpo, como expressão, implica levar em consideração
suas tarefas, seus engajamentos e, ademais, suas circunstâncias.
Para Richard Sennett (2008, p. 15), “a civilização ocidental não tem
respeitado a dignidade dos corpos humanos e a sua diversidade”,
privando-os sensorialmente, criando nas cidades um ambiente de
cerceamento tátil, onde os espaços construídos passaram a impedir
os corpos de exercerem sua liberdade. Isso se dá por meio de um
planejamento que enaltece a experiência da velocidade, favorecendo
os deslocamentos que se tornam mais rápidos à medida que os
referenciais tornam-se secundários (SENNETT, 2008), o que gera um
enfraquecimento dos sentidos tornando o corpo um ente passivo.
Para o autor, a partir do século XIX, com o urbanismo apro-
ximando-se das ideias da revolução científica de compreensão do

182
PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA

corpo humano e voltando-se a promover a grande circulação de


indivíduos – incapacitando o movimento de grupos tidos como ame-
açadores, surgidos na Revolução Francesa – as cidades passam a ser
inspiradas em “artérias e veias” e ganham um desenho que ensinava
as pessoas a moverem-se (SENNETT, 2008). De acordo com Sennet,
foram três as obras que modificaram o modo como as pessoas eram
estimuladas a viver nas cidades: 1) Regent’s Park e Regent Street em
Londres, 2) a reconstituição das ruas parisienses pelo Barão de Haus-
smann e 3) o metrô de Londres. Essas três obras marcam o início de
uma nova maneira de movimentar os corpos, em que a velocidade
passa a ser sinônimo de segurança e conforto, em que um “corpo em
movimento viaja sozinho e em silêncio” (SENNETT, 2008, p. 273).
Esses deslocamentos aos quais os corpos são resignados
reforçam a desconexão do espaço, onde os destinos tornam-se
fragmentados e descontínuos e os corpos, passivos, sem marcas.
Para Sennett (2008), é da forma como os espaços urbanos apresen-
tam-se que derivam as vivências corporais específicas dos povos e,
para que as pessoas construam boas relações umas com as outras,
é necessária uma profunda mudança sobre o modo como se tem
entendido os corpos e tem construído as cidades ocidentalizadas.
Todavia, mesmo diante de um ambiente limitador, existem corpos
marcados pelas forças de (outras) circunstâncias, que criam desor-
dem no espaço urbano e modificam suas estruturas, onde a ordem
é justamente a falta de contato, de relação e a perda de referenciais
(SENNETT, 2008) Esses corpos expressam-se de diferentes manei-
ras: o caminhar lento, as derivas, o cultivo de jardins, as pichações
nos muros, os encontros para conversar nas ruas, as apresentações
artísticas etc. Intencionalmente ou não, existem corpos que criam,
nas cidades, novos referenciais, novas relações, encontros e agen-
ciamentos, os quais são entendidos como segmentados e capazes
de se estenderem sobre segmentos contíguos. Esses segmentos são
simultaneamente territórios e poderes. Como segmentos contíguos,
os agenciamentos têm pontas de desterritorialização, têm sempre

183
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

uma linha de fuga (DELEUZE; GUATTARI, 1975). Os agenciamentos são


um produto rizomático, isto é, recusam a ideia do pensamento como
representação e compreendem o mundo a partir da multiplicidade. 
O rizoma funciona através do encontro de agenciamentos
(HAESBAERT, 2012). Para Haesbaert (2012), os agenciamentos são
geográficos, pois são, antes de tudo, territoriais. E, território, tem a
ver com poder (HAESBAERT, 2008). Conforme o autor, existe uma
questão de escala que é própria do território, que se inicia no terri-
tório animal (1), passa ao território psicológico (subjetivo) (2), entra
no sociológico (3) e, por fim, chega ao território geográfico (4). Neste
último, existe um imbricamento entre território-agenciamento, que
cria os processos de territorialização, como pode ser observado na
imagem a seguir (figura 01):

Figura 01: As escalas dos territórios


Fonte: HAESBAERT, 2019, p. 12

Deleuze e Guattari escrevem ainda sobre uma quinta esfe-


ra, que engloba e que está em um espaço além das outras quatro,
entrando no campo da Filosofia – sendo, para eles, o território um
conceito fundamental na Filosofia (HAESBAERT, 2008, p. 121).
A partir disso, territorialização pode ser entendida como
um processo que governa os agenciamentos e seus componentes.
Segundo Haesbaert (2012), são dois os componentes dos agencia-
mentos: os coletivos de enunciação e os maquínicos de corpos (ou
desejos). O primeiro diz respeito a um regime de signos, mas sempre
em viés social, a partir da relação, da linguagem compartilhada; o
segundo trata da relação concreta entre corpos humanos, animais,

184
PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA

cósmicos (HAESBAERT, 2012, p. 124). Ambos os agenciamentos têm


forma: os maquínicos como conteúdo e os de enunciação como
expressão. Não há uma relação hierárquica entre os dois, mas de
reciprocidade. São, também, abertos e móveis, sempre em processo,
sendo o território derivado desse movimento “um ato, uma ação, uma
rel-ação, um movimento de territorialização e desterritorialização, um
ritmo” (HAESBAERT, 2012, p. 127). A territorialização pode ser enten-
dida, então, como uma dimensão tanto simbólica, quanto funcional,
que nunca se apresenta em estado puro, sendo sempre uma relação
entre esses dois componentes (HAESBAERT, 2008). Assim, neste tra-
balho, os corpos são entendidos dentro da lógica de agenciamentos,
que territorializam e são territorializados constantemente.
Para Bonemmaison (2002), o território tem também uma
carga que está além do entendimento biológico, econômico, social e
político, ele é a expressão mais “humana”, é essencialmente o lugar da
mediação entre as pessoas e sua cultura É um lugar de enraizamento,
o “derivado carnal da cultura” (BONEMMAISON, 2002, p. 131). O autor
entende enraizamento não como uma fixação material no espaço,
mas como uma relação que se expressa através das conexões, da
afetividade. Segundo o autor, o enraizamento expressa territorialida-
de, em que, por meio dela, os grupos exprimem suas concepções
de mundo, organizações e hierarquias (BONNEMAISON, 2002). Para
dar conta dessa relação simbólica, o autor desenvolve o conceito
de geossímbolo que pode ser entendido como um meio de fixar no
espaço as territorialidades, de se fazer presente como uma existên-
cia, ser identificado como parte de um grupo. Um geossímbolo pode
ser entendido como “um lugar, um itinerário, uma extensão que, por
razões religiosas, políticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas e
grupos étnicos, assume uma dimensão simbólica que os favorece em
sua identidade” (BONEMMAISON, 2002, p.109). Pode-se entender os
artistas performáticos como uma categoria com determinadas rela-
ções simbólicas, que Bonemmaison chama de geossimbólicas, uma
vez que o grupo contém características comuns e práticas sociais
que criam a possibilidade de agrupamento.

185
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Assim, em um processo dialético, a corporeidade situa-se


como existência através das relações que são construídas, constan-
temente, pelos processos de territorialização e afirmação, por meio
dos geossímbolos. Com isso, neste trabalho, os corpos estudados
são os dos artistas performáticos em relação aos corpos cotidia-
nos do seu público, que estão em uma contínua movimentação de
territorialização, desterritorialização e reterritorialização, pois as
desterritorializações jamais acontecem individualmente. Um artista,
que intencionalmente existe no espaço, que marca e modifica as
estruturas com seu corpo ativo, é agente atuante por meio desses
processos e movimentos de territorialização, porém, esse corpo é
também territorializado pelo público, constantemente e, nesse pro-
cesso, as paisagens são ressignificadas.

As paisagens urbanas

A paisagem pode ser entendida como um dos conceitos chave


para a Geografia, tendo em vista as diversas possibilidades de sua
aplicação. Em 1907, Otto Schlüter descreveu a paisagem como sendo
o objeto da Geografia Humana, já que ela é modelada tanto por forças
da natureza quanto pela ação de pessoas.  Para Sauer (1925), a paisa-
gem geográfica resultava da ação da cultura, ao longo do tempo, sobre
a paisagem natural. Em seu estudo sobre a morfologia da paisagem,
Sauer comenta: “os fatos da geografia, são fatos de lugar; sua asso-
ciação origina o conceito de paisagem”, onde a paisagem pode ser
vista como uma unidade orgânica, que compreende a vida e a terra
(SAUER, 1998, p. 23). Todavia, de acordo com Corrêa e Rosendahl, com
o desenvolvimento dos conceitos de região, espaço, território e lugar,
a paisagem tornou-se relegada a uma posição secundária, sendo reto-
mada somente após os anos 1970, após o desenvolvimento de novas
acepções com base em outras matrizes epistemológicas (CORRÊA e
ROSENDAHL, 1998). Denis Cosgrove é um dos autores que se dedica
ao estudo da paisagem, desenvolvendo mais profundamente a ideia

186
PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA

de paisagens culturais. Esse autor, que traz elementos críticos para o


desenrolar de uma Geografia Humana, pensa as paisagens como sim-
bólicas por se tratarem do produto da apropriação e transformação do
meio ambiente, além de serem uma maneira “de ver, uma maneira de
compor e harmonizar o mundo externo em uma cena, em uma unidade
visual” (COSGROVE 2004, p. 108). Para ele, o termo paisagem está vin-
culado, ainda, ao Renascimento, que propunha uma nova relação entre
os seres humanos e a natureza.
A relação da paisagem com a cultura, para o autor, está no fato
de que cada cultura tem expressões na paisagem, onde se entende o
estudo da cultura diretamente ligado ao estudo do poder (COSGRO-
VE, 2004). Isso ocorre, de acordo com Cosgrove, pois ao se olhar uma
paisagem podem ser percebidas as marcas de vários grupos – ao
passo que toda paisagem é simbólica.
Como resultado dessa reflexão, o autor propõe a existência de
paisagens que estão ligadas ao que ele chama de culturas dominan-
tes e culturas alternativas, sendo a segunda dividida entre residuais,
emergentes e excluídas. Cada uma dessas paisagens tem elementos
particulares. Para o autor, as paisagens da cultura dominante são
as que se formam por intermédio de um grupo que tem poder so-
bre outro, são paisagens temporais que não são apenas afirmações
estéticas, mas transmitem valores. São as paisagens dominantes
aquelas relacionadas ao poder público e aos grupos cuja dominação
está baseada no controle dos meios de vida (COSGROVE, 2004). Por
sua vez, as paisagens das culturas alternativas, mesmo que dominem
localmente determinada área, estão sempre subjugadas às marcas da
cultura dominante nacional e oficial. Ainda sobre as paisagens alterna-
tivas e suas subdivisões, o autor entende as paisagens residuais como
sendo aquelas que perderam seu significado original, sendo algumas,
inclusive, desprovidas de significado; as paisagens emergentes são
aquelas que estão relacionadas a um grande grupo de pessoas que
impactam permanentemente a paisagem, mas de maneira não muito
expressiva, geralmente com ideias que antecipam culturas futuras

187
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

e novas relações sociais; por fim, entende as paisagens das culturas


excluídas como sendo aquelas relacionadas a grupos marginais, que,
dentro da lógica dos jogos de poder, estão subjugados às das culturas
dominantes, mesmo que coexistam nas cidades.
Dentro dessa perspectiva, as paisagens passam a ser enten-
didas como uma construção que parte das relações que os grupos
humanos estabelecem com seu entorno. As áreas urbanas, que,
atualmente, concentram a maior parte da população mundial, são
repletas de diferentes sujeitos com identidades e corporalidades
distintas, que se expressam e são acometidos por percepções de-
rivadas das suas relações com o espaço. Nesse processo, chamado
aqui de territorialização – como justificado anteriormente –, são
produzidas as paisagens.

Das intervenções artísticas às transformações e


ressignificações da paisagem urbana de Curitiba

A paisagem de Curitiba é marcada pelas ações dos diferentes


sujeitos que vivem nela e com ela interagem. Com foco voltado às
manifestações artísticas realizadas nos espaços públicos da cidade,
no intuito de compreender a construção da paisagem urbana da
cidade, a metodologia adotada para coleta de dados compreendeu a
realização de campos.
Os campos de observação ocorreram entre os meses novem-
bro de 2016 e junho de 2017. Os períodos não foram pré-definidos e os
dias e artistas não foram escolhidos com antecedência. Com exceção
de dois campos – que serão comentados no capítulo de resultados
e discussões –, não houve interferência nas práticas dos artistas, so-
mente observações a distância. Na tabela 1 (um), é possível verificar
a sistematização de nove saídas de campo, das quais os fenômenos
foram observados por, pelo menos, 10 minutos ininterruptamente.
Assim, estas não foram as únicas observações realizadas, visto que,
ao longo dos meses de pesquisa, pôde-se verificar artistas atuando

188
PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA

em outros momentos e outros pontos da cidade, porém com menor


tempo de observação do que as que constam na tabela 1 (um). Em
cada uma das vezes em que se observou as performances, pontos
comuns e divergentes puderam ser notados em relação ao público e
ao lugar escolhido para a performance, pois, como pode ser analisa-
do na tabela 1 (um), alguns locais repetem-se – assim como artistas.
Algumas situações tornaram-se recorrentes durante as observações
e elas serão discutidas posteriormente.

Tabela 1 - Observação de artistas performáticos


DIA HORÁRIO ENDEREÇO ARTISTA
05/11/2016 14h30min – Rua Desembargador Motta es- Homem fazendo malabares
14h50min quina com Rua Benjamin Lins
13/12/2016 22h – Avenida Visconde de Guarapu- Homem fazendo malabares
22h10min ava esquina com Rua Mariano
Torres
17/02/2017 13h – Rua Desembargador Motta es- Mulher e homem fazendo ma-
13h20min quina com Rua Benjamin Lins labares
22/02/2017 16h30min Rua São Francisco Homem fazendo malabares
– 17h
10/04/2017 12h40min – Rua Brigadeiro Franco esquina Homem prateado fazendo mi-
13h10min com Avenida Sete de Setembro mica
28/04/2017 18h30min – Rua 24 de maio Palhaço de apresentando
18h42 min
24/05/2017 15h30min – Rua Desembargador Motta es- Três artistas (duas mulheres e
16h10min quina com Rua Benjamin Lins um homem) fazendo malabares
alternando o sinal
25/05/2017 16h30min Rua Brigadeiro Franco esquina Homem prateado fazendo mi-
– 17h com Avenida Sete de Setembro mica
25/05/2017 18h – Avenida Cândido de Abreu Dois homens em semáforos di-
18h40min ferentes fazendo malabares
02/06/2017 19h15min – Avenida Visconde de Guarapu- Homem fazendo malabarismo
19h40min ava esquina com Rua Marechal com fogo
Floriano Peixoto
Fonte: Ukan, (2019).

Sobre as entrevistas, ao todo, foram realizadas seis com ar-


tistas performáticos encontrados, respectivamente, nos dias 24 e
25 de maio de 2017, que, inclusive, constam na tabela 1 (um). Nos
dois dias, optou-se pela realização de entrevistas, pois, junto com a
autora, estavam outros pesquisadores que tinham como objeto de

189
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

estudo, também, os artistas de rua. As entrevistas, realizadas com


artistas, não foram o foco deste trabalho, porém, através delas, te-
ve-se a possibilidade de compreender sua relação com o público
e a receptividade dele. Serão, também, trazidos os resultados para
discussão no capítulo seguinte.
Por fim, no dia 26 de julho de 2017, foi divulgado o questionário
eletrônico que viria completar os métodos de análise deste trabalho.
No questionário, foram levantadas informações com base nos se-
guintes tópicos e questões:

1. Idade;
2. Bairro onde mora;
3. Principal meio de locomoção;
4. Ocupação;
5. No seu dia a dia, você nota a presença de artistas de rua
em Curitiba?
6. Você nota a presença dos artistas de rua em quais locais?
7. Quais horários em que você vê mais artistas de rua em
Curitiba?
8. Para você, existem poucos ou muitos artistas de rua?
9. Quais tipos de performances você nota com mais fre-
quência?
10. Onde você nota a presença dos artistas de rua em Curi-
tiba?
11. Qual sua opinião sobre os artistas de rua e suas perfor-
mances em Curitiba?

A partir dos dados levantados, traçou-se um panorama da


relação do público com os artistas de rua. Foram obtidas cento e
onze (111) respostas, sendo que as duas últimas questões, que eram
abertas, tiveram menos respostas – cento e nove (109) e noventa e
duas (92), respectivamente.

190
PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA

O primeiro caso recorrente que pode ser pontuado no que se


refere às observações de campo foi o fato de que as crianças demons-
traram ter bastante interesse pelas performances que são realizadas.
Em três situações, crianças que estavam caminhando com seus pais
pararam-nos para ver a performance acontecer. Outras vezes, mesmo
quando a criança não segurava o adulto, olhava com entusiasmo e, por
vezes, fazia comentários interessados sobre a apresentação do artista.
Outro ponto recorrente está relacionado aos motociclistas, que, em
muitos casos, não respeitavam o espaço do artista na faixa de pedes-
tres, avançando com o veículo sobre o performer.
Pode-se perceber certa disputa protagonizada pelos motoci-
clistas e artistas de rua que, partindo das análises do autor Richard
Sennett sobre a construção da cidade, pode estar relacionada ao
aparecimento de novos pontos de referência – os artistas – que
quebram os fluxos urbanos. Antes, sem os novos pontos de referên-
cia, o espaço era de privação sensorial, em que “as relações entre
os corpos humanos no espaço determinavam suas relações mútuas,
como se viam e se ouviam, como se tocavam e se distanciavam”
(SENNETT, 2008, p. 17). Com a experiência física da velocidade, como
no caso dos motociclistas, as “transferências geográficas das pesso-
as para espaços fragmentados produz efeito muito mais devastador,
enfraquecendo os sentidos e tornando o corpo ainda mais passivo”
(SENNETT, 2008, p. 17). Para o autor, um corpo passivo é um corpo
privado de sensações e sensibilidade.
Esses dois processos díspares apontados anteriormente
podem ser entendidos ainda por meios dos movimentos de terri-
torialização, neste caso, governados pelos agenciamentos. Os ma-
quínicos de corpos que “dizem respeito a um estado de mistura e
relações entre corpos em uma sociedade” (HAESBAERT, 2012, p. 124),
são facilmente percebidos. Mas além deles, também governam as
territorialidades dos agenciamentos de enunciação, ou de regime de
signos. Neste caso, os elementos comuns entre os artistas e o ato de
se colocarem no espaço, afirmando-se como artistas através não só

191
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

da prática, mas também de códigos é o que cria o fortalecimento da


sua identidade e a dimensão geossimbólica.
Assim, os agentes (sejam eles as crianças, os motociclistas ou
ainda os artistas performáticos) fazem parte desse movimento, em
que cada um exerce uma territorialidade, um movimento resultado
de um processo relacional desterritorializando-reterritorializando o
próximo de maneiras particulares, gerando efeitos diversos. Esses
efeitos são constituintes da paisagem, são parte da relação entre su-
jeitos projetados em um ambiente, que, no caso presente, é urbano.
As entrevistas ajudaram a compreender os processos de esco-
lha dos locais de apresentação por parte dos artistas performáticos.
Entre os três artistas, encontrados na esquina das ruas De-
sembargador Motta com a Benjamin Lins, ouviu-se que a escolha do
ponto dava-se, principalmente, pelo tratamento recebido por eles
do público e, também, do tratamento dado pelos taxistas, já que os
artistas utilizavam um ponto de táxi como local para deixar suas coi-
sas e para descanso. Ali, os artistas, que entendem sua performance
como trabalho, sentiam-se respeitados e recebiam, como retorno
pelas atividades desenvolvidas, em média R$ 100,00 (cem reais) por
dia, variando de acordo com o tempo que ficavam no local. Dois, dos
três artistas, já atuam há anos nos semáforos da cidade de Curitiba,
enquanto que a outra artista estava iniciando suas atividades, inclu-
sive, tutoreada pelos outros dois. Segundo os relatos dos artistas que
são: um homem, uma mulher e uma mulher transgênero; quem mais
passa por situações de desrespeito é a terceira, que, muitas vezes,
já teve que lidar com xingamentos e circunstâncias desagradáveis
envolvendo sua orientação sexual e de gênero. Ao longo do período
da conversa, não se observou nenhuma interação em particular entre
o público e os artistas.
No segundo dia de entrevistas, mais três artistas foram entre-
vistados, mas em locais diferentes e sem nenhuma conexão especí-
fica. O primeiro (figura 02), um homem pintado com tinta prateada
que estava na rua Brigadeiro Franco, esquina com a Avenida Sete de

192
PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA

Setembro, contou de maneira breve sobre seu trabalho. Neste caso,


o artista mostrou-se desinteressado em conversar, o que fez com
que fossem feitas poucas perguntas a ele, para não atrapalhar sua
apresentação, já que ele tinha a performance artística como sua prin-
cipal ocupação e fonte de renda. Durante o período, também foram
observadas poucas interações com o público, todavia, presenciou-se
um motociclista avançando seu veículo em direção ao artista.
O segundo artista entrevistado estava na rua Cândido de
Abreu, fazendo malabarismo. Esse artista, de origem argentina, con-
tou um pouco sobre o percurso que estava fazendo e sobre suas
motivações para a realização da viagem. Foi-lhe perguntado sobre
sua percepção acerca do público da cidade de Curitiba e, para ele,
o público curitibano é bastante tranquilo e generoso. Observando
sua performance, foi possível notar uma criança comentando com
sua mãe sobre o malabarismo realizado pelo artista. Por fim, o último
entrevistado também se apresentava fazendo malabarismo e disse
ser originário do estado do Amazonas, mas que vive em Curitiba já
há cinco anos. Esse entrevistado apresentou inconsistências durante
a fala, possivelmente estando sob efeito psicoativo, o que gerou
desconforto e situações constrangedoras para as entrevistadoras,
no caso, três mulheres. Dessa forma, pouco conteúdo da entrevista
pôde ser aproveitado. Além disso, não foram observadas interações
diretas do artista com o público.

193
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Figura 02 – artista na esquina da Rua Brigadeiro Franco com Avenida Sete de Setembro
Fonte: Ukan, 2017

As entrevistas aqui mencionadas tiveram papel importante


para uma melhor compreensão da dinâmica a qual os artistas estão
submetidos, além de trazer um pouco da sua própria percepção
sobre a recepção do público. Tiveram como papel, ainda, ajudar no
processo de validação das observações de campo e das possíveis
ressignificações de pontos percebidos, mas que pareciam ser casos
isolados e momentâneos.
As respostas obtidas com o questionário eletrônico contribu-
íram com esta pesquisa. A não exigência de identificação dos res-

194
PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA

pondentes foi pensada de modo que as respostas não vinculassem


os participantes por nome ou por e-mail, de modo que pudessem
sentir-se livres para manifestar suas opiniões, sobretudo nas ques-
tões abertas. Os participantes estavam numa faixa etária entre 18 e
60 anos de idade, sendo a maior parte representada por jovens de
20 anos. Eles distribuem-se por quase todos os bairros da cidade
de Curitiba, além de alguns da região metropolitana. Sobre o meio
de locomoção, pode-se observar, no gráfico a seguir (figura 03), a
predominância do transporte público e a baixa taxa de motociclistas
e ciclistas, em relação aos outros meios de locomoção:

Figura 03 – Gráfico gerado a partir do questionário eletrônico com base nos


valores apresentados sobre os meios de locomoção.
Fonte: Ukan, 2017

Esse fator é importante para entender como as pessoas


locomovem-se pelo espaço da cidade, se sua experiência de
velocidade é solitária ou compartilhada, se está dentro de fluxos
automotivos ou se há autonomia de deslocamento e de que modo
esse deslocamento relaciona-se às performances artísticas de rua.
A partir da análise dos gráficos, pode-se perceber que grande parte
daqueles que responderam ao questionário deslocam-se pela cida-

195
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

de em transportes coletivos, a pé ou de carro. A relação de cada um


desses grupos com os artistas performáticos e o espaço urbano é
diferente, uma vez que o corpo ativo do artista interrompe de forma
distinta cada um desses fluxos.
A ocupação dos entrevistados apresentou grande variação,
porém, pode-se criar três grupos majoritários que responderam ao
questionário: estudantes de Geografia; estudantes de Artes Visuais;
estudantes de Engenharia da Computação. Isso decorreu do fato
de que estes eram os grupos mais acessíveis para a aplicação dos
questionários.
Sobre a presença dos artistas, cento e dez pessoas (110) do
total de cento e onze (111) respondentes disseram notar a presença dos
artistas de rua em Curitiba, sendo que a maior parte disse percebê-los
em locais centrais. Somente uma pessoa que respondeu o questionário
disse não notar a presença dos artistas na cidade. No que se refere aos
horários, grande parte das respostas aponta para uma maior presença
dos artistas nas ruas nos períodos entre 11h e 19h.
As performances notadas com maior frequência pelo público
foram os malabarismos e as estátuas vivas/prateadas. Porém, muitos
lembraram também dos palhaços e dos atores. Esta era uma respos-
ta aberta e, por isso, podiam ser descritas as performances que eram
notadas, fazendo com que muitos apontassem também os músicos
e artistas visuais, mas como essas linguagens artísticas não eram o
foco deste trabalho, elas não foram contabilizadas.
Por fim, as duas questões que receberam maior atenção nesta
pesquisa foram as duas últimas presentes no questionário: “Onde
você nota a presença dos artistas de rua em Curitiba?” e “Qual sua
opinião sobre os artistas de rua e sua performance em Curitiba?”. A
primeira recebeu cento e nove respostas (109) e, em muitos casos,
foram nomeados os locais. Dentre os locais específicos citados, es-
tavam: Rua XV de Novembro, Praça Santos Andrade, Praça Tiradentes,
Largo da Ordem, Linha verde, Praça Osório, Avenida das Torres, Rua
Ubaldino do Amaral, Rua Marechal Deodoro, Rua Benjamin Lins, Rua
Brigadeiro Franco, Rua São Francisco. Dentre os termos mais genéri-

196
PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA

cos aplicados às localidades, estavam: avenidas, semáforos, ruas na


região central e frente de shoppings. Alguns locais foram citados mais
de uma vez. A Rua XV de Novembro, por exemplo, apareceu citada
diretamente 43 vezes.
A partir da exposição desse resultado, é possível afirmar que
os artistas performáticos compõem a paisagem urbana da cidade
de Curitiba uma vez que os artistas, independente de quais sejam,
tornaram-se, nesses pontos apresentados, parte constituinte dos
lugares. Dessa maneira, pode-se dizer que a paisagem urbana tem os
artistas performáticos como um de seus componentes. Lembrando
que, neste trabalho, a paisagem é um conceito que não existe por si
mesmo, mas somente em relação a alguém.
Sobre a última questão colocada no questionário, foram rece-
bidas noventa e duas (92) respostas. Do total de respostas, somente
onze (11) assinalaram indiferença ou algum tipo de questionamento
ou crítica sobre as performances artísticas, das quais extraímos as
seguintes para exemplificar e problematizar:

• As performances são muito parecidas, principalmente as


de malabares. Falta um pouco de inovação, como o uso de
outros instrumentos, ou algo mais teatral.
• Aqueles que aparentam fazer por necessidade, são consi-
derados artistas? Ou apenas aqueles que fazem a escolha
por essa atividade?
• Seguem tendências... Pouca coisa se cria aqui!
• A maioria é fraca em técnicas de circo (os malabaristas).
Um ou outro pode se considerar bom. Mas eles pode-
riam fazer curso de circo - se é que alguns já não fazem.
Infelizmente só ganham alguns trocados. Por outro lado,
incomodam as pessoas porque se somam aqueles que
também ficam vendendo balinhas, frutas etc., e aos men-
digos. É muita gente pedindo.

197
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

• Sou indiferente.
• Em geral, não aprecio muito.
• Normalmente, não tenho tempo para prestar muita aten-
ção, mas me corta o coração ver crianças se pintando de
estátua ou fazendo malabarismo em sinaleiros. Eu percebi
que presto muito mais atenção nesses artistas quando
estou passeando no final de semana, porque na correria
da rotina confesso que muitas vezes eles parecem invisí-
veis para mim.

Através dos exemplos , é possível notar que algumas pessoas


que tiveram acesso ao questionário não dão importância à arte per-
formática, mas que, ainda assim, percebem-na nas ruas de Curitiba.
Outros questionam o modo como essa ocupação se dá. Esse grupo de
pessoas soma uma parcela pequena diante da amostra obtida, porém,
sua opinião é importante para a formulação deste trabalho, que com-
preende as paisagens como uma relação que não é necessariamente
agradável e constituída de elementos que agradam a todos.
As paisagens, que têm, como ponto de referência, os artistas
performáticos, compõem o cenário urbano de Curitiba e, para esse
grupo que respondeu o questionário, a falta de técnica e a falta de
inovação dos artistas são alguns dos componentes que justificam o
seu distanciamento e sua crítica às performances. Isso resulta no de-
senvolvimento de paisagens em que os artistas entram como pontos
questionáveis e controversos.
Todavia, a maior parte das respostas obtidas tratam de ma-
neira positiva sobre as performances artísticas e sobre como elas
trazem uma condição agradável à cidade que, muitas vezes, é vista
como um ambiente estressante. A seguir, podem ser observados
alguns exemplos de respostas dadas que, de alguma forma, demons-
tram a apreciação do público pelas performances:

198
PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA

• Fiquem, vocês fazem surgir sorrisos em meio ao caos


urbano.
• Enriquecem o ambiente. Deveriam ser levados mais a sério
pela população e prefeitura.
• Boa, alegra a cidade.
• Acredito que todos possuem o direito de exercer seus
dons fazendo suas performances, buscando reconheci-
mento e também procurando sobreviver em um mundo
caótico através da arte.
• Acho que é um meio de trazer a arte para as pessoas, de
embelezar a cidade/trazer reflexões e deixar o dia mais
leve. Apoio muito!
• As ruas de Curitiba merecem mais artistas, músicas.
performances teatrais e diversas culturas tudo isso deve
estar perto do povo.
• Trazem algo inédito ao espaço público, algo que desvia os
transeuntes da rotina e introversão.
• Acho importante que haja artistas pelas ruas da cidade,
até porque é um alento no dia a dia de quem trabalha, fica
preso no trânsito.
• Eu gosto. Eles fazem parte do cotidiano da cidade.
• Gosto deles, trazem uma beleza e alegria nas ruas, além de
mostrarem o mundo com um olhar diferente.

As respostas demonstraram que questões que foram norte-


adoras para o desenvolvimento desta pesquisa, referentes ao modo
como a cidade tem tomado forma nos anos mais recentes, são ques-
tões pertinentes que permeiam a vida urbana. De acordo com as res-
postas, as performances parecem criar uma cidade mais “humana”
para a maior parte de seus habitantes que, concordando com Sennet
(2008), deixam de mover seus corpos passivamente, para destinos
fragmentados e descontínuos. Inclusive para aqueles que disseram
não apreciar as performances, elas entram como pontos de que-

199
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

bra nos fluxos, criando desconforto ou trazendo questionamentos.


Assim, pode-se dizer que as performances artísticas de rua fazem
parte das paisagens urbanas da cidade de Curitiba, sendo um dos
seus componentes formadores que ajudam a quebrar fluxos e ativar
corpos, através do processo de territorialização ao qual os artistas
submetem outros corpos, até então em sua maior parte, passivos.

Considerações finais

Este trabalho teve como norte a compreensão da relação que os


artistas performáticos têm com seu público, ou seja, com aqueles que
vivem e transitam pela cidade de Curitiba. Ambos, artistas e público,
entendidos neste estudo como portadores de elementos simbólicos
que os categorizam e identificam diante dos outros, são constituintes
e atores no processo de ressignificação da paisagem urbana, através
dos processos de territorialização e desterritorialização.
Entendeu-se aqui os agenciamentos como geradores de
territorialidades e as territorialidades como movimentos que, apesar
de contarem com o descolamento, fixam símbolos no espaço, aquilo
que se chamou neste trabalho de geossímbolo.
Um artista performático – que tem como característica a não
fixação em um ponto, estando sempre em deslocamento pela cidade
a procura de semáforos com maior tempo de fechamento, esquinas
com maior movimentação de pedestres, ruas com inclinações que
façam do local um palco –, existe nos locais mesmo quando seu
corpo já não se faz mais presente. Eles passam a existir ali, como ge-
ossímbolos; eles territorializam por meio dos agenciamentos maquí-
nicos e de enunciação, um local que desenvolve, então, uma relação
com aqueles que passam, onde é produzida uma nova paisagem, isto
é, é ressignificada uma antiga paisagem, que, em muitos casos, era
desprovida de referenciais
Esses referenciais que ressignificam as paisagens, aparecem
como quebras de fluxos, como corpos ativos que desanestesiam os

200
PERFORMANCES ARTÍSTICAS EM CURITIBA

corpos passivos, anteriormente preocupados com a chegada ao seu


destino final, envolvidos mais com a meta do que com o trajeto.
A partir da análise dos materiais obtidos, teve-se a oportuni-
dade de compreender como a presença de artistas cria, nas cidades,
para as pessoas, uma nova relação que fortalece laços, experiências
e sensações. Os resultados, além de se mostrarem como uma ferra-
menta que auxilia as discussões sobre as possibilidades de uso do
espaço das cidades para práticas artísticas e culturais, fomentando
o desenvolvimento da cultura, possibilitam pensar uma cidade que
estimule aquele sujeito que é, cotidianamente, ensinado a aceitar
a monotonia, o que, para Sennett, funciona como a forma que se
criou para “lidar com as sensações perturbadoras e potencialmente
ameaçadoras de uma comunidade multicultural” (SENNETT, 2008, p.
295). Para o autor, sem se lidar com as questões existenciais (corpo-
rais) que as cidades multiculturais trazem, que desviam e diminuem a
experiência humana, as relações pessoais e falta de compaixão cívica
continuarão em voga.
Assim, as performances artísticas são fundamentais como
novos pontos de referência, ressignificadoras de paisagens, uma vez
que, como escreveu Adriano Labbuci (2013): “caminhamos para viver,
e não para termos vivido”.

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FRONTEIRAS DA PAISAGEM

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202
UMA EXPERIÊNCIA PAISAGÍSTICA NA
METRÓPOLE BRASILEIRA 1

Alessandro Filla Rosaneli

SAÍDA

Dada a “superposição desordenada” que o conceito de pai-


sagem cada vez mais é apresentado (BESSE, 2014, p. 12), tornam-se
triviais as ressalvas introdutórias, como já bem teceu Bartalini (2013).
E, certamente, quando se trata de conceituação, todo termo com-
posto, como o de “paisagem urbana”, amplifica o desafio para seu
completo entendimento. Assim, já de largada, indica-se que não é
objetivo deste texto o preparo definitivo, ou mesmo preliminar, desse
terreno movediço. Vai-se explorar um caminho aberto pelo já citado
autor francês, num singelo texto (BESSE, 2013). Aqui já se transpõe,
portanto, certos meandros e, ao mesmo tempo, é escolhida a direção
do movimento.
Ainda assim, considera-se instigante fazer algumas pausas
para contemplar três textos que são tratados como basilares para a
percepção da paisagem por profissionais do projeto. De certa forma,
Kevin Lynch com “A imagem da cidade” (1997 [1960]), Gordon Cullen
no livro Paisagem Urbana (1983 [1971]) e Robert Venturi, Denise Scott
Brown e Steven Izenour com a obra Aprendendo com Las Vegas
(2003 [1972]), constituem, juntos ou separados, um porto seguro para
aguçar a visão para o mundo exterior e frisa-se o sentido destacado.
Não se busca extrair uma explicação panorâmica do contexto em
que foram criadas tais obras, muito menos estabelecer uma conexão
epistêmica entre elas, mas revelar como certos aspectos tratados

1  Artigo cujos levantamentos de campo contaram com suporte de quatro editais do


CNPq, desde 2010.

203
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

nessas produções ainda auxiliam a construção de uma compreensão


mais arguta da paisagem urbana, apesar de algumas escorregadelas
por parte de leitores incautos. Um passo adiante e outra suspensão
faz-se para que sejam apresentadas algumas considerações que
emanam do conceito de espaço público, elemento constituinte da
paisagem urbana.
Com tais preparativos dispostos, assume-se que o propósito
central é discorrer sobre uma experiência paisagística advinda
de dias de caminhadas pelos espaços públicos das metrópoles
brasileiras. Longe de procurar estabelecer padrões comuns para
um conjunto tão vasto e rico de situações, este relato procura ins-
tigar a relação entre espaço público e paisagem urbana, escopo
de trabalhos anteriores, mas sem a mesma perspectiva teórica ou
metodológica. A ideia é elencar circunstâncias reais que explicitem
um paralelo entre esses dois conceitos a fim de compreender um
pouco mais sobre a metrópole brasileira do começo do século XXI.
Aceitou-se o convite de Careri (2013), pois “errare humanun est”, e
foram percorridas ruas de metrópoles brasileiras para construir um
quadro sobre as características físicas, simbólicas, sensoriais e so-
ciais desse domínio comum essencial para a vida cotidiana. Em meio
a milhares de encontros, esse caminhar pela paisagem foi uma forma
de construir uma percepção distinta e mais densa daquela de seus
usuários diários, de reconhecimento e compreensão, como forma de,
nas palavras de Besse (2013, p. 45), “habitar o mundo”.

PARADA 1: PAISAGEM URBANA

Primeiro respiro: Dos vários - e possíveis - modos de com-


preender o conceito de paisagem, evoca-se aqui uma das definições
abrigadas por Besse (2014, p. 26 – 37), quando o delimita como um
“território fabricado e organizado” pelas sociedades humanas, uma
forma de “escrita na superfície da Terra”. Essa abertura conceitual
permite compreendê-la como um “produto social”, resultado da

204
UMA EXPERIÊNCIA PAISAGÍSTICA NA METRÓPOLE BRASILEIRA

transformação coletiva da natureza para uma projeção cultural de uma


dada sociedade, uma “composição desse mundo”, como também
aponta Nogué (2007, p. 11 - 12). Assim, esse constructo caracteriza-se
por sua materialidade e, ao mesmo tempo, por valores amalgamados
a ele, tornando-se repleto de significados. Neste sentido, já alertava
Cosgrove (1998) que o simbolismo que emana da paisagem conforma
as tensões advindas das divisões sociais existentes na sociedade,
transformando-se em um veículo para essa tênue comunicação.
Por outro lado, Besse (2013) também salienta que a paisagem
está conectada com nossa vida cotidiana, pois “a paisagem faz parte
de nosso estar no mundo”. Seria um “espaço vivido”, que correspon-
de ao nosso envolvimento no mundo, de estar “implicado” com ele,
uma forma de “habitar”. Dado que vivenciar seja uma experiência
sinestésica, qual seria a composição do cotidiano, então?
Num sensível trabalho, Roger (2014) sustenta que a paisagem
é “uma invenção dos habitantes da cidade”, quando o olhar artístico
sensibilizou-se ao tema, séculos atrás. Mas a própria cidade, com
seus elementos constituintes e lugares marcantes também desper-
tariam nossa atenção. Como captar o ordinário?
Ingold (2015, p. 87) já indicou como óbvia a perspectiva que a
percepção dá-se com o corpo todo. A paisagem seria, dessa forma,
uma experiência polisensorial – “é pelo nosso corpo que habitamos
o mundo”, complementa Besse (2013, p. 46 - 47). O círculo então se
fecha e a paisagem urbana se estabelece como uma potente chave
de percepção desse espaço social, ainda que olhares desatentos,
imersos no dia a dia, “naturalizado e normalizado” (NOGUÉ, 2007, p.
12), muitas vezes, estejam distraídos ou neutralizados.
Estudiosos do espaço urbano possuem uma miríade de pro-
cedimentos para empregar no processo de decifração da paisagem
urbana. Nesse universo, três livros, desde que foram lançados, têm
sido reiteradamente aplicados, da forma mais variada possível, nesse
laborioso empreendimento. Já se tornaram, por assim dizer, refe-
rência na área. As próximas linhas sintetizam-nas com o intuito de
demarcar uma visada.

205
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Segundo respiro: “[...] Precisamos aprender a ver as formas


ocultas na vasta extensão de nossas cidades”, convida Lynch (1997
[1960], p. 14) na introdução de seu aclamado livro, A imagem da cida-
de, cuja pesquisa que sustenta a publicação foi realizada há mais de
60 anos atrás. Ainda que concentrado nos resultados que advinham
do sentido da visão (mas não sem compreender que todos os outros
estão “em operação”), é possível afirmar que a preocupação com a
percepção da paisagem urbana é um dos temas centrais dessa obra.
Imagem e paisagem se confundiriam, portanto. Por outro lado, o iné-
dito método empregado, que procurava captar “imagens públicas”
da cidade por meio de pesquisa qualitativa com os habitantes das
cidades pesquisadas, construindo “mapas mentais”, redirecionou os
esforços de compreensão da cidade, impactando de modo contun-
dente como pensar essa construção, em vários campos disciplinares,
sobretudo, naqueles voltados à sua transformação física. Pela primei-
ra vez, o cidadão estava sendo elevado a fundamental partícipe do
processo de decisão, através de sua compreensão sobre a cidade.
Ellis (2010) observa que sua obra promoveu um redireciona-
mento nas disciplinas que pensam a cidade e era um claro produto
do contexto cultural e urbano que viviam os Estados Unidos na me-
tade do século XX, uma vez que o resultado socioespacial de vários
projetos modernistas estavam sendo cada vez mais questionados.
Mesmo assim, é uma obra cuja popularidade atingiu vários cantos do
planeta, muito em virtude da conexão impulsionada entre campos
disciplinares distintos. Ademais, a preocupação exposta, em alguns
trechos do livro, por uma instrução do sentido da visão dos habitan-
tes da cidade, e não exclusivamente para profissionais do projeto,
amplia seu alcance, pois se transforma quase num “manual para uma
educação visual urbana” (ELLIS, 2010, p. 11). E talvez seja nisso que
resida uma das maiores inadequações do emprego de seu método:
quando um indivíduo, geralmente com objetivo específico, procura
aplicar os princípios originais para captar a imagem da cidade como
uma alternativa ágil para todo o procedimento metódico necessário.
Como o próprio autor adverte:

206
UMA EXPERIÊNCIA PAISAGÍSTICA NA METRÓPOLE BRASILEIRA

O que não estava previsto, no entanto, era que este


estudo, cujo objetivo principal era incitar aos projetistas
a necessidade de consultar aqueles que moram em
um local, teve a princípio um resultado diametralmente
oposto. Para muitos planejadores, parecia haver uma
nova técnica completa com classificações mágicas [...]
que permitiam a um projetista prever a imagem pública
de qualquer cidade ou nova proposta existente. [...] Não
houve tentativa de chegar aos habitantes reais, porque
esse esforço desperdiçaria tempo e poderia ser pertur-
bador (LYNCH, BANERJEE & SOUTHWORTH, 1996, apud
ELLIS, 2010, p. 154).

Em várias passagens do livro, Kevin Lynch assevera que se


trata de “uma exploração preliminar, uma primeira palavra, e não uma
palavra definitiva”, “[...] uma pesquisa ainda em seus primórdios”.
Contudo, é inegável que seus achados, advindos de uma pesquisa
científica meticulosamente desenhada (ELLIS, 2010), transformaram-
-se em inspirador instrumental para a leitura da paisagem urbana até
os dias atuais.
Terceiro respiro: “Uma cidade é antes do mais uma ocorrência
emocionante no meio ambiente. [...] É um tremendo empreendimento
humano!”, exclama Cullen (1996, p. 10), na introdução de seu livro,
escrita em 1959. Essa frase elucida o principal propósito da obra:
resgatar a emoção no processo de compreensão e construção das
cidades, essencialmente através do sentido da visão e do movimento
do pedestre. Para tanto, emprega, como recurso de demonstração,
uma infinidade de fotos e desenhos, estes aclamados e assimilados
mundialmente (ENGLER, 2016). A mesma autora atenta que não se
pode separar sua publicação de uma campanha, promovida pela
revista britânica The Architectural Review (fundada em 1896), a favor
de uma abordagem visual pitoresca para intervenções urbanas, da
qual Gordon Cullen acabou sendo seu mais importante porta-voz,
após anos como editor artístico da revista. Essencialmente, esse
movimento, chamado Townscape, junta-se às correntes de pensa-
mento que faziam oposição aos resultados espaciais modernistas,

207
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

recuperando um conhecimento empírico manifesto na paisagem


urbana construída há tempos, dando o tom pitoresco mencionado.
Engler (2016, p. 5), numa revisão analítica promovida acerca
dessa obra, até afirma que os críticos entendem que existiria uma
certa ambição ideológica nacionalista por trás do movimento Towns-
cape, no que se distinguem acerca do grau de compromisso de
Gordon Cullen para com ela. Disso decorre a sistematização exposta
no livro, com a finalidade de guiar o leitor – especialmente profis-
sionais do projeto – para esse exercício de reconhecimento através
de uma “arte do relacionamento” na paisagem urbana, “com vista a
fazer da unidade um todo coerente e dramático” (CULLEN, 1996, p.
10-11). E apesar de Cullen trabalhar com diversos elementos da pai-
sagem – árvores, publicidade, mobiliário urbano, dentre outros –, são
os edifícios e seu agrupamento, que seu “jogo” de compreensão do
ambiente concentra-se, vasculhando o rico cenário britânico. Trans-
por esse contexto é, portanto, o maior desafio para o leitor da obra.
Quarto respiro e adiante: “Aprender com a paisagem existen-
te é, para o arquiteto, uma maneira de ser revolucionário”, exortavam
Robert Venturi, sua esposa Denise Scott Brown e Steven Izenour, na
primeira linha de Aprendendo com Las Vegas (2003 [1972]). Ainda
que se possa entender que tal exclamação é perfeitamente cabível
não só para aqueles profissionais, ela guarda um chamamento: que a
paisagem urbana tem muito a dizer, mas nem todos são capazes, ou
querem compreender. Deixando de lado o aspecto mais iconoclasta
do texto – a parte que investe contra a arquitetura moderna – os au-
tores procuram analisar o “fenômeno da comunicação” que se forma
através dos símbolos dispostos na paisagem, prenunciando situa-
ções urbanas comuns em várias cidades desde então. Utilizam, como
objeto dessa experiência, a rua comercial mais emblemática de Las
Vegas, a Strip, da qual desvelam um ordenamento contrastante entre
os domínios público e privado. E um dos avanços mais perspicazes
desse estudo, conduzido como um ateliê/projeto de pesquisa, seria
as diversas técnicas gráficas empregadas para traduzir os padrões

208
UMA EXPERIÊNCIA PAISAGÍSTICA NA METRÓPOLE BRASILEIRA

encontrados. Assim, o cotidiano da avenida, marcado por chamativos


letreiros e icônicos edifícios, foi representado em mapas, quadros
e esquemas, de modo inovador, numa tradução pedagógica. E não
deveria ser diferente para a nova organização espacial que estavam
interessados: “A ordem que emerge da Strip é complexa. [...] Mas (...)
é inclusiva. [...] Não é uma ordem dominada pelo especialista e fácil
para os olhos” (VENTURI, SCOTT BROWN e IZENOUR, 2003 [1972], p. 65
– 67). Eis um recado valoroso para desbravar a paisagem urbana, um
alerta que encontra correspondência nos textos de seu conterrâneo,
J. B. Jackson (1984), quando se mostra sensível para o aprendizado
que a paisagem vernácula contém, já que expressa nossa mais ordi-
nária humanidade.
Se da obra de Lynch retira-se um arcabouço teórico que
permite compreender a cidade como um todo, os livros de Cullen
e Venturi, Scott Brown & Izevonoir operam em escala diferente, mais
próxima do observador, atentando-se para elementos distintivos que
compõem a paisagem urbana. Todos, entretanto, optam pela valo-
rização da visão como sentido organizador do ambiente, ainda que
seja possível retirar pequenos ensinamentos para os outros sentidos.
Contudo, pode-se afirmar que ainda são referências universais que
fundamentam o campo de atuação da leitura da paisagem urbana.
Por fim, para construir-se uma passagem para a próxima
parada, compreende-se que o espaço público é um dos elementos
primordiais para uma plena vivência na paisagem urbana. Tentativa
de unir esses dois campos do conhecimento já foram feitas (TEERDS
& VAN DER ZWART, 2007; GONÇALVES e SÁ CARNEIRO, 2016), mas o
esforço aqui não é construir um arcabouço teórico, ou metodológico,
para justificar essa união. Para além de uma aproximação, até forçada,
procura-se defender que ambos os conceitos encerram preocupa-
ções distintas, embora complementares, para aqueles que habitam
as cidades.

209
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

PARADA 2: ESPAÇO PÚBLICO

As mesmas dificuldades de contorno que cercam a com-


preensão de paisagem estão presentes no debate a respeito do
conceito de espaço público, muito em razão dos vários campos do
conhecimento que trabalham com essa chave de leitura da reali-
dade. Se, de um lado, tal convergência mostra-se importante, e até
necessária, para que se possa abranger as mais variadas facetas que
emergem dessa discussão, por outro, a polifonia tem contribuído
para que muita confusão se estabeleça (ROSANELI, DALMOLIN e FA-
RIA, 2019). Assim, relatam-se os “efeitos de desorientação” (GURZA
LAVALLE, 2005) que são produzidos, assim como suas “significações
frequentemente ambíguas, complementares ou controvertidas” (IN-
NERARITY, 2010, p. 11). Outra assunção que tem sido apontada como
um embaraço revela-se na crença do espaço público como fator de
integração absoluto, inexorável, esquecendo-se que muitas vezes ele
é produzido por agentes imobiliários que avançam contra as mesmas
garantias que pretensamente procuram criar (DELGADO, 2011).
Ainda que tais ressalvas sejam importantes, é impossível
imaginar qualquer aglomeração humana, em distintas tradições so-
cioculturais, sem o estabelecimento de um local comum de trocas
(ROSANELI, 2019), ou como aponta Innerarity (2010, p. 21), “a realização
humana é impensável fora do espaço comum”. Estudos comparativos
até indicam uma inequívoca relação com a prosperidade urbana, já
que a presença do domínio público, especialmente, as ruas, teria um
papel fundamental para o estabelecimento da produtividade, para a
distribuição da infraestrutura, para a preservação da sustentabilida-
de ambiental, para a provisão de serviços sociais e para a inclusão e
equidade social (UN-HABITAT, 2013).
Em geral, os estudos que tratam das temáticas relacionadas
com o espaço público permitem identificar duas naturezas de sua
constituição e, por isso, o desentendimento apontado é tão comum.
Convém assinalar, entretanto, que se entende o espaço público

210
UMA EXPERIÊNCIA PAISAGÍSTICA NA METRÓPOLE BRASILEIRA

como uma totalidade e que tais dimensões constitutivas permitiriam


apenas compreender a pertinência de abordagens discrepantes para
esse conceito, já que, muitas vezes, elas até podem aproximar-se.
A dimensão imaterial, mais ligada aos campos do conhecimen-
to que lidam com questões políticas e da comunicação, presencia,
nas últimas décadas, um alargamento das temáticas correlatas. Fala-
-se até em “novo espaço público”, que abriga relacionamentos à dis-
tância, em grupos de conversa ou redes sociais, fenômeno facilitado
pela rede mundial de computadores. Contudo, a obtenção (phishing)
e o tratamento questionável de informações pessoais por meio do
big data, a corrosão do debate público em consequência das fake
news, as dificuldades de acesso de grande parcela da população, ou
mesmo por ser um recinto altamente controlado e privatizado, dis-
farçadamente, dentre tantas outras questões, ainda provocam gran-
des incertezas sobre as condições de amparo à coletividade desse
âmbito virtual. Pois aqui se discute a característica primordial desse
espaço, quer seja a sua essência política, quando guarda um poten-
cial incondicional para a realização da esfera pública, onde o destino
comum é discutido. Tal compreensão tem sido exaustivamente tra-
tada desde que Arendt (2001 [1958]) e, sequencialmente, Habermas
(2003 [1962]) trabalharam essa associação. Porém, o desencanto
com a política e com práticas de cidadania, a transformação das
fronteiras entre o público e o privado na vida social, as mudanças nos
meios de comunicação (INNERARITY, 2010), o estabelecimento de
uma série de práticas exclusivistas (GHIRARDO, 2002), dentre outros
aspectos, têm tencionado a sua configuração cada vez mais. Ainda
que esse domínio comum nesse âmbito prescinda de sua existência
física, Gomes (2006, p. 131) alerta que essa potencialidade de ação
política também guardaria uma matriz territorial, pois “o fenômeno
espacial é co-fundador do fenômeno político”, aproximando as duas
dimensões constitutivas.
Quanto à sua materialidade, existem as abordagens que se
aproximam das questões que emanam de suas características fí-

211
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

sicas e de como elas interagem, ou não, com os comportamentos


humanos. Enquadram-se, de certa forma, no campo de investigação
que procura atingir a inter-relação pessoa-ambiente. Nesse âmbito,
é muito comum que a conexão entre os domínios público e privado
seja explorada e, comumente, revela-se que a indistinção entre es-
sas esferas de propriedade acarreta sérios prejuízos para o domínio
comum. Outro aspecto importante desse enfoque conecta-se com a
acessibilidade, quer seja física ou simbólica, pois se trata do poten-
cial de abertura desse espaço para a co-presença e a consequente
sociabilidade. Seria dentro desse limite, portanto, que se encontra
um possível vínculo com as discussões acerca da paisagem urbana,
quando se reconhece a capacidade de expressão da riqueza da
vida e da identidade cultural de um povo, como explicita a Carta do
Espaço Público (INU, 2013), baseando-se na Convenção Europeia da
Paisagem (CONSELHO DA EUROPA, 2000). Essa abertura de leitura da
cidade, certamente, constitui-se num apropriado indicativo dos con-
flitos, avanços e desacertos de uma dada sociedade. Desse modo, na
seção final, a dimensão material do espaço público, como elemento
constitutivo da paisagem da metrópole brasileira, será motivo de
escrutínio de nosso modo de habitar o mundo.

CHEGADA

“Gostaria de evocar o caminhar como maneira de habitar o


mundo, como maneira de fazer paisagem, de se juntar à paisagem, o
caminhar como um certo modo de estar no espaço” (BESSE, 2013, p.
45). Esse chamamento, decerto, sintetiza uma condição epistêmica
e, ao mesmo tempo, oferece uma direção investigativa. Com essa
inspiração, as ruas das cidades latino-americanas têm sido palco de
reflexão acerca desses dois conceitos correspondentes, tratados até
então. Inicialmente, nos municípios da Região Metropolitana de Curiti-
ba (entre 2010 a 2014) para então rumar para as metrópoles brasileiras
(desde 2015) e metrópoles latino-americanas (a partir de 2019).

212
UMA EXPERIÊNCIA PAISAGÍSTICA NA METRÓPOLE BRASILEIRA

No caso paranaense, foram estudadas 10 avenidas principais


dos nove municípios que formam o Aglomerado Metropolitano de
Curitiba (Almirante Tamandaré, Araucária, Colombo, Curitiba, Fazenda
Rio Grande, Pinhais, Piraquara, Quatro Barras e São José dos Pinhais).
Em nível nacional, foram investigadas as ruas do bairro centro das
nove metrópoles de segundo nível (IBGE, 2008), que são: Belém, Belo
Horizonte, Curitiba, Goiânia, Fortaleza, Manaus, Porto Alegre, Recife e
Salvador. No total, foram percorridos quase 2.000 quilômetros a pé
em busca das características físicas, simbólicas, sensoriais e sociais,
em dias úteis e dentro de estações do ano em que a maioria dos
dias apresentasse tempo bom e estável. Por fim, na presente terceira
escala de análise, as oito metrópoles mais populosas da América
Latina – Bogotá, Buenos Aires, Cidade da Guatemala, Cidade do
México, Lima, Santiago, São Paulo e Rio de Janeiro - serão visitadas,
como forma de constituir um panorama mais amplo, ainda que se
considere as diferenças socioculturais que se impregnam nos am-
bientes urbanos e das disparidades socioeconômicas entre essas
metrópoles. De certo modo, tem-se como suposição que, no amplo
panorama, mais aspectos do espaço público unem-nos enquanto
latino-americanos, mas a cultura urbana de cada cidade é única,
em virtude das características sociais, políticas, econômicas, legais,
ambientais, dentre outras.
Com esse conjunto de aprendizados, tem-se construído um
quadro referencial comparativo e atualizado que permite certas as-
sunções sobre os elementos mais comuns e outros extraordinários
do cotidiano urbano. E, nessas últimas linhas, a ideia é compartilhar
essa experiência corporal, especialmente relatando algumas ques-
tões metodológicas, já delineadas, referencialmente, em trabalho
anterior (ROSANELI, 2015), quando se defendeu uma abordagem
transdisciplinar para abarcar a complexidade do espaço público e da
paisagem da rua.
De fato, inúmeros são os elementos que compõem o dia a dia
de um espaço público, fato que impõe uma organização prévia dos

213
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

procedimentos a serem adotados em campo. Dessa forma, é aconse-


lhável que se guie por um roteiro preliminar que sintetize os aspectos
ressaltados pela literatura consultada. O que se quer observar deve
estar muito claro no instante da saída, mas como e quando fazê-lo
muitas vezes é moldado na prática. As várias questões que emergem
do cotidiano devem ser conjecturadas e cirurgicamente recortadas
para que a observação seja a mais precisa possível, pois a dinâmica
social é altamente distrativa. Nesse ponto, cabe reiterar que pesqui-
sas que se desenham abrangentes tendem a diluir-se em descrições
generalizadas e, frequentemente, enfadonhas e desinteressantes.
Questões bem contornadas, todavia, costumam demandar um
trabalho de campo mais controlado e com possibilidade de densa
descrição da realidade, com grande potencial de contribuição para o
campo do conhecimento demarcado. Ou seja, menos é mais.
Em geral, é conveniente que sejam separadas as operações
focadas no mundo físico, sensorial e/ou simbólico daqueles fe-
nômenos que advêm do universo social e sua inter-relação com o
ambiente. Começar pelas condições da realidade física seguramente
facilita mapear o sistema de ações. De qualquer forma, uma incursão
sobre referências que tratam de procedimentos para coleta de infor-
mações configura-se em etapa indispensável, para que se conheça
as vantagens e os limites das técnicas e instrumentos disponíveis na
literatura que se adequam ao estudo proposto, pois certamente as
escolhas metodológicas devem suportar-se por essa convergência
científica que se consolida há tempos. Logo, nada de reinventar a
roda e não é perda de tempo, nem retrocesso, voltar aos manuais.
Cabe ressaltar que o trabalho de campo exige muito despren-
dimento do pesquisador, pois as situações são inúmeras e, por vezes,
repletas de contestação: abordagens de indivíduos para que se tome
cuidado com potenciais sinistros contra a pessoa do pesquisador e
seus instrumentos de coleta; seguranças portando armas opondo-se
veementemente a qualquer forma de anotação; indivíduos agindo
contra a lei que não querem ser registrados; transeuntes, proprietá-

214
UMA EXPERIÊNCIA PAISAGÍSTICA NA METRÓPOLE BRASILEIRA

rios ou responsáveis pela propriedade que são contrários à presença


do investigador na coleta de informações no domínio comum; outros,
curiosos com os registros, pedem todo tipo de auxílio, confundindo
a função do pesquisador com outros tipos de trabalhadores e, até
mesmo, pessoas oferecendo-se para serem fotografadas no seu co-
tidiano de trabalho ou de vaguear – fato muito mais comum nas por-
ções setentrionais do país. Imprescindível em todos esses momentos
que seja feita prontamente uma apresentação das credenciais do
pesquisador e dos objetivos da pesquisa. De certa forma, essas cir-
cunstâncias revelam as dificuldades de pesquisa no espaço público,
com exposição do próprio corpo do pesquisador a uma grande sorte
de riscos, mas também a momentos curiosos e, por que não, trágicos
e cômicos? Muitas histórias são compartilhadas e estar e, sobretudo,
mostrar-se atento a elas torna-se fundamental para sua aceitação
no campo. Certamente, da mesma forma que o pesquisador está
interessado na dinâmica de seu recorte de pesquisa, ele está sendo
observado por vários indivíduos que têm, na rua, seu local diário de
frequentação. Preparar-se para essa aprovação oficiosa torna-se
uma atitude que terá muito reflexo na permanência mais tranquila
em campo.
A paisagem não se desvela à primeira vista: exige um olhar
treinado e persistente. Por isso, voltar várias vezes ao mesmo local
torna-se comum e necessário. E, sobretudo, é preciso ter calma para
captar o fugidio ou mesmo aquilo que está à mostra, disponível em
nossa frente, mas não se consegue perceber. Ao mesmo tempo, a ex-
periência no campo proporciona certa perspicácia: para escolher-se
o momento certo – quer seja pela presença da melhor luz solar (ou
não), pela vitalidade (ou não) da vida (humana ou não), pela sonorida-
de etc. – e o lugar certo – onde a presença do pesquisador não preju-
dique a dinâmica do lugar, onde se consegue captar a ação desejada
no melhor ângulo, com a melhor vivacidade. Tudo isso requer muito
planejamento e atenção e uma visita prévia pode auxiliar muito na
tomada de decisões. Por vezes, o cotidiano transborda o imaginado

215
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

e uma enxurrada de acontecimentos toma o campo. Saber entrar na


confusão é tão importante quanto saber sair na hora certa. De novo,
pode-se participar plenamente ao escolher-se o melhor lugar para
observar sem interferir na cena.
Caminhar pela paisagem com a ambição de registrar seus ele-
mentos é extremamente extenuante, já que pesquisas de campo, em
geral, são esgotantes física e mentalmente. Junta-se ao cansaço da
caminhada a exposição às intempéries e à poluição, o trato com as
frequentes abordagens, com as situações de risco e insegurança etc.
Assim, é normal que surjam dúvidas sobre o momento de interromper
os procedimentos de coleta. Além disso, qual seria a indicação exata
para avaliar-se a suficiência da quantidade de dados, sobretudo
numa abordagem qualitativa? Inicialmente, cabe um confronto entre
o tempo disponível de registro e a duração de trabalho posterior com
os arquivos, ambos premidos por orçamento, condições climáticas e
preparo físico e psicológico do pesquisador. Deve-se pressentir que
quanto mais tempo de campo, mais horas de tratamento e análise
dos dados serão exigidas... É trivial ter que voltar ao mesmo lugar
algumas vezes para observar o que se pretende investigar ou mesmo
para constatar melhor algum detalhe que não foi apreendido sufi-
cientemente. Contudo, é comum chegar-se a um momento em que
a oferta de insights começa a rarear e, por mais que se observe com
cuidado, os fenômenos começam a repetir-se. Fala-se em “satura-
ção” nos manuais de pesquisa, o que, por princípio, não é algo fácil
de se definir, pois, muitas vezes, esse ponto advém da experiência
e do desprendimento do pesquisador. E acrescentando-se que a
variação das horas do dia, dos dias da semana, das estações do ano,
da dinâmica do cotidiano urbano (dia útil, fim de semana, feriados) e
as condições climáticas têm claro reflexo na paisagem, aumenta-se a
complexidade por uma decisão. Por isso, posicionar-se sobre a inter-
rupção sempre guardará certo julgamento subjetivo e, desse modo,
torna-se importante indicar essa escolha para o leitor. Ademais, exis-
te o fato de não se sentir mais confortável com a rotina da pesquisa,

216
UMA EXPERIÊNCIA PAISAGÍSTICA NA METRÓPOLE BRASILEIRA

uma vez que muitos problemas podem surgir na dinâmica urbana que
acabam impedindo um prosseguimento seguro. Realmente, expor-se
à paisagem requer muitos cuidados.
Entretanto, a vivência na paisagem é plena de descobertas
prazerosas, em virtude da generosidade das pessoas, da beleza dos
ambientes construídos e dos lugares construídos por essa relação.
Muitas vezes, a curiosidade move a mente e as pernas! Por outro lado,
já que as dificuldades de uma sociedade espelham-se claramente na
paisagem e, consequentemente, aos olhos treinados, isso pode ser
desgastante de se defrontar indefinidamente. Existe, portanto, uma
sabedoria em saber parar. Compartilhando esse pequeno apanhado
de vivências, de modo um pouco mais ameno daquilo que os manuais
trazem como discussão metodológica, pretendeu-se relatar uma ex-
periência paisagística a partir da caminhada pelos espaços públicos
brasileiros. Compreende-se como singela contribuição, com a pre-
tensão de inspirar maiores cuidados para melhores pesquisas, pois
para juntar-se, fazer e captar a paisagem é necessária uma forma
disciplinada de olhar.

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219
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?
Sobre imaginações, emoções e paisagens
culturais a partir de uma perspectiva simbólica1

Marcia Alves Soares da Silva

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.


É preciso transver o mundo.
Manoel de Barros

Introdução

Os saberes geográficos da vida cotidiana sempre fizeram parte


da cultura humana. A relação inevitável do ser humano com os lugares
tornou-se cada vez mais complexa, complexificando também os senti-
dos e significados dos lugares. As singularidades da relação do eu com
o mundo são motivações fundantes da Geografia enquanto ciência, que,
aos poucos, foi esmiuçando tal relação nas distintas áreas da disciplina,
buscando tecer um diálogo com outras áreas do conhecimento.
Assim, entendo que o primeiro conhecimento espacial nasce
da experiência humana, partindo da percepção do mundo, e a Ge-
ografia tratou de construir teorias e conceitos que explicassem tal
experiência nos moldes científicos. No entanto, muito foi deixado de
lado na explicação do eu com o mundo, em especial, aquilo que é
considerado como parte da subjetividade humana. Um desses temas

1  O título desta reflexão foi inspirado na análise poética sobre a Geografia realizada
por Lúcia Helena Gratão em “O direito de sonhar em geografia - projeção bachelardiana”
(2016). Assim como sonhar, é preciso imaginar na Geografia. Agradeço à autora (e amiga) por
conceder a possibilidade de pensar um título em aproximação com suas aspirações e desejos
geográficos, os quais compartilho significativamente.

221
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

é a imaginação, que, hoje, no discurso comum, parece só fazer parte


do mundo das crianças e, por vezes, é questionado se, de fato, é um
tema científico. Mas afinal, temos o direito de imaginar na ciência?
Essa inquietação já faz parte dos temas de interesse que tenho
dialogado na Geografia, mais especificamente nos debates culturais e
humanistas. Trata-se de um ensaio, sendo o pontapé inicial da discus-
são da imaginação geográfica, em articulação com uma reflexão que
já trabalho há algum tempo relacionada às geografias emocionais e à
questão simbólica. A partir de uma perspectiva simbólica, penso que a
imaginação geográfica pode estruturar diferentes espacialidades, como
as paisagens culturais. Portanto, este artigo também é fruto da minha
imaginação no que diz respeito às relações espaciais. Uma imaginação
que vê a dimensão sensível da experiência humana como fundamental
para a construção do conhecimento científico e geográfico.
Inicio a discussão com o debate sobre a imaginação geográfi-
ca, apresentando como a reflexão é discutida ao longo da história da
Geografia, além dos desafios e potencialidades do tema. A partir da
leitura de diferentes autoras e autores, percebi que o tema da ima-
ginação, comumente refletida no âmbito das discussões subjetivas
da Geografia, tornou-se um tema marginal, assim como a emoção,
dado o contexto de construção científica da nossa disciplina. No
entanto, percebo que o tema pode ser renovador para o pensamento
geográfico, ao colocar, como ênfase, o sujeito e suas experiências
espaciais, em espacial, quando se abre o debate para o diálogo com
outras áreas do conhecimento.
Com esse interesse interdisciplinar, articulo uma reflexão com
a Filosofia, pensando a imaginação em diálogo com a questão simbó-
lica. A filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer, considerado
um dos “pensadores do imaginário”, fornece elementos para pensar a
imaginação a partir da dimensão sensível, enquanto parte do mundo
da cultura e da expressão e representação do ser simbólico, que
o autor denomina de animal symbolicum. A ponte com a filosofia
cassireriana dá-se, por um lado, pelo contato e articulação com a

222
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

obra do autor na tese de doutorado, cujo interesse focou em discutir


emoções e espacialidades a partir da questão simbólica e de história
de vida de pessoas com uma experiência religiosa em particular2; por
outro, porque o filósofo alemão ao propor que arte, ciência, religião,
mito, linguagem e história são formas simbólicas que conformam a
experiência humana, o que inclui a dimensão espaço e tempo, aponta
a imaginação e outras formas de subjetivação como fontes funda-
mentais para a objetivação do mundo da cultura do ser simbólico.
Por fim, trago minha contribuição ao dialogar emoções e ima-
ginação geográfica para compreender as diferentes espacialidades
da vida cotidiana, como, por exemplo, as paisagens culturais da vida
urbana. Pensando as paisagens culturais como parte do mundo
expressivo e representativo do ser simbólico, interpretamos que
essas paisagens também são fruto da imaginação e das emoções da
experiência humana, que exteriorizam aquilo que percebe, vê e sente
em forma de arte, por exemplo.
Assim, apresento aquilo que entendo como paisagens cultu-
rais da vida urbana, pensando a relação da arte e da expressividade
como a linguagem simbólica dos pixos, grafites e outras artes visuais
que estampam os muros da cidade. Como uma grande tela, os muros
urbanos são condição e resultados da percepção e expressão hu-
mana, que utilizam esse importante símbolo citadino da separação,
fronteira, insegurança e conflito para propor um caminho mais colo-
rido, vivo, de união de pautas e lutas, de externalização de diferentes
emoções sentidas pelo artista — indignação, vergonha, medo, inse-
gurança, união — e de um despertar emocional para o espectador,
que constrói uma ponte de identificação ou não-identificação com
os símbolos produzidos.

2  A tese intitulada “O eu, o outro e o(s) nós: Geografia das Emoções à luz da filosofia
das formas simbólicas de Ernst Cassirer (1876-1945) e das narrativas de pioneiros da Igreja
Messiânica Mundial”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade
Federal do Paraná (2019), teve como objetivo pensar a Geografia das Emoções a partir da
reflexão teórica da filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer e de narrativas de histórias
de vida de pessoas idosas que fazem parte da comunidade messiânica em Curitiba e Ponta
Grossa – PR.

223
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Minha intenção é pensar que a imaginação, motivada pela


experiência emocional do sujeito, é força de ação e construção de
diferentes espacialidades — como as paisagens culturais. Essas es-
pacialidades são as geografias vividas e íntimas de cada sujeito. São
geografias plurais e diversas sobre a realidade. Elas são o perceber, o
viver e o sentir da experiência do corpo e da relação com o espaço.
Estar atentas e atentos à subjetividade da experiência espacial tam-
bém é um efetivo caminho para contribuir na transformação social. A
Geografia pode ser alimentada por esses saberes que exigem proxi-
midade, familiaridade, intimidade. Proponho aqui a traçar um possível
caminho de diálogo, rumo a uma Geografia, de fato, Humana. Uma
Geografia que possa transver o mundo.

Sobre a imaginação geográfica

Pensar a imaginação na ciência é um desafio, visto como algo


da esfera do mental, do subjetivo e, às vezes, do mero lúdico, o tema
pode ser colocado como menos importante diante de tantas deman-
das “materiais” sobre a economia, a política, questões ambientais,
dentre outras inquietações complexas da vida contemporânea. O fato
é que a imaginação faz parte da condição humana. É parte da nossa
experiência enquanto sujeitos sociais e não é restrito ao mundo das
crianças, como comumente pode estar associada. A imaginação é a
potência de agir.
A discussão sobre a imaginação na Geografia é um convite
para (re)pensar a história do pensamento geográfico e a epistemolo-
gia de nossa ciência. Isso porque podemos considerar a imaginação
como elemento quase indissociável da relação que tecemos com o
espaço geográfico, sendo parte da percepção de mundo. A contem-
plação da natureza, pensando desde o mundo mítico, pressupõe um
processo imaginativo, que é instituído numa esfera individual, mas
também coletiva, sendo parte, portanto, do mundo da cultura.
Antecipei alguns dos elementos que considero relevante na
discussão sobre a imaginação e que serão melhor elaborados e apro-

224
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

fundados posteriormente, em especial, sua relação com a dimensão


simbólica. O que quero apresentar, inicialmente, é qual o papel da ima-
ginação na Geografia e como tal abordagem possibilitou a estruturação
da reflexão da imaginação geográfica na história de nossa disciplina.
De início, posso apontar a marginalização do tema na Geo-
grafia, tanto como discussão central ou como discussão secundária.
Tal marginalização não se restringe aos estudos geográficos, mas faz
parte do rol de temas entendidos como parte do âmbito da subjeti-
vidade e, portanto, questionados por visões mais racionalistas sobre
as ciências.
Lindón (2012) aponta a marginalização da discussão sobre o
imaginário e a imaginação na Geografia, em especial, pelas Geografias
mais institucionalizadas como “científicas”. Embora pouca valorizada,
a autora reconhece que a imaginação é um dos núcleos relevantes
da disciplina e define a noção de imaginário como construções em
curso, do eu com o mundo, em diálogo e interação com os outros.
Numa análise espacial, afirma que os imaginários espaciais estão
conectados aos sujeitos que habitam os lugares, como instrumentos
de percepção e compreensão do território, produzindo sentidos
específicos sobre os fenômenos espaciais e os lugares em si.
Tal marginalização também é percebida por Berdoulay (2012),
que, ao fazer uma análise histórica e epistemológica do tema, afirma
que o positivismo e o empirismo do século XIX deixaram de lado o
imaginário do processo científico, já que a razão, elemento central
dessas correntes, ao opor realidade e representação, também dis-
tancia sujeito e objeto. Sobre isso, Zusman (2013) reconhece o papel
dos imaginários geográficos, que, ao conectar sujeito e objeto, per-
mitiram relacionar o cultural com o espacial, tema de interesse nos
estudos sobre a percepção na Geografia na década de 1960.

La integración de la dimensión de lo imaginario en la


geografía — en el análisis geográfico — no es una forma
de querer revelar desde la disciplina ciertos aspectos
«culturales» que pueden parecer innovadores, para re-

225
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

posicionar así a una disciplina por mucho tiempo desva-


lorizada por los otros campos del saber social. Antes bien
se trata de una necesidad apremiante en el contexto de
la renovación y revisión de su objeto de estudio: al asumir
que el espacio no se reduce a la simple materialidad, se
requieren aproximaciones que desborden la materialidad
sobre diversos flancos, y uno de ellos es lo imaginário
(LINDÓN; HIERNAUX, 2012, p. 15).

A atenção inicial pelo tema na Geografia foi sistematizada por


duas importantes contribuições: a primeira, em reação às teorias
quantatitivas das décadas de 1960 e 1970, representada pela Geo-
grafia Humanista e a Geografia Marxista; a segunda, mais recente, a
partir das Geografias Pós-Coloniais e dos estudos de cultura visual, a
partir da década de 1990. Destacamos ainda que o tema despertou
interesse também nas reflexões da Geografia da Percepção, Geografia
das Representações, Geografia Cognitiva, Geografia Fenomenológica,
Geografia Pós-Fenomenológica, dentre outras (ZUSMAN, 2013).
Com relação à primeira fase, Zusman (2013) cita o importante
trabalho de David Harvey, que, ao produzir um texto sobre urbanismo
e desigualdade social em 1973, propõe o uso da imaginação espacial
para entender os processos espaciais e sociais nas análises sobre a
questão urbana, estabelecendo uma conexão entre forma espacial,
significado simbólico e comportamento espacial.
Com relação à Geografia Humanista, que tem papel funda-
mental desde a década de 1960 para os estudos sobre o imaginário
geográfico, tal área leva em consideração a subjetividade no co-
nhecimento do entorno, reconhecendo a proximidade da Geografia
com a arte e a poesia. Nos estudos culturais e humanistas, vale citar
os trabalhos de David Lowenthal (1961) “Geography, experience and
imagination: towards a geographical epistemology”, com interesse
na percepção do entorno, buscando dialogar com a psicologia com-
portamental, o urbanismo culturalista, a sociologia e filosofia existen-
cialista, tendo influenciado a Geografia Comportamental. Lowenthal
teceu conversas com Hugh Prince, que também publicou, em 1961,

226
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

“The geographical imagination”. Os autores dialogam sobre as liga-


ções entre o presente o passado por meio do estudo das paisagens.
Para Lowenthal (1961, p. 260) “Every image and idea about the world
is compounded, then, of personal experience, learning, imagination,
and memory”.
Na segunda fase, Zusman (2013) aponta o interesse em des-
vendar o compromisso da Geografia com os projetos dos impérios
modernos, questionando, por exemplo, os imaginários relativos à
questão colonial. Essa segunda fase está ligada com o que Lindón
e Hiernaux (2012) assinalam da relação entre imaginário e imagem,
afirmando que esses elementos constituem uma expressão sintética
da relação das pessoas com seus espaços. No caso da Geografia, tal
relação também é associada com a ideia de representação, materia-
lizada, por exemplo, a partir de relatos ou de elementos cartográficos.
Segundo os autores, há um processo mental de perceber o entorno,
pensando tudo aquilo que é externo aos nossos corpos, possibilitan-
do elaborar imagens mentais desses entornos.
Desde os anos de 1980 e 1990, os trabalhos de geógrafos
como Derek Gregory e Denis Cosgrove contribuem para uma reflexão
sobre o imaginário na Geografia, a partir de uma perspectiva crítica,
relacionando, por exemplo, o papel da imaginação e da imagem na
legitimação de processos históricos, como a colonização (LINDÓN
2012; ZUSMAN, 2013). Conforme as autoras, tal contribuição é funda-
mental para as discussões da geografias pós-coloniais ou as teorias
da decolonialidade, no sentido de repensar os discursos históricos
que apresentam os distintos processos de colonização e subjugação
de culturas, porque reconhecem o caráter europeu dos imaginários
construídos no discurso científico ocidental. Neste sentido, alguns
caminhos sobre o tema, de acordo com Lindón (2012), incluem os
estudos pós-coloniais; imaginários e discursos de controle territorial;
imaginários e fenômenos urbanos; imaginário e retorno bucólico ao
mundo rural e identidades territoriais.

227
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

A preocupação de Cosgrove, segundo Zusman (2013), foi levan-


tar reflexões sobre os imaginários em associação com as discussões
da Geografia Cultural. Nessas reflexões, o imaginário cósmico, onírico,
poético associa liberdade e espírito, psique e cosmos, metáfora e
linguagem, metamorfoseando a relação com o espaço geográfico,
gerando novos significados, em função das transformações materiais
da natureza, possibilitada pelo mundo da imaginação.
Essas fases do estudo da imaginação geográfica são relevan-
tes. No entanto, esse caráter mítico e poético já aparece nas reflexões
sobre o imaginário muito anteriormente às duas fases mencionadas.
É importante reconhecer o texto clássico de John K. Wright, publica-
do em 1946 e traduzido para o português em 2014 (atenção ao lapso
temporal), que discorre sobre as chamadas terras incógnitas e o lugar
da imaginação na Geografia. O autor, antes mesmo da estruturação
da corrente humanista na Geografia, aponta que devemos, enquanto
geógrafas e geógrafos, valorizar a imaginação e a subjetividade para
a construção de uma ciência mais clara, viva e condizente com a
realidade. Essa realidade é constituída de múltiplas geosofias, isto é,
aquela geografia praticada por todas e todos nós, sejamos ou não,
geógrafas ou geógrafos. Para Zusman (2013), a postura fenomenoló-
gica já apresentada nesse trabalho de Wright entendia a imaginação
geográfica com uma sensibilidade estética, ajudando a conhecer o
desconhecido e as múltiplas experiências relacionadas aos lugares.
Essas geografias “desconhecidas” são conhecidas por aque-
las e aqueles que a praticam: o pedreiro, o artista, o agricultor, a
quebradeira de coco, o pescador, a médica, a professora, o garçom,
a agrônoma, o químico, a cobradora de ônibus, o taxista, a musicis-
ta, o artista de rua… O “desconhecido” estimula a imaginação e “[...]
toda a Terra parece uma imensa colcha de retalhos de mini terrae
incognitae” (WRIGHT, 2014, p. 7). A frente do seu tempo no que diz
respeito à relação entre subjetividade e conhecimento geográfico, o
autor afirma:

228
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

A zona periférica também inclui outro tipo de geografia


ainda mais informal; aquela das concepções subjetivas
de mundo que existem na mente de incontáveis pessoas
comuns. Com o intuito de estimar o que esta é, nós
raramente precisamos ir tão longe quanto os sociólogos
ao fazer enquetes ostensivamente “científicas” sobre as
atitudes humanas. Conversando simpaticamente com
algumas pessoas inteligentes da terra, consultando os
arquivos de jornais locais e outras publicações, e com
um pequeno uso competente da intuição podemos,
na maioria das circunstâncias, conseguir tudo o que
precisamos para nossos objetivos. Por exemplo, os fa-
zendeiros das grandes planícies devem olhar com certos
sentimentos para as tempestades maciças depois de
uma longa seca. Porque não dar vida aos nossos estudos
regionais ou climatológicos das Planícies, permitindo que
o leitor sinta esta emoção? (WRIGHT, 2014, p. 12).

A provocação de Wright na década de 1940 é certamente


bastante contemporânea e faz parte da minha inquietação ao pro-
blematizar a relação espacial com a questão emocional. Do ponto
de vista geográfico, como podemos utilizar nossas experiências
emocionais para expressar nossa relação com os espaços da vida
cotidiana? Enquanto geógrafas e geógrafos, como podemos refletir
e transmitir nossa compreensão da experiência emocional da outra
pessoa? Certamente, pensar a imaginação como força motriz na inte-
ração com os espaços é um caminho para repensar a epistemologia
e a metodologia em Geografia, o que requer um olhar sensível sobre
nossas pesquisas científicas e pode ser um caminho para o direito de
imaginar na Geografia.
Wright (2014, p. 9) afirma que: “Muito da sabedoria acumulada
no mundo foi adquirida deste modo, não da aplicação rigorosa de
pesquisa científica, mas através da habilidosa imaginação intuitiva –
ou introspecção – de filósofos, profetas, estadistas, artistas e cientis-
tas.” Na visão de Zusman (2013), a perspectiva de Wright antecipa a
reflexão dos estudos pós-coloniais, porque reconhece outras formas
de conhecimento diferentes do conhecimento científico eurocên-

229
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

trico, apontando que a história da Geografia também poderia ser


alimentada por outros setores sociais e outras geosofias.
Portanto, reconheço o papel da subjetividade para pensar a
imaginação, pensando o sujeito como autor de suas representações.
Essas terras incógnitas podem ser entendidas através de um co-
nhecimento geográfico apreendido a partir da experiência enquanto
sujeito ativo no que chamamos de espaço vivenciado. Por espaço
vivenciado e suas múltiplas espacialidades, entendo que:

[…] podem ser interpretados a partir de uma dimensão


subjetiva, o que inclui pensar a questão emocional. Tais
categorias partem da percepção do sujeito, de suas
visões de mundo e das experiências na realidade cir-
cundante para serem definidos. O sujeito é aquele que
pensa, que ri, que chora, que sente medo, felicidade,
alegria, vive seus lugares e dá significado a eles a partir
do que acredita (SILVA, 2019, p. 63)3.

Assim, pensar a imaginação na Geografia está associado com


a experiência emocional dos sujeitos. Podemos reconhecer, dessa
forma, as múltiplas formas de construir o conhecimento, dada a partir
do sujeito da experiência e todas as “modalidades de gente”, portan-
to, as variadas experiências emocionais construídas na relação com
os espaços, os lugares, as paisagens. As nossas experiências emo-
cionais conferem singularidade às nossas experiências espaciais e o
que pode alimentar essa conexão entre emoções e lugares está na
nossa capacidade criativa e imaginativa. A partir de uma experiência
subjetiva — a imaginação — é possível objetivá-la em ato, em concre-
tude, em materialidade, em função dos elementos significativos que
a imaginação estrutura, como a experiência espacial.

3  A discussão sobre o espaço vivenciado, trabalhado mais profundamente na tese


de doutorado, tem como referência o pensamento de Bollnow (2008 [1963]), que tem, como
questão central, o ser humano. O autor trata sobre um sentimento espacial que surge quando
queremos nos encontrar no espaço e nos relacionarmos com ele: “Trata-se de um certo caráter
de humor, que perpassa nossa relação com o espaço e que, como tal, deve ser diferenciado do
colorido sentimental da relação para com um objeto individual no espaço” (BOLLNOW, 2008
[1963], p. 292).

230
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

Berdoulay (2012) ao tratar sobre a subjetividade, aponta que


tal experiência não acontece exclusivamente no nível individual, mas
é parte da nossa conexão, enquanto seres humanos, com o meio.
Esse entendimento faz parte também do que entendo como espaço
vivenciado, isto é, o espaço de interação, relação e conexão. Essa
conexão é sustentada por diferentes representações, cujo papel do
imaginário é fundamental, já que é entendido como

[…] un conjunto movedizo de imágenes movilizadas y


modificadas por el sujeto en el curso de su actuar. Este
conjunto resulta de la actividad imaginativa del sujeto
y no debe ser considerado a priori como algo estático.
Debe verse como una de las mediaciones a través de
las cuales el individuo construye su mundo (BERDOULAY,
2012, p. 49-50).

Na visão de Berdoulay (2012), o imaginário funciona como


um reservatório de ideias, sentidos, valores e modelos de ação, que
influenciam, mas não determinam, os comportamentos, porque sua
função é potencializar a criatividade e autonomia do sujeito — o
sujeito que sente emoções. Sua visão dialoga com a ideia de Gratão
(2016, p. 152) que afirma que a: “A imaginação é um além psicológico.
Ela assume o aspecto de um psiquismo precursor que projeta o seu
ser. A postura fenomenológica leva-nos a tentar a comunicação com
a consciência ‘criante’”.
Esse entendimento pode ser reforçado pelo que Berdoulay
(2012) chama de dimensão narrativa do imaginário. Entendo que o
sujeito vê, interpreta o que vê à luz de suas experiências, o que inclui,
sua experiência emocional, assim como suas aspirações de mundo
e ressignifica tal leitura a partir da relação emocional que tece com
os lugares. Construímos, assim, espacialidades emocionais. Nessa
construção, há a tomada de consciência de si e de sua ação enquanto
sujeito espacial, o que suscita questionamentos do tipo: o que os lu-
gares significam para mim? Por que em cada lugar teço uma relação
distinta? Por que nesse lugar sinto medo e no outro sinto bem-estar?

231
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Que elementos materiais (e espaciais) sustentam minha experiência


emocional? A atividade criadora do sujeito enquanto ser ativo orien-
ta-nos para uma leitura de nossa capacidade universal de imaginar.
Imaginar, inclusive, minha relação emocional com o espaço geográfico.
Esse exemplo pode associar-se à discussão que Berdoulay
(2012) apresenta sobre a relação do eu com o mundo, de que cons-
truímos a nós mesmos e também construímos um compromisso com
o mundo, redefinimos nossos lugares, expressando narrativamente
nossas identidades, mudanças e lugares que nos acompanham. Es-
sas narrativas são sustentadas por elementos materiais e imateriais
e que, uma vez organizados pelo sujeito criador, dão sentido a si e
ao lugar. O imaginário geográfico entra nessa composição, porque
sustenta e fornece mediação do sujeito com o lugar, a partir de uma
leitura criativa de relatos, formas, símbolos, signos e outras estruturas
de sentido e significado à sua vida enquanto coletivo e enquanto
indivíduo (figura 01).
Pensando a paisagem cultural, conectando arte e geografia,
tendo como palco a vida urbana, posso apresentar algumas ques-
tões. Por exemplo, porque os artistas de rua, como aqueles que
fazem pixo nos lugares mais altos e inesperados da cidade, escolhem
esses lugares para deixarem sua marca? Há uma estratégia simbólica
de relações de poder, mas há também a emoção no ato de fazer o
pixo, naquele lugar específico, com aquela cor específica, usando
um símbolo que vincule sua identidade. O comportamento desse
sujeito – entendido, por vezes, como transgressão –, sua experiência
espacial e emocional estão conectados com um imaginário urbano
dos diferentes grupos ligados ao pixo e ao grafite, além do imaginário
daqueles que não têm a mínima ideia do que significam aqueles
símbolos, mas facilmente associam a vida urbana com esse tipo de
expressão artística. A paisagem cultural da vida urbana é sustentada,
nesse caso, pelo ato criativo do artista e pelo ato imaginativo de
quem vê a arte.

232
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

Figura 01: Narrativas do eu e/com o mundo: experiências individuais e coletivas nas


paisagens culturais da vida urbana em Cuiabá, Buenos Aires, Lisboa, Berlim, São Luís e
Rio de Janeiro. Os símbolos, signos e cores compõem paisagens culturais singulares,
ao mesmo tempo que se unem na expressão artística
Fonte: a autora (2012)

Na interpretação de Berdoulay (2012), portanto, há uma di-


mensão simbólica no processo de imaginar. Com isso, ao pensar a
imaginação geográfica, relaciona-se com a questão mítica, fornecendo
uma ponte para a nossa leitura cassireriana sobre a questão simbólica,
já que, para Cassirer, o mito é uma expressão emocional do animal
symbolicum ou homo geographicus, na visão de Berdoulay (2012).

233
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Por medio de las imágenes, los relatos y las emociones


que vehiculan, el mito es potencialmente fuente de
sentido y al mismo tiempo es un material e instrumento
de reflexión para el sujeto en su relación con el mundo.
En ese sentido, el mito puede ser incorporado en el
imaginario en tanto que elemento de la dinámica de un
sistema complejo (Roux, 1991) (BERDOULAY, 2012, p. 50).

A conexão entre imaginação geográfica e a questão mítica


decorre também dos símbolos e signos que fazem parte do universo
e da expressão do mito. Essas terras desconhecidas trazem-nos
elementos que requerem atenção à sensibilidade e imaginação na/
da vida humana e pode nos fornecer questões para compreender a
Geografia da vida cotidiana. Assim, o aspecto simbólico é uma chave
para entender a mediação e a “universalidade” dessas geografias
pessoais, as geosofias. É possível, portanto, encontrar pontos que
unem o eu e o outro, baseados numa condição comum ao ser sim-
bólico: a capacidade de imaginar.

A imaginação e o simbólico: contribuições da filosofia das


formas simbólicas de Ernst Cassirer

A discussão sobre a imaginação geográfica pode ser enrique-


cida e sustentada a partir de uma ponte com outras áreas do conhe-
cimento, sensíveis às dinâmicas subjetivas. Isso porque há estudos
que apontam a relevância dos chamados “pensadores do imaginário”,
o que inclui filósofos, sociólogos, psicólogos, antropólogos e outros
teóricos, especialmente das Ciências Humanas.
Um desses pensadores é Ernst Cassirer (1874-1945), filósofo
alemão de tradição kantiana e um dos principais teóricos da Escola
de Marburgo. Com inicial interesse nas ciências naturais, sua cami-
nhada filosófica desnuda inquietações sobre o que é o ser humano,
levando-o às ciências humanas e as reflexões sobre a teoria da cul-
tura, consolidando sua filosofia das formas simbólicas, sistematizada
a partir de 1923 com a publicação do primeiro volume sobre o tema.

234
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

As formas simbólicas são entendidas como os estados


progressivos do aparecimento da consciência e funcionam como
mediação da nossa relação com o mundo. Sendo parte do mundo
da cultura, portanto, a produção de Cassirer deu-se com o objetivo
de construir uma crítica da cultura. Cassirer tem interesse central no
sujeito simbólico, cujas emoções são intrínsecas à sua existência, o
que justifica nosso interesse em dialogar com a sua teoria da cultura.

Tal herança [kantiana e das Escolas de Marburgo e Ba-


den] fez sua epistemologia fosse voltada para um maior
aprofundamento da relação sujeito-objeto, da consciên-
cia vista como instância constitutiva da possibilidade de
todo conhecimento e atividade cultural humana em sua
correlação com o mundo da realidade (SCOFANO, 2018,
p. 16).

A filosofia das formas simbólicas de Cassirer parte do pres-


suposto que a energia do espírito relaciona-se e articula-se com o
mundo a partir da mediação espiritual, dada pela tríade composta pela
função da expressão pura, pela função representativa e pela função
significativa. Essa mediação é influenciada pelas emoções, sentimen-
tos, pela imaginação, pelas fantasias e sonhos (SCOFANO, 2019).
A partir da mediação simbólica, nós temos acesso ao mundo,
conformamos a experiência e adentramos à realidade objetiva. Para o
filósofo: “O homem descobriu um novo modo de expressão: a expres-
são simbólica. É esse denominador comum em todas as atividades
culturais: no mito e na poesia, na linguagem, na arte, na religião e na
ciência” (CASSIRER, 2003 [1946], p. 66).

As formas simbólicas modelam todas as coisas e dão


sentido a elas, além de propiciarem a estrutura que nos
permite ver o mundo e significá-lo. Entre o sistema que
recebe as informações do meio que nos circunda, o
sistema receptor e o meio com o qual respondemos a
esses estímulos, o sistema reator, existe no homem mais
um sistema, o simbólico (SCOFANO, 2018, p. 18).

235
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Scofano (2018) discorre sobre a relevância de Cassirer para os


estudos sobre o imaginário já que a relação do ser humano e a cultura
constitui um imaginário social. Segundo o autor, a cultura ocidental
perseguiu reflexões que colocassem em evidência a dimensão emo-
cional, sensível, corporal e simbólica e que a história do Ocidente é
uma história de rejeição à imaginação simbólica. O autor reafirma a
relevância da filosofia cassireriana com relação ao poder do símbolo
na cultura: “Seu papel foi fundamental em face de uma história de
desprezo a tudo que fosse ligado à imaginação, ao emocional e ao
sensorial em nossa cultura ocidental” (SCOFANO, 2018, p. 15).
Sobre isso, Cassirer (2003 [1946]) afirma que o que distingue
o ser humano dos animais é as suas “respostas”, que são de caráter
simbólico e fundamentais na evolução da cultura humana para a mu-
dança de significado. Portanto, a contribuição de Cassirer enquanto
um pensador do imaginário pode fornecer elementos para entender
a dimensão emocional pela via simbólica, unindo elementos materiais
e imateriais, sujeito e objeto, razão e emoção.
Na discussão cassireriana, o espaço, reflexão que nos interes-
sa mais diretamente, é tomado como “forma” da intuição empírica e
sensível, impregnado e repleto de elementos simbólicos. A partir de
uma perspectiva cassireriana, é possível pensar o espaço geográfico
como base da mediação simbólica. O ato de voltar-se para o mundo,
isto é, para o espaço, é o primeiro e necessário passo para a objetiva-
ção, apreensão e determinação do ser simbólico, portanto, qualquer
realização ou criação do intelecto constitui-se nessa relação com
o espaço. Para o filósofo, a atividade do espírito “não se funda nas
regras de uma lógica abstrata e de uma matemática formal, mas sim
nas regras da ‘imaginação’” (CASSIRER, 2011, [1929], p. 248-249). Sua
reflexão dialoga com as ideias de Berdoulay (2012, p. 62) que afirma
que: “El espacio y los comportamientos dependen de una tercera
esfera, la del significado, cuya autonomía y papel mediador deben
mucho al imaginário”.

236
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

Mergulhão (2019, p. 220) alega que a posição epistemológica


de Cassirer prioriza, dentre outras questões, o “papel desempenhado
pela imaginação como função primeva da espontaneidade do espí-
rito”, sendo a intuição entendida como fonte primordial do saber e
para a formação da noção de conceito, além do surgimento de uma
nova concepção de objetividade. Ao adequar as teses kantianas à
constituição de uma teoria geral das formas de expressão do espírito,
buscou uma ampliação epistemológica, em que espontaneidade e
produtividade espiritual da consciência são uma capacidade cria-
dora singular (garantida pela operação da síntese transcendental da
imaginação). A imaginação, enquanto intuição sensível e estruturação
de mundo, é atividade criadora e consolida a espontaneidade do ser
simbólico (MERGULHÃO, 2019).

Mais do que isso, Cassirer deseja ir além do âmbito


científico, demonstrando que, dentro de sua noção de
símbolo, a função da imaginação assumiria o primeiro
plano no trabalho de conformação dos objetos dados
na intuição sensível de modo que ele pudesse ‘oferecer
uma filosofia do mundo cultural mediante a definição do
homem como animal symbolicum’ (ibidem). Assim, den-
tre as ‘forças espirituais’ desse processo, a imaginação
seria primordial, posto que, de todas as forças dinâmicas
que operam em cada específica forma simbólica de ‘re-
presentação’ do mundo, a imaginação seria a mais origi-
nária, por estar na base de todo processo de expressão,
abstração, analogia, re-cognição, memória e recordação
(MERGULHÃO, 2019, p. 237).

Enquanto seres simbólicos, somos nós que construímos o


nosso mundo por meio de nossas construções simbólicas (SCOFANO,
2018). Neste sentido, é possível pensar uma imaginação simbólica em
termos cassirerianos, como atividade criadora — imagem e repre-
sentação — da/na experiência, simbolizando o todo da vida humana,
construindo formas, portanto, tornando-se imaginação produtiva.
Ao colocar o sujeito como protagonista na construção do
mundo da cultura, a filosofia de Cassirer mostra a relevância da es-

237
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

pontaneidade do eu. Há o entendimento de uma progressiva autoli-


bertação do ser humano ao estruturar a realidade e construir e trans-
formar o mundo da cultura. A liberdade, nesse viés, está relacionada
com a liberdade do espírito, quer dizer, liberdade do pensamento,
além da liberdade de poder conformar o mundo para além de um
determinante biológico. Sendo um ser simbólico e, por conseguinte,
um ser construtor de cultura, o ser simbólico não pode ser analisado
dentro de amarras pré-determinadas.

Com essa afirmação, ele deseja demonstrar que, em sua


concepção do homem como um animal simbólico, subjaz
uma matriz espontaneamente criadora, a saber, a função da
imaginação, a qual, em seu caráter produtivo, gera os símbolos
que fornecem um significado aos objetos e que dão sentido
ao Mundo e à própria atividade humana em suas mais varia-
das formas de expressão (MERGULHÃO, 2019, p. 238).

Conforme apontamos, dentre as diferentes espacialidades que


a filosofia cassireriana possibilita a interpretação, está a espacialida-
de de expressões. O fenômeno expressivo, em sua análise, está ligado
também às emoções. Para compreender o fenômeno expressivo, é
necessário ter em mente a relevância da intuição e da percepção,
isto é, da própria experiência do sujeito, em que a sensibilidade é a
possibilidade de acesso ao mundo objetivo. O fenômeno expressivo
“manifesta um modo de ‘entender’ que não está ligado à condição
da interpretação conceitual: a simples exposição do fenômeno é ao
mesmo tempo sua interpretação e constitui a única interpretação
possível e necessária” (CASSIRER, 2011 [1929], p. 162).
Sobre isso: “Todo conhecimento conceitual está baseado
necessariamente em conhecimento intuitivo, todo o conhecimento
intuitivo está baseado em conhecimento perceptivo” (CASSIRER, 2011
[1929], p. 82). Assim, a percepção é relevante no acesso ao mundo
objetivo e junto com a intuição, ambas pertencem à esfera da espon-
taneidade, possuem a capacidade de receber impressões de fora e
de dar-lhes forma de acordo com leis específicas de formação.

238
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

[...] a ‘realidade’ nunca pode ser determinada somente a


partir da matéria, mas que em todo tipo de postulado da
realidade se insere um fator determinação de formação
simbólica, que deve ser reconhecida como tal e diferen-
ciado de outros fatores. […] a ‘função da expressão’ é um
fenômeno original genuíno, que afirma sua originalidade
e sua singularidade inconfundível também na construção
da consciência teórica e na ‘realidade’ teórica’. Se ima-
ginássemos que essa função básica estaria suprimida,
o acesso ao mundo dá ‘experiência interna nos estaria
vedado, e, com isso, as únicas pontes que poderiam nos
levar ao reino do ‘você’ estariam destruídas (CASSIRER,
2011 [1929], p. 149-150).

A relevância em trabalhar com o mundo expressivo justifica-


-se pelo fato de nossa primeira relação com o mundo dar-se a partir
dos sentidos (dados sensoriais), que constituem nossa experiência e
percepção do mundo, de forma que o sentido e a percepção cons-
tituem-se da reflexão e reprodução das relações do mundo externo
(CASSIRER, 2011 [1929]). Os sentidos estão intimamente ligados com
a emoção. De acordo com o filósofo, a percepção é uma confluência
e associação das impressões, no entanto, não se reduz a um mero
conjunto de qualidades sensuais (claro ou escuro, frio ou quente),
mas está sempre em relação com um determinado e específico som
expressivo. Por conseguinte, toda impressão já implica um ato de
expressão. Assim, à medida que o sentido expressivo prende-se à
percepção, ele é apreendido e imediatamente experienciado (CAS-
SIRER, 2011 [1929]).
A essência da percepção está relacionada ao conteúdo ob-
jetivo da sensação e ao caráter expressivo definido. Há sempre um
certo estímulo relacionado a uma certa sensação. Em outras pala-
vras, nós percebemos o mundo a partir daquilo que é expressivo a
nós, isto é, daquilo que é apresentado a nós, o mundo de coisas e o
mundo da vida. Esse acesso à realidade não nos é dado apenas como
um dado sensorial, mas por meio do fenômeno original da expressão
e do entendimento da expressão, que é essencialmente anterior ao
“conhecer as coisas” (CASSIRER, 2011 [1929]).

239
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

No fenômeno expressivo, há uma certa transmutação do afe-


tivo que ganha forma. Para ele, a “alma das coisas” tem puro sentido
expressivo, em que o mundo traz em si os traços da expressividade,
do sombrio ou do alegre, do excitante ou do suavizador, do tranqui-
lizador ou do amedrontante. Assim, não há alma sem corpo e nem
corpo sem alma, cuja relação é puramente simbólica e constitui
um todo repleto de sentido. Sobre isso, Cassirer (2011 [1929], p. 175)
afirma que: “O mundo é governado por um poder mágico, que pode
ser concebido como corpóreo quanto como espiritual e que, diante
dessa divisão, é totalmente indiferente. Ele se apega tanto a “coisas”
como a “pessoas”, tanto ao “material” como ao “imaterial”, tanto ao
que não tem vida como ao que tem vida”.
De acordo com Scofano (2018, p. 20): “Para o autor [Cassirer],
nem só de razão vive o homem, pois, além de ser dotado de uma lin-
guagem conceitual, este é constituído de uma linguagem sentimental
baseada em componentes emocionais e relativos à sensibilidade, uma
linguagem da imaginação poética”. Neste sentido, a relação emoção
e ser simbólico, na filosofia cassireriana, pode ser analisada em todas
as formas simbólicas. No entanto, vamos focar na linguagem e na arte,
que constituem parte do mundo expressivo e representativo da teo-
ria da cultura, sendo elementos basilares para se pensar as paisagens
culturais. Assim sendo, a ideia é que o mundo da expressão possui
como essência um caráter afetivo-emotivo. Por conseguinte, foram
criadas variadas formas linguísticas, artefatos técnicos e artísticos,
as narrativas mitológicas e sua simbologia, assim como os ritos e
doutrinas religiosas, de tal maneira que não se pode mais tratar de
nada sem a referência simbólica.
Se, na teoria de Cassirer, as formas simbólicas conformam o
mundo, compreendemos que esse mundo é permeado pelas emo-
ções. Assim, as emoções fazem parte dessa conformação do mundo,
isto é, fazem parte do mundo da cultura, dando sentido e significado
ao ser simbólico. As emoções são, portanto, parte inerente ao ser
simbólico e estabelecem uma importante relação entre o eu e o Ou-

240
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

tro. Ao valorizarem a intersubjetividade, que é condição fundamental


do mundo da cultura, as emoções revelam que não fazem parte
apenas de uma dimensão subjetiva, mas de uma subjetividade que
se consubstancia na ação, entendida como objetivação.
Cassirer (2003 [1946]) afirma que, para além da expressão
fisiológica ou psicológica das emoções, se as exprimirmos por meio
de atos simbólicos, tais atos têm o poder de ligar e desligar, estão
concentrados, intensificados e condensados.

Na linguagem, no mito, na arte e na religião, as nossas


emoções não estão simplesmente transformadas em
meros atos; estão transformadas em “obras”. Essas
obras não desaparecem. São persistentes e duradouras.
Uma reação física pode tão somente dar-nos um rápido
e temporário alívio; uma expressão simbólica pode
tornar-se num monumentum aere perennius (CASSIRER,
2003 [1946], p. 67).

No caso da linguagem, de acordo com Scofano (2018), o ser


humano não expressa somente a linguagem referente a pensamen-
tos e ideias, mas, antes mesmos destas, já ocorre a linguagem dos
sentimentos e afetos. Tal visão conecta-se com a ideia cassireriana,
quando afirma que a fala não é um fenômeno simples e uniforme, mas
composta por diversas camadas, sendo a primeira delas a linguagem
das emoções. Grande parte da expressão humana pertence a essa
camada e “A diferença entre a linguagem proposicional e a linguagem
emocional é a verdadeira fronteira entre o mundo humano e o mundo
animal” (CASSIRER, 2012, [1944] p. 55), porque enquanto os animais
possuem uma imaginação e inteligências práticas, apenas o ser hu-
mano possui uma imaginação e uma inteligência simbólica.
Sobre a relação linguagem e emoção, Cassirer aponta que as
teorias filosóficas da Antiguidade já “sabiam que a linguagem deriva
das emoções, [...] do sentimento, do prazer e do desprazer”, e que
“Demócrito foi o primeiro a propor que a fala humana tem origem
em certos sons de caráter meramente emocional”. A trajetória da

241
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

linguagem “não constitui apenas um signo representativo de ideias,


mas também um signo emocional dos sentimentos e dos instintos
sexuais” (CASSIRER, 2001 [1923], p. 127).
Quase todas as palavras foram derivadas de coisas naturais
(sons da natureza) e de impressões sensoriais e de sentimentos
(sons emocionais, que constituíam a expressão imediata de uma
emoção, uma exclamação de dor ou de prazer, de alegria ou tristeza,
de espanto ou de pavor). Portanto, a construção de um sistema lin-
guístico partiu inicialmente da relação expressiva com o mundo, isto
é, a partir da dimensão sensível, para depois ser pensada a partir de
uma lógica racional.
Assim, a linguagem é tanto uma percepção imediata (agrega-
da à sensação) e, portanto, insere-se em uma relação com as formas
espaço e tempo, mas também produto de uma reflexão, isto é, um
produto do espírito. Em vista disso, no som, expressam-se tanto a
dinâmica do sentimento quanto do pensamento (CASSIRER, 2001
[1923]). Para Cassirer (2012, p. 189): “Os nomes não servem para
expressar a natureza das coisas. Não têm quaisquer correlatos obje-
tivos. Sua verdadeira tarefa não é descrever as coisas, mas despertar
emoções humanas; não transmitir meras ideias ou pensamentos,
mas incitar os homens a certas ações”.
Em sua análise, as expressões humanas são uma expressão in-
voluntária de sentimentos, interjeições e exclamações e uma palavra
não poderia significar uma coisa se não houvesse pelo menos uma
identidade parcial entre palavra e significado. Assim, a linguagem não
é algo pronto, pois nós a construímos e imbuímos de significado, em
que ela possibilita a expressão dos nossos pensamentos. A lingua-
gem vincula-se à dinâmica da fala e esta, por sua vez, à dinâmica dos
sentimentos e da emoção.
Com relação à arte, Cassirer (2012) apresenta tal forma sim-
bólica como a intuição da forma das coisas, mas que não está pronta,
porque é um dos meios que levam a uma visão objetiva das coisas e
a da vida humana. Essa visão é apenas uma das possíveis na estru-

242
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

turação e contemplação da arte, já que há sempre uma apreensão


individual da arte, portanto, singular e única (figura 02).

A arte tem não só uma meta diferente como também um


objeto diferente. Se dizemos de dois artistas que eles
pintam “a mesma” paisagem, descrevemos nossa expe-
riência estética de modo muito inadequado. Do ponto
de vista da arte, um tal mesmice é totalmente ilusória.
Não podemos falar de uma única e mesma como tema
dos dois pintores, pois o artista não copia ou retrata um
certo objeto empírico - uma paisagem com suas colinas
e montanhas, seus riachos e rios. O que ele nos apresen-
ta é a fisionomia individual e momentânea da paisagem.
Ele deseja expressar a atmosfera das coisas, a interação
de luz e sombra. Uma paisagem não é “a mesma” sob a
luz da manhã ou sob o calor do meio-dia, nem em um
dia chuvoso ou ensolarado. Nossa percepção estética
apresenta uma variedade muito maior, e pertence a uma
ordem muito mais complexa que a de nossa percepção
sensorial comum (CASSIRER, 2012, p. 237).

Figura 02: Pedra do Sal, reduto do samba carioca. Passado e presente convergem numa
paisagem cultural marcada por símbolos e signos que nos motivam a imaginar seus
significados. O corpo negro marca essa paisagem cultural, que é uma remanescente
quilombola.
Fonte: a autora (2020)

243
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Há uma experiência de contemplação estética que anima a


arte, movida por “energias da paixão”, que tendem para novas dire-
ções daquilo que foi pensadoa inicialmente pelo artista. A arte, na
obra do artista, faz com que o poder da paixão seja transformado
num poder formativo. Portanto, mais da emoção, a arte tem a
possibilidade de nos mover. A partir da ação e a da imaginação, é
possível pensar que a paisagem expressada na arte, obviamente, não
é sentida da mesma maneira, com a leveza do ar, o frescor da vege-
tação, o colorido e aromas das flores. Mas posso experimentar uma
mudança no meu estado de espírito ao ver a paisagem com olhos de
artista, tentando imaginar esse quadro. A experiência estética, para
Cassirer, é um território das formas vivas, isto é, o aspecto dinâmico
das formas espaciais, da harmonia, das cores, da luz e da sombra.
Portanto, a arte é um universo de discurso, é linguagem simbólica.
Neste sentido, Cassirer (2012) considera que a arte possibilita uma
direção e orientação especial (e espacial) dos nossos pensamentos
e nossos sentimentos.

O poeta trágico não é escravo, mas senhor, de suas emo-


ções; e é capaz de transferir esse domínio aos especta-
dores. Na obra dele não somos controlados e arrastados
por nossas emoções. A liberdade estética não é a ausên-
cia de paixões, não é a apatia estóica, mas precisamente
o contrário. Significa que nossa vida emocional adquire o
seu mais alto vigor e que, nesse próprio vigor, ela muda
de forma (CASSIRER, 2012, p. 243).

Entendo que a apreciação da arte causa-nos diferentes tipos


de emoções. A busca pelo prazer na apreciação estética é um dos ele-
mentos que fundamentam nossa relação com a arte, a qual, em minha
reflexão, é tudo aquilo que nos emociona, que nos faz refletir, que nos
tira de nossa zona de conforto e nos possibilita pensar outras maneiras
de compreender a vida. Essa relação faz parte do universo simbólico e
constrói conhecimento. Portanto, a imaginação, como pontapé inicial
do artista e como fundamento de interpretação do espectador, conduz

244
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

a uma experiência de contemplação que é animada pela capacidade


de se emocionar e entender a singularidade da experiência espacial,
cuja paisagem cultural é fruto dessas relações.

Imaginações, emoções e paisagens culturais

Faço paisagens com o que sinto.


Bernardo Soares,
semi-heterônimo de Fernando Pessoa
no Livro do Desassossego.

A contribuição da filosofia das formas simbólicas fornece


elementos que ampliam as possibilidades de discussão sobre a ima-
ginação e emoções na Geografia, permitindo entender esses temas
no âmbito da questão simbólica. Com isso, vamos explorar algumas
das questões que trabalhamos anteriormente — imaginação geográ-
fica, questão simbólica e emoções — para pensar a dinâmica da vida
urbana, em especial, relacionada à paisagem cultural e à arte.
A Geografia Humanista e Geografia Cultural são áreas funda-
mentais para o entendimento do tema, mas é mais recentemente
que uma Geografia das Emoções ou Geografias Emocionais têm se
estruturado enquanto um campo efetivo do estudo da relação das
emoções com o espaço geográfico, explorando esse diálogo de for-
ma transdisciplinar e interdisciplinar. A intenção das Geografia das
Emoções é colocar as diferentes emoções humanas como fontes
analíticas para entender as transformações espaciais, pensando me-
todologias que alcancem essas experiências, enfatizando no sujeito
enquanto indivíduo e como coletivo.
A virada emocional na Geografia busca reconhecer a impor-
tância das emoções em nossas interpretações e entendimentos do
mundo. Ao refletir sobre as espacialidades e temporalidades das
emoções, entendo que grande parte da importância simbólica dos
lugares decorre da sua associação emocional. O debate poderia ser

245
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

entendido como o exercício de uma imaginação geográfica e de um


desejo de tornar a geografia mais completa (BONDI et al, 2007; SMITH
et al, 2009).
Para Mackian (2004), as experiências que nos desafiam emo-
cionalmente são espacial, temporal e socialmente situadas. À medida
que a Geografia tornou-se mais consciente dos múltiplos lugares da
experiência, houve uma mudança da ênfase nos espaços materiais e
territoriais, para uma consideração de lugares metafóricos e psico-
lógicos. O imaginário geográfico torna-se relevante, dando oportu-
nidade para o universo de sentido e significado, que é expresso nas
relações espaciais.
Essas geografias emocionais não apenas contribuirão no
âmbito da pesquisa geográfica atual, mas revelarão algo que falta
no centro da Geografia, desafiando fundamentalmente a auto iden-
tidade da Geografia. As geografias emocionais trabalham contra as
tentativas de fixar as emoções e defini-las de tal forma que podem
tornar-se meros objetos de quantificação (SMITH et al, 2009). Assim,
é preciso entender as emoções como aspectos vitais de quem somos
e de nosso envolvimento situacional no mundo, isto é, como forma
de mediar a vida cotidiana, porque elas compõem, decompõem e
recompõem as nossas geosofias.
As emoções são parte da experiência humana de dar senti-
do e significado aos espaços e suas espacialidades, em função de
diferentes processos: culturais, políticos, religiosos, econômicos,
sociais, ambientais, cosmológicos, mitológicos, dentre outros. Ao
explorar as emoções como parte da experiência humana subjetiva
e que potencializa uma objetividade, isto é, possibilita uma ação e
real transformação dos espaços e das relações espaciais, apontamos
mais um caminho a ser explorado na Geografia: um caminho mais
humano e sensível.
A partir das falas, imagens, fotografias, comportamentos
corporais, é possível entender a experiência emocional como in-
trínseca às relações espaciais. Pensando as categorias espaciais,

246
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

podemos pensar as paisagens culturais como um resultado efetivo


da experiência emocional, porque são parte do mundo expressivo e
representativo da cultura humana. Entendemos que o processo ima-
ginativo é parte fundante e constituinte das paisagens culturais e da
sensibilidade estética. Portanto, há uma subjetividade fundamental
que é chave de diferenciação espacial das paisagens culturais, cujo
conteúdo emocional e imaginativo é intrínseco e força motriz.
Colocando o foco no sujeito enquanto conformador do seu
espaço de ação e de suas espacialidades, podemos refletir sobre a
relevância da categoria emocional como parte da dimensão subjetiva
das paisagens culturais urbanas, ao mesmo tempo que objetiva, torna
concreto o mundo da vida, a partir da expressão artística.
Como apontamos anteriormente, entendemos a imaginação
como fonte primária para entender a relação emocional que tecemos
com os lugares, tanto no momento em que ela está interiorizada,
enquanto experiência individual e espontânea do sujeito, quanto no
momento de expressão, quando dialoga com a vida social e coletiva,
qualificando, dentre outras questões, nossa experiência espacial, ou
seja, dando sentido e significado para as relações e os espaços.
Sobre isso, Andreotti (2013) faz uma reflexão a respeito das
paisagens culturais em diálogo com a psicologia da paisagem. Para
a autora, a observação da paisagem comporta uma emoção, porque
há uma psicologia no momento em que o sujeito observa a paisagem,
que integra elementos culturais e relações histórico-espirituais. “[…] a
paisagem é cultura, é estética, é histórica, é vicissitude, é cor, ocorre
que aquela paisagem vem descrita não apenas sobre a base da mera
observação geográfica, mas integralmente, isto é, na vivacidade de
todos aqueles componentes que um processo psicológico correto
permite identificar” (ANDREOTTI, 2013, p. 34). Esse tipo de entendi-
mento é o que permite entender a paisagem enquanto “totalidade”.
Ao enfatizar a questão psicológica, Andreotti (2013) coloca em
pauta a relação que ocorre entre observador e aquilo que é o objeto de
sua observação. Portanto, o processo imaginativo que envolve a arte

247
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

acontece de forma bilateral: entre o artista e o espectador. Para a au-


tora, a paisagem não pode ser lida exclusivamente como aquela coisa
que simplesmente aparece, por meio da exaltação estética. É preciso
entender o transporte nostálgico que a paisagem cultural proporciona,
enriquecida pela sensibilidade cultural do ato da percepção.

Cada paisagem é produto e produtora de cultura, e é pos-


suidora de formas e cores, odores, sons e movimentos,
que podem ser experienciados por cada pessoa que nela
se insira, ou abstraído por aquele que a lê pelos relatos e/
ou imagens. Nesse sentido, é por meio da paisagem que
os elementos que integram no espaço “saltam aos olhos”
do ser humano, “gritam aos seus ouvidos”, e envolvem-no
nas suas dimensões sensíveis (ANDREOTTI, 2012, p. 69).

Para a autora, a paisagem marca o ser humano e é marcada


por ele. Reflete sua história, incluindo um universo de valores, imagens
e símbolos. Portanto, não pode ser separada do ser humano, do seu
espírito, da sua imaginação e percepção. É através das paisagens cul-
turais que falamos de nós, refletindo e exprimindo quem nós somos.
Assim, “é logos, discurso da memória, da história e da cultura, e, como
tal, paradigma de valores éticos e estéticos” (ANDREOTTI, 2012, p. 7).
Sobre isso, gostaria de relatar a experiência que tenho cons-
truído na vivência na cidade de Cuiabá, Mato Grosso. A chamada
“cuiabania”, entendida como a cultura da tradicional Microrregião
da Baixada Cuiabana e seus arredores é marcada por diferentes
elementos. Um deles é o “falar cuiabano”, que é estruturado pela
relação identidade e diferença, cultura e imaginário. De acordo com
Campos (2014), no caso de Cuiabá, as transformações dos espaços
regionais (especialmente em função do agronegócio) alteram as prá-
ticas culturais. Para a autora: “Ao estudarmos o falar cuiabano em seu
contexto cultural, veremos aspectos de sua constituição, sua gradual
inibição e ameaça de desaparecimento diante da marcha do proces-
so histórico sobre sua frágil singularidade” (CAMPOS, 2014, p. 16).

248
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

A autora acredita que conhecer o “falar cuiabano” significa,


além de se deliciar com as peculiaridades de um dialeto, é também
apreender traços culturais que revelam a sabedoria ancestral pro-
veniente da interação entre as pessoas e a natureza na tradicional
Baixada Cuiabana, cuja tradição oral é basilar e um convite para o
imaginário.

Como a tradição da Baixada Cuiabana e regional as-


senta-se na oralidade, e todo um modo de ser e de se
integrar ao meio foi alterado, apenas através da memória
dos habitantes mais antigos desses municípios e co-
munidades é possível tecer uma leitura para se ter uma
ideia do que foi esse passado e buscar as marcas de
saberes tradicionais. O dialeto cuiabano ainda é vigoroso
em alguns bairros e famílias tradicionais, bem como em
comunidades geograficamente ainda pouco contatadas,
tendendo à extinção à medida que o acelerado processo
de expansão capitalista e ocupação territorial avança
(CAMPOS, 2014, p. 108).

Um caminho para entender esses saberes tradicionais basea-


dos na oralidade está na expressão da arte, isto é, os traços culturais
do falar cuiabano não se restringem à oralidade, mas são externaliza-
dos a partir das Artes Visuais. Um exemplo é do artista mato-gros-
sense Adir Sodré (figura 03). Sua arte registra a vida cotidiana nos
bairros populares de Cuiabá e também da paisagem regional, além
de expressar outras temáticas sociais, como o erotismo, as questões
dos povos indígenas, a invasão causada pelo turismo e o consumismo.
Suas obras mexem com a imaginação do espectador, unindo cores,
formas, expressões e representações que dão luz à “cuiabania”.
As paisagens da baixada cuiabana vão alterando-se à medi-
da que se complexificam as relações espaciais. No entanto, essas
paisagens são importantes para o imaginário das culturas que
secularmente habitam determinadas regiões. Assim, a imaginação
torna-se elemento fundamental na apreciação artística de repre-
sentações dessas paisagens culturais. A emoção também se revela

249
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

como fundamental, porque mantém em pé o sistema dos antigos em


consonância com o sistema dos novos.

Figura 03: A cuiabania de Adir Sodré4.


Fonte: a autora (2020)

Pensando essa experiência, a atividade criadora da arte carre-


ga em si elementos afetivos. Ao ver uma paisagem representada pela
arte, tal como a exposta anteriormente, imaginamos que os “tchapa e

4  Num importante bar tradicional de Cuiabá, a paisagem cultural é construída a partir


da arte e dos variados elementos da natureza, inclusive sexuais, além de elementos que são
parte das práticas culturais, como a viola de cocho, o pequi e os peixes.

250
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

cruz” (autênticos cuiabanos) experimentam emoções que emergem


da imaginação, relacionadas às experiências do passado, do momen-
to presente e suas aspirações para o futuro, enquanto parte de uma
identidade coletiva. Sensivelmente, criamos uma interpretação sobre
a paisagem a partir daquilo que sentimos e do que tem significado
para nós, portanto, somos afetados de forma diferente pela mesma
experiência espacial. Para os “pau rodado” (gente de fora) que olham
a arte de Adir Sodré num importante turístico de Cuiabá, esses ele-
mentos podem não significar muita coisa. Para os cuiabanos, o “pei-
tchê” (peixe), o piqui, o caju e outros elementos são parte intrínseca
de sua cuiabania, de sua memória, história, identidade, isto é, tudo faz
sentido e tem um significado.
Sobre isso, Berdoulay (2012) apresenta a ideia de “metonímia
paisagística”, que, para ser realizada, necessita de um sujeito ativo
que reorganiza as tramas narrativas que dão sentido às paisagens,
aos lugares e a sua relação com o mundo, cuja mediação do imaginá-
rio, nesse processo, é essencial. Neste sentido, o viés emocional do
sujeito ativo possibilita a estruturação de um conhecimento geográ-
fico que é construído a partir de múltiplos pontos de vista.
Neste aspecto, a imaginação pode ser entendida enquanto
produto da alma (GRATÃO, 2016). Para a autora, a imaginação “cria
o que nós vemos”, portanto, está ligada diretamente à percepção.
Assim sendo, o envolver-se com a paisagem possibilita a construção
de uma poética geográfica. Desse modo: “A imaginação nos conduz a
lugares inacessíveis que por outras maneiras de exploração geográ-
fica não seriam alcançados. O geógrafo da imaginação pode acessar
outros horizontes viajando pelo mundo das imagens procurando
encontrar e desvelar imagens geográficas […]” (GRATÃO, 2016, p. 153).
Nessa leitura, mostra-se como sensibilidade importante da atividade
criadora do geógrafo e da geógrafa uma atenção às emoções, como
aponta Gratão (2016), podendo alimentar os “espaços vazios” dos
nossos “mapas de sentimentos”. Essa atividade é o que Wright (2016)
chama de “libido geográfica”.

251
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

O mundo da imaginAÇÃO é um mundo das possibilidades,


portanto, aberto à multiplicidade de criação de espacialidades,
atuando como potência de agir. “Diante desses ensinamentos vis-
lumbramos caminhos que nos (en)levam ao fazer uma geografia que
se pensa, experiência e sonha; que se cria e recria colocando-nos no
mundo: um estado de alma; uma entrega como o universo poético”
(GRATÃO, 2016, p. 154). Compartilho essa visão da autora, pensando
que a atenção à imaginação e à emoção pode ser fértil para os estu-
dos das paisagens culturais, colocando, como centralidade, o sujeito
e sua experiência no mundo, potencializando uma compreensão da
totalidade da experiência do ser simbólico.
Cassirer (2011 [1929]) afirma que as emoções expressas são
transformadas em imagens e essas imagens são a interpretação do
mundo exterior e interior. Para o filósofo, é o mundo de nossa existência
e de nossa realidade vivencial que nos permite conduzir a realidade
em si. Por isso, é preciso “nos deixar guiar pela experiência ‘interna’,
em vez da experiência externa. Jamais encontraremos nas coisas o
verdadeiramente simples, o último elemento de toda realidade, mas
somente o encontraremos em nossa consciência” (CASSIRER, 2011
[1929], p. 45).
Nesse jogo entre mundo exterior e interior, a emoção permeia
toda a vida, possibilitando o arranjo da realidade. Assim, a emoção
é subjetividade que se expressa na ação e, por ação, pressupõe-se
necessariamente uma base espacial. Sobre isso, Besse (2014) afirma
que essa experiência é uma segunda geografia, chamada de “sen-
sibilidade sentimento”, é fomentada pela intimidade, proximidade,
usos, contatos, saberes e familiares com o espaço, elementos que
estruturam algumas noções espaciais como distância, proximidade
e afastamento, alimentadas também por um investimento psíquico,
como as emoções. Isso resulta num espaço afetivo e psíquico, que
não se prende à interioridade, mas é exteriorizado. Há um afeto espa-
cial, uma topografia da alma, um espaço psicogeográfico, alimentado

252
TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

pelo espaço prático das ações gratuitas, das caminhadas apaixona-


das, das experiências vividas.
É importante destacar ainda que a discussão sobre a imagi-
nação na Geografia requer, além de um debate teórico e conceitual,
como nos propomos até então, um (re)pensar metodológico, visto
que é necessário encontrar caminhos que valorizem a dimensão
subjetiva da experiência geográfica e possam ser esmiuçados a
partir de um esforço analítico que requer um olhar sensível sobre tal
experiência. Mapas mentais, hermenêuticas cartográficas, narrativas
autobiográficas, fotobiografias podem ser metodologias exploradas
na construção de uma experiência geográfica que inclua a dimensão
do imaginário.
A forma como concebemos e percebemos o espaço faz parte
de uma atmosfera da emoção e da sensibilidade e são esses fatos
que tornam os lugares singulares, significativos e com uma impor-
tante dimensão simbólica. É a vida cotidiana que cria as formas, a
dinâmica da vida e o seu conteúdo.

Para continuar a imaginar

Explorar a imaginação geográfica no exercício de construção,


reflexão e análise do pensamento geográfico significa entender que a
dimensão espacial não se restringe a nossa disciplina, mas pode e deve
ser realizado um diálogo interdisciplinar no âmbito científico, além de
ser urgente pensar as geografias da vida cotidiana como fundamentais
para um (re)pensar de nossos conceitos e teorias espaciais.
A imaginação, como o próprio nome entrega, implica uma
ação: a ação de imaginar. Do ponto de vista geográfico, defendo o
direito de poder imaginar na/em Geografia, estimulando a capacida-
de criativa e analítica dos processos e realidade espaciais, incluindo
a dimensão sensível que envolve a imaginação. Como um discurso,
a imaginação, em minha leitura, envolve percepção, experiência —
novamente, individual e coletiva — e emoções. Ela possibilita a apre-

253
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

ensão da realidade que acontece desde o nível mental, mas também


há uma dimensão corporal no processo de imaginar, que, a partir
da linguagem, exterioriza aquilo que se imaginou, pensou, sentiu. É a
força simbólica da expressão, mediada pela linguagem.
Abordei, em vários momentos, a perspectiva espacial para
entender a imaginação geográfica, com ênfase na experiência do
sujeito ativo, criativo e imaginativo. Apontei ainda que tal experiência
é individual, mas também é coletiva, portanto, faz parte de um uni-
verso cultural. Pensando as categorias espaciais, é possível pensar a
paisagem cultural como processo e resultado do ato de imaginar, que
também é emocional, no sentido que exercemos uma relação com
aquilo que nos é significativo.
A imaginação geográfica e sua efetiva utilização transversal na
Geografia, como no ensino da Geografia, nos debates culturais, nos
conflitos territoriais no campo e na cidade, nos impactos ambientais
e em outras dinâmicas da vida social, podem ser um caminho demo-
crático de construção do conhecimento, valorizando pluralidades e
diversidades, escalas e experiências, emoções e memórias.

Referências

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TEMOS O DIREITO DE IMAGINAR NA GEOGRAFIA?

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255
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

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Nyrma Souza Nunes de; SCOFANO, Reuber Gerbassi (orgs). Introdução aos
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51-66.

256
O MUNDO NA PONTA DOS DEDOS:
Epigramas de Cecília Meireles
e Carlos Alberto Assis

Beatriz Helena Furlanetto

Cantos poéticos

Eu canto porque o instante existe


e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta
MEIRELES, 1982, p.14.

As relações entre os indivíduos e os lugares podem ser con-


templadas nas diferentes criações humanas, como as canções, as
obras de arte, as edificações arquitetônicas, as poesias, os romances
literários, entre outros, demonstrando que a geografia está implicada
em um mundo que extrapola os limites da ciência. A interdiscipli-
naridade na produção de conhecimento, notadamente os estudos
geográficos que se articulam com a Música (AZEVEDO, FURLANETTO
e DUARTE, 2018; DOZENA, 2016; FURLANETTO, 2017), com a Etno-
musicologia (GIURIATI e TEDESCHINI LALLI, 2010), com a Literatura
(MARANDOLA JR. e GRATÃO, 2010; OLANDA, 2008), com o Cinema
(AZEVEDO, 2009; BRUNO, 2006), com a Religião (GIL FILHO, 2008;
ROSENDAHL, 2007; SCHLÖGL, 2012), com a Filosofia (BACHELARD,
2008; BOLLNOW, 2008), têm contribuído para o alargamento da
compreensão do fenômeno espacial e a inovação das metodologias
de pesquisa.
A geografia emocional, uma das atuais tendências da geografia
cultural, destaca o sentimento como característica essencial da exis-

257
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

tência humana no mundo, ultrapassando as amarras do positivismo


lógico, da racionalidade científica e dos pressupostos quantitativos.
Nessa perspectiva, a paisagem é entendida como uma construção
cultural que mescla razão e emoção, objetividade e subjetividade, em
que a realidade funde-se com o imaginário nas múltiplas representa-
ções individuais ou coletivas, em contínua transformação. “A vida só
é possível reinventada” (MEIRELES, 2009, p.56), também as paisagens
são (re)criadas cotidianamente no balanço das águas e dos ventos,
no movimento de abrir e fechar as janelas dos corpos, das casas, das
emoções, um dinamismo no qual o espaço da intimidade e o espaço
do mundo tocam-se, expandindo os horizontes humanos.
No presente texto, a geografia e a música encontram-se na
tentativa de apreender as paisagens sonoras dos Epigramas de Ce-
cília Meireles musicalizados pelo compositor Carlos Alberto Assis. Na
literatura, epigrama representa uma composição poética breve, de
conteúdo concentrado, como se percebe na poesia de Meireles e
na música de Assis. A capacidade de síntese dos dois autores evi-
dencia-se nos discursos verbal e não-verbal: o mínimo concentra o
máximo, ou seja, poucas palavras e notas musicais, elaboradas com
precisão, traduzem o essencial. As sonoridades das rimas, das ca-
dências rítmicas e melódicas inauguram mundos imaginários através
das mãos que escrevem, das mãos que compõem e das mãos que
tocam, tecendo paisagens multissensoriais em seus cantos poéticos.
Os Epigramas – treze canções para voz e piano – constituem
uma obra inédita de Carlos Alberto Assis, cujos originais foram
gentilmente cedidos para a realização desta pesquisa. Sua produ-
ção musical mostra-se pouco conhecida no meio acadêmico e nas
instituições que fomentam os estudos musicais teóricos e performá-
ticos, em escala regional e nacional, sobretudo pelo ineditismo das
composições. Tal constatação aponta a importância da investigação
e do registro da obra deste compositor paranaense. A ausência de
literatura sobre sua vida e sua obra evidencia, ainda, a originalidade
do tema abordado e a relevância da divulgação da sua produção mu-

258
O MUNDO NA PONTA DOS DEDOS

sical. A pesquisa fundamenta-se na análise documental, bibliográfica


e trabalho de campo. As entrevistas com o compositor e a interpre-
tação das suas músicas serviram como subsídios para interpretar a
dimensão simbólica das canções. À luz de uma ciência geográfica
que pensa e sente o mundo com a racionalidade e a irracionalidade
humanas, propõe-se uma escuta sensível das tonalidades afetivas
que compõem as paisagens sonoras dos Epigramas.

Geografia emocional e paisagem

A geografia emocional refere-se à experiência emocional e à


leitura sensível dos lugares, às sensações e aos sentimentos que inte-
gram as paisagens. Inspirada em doutrinas filosóficas, como a fenome-
nologia e o existencialismo, essa abordagem acentua as experiências
que as pessoas têm em diferentes lugares, nas quais se entrelaçam
fatos concretos, ideias, memórias, sons, imagens, sonhos, mitos.

[...] porque existe um som de voz,


e um eco – e um horizonte de pedra
e uma floresta de rumores e água
que modificam os nomes e os verbos
e tudo não é somente léxico e sintaxe
(MEIRELES, 2009, p.144).

Dardel (2011) foi um dos pioneiros a considerar a relação


afetiva entre o ser humano e a Terra, inaugurando uma geografia fe-
nomenológica na década de 1950. Ao sustentar que o indivíduo vive
e move-se com a sua interioridade – sensorialidade, cultura, senti-
mentos, crenças, esperanças, projetos – em um determinado espaço
e tempo, o autor defende uma geografia que não é, inicialmente, um
conhecimento, mas uma experiência na qual o indivíduo sente-se
ligado à Terra. A reflexão geográfica refere-se às relações essenciais
que ligam os indivíduos ao mundo circundante, uma geograficidade
do ser humano como modo de sua existência, portanto a geografia
está implicada em um mundo vivido que extrapola os limites da

259
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

ciência. Em um transcurso fenomenológico, sujeito e objeto estão


imbricados, o humano e o terrestre relacionam-se e essa circulari-
dade constitui propriamente o mundo geográfico. As relações entre
o indivíduo e a natureza são de ordem teórica, prática, afetiva e sim-
bólica. Ao exaltar os espaços estéticos e míticos, o autor antecipa os
contornos da geografia emocional e mostra o mundo vivenciado com
infinita tonalidade de percepções.
Tratar de uma abordagem emocional na geografia, conforme
Andreotti (2013), significa investigar a influência da dimensão interior
do indivíduo na experiência do mundo, predispondo-se a colher as
emoções que os lugares provocam nas pessoas. As sensações e os
sentimentos são tomados como norma ou princípio de análise, con-
siderando-se o real como complexo perceptivo e fenomenológico.
Para o neurobiologista Damásio (2011), a emoção é uma dis-
posição mental que causa mudanças corporais, como sudorese,
falta de ar, alterações no ritmo cardíaco e nas expressões faciais; o
sentimento é a percepção dessas mudanças que ocorrem em nosso
corpo durante um estado de emoção. Portanto, a emoção está ligada
ao sistema biológico, enquanto o sentimento envolve experiência
consciente. O autor considera o medo, a raiva, a tristeza, a alegria, o
nojo e a surpresa como emoções universais, produzidas em todas as
culturas. Essa universalidade das expressões emocionais revela que
as emoções são automatizadas, não aprendidas. Entretanto, embora
o mecanismo das emoções em um cérebro normal seja semelhante
entre os indivíduos, as respostas emocionais são individualizadas
devido às influências culturais e/ou à educação recebida.
Abbagnano (2007, p.1043) esclarece que Heidegger chama de
situação afetiva “o tom emocional da ocupação cotidiana do homem,
e vê nessa tonalidade uma manifestação essencial do ser do homem
no mundo”, e que a psicologia contemporânea ratifica a noção de
sentimento como capacidade de apreender o valor que um fato ou
uma situação apresenta para o ser humano que deve enfrentá-la. A

260
O MUNDO NA PONTA DOS DEDOS

emoção pode ser entendida como toda afeição da alma, acompanha-


da pelo prazer ou pela dor. Atualmente, há uma tendência em reforçar
a relação entre emoção e razão, considerando-se que “cada estado
de consciência – tanto perceptivo quanto cognitivo – é constituti-
vamente acompanhado por uma tonalidade afetiva” (ABBAGNANO,
2007, p.376).
A geografia emocional contempla as diversas dimensões da
experiência perceptiva, decretando o fim da supremacia da visão na
cultura ocidental e da importância atribuída à objetividade dos valores
cognitivos reconhecidos como científicos, de acordo com Andreotti
(2011). Neste sentido, pode-se pensar em geografias dos sons, dos
odores, dos sabores, considerando-se a realidade como uma expe-
riência emocional que envolve os sentimentos e todos os sentidos,
demonstrando que os lugares participam de um processo cultural
complexo através do qual são produzidos valores e significados.
Ao colher e revelar a interioridade humana, fazendo emergir a
essência dos lugares, as paisagens ganham traços emocionais em es-
tudos de Andreotti (2013) e Persi (2014), ressaltando a subjetividade
dos indivíduos nas relações entre si e com os lugares. Para os autores,
a paisagem é cultural, histórica, artística, ética, estética, religiosa e
espiritual. Conforme Andreotti (2012), a paisagem cultural não pode
ser separada do ser humano, da sua imaginação e percepção, pois
ela reflete o sujeito e a sua história, e cada comunidade inscreve, na
paisagem, sua própria ética e estética. A paisagem é o conjunto dos
desenhos do coração e da mente, algo absolutamente pessoal: “a
paisagem somos nós mesmos” (ANDREOTTI, 2003, p.18).
Para Persi (2007), a paisagem cultural não é um substantivo,
mas um verbo, uma ação, uma conquista diária, irrefreável, marcada
pelos sofrimentos, esperanças e sonhos humanos. O autor afirma que
os sentimentos formam as redes de base do ser humano, nas quais
as emoções se entrelaçam. Os indivíduos estabelecem uma profunda
ligação com os lugares e seus patrimônios culturais, os quais “estão

261
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

impregnados de humanidade e de paixões, e sob essa luz devem ser


compreendidos, analisados e planejados” (PERSI, 2014, p. 200).
Nogué (2015, p. 141) sustenta que a vida é essencialmente
espacial e emocional: os indivíduos experimentam emoções espe-
cíficas em distintos contextos geográficos e vivem emocionalmente
as paisagens porque elas não são somente materialidades tangíveis,
mas também construções sociais e culturais impregnadas de conte-
údo intangível, acessível somente através do universo das emoções.
A paisagem cultural é infinitamente múltipla e variada, possi-
bilita diferentes interpretações e expressa sempre algo particular a
alguém. A paisagem não somente é diversa para os sujeitos, como
varia para o próprio indivíduo, de acordo com sua emoção e humor
circunstanciais.

Não penso todos os dias exatamente


do mesmo modo.
As mesmas coisas me parecem a cada instante diversas.
Amo e desamo, sofro e deixo de sofrer,
ao mesmo tempo, nas mesmas circunstâncias
(MEIRELES, 2009, p.145).

Ao longo da vida, a partir das relações dos indivíduos entre si


e com os lugares, cada sujeito adquire valores, crenças, conhecimen-
tos, sentimentos, hábitos, ideias e experiências que constroem sua
individualidade. Ao influenciar e ser influenciado pelo meio ambien-
te, o indivíduo cria paisagens conformadas por sua percepção do
mundo e de si mesmo, marcadas por seus próprios traços afetivos e
intelectuais. Assim, as paisagens culturais são singulares e dinâmicas,
mudam de acordo com o estado de ânimo do indivíduo e, na inter-
subjetividade, podem ser compartilhadas socialmente.
A paisagem cultural possui formas, sons, odores, gostos,
cores e texturas. Investigar a paisagem sonora significa destacar
o elemento sonoro da paisagem cultural. Portanto, a paisagem
sonora pressupõe uma relação entre o indivíduo e o ambiente,
em um determinado contexto social, cultural e auditivo. Os

262
O MUNDO NA PONTA DOS DEDOS

sons, os ruídos, as vozes, as músicas, as sonoridades do meio


ambiente e os sons dos seres humanos ou criados por eles
constituem a paisagem sonora1 de determinados lugares.
A partir de uma perspectiva geográfica emocional, a realidade
é considerada uma experiência multissensorial que envolve as emo-
ções e os sentimentos humanos. O indivíduo plasma a paisagem na
qual vive e nela imprime os traços da sua presença e das suas ativi-
dades práticas, artísticas e espirituais, do seu modo de habitar e de
produzir, de relacionar-se com o sagrado. Neste sentido, investigar a
paisagem sonora significa apreender os elementos afetivos e simbó-
licos da paisagem cultural a partir das suas sonoridades que, nesta
pesquisa, são abordadas na poética musical de Meireles e Assis.

A poeta e o compositor

Somos uma difícil unidade,


de muitos instantes mínimos
- isso seria eu.

Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,


Aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente
(MEIRELES, 2009, p.172).

Cecília Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964) nasceu e


viveu no Rio de Janeiro, foi jornalista, escritora, pintora, professora e
a primeira voz feminina de grande expressão na literatura brasileira.
Cecília foi criada pela avó açoriana, recebeu uma educação religiosa

1  O termo soundscape (paisagem sonora) foi criado pelo compositor canadense Robert
Murray Schafer (2001), cujo projeto acústico idealizado na década de 1970 destacou-se como
uma iniciativa de arquivo sonoro com uma abordagem acústica, ecológica, simbólica, estética e
musical, compreendendo a paisagem sonora como todos os sons de um ambiente. Preocupado
com a crescente poluição sonora e percebendo o mundo como uma grande composição
musical que se desdobra à nossa volta, o autor propôs a reconstrução de ambientes acústicos
através de uma reeducação da escuta para o desenvolvimento de um ouvinte que respeita o
silêncio, condição primordial para escutar e pensar o seu entorno sonoro.

263
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

e, desde menina, demonstrou interesse pela literatura e música, tendo


estudado canto, violão e violino no Conservatório Nacional de Música.
Sua infância foi marcada por perdas irreparáveis, o falecimento do
pai antes do seu nascimento, a morte da mãe aos três anos de idade
e, prematuramente, seus irmãos também faleceram. Essas mortes
ocorridas na família “me deram, desde pequenina, uma tal intimidade
com a morte que docemente aprendi essas relações entre o efêmero
e o eterno”, declarou a autora em uma entrevista (DAMASCENO, 1972,
p.58) ao comentar a fugacidade das coisas. Aos 21 anos, casou-se
e teve três filhas com o ilustrador português Fernando Correa Dias,
que sofria de depressão e suicidou-se em 1935. Cinco anos depois,
casou-se com o engenheiro agrônomo Heitor Vinícius da Silveira
Grilo. Com uma obra intimista e densamente feminina, Cecília foi
uma escritora prolífica, sua vasta e premiada produção literária – que
inclui poesia, conto, crônica, literatura infantil e folclore – foi reco-
nhecida internacionalmente e traduzida para diversos idiomas. Entre
suas publicações, destacam-se: Criança, meu amor (1924), Viagem
(1937), Vaga Música (1942), Mar Absoluto (1945), O Romanceiro da
Inconfidência (1953), Metal Rosicler (1960), Ou Isto ou Aquilo (1964).
O livro Viagem – lançado em 1937, premiado pela Academia
Brasileira de Letras em 1938 e publicado em Lisboa em 1939 – consa-
grou Cecília Meireles como eminente poeta da língua portuguesa. O
livro é composto por noventa e nove poemas escritos entre os anos
de 1929 e 1937, sendo treze Epigramas que ocupam posições signifi-
cativas: o n.1 é o primeiro poema do livro e o n.13 é o último, e quase
sempre há oito poemas entre cada epigrama, ou seja, eles parecem
costurar e dar unidade à obra, versejando o poeta e a arte da poesia.

Epigrama n.1

Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis


Uma sonora ou silenciosa canção:
Flor do espírito, desinteressada e efêmera,

264
O MUNDO NA PONTA DOS DEDOS

Por ela, os homens te conhecerão:


por ela, os tempos versáteis saberão
que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,
quando por ele andou teu coração
(MEIRELES, 1982, p.13).

Neste poema, a canção apresenta-se como flor do espí-


rito que, apesar de passageira, torna o mundo mais belo, uma
possível metáfora à própria poesia. Meireles associa a arte da
poesia à música, onde versejar é cantar: nos livros2 Viagem e
Vaga Música, vários poemas são intitulados Canção, Música,
Cantiga, e nota-se a utilização recorrente dos termos voz, som,
canto, cantando, canção, música.

Epigrama n.13

Passaram os reis coroados de ouro,


e os heróis coroados de louro:
passaram por estes caminhos.

Depois, vieram os santos e os bardos.


Os santos, cobertos de espinhos.
Os poetas, cingidos de cardos
(MEIRELES, 1982, p.139).

Nos versos que finalizam o livro, percebe-se certa pro-


ximidade entre os santos e os poetas. O termo cingido pode
significar aquele que traz consigo uma coroa ou ornamento e,
biblicamente, quer dizer arrumar-se para o trabalho, preparar-
-se para o longo caminho. Portanto, na viagem mística que a
obra poética incita, os poetas levam como coroa a própria poe-
sia representada pelos cardos3, espécie de plantas espinhosas,
uma variedade de alcachofra.

2  Verificam-se edições de Cecília Meireles que publicam Viagem e Vaga Música como
livros distintos e edições que trazem as duas coletâneas de poemas no mesmo livro, como a
utilizada nesta pesquisa.
3  Cecília Meireles dedicou o livro Viagem aos seus amigos portugueses e é interessante
observar que Cardoso é um sobrenome português que significa “habitante de local onde os

265
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Carlos Alberto Assis4, nascido em 1965, é natural da


cidade de Jacarezinho (Paraná), Doutor em Música pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul, professor, pianista,
regente, arranjador e compositor na Escola de Música e Belas
Artes do Paraná, atual Campus I da Universidade Estadual do
Paraná, em Curitiba. Assis teve contato com a música no ventre
da sua mãe, Zulmira Malaghini Assis, pianista que lhe incentivou
a descobrir o universo musical. Com seis anos começou a tocar
piano e os mestres que marcaram sua carreira foram o músico
e padre Bruno Welter, o regente Paulo Braga Diniz e a pianis-
ta Henriqueta Duarte. Inteligente e curioso, suas indagações
juvenis parecem ressoar no poema Criança que, conforme o
compositor, refere-se à dor sutil, não do sofrimento enquanto
prostração, mas à dor latente do ser humano que não entende
a lógica da vida.

Criança

Cabecinha boa de menino triste,


de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, — e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,

cardos são abundantes”. Segundo estudiosos da onomástica, sua origem decorre por volta
do ano 1100 e seria topográfica, ou seja, as primeiras pessoas a receberem esse sobrenome
habitavam um local onde havia muitas dessas plantas. Portanto, Cardoso é considerado um
sobrenome toponímico.
4  Entre os prêmios concedidos à obra de Carlos Alberto Assis destacam-se o 2º lugar
no I Prêmio de Composição Guerra Peixe da Escola de Música Villa-Lobos, no Rio de Janeiro,
em 1998, e o 3º lugar no III Prêmio de Composição Guerra Peixe, da mesma escola, no ano 2000.
Integrou o corpo docente de diversos Festivais e Oficinas de Música de Curitiba, Londrina,
Maringá, Cascavel, entre outros, tendo participado como pianista correpetidor da montagem
de diversas óperas no Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina e República Tcheca. Entre os anos de
1986 a 1997, aproximadamente, trabalhou em todas as óperas apresentadas no Teatro Guaíra,
em Curitiba, e, de 1999 a 2010, atuou como pianista nas aulas da cantora Neyde Thomas,
professora que se notabilizou pela formação de uma geração de cantores líricos. Assis também
se destaca como pianista solista e, em 2018, realizou o concerto de encerramento do Encontro
Geografias Culturais da Música em Braga, Portugal, promovido pelo Museu Nogueira da Silva e
Universidade do Minho.

266
O MUNDO NA PONTA DOS DEDOS

que de sofrer tanto se fez pensativo,


e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo


que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo


que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria


a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria
(MEIRELES, 1982, p.38).

Eclético desde a infância e leitor voraz de assuntos variados,


Assis demonstra sólidos conhecimentos não apenas na área musical,
mas também na pintura, ciência, filosofia, hermenêutica, literatura e
cinema. Essa bagagem intelectual somada à sensibilidade artística do
compositor marcam sua atuação e produção musicais. Estudou com
orientação profissional, mas é basicamente autodidata, apresentan-
do uma expressiva trajetória como pianista. Além de notabilizar-se na
área musical, Assis é médico – com especialização em Homeopatia e
Acupuntura – e praticante de Tai Chi Chuan. A arte marcial chinesa, o
Taoísmo, a meditação e a especialização no ramo da medicina chine-
sa constituem traços das doutrinas orientais presentes na visão de
mundo do compositor, influências que ecoam em suas obras.
A criatividade e expressividade poéticas do compositor so-
norizam mais de cem obras para diversas formações instrumentais,
como piano solo, piano e voz, piano e flauta, piano e sax, piano e
clarineta, coro misto, orquestra, ópera, além de arranjos musicais de
consagrados autores nos âmbitos popular e erudito5. As canções
para voz e piano destacam-se em sua produção, provavelmente pela
rica paleta emocional desses instrumentos, os quais se mostram con-

5  Usa-se o termo erudito para as músicas de diferentes culturas, elaboradas com um


modelo ou disciplina formal, que não pertencem às tradições folclóricas ou populares.

267
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

tinuamente presentes na carreira profissional de Assis. Sua produção


musical mescla a utilização tanto dos procedimentos composicionais
tonais quanto atonais, em que as influências de Johann Sebastian
Bach, Wolfgang Amadeus Mozart, Robert Schumann e Johannes
Brahms ecoam junto às cores brasileiras de Cláudio Santoro, Ca-
margo Guarnieri, dos temas folclóricos e da bossa nova. Também se
percebem nuances jazzísticas, que acrescentam refinamento rítmico
e harmônico à sua obra.

Poéticas Musicais

Poética é “o estudo de uma obra a ser feita. O verbo poien, do


qual a palavra deriva, significa exatamente fazer ou fabricar. [...] Eis por
que a Poética de Aristóteles muitas vezes sugere ideias referentes
ao trabalho pessoal, à organização do material e à estrutura” (STRA-
VINSKY, 1996, p.15). O ato de criar, de dar uma forma a algo, abrange a
capacidade de compreender, relacionar, significar, e “nessa busca de
ordenações e de significados reside a profunda motivação humana
de criar”, afirma Ostrower (2014, p. 9) ao sustentar a criatividade
como um potencial inerente ao ser humano, um ser formador “ca-
paz de estabelecer relacionamentos entre os múltiplos eventos que
ocorrem ao redor e dentro dele”.
Os poemas de Meireles revelam seus movimentos interiores
com uma descrição visual na qual estão presentes os elementos da
natureza, como a água, o mar, o céu, o luar, a estrela, o ar, o vento,
a árvore, a flor. Aparentemente, a poeta vivenciava o mundo com a
sua interioridade, como se a sua relação com a Terra lhe revelasse a
condição humana e seu destino, parafraseando Dardel (2011).
Os epigramas são poemas de notória brevidade que podem
ter natureza erótica, religiosa ou satírica, abordando desde temas
celestes e elevados até os mais terrenos e risíveis, o que lhe confere
alto grau de plasticidade ou adaptabilidade, conforme Toledo (2017).
Meireles elabora, nos Epigramas, pensamentos poéticos de lirismo

268
O MUNDO NA PONTA DOS DEDOS

e busca do aspecto sublime, as palavras enchem-se de sentidos


múltiplos, uma imagem condensa um poema inteiro.
Assis musicalizou os treze Epigramas para voz e piano
entre 1996 e 2009, um processo que lhe permitiu descobrir-
-se a si mesmo e exercitar suas potencialidades criadoras. As
composições aconteceram naturalmente ao longo dos anos,
não foram programadas e, por isso, não há uma sequência
cronológica nas canções: por exemplo, os Epigramas n. 1 e n.10
foram feitos no ano de 1998, o n. 9 em 1996, o n. 13 em 2000,
o n. 2 em 2008. Portanto, a obra não foi elaborada como um
ciclo e a própria extensão melódica de cada canção privilegia
diferentes vozes6, ou seja, não pode ser executada por um único
cantor. Ainda assim, pensadas conjuntamente, verifica-se que
a condensação poética ceciliana reverbera nas canções de
Assis: a polissemia das palavras expande-se no encadeamento
rítmico e melódico meticulosamente tecido pelo piano e pela
voz. Nos Epigramas, os dois autores mostram-se mestres dos
detalhes e sutilezas, nenhuma palavra ou nota musical parece
sobrar.
Meireles não se filiou a nenhum movimento literário, sua
poesia mostra influência da lírica luso-brasileira e suas publi-
cações iniciais demonstram certa inclinação pelo Simbolismo7,
sobretudo pela musicalidade dos versos. Foi uma escritora
intuitiva e reflexiva, procurava compreender o mundo a partir
das próprias experiências.

6  Classificações vocais masculinas: Tenor (mais aguda), Barítono e Baixo (mais grave).
Classificações vocais femininas: Soprano (mais aguda), Mezzo-soprano e Contralto (mais
grave).
7  O Simbolismo foi um movimento literário da poesia e de outras artes que surgiu na
França, no final do século XIX, como oposição ao Realismo, ao Naturalismo e ao Positivismo da
época. Movido pelos ideais românticos, fundamentou-se principalmente na subjetividade, no
irracional e no inconsciente, no imaginário e na fantasia. A musicalidade é uma das principais
características da estética simbolista, buscava-se a aproximação entre a poesia e a música. Para
interpretar a realidade, os simbolistas valiam-se da intuição e não da razão, com preferência
pelo vago, pelo indefinido ou impreciso.

269
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

A produção musical de Assis circula entre o popular e o erudi-


to e mostra sua posição como um compositor independente que não
utiliza, necessariamente, procedimentos musicais que balizam deter-
minadas correntes estéticas contemporâneas. O compositor declara
não se identificar com a linguagem musical dos séculos XX e XXI e,
por isso, prefere manter-se fiel ao seu procedimento composicional.

Epigrama n. 9

O vento voa,
a noite toda se atordoa,
a folha cai.

Haverá mesmo algum pensamento


sobre essa noite? sobre esse vento?
sobre essa folha que se vai?
(MEIRELES, 1982, p.95).

Em Meireles e Assis, à musicalidade e à preponderância da


impressão pictórica somam-se a concisão e o equilíbrio frasal. A
poeta expressa claramente seus sentimentos relacionando-os com
símbolos comuns, em geral, elementos do mundo natural, como se
percebe no Epigrama n. 9, cujas imagens ganham intensidade ex-
pressiva na música do compositor.
Sobre suas canções, Assis afirma: Em algumas obras, evito
usar as relações tonais clássicas, mas a música continua tonal, fica
ambíguo. A ambiguidade expressa o que não está explícito na poesia,
o que está além das palavras, os significados subjacentes, profundos.
Escrevo uma melodia para a imagem poética e não para a letra da
poesia.

Epigrama n. 5

Gosto da gota d’água que se equilibra


Na folha rasa, tremendo ao vento.

Todo o universo, no oceano do ar, secreto vibra:


e ela resiste, no isolamento [...]

270
O MUNDO NA PONTA DOS DEDOS

(MEIRELES, 1982, p.54).

A solidão é um sentimento que reverbera na obra de Meireles


(1982, p.31), envolve-a como um “mar negro, mais eterno, mais terrível,
mais profundo”. A solidão mostra-se tão marcante em seu cenário
emocional, que suspira até em uma gota d’água, como se observa no
Epigrama n. 5.
“Obras de arte são de uma solidão infinita”, conforme Rilke
(2016, p.35), tudo tem seu tempo para amadurecer: é preciso deixar
“cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si”.
Assis assinala que suas composições são intuitivas, algumas escritas
em pouco tempo enquanto outras demandam uma longa gestação.
O Epigrama n. 2 de Meireles (1982, p.23) reflete sua tristeza:
“És precária e veloz, Felicidade. Custas a vir, e, quando vens, não te
demoras. [..] Felicidade, és coisa estranha e dolorosa”. A voz melan-
cólica que ressoa nos versos de Meireles nasce do sofrimento diante
do drama existencial, da frustração amorosa e da inexorabilidade
do tempo, segundo Rezende (2006, p.27): embora esse canto triste
tenha como fonte “sua vida sofrida, feita de silêncio e solidão, como
ela mesma chegou a definir, a expressão da angústia do ser diante da
efemeridade da vida e da insuficiência do amor é também expressão
universal da angústia humana”.
Há a angústia do fazer perfeito, mas já superei isso. Há a an-
gústia existencial, li muito sobre isso e sei o necessário para minha
busca. Descobri o prazer da travessia. Devir sempre existirá. Estar em
paz não me livra da angústia. A vida não tem sentido, mas o sentido
da vida é o viver. Estamos habituados ao produto. Dentro das esco-
lhas que fiz, cheguei aqui, e isso me traz felicidade, esse estado de
espírito, de essência, de transcendência, declara Assis.
Sobre a angústia, particularmente, concordo com Lispector
(1998, p.95): “a tragédia de viver existe sim e nós a sentimos. Mas isso
não impede que tenhamos uma profunda aproximação da alegria
com essa mesma vida”.

271
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

“O espaço fluido se faz cúmplice dos desígnios humanos”


(DARDEL, 2011, p.21) no Epigrama n. 8 de Meireles (1982, p.86): “Encos-
tei-me a ti, sabendo que eras somente onda. Sabendo bem que eras
nuvem, depus a minha vida em ti [...]”.
No prefácio da antologia poética de Meireles (2009, p.18),
Fabrício Carpinejar afirma que “o mar é a musa de Cecília”, todos os
seus poemas são líquidos, a poeta “faz uma conversa entre a água em
si (lágrima) e a água fora de si (praia), a água eterna de suas dores e
o espaço coletivo e social da correnteza efêmera”.
Nos Epigramas de Assis, como se observa na maioria das suas
obras vocais, a prosódia – adaptação da métrica de um texto à da
música – beira à perfeição, revelando o refinamento do compositor.
A letra é soberana na música, quando se observa desrespeito à
prosódia é algo proposital. As sílabas tônicas das palavras, em geral,
coincidem com os acentos musicais e o elemento rítmico acrescenta
espontaneidade e fluidez às palavras cantadas. Assim, voz e piano
delineiam a liquidez dos versos cecilianos: nas canções com anda-
mentos e ritmos lentos, os harmônicos transbordam das prolongadas
notas e acordes sustentados; nas melodias mais movimentadas, os
sons deslizam na correnteza das frases musicais. Águas profundas
mobilizam as emoções da poeta e do compositor.
Dardel (2011, p.22) sustenta a originalidade do domínio das
águas sobre o espaço geográfico, destacando o registro afetivo do
mundo aquático, como as sonoridades alegres da cascata, o calmo
sussurro dos riachos, a ferocidade das tempestades, a profunda voz
do oceano: é para o ser humano “que se dirige a escrita movente das
águas. Ele é o único ser para o qual pode ter um significado”.
Meireles (2009, 1982) compreendeu e poetizou os sentimen-
tos e os significados do espaço aquático. A confluência da realidade
física com a emocional adquire significação simbólica na lírica ceci-
liana. O poema lírico concentra-se em si mesmo, é impactante pela
profundidade do que expressa.

272
O MUNDO NA PONTA DOS DEDOS

Epigrama n. 4

O choro vem perto dos olhos


para que a dor transborde e caia.
O choro vem quase chorando
Como a onda que toca na praia.

Descem dos céus ordens augustas


e o mar chama a onda para o centro.
O choro foge sem vestígios
mas levando náufragos dentro
(MEIRELES, 1982, p.43).

A densidade poética de Meireles ecoa nas canções de Assis,


um lirismo tecido com poucas notas musicais cuja simplicidade re-
vela o essencial – simplicidade aqui entendida como o último grau
de sofisticação, parafraseando Leonardo da Vinci. Na poesia e na
canção, a realidade exterior funde-se ao espaço íntimo, a tessitura
sensível da poética musical traduz, com dramaticidade, questões
essenciais da vida.
Segundo Freire (2005), ao se distanciar da vertente moder-
nista revolucionária de seu tempo, Cecília Meireles elegeu as fontes
tradicionais românticas como motivação para a sua poesia, como o
cantar subjetivo, reflexivo, meditativo e nostálgico, a harmonia formal,
as imagens poéticas – mares, campos, árvores, ventos – e outras
ligadas ao instantâneo, ao fugaz, ao ilusório e ao sonho, temas que
compõem o universo ceciliano, sobretudo na obra Viagem.
Assis intenciona deixar o intérprete livre para escolher como
tocar, para traçar os caminhos possíveis, por isso há poucas indica-
ções de andamento e de dinâmica em suas obras. Pensar e sentir
as inúmeras maneiras de sonorizar e dar vida à música silente no
papel significa reconhecer os elementos racionais e irracionais que
balizam a obra. Acredito que a liberdade expressiva, além de ser um
exercício de autoconhecimento para o intérprete, enseja vivenciar
a arte musical com inteireza e profundidade. Neste sentido, uma
veia romântica pulsa nas canções de Assis, os sons e silêncios, as

273
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

harmonias e dissonâncias revelam a subjetividade do compositor e


podem mobilizar, nos intérpretes e ouvintes, uma viagem emocional
que desvela íntimas paisagens.
“Na fronteira entre mundo material, onde se insere a atividade
humana, e o mundo imaginário, abrindo seu conteúdo simbólico à
liberdade do espírito, nós reencontramos aqui uma geografia interior”
(DARDEL, 2011, p. 5). Em Meireles, o verso parece “dar à realidade ge-
ográfica um tipo de animação e de fisionomia em que ele (o sujeito)
revê sua experiência humana, interior ou social” (DARDEL, 2011, p. 6).
Assis incorpora o verso para escrever a canção, pois é preciso sentir
o som da palavra falada, é dela que vem a sonoridade, há uma música
embutida nas palavras.
Ao eleger a emoção e o sentimento como formas de conheci-
mento, a geografia emocional contempla a paisagem cultural criada
pelo próprio sujeito, carregada de significados e investida de afeti-
vidade. Tendo em vista a simultaneidade de sentidos que habitam
as criações humanas, a interpretação dos Epigramas mostra-se um
tema de infinitas variações que possibilita a apreensão de diversos
significados, cuja complexidade não se esgota neste texto. Múltiplas
tintas emocionais conformam as poéticas musicais de Meireles e
de Assis, nas quais o real e o imaginário mesclam-se para retratar
questões inerentes à existência humana.

Mundos imaginários

Meireles canta ao versejar, Assis verseja ao cantar. Os Epigra-


mas foram escritos no Rio de Janeiro entre os anos de 1929 e 1937 e
musicalizados em Curitiba de 1996 a 2009, evidentemente em distin-
tos contextos sociais, geográficos e históricos, mas são as questões
existenciais humanas e a expressão dos sentimentos que dão à obra
um caráter intimista e atemporal. Alguns poemas de Meireles (1982)
retratam determinados lugares, como Lembrança Rural, Ida e volta
em Portugal, Soledad (México), e há obras de Assis que evidenciam

274
O MUNDO NA PONTA DOS DEDOS

as raízes brasileiras, como o choro Desafin...(2016), a canção Mamaé


(1995) de influência indígena, a Peça n.12 (1995) para piano inspirada
num tema folclórico nacional. Nos Epigramas, a reflexão sobre o hu-
mano coloca o mundo exterior em diálogo com o interior em clave
filosófica e os elementos da natureza – pássaros, árvores, céu, mar,
flor – conformam sentimentos e pensamentos.

Epigrama n. 11

A ventania misteriosa
passou na árvore cor-de-rosa,
e sacudiu-a como um véu,
um largo véu, na sua mão.

Foram-se os pássaros para o céu.


Mas as flores ficaram no chão
(MEIRELES, 1982, p. 120).

Na poesia e na música, os Epigramas não retratam o indivíduo


brasileiro, unicamente, mas o ser humano que se debruça sobre os
mistérios da vida. Nas entrelinhas das palavras e das notas musicais,
as sonoridades adquirem o poder de criar mundos e de atribuir sen-
tido à existência.

Por um momento, o universo, a vida


podem ser apenas este pequeno som
enigmático (MEIRELES, 2009, p.100).

Na abordagem da Geografia Emocional, as emoções do sujeito


integram-se à potencialidade expressiva de cada paisagem e, impac-
tando o próprio sujeito de maneira íntima e pessoal, configuram pai-
sagens singulares que, corroboradas socialmente, podem tornar-se
representativas para uma coletividade. Assim como as motivações
individuais podem tornar-se sociais, as representações das paisa-
gens criadas e comunicadas por um sujeito – neste caso, a poeta, o
compositor, um intérprete ou um ouvinte dos Epigramas – também
podem ganhar força e significado para um determinado grupo.

275
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

Em meio ao Modernismo da década de 1920, a voz cristalina de


Cecília Meireles, avessa aos fenômenos imediatistas e com uma visão
humanista do mundo, retratou em poemas uma autobiografia lírica, em
que a fluidez das águas canta a efemeridade da vida. “O ser humano
tem o destino da água que corre. [...] o ser votado à água é um ser
em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância
desmorona constantemente” (BACHELARD, 2002, p.6-7). A poeta
aborda questões filosóficas e existenciais com elementos da natureza
revestidos de sons, cores e sombras, uma musicalidade que desperta
mundos imaginários criados pelo eu-lírico. A viagem, na poesia ceci-
liana, remete à passagem, à transitoriedade em relação à vida, uma
jornada mística que atravessa várias águas, sempre cantando.
Nos Epigramas, Assis expressa, através do piano e da voz, sua
individualidade e seus sentimentos. O piano cria cenários emocionais
que dão vida ao universo ceciliano, como um bordado que costura a
melodia vocal com notas que seduzem, que se prolongam e expan-
dem, notas que dançam e entrelaçam as mãos que versejam às que
sonorizam e interpretam. A espiritualidade do compositor permeia
suas obras e convida-nos a uma escuta contemplativa dos sons que,
por vezes, remete a uma atmosfera intimista. Ao comentar suas can-
ções, Assis afirma que a sonoridade sempre corresponde àquilo que
sinto da poesia. Minha música é autobiográfica. Sermos nós mesmos
as paisagens, como sustenta Andreotti (2003), significa descobrir e
ser capaz de exprimir nosso som original, a voz interior cuja escuta
demanda introspecção e silêncio.
Tomada como uma ponte entre o compositor, o intérprete e o
ouvinte, Assis (2018) apropria-se da hermenêutica de Gadamer para
instrumentalizar as relações de sentido atribuídas à obra de arte e
constata que, no vínculo instaurado entre obra e espectador, reside
a descoberta de sentidos de uma obra, aos quais se fundem o des-
velar do próprio sujeito. No espaço conformado por uma música, por
exemplo, as experiências do compositor, do intérprete e do ouvinte
enlaçam-se numa dança e conversa que “acontece pelo encanta-
mento daquilo que nos toca e que revela, descobre, desencobre

276
O MUNDO NA PONTA DOS DEDOS

aquilo que estava escondido pela confrontação conosco mesmos.


[...] A obra de arte traz à existência um lugar de descobertas” (ASSIS,
2018, p. 154).
Particularmente, enquanto pianista e intérprete, percebo, nas
músicas de Assis, algo que defino como um virtuosismo velado, uma
dificuldade que não se mostra em uma primeira leitura musical, mas
se evidencia no processo que envolve o domínio necessário para
uma execução primorosa. É precisamente nesse processo de estudo
e reflexão musicais que as obras de Assis revelam suas exigências
técnicas e interpretativas, suas ambiguidades, mas é também nes-
se momento que elas agigantam-se e descortinam nossas íntimas
paisagens. Desse modo, o processo de amadurecimento musical
assemelha-se ao processo de individuação de Jung (2015), que fa-
culta ao indivíduo alcançar a autorrealização e tornar-se inteiro, ou
seja, faz-nos abandonar o superficial e coloca-nos a caminho das
profundezas. Acredito que a música promove a compreensão de si
mesmo que possibilita ao ser humano a liberdade de ser e revela sua
verdadeira dimensão, sempre capaz de crescer. Assim, tocar piano
é como explorar mundos imaginários com a ponta dos dedos, uma
descoberta de nós mesmos.
A verdadeira poesia é uma função de despertar (BACHELARD,
2002, p.18). Os Epigramas constituem uma construção complexa e,
ao mesmo tempo, expressiva: os sentimentos vestem-se de lirismo,
matizados por uma concisão e densidade poéticas que são também
delicadeza e travessia. As poesias de Cecília Meireles e as canções de
Carlos Alberto Assis convidam-nos a refletir sobre a vida, o tempo, o
amor, a solidão, temas filosóficos que cintilam nas paisagens sonoras
dos autores, uma viagem que demonstra como a música e a literatura
transformam cada um de nós. Destarte, ainda que o mundo apreendi-
do fosse o mesmo, uma aurora de pensamentos e emoções mudaria a
forma como ele seria percebido, inaugurando novos cantos poéticos.

Sei que canto. E a canção é tudo.


Tem sangue eterno a asa ritmada.

277
FRONTEIRAS DA PAISAGEM

E um dia sei que estarei mudo:


— mais nada (MEIRELES, 1982, p.14).

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280
Sobre as autoras e os autores

ALESSANDRO FILLA ROSANELI


Professor Associado no curso de Arquitetura e Urbanismo e nos Programas
de Pós-graduação em Geografia e em Planejamento Urbano, todos na
Universidade Federal do Paraná. Realizou Pós-doutorado no Programa de
Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná, Doutora-
do, Mestrado e Graduação obtidos junto à Faculdade de Arquitetura e Urba-
nismo da Universidade de São Paulo. Professor visitante no Interdisciplinary
PHD Program in Urban Design and Planning no College of Architecture and
Urban Planning da University of Washington - Seattle (2007 - 2008), com
status de “visiting scholar” e bolsa da Fulbright Commission, do Programa de
Mestrado em Paisaje Medio Ambiente e Ciudad na Universidad Nacional de
La Plata (2009) e do curso de Arquitectura da Universidad de La Republica
em Montevidéu (2010), com suporte da AUGM. É Coordenador do Observa-
tório do Espaço Público e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento
Urbano, ambos da UFPR. E-mail: alefilla@yahoo.com

BEATRIZ HELENA FURLANETTO


Pianista e professora de Música de Câmara da Universidade Estadual do Pa-
raná, Campus Curitiba I, Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Realizou
Pós-doutorado na Universidade do Minho, Portugal. Doutora em Geografia
pela Universidade Federal do Paraná com período sanduiche na Universida-
de de Urbino, Itália. E-mail: beatrizhelenafurlanetto@gmail.com

CAMILLA CARPANEZZI LA PASTINA


Professora do Instituto Federal do Paraná, Campus Colombo. Mestra em Ar-
tes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Especialista em
Educação Infantil pela Universidade Tuiuti do Paraná, graduada em Pintura e
Licenciada em Educação Artística. Dedica-se a projetos de extensão envol-
vendo crianças e adolescentes da comunidade local. Como artista, trabalha
com as linguagens de desenho e pintura tendo pesquisado paisagem, tintas
naturais, teoria da cor, desenho infantil. E-mail: camilla.carpanezzi@ifpr.edu.br

281
ÉVERTON DE MORAES KOZENIESKI
Professor Adjunto da Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus Ere-
chim. Possui Doutorado, Mestrado e Bacharelado em Geografia pela Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de Geografia
Social, atuando principalmente nos seguintes temas: Produção do Espaço
Rural, Modernização da Agricultura e Campesinato, Relação Cidade-Campo,
Geografia e Cultura, Geografia e Economia. Membro do Núcleo de Estudos
e Pesquisas sobre Território, Ambiente e Paisagem (NETAP). E-mail: everton.
kozenieski@uffs.edu.br

MARCIA ALVES SOARES DA SILVA


Professora Adjunta do Departamento de Geografia da Universidade Federal
de Mato Grosso, Campus Cuiabá. Doutora em Geografia pela Universidade
Federal do Paraná com período sanduíche no Departamento de Filosofia da
Universidade de Évora, Portugal. Possui Mestrado em Geografia pela Univer-
sidade Federal Fluminense e graduação em Licenciatura em Geografia pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa. É membra do grupo de pesquisa
História do Pensamento Geográfico e Epistemologia da Geografia (HPGEO-
-UFMT). E-mail: marciaalvesgeo@gmail.com

MARCOS ALBERTO TORRES


Professor Adjunto do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-
-graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná. Doutor, Mestre,
Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Paraná.
Membro do grupo de pesquisa “Espacialidades da Cultura” registrado no
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
integra a rede Núcleo de Estudos em Espaços e Representações (NEER) e
coordena o Laboratório Território, Cultura e Representação (Latecre-UFPR).
E-mail: marcostorres@ufpr.br

MARIA CRISTINA MENDES


Professora do Programa de Pós-graduação em Cinema e Artes do Vídeo da
Universidade Estadual do Paraná e do curso de Licenciatura em Artes Visu-
ais da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Possui Doutorado e Mestrado
em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná e Espe-
cialização em História da Arte do século XX e Graduação em Pintura pela
Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Membra da Sociedade Brasileira
de Estudos de Cinema (SOCINE) e da Associação Nacional de Pesquisado-

282
res em Artes Plásticas (ANPAP). Participa dos seguintes grupos de pesquisa:
Eikos: imagem e experiência estética; Educação, Trabalho e Sociedade; IN-
TERART - Interação entre arte, ciência e educação. Desenvolve pesquisa em
Adaptação cinematográfica, Poéticas Artísticas e Arte-Educação. E-mail:
mariacristinamendes1@gmail.com

PATRICIA CAMERA
Professora do Departamento de Artes da Universidade Estadual de Ponta
Grossa e do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História. Atua
como diretora de ação educativa do Museu Campos Gerais e executa
projetos de pesquisa e de extensão na área curatorial (Acervo Foto Elite e
Fundo Foto Bianchi). Colabora como pesquisadora e revisora de periódicos
científicos e desenvolve sua poética no coletivo “Grimpa”. Possui Bacharela-
do em Gravura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Mestrado em
Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná,
Doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica PUC-RS, com
Pós-doutorado no Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Em 2019,
recebeu prêmio da prefeitura de Ponta Grossa pelos projetos junto ao Fundo
Foto Bianchi. E-mail: patriciacamera@uepg.br

PAULA VANESSA DE FARIA LINDO


Professora Adjunta da Universidade Federal da Fronteira Sul. Possui Licen-
ciatura, Mestrado e Doutorado em Geografia pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP, Presidente Prudente, São Paulo).
Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em Geografia Humana,
atuando principalmente nos seguintes temas: desigualdades socioespaciais,
território, políticas públicas de Assistência Social, Ciência e Maternidade,
Gênero e Cartografia Escolar. Vice-líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas
sobre Região, Urbanização e Desenvolvimento (NERUD), registrado no Con-
selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail:
paula.lindo@uffs.edu.br

REGINALDO JOSÉ DE SOUZA


Professor do curso de Geografia da Universidade Federal da Fronteira Sul,
Campus Erechim e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFFS.
Graduado, Mestre e Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Pau-
lista Júlio de Mesquita Filho (UNESP, Presidente Prudente, São Paulo), com
período sanduíche na Universidade de Coimbra. Pós-doutorado no Centro

283
de Filosofia da Universidade de Lisboa. Coordena o projeto “Paisagem e
Fronteira: geografias da raia internacional sul-rio-grandense”. Tem interes-
ses de investigação voltados para a conceituação da paisagem, suas bases
epistemológicas e aplicabilidades no ensino e pesquisa sobre temáticas
ambientais. A relação entre paisagem e fronteira como potencialidade de
integração geográfica e superação de conflitos entre os territórios. A paisa-
gem como experiência ética-estética no mundo e como conteúdo político
da natureza. Atua nas disciplinas de Epistemologia da Geografia, História do
Pensamento Geográfico, Geografia do Brasil e Produção da Socionatureza.
E-mail: reginaldo.souza@uffs.edu.br

RENATO TORRES
Professor do Curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Es-
tadual do Paraná, Campus Curitiba I - Escola de Música e Belas Artes do
Paraná. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Mestre
em Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná. Graduado em Gravura e
Licenciatura em Desenho pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná.
Pesquisa na linha de História e Historiografia da Educação, com foco no
Ensino de Artes Visuais e sobre a relação entre processos de criação e
ensino de Artes Visuais. Desenvolve trabalho artístico em Gravura. E-mail:
torresrenato@yahoo.com.br

THAYS UKAN
Bacharela em Artes Visuais e em Geografia pela Universidade Federal do
Paraná. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPR.
Vinculada ao Laboratório Território, Cultura e Representação (Latecre/
UFPR). Desenvolve pesquisas nas áreas de Artes Visuais, intervenções no
espaço, geografia cultural, geografia social e educação. E-mail: thaysukan@
gmail.com

284
Índice Remissivo

A
arquitetura 24, 162, 208
Arquitetura 5, 106, 218, 281
arte 7, 14, 15, 16, 40, 41, 43, 44, 45, 46, 47, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58,
63, 64, 65, 66, 67, 72, 89, 90, 103, 104, 105, 107, 108, 115, 123, 124, 139,
140, 143, 144, 145, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 156, 157, 159, 160, 161,
163, 174, 175, 177, 179, 198, 199, 208, 223, 226, 232, 235, 240, 241, 242,
243, 244, 245, 247, 249, 250, 251, 257, 264, 265, 267, 271, 273, 276, 277,
278, 283
Arte 5, 15, 40, 41, 46, 47, 51, 55, 56, 58, 59, 61, 63, 64, 66, 67, 69, 71, 73, 76, 77,
90, 103, 104, 106, 143, 147, 152, 174, 175, 179, 201, 202, 282, 283
ARTE 9, 39, 66, 67, 175
artes visuais 8, 14, 18, 223
Artes Visuais 16, 49, 64, 143, 156, 171, 175, 196, 249, 281, 282, 284

C
corpo 7, 47, 56, 58, 64, 115, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 186, 191, 196, 200, 202,
205, 215, 224, 240, 243, 260, 266

E
emoções 6, 7, 17, 18, 66, 173, 180, 221, 223, 230, 231, 235, 238, 240, 241, 242,
244, 245, 246, 251, 252, 253, 254, 258, 260, 261, 262, 263, 272, 275, 277,
280
Emoções 17, 223, 245, 256
espacialidades 7, 222, 223, 224, 230, 231, 238, 245, 246, 247, 252, 280
Espacialidades 282
espaço 6, 7, 8, 12, 13, 14, 17, 18, 19, 23, 31, 36, 37, 38, 39, 41, 45, 49, 57, 58, 59,
69, 71, 75, 76, 77, 79, 90, 95, 97, 98, 100, 108, 110, 112, 121, 122, 123, 138,
145, 146, 147, 152, 160, 163, 168, 171, 172, 173, 174, 177, 178, 180, 181, 182, 183,
184, 185, 186, 188, 191, 195, 196, 199, 200, 201, 202, 204, 205, 209, 210,
211, 212, 213, 215, 218, 219, 223, 224, 228, 230, 231, 232, 236, 242, 245,
247, 248, 252, 253, 254, 258, 259, 272, 273, 276, 278, 280, 284
espaço público 17, 163, 173, 174, 199, 204, 209, 210, 211, 212, 213, 215, 218, 219,
286
Espaço Público 212, 281

285
estética 6, 14, 17, 18, 19, 31, 36, 56, 58, 62, 64, 137, 154, 163, 173, 177, 217, 228,
243, 244, 247, 248, 261, 263, 269, 283, 284
Estética 37, 67, 103
experiência 7, 12, 17, 18, 30, 45, 58, 62, 66, 97, 102, 107, 124, 130, 131, 139, 149,
152, 159, 163, 168, 173, 175, 178, 182, 191, 195, 201, 204, 205, 208, 213, 215,
216, 217, 218, 221, 222, 223, 224, 229, 230, 231, 232, 235, 237, 238, 239,
243, 244, 245, 246, 247, 248, 250, 251, 252, 253, 254, 259, 260, 261,
263, 274, 280, 282, 283, 284

F
filosofia 11, 16, 17, 25, 84, 89, 111, 112, 114, 134, 222, 223, 226, 234, 235, 236, 237,
238, 240, 245, 255, 267, 278
Filosofia 5, 18, 37, 45, 48, 67, 104, 184, 222, 256, 257, 282, 284
fotografia 6, 8, 15, 30, 46, 63, 69, 71, 72, 73, 74, 76, 77, 78, 84, 86, 88, 89, 90,
92, 96, 97, 98, 99, 101, 103, 104, 105, 108, 116, 140, 159, 161, 164, 165, 173
Fotografia 76, 81, 82, 83, 99, 104, 105, 106, 135
fronteira 6, 11, 15, 20, 21, 29, 33, 34, 35, 36, 40, 47, 51, 55, 59, 63, 64, 66, 112,
179, 223, 241, 274, 284
Fronteira 41, 57, 279, 282, 283, 284

G
geografia 7, 12, 17, 25, 39, 58, 104, 179, 186, 221, 228, 229, 232, 246, 252, 255,
257, 258, 259, 260, 261, 274, 279, 284
Geografia 4, 5, 7, 16, 17, 18, 21, 30, 102, 104, 178, 180, 186, 187, 196, 201, 202, 218,
221, 222, 223, 224, 225, 226, 227, 228, 229, 230, 234, 245, 246, 253,
254, 255, 256, 259, 275, 278, 279, 280, 281, 282, 283, 284
gravura 16, 70, 71, 143, 144, 150, 154, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 166,
168, 169, 170, 171, 172, 173, 175
Gravura 174, 175, 283, 284

I
imagens 7, 30, 45, 46, 48, 51, 65, 72, 73, 77, 79, 84, 86, 89, 91, 110, 114, 116, 121,
136, 137, 145, 146, 153, 156, 160, 162, 164, 165, 166, 173, 206, 227, 246, 248,
251, 252, 259, 270, 273, 279, 280
Imagens 67, 104, 166
imaginário 6, 7, 15, 79, 98, 222, 225, 226, 227, 228, 231, 232, 234, 236, 246,
248, 249, 251, 253, 254, 255, 256, 258, 269, 274

286
L
lugar 6, 11, 12, 13, 15, 20, 37, 43, 49, 51, 57, 60, 65, 66, 75, 93, 133, 144, 145, 147,
148, 150, 151, 152, 153, 154, 168, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 180, 185, 186, 189,
215, 216, 228, 231, 232, 254, 256, 266, 277, 279
Lugar 280

M
memória 12, 18, 42, 54, 72, 75, 104, 145, 146, 153, 237, 248, 249, 251
Memória 80, 81, 82, 83, 85, 87, 92, 94, 100, 103, 106
música 7, 8, 17, 258, 264, 265, 266, 269, 270, 272, 273, 274, 275, 276, 277, 278,
279
Música 257, 264, 265, 266, 278, 279, 281, 282, 283, 284

N
natureza 6, 14, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36,
37, 38, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 48, 52, 53, 54, 56, 60, 61, 62, 64, 65, 67, 73,
76, 89, 92, 97, 98, 111, 112, 113, 114, 121, 128, 130, 131, 132, 134, 135, 139, 146,
148, 149, 159, 174, 175, 186, 187, 205, 224, 228, 242, 249, 250, 255, 260,
268, 275, 276, 279, 284
Natureza 6, 37, 146, 217

P
paisagem 4, 5, 6, 7, 8, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 26, 29, 30, 31, 32, 33, 36, 37,
40, 41, 42, 43, 44, 47, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 60, 63, 64, 76, 78, 79, 80, 84,
86, 87, 90, 91, 92, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 107, 108, 110, 111, 112,
113, 114, 115, 118, 119, 120, 121, 123, 124, 127, 128, 134, 139, 140, 141, 143, 144,
145, 146, 148, 149, 151, 153, 154, 161, 162, 163, 164, 167, 172, 174, 175, 178, 180,
181, 182, 186, 187, 188, 192, 197, 200, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 209,
210, 212, 213, 215, 216, 217, 218, 232, 243, 244, 245, 247, 248, 249, 250,
251, 254, 258, 259, 261, 262, 263, 274, 275, 278, 280, 281, 284
Paisagem 4, 5, 12, 15, 16, 18, 37, 38, 43, 44, 66, 138, 141, 174, 175, 202, 203, 212,
217, 218, 279, 282, 284
paisagens culturais 7, 17, 178, 187, 221, 222, 223, 224, 233, 240, 245, 247, 248,
249, 252, 262
percepções 6, 12, 18, 41, 46, 51, 54, 65, 85, 172, 182, 188, 260
performance 179, 182, 189, 191, 192, 193, 196
Performance 202
pintura 6, 8, 12, 13, 15, 16, 32, 40, 43, 44, 45, 48, 51, 63, 70, 71, 77, 78, 107, 108,
110, 111, 112, 113, 114, 115, 118, 120, 121, 123, 124, 125, 127, 128, 137, 139, 140, 141,
144, 145, 146, 156, 159, 174, 175, 267, 281

287
Pintura 15, 119, 120, 123, 281, 282
poética 7, 8, 15, 40, 41, 42, 44, 48, 50, 51, 54, 63, 65, 153, 221, 240, 251, 258,
263, 265, 269, 270, 272, 273, 278, 279, 283
Poética 50, 66, 268, 280

R
representações 7, 13, 73, 97, 98, 99, 101, 127, 128, 175, 179, 230, 231, 249, 258,
275
Representações 226, 282

S
sensações 6, 43, 191, 201, 259, 260
sentimentos 6, 16, 17, 44, 229, 235, 241, 242, 244, 251, 259, 260, 261, 262,
263, 270, 272, 274, 275, 276, 277, 280
simbólico 17, 44, 45, 65, 214, 222, 223, 226, 234, 235, 236, 237, 238, 240, 244,
252, 274
símbolo 84, 101, 122, 223, 232, 236, 237
sociedade 6, 14, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 27, 28, 29, 31, 37, 38, 97, 102, 160, 161,
180, 191, 205, 212, 217, 218
Sociedade 92, 105, 282, 283

T
territorialidade 178, 181, 185, 192, 202

U
urbano 16, 17, 37, 69, 71, 76, 79, 94, 143, 147, 151, 177, 180, 183, 192, 196, 198, 199,
205, 206, 208, 213, 216, 232

288
1ª edição MAIO 2022
formato do livro 16X23CM
tipografia DM SANS
papel de miolo PÓLEN SOFT 80G/M 2
papel de capa CARTÃO SUPREMO 250G/M 2

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