Como o Latim Se Transformou Nas Línguas Romanas
Como o Latim Se Transformou Nas Línguas Romanas
Como o Latim Se Transformou Nas Línguas Romanas
Introdução ............................................................................................................................................. 1
A difusão do latim com o império ................................................................................................ 2
Breve introdução à teoria da mudança linguística .............................................................. 3
A situação linguística do Império Romano .............................................................................. 5
Variação no latim ................................................................................................................................ 6
Características das variedades regionais de latim ............................................................... 9
Variação social no latim ................................................................................................................. 10
Koineização do latim ....................................................................................................................... 11
O fim do Império e o aprofundamento das diferenças entre as variedades ........... 12
As tábuas visigodas e o colapso do sistema de casos ........................................................ 13
A falta de consciência da diferença entre o romance falado e o latim escrito ....... 14
A reforma de Alcuíno de Iorque na renascença carolíngia: a separação definitiva
entre o latim e os romances ......................................................................................................... 14
O continuum dialetal do romance ocidental e a emergência das línguas nacionais
.................................................................................................................................................................. 16
Conclusão ............................................................................................................................................. 17
Referências .......................................................................................................................................... 18
1 Doutor em História pela Universidade da Carolina do Sul, autor do podcast
Tides of History.
2 Este texto originalmente é o audio do podcast Tides of History.
3 Doutor em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina, Professor
Se voltássemos para 400 aC, não haveria motivo para acreditar que o latim se
tornaria o progenitor de toda essa diversidade linguística. Naquele momento,
Roma era apenas uma cidade à margem do Tibre. O latim era apenas uma no
meio de todo um aglomerado de línguas diversas na Itália. A língua, porém,
acompanha o Império à medida que o poder militar, político e econômico se
expande, primeiro pelo território italiano e depois por todo o mundo
mediterrâneo, levando o latim na esteira.
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Por volta do segundo século dC, alguns séculos depois do domínio romano, as
pessoas estavam falando latim por todo o Império Romano. Você poderia crescer
falando latim em Narbona, no sul da França; na Mauritânia, nos limites do
Deserto do Saara; em Salona, na costa do Mar Adriático, onde hoje fica a Croácia;
ou na remota Eboraco, hoje a cidade de York, no norte da Inglaterra. O latim se
espalhou junto com os soldados romanos, com os mercadores romanos e com as
termas romanas. Acima de tudo, o latim se espalhou pelas províncias com os
próprios cidadãos romanos. O Império Romano não era apenas uma unidade
política; ele era um espaço, era todo um mundo de movimento interconectado.
Esse é o fato fundamental da existência do Império Romano. Dentro e além dos
seus limites, pessoas e ideias estavam em constante movimento. O Império
direcionou esse movimento enviando soldados por todo o território e criando
demanda por alguns tipos de bens. O Império também promoveu esse
movimento indiretamente, provendo infraestrutura e condições que o
encorajaram.
À medida que o Império Romano desaba nos séculos 5 e 6 dC, desaba também a
unidade linguística do mundo romano. Nos séculos seguintes, ao longo da Idade
Média, o latim falado em diferentes partes do que tinha sido o Império Ocidental
se fragmenta em variedades regionais. A certa altura, alguém nascido em
Nápoles não seria mais capaz de entender alguém nascido em Paris. Portanto,
vamos voltar um pouco atrás e nos debruçar sobre algumas questões básicas.
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Essas mudanças podem ocorrer entre grupos sociais específicos ou, mais
comumente, em lugares particulares; por vezes, se espalham pela escala social,
passando de classes sociais de aristocratas extravagantes até chegarem a
trabalhadores comuns ou vice-versa. Às vezes, as palavras se espalham de
pessoa para pessoa por meio de redes sociais e contato cotidiano. Isso é chamado
de difusão contagiante ou efeito de vizinhança. Em outros casos, as inovações na
língua saltam de um centro urbano para outro, transpondo fronteiras. Isso é
chamado de difusão hierárquica ou paraquedismo.
Se a língua está sempre mudando, isso significa que ela muda aleatoriamente?
Não! A mudança fonética é regular e segue regras particulares. Quando
comparamos as línguas, podemos voltar atrás e descobrir características que o
ancestral comum delas compartilhava. Esse método comparativo é modo pelo
qual podemos dividir as línguas em famílias. Assim, ao retroceder, podemos
reconstruir os ancestrais comuns. No caso do francês e do espanhol, sabemos
que o ancestral comum era o latim. Mas, e quanto ao inglês e ao alemão? Ou o
irlandês e o grego? Ou o russo e o hindi? Nós não temos registros do seu
ancestral comum, chamado protoindo-europeu, que era falado há milhares de
anos atrás, provavelmente na estepe euroasiática ao norte do Mar Negro. Na
família indo-europeia, temos subfamílias: a germânica, que inclui o inglês e o
alemão, descendentes do protogermânico; a celta, que inclui o irlandês e o galês,
ao lado de línguas extintas como o gaulês; a eslava, que inclui o russo, o tcheco
etc.; e a itálica, com o latim e seus descendentes.
Isso nos dá uma noção da escala temporal com a qual estamos lidando aqui. Se o
inglês shakespeariano, de 400 anos atrás, ainda faz sentido para nós, então é
razoável afirmar que Cícero e Santo Agostinho poderiam se entender um ao
outro, e o mesmo vale para Agostinho e Carlos Magno. Quando falamos sobre a
transformação do latim para o romance, estamos falando sobre uma série de
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processos contínuos e sobrepostos, de cima para baixo, de baixo para cima, que
duraram milênios. O latim não permaneceu estático ao longo de séculos tendo
sido usado por milhões de pessoas. A mudança para o que chamamos de línguas
românicas foi apenas uma continuação de mudanças que já vinham acontecendo
por séculos.
À medida que os romanos expandiram para fora dos limites da cidade ao longo
da península, o latim os acompanhou. Há um provérbio famoso segundo o qual
uma língua é um dialeto com um exército e uma marinha. A língua seguiu o
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império, primeiramente por toda a Itália e depois para além dela. Espanha, Norte
da África e Bálcãs, Gália e Bretanha: todos caíram sob o poder romano.
Variação no latim
O latim não permaneceu estático durante a época de dominância do Império
Romano. A língua está sempre mudando. Ela está sempre variando de lugar para
lugar, de grupo social para grupo social. O latim não era uma exceção à regra.
Não é simples afirmar com precisão como o latim variou e mudou ao longo do
tempo. Considerando que, obviamente, não há registros sonoros que nos
informem como as pessoas falavam o latim de fato, temos que, em vez disso,
confiar nos textos escritos. Mas os textos escritos podem ser tão obscuros quanto
reveladores. Veja bem: as pessoas não escrevem como falam. Você tem que
aprender a escrever, você tem aprender a soletrar. Esse processo de
aprendizagem, sendo conduzido por alguém que também aprendeu, anula em
muito as variações regionais e sociais.
Por exemplo, no inglês falado em Los Angeles, tendemos a usar uma gíria ou uma
expressão popular se estamos falando sobre “a casa na esquina oposta”. Eu
provavelmente diria “kitty corner”. Eu nunca escreveria “kitty corner” se eu
estivesse escrevendo sobre essa mesma casa na esquina oposta. Eu preferiria
“diagonal”.
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A norma padrão escrita do latim era ainda mais poderosa do que aquela do
inglês atual. Ela durou por séculos, mais ou menos intacta, enquanto o sistema
educacional latino sobreviveu. Aprender a escrever era aprender a escrever de
um modo específico. Esse modo específico era baseado no mesmo currículo e no
mesmo ideal de como o latim deveria ser. Isso não significa dizer que a língua
escrita fosse sempre a mesma em todos os lugares e em todas as situações. Não
era, absolutamente. Ela variava conforme o grau de instrução e conforme o
gênero textual. Mas, mudanças na língua escrita eram geralmente apenas isso
mesmo: mudanças na língua escrita. Elas não estavam necessariamente
conectadas com mudanças em como as pessoas estavam de fato falando.
Então, se o latim escrito é a sua própria besta, o que ele pode nos informar sobre
o latim falado? Bem, temos evidências diretas de pessoas falando sobre a sua
própria língua. Elas atribuem certas palavras a certas regiões. Às vezes, elas
falam sobre sotaques, sobre sons, ou então sobre erros na grafia de palavras que
apontam para aquelas diferenças solapadas, subjacentes à pronúncia e à escrita.
Inscrições são comuns por todo o Império Romano. Elas podem nos informar um
pouco sobre a fala ordinária, mas não tanto quanto os estudiosos costumavam
pensar. Há também alguns textos casuais que são menos influenciados pela
norma padrão escrita e que são muito reveladores sobre a fala do dia a dia. Essa
categoria inclui coisas como papiros encontrados no Egito ou as tábuas de
madeira do Forte de Vindolanda na Muralha de Adriano, na Bretanha. Os
estudiosos analisaram cuidadosamente todas essas evidências e, então,
propuseram algumas questões-chave realmente interessantes.
Durante a República dos séculos II e I a.C., quando o latim ainda era restrito
principalmente à Itália, as pessoas chamavam a atenção para a as diferenças
entre o sotaque da cidade e o sotaque do campo nas redondezas de Roma. Já no
Império, à medida que o latim se espalhou pela Europa e o Norte da África, o
livros mencionavam aspectos que consideravam característicos de toda a região
fora da Itália, quando o latim foi levado às províncias, e mudou.
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Adams (2003; 2007; 2013) lista cinco razões para isso, e vale a pena passar por
elas:
1. Quando colocamos uma língua em um novo ambiente físico, ela tem que
se adaptar às características topográficas e biológicas que não existiam na
terra natal; pense em palavras em inglês como “mesa” (“mesa” esp.) ou
“cougar” (“puma”). Não eram necessários termos para elas em Essex ou
Yorkshire.
2. Variedades provinciais do latim entraram em contato com outras línguas
vernáculas: púnico na África; gaulês na Gália; ibérico na Espanha; e assim
por diante; essas contatos podem ter influenciado toda uma série de
coisas, desde estrangeirismos até a pronúncia.
3. O latim na sua terra natal não parou de evoluir uma vez que a língua foi
levada para a província, assim como há mudanças na Inglaterra hoje que
nós não compartilhamos na América.
4. O oposto era também verdadeiro: variedades provinciais do latim podem
acumular mudanças que o latim da Itália não experimentou.
5. Pode ter havido interação entre falantes de diferentes dialetos na
província; múltiplas variedades de latim entraram em contato umas com
as outras, e suas características se misturaram.
Isso faz sentido de uma forma intuitiva. A língua que a vasta maioria das pessoas
fala todo dia deve ter mais do que um simples impacto na língua falada que
evolui a partir dela do que um padrão escrito realmente restrito. Havia muitas
palavras e significados e usos que sabemos terem existido no latim falado e que
raramente aparecem na língua escrita das elites. Por exemplo, as palavras que
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resultaram em hablar no espanhol e parler no francês (“falar”) derivam de
termos que não eram usados da mesma maneira no latim clássico escrito.
Então, o que isso significa na prática? Bem, nós mencionamos que os falantes
tinham percepções sobre o que entendiam como sotaques regionais. Alguém de
Roma poderia presumivelmente dizer que alguém da Espanha ou da África tinha
um jeito de falar que diferia significativamente do seu. Você pronuncia as coisas
diferentemente, você usa palavras diferentes. Isso não é o mesmo que antecipar
os romances que eventualmente se desenvolveriam naquelas áreas. Quando um
romano da Itália comparava o seu jeito de falar latim com o de alguém da Gália,
não era porque ele estava entrevendo um francês que surgiria milhares de anos
mais tarde. Era porque ele tinha um conceito da Gália como uma região
geográfica e um conceito dos galeses como pessoas com características notáveis.
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Império, ou pelo menos da sua parte dominante do Mediterrâneo. O latim
hispânico e o italiano do mesmo modo tinham algumas características
distintivas.
O latim tinha vogais com duração variável: a longo, a breve; i longo, i breve; e
assim por diante. Um falante de latim poderia distinguir entre os, com uma vogal
breve, significando osso, e os, com uma vogal longa, significando boca. Na
variedade africana do latim essas distinções entre vogais longas e breves
desapareciam. Pessoas como Agostinho não conseguiam perceber essa diferença;
pessoas em outras partes do Império ainda conseguiam.
Pense sobre isso: há vogais em toda palavra. Até mesmo pessoas educadas,
falantes de origem africana, como Agostinho ou o Imperador Septímio Severo,
não faziam essa distinção. E você teria que ouvir isso toda vez em que alguém
abrisse a boca.
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O mesmo é válido para falantes de praticamente todas as línguas hoje em dia. Eu
conheço pessoas com doutorado cujo modo de falar muda de acordo com quem
eles estão falando, se é com amigos em privado, ou publicamente com colegas
acadêmicos. Certamente você poderá pensar em outros exemplos de você
mesmo fazendo isso ou de outras pessoas que o fazem.
Koineização do latim
O que todas essas evidências não mostraram é a falta de mútua inteligibilidade.
Tal como discutimos, alguém da Bretanha poderia estar consciente de que
alguém da África falava latim diferentemente. Mas, há zero indicações de que
ambos não se entendiam um ao outro. Por quê? Como, em um Império que se
estendia da Bretanha ao Saara, todos podiam se entender mutuamente?
A resposta para essa questão remete a um termo chamado koineização. Ele vem
da palavra grega koiné, que significa língua comum ou dialeto surgido da mescla
de um conjunto de dialetos ou variedades de uma língua. O clássico exemplo
desse processo é a versão da língua grega que surgiu durante o período
helenístico, após a conquista de Alexandre o Grande. Foi esse o momento no qual
todos os dialetos do grego clássico se fundiram em um padrão novo e
amplamente inteligível.
O resumo dessa história é que o Império Romano deve ser entendido como um
espaço de movimento. O Império encorajava e permitia esse movimento. Isso
tinha implicações claras para as variedades regionais da língua latina. Os
sotaques que comentamos antes estavam constantemente entrando em contato
um com o outro. Eles não estavam isolados. Por meio desse contato contínuo eles
iam nivelando as maiores diferenças entre as regiões.
O latim não era o mesmo em todos os lugares. Havia diferenças perceptíveis nos
sotaques e na escolha de palavras. As variedades regionais e locais estavam
sempre evoluindo no Império Romano, mas, por causa desse movimento
constante de pessoas, as variações nunca se tornaram muito profundas.
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O fim do Império e o aprofundamento das diferenças entre as
variedades
O fim do Império romano como uma unidade política eventualmente levou ao
fim do mundo romano como um espaço de movimento e interação. A ação direta
do Estado na movimentação de bens, como grãos e azeite de oliva, por meio do
sistema de taxação, e na movimentação de pessoas por meio do exército chegou
ao fim. O mesmo vale para o ambiente criado, que tornava fácil a movimentação
de indivíduos particulares.
Ao longo dos séculos V, VI e VII, tornou-se cada vez mais difícil se movimentar. O
comércio desacelerou e foi de uma inundação para um pequeno gotejamento. As
províncias romanas se tornaram reinos bárbaros. As fronteiras se enrijeceram.
Este foi, na verdade, o tema da minha tese de doutorado, então é um tópico sobre
o qual eu me detive por muitos anos.
Meu objeto de estudo foi o fim do Império Romano, e não o fim do latim. O
declínio do Império não foi um evento pontual, mas uma série de coisas
intercaladas que aconteceram ao longo de séculos. Da mesma forma, o tipo de
movimento que definiu o mundo romano e manteve o latim bastante homogêneo
não acabou da noite para o dia. Como já vinha acontecendo, ele continuou
evoluindo.
Podemos observar essa evolução nos séculos VI, VII e VIII. O padrão escrito se
manteve tal como sempre foi. Você pode ler alguns textos do início do período
medieval e concluir que pouca coisa tinha mudado. Ainda havia pessoas
ensinando a escrever em latim de maneiras não muito diferentes daquelas
ensinadas alguns séculos antes. A Bíblia se tornou mais influente. Talvez menos
pessoas podiam ler Cícero, mas por outro lado nada mudou significativamente.
Meu texto favorito desse período é um texto do Bispo Gregório de Tours, escrito
por volta do fim do século VI. Logo de cara, Gregório se desculpa por sua
linguagem rude e deselegante, muito embora fosse perfeitamente inteligível. Ele
não era um Cícero ou um Tácito, mas também não era um analfabeto, e Gregório
sabia disso.
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As tábuas visigodas e o colapso do sistema de casos
Podemos entrever um pouco dessas coisas em alguns textos fascinantes da
Espanha do século VII. Eles são chamados de ardósias visigodas, ou “pizarras
visigodas”. São uma coleção de algumas dezenas de textos informais talhados em
tábuas de ardósia. Algumas delas são notas de venda e contratos. Outras são
declarações legais, e há até mesmo uma carta entre elas. Por serem textos
informais, que tratam de coisas do dia a dia, são menos influenciados pelo
padrão escrito.
A essa altura, nós vemos características que sabemos que apareceram nas
línguas românicas mais tarde. Sem ir muito a fundo na parafernália técnica, há
coisas como o uso de ille e ipse como artigos definidos, significando o, e um
monte de preposições. Porém, o latim não precisava delas, porque ele tinha um
sistema de casos. Você muda a terminação de uma palavra para indicar que
função ela desempenhava em uma sentença. Em inglês, ainda temos algumas
reminiscências disso: who como sujeito de uma sentença versus whom como
objeto, e I versus me. Estes são bons exemplos.
É essencial saber que esses tipos de uso existiram no latim também. O que
mudou foi a frequência do seu uso. Não havia uma linha divisória muito clara
entre o latim e os romances. Não houve um ponto de virada definitivo. O que
houve foi apenas uma mudança gradual durante um longo período de tempo.
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Na versão branda dessa hipótese, isso significa que as pessoas estavam
conscientes da diferença entre sua língua escrita e sua língua falada. Porém, não
há motivo para acreditar que esse fosse o caso. Não importa o quanto a língua
falada mudasse, a escrita ainda era notoriamente latim. Nós não dispomos de
evidências que sugiram que elas viam algum tipo de distorção conceitual entre as
duas coisas.
Digamos que você é um Bispo na Gália no século VII. Você conhece uma pessoa
sagrada; um santo. Você quer compor uma biografia desse santo, uma vita: uma
obra para instruir os fiéis sobre o que significa ser um bom cristão. Porém, se
você está escrevendo em latim para pessoas que não falam latim, como isso pode
funcionar? A resposta é: isso pode funcionar. Inúmeras pessoas seguiam
escrevendo em uma língua que era obviamente latim, e elas pretendiam ser lidas
em voz alta para uma audiência analfabeta. Essas pessoas não estavam
desperdiçando seu tempo escrevendo algo que ninguém conseguiria entender,
em uma língua que era acessível apenas à elite instruída.
Ainda assim, sabemos que a língua falada estava mudando o tempo todo. Como
isso podia funcionar? A solução a que Banniard e outros estudiosos chegaram é
simples. Quando alguém lia latim em voz alta, ele simplesmente pronunciava a
palavra do modo que normalmente falaria aquela palavra. Nós fazemos isso toda
vez em que lemos inglês em voz alta. Nós pronunciamos a palavra, não as letras
que compõe a palavra, como sons individuais. Esse tipo de pronúncia criativa,
pode ir muito longe no sentido de manter o latim escrito e o latim falado como
uma só língua.
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Por volta do começo do século IX, de acordo com um estudioso realmente
perspicaz chamado Roger Wright, houve um momento de virada efetivo, em
termos de como as pessoas concebiam a relação entre o latim e o que elas
estavam falando. Curiosamente, essa mudança não veio de falantes nativos de
latim ou romances no continente. Ela veio de monges anglo-saxões nativos da
Bretanha que tinham aprendido o latim como língua estrangeira no monastério.
Alcuíno era anglo-saxão. Ele cresceu falando inglês arcaico e só veio a aprender o
latim como segunda língua. Quando aprendeu a falar latim, Alcuíno aprendeu a
pronunciar cada som individual. Seria como falar a palavra individual na
sentença anterior como i-n-d-i-v-i-d-u-a-l, com cada letra tendo exatamente o
mesmo valor fonético, ao invés de pronunciar a forma da palavra como um todo,
tal como fazemos quando lemos. Pois é assim que ele pronunciava. Alcuíno não
mudava a sua pronúncia da maneira como um falante nativo e leitor da língua
faria, tal como comentamos anteriormente.
Vamos tornar isso mais concreto. Tomemos a palavra corpus (“corpo”). O plural
de corpus é corpora. Porém, em vez disso, um falante nativo no século IX
provavelmente diria algo como corpa ou cuerpa, talvez até corpas. Compare isso
a corpora. Essa diferença deve ter enlouquecido Alcuíno. Para ele, o que os
nativos da Gália, da Ibéria e da Itália estavam falando não era latim. O que ele
tinha aprendido no monastério, em que cada letra na página era um som
individual; aquilo sim era latim.
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algumas palavras que soam familiares, mas ainda assim parecerá um pouco
estranho:
Pro deo amur et pro christian poblo et nostro commun salvament, d'ist di in
avant, in quant deus savir et podir me dunat, si salvarai eo cist meon fradre
Karlo et in aiudha et in cadhuna cosa, si cum om per dreit son fradra salvar
dist, in o quid il mi altresi fazet, et ab Ludher nul plaid nunquam prindrai,
qui meon vol cist meon fradre Karle in damno sit.
Pelo amor de Deus e pelo bem do povo cristão e nosso bem a todos os
dois, a partir deste dia, enquanto Deus me dará sabedoria e poder, eu
darei socorro a meu irmão Carlos com minha ajuda e toda outra coisa,
como se deve acudir seu irmão por igualdade, à condição que ele faça o
mesmo por mim, e não passarei nenhum acordo com Lotário que, de
minha vontade, possa ser prejudicial a meu irmão Carlos.
Isso, obviamente, não é o que imaginávamos ser o latim. Durante todo o tempo
em que o Império Romano existiu, o latim estava evoluindo em direção ao
romance. As línguas românicas que emergiram não tinham a mesma aparência
em todos os lugares. Considerando que havia diferenças crescentes entre como
as pessoas falavam no sul da Itália e como elas falavam no norte da França,
eventualmente chegaria o momento em que elas não seriam mais capazes de se
entender umas às outras.
Esse momento provavelmente ainda não aconteceu no século IX. Por que não?
Em grande parte, trata-se apenas de uma consequência natural do tempo, à
medida que essas variedades deixam de estar em contato umas com as outras. As
línguas sempre têm inúmeras maneiras diferentes de dizer as mesmas coisas. Em
espanhol, por exemplo, se diz su para denotar um adjetivo possessivo. Em
francês, é leur. Uma forma vem do latim suus, e a outra, do latim illorum. Ambas
funcionavam igualmente em latim, mas, com o tempo, as pessoas em lugares
diferentes tendem a favorecer um uso em detrimento de outro, e o outro cai em
desuso. O mesmo vale para mudanças fonéticas, para mudanças na sintaxe e no
vocabulário.
A separação final não aconteceria até o século XII ou XIII. Isso representa 800
anos após o Império Romano deixar de ser relevante. O século XII ou XIII foi
quando os reinos emergentes da alta idade média criaram as suas próprias
chancelarias e passaram a usar um vernáculo específico, variedade do romance.
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O fato de a chancelaria passar a usar o vernáculo ajudou a desenvolver um
padrão escrito, com suas próprias regras.
Ainda assim, mesmo com o divórcio das línguas, elas não divergiram muito umas
das outras, ou não o fizeram de uma vez só. Vamos supor que você começa seu
trajeto ao norte da România (a área de fala românica), na costa norte, e então
chega ao sul por volta de 1200. Você passou pelo que agora é a Bélgica, pelo
norte da França e depois pelo sul da França e Itália ou Espanha. À medida que
você avança de um vilarejo a outro, de uma cidade a outra, a língua poderia
mudar um pouco. A certa altura, se você comparasse o dialeto do sul da Espanha
ou do sul da Itália com aquele no norte da França, você perceberia diferenças
substanciais. Mas, se você comparasse um vilarejo com o próximo, eles seriam
muito parecidos.
Conclusão
O latim irrompeu para fora da Itália junto com o poder do Império Romano e
com os próprios romanos, e se estabeleceu por todas as províncias ocidentais,
das margens do Saara aos pântanos da Escócia e nas florestas da Alemanha. À
medida que o Império Romano se fragmentou, também se fragmentou a unidade
essencial do latim.
Da mesma forma que pessoas como você e eu fazemos escolhas todos os dias a
respeito de que palavras usar, as pessoas desse período faziam o mesmo.
Milhões dessas escolhas ao longo de centenas de anos transformaram o latim em
espanhol, português, occitano, francês, valão, italiano, sardo, romeno e muitas
outras línguas. Essas línguas não foram descendentes diretas de variedades
regionais de latim, senão de algo diferente, que aconteceu depois do fim do
Império romano, e a grande diversidade das línguas românicas é um reflexo
disso.
Espero que você tenha gostado deste texto tanto quanto eu gostei de pesquisar
sobre o assunto. É algo pelo que eu me interessava há muito tempo, e foi um
prazer reunir tudo isso aqui.
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Referências
ADAMS, James Noel. Bilingualism in Latin language. Cambridge: Cambridge
University Press, 2003.
______. Latin and social variation. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.
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