Ser Mortal: Atul Gawande
Ser Mortal: Atul Gawande
Ser Mortal: Atul Gawande
SER MORTAL
Nós, a medicina e o que realmente importa no final
Being Mortal
Medicine and What Matters in the End
Traduzido do inglês por
Tânia Ganho
CONTEÚDOS
Prefácio 11
Introdução 17
> Capítulo 1 :: O «eu» independente 27
> Capítulo 2 :: O mundo desmorona 39
> Capítulo 3 :: Dependência 67
> Capítulo 4 :: Assistência 89
> Capítulo 5 :: Uma vida melhor 117
> Capítulo 6 :: Desapegar-se 151
> Capítulo 7 :: Conversas difíceis 189
> Capítulo 8 :: Coragem 225
Epílogo 249
Agradecimentos 253
Notas sobre as fontes 257
Prefácio
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PREFÁCIO
Este é, na minha leitura, um livro sobre ética: não uma ética nor-
mativa, refém de princípios rígidos derivados da filosofia analítica,
maniqueísta, que ilude as sombras, mas da ética que mais prezo,
que trata da carne viva dos valores e das crenças, da compaixão e da
finitude, da «ternura egoísta do homem pelo homem», para usar a
expressão tão doce de Albert Camus.
Parece que aquilo que eu próprio tenho escrito sobre estas matérias
tem merecido o reparo dos especialistas que me acusam de excessivo
protagonismo da minha própria persona, pelas referências frequentes
às experiências que vivi. Gawande fá-lo com absoluta liberdade, e não
poupa as «incursões no seu próprio ser» – expressão do meu amigo
(e um dos mais humanos e sofisticados cultores da ética entre nós)
Walter Osswald. E esta «ética narrativa» tem, quanto a mim, as virtu-
des do «conhecimento das vidas». Tenho insistido que aprendi mais
com ficção – e a citação, logo no início, da novela tremenda de Tolstoi
A Morte de Ivan Illitch, tem a ressonância de uma abertura trágica –
de que em muitos tratados de ética. Martha Nussbaum, uma filósofa
bem atenta à realidade do nosso tempo, sublinhou, com pesar, o facto
dos filósofos modernos se escusarem a aceitar a literatura como um
modo sério de argumentação moral. Para eles a literatura é dema-
siado mole, emocional e particularizante. Preferem a sua ética seca e
lógica, a ética dos princípios e dos axiomas. Na realidade, a literatura
revela o sentido das coisas que não são redutíveis a teoremas e pro-
testa contra a tirania da abstracção. E, no entanto, este livro ilustra
bem como os dois discursos não são incompatíveis.
Este livro é também uma carta de viagem, ou seja, a descrição do
caminho do nosso devir. Escrevia Montaigne: «Tous le jours vont à la
mort, le dernier y arrive» («todos os dias caminham para a morte, o
último chega lá»). Com o assombroso progresso da medicina o cami-
nho é mais longo, e o viajante chega ao fim cada vez mais extenuado
e débil. É o resultado do processo de envelhecimento, do «bombar-
deamento silencioso pela artilharia do tempo», que Gawande trata
com sensibilidade e bom senso. Recorro a uma citação de O Animal
Moribundo, de Philip Roth, que nos últimos livros (que incluem o
admirável Património, em que descreve a doença do pai) tanto cuidou
deste tema: «Se somos saudáveis e nos sentimos bem, vamos mor-
rendo invisivelmente.»
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O autor descreve o que hoje se pode e deve fazer para cuidar dos
nossos velhos, as várias formas de lhes guardar, até ao fim, a autono-
mia, a independência, e a dignidade. Escrevi num texto que dediquei
a meu pai (A Historia de Um Velho): «o meu velho sobreviveu porque
foi dignamente médico até lhe faltarem as forças e isso deu-lhe uma
persistente razão de viver.» Entre nós fala-se de «lares de idosos», e
bom seria que fossem sempre «lares» e não depósitos de pessoas,
tantas vezes lá abandonadas à espera da morte. A importância deste
aspecto é defendida com vigorosa eloquência pelo autor.
Mas este livro trata também da morte, e explica que há de facto
muitas maneiras de morrer, ilustrando com três gráficos – aliás
muito citados na literatura sobre o tema – três percursos diferentes.
A distinção é importante porque a maior parte do debate ético cen-
tra-se no paradigma oncológico, em que o doente vive com razoável
autonomia, ou seja, capaz de tomar decisões sobre as suas escolhas
terapêuticas, quase até ao final da vida, embora a racionalidade das
suas preferências nem sempre seja baseada na evidência científica.
Os médicos têm muitas vezes uma enorme dificuldade em lidar
com a morte, porque, no seu íntimo, esta é quase sempre tomada
como equivalente à derrota. A luta que travam pode assumir duas
faces: uma é a tendência «pugilística» de combate e a outra, mais
enganadora, é o da ritualização do optimismo. Como o autor sub-
linha, a formulação do prognóstico está longe de ser uma ciência
exacta e é, como tenho dito, a porção mais afectiva do acto médico
e uma tarefa da diabólica dificuldade, pois os doentes e as famílias
exigem que seja precoce, seja correcto e seja optimista. De facto,
algo mudou radicalmente, pois a morte em casa hoje é quase excep-
ção. Gawande cita uma estatística de 1980 que documenta que só
17 por cento das mortes ocorrem em casa. Entre nós os números são
um pouco diferentes. No livro A Morte e o Morrer em Portugal (Maria
do Céu Machado e col., Almedina 2011), os valores apresentados são
29,9 por cento. Dos restantes, 61,4 por cento morrem no hospital
e 8,7 por cento noutros locais. Descrevi a morte do meu avô, expli-
cando como tinha sido um acontecimento tribal, isto é, cercado pela
família e pelos amigos mais íntimos, e religioso, como fora aliás a
morte do Dom Quixote. Hoje a morte é um acontecimento secular,
solitário e discreto.
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INTRODUÇÃO
lhe ia retirar o tubo de respiração da boca. Ele tossiu duas ou três vezes
quando lho tirei, abriu os olhos por um breve instante e fechou-os
novamente. A respiração tornou-se mais difícil e depois parou. Encos-
tei o estetoscópio ao peito dele e ouvi o coração a esmorecer.
Hoje, mais de uma década depois de eu ter contado pela primeira
vez a história do Sr. Lazaroff, o que mais me interpela não é como foi
errada a decisão que ele tomou mas, sim, a maneira como todos nós
evitámos falar honestamente com o doente sobre a escolha que tinha
pela frente. Não tivemos dificuldade em explicar os perigos especí-
ficos de diversas opções de tratamento, mas nunca abordámos ver-
dadeiramente a realidade concreta da sua doença. Os oncologistas,
radiologistas, cirurgiões e outros médicos que o acompanharam sub-
meteram-no a meses de tratamentos para um problema que sabiam
que não tinha cura. Nunca tivemos coragem para analisar a verdade
mais lata sobre a doença dele e os derradeiros limites das nossas
capacidades, e muito menos para conversar sobre o que poderia ser
mais importante para o doente ao aproximar-se do fim da vida. Se ele
quis correr atrás de uma fantasia, nós também o fizemos. Ali estava
ele, no hospital, parcialmente paralisado por causa de um cancro que
se espalhara pelo corpo. As hipóteses de voltar a ter uma vida nem
que fosse minimamente parecida com a que levara umas semanas
antes eram inexistentes. Mas admitir esta realidade e ajudá-lo a lidar
com ela pareceu-nos algo que estava para lá das nossas capacidades.
Não lhe oferecemos reconhecimento, nem conforto, nem orientação.
Limitámo-nos a propor-lhe mais um tratamento que talvez tivesse
um resultado positivo.
Não nos saímos muito melhor do que os primitivos médicos oito-
centistas de Ivan Ilitch. Aliás, agimos pior, tendo em conta as novas
formas de tortura física que infligimos ao nosso doente. É caso para
nos perguntarmos, afinal, quem são os primitivos…
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CAPÍTULO 1
O «eu» independente
Quando era pequeno, nunca convivi com doenças graves nem com
as dificuldades da velhice. Os meus pais, ambos médicos, eram sau-
dáveis e estavam em boa forma física. Eram imigrantes indianos e
criaram-me, a mim e à minha irmã, na pequena cidade universitária
de Athens, no Ohio, por isso cresci longe dos meus avós. A única pes-
soa idosa que eu costumava encontrar regularmente era uma mulher
que vivia na nossa rua e me deu aulas de piano no segundo ciclo.
Mais tarde, ela adoeceu e teve de mudar de casa, mas não me passou
pela cabeça perguntar-me para onde teria ido nem o que seria feito
dela. A experiência de uma velhice moderna estava completamente
fora da minha realidade.
Na faculdade, porém, comecei a namorar com uma rapariga do
meu dormitório, chamada Kathleen, e no Natal de 1985, numa visita
a casa dela, em Alexandria, na Virgínia, conheci a avó dela, Alice
Hobson, que na época tinha setenta e sete anos. Achei-a uma pessoa
vivaz e muito independente. Não tentava disfarçar a idade. Não pin-
tava o cabelo branco e usava-o liso, com a risca ao lado, ao estilo da
atriz Bette Davis. Tinha as mãos manchadas da idade e a pele enru-
gada. Vestia blusas e vestidos simples e impecavelmente passados
a ferro, usava um batom discreto e andava de saltos altos, quando
muita gente consideraria que já não tinha idade para isso.
Como vim a descobrir ao longo dos anos – porque a Kathleen e eu
acabámos por nos casar –, a Alice foi criada numa povoação rural
na Pensilvânia, conhecida pelas suas plantações de flores e cogume-
los. O pai era floricultor e cultivava cravos, malmequeres e dálias,
em estufas sem-fim. Alice e as irmãs foram as primeiras pessoas da
família a frequentar o ensino superior. Na Universidade de Delaware,
Alice conheceu Richmond Hobson, um aluno de Engenharia Civil.
Devido à Grande Depressão, tiveram de esperar seis anos depois de
se licenciarem para terem meios financeiros para se casarem. Nos
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