SER - Crise Ambiental e Lutas Sociais
SER - Crise Ambiental e Lutas Sociais
SER - Crise Ambiental e Lutas Sociais
SER Social
Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
CRISE AMBIENTAL
E LUTAS SOCIAIS
Editora-Chefe
Lucélia Luiz Pereira, Departamento de Serviço Social, Universidade de Brasília, Brasil
Comissão Editorial
Camila Potyara Pereira, Departamento de Serviço Social, Universidade de Brasília. Brasil
Cristiano Guedes, Departamento de Serviço Social, Universidade de Brasília. Brasil
Hayeska Costa Barroso, Departamento de Serviço Social, Universidade de Brasília. Brasil
Lucélia Luiz Pereira, Departamento de Serviço Social, Universidade de Brasília, Brasil
Conselho Editorial
Ana Elizabete Mota (UFPe/Recife-Brasil)
Denise Bomtempo Birche de Carvalho (Professora Emérita da UnB/Brasília-Brasil)
Domenico Carrieri (Università degli Studi di Roma “La Sapienza”/Roma-Itália)
Elaine Rosseti Behring (UERJ/Rio de Janeiro-Brasil)
Fernanda Rodrigues (Universidade do Porto/Porto-Portugal)
Graciela di Marco (Universidad Nacional San Martin/Buenos Aires-Argentina)
Ivanete Boschetti (UFRJ/Rio de Janeiro-Brasil)
Ivete Simionato (UFSC/Santa Catarina-Brasil)
Jorge Luis Acanda (Universidad de La Habana/Habana-Cuba)
José Geraldo de Sousa Júnior (UnB/Brasília-Brasil)
Luis Moreno (Instituto de Políticas y Bienes Públicos/Madrid-Espanha)
Maria Carmelita Yazbeck (PUC/São Paulo-Brasil)
Peter Abrahamson (University of Copenhagen/Cophenhagen-Dinamarca)
Vicente Faleiros (Professor Emérito da UnB/Brasília-Brasil;UCB/Brasília-Brasil)
Yolanda Guerra (UFRJ/Rio de Janeiro-Brasil)
CRISE AMBIENTAL
E LUTAS SOCIAIS
SER Social 52 | jan.-jun. 2023
EDITORIAL
Resistência popular em um planeta sob ameaça | Popular resistance on a planet
under threat
Lucélia Luiz Pereira
Camila Potyara Pereira
Cristiano Guedes
Hayeska Costa Barroso
7
As interfaces da “questão social” expressas nas lutas pelo direito à cidade / The
interfaces of the “social issue” expressed in the struggles for the right to the city / Las
interfaces de la “cuestión social” expresadas en las luchas por el derecho a la ciudad
Juanita Natasha Garcia de Oliveira
Thaisa Teixeira Closs
177
Serviço Social e pandemia: requisições institucionais e atribuições profissionais em
debate / Social Work and pandemic: institutional requirements and professional
attributions under debate / Trabajo Social y pandemia: requisitos institucionales y
responsabilidades profesionales en debate
Adriana Ramos
Janaina Albuquerque de Camargo
200
Racismo de Estado e eugenia sob a égide neoliberal / State racism and eugenics
under the neoliberal aegis / Racismo de Estado y eugenesia bajo la égida neoliberal
Simone Sobral Sampaio
Robson de Oliveira
241
RESENHA | REVIEW
Heat, greed and human need: climate change, capitalism and sustainable
wellbeing / Calor, ganância e necessidade humana: mudança climática,
capitalismo e bem-estar sustentável / Calor, codicia y necesidad humana: cambio
climático, capitalismo y bienestar sostenible
Jefferson Sampaio de Moura
264
269
288
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
EDITORIAL
[7]
8 SER Social 52| jan.-jun. 2023
DOI: 10.26512/ser_social.v25i52.44904
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
[10]
A “QUESTÃO AMBIENTAL” NA REALIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA 11
INTRODUÇÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
[29]
30 SER Social 52| jan.-jun. 2023
INTRODUÇÃO
8 Termo cunhado por Crutzen (2002) para nomear uma nova era geológica, a partir das grandes
intervenções humanas, o que tem interferido nos ciclos que moldam e sustentam as múltiplas formas de vida
no planeta Terra.
9 Acosta (2018) prefere o termo capitaloceno, em vez de antropoceno, para caracterizar as alterações
nos sistemas da Terra provocadas não por toda e qualquer intervenção humana no planeta, mas pela ação do
sistema capitalista, que se estende por todos os campos da vida social, econômica, cultural, jurídica etc.
A LUTA DAS MULHERES INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA E A CRISE AMBIENTAL 37
Sateré-Mawé, afirmou:
3. Reflexões finais
capital-natureza, capital-vida.
As mulheres indígenas apontam para resistências que também se
operam no campo epistêmico. Seus corpos, resistindo a megaprojetos de
desenvolvimento marcados pelos conflitos socioambientais, se projetam
para lutas compartilhadas com múltiplas existências. Cada experiência,
embora singular, se conecta com a outra, gerando fluxos de vida onde
o capitalismo só enxerga ruínas e separações.
Trata-se de reflexões-ações que desafiam as hegemonias insti-
tuídas das ecologias políticas, ao se colocarem no papel de produtoras
de saberes, de ciência e de conhecimentos, o que desloca o lugar aca-
demicamente instituído às mulheres indígenas, enquanto objetos de
reflexões de outras e de outros.
As experiências de conflitos socioambientais e de resistência vi-
venciadas pelas mulheres indígenas passam não só a integrar a ofensiva
contra o capital sobre seus corpos-territórios, mas nos dão subsídios
para reflexões encarnadas, as quais, gentilmente, elas cedem a quem se
dispõe a compartilhar com elas o cuidado com a Terra.
REFERÊNCIAS
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
[49]
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INTRODUÇÃO
predominância da barbárie, uma vez que a lei dos homens brancos não
necessariamente deveria funcionar na chamada zona colonial ou no
“outro lado da linha”. A zona colonial é a incorporação do universo das
crenças e dos comportamentos incompreensíveis, que estão para além
do verdadeiro e do falso (OLIVEIRA; LINSINGEN, 2021).
Nos dias atuais, tal realidade ainda está em vigor, de maneira
que o pensamento moderno ocidental continua operando mediante
linhas abissais, dividindo o mundo humano do sub-humano. A divisão
metafórica do mundo capitalista em Norte e Sul global é um exemplo
de como tais linhas operam. Ao Sul global estão os países em territórios
situados nos dois hemisférios e que continuam sofrendo as consequên-
cias da expansão colonial europeia, de modo que não atingem níveis de
desenvolvimento econômico semelhantes ao Norte global (OLIVEIRA;
LINSINGEN, 2021). Assim, a crise ecológica existente hoje é resultado
do revés do arquétipo dominante de desenvolvimento, que é limitado
na promoção da equidade e da sustentabilidade, pois não alcança as
camadas mais pobres, não resolve as questões da fome e da desnutrição
e nem mesmo as questões ambientais (ALTIERI, 2012).
A natureza e seus processos, padrões e ciclos são imensuráveis,
assim como a diversidade de olhares sobre eles (PETRI; FONSECA,
2019). Fundamentos do direito humano à alimentação e da continuidade
do planeta como um todo são ameaçados pelas mudanças climáticas, pela
poluição ambiental, pelo desmatamento, pelo apoderamento privado dos
recursos naturais, pelo comprometimento da biodiversidade e pela uni-
formização do padrão alimentar. Os direitos humanos são compreendidos
como universais, inseparáveis, intransferíveis, interdependentes e interli-
gados em sua realização. Com o entendimento de que a alimentação é um
processo de transformação da natureza em gente, as naturezas simbólicas,
culturais e subjetivas são inseparáveis da realização do direito humano à
alimentação e à nutrição adequadas (DHANA) (BURITY et al., 2021).
Em “Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço”
(1946), o médico e geógrafo pernambucano Josué de Castro forneceu,
a partir de seus estudos, a compreensão do problema da alimentação
no país e como a fome se manifestava nas diferentes regiões do Brasil,
denunciando o modelo de desenvolvimento de herança colonial, en-
tendido como obstáculo à garantia do direito humano à alimentação e
à soberania alimentar. Por soberania alimentar entende-se “o direito de
os povos definirem suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de
AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL NO SUL GLOBAL 55
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
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[67]
68 SER Social 52| jan.-jun. 2023
INTRODUÇÃO
2 A Região Nordeste é uma das cinco regiões do Brasil. Seu território compreende uma área
de 1.554,3 mil km², correspondentes a 18,3% do país. Política e administrativamente, o Nordeste é for-
mado por nove estados e 1.793 municípios, constituídos essencialmente por pequenas municipalidades
em termos populacionais. A população da região é de 53,6 milhões de pessoas, que representa 28,0% da
população brasileira, sendo que um quarto da população do Nordeste mora nas nove capitais estaduais. A
região litorânea concentra a maioria da população nordestina, havendo, comparativamente, extensas áreas
do sertão e do meio-norte consideradas pela cartografia estatal como“vazios demográficos” (BNB, 2010).
LATIFÚNDIO EÓLICO 71
5 Em 2021, o Brasil foi o sexto país no Ranking Global de Capacidade Instalada de Energia Eó-
lica (GANNOUM, 2021). No entanto, a fonte hídrica ainda detém 56,4% de participação na matriz elétrica
brasileira, ficando a eólicaem segundo lugar, com 11,8% do total (ABEEÓLICA, 2021).
6 Diniz (2018) analisou a cadeia societária de 719 parques eólicos e verificou que, destes, 483
detêm sócios exclusivamente privados. Já os demais 236 têm o Estado (entendido como a União, empre-
sas e entidades vinculadas) em sua cadeia societária. O autor concluiu que a expansão da energia eólica
tem sido conduzida com maior participação do capital privado (67,2%) do que do Estado (32,8%). Con-
tudo, destaca que esse aumento da participação privada ocorreu sob um arranjo regulatório organizado
pelo Governo Federal e com o estímulo financeiro de bancos públicos.
LATIFÚNDIO EÓLICO 73
7 Dutra (2007, p. 2) afirma que “no caso da energia eólica, a massa de ar específica é muito
baixa (1,25 kg/m³ contra cerca de 1.000 kg/m³ da água, por exemplo), acarretando a necessidade de uma
grande área para geração de energia, além do espaçamento entre elas, para que o efeito de captação do
fluxo de ar seja o menos turbulento possível”. Scheidel e Sorman (2012) identificam que os aerogeradores
terrestres geralmente ocupam 0,05 milhas por quilômetro quadrado em média. Stock e Birkenholtz (2021)
destacam que uma transição mundial para energiasrenováveis requereria ∼1.16% da superfície do planeta.
LATIFÚNDIO EÓLICO 77
que pode passar despercebida, mas destacada por Traldi (2019; 2018),
é aquela na qual a geração de energia eólica se apropria do bem comum
(que é o vento) para a geraçãode lucro privado: “Os contratos firmados
permitem que as empresas possuam liberdade total para produzir energia
se apropriando de um bem comum, sem risco ou com o menor risco
possível, pagando o valor que lhes convier aos proprietários das terras
arrendadas” (TRALDI, 2018, p. 28).
Tanto Lima (2019) quanto Traldi (2019) identificam o Estado
brasileiro como aquele que organizou o mercado de energia renovável e
financiou a expansão da geração de energia eólica. Em 2018, houve um
total de R$ 76.541.893.569,90 de investimento em energia eólica no
Nordeste brasileiro (LIMA, 2019). No Brasil, o financiamento de ativos
em energias alternativas se dá fundamentalmente por bancos públicos
e órgãos de fomento. Como afirma Levien (2014, p. 37), “um regime de
desapropriação representa um meio institucionalizado paraexpropriar ati-
vos de seus donos ou usuários atuais”. O contrato de arrendamento, com
suas vantagens assimétricas, é o meio mais recorrente que as empresas de
energia utilizam para alienar por anos ospequenos proprietários de suas
terras. Contudo, um regime de desapropriação não se faz apenascom as
empresas. Ele se faz com o Estado e uma rede de agentes que sustentam
o funcionamento da expropriação, tais como fundos de investimentos,
empresas de construção civil, consultorias ambientais e empresas imobi-
liárias atuantes em mercados locais de terra (PEREIRA, 2021)8.
Os estudos sobre a eolização do rural nordestino identificaram
a dinâmica expropriadora que organiza a territorialização desse tipo
de geração de energia. Para Pereira (2021, p. 55), a energia eólica no
Nordeste brasileiro está associada “ao avanço da grilagem, da espe-
culação, da despossessão, da alteração do uso do território, além da
destruição de modos de vida que têm, em sua essência, o uso coletivo
da terra e dos recursos”. Traldi (2018; 2019) afirma que a produção de
8 No Brasil, entre as agências estatais financiadoras estão as seguintes: Caixa Econômica Fede-
ral, Banco do Nordeste do Brasil, Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste, Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social, Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste e Fundo
de Desenvolvimento do Nordeste. Entre os principais bancos privados encontram-se os apresentados a
seguir: Santander, Itaú Unibanco, Citibank, Cubico e Brookfield. Já as empresas atuantes no Brasil são
as que seguem: Enel Green Power (italiana); Honda Energy (japonesa); Rio Energy, Cubico Sustainable
Investiments,Actis e Contour Global (inglesas); Iberdrola Renewables, AES Corporation e Duke Energy
(norte-americanas); Brookfield Energy (canadense); Gestamp e Endesa (espanholas); Voltalia, Engie,
Tractebel, SIIF Énergies (francesas); Impsa Energy e Energimp (argentinas); Venti (luxemburguista);
EDP (portuguesa); CPFL Energia, Casa dos Ventos, Alupar, Eletrosul, Queiroz Galvão, Votorantim, Vale,
Odebrecht, Ômega Energia e Renova Energia (brasileiras) (LIMA, 2019).
80 SER Social 52| jan.-jun. 2023
Não reconhecimento de
Grilagem de terra; contrato de
Pré-instalação direitos fundiários; alienação
arrendamento de terra
do imóvel rural
Diminuição da mobilidade
Contenção territorial espacial; perda do acesso aos
meiosde subsistência
Operação
Lucro privado a partir de um
Apropriação do vento
bem natural comum
Fonte: quadro elaborado pelo autor (2022) a partir de Lima (2019) e Traldi (2019).
LATIFÚNDIO EÓLICO 81
REFERÊNCIAS
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
Resumo: O texto expõe dados de uma pesquisa sobre o bairro Santa Ma-
ria, localizado em Aracaju, Sergipe, objetivando caracterizar expressões
do “racismo ambiental” na configuração da saúde como parte do chamado
[86]
RACISMO AMBIENTAL E SAÚDE: UM ESTUDO DO BAIRRO SANTA MARIA, EM ARACAJU (SE) 87
acciones para combatirlo por parte del municipio de Aracaju parece haber
ignorado, intencionalmente o no, las desigualdades socioambientales y
raciales históricamente presentes en las diferentes localidades de vivienda
en la ciudad.
Palabras clave: racismo; cuestión medioambiental; residuos sólidos.
INTRODUÇÃO
A configuração da chamada “crise ambiental” tem sido bastante
estudada em todas as áreas do conhecimento; porém, nem sempre com a
mesma perspectiva de análise. Hegemonicamente, o debate se faz de modo
a culpabilizar os indivíduos pelo conjunto de catástrofes que o referido
conceito designa, requerendo deles mudanças atitudinais que “preservem”
o ambiente e possam torná-lo “sustentável” (SILVA, 2010). Este não é,
entretanto, o ponto de partida do presente texto, que, utilizando-se do
acervo da produção crítica sobre a “questão ambiental”, trabalha com a
hipótese de outras causalidades e medidas para o enfrentamento das suas
consequências para o meio biótico e antrópico.
Na nossa percepção, é inquestionável que a questão ambiental
não afeta indistintamente a todos/as. Seu impacto tem sido maior para
os diversos setores da classe trabalhadora mundial e, no caso brasileiro,
esse resultado não se mostra distinto (SILVA, 2012; JESUS, 2020). Por
tal razão, nós nos propusemos a apresentar no presente texto algumas das
desigualdades estruturais relacionadas à vivência da questão ambiental
em territórios urbanos e periféricos, sintetizando expressões do racismo
ambiental presentes em segmentos populacionais de Aracaju que convi-
veram, por décadas, com o antigo depósito de lixo a céu aberto da cidade.
Destacamos algumas das consequências dessa “convivência”, chamando
a atenção para as desigualdades socioambientais e raciais que determi-
naram sua localização como parte da negação do “direito à cidade” nos
marcos do tardio capitalismo (MANDEL, 1985).
Nossa intencionalidade foi caracterizar expressões do “racismo
ambiental” na configuração da saúde como parte do chamado “direito à
cidade”. Para tanto, a pesquisa utilizou-se metodologicamente: a) de dados
de natureza bibliográfica para compreender as particularidades locais e a
relação do bairro Santa Maria com o antigo depósito de lixo a céu aberto
de Aracaju; b) de dados do Censo 2010 do IBGE e da Secretaria Munici-
pal de Saúde de Aracaju, com vistas à caracterização sociodemográfica
RACISMO AMBIENTAL E SAÚDE: UM ESTUDO DO BAIRRO SANTA MARIA, EM ARACAJU (SE) 89
5 Por razões de espaço, não será possível abordar neste artigo o debate teórico-conceitual que
envolve o processo de mercantilização da terra (tanto no espaço urbano quanto no espaço rural) que de-
termina a configuração das “cidades do capital”. Entretanto, cabe informar que tal pressuposto comparece
em nossas análises sobre o tema.
RACISMO AMBIENTAL E SAÚDE: UM ESTUDO DO BAIRRO SANTA MARIA, EM ARACAJU (SE) 91
2010, apud CARDOSO, et. al., 2017, p. 84). Dados do Censo Demo-
gráfico de Aglomerações Subnormais (2010, apud CFESS, 2016, p. 14)
ilustram tal afirmação, indicando as desigualdades socioambientais das
cidades brasileiras: existem favelas em 97% das cidades que possuem
mais de 500 mil habitantes; 83 milhões de habitantes não são atendidos/
as por sistemas de esgoto; e 45 milhões de pessoas não têm acesso aos
serviços de água potável.
Mas a caracterização dessas desigualdades no Brasil ainda precisa
ser complementada, observando-se os marcadores raciais que lhe são
inerentes. Neste caso, também daremos por suposta a abundante literatura
produzida sobre o racismo presente em nossa formação sócio-histórica,
passando a abordá-lo em uma de suas expressões mais diretamente co-
nectadas aos temas aqui refletidos: o chamado “racismo ambiental”7. A
expressão em questão diz respeito às discriminações raciais visíveis nas
decisões públicas, intencionais ou não, que afetam diferentemente pessoas
negras e não negras em sociedades marcadas pelo racismo estrutural,
como é o caso do Brasil. Tal fato, a nosso ver, é um dos determinantes
da negação do “direito à cidade” e da crise sanitária na particularidade
brasileira.
O racismo ambiental pode ser identificado, por exemplo, nas decisões
públicas sobre locais para instalação de depósitos de resíduos sólidos, de
modo que a exposição ao risco de morte e de adoecimentos esteja concentrada
predominantemente para uma fração racializada da população, conforme
discutiremos na próxima seção deste texto. Ademais, também podemos
analisar sob a lente do racismo ambiental os processos sócio-históricos
que determinam acessos desiguais aos direitos sociais e humanos, como
“à água potável e [...] [ao] saneamento básico, à localização de instalações
poluidoras e de alto risco em áreas habitadas por negros – inclusive ins-
talações estatais – e uma maior exposição aos riscos de desabamentos e de
contaminação por resíduos tóxicos” (SILVA, 2012, p. 94).
O conceito de racismo ambiental permite adensar a compreensão
das desigualdades socioambientais no Brasil, refletidas na questão urbana e
habitacional, relacionando-as à cor da pele. Dados de 2011 (apud ALMEI-
DA, 2014) informam que no país havia uma população, estimada em 16
7 A expressão racismo ambiental tem origem nos Estados Unidos, a partir dos estudos sobre
justiça ambiental que, a priori, iniciaram-se em 1981, sob a influência do líder afro-americano Benjamin
Franklin Chavis Jr. Roberts e Toffolon-Weiss (apud JESUS, 2020, p. 6) sinalizam que “o termo racismo
ambiental foi usado pela primeira vez por Benjamin Chavis na Carolina do Norte [Estados Unidos], em
1978, durante os protestos contra o depósito de bifenilpoliclorados (PCB), compostos altamente tóxicos”.
RACISMO AMBIENTAL E SAÚDE: UM ESTUDO DO BAIRRO SANTA MARIA, EM ARACAJU (SE) 93
8 Fonte: <https://todoscontraocorona.net.br/>.
94 SER Social 52| jan.-jun. 2023
9 O referido projeto foi desenvolvido entre os meses de setembro de 2021 e abril de 2022,
como resultado de sua aprovação em edital do programa de iniciação científica da Universidade Federal
de Sergipe, sendo intitulado: “‘Questão social’ e ‘Questão ambiental’ - caracterização de expressões do
racismo ambiental a partir do convívio com os antigos lixões em Aracaju-SE”.
10 Originalmente, a região que hoje se configura como bairro Santa Maria compunha um dos
municípios da atual região metropolitana de Aracaju. Sua ocupação teve início no final do século XIX,
sob o nome de “Terra Dura”.
RACISMO AMBIENTAL E SAÚDE: UM ESTUDO DO BAIRRO SANTA MARIA, EM ARACAJU (SE) 95
Total de Pretos/as
Pretos/as % Pardos/as % + % Brancos/as % Outras %
habitantes pardos/as
Aracaju
571.149 52.321 9,1 275.097 48,1 327.418 57,2 15.4281 27 89.450 15,8
Santa
33.475 4.087 12,2 16.507 49,3 20.594 61,5 5.357 16 7.524 22,5
Maria
Fonte: IBGE – Censo Demográfico (2010). Elaboração própria.
13 O trabalho de Santos (2016) cita o primeiro censo social, realizado em 2005, pelo Ministério
Público de Sergipe, sob coordenação do Centro de Apoio Operacional.
14 “Líquido escuro gerado pela degradação dos resíduos no lixo, [que] contém alta carga poluidora;
por isso, deve ser tratado adequadamente” (SANTOS, 2016, p. 32).
98 SER Social 52| jan.-jun. 2023
Rede geral
Fossa Fossa
de esgoto ou Outras Não tinham
Total de séptica17 rudimentar18
pluvial16
domicílios
Absoluto % Absoluto % Absoluto % Absoluto % Absoluto %
Aracaju 169.493 122.385 72,2 26.461 15,6 14.250 8,4 5.874 3,4 523 0,3
Santa
9.272 2.977 32,1 2.729 29,4 2.561 27,6 802 8,6 203 2,1
Maria
Fonte: IBGE – Censo Demográfico (2010). Elaboração própria.
15 Segundo Jesus (2020), tais doenças são também classificadas como “doenças relacionadas ao
abastecimento de água e ao esgoto” no Manual de Saneamento da Fundação Nacional de Saúde (Funasa).
Disponível em: <https://repositorio.funasa.gov.br/handle/123456789/506>. Acesso em: 20 jan. 2023.
16 “Quando a canalização das águas servidas e dos dejetos, proveniente do banheiro ou sanitário,
estava ligada a um sistema de coleta que os conduzia a um desaguadouro geral da área, região ou muni-
cípio, mesmo que o sistema não dispusesse de estação de tratamento da matéria esgotada” (IBGE, s/d).
17 “Quando a canalização do banheiro ou sanitário estava ligada a uma fossa séptica, ou seja, a
matéria era esgotada para uma fossa próxima, onde passava por um processo de tratamento ou decanta-
ção, sendo, ou não, a parte líquida conduzida em seguida para um desaguadouro geral da área, região ou
município” (IBGE, s/d).
18 “Quando o banheiro ou sanitário estava ligado a uma fossa rústica (fossa negra, poço, buraco
etc.)” (IBGE, s/d).
100 SER Social 52| jan.-jun. 2023
CONSIDERAÇÕES FINAIS
20 Fonte: <https://todoscontraocorona.net.br/>.
RACISMO AMBIENTAL E SAÚDE: UM ESTUDO DO BAIRRO SANTA MARIA, EM ARACAJU (SE) 103
REFERÊNCIAS
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
1 Mestre em Sociologia pela UFPR, com Graduação em Ciências Sociais pela mesma institui-
ção. Doutorado em Sociologia (PPGSocio/UFPR). E-mail: <pedrohvanzo@gmail.com>.
2 Mestre em Educação Física pela UFPR, com Licenciatura Plena em Educação Física pela
mesma instituição. Doutorado em Sociologia (PPGSocio/UFPR). E-mail: <narayana.astra@gmail.com>.
[106]
NOVOS PARADIGMAS EPISTEMOLÓGICOS 107
INTRODUÇÃO
Está posto, então, por Latour e pela ANT, alguns dos grandes
desafios teórico-metodológicos em pesquisa sociológica nos dias de
hoje. Munidos desse arcabouço teórico, resgatamos as contribuições
de outro autor, Boaventura de Sousa Santos, para tentarmos construir
pontes para repensar o “social” em seu conjunto formativo, bem como
para emergir epistemologias outras no conjunto e no contexto de dis-
putas políticas em torno do poder, do saber e do ser, preocupações estas
salientes em nosso próprio movimento de pensar e fazer pesquisa em
Sociologia na contemporaneidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
DOI: 10.26512/ser_social.v25i52.46983
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
[125]
126 SER Social 52| jan.-jun. 2023
DOI: 10.26512/ser_social.v25i52.46983
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
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Ian Gough1
https://orcid.org/0000-0002-0597-3106
Potyara Amazoneida Pereira Pereira2
https://orcid.org/0000-0003-4823-5119
[132]
CLIMATE THREAT, CAPITALIST GREED AND SOCIAL POLICY 133
DOI: 10.26512/ser_social.v25i52.38767
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
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1 Assistente Social. Professora do Magistério Superior. Doutorado em Serviço Social pelo Pro-
grama de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pro-
fessora Adjunta na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail:
<mossi_c@yahoo.com.br>. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/9155981609470086>.
2 Graduanda em Serviço Social. Discente da Escola de Serviço Social da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: <barcelosbittencourt@gmail.com>. Currículo Lattes: <http://lattes.
cnpq.br/3293926453104845>.
3 Graduanda em Serviço Social. Discente da Escola de Serviço Social da Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: <jackeline.jns@gmail.com>. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.
br/1192495965028348>.
[138]
“QUESTÃO SOCIAL” NO BRASIL: RACISMO ESTRUTURAL E SUPEREXPLORAÇÃO DO TRABALHO 139
clase / pobre, al fin y al cabo, los sujetos objetivo de este odio son aquel-
los cuyo lugar social está muy bien definido. En general, estos sujetos
constituyen la mayor parte de la población que experimenta expresiones
del “cuestión social” en Brasil, como el desempleo, la pobreza, el traba-
jo precario, la violencia urbana, etc., y son mayoritariamente negros y /
o mestizos. El método de análisis utilizado en el artículo es el materia-
lismo histórico-dialéctico, con una metodología basada en la revisión de
la literatura y el análisis de documentos.
Palabras llave: “cuestión social”; racismo; sobreexplotación.
INTRODUÇÃO
4 Este texto, portanto, tem um caráter ensaístico e inicial, resultante dos estudos de uma disci-
plina de graduação (e dos limites temporais e de depuração dos conteúdos que isso envolve), por meio do
qual se pretende uma aproximação com o debate, mas que, certamente, comporta limites.
5 No início de 2022, foi aprovada uma alteração curricular na Escola de Serviço Social da
UFRJ, objetivando incorporar o debate étnico-racial no currículo pleno da graduação em Serviço Social
como disciplina obrigatória, reafirmando o compromisso ético-político com uma formação profissional
ancorada na perspectiva antirracista. Assim, a disciplina “A Questão Social no Brasil” foi reformulada
para “Relações Étnico-Raciais e Serviço Social no Brasil”. Além do nome, as ementas e as indicações
bibliográficas também foram atualizadas. Nessa mesma alteração curricular, mais três disciplinas foram
modificadas: 1) “Trabalho e Questão Social”, que foi alterada para “Trabalho e Questão Social no Brasil”;
2) “Identidades Culturais e Serviço Social”, que passou a ser denominada: “Sociedade, Cultura e Iden-
tidades”; e 3) “Política Social e Serviço Social III-B (Saúde)”, cujo nome não foi alterado, mas contou
apenas com modificação na ementa.
6 Marini (1973) explica a dependência “como uma relação de subordinação entre nações for-
malmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modifica-
das ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. A consequência da dependência
não pode ser, portanto, nada mais do que maior dependência, e sua superação supõe necessariamente a
supressão das relações de produção nela envolvida” (MARINI, 2017, p. 141).
“QUESTÃO SOCIAL” NO BRASIL: RACISMO ESTRUTURAL E SUPEREXPLORAÇÃO DO TRABALHO 141
8 Essa conceituação remete a uma apreensão crítica da “questão social” e baliza o seu enten-
dimento no âmbito das diretrizes curriculares para os cursos de Serviço Social. As diretrizes curriculares
da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) efetivamente apontaram a
“questão social” como o elemento que dá concretude à profissão, ou seja, que é a base da fundação histó-
rico-social na realidade, e que, nessa qualidade, portanto, deve constituir o eixo ordenador do currículo,
diga-se, da formação profissional. Assim, a “questão social” adquire um novo estatuto no projeto de for-
mação profissional engendrado pelo serviço social brasileiro da década de 1990 (BEHRING; SANTOS,
2009). Entretanto, é preciso observar que essa admissão do termo no meio profissional não é consensual.
O debate em torno da “questão social” envolve uma variedade significativa de polêmicas e compreende o
seu entendimento como matéria do Serviço Social, bem como sua precisão teórica – uma vez que o termo
é utilizado em diversas matrizes, inclusive nas mais conservadoras –, não sendo consensual, sequer, entre
a categoria profissional dos assistentes sociais. É importante chamar a atenção para essas divergências
e deixar explícito que a sua utilização em matrizes teórico-políticas conservadoras requer sempre a sua
problematização.
“QUESTÃO SOCIAL” NO BRASIL: RACISMO ESTRUTURAL E SUPEREXPLORAÇÃO DO TRABALHO 143
9 É importante indicar que, partindo da formação social brasileira em sua concretude, também a
questão do heteropatriarcado compõe uma unidade dialética com os quesitos de classe e raça para a análise
da “questão social”. Nos limites aqui propostos, vamos nos deter sobre os dois núcleos indicados. Para
um exame mais detalhado do tema, é importante consultar: COSTA, Renata Gomes da; RAFAEL, Josiley
Carrijo. Questão social e sua particularidade no Brasil: imbricação entre patriarcado-racismo-capitalismo.
In: Revista Temporalis, Brasília (DF), ano 21, nº 42, p. 77-93, jul./dez. 2021; FERREIRA, Carla Cecília
Campos; FAGUNDES, Gustavo Gonçalves. Dialética da questão social e a unidade classe, gênero e raça.
In: Revista Temporalis, Brasília (DF), ano 21, nº 42, p. 62-76, jul./dez. 2021; PASSOS, Rachel Gouveia.
Mulheres negras, sofrimento e cuidado colonial. Revista em Pauta, v. 18, p. 116-129, 2020.
144 SER Social 52| jan.-jun. 2023
A SUPEREXPLORAÇÃO DO TRABALHO E O
LEGADO DA ESCRAVIDÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
12 Entende-se por aporofobia o ódio de classe e todos os mecanismos jurídicos, políticos, cultu-
rais e sociais que reafirmam a condição de exploração e dominação da burguesia sobre o proletariado.
13 Para Mbembe (2018), a categorização racial serve para objetificar aquele que não é tido
enquanto padrão (branco, europeu), entendendo-o enquanto “dessemelhante” e, portanto, legitimando o
tratamento desigual. Disponível em: <https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/achile-mbembe-o-
-devir-negro-do-mundo/>. Acesso em: 25 fev. 2021.
14 Exemplo da materialização do ódio de classe. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.
br/opiniao/ultimamente-tem-um-monte-de-pobre-no-avia%CC%83o-sinto-o-cheiro-de-longe/>. Acesso
em: 27 fev. 2021.
“QUESTÃO SOCIAL” NO BRASIL: RACISMO ESTRUTURAL E SUPEREXPLORAÇÃO DO TRABALHO 155
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio Luiz de; SANTOS, Júlio César Silva. Crise, racismo
e neoliberalismo. In: Trabalho, questão social e Serviço Social: A
autofagia do capital. SOUZA, E. A.; SILVA, M. L. de O. (Orgs.). São
Paulo: Cortez, 2019.
ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte:
Letramento, 2018.
ANDRADE, R. S. P. A Subordinação de Raça no Processo de Formação
da Classe Trabalhadora Brasileira. In: Revista Fim do Mundo, nº 4,
jan/abr 2021.
CASTELO, R.; RIBEIRO, V.; ROCAMORA, G. Capitalismo dependente
e as origens da “questão social” no Rio de Janeiro. In: Revista Serviço
Social e Sociedade, nº 137, p. 15-34, jan./abr. 2020.
CERQUEIRA FILHO, G. A “Questão Social” no Brasil: Crítica do
discurso político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
156 SER Social 52| jan.-jun. 2023
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
[158]
“QUESTÃO SOCIAL” E PAUPERISMO NO BRASIL EM TEMPOS DE COVID-19 159
4 A pesquisa que resultou neste artigo foi realizada a partir da perspectiva do método crítico-
dialético e teve como procedimentos metodológicos as pesquisas bibliográfica e documental, pela
utilização de textos clássicos e contemporâneos, bem como de documentos sob a forma de relatórios e
legislações pertinentes à temática estudada. Para reproduzir as principais contribuições desse material
acerca do tema perscrutado, utilizou-se a técnica de leitura e fichamento dos textos referenciados (ver
lista) selecionados a partir dos termos “questão social”, pauperismo e Covid-19. Outrossim, utilizamos
como dados de realidade aqueles de fontes secundárias, disponíveis em meio eletrônico.
160 SER Social 52| jan.-jun. 2023
INTRODUÇÃO
Não é de hoje que a humanidade vem tolerando diversas con-
tradições e problemas relacionados ao modo de produção do capital
e ao seu impulso à expansão e ao movimento de acumulação. Pode-
mos brevemente aqui mencionar que a relação com o capital gera o
crescimento inimaginável da riqueza material; porém, isso provoca a
pobreza generalizada daqueles que produzem a riqueza. Além disso, os
imperativos do referido sistema geram crises econômicas continuadas.
De igual modo, seu processo de produção consome recursos naturais e
humanos como nenhum outro modo de produção anterior e, com isso,
destrói as condições de reprodução não apenas do próprio sistema do
capital, mas também da própria humanidade.
Observamos que é necessário compreender os fundamentos que
sustentam uma totalidade social com tantos contrassensos. Concordamos
que uma análise profunda do capital e de seu sistema socioeconômico,
numa perspectiva histórico-crítica, pode revelar as determinações causais
e as reais bases materiais do conjunto de problemas sociais, políticos,
econômicos e culturais, que é denominado de “questão social”.
Evidencia-se que as expressões da “questão social” se agravaram
no contexto pandêmico da Covid-195. Principalmente porque as novas
5 A Covid-19 é a doença causada pelo novo Coronavírus, que contaminou e levou a óbito
milhões de pessoas em todo o mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, a
pandemia se tornou incontrolável, transformando-o num dos países com mais casos e mortes, onde passou
a ser considerada uma ameaça sanitária nacional no segundo bimestre de 2021, pois, enquanto a Covid-19
regredia em vários países, aqui a média móvel de óbitos chegou a ultrapassar mais de 4 mil casos por dia.
“QUESTÃO SOCIAL” E PAUPERISMO NO BRASIL EM TEMPOS DE COVID-19 161
uma vez que tem uma escala de tempo extensa, contínua e permanente;
e IV) além disso ela é diferente de uma crise que se instala rapidamente,
podendo gerar quebra de bolsas, como foi a crise de 1929, pois se desen-
volve de forma rastejante e, aos poucos, atinge as esferas produtivas e as
economias dos países, não demonstrando sinais de recuperação.
A produção capitalista chegou a um patamar em que existe um
excesso de produção que tem dificuldade de valorização. Assim, o siste-
ma do capital entrou num processo de maior dificuldade de expansão e
acumulação contínua de riquezas, com maiores dificuldades de deslocar
suas contradições. A crise estrutural atual do capital é também determi-
nada pela abundância da produção de mercadorias que se desvalorizam,
o que provoca a diminuição da margem de expansão e acumulação
do capital. Abundância não apenas de mercadorias produzidas, mas
também de capital que tem dificuldade de investimento e valorização,
principalmente na esfera financeira, com a especulação pelo capital
fictício e pelo sistema da dívida pública.
Sobre a tendência do capital ao enfrentamento de suas crises para o
impulso necessário ao seu imperativo autorreprodutivo, Mészáros (2011)
alude a respeito do mecanismo do próprio sistema do capital de deslocar
suas contradições em momentos necessários para dar continuidade à
sua autorreprodução ampliada. Tal conceito de “deslocamento” adquire
significado diante dos limites últimos do capital como sistema global.
O deslocamento acontece de forma a “postergar” (e não acabar com) os
problemas, utilizando “válvulas de escape” disponíveis e provocando
a extensão das fronteiras historicamente dadas do capital, todavia não
eliminando seus limites estruturais objetivos. Porém, se o mecanismo de
deslocamento de contradições funciona de forma a ajudar o capital a supe-
rar as crises periódicas, o mesmo não acontece diante da crise estrutural.
Então, enquanto a crise for parcial, relativa e interiormente
manejável pelo sistema – ou seja, não estrutural –, é possível o deslo-
camento das contradições do capital por meio de mudanças no interior
do próprio sistema. Na crise estrutural, a existência do complexo glo-
bal envolvido é ameaçada, exigindo sua transcendência e substituição
por um complexo alternativo. Porém, a crise estrutural não pode ser
resolvida em termos de simples expansão da produção de riqueza, pois
será necessária uma reorientação radical da produção, para não mais se
subordinar à reprodução do capital. Uma produção de riqueza voltada
para a necessidade e o uso.
“QUESTÃO SOCIAL” E PAUPERISMO NO BRASIL EM TEMPOS DE COVID-19 167
3. O pauperismo na pandemia
7 Em julho de 2020, o governo brasileiro instituiu um programa emergencial, por meio da Lei
nº 14.020, instituído com os objetivos de preservação do emprego e da renda e de garantia da continuidade
das atividades laborais e empresariais, para a redução dos impactos decorrentes das consequências do
estado de calamidade pública, decretado em razão da crise sanitária causada pelos adoecimentos por
Covid-19. Mais informações estão disponíveis em: <https://www.caixa.gov.br/beneficios-trabalhador/
beneficio-emergencial/Paginas/default.aspx>.
8 Fonte: Word Inequality Database, 2020.
170 SER Social 52| jan.-jun. 2023
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
1 Graduação em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Especialista em Residência Integrada Multiprofissional em Saúde Coletiva pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Política Social e Serviço Social na UFRGS. Doutoran-
da em Serviço Social pela PUCRS. Grêmio Foot Ball Porto-Alegrense/Instituto Geração Tricolor (IGT).
E-mail: <juanitapucrs@gmail.com>. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/1322361584050628>.
2 Graduação em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Especialista em Atenção Básica em Saúde Coletiva pelo Programa de Residência da Escola de
Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP/RS). Mestre e Doutora em Serviço Social pela PUCRS. Pro-
fessora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: <thaisacloss@hotmail.
com>. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/5031174509881639>.
[177]
178 SER Social 52| jan.-jun. 2023
INTRODUÇÃO
5 Para fins deste debate, compreendemos, a partir de Henri Lefebvre, que o direito à cidade
“supera a dimensão individual, reduzida ao poder monetário de compra, uma vez que a mesma está am-
plamente vinculada à luta anticapitalista, numa perspectiva de urbano que implica a resposta ampliada às
necessidades sociais, permitindo, assim, a realização da sociedade urbana” (OLIVEIRA, 2021, p. 142).
6 Sob as contribuições de Henri Lefebvre (1973; 1991), compreendemos que o cotidiano é con-
formado por espaços de reprodução e é “também lugar de uma vasta contestação não localizável, difusa,
que cria o seu centro às vezes num sítio e logo noutro” (LEFEBVRE, 1973, p. 97), apresentando-se como
“um campo e uma renovação simultânea, uma etapa e um trampolim, um momento composto de momen-
tos (necessidades, trabalho, diversão – produtos e obras – passividade e criatividade – meios e finalidades
etc.), interação dialética, da qual seria impossível não partir para realizar o possível (a totalidade dos
possíveis)” (LEFEBVRE, 1991, p. 19-20).
182 SER Social 52| jan.-jun. 2023
família junto com eles [MTST]. Para mim, o movimento eu agarrei como
num abraço. Agarrei como uma família toda junta” (MORADORA 4,
OPSM, 2021). Ou seja, os achados de pesquisa mostram que os vínculos
mediados por processos de luta, protagonismo e participação são per-
meados por valores pautados na solidariedade de classe, pela construção
de uma sociabilidade coletiva, pois as necessidades vividas extrapolam
a dimensão individual e tornam-se questões que devem ser discutidas
em processos grupais, contribuindo para a construção das alternativas
de enfrentamento das refrações da “questão social” na ocupação.
Nesta perspectiva, os modos de vida dizem respeito às particula-
ridades presentes nas relações sociais estabelecidas entre os sujeitos na
vida cotidiana e na sociabilidade engendrada pelo capitalismo. Ainda
que permeadas por antagonismos de classe, desigualdades e resistências
sociais, tais particularidades revelam, em si, a solidariedade entre os/as
trabalhadores/as na construção de estratégias coletivas de enfrentamento
das expressões da “questão social”. Portanto, as contradições presentes
na produção do urbano apresentam diferentes nuances nas práticas so-
ciais a partir da realidade social em que vivem os sujeitos, de maneira
que é necessário que sejam considerados: (I) os significados atribuídos
à realidade em suas dimensões subjetivas e culturais, no âmbito das re-
lações familiares, comunitárias e com os serviços das políticas públicas;
(II) o pertencimento ao território vivido (a OPSM e as comunidades
vizinhas); (III) as trajetórias, as experiências e as perspectivas de vida;
e (IV) as formas de convivência na ocupação.
A partir da pesquisa, podemos inferir que as ocupações urbanas
são repletas de contradições, que carregam em si a linha tênue entre o
direito social das coletividades na luta pelo direito à cidade e a “digni-
dade” dos sujeitos, posto que a condição de sem-teto e de residente de
uma ocupação é vista como a última opção de moradia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
Adriana Ramos1
https://orcid.org/0000-0001-7861-0106
Janaina Albuquerque de Camargo2
https://orcid.org/0000-0001-7534-5909
[200]
SERVIÇO SOCIAL E PANDEMIA 201
1. Notas introdutórias
4. Apontamentos finais
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, N. L. T. de. Retomando a temática da “sistematização da
prática” em Serviço Social. In: MOTA, A. E. Serviço Social e Saúde:
Formação e trabalho profissional. São Paulo: Cortez, 2006. Disponível
em: <http://fnepas.org.br/pdf/servico_social_saude/texto3-2.pdf>.
Acesso em: 4 nov. 2020.
ANTUNES, R. L. C. O privilégio da servidão: o novo proletariado de
serviços da era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
BOSCHETTI, I. Assistência social e trabalho no capitalismo. São
Paulo: Cortez, 2016.
BRASIL. Decreto no 10.282, de 20 de março de 2020. Regulamenta a
Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos
e as atividades essenciais. Brasília, DF: Presidência da República,
2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2020/decreto/D10282.htm>. Acesso em: 2 dez. 2020
BRASIL. Ministério da Cidadania. Auxílio emergencial. Brasília, DF:
Ministério da Cidadania, 2020. Disponível em: <https://www.gov.br/
cidadania/pt-br/servicos/auxilio-emergencial>. Acesso em: 2 nov. 2020.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Secretaria Nacional de Assistência Social. Norma Operacional Básica
de Recursos Humanos do SUAS: NOB-RH/SUAS. Brasília, DF:
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2007.
Disponível em: <https://www.crpsp.org/uploads/impresso/454/
lwJCJAc9FsgdR0FQcylWfd6ajTLylgP3.pdf>. Acesso em: 3 dez. 2020.
SERVIÇO SOCIAL E PANDEMIA 217
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
[220]
A CONTRARREFORMA DA PREVIDÊNCIA E O RETROCESSO 221
INTRODUÇÃO
Os direitos que hoje as mulheres possuem foram adquiridos em
meio a grandes protestos e lutas históricas. Entre essas conquistas estão
os direitos previdenciários e, na contramão desses ganhos, ocorreram
processos de contrarreformas da política de previdência social no Brasil
desde a década de 1990 até os dias atuais. De Fernando Henrique Cardoso,
passando pelos governos petistas (Lula-Dilma), pela proposta do ilegíti-
mo Temer e por aquela aprovada pelo ultraconservador Bolsonaro, tais
medidas foram formas de ataques e de negação de direitos, com severos
impactos nas vidas das mulheres.
Trata-se de um cenário que será apresentado nos argumentos deste
artigo e, para isso, serão levantadas algumas considerações acerca de como
as contrarreformas previdenciárias – particularmente a implementada
pelo atual governo de direita – prejudicam e penalizam cada vez mais as
mulheres. Os argumentos apresentados são frutos de reflexões, leituras
e debates sobre a política previdenciária e têm como principal fonte as
pesquisas bibliográficas e documentais. Apresentam-se sob a luz de uma
perspectiva histórico-crítica advinda da análise marxiana. O método re-
lacionado aos estudos de Marx, segundo Netto (2009), pauta-se a partir
do real, do concreto, buscando sua problematização e o conhecimento de
seus nexos diversos, por meio de abstrações, além de uma aproximação
com o real, com o intuito de desvelá-lo.
Para tanto, dividiu-se o artigo em três partes: o primeiro tópico trata
da política de previdência social na perspectiva de gênero, evidenciando
A CONTRARREFORMA DA PREVIDÊNCIA E O RETROCESSO 223
5 “Não fugiu à percepção dos cientistas políticos que escreveram sobre o assunto o aspecto de
‘dominação’ para os fins da expansão capitalista que a legislação trabalhista reveste, quando os amplos
setores das massas urbanas passam a desempenhar um papel-chave na estruturação política que permitiu
a industrialização. Sem embargo, frequentemente essa percepção correta leva no bojo a premissa de que a
‘doação’ getulista das leis do trabalho dava, em troca do apoio das massas populares, alguma participação
crescente nos ganhos de produtividade do sistema, o que não encontra apoio nos fatos. O que se discute
neste ponto é o caráter ‘redistributivista’, do ponto de vista exatamente dos referidos ganhos; sob outros
aspectos, principalmente políticos, pode-se falar em ‘redistributivismo’ dos regimes populistas, mas em
termos econômicos tal postulação é inteiramente insustentável” (OLIVEIRA, 2003, p. 36).
224 SER Social 52| jan.-jun. 2023
7 “Sabemos que por muito tempo as mulheres estiveram confinadas no espaço doméstico, sendo
negadas de exercer sua cidadania e participar das decisões políticas, fazendo com que a opressão e a subal-
ternidade ficassem escondidas na cumplicidade familiar, na qual o amor e o cuidado à família seriam uma
predestinação da condição feminina. A naturalização dos papéis historicamente construídos como femininos
é sinônimo da violência mais sutil do patriarcado e do capitalismo para esconder a exploração do trabalho
doméstico não remunerado e tão importante para a acumulação do capital” (SOUSA et al., 2020, p. 98).
226 SER Social 52| jan.-jun. 2023
12 O falso déficit previdenciário é um discurso que mostra uma justificativa para a necessidade
de contrarreformar a previdência para os interesses da iniciativa privada. Sempre é usado para afirmar,
erroneamente, que a capacidade de arrecadação é inferior à de pagamento, o que reforça o argumento
governamental para aumentar os critérios de seletividade no acesso à política previdenciária, desde FHC
a Bolsonaro (FREITAS, 2019).
230 SER Social 52| jan.-jun. 2023
CONSIDERAÇÕES FINAIS
13 O termo ultraneoliberalismo tem sido apreendido para ratificar a coesão entre neoliberalis-
mo, neofascismo e hiperautoritarismo na contemporaneidade. Representa o acirramento e a expansão do
neoliberalismo no contexto da crise do capital, articulando-se e dando fôlego a movimentos e ideologias
neofascistas. Expressa-se por meio da exacerbação da “questão social”, denotada pelo desemprego estru-
tural, por ataques à democracia e por manifestações diversas de violência como elementos constitutivos
de sua agenda política e econômica. Por isso, o ultraneoliberalismo e o neofascismo trazem à tona, ex-
primem, produzem e reproduzem a pregação de ódios, a promoção de uma cultura de violência, fobias
e perseguições diversas, em sintonia com um movimento de intensificação da exploração da força de
trabalho, de destruição de direitos, de ataques à ciência e de ampliação de desigualdades severas (fome,
mortes e pobreza) etc., sustentados pelo militarismo e pelo fundamentalismo religioso. Nas palavras de
Cislaghi (2021, on-line), isso representa, além de uma ressignificação, “um aprofundamento dos pressu-
postos neoliberais, passando ao que chamamos de ultraneoliberalismo [...]. O neoliberalismo, então, não
só sobrevive, mas se radicaliza, descartando cada vez mais os pressupostos da democracia liberal e dos
direitos sociais, ainda que mínimos”.
A CONTRARREFORMA DA PREVIDÊNCIA E O RETROCESSO 237
REFERÊNCIAS
SER Social
CRISE AMBIENTAL E LUTAS SOCIAIS
Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
1 Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (2003).
Professora do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: <si-
monessamp@gmail.com>.
2 Doutor em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (2019). Pro-
fessor do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: <robson.de.olivei-
ra@ufpr.br>. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/4740853063552868>.
[241]
242 SER Social 52| jan.-jun. 2023
INTRODUÇÃO
vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia
geral de poder” (FOUCAULT, 2008a, p. 3).
É a partir do século XIX que as características fundamentais
e constituintes dos povos que compunham os territórios colonizados
requisitaram dos invasores europeus a elaboração de demarcadores
no interior da população por meio da origem, do fenótipo ou da etnia.
Almeida (2019) denomina esse movimento histórico, típicos dos países
colonizados, como um processo de racialização, o que teria fornecido
às classes dirigentes uma espécie de hierarquização das raças. Dentre
suas funções à “razão de Estado”, o racismo permitiu estabelecer ce-
suras do tipo biológico e subdividir a população, fragmentá-la em sua
constituição, sempre apoiada, para isso, no biopoder. Outra função do
racismo foi permitir uma relação positiva com a morte do outro, da raça
inferior, da ameaça biológica, para assim assegurar a sobrevivência dos
melhores exemplares da espécie, para o fortalecimento e a purificação
de uma “raça superior”. Dessa maneira, constitui-se o que Foucault
(1999) denominou como racismo de Estado no interior das relações do
biopoder. Tal forma de racismo é o que permitirá a um tipo de poder,
apoiado no primado do “fazer viver e deixar morrer”, fomentar e expor
de inúmeras formas a morte de determinado segmento, ou seja, “a raça,
o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade
de normalização apoiada no biopoder” (FOUCAULT, 1999, p. 306).
É a partir do século XIX que o racismo científico, enquanto um
dos componentes centrais à “razão de Estado” moderna, constituído
no longo processo de estatização do biológico, irá explicar e justificar
a colonização de territórios e a dominação de povos autóctones pela
Europa (STEPAN, 2005).
Para o desenvolvimento dessa racionalidade, o evolucionismo foi
um componente central, já que, por meio de suas gradações, da hierar-
quia das espécies, da luta pela sobrevivência e da eliminação dos menos
aptos, ofertou estratégias de poder herdadas das práticas colonialistas
com um gabarito de inteligibilidade com premissas biologizantes que
justificavam a superioridade do caucasiano europeu sobre os demais
(SCHWARCZ, 1993).
Da produção de justificativas ao genocídio, à punição da cri-
minalidade, à explicação da loucura e às diferenças entre as classes
sociais, toda a compreensão da vida – ao adentrar no campo político
246 SER Social 52| jan.-jun. 2023
o que era considerado, até então, como mera superioridade divina dele-
gada ao europeu. Naquele momento histórico, a eugenia ratificou como
uma premissa discursivamente científica um conjunto de preconceitos
e, ao mesmo tempo, identificava no inimigo interno os perigos de
uma raça já debilitada no interior da nação e que enfraquecia o Estado
(STEPAN, 2005).
O racismo científico, cujos substratos teóricos e políticos en-
contraram, na eugenia, meios para a sua legitimação e disseminação,
compõe discursos que servem à dominação econômica, política, social e
cultural. Teorias com um princípio hierárquico que define os mais fortes,
os mais aptos e os superiores, classificando determinada “raça” como
fraca, inapta e inferior, cujos traços marcantes eram vistos na “origem”,
tendo a “preguiça” e a “indisciplina” como motivos para o seu atraso.
Trata-se de um discurso científico que, ao sustentar o preconceito ra-
cial, termina por assegurar e justificar a desigualdade social reinante.
Tomado como superior, o “branco” serviu como solução empregada,
isto é, a política do embranquecimento foi utilizada como mecanismo
de correção da degeneração representada pelos afrodescendentes, pelos
povos autóctones e asiáticos e, especificamente, no interior da própria
Europa, de modo que dentre os efeitos do discurso da superioridade
ariana está o advento do holocausto durante a Segunda Guerra Mundial.
6 Sobre a austeridade fiscal e seu impacto sobre a sociedade, principalmente a partir da ascen-
são do modelo neoliberal de governo, sugere-se a leitura de Blyth (2020).
258 SER Social 52| jan.-jun. 2023
CONSIDERAÇÕES FINAIS
7 É importante lembrar que são numerosos os casos de trabalhos análogos à escravidão no Bra-
sil, em que são utilizados artifícios para ocasionar o alto endividamento do trabalhador para aprisioná-lo,
como um meio para que ele pague uma suposta dívida.
RACISMO DE ESTADO E EUGENIA SOB A ÉGIDE NEOLIBERAL 261
REFERÊNCIAS
DOI: 10.26512/ser_social.v25i52.45742
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Brasília (DF), v. 26, nº 52, janeiro a junho de 2023
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HEAT, GREED AND HUMAN NEED 265
REFERÊNCIA
GOUGH, Ian. Heat, greed and human need: Climate change, capitalism
and sustainable wellbeing. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2017.
Teses e dissertações / Tesis and dissertation
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Luísa M. R. Baumgarten
work. Looking at caring work, through the principles of the sexual and
racial division of work, made it possible to verify the unfair socialization
of this task in domestic spaces, as well as the absence of public power. As
a methodological procedure, 15 (fifteen) semi-structured interviews were
conducted with women mothers who care for children with disabilities
at the Specialized Center for Child Rehabilitation, type II, at Hospital
de Apoio de Brasília. Collected data were analyzed by thematic analysis
technique content with definition of themes and subthemes. The results
showed that the work of caring for children with disabilities, unpaid and
not socialized, carried out exclusively by women, causes economic and
social repercussions, like abandonment of educational projects, work
overload, social isolation, and physical and psychological illness to the
caregivers. In this way, the women interviewed demanded the State’s ac-
tion and demanded the implementation of public policies that incorporate
the gender perspective and co-responsibility of caring work. Finally, this
research hopes to draw attention to the unequal dynamics of caring work
in the lives of women mothers.
struggle, of social movements from reclaimed nature paving the road that
will lead to a new society without antagonic classes and without exploration.
It was found in the process of research for this dissertation some topics
that support the loosening of consciousness for the working class before
capitalism, affecting their ideals, as well as devaluing the subjectivity in
favor of objectivity, the distancing of our ontology and the dissolution of our
understanding as generic beings, ontologic and communitarian, the harmful
effects caused on the accounts of the capitalist advance and neoliberaliza-
tion, the weakening of the working class and their representative spaces
and the surge of the advance of post-modernity, tied to the neoliberalism.
All of these questions interconnected corroborate to the permanence of the
objective of this work, therefore distancing our society to live in a different
condition, without exploration and with egalitarian values, proposed by
the hypothesis of this research.
Este trabalho tem como tema central como está ocorrendo a fi-
nanceirização da política de saúde no Distrito Federal (DF), por meio do
planejamento e do orçamento, tendo como temporalidade os governos
Arruda-DEM (2007-2010), Agnelo-PT (2011-2014), Rollemberg-PSB
(2015-2018) e Ibaneis-MDB (2019-2022). A financeirização do capital
apresentou uma predominância no processo de acumulação capitalista
e nas relações de poder no século XXI, implicando em todos os campos
da vida social e coletiva. A forte incidência do setor financeiro, refletiu
nas decisões do Estado, no que lhe concerne, abriu espaço no campo das
políticas sociais, fazendo com que os direitos sociais alcançados na Cons-
tituição Federal de 1988, fossem sendo rompidos. Essas desestruturações,
especialmente por meio do uso do fundo público, na redução e/ou limitação
dos recursos orçamentários, criaram um campo frutífero para a atuação
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