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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

MARIA VISCONTI SALES

“Uma constelação de culpas”:

Arquétipos narrativos dos nazistas no


Julgamento de Nuremberg (1945-1946)

Belo Horizonte
2023
MARIA VISCONTI SALES

“Uma constelação de culpas”:

Arquétipos narrativos dos nazistas no


Julgamento de Nuremberg (1945-1946)

Tese de doutorado apresentada ao


Programa de Pós-graduação em
História da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais como
requisito para a obtenção de título de
Doutora em História.

Área de concentração: História e


Culturas Políticas.

Orientadora: Prof.a Dr.a Heloísa


Maria Murgel Starling

Belo Horizonte
2023
AGRADECIMENTOS

Porque mesmo quando não há nenhuma estrela à vista


Vocês sempre serão minha única luz guia
(MUMFORD & SONS. Guiding Light. 2018)

Acredito que qualquer tese escrita em sua totalidade durante o período da


pandemia de COVID-19 no Brasil necessita de um longo parêntese sobre os desafios e
dificuldades enfrentados nesse período. Preciso, portanto, em primeiro lugar, agradecer
(ao universo?) por ter passado por essa pandemia com saúde e sem perder nenhum
familiar ou ente querido. Esse privilégio não passou de pura sorte, uma vez que viver ou
morrer em 2020 e 2021 não era meramente questão de seguir os protocolos sanitários. É
válido reforçar, no entanto, que viver no Brasil de Jair Bolsonaro em meio à pandemia e,
ainda, viver sendo pesquisadora nesse governo, sem dúvida, teve um impacto profundo
na minha saúde mental e nas minhas perspectivas de futuro. Por isso, esses
agradecimentos são ainda mais especiais e importantes de serem ditos. Afinal, sem a
minha rede de apoio, eu não teria chegado até aqui. Cruzar essa linha de chegada foi uma
das coisas mais difíceis que eu tive que fazer – e só cruzei porque tive muita ajuda.

Em primeiro lugar, preciso agradecer aos meus pais por acreditarem em mim e
por me deixarem seguir com as minhas escolhas. Agradeço, também, por entenderem
quando me arrependi dessas escolhas e por me apoiarem nos novos caminhos que fui
traçando para mim. Minha base é sólida e forte e fui criada para ser dona de mim no
mundo. Hoje vejo o quanto isso é importante e como foi fundamental para que eu
sobrevivesse à tudo que a vida me jogou. Obrigada a vocês por ser quem eu sou.

Agradeço todos os dias ao Tiago, por ser mais que um companheiro, mais que
um melhor amigo, mais que minha pessoa favorita no mundo. Na dissertação de mestrado
eu disse e repito: você é minha casa. Você me ama como sou, e nesse processo, me ajudou
a me amar também. Obrigada por ser tão cuidadoso comigo e por estar do meu lado em
todos os momentos. Não é fácil segurar a mão de uma pessoa diariamente durante o
mestrado e menos ainda durante o doutorado. Mas você faz tudo parecer fácil. Obrigada
por me mostrar que “não parece, mas tem fim”. Obrigada por ver “sob a superfície” e por
me mostrar “quem eu sou se eu não posso carregar tudo” – e que esse eu “se dobra e
dobra”, mas às vezes quebra sim. Obrigada por juntar os pedaços quando eu não consegui.
Sou forte porque tenho você.

Bárbara Deoti e Anna Viana são nomes tão presentes na minha vida desde 2019
que nem consigo imaginar uma Maria sem elas. Obrigada por sonharem comigo e por me
mostrarem que sonhar junto é muito melhor. Obrigada por transformarem o NEPAT no
projeto da minha vida e por serem muito mais do que colegas de trabalho. Obrigada por
estarem do meu lado e por acreditarem tanto em mim (e na gente). Ainda quero realizar
muitos sonhos com vocês e ainda quero olhar para trás várias vezes e dizer: lembra
quando começamos? Lembra tudo que superamos? Somos nós por nós sempre. Obrigada
por serem as irmãs que não tive.

Ao Átila, “meu intérprete neste mundo”, obrigada por ser para mim o que você
não é para ninguém. Obrigada por, para mim, ser sempre só compreensão. Obrigada por
me mostrar que sonhos envelhecem e por, mais do que saber quem eu sou, ter consciência
de quem eu não sou. Amo você! À Isabela Dornelas, obrigada por ser essa força com a
qual me identifico tanto. Obrigada por me mostrar que temos que ter orgulho de ser quem
somos – e, principalmente, que precisamos reconhecer tudo que lutamos, superamos e
sobrevivemos. Nós fomos, “como ervas”, e não nos arrancaram, amiga. Obrigada!

Agradeço ao Gabriel Bueno por ser sempre uma injeção de realidade e de ânimo
em todos esses anos. Sua amizade é um presente! Clara Lima, com quem me sinto tão
confortável e por quem eu tenho um carinho maior do que o mundo: obrigada pela nossa
amizade. Agradeço sempre à Raquel Marçal, que mesmo longe nunca vai deixar de ter
um espaço enorme no meu coração. Ana Clara Ferraz, obrigada por ser quem você é, por
ser minha maior apoiadora e por estar comigo. Eu te amo muito! À Carol Vitter, amiga
que define a palavra “companheirismo” no meu dicionário. Você se tornou tão importante
nos últimos anos e eu só posso agradecer ao universo pela nossa aproximação. Obrigada
também ao Bruno Vinicius pela parceria na disciplina “Fracassos e produtos da
Modernidade” e por toda a ajuda que sempre me ofereceu ao longo dos anos.

Aos alunos da minha disciplina “A vida sob a suástica”: eu prometi um


agradecimento especial, e, quatro anos depois, a importância de vocês não diminuiu. Essa
foi a primeira disciplina de 60 horas que ministrei sozinha e não foi nada fácil pensar em
uma matéria que cobrisse todos os anos do regime nazista. As aulas eram de aprendizado
tanto para vocês quanto para mim. Nossas discussões e reflexões estão presentes em
diversos momentos desta tese e ela seria muito menos rica sem a contribuição de vocês.
Aos meus alunos da PUC e do IEC-PUC, obrigada por me apresentarem novas
perspectivas e por sempre me receberem de braços abertos.

À minha orientadora, Heloisa Starling: minha admiração por você só cresce


depois de uma década juntas. Obrigada por sempre acreditar em mim, principalmente nas
incontáveis vezes em que eu não acreditei. Obrigada pela paciência e por me dar a mão
nessa longa caminhada. Agora um ciclo finalmente se encerra, mas, tenho certeza de que
seguiremos juntas, de uma forma ou de outra. Ao meu outro orientador não-oficial,
Newton Bignotto, tenho tanto a agradecer que é até difícil começar. Obrigada por colocar
meus pés no chão e me limitar (com carinho) quando minhas ambições passavam da conta
do que eu iria conseguir fazer. Obrigada por aguentar minhas teimosias e, mais ainda, por
aguentar quando eu voltava com o rabo entre as pernas dizendo que você estava certo!
Obrigada por estar comigo desde o mestrado e por me ajudar em tantas outras coisas além
da pesquisa. Obrigada por tudo o que você me disse na minha banca de defesa,
principalmente por “defender a tese de que essa tese é muito boa”. Saber que você gostou
desse trabalho significa muito para mim. Você é um grande exemplo de mentor e
profissional e me espelho muito na forma como você leva a carreira – e a vida.

Tenho muito a agradecer ao Bruno Leal, ao Adriano Correia e ao Elcio


Cornelsen por terem aceitado participar da minha banca de defesa e por terem me
auxiliado tanto com os comentários gentis e sugestões. A contribuição de vocês
enriqueceu demais essa pesquisa. Elcio, obrigada pelo carinho que você sempre tem
comigo e por fazer uma análise tão atenta do texto. Os trechos que você selecionou da
escrita para elogiar e destacar me fizeram me lembrar da potência que tenho como
pesquisadora. Obrigada por esse afago na minha autoestima intelectual.

Agradeço imensamente ao Vinicius Liebel por ter me auxiliado tanto, sobretudo


no processo de elaboração do projeto de doutorado. Como era de se esperar, esta tese
virou outra coisa totalmente diferente do que eu propus na seleção lá em 2017, mas, se
não fosse você, provavelmente nem projeto teria. Serei eternamente grata pelas nossas
conversas e por todos os conselhos que me deu. Agradeço ao Luiz Arnaut e ao Marcelo
Jasmin pelas leituras atentas durante a qualificação e por me instigarem a pensar fora da
caixa, mas, sem deixar de ser historiadora. Obrigada ao Carlos Reiss, ao Carlos Gallo e
ao Odilon Caldeira por terem se tornado não só parceiros de trabalho, como também,
colegas queridos.
Agradeço à CAPES por me conceder bolsa durante o doutorado e fornecer o
auxílio financeiro necessário para o desenvolvimento desta pesquisa, sobretudo com a
extensão de seis meses da bolsa em virtude da pandemia. Obrigada também à Sarah
Cushman e ao Holocaust Educational Foundational da Northwestern University por
tantas oportunidades profissionais que me foram oferecidas nos últimos anos e que me
fizeram sonhar mais alto. Ao Emmanuel Kahan, Erin McGlothlin e Yael Simán, agradeço
imensamente pelo acolhimento e por todas as trocas que tivemos em Ottawa.

Um agradecimento especial à minha psicóloga Gabriela Paschoalini, que esteve


comigo desde o comecinho do mestrado, em 2015. Você assistiu essa caminhada desde o
princípio e viu a transformação da estudante que, com a sua ajuda, começou a se enxergar
como profissional com valor. Muito obrigada por me ajudar a me conhecer, a me
entender, e, sobretudo, a me perdoar em todas as minhas contradições. Por fim, mas não
menos importante, meu muito obrigada ao meu professor de história do ensino médio,
Jonas Ribeiro, que despertou em mim o interesse pelo passado e incentivou a minha
escolha quando ninguém na escola incentivava. Fico muito feliz de hoje ser sua colega
de profissão.

Não é brincadeira quando dizem que a academia é uma máquina de moer gente.
Finalizar esse ciclo foi extremamente difícil. Não fossem os “outros que escolhemos viver
junto”, como diria Hannah Arendt, essa seria uma trajetória que poderia ser carregada
apenas de rancor. Eu tenho muita sorte pelos que escolhi para mim e que me deram força
mesmo quando não havia nenhuma estrela à vista. Repito o que disse nos agradecimentos
da dissertação: sigamos juntos para o que virá no futuro, com a certeza de que o
companheirismo e a amizade tornam tudo mais leve.
RESUMO

O Julgamento de Nuremberg, ocorrido entre os anos de 1945 e 1946, representa


um grande marco no processo de desnazificação da Europa após a Segunda Guerra
Mundial. Com um tribunal composto pelos países Aliados e vencedores da guerra como
juízes e acusadores, esse julgamento inaugural levou vinte e um nazistas ao banco dos
réus. Considerados os grandes representantes do Terceiro Reich, esses homens utilizaram
o tribunal como um palco para oferecer uma última consideração sobre o regime nazista
e sobre suas atuações nesse período sombrio da história alemã. O objetivo desta tese é
identificar e interpretar, a partir da análise das narrativas de dezenove nazistas durante os
procedimentos, as diferentes maneiras que os réus falaram sobre si mesmos no
Julgamento de Nuremberg, transformando esses discursos em arquétipos. As fontes
utilizadas para essa análise são as transcrições do Julgamento de Nuremberg e as
entrevistas que os nazistas deram para o psiquiatra Leon Goldensohn e para o psicólogo
Gustave Gilbert durante o período do tribunal. A seleção das narrativas foi feita
considerando apenas os réus que deram depoimento durante o julgamento. O ponto de
partida da pesquisa foi compreender que, ainda que todos os nazistas estivessem lutando
contra a pena de morte, é possível reconhecer padrões e estratégias narrativas que se
repetem ao longo deste julgamento e vêm de diferentes homens com diferentes cargos
governamentais e que enfrentaram diferentes acusações – por consequência, também
tiveram diferentes sentenças. Alguns nazistas seguiram defendendo a ideologia nacional-
socialista até o fim. Outros, negaram qualquer envolvimento ou conhecimento sobre os
crimes do regime e se apresentaram como indivíduos desimportantes dentro da estrutura
do Terceiro Reich. Foi possível identificar também nazistas que afirmaram terem se
arrependido profundamente de suas ações; homens que disseram terem sido grandes
resistentes, a despeito de seus cargos no regime; militares que se ampararam na
justificativa da necessidade de obediência a ordens; e diplomatas que defenderam um
conservadorismo não extremista. Por meio da identificação de padrões discursivos e sua
transformação em tipologias, é possível aplicar os arquétipos desenvolvidos nesta tese ao
analisar outros tribunais de desnazificação. O principal argumento deste trabalho é, nesse
sentido e sobretudo, uma proposta de criação de uma ferramenta metodológica de análise.
PALAVRAS-CHAVE: Julgamento de Nuremberg; Nazismo; Desnazificação;
Arquétipos; Holocausto.
ABSTRACT

The Nuremberg Trials, which took place between 1945 and 1946, represent a
significant milestone in the denazification process in Europe after World War II. With a
tribunal composed of the Allied countries and war winners as judges and prosecutors, this
debut trial brought twenty-one Nazis to the dock. Considered the most outstanding
representatives of the Third Reich, these men used the courtroom as a stage to offer a
final consideration of the Nazi regime and their role in this dark period of German history.
The thesis aims to identify and interpret, based on the analysis of the narratives of
nineteen Nazis during the proceedings, the different ways that the defendants spoke about
themselves at the Nuremberg Trials, transforming these speeches into archetypes. The
sources used for this analysis are the transcripts of the Nuremberg Trials and the
interviews that the Nazis gave to the psychiatrist Leon Goldensohn and the psychologist
Gustave Gilbert during the trial period. The narratives were selected considering only the
defendants who testified during the trial. The starting point of the research was to
understand that, although all Nazis were fighting against the death penalty, it is possible
to recognize patterns and narrative strategies that are repeated throughout this trial and
come from different men with different government positions and who faced different
accusations – consequently, they also had different sentences. Some Nazis continued to
defend the National Socialist ideology until the end. Others denied involvement or
knowledge of the regime’s crimes and presented themselves as unimportant individuals
within the structure of the Third Reich. It was also possible to identify Nazis who claimed
to have deeply regretted their actions; men who said they were great resisters, despite
their positions in the regime; military personnel who justified themselves by the need to
obey orders; and diplomats who advocated for a non-extremist conservatism. By
identifying discursive patterns and transforming them into typologies, it is possible to
apply the archetypes developed in this thesis in subsequent analyzes of other
denazification courts. The main argument of this work is, in this sense and above all, a
proposal for creating a methodological analysis tool.
KEY-WORDS: Nuremberg Trial; Nazism; Denazification; Archetypes; Holocaust
A eliminação dos antinazistas convictos
não demonstra que os outros sejam nazistas convictos,
e a eliminação dos nazistas ‘famosos’
não significa que os outros odiassem o nazismo. [...]
O exemplo alemão mostra que o auxílio externo
não é capaz de despertar as forças internas de auto recuperação,
e que o domínio totalitário é algo mais do que uma simples tirania piorada.
O totalitarismo mata as raízes.
(ARENDT, 2008a, p. 282–293)
Sumário

PRÓLOGO: Democracia para sempre ........................................................................ 16

INTRODUÇÃO: O fracasso e o produto da civilização .............................................. 22


PARTE I: Amplius est cognoscendum
O julgamento da História .................................................................................... 23
Adicionando um capítulo final ao nazismo ......................................................... 25
O valor da superfície ........................................................................................... 32
Casos não trabalhados ......................................................................................... 37
As fontes ............................................................................................................. 39
Uma comunidade doente .................................................................................... 43
Homens comuns ................................................................................................. 47
Substrato cultural comum ................................................................................... 50
Nicht schuldig ..................................................................................................... 52
PARTE II: Peripeteia
Desnazificação? .................................................................................................. 56
Nuremberg e o Holocausto ................................................................................. 61
A construção do sonho ariano ............................................................................. 64
O legado de Nuremberg ...................................................................................... 70

CAPÍTULO UM: Defensores fiéis ............................................................................... 76


Hermann Göring ............................................................................................................ 78
Excessos ............................................................................................................. 82
Número Dois ....................................................................................................... 88
Frente unida ........................................................................................................ 97
Selvageria ........................................................................................................... 98
Caixão de mármore ........................................................................................... 102
Julius Streicher ............................................................................................................. 107
Atividade iluminadora ...................................................................................... 110
Revolução ......................................................................................................... 115
Luta de vida ou morte ........................................................................................ 119
Alfred Rosenberg .......................................................................................................... 121
Ausrottung ........................................................................................................ 125
Volk ohne Grenzen ............................................................................................ 128
Ministro ou ideólogo? ....................................................................................... 131
Arthur Seyss-Inquart .................................................................................................... 134
A união política e cultural dos povos germânicos ............................................. 136
Inimigos estrangeiros ........................................................................................ 139
Trivial ............................................................................................................... 142
CAPÍTULO DOIS: Diplomatas da velha guarda ...................................................... 146
Franz von Papen ........................................................................................................... 148
O golpe final à República .................................................................................. 149
Uma nação de segunda categoria ...................................................................... 153
Um alemão patriota ........................................................................................... 156
Uma raposa encurralada .................................................................................... 159
Konstantin von Neurath ................................................................................................ 162
Restauração da soberania .................................................................................. 163
A política prática ............................................................................................... 168
Um freio ............................................................................................................ 171

CAPÍTULO TRÊS: Negacionistas relapsos .............................................................. 174


Ernst Kaltenbrunner ..................................................................................................... 176
Extremamente diferente de Heydrich ................................................................ 178
Defendendo a veracidade .................................................................................. 184
Nem Heydrich nem Himmler ............................................................................ 189
Fritz Sauckel ................................................................................................................. 192
Um navio em uma tempestade .......................................................................... 194
Emoções impróprias ......................................................................................... 196
A Solução Final para o Problema Trabalhista ................................................... 200
Walther Funk ................................................................................................................ 202
Colapso espiritual ............................................................................................. 204
Envolvido até o pescoço ................................................................................... 208
O significado histórico desses tempos terríveis ................................................. 211

CAPÍTULO QUATRO: No-man X Yes-man ............................................................ 214


Hjalmar Schacht ........................................................................................................... 216
Canais ordenados .............................................................................................. 219
Rompimento ..................................................................................................... 223
Um modelo de virtude ....................................................................................... 227
O super-nazista na multidão .............................................................................. 232
Joachim von Ribbentrop ............................................................................................... 235
Uma chance ...................................................................................................... 239
A Solução Conciliatória da Questão Judaica ..................................................... 243
Servilismo ......................................................................................................... 247
Sombras vivas ................................................................................................... 248

CAPÍTULO CINCO: Ex-nazistas arrependidos ....................................................... 251


Hans Frank ................................................................................................................... 254
Grilhões intoleráveis ......................................................................................... 256
Paixões terríveis ................................................................................................ 259
O outro Frank .................................................................................................... 263
Libertação ......................................................................................................... 270
Albert Speer .................................................................................................................. 273
O terrível perigo do sistema autoritário ............................................................. 275
Terra arrasada ................................................................................................... 277
Responsabilidade comum ................................................................................. 280
Linha anti-Hitler ............................................................................................... 282
Reabilitação ...................................................................................................... 285
Baldur von Schirach ..................................................................................................... 289
Guerreiros ideológicos ...................................................................................... 291
Lenha na fogueira ............................................................................................. 295
Uma ditadura manda ......................................................................................... 300
Cabeça erguida ................................................................................................. 301
Hans Fritzsche .............................................................................................................. 304
Anacronismo .................................................................................................... 306
A responsabilidade moral do jornalista ............................................................. 312
Uma constelação de culpas ............................................................................... 317
Exoneração ....................................................................................................... 323

CAPÍTULO SEIS: Militares apartidários ................................................................. 326


Wilhelm Keitel .............................................................................................................. 328
Alfred Jodl .................................................................................................................... 331
Erich Raeder ................................................................................................................. 334
Karl Dönitz ................................................................................................................... 336
Guerra eterna é uma lei da vida ..................................................................................... 339
Guerra Total ................................................................................................................. 340
Inimigo biológico ......................................................................................................... 342
O maior comandante militar de todos os tempos ........................................................... 346
A lealdade como produto .............................................................................................. 347
Soldados políticos ......................................................................................................... 352
As terras selvagens do Oriente ...................................................................................... 355
A ética da profissão militar ........................................................................................... 358
Colapso ......................................................................................................................... 363

CONCLUSÃO: És o que fizeste ................................................................................. 368


Um canhão para matar um pardal .................................................................................. 369
Com a palavra: os nazistas ............................................................................................ 372
Defensores fiéis
Hermann Göring ................................................................................... 373
Julius Streicher ..................................................................................... 374
Alfred Rosenberg .................................................................................. 375
Arthur Seyss-Inquart ............................................................................. 376
Diplomatas da velha guarda
Franz von Papen ................................................................................... 377
Konstantin von Neurath ........................................................................ 378
Negacionistas relapsos
Ernst Kaltenbrunner ............................................................................. 379
Fritz Sauckel ......................................................................................... 380
Walther Funk ........................................................................................ 381
No-man x Yes-man
Hjalmar Schacht ................................................................................... 382
Joachim von Ribbentrop ....................................................................... 383
Ex-nazistas arrependidos
Hans Frank ........................................................................................... 385
Albert Speer .......................................................................................... 386
Baldur von Schirach .............................................................................. 388
Hans Fritzsche ...................................................................................... 389
Militares apartidários
Wilhelm Keitel ....................................................................................... 390
Alfred Jodl ............................................................................................. 391
Erich Raeder ......................................................................................... 392
Karl Dönitz ........................................................................................... 392
Último ato ..................................................................................................................... 393
“Nuremberg” e Nuremberg .......................................................................................... 398
Os olhos, ouvidos e mãos do Führer .............................................................................. 400
Um processo de aparências ........................................................................................... 403

REFERÊNCIAS
Referências bibliográficas ............................................................................................ 408
Relação de fontes .......................................................................................................... 415

ANEXOS
Anexo I: Nazistas julgados em Nuremberg e sentenças................................................. 429
Anexo II: Lista parcial de membros do tribunal, advogados de defesa e acusação........ 431
16

Prólogo
Democracia para sempre

Por que devemos olhar para o passado para nos prepararmos para o futuro?
Porque não há outro lugar para onde olhar.
James Burke
17

Faço questão de trazer à memória de todos neste momento talvez o julgamento


mais conhecido de todos os tempos, o tribunal de Nuremberg, é um dos
julgamentos mais famosos da história. Foi ali que o mundo procurou encontrar
respostas para um crime até hoje inconcebível, o genocídio de 6 milhões de
judeus nos campos de concentração nazistas. Nuremberg, Sr. Presidente,
reuniu e puniu inúmeros próceres nazistas e há muitos questionamentos, até
hoje, que são feitos sobre o próprio julgamento. Por exemplo, se não foi um
julgamento dos vencedores apenas; se a pena de morte dada como sentença
não deveria ter sido a pena de prisão pelos crimes cometidos. São balizadores
importantes. […] Eu quero lembrar um dos mais importantes personagens
entre os réus de Nuremberg, Hermann Göring, durante algum tempo número
dois de Hitler. […] Quando testemunhou a seu favor, Göring expressou a sua
lealdade para com Hitler e insistiu que não sabia nada sobre o que tinha
acontecido. […] As suas respostas eram complexas e evasivas e tinham
desculpas plausíveis para todas as ações durante a guerra. Utilizou o banco de
testemunhas como local para expor de forma prolongada o seu próprio papel
no Reich numa tentativa de se mostrar como um pacificador e diplomata antes
do começo da guerra. Senhoras e senhores senadores, não podemos comparar
uma barbárie como o Holocausto com uma tragédia como a pandemia no
Brasil, que até hoje já matou mais de 450 mil pessoas. Não podemos dizer que
aqui, e por isso não há um pré-julgamento, que aqui ocorreu um genocídio, não
podemos dizer ainda, mas podemos dizer sim que há uma semelhança
assustadora, uma semelhança terrível, uma semelhança tenebrosa, uma
semelhança perturbadora no comportamento de algumas altas autoridades que
testemunharam aqui na CPI e o relato que acabei de ler sobre um dos marechais
do nazismo no Tribunal de Nuremberg. Negando tudo, enaltecendo Hitler,
apresentando-se como salvadores da pátria enquanto a história provou que
faziam parte de uma máquina da morte.

Assim se iniciou, em 25 de maio de 2021, o discurso1 de Renan Calheiros


(MDB-AL), relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da COVID-19 no
Brasil.2 O preâmbulo sobre Nuremberg, que causou controvérsias durante os
procedimentos, ocorreu antes de se iniciar a investigação e questionamento da então
secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra
Pinheiro, também conhecida como Capitã Cloroquina. Como o apelido indica, Pinheiro
ficou famosa por ter recomendado, contra todas as regulamentações internacionais, o
falso tratamento precoce para o novo Corona Vírus com o medicamento utilizado no

1
O discurso pode ser assistido na íntegra no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=TvoPmj3QHv4.
O jornal O Globo também elaborou uma reportagem sobre o caso:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/05/25/cpi-da-covid-tem-discussao-apos-renan-citar-
julgamento-de-nuremberg.ghtml (Acesso em 29/01/2023)
2
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) é uma investigação conduzida pelo Poder Legislativo. No
caso do Brasil, a Câmara Federal e o Senado podem integrar essa comissão temporária que vai ouvir
depoimentos e testemunhas e tomar informações sobre um determinado assunto de interesse público. Ao
final da CPI, é apresentado um relatório final que pode propor, por exemplo, um projeto de lei ou pode
encaminhar para o Ministério Público informações advindas da investigação da CPI, para que ele, então,
tome as providências visando responsabilizar possíveis infratores. Ou seja, a CPI não pune ninguém, ela
apenas investiga. A única possibilidade que existe, e, nesse caso, não é exclusividade da CPI, é o decreto
de uma prisão em flagrante desde que haja uma justificativa plausível para tal. Esse tema foi elaborado com
mais profundidade no episódio “#28: Do Julgamento de Nuremberg à CPI da COVID” do podcast
Desnazificando produzido pelo Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT). O
episódio está disponível em: https://anchor.fm/desnazificando/episodes/28---Do-Julgamento-de-
Nuremberg--CPI-da-COVID-e12hf8l (Acesso em 29/01/2023)
18

tratamento da malária, a cloroquina. Após ser interrompido por diversas vezes por outros
parlamentares indignados, Calheiros concluiu sua fala. Essa, entretanto, não foi a primeira
referência ao nazismo, e, principalmente, ao julgamento dos nazistas, durante a CPI da
COVID. Poucos dias antes, em 20 de maio, o senador Alexandre Vieira (Cidadania/RS)
comparou o ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello ao burocrata e funcionário da SS
Adolf Eichmann:

Ele não possuía histórico ou traços preconceituosos, não apresentava


características de um caráter distorcido ou doentio. Ele agiu segundo o que
acreditava ser seu dever, cumprindo ordens superiores e movido por desejo de
ascender em sua carreira profissional, na mais perfeita lógica burocrática.
Cumpria ordens sem questioná-las com o maior zelo e eficiência, sem refletir
sobre o bem ou mal pudessem causar […] Faço essa referência porque, muito
claramente, nos contatos que tivemos Vossa Excelência [Pazuello] não se
portou com desrespeito à vida. Pelo contrário, quando telefonei pedindo
respiradores para o estado de Sergipe, o senhor conseguiu dar um atendimento
super célere. Salvou vidas naquele estado. Mas, no conjunto da obra, no
exercício de uma política de saúde, infelizmente o senhor falhou. E tenho
absoluta convicção que não falhou por decisão sua. Não consigo entender que
diabo de dever, de lealdade Vossa Excelência imagina ter que faz com que
acoberte o verdadeiro autor das ordens que o senhor seguiu, isso é lamentável.

Ao ser questionado com veemência se não seria excessiva a comparação entre


a atuação de Pazuello e a atuação de Eichmann na Solução Final da Questão Judaica,
Vieira respondeu categórico que a comparação procedia para nos lembrar que “a
burocracia não pode ser totalmente insensível à realidade. Não é possível que a gente
utilize o serviço burocrático para exercício de poder sem mensurar as consequências
concretas”. No caso específico do Brasil, o senador lembrou, não é – e nem deve ser –
adotada a teoria da obediência cega. Sendo assim, “no Brasil cada funcionário tem sua
responsabilidade e medidas adotadas pelo governo ou omissões, geraram mortes. É
simples assim”.3

As referências e comparações não pararam por aí. O nazismo foi mencionado


mais uma vez na CPI durante o caso da Prevent Senior,4 em 28 de setembro de 2021,
quando a empresa de seguros foi denunciada por condutas antiéticas e anticientíficas.
Nessa situação, pareceu quase inevitável a comparação entre a transformação do
município de Manaus, no estado do Amazonas, em um laboratório de experimentos para

3
O vídeo com a fala do senador sobre o caso de Eichmann pode ser assistido na íntegra na reportagem do
Jornal O Globo: https://g1.globo.com/politica/video/video-senador-alessandro-vieira-cita-julgamento-do-
nazista-eichmann-durante-a-cpi-da-covid-9532431.ghtml. O jornal Correio Braziliense também elaborou
uma matéria sobre o caso: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/05/4925813-quem-foi-
adolf-eichmann-oficial-da-ss-citado-na-cpi-da-covid.html (Acesso em 29/01/2023)
4
Sobre o caso, ver a reportagem da Folha: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/10/prevent-
senior-repete-praticas-nazistas-e-serve-de-alerta-para-o-pais.shtml (Aceso em 29/01/2023)
19

o suposto tratamento precoce de COVID-19 com os experimentos nazistas nos campos


de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.5

O caso da Prevent Senior também retoma Nuremberg por outros aspectos.


Afinal, foi após o julgamento dos médicos, um dos doze julgamentos realizados pelo
governo estadunidense e conhecidos como Julgamentos Subsequentes de Nuremberg, que
se viu a urgente necessidade de regulamentação de experimentos científicos em seres
humanos. O Código de Nuremberg, criado em 1947, serviu como base para a Declaração
de Helsinque em 1964. Nesses documentos foi determinada a exigência do consentimento
totalmente esclarecido e consciente do indivíduo para a participação em qualquer
experimento. Sendo assim, nenhum ser humano pode ser submetido a um experimento
contra a sua vontade ou sem ter conhecimento de todas as informações relevantes.6 É
necessário, sobretudo, informar precisamente todos os riscos e possíveis consequências
dos procedimentos. A ciência não pode estar acima da vida humana – e isso faz parte do
legado de Nuremberg.

Uma tese brasileira sobre o Julgamento de Nuremberg, naturalmente, não


poderia deixar de levar em consideração todas essas questões latentes vindas de uma das
maiores atrocidades cometidas em território nacional durante a pandemia de COVID-19.
A CPI da COVID não tinha o objetivo de ser um julgamento e, de toda forma, felizmente
ou infelizmente, não chegou nem perto dos juízos (e das sentenças) proferidos por um
tribunal. No entanto, a história brasileira recente nos lembra que não julgar nossos algozes
causa cicatrizes profundas e que o autoritarismo baseado em impunidade carrega em seu
subterrâneo potencialidades de (re)ascensão.

O que nos resta, como brasileiros sobreviventes de um golpe com o


impeachment de uma presidenta eleita, de uma crise profunda das instituições
democráticas, de uma eleição de um presidente com tendências fascistas e saudosista da
ditadura militar, de uma pandemia mundial agravada pelo anticientificismo e
negacionismo do governo? O que resta, depois de assistir a quase 700 mil mortes que
poderiam ser evitadas? O que sobra após a completa destruição da máquina pública, de

6
Agradeço a minha colega Isabela Dornelas por ter conversado comigo sobre essa questão no episódio do
podcast Desnazificando, produzido pelo Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT)
intitulado “#38: Ciência e medicina: de Mengele à Capitã Cloroquina”. O episódio está disponível em:
https://anchor.fm/desnazificando/episodes/38---Cincia-e-medicina-de-Mengele--Capit-Cloroquina-com-
Isabela-Dornelas-e146bkm (Acesso em 29/01/2023)
20

desvios de verba em níveis assustadores, de apoio presidencial a manifestações


neonazistas e antidemocráticas? O que subsiste após ataques terroristas e a destruição do
que representa nossa tão frágil democracia? Nos resta lutar para que também tenhamos,
à nossa maneira, um Julgamento de Nuremberg. E que este se faça presente sentenciando
os considerados culpados pelos tempos sombrios que nos encontramos.

Afinal, um julgamento pode nos dizer apenas disso: da culpa criminal. Da


responsabilidade moral, não há como julgar ou cobrar – ao menos, não a nível jurídico.
Como lembra Italo Calvino, tenhamos sempre em nosso horizonte que “o inferno dos
vivos não é algo que será: se existe um, é o que já está aqui, o inferno em que vivemos
todos os dias, que formamos estando juntos”. Podemos aceitar o inferno e nos tornar parte
dele, assim, ignorando-o. Ou podemos nos manter vigilantes e “procurar e saber
reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não são inferno, e fazê-los durar, dar-lhes
espaço” (BAUMAN, 2007, p. 114). Que não normalizemos essas mortes e que Jair
Bolsonaro não seja visto como o único culpado pelo inferno em que vivemos. Afinal, se
Nuremberg nos ensina algo, também é isso: o genocídio não se faz com apenas um
homem. Bolsonaro pode perecer, mas os Pazuellos seguirão. Cabe a nós não permitir.

Termino o doutorado, ao menos, com uma nota mais positiva do que quando
comecei. Afinal, o início desse doutorado também foi o início do governo de Jair
Bolsonaro. E, o fim desse doutorado também foi o fim do governo de Jair Bolsonaro.
2023 é o ano da retomada dos nossos compromissos democráticos e da nossa
reaproximação com os princípios republicanos que nos guiaram, ainda que com suas
limitações, por tantos anos. Como disse o presidente Luís Inácio Lula da Silva em seu
discurso de posse, “sob os ventos da redemocratização, dizíamos: ditadura nunca mais!
Hoje, depois do terrível desafio que superamos, devemos dizer: democracia para
sempre!”. Por hora, vencemos as sombras do fascismo e do autoritarismo. E tenhamos
em mente que essa é uma luta que não se finda com o resultado das eleições ou com o
reestabelecimento da ordem. Como veremos nesta tese, o esfacelamento da República de
Weimar demonstra como a democracia carrega o germe de sua destruição e como o
fascismo permanece sempre à espreita, em busca dessas brechas e fissuras na estrutura.
Contando com homens e mulheres conservadores à sua disposição para acabar com as
salvaguardas institucionais em troca de um pulso firme autoritário que promete a
resolução de problemas simbólicos, o fascismo e o autoritarismo parecem um perigo
constante. Eles são, juntamente com as mobilizações da extrema-direita, também, o que
21

permaneceu do século XX – e parte de nossa terrível herança. Não por acaso, Umberto
Eco denomina um de seus textos mais famosos como o “fascismo eterno” (ECO, 2018).
Afinal, esse “fascismo em potencial”, sobretudo na atualidade, parece nunca acabar.

Entretanto, como reforça Zygmunt Bauman, sempre nos resta uma escolha. E,
por isso, ser historiadora no Brasil pós-Bolsonaro é uma escolha que se fortalece pela
necessidade de (re)ocuparmos esse lugar na cena pública. Afinal, escrever historiografia
é uma forma de intervir no presente, como tão bem pontuou Pierre Rosanvallon
(ROSANVALLON, 2010). Esse passado traumático, que faz parte de nós, não pode nos
enclausurar. Como lembra Tzvetan Todorov, “em vez de permanecer prisioneiros do
passado, devemos colocá-lo a serviço do presente, como a memória – e o esquecimento
– será colocada a serviço da justiça” (TODOROV, 1995, p. 284). Concluo com a reflexão
de Bauman, que reitera como “a história não deve ser deixada só nas mãos dos políticos,
sejam eles democráticos ou autoritários”. A história, por não ser propriedade de “uma
doutrina política ou de um regime ao qual ela sirva”, deve ser compreendida como “o
projeto simbólico de nossa existência mais as escolhas morais que fazemos todos os dias.
Tal como a privacidade humana, nosso direito de estudar e questionar de forma crítica a
história é o alicerce da liberdade” (BAUMAN; DONSKIS, 2014, p. 40).

Que sigamos lutando e agindo mediante essa liberdade, pautada sempre em


nosso direito de estudar, conhecer, criticar e questionar nossa história – sobretudo, nossa
história recente. E, seguindo os passos de Hannah Arendt, que, mesmo em meio à
catástrofe e à destruição de nosso país, consigamos (re)encontrar esse amor mundi, esse
amor que é, por si só, um imperativo para a ação (ARENDT, 2010a). Que não deixemos
de querer que o Brasil persista.
22

Introdução
O fracasso e o produto da civilização

O nazismo não resume o Ocidente e ele não é nem mesmo o seu fim necessário.
Mas tampouco é possível simplesmente descartá-lo como aberração,
ou como uma aberração simplesmente passada.
A segurança confortável quanto às certezas da moral e da democracia
não apenas não garante nada,
como também expõe o risco de não se perceber vir, ou voltar,
aquilo cuja possibilidade não dependeu de um simples acidente histórico.
Uma análise do nazismo não deve nunca ser concebida
como um simples dossiê de acusação,
mas, antes, como uma peça
dentro da desconstrução geral da história da qual viemos.
(LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002, p. 64)
23

PARTE I

Amplius est cognoscendum7

O julgamento da História

Temos ouvido ao longo dos últimos anos, sobretudo no Brasil, muitos clamores
pelo julgamento da História. Frases como “a História irá julgar essas ações”, “espere que
a História te julgará” e “a História não deixará isso passar” são ditas com recorrência,
demonstrando que em nossos horizontes há a crença de que a justiça será feita no futuro.
Essa História, com H maiúsculo,8 aparece como uma entidade que permanece à distância,
esperando o presente se tornar passado para efetivar algum julgamento sobre essas ações,
agora pretéritas. Joan Scott, em On the Judgment of History, nos lembra que queremos
acreditar que determinados passados estão, de fato, no passado (SCOTT, 2020).
Entretanto, a despeito do que gostaríamos, o século XX não é um livro fechado. Pelo
contrário, essa história está longe de se encerrar, e os reflexos dos horrores desse século
seguem nos assombrando na atualidade. O Julgamento de Nuremberg, como o marco do
processo de desnazificação, está, de certa forma, no centro desse período complexo da
história contemporânea: ele representa a esperança de que a justiça seria feita e de que o
nazismo deixaria de ser “um fardo dos nossos tempos” (ARENDT, 1989) para se
transformar em apenas uma lembrança fatídica, um pesadelo que, apesar de angustiante,
é logo esquecido poucas horas depois de nos levantarmos da cama. Esse julgamento,
ocorrido há quase 80 anos atrás, ainda está em disputa e segue sendo reivindicado por
grupos com premissas ideológicas diferentes, em países que nada tiveram a ver com o
projeto de desnazificação, como é o caso do Brasil.

7
Fórmula analisada por Giorgio Agamben em seu livro Pilatos e Jesus sobre o processo judicial da lei
romana. A partir da figura de Pôncio Pilatos, o autor busca compreender “por que o cruzamento entre dois
mundos, o humano e o divino, o histórico e o que não tem história, tem a forma de um processo, de uma
krisis, isto é, de um juízo processual?” (AGAMBEN, 2014, p. 9). De acordo com Agamben, Pilatos não
encontra em Jesus nenhuma culpa, e, de acordo com a lei romana, deveria absolvê-lo ou suspender o
processo para angariar mais provas. Para isso, utiliza-se das fórmulas em latim: “Absolvo: eu o absolvo”;
“Videtur non fecisse: parece não ter feito nada”; “Non liquet: não é evidente”; e, por fim, “Amplius est
cognoscendum: deve-se conhecer mais profundamente”. Para além da ideia de krisis como um juízo
processual, “deve-se conhecer mais profundamente” me parece uma boa analogia para essa seção mais
conceitual da introdução.
8
Não tenho a pretensão de abordar o longo debate sobre as palavras História, história e estória. Deixo claro
apenas que, nesta tese, quando uso o termo História, estou me referindo à historiografia, ao aspecto mais
tradicional e ao estabelecimento da percepção pública dos acontecimentos do passado. Para uma análise
instigante acerca desses conceitos, ver (WHITE, 2006)
24

Esta tese é uma tentativa de entender melhor esses traços do passado em nós –
e, escrever uma das histórias possíveis sobre esse passado. O objetivo de Nuremberg era
julgar o Terceiro Reich e oferecer uma bússola moral para nos guiar no futuro. Afinal, a
partir dali, criou-se a definição de crime contra a humanidade, estabeleceu-se a
criminalização e definição do genocídio, reestruturou-se a Declaração dos Direitos
Humanos. A partir dali, dizia-se, o mundo tinha um acordo tácito sobre o que estava certo
e o que estava errado. Para que nunca mais esqueçamos, diziam; para que nunca mais
aconteça. Passadas décadas desde 1945, hoje podemos nos questionar se a História – ou,
ao menos, essa História – teve, de fato, um poder de redenção, para usar as palavras de
Scott. Não pretendo, com esta tese, dar respostas definitivas à essas questões. Pelo
contrário, a proposta é de continuar fazendo esses questionamentos e seguir olhando para
esse passado “que ainda não passou”, como diz François Hartog (2013).

O objetivo da tese é compreender essa cena inaugural que foi o Julgamento de


Nuremberg. A partir da análise das narrativas dos 19 nazistas9 contidas nas centenas de
páginas de transcrições do tribunal foi possível traçar maneiras de se portar nesse
julgamento. A transformação dessas “maneiras” em categorias de análises, em
arquétipos,10 faz com que elas possam ser utilizadas em outros tribunais do processo de
desnazificação, que seguem ocorrendo até os dias atuais. O ponto de partida é o
questionamento: dentre todas as maneiras de se negar a responsabilidade, existe alguma
variação no discurso?11 Afinal, ainda que todos os nazistas estivessem lutando contra a

9
Ainda que 21 nazistas tenham sido julgados em Nuremberg (desconsiderando Martin Bormann, julgado
in absentia), a seleção das narrativas para esta tese foi feita considerando apenas os réus que deram
depoimento durante o julgamento. Sendo assim, os casos de Rudolf Hess e Wilhelm Frick não estão sendo
analisados. Na seção “Casos não trabalhados” dessa Introdução, explico melhor sobre essa questão e falo
brevemente sobre os casos desses homens em Nuremberg.
10
Há uma longa tradição de estudos de arquétipos, sobretudo nos campos da filosofia e da psicologia.
Destaca-se o trabalho de Carl Jung, que utiliza o arquétipo como um conjunto de experiências em um
continuum que se aplica também no inconsciente coletivo. Desse modo, há padrões de comportamento e
símbolos que reforçam tradições culturais e que tornam um determinado conjunto de características
facilmente identificáveis em um indivíduo. Esses mitos que se repetem universalmente fazem parte de um
imaginário social que Jung acreditava estar atrelado a temas comuns do inconsciente da sociedade ao longo
de séculos. Os arquétipos são associados a tipos psicológicos e são amplamente utilizados na psicanálise
moderna e em diversas produções culturais, como filmes, livros e séries. Entretanto, nessa tese, não busco
utilizar “arquétipo” como um conceito, e sim, como um substantivo, referenciando-o por outros sinônimos
ao longo do texto, como “categorias” e “tipologias”. Compreendo a historicidade do conceito de
“arquétipo” e acredito que, em certa medida, uma análise mais profunda do termo poderia até reforçar meu
argumento – mas essa empreitada transformaria esse texto, por fim, em outra tese. Agradeço ao professor
Bruno Leal por levantar esse ponto na minha banca de defesa.
11
Estou atenta à polissemia do termo “discurso”, que se aplica, neste caso, tanto ao tipo textual quanto à
questão de Análise do Discurso, da ordem dos estudos da linguagem. Essa tese, no entanto, não se propõe
a fazer uma Análise do Discurso propriamente dita – ainda que essa análise seja feita em determinados
25

pena de morte em Nuremberg, foi possível reconhecer padrões e estratégias narrativas


que se repetiram ao longo deste julgamento e vieram de diferentes homens com diferentes
cargos governamentais e que enfrentaram diferentes acusações – por conseguinte, que
também tiveram diferentes sentenças. A pesquisa busca compreender como os réus se
apresentaram por meio de seus discursos, e, consequentemente, quais foram as diferentes
formas utilizadas por eles para evadir da responsabilidade jurídica, sobretudo com relação
à culpa criminal pelo extermínio. Como a identificação de padrões discursivos e sua
transformação em tipologias é um artifício que pode ser utilizado em outros tribunais de
desnazificação, o argumento principal da tese é, sobretudo, uma proposta de ferramenta
metodológica.

Adicionando um capítulo final ao nazismo

“Autores dos maiores crimes contra a humanidade: despojados dos ouropéis e


da arrogância, comparecem, aterrorizados, perante a justiça mundial, os vinte lugar-
tenentes de Hitler. Recomeçado hoje o julgamento dos principais responsáveis pela
guerra”. Assim começou a edição número 5996 do Jornal O Globo12 no dia 21 de
novembro de 1945. O julgamento-espetáculo13 dos alegados maiores criminosos da
história da humanidade havia se iniciado no dia anterior no Palácio da Justiça de
Nuremberg, um dos poucos edifícios ainda de pé após os sucessivos bombardeios na
Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Frederick Oechsner, correspondente da
United Press, contou na edição supracitada do jornal que “para nós, eles eram como
personagens de um pesadelo que procurávamos em vão olvidar”. Esses homens, antes

momentos, sobretudo quando é perceptível nas falas dos réus a sobrevivência do discurso nazista. A escolha
das palavras por esses homens é intencional e será possível perceber como a linguagem nazista está presente
em suas narrativas, ainda que muitos se declarem como desassociados da ideologia nacional-socialista. O
discurso permanece, demonstrando como a ideologia nazista ainda estava, de fato, muito viva. Dessa forma,
utilizo os termos “discurso” e “narrativa” não em sua concepção conceitual, e sim, como termos que dizem
respeito a uma fala proferida em um dado contexto. Agradeço ao professor Elcio Cornelsen por todas as
suas contribuições com relação a esse aspecto da linguagem nazista na minha defesa da tese, principalmente
por reforçar a importância de compreender o dito e também o modo de dizer.
12
As edições dos jornais utilizadas estão no Anexo II da tese.
13
Nesse ponto, é válido abordar brevemente o conceito de show trial, que foi aplicado muitas vezes para
descrever julgamentos de nazistas. De maneira geral, entende-se por show trial um julgamento apenas para
as aparências, no qual o veredito já havia sido determinado antes do início dos procedimentos. Um show
trial também pode ser um tribunal formulado apenas por questões políticas e/ou de opinião pública e não
necessariamente em interesse da verdade. Há ainda uma terceira questão: um show trial muitas vezes é
televisionado ou transmitido por diversos veículos de mídia e, também por isso, costuma atrair demasiada
espetacularização em torno de suas atividades – como foi o caso do julgamento de Adolf Eichmann. Quando
falo de julgamento-espetáculo ao longo da tese, não faço referência necessariamente ao conceito de show
trial. Entretanto, como ficará claro no decorrer do texto, a perspectiva de um julgamento de aparências e o
aspecto teatral de Nuremberg perpassa toda essa pesquisa.
26

reconhecidos como grandes líderes, naquele momento, estavam “despojados de suas


medalhas e da autoridade”. Oechsner tem o mesmo sentimento que qualquer pesquisador
que se enverede pelas centenas de milhares de páginas do processo de Nuremberg: “nunca
imaginamos que esse drama terminaria com a tétrica cena que presenciamos neste Palácio
de Justiça de Nuremberg”.

Após a leitura da acusação formal (indictment), pelo princípio do tribunal, os


nazistas foram permitidos declarar sua culpa ou inocência. O jornal supracitado, na edição
Vespertina, coloca em destaque: “Todos, agora, são inocentes….”. Segue-se a chamada:
“um a um dos principais líderes nazistas submetidos a julgamento declara que nenhuma
culpa lhe cabe pelos horrores da guerra”. De fato, todos os nazistas julgados em
Nuremberg declararam-se inocentes. Alguns, como Joachim von Ribbentrop, Alfred
Rosenberg, Baldur von Schirach e Hans Fritzsche declararam não serem culpados “no
sentido da acusação formal (indictment)”. Outros, utilizaram esse breve momento de
evidência de suas personalidades para proferir um pequeno discurso. Esse é o caso de
Fritz Sauckel, que afirmou: “Declaro-me no sentido da acusação, perante Deus e o mundo
e particularmente perante o meu povo, inocente”. O militar Alfred Jodl também
aproveitou os holofotes para declarar: “Inocente. Pelo que fiz ou tive que fazer, tenho a
consciência pura diante de Deus, diante da história e do meu povo” (BS, 2, p. 98).14 O
primeiro homem a afirmar sua inocência, e, simultaneamente, o réu mais proeminente em
Nuremberg, Hermann Göring, chegou a ser interrompido pelo presidente do tribunal ao
iniciar sua fala declarando “antes de responder à questão do Tribunal se sou ou não
culpado…”. O tribunal reforçou que Göring deveria apenas “se declarar culpado ou
inocente” (BS, 2, p. 97), ao que ele, naturalmente, escolheu a inocência.

Seguiu-se então a abertura oficial do Julgamento de Nuremberg, com um


discurso proferido pelo promotor estadunidense Robert H. Jackson:

O privilégio de abrir o primeiro julgamento da história por crimes contra a paz


do mundo impõe uma grave responsabilidade. Os erros que procuramos
condenar e punir foram tão calculados, tão malignos e tão devastadores que a
civilização não pode tolerar que sejam ignorados, porque não pode sobreviver
à sua repetição. O fato de quatro grandes nações, cheias de vitórias e feridas
por injúrias, manterem a mão da vingança e voluntariamente submeterem seus

14
Para tornar o texto menos poluído, reduzi as referências das fontes principais. Dessa forma, BS se refere
às Blue Series, o número em seguida se refere ao volume citado, de 1 a 22, e, por fim, a página. As
referências completas se encontram na bibliografia ao final da tese. É válido pontuar, ainda, que, por
questões de acessibilidade e por limite de espaço, toda a bibliografia e as fontes citadas que estavam no
original em inglês foram traduzidas por mim para o português. Mantive os fragmentos em inglês entre
parênteses em casos em que algum termo possa causar dualidade de compreensão.
27

inimigos cativos ao julgamento da lei é um dos tributos mais significativos que


o Poder já prestou à Razão (BS, 2, pp. 98-99).

Poucos dias antes, em 5 de novembro de 1945, o correspondente Wickham


Steed, escreveu para o Jornal O Globo: “nos graves momentos que atravessa o mundo
nestes dias, o julgamento dos criminosos de guerra nazistas em Nuremberg se destaca
como um dos mais importantes acontecimentos da fase imediata ao após-guerra”. O
jornalista iniciou seu texto explicando como muitas pessoas acreditavam que esses
nazistas sequer deveriam ser réus. As provas contra eles eram tão abundantes que eles
poderiam ter sido apenas executados em corte marcial. No entanto, Steed ponderou, esse
argumento não tem força quando se pensa na necessidade “de se estabelecer, em
documento histórico de incontestável autenticidade e fidelidade os métodos e os objetivos
dos homens que procuraram fazer com que a Alemanha nazista conquistasse o mundo
pelo massacre e pelo morticínio de milhões de seres humanos”. Essa também era a visão
da acusação em Nuremberg. De acordo com o promotor estadunidense Jackson, “se esses
homens são os primeiros líderes de guerra de uma nação derrotada a serem processados
em nome da lei, eles também são os primeiros a ter a chance de defender suas vidas em
nome da lei”, um favor concedido a eles pelos Aliados e que “quando no poder, [esses
homens] raramente estenderam a seus compatriotas”. Os réus, “homens de consciência
pesada”, apesar de já serem condenados pela opinião pública, teriam, de acordo com
Jackson, presunção de inocência (BS, 2, p. 102). O “tributo” que o Poder prestou à Razão,
entretanto, não ocorreu sem suas problemáticas específicas, como veremos.

No banco dos réus 21 nazistas15 estavam sendo julgados. Um capítulo final


estava sendo adicionado ao nazismo, para usar a conceituação de Albert Speer. “Homens
quebrados”, nas palavras de Jackson, com condutas “anormais e desumanas”. Estes,
“como indivíduos”, tinham destinos que “tem pouca importância para o mundo”. A
relevância das figuras ali presentes estava no fato de que “esses prisioneiros representam
influências sinistras que espreitarão no mundo por muito tempo depois que seus corpos
retornarem ao pó”. Para a acusação, eles eram “símbolos vivos de ódios raciais, de
terrorismo e violência, e da arrogância e crueldade do poder” (BS, 2, p. 99).

A magnitude deste julgamento carecia, entretanto, do protagonista: Adolf


Hitler. Na edição de 21 de novembro de 1945 do Jornal O Globo, lê-se que a ausência de
Hitler “parece inexplicável”. Afinal, “pouco antes de os nazistas se apoderarem do poder,

15
No Anexo I da tese há uma lista com todos os nazistas julgados e suas respectivas sentenças.
28

escutamos Hitler jurar, durante o julgamento de Leipzig, que ‘as cabeças rolarão pela
arena quando chegarmos ao poder’”. O jornalista Frederick Oechsner concluiu sua análise
no periódico afirmando que “Hitler, que se presume tenha morrido entre as ruínas de seu
império, não estava aqui hoje para colher os frutos da semente que ele e seus cúmplices
semearam pela Europa”. O Führer, líder do movimento nazista, foi constantemente
referenciado em Nuremberg – de acordo com Kim Priemel, seu nome foi mencionado
cerca de 12 mil vezes durante o julgamento – e permaneceu sendo essa ausência, de fato,
muito presente nos procedimentos (PRIEMEL, 2016, p. 127).

Nuremberg foi a cena inaugural do processo de desnazificação na Europa e o


palco das primeiras discussões sobre o Holocausto16 e sobre a recém fundada noção de
crimes contra a humanidade. Esse palco contava com os grandes perdedores da Segunda
Guerra Mundial como atores principais. O cenário, construído em meio às ruínas –
simbólicas e estruturais – da Alemanha, priorizava a redemocratização do Ocidente após
a perigosa onda de regimes fascistas. De acordo com Kim Priemel, o julgamento era uma
história de traição: para os Aliados, a Alemanha havia traído os valores ocidentais e essa
era a única maneira possível de explicar o inexplicável e, assim, iniciar o primeiro passo
para um longo caminho de volta para a democracia:

No esforço conjunto de retribuição, reorientação e reconstrução, que foi


Nuremberg, os Aliados se propuseram a demonstrar a legitimidade dos
procedimentos judiciais e a apresentar uma visão política e ética superior ao
falecido regime nazista e a seus antecessores desacreditados na Alemanha
imperial e em Weimar. Para ambos os objetivos, o conceito do Ocidente era
adequado, pois afirmava a autoridade moral dos Aliados vitoriosos. [Esse
conceito] justificou o seu empreendimento de fazer justiça aos inimigos
vencidos, em vez de apenas se vingar, e exemplificou um ideal – ou, na
verdade, um conjunto de ideais – aos quais uma futura nação alemã deveria
aspirar. A própria noção de um julgamento justo baseava-se na ideia de que a
Alemanha não estava além da reforma, que os alemães podiam aprender com
os Aliados e melhorar seu registro histórico (PRIEMEL, 2016, p. 3).

Criou-se assim, o argumento de que as ações da Alemanha foram

16
A palavra Holocausto vem do grego e faz referência a algo queimado sendo oferecido aos deuses como
sacrifício, e se popularizou após 1970 como a forma de denominar o massacre dos judeus pela Alemanha
nazista, uma referência aos crematórios dos campos de extermínio. Muitos autores e membros da
comunidade judaica se recusam a usar o termo para denominar o extermínio dos judeus, por não aceitarem
a equiparação bíblica com o que aconteceu em Auschwitz. Para esses indivíduos, há uma preferência pela
utilização da palavra hebraica Shoah, que quer dizer calamidade. O termo Holocausto, no entanto, se
popularizou entre a comunidade acadêmica, se tornando um campo de estudos e gerando extensa produção
bibliográfica. Em virtude da internacionalidade do conceito, para além de sua utilização por muitos dos
autores trabalhados na tese, escolhi utilizar Holocausto e não Shoah. Como aponta Dominick LaCapra,
mais importante do que a fixação por um termo ou outro, é a compreensão do caráter indizível do
acontecimento dos campos de extermínio e a limitação de qualquer termo para a explicação do que
aconteceu em Auschwitz (LACAPRA, 1994).
29

fundamentalmente diferentes da atuação dos Aliados durante a guerra, algo que Priemel
chama de othering, ou seja, de enxergar o outro como diferente de si próprio. A
transformação da Alemanha em um Outro, por si só, criava uma contradição: a acusação
precisava declarar que os alemães eram diferentes, mas também precisava argumentar
que eles poderiam ser iguais, afinal, existia o desejo de que a Alemanha se mantivesse
como Ocidental. Ser Ocidental estava, essencialmente, atrelado a ser civilizado. A defesa,
por outro lado, clamava que os alemães já eram ocidentais. Essa linha argumentativa
estava no princípio do tribunal e seguiu a figura retórica de tu quoque, ou seja: eu sim,
mas você também (PRIEMEL, 2016, p. 6). Há, portanto, uma construção de uma
identidade ocidental no tribunal, transformando a localização geográfica em um conceito
cultural, sendo dinâmico e teleológico: as pessoas, as nações e as civilizações poderiam
se tornar ocidentais.

Se entendermos, como Francis Wolff, a oposição entre civilização e barbárie17


como “a oposição entre o Bem e o Mal” (NOVAES; BIGNOTTO, 2004, p. 25),
poderemos compreender a narratologia do tribunal, para usar o conceito de Priemel,
como pautada na compreensão de um retorno da barbárie na Alemanha, visto que a
civilização Ocidental já estava estabelecida. Esse estágio “pré-humano” que se instituiu
com o nazismo torna o julgamento ainda mais complexo, uma vez que lida com questões
filosóficas profundas. Afinal, a Alemanha, o berço da civilização, o país de Goethe, de
Kant, da mais alta intelectualidade, era “mais culpada por ser polida, mais inumana por
ser humana” e, por fim, “mais bárbara por ser civilizada” (NOVAES; BIGNOTTO, 2004,
p. 29). Ainda assim, temos uma contradição: o genocídio nazista só foi possível a partir
da elaboração de ideais civilizatórios. “A barbárie nazista”, lembra Wolff, “por seu
caráter sistemático de longo prazo e por sua realização técnica (da organização hiper-
racional das deportações ao funcionamento industrial das câmaras de gás), parece, ao
contrário, ser a quintessência, e ao mesmo tempo a perversão, da ideia de civilização no
que esta tem de mais elevado” (NOVAES; BIGNOTTO, 2004, p. 29). Fazendo uma
analogia à terminologia de Zygmunt Bauman, o nazismo foi, portanto, o fracasso e o
produto da Modernidade (BAUMAN, 1998a).

Para Priemel, o pano de fundo da reinserção civilizatória após um regime

17
Aqui devo minha eterna gratidão ao professor Marcelo Jasmin, que realizou uma palestra na UFMG sobre
os conceitos de civilização e barbárie em 2019, me apresentando tanto o texto de Reinhard Koselleck quanto
o livro organizado por Adauto Novaes e Newton Bignotto sobre o tema. Essa leitura foi inspiradora.
30

violento fez com que o tribunal se transformasse “em uma ‘máquina discursiva’”,
organizando informações complexas e muitas vezes contraditórias, de modo a criar uma
narrativa coerente e consistente (PRIEMEL, 2016, p. 13). Essa narratologia, era, acima
de tudo, o processo de escrita da história: a história era “o próprio objeto de uma disputa
sobre a qual a versão dos eventos será lida no julgamento” e existia a perspectiva de que
a “opinião predominante” desse processo pudesse evoluir “para um consenso
historiográfico” (PRIEMEL, 2016, p. 14). A História serviria para provar o caso da
acusação e dar as bases do que viria a ser a democracia alemã depois disso, ao mesmo
tempo em que comprovaria a superioridade dos Aliados. Dessa maneira, o tribunal “não
foi apenas uma fonte de material histórico, mas um aspecto vital e absorvente da História
Contemporânea” (SMITH, 1979, p. XVI).18

Nuremberg, então, julgava não apenas os nazistas, mas a reinserção da


Alemanha nas graças do Ocidente – e, por isso, era um tribunal que iria definir,
acreditava-se que de uma vez por todas, o que era civilização e o que era barbárie. Como
lembrou o promotor Jackson, “o registro pelo qual julgamos esses réus hoje é o registro
pelo qual a história nos julgará amanhã” (BS, 2, p. 101). E, sobre esse ponto, o promotor
estava ciente de que a Alemanha também estava em julgamento. No entanto, ele reiterou
que não havia “nenhum propósito em criminalizar todo o povo alemão” (BS, 2, p. 102),
afinal, o país havia sido deixado “em frangalhos” pelos nazistas. O Terceiro Reich, esse
“pesadelo nazista” havia condenado a Alemanha a “uma reputação de duplicidade que a
prejudicará por anos”, dando “ao nome alemão um significado novo e sinistro em todo o
mundo, que retardará a Alemanha um século”. Por esse motivo estava claro que “o
alemão, não menos que o mundo não alemão, tem contas a acertar com esses réus” (BS,
2, p. 103).

O visual desse julgamento histórico também era importante, para além do seu
peso político e social. A edição do Jornal O Globo de 21 de novembro de 1945 descreveu
que a disposição do banco dos réus foi proposital para que os acusados fossem obrigados
a olhar “de frente” para as bandeiras das Nações Unidas. Assim, simbolicamente, os
grandes vilões da Modernidade deveriam encarar a democracia, que estava, mais uma
vez, tomando as rédeas da situação. O jornal também pontuou que compareceram no
início do julgamento 240 jornalistas e fotógrafos, dentre eles, o russo-brasileiro fundador

18
Agradeço também ao professor Bruno Leal por me apresentar o livro de Bradley Smith, uma leitura que
me trouxe reflexões importantes para a tese.
31

do jornal Última Hora, Samuel Wainer.19 Na realidade, o tribunal tinha 450 vagas
reservadas para os jornalistas e Wainer foi o único brasileiro a conseguir cobrir o
julgamento dos nazistas, chegando, assim como seu jornal, de última hora, na véspera da
sessão inaugural, depois de uma série de transtornos. O jornalista definiu Nuremberg
como um ambiente “incontrolavelmente passional” (MONTEIRO, 2020, p. 118–119).20

Nessa cena inaugural, para muitos, semelhante a uma peça de teatro, os atores
principais estavam ali em nome de tantos outros protagonistas que não haviam sido
capturados naquele momento ou que haviam cometido suicídio, como era o caso de
Heinrich Himmler, Joseph Goebbels e, é claro, de Adolf Hitler. Robert Jackson, ciente de
que muitos dos nazistas em Nuremberg eram figuras pouco importantes dentro da
estrutura do Terceiro Reich, declarou que o tribunal iria julgar “o cérebro e a autoridade
por trás de todos os crimes”. Afinal, homens como Joachim von Ribbentrop estavam em
uma posição que “não sujam as próprias mãos com sangue” e que, por isso, “sabiam como
usar pessoas inferiores como ferramentas” (BS, 2, pp. 104-105). Sendo assim, era nítido
que muitos réus eram, na realidade, atores coadjuvantes na construção daquela cena.

Jackson tinha uma visão similar à que a filósofa Hannah Arendt teria alguns
anos depois. Para Arendt, quando uma sociedade se desintegra em grupos, a anterior
exigência de representação – entendida como “a capacidade de apresentar, desempenhar,
interpretar aquilo que se realmente é” – passa a ser aplicada aos membros dos grupos, e
não aos indivíduos. Dessa maneira, “a conduta passa então a ser controlada por exigências
silenciosas e não por capacidades individuais, exatamente do modo como o desempenho
de um ator deve enquadrar-se no conjunto de todos os outros papéis da peça” (ARENDT,
1989, p. 107). Os nazistas ali presentes estavam enquadrados no conjunto dos papéis do
Terceiro Reich, alguns com mais relevância que outros – mas todos, igualmente
condenáveis aos olhos do mundo. A tarefa da acusação era, portanto, de acordo com o
promotor estadunidense, “alcançar os planejadores e projetistas (designers), os
incitadores e líderes”, figuras necessárias para a realização de uma “arquitetura maligna”

19
Agradeço à minha orientadora Heloísa Starling por ter me apresentado o livro sobre Wainer que me
auxiliou a “criar a cena” do Julgamento de Nuremberg.
20
Ainda assim, Wainer conseguiu se enveredar pelas centenas de jornalistas e chegou a receber uma carta
de Karl Dönitz, réu e almirante da marinha do Reich, admitindo a importância das bases aliadas brasileiras
no Nordeste para “o controle da ação dos submarinos do Eixo do Atlântico”. A carta, fruto de um
questionamento de Wainer repassada para o almirante, rendeu uma reportagem que se transformou em
matérias para a rádio BBC de Londres e outros jornais estrangeiros. Por fim, o documento integrou o Museu
Naval Brasileiro (MONTEIRO, 2020, p. 118–119).
32

e que, por fim, colocaram o mundo “por tanto flagelado com a violência e a ilegalidade,
e assolado pelas agonias e convulsões desta terrível guerra” (BS, 2, pp. 104-105). Como
veremos, esse é um dos principais legados de Nuremberg, que abriu o terreno para tantos
outros julgamentos posteriores, e que seguem até atualidade: a apresentação e condenação
desses indivíduos tidos como menos relevantes, mas que eram, ao mesmo tempo,
fundamentais para a elaboração e execução da ideologia nazista.

O valor da superfície

Em A vida do espírito, Hannah Arendt faz uma reflexão acerca da atividade do


pensamento e do papel das atividades do espírito na vida dos seres humanos. Indo na
contramão da filosofia metafísica e de uma grande variedade de filósofos, Arendt propõe
uma não diferenciação entre o mundo das aparências e o mundo fenomênico das ações.
Tudo é aparência porque é apenas a aparência que nos é dada à compreensão e à análise
no mundo sensorial (ARENDT, 2019). Em uma passagem particularmente interessante,
Arendt tenta explicitar seu argumento utilizando as conclusões e pesquisas do zoólogo e
biólogo suíço Adolf Portmann. O biólogo propõe que não se pode compreender o exterior
dos seres vivos como apenas “meras” formas de autopreservação da espécie: o exterior é
tão fundamental na existência de um ser quanto os órgãos internos. Sendo assim, as cores
cambiantes de um camaleão não seriam menos importantes do que seu coração ou o seu
pulmão. Para Arendt, assim também o é com a diferenciação clássica entre o Ser e a
Aparência: enxergar o organismo como “real” e tudo que vem de fora como apenas
subordinado a esses processos “reais” é repetir a divisão metafísica de um mundo do Ser
e de um mundo das “meras” Aparências. A questão para a filósofa é que nunca
acessaremos o Ser; o que nos resta, portanto, é sempre a Aparência.

De acordo com Portmann, “O problema da pesquisa não é o que uma coisa é,


mas como ela ‘aparece’” (ARENDT, 2019, p. 44, grifos de Arendt). Este também é o
fundamento da minha pesquisa em questão: o problema desta tese não é como os nazistas
são, mas como eles aparecem, como eles querem se mostrar no Julgamento de
Nuremberg. E aqui há, sem dúvida, um enorme “valor da superfície”, que nada tem de
superficial: busca profundidade e raízes, mas compreendendo as limitações desse
conhecimento e desse saber. Nesse sentido, esta pesquisa visa atentar-se a esse plano das
aparências, pensando na contribuição que essa análise pode produzir ao lançar o olhar
para o que transparece na superfície, seja intencionalmente ou não. O que pode ser
compreendido, analisado e estudado é o que aparece, e ainda que essa aparência esteja
33

sendo escolhida e calculada, e que esteja deixando aparecer coisas para esconder outras,
isso não a torna menos relevante – a bem da verdade, a torna ainda mais. É por meio das
aparências que a análise histórica se torna possível, assim como foi por meio delas que a
condenação, ou não, dos réus em Nuremberg foi efetivada. Como lembra Arendt, “os
homens também apresentam-se por feitos e palavras, e, assim, indicam como querem
aparecer, o que, em sua opinião, deve ser e não deve ser visto” (ARENDT, 2019, p. 50–
51). A pergunta que guiará boa parte da minha argumentação é, precisamente: como esses
homens estão escolhendo se apresentar por meio dos seus discursos nessas
circunstâncias? E, ainda: como esses discursos apresentados lidam com a ideia de
responsabilidade e de culpa?

Dividi o texto de modo que cada capítulo representasse um arquétipo. No


primeiro capítulo temos a tipologia defensores fiéis, a saber, os nazistas que seguiram
defendendo seus princípios ideológicos mesmo correndo risco de morte. Aqui, temos
como exemplo os casos de Hermann Göring, Alfred Rosenberg, Julius Streicher e Arthur
Seyss-Inquart. O grande diferencial dos defensores fiéis é a não demonstração, em seus
discursos, de arrependimento por suas ações durante o Terceiro Reich. No segundo
capítulo temos homens conservadores que afirmam que gostariam que o nazismo fosse
apenas mais um governo autoritário. Os diplomatas da velha guarda defendem a forma
“inicial” do nazismo, que, em suas perspectivas, seria mais branda e mais bem sucedida
para a Alemanha na época. Para esses discursos, temos os casos de Franz von Papen e
Konstantin von Neurath. Como veremos, entretanto, sem o auxílio desses conservadores,
Hitler não teria ascendido ao poder como Führer. O terceiro capítulo lida com o
verdadeiro oposto do primeiro: no arquétipo negacionistas relapsos temos réus que
negaram toda e qualquer relação com basicamente tudo relacionado ao regime nazista,
demonstrando ignorância e desconhecimento sobre suas profissões e suas funções. A
despeito de suas patentes e da importância de seus cargos na estrutura do Terceiro Reich,
Ernst Kaltenbrunner, Walther Funk e Fritz Sauckel se apresentaram como indivíduos
totalmente alheios à sua realidade.

O capítulo quatro lida com categorias que funcionam em oposição. Temos, de


um lado, Joachim von Ribbentrop, o Yes-man de Nuremberg; e, do outro lado, Hjalmar
Schacht, o No-man. Ribbentrop se apresentou, e assim foi visto por todos os outros réus,
como um servo obediente e saudosista de Adolf Hitler – para quem ele sempre só disse
sim. Schacht, ao contrário, se exibiu como o grande resistente do tribunal, alguém que
34

sempre havia sido contra o regime nazista e seu líder – ainda que tenha mantido seu cargo
até 1943. No capítulo cinco temos o arquétipo ex-nazistas arrependidos, que aborda réus
que não negaram sua atuação e, por vezes, até confessaram sua participação nos crimes,
mas que reforçaram que haviam se arrependido profundamente de suas ações. Hans
Frank, Albert Speer, Baldur von Schirach e Hans Fritzsche buscaram uma reabilitação na
memória e na opinião pública com seus discursos no tribunal, se apresentando como
indivíduos que foram enganados por Adolf Hitler e que só perceberam a tragédia quando
já era tarde demais. Por fim, no capítulo seis, temos o caso dos militares apartidários,
homens que diziam apenas estar obedecendo ordens de seus superiores porque um
soldado não questiona sua tarefa para com sua pátria, não importa o quão desumana essa
tarefa possa parecer. Ainda que tenhamos outros réus com patente militar em Nuremberg,
como é o caso do próprio Hermann Göring, não são todos os membros do exército que se
ampararam nesse discurso da necessidade da obediência pautada na lógica militar. Para
esta tipologia, temos os casos de Wilhelm Keitel, Alfred Jodl, Karl Dönitz e Erich Raeder.

Ao analisar os discursos proferidos em um tribunal militar internacional fica


evidente que os réus estão tentando evitar, principalmente, a pena de morte. Portanto,
espera-se que eles neguem seu envolvimento e sua responsabilidade nos crimes
cometidos pelo regime nacional-socialista, e se prevê que tentem culpar os nazistas que
não estavam presentes, especialmente os do alto escalão, como Himmler, Goebbels e o
próprio Hitler. No entanto, mesmo considerando uma dose de negação esperada, ao
examinar esses documentos, ficou claro que nem todos aqueles homens eram Adolf
Eichmann e, portanto, nem todos se enquadram na categoria21 de “banalidade do mal”.
Nem mesmo a maioria dos julgados em Nuremberg pode ser entendida como “homens
que não pensam”, nas palavras de Hannah Arendt (1999). A conclusão é a de que nem
todos os nazistas se comportam da mesma maneira quando lutam por suas vidas.22

Nuremberg, por ser o primeiro tribunal do processo de desnazificação, criou

21
Aqui, faço referência (e um agradecimento!) a um ponto que o professor Newton Bignotto reforçou na
minha banca de defesa. Essas categorias analíticas da tese têm relação com o que o sociólogo Max Weber
entende como tipo ideal, a saber, o conjunto de características que se organizam em tipologias, se tornando
ferramentas metodológicas que auxiliam na compreensão de um fenômeno ou de um grupo. Sobre os tipos
e sua utilização no estudo do Terceiro Reich, ver: CAVALLI, 1986. Ainda que Weber esteja presente nessa
tese, sobretudo pela utilização do conceito de autoridade carismática para a compreensão da personalidade
e influência de Adolf Hitler (algo muito marcante na abordagem de Ian Kershaw), o tipo ideal não é,
contudo, um dos referenciais teóricos que utilizo na pesquisa. O leitor perceberá que meus demarcadores
teóricos ficarão claros nessa Introdução.
22
Parafraseando o professor Newton Bignotto mais uma vez: são todos nazistas, mas são nazistas diferentes.
35

jurisprudência. Por isso, os réus não tinham uma linha de conduta ou estratégia de defesa
a priori, já que para eles, aquele também foi um momento inaugural. Como os nazistas
lidaram com essa nova jurisprudência? Como tentaram escapar das sentenças, sobretudo
da sentença de morte? Em Nuremberg temos uma miríade de indivíduos com diferentes
graus de inserção dentro da cadeia de comando do Terceiro Reich. Temos homens
importantes, como Hermann Göring, mas também homens quase esquecíveis, como Hans
Fritzsche. Entretanto, todos estavam tentando se manter vivos e, para isso, buscaram, de
formas diferentes, falhas e brechas nessa nova jurisprudência. Alguns réus
compreenderam melhor a dinâmica do julgamento e das acusações e usam isso a seu favor
para escapar da pena de morte, como é o caso de Albert Speer, que convenceu, não só os
juízes, como uma quantidade significativa de indivíduos, de seu arrependimento23.
Contudo, como aponta Ian Kershaw, é imprescindível ter sempre no horizonte que a
intencionalidade desses atores não pode ser determinada, apenas suas ações – e,
sobretudo no caso desta tese, o que eles dizem sobre essas ações (KERSHAW, 2009).
Deixando de lado toda a pretensão de compreender a psique desses homens e de analisar
o que eles poderiam estar sentindo, o que resta é apenas o que eles dizem para se salvar
– uma autoapresentação mediada pela inegável presença da corda no pescoço.

A abordagem pautada em tipologias dos perpetradores já foi utilizada


anteriormente por outros pesquisadores da área de Perpetrator Studies, que será
elaborada com mais profundidade, assim como o próprio conceito de perpetrador, nas
próximas seções desta Introdução. É relevante, no entanto, mencionar quais são os pontos
de partida para o desenvolvimento desses arquétipos. Michael Mann, por exemplo,
apresenta uma tipologia baseada nos motivos dos perpetradores para cometerem crimes –
pensando apenas em perpetradores do regime nazista que de fato participaram do
genocídio. Nessa tipologia, temos termos conhecidos como “assassinos ideológicos”, ou
seja, aqueles que acreditam na necessidade do extermínio; “assassinos violentos”, a saber,
os que sentem prazer com o assassinato; além dos “assassinos burocratas”, motivados
pela obediência, entre outros (KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 10). Outro autor válido
de referenciar nessa perspectiva, e mais alinhado com a proposta da tese, é Eugene
Davidson. Em The trial of the Germans, Davidson separa os réus em Nuremberg em

23
Speer convenceu, a princípio, até mesmo Gitta Sereny, que inicia suas entrevistas com o arquiteto
tentando compreender se ele havia mesmo se arrependido de suas ações no Terceiro Reich. Com o passar
do tempo e ao ganhar sua confiança, Sereny percebe que, ao contrário, o discurso de Speer era apenas uma
representação conscientemente escolhida. Ver: SERENY, 1998.
36

algumas categorias, elencadas, majoritariamente, por suas profissões e suas atuações


durante o Terceiro Reich. Nesse sentido, ele insere Joachim von Ribbentrop, Konstantin
von Neurath e Franz von Papen na mesma categoria de “diplomatas”, enquanto, por
exemplo, Albert Speer e Fritz Sauckel estão juntos por seus papéis na política de trabalho
forçado durante a guerra (DAVIDSON, 1997). Por fim, ainda é válido mencionar o
trabalho de Hillary Earl sobre o processo dos julgamentos dos membros da SS
Einsatzgruppen (2010). A autora analisa as motivações desses homens para cometerem
assassinatos em massa e os insere em categorias baseadas nessas motivações e nas
similaridades culturais e intelectuais por trás do processo de recrutamento – algo também
presente na obra de Christian Ingrao (2015).

Sendo assim, o ineditismo desta tese consiste, precisamente, em categorizar os


réus – considerando que nem todos estavam diretamente ligados ao extermínio – por seus
discursos de defesa de si mesmos, ou seja, pela persona que eles construíram em
Nuremberg, e não por sua atuação no Terceiro Reich. Esta pesquisa é, portanto, muito
mais sobre o pós-guerra do que sobre o regime nazista. O olhar se voltará para esses
homens derrotados após uma experiência de poder sem limites, e que, em seu auge, não
tinham muitos freios além deles mesmos. Os nazistas de Nuremberg não são os mesmos
nazistas do Terceiro Reich – ainda que seja possível perceber em alguns casos, para usar
o conceito de Joanne Pettitt, uma “continuidade da individualidade (continuity of
selfhood)” baseada em certa dose de consistência discursiva (PETTITT, 2018, p. 19). O
ambiente muda, e a identidade também: de um nazista na Alemanha, naquele grande
Reich em ascensão em busca do espaço vital do povo ariano, ao nazista em Nuremberg
sendo julgado como um criminoso de guerra. Essa fragilidade é percebida nesses
discursos, por vezes articulada através de episódios de tristeza profunda, de
descompensação mental, ou, até mesmo, de agressividade.24

A proposta da tese é a de compreender suas narrativas naquele momento do


tribunal, uma vez que os réus falaram retrospectivamente sobre suas vidas. Sempre
deixando claro as diferenças e especificidades discursivas e compreendendo que essa
interpretação pode, de fato, generalizar algumas particularidades, a análise construída
nesta tese se propõe a ser, ao fim e ao cabo, uma ferramenta metodológica. Tomo
emprestada a argumentação de Christian Ingrao sobre os relatórios da SD estudados por

24
Agradeço mais uma vez ao professor Marcelo Jasmin por chamar atenção a esse aspecto tão fundamental
desses discursos durante minha banca de qualificação.
37

historiadores como Ian Kershaw. Ingrao diz que esses relatórios “são, por sua própria
subjetividade, uma fonte excepcional da história das representações”, especialmente
porque os homens responsáveis por eles “leem o real através de seu sistema de crenças”
(INGRAO, 2015, p. 145). Em Nuremberg não é diferente: esses discursos dados ao
tribunal são uma fonte valiosa da história das representações, justamente porque os
nazistas tentam se apresentar de formas diferentes, mas sem deixar de ler o mundo através
de seu sistema de crenças nessa apresentação/representação – e isso transparece no
discurso. Há, portanto, um “substrato cultural comum”, nas palavras de Ingrao, que une
esses réus por conta de seu passado (INGRAO, 2015, p. 107).

Os julgados em Nuremberg foram os homens que edificaram o Terceiro Reich,


que transformaram essa utopia em ação, que moldaram a sociedade nacional-socialista e
que construíram um mundo que seria futuramente totalmente ariano. O Führer não é o
único responsável pela destruição da Alemanha e de boa parte da Europa. Justamente por
isso, as narrativas de Nuremberg são fontes tão ricas: são os discursos dos homens que
não são Adolf Hitler, os tantos outros indivíduos, por vezes desconhecidos, mas que
também foram ativamente responsáveis pelo nazismo. Quem são esses homens e o que
eles querem dizer sobre si mesmos naquele tribunal?

Casos não trabalhados

Dois casos presentes em Nuremberg não serão trabalhados na tese por serem
réus que não testemunharam perante o tribunal, sendo assim, não contidos na lista
principal de fontes deste trabalho. São estes os casos de Rudolf Hess e de Wilhelm Frick.
Além deles, ainda temos os casos de Robert Ley e Martin Bormann, que não estiveram
presentes no tribunal apesar do indiciamento e, portanto, também não estão no escopo da
presente tese. É válido, no entanto, uma breve apresentação destes homens, sobretudo
porque Hess foi condenado à prisão perpétua e Frick foi condenado à morte.

Rudolf Hess foi vice-líder do NSDAP e um membro controverso dentro da


própria organização. Era reconhecido por ter sido um dos fundadores do movimento
nacional-socialista, sendo, inclusive, atribuída a ele parte da redação de Mein Kampf, no
entanto, em 1941 já havia saído dos bons olhos do Führer e partiu para uma missão na
Grã-Bretanha para tentar negociar a paz a despeito dos desejos bélicos de Hitler. Foi
capturado pelos Aliados e tornado prisioneiro até o final da guerra, sendo julgado em
Nuremberg por plano de conspiração, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes
38

contra a humanidade. Hess foi considerado culpado por plano de conspiração e crimes
contra a paz e foi sentenciado à prisão perpétua, permanecendo preso até seu suicídio em
1987. Ele havia tentado se suicidar enquanto ainda era um prisioneiro na Grã-Bretanha,
em 1942, e outra vez em 1943. Ao longo desses anos fez greves de fome e foi
diagnosticado como instável e com tendências a paranoia (GILBERT, 1995).

Seu caso em Nuremberg ainda gera debates porque, ainda que o psiquiatra Leon
Goldensohn e o psicólogo Gustave Gilbert tenham atestado que Hess estava dentro de
suas faculdades mentais e que, portanto, poderia enfrentar o julgamento, o próprio Hess
havia se declarado como mentalmente incapacitado para ser julgado. Não sabemos se
Hess estava fingindo um desequilíbrio mental, mas há um consenso entre alguns
historiadores de que ele realmente estava sofrendo mentalmente no momento do
julgamento e que ele deveria ter sido considerado incapaz e levado a uma clínica
psiquiátrica, sobretudo levando em consideração suas tentativas de suicídio anteriores
(PRIEMEL, 2016).

Já Wilhelm Frick foi o Ministro do Interior da Alemanha de 1933 a 1943 e um


dos responsáveis pela legislação nazista pautada na supremacia racial, como as Leis de
Nuremberg, que será abordada em capítulo posterior. No tribunal foi julgado por plano
de conspiração, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade,
sendo considerado culpado das três últimas acusações. Foi enforcado em 16 de outubro
de 1946.

Quanto ao caso de Robert Ley, o nazista foi capturado pelos Aliados e chegou
a ser levado a Nuremberg, mas conseguiu se suicidar antes do julgamento se estabelecer.
Ley, após a dissolução dos sindicados com a ascensão do Partido Nazista, passou a
comandar a Frente de Trabalho Alemã (Deutsche Arbeitsfront), que desempenhou um
papel de certa relevância durante a expansão da indústria de armas na Segunda Guerra
Mundial. Devido ao seu alcoolismo e à sua personalidade controversa, Ley foi substituído
por Fritz Sauckel. O nazista foi indiciado por plano de conspiração, crimes de guerra e
crimes contra a humanidade e se suicidou em 25 de outubro de 1945, poucos dias após o
início do tribunal.

Gustave Gilbert tem o único registro das falas de Ley antes de seu suicídio, já
que o visitou na véspera do ocorrido. O réu, atormentado pela intensidade de sua gagueira,
declarou: “Como posso preparar uma defesa? Devo me defender de todos esses crimes
39

dos quais nada sabia? Se depois de todo o derramamento de sangue desta guerra forem
necessários mais s-sacrifícios para satisfazer a v-vingança dos vitoriosos, muito bem”.
Com dificuldade, ele seguiu: “Coloque-nos contra uma parede e atire em nós! Tudo bem,
vocês são os vencedores. Mas por que eu deveria ser levado perante um Tribunal como
um c-…?”, sem conseguir pronunciar a palavra “criminoso” (LEY apud GILBERT, 1995,
p. 7–8)25. Foi devido ao suicídio de Ley que a segurança do tribunal se intensificou e
guardas foram colocados na porta das celas de cada um dos réus.

Por fim, temos o caso de Martin Bormann, julgado em Nuremberg in absentia.


Martin Bormann estava desaparecido na época do julgamento e a acusação previa que
seus crimes fossem passíveis de punição quando ele fosse encontrado futuramente. O
nazista era um dos homens mais influentes do Terceiro Reich, atuando como secretário
privado de Hitler e como líder nacional (Reichsleiter) do NSDAP, além de ter sido chefe
da chancelaria do Partido Nazista. Foi um dos poucos homens que permaneceu com Hitler
no bunker até o suicídio do Führer e, ao lado de Himmler e Goebbels, acumulava muito
poder dentro da organização.

Bormann foi acusado de crimes de conspiração, crimes de guerra e crimes


contra a humanidade, sendo considerado culpado dos dois últimos. Foi condenado à morte
por enforcamento, com a condição de que se fosse encontrado com vida no futuro e se
houvessem novas provas e novas evidências, estas poderiam ser usadas para reduzir sua
pena ou anulá-la em um novo julgamento. Bormann só foi declarado oficialmente morto
em 1998, quando foram feitos testes de DNA nos restos mortais de 1945 encontrados em
Berlim. Como lembra Bradley Smith, o processo in absentia contra Bormann “foi pouco
mais que um julgamento simulado” e contribuiu para a percepção de que “os réus no
Tribunal não passavam de figurantes secundários” (SMITH, 1979, p. 9).

As fontes

Nesse momento se faz importante uma explicação sobre as fontes26 e sobre a


metodologia de análise da documentação. As fontes desta tese são de dois tipos diferentes:

1. As transcrições completas do Julgamento de Nuremberg, entre os anos de

25
Escolhi utilizar do termo apud nas citações para estabelecer uma distinção entre as falas dos nazistas nas
entrevistas e as declarações de Goldensohn e Gilbert sobre essas entrevistas. Agradeço ao professor Elcio
Cornelsen por ter me dado essa sugestão na banca de defesa da tese.
26
Todas as fontes estão listadas em detalhes na seção “Relação de fontes” da tese.
40

1945 e 1946, em 22 volumes.

2. As entrevistas que os nazistas deram ao psiquiatra Leon Goldensohn na prisão de


Nuremberg durante o julgamento, em 1945 e 1946, contidas no livro As
entrevistas de Nuremberg. Nessa categoria também incluo as entrevistas e as
percepções do psicólogo Gustave Gilbert durante o mesmo período, contidas no
livro Nuremberg Diary.

É indiscutível que há uma diferença significativa entre os discursos


apresentados no tribunal e os discursos dados a Goldensohn e a Gilbert. Precisamente por
isso, as entrevistas são utilizadas como uma fonte secundária, não constituindo o núcleo
duro do projeto. Muitos nazistas se sentem mais confortáveis para falar com Gilbert e
Goldensohn – no tribunal, por outro lado, todos estão, naturalmente, tentando se defender
das acusações e da culpa criminal. Determinadas escolhas narrativas que são utilizadas
durante o tribunal não são utilizadas nas entrevistas de Goldensohn e Gilbert, já que há
um entendimento que o psiquiatra e o psicólogo não estão realizando um julgamento
criminal – apesar de estarem julgando moralmente os réus, e de maneira óbvia, em muitas
ocasiões. No entanto, alguns nazistas enxergam o psiquiatra e o psicólogo como
representantes do bloco vencedor, e, portanto, como inimigos, utilizando de ironia e
agressividade em diversos momentos das entrevistas. Isso é perceptível sobretudo no caso
de Goldensohn, que, além de ser estadunidense, também era judeu.

Pensando em cada fonte individualmente, é pertinente fazer algumas


observações, tendo em mente que, apesar de serem extensas, o objetivo não é analisá-las
por completo, tampouco aprofundar demasiadamente nas particularidades de cada uma.
Neste sentido, estou atenta às diferenças metodológicas entre as fontes, mas focada, no
entanto, no ponto norteador da tese: a narrativa construída e como ela lida com a ideia de
responsabilidade afim de desenvolver arquétipos discursivos. A análise se voltará para
compreender como esses nazistas querem mostrar sua atuação no Terceiro Reich e o que
eles querem deixar como registro desses tempos sombrios do século XX.

Levando em consideração o processo de construção de si no tribunal, reflexões


advindas da autobiografia enquanto gênero literário são bem-vindas para a compreensão
dessas fontes. Em A ilusão biográfica, um dos textos mais famosos de Pierre Bourdieu,
o autor parte do pressuposto inicial de que uma autobiografia se pauta na crença de que a
vida é uma história que merece ser contada. Sendo assim, o conjunto de acontecimentos
41

de uma vida se torna parte de um relato sobre esses acontecimentos, com uma origem e
um fim, forjando uma coerência e organização que não fazem parte, de fato, da vida. O
relato autobiográfico busca dar sentido, lógica e tornar razoável acontecimentos que,
enquanto aconteciam, eram confusos e esparsos. Para Bourdieu, a perspectiva de “tornar-
se o ideólogo de sua própria vida” (BOURDIEU, 2006, p. 184) faz com que o real, que é
naturalmente descontínuo e ilógico, se torne um conjunto compreensível e quase
previsível de acontecimentos: essa é a acordada ilusão retórica desse relato. Nos
discursos do tribunal, esse descompasso entre a desorganização da vida de um indivíduo
e a linha racional de atuação proposta pela promotoria, se torna ainda mais evidente. Essa
análise tem relação, inclusive, com o já mencionado conceito de narratologia proposto
por Kim Priemel, no qual o tribunal se torna uma “máquina discursiva” que busca dar
sentido a discursos e acontecimentos que são, em muitas medidas, desconexos.

A produção de si e a apresentação de si para o público, é claro, varia em forma


e conteúdo de acordo com a audiência. Bourdieu reitera que, para compreender uma
trajetória, é preciso entender, portanto, “os estados sucessivos do campo no qual ela se
desenvolverá” e “o conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e
confrontados com o mesmo espaço dos possíveis” (BOURDIEU, 2006, p. 190). Fazendo
uma referência a Reinhard Koselleck, no campo desta pesquisa, para analisar a trajetória
de um dado funcionário nazista, é preciso avaliar o que outros fizeram dadas às mesmas
condições, ou seja, quais eram os seus horizontes de expectativa naquele momento
(KOSELLECK, 2006). Se todos obedeceram, e essa é a grande questão em Nuremberg,
o que isso diz sobre esses agentes, sobre essa organização, e, por fim, sobre esse país?

A identidade é um ponto fundamental tanto para o leitor quanto para o autor da


autobiografia e se torna essencial para a compreensão do que Philippe Lejeune chama de
pacto autobiográfico: o leitor busca, nesse discurso, uma verdade que ele sabe que
somente aquele autor pode oferecer, ainda que uma verdade relativa; uma verdade “tal
qual me aparece”, ou, “deixando de lado outras coisas”. Como o personagem, ainda que
escreva de forma retrospectiva, ainda é a “pessoa atual que produz a narração”, é comum
em qualquer autobiografia a elaboração de um mito pessoal. Ainda assim, Lejeune está
convencido de que, ainda que o autor “minta, esqueça ou deforme”, sua narrativa não
deixa de ser autêntica. O gênero autobiográfico é, portanto, um gênero contratual, um
modo de comunicação literária e historicamente variável. Ele parte de uma perspectiva
referencial, se propondo a “fornecer informações a respeito de uma ‘realidade’ externa
42

ao texto e a se submeter, portanto, a uma prova de verificação”, ainda que seu objetivo
não seja a verossimilhança e sim a “imagem do real” (LEJEUNE, 2014, p. 36).

No Julgamento de Nuremberg não estamos falando de uma autobiografia


escrita. Estamos lidando, ao fim e ao cabo, com uma produção de si por meio do discurso.
Não obstante, é perceptível como essa narrativa de um ator sobre si mesmo analisando
retrospectivamente a própria vida se assemelha com o gênero autobiográfico. Sendo
assim, a perspectiva de Lejeune de que a narrativa do autor é autêntica, ainda que distorça
a realidade, parece profícua para analisar as fontes da tese.

As transcrições do tribunal

A seleção principal de fontes e o núcleo duro da tese está contida na Biblioteca


do Congresso Nacional dos Estados Unidos, disponível online. As Blue Series são a
transcrição completa em inglês de todo o processo de Nuremberg, contendo 42 volumes,
com o julgamento sendo transcrito até o volume 22. Do volume 23 ao 42 estão as
evidências apresentadas pela acusação e pela defesa, documentos utilizados no tribunal,
cronologias, nomenclaturas e abreviações, entre outros. Também existe uma outra
coleção mais resumida em inglês de 8 volumes e 2 suplementos, as Red Series, que
contém uma coleção de evidências e documentos preparadas pela equipe de acusação
estadunidense e britânica e apresentadas no tribunal de Nuremberg.

As entrevistas

As entrevistas coletadas por Leon Goldensohn estão contidas em um livro


editado pelo historiador canadense Robert Gellately intitulado The Nuremberg
Interviews: an american psychiatrist’s conversations with the defendants and witness e
publicado nos Estados Unidos em 2005 com um prefácio do historiador. No mesmo ano,
foi lançado no Brasil pela Companhia das Letras a edição em português do mesmo livro,
com o mesmo prefácio. Goldensohn era um psiquiatra estadunidense filho de judeus
emigrantes da Lituânia que chegou em Nuremberg com apenas 34 anos. Ele não falava
alemão e, por vezes, conversava com os julgados diretamente em inglês, e em outros
momentos, com o auxílio de Gilbert, que exercia a função de tradutor. De acordo com
Goldensohn, sua metodologia consistia em fazer anotações detalhadas e registrar as
perguntas, as respostas e suas impressões de modo a ter um compilado de reflexões bem
abrangente. É válido pontuar, entretanto, que tanto no caso de Goldensohn quanto no de
Gilbert, as entrevistas foram realizadas com a pretensão futura de publicação em um
43

compilado – e isso definitivamente impacta não só a forma como as entrevistas foram


feitas, como a forma como foram registradas nos livros. Sendo assim, algumas entrevistas
são extensas e outras são bem reduzidas – como a de Albert Speer de apenas uma página
– e alguns nazistas sequer aparecem no livro do psiquiatra.

No caso de Gilbert, há outras questões metodológicas a se considerar, uma vez


que o psicólogo declara que registrava suas conversas com os réus após os encontros em
notas em um caderno. Apenas posteriormente as notas eram mais bem elaboradas e
passadas para o diário. As entrevistas, em sua maioria, eram realizadas em alemão. Dessa
maneira, Gilbert estava constantemente contando com a própria memória: ele precisava
se recordar do que havia sido dito, como havia sido dito, para além de ter que traduzir
essas reflexões e essas citações do alemão para o inglês.27 Em seu diário, observamos
discrepâncias similares com o livro de Goldensohn: enquanto alguns nazistas, como
Hermann Göring e Albert Speer se destacam, outros, como Erich Raeder, quase não
aparecem em suas descrições. Observa-se, portanto, que os dois livros, de Gilbert e de
Goldensohn, possuem suas próprias problemáticas com relação à metodologia da
condução das entrevistas e registros.

Uma comunidade doente

O ponto de partida para a análise dessas entrevistas é a compreensão de que


sequer existe uma premissa de imparcialidade em Gilbert e Goldensohn. Ambos são
totalmente parciais e, como era de se esperar, estão alinhados e de acordo com a
argumentação da acusação e com frequência expressam suas opiniões negativas sobre os
réus. Para além disso, os discursos dos nazistas não fazem parte de uma sessão de terapia
tradicional porque não há princípio de confidencialidade. Os réus sabem que não podem
dizer o que realmente pensam, nem se quisessem, porque não havia sigilo estabelecido
entre médico e paciente. Na realidade, esses profissionais repassavam com frequência
para a promotoria informações relatadas nas entrevistas que poderiam ser úteis para o
caso da acusação. A principal função de Gilbert e, sobretudo de Goldensohn, era a de
dizer se aqueles homens eram mentalmente capazes de enfrentar o tribunal – ou seja, se

27
Existe é claro, uma questão com relação à tradução das próprias entrevistas – uma dificuldade presente
inclusive durante o próprio julgamento, que era traduzido simultaneamente em quatro línguas: inglês,
alemão, francês e russo. Optei por fazer a leitura na íntegra das entrevistas em inglês, língua original da
publicação e língua nativa de Goldensohn, e, ao utilizar citações, recorri à versão traduzida em português
da Companhia das Letras. Quando julguei que a tradução possuía discrepância, utilizei a versão em inglês
e fiz a minha própria tradução. As referências após as citações estão sempre relacionadas à versão do livro
utilizada para a tradução.
44

eram ou não “insanos”. Não há um interesse no psicólogo e no psiquiatra em fornecer um


auxílio psicológico verdadeiro a esses réus, tampouco que princípios terapêuticos fossem
verdadeiramente utilizados naqueles meses de prisão. Goldensohn e Gilbert buscavam,
na maior parte do tempo, contribuir para a narrativa de que aqueles homens poderiam ser
julgados e, ainda, reforçar ditas patologias ao publicar seus discursos.

Como lembra Kim Priemel, o interesse pelo estudo da mentalidade dos nazistas
estava em evidência em Nuremberg. Afinal, “quando os espécimes mais proeminentes
dessa comunidade doente ficaram disponíveis para exame direto em 1945, uma série de
estudiosos imediatamente fez fila para ter acesso à prisão de Nuremberg”. Todas essas
pessoas foram dispensadas pelo promotor estadunidense Robert Jackson, que “temia que
os resultados pudessem fazê-lo perder réus se sua condição mental fosse considerada
perturbada”. Dessa maneira, temos homens como Goldensohn e Gilbert, além de Douglas
Kelley,28 como os especialistas em Nuremberg, desempenhando, nas palavras de Priemel,
“um papel duplo e bastante inconsistente, pesquisando, por um lado, o bem-estar
psicológico dos réus, enquanto, por outro lado, os estudavam em um ambiente de
laboratório peculiar e relatavam sobre suas descobertas para a acusação” (PRIEMEL,
2016, p. 124). Essa “função-dupla” é ainda mais evidente se levarmos em consideração
que esses profissionais também eram membros do exército estadunidense, possuindo
alguma patente, como é o caso de Goldensohn, um major. Sendo assim, como
estadunidenses vencedores da Segunda Guerra Mundial, como profissionais da saúde e
também como soldados, Gilbert, Goldensohn e Kelley ocupavam posições multifacetadas
em Nuremberg, e, por fim, auxiliaram a acusação oferecendo detalhes das estratégias de
defesa que os nazistas lhes confidenciavam.

Gilbert e Kelley tiveram conclusões diferentes quanto aos perfis


psicopatológicos29 dos réus com base nos diversos testes psicológicos aplicados. Para
resguardar sua validade, os testes foram finalizados no começo do julgamento enquanto
os prisioneiros ainda estavam em solitária. Gilbert relatou que foram realizados sobretudo

28
O julgamento teve uma proeminência e liderança dos Estados Unidos e a equipe médica e psiquiátrica,
particularmente importante para a tese, era estadunidense. O primeiro psiquiatra a chegar em Nuremberg
foi o major Douglas M. Kelley, que permaneceu apenas no primeiro mês de julgamento e foi rapidamente
substituído por Goldensohn. Kelley também publicou sua versão do tribunal em 1947 no livro 22 Cells in
Nuremberg. A Psychiatrist Examines the Nazi Criminals.
29
Termo utilizado por Uğur Ümit Üngör e Kjell Anderson no texto From Perpetrators to Perpetration:
Definitions, typologies, and processes. Ver (KNITTEL; GOLDBERG, 2019). Kim Priemel também utiliza
o mesmo termo.
45

testes verbais de memória aliados ao uso de conceitos e de performance, observação,


coordenação e senso motor. Mesmo sendo testes padrão para adultos, de acordo com a
psicologia da época, também foram realizados outros que levavam em consideração a
perda de inteligência ao longo da vida em virtude do avanço da idade. Pensando somente
nos testes de QI,30 conforme indicado na Imagem 1, Gilbert concluiu que “com exceção
de Streicher, o QI mostra que os líderes nazistas tinham inteligência acima da média” (QI
acima de110), o que apenas confirmava o fato de que “os homens mais bem-sucedidos
em qualquer esfera da atividade humana – seja na política, na indústria, no militarismo
ou no crime – tendem a ter uma inteligência acima da média” (GILBERT, 1995, p. 31).

Imagem 131

Gilbert acreditava que todos os nazistas tinham “perfis psicopatológicos de


personalidade” (KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 9), fruto de uma obediência cega à
autoridade. Essa perspectiva foi retomada por estudiosos como Theodor Adorno em seu
livro Estudos sobre a personalidade autoritária (ADORNO, 2019), e, também, por
Stanley Milgram em seu famoso experimento sobre a obediência. A experiência de
Milgram, realizada em 1961 buscava verificar como pessoas comuns responderiam a
ordens caso estas consistissem na aplicação de choques elétricos em desconhecidos. A
conclusão de Milgram, analisada por Zygmunt Bauman em Modernidade e Holocausto,
era a de que existia uma natureza social no mal, e que, a depender da pressão e do contexto
a que se está submetido, qualquer ser humano é capaz de atos cruéis – levando a um
pressuposto de que há um “Eichmann latente” em cada um de nós, como aponta Amitai

30
Os testes de QI (Quociente de Inteligência) são usados há décadas para avaliar a inteligência de indivíduos
por meio de estimativas. QIs em torno de 85 e 115 são considerados padrão para um adulto, enquanto
números abaixo de 70 sugerem uma deficiência intelectual, de grau leve (entre 50-70), moderada (entre 35-
50) e grave (menor que 35). As primeiras tentativas de desenvolvimento de testes de QI datam do século
XIX, de modo que, em 1945, Gilbert já estava usando as técnicas mais modernas desses testes.
31
Testes de QI realizados por Gustave Gilbert na prisão em Nuremberg. Imagem extraída de GILBERT,
1995, p. 31.
46

Erzioni (BAUMAN, 1998a, p. 191–195). Anos depois, o experimento de Milgram já foi


amplamente descreditado por pesquisadores, que demonstraram como, para além de
todos os seus problemas éticos e da questionável metodologia científica utilizada, o
experimento diz muito mais sobre estratégias de convencimento do que sobre a
obediência em si mesma.32

O psiquiatra Douglas Kelley, diferentemente de Gilbert, acreditava que um


genocídio poderia ser possível até mesmo nos Estados Unidos, uma vez que o genocídio
não era “nem cultural nem o resultado de líderes insanos, mas, na verdade, um fenômeno
social” (KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 9). Gostaríamos de crer que a visão de Kelley
tenha permanecido e se estabelecido – sabemos, contudo, que não é o caso. Ainda que na
maioria das produções culturais os nazistas sejam apresentados como monstros, sabemos
que alguns conseguiram vender a sua narrativa de redenção, como é o caso de Albert
Speer. Ambas as problemáticas afluem em um ponto comum: os perpetradores são, na
verdade, seres humanos normais, e, por isso, complexos. “Nazista” é apenas uma
dimensão de suas identidades, ainda que seja uma forma de ver o mundo e de estar nele.
Como lembram Uğur Ümit Üngör e Kjell Anderson, “assim como qualquer outro ser
humano, os perpetradores têm identidades complexas, tanto em um momento específico
quanto como um aspecto de mudança de suas vidas, ao longo do tempo” (KNITTEL;
GOLDBERG, 2019, p. 19–20). Evocando a famosa teoria de Christopher Browning sobre
o batalhão de reserva da polícia alemã que foi diretamente responsável pelo extermínio,
“o papel que eles desempenham como perpetradores é um de muitos, e é justamente nessa
identidade multifacetada que eles são ‘homens comuns’ (ordinary men)” (KNITTEL;
GOLDBERG, 2019, p. 20).

Por fim, como destaca Kim Priemel, a diferença fundamental entre as análises
de Kelley e Gilbert foi perdida na percepção pública dos perpetradores. E, em Nuremberg,
prevaleceu uma “coincidência de que a linha entre normal/são e anormal/psicopatológico
correspondia àquela entre os réus que iriam para a forca e aqueles que não iriam”
(PRIEMEL, 2016, p. 125).

32
Uma das maiores críticas sobre a metodologia é com relação à pequena e pouco diversificada amostragem
que Milgram utilizou para o experimento e que erroneamente levou a uma conclusão generalista sobre a
natureza humana. Sobre isso, Stephen Gibson tem um capítulo muito interessante no livro The Routledge
International Handbook of Perpetrator Studies chamado Stanley Milgram’s obedience experiments. Ver
(KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 46–59)
47

Homens comuns

Embora ainda seja desafiador falar sobre o ponto de vista dos perpetradores, o
recente campo de Perpetrator Studies tem feito um grande esforço nesse sentido.
Questões básicas para o campo giram em torno de o que são os perpetradores e o que eles
significam e quais seriam os possíveis métodos e conceitos para compreendê-los, bem
como as implicações éticas e morais desse entendimento. De acordo com os autores Uğur
Ümit Üngör e Kjell Anderson, perpetradores são “qualquer indivíduo que contribui
diretamente e substancialmente para o genocídio – ou outras formas de atrocidades em
massa” (KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 7). E, nesse sentido, é de fundamental
importância diferenciar quem é um perpetrador para a lei e quem é um perpetrador para
o historiador. Essa foi uma das constantes querelas no Julgamento de Nuremberg, já que,
por vezes, não se conseguia comprovar juridicamente o envolvimento do indivíduo com
os crimes do nazismo – razão pela qual alguns homens foram inocentados. Isso não
significa, todavia, que, para a História, não tenha havido envolvimento. Essa definição
proposta por Anderson e Üngör vai além do que seria um perpetrador direto, mas também
não abraça a ideia de culpa coletiva (que será abordada em outra seção dessa Introdução),
ou seja, a crença de que todos os indivíduos daquele país são perpetradores, algo que
Hannah Arendt e Karl Jaspers já analisaram exaustivamente em seus ensaios
Responsabilidade e Julgamento (2004), e A questão da culpa (2018), respectivamente.

Para a análise desta tese, o conceito de perpetração será o pano de fundo


teórico. Nessa categoria, compreende-se a influência do contexto macro, com homens
sendo seduzidos pelo poder ou que verdadeiramente aderem a ideologia,
concomitantemente com a formação de uma identidade partilhada a partir de um inimigo
comum – no caso do nazismo, sobretudo, os judeus. Dessa maneira, entende-se que os
réus em Nuremberg contribuíram para a perpetração de um processo de genocídio, alguns
de forma mais direta, como é o caso de Ernst Kaltenbrunner, e outros, de forma menos
direta, mas que fazem parte da formação de uma cultura de mobilização em massa, como
é o caso de Baldur von Schirach. Estender a noção de perpetrador para os “profissionais
que ajudaram na administração de políticas discriminatórias e, finalmente, assassinas”
(KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 32), é essencial para analisar o perigo da reintegração
desses homens na sociedade, como foi o caso de alguns dos nazistas analisados nesta tese.

A perpetração, nesse sentido, perpassa muitas nuances e nem sempre está


diretamente relacionada com uma ausência de pensamento, como entende Hannah Arendt
48

em seu conceito de banalidade do mal. Como David Cesarani pontua ao reavaliar o caso
de Adolf Eichmann, é fundamental partirmos da hipótese de que o curso dos
perpetradores “não foi predeterminado, que eles fizeram escolhas informadas ao longo
do caminho e que tiveram que se acomodar para as consequências de seus atos”
(CESARANI, 2007, p. 6). Dessa forma, como lembram Anderson e Üngür, “os
indivíduos não agem acriticamente com base em ordens claras; em vez disso, eles operam
em contextos de informações limitadas, muitas vezes interpretando ordens e exortações
de forma a promover seus próprios interesses” (KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 18).

Mesmo no campo acadêmico, ainda tem sido polêmica a perspectiva de deixar


os perpetradores falarem por si mesmos. Esse tabu é percebido em um descompasso com
a popularidade na contemporaneidade de documentários e filmes sobre os nazistas e no
constante interesse da cultura mainstream por seriais killers. Para a crítica literária Petra
Rau, essa incongruência faz parte de um processo no qual, sobretudo no cinema e na
produção audiovisual, mantém-se uma enorme curiosidade sobre o fenômeno do
nazismo, que não acompanha uma compreensão mais aprofundada desse período da
história. Temos exemplos de centenas de filmes, séries, livros e documentários que lidam
diretamente ou indiretamente com o regime nazista. É um tema que inegavelmente
desperta muito interesse. Esse nazismo, entretanto, é um nazismo idealizado, que a autora
define entre aspas, como “nazismo” – e não o nazismo como realidade histórica. Nesse
sentido, o “nazismo” se torna um produto autorizado para consumo, recheado de
estereótipos que seguem reforçando uma imagem cada vez mais distante do nazismo
enquanto fenômeno histórico. Para a autora, esse “nazismo” se torna uma “história segura
(safe history)”, que nos traz um certo conforto: ao menos com relação ao Terceiro Reich,
está claro para a maioria das pessoas “quem eram os bandidos (bad guys)” (RAU, 2013,
p. 19). Por esse motivo, também, o nazismo segue sendo usado e retomado como a
referência máxima para identificar o mal. Isso fica perceptível quando, por exemplo, o
então presidente dos Estados Unidos George W. Bush, em sua campanha de “guerra
contra o terror” após o 11 de setembro de 2001, usa dos termos “nazista” e “fascista” para
definir terroristas como Osama Bin Laden ou organizações terroristas como a Al-Quaeda
(RAU, 2013, p. 19). Dessa forma, o “nazismo” e o nazismo permanecem sendo usados
como metáforas para exemplificar a barbárie.

Contudo, essa alegoria não vem sem graves consequências. Como aponta Rau,
o nazismo oferece, sobretudo para o Ocidente, “uma fenomenologia de alteridade
49

absoluta: os nazistas eram simplesmente outros, uma completa contra-construção


(counterconstruct) dos valores da democracia liberal. Apenas citá-los parecia nos lembrar
de quem éramos ou de quem queríamos ser” (RAU, 2013, p. 3–4). A dicotomia de “eles
x nós”, tão mobilizada em Nuremberg, se mantém real na atualidade e traz sérios
problemas para compreender quem eram os nazistas e pelo que eles foram responsáveis
– individualmente e como organização. Como bem pontua a autora, “vez após vez, como
veremos, é a normalidade (ordinariness) dos perpetradores que desconcerta os críticos
que preferem um veredito mais claro sobre o comportamento individual sob o
totalitarismo”33 (RAU, 2013, p. 11).

É fundamental, então, que paremos de enxergar os homens que atuaram no


Terceiro Reich como meros personagens e indivíduos caricatos, figurões facilmente
reconhecíveis pelos inúmeros exemplos que temos dos filmes que assistimos ao longo
dos anos. Seguindo a linha de Rau, esses personagens das produções culturais em massa,
“são sempre SS, eles são sempre os piores dos piores, eles são sempre os hiper-nazistas
– eles nunca são os alemães alistados e bem-intencionados que não conseguiram evitar
(couldn’t help himself) – é sempre o fascista ideológico” (RAU, 2013, p. 1). Percebe-se,
portanto, como é imperativo a elaboração de estudos como os apresentados nesta tese,
pautados na perspectiva, para muitos desconfortável, de que os nazistas são seres
humanos. Os homens apresentados nesta pesquisa não são, em sua totalidade, os “hiper-
nazistas”: há diversas nuances e camadas nesses indivíduos e, com relação à sua
complexidade, eles não são diferentes ou especiais. Aliás, sua normalidade é tão
perceptível, que, mediante a pena de morte, eles fazem o que se espera de qualquer ser
humano que se encontra em tal situação: tentam lutar por suas vidas, nesse caso, através

33
O conceito de totalitarismo, quando usado na tese, faz referência à compreensão de Hannah Arendt do
fenômeno. Para Arendt, esse conceito nos auxilia para analisar uma forma de dominação que atingiu as
sociedades modernas, e, neste sentido, o nazismo se apresentou como uma forma histórica desse novo tipo
de regime político, assim como o stalinismo na União Soviética. Arendt se empenha em apresentar os traços
desse tipo de regime que, para ela, foi único e que não poderia ser concebido dentro das teorias de regimes
tradicionais. A filósofa entende o totalitarismo como uma possibilidade política da Modernidade e que foi
possível justamente por estar inserido nessa Modernidade. Ainda que não tenha sido criado por Arendt, foi
através dela e das controvérsias provocadas por suas produções, que o conceito se popularizou. Arendt
estava ciente das diferenças entre as experiências dos diversos países sob a dominação totalitária e se
esforçou para demonstrar as particularidades de cada situação. Em muitos casos, a filósofa é criticada por
pesquisadores que não a compreendem profundamente ou que, amparados por preconceitos vindos de
outras escolas teóricas, rejeitam sua abordagem sem conhecer. Desconsiderando a perspectiva de Arendt
de totalitarismo para o fenômeno stalinista, que não é o escopo desse trabalho (e, do qual, possuo algumas
ressalvas), o conceito está sendo utilizado em todo esse trabalho pensando na análise da autora apenas para
o regime nazista. Sobre o fenômeno stalinista, outras produções, como as de Sheila Fitzpatrick, são muito
mais relevantes. Ver: FITZPATRICK, 2008.
50

de discursos de defesa. E, nesse sentido, de acordo com a pesquisadora Joanne Pettitt,


como sabemos bem quem está falando, temos, a priori um mecanismo de rejeição dessa
narrativa. Essa rejeição está pautada, precisamente, na imagem do nazista como o epítome
do mal.

Está claro, assim, que pensar nos nazistas como intrinsecamente maus não
auxilia na compreensão do Terceiro Reich e nem do Holocausto. Na realidade, como
pontua Pettitt, a mitologização do fenômeno tira de nossas preocupações a necessidade
de buscar explicações humanas para o genocídio. E, seguindo a análise da autora,
devemos ter em mente que compreender e condenar são atividades que não podem ser
feitas simultaneamente (PETTITT, 2018). Afinal, como reitera Tzvetan Todorov, “uma
das lições desse passado recente é exatamente a de que não há ruptura entre os extremos
e o centro, mas uma série de transições imperceptíveis” (TODOROV, 1995, p. 281) que
devem ser condenadas, mas, sobretudo, compreendidas, para que possamos tirar alguma
reflexão construtiva sobre esse período. O Terceiro Reich foi um regime – e um período
histórico – extremo. Contudo, como será possível observar na tese, os indivíduos que
deram cabo desse extremismo nem sempre eram, eles próprios, extremos. É
imprescindível, nesse sentido, apresentar uma visão com mais nuances – e, portanto,
menos simplificada.

Substrato cultural comum

Um outro exemplo de abordagem propícia para compreender os réus em


Nuremberg são as contribuições advindas do campo da sociologia, da qual podemos citar,
naturalmente, Zygmunt Bauman, com a perspectiva do Holocausto como um genocídio
moderno, resultado da burocracia moderna e de outros aspectos constituintes de nossos
tempos; mas também, autores como Stefan Kühl, que, ao analisar as organizações do
Terceiro Reich, propõe o conceito de motivos generalizantes. Para Kühl, mesmo que os
participantes tenham motivos diferentes para sua atuação, seu contínuo envolvimento
infere em uma generalização dos motivos de estar e de permanecer naquela organização
(KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 40). Na tese, os motivos generalizantes fazem parte
da categorização dos discursos dos réus em arquétipos. Como Mary Fullbruck ressalta,
nos casos de diplomatas como Franz von Papen, mesmo com uma “relativa
insignificância das convicções ideológicas”, era importante “um consenso mínimo básico
em torno dos objetivos” (KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 29).
51

Dessa maneira, é possível perceber algumas justificativas que aparecem com


frequência, mesmo dentre as diferentes tipologias propostas na tese para analisar os
discursos dos nazistas em Nuremberg. A rejeição do Tratado de Versalhes e a necessidade
de anexação da Áustria, por exemplo, são pontos de concordância entre todos os julgados.
“A agregação de múltiplos elementos fazia com que sempre houvesse uma razão, uma
ideia, um argumento para ser ou se tornar nazista”, diz Johann Chapoutot. Elementos
como o “nacionalismo, racismo, antissemitismo, expansionismo a Leste,
anticristianismo” faziam com que os indivíduos aderissem ao “discurso nazista por pelo
menos um dos motivos”. E, dessa maneira, o nazismo pode ser compreendido como “um
conjunto de ideias suficientemente convincentes e para muitos contemporâneos
suficientemente pertinentes para levá-los a consentir, aderir e agir” (CHAPOUTOT,
2022). Assim, os motivos generalizantes nos fazem retomar ao conceito de “substrato
cultural comum”, de Christian Ingrao.

Ainda sobre esse ponto, como será possível observar, os arquétipos muitas
vezes se encontram e estão intimamente interligados. Algumas características discursivas
aparecem em mais de um arquétipo e muitas formas de evasão de responsabilidade se
repetem em todas as tipologias. Contudo, a minha proposta definidora diz respeito à
característica do discurso que mais aparece nas narrativas daquele réu. Qual é a estratégia
discursiva mais frequente em seus interrogatórios? O que salta aos olhos ao ler as
exposições desse homem? Na maioria das vezes, essa estratégia é perceptível até mesmo
pela acusação e pelos outros réus.

Sendo assim, Hjalmar Schacht, mesmo defendendo o conservadorismo das


elites de Weimar, não é um diplomata da velha guarda porque o que prevalece em seu
discurso é a sua alegada resistência ao regime nazista. Como ele sempre disse “não” ao
nazismo, Schacht era o No-man em Nuremberg, em um polo totalmente oposto a Joachim
von Ribbentrop, o Yes-man, aquele que sempre disse sim, sobretudo a Hitler. Walther
Funk, apesar de demonstrar arrependimento e falar sobre a culpa moral de todos os réus,
não se configura como um ex-nazista arrependido, porque o que marca sua fala é a
negação de toda e qualquer responsabilidade sobre as atrocidades do regime nazista e
sobre a sua própria esfera de trabalho. Por se apresentar como um homem desimportante
e, de muitas maneiras ignorante, Funk se assemelha muito mais com Ernst Kaltenbrunner
e Fritz Sauckel, os negacionistas relapsos, do que a Hans Frank. Talvez a categoria de
mais fácil identificação seja a dos militares apartidários. Entretanto, mesmo nesse
52

arquétipo, podemos constatar argumentos que são recorrentes em outras tipologias. A


questão da necessidade de obedecer às ordens e diretrizes aparece em quase todos os
discursos dos nazistas. Não obstante, os militares apartidários se destacam pela
insistência em atrelar essa obediência à lógica militar e por se apresentarem como
soldados, e não funcionários.

Nicht schuldig

As justificativas dos nazistas não são, como lembra Johann Chapoutot, “de
forma alguma, excepcionais”. Como vimos, todos os réus em Nuremberg afirmam: Nicht
schuldig, inocente, e é fundamental compreender essas alegações. Para pensar em alguns
dos casos no tribunal, estou de acordo com o historiador quando ele propõe que “os
argumentos desses réus não foram cínicos ou provocativos, nem foram feitos em negação
ou desonestidade – esses homens realmente acreditaram no que estavam dizendo. A
maioria deles estava convencida de que estava fazendo a coisa certa”. Sendo assim, “em
outras palavras, os atos que eles cometeram fizeram sentido para eles” (CHAPOUTOT,
2018, p. 4). É imperativo sair de categorias simplistas já mencionadas, como a inerente
“barbaridade” específica dos alemães, para compreender, sobretudo, as falhas do
processo de desnazificação. Afinal, “além de confrontar o fato de que eles eram europeus
do século XX, devemos aceitar o fato de que os nazistas eram, simplesmente, pessoas”.
Analisar as circunstâncias a que eles estavam submetidos demonstra como os nazistas
“têm em comum com todos os outros humanos” o fato de que “suas vidas ocorreram
dentro de um universo de significados e valores. [...] Esses homens não eram loucos. Eles
não viam suas ações como criminosas. Em vez disso, eles estavam cumprindo uma tarefa,
um Aufgabe – talvez desagradável, mas ainda assim necessária” (CHAPOUTOT, 2018,
p. 6).34

Essa perspectiva de análise não significa seguir a linha de Milgram e acreditar


que existe um “Eichmann em potencial” em cada um de nós. Mas demonstra, sim, como
é confortável permanecer na visão de que existe tão nitidamente a divisão “eles” x “nós”;
“civilização” x “barbárie”. É reconfortante pensar que nós não faríamos o que esses
homens fizeram, dadas as mesmas circunstâncias e inseridos no sistema de crenças.

34
Devo meus agradecimentos ao professor Johann Chapoutot por ter concedido uma entrevista ao Núcleo
Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT) e ter reforçado como é possível analisar as fontes
com esse olhar. Compreender a ideologia nazista como algo a ser levado a sério foi um divisor de águas
para mim. A entrevista está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Dn5J0I_8ZN0&t=1714s
(Acesso em 29/01/2023)
53

Nunca saberemos se isso é de fato verdade, afinal, como Bauman pontua, esse dilema nos
foi poupado (BAUMAN, 1998a, p. 234–235). Que fique claro, no entanto, que existe um
limite para essa compreensão, e esse limite é, precisamente, a responsabilidade pessoal
de cada um. Seguindo a perspectiva de Christopher Browning, os nazistas “enfrentaram
escolhas, e a maioria deles cometeu atos terríveis. Mas aqueles que mataram não podem
ser absolvidos pela ideia de que alguém na mesma situação teria feito o que eles fizeram.
Pois mesmo entre eles, alguns se recusaram a matar e outros pararam de matar”
(BROWNING, 1998, p. 188).35 Sendo assim, existe uma culpa individual do protagonista
específico dentro daquela situação em específico que precisa ser levada em conta e que
não pode ser minimizada pela presunção de um relativismo moral. Nesse sentido, pelo
menos, o Julgamento de Nuremberg fez o seu trabalho.

E, ainda que Nuremberg não seja o local para compreender o que os nazistas
pensavam durante o Terceiro Reich (se é que existe esse local), é o terreno ideal para
observar como, o que eles diziam era tão significativo e sério para eles, a ponto de muitos
continuarem pregando os mesmos princípios no tribunal – como é o caso dos defensores
fiéis. É demasiado simplista descartar o que os nazistas dizem no tribunal como meras
tentativas de exculpação, ainda que algumas de suas justificativas cheguem até mesmo a
serem risíveis, como é o caso das negações de Ernst Kaltenbrunner. Entretanto, como
alerta Chapoutot, é preciso superar o abandono desses discursos pelos historiadores. Essas
narrativas, assim como as analisadas por Chapoutot em The law of blood, “lançaram uma
nova luz sobre o nazismo e suas práticas, ao nos familiarizar com os medos, os postulados
e os projetos que o compreendiam” (CHAPOUTOT, 2018, p. 411). Acrescento, ainda,
que esses discursos dizem muito sobre quais partes de si mesmos os nazistas estavam
dispostos a abandonar para salvar suas vidas – e quais partes eles não abriam mão.
Tomando emprestada a analogia de Joanne Pettitt, existe um paradoxo nesse tipo de
julgamento, no qual o acusado pode até reconhecer sua culpa “nos termos expostos por
seus captores mas, simultaneamente, não consegue sentir essa culpa em si mesmo porque
trairia sua própria compreensão do valor ético” (PETTITT, 2018, p. 38). Afinal, como
será possível perceber, para muitos, esse sistema de valores ainda era nazista.

35
Mais um agradecimento é necessário: dessa vez, ao professor Christopher Browning por ter concedido
uma entrevista ao Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT), na qual essas questões
ficaram ainda mais evidentes para mim. Essa entrevista foi um ponto alto da minha trajetória e esclareceu
muitas das minhas angústias. A entrevista está disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=JLsAIlna3kc (Acesso em 29/01/2023)
54

Estou convencida de que, mesmo com todas as problemáticas, essas narrativas


não devem ser descartadas. Como lembra Wendy Lower ao falar sobre as mulheres
perpetradoras durante o Terceiro Reich: “ao fim de certo tempo, aprendemos a ler e a
ouvir esses relatos, a detectar técnicas de evasão, histórias exageradas e conformismo a
tropismos e clichês literários. E tentamos corroborá-los para testar sua veracidade.
Contudo, é a subjetividade dessas fontes que as faz especialmente valiosas” (LOWER,
2014, p. 25). Em linha similar, Ian Kershaw aponta que, para entender os relatos de
opinião popular durante o Terceiro Reich, é preciso “saber ler nas entrelinhas, reconhecer
os silêncios, os sentimentos não expressos” (KERSHAW, 2009, p. 122). A compreensão
das narrativas desses homens em Nuremberg também perpassa pelo reconhecimento dos
silêncios e pela leitura entre as linhas, ainda que, de toda forma, essa seja uma
interpretação necessariamente limitada, hipotética e não definitiva, como aponta o
próprio Kershaw.

Tentei, ao longo da escrita, sempre deixar claro que aquelas são as percepções
dos nazistas sobre si mesmos. Por vezes soa repetitivo a utilização de termos como “de
acordo com”; “na visão de”; “em sua perspectiva”; “para ele”. Essa foi uma estratégia
que recorri por estar muito consciente de que o terreno que estou pisando é extremamente
espinhoso:36 há placas de “Atenção!” por toda parte nesta tese. Ainda que esse tenha sido
um esforço cuidadoso, por vezes, tomei emprestada a metodologia de Johann Chapoutot
em The Law of the Blood, na qual ele lida com os discursos nazistas de forma mais direta.
Por exemplo, ao analisar a autobiografia de Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz,
Chapoutot utiliza de recursos narrativos na primeira e terceira pessoa, de modo a colocar
mais legitimidade e autenticidade no discurso do nazista:

Aliviado, Höss poderia agora mostrar seus sentimentos e deixar-se levar por
uma confortável autopiedade: a opinião pública, que o veria como um sádico
e um monstro, poderia entender “que ele tinha um coração, e que esse coração
não era ruim” Apenas uma ideia heroica do dever e uma profunda consciência
da necessidade desses procedimentos lhe permitiram realizar sua tarefa sem
falhar ou enfraquecer. (CHAPOUTOT, 2018, p. 397)

Sendo assim, em momentos da tese onde utilizo artifícios para tornar a escrita
mais fluida e, sobretudo, mais interessante, que fique claro que não estou, evidentemente,
concordando com o que os réus estão dizendo, ou “comprando” o seu discurso e
acreditando ingenuamente na forma como eles se apresentam para o tribunal. Menos

36
Agradeço, novamente, ao professor Marcelo Jasmin por ter me presenteado com essa analogia na minha
banca de qualificação: sim, meus “incensos estão espalhados por aqui”.
55

ainda que estou desculpando-os pelo que eles fizeram, uma vez que estavam em
circunstâncias únicas. Estou continuamente atenta à proposta metodológica que me
amparo e compreendo que estas narrativas são formas de autoapresentação
conscientemente escolhidas pelos nazistas com objetivos definidos. Não obstante, é
necessário ressaltar que, como propõe Kershaw, tornar mentalidades e comportamentos
passados mais explicáveis, compreensíveis, e, em certa medida, “normais”, não os torna
menos condenáveis – apenas mais historicamente situados (KERSHAW, 2009). Afinal,
o nazismo não está fora do método historiográfico e da análise sobre representações e
precisa ser tratado com a mesma objetividade e seriedade que qualquer outro período
histórico. Ir em busca do que George Mosse chamava de “olho do nazismo” é
simplesmente fazer história e “transformar plenamente o nazismo em objeto da história”
(CHAPOUTOT, 2022, p. 19).

Concluo reafirmando que sequer tenho a pretensão de dar uma resposta para o
problema da consciência dos nazistas, ou da moral dos seres humanos e da possibilidade
da onipresença do mal, tampouco quero apresentar quais são os verdadeiros motivos que
levam os indivíduos a fazer o que fazem. Busco, contudo, demonstrar como os nazistas
se apresentam no Julgamento de Nuremberg e contribuir para compreensão desse
período. Essas fontes, com suas particularidades próprias, não deixam de ser um material
rico de análise e não devem ser deixados de lado meramente pelo princípio de “não dar
voz aos nazistas”. Afinal, eles têm voz – e ainda tem voz. Ouvi-los não quer dizer perdoá-
los ou entendê-los em seus erros. Quer dizer lançar um olhar mais profundo para essa
ideologia e complexificar mais esse objeto. Todorov alerta que nos recusar “a acreditar
neles e, finalmente, a ouvi-los” é um mecanismo de defesa: “se o fizéssemos seríamos
obrigados a repensar radicalmente a própria vida. São dores que preferimos ignorar”
(TODOROV, 1995, p. 281). Chapoutot está absolutamente correto quando diz que “é
intelectualmente mais desestabilizador, humanamente mais perturbador e, para dizer a
verdade, psicologicamente mais perigoso penetrar numa maneira de encarar o mundo –
uma visão de mundo, portanto – que foi capaz de conferir sentido e valor a crimes
inomináveis” (CHAPOUTOT, 2022, p. 19). Entretanto, ele também tem razão ao concluir
que esse é um risco necessário para a compreensão desse passado. Por esse motivo, sem
pretender dar explicações simples para perguntas difíceis, busco oferecer caminhos de
respostas possíveis que espero que sejam úteis ao leitor. Afinal, como lembra Christopher
Browning:
56

Os homens que realizaram esses massacres, como aqueles que recusaram ou


esquivaram, eram seres humanos. Devo reconhecer que, em tal situação, eu
poderia ter sido um assassino ou um ‘esquivante’ – ambos eram humanos – se
eu quiser entender e explicar o comportamento dos dois, da melhor forma que
posso. Este reconhecimento realmente significa uma tentativa de empatia. O
que eu não aceito, no entanto, são os clichês antigos que explicar é desculpar,
que entender é perdoar. Explicar não é desculpar; entender não é perdoar. A
noção de que se deve simplesmente rejeitar os atos dos perpetradores e não
tentar compreendê-los tornaria impossível, não só a minha história, mas a
história de qualquer perpetrador que pretendia ir além de uma caricatura
unidimensional (BROWNING, 1992, p. 36).

PARTE II:

Peripeteia37

Desnazificação?

O princípio do Julgamento de Nuremberg se deu também no princípio do


processo de desnazificação da Europa, tendo como símbolo a Conferência de Potsdam,
ocorrida entre 17 de julho e 2 de agosto de 1945. Nesta conferência, reuniram-se os
representantes políticos dos países Aliados: Harry Truman dos Estados Unidos, Winston
Churchill da Inglaterra e Stalin da URSS. Estava nas mãos destes três homens o futuro
da Alemanha e da Europa e os próximos passos da ocupação Aliada. Essa ocupação tinha
quatro objetivos principais: a desmilitarização, a desnazificação, a democratização e a
descartelização (KERSHAW, 2016). Para além da decisão dos acordos de indenização,
da reversão de todas as anexações alemãs pós-1937, da separação da Alemanha com a
Áustria, da divisão da Alemanha entre os Aliados entre Alemanha Oriental (controlada
pela URSS) e a Alemanha Ocidental (controlada no sudoeste pela França, no noroeste
pelo Reino Unido e no sul pelos EUA), um dos marcos da Conferência de Potsdam foi a
decisão de expurgar os nazistas da Alemanha e julgá-los. Para que a Alemanha pudesse
desempenhar qualquer papel positivo na Europa após a Segunda Guerra, ela precisaria se
reconstruir como uma democracia e julgar seus algozes.38

A cidade de Nuremberg foi escolhida como palco do primeiro julgamento dos


nazistas por ter uma corte grande e que ainda estava intacta, um Palácio da Justiça com

37
Um “ponto de virada decisivo (a decisive turning point)”, termo em latim usado pelo advogado Dr. Dix
durante o caso de Hjalmar Schacht (BS, 12, pp. 452-453).
38
Parte da minha argumentação nessa seção e na próxima foi retirada e adaptada do capítulo que escrevi.
Ver VISCONTI, 2022.
57

uma prisão adjacente, e, ainda, por ser de fácil acesso. O fato de ter um simbolismo por
ter sido o palco das leis de Nuremberg e dos comícios do Partido era apenas um bônus.
Além de tudo, Nuremberg ficava na zona estadunidense de ocupação (PRIEMEL, 2016).
No entanto, existiam inúmeras dificuldades para construir esse tribunal, não somente em
relação à reunião de provas, à construção dos argumentos e à formulação das denúncias,
mas sobretudo, em relação ao próprio objetivo. Como lembra Robert Gellately, “a questão
do destino dos líderes nazistas é de natureza política, e não judicial” (GOLDENSOHN,
2005a, p. 11). Estava claro, portanto, como “nunca houve um plano ou uma política fixa
e bem definida em Nuremberg” (SMITH, 1979, p. XVII).

Os Aliados demoraram a chegar em um acordo sobre como levar esse


julgamento adiante devido às diferenças dos sistemas legais em cada país. Além disso, os
líderes das Quatro Potências também tinham visões contrastantes sobre o processo legal.
Churchill era a favor que os nazistas fossem fuzilados assim que detidos, Stalin preferia
que eles fossem julgados antes da execução, mas que fossem executados e os Estados
Unidos defendiam um processo legal formalizado onde existiria teoricamente uma
pretensão de “inocente até que se prove o culpado”. A visão estadunidense venceu essa
disputa narrativa e o modelo escolhido para a jurisdição39 foi o Anglo-Saxão com direito
a interrogatórios (cross-examination). É válido mencionar, entretanto, que mesmo com
esse modelo, os réus “foram privados de muitos dos direitos mais importantes garantidos
pela Constituição norte-americana”, como a invocação da Quinta Emenda, “que lhes teria
permitido se recusarem a responder a uma pergunta se ela pudesse incriminá-los”
(GOLDENSOHN, 2005a, p. 15). Além disso, Bradley Smith reforça como “no início do
julgamento, nenhum dos juízes tendia a votar em favor das absolvições; tudo indica que,
de início, supunham que lhes fossem apresentadas provas para incriminar todos os 22
réus” (SMITH, 1979, p. 285–286).

Com relação às acusações, temos questões complexas para analisar: em 8 de


agosto de 1945 foram estabelecidos os parâmetros e as regras para o julgamento, qual
seria a constituição do tribunal, os direitos dos réus e as quatro alegações da acusação, a

39
A jurisdição inicialmente previa cobrir os crimes dos países europeus do Eixo, contudo, houve uma
enorme falta de interesse no caso italiano, sobretudo após a morte de Mussolini, e isso levou a inicialmente
apenas os alemães serem julgados mediante uma corte internacional (PRIEMEL, 2016). Entre 1946 e 1948
ocorreu também o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, também conhecido como
Julgamento de Tóquio, responsável por julgar os crimes cometidos pelo Império do Japão durante a
Segunda Guerra Mundial. É válido lembrar, entretanto, que os crimes cometidos pelo Japão em sua
ocupação na Coreia e na China não foram tratados nesse tribunal.
58

saber:

• Acusação 1 (Count One): Crime de conspiração em ação criminosa.


• Acusação 2 (Count Two): Crimes contra a paz.
• Acusação 3 (Count Three): Crimes de guerra.
• Acusação 4 (Count Four): Crimes contra a humanidade.

A Acusação 1 era a “menina dos olhos” dos Estados Unidos e previa que “os
acusados haviam ‘participado como líderes, organizadores, instigadores ou cúmplices de
formulação ou execução de um plano comum ou conspiração para cometer, ou que
envolvia o cometimento de Crimes contra a Paz, Crimes de Guerra e Crimes contra a
Humanidade’” (GOLDENSOHN, 2005a, p. 15–16). Era basicamente uma acusação que
englobava todas as outras e pautava todo o caso estadunidense, ainda que por si só não se
sustentasse juridicamente por se tratar de um aspecto teórico que impõe dificuldades na
apresentação de provas concretas em um tribunal. A Acusação 2 indiciava os réus “que,
durante muitos anos, ‘participaram do planejamento, preparação, início e
empreendimento de guerras de agressão, guerras essas que também violavam os tratados,
acordos e garantias internacionais’”. Uma acusação curiosa, que englobava a invasão
alemã na Polônia, mas que excluía o papel da União Soviética nessa invasão. A Acusação
3 “acusou os réus de possuírem um ‘plano comum ou conspiração para cometer crimes
de guerra’. A realização desse plano teria envolvido a prática da ‘guerra total’, que
excedia ‘as leis e costumes da guerra’”. Dessa forma, “os réus foram acusados de crimes
como o assassinato de populações civis e prisioneiros de guerra, além de maus-tratos
infligidos a eles, deportações e exploração do trabalho escravo, o assassinato de reféns e
a pilhagem e destruição injustificável de cidades e aldeias”. A última e mais controversa
Acusação, previa crimes contra a humanidade, incluindo “‘assassinato, extermínio,
escravização, deportação e outros atos desumanos cometidos contra populações civis
antes e no decorrer da guerra’” e também a “‘perseguição por motivos políticos, raciais e
religiosos na execução do, ou ligada ao, plano comum mencionado na acusação um’”
(GOLDENSOHN, 2005a, p. 15–16).

O tribunal foi composto por um juiz britânico que presidia os processos e mais
um juiz de cada país Aliado. Apesar de, no papel, os Estados Unidos serem os
responsáveis pelas Acusações 1 e 2 e a União Soviética e a França serem responsáveis
pelas Acusações 3 e 4, o que permaneceu foi uma grande imprecisão com acusações
59

gerais a todos os julgados e todos os conspiradores, enquanto as acusações individuais


eram feitas só no appendix. Com isso também ficou a dúvida se o que estava sendo
julgado era um sistema ou atos específicos de pessoas específicas. Os procedimentos
também não foram menos confusos: cópias não eram oferecidas para todos do tribunal,
mas eram distribuídas às centenas para a imprensa; a tradução simultânea por vezes
gerava problemas de compreensão e os primeiros meses foram extremamente caóticos.
Ao ler as transcrições, fica claro que os próprios julgados sequer sabiam como se portar
nesses procedimentos: diversas vezes eram interrompidos por estarem “divagando”
quando estavam tentando explicar suas ações e os juízes precisavam se impor com
frequência em relação aos pedidos dos advogados. O processo em geral foi longo e
exaustivo para todos: julgados, advogados, testemunhas, juízes e imprensa.

A Acusação 1 foi a que causou mais problemas porque pressupunha uma


coerência e um planejamento em todo o maquinário nazista desde o começo do Terceiro
Reich. A promotoria, sobretudo a estadunidense, buscou mostrar a intencionalidade dos
nazistas de cometer crimes específicos, incluindo o planejamento a longo prazo de uma
guerra de agressão e ainda do assassinato dos judeus (PRIEMEL, 2016). É válido pontuar,
entretanto, que “à altura de 1946, parecia haver todo um mundo de diferença entre
denunciar o Tratado de Versalhes e dirigir o campo de extermínio de Auschwitz”, mas,
“mesmo hoje em dia, os historiadores”, como ficará mais evidente em seções posteriores
desta Introdução, “teriam muita dificuldade em demonstrar que havia firmes ligações de
causa e efeito entre as fases principais e os acontecimentos mais significativos do Terceiro
Reich” (SMITH, 1979, p. 301). A defesa, por outro lado, usou essa acusação para explorar
a noção de que o Terceiro Reich era uma máquina burocrata ineficiente, o que
impossibilitava a ideia de conspiração. Os julgados mobilizaram esse argumento para
reforçar que não sabiam de nada, ou que tinham conhecimentos e ações limitadas dentro
da administração. Para Kim Priemel, caso não houvesse a insistência na manutenção
dessa alegação, talvez o tribunal fosse mais eficiente, sobretudo para fins didáticos.

O historiador ainda alerta para a escassez de debates ou reflexões acerca da


escolha dos julgados e demonstra que a qualidade mais essencial desses homens era que
eles estavam vivos, já que outros grandes nomes como Goebbels, Himmler e Hitler,
haviam morrido na guerra. Esse vai ser um ponto nevrálgico durante todo o tribunal,
sobretudo nas narrativas dos réus. Outros autores, como Bradley Smith, defendem que a
escolha dos julgados foi significativa e que existia sim uma certa unidade naquele grupo:
60

“os réus ali estavam como representantes das organizações e dos episódios do Terceiro
Reich que os Aliados acharam mais repreensíveis e mais merecedores de punição. É
preciso acentuar o caráter coletivo e representativo dos réus” (SMITH, 1979, p. 13). De
fato, como ficará claro ao longo da tese, muitos dos nazistas estavam no tribunal como os
representantes não somente das organizações, mas também, como os representantes dos
homens ausentes.

A primeira sessão preliminar ocorreu em Berlim em 18 de outubro de 1945 e


depois os julgamentos foram realocados para o Palácio da Justiça em Nuremberg, com as
sessões se iniciando em 14 de novembro. Os procedimentos legais duraram cerca de nove
meses, de 22 de novembro de 1945 a 31 de agosto de 1946, contando com quatro juízes
e quatro promotores, todos com a sua própria equipe – ainda que a equipe estadunidense
fosse a mais numerosa, com cerca de 200 pessoas, enquanto a britânica tinha cerca de 30
e as francesas e soviéticas eram ainda menores. O julgamento contou com 403 sessões
abertas, 16.793 páginas de transcrição, 4.600 documentos como evidência, 61.854
visitantes, 166 testemunhas e tradução para quatro línguas (PRIEMEL, 2016). Foram
julgados efetivamente 21 nazistas vivos, ainda que as acusações contassem com Martin
Bormann, julgado in absentia. Dos julgados, 12 foram condenados à morte por
enforcamento,40 três foram considerados inocentes, três foram condenados à prisão
perpétua, dois foram condenados à 20 anos de prisão, um à 15 anos de prisão e um à dez
anos de prisão. As principais organizações do regime nazista também foram julgadas em
Nuremberg: o gabinete do Reich, a liderança do NSDAP, a SA, a SS, a Gestapo e o alto
comando das Forças Armadas41. A ideia era de que, se essas organizações fossem
comprovadamente criminosas, seria mais fácil julgar seus membros posteriormente. Ao
fim e ao cabo, no veredito, apenas a SA, o gabinete do Reich e o alto comando das Forças
Armadas não foram consideradas criminosas. Membros dessas organizações seriam
julgados em sequência pelo governo estadunidense nos 12 julgamentos posteriores,
conhecidos como Julgamentos subsequentes de Nuremberg ou NMT: Nuremberg

40
Destes, três pediram que a execução fosse feita por fuzilamento, uma morte considerada mais digna e
padrão para oficiais militares: Alfred Jodl, Wilhelm Keitel e Erich Raeder. Os pedidos foram negados e
todos foram executados em 16 de outubro de 1946 por enforcamento, com exceção de Hermann Göring
que se suicidou na noite anterior.
41
NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeitpartei) era o Partido Nazista; a SA (Sturmabteilung) era
conhecida como a Tropa de Assalto nazista, uma organização paramilitar; a SS (Schutzstaffel) era uma
organização paramilitar que servia como Tropa de Proteção, mas que a partir de 1939 contava com o seu
próprio exército armado independente do exército nacional; a Gestapo (Geheime Staatspolizei) era a polícia
secreta do Estado.
61

Military Tribunals.

Por fim, Nuremberg foi um julgamento caríssimo, sobretudo se pensarmos no


trabalho de transcrição de todos os documentos e de todo o processo, a tradução
simultânea em quatro línguas, a filmagem dos procedimentos, os guardas em cada cela,
a casa onde as testemunhas estavam instaladas. O tribunal parecia uma ilha estranha em
meio à ruína da cidade de Nuremberg, que havia perdido dois terços da população na
guerra. Não obstante, o objetivo do tribunal, dizia-se, não era o de ser uma “justiça dos
vencedores”, e sim, de ser educativo e didático, com a premissa de “dar sentido a guerra”,
ainda que fosse ainda mais importante “qual significado seria apresentado no tribunal e a
quem” (PRIEMEL, 2016, p. 99). É claro que, a nível educativo, o que pode ser aprendido
– e apreendido – de um tribunal perpassa a visão da promotoria: são homens como Robert
Jackson que vão definir que lições o mundo deverá tirar de Nuremberg. Por fim, a
expectativa de um caráter pedagógico desse tipo de julgamento, como veremos, na
realidade não passa disso: uma expectativa. É importante ponderar, contudo, como os
juízes “tomaram suas decisões numa oportunidade e num lugar quando e onde quase se
podia aspirar a fumaça das fábricas de morte de Auschwitz e Treblinka” (SMITH, 1979,
p. 233). Apesar de todas as problemáticas, estava claro para todos que aquele tribunal
provavelmente não iria coincidir com o julgamento da História ou com o de Deus
(PRIEMEL, 2016, p. 146). Nesse ponto, acreditava-se que até mesmo os nazistas
inocentados teriam contas a prestar.

Nuremberg e o Holocausto

Se a Acusação 1 causou transtornos, a Acusação 4 não era diferente. A recém-


criada acusação de crime contra a humanidade não tinha um escopo abrangente o
suficiente e sequer abarcou a perseguição e extermínio dos judeus antes de 1939. As
definições deixaram de ser tão nebulosas alguns anos depois, em 1948, com a definição
de genocídio formulada pela Organização das Nações Unidas (ONU), mas, ainda assim,
as questões do extermínio e de crimes contra a humanidade permaneceram – e
permanecem – problemáticas, afinal, são conceitos que definem a humanidade por alguns
termos, tornando algumas mortes mais justificáveis do que outras. Nesse sentido,
podemos tomar como exemplo, inclusive, a ausência de um julgamento dos Estados
Unidos pelas bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, que seguem até os dias atuais
sendo vistas por muitos estudiosos como necessárias para um fim menos penoso da
Segunda Guerra Mundial. Grande parte dessa problemática está relacionada com a
62

própria noção de guerra total. Como pontua Smith, a Acusação 4 “é a consequência lógica
da guerra total. […] Permitiu-se assim que fossem julgados ‘criminosos de guerra’
anteriores à própria guerra” (SMITH, 1979, p. 15).

Outras contradições também são evidentes quando analisamos a postura dos


Aliados nesse tribunal. Em Nuremberg, os Estados Unidos deixaram claro que crimes
domésticos só deveriam ser apresentados se tivessem relação com o planejamento e
execução de uma guerra de agressão e que somente assim poderiam ser julgados. Isso
serviu como forma de evitar que o antissemitismo e a perseguição racial na Alemanha
antes da Segunda Guerra fossem criminalizáveis, uma vez que isso significaria
inevitavelmente que tais atos fossem comparáveis com a discriminação racial que
também ocorria na mesma época nos Estados Unidos (PRIEMEL, 2016). É notório,
portanto, no perceptível relativismo discursivo sobre os crimes de guerra como “aquilo
que pode parecer a um dos lados atrocidade, no início das hostilidades, assume o aspecto
de reticência civilizada, quando em contraste com o crescente de massacres que se
desenvolve no fim” (SMITH, 1979, p. 321).

Ainda com relação às acusações, é importante mencionar que, apesar de as


atrocidades cometidas aos judeus serem utilizadas como narrativa durante o tribunal,
nenhum dos acusados foi indiciado especificamente por esses assassinatos. Portanto, ao
analisarmos Nuremberg não podemos perder de vista o aspecto político desse tribunal.
Como demonstrado, controvérsias foram constantes durante os procedimentos pelo
ineditismo desse tipo de julgamento e pelas questões delicadas de um processo de
redemocratização após uma guerra mundial. Para além disso, Nuremberg também foi o
momento em que o mundo tomou conhecimento de forma mais generalizada sobre o
extermínio realizado pelo governo nazista. No entanto, devemos nos ater para fato de que
esses procedimentos não são uma forma adequada para a compreensão do fenômeno
Holocausto, sobretudo porque durante essa disputa legal o extermínio estava sendo
apresentado do ponto de vista dos perpetradores e não das vítimas. Ainda que Nuremberg
tenha trazido sobreviventes do genocídio para testemunhar, suas narrativas só se
estabeleceram décadas depois na historiografia e no hall das representações do
Holocausto. É válido pontuar, contudo, que ainda que os judeus não exercessem um papel
fundamental no tribunal, os dados apresentados de que 5,7 milhões de judeus foram
exterminados durante o Terceiro Reich foram fornecidos pelo Instituto de Pesquisa
Judaica e o Comitê Americano Judaico (PRIEMEL, 2016).
63

Sendo assim, nem os estadunidenses e nem os britânicos conseguiram


desenvolver bem o “caso do Holocausto” durante os procedimentos e a tentativa soviética
também apresentou falhas por fazer pouca ou nenhuma distinção entre o extermínio dos
judeus e o tratamento dispensado ao povo soviético nas zonas ocupadas. Nesse sentido,
questões relacionadas ao trabalho escravo e aos campos de trabalho também se
confundiam com o processo sistematizado de extermínio do povo judeu, fazendo com
que as acusações de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade se fundissem. A
conclusão da acusação foi basicamente a de que o nacional-socialismo foi uma tentativa
quase bem-sucedida de exterminar um grupo enorme de pessoas, de forma geral. O
Holocausto, nesse sentido, “não era tanto um crime sui generis, mas fazia parte de um
plano nazista mais amplo” (PRIEMEL, 2016, p. 117). Nesse contexto, o caráter racial do
Terceiro Reich foi majoritariamente deixado de lado. Para além disso, outros grupos de
vítimas do regime nazista, como os roma e sinti, sequer são mencionados durante os
procedimentos – e, ainda na atualidade, permanecem frequentemente esquecidos.

Ainda que essa não seja uma tese sobre o Holocausto, o extermínio sistemático
dos judeus ocupa um espaço considerável na construção do meu raciocínio. Mesmo que
nem todos esses homens estivessem diretamente envolvidos com o genocídio e nem
sequer estivessem sendo acusados ou julgados sobre essa questão, foi em Nuremberg que
começou a se delinear o debate sobre o papel de Hitler na Solução Final. Nesse
julgamento já estava sendo colocado em pauta se existiu, de fato, uma ordem direta de
Hitler para seus subordinados demandando que os judeus fossem assassinados. Se tal
ordem não existiu, qual seria o papel de cada indivíduo dentro da cadeia de comando na
execução dos assassinatos? Qual seria, então, a dimensão da culpa a nível regional e como
a confusa burocracia do Terceiro Reich compreendeu o seu próprio papel?

O debate se estabeleceu posteriormente na historiografia como uma diferença


entre argumentos “estruturalistas” ou “funcionalistas” e “intencionalistas”. De acordo
com os historiadores que seguem a linha intencionalista, Hitler teria sido o grande
responsável pelo extermínio dos judeus, já que seria possível traçar suas intenções
genocidas desde antes de assumir o poder em 1933 – ou, até mesmo antes, levando em
consideração sua proposta ideológica em seu livro Mein Kampf. Desta forma, o caminho
para Auschwitz teria sido dado de acordo com uma linha lógica de acontecimentos que
estavam previstos desde o princípio da carreira política de Hitler, que sempre teria tido a
intenção de eliminar fisicamente os judeus.
64

Historiadores estruturalistas, por outro lado, ressaltam que Hitler não poderia
ser responsabilizado como um grande estrategista que tinha intenções claras e definidas
desde os primórdios do movimento nacional-socialista, visto que o caminho em direção
ao Holocausto foi inserido dentro da desorganização da estrutura interna do NSDAP,
onde burocratas tais como Eichmann muitas vezes tomavam decisões baseadas nas suas
interpretações das ordens que recebiam. Neste sentido, a dinâmica contraditória interna
possibilitava o caos entre os funcionários, o que leva a conclusão de que Hitler não havia
de fato dado uma ordem direta quanto ao genocídio dos judeus: a Solução Final teria
ocorrido muito mais pela interpretação dos funcionários do Partido, do Imperativo
Categórico do Terceiro Reich, o “agir de tal modo que o Führer, se souber de sua atitude,
aprove” (ARENDT, 1999, p. 153). Como é possível perceber, em Nuremberg, essas
discussões já estavam postas: afinal, o argumento da acusação estadunidense de “crime
de conspiração” perpassa a teoria intencionalista e a justificativa da defesa está
profundamente amparada na teoria estruturalista.

Colocando em perspectiva as duas teorias e o avanço da historiografia até então,


atualmente podemos ponderar que o caminho para Auschwitz não foi contínuo, e sim,
enviesado, como propõe Karl Schleunes (1990), ainda que alguns passos tenham sido
necessários para que o extermínio fosse um processo e não uma ação única, como
entendem Raul Hilberg (2016) e Zygmunt Bauman (1998). O papel de Adolf Hitler nesse
processo de extermínio e, sobretudo, em sua fase de ação mais direta, é de fundamental
importância, não para julgar a sua responsabilidade pessoal, e sim para entender como
esses homens em Nuremberg entendem suas próprias responsabilidades. Afinal, se Hitler
teve efetivamente um papel ativo no extermínio, esses homens estavam apenas, de fato,
seguindo ordens. Por outro lado, se o Führer não direcionou o caminho para o Holocausto,
então, o entendimento de si próprio como um agente pode levar a uma crise moral. Como
lembra Tzvetan Todorov, em se tratando de ações individuais que causaram o extermínio
sistemático, “a explicação não deve ser procurada no caráter do indivíduo, mas no da
sociedade, que impõe tais ‘imperativos categóricos’. A explicação será política e social,
e não psicológica e individual” (TODOROV, 1995, p. 141).

A construção do sonho ariano

Ao analisar os discursos dos nazistas em Nuremberg foi possível concluir que


existe uma dinâmica do “mito do Führer”, como propõe Ian Kershaw (2001), que será
analisada ao longo da tese, mas, existe também – e para muitos nazistas essa dimensão é
65

mais relevante que a anterior – um mito nacional-socialista. Apesar de para a maioria da


população alemã – e para boa parte dos membros da estrutura organizacional do Terceiro
Reich – a ideologia nazista não estar separada da figura de Adolf Hitler, para alguns dos
julgados em Nuremberg, existe, sim, uma diferença. Para homens como Alfred
Rosenberg e Hermann Göring, a perspectiva de um mundo ariano era mais importante do
que a figura da liderança que levaria a Alemanha a esse mundo. Enquanto para alguns
indivíduos, como Joseph Goebbels, o mundo sem o Führer não era um mundo que valia
a pena viver, levando ao seu suicídio e o de toda sua família após a morte de Adolf Hitler,
alguns membros do séquito nazista pensavam efetivamente em níveis práticos de
sucessão de liderança e de formas de organização possíveis ainda em meio ao caos de
1945. Se há essa reflexão, e se alguns membros da alta cúpula abandonam Hitler em seus
últimos momentos, ou tentam negociar a rendição da Alemanha na guerra, como foi o
caso de Karl Dönitz, então é possível inferir que não há necessariamente uma ligação tão
direta ou tão incondicional do nazismo, enquanto forma de organização de mundo, a
Adolf Hitler, enquanto o líder e o porta-voz dessa visão de mundo.

A perspectiva de que os membros da alta cúpula do Partido seguiam


levianamente as ordens do Führer e de que havia um laço de lealdade incondicional, do
começo ao fim, me parece equivocada após a análise desses discursos em Nuremberg.
Naturalmente, nenhum conceito consegue abarcar todas as dimensões das experiências,
o que o tornaria não um conceito e sim uma descrição de um dado momento histórico.42
Ainda assim, sugiro a análise de alguns discursos sob uma ideia de um mundo em que se
enxerga apenas em preto e branco, sem cores intermediárias, como declara o réu Hans
Fritzsche. A dicotomia ideológica se sustenta até na ausência do líder. Em Origens do
Totalitarismo, Hannah Arendt já afirmava que o erro de Alfred Rosenberg enquanto
ideólogo do nacional-socialismo havia sido o de dar demasiada ênfase no antissemitismo,
quando, de fato, para a ideologia totalitária, o que era fundamental era a luta de raças
(ARENDT, 1989). Sendo assim, o judeu era o Inimigo Número Um naquele momento,
mas, quando os judeus fossem exterminados, haveria outro inimigo – mantendo assim, a
necessidade do regime de se manter sempre em movimento. O movimento totalitário era
o que regia a (des)estrutura dos governos totalitários e, por isso, a estabilidade não era
nem sequer almejada.

42
Sobre esse ponto, tenho muito a agradecer ao Newton Bignotto por todas as suas aulas sobre o conceito
de totalitarismo que tive o prazer de assistir ao longo dos anos.
66

Dessa forma, para alguns desses nazistas, existe, efetivamente, uma dimensão
de crença, do que significa ser nazista, do mito ariano, como propõem o historiador
Christian Ingrao e os filósofos Philippe Lacoue-Labarthe e Jean Luc-Nancy.
Destrinchando a parte teórica de Mein Kampf, de Adolf Hitler, e O mito do século XX, de
Alfred Rosenberg, Lacoue-Labarthe e Nancy compreendem o mito nazista como
formador de uma identidade e delimitador de uma diferença fundamental. Essa
identidade, entretanto, não é algo que está naturalmente posto: “nem como um fato, nem
como um discurso, mas que é sonhado. A potência mítica é propriamente a do sonho, a
da projeção de uma imagem com a qual nos identificamos” (LACOUE-LABARTHE;
NANCY, 2002, p. 49–50). Esse sonho que precisava ser sonhado e despertado
frequentemente dependia fundamentalmente da crença nesse sonho. E a raça ariana, com
toda a sua potência, era a grande portadora desse mito, que, ao fim e ao cabo, era um mito
fundador. Como lembra Johann Chapoutot, os nazistas acreditavam que o povo
germânico era apenas um galho do povo nórdico original, e, por isso, “a raça germânica
era ontológica e biologicamente moral” (CHAPOUTOT, 2018, p. 39).

Como veremos, na perspectiva nacional-socialista, os alemães haviam se


distanciado das leis da natureza devido à influência judaico cristã ao longo dos anos.
Desconectados de sua própria raça, homens como Gerhard Wagner clamavam por uma
“uma revolução completa no sentir e no pensar”, pela “revitalização das forças que jazem
adormecidas em nosso inconsciente e em nosso subconsciente, e que seriam as únicas”
capazes “de ressuscitar em nosso povo esse instinto de autoafirmação racial”, um instinto
que “havia sido deliberadamente sufocado por forças estrangeiras hostis à nossa raça”.
Nesse sentido, o objetivo final seria, justamente, tornar as leis obsoletas para que os
alemães pudessem finalmente retornar ao seu estado natural, onde o instinto iria guiá-los
novamente (CHAPOUTOT, 2018, p. 43). Sendo assim, qualquer ação realizada em nome
da raça era uma ação moralmente correta, afinal, essa era uma justificativa pautada no
que era eterno (CHAPOUTOT, 2018, p. 54).

Esse mundo ariano, era, fundamentalmente um mundo “tornado ariano”, à


força e com violência, se necessário (LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002, p. 62).
Como pontua Chapoutot, para os nazistas, essa era uma tarefa das quais eles não poderiam
se esquivar porque o tempo estava acabando para o povo alemão, constantemente atacado
pelos elementos que queriam degenerar a raça ariana. Presos na armadilha do conceito de
“humanidade”, criado após a Revolução Francesa, os alemães estavam sempre jogados à
67

própria sorte. E naquela hora derradeira, era imperativo e urgente que os alemães
tomassem de volta para si o seu direito natural de existir. Afinal, de acordo com o próprio
Hitler, “não é necessário que um de nós viva, mas é necessário que a Alemanha viva”
(CHAPOUTOT, 2018, p. 89). Essa perspectiva também é observada em alguns nazistas
em Nuremberg, sobretudo os pertencentes à categoria ex-nazistas arrependidos, que
buscavam demonstrar que, ainda que eles estivessem sendo julgados naquele tribunal, a
Alemanha não deveria ser posta a julgamento. Seguindo a cartilha nazista, esses homens
ainda acreditavam que os alemães eram bons por natureza.

A Alemanha era, portanto, o grande “mito ainda não realizado do século XX”,
que precisava, enfim, despertar para seu próprio potencial, uma vez que “a crença não
surge por si, ela deve ser despertada e mobilizada nas massas” (LACOUE-LABARTHE;
NANCY, 2002, p. 63). Em Nuremberg, muitos nazistas seguem repetindo os princípios
desse aspecto do mito, ao afirmarem que a Alemanha, até a ascensão do nazismo, nunca
tinha experienciado um Estado forte e verdadeiramente alemão. Essa “identidade mítica”,
“verdadeira e potente” era a “identidade da Alemanha”, que tinha sido despertada apenas
por Adolf Hitler (LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002). Nesse sentido, para os
filósofos Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, o hitlerismo era uma “exploração
lúcida – mas não necessariamente cínica, pois ela mesma está convencida – da
disponibilidade das massas modernas ao mito”. E, assim, a “manipulação das massas não
é apenas uma técnica: ela é também um fim, se, em última instância, é o próprio mito que
manipula as massas e nelas se realiza” (LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002, p. 63–
64). Essa concepção também está presente no discurso de nazistas no tribunal, como é o
caso de Hjalmar Schacht, que acredita que Hitler havia sido influenciado pelas massas na
mesma medida em que as massas haviam sido influenciadas por ele. Assim também o é
para Ian Kershaw: o mito de Hitler havia sido imposto ao Führer antes mesmo que ele
próprio tivesse acreditado nesse mito (KERSHAW, 2001).

Sendo assim, o sonho do mundo ariano e o sonho da Alemanha como uma


grande nação hegemônica na Europa era, para muitos nazistas, um sonho mais poderoso
e mais duradouro do que o sonho de ser liderado por um grande Führer. Isso não significa,
contudo, que a figura de Adolf Hitler não foi fundamental para o Terceiro Reich – ou que
sequer haveria um Reich sem a sua liderança. Tampouco significa que o papel do líder
era irrelevante e que Hitler poderia ser substituído por qualquer pessoa dentro da
organização. Mas significa, entretanto, que ainda que as bases do nacional-socialismo
68

tivessem sido apresentadas para a grande maioria desses homens por Adolf Hitler, tais
bases eram, para muitos, mais fortes e mais seguras em seu sistema de crenças do que o
homem que os levou a esse caminho. O caminho para o mundo ariano era mais firme e
mais facilmente vislumbrado pois compunha todo um sistema de crenças que se
sustentaria sem o Führer – e, de fato, se sustentou. Quando identificamos discursos
neonazistas nos dias atuais é possível observar que nem todos exaltam a figura de Hitler.
Na verdade, alguns movimentos de extrema-direita sequer se declaram neonazistas, por
não enxergarem nenhuma identificação de suas concepções com o Terceiro Reich ou com
o contexto do século XX. No entanto, se olharmos com cuidado, podemos perceber
permanências e manutenções de ideias que, apesar de não serem exatamente as mesmas,
possuem suas bases na crença de uma visão de mundo na qual existe uma superioridade
nacional e um desejo de limpeza étnica – é o caso das premissas políticas da AfD
(Alternativ für Deutschland), partido de extrema direita alemão, fundado em 2013, que
possui setores anti-islâmicos, machistas e homofóbicos e que busca uma reascensão da
Alemanha como uma grande potência superior em sua cultura. Há aqui, mais uma vez,
motivos generalizantes (KNITTEL; GOLDBERG, 2019), e estes são pautados,
sobretudo, no racismo.

Ao analisar as narrativas de Nuremberg sob essa ótica, não parece ser


incoerente a defesa da ideologia nazista em um contexto de julgamento, como é o caso
do arquétipo dos defensores fiéis. A manutenção dessa visão de mundo no corredor da
morte faz sentido precisamente porque a crença, para muitos desses homens, estava no
mundo nacional-socialista. Essa era a base de todo o seu entendimento de como a vida
funcionava e do seu papel nesse universo. Seus relatos expressam, sobretudo, a
sobrevivência do discurso nazista. O salto de fé era um ponto sem retorno: como afirma
Joseph Goebbels, “a experiência nos ensina que um movimento e um povo que queimou
as suas pontes luta com determinação muito maior que aqueles que ainda podem recuar”
(GOEBBELS apud ARENDT, 1989, p. 422). Negar, ainda que no final de sua vida, o
“princípio organizador” do movimento, era colocar em xeque a própria existência nesse
mundo. Afinal, se acredita-se que o mundo é definido por uma luta de raças, o estar no
mundo só pode se dar de forma dual: ou se é superior, e, portanto, merecedor da vida e
portador da civilização, ou se é inferior e, portanto, passível de ser eliminado
(CHAPOUTOT, 2018). Negar a premissa é negar uma compreensão que negaria a sua
própria existência. Como declara Arendt, a inverdade da ideologia totalitária “só pode ser
69

demonstrada por outra realidade mais forte ou melhor” (ARENDT, 1989, p. 412), algo
que Hitler em Mein Kampf já havia compreendido: uma ideologia só pode ser combatida
por outra visão de mundo que a supere. A batalha necessária é no nível do acreditar,
muito mais do que na esfera da política tradicional.

Nesse sentido da dimensão da crença, a análise de Pierre Ansart em A gestão


das paixões políticas nos é extremamente útil. Ao buscar investigar a esfera das paixões
políticas como fundamentais para compreender a própria cena política, Ansart nos dá
ferramentas para averiguar os sentimentos e o papel que eles ocupam nos discursos e nas
ideologias (ANSART, 2019). Ainda que entendamos o extermínio como um processo
burocrático, como afirma Bauman, não deixa de ser necessária uma mobilização
sentimental para dar cargo desse extermínio. Para que as pessoas estejam realmente
investidas nesse projeto ideológico que pressupõe o genocídio e a eliminação do Outro,
é necessária uma mobilização de afetos: tanto para se entender enquanto alemão e,
portanto, detentor do direito de construção de sociedade, quanto para mobilizar antigos
ressentimentos e delimitar os inimigos da criação desse sonho. Os ódios não são eficazes
para ações que necessitam de precisão e de uma execução exemplar – algo que Raul
Hilberg já alertava -, mas eles são eficazes para mobilizar as pessoas em torno da
necessidade de se executar essa tarefa. Os ressentimentos impulsionados para estimular
o ódio dos alemães aos judeus nem sempre foram convincentes, como argumenta Ian
Kershaw. Os pogroms e a violência explícita aos judeus e a suas lojas e sinagogas eram
extremamente impopulares e levaram a diversas críticas ao NSDAP, como veremos
(KERSHAW, 2009). Entretanto, outros sentimentos que envolveram a construção do
Terceiro Reich criaram raízes. Os ressentimentos e os afetos é que transformam
Eichmann em um burocrata perfeitamente capaz de executar o extermínio sem expressar
nenhuma emoção.

O Terceiro Reich foi o regime de Adolf Hitler, mas foi, sobretudo, o regime de
homens convictos de seu papel na construção de uma utopia. Essa utopia e esse mundo
novo, a ser feito ariano, não permitia cores intermediárias, como afirma Hans Fritszche,
de maneira que o papel histórico de cada indivíduo também só poderia ser o de vencedor
ou de perdedor. Em Nuremberg estava claro, portanto, que os que restaram daquele Reich
idealizado, eram os perdedores.
70

O legado de Nuremberg

Esta pesquisa, ao fim e ao cabo, tem uma preocupação constante com as


dificuldades do processo de desnazificação e da justiça de transição na Europa. Sabemos
que, no nazismo, muito mais pessoas cometeram crimes do que as que foram efetivamente
levadas à justiça: como pontua o historiador Ian Kershaw, entre 200 mil e 500 mil pessoas
estavam diretamente envolvidas com o genocídio, mais de oito milhões de alemães –
cerca de 10% da população – havia sido membro do Partido Nazista e mais outras dezenas
de milhões haviam se filiado a outras organizações do NSDAP. Ainda temos os
incontáveis indivíduos que não possuíam nenhuma filiação ao Partido, mas que, ainda
assim, tiveram um papel relevante no processo de extermínio ou na construção do Reich
de maneira geral. Como julgar essas pessoas? Essa tarefa, como completa Kershaw, se
mostrou não somente hercúlea como impraticável (KERSHAW, 2016).

Pela dificuldade do processo, rapidamente os Aliados passaram a


responsabilidade da desnazificação e dos consequentes julgamentos para os alemães, o
que piorou ainda mais a situação. De acordo com o historiador Richard Evans, mais de
seis milhões de causas foram ouvidas e dois terços delas foram anistiadas de pronto. Das
que foram levadas a juízo, pelo menos nove décimos foram consideradas transgressões
banais. A maioria das pessoas foi classificada como “simpatizante” ou simplesmente
inocente. Os tribunais passaram a ser chamados de “fábricas de simpatizantes” e eram
odiados pela população muito antes de serem extintos, em 1951 (EVANS, 2014b). E, com
relação a isso, um outro ponto importante de se destacar é: ainda não paramos de julgar
nazistas.

Para além de casos famosos como os de Adolf Eichmann em 1961 e John


Demjanjuk na década de 1980, podemos citar outros casos muito mais recentes, como o
de Oskar Gröning, que foi julgado em 2015 aos 92 anos por sua atuação como um oficial
da SS em Auschwitz. Gröning, um contador no campo, foi declarado cúmplice no
assassinato de 300 mil prisioneiros, mas morreu antes de cumprir sua sentença. Outro
caso ainda mais recente e ainda em andamento é o de Irmgard Furchner, iniciado em
2021, no qual a idosa de 96 anos está sendo acusada pela cumplicidade no assassinato de
11 mil pessoas no campo de Stutthof, na Polônia. Esses são apenas alguns exemplos de
como a questão da culpa e da responsabilidade pelos crimes nazistas ainda não foi
71

resolvida (se é que um dia será).43

A problemática sobre a culpa dos alemães se iniciou ainda durante a Segunda


Guerra Mundial e era um ponto sensível durante o Julgamento de Nuremberg. Ainda que
o promotor estadunidense Robert Jackson tenha dito, como vimos, que o objetivo do
tribunal não era julgar a nação alemã, é perceptível como, mesmo que simbolicamente,
esse objetivo estava no horizonte dos acusadores, mesmo que não tenha sido
completamente cumprido. Tanto pelo pano de fundo do julgamento quanto por suas
reverberações, os conceitos de responsabilidade e culpa, naturalmente permeiam toda a
tese. Sobre isso, o ponto de partida é, seguindo a linha de Hannah Arendt, compreender
que argumentar favoravelmente a uma culpa coletiva do povo alemão “desde Lutero a
Hitler” acaba ajudando o caso dos próprios nazistas. Afinal, onde todos são culpados,
ninguém de fato é culpado – e, sobretudo, ninguém pode ser julgado (ARENDT, 2004, p.
83). Sem culpa coletiva, também não se pode falar de inocência coletiva – a culpa é
sempre individual e atrelada à moralidade daquele indivíduo. Essa moralidade, entretanto,
não é cambiável e não deve ser vista como um conjunto de costumes e de hábitos, pelo
contrário: “se despirmos os imperativos morais de suas conotações e origens religiosas,
resta-nos apenas a proposição socrática – é melhor sofrer o mal do que fazer o mal”
(ARENDT, 2004, p. 220).

O regime nazista trouxe um colapso quase total dos antigos padrões morais. Os
Dez Mandamentos, cuja base cristã fazia com que os homens se sentissem moralmente
obrigados a cumprir, foram totalmente solapados. Como consequência, o “Não Matarás”
e o “Não prestarás falso testemunho” se transformaram do dia para noite em “Matarás” e
“Prestarás falso testemunho”. E é aqui que se encontra a atividade do pensar e sua relação
com o conceito de banalidade do mal – este, também, constantemente referenciado na
tese. Esse novo tipo de mal surgido nas sociedades de massa totalitárias está pautado,
sobretudo, na ausência de pensamento (ARENDT, 2004). O mal banal é, para Arendt, um
mal extremo, que ocupa o lugar do normal, mas que não é radical, uma vez que não possui
raízes profundas. Esse é mais um dos pontos em que Arendt foi amplamente
incompreendida. Para a filósofa, a banalidade do mal representava o mal realizado por
Ninguém, ou seja, por homens e mulheres tão dispostos a cumprir seu dever com

43
Parte dessa argumentação foi apresentada e elaborada com mais profundidade no episódio “#02:
Desnazificação?” do podcast Desnazificando, produzido pelo Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e
Holocausto (NEPAT). O episódio está disponível em: https://anchor.fm/desnazificando/episodes/02---
Desnazificao-egcn0s (Acesso em 29/01/2023)
72

eficiência que o fizeram de forma irrefletida e sem considerar as consequências de suas


ações. Para Arendt, homens como Eichmann são o epítome do homem de massa moderno:

Ele levou tão longe a dicotomia entre funções públicas e funções privadas,
entre profissão e família, que não consegue mais encontrar, em sua própria
pessoa, nenhuma ligação entre ambas. Quando sua profissão o obriga a
assassinar pessoas, ele não se considera um assassino, pois não fez isso por
inclinação pessoal, e sim em seu papel profissional. Por ele mesmo, jamais
faria mal a uma mosca. Se dissermos a um membro dessa nova categoria
profissional gerada por nossos tempos que ele é responsável pelo que fez, a
única coisa que ele sentirá é que foi traído. Mas se, sob o choque da catástrofe,
ele realmente toma consciência de que não era apenas um funcionário, mas
também um assassino, sua saída não será a revolta, e sim o suicídio.
(ARENDT, 2008a, p. 159)

Nessa percepção, também se encaixa o conceito de fragmentação de Tzvetan


Todorov: a ideia de que na mesma pessoa pode coexistir o bem o mal. Para o autor, essa
é uma consequência da “esquizofrenia social do totalitarismo”: em uma pessoa, às vezes
no mesmo dia, coexiste piedade e brutalidade. Essa fragmentação é ainda mais intensa no
trabalho burocrático, como é o caso de Eichmann, entretanto, aparecia também na
mentalidade da grande maioria dos alemães durante o Terceiro Reich, pessoas que
possuíam um cérebro “compartimentado como um submarino, formado de câmaras
estanques”, de modo que “a água pode invadir uma delas sem que as outras sejam
atingidas” (TODOROV, 1995, p. 182). Essa compartimentalização se torna uma
estratégia para que os indivíduos não se sintam responsáveis pelos atos que cometem,
uma vez que eles enxergam sua responsabilidade como apenas uma pequena camada
dentro de uma parte do processo. Dessa forma, se questionado, o funcionário sempre iria
se referir ao seu superior como o responsável – processo que Zygmunt Bauman define
como responsabilidade flutuante (BAUMAN, 1998a). A fragmentação torna os seres
humanos alheios ao que é coletivo: “mais ou menos como a febre, durante uma doença a
fragmentação não é em si mesma um mal, mas uma defesa contra ele; é graças a essa
defesa, no entanto, que o mal se torna possível, até mesmo fácil” (TODOROV, 1995, p.
193). O sistema nazista busca, portanto, “transformar cada um em uma peça de uma
imensa máquina de modo que ele não seja mais senhor de sua vontade” (TODOROV,
1995, p. 204), instaurando, assim, terreno fértil para o estabelecimento do mal banal.

Em linha similar à Arendt, mas na contramão de muitos sociólogos, Bauman, ao


pensar sobre a conduta moral, defende que esta deve existir independentemente de
qualquer fator externo, ou seja, independentemente da sociedade em que estamos
inseridos: “Mesmo se condenada pelo grupo – por todos os grupos, aliás – a conduta
73

individual deve ainda ser moral; uma ação recomendada pela sociedade – mesmo por
todo o conjunto da sociedade em uníssono – pode ainda assim ser imoral” (BAUMAN,
1998a, p. 206). A capacidade de julgamento para distinguir o certo e o errado é algo que
deve se basear além da consciência coletiva da sociedade e, por isso, enxergar os nazistas
como loucos e sádicos que fizeram tudo por terem uma “doença”, diminui a culpa e a
carga de responsabilidade do que realmente precisa ser analisado. Bauman chama atenção
para o perigo de entender a moralidade como um “produto social e explicada em termos
causais por referência a mecanismos que, se funcionam adequadamente, garantem seu
‘abastecimento constante’”, uma vez que, compreendida assim, o comportamento imoral
passa a ser visto como “‘desvio’ da norma e, em última análise, da deficiência ou
imperfeição dos mecanismos sociais destinados a exercer tais pressões” (BAUMAN,
1998a, p. 202–203). Para Bauman, portanto, a moralidade não é um produto da sociedade,
e sim algo que a sociedade manipula e utiliza. Sendo assim, os seres humanos têm a
responsabilidade moral de resistir à socialização. Isso significa que a minha
responsabilidade enquanto ser humano é incondicional: ela diz respeito ao Outro, à minha
relação com esse Outro e está inerente a mim enquanto humano. O dever moral só conta,
então, com essa responsabilidade humana essencial pelo Outro e, por isso, muitas vezes,
posturas morais são posturas de resistência.44

Em Nuremberg, como veremos, não temos casos exemplares da concretização


da banalidade do mal – ao menos, não nos moldes de Adolf Eichmann. No entanto, todos
os conceitos que permeiam o mal banal aparecem recorrentemente nos discursos dos
nazistas: a fragmentação, a responsabilidade flutuante, o descompasso entre culpa
individual e responsabilidade coletiva. Como será possível perceber, também, essas são
questões que começam a se delinear em Nuremberg – e que permanecem, de fato, como
questionamentos, até os dias atuais. A capacidade de resistir ao mal e os limites da
obediência pautada em um sentimento de pertencimento estão no pano de fundo desse
tribunal. O extermínio sistemático realizado nos campos de concentração aparece como
a representação do que há de pior da nossa experiência moderna – e por isso, os crimes
não são apenas contra indivíduos, mas crimes contra a humanidade. Como era de se
esperar, e como já abordado nesta Introdução, no Julgamento de Nuremberg, os nazistas
são tratados como monstros, homens tão diferentes de nós, já que cometeram atos tão

44
Esse parágrafo e alguns trechos dessa seção foram retirados e adaptados da minha dissertação de
mestrado. Ver: VISCONTI, 2017.
74

terríveis. Passados anos desse julgamento, sabemos que essa percepção não mudou tanto
e que não estamos vacinados contra essas armadilhas argumentativas. Contudo, como
alerta Bauman,

Como o mundo pareceria seguro, confortável, aconchegante e cordial se


fossem os monstros, e apenas eles, os responsáveis pelos feitos monstruosos.
Contra os monstros estamos razoavelmente bem protegidos, de modo que
podemos ter segurança quanto a ações malignas de que eles são capazes e que
ameaçam perpetrar. Temos psicólogos para identificar psicopatas e sociopatas,
temos sociólogos para nos dizer onde é provável que eles se propaguem e se
congreguem, temos juízes para condená-los ao confinamento e ao isolamento,
assim como policiais ou psiquiatras para garantir que lá permaneçam
(BAUMAN; DONSKIS, 2014, p. 32).

Hoje sabemos que escolher esse conforto não vem sem seus próprios riscos. No
nazismo e na atualidade, os atos podem ser monstruosos, mas os atores raramente são
monstros (TODOROV, 1995, p. 276). Em Nuremberg, a acusação ocupa o papel do dedo
acusador para demonstrar quais são as máximas consequências da aceitação dos
extremos. Ainda que hoje possamos ponderar sobre vários cursos de ação que poderiam
ter sido tomados durante o Julgamento de Nuremberg, como lembra Todorov, “o ódio ao
mal é, portanto, legítimo e, nesse exato momento da história, o nazismo encarna o mal,
como também todos aqueles que estão alistados no aparelho hitlerista e que não deram
provas de que não aderiram a ele.” Por isso, tanto na época quanto no presente, “combater
o nazismo não é responder ao mal com o mal, mas trabalhar pela erradicação do mal”
(TODOROV, 1995, p. 266). Todorov conclui, com razão, que não podemos tirar lições
sobre a natureza do homem com a experiência do totalitarismo, pois os homens ou não
são nem bons nem maus por natureza, ou são os dois. Argumento ainda que, talvez, não
possamos tirar lições sobre a natureza do homem com nenhuma experiência porque a
ideia de que os homens são bons e maus permanece verdadeira, a meu ver, em todos os
períodos históricos.

****

“Não há boas novas do Holocausto” (TODOROV, 1995, p. 274) – anos depois,


esse segue sendo um tema terrível. É preciso ter sempre em nosso horizonte, entretanto,
que a ação moral está ao nosso alcance da mesma forma que o mal. Ela se constitui,
portanto, em uma ação voluntária, e assim, livre. É preciso escolhê-la. O legado de
Nuremberg e a luta contra o fascismo e o nazismo “não é o mesmo combate que deve
continuar; e, no entanto, ele ainda não terminou. Ele se trava em outro lugar: na
manutenção da memória, no julgamento que fazemos do passado, nos ensinamentos que
75

dele tiramos” (TODOROV, 1995, p. 278). Esse é um passado traumático forjado por
centenas de milhares de “homens comuns”, nas palavras de Browning. Por esse motivo,
ainda que seja mais confortável manter esse quadro na parede, “bem emoldurado para
fazer a separação entre a pintura e o papel de parede e ressaltar como diferia do resto da
mobília”, para usar a analogia de Bauman (BAUMAN, 1998a, p. 9), é fundamental que,
ao menos periodicamente, tiremos a poeira desse quadro. Afinal, “do contrário,
arriscamo-nos a não continuar humanos” (TODOROV, 1995, p. 282).
76

Capítulo Um
Defensores fiéis

Hermann Göring
Julius Streicher
Alfred Rosenberg
Arthur Seyss-Inquart

Não se engane, o povo sabe que estava melhor


quando Hitler estava no poder antes da guerra.
O que ele fez foi certo do ponto de vista nacionalista.
Hermann Göring (GILBERT, 1995, p. 371)
77

Nesse capítulo serão analisados os casos da categoria que escolhi chamar de


defensores fiéis, isto é, os nazistas que permanecem nazistas até o fim, mesmo sob o risco
de pena de morte. Aqui temos homens que não tem medo de mostrar seu alinhamento
contínuo com o sistema de crenças nazista e dedicam seu tempo no tribunal para defender
o regime, a ideologia, e seu líder, Adolf Hitler. Os defensores fiéis são os casos mais
intrigantes em Nuremberg e levantam diversos questionamentos: afinal, por que proteger
um regime político derrotado quando a sua vida está em jogo? O que leva esses homens
a seguirem alinhados à ideologia nacional-socialista mesmo perante um tribunal militar?
Para essa categoria, irei tratar dos casos de Hermann Göring, Julius Streicher, Alfred
Rosenberg e Arthur Seyss-Inquart.

Ainda que pertencentes à mesma categoria, há diferenças marcantes entre as


narrativas desses réus, como veremos. O que os une, além da defesa de princípios
ideológicos nazistas, é, sobretudo, a ausência de arrependimento – ou, pelo menos, a
ausência de demonstração de arrependimento em seus discursos. Por um lado, temos o
caso de Göring, mais direcionado a uma defesa do nacional-socialismo enquanto regime
político do que enquanto proposta ideológica. Alfred Rosenberg, pelo contrário, como
ideólogo do movimento, tenta fazer uma defesa da visão de mundo nazista, propondo
racionalizações e justificativas “históricas” para suas ações e proposições. Ainda que,
como propagandista, ele tentasse se distanciar de Julius Streicher, os dois tem muito em
comum em sua defesa do nacional-socialismo. Streicher, porém, um antissemita
fervoroso e visto como um “lunático” por todos os outros réus, apresenta sua visão de
forma mais enfática e põe demasiada importância na questão judaica. Suas
racionalizações passam pela dita justificativa científica do antissemitismo e sua adesão
ao nazismo também está muito mais ancorada no antissemitismo do que nas outras
propostas do movimento. Por fim, se comparado aos outros, Arthur Seyss-Inquart é o
menos relevante, e, também, o que menos se destaca em seus discursos. No entanto,
permanece um representante da categoria por não negar suas ações – e muito menos se
arrepender delas. Seyss-Inquart acredita que suas atividades não foram de fato tão ruins,
e que havia justificativas plausíveis para o que os nazistas fizeram, principalmente com
relação às políticas de ocupação na Segunda Guerra Mundial.

A análise individual de cada caso nos permite observar essas diferenças e


similaridades, compreendendo por que estes homens pertencem a essa categoria.
78

Hermann Göring (1893-1946)

“Pessoalmente, eu usei esse tribunal para oferecer à história e ao povo alemão um


último relato sobre o regime nacional-socialista e meu papel nele”

(GOLDENSOHN, 2005a, p. 167)45

Hermann Göring era o mais proeminente nazista sendo julgado em Nuremberg


e o membro mais importante do alto escalão ainda vivo. Göring era comandante-chefe da
Força Aérea Alemã (Luftwaffe), fundador da Gestapo, ministro encarregado de boa parte
da organização econômica alemã para a Segunda Guerra, Reichsmarschall (que equivalia
ao mais alto posto de comando das Forças Armadas), presidente do Parlamento Alemão
(Reichstag), líder do Partido Nazista, o NSDAP, primeiro-ministro da Prússia, assessor
em todos os gabinetes do Reich e apontado por Hitler como seu sucessor de 1941 a 1945.
Foi julgado em Nuremberg por plano de conspiração, crimes contra a paz, crimes de
guerra e crimes contra a humanidade e foi considerado culpado pelas quatro acusações,

45
As imagens dos réus que estou utilizando antes de iniciar cada caso são caricaturas feitas pelo alemão
Günter Peis durante os procedimentos em Nuremberg. Para não poluir o texto, irei referenciá-las
individualmente na bibliografia ao final da tese, porém, já deixo claro que todas estão disponíveis no acervo
digital do Museu do Holocausto de Washington (USHMM) no seguinte link:
https://collections.ushmm.org/search/?utf8=%E2%9C%93&q=Caricature+of+Nuremberg+International+
Military+Tribunal+&search_field=all_fields (Acesso em 20/09/2022)
79

sendo sentenciado à morte por enforcamento. Ele conseguiu, no entanto, se suicidar em


sua cela no dia 15 de outubro de 1946, véspera da execução agendada para os nazistas
sentenciados à morte.

Hermann Göring foi o primeiro nazista a testemunhar sobre seu caso no


julgamento, em março de 1946. A arguição pela acusação se iniciou no dia 13 de março
e Göring testemunhou dos dias 13 ao dia 16 e dos dias 18 ao dia 22, finalizando nove dias
dedicados ao seu interrogatório. O tribunal o deixou falar livremente por considerar que,
sendo o nazista mais importante sendo julgado em Nuremberg, ele poderia oferecer uma
visão mais completa do funcionamento do Terceiro Reich, suas organizações e sua
estrutura. Seus depoimentos são extensos e de fato são usados como referência para todos
os testemunhos posteriores. O comentário de Göring para o psicólogo Gilbert sobre a
acusação formal feita contra os nazistas é “o vencedor será sempre o juiz, e o vencido o
acusado” (GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 4),46 já demonstrando uma postura que
ficará clara durante toda sua narrativa: a de não reconhecer a legitimidade do Julgamento
de Nuremberg.

Um ponto por vezes deixado de lado por historiadores é o fato de Göring possuir
um vício seríssimo em drogas.47 O vício era reconhecido por todos os médicos presentes
no julgamento e por todos os nazistas que o conheciam. O processo de desintoxicação na
prisão foi notadamente difícil para o réu e isso também deve ser levado em conta ao
analisar seu “estado mental” durante os procedimentos, para usar as palavras de Gilbert.

Hermann Göring era considerado “como um tipo moderno de cavaleiro com


armadura, cujo arrojo contrastava dramaticamente com a carnificina monótona e
mecânica das trincheiras”, sendo um “homem de ação” que buscava por mais ação após
o fim da Primeira Guerra Mundial. Aderiu ao movimento nazista nos seus primórdios e
era reconhecido por ser “implacável, ativo e extremamente egotista”, ainda que
conseguisse transparecer como um homem diplomático, menos radical (EVANS, 2014a,
p. 247–248). Esse homem, que quando jovem era reconhecidamente bonito, era
“extremamente egocêntrico, com boas conexões e sedento de poder, trazendo para o
movimento nazista o glamour de ás da aviação condecorado durante a guerra, bem como

46
Entre a acusação formal (indictment) e o começo do julgamento, os nazistas ficaram em celas solitárias
individuais e Gilbert pede que cada um deles assine o indictment e dê um breve comentário sobre ele.
Apresentarei as falas de cada um dos réus em todos os casos.
47
Não consegui determinar precisamente se seu vício era em múltiplas drogas, mas codeína é mencionada
tanto por Gilbert quanto por Goldensohn.
80

ligações importantes com a aristocracia” (KERSHAW, 2010, p. 145). Göring considerava


a lealdade e a fidelidade como “as virtudes mais elevadas”, e, por sua atuação na Primeira
Guerra, “considerava a política uma operação militar, uma forma de combate armado na
qual nem justiça nem moralidade tinham um papel a desempenhar”. Por isso, ele estava
totalmente de acordo com a ideologia nazista que previa que “os fortes venciam, os fracos
pereciam, a lei era uma massa de regras ‘legalistas’ a serem quebradas caso surgisse a
necessidade”. Para o nazista, “os fins sempre justificavam os meios, e o fim era sempre o
que ele julgava de interesse para a Alemanha, que ele considerava ter sido traída pelos
judeus, democratas e revolucionários em 1918”. Suas conexões aristocráticas e seu capital
cultural faziam com que muitos acreditassem que ele fosse “um moderado, até mesmo
diplomático”. Políticos da época, como o presidente da Alemanha Paul von Hindenburg,
e muitos outros, “viam Göring como a face aceitável do nazismo, um conservador
autoritário como eles mesmos. A aparência era enganadora; Göring era tão implacável,
violento e extremista quanto qualquer um dos líderes nazistas” (EVANS, 2014a, p. 248).
Essa faceta de Göring não fica escondida por muito tempo em sua trajetória, e, tampouco,
em Nuremberg, como veremos.

Pelo seu acúmulo de funções, Göring está em Nuremberg representando o alto


escalão do Partido Nazista, e, portanto, o Terceiro Reich como um todo. Com a ausência
do Führer Adolf Hitler e das outras grandes figuras do nazismo que já haviam se
suicidado, como Joseph Goebbels e Heinrich Himmler, ou, que haviam fugido e que ainda
não tinham sido encontrados, como Adolf Eichmann e até mesmo Martin Bormann,
julgado in absentia, Hermann Göring se levantava sozinho como O Nazista em
Nuremberg. Entretanto, como lembra Bradley Smith, “o próprio esforço de Göring de
ocupar o centro do palco era, em parte, uma ficção com que colaboraram tanto a defesa
como a promotoria” (SMITH, 1979, p. 9). Sua personalidade controversa também não
auxiliava em nada o seu caso e tampouco provava o contrário desse estereótipo. Ele toma
para si a representação do Terceiro Reich e passa a ser odiado por todos os outros nazistas
no julgamento por sua postura, por vezes agressiva, ao buscar conduzir as narrativas dos
outros réus de acordo com sua linha de pensamento. Göring é visto como um “valentão”
(bully), utilizando de ameaças para redirecionar os discursos dos outros julgados. A
influência de Göring nos outros nazistas leva o coronel Andrus a pedir a Gilbert para fazer
uma nova organização dos réus durante o almoço, separando-os em cinco cômodos, com
quatro homens em cada, e mantendo Göring separado e sozinho em outro cômodo.
81

Göring, no entanto, responde a essa estratégia da seguinte maneira: “não é só porque eu


sou o Nazista número Um neste grupo que eu sou o mais perigoso” (GÖRING apud
GILBERT, 1995, p. 162). Como o objetivo da tese é analisar todos os julgados que
possuem narrativas em Nuremberg, como veremos, talvez Göring não estivesse
completamente errado em sua afirmação.

Não foge ao próprio Göring o fato de ele ser o “segundo homem da Alemanha”,
e ele chega a, de certa forma, competir pela popularidade com o Führer: “as únicas
pessoas populares na Alemanha éramos eu e Hitler – e, no final, somente eu” (GÖRING
apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 151). Afinal, em suas palavras, ele era Hermann, um
homem do povo, enquanto Hitler permanecia em um pedestal como o Führer. Seu papel,
entretanto, durante o nazismo e depois, era de uma defesa desse regime, mais do que uma
defesa de si próprio ou de Hitler. O psicólogo Gustave Gilbert define sua defesa como
uma frente unida (united front), na qual ele tenta apresentar o Terceiro Reich como um
governo como qualquer outro na Europa daquela época. O nazismo, nesse sentido, era
apenas mais uma das formas de organização possíveis e não havia nada de excepcional
na forma como seus governantes agiam. Para construir essa narrativa, Göring tenta
apresentar os nazistas como meros “homens de Estado” tradicionais e inteligentes, com
algumas poucas exceções de “lunáticos” – que, no entanto, influenciavam Hitler para o
“mal caminho”.

Nessa frente unida, os nazistas, em sua maioria, eram governantes similares aos
de qualquer outro país europeu e, então, não havia motivo para julgá-los como diferentes.
E é nesse sentido que Göring é um bom representante da categoria defensores fiéis: sua
defesa está amparada em uma equiparação do nazismo com outros regimes políticos e,
apesar de não reconhecer a legitimidade do julgamento, prevalece no réu a vontade de
deixar um registro positivo para a posteridade. O que a História, com H maiúsculo,
deveria escrever sobre o Terceiro Reich? Para Göring, essa narrativa futura deveria
mostrar todos os inúmeros aspectos positivos do nacional-socialismo enquanto regime e
enquanto ideologia atuante na Alemanha. Seu depoimento, portanto, era uma defesa e um
registro para o futuro, não só sobre sua função, mas sobre o regime nazista e seu legado.

Escolhi inserir Göring na mesma categoria que Julius Streicher e Alfred


Rosenberg, à revelia de como o próprio Göring enxergava esses homens. Estes eram
vistos pelo Reichsmarschall como extremistas e antissemitas, ainda que com uma grande
diferença: Rosenberg, autor de O mito do século XX, um manual fundamental para a
82

compreensão da ideologia nazista, era respeitado por Göring, que o entendia como um
grande intelectual sob a jurisdição de um grande fanático, Heinrich Himmler, que será
abordado em capítulo posterior. Streicher, por outro lado, para ele, não era um homem
normal: apresentava sinais de insanidade, era “um porco”, “um louco”, nas palavras do
réu. Assim, Göring tentava se afastar dos nazistas mais extremistas e, ao mesmo tempo
deixava escapar suas concepções políticas, que vão ficando mais claras com o passar do
tempo nas entrevistas. Desta forma, também, ele se isentava das acusações de extermínio
vinculadas ao racismo, já que não acreditava pertencer à mesma ala antissemita que
Rosenberg e Streicher.

No entanto, o que se destaca em sua narrativa da frente unida é a incompreensão


que Göring encontra em sua audiência, seja ela qual fosse. Os outros réus não o
entendiam, a ala médica o desprezava e a acusação não acreditava ou aceitava nenhuma
de suas declarações. Nas palavras de Albert Speer, quando Göring é interrogado pelo
promotor Jackson, “você pode ver que eles apenas representam dois mundos totalmente
opostos: eles nem se entendem” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 210-211). Essa
dicotomia entre nazistas e Aliados, civilização e barbárie, bons e maus é latente durante
todo o procedimento em Nuremberg, como vimos na Introdução. Göring, como o
“Nazista Número Um” dentre os julgados é, portanto, o epítome dessa representação – e
tem plena consciência do poder de seu lugar no tribunal e, por fim, na História.

Excessos

Ao falar sobre a ascensão do nazismo e o processo de consolidação do poder,


Göring afirma que o nacional-socialismo foi um processo revolucionário, ainda que não
como as antigas revoluções, que fizeram mudanças cruéis e que possuíam tribunais
revolucionários que executavam centenas de pessoas. O nazismo possuía, no entanto,
“um forte objetivo revolucionário na direção da unidade do Estado, do Partido e do
nacional-socialismo como base da liderança e da ideologia” (BS, 9, p. 253). É claro que,
por ser um processo revolucionário, em momentos de mudanças políticas muito drásticas,
era de se esperar que as pessoas iriam cometer “excessos”. Por exemplo, ainda que ele
próprio não concordasse com a obrigatoriedade de todas as instituições serem nazistas,
ele compreendia que aquele era um momento decisivo onde as ideias e os princípios
precisavam ser reconhecidos e o Reich necessitava ser estabelecido e fortalecido.
Abordaremos com mais profundidade o processo de ascensão de Hitler ao poder no
próximo capítulo, mas é válido pontuar que Göring não tem problemas em admitir ter
83

feito tudo “para garantir ao Führer o lugar de chanceler do Reich que por direito lhe
pertencia” (BS, 9, p. 254). Sobre os “excessos”, Göring afirma:

Claro que no início houve excessos; é claro, os inocentes também foram


feridos aqui ou ali; é claro, houve espancamentos aqui e ali e atos de
brutalidade foram cometidos; mas comparado com tudo o que aconteceu no
passado e com a grandeza dos acontecimentos, esta revolução alemã da
liberdade é a menos sangrenta e a mais disciplinada de todas as revoluções
conhecidas na história. (BS, 9, p. 258)

Ainda que a ascensão do Terceiro Reich tenha sido uma “revolução alemã da
liberdade” pouco sangrenta, era essencial que limites fossem estabelecidos – ainda que
por meios violentos. Os campos de concentração surgiram nesse momento como uma
necessidade fundamental para assegurar a segurança do Estado, uma questão de “remover
o perigo”. O próprio termo “campos de concentração”, de acordo com Göring, foi criado
pela imprensa internacional como uma forma de diferenciar o que acontecia na Alemanha
do que acontecia no resto do mundo. Afinal, a custódia protetiva de inimigos do Estado
e de potenciais inimigos do governo não era nada novo e “não era uma invenção nacional-
socialista”. Essa medida de defesa do Estado era a única possibilidade disponível, já que,
“se se podia ou não provar que essas pessoas estavam envolvidas em um ato de traição
ou em um ato hostil ao Estado, se se podia esperar ou não tal ato deles, tal ato deve ser
prevenido e a possibilidade eliminada por meio da prisão preventiva” (BS, 9, pp. 257-
258).

A questão da insurgência revolucionária e da remoção do perigo em potencial


é abordada por Johann Chapoutot como alguns dos traços mais marcantes do regime
nacional-socialista. Os campos de concentração eram uma estrutura necessária para forçar
a detenção de qualquer pessoa “hostil ao povo e ao Estado” que “através de seu
comportamento, ameaça sua existência e sua segurança” (CHAPOUTOT, 2018, p. 194).
Essas instituições protegiam o Estado e a Volksgemeinschaft (Comunidade do Povo) de
elementos perigosos que constantemente ameaçavam a harmonia do povo alemão. Nesse
sentido, as leis criminais e a categorização dos indivíduos se baseavam em um
determinismo de uma “biologia criminal”: o criminoso era entendido como criminoso por
conta de sua biologia; e, por conta de sua biologia, determinado a ser criminoso. Assim,
a lei conseguia ter um arsenal de medidas que iriam prevenir a criminalidade, investidas
na luta contra a biologia degenerada de alguém que poderia causar mal a comunidade:
aqui temos “medidas preventivas” baseadas em uma criminalidade biologicamente
determinada, como a detenção preventiva e, posteriormente, a castração (CHAPOUTOT,
84

2018). E nesse sentido, a Gestapo, fundada e defendida por Göring, era a instituição mais
equipada e preparada para lutar contra esse inimigo interno.

A Gestapo tinha uma “temível reputação” (EVANS, 2014c, p. 122) na


Alemanha por ser um braço fundamental do aparato repressor do regime nazista. A
organização, fundada em 26 de abril de 1933, era inicialmente uma ramificação da polícia
prussiana, atuando como polícia federal. Foi somente durante a liderança de Hermann
Göring que a organização assumiu um caráter político, ao tornar-se aliada da SS em 1934,
comandada por Heinrich Himmler, que será abordada em capítulo posterior. Assim, a
Gestapo expandiu a sua atuação, operando em toda a Alemanha e suprindo a necessidade
do regime nazista de controlar e silenciar os seus adversários políticos. Suas demandas
tinham prioridade sobre as de outros setores, tendo como alvo, a princípio, os comunistas,
social-democratas e demais inimigos políticos.

A Gestapo também funcionou como vigilância interna, o que converteu suas


investigações em armas na disputa de poder dentro do Partido, apesar de ter como ênfase
a perseguição política. Ainda que, na realidade, fosse uma organização muito pequena,
sua reputação serviu para dar a impressão de que todos os alemães estavam sendo
vigiados o tempo todo, atingindo “rapidamente um status quase mítico como um braço
onividente e onisciente da segurança do Estado e da aplicação da lei”, de forma que “as
pessoas logo começaram a suspeitar de que houvesse agentes em cada pub e clube,
espiões em cada local de trabalho e fábrica, informantes esgueirando-se em cada ônibus
e bonde e parados em cada esquina” (EVANS, 2014c, p. 122). Seu sucesso, se devia, no
entanto, pela atuação da população por meio de denúncias. De acordo com dados oficiais,
menos de 10% dos casos da Gestapo vinham de investigações que ela própria tivesse
iniciado (EVANS, 2014c, p. 124). Essas denúncias, contudo, raramente se derivavam de
motivação ideológica ou política. Robert Gellately reforça como, na maioria das vezes,
vizinhos ou familiares denunciavam uns aos outros por motivos pessoais, como, por
exemplo, por conta de desentendimentos entre os indivíduos (GELLATELY, 2011).

A Gestapo empreendeu diversas ações em conjunto com a SS antes da Segunda


Guerra, como os boicotes econômicos às lojas de judeus e interrogatórios e sessões de
tortura aos inimigos do Reich. Todavia, foi durante a guerra que sua atuação no controle
social foi radicalizada, detendo mais poder e destaque. Himmler articulou todos os
serviços de segurança sob o controle da SS, através da criação do RSHA (Escritório
Central de Segurança do Reich), que será abordado em capítulo posterior. Com isso,
85

houve uma intensificação das atividades, bem como o aumento do temor geral em relação
aos agentes e espiões da Gestapo.48 Embora na realidade a Gestapo não fosse nada do que
aparentava, o medo servia como forte mobilizador – ou, nesse caso, desmobilizador. Mais
importante do que o terror enquanto prática, era o terror enquanto conceito e sobretudo,
o medo do terror. Em outras palavras, mais importante do que a população estar de fato
sendo ouvida e vigiada a todo momento, era o medo pela possibilidade estar sendo ouvido
e vigiado a todo momento.

O livro de Charlotte Beradt é um bom exemplo para esclarecer um pouco a ideia


do medo do terror durante o regime nazista. Beradt, uma jornalista de origem judia, ligada
ao Partido Comunista Alemão, fez uma compilação de sonhos que ela coletou em
entrevistas com alemães, logo após a ascensão de Hitler ao poder em 1933, até às vésperas
da Segunda Guerra Mundial, em 1939. Em um dos sonhos analisados por Charlotte
Beradt, uma dona de casa conta, em 1933: “quando, no dia anterior, no dentista,
estávamos conversando sobre boatos, eu me vi, para minha própria surpresa, cravando os
olhos em sua máquina, como se ali pudesse estar instalado um aparelho de escuta”
(BERADT, 2017, p. 65). Uma jovem tem um sonho que segue essa mesma linha do medo
da vigília: “sonho que acordo no meio da noite e vejo que os dois anjinhos pendurados
sobre a minha cama não olham mais para cima, mas para baixo, observando-me
penetrantemente. Fico tão assustada que me escondo embaixo da cama” (BERADT,
2017, p. 68).

Tudo isso parece ter saído do romance de George Orwell, 1984, quando o
personagem principal, em qualquer lugar que vai, se depara com um letreiro, uma pintura
ou cartaz, com as inscrições “O Grande Irmão está de olho em você”. O Grande Irmão
representa justamente essa ideia de uma entidade onipresente, sempre observando todos
os passos da população. Portanto, era menos importante que os alemães estivessem de
fato sendo vigiados: o que era indispensável era que eles acreditassem nisso.49 A Gestapo
ficou conhecida como a vanguarda do home front nazista e, de acordo com o advogado
Werner Best, líder da organização, “mais importante do que a repressão de delitos já
cometidos é a sua prevenção”, já que “um ato de alta traição, uma vez cometido, já

48
Os três últimos parágrafos foram retirados e adaptados do post que escrevi para o Núcleo Brasileiro de
Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/B_csv3ig7Bb/ (Acesso em 19/09/2022)
49
Os dois últimos parágrafos foram retirados e adaptados da minha dissertação de mestrado. Ver:
VISCONTI, 2017, p. 114–115.
86

significa a morte do Estado” (CHAPOUTOT, 2018, p. 211).

De acordo com Best, existiam duas “ideias de vida” e duas concepções sobre o
homem, a comunidade, a regulação dessa comunidade e, por fim, a polícia. Em primeiro
lugar, a visão individualista-humanista, que valorizava em excesso o indivíduo e sua
independência, já que via o mesmo valor em todos os seres humanos. A humanidade,
nessa perspectiva, seria uma composição de todos esses indivíduos e, o Estado, portanto,
serviria apenas para proteger e preservar os direitos individuais das pessoas. Por outro
lado, no entendimento racial de mundo, o povo seria a realidade da existência humana,
mas não o povo da visão humanista, e sim, “uma entidade que transcende as pessoas
individuais e que perdurou ao longo do tempo, uma entidade definida por uma unidade
de sangue e de espírito” (CHAPOUTOT, 2018, p. 213). Nesse sentido, as pessoas, no
coletivo, são vistas como uma entidade que são o valor supremo da vida, e não o
indivíduo. O Estado, então, seria apenas um grupo de instituições que implementa e
preserva a ordem racial, e, a polícia, uma dessas instituições. Göring estava totalmente de
acordo com o entendimento racial do mundo e percebia sua função e a função da polícia
e da Gestapo, como instrumentos na luta do povo alemão contra os elementos externos e
internos que ameaçavam sua existência. Os “excessos”, portanto, estavam mais do que
justificados.

É claro que, como diz o próprio Göring, “isso foi em uma época em que
ninguém pensava que seria objeto de uma investigação perante um tribunal internacional”
(BS, 9, p. 260). Após anos, “em uma discussão tranquila sobre bases legais”, como era o
caso do tribunal em Nuremberg, muitas coisas podem soar incompreensíveis. No entanto,
seu objetivo naquele momento era demonstrar a atmosfera em que tais atos
incompreensíveis se deram, atos que nem sempre podem ser desculpados, mas que podem
ser compreendidos em vista de seu contexto (BS, 9, p. 326). Citando o primeiro-ministro
britânico Winston Churchill, em uma clara provocação aos juízes, Göring diz “na luta
entre a vida e a morte, no final, não há legalidade” (BS, 9, p. 364). E, nesse sentido, ele
também está plenamente de acordo com o que Hitler declara em Mein Kampf, anos antes:
“ninguém tem liberdade de errar à custa da posteridade, isto é, da raça” (HITLER, 2005,
p. 189).

O Reichsmarschall conta que, de maneira geral, concordava com os pontos


principais do Partido Nazista. Mantendo sua linha de raciocínio sobre a ascensão e
manutenção do movimento, Göring não tem problema em dizer que os objetivos do
87

Partido deveriam ser alcançados de qualquer forma, mesmo que formas ilegais. Afinal,
quem define o que é ilegal e o que não é? Essa é uma concepção que varia de acordo com
o momento e com o regime em questão: “se eu almejo uma revolução, então ela é uma
ação ilegal para o Estado então existente. Se eu for bem-sucedido, então [a revolução] se
torna um fato e, portanto, legal e dentro das leis” (BS, 9, p. 262). Ao obedecer às leis da
vida, o alemão estava sempre certo, uma vez que “o comportamento ético de um homem
é o resultado de sua visão de mundo”, e, “nossa ideologia é o nosso próprio código moral”
(CHAPOUTOT, 2018, p. 245). Por esse motivo Göring não reconhece a autoridade de
um tribunal internacional para julgar a Alemanha, um Estado “soberano” que agia de
acordo com as suas leis. Nuremberg era, em sua visão, de uma “presunção que é única na
história” (GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 193).

Ainda com relação à ascensão do nazismo, Göring utiliza de um argumento


também bastante corriqueiro entre os julgados: o de que, no momento da ascensão ao
poder, o nacional-socialismo era uma escolha óbvia devido a guerra civil que estava
acontecendo na Alemanha, com a crescente influência do comunismo. O problema não
havia sido, nessa perspectiva, nem em 1933 e nem nos anos seguintes, e sim durante a
Segunda Guerra Mundial, quando as coisas começaram a escalar de forma cada vez mais
extrema.

Michael Mann, em Fascistas, nos apresenta a teoria de que a justificativa do


medo do comunismo e da guerra civil era algo recorrente entre os regimes fascistas50 do
século XX. Como ele lembra, “a política não é uma questão de verdade, mas de
ressonância minimamente plausível” (MANN, 2008, p. 194). As greves de 1918-1919
que exigiam sobretudo mudanças salariais criaram uma aura mítica de medo de uma
grande revolução socialista. Mann reitera que “o fascismo não era uma resposta à
revolução, mas uma ‘contrarrevolução preventiva’, para impedir que uma revolução
viesse a acontecer no futuro” (MANN, 2008, p. 171), ainda que a onda revolucionária já
estivesse dissipada quando os fascistas assumiram o poder na Europa. As elites políticas
e econômicas alemãs se aliaram ao NSDAP na destruição da República de Weimar para
pôr um fim ao perigo vermelho, num clima de paranoia coletiva que dissipava o
verdadeiro perigo – o próprio movimento nazista. No momento da conquista do poder, o

50
Não cabe aos propósitos desta tese fazer uma análise sobre o conceito de fascismo, entretanto, é válido
ressaltar que os próprios nazistas não se consideravam fascistas. Quando este conceito está sendo usado
aqui diz respeito à interpretação de Michael Mann, na qual o nazismo é uma variação do fascismo, ainda
que muito diferente do fascismo italiano.
88

Partido Nazista explorou amplamente esse inimigo fictício como uma fachada para o
objetivo real, que era o da conquista do Estado. Essa “ameaça marxista” e esses
“arruaceiros comunistas ou socialistas” podiam ser neutralizados pelo paramilitarismo e
por uma visão de mundo que transcendia a perspectiva de uma sociedade de classes. O
sentimento geral era o de “já tentei outros, chegou a hora de dar uma chance a Hitler”
(MANN, 2008, p. 262).

Ao analisar os depoimentos dos julgados, o que parece desempenhar um papel


mais importante para o ingresso no movimento nazista, é, de maneira geral, o
nacionalismo. A sensação de que a Alemanha fora usurpada de sua antiga glória e que
precisava ser reconstruída para ser grandiosa novamente é um dos pontos chave para a
compreensão da adesão na década de 1930, porque é dessa perspectiva que parte a visão
de um mundo diferente e melhor do que o anterior. Nem todos os nazistas concordavam
com o sistema de crença nazista por completo, mas todos concordavam com a visão de
um mundo onde a Alemanha seria novamente poderosa e maior que as outras nações
europeias – o sonho que ainda não havia sido sonhado, como mencionei na Introdução
(LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002). Citando Adolf Hitler em Mein Kampf, “o
objetivo da nossa luta deve ser o da garantia da existência e da multiplicação de nossa
raça e do nosso povo, da subsistência de seus filhos e da pureza do sangue, da liberdade
e independência da pátria”, de modo que “o povo germânico possa amadurecer para
realizar a missão que o criador do universo a ele destinou” (HITLER, 2005, p. 160). É
claro que concordar com essa premissa não significa concordar com todas as outras, mas,
sem dúvida, é o pontapé inicial. Hermann Göring, entretanto, parecia concordar com
possivelmente todas as premissas.

Número Dois

Ao esclarecer alguns dos termos e conceitos específicos do nazismo, Hermann


Göring dedica atenção especial aos conceitos de Princípio de Liderança e de espaço vital.
O último, que para Göring queria dizer apenas “a relação adequada entre uma população
e sua nutrição (nourishment), seu crescimento e seu padrão de vida” (BS, 9, p. 263) será
abordado com mais profundidade em outros casos. O Princípio de Liderança do Terceiro
Reich é o que Göring se dedica a elaborar. Esse princípio, em sua percepção, significava
basicamente “autoridade de cima para baixo e responsabilidade de baixo para cima”.
Neste sentido, a autoridade emanava do Führer, mas a responsabilidade vinha do povo –
o que não deixa de ser conveniente para um projeto de extermínio.
89

Para Göring, as noções de responsabilidade e autoridade tinham sido distorcidas


pela democracia e pelo parlamentarismo e apenas “uma organização composta por uma
hierarquia de liderança forte e claramente definida poderia restaurar a ordem novamente”.
Isso, no entanto, não deveria ser feito contra a vontade do povo. Göring entendia que
“mesmo um governo baseado no Princípio da Liderança só poderia se estabelecer se, de
alguma forma, estivesse baseado na confiança do povo” e que “se já não tivesse tal
confiança, então teria que governar com baionetas, e o Führer era sempre da opinião de
que isso era impossível a longo prazo – governar contra a vontade do povo.” Ou seja,
mesmo em um governo autoritário baseado no Princípio de Liderança em que a
autoridade era exercida de cima para baixo, o consentimento era necessário, visto que
“somente quando o povo, tendo-se tornado mais e mais forte ao longo do tempo e por
meio de uma série de eleições, manifestou seu desejo de confiar seu destino à liderança
nacional-socialista” é que esse governo poderia liderar. A oposição, como um resquício
de um regime democrático que levou a Alemanha a ruína, não deveria ser tolerada. Göring
afirma que “naquela época, já havíamos vivido o suficiente com a oposição e já tínhamos
tido o suficiente. Através da oposição, nós estávamos completamente arruinados. Agora
era hora de terminar com isso e começar a construir.” (BS, 9, pp. 263-264)

Dessa forma, portanto, o líder do Partido Nazista está compreendendo que


Hitler enquanto Führer tinha precisamente uma “visão” para a Alemanha – e daí viriam
ações em prol dessa “visão”. E essa visão era justamente uma tarefa de construção –
assim como Hannah Arendt entende que é a função da ideologia totalitária. Ao executar
uma Lei da Natureza, o extermínio dos judeus aparece como um mero trabalho de
aceleração de algo natural, uma construção, uma engenharia social, sendo, portanto, uma
tarefa inevitável (ARENDT, 1989). O Princípio de Liderança também é abordado por
Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo. De acordo com a filósofa, esse princípio
não seria totalitário em si, uma vez que ele advém do autoritarismo e de ditaduras
militares tradicionais. A diferença da aplicação desse princípio em um regime totalitário
como o nazista se daria quando o líder passa a ocupar a posição central e quando, de fato,
não existe mais uma hierarquia de comando. Em uma organização tradicional de exército,
no modelo militar, existe um poder que emana de cima para baixo e que demanda
obediência absoluta de baixo para cima, algo mais circunstancial. No entanto, no nazismo,
existia uma “hierarquia flutuante, com a constante adição de novas camadas e mudanças
90

de autoridade” (ARENDT, 1989, p. 419).51 Arendt afirma que:

Uma escala de comando hierarquicamente organizada significa que o poder do


comandante depende de todo o sistema hierárquico dentro do qual atua. Toda
hierarquia, por mais autoritária que seja o seu funcionamento, e toda escala de
comando, por mais arbitrário e ditatorial que seja o conteúdo das ordens, tende
a estabilizar-se e constituiria um obstáculo ao poder total, do líder de um
movimento totalitário. Na linguagem dos nazistas, é o ‘desejo do Führer’,
dinâmico e sempre em movimento – e não as suas ordens, expressão que
poderia indicar uma autoridade fixa e circunscrita -, que é a lei suprema’ num
Estado totalitário. O caráter totalitário do princípio de liderança advém
unicamente da posição em que o movimento totalitário, graças à sua peculiar
organização, coloca o líder, ou seja, da importância funcional do líder para o
movimento (ARENDT, 1989, p. 414).

Adolf Hitler, em seu livro Minha Luta, já havia delineado alguns pontos
fundamentais para a compreensão do que viria a ser o Princípio de Liderança do Terceiro
Reich. De acordo com Hitler, o Führer “assume responsabilidade de tudo”, mas poderia
ser destituído de seu cargo pelos adeptos do movimento caso perceba-se que ele tenha
“abandonado os princípios fundamentais da causa ou tenha servido mal aos seus
interesses”. Sendo assim, qualquer indivíduo que desejar ser o líder de um movimento e
de uma nação “terá a mais ilimitada autoridade, ao lado da mais absoluta
responsabilidade”, e, por esse motivo, “só o herói está em condições de assumir esse
posto” (HITLER, 2005, p. 254). Esse herói, personificado no líder, tem uma posição única
no totalitarismo e distinta dos líderes de outros partidos e movimentos comuns: ao mesmo
tempo em que o líder tem total responsabilidade, “cada funcionário não é apenas
designado pelo líder, mas é a sua própria encarnação viva, e toda ordem emana
supostamente dessa única fonte onipresente” (ARENDT, 1989, p. 424). A consequência
prática dessa identificação do líder com o funcionário e do funcionário com o líder é que
“ninguém se vê numa situação em que tem de se responsabilizar por suas ações ou
explicar os motivos que levaram a elas”. A resposta de cada um sempre será: “não me
pergunte, pergunte ao líder”, já que “estando no centro do movimento, o líder poderá agir
como se estivesse acima dele” (ARENDT, 1989, p. 425). E é por esse motivo que Hitler
aparece como o grande culpado em Nuremberg, o homem ausente sendo constantemente
julgado.

Para Ian Kershaw, o conceito de “trabalhar em direção ao Führer” (working


towards the Führer) está intimamente ligado a esse processo confuso de
responsabilização total, e ao mesmo tempo, parcial, de Hitler. O conceito, cunhado ao ler

51
Esse trecho foi retirado e adaptado do artigo que escrevi. Ver: VISCONTI, 2020.
91

um discurso de um funcionário nazista em 1934 que dizia que “é o dever de todos


trabalhar em direção ao Führer nos moldes que ele desejaria” (KERSHAW, 2009, p. 41–
42), também se associa com o que Hans Frank, cujo caso analisaremos em capítulo
posterior, define como o “imperativo categórico do Terceiro Reich”. Se, em Kant, o
imperativo categórico determina “aja de tal maneira que sua ação possa ser considerada
um princípio universal”, no nazismo, o imperativo havia se distorcido para se transformar
em “aja de tal modo que o Führer, se souber de sua atitude, aprove” (ARENDT, 1999, p.
153). Nesse sentido, Hermann Göring, como o Número Dois, era um executor da “visão”
do Führer e alguém que agia como Hitler desejaria. Sua responsabilidade, no entanto, não
estava nem próxima do número dois, pelo contrário: Göring queria se manter o mais
distante possível da responsabilização pelas ordens que obedeceu.

Ao diferenciar duas formas de responsabilidade, Göring entende como


responsabilidade formal a responsabilidade de todo oficial aos departamentos e
escritórios sob sua liderança; e a responsabilidade verdadeira como a que está ligada a
ações e ordens emitidas diretamente por um indivíduo e não necessariamente aos
discursos que este proferiu. De acordo com Göring, embora ele “não pudesse ter visto ou
conhecido de antemão tudo o que foi emitido ou discutido por eles [seus subordinados]”,
ele devia, no entanto, “assumir a responsabilidade formal, particularmente quando
estamos preocupados com o encaminhamento das diretivas gerais” dadas por ele. A
responsabilidade real ou verdadeira, nesse sentido, aparecia nos casos em que ele
pessoalmente havia emitido ordens, “incluindo em particular todos os atos e caprichos”
que ele pessoalmente realizou ou pessoalmente assinou. O Reichsmarschall deixa bem
claro que, neste caso, seu foco está nos fatos e nas coisas diretamente associadas a ele e
“não tanto a palavras e declarações feitas durante aqueles 25 anos aqui e ali em pequenos
círculos”. No entanto, na máxima, existia a autoridade do Führer. Sobre isso, ele declara:

O Führer, Adolf Hitler, está morto. Eu era considerado seu sucessor na


liderança do Reich alemão. Por conseguinte, devo declarar, com referência à
minha responsabilidade: Eu reconheço minha responsabilidade por ter feito
tudo para realizar os preparativos para a tomada do poder e por ter tornado esse
poder seguro e firme, a fim de tornar a Alemanha livre e grande. Eu fiz tudo
para evitar esta guerra. Mas depois de ter começado, era meu dever fazer tudo
para ganhá-la. (BS, 9, p. 656)

Dessa forma, Göring consegue colocar ambas as formas de responsabilidade


em situações apenas direta e pessoalmente ligadas a ele, não muito diferente do que Adolf
Eichmann tenta fazer e seu julgamento em Jerusalém em 1961, quando afirma repetidas
vezes que ele, pessoalmente, não havia matado nenhum judeu. Nos 25 anos em que esteve
92

ligado ao movimento nacional-socialista, Göring compreende que ali não constam 25


anos de total responsabilidade – esta só poderia ser atribuída ao Führer. Assim, havia uma
relação direta e inseparável entre Hitler e a noção de Princípio de Liderança. Em um
momento de crise política e econômica, em que a Alemanha se sentia desunida e
humilhada pelas consequências da Primeira Guerra Mundial, para o nazista,

Dar ao Führer poderes absolutos não era uma condição básica para se livrar de
Versalhes, mas para colocar em prática nossa concepção do Princípio da
Liderança. Dar a ele nosso juramento antes que ele se tornasse o chefe do
Estado era, de acordo com as condições então existentes, uma questão óbvia
para aqueles que se consideravam membros de seu seleto corpo de liderança.
Eu não sei e não posso dizer exatamente como o juramento foi dado antes da
tomada do poder; eu só posso dizer o que eu mesmo fiz. Depois de certo
período de tempo, quando eu tinha adquirido mais conhecimento sobre a
personalidade do Führer, eu lhe dei a mão e disse: ‘Eu uno meu destino com o
seu para o bem ou para o mal: eu me dedico a você nos bons tempos e nos
maus, até a morte’. Eu realmente quis dizer isso (I really meant it) – e ainda
quero. (BS, 9, pp. 439-440, grifos meus)

Dessa maneira, Göring não se dissocia completamente do Führer, e, ainda que


sua defesa de Hitler não seja tão apaixonada como a de outros julgados, ela aparece em
diversos momentos. Seu voto de lealdade a Hitler era levado a sério por ele,
principalmente em um momento crítico no qual ele talvez não concordasse com todas as
medidas: “nunca me ocorreu deixar o Führer” (BS, 9, p. 428). Göring diz não estar ali
“nem para justificar o Führer Adolf Hitler nem para glorificá-lo” e sim para enfatizar que
sua lealdade a ele permaneceu intacta. Como chefe de Estado, Hitler era a personificação
dos sonhos da Alemanha, e o Reichsmarschall tinha esses sonhos em alta estima. Como
o Número Dois, unir seu destino ao do Führer era também, portanto, uma maneira de se
manter fiel à essa Alemanha idealizada.

Em sua estratégia de defesa, Göring também apela em diversos momentos para


sua posição militar na cadeia de comando do Terceiro Reich como uma maneira de
explicar sua isenção de responsabilidade em muitos aspectos. Dessa forma, ele utiliza
muitos dos argumentos que serão mais bem explorados na categoria militares
apartidários, em capítulo posterior. Ainda assim, é importante mencionar como sua
defesa da obediência e da lealdade ao líder perpassa o nível militar, mas não se limita a
isso. Em uma clara provocação aos argumentos de Hjalmar Schacht nos bastidores do
tribunal, Göring afirma:

Esta censura [às atitudes de Hitler no final da guerra] foi feita contra ele por
um grande número de comandantes do Exército e de grupos do Exército. Foi
fácil para eles fazer essa censura porque estavam fora do alcance de Adolf
Hitler e não precisavam apresentar nenhuma proposta. Eu sei que,
93

especialmente após o colapso, um grande número de generais adotou o ponto


de vista de que Keitel tinha sido um típico ‘yes-man’. Só posso dizer que
pessoalmente me interessaria se pudesse ver aqueles que hoje se consideram
‘no-men’. (BS, 9, p. 371)

Esse ponto é interessante porque Schacht define a si mesmo precisamente como


um No-man, um grande resistente do nazismo, como veremos em capítulo posterior. Pelos
relatos de Gustave Gilbert, sabemos que o clima era tenso entre Göring e os outros
nazistas que buscavam afirmar sua resistência e/ou sua decepção com Hitler e com o
regime como um todo. Em sua tentativa de defesa da frente unida, o marechal não admite
nenhum tipo de crítica ao governo que ele serviu por tantos anos. É relevante observar
que a questão da representação dos nazistas é também perceptível no âmbito de como
eles se enxergavam entre seus companheiros de cela. A maneira como eles se
apresentavam entre eles, dentro do Partido e através de suas práticas, afetava como
mundo os enxergava, mas também como eles se enxergam enquanto organização. Neste
sentido, apresentar outros nazistas como indivíduos complexos que não eram
verdadeiramente o que aparentavam também é uma tentativa consciente de criar uma
narrativa mais aceitável para o Terceiro Reich e para a ideologia nazista. Assim, a defesa
da importância da obediência sai do âmbito estritamente militar e passa para questões de
honra e de lealdade patrióticas. Isso se torna perceptível na seguinte declaração:

E se – isso eu enfatizo, já que muitas vezes desempenhou um papel aqui – se


um general pudesse dizer: ‘Meu Führer, considero suas declarações erradas e
não estão alinhadas com os acordos que fizemos’ ou ‘Isso não é uma política
que possamos aprovar’, isso teria desafiado a compreensão. Não porque aquele
general em particular teria sido fuzilado; mas eu teria duvidado da sanidade
daquele homem, porque como alguém imagina que um Estado pode ser
liderado se, durante uma guerra, ou antes de uma guerra, que os líderes
políticos decidiram que ocorreria, com ou sem razão, um general individual
poderia votar se ele iria lutar ou não, se seu corpo de Exército ficaria em casa
ou não, ou poderia dizer: ‘Primeiro devo perguntar à minha divisão’. Talvez
um deles vá junto, e o outro fique em casa! Esse privilégio, neste caso, teria
que ser concedido ao soldado comum. Talvez essa fosse a maneira de evitar
guerras no futuro, se alguém perguntar a cada soldado se ele quer voltar para
casa! Possivelmente, mas não em um Estado do Führer. Isso eu gostaria de
enfatizar, que em cada Estado do mundo a fórmula militar é claramente
definida. Quando há uma guerra, ou quando a liderança do Estado decide pela
guerra, os líderes militares recebem suas tarefas militares. Com relação a isso,
eles podem opinar, podem fazer propostas sobre se querem pressionar o ataque
à esquerda, à direita ou ao centro. Mas se eles marcham através de um Estado
neutro ou não, não é assunto da liderança militar. Isso é de inteira
responsabilidade da liderança política do Estado. Portanto, não poderia haver
nenhuma possibilidade de que uma discussão geral sobre o certo ou o errado
pudesse acontecer; em vez disso, os generais já haviam recebido suas ordens.
O Comandante Supremo havia decidido e, portanto, não havia mais nada para
um soldado discutir; e isso se aplica a um marechal de campo, bem como ao
soldado comum. (BS, 9, p. 311)

Göring se localizava no centro de todas as problemáticas de sua própria


94

declaração. Era um marechal, general, do alto comando do Exército, ao mesmo tempo


que era o segundo homem do Reich, no alto comando do Estado. Não era simplesmente
um militar e nem simplesmente um estadista. Não podia desobedecer ao Führer como seu
Comandante Supremo do Exército, mas também tinha poder para propor alternativas
dentro do próprio governo – e não o fez pelo seu contínuo alinhamento ideológico com o
Partido Nazista. Para ele, o atentado a morte de Hitler em 1944, que será abordado em
capítulo posterior, não foi apenas uma traição ao líder do Exército, mas ao homem que
liderou a Alemanha para um futuro melhor, um futuro livre de Versalhes, algo que Göring
acreditava que era o desejo de todo e qualquer alemão da época. Afinal, como ele diz a
Gilbert, “Hitler era mais do que uma pessoa para nós” (GÖRING apud GILBERT, 1995,
p. 372).

Para Goldensohn, ele também declara que “os generais do exército de repente
ficaram todos mais espertos que Hitler. Mas quando ele estava comandando as coisas,
eles ouviam o que ele dizia e buscavam seu conselho” (GÖRING apud GOLDENSOHN,
2005a, p. 153). É inaceitável, em sua perspectiva, que os generais que haviam perdido a
guerra estivessem no banco dos réus fazendo críticas a Hitler e isso lhe parecia, de muitas
maneiras, oportunista. Göring afirma que, caso a Alemanha tivesse ganhado a guerra,
“esses réus e generais estariam agora dizendo, ‘Heil Hitler’, e não fariam essas malditas
críticas”. Essa declaração, que não deixa de ter uma grande parcela de verdade, demonstra
mais uma vez a compreensão que Göring tem do papel político daquele tribunal e das
circunstâncias específicas que os julgados estavam submetidos. Atribuir a culpa a Hitler
era uma maneira fácil de se isentar da própria responsabilidade. No entanto, boa parte
dessa culpa sequer existiria se a Alemanha tivesse sido vitoriosa na guerra.

Denunciar Hitler, nesse sentido, também era uma representação não só de


traição, como de fraqueza. O Reichsmarschall jurou sua fidelidade ao Führer, para o bem
ou para o mal, e não podia “voltar atrás”, ainda que “isso não tem nada a ver com ele
como indivíduo”, e sim com seus princípios. Afinal, Göring era o segundo homem do
Reich, que a qualquer momento poderia se tornar o Número Um: “apenas tente em algum
momento ser o príncipe herdeiro por 12 anos – sempre leal ao rei, desaprovando de muitas
de suas políticas, e ainda assim não poder fazer nada sobre isso”, porque sabia que “a
qualquer momento você pode se tornar rei e ter que tirar o melhor proveito da situação”
(GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 400). Nesse sentido, por estar preparado para
assumir o Reich a qualquer momento, Göring não podia simplesmente se rebelar. Mesmo
95

quando seu ponto de vista era diferente do de Hitler, ele não poderia impor sua vontade:
“se eu tivesse imposto minha vontade todas as vezes, provavelmente teria me tornado o
homem Número Um.”. No entanto, “como o homem Número Um tinha uma opinião
diferente, e eu era apenas o homem Número Dois, sua opinião naturalmente prevaleceu”
(BS, 9, pp. 427-428). E aqui, novamente, o Reichsmarschall compreende que o grande
erro de Hitler não estava no Terceiro Reich como um todo, e sim, nos últimos anos da
Segunda Guerra Mundial.

John Lukacs, juntamente com outros historiadores, como Joachim Fest,


apresenta a ideia de que Hitler foi considerado, de fato, um grande governante pela
maioria dos alemães até a eclosão da Segunda Guerra. De acordo com Fest, “se tivesse
falecido de repente em 1938, Hitler teria sido – e provavelmente seria – considerado um
dos maiores alemães de toda a história” (LUKACS, 1998, p. 77). Varrer Hitler para baixo
do tapete e considerar todo o período nazista como uma loucura coletiva deixa
deliberadamente de lado o apoio popular fortíssimo que esse homem contava nos
primeiros anos de seu governo. Além de dar unidade ao povo alemão, de atender as
demandas do movimento operário, de aumentar vertiginosamente a taxa de natalidade, de
diminuir o número de suicídios, de construir as famosas Autobahns, e de tomar medidas
para que a população não passasse mais frio e fome, Hitler ainda tornou a Alemanha
grande novamente, respeitada e temida entre as potências europeias. Como lembra
Lukacs:

Ele não apenas tornou a Alemanha a maior, mais respeitada e temida das
potências da Europa e não só reuniu os alemães da Áustria, Boêmia e Morávia,
a maioria desejando entusiasticamente aglutinar-se em uma Grande Alemanha
– mas deixou longe das realizações de Bismarck, e tudo isso sem disparar um
único tiro, sem guerra. Ele deu prosperidade e confiança aos alemães, o tipo
de prosperidade que é um dos resultados da confiança. A década de 1930, após
1933, foi de dias ensolarados para a maioria dos alemães: algo que permaneceu
na memória de uma geração inteira. Os campos de concentração, a eliminação
dos judeus alemães, a vulgaridade rouca da propaganda nazista estiveram
presentes e dolorosamente nítidos na mente de uma minoria amargurada
(LUKACS, 1998, p. 78).

Hitler foi um inovador e um revolucionário e suas ações forçavam o mundo


para um novo – e nunca visto – horizonte. Precisava ser combatido justamente por isso e,
em Nuremberg, é claro, precisava ser responsabilizado por seus atos. Para homens como
Hermann Göring, no entanto, ele precisava ser defendido. É claro que não é possível fazer
uma separação completa dos primeiros anos do governo nazista e o que se sucedeu
posteriormente na Segunda Guerra. Podemos ponderar que o plano de extermínio não
96

estava claro desde o começo, podemos entrar nas diversas polêmicas acerca do
conhecimento da população alemã do que estava acontecendo em seu país, podemos
refletir sobre a linha de ação tomada por Hitler a partir de 1939. No entanto, como
estratégia de defesa, os nazistas traçam uma linha divisória marcante entre 1933 e os
últimos dois anos da guerra. O que Göring diz em suas declarações é precisamente esse
embate: a crença no Führer perpassa pela negação do lado sombrio que sempre esteve
presente em suas proposições.

Neste sentido, Göring compartilhava da visão produzida pelo “mito do Führer”,


como denomina o historiador Ian Kershaw. Esse mito foi formulado na ideia de que Hitler
era o perfeito símbolo da Alemanha e será abordado com mais profundidade em capítulos
posteriores. É válido mencionar, no entanto, que a produção consciente do “mito do
Führer” foi realizada pelos seus seguidores antes que o próprio Hitler tivesse se ajustado
a esse papel. Como aponta Kershaw, “a construção consciente do ‘mito do Führer’ nos
anos que se seguiram à refundação do Partido teve a clara função de compensar a falta de
unidade ideológica e clareza nas diferentes facções do movimento nazista” (KERSHAW,
2001, p. 26). O nazismo escolheu bem seus inimigos populares, de modo que mesmo os
que não eram favoráveis ou que até mesmo eram críticos ao movimento, odiavam ainda
mais os comunistas, os judeus, e a República, como mencionado anteriormente. Tudo
parecia pior do que o nazismo e os nazistas tiveram muito sucesso em mobilizar esses
ressentimentos e aplicá-los em torno de uma ideia de construção de mundo. Göring não
está distante dessa visão compartilhada de unidade da organização em torno da figura de
Hitler e a crença e lealdade pessoal do comandante ao líder transparece de forma clara
em alguns momentos:

Hitler era o espírito e o símbolo da Alemanha. Eles não puseram o Kaiser


Guilherme em julgamento após a última guerra, eles não estão processando o
imperador Hiroíto do Japão. Mas teriam provavelmente processado Hitler.
Estou aqui para substituir Hitler. Não foi uma questão de covardia ele deixar
que outros assumissem a responsabilidade por seus atos. Assumo-a de bom
grado no lugar de Hitler, como informei ao tribunal. (GÖRING apud
GOLDENSOHN, 2005, p. 170, grifo meu)

Em Nuremberg, Hermann Göring, finalmente, saía da sombra de Hitler e se


tornava o Número Um do Terceiro Reich. O substituto do Führer sabia que morreria
naquele tribunal e aceitava de bom grado essa sentença se, em contrapartida, pudesse
oferecer uma visão mais positiva do regime nacional-socialista e de alguns de seus
governantes.
97

Frente unida

Como mencionado, boa parte da narrativa de Hermann Göring se concentra em


mostrar que a Alemanha tinha procedimentos e processos políticos similares aos de
quaisquer países do mundo. Numa de suas últimas declarações a Goldensohn do dia 24
de maio de 1946, o julgado afirma:

A linha principal da minha defesa se baseava em que, como um alemão leal e


seguidor de Hitler, eu aceitava as ordens como ordens. Em segundo lugar,
como figura mais importante da Alemanha depois do Führer, eu tinha de
assumir responsabilidades, mas tracei uma linha separando a aceitação de
culpa por atos indignos e as atrocidades que acredito que Goebbels e Himmler
cometeram. (GÖRING apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 160)

Sua responsabilidade, portanto, estava direcionada ao regime nazista como um


todo, desconsiderando que as atrocidades faziam parte desse mesmo regime. Ao atribuir
a culpa a indivíduos específicos que nem sequer estavam vivos para serem julgados,
Göring se apresenta como uma figura importantíssima dentro da estrutura do Terceiro
Reich que, ao mesmo tempo, não se sente pessoalmente responsável por nenhuma ação
moralmente errada desse regime. O psiquiatra Leon Goldensohn acredita que a estratégia
de Göring é justamente a de responder às questões que lhe são feitas da maneira que ele
considerava que seria mais favorável à sua defesa. Nas palavras do julgado: “ninguém
conhece o verdadeiro Göring. Sou um homem de muitas partes, mas a autobiografia, o
que ela revela? Nada” (GÖRING apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 161).

Sua apresentação contraditória como um homem de Estado, logo abaixo de


Hitler, e, simultaneamente, um soldado, leva o general Rudenko a questioná-lo sobre
onde, de fato, se encontrava sua responsabilidade. Göring se defende dizendo que,
precisamente por não ser um simples soldado, ele deveria “dar um exemplo para o
soldado comum por minha própria atitude de como o juramento de fidelidade deveria ser
cumprido estritamente”. Afinal, seu juramento não era válido “apenas em tempos bons,
mas também em tempos ruins”. Tempos ruins, que só vieram com a perda da Segunda
Guerra Mundial; até a derrota da Alemanha, Hitler trouxe prosperidade para o país – e
ele mantém essa afirmação. Rudenko o questiona se, como segundo homem da
Alemanha, e não como um soldado, era ou não seu dever saber das atrocidades que
estavam acontecendo, ao que Göring responde que “ou eu conheço o fato ou não conheço.
Você só pode me perguntar se fui negligente ao não obter conhecimento” (BS, 9, pp. 651-
653).
98

Acredito, ainda, que é possível fazer uma análise da vaidade deste réu em seu
discurso: ao declarar constantemente que seu papel no Terceiro Reich era muito relevante
e que ele era o segundo homem depois de Hitler, Göring está exaltando a si próprio como
um grande estadista. Por conta dessa vaidade, o psicólogo Gustave Gilbert o define,
inclusive, como um “egoísta patológico”. Entretanto, quando percebe a relação direta
entre ser um homem muito importante dentro de uma organização e ser, portanto,
responsável pelas atrocidades dessa organização, Göring se desloca para o lado da traição
e da atribuição de culpa a outros homens e outros setores, sob os quais ele afirma não ter
nenhuma jurisdição. O Reichsmarschall cai constantemente na sua própria armadilha por
uma vaidade exacerbada e pela compreensão do regime nazista como um regime como
qualquer outro. De acordo com Leon Goldensohn, Göring tinha um desejo “de sustentar
sua linha de solidariedade com tudo o que fosse nazista, todos os ‘bons nazistas’, e
produzir uma lenda da traição por essa ou aquela pessoa que explicasse a derrota da
Alemanha e a mudança de personalidade de Hitler” (GOLDENSOHN, 2005a, p. 168).
Nesse sentido, a frente unida era, na realidade, uma defesa dos bons nazistas que ele
acreditava que existiram no Reich, e que, possivelmente, ainda existiam no julgamento.
Os que aceitavam fazer parte dessa parte “boa” do regime nacional-socialista, mereciam
o apoio e proteção do Número Um em Nuremberg. Todos os que se voltavam contra o
líder – e no papel de líder está Adolf Hitler e Hermann Göring – ou contra a organização,
mereciam, pelo contrário, sua censura, rejeição, crítica e, por fim, sua invalidação como
nazista e como um réu defensável.

Selvageria

Como estamos falando de responsabilidade, é de fundamental importância


compreender a postura de Göring com relação à questão judaica, já que é também ele que
abre essa temática nos procedimentos. Como muitos outros em Nuremberg, Göring
declara que a questão judaica se tornou de fato uma questão por conta do poder que os
judeus possuíam naquela época na Alemanha e na Áustria. Eles ocupavam posições de
poder, atuavam na vida pública e possuíam demasiada influência em todas as esferas da
vida alemã: na imprensa, na política, na polícia, nos Partidos, na economia. Para além
dessa influência, para Göring, os judeus entraram em uma luta contra o nacional-
socialismo, tentando difamar o Partido e o movimento, além de terem realizado boicotes
econômicos contra empresários nacional-socialistas. Surgiu, então, um movimento de
defesa, com o objetivo principal de excluí-los da vida política e cultural da Alemanha:
99

Tudo isso naturalmente resultou em uma forte atitude defensiva por parte do
Partido e levou desde o início a uma intensificação da luta, como originalmente
não era a intenção do programa. Pois o programa visava muito definitivamente
a uma coisa acima de tudo – que a Alemanha deveria ser liderada por alemães.
E desejava-se que a liderança, especialmente a formação política do destino do
povo alemão, estivesse nas mãos de pessoas alemãs que pudessem levantar o
espírito do povo alemão novamente de uma maneira que pessoas de um tipo
diferente não pudessem. (BS, 9, p. 274)

Nesse sentido, para o réu, as Leis de Nuremberg eram necessárias para fazer
essa clara separação entre as raças e excluir raças mistas. Essas leis foram promulgadas
em 15 de setembro de 1935 e consistiam em duas leis distintas: a Lei de Proteção do
Sangue Alemão e da Honra Alemã e a Lei da Cidadania do Reich. A primeira proibia o
casamento e criminalizava as relações sexuais entre judeus e não-judeus, visando impedir
a miscigenação da raça germânica. Condenava, também, a contratação de empregadas
alemãs com menos de 45 anos por judeus, inferindo que estes obrigariam as mulheres a
cometerem atos de “poluição racial”. A segunda lei determinava que apenas pessoas com
ascendência ou sangue alemão/ariano poderiam ser consideradas cidadãs do Reich.
Assim, ela demarcava que os judeus não eram mais cidadãos, mas sim “súditos do
estado”. A definição era feita por meio do mapeamento da árvore genealógica e não
apenas da aparência, ainda que esta tenha sido continuamente mobilizada pelo Terceiro
Reich para a identificação de judeus.

Essas leis reverteram o quadro de ganho de direitos civis que os judeus estavam
vivenciando desde o século XIX e serviram como base para futuras medidas antissemitas
sancionadas na Alemanha nazista, que aprofundaram ainda mais a distinção entre judeus
e alemães. Embora elas se referissem especificamente a este grupo, também eram
aplicadas aos negros e aos roma e sinti (EVANS, 2014c; GELLATELY, 2011).52

Como mencionado anteriormente, a prevenção era uma questão de extrema


relevância na ideologia nazista e que também fazia parte da mentalidade e da atuação de
Hermann Göring. No entanto, o réu faz questão de demonstrar como antissemitismo não
era uma questão que ocupava muito espaço em suas reflexões. Como ele afirma a
Goldensohn:

Nunca fui antissemita. O antissemitismo não desempenhou nenhum papel em


minha vida. Se dependesse do antissemitismo, eu jamais me interessaria pelo
movimento nazista. O que atraiu para o partido foi o programa político. Quer
dizer, a formação de uma Alemanha poderosa e a revogação do Tratado de
Versalhes. Claro que quem aderisse ao Partido tinha de adotar mais ou menos

52
Os últimos dois parágrafos foram retirados e adaptados do post do Núcleo Brasileiro de Estudos de
Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/Cih-EcXM45Q/ (Acesso em 19/09/2022)
100

todos os pontos do partido, inclusive o antissemitismo. [...] Nunca tive nenhum


sentimento de ódio pelos judeus. Percebo que isso parece absurdo – que é
difícil compreender que alguém como eu, que fez discursos antissemitas e
participou como o homem Número Dois de um regime que exterminou 5
milhões de judeus, possa dizer que não foi antissemita. Mas é verdade. Eu
jamais teria seguido essa política. Teria tomado uma direção bem diferente e
de maneira mais tranquila (GÖRING apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 158–
159).

Para Göring, portanto, sua adesão ao antissemitismo era tangencial à sua adesão
à proposta geral do Partido Nazista. Seu entendimento era o de que possivelmente Hitler
tenha sido antissemita para dar conta da plataforma política que ele tinha proposto, já que
o antissemitismo estava na ordem do dia naquela época. Se declarar antissemita garantia
uma maior chance de sucesso e, assim, Hitler estava, mais uma vez, absolvido. Como
grande parte dos nazistas julgados, Göring relata uma série de ações individuais que diz
ter feito para ajudar os judeus, acreditando que isso comprovaria que ele não poderia ser
antissemita e tampouco apoiar ações de extermínio. Ele ainda vai além ao dizer que “se
desaprovo experiências com animais, como poderia ser a favor da tortura de seres
humanos?” (GÖRING apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 160). Segundo Göring, como ele
era contra qualquer tipo de atrocidade, caso algum dos subordinados de Himmler o tivesse
procurado, ele poderia ter tentado impedir ou fazer algo pelas vítimas. Como ninguém o
procurou, ele não sabia de nada que estava acontecendo. E, por fim, como Número Dois,
a responsabilidade sobre a questão do antissemitismo e das consequências desse
antissemitismo, era na realidade, de Adolf Hitler.

Apesar de passar boa parte do testemunho negando o seu conhecimento das


atrocidades, em outros momentos, Göring menciona saber de uma política de deportação
dos judeus. Contudo, mesmo ao ser confrontado com documentos que ele próprio redigiu
que diziam especificamente sobre a aniquilação desse povo – algo que, de acordo com as
suas próprias declarações, poderia ser considerada uma responsabilidade verdadeira -, o
Reichsmarschall recorria à tradução do documento para escapar da culpa:

GÖRING: ‘Os judeus são deixados apenas em pequenos números. Milhares


se foram’ (have gone). Aqui não diz que eles foram destruídos. Deste trecho,
você não pode concluir que eles foram assassinados. Também pode significar
que eles foram embora – no sentido de que foram removidos.
SIR DAVID MAXWELL-FYFE: Sobre a observação anterior, sugiro que
você deixe bem claro o que você quis dizer com ‘restam apenas alguns judeus
vivos, enquanto dezenas de milhares foram descartados’ (disposed of).
GÖRING: ‘Eles ainda moravam lá’. É assim que você deve entender essa
frase. (BS, 9, p. 618)

A linguagem é fundamental neste trecho em específico, e, assim como Alfred


Rosenberg e tantos outros, Göring se justifica a partir da perspectiva de que o Reich tinha
101

uma política de emigração, e não de extermínio. E dessa política de emigração, ele sabia
muito pouco, uma vez que ela era da alçada de responsabilidade de Himmler e da SS.
Para Gilbert e Goldensohn ele também dá declarações evasivas, dizendo não acreditar
nos números de pessoas exterminadas apresentadas em Nuremberg, e afirmando que
aquilo era “tecnicamente impossível”. Ele também recorre ao argumento de que tudo o
que se ouvia sobre atrocidades, mesmo durante o regime nazista, eram apenas rumores
ou fruto de propaganda Aliada. No entanto, ao contrário de outros julgados, sua vaidade
não permite que ele não emita opiniões sobre o antissemitismo, ou que ele fuja
completamente da questão, como é perceptível no trecho a seguir:

Ainda que não tivéssemos o menor escrúpulo em exterminar uma raça, o bom
senso proclama que, em nossa civilização, se trata de uma selvageria, sujeita
a tantas críticas do exterior e internas, que seria condenada como a maior
ação criminosa da história. Compreenda que não sou moralista, embora tenha
meu código de honra. Se eu realmente sentisse que a matança dos judeus
significa alguma coisa, por exemplo, vencer a guerra, não me incomodaria
muito. Mas ela foi tão absurda e não beneficiou ninguém, servindo apenas para
manchar a reputação da Alemanha. Tenho consciência e acho que matar
mulheres e crianças simplesmente porque tiveram o azar de ser vítimas da
propaganda histérica de Goebbels não é conduta de um cavalheiro. Não
acredito que eu vá para o céu ou o inferno quando morrer. Não acredito na
Bíblia nem num monte de coisas que as pessoas religiosas pensam. Mas venero
as mulheres e acho injusto matar crianças. Esta é a coisa que mais me incomoda
no extermínio dos judeus. A segunda coisa que desaprovo é a reação política
desfavorável que tal programa absurdo de extermínio necessariamente
provoca. Quanto a mim, sinto-me livre de responsabilidade pelos assassinatos
em massa. Certamente, como o segundo homem mais importante do Estado
depois de Hitler, ouvi rumores de assassinatos em massa de judeus, mas eu não
podia fazer nada a esse respeito e sabia que era inútil investigar tais rumores
para descobrir a verdade sobre eles, o que não seria tão difícil, mas eu estava
ocupado com outras coisas, e se tivesse descoberto o que estava acontecendo
no tocante aos assassinatos em massa, simplesmente faria eu me sentir mal e,
de qualquer modo, nada poderia fazer para impedi-los. (GÖRING apud
GOLDENSOHN, 2005, p. 175, grifos meus)

Portanto, Göring deixa explícito que seu código de moral diz respeito apenas à
reputação da Alemanha. Dessa forma, o extermínio dos judeus não era um problema por
si só: ele se tornaria um problema dependendo da forma em que fosse executado. No caso
alemão, a Solução Final não beneficiou ninguém – sobretudo, não beneficiou a Alemanha,
de modo que parece, para Göring, que isso havia sido um desperdício de tempo e de
recursos. Além disso, ele também demonstra ter consciência do que é considerado
civilizado e do que é considerado bárbaro nas civilizações ocidentais: matar outro ser
humano não é “um ato de selvageria”, mas, exterminar outra raça por completo, sim. Esse
extermínio só trouxe uma “reação política desfavorável” a Alemanha e ao povo alemão,
como um todo. A parte mais impressionante da declaração de Göring, entretanto, é a
alegação quase Arendtiana sobre o processo de pensamento. Ao dizer que se soubesse (ou
102

se procurasse saber) dos assassinatos em massa, ele apenas se sentiria mal, Göring
entende, tal como Adolf Eichmann, que quase ninguém quer ser o vilão de sua própria
história e, portanto, a ignorância conscientemente escolhida é uma forma de fugir do
pensamento e da crise moral que pode surgir desse diálogo interno do dois-em-um
(ARENDT, 2004).53

Para Arendt, o diálogo interno entre eu e eu mesma, o dois-em-um, implica o


constante exame e reexame das minhas ações e pensamentos. Sendo assim, quem se abre
a esse tipo de atividade humana está disposto a ter crises de consciência e a se arrepender
de seus atos. Se negar a olhar para dentro de si é uma estratégia eficiente se não se quer
ter um colapso moral já que, segundo Arendt, e seguindo uma linha kantiana, se o ser
humano não faz o mal deliberadamente, ao perceber que fez o mal, não consegue mais
conviver tão próximo de um malfeitor – ou seja, de si mesmo. A filósofa entende que
Eichmann, se tomasse consciência do que suas ações significavam, sentiria uma crise tão
profunda que a única opção seria o suicídio (ARENDT, 1999). O relato de Göring
também segue essa linha de raciocínio: para continuar vivendo sua vida normalmente e
se preocupando com outras questões, era importante conscientemente ignorar o mal que
estava sendo feito em seu nome. Sua autopercepção, contudo, como é possível observar,
é a de que ele próprio não fez nada abominável: não iria nem para o céu nem para o
inferno.

Entretanto, Hermann Göring, estava longe de ser um ser humano mediano e um


mero burocrata como Eichmann. Afinal, ele não era apenas o Número Dois, mas era,
sobretudo, um grande alemão, e, portanto, em sua visão, merecedor de entrar no hall dos
grandes heróis da história da humanidade.

Caixão de mármore

Consciente de seu papel e sua posição em Nuremberg, Göring diz repetidas


vezes que já sabia que o veredito dos juízes para o seu caso seria uma sentença de morte.
No entanto, o réu diz não se importar com isso, apenas com sua “reputação na história”
(GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 80). Ele preferia “morrer como um mártir do que

53
Agradeço ao professor Adriano Correia por ter chamado minha atenção para esse aspecto do conceito de
banalidade do mal na minha banca de defesa da tese. Como a própria Hannah Arendt afirma, existe, de fato,
alguns indivíduos que querem ser os vilões de sua própria história – mas esse não era o caso de Eichmann
e, menos ainda, de Göring. Para Arendt, “Eichmann não era nenhum Iago, nenhum Macbeth, e nada estaria
mais distante de sua mente do que a determinação de Ricardo III de ‘se provar um vilão’” (ARENDT, 1999,
p. 310).
103

como um traidor” (GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 96), o que está de acordo com o
que o historiador Johann Chapoutot diz sobre a noção de tempo para os nazistas. O tempo
dos nacional-socialistas é o tempo da História com H maiúsculo, do eterno, uma vez que
“o nazismo era nada menos do que uma releitura de toda a história” (CHAPOUTOT,
2018, p. 17) e, para Göring, o julgamento era mais um passo dessa releitura para entrar
na História, uma história que no futuro seria reescrita e deixaria os nazistas no topo
novamente. Göring não tinha muito a dizer sobre seu destino, porque “as forças da
história, da política, do poder e da economia são grandes demais para serem controladas”
e são elas que “determinam o curso dos eventos”, em uma “cadeia inescapável”
(GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 188). E o nazismo não havia acabado apenas porque
seus chefes de Estado estavam sendo julgados naquele tribunal:

Vocês americanos estão cometendo um erro estúpido com sua conversa sobre
democracia e moralidade. Você acha que tudo o que você precisa fazer é
prender todos os nazistas e começar a estabelecer uma democracia da noite
para o dia. Você acha que os alemães ficaram um pouco menos nacionalistas
porque os chamados partidos cristãos estão garantindo a maioria dos votos
agora? Não! O Partido Nazista está banido, então o que eles podem fazer?
Eles não podem se tornar comunistas ou social-democratas, então eles se
escondem atrás das saias dos padres por um tempo. Mas não pense que os
alemães se tornaram mais cristãos e menos nacionalistas de repente. […]
Tudo o que este tribunal está conseguindo é quebrar a vontade de seguir
ordens. Não é de admirar que você não encontre pessoas com liderança real
para assumir a responsabilidade da administração na Alemanha. Você sabe por
quê? Porque os melhores dirigentes nacionalistas estão na prisão e o resto
calcula se cumprirem as leis de desnazificação agora, quem sabe, mas isso em
10 anos – após a saída dos Estados Unidos, ou uma luta entre o Oriente e o
Ocidente mudar a situação – eles serão levados perante um tribunal nacional
alemão e julgados por traição. E então eles não poderão nem se esconder atrás
das desculpas de que estavam cumprindo ordens. Então eles imaginam por que
diabos eles deveriam arriscar o pescoço. E o que o povo alemão pensa? Já lhe
disse: ‘Sempre que as coisas estão ruins (lousy), temos democracia!’. Não se
engane, o povo sabe que estava melhor quando Hitler estava no poder antes da
guerra. O que ele fez foi certo do ponto de vista nacionalista – com exceção
dos assassinatos em massa, que realmente não faziam sentido nem mesmo do
ponto de vista nacionalista. (GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 401, grifos
meus)

É perceptível como Göring acredita ter uma compreensão profunda do povo


alemão, de suas necessidades, desejos e aspirações. Para ele, no fundo, os alemães
permaneceriam sendo nazistas, mesmo após o fim do Terceiro Reich – e
independentemente do veredito do Julgamento de Nuremberg. Por esse motivo, o
nazismo como promessa de um novo mundo ainda estava muito vivo não só para ele,
como para seus conterrâneos. Sua frente unida parte da necessidade fundamental de
moldar como o nazismo seria percebido pelo mundo, não como uma administração
formada por homens incompetentes e ineficientes, e sim por grandes homens como ele.
104

Nesse sentido, os réus que se apresentavam como críticos ao regime eram prejudiciais
para a imagem do nazismo, mas, os que se apresentavam como homens irrelevantes eram
tão nocivos quanto. Por exemplo, ao falar sobre a defesa de Joachim von Ribbentrop,
Göring diz que “se ele quer se safar com esse longo discurso, ele tem que torná-lo
interessante – do jeito que eu fiz. Afinal, os juízes e os repórteres querem algo interessante
para ouvir, ou simplesmente não prestam atenção” (GÖRING apud GILBERT, 1995, p.
226). Portanto, não apenas sua defesa deveria representar sua lealdade ao Terceiro Reich,
mas ela também deveria ser interessante e apresentar o réu como alguém relevante para
o regime. Então, “a pergunta em si não importa tanto quanto a maneira como você a
responde” (GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 248–249). Dessa forma, Göring era um
homem consciente da importância da maneira de se contar uma narrativa, mais do que a
narrativa em si – ou, consciente da relevância do storytelling, se formos usar os termos
de comunicação e propaganda.

Como um homem temido, para dizer o mínimo, Göring colecionava inimizades


da ala resistente em Nuremberg. Como veremos, Albert Speer, um ex-nazista
arrependido, é o seu grande antagonista no tribunal e alguém com quem ele tem diversos
embates durante os procedimentos. Para Speer, Göring sabia que os outros réus tinham
medo dele e utilizava de excessiva “tirania” para manter a frente unida, colocando-se
como um mártir do nacional-socialismo. Speer acreditava que Göring mudava sua linha
narrativa com o passar do tempo: inicialmente o marechal havia dito aos outros nazistas
para não se preocuparem com o andamento do tribunal porque “eles provavelmente só
seriam exilados para alguma ilha”. Com o tempo, ele havia ficado temeroso de que os
outros réus “falassem demais para salvar seus próprios pescoços, e isso mostraria a culpa
dos líderes nazistas”. Por isso, Göring teria mudado sua linha narrativa para a linha que
Speer chama de caixão de mármore: uma defesa da honra e do seu lugar adequado na
História dentre os grandes líderes do mundo. Göring passara a acreditar que pertencia a
um caixão de mármore junto com outros heróis de tempos passados. Nessa nova linha, o
réu queria fazer os nazistas pensarem “que não tinham nada a ganhar dizendo muito da
verdade, especialmente sobre ele” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 156).

Dessa maneira, sua defesa se baseia em se apresentar como o exato oposto de


como ele enxergava seus companheiros de cela; Göring queria ser qualquer coisa, menos
um covarde. Seus valores inegociáveis, vistos como “medievais” por Gilbert e por outros
nazistas, transparecem em todos os momentos de sua defesa: bravura, honra, lealdade.
105

Göring era um homem de Estado e um soldado obediente, um paladino de sua pátria e


patrono dos valores germânicos. Um defensor fiel do nacional-socialismo enquanto
regime político e doutrina ideológica. Para o marechal, eram precisamente esses os
valores que uniriam o povo alemão novamente: “quem sabe, nesta mesma hora, nasça o
homem que unirá meu povo – nascido de nossa carne e ossos, para vingar a humilhação
que sofremos agora” (GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 216). Göring lembra que “nem
sempre foi fácil para os heróis alemães”, mas “eles mantiveram sua lealdade de toda
forma”. E, se seus valores pareciam datados para Gilbert, “bem, então que aqueles que
pertencem ao futuro pensem diferente. Eu sou o que sempre fui”. Afinal, “você não pode
esperar que eu, aos 52 anos, mude todo o meu conceito [de mundo] de repente” (GÖRING
apud GILBERT, 1995, p. 401). Ele, que era Hermann, e não em um pedestal, não era,
nem nunca havia sido, um criminoso:

Sim, suponho que esta seja minha última chance de contar ao mundo, por seu
intermédio, tudo o que sei e qual foi sempre minha visão de mundo. O estranho
disso tudo é que não me sinto criminoso e que, se tivesse estado nos Estados
Unidos ou na América do Sul ou em qualquer outro lugar, provavelmente seria
uma figura de liderança em um desses países. (GÖRING apud
GOLDENSOHN, 2005, p. 174–175, grifos meus)

A verdade dessa declaração, sobretudo no Brasil contemporâneo, é um alerta


para todos nós. Contudo, como era de se esperar, em seus últimos momentos, Göring
deixa de lado toda sua pompa e se torna apenas mais um homem com medo da morte.
Ainda que estivesse preparado para a sentença, o réu recebeu o veredito com “o rosto
pálido e congelado, os olhos arregalados”. Gilbert conta que “suas mãos tremiam apesar
de sua tentativa de ser indiferente (nonchalant). Seus olhos estavam úmidos e ele estava
ofegante, lutando contra um colapso emocional. Ele me pediu com uma voz instável para
deixá-lo sozinho por um tempo” (GILBERT, 1995, p. 431).

De fato, sua visão de mundo não havia mudado: Göring foi em Nuremberg o
que sempre foi. Nas palavras de Gilbert, seu suicídio era mais uma representação de seu
egocentrismo: “Göring morreu como viveu, um psicopata tentando zombar de todos os
valores humanos e distrair a atenção de sua culpa com um gesto dramático” (GILBERT,
1995, p. 435). Não cabe aqui uma análise sobre uma possível psicopatia presente em
Hermann Göring, sobretudo porque a proposta da tese é precisamente a de mostrar a
normalidade desses homens, que fizeram o que fizeram sem a necessidade de se justificar
por um desvio psíquico. Como vimos na Introdução, Goldensohn e Gilbert tentam inserir
os réus nas caixinhas tradicionais da psicologia e psiquiatria da época, justificando suas
106

ações, em grande medida, por conta de uma patologia que emergia à superfície em alguns
momentos de suas entrevistas. Ainda que Gilbert tenha concluído que todos os nazistas
tinham “perfis psicopatológicos de personalidade” (KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 9;
PRIEMEL, 2016, p. 124–125), de acordo com o psicólogo, é fundamental que tenhamos
uma “visão das personalidades totais em interação em seu cenário social e histórico”, de
modo que mesmo os testes de QI realizados na prisão em Nuremberg, não demonstram
“nada além da eficiência mecânica da mente, e nada tem a ver com caráter ou moral, nem
as várias outras considerações que entram em uma avaliação de personalidade”. Como o
“sistema de valores” dos nazistas “estava psicologicamente em julgamento perante o
mundo”, analisar suas narrativas “provou ser mais revelador do que a soma de todos os
testes poderiam ser” (GILBERT, 1995, p. 31).

Ironicamente, como declara o réu Hans Frank, no fim, “Göring finalmente tem
o seu desejo: se tornando o porta-voz Número Um do regime nacional-socialista – o que
resta dele!” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 200). Se tornar o Número Um teve suas
consequências. Como um defensor fiel do nazismo, seu discurso em Nuremberg foi sua
última tentativa de proteger e salvaguardar um regime ao qual ele era tão leal e devoto.
No entanto, ainda que Göring tenha ficado no passado, seguimos tendo que conviver com
as permanências desses discursos e desse regime, ao menos, a nível ideológico. Isso fica
evidente logo após as sentenças, quando Gilbert conversa com um dos advogados alemães
presentes no julgamento que lhe diz, com frieza:

Para falar a verdade, eles [os alemães] pensam o que você quer que pensem.
Se eles sabem que você ainda é pró-nazista, eles dizem: ‘Não é uma vergonha
a forma como nossos conquistadores estão tomando vingança contra nossos
líderes! Espere!’ Se eles sabem que você está enojado com o nazismo, a
miséria e a destruição que ele trouxe para a Alemanha, eles dizem: ‘Isso serve
bem a esses porcos sujos! A morte é boa demais para eles!’ Veja, Herr Doktor,
temo que 12 anos de hitlerismo tenham destruído a fibra moral de nosso povo
(GILBERT, 1995, p. 436).
107

Julius Streicher (1885-1946)

“Por causa do extermínio desses judeus, o antissemitismo retrocedeu muitos anos em


alguns países estrangeiros onde vinha fazendo bons progressos”

(GOLDENSOHN, 2005b, p. 257–258)

Julius Streicher foi o fundador do jornal antissemita Der Stürmer (O Atacante),


cuja tiragem se iniciou em 1923 e permaneceu ativa até o fim da Segunda Guerra
Mundial. Foi basicamente por suas publicações antissemitas que ele foi acusado em
Nuremberg por plano de conspiração e crimes contra a humanidade. Enquanto o
Völkischer Beobachter (Observador Racial), o jornal do Partido Nazista editado por
Alfred Rosenberg, tinha a pretensão de ser um jornal tradicional com ao menos algumas
informações para a população – apesar de também ser antissemita -, o Der Stürmer servia
apenas para fomentar a propaganda antissemita e fazia o gênero de tabloide, utilizando
de caricaturas e imagens depreciativas e pornográficas dos judeus.54 Sua tiragem, no

54
Como ficará mais claro na análise do caso de Alfred Rosenberg, o Völkischer Beobachter não era apenas
amparado no antissemitismo, uma vez que possuía um leque temático mais amplo. Por ser uma edição
diária, o jornal passava por diversos aspectos da ideologia nazista para além do antissemitismo.
108

entanto, permaneceu alta mesmo durante a guerra, chegando a mais de 300 mil
exemplares (KERSHAW, 2001, p. 247). Streicher foi declarado culpado por crimes
contra a humanidade e executado em 16 de outubro de 1946.

Membro do movimento nazista desde seus primórdios, Streicher foi um dos


grandes responsáveis por angariar apoiadores para o Partido nos anos 1920. Sua
militância fez o número de apoiadores dobrar, literalmente, do dia para a noite,
estendendo a influência do Partido para o norte da Alemanha e para o campesinato. O
Partido, que tinha cerca de 6 mil adeptos em 1921, recebeu a inscrição de 20 mil membros
de um dia para o outro, o que rendeu um agradecimento especial de Hitler a Streicher em
sua obra, Mein Kampf (KERSHAW, 2010, p. 143).

Essa campanha, no entanto, teve um preço: “ao adquirir Streicher, o Partido


adquiriu um antissemita perverso, cujo ódio extremo aos judeus rivalizava até mesmo
com o de Hitler”. Além disso, ele era reconhecidamente “um homem violento que
carregava um chicote imponente em público e espancava pessoalmente seus oponentes
indefesos ao atingir uma posição de poder”. Seu jornal sensacionalista rapidamente
“estabeleceu-se como lugar em que manchetes berrantes apresentavam os mais raivosos
ataques aos judeus, cheio de alusões sexuais, caricaturas racistas, acusações fabricadas de
assassinato ritual e histórias palpitantes e semipornográficas de homens judeus seduzindo
moças alemãs inocentes”. Sua personalidade obsessiva não lhe angariou amizades dentro
do movimento, “cujos líderes o viam com certa repugnância”. Por isso, Streicher nunca
foi muito influente no Terceiro Reich, a despeito do que a promotoria tentava imputar
(EVANS, 2014a, p. 245). Talvez a melhor definição dessa figura tenha sido dada pelo
Ministro da Propaganda Joseph Goebbels, quando o conheceu nos anos 1920: Streicher
era “um guerreiro furioso”, embora, “talvez um tanto patológico” (EVANS, 2014a, p.
262).

Streicher era a representação do antissemitismo “militante” e era odiado por


todos os segmentos do Julgamento de Nuremberg: pelos juízes, pela acusação, pelos
médicos, pelos outros nazistas, pelos jornalistas, e, pelo público espectador. O réu foi
criticado e acusado, inclusive pela promotoria, de ter “tendências sádicas”, um
“antissemitismo pornográfico” e “desvios sexuais”. Em uma de suas primeiras falas ao
tribunal, o réu afirma que “o destino fez de mim o que a propaganda internacional pensava
que tinha feito” (BS, 12, p. 308), isto é: um homem repulsivo que merecia a morte pela
sua visão de mundo. O psiquiatra Goldensohn o define como “uma velha personalidade
109

psicopata com conflitos sexuais e outros, cuja inadequação encontrou expressão numa
preocupação obsessiva” (GOLDENSOHN, 2005b, p. 253–254). Streicher, visto como um
indivíduo “grosseiro e depravado” pelos espectadores em Nuremberg (PRIEMEL, 2016,
p. 122) teve o QI mais baixo dos testes aplicados entre os nazistas na prisão. Ele foi
examinado por diversos médicos, a saber: Dr. Krasnushkin de Moscou, Coronel
Schroeder de Chicago, Dr. Delay de Paris, além de Gustave Gilbert e Leon Goldensohn.
Todos os psiquiatras designados consideraram que ele tinha uma obsessão neurótica e
paranoica pelo antissemitismo, ainda que não fosse clinicamente insano, o que
significava, portanto, que ele poderia enfrentar o julgamento normalmente. Seu caso
talvez seja o que toca mais profundamente na questão da patologização dos nazistas nesse
período do imediato pós-guerra.

É válido pontuar, no entanto, que, “suas ideias, embora expressas de forma


extrema, não eram particularmente incomuns nos círculos de direita da época, e deviam
muito, como ele mesmo reconhecia, à influência do antissemitismo pré-guerra”. E, ainda,
“o antissemitismo de Streicher não estava em nenhum sentido na periferia do movimento
nazista”, muito pelo contrário (EVANS, 2014a, p. 245). Em Mein Kampf, Hitler já havia
feito declarações racistas e antissemitas que muito se assemelhavam ao que viria a ser o
tom do jornal Der Stürmer. Já no segundo capítulo de sua obra, Hitler declara: “Quem,
cautelosamente, abrisse o tumor haveria de encontrar, protegido contra as surpresas da
luz, algum judeuzinho. Isso é tão fatal como a existência de vermes nos corpos putrefatos”
(HITLER, 2005, p. 47). Sendo assim, Der Stürmer e Julius Streicher só eram um
problema para o nazismo quando os nazistas queriam se apresentar para o mundo como
um regime respeitável – antissemita, sim, mas com um antissemitismo brando e mais
sutil. O afastamento dessas ideias mais extremas era meramente uma “questão tática,
jamais como um caso de princípio ou crença” (EVANS, 2014a, p. 246).

Streicher representa a categoria dos defensores fiéis pois não nega o que
escreveu e não nega que aquelas ainda eram suas convicções. Sobre a acusação formal,
Streicher declara a Gilbert que “esse tribunal é um triunfo do Judaísmo (Jewry)
Mundial!”55 (STREICHER apud GILBERT, 1995, p. 6). Ele insiste que o tribunal era

55
É importante reforçar que todas as vezes em que traduzi a palavra “Jewry”, escolhi utilizar o termo
“judaísmo”, para expressar o povo judeu coletivamente, e não simplesmente “os judeus”. Como utilizei os
documentos originais em inglês, não sei como os nazistas usaram a palavra no alemão para que no inglês
fosse traduzido para “Jewry”. Penso, no entanto, que é possível que tenha sido no sentido mais pejorativo
associado a “judiaria” no português. Como não temos como ter certeza do tom utilizado, preferi manter
“judaísmo”.
110

injusto por ser composto por judeus: ele acreditava que os três juízes e os advogados de
acusação eram judeus, afinal, ele sabia “reconhecer o sangue” (STREICHER apud
GILBERT, 1995, p. 41). Entretanto, apesar de muito seguro de si e de suas crenças,
Streicher era desprezado por todos os outros nazistas no banco dos réus, que o
enxergavam como um “fanático” e um sujeito reconhecidamente abjeto. Hans Frank o
define como um ser com “caráter repulsivo” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 82) e ele
era evitado “como a praga”. Como veremos, dentro da ala dos antissemitas, Rosenberg
tenta se distanciar de Streicher para ser visto como um intelectual, e o próprio Streicher
define Rosenberg como o “administrador espiritual do movimento”, ao contrário dele,
que estava mais focado no “esclarecimento popular” (BS, 12, p. 329).

Seu caso é polêmico desde o princípio, já que ele entra em longos debates com
seu advogado de defesa durante seu interrogatório por considerar que sua defesa não
estava sendo feita de forma justa. O réu acredita que seu advogado emite julgamentos
contra suas falas, ao invés de simplesmente defender seu caso. A tensão com seu
advogado culmina com Streicher sendo chamado de insolente pelo tribunal após
pronunciar que ele gostaria que seu advogado “não expressasse nenhum julgamento sobre
o que escrevi; [peço] para ele me questionar, mas não para expressar julgamento. A
acusação vai fazer isso” (BS, 12, p. 336). Dessa forma, o réu, por conta de sua atuação e
de sua personalidade, é, talvez mais do que outros, julgado constantemente por todos os
presentes em Nuremberg – e essa é uma perspectiva que perpassa toda a sua narrativa.
Contudo, ele não faz questão de mudar a opinião de ninguém sobre sua pessoa: Streicher
segue defendendo veementemente princípios extremamente antissemitas em todos os
seus discursos.

Atividade iluminadora

Sem apresentar nenhum tipo de remorso, a defesa de Streicher consiste em


explicar como sua visão antissemita era apenas uma verdade comprovada, apesar dos
“sinais de constrangimento” que “eram óbvios” entre os réus (GILBERT, 1995, p. 301)
toda vez que o nazista fazia alguma declaração. Sobre sua visão de mundo, ele declara:

Há 20 anos proclamei meus pontos de vista ao mundo. Não quero terminar


minha vida com suicídio. Vou seguir meu caminho aconteça o que acontecer
como um fanático pela causa da verdade até o fim, um fanático pela causa da
verdade. Devo mencionar aqui que deliberadamente dei ao meu jornal de luta,
Der Stürmer, o subtítulo, Um Semanário pela Luta pela Verdade. Tinha plena
consciência de que não podia estar de posse de toda a verdade, mas também
sei que 80 ou 90 por cento do que proclamo com convicção é a verdade. (BS,
111

12, p. 310, grifos meus)

Esses eram fatos, simples assim. O destino o levou a esse ponto de sua vida, e
ele não se arrependia de nada: Streicher ainda tinha orgulho de sua visão de mundo. Seu
jornal, Der Stürmer, continha a verdade. Ele era, portanto, um defensor dessa verdade,
uma verdade que havia sido sustentada por séculos pela literatura antissemita e, de acordo
com sua visão, pelos próprios judeus. Sua obra e sua produção só poderiam ser definidas,
então, como uma “atividade iluminadora (enlighten activity)”: ele queria informar o povo
alemão e esclarecer a questão judaica de uma vez por todas. Para Streicher, suas palavras
não pregavam o ódio religioso porque os judeus não eram um grupo religioso, e sim, uma
raça. Como ele diz ao psicólogo Gustave Gilbert: “os judeus estão cometendo um erro se
me fizerem um mártir; você verá. Eu não criei o problema; ele existe por centenas de
anos” (STREICHER apud GILBERT, 1995, p. 73).

A noção de “destino” tem um apelo importante para Julius Streicher, e se repete


várias vezes ao longo de sua narrativa. Por ter aderido ao movimento nacional-socialista
desde o princípio, ele estava amplamente amparado na perspectiva de que o nazismo era
uma nova normatividade, uma nova explicação que dava sentido e estrutura para as
experiências e a existência dos indivíduos. Essa visão de mundo, pautada na longa
duração dos acontecimentos, o “Reich de mil anos” era “muito mais do que um slogan:
era um projeto de revolução cultural, de subversão e substituição de um universo
normativo por outro nos séculos vindouros” (CHAPOUTOT, 2018, p. 19). Em sua
explicação totalizante de passado, presente e futuro, o nazismo era a bússola que guiava
Streicher desde os anos 1920. Nesse sentido, naturalmente, suas ações e tudo o que
aconteceu para que ele chegasse até aquele momento em Nuremberg, não poderiam ser
nada mais, nada menos, do que o destino agindo.

Respondendo à acusação do tribunal, Streicher não considerava que suas


publicações antissemitas incitavam o ódio na população, de modo a facilitar
posteriormente a colaboração ou a conivência com o processo de extermínio. Em sua
perspectiva, ele falou os fatos, e essa atividade iluminadora nada teve a ver com incitar
as pessoas a perpetrar assassinatos em massa: “os discursos e artigos que escrevi
pretendiam informar o público sobre uma questão que me parecia uma das mais
importantes. Não pretendia agitar nem inflamar, mas iluminar (enlighten)” (BS, 12, p.
318). Sua permanente convicção na ideologia antissemita é perceptível em diversos
trechos de seu interrogatório:
112

LT. COL. GRIFFITH-JONES: Você pode chamá-los de raça ou nação,


como quiser, agora; mas você estava dizendo, em 1 de abril de 1933, que eles
eram uma “nação de sugadores de sangue e extorsionários”. Você chama isso
de pregação de ódio?
STREICHER: Essa é uma afirmação, a expressão de uma convicção que
pode ser provada com base em fatos históricos.
LT. COL. GRIFFITH-JONES: Entenda-me. Não perguntei se era um fato
ou não. Estou perguntando se você chamou isso de pregar o ódio. Sua resposta
é “sim” ou “não”.
STREICHER: Não, não é pregar o ódio; é apenas uma declaração de fatos.
LT. COL. GRIFFITH-JONES: [...] Essa é a página 17 do livro de
documentos: “Enquanto eu estiver à frente da luta, essa luta será conduzida de
forma tão honesta que o eterno judeu não terá alegria nisso.”
STREICHER: Isso eu escrevi; isso estava certo.
LT. COL. GRIFFITH-JONES: E você foi, não foi, um daqueles que se
levantaram e continuam a estar à frente dessa luta?
STREICHER: Eu fiquei à frente? Sou um homem muito modesto para isso.
Mas eu afirmo ter declarado minha convicção e meu conhecimento de forma
clara e inequívoca.
LT. COL. GRIFFITH-JONES: Por que você disse que, enquanto você
estivesse à frente disso, o judeu não teria nenhuma alegria?
STREICHER: Porque eu me considerava um homem que o destino colocou
em posição de esclarecer as pessoas sobre a questão judaica. (BS, 12, pp. 347-
348, grifos meus)

Para Streicher, portanto, a questão era clara: como era possível denominar uma
declaração de fatos, fatos comprovados cientificamente, de incitação de ódio? Como
Eichmann faria anos depois, Streicher afirma que escreveu propaganda, mas não fez as
leis discriminatórias contra os judeus, não foi consultado sobre as leis e não agiu de
acordo com essas leis. Portanto, ele não possui responsabilidade nesse sentido. Ele diz:
“isso não tem nada a ver com o que escrevi, nada a ver com isso. Eu não dei as ordens.
Eu não fiz as leis. Não me perguntaram quando as leis foram preparadas.” (BS, 12, p.
348). Ele tinha, então, a consciência limpa, como diz ao psiquiatra Leon Goldensohn: “Se
todos tivessem a consciência limpa como a minha, ninguém no mundo teria que tomar
remédios para dormir ou consultar médicos. Minha consciência está limpa como a de um
bebê” (STREICHER apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 258).

Ainda que não fosse responsável pelas leis discriminatórias, como as Leis de
Nuremberg, mencionadas anteriormente, Streicher permanecia convicto de sua
importância dentro do regime nazista. Para o réu, esse tipo de legislação era fundamental
em uma nação moderna e servia para sua proteção, representando um tipo de lei que os
judeus tinham para si mesmos. Nesse sentido, Streicher se coloca em diversos momentos
como um sionista, um defensor de um território próprio para os judeus. Ainda sobre as
Leis de Nuremberg, ele diz:

Sim, acredito que participei disso, pois durante anos escrevi que qualquer outra
mistura de sangue alemão com sangue judeu deve ser evitada. Eu escrevi tais
113

artigos repetidas vezes; e em meus artigos tenho repetidamente enfatizado o


fato de que os judeus devem servir de exemplo para todas as raças, pois eles
criaram uma lei racial para si mesmos – a lei de Moisés, que diz: “Se você
entrar em uma terra estrangeira, não tome para si mulheres estrangeiras.” E
isso, senhores, é de tremenda importância no julgamento das Leis de
Nuremberg. Essas leis dos judeus foram tomadas como modelo para essas leis.
Quando, depois de séculos, o legislador judeu Ezra descobriu que, apesar de
muitos judeus terem se casado com mulheres não judias, esses casamentos
foram dissolvidos. Esse foi o início do judaísmo que, porque introduziu essas
leis raciais, sobreviveu ao longo dos séculos, enquanto todas as outras raças e
civilizações pereceram. […] Eu estava convencido de que, se o programa do
Partido fosse executado, a Questão Judaica estaria resolvida. Os judeus se
tornaram cidadãos alemães em 1848. Seus direitos como cidadãos foram
tirados deles por essas leis. As relações sexuais eram proibidas. Para mim, isso
representava a solução do problema judaico na Alemanha. Mas eu acreditava
que outra solução internacional ainda seria encontrada, e que algum dia haveria
discussões entre os vários Estados sobre as demandas feitas pelo sionismo.
Essas demandas visavam um estado judeu. (BS, 12, pp. 315-316)

É perceptível a tentativa de racionalizar sua visão de mundo e torná-la mais


palatável e mais compreensível ao tribunal. Streicher afirma repetidas vezes que seus
discursos antissemitas não tinham relação com um objetivo político maior. Quando ele
diz, por exemplo, que o judaísmo seria aniquilado, sua defesa é a de que essa era apenas
uma visão para o futuro, uma “visão profética”, uma questão de opinião, de crença e
convicção, e não um estímulo para o extermínio (BS, 12, pp. 376-377). Sua solução para
problema judaico, uma solução sionista, buscava, naturalmente, uma resolução
internacional. Assim como Eichmann, Streicher era a favor da “solução de Madagascar”,
que previa que toda a população judaica deveria ser forçadamente movida para a ilha de
Madagascar, localizada na costa sudeste do continente africano. A ideia circulava entre
alguns nazistas, incluindo Streicher, por alguns anos, mas foi abandonada após a famosa
Conferência de Wannsee em 20 de janeiro de 1942, na qual foram informados os passos
para a chamada Solução Final da Questão Judaica, e que será melhor abordada em
capítulo posterior. Madagascar era, para Streicher, claramente, uma solução pacífica e
sionista, que respeitava a necessidade de um espaço físico específico para o povo judaico.
Uma solução internacional e que seria positiva para todos, como ele sempre advogou.

Amparando-se à linguagem, Streicher, de maneira similar a Rosenberg, tenta


explicar como, nos documentos, “aniquilar” não significava matar. Para ele, a
interpretação de “aniquilação” como “extermínio” é baseada no conhecimento posterior
do extermínio; na época em que os discursos foram escritos, “aniquilar” queria dizer que
a questão judaica seria resolvida, que o poder dos judeus seria eliminado, algo em sentido
figurativo e não explícito. Quando ele disse que “o destino dos judeus deveria ser
cumprido pelo nacional-socialismo”, o que ele queria dizer era meramente que seria
114

“através do nacional-socialismo” que “o mundo ganharia o conhecimento e a percepção


de que o problema judaico deve ser resolvido internacionalmente” (BS, 12, pp. 366-367).
Nesse sentido, sua posição continuaria sendo sempre uma atividade de esclarecimento,
não uma tarefa ativa de extermínio. E precisamente por não ser ativa, não era possível ele
sequer ter conhecimento do genocídio – e, muito menos, responsabilidade por ele.

Ainda que Streicher tenha criado as bases para o fortalecimento do


antissemitismo na Alemanha, em sua perspectiva, suas convicções não poderiam ser
definidas como incitação ao extermínio em massa, visto que esses, “foram os últimos atos
de vontade de um grande homem da história que provavelmente estava desesperado
porque viu que não venceria” (BS, 12, pp. 377-378). Para ele, o genocídio não aconteceu
porque as pessoas liam seu jornal, já que Mein Kampf, o guia e a autoridade espiritual do
movimento nazista, existia desde antes do início das publicações de Der Stürmer. Por
isso, ele acreditava que a acusação tinha apenas alegações com relação ao seu caso, já
que “não educamos assassinos. O conteúdo dos artigos que escrevi não poderia ter
educado assassinos. Nenhum assassinato ocorreu, e isso é prova de que não educamos
assassinos” (BS, 12, pp. 321-322). Não havia nenhuma relação, portanto, entre seus
escritos e uma ação direta de assassinato:

Permitam-me acrescentar que é minha convicção que o conteúdo de Der


Stürmer como tal não foi incitação. Durante todos os 20 anos, nunca escrevi a
esse respeito: “queime casas judaicas; bata neles até a morte”. Nunca uma tal
incitação apareceu em Der Stürmer. Agora vem a pergunta: há alguma prova
a ser fornecida de que algum ato foi feito desde o momento em que Der
Stürmer apareceu pela primeira vez, um ato do qual se pode dizer que foi o
resultado de um incitamento? Como um ato devido a um incitamento, posso
mencionar um pogrom. Isso é um ato espontâneo quando partes do povo de
repente se levantam e matam outras pessoas. Durante os 20 anos nenhum
pogrom ocorreu na Alemanha, durante os 20 anos, até onde eu sei, nenhum
judeu foi morto. Nenhum assassinato ocorreu, do qual se poderia dizer: ‘Isto é
o resultado de uma incitação causada por autores antissemitas ou oradores
públicos’. Senhores, estamos em Nuremberg. No passado havia um ditado que
dizia que em nenhum lugar os judeus na Alemanha estavam tão seguros e tão
ilesos quanto em Nuremberg. (BS, 12, pp. 319-320)

O descolamento do réu com a realidade concreta dos fatos chama atenção, de


modo que sua defesa da ideologia nazista chega ao ponto de afirmar que nenhum judeu
foi morto na Alemanha – algo que, como vimos, até mesmo Göring admitia. Sobre esse
ponto, é válido reforçar que Streicher, ao lado de Rosenberg e Hans Fritzsche,
representava a ala propagandística do nacional-socialismo. Ainda assim, nem mesmo
Streicher se colocava nessa posição: ele não era um jornalista, como Fritzsche, ou um
intelectual, como Rosenberg. Ele era um homem apaixonado pela causa que o destino lhe
115

imputou e não via nenhuma relação entre informar e agir mediante essa informação. No
entanto, mesmo naquele ponto do julgamento, assim como Göring, Streicher ainda não
acreditava que o regime nazista havia cometido um genocídio: “até hoje não acredito que
5 milhões foram mortos. Considero tecnicamente impossível que isso pudesse ter
acontecido. Eu não acredito nisso. Não recebi prova disso até agora” (BS, 12, p. 374).
Nesse sentido, percebemos como nem mesmo os propagandistas estavam isentos de
serem arrebatados pelo poder da propaganda nazista em moldar a realidade de acordo
com os princípios do movimento.

Segue-se, então, uma enxurrada de contradições. Afinal, se nem naquele


momento Streicher acreditava no extermínio, como poderia acreditar caso alguém lhe
dissesse na época em que os assassinatos estavam ocorrendo? Sendo assim, não só ele
não sabia do extermínio, como, se soubesse, não teria acreditado. Caso tenha acontecido,
e, para ele, ainda pairava a dúvida, o genocídio se deu por iniciativa própria do Führer,
este homem com um “poder de sugestão hipnótica”, que, quando dava uma ordem, “todos
agiam de acordo”. Ainda que Hitler fosse o homem com poder para dar essa ordem,
Streicher não acreditava que o líder sabia de nada. O extermínio, que potencialmente
aconteceu, ainda que inacreditável, também não poderia ser de conhecimento de Hitler,
ainda que só ele pudesse ter dado essa ordem. Afinal, Streicher não havia ouvido falar de
Auschwitz até chegar em Nuremberg e, “é perfeitamente compreensível e apropriado que
alguém seja antissemita, mas exterminar mulheres e crianças é tão extraordinário que é
difícil de acreditar. Nenhum réu aqui queria isso” (STREICHER apud GOLDENSOHN,
2005b, p. 262). Dessa maneira, Streicher segue traçando uma linha divisória entre sua
ideologia e as consequências dessa ideologia – algo que permanecerá latente nos
discursos dos outros propagandistas, Rosenberg e Fritzsche.

Revolução

Como outros julgados, Streicher chama o movimento nacional-socialista de


uma revolução que tentou criar a “nova Alemanha” e coloca Hitler no mais alto patamar.
Ele estava unido ao Führer por um “companheirismo juramentado”, no qual Hitler “tinha
a convicção de que seus antigos apoiadores eram um com ele em pensamento, coração e
lealdade política”, e nesse sentido, essa união era “uma irmandade juramentada
compartilhando os mesmos pontos de vista e unidos em seus corações” (BS, 12, p. 312).
Ter conhecido Hitler logo nos primórdios do movimento em 1921, em sua concepção,
também era obra da “mão do destino”. Ouvi-lo falar pela primeira vez foi uma experiência
116

que “transcendeu o lugar-comum”, algo do qual ele tinha muito orgulho ainda naquele
momento. O Führer ainda era para ele objeto de adoração. Streicher diz que alguém que,
como ele, “conheceu as emoções mais profundas do Führer e sua alma”, ao ser
confrontado com seu testamento político no qual ele admite o extermínio dos judeus, se
encontra mediante um enigma (BS, 12, pp. 368-369).

Nesse testamento político, escrito pouco antes de cometer suicídio e ditado a


seu secretário em 29 de abril de 1945, Hitler nega a responsabilidade da Alemanha pela
Segunda Guerra Mundial. O documento é mencionado diversas vezes em Nuremberg e é
utilizado como parte do material da acusação. No testamento, Hitler afirma que mandou
matar os judeus por uma vingança à responsabilidade que ele creditava a eles pelo início
da guerra. De acordo com o Führer, a guerra “foi desejada e incitada exclusivamente pelos
chefes de Estado internacionais que ou tinham ascendência judia ou trabalhavam para
interesses judeus”. E, nesse sentido, retomando sua profecia que abordaremos em breve,
“as únicas pessoas a serem culpadas por essa guerra cruel seriam os judeus” (HITLER
apud EVANS, 2014b, p. 832). Hitler declara:

Eu, além do mais, não deixei que ninguém duvidasse que, desta vez, não
somente milhões de [...] homens adultos se defrontariam com a morte, e não
somente centenas de milhares de mulheres e de crianças seriam incineradas
nas cidades e bombardeadas até a morte, mas também que os grupos
verdadeiramente responsáveis teriam de expiar sua culpa, ainda que fosse por
meios humanos (HITLER apud EVANS, 2014b, p. 832).

Hitler encerra seu testamento convocando os alemães “a seguir as leis raciais


com precisão e a lutar sem piedade contra o envenenador mundial de todos os povos, a
judiaria internacional” (HITLER apud EVANS, 2014b, p. 832). O documento é
apresentado pela acusação como forma de demonstrar, “além de qualquer dúvida
razoável” (beyond any reasonable doubt), para usar o termo jurídico estadunidense, que
Hitler de fato ordenara o extermínio e que o genocídio não era um segredo na Alemanha,
sobretudo entre os membros do regime nazista. Dessa forma, não seria possível que os
réus negassem a veracidade das mortes: o próprio Führer havia admitido.

Para Streicher, contudo, o testamento não mudava sua opinião sobre Hitler –
ele inclusive duvidava da veracidade do documento. Afinal, o homem que ele conheceu
e que transformou a sua vida por meio da revolução nacional-socialista não era o mesmo
homem que estava sendo apresentado em Nuremberg. Como lembra Johann Chapoutot,
1933 representou para os atores uma revolução completa e não apenas uma troca de
117

governo. Essa revolução nazista, realizada sem derramamento de sangue56, havia sido um
movimento do povo, uma revolução nacional, cultural e uma insurreição do povo alemão,
em seu corpo e alma, contra uma ordem das coisas que lhes era prejudicial
(CHAPOUTOT, 2018, p. 149). Hitler acreditava que o conhecimento de que a Terra
girava ao redor do Sol levou a uma revolução na compreensão do mundo, e, assim seria
também com a doutrina do sangue e da raça. Essa nova doutrina, o nacional-socialismo,
levaria a uma revolução do conhecimento. E, como o próprio líder da SS, Heinrich
Himmler afirmou, o “nacional-socialismo é uma visão de mundo que abraça todos os
domínios da vida” (HIMMLER apud CHAPOUTOT, 2018, p. 155). As declarações de
Streicher não deixam dúvida de que ele também acreditava nesses princípios. A revolução
nacional-socialista foi o que colocou seu mundo em órbita e justamente por isso ele seguia
defendendo esse movimento.

De acordo com Streicher, os nazistas buscavam “criar uma nova fé para o povo
alemão, isto é, uma fé que negasse o caos e a desordem e que traria um retorno à ordem”
(BS, 12, p. 344). Essa nova fé requeria uma “Grande Alemanha, uma área onde todos os
alemães, pessoas de língua alemã, pessoas de sangue alemão, pudessem viver juntos”
(BS, 12, p. 346). Nesse sentido, Streicher tinha razão e seguia plenamente a cartilha
ideológica do NSDAP. Como explica Johann Chapoutot, o objetivo do movimento
nacional-socialista era, efetivamente, a criação de uma Volksgemeinschaft, uma
“comunidade do povo”, orgânica e harmônica, e não simplesmente um Estado. Essa
comunidade racial era pautada em uma homogeneidade interna em contraste absoluto
com a heterogeneidade externa e, por isso, o racismo imbricado nesse conceito unia,
consolidava, e oferecia coesão a uma sociedade até então, profundamente dividida
(CHAPOUTOT, 2018, p. 355).

Essa comunidade do povo era “uma comunidade de iguais”, que possuía uma
hierarquia interna para manter seu funcionamento. No entanto, no fundo, o nazismo era
igualitário para todos os alemães – e excludente para todos os não alemães. E quem era o
alemão, o germânico, o ariano? Um homem “com a mesma língua e a mesma cultura,
com o mesmo sangue e o mesmo destino, mesmo fora das fronteiras do Reich, [é] um

56
Como veremos no próximo capítulo, a ascensão de Hitler ao poder não ocorreu, de maneira alguma, sem
derramamento de sangue. Esse argumento, no entanto, faz parte do imaginário nazista e é retomado com
frequência pelos réus. Esse ponto também será melhor abordado em capítulos posteriores quando discutirei
a visão, constantemente propagada entre os nazistas, do Führer como um grande estadista e diplomata que
estava interessado na paz – ao menos, inicialmente.
118

camarada racial exatamente como o próprio cidadão do Reich” (CHAPOUTOT, 2018, p.


365). É claro que, como lembra Hannah Arendt, a “Volksgemeinschaft era apenas a
preparação propagandística para uma sociedade racial ‘ariana’ que, no fim, teria destruído
todos os povos, inclusive os alemães” (ARENDT, 1989, p. 410). Não obstante, para
Streicher, um homem do movimento, os ideais da Volksgemeinschaft lhe pareciam
nobres, válidos e, ainda, justificáveis.

E sobre o líder dessa revolução cultural? Como um defensor fiel, Streicher


considera totalmente imprópria a postura de alguns nazistas de atacarem uma figura tão
importante na história mundial como Hitler: “há forças metafísicas que produzem figuras
tão grandes na História; não se pode dizer se ele estava certo ou errado” (STREICHER
apud GILBERT, 1995, p. 388). Hitler aparece como um homem que foi forçado a tomar
as decisões que tomou – e isso inclui não só a Segunda Guerra Mundial, como também o
extermínio. Streicher parece convencido da necessidade de defender seu Führer e,
consequentemente, de apontar a culpa para os outros países que permitiram que tudo
acontecesse:

Mas, para minha defesa, Sr. Promotor, quero poder dizer que as guerras
também podem ser assassinatos em massa, com suas bombas etc. E se for
provado que alguém diz que estamos forçando Hitler a entrar na guerra, então
posso dizer com certeza que um homem que sabe que Hitler está sendo forçado
a entrar na guerra é um assassino em massa. (BS, 12, p. 368)

Em sua perspectiva, portanto, quem sabia que Hitler fora forçado a guerra e não
fez nada a respeito, era de fato um assassino em massa. A conclusão óbvia era que, na
realidade, os Aliados é que eram os verdadeiros assassinos. Seguindo sua linha de defesa
do Führer, um aspecto importante de ser mencionado é a profecia de Hitler, referenciada
diversas vezes no caso de Streicher, e que tem relação direta com o último testamento do
líder. Na percepção do réu, não se sabia o que Hitler queria dizer com a profecia, mas ele
acreditava que era apenas um aviso aos judeus: “contra a ameaça deles, essa ameaça”
(BS, 12, p. 367). Ou seja, um movimento de defesa, e não de ataque – que, como já vimos,
era parte intrínseca da ideologia nacional-socialista. A famosa “profecia de Hitler” se
refere ao discurso do Reichstag de 30 de janeiro de 1939, no qual Hitler afirma que:

Ao longo de minha vida, muitas vezes fui um profeta, e frequentemente fui


ridicularizado por isso... Hoje serei mais uma vez um profeta: se os financistas
judeus internacionais dentro e fora da Europa conseguirem mergulhar
(plunging) as nações mais uma vez em uma guerra mundial, então o resultado
não será ao bolchevização da terra e, portanto, a vitória dos judeus, mas a
aniquilação da raça judaica na Europa! (HITLER apud KERSHAW, 2009, p.
103–104)
119

A profecia, assim como testamento político, é apresentada como parte do


processo da acusação no tribunal. Ian Kershaw explica como Hitler usava com frequência
a sua profecia e conscientemente falava a data errada, dizendo que ele a havia declarado
no começo da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939, e não em janeiro. Todos
os nazistas de alto escalão tinham conhecimento dessa profecia, no entanto, ela tinha uma
função adicional: a de “espalhar ao público em geral uma consciência, evitando
informações detalhadas ou explícitas, de que a destruição dos judeus estava ocorrendo
inexoravelmente”. A profecia, portanto, se tornou uma metáfora fundamental para a
Solução Final e, “funcionalmente, serviu para indicar como nesta área crucial o suposto
‘desejo do Führer’ ativou o mais terrível dos crimes do regime” (KERSHAW, 2009, p.
21).

Em 1941, a profecia foi evocada no processo de escalada da Solução Final e,


no fim da guerra, ela servia como uma autojustificação de Hitler. Por outro lado, em 1945
no Julgamento de Nuremberg, ela tinha, contraditoriamente, a função de desviar o foco
do extermínio da figura de Adolf Hitler e de inserir a culpa nos réus. Ela servia à acusação
como uma comprovação de que Hitler planejava o extermínio anos antes do extermínio
efetivamente acontecer, e, ainda mais importante, confirmava que os nazistas julgados
sabiam das intenções do Führer e que aceitaram essas proposições e/ou concordavam com
elas. No caso de Streicher, sua apresentação de inocência quanto ao significado da
profecia se une ao seu desejo de defender seu líder, o que leva a uma alegação de
ignorância totalmente desproporcional a um antissemita tão fervoroso.

Luta de vida ou morte

Após a sua defesa, Streicher busca em seus colegas sinais de aprovação e não
encontra anuência em nenhum dos réus. Por ser detestado em Nuremberg e um homem
do qual todos queriam se afastar, a defesa de Streicher não causou uma grande impressão
entre os julgados, que lhe deram as costas sem pensar duas vezes (GILBERT, 1995, p.
305). Para Hans Fritzsche, um ex-nazista arrependido, a acusação havia colocado “uma
corda no pescoço” de Streicher e que não havia mais volta (FRITZSCHE apud GILBERT,
1995, p. 306). O distanciamento dos nazistas ao colega de cela foi tão grande que,
segundo Gilbert, “havia uma relutância geral até mesmo em discutir Streicher como
alguém abaixo do desprezo” (GILBERT, 1995, p. 305). Ao receber sua sentença, ele
apenas dá um “sorriso torto”, e declara: “morte, claro. Exatamente o que eu esperava.
Todos vocês já deviam saber disso o tempo todo” (STREICHER apud GILBERT, 1995,
120

p. 432). Talvez o réu também estivesse convencido de que o veredito de seu caso fosse
mais um dos inúmeros complôs judaicos contra os nazistas. Afinal, para ele, tudo fazia
parte da grande conspiração judaica: o início e o fim do nazismo se pautavam nessa
convicção.

Julius Streicher é um antissemita militante, apaixonado por sua causa, e um


nazista convicto. Os preceitos do nacional-socialismo ainda faziam sentido para ele, e ele
deixa sua visão de mundo clara em diversos momentos. Para ele, “se um povo está
engajado em uma luta de vida ou morte e se os líderes pensam que podem vencer a guerra
importando mão de obra escrava – então estava correto” (STREICHER apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 262). Tudo era válido pela causa alemã, porque essa era uma
causa pautada em uma luta secular de vida ou morte. Streicher ainda sentia orgulho de ter
feito parte da construção desse novo mundo, desse sonho ariano sonhado em conjunto.
Ele tinha uma tarefa difícil dentro desse movimento, a de iluminar as massas sobre o
perigo judaico, e acreditava que tinha executado bem sua função, para o bem ou para o
mal. Para ele, o judeu sempre seria o grande problema da Europa – um problema que
precisava ser eliminado, de uma forma ou de outra. A repulsa de todos ao seu redor e o
consequente isolamento não abalam Julius Streicher. Sua fé no nacional-socialismo segue
intacta, inquestionável. Essa era uma fé que não precisava de outros que também
acreditassem – sequer precisava do líder. Streicher poderia ter permanecido sozinho em
Nuremberg defendendo os princípios nazistas e ainda assim sua fé não teria estremecido.
Por fim, o propagandista foi vítima de sua própria atuação e viveu e morreu pela causa
nacional-socialista.
121

Alfred Rosenberg (1893-1946)

“Tenho que sorrir quando alguns dos réus dizem no tribunal que nunca leram meus
livros ou obras, porque é uma reflexão sobre sua incapacidade de seguir uma corrente
filosófica de pensamento”

(GOLDENSOHN, 2005b, p. 200)

Alfred Rosenberg era o editor do jornal antissemita Völkischer Beobachter


(Observador Racial) e Ministro dos Territórios Ocupados em 1941, além de ser
considerado o grande ideólogo do nazismo por seu livro O mito do século XX, publicado
em 1930. Foi julgado em Nuremberg por plano de conspiração, crimes contra a paz,
crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Considerado culpado das quatro
acusações, foi sentenciado à morte e enforcado em 16 de outubro de 1946.

Nascido fora do Reich, na Estônia, Rosenberg já havia se tornado antissemita


no começo da Primeira Guerra Mundial, e continuou tendo amplo contato com autores
antissemitas ao longo dos anos. De acordo com Richard Evans, “seu maior desejo era ser
levado a sério como intelectual e teórico da cultura”, e, por isso, investiu na publicação
122

do Mito do século XX, com o objetivo de “suprir o Partido Nazista de uma obra teórica
de peso”. Apesar de o livro ter vendido mais de um milhão de cópias em 1945, nem
mesmo Hitler dava muita importância para a obra, afirmando que “nunca leu mais do que
uma pequena parte dele” e que “não gostou do que viu como tom pseudorreligioso”.
Sendo assim, também é “improvável que mais do que uns poucos leitores dedicados
tenham conseguido abrir caminho através de seus acres de prosa empolada até o final”
(EVANS, 2014a, p. 233). Por ter vindo para a Alemanha fugido da Revolução Russa, foi
provavelmente Rosenberg que influenciou Hitler sobre a ameaça comunista aliada a
conspiração judaica. Nesse sentido, “através de Rosenberg, o antissemitismo russo, com
suas teorias conspiratórias extremistas e impulso exterminador, encontrou caminho para
dentro da ideologia nazista no início da década de 1920”. A partir daí, “o ‘bolchevismo
judeu’ tornou-se então um alvo importante do ódio de Hitler” (EVANS, 2014a, p. 234).

Esse homem, “cuja ambição pessoal era ser o filósofo do nazismo” (EVANS,
2014a, p. 507) mantém essa postura de intelectual no Julgamento de Nuremberg.
Rosenberg faz questão de se apresentar como um erudito, um homem de pensamentos
profundos e complexos, não acessíveis a todos, inclusive, não acessíveis a todos os
nazistas. Ao se colocar como um intelectual, alguém brilhante e capaz de formular teorias
filosóficas, Rosenberg se distancia de outros réus: ele busca se apresentar como um
homem inteligente e, portanto, não um nazista raso que não refletia sobre o que estava
fazendo e que seguiu Hitler cegamente. Sua arrogância “acadêmica”, por assim dizer, é
perceptível a todos os presentes no tribunal. Rosenberg chega a alertar Goldensohn para
tomar cuidado ao tomar suas notas para não “deturpar” suas “teorias e raciocínios bastante
complexos”. “Se a qualquer momento você não me acompanhar”, ele conclui ao
psiquiatra, “por favor, me interrompa, e eu explicarei melhor” (ROSENBERG apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 200).

Sua estratégia, entretanto, é um tiro que sai pela culatra. Afinal, ao adotar essa
postura, Rosenberg também acabava deixando transparecer que ele seguiu essas teorias
apesar de ser tão inteligente e erudito, como foi o caso de muitos intelectuais alemães,
como Martin Heidegger. Rosenberg formulou teorias que foram fundamentais para a
ascensão e estabelecimento do NSDAP e da ideologia nazista como um todo, mas parece
tentar se separar e se destacar como algo a mais: mais do que um nazista qualquer – um
nazista por excelência, um nazista de fundação, de base. Sua atuação nesse sentido não
se reduz ao Mito, associando-se também ao seu jornal, o diário do Partido, o Völkischer
123

Beobachter. Esse jornal nacional era “único entre os diários alemães”, e era publicado
simultaneamente em Munique e Berlim. Por ser “porta-voz da liderança do Partido,
tornou-se leitura essencial para os fiéis e de fato para qualquer um que quisesse saber o
que pensar e em que acreditar”. O diário tinha uma circulação gigantesca: ele foi o
primeiro jornal alemão a vender mais de um milhão de exemplares por dia e sua
circulação era de 1.192.500 em 1941 (EVANS, 2014c, p. 177). Völkischer Beobachter,
de Alfred Rosenberg, e Der Stürmer, de Julius Streicher, eram, portanto, os jornais mais
populares do Reich.

Rosenberg, nesse sentido, estava amparado no seu personagem pautado na


intelectualidade devido a suas produções. Sobre a acusação formal, ele diz a Gilbert:
“devo rejeitar uma acusação por ‘conspiração’. O movimento antissemita foi apenas
protetor” (ROSENBERG apud GILBERT, 1995, p. 5). E, aqui, temos uma referência,
que, como vimos, é recorrente entre os réus em Nuremberg: a de compreender o regime
nazista e suas ações, sobretudo as ações violentas, como uma reação às condições
deploráveis que a Alemanha se encontrava naquele momento da história.

A construção da persona de Rosenberg no julgamento está amplamente


ancorada na sua percepção de si mesmo como mais do que um erudito: o réu era, desde
sempre, um erudito incompreendido. Ao contrário de Ernst Kaltenbrunner, que, como
veremos, disseca todos os documentos para alegar sua ignorância dos acontecimentos,
Rosenberg esmiúça os documentos para oferecer uma outra interpretação deles. Essa
interpretação, em sua visão, era necessária porque a acusação não havia entendido seus
escritos e tampouco sua forma de enxergar o mundo. Em sua perspectiva, em sua
racionalização “Rosenbergiana”, como define Gilbert, ele estava apenas “buscando por
uma solução pacífica para o problema racial” (ROSENBERG apud GILBERT, 1995, p.
42). E é precisamente em suas racionalizações que percebemos como Rosenberg se
encaixa na categoria defensor fiel. Afinal, para o autor, o nacional-socialismo possuía
uma base ideológica sólida porque estava amparada na verdade e na justificação
científica. Ele não questiona sua visão de mundo e permanece convicto de que sua crença
era a única realidade possível. Rosenberg declara, inclusive, que “o nacional-socialismo
não se baseava em preconceito racial. Nós apenas queríamos manter nossa própria
solidariedade racial e nacional”. Dessa maneira, “é natural que os membros de um grupo
sintam um vínculo comum e protejam a si mesmos e sua identidade” (ROSENBERG
apud GILBERT, 1995, pp. 120-121), e assim havia sido há séculos. No entanto, ele não
124

queria que o tribunal virasse uma “Inquisição contra uma ideologia, sem discussão sobre
o assunto” (ROSENBERG apud GILBERT, 1995, p. 257). À revelia de seus desejos, para
Rosenberg, foi exatamente isso que aconteceu.

Seus longos discursos e sua apresentação do nazismo como um movimento


moderno, apesar de amparado em um retorno a um passado mitológico, é rejeitada pelo
presidente do tribunal, que o lembra constantemente que “as acusações contra os réus não
são que eles tentaram reconstruir a Alemanha, mas que eles usaram essa forma de
reconstrução com o objetivo de atacar raças e nações externas” (BS, 11, p. 449). Mas,
afinal, Rosenberg estava sendo julgado por suas crenças ou por suas ações? Por ser um
ideólogo ou por ser um ministro e editor de um jornal? De acordo com o promotor Mr.
Dodd, “acho que todos nós, por uma questão de princípio, nos opomos a processar
qualquer homem pelo que ele pensa” (BS, 11, p. 449). O advogado de defesa de
Rosenberg, no entanto, enxerga as coisas de forma diferente:

Sr. Presidente, o nacional-socialismo como um conceito deve ser dissecado em


suas partes constituintes. Uma vez que a acusação sustenta que o nacional-
socialismo foi uma luta contra a democracia, uma ênfase unilateral no
nacionalismo e no militarismo, ele [Rosenberg] deveria agora ter a
oportunidade de dizer por que o nacional-socialismo apoiou o militarismo e se
esse era realmente o caso. […] Como a ideologia e a filosofia dos nazistas
foram aqui chamadas de criminosas, acho que o réu Rosenberg deveria ter
alguma oportunidade de expor suas opiniões. (BS, 11, pp. 450-451)

A grande questão, era que ideologia e prática se fundiam de forma explícita no


caso de Rosenberg – e esse era o motivo pelo qual ele era um caso óbvio de condenação
para a promotoria. Por conta de seu outro cargo, de Ministro dos Territórios Ocupados,
Rosenberg estava no centro de todas as atrocidades realizadas pelos nazistas nesses
territórios, sobretudo a utilização de trabalho escravo e o extermínio de judeus e
poloneses. E, por conta de todas as suas declarações ao longo dos anos, o réu não poderia
se defender dizendo que não estava de acordo com essas práticas. Por exemplo, ainda em
1941, ano em que foi nomeado ministro, Rosenberg declarou em uma conferência de
imprensa que a meta do regime nazista era “o extermínio biológico de toda a judiaria da
Europa” (ROSENBERG apud EVANS, 2014b, p. 298).

A verdade, entretanto, era um pouco mais complexa. Assim como Rosenberg


parecia o grande ideólogo do nacional-socialismo sem, de fato, o ser, ele também
aparentava, “na superfície, ser o todo-poderoso” em seu cargo de ministro. Mas, como
lembra Kershaw, “nada era o que parecia no Terceiro Reich” e a autoridade de Rosenberg
não incluía, por exemplo, o exército ou a SS. Sendo assim, “em outras palavras, as armas
125

mais poderosas estavam fora do controle de Rosenberg” (KERSHAW, 2010, p. 668–669).


Por esse motivo, a Solução Final não estava, de fato, dentro de sua esfera direta de ação,
e temos nomes muito mais imputáveis nesse ponto em Nuremberg, como Hans Frank e
Ernst Kaltenbrunner. Ao fim e ao cabo, seu cargo de ministro tornou-se redundante com
o passar do tempo, assim como Rosenberg.

Essa dualidade de sua figura e de sua atuação permanece viva durante todo o
caso de Rosenberg, visto e reconhecido como ideólogo, mas tendo que responder por suas
ações como ministro, e não por sua filosofia. O nacional-socialismo deveria ser entendido
como um conceito, mas, por fim, estava sendo julgado como um regime – e essa era,
afinal, a perspectiva da defesa de Hermann Göring de frente unida, como vimos.

Ausrottung

Em sua tentativa de reforçar sua intelectualidade, Rosenberg aparece como essa


personalidade ambígua no tribunal. A responsabilidade pelo extermínio nas regiões
ocupadas é desviada por ele com questões semânticas, com a substituição de palavras e a
reinterpretação de documentos. De acordo com Rosenberg, “Polônia” nunca foi um termo
usado em círculos oficiais, apenas dizia-se “Governo Geral” – que estava sob
responsabilidade direta de Hans Frank. Aqui percebemos a transformação da linguagem
durante o regime nazista e o quão fundamental era que os países ocupados não fossem
mais vistos como países, e sim como terras anteriormente alemãs que estavam sendo
retomadas por direito. Destruição, na verdade, queria dizer, “atividades de combate”,
comuns em tempos de guerra; extermínio da cultura nacional não era uma representação
fiel da realidade; e é claro, o extermínio em si não queria dizer de fato genocídio:

Mas não posso dizer aqui que medidas Heydrich tomou. No entanto, como
pode ser visto a partir disso, eu não poderia acreditar que uma ordem – que foi
atestada pela testemunha aqui ontem – foi dada a Heydrich ou Himmler pelo
Führer. Este relatório, e muitas outras comunicações que chegaram aos meus
ouvidos, sobre fuzilamentos de sabotadores e também de judeus, pogroms da
população local nos Estados Bálticos e na Ucrânia, tomei como ocorrências
desta guerra. Ouvi dizer que em Kiev um número maior de judeus foi fuzilado,
mas que a maior parte dos judeus deixou Kiev; e a soma desses relatos me
mostrou, é verdade, uma dureza terrível, especialmente alguns relatos dos
campos de prisioneiros. Mas que havia uma ordem para a aniquilação
individual de todo o judaísmo, eu não poderia supor e se, em nossas polêmicas,
também se falou do extermínio do judaísmo, devo dizer que essa palavra, é
claro, deve causar uma impressão assustadora em vista dos testemunhos que
achamos disponíveis agora, mas sob as condições que prevaleciam na época,
não foi interpretado como um extermínio individual, uma aniquilação
individual de milhões de judeus. (BS, 11, p. 502)

Para Rosenberg, portanto, uma situação de “dureza terrível” não queria dizer
126

genocídio. O significado das palavras e como elas estavam sendo usadas são de extrema
importância para o réu.57 Ao ser apresentado um de seus discursos, a acusação chega a
trazer um dicionário para procurar o significado da palavra “extermínio”. Isso leva a uma
sequência particularmente interessante:

ROSENBERG: Não preciso de um dicionário estrangeiro para explicar os


vários significados que “Ausrottung” pode ter na língua alemã. Pode-se
exterminar uma ideia, um sistema econômico, uma ordem social e, como
consequência final, também um grupo de seres humanos, certamente. Essas
são as muitas possibilidades que estão contidas nessa palavra. Para isso não
preciso de um dicionário inglês-alemão. Traduções do alemão para o inglês
são muitas vezes erradas – e assim como no último documento que você me
apresentou, ouvi novamente a tradução de “Herrenrasse”. No próprio
documento “Herrenrasse” nem é mencionado; no entanto, existe o termo “ein
falsches Herrenmenschentum” (uma espécie de falso mestre). Aparentemente
tudo é traduzido aqui em outro sentido.
MR. DODD: Tudo bem, não estou interessado nisso. Vamos ficar neste termo
de “Ausrottung”.
ROSENBERG: Aqui ouvi novamente uma tradução diferente, que novamente
usou novas palavras alemãs, então não posso determinar o que você queria
expressar em inglês.
MR. DODD: Você está falando sério em pressionar essa sua aparente
incapacidade de concordar comigo sobre essa palavra ou está tentando matar
o tempo? Você não sabe que há muitas pessoas neste tribunal que falam alemão
e que concordam que essa palavra significa “eliminar”, “extirpar”?
ROSENBERG: Significa “superar” (to overcome) por um lado e depois deve
ser usado não em relação a indivíduos, mas sim a entidades jurídicas, a certas
tradições históricas. Por outro lado, esta palavra foi usada em relação ao povo
alemão e também não acreditamos que em consequência disso 60 milhões de
alemães seriam fuzilados.
MR. DODD: Quero lembrá-lo que este seu discurso no qual você usa o termo
“Ausrottung” foi feito cerca de 6 meses depois que Himmler disse a Höss,58 a
quem você ouviu neste banco de testemunhas, para começar a exterminar os
judeus. Isso é um fato, não é?
ROSENBERG: Não, isso não está correto, pois Adolf Hitler disse em sua
declaração perante o Reich: Se uma nova guerra mundial fosse iniciada por
esses ataques dos emigrantes e seus apoiadores, então, como consequência,
haveria um extermínio e uma extirpação. Isso foi entendido como resultado e
como uma ameaça política. Aparentemente, uma ameaça política semelhante
também foi usada por mim antes do início da guerra contra a América. E,
quando a guerra já havia estourado, eu aparentemente disse que, já que chegou
a isso, não adianta falar nada disso.

57
Uma referência relevante para compreender a questão da terminologia nazista e a transformação do
vocabulário alemão durante os anos de Hitler é o livro do filólogo e sobrevivente Victor Klemperer, LTI:
A linguagem do Terceiro Reich (2009).
58
Rudolf Höss foi o comandante do campo de Auschwitz-Birkenau e o responsável pela implementação do
extermínio no campo, introduzindo novos métodos para seguir com a chamada Solução Final, incluindo o
uso do gás Zyklon-B nas câmaras de gás. Esse perpetrador estava em Nuremberg como testemunha da
acusação e foi julgado logo em seguida em outro tribunal, sendo sentenciado à morte em 1947. No entanto,
seu testemunho é um marco nos procedimentos de Nuremberg, sendo usado para mostrar o que “realmente
aconteceu” nos campos e como a máquina de morte do Terceiro Reich funcionava. Suas narrativas são
apresentadas como a “história verdadeira” do extermínio, a Verdade contada por um dos perpetradores mais
fundamentais na cadeia de comando nazista. O testemunho de Höss é apresentado logo antes da defesa de
Alfred Rosenberg, que afirma que foi um “truque baixo” usar Höss naquele momento porque tornaria difícil
para ele defender a sua ideologia após o tribunal escutar o passo-a-passo do extermínio que aquela mesma
ideologia executou (GILBERT, 1995, p. 266).
127

MR. DODD: Bem, na verdade, os judeus estavam sendo exterminados nos


Territórios Ocupados do Leste naquela época e depois, não estavam?
ROSENBERG: Então, talvez eu possa dizer algo sobre o uso das palavras
aqui? Estamos falando aqui do extermínio dos judeus; também ainda há uma
diferença entre “judaísmo” (Jewry) e “os judeus” (the Jews). (BS, 11, p. 554-
555)

Da mesma maneira que aniquilação não queria dizer genocídio ou extermínio,


para Rosenberg, os campos de concentração também não foram explicados para ele da
forma como estavam sendo apresentados no tribunal. Assim como Göring, Rosenberg
entendia os campos como uma medida compreensível de custódia protetiva de elementos
perigosos ao Estado nacional-socialista, sobretudo em se tratando da contenção de
oponentes políticos, como os comunistas. De acordo com o ideólogo, “eu tive que assumir
que esses arranjos eram politicamente e nacionalmente necessários, e eu estava totalmente
convencido disso” (BS, 11, p. 512), principalmente porque lhe parecia que os campos
estavam em ótimo estado e os prisioneiros eram bem tratados. O réu conta que Himmler
o convidou a visitar Dachau em determinado momento para assegurá-lo de que o campo
tinha ótimas condições, com uma piscina e instalações sanitárias “irrepreensíveis”. No
entanto, Rosenberg, por ser um homem sensível, não quis fazer essa visita ao campo
porque “não queria olhar para pessoas que foram privadas de sua liberdade” (BS, 11, pp.
512-513). Sendo assim, para ele, os campos nada mais eram do que uma prisão um pouco
mais sofisticada na qual os prisioneiros precisavam trabalhar.

Pensando na associação dos campos com a violência, Rosenberg, assim como


Göring, está preparado para admitir que em uma revolução as coisas podem sair do
controle momentaneamente e “excessos” podem ocorrer. Ele afirma que “em alguns
distritos também ocasionalmente poderia haver conflitos, e que o fato de que assassinatos
de nacional-socialistas nos meses subsequentes aos da tomada do poder continuaram
provavelmente resultou em contramedidas afiadas aqui e ali” (BS, 11, p. 530). Isso, no
entanto, para ele, era compreensível, e, assim que ele descobria sobre qualquer “excesso”,
tomava as medidas cabíveis dentro da sua posição e dos seus limitados poderes.

Suas racionalizações não são limitadas às terminologias utilizadas no tribunal e


a momentos específicos do Terceiro Reich: elas também passavam por outros períodos
históricos. Por exemplo, Rosenberg explica que “a Revolução Francesa foi dedicada à
ideia de fraternidade, mas acabou em um banho de sangue para alcançá-la – e ninguém
pensa nisso agora; a Igreja Católica pregou a doutrina da paz na terra, boa vontade para
com os homens, mas veja os assassinatos em massa na Inquisição”, e, ainda “Lutero
128

queria uma Reforma esclarecida, mas veja a sangrenta Guerra dos Trinta Anos com
protestantes e católicos matando uns aos outros em nome de Deus”. Estava claro para o
réu que as intenções de um movimento podem ser boas, mas que, por outro lado, não se
pode culpar os vanguardistas pelas consequências de suas ideias. Afinal, “você
responsabilizaria Lutero por essa guerra? Você não pode nos responsabilizar pelas
atrocidades que ocorreram. Essa não era a ideia original” (ROSENBERG apud
GILBERT, 1995, p. 97). A ideia original era meramente uma solução para um problema
que durava milênios – o problema do direito de existência do povo alemão. Essa era a
posição fundamental em que Rosenberg se encontrava: como um formulador da ideia
original.

Ao longo do julgamento, Dr. Thoma, seu advogado, se cansa das


racionalizações “Rosenbergianas”, que visavam mostrar evidências de que o
antissemitismo era justificável. O dualismo da posição de Rosenberg também transparece
nesse aspecto, já que Dr. Thoma não entende como o réu queria que ele apresentasse seu
caso como se ele fosse contra o extermínio e não soubesse nada do que estava ocorrendo,
e, ao mesmo tempo, apresentasse documentos para mostrar que o extermínio era
justificado com bases científicas. A insistência no fundamento histórico para a guerra e a
perseguição dos judeus faz com que Dr. Thoma defina Rosenberg como um “pagão
arrogante” (GILBERT, 1995, p. 347). Rosenberg, todavia, se sente totalmente injustiçado
e incompreendido com relação a essa questão. A ideologia racial não era defendida há
séculos em outros países? Mas, “agora, de repente se tornou um crime, só porque os
alemães fizeram isso” (ROSENBERG apud GILBERT, 1995, p. 354). E, naturalmente,
para ele, não se pode culpar o fundador da ideologia por suas consequências.

Volk ohne Grenzen

Assim como Streicher, porém, de forma um pouco mais elegante, Rosenberg


tenta demonstrar ao tribunal que o antissemitismo era uma questão que existia há mais de
dois mil anos, não uma criação sua ou de antissemitas modernos. Sua defesa do
eugenismo e das teorias raciais estava, portanto, embasada em uma etnologia que não era
“uma invenção do movimento nacional-socialista, mas uma descoberta biológica, que foi
a conclusão de 400 anos de pesquisa europeia” (BS, 11, p. 450). Assim sendo, Rosenberg
permanece um defensor fiel justamente porque segue sustentando princípios nazistas,
sobretudo princípios racistas. É válido ressaltar que a ideia original, como diz Rosenberg,
era fundamentalmente racial, mais do que meramente antissemita. Esse aspecto fica
129

muito claro quando compreendemos a conexão de suas filosofias e seu cargo de ministro,
e, sobretudo, por sua análise da retomada do espaço vital alemão, o famoso Lebensraum,
isto é, “a designação literal de um espaço que a raça necessitava para sua própria
sobrevivência” (CHAPOUTOT, 2018, p. 324). Para o réu, as terras ocupadas pelo Reich
eram terras alemãs que apenas estavam sendo tomadas de volta: “pois esta terra,
pertencente aos alemães por 700 anos e expropriada pelas jovens repúblicas da Estônia e
da Letônia quase sem indenização, certamente poderia ter sido devolvida facilmente aos
alemães” (BS, 11, p. 497).

Johann Chapoutot chama atenção para a perspectiva imperialista e racial do


regime nazista, pautada na ideia de Volk ohne Grenzen, povo sem fronteiras. Para os
nazistas, o Tratado de Versalhes, que será abordado em capítulo posterior, era a causa de
todos os males, e havia criado e forçado fronteiras artificiais no povo alemão, que então
se viu na missão de lutar por sua fronteira racial natural. Essa destruição das fronteiras
biológicas era vista pelos nazistas como uma ação violenta de alienação dos direitos
raciais. Nesse sentido, o espaço racial inalienável de um povo era o espaço que ele
ocupava “por meio de seu trabalho vital” (CHAPOUTOT, 2018, p. 364). O que os
pangermanistas não conseguiram fazer no século XIX, os nazistas executaram com seu
projeto do povo como uma unidade natural. E, por isso, a cidadania era biológica e não
apenas uma questão legal ou um status político: “a Alemanha ignoraria as fronteiras
políticas e reconheceria apenas entidades biológicas” (CHAPOUTOT, 2018, p. 366).

Rosenberg, como Ministro dos Territórios Ocupados, estava plenamente


alinhado com essa visão de mundo e com a reinserção desses territórios no projeto do
Reich de mil anos. Ele afirma que “era meu dever, naturalmente, considerar as medidas
políticas que deveriam ser propostas para evitar uma situação em que o Reich alemão
tivesse que lutar a cada 25 anos por sua existência no Leste” (BS, 11, p. 478). E nesse
sentido, como lembra Chapoutot, a “responsabilidade para com um passado racial era
também uma responsabilidade para com o futuro”. O problema que os nazistas
enfrentavam era um problema de milênios que nunca havia sido resolvido de forma
apropriada e definitiva: “seus predecessores nessa luta não tinham a ciência racial nem a
consciência do perigo”, e os nazistas, “agindo aqui e agora, estavam poupando seus filhos
e netos da penosa tarefa de um dia ter que realizar esse trabalho desagradável”
(CHAPOUTOT, 2018, p. 385). Uma tarefa desagradável, mas que precisava ser feita,
para que o Reich não precisasse permanentemente lutar por sua existência.
130

Não obstante, de acordo com Rosenberg, outros países que ocuparam territórios
tiveram experiências parecidas e ele não poderia ter feito mais do que fez. A Segunda
Guerra Mundial, para ele, não era uma guerra de agressão, muito pelo contrário. Por esse
motivo, também, Hitler não era alguém por quem ele sentia desprezo: “servi esse
movimento nacional-socialista desde os primeiros dias e fui completamente leal a um
homem que admirei durante esses longos anos de luta, porque vi com que devoção pessoal
e paixão esse ex-soldado alemão trabalhou por seu povo” (BS, 11, pp. 514-515). Sobre
isso, retomando às questões do Princípio de Liderança, já mencionadas por Hermann
Göring, Rosenberg entende que Hitler havia sido uma exceção até dentro do próprio
movimento nacional-socialista:

Significam que afirmei que o Estado nacional-socialista não pode ser uma
casta que reina sobre a nação alemã e que o Führer de uma nação não deve ser
um tirano. No entanto, eu não vi em Adolf Hitler um tirano, mas como muitos
milhões de nacional-socialistas, confiei nele pessoalmente com a força da
experiência de uma luta de 14 anos. Eu não queria limitar seu poder totalmente,
embora consciente de que isso significava uma exceção pessoal para Adolf
Hitler, não de acordo com o conceito nacional-socialista de Estado. Nem era
este o Princípio de Liderança como o entendíamos ou uma nova ordem para o
Reich. Eu servi a Adolf Hitler lealmente, e o que o Partido pode ter feito
durante aqueles anos, também foi apoiado por mim. E os malefícios (ill
effects), devidos aos mestres errados, foram marcados por mim, em plena
guerra, em discursos perante líderes políticos, quando afirmei que essa
concentração de poder como existia naquele momento, durante a guerra, só
poderia ser um fenômeno da guerra e não poderia ser considerado como a
concepção nacional-socialista de um Estado. Pode ser oportuno para muitos,
pode ser oportuno para 200.000 pessoas, mas aderir a ele mais tarde
significaria a morte da individualidade de 70 milhões. Eu disse isso na
presença dos líderes das SS maiores e outros líderes da organização ou
Gauleiters. Entrei em contato com os chefes da Juventude Hitlerista, junto com
minha equipe, plenamente consciente de que depois da guerra teria que ser
feita uma reforma aqui no Partido, para que as velhas demandas do nosso
Movimento, para as quais eu também tinha lutado, encontrariam respeito. No
entanto, isso não foi mais possível; o destino terminou o Movimento e [tudo]
tomou um rumo diferente. (BS, 11, p. 516)

Neste sentido, para Rosenberg, após essa guerra que era justa e necessária,
deveria haver uma mudança dentro do movimento para que Hitler perdesse parte de seus
poderes, que naquele momento eram ilimitados. Um verdadeiro Estado pautado em um
Princípio de Liderança nacional-socialista não pressupunha um Líder tirano, mas um
Líder que assumisse para si a responsabilidade por todo o povo alemão. Essa perspectiva
estava de acordo com o próprio Hitler, o Líder que anos antes havia declarado que o
Estado tinha pouca importância se comparado com a raça: “a condição essencial para a
formação e uma humanidade superior não é o Estado, mas a raça” (HITLER, 2005, p.
299). Essa mudança que Rosenberg propunha não ocorreu, e o Movimento nacional-
socialista se perdeu nesse destino trágico da Alemanha. Esse era um espelho de seu
131

próprio destino, por fim: um precursor do movimento que se viu sendo julgado como um
perpetrador.

Ministro ou ideólogo?

Finalmente, é válido retomar a posição de Rosenberg no tribunal, já que a


própria acusação entende que ele tem posições diferentes e que responde às suas funções
de forma distinta: como ideólogo do nazismo e como Ministro dos Territórios Ocupados.
Mr. Dodd, ao questioná-lo sobre o plano de assassinato de reféns em territórios ocupados,
levanta a problemática: Rosenberg era apenas um filósofo ou um soldado? “Em que
qualidade você a estava escrevendo”, ele questiona, “como um ministro benfeitor
(benign) e filósofo sobre ideologia e cultura, ou você era um membro das Forças
Armadas?” (BS, 11, p. 563).

Apesar da postura inicial de seu advogado de tentar apresentá-lo como um


ideólogo, a acusação não dá muito crédito à sua visão de mundo. Seu livro mais famoso,
O Mito do Século XX, considerado, ao lado de Mein Kampf, como uma das bases do
movimento nacional-socialista, é mencionado pouquíssimas vezes durante seu caso. Mein
Kampf, inclusive, aparece dezenas de vezes ao longo de todo o processo em Nuremberg
justamente como uma comprovação de que Hitler sempre havia tido uma proposta
ideológica de extermínio. Muitos réus, senão todos, são questionados se haviam lido o
livro de Hitler com a presunção de que, se haviam lido, então sabiam que os planos de
Hitler visavam o genocídio desde o princípio. Ao contrário das respostas referentes a
Mein Kampf, ao receberem a mesma pergunta sobre o Mito, a maioria dos nazistas
expressa desconhecimento sobre a obra e seu conteúdo.

Esse descrédito também pode ser observado com relação ao cargo de Rosenberg
como editor do jornal do Partido Nazista. Hans Fritzsche, o representante de Goebbels no
tribunal, apesar de definir Rosenberg como “o sumo sacerdote (high priest) da ideologia
nazista” (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 270), declara que sua influência era
“insignificante”: “Streicher não teve nenhuma influência na propaganda oficial alemã e
Rosenberg apenas em uma extensão que não era perceptível para mim” (BS, 17, p. 230).
Baldur von Schirach, líder da Juventude Hitlerista, também afirma que a promotoria
estava “estimando a influência” de Rosenberg “de forma bastante errada”. Ele conclui:
“Rosenberg certamente teve alguma influência sobre muitas pessoas que estavam
interessadas em problemas filosóficos e estavam em condições de entender suas obras.
132

Mas devo contestar a extensão da influência que você está atribuindo a ele” (BS, 14, p.
455). O almirante Karl Dönitz, em linha similar, após ouvir a defesa de Rosenberg declara
que “menos de 1% dos seus oficiais da marinha sequer leram o Mito” (DÖNITZ apud
GILBERT, 1995, p. 271), de modo que Rosenberg era apenas “um homem que está com
a cabeça nas nuvens”. Como um militar apartidário, Dönitz faz uma diferenciação de si
mesmo e de homens como Rosenberg, que ele denomina como “propagandistas”. “Não
tenho dúvidas de que ele [Rosenberg] é um homem que não faria mal a uma mosca”, diz
Dönitz, “mas também não há dúvida de que esses propagandistas foram realmente
responsáveis por pavimentar o caminho para esses terríveis atos antissemitas”. E, por isso,
era “uma pena que Hitler não esteja aqui. Ele fez muito do que é discutido aqui” (DÖNITZ
apud GILBERT, 1995, p. 274).

Será que, assim como os outros nazistas, a própria promotoria não leu o Mito
e/ou não compreendeu o livro? Será que, como seus companheiros de cela disseram, a
obra de Rosenberg foi considerada “intelectual demais” e não pareceu fundamentalmente
importante para a acusação? Afinal, Streicher é o único que defende o Mito como um
“estudo muito profundo”, dizendo ser, inclusive, profundo demais para seu entendimento.
Ao que me parece, a possibilidade mais plausível para essa desimportância dada ao
“Rosenberg ideólogo” gira em torno do fato de o tribunal já estar julgando outros dois
membros da imprensa, e, consequentemente, da ideologia nazista: Julius Streicher e Hans
Fritzsche. E, nesse sentido, o cargo de Ministro dos Territórios Ocupados era muito mais
relevante dentro da estrutura do Terceiro Reich do que o de um editor de um jornal, como
Streicher, ou de um comentarista de rádio, como Fritzsche. Não obstante, o réu se sente
constantemente julgado pela acusação, pelos juízes, e também por Goldensohn e Gilbert
por seus pensamentos e convicções: “se eles querem apenas fazer um julgamento
criminal, por que a promotoria não se apega a atos criminosos em vez de atacar minha
ideologia?” (ROSENBERG apud GILBERT, 1995, p. 267).

Enxergando a si mesmo como um intelectual incompreendido e, por sua


arrogância, odiado pela ala médica, ao receber sua sentença, “Rosenberg zombou agitado
enquanto vestia seu macacão de prisão”, dizendo: “A corda! A corda! Era isso que você
queria, não era?” (ROSENBERG apud GILBERT, 1995, p. 433). Para o réu, a base da
antipatia direcionada a sua figura era, precisamente, a ignorância e o desconhecimento
sobre as verdades de suas teorias – e não a efetividade de suas ações. Afinal, palavras
poderiam ser contestadas com relação a etimologia e interpretação de seus significados.
133

E, nesse sentido, seus discursos estavam sempre seguros e amparados na incompreensão


de mentes menos inteligentes e eruditas.

Por fim, apesar do esforço da acusação, para a memória, o que ficou, foi sua
posição enquanto ideólogo, e não como ministro. O Mito seguiu sendo vendido após o
Terceiro Reich e diversas obras foram dedicadas para a compreensão de sua teoria, como
é o caso do livro de Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, O mito nazista,
constantemente mencionado nesta tese. Após Nuremberg, talvez, finalmente, Rosenberg
tenha conseguido o que buscava desde o princípio: o lugar na História como o filósofo
do nazismo.
134

Arthur Seyss-Inquart (1892-1946)

“E, então, as coisas foram passo-a-passo.


Não direi que os resultados finais – no que diz respeito aos Países Baixos – foram
pretendidos assim desde o início; mas decidimos por este método”

(BS, 15, pp. 666-667)

Arthur Seyss-Inquart foi o chanceler da Áustria e articulador de sua anexação e


Gauleiter da Holanda durante a guerra. Foi julgado em Nuremberg por planos de
conspiração, crimes de guerra, crimes contra a paz e crimes contra a humanidade.
Considerado culpado das três últimas acusações, foi sentenciado à morte e enforcado em
16 de outubro de 1946.

Com o segundo QI mais alto em Nuremberg, Seyss-Inquart, ao ouvir a


acusação, apenas diz: “o último ato da tragédia da Segunda Guerra Mundial, eu espero!”
(SEYSS-INQUART apud GILBERT, 1995, p. 6). Não temos entrevistas do réu no livro
de Goldensohn, de modo que a única fonte secundária disponível são os escassos relatos
de Gilbert sobre a figura. Aparentemente, Seyss-Inquart não se destacava entre os nazistas
em Nuremberg, de modo que Gilbert sequer registrou as impressões de sua defesa ou o
que os outros réus pensavam do colega de cela. Dessa maneira, sua presença entre os
135

defensores fiéis, naturalmente, não é por conta de sua relevância dentro da cadeia
organizacional do Terceiro Reich, e sim, pela sua escolha narrativa durante o julgamento.

Seyss-Inquart não deixa claro se ainda era um nazista, mas sabemos,


definitivamente, que ele não nega ter sido nazista no passado – e que tampouco demonstra
arrependimento por suas ações. Ele declara sua adesão a diversos aspectos da ideologia,
confirmando seu antissemitismo e sua participação ativa nas políticas de segregação e
deportação dos judeus na Holanda durante a guerra. O que ele faz questão, na maior parte
do tempo, é de dizer que olhar naquele momento em retrospectiva fazia suas ações
parecerem terríveis, quando, na realidade, elas não eram tão terríveis assim. Enquanto os
eventos estavam acontecendo, eles tinham esse aspecto de normalidade: suas decisões
eram pensadas e alinhadas com a ideologia nacional-socialista e com as ordens que ele
recebia e, na maioria, também alinhadas com as leis internacionais. O que havia de errado
nisso, afinal? Nesse sentido, como um defensor fiel, em Nuremberg, Seyss-Inquart ainda
mantém a legitimidade de suas ações e o traço que predomina em suas narrativas é a
ausência de demonstração de arrependimento. Para ele, não havia nada moralmente
errado em sua atuação, nem na época e nem olhando retrospectivamente. Ele declara,
inclusive: “Não quero contar nenhuma história ao Tribunal; quero apenas dar a minha
contribuição para esclarecer o pano de fundo dos acontecimentos, tanto quanto a acusação
permite” (BS, 16, p. 93).

Apesar de ter tido grande protagonismo no processo de anexação da Áustria


pelo Reich, a chamada Anschluss, que será abordada com mais profundidade em capítulo
posterior, Seyss-Inquart está sendo julgado majoritariamente pelo seu papel na Holanda.
Como veremos, a brutalidade empregada pelos nazistas no país e o extermínio dos judeus
na Holanda foram tão devastadores quanto na Polônia – esta última ganhando destaque
em Nuremberg com o caso do “açougueiro da Polônia”, Hans Frank. No entanto, o caso
holandês tem evidência no tribunal por representar uma das frentes da violência nazista
na Europa Ocidental, já que não existia nenhum réu diretamente responsável por outros
países ocidentais ocupados, como a França ou a Bélgica. A Holanda serviu, portanto,
como um caso exemplar de que a “guerra de agressão” nazista, conforme prevista na
acusação, visava a destruição de todo o território europeu. Por esse motivo, um homem
tão simplório e esquecível como Arthur Seyss-Inquart aparece como um membro
fundamental na cadeia de comando do Terceiro Reich. Após Nuremberg, outros homens
simplórios serão julgados pelo genocídio na Europa ocupada, como o burocrata Adolf
136

Eichmann, fortalecendo o conceito de desk-killer, o assassino burocrata (CESARANI,


2007). A narrativa de Seyss-Inquart, entretanto, não se assemelha em nada com a de
Eichmann, precisamente porque não há uma ausência de pensamento para justificar suas
ações. Ele segue um defensor dos preceitos nazistas e não há banalidade em seu caso,
apenas na sua figura.

A união política e cultural dos povos germânicos

As tropas alemãs invadiram a Holanda em 10 de maio de 1940 como parte da


estratégia de ocupação de todos os territórios da região dos Países Baixos e da França. O
exército holandês era infinitamente menor que o alemão, e quatro dias depois, após um
bombardeio aéreo que destruiu a cidade de Roterdã e matou centenas de civis, foi
decidido que o único caminho possível era a rendição. Em 15 de maio, a Holanda se
rendeu e a rainha Guilhermina e o restante dos membros do governo fugiram para
Londres, deixando um vácuo no governo que seria ocupado rapidamente pelos nazistas
austríacos – dentre eles, Arthur Seyss-Inquart (EVANS, 2014b, p. 153). O exército
alemão seguiu avançando e logo conseguiram dominar a Bélgica, e, posteriormente, a
França.

Os nazistas viam os holandeses como “nórdicos em sua constituição racial”, de


modo que “a longo prazo, a Holanda de fato estava destinada à incorporação do Reich”
(EVANS, 2014b, p. 439). A barreira racial, no entanto, existia, por conta do enorme
contingente judeu que vivia no país. Os judeus holandeses que eram nativos “pertenciam
a uma das mais antigas comunidades judaicas estabelecidas na Europa, e o antissemitismo
era relativamente limitado em âmbito e intensidade antes da ocupação alemã”. Isso,
naturalmente, iria mudar. A “posição firme da liderança nazista e em particular da SS na
ausência de um governo holandês, e as convicções antissemitas de praticamente todo o
conjunto da administração de ocupação austríaca, emprestaram uma agudeza radical à
perseguição dos judeus holandeses”. Além disso, como os nazistas “consideravam os
holandeses essencialmente arianos, a necessidade de remover os judeus da sociedade
holandesa pareceu particularmente urgente” (EVANS, 2014b, p. 440). A consequência
disso foi que a brutalidade do antissemitismo na ocupação alemã da Holanda foi a maior
dentre todos os países da Europa Ocidental: ao fim da guerra, 73% dos judeus holandeses
foram assassinados pelos nazistas, um total de 102 mil de 140 mil (EVANS, 2014b, p.
444).
137

Antes do genocídio, é claro, houve um rápido processo de segregação. Medidas


antissemitas foram inseridas quase de imediato à ocupação, já em novembro de 1940, e
foram se intensificando com o passar do tempo. Em janeiro de 1942, judeus
desempregados começaram a ser mandados para campos de trabalhos especiais na
Holanda. Esses campos eram dirigidos majoritariamente por holandeses nazistas e logo
se tornaram “centros notórios de tortura e abuso”. Outros campos se tornaram centro de
trânsito para judeus holandeses deportados. Nesse caso, eles ficavam no campo após
serem recolhidos em Amsterdã e aguardavam a transferência de trem para os campos de
extermínio de Auschwitz, Sobibor, Bergen-Belsen e Theresienstadt. Nesse mesmo ano, a
Holanda adotou a sua versão das Leis de Nuremberg, obrigando o uso da estrela de Davi
nas vestimentas dos judeus, tornando mais fácil a sua identificação no país ocupado pelos
nazistas (EVANS, 2014b, p. 440).

Ainda que tenha existido resistência por parte dos holandeses às medidas
nazistas, a existência de um forte movimento nazista no país inviabilizou a abrangência
dessa resistência. Hannah Arendt destaca como a Holanda “foi o único país em toda a
Europa” que abrigou uma greve estudantil quando os professores judeus foram
despedidos de seus cargos, além de ter abrigado uma onda de greves como uma reação à
primeira deportação dos judeus aos campos de concentração (ARENDT, 1999, p. 187).
No entanto, com o avanço das pesquisas, hoje já se sabe que a Holanda, assim como a
França, teve uma ocupação, no mínimo, controversa, e que não se pode verdadeiramente
falar de resistência no sentido coletivo no país. Como ressalta Richard Evans, “a ajuda da
massa da população holandesa não veio”. Pelo contrário, a polícia holandesa adotou
entusiasmada as medidas antissemitas e realizou a tarefa de deportar os judeus “com
brutalidade considerável”. O serviço público holandês e a polícia, de maneira geral,
“estavam habituados a trabalhar com os ocupantes alemães, e adotaram uma visão
estritamente legalista das ordens recebidas” (EVANS, 2014b, p. 441).

A ocupação nazista da Holanda é um dos eventos mais conhecidos da Segunda


Guerra Mundial por dois motivos: em primeiro lugar, pelos relatos da jovem Anne Frank
no período em que esteve escondida no país durante a ocupação nazista; e, em segundo
lugar, em virtude da participação de Adolf Eichmann na deportação dos judeus
holandeses, mencionada extensivamente em seu julgamento em Jerusalém em 1961.
Eichmann, o “perito em questões judaicas”, inclusive, ficou extremamente satisfeito com
a atuação nazista no país: “No começo você poderia dizer que os trens da Holanda
138

estavam realmente rodando; foi bem maravilhoso”.59 Por fim, o resultado da ocupação
“foi uma catástrofe sem paralelo em nenhum país ocidental, somente comparável à
extinção dos judeus poloneses, ocorrida em condições muitíssimo diferentes e, desde o
começo, completamente desesperadas” (ARENDT, 1999, p. 188).

É verdade que a extensão do extermínio foi a mesma nos dois países.


Entretanto, havia uma diferença fundamental – pautada em uma premissa ideológica –
entre o caso holandês e o polonês: a Holanda não era um terreno de experimentação e
nem uma colônia, como a Polônia, justamente porque existia a premissa de assimilação
do país. Os nazistas acreditavam que na Holanda havia um grande contingente de arianos
que precisavam ser absorvidos pelo Reich. Por esse motivo, na visão nazista, o que
deveria ser eliminado do país eram os judeus holandeses, que estavam infectando a raça
ariana que já existia no local. De acordo com os dados oficiais,

Entre julho de 1942 e fevereiro de 1943, 53 trens partiram de Westerbork,


carregando um total de quase 47 mil judeus para Auschwitz – 266 deles
sobreviveram à guerra. Nos meses seguintes, mais 35 mil foram levados para
Sobibor, dos quais apenas 19 sobreviveram. Um carregamento de mil judeus
deixava o campo de trânsito de Westerbork toda terça-feira, semana após
semana, durante todo esse período e além, além de 100 mil terem sido
deportados para a morte até o fim da guerra. A administração nazista na
Holanda foi mais longe no antissemitismo do que qualquer outra na Europa
Ocidental, refletindo em parte a presença de austríacos entre sua liderança
máxima. Seyss-Inquart almejou até mesmo a esterilização dos cônjuges judeus
nos 600 casamentos chamados de mistos registrados nos Países Baixos, uma
política discutida na Alemanha, mas nunca colocada em prática (EVANS,
2014b, p. 443).

Dessa maneira, não se pode pensar na destruição da Europa Ocidental sem se


pensar no caso holandês e em homens como Arthur Seyss-Inquart. O réu, contudo,
acredita ter explicações perfeitamente plausíveis para a sua atuação na região. Ao
contrário de Eichmann, ele afirma não ter sido “um funcionário qualquer (ordinary
official)”, uma vez que era responsável por todo o setor civil do Reich na Holanda. Sua
responsabilidade não era, portanto, irrelevante. Ainda assim, Seyss-Inquart busca
contextualizar as questões, como, por exemplo, com relação ao processo de
“germanificação” ou “arianização” da Holanda. O nazista afirma que esse processo não
queria dizer “transformar os holandeses em alemães”, e, sim, “uma união política e
cultural dos chamados povos germânicos, com direitos recíprocos iguais” (BS, 15, p.
645). Dessa maneira, ele está pronto para declarar que, naturalmente “há momentos de

59
A Casa Anne Frank tem um projeto interessante para explicitar de maneira mais detalhada o genocídio
na Holanda. Ver: https://www.annefrank.org/en/anne-frank/go-in-depth/netherlands-greatest-number-
jewish-victims-western-europe/ (Acesso em 30/09/2022)
139

tensão quando não há mais uma linha divisória entre o que é importante para o esforço
militar de guerra e o que é privado e de interesse civil” (BS, 15, pp. 646-647). Isso,
entretanto, em sua visão, era uma política esperada e comum em tempos de guerra e não
havia nada de especial no que os nazistas estavam fazendo.

Como aponta Johann Chapoutot, o tratamento que inicialmente foi dado ao


Leste e ao Oriente, que veremos mais profundamente em capítulo posterior, passou aos
poucos a ser utilizado também nas ocupações do lado ocidental, ainda que não com a
mesma brutalidade. Aos poucos, com a justificativa da necessidade em tempos de guerra,
“foram tomadas medidas que violavam as disposições do direito da guerra e do jus
gentium60 que normalmente seriam aplicáveis aos povos civilizados do Ocidente”
(CHAPOUTOT, 2018, p. 262). O comportamento do inimigo, em qualquer território,
passaria a justificar as ações violentas dos nazistas, uma vez que salvar a vida dos alemães
era a prioridade do Reich. Sendo assim, “sem consideração por qualquer [ideia]
incompreendida de humanidade”, os nazistas passaram a oferecer o mesmo tratamento
que já estava sendo aplicado nos povos do Leste, aos civis ocidentais – e, posteriormente,
até mesmo aos alemães no front interno.

Para Seyss-Inquart, no entanto, o tratamento dispensado aos holandeses era


similar ao de qualquer outro povo em um país ocupado e as medidas restritivas e violentas
eram esperadas em uma política de ocupação: “Havia excessos nas prisões, assim como
nos campos de concentração. Em tempos de guerra, considero isso quase inevitável,
porque os subordinados obtêm poder ilimitado sobre os outros e não podem ser
controlados adequadamente” (BS, 15, p. 659). Todos haviam ouvido coisas terríveis em
Nuremberg, inclusive depoimentos sobre o extermínio vindos de homens como Rudolf
Höss e Otto Ohlendorf, mas, para Seyss-Inquart, esse não foi nem de longe o caso da
Holanda: “é difícil para mim dizer, mas não acho que as condições na Holanda fossem
tão ruins assim” (BS, 15, p. 662).

Inimigos estrangeiros

Ironicamente, é justamente sobre a questão judaica que Seyss-Inquart


demonstra de forma mais explícita seu contínuo alinhamento com a ideologia nacional-
socialista. Ele declara:

Direi abertamente que desde a Primeira Guerra Mundial e o pós-guerra, eu era

60
Direito internacional ou os direitos básicos estendidos a nações estrangeiras ou inimigas.
140

antissemita e fui para a Holanda como tal. Não preciso entrar em detalhes sobre
isso aqui. Já disse tudo isso nos meus discursos e gostaria de encaminhá-los
para vocês. Tive a impressão, que será confirmada em todos os lugares, de que
os judeus, é claro, tinham que ser contra a Alemanha nacional-socialista. Não
houve discussão sobre a questão da culpa no que me dizia respeito. Como chefe
de um território ocupado, tive apenas que lidar com os fatos. Eu tive que
perceber que, particularmente nos círculos judaicos, eu tinha que contar com
resistência, derrotismo e assim por diante. […] Na primavera de 1941,
Heydrich veio até mim na Holanda. […] Ele me disse que os judeus teriam
pelo menos que ser tratados como outros inimigos estrangeiros. […] Admito
francamente que não me opus a esse argumento de Heydrich. Também senti
que isso era necessário em uma guerra que eu considerava absolutamente uma
luta de vida ou morte para o povo alemão. Por isso, em março de 1941, ordenei
que os judeus na Holanda fossem registrados. E, então, as coisas foram passo-
a-passo. Não direi que os resultados finais – no que diz respeito aos Países
Baixos – foram pretendidos assim desde o início; mas decidimos por este
método (BS, 15, p. 666-667).

Nesse passo-a-passo, Seyss-Inquart demonstra claramente como o Holocausto


foi, de fato, um processo de extermínio. Esse ponto será abordado em capítulos
posteriores, sobretudo quando a colonização da Polônia for apresentada na análise dos
casos de Ernst Kaltenbrunner e Hans Frank. Contudo, é válido destacar como, na narrativa
de Seyss-Inquart, de maneira similar ao caso de Rosenberg, existia a perspectiva de que
a Alemanha deveria, sempre, proteger os seus. Os alemães, esse “povo sem fronteiras”
deveria ser preservado, sobretudo com a abolição dos limites territoriais, afinal, “sangue
nórdico seria protegido pelo Reich, mesmo fora do território” (CHAPOUTOT, 2018, p.
266). E, por esse motivo, as palavras Lebensrecht, representando o direito de viver, e
Existenzrecht, representando o direito de existir, tinham tanta importância, e deveriam ser
compreendidas em sua literalidade: “não eram meras expressões, mas as pedras angulares
de um edifício retórico sólido o suficiente para conseguir influenciar intelectuais,
jornalistas, observadores de outros países – e até governos” (CHAPOUTOT, 2018, p.
325–326).

A guerra e a (re)conquista dos territórios da Europa eram uma necessidade


primordial, urgente, vital. O tempo estava acabando para o povo alemão, que há tantos
anos lutava pela sua existência em um mundo que fazia de tudo para destrui-los. Como
vimos no caso de Göring, os nazistas acreditavam estar tomando medidas preventivas, e,
simultaneamente, realinhando o mundo tal como ele deveria ser. Então, nessa visão
particularista, “o outro é uma força hostil, e porque qualquer coisa fora da raça nórdica
quer sua morte, então, tudo é defesa legítima”. Como “o tempo estava se esgotando para
a Alemanha”, parecia evidente que “uma guerra preventiva poderia comprar o tempo de
volta” (CHAPOUTOT, 2018, p. 193).
141

Sendo assim, nos novos territórios que já continham um contingente ariano,


como era o caso da Holanda, o trabalho deveria ser de fortalecer a biologia nórdica ali
existente. Como lembra Chapoutot, “o objetivo da política nazista, sustentada por velhas
obsessões geopolíticas e biológicas, era a ‘salvaguarda’ (Sicherung) da vida germânica e
o crescimento – se possível, crescimento exponencial – da substância biológica que ela
produzia” (CHAPOUTOT, 2018, p. 326). Essa salvaguarda, é claro, estava destinada
apenas para os arianos, já que, de acordo com Himmler, “não há regras para o tratamento
de povos estrangeiros” (CHAPOUTOT, 2018, p. 321). Uma vez que o princípio norteador
da política externa do Reich era o de servir a vida da raça, na ocupação da Europa
Ocidental, a justificativa ideológica não seria diferente. Afinal, a história havia ensinado
que “não era tanto a Alemanha como um Estado que havia sido atacada antes e depois da
Primeira Guerra Mundial, mas sim a Alemanha como um povo. A hostilidade do mundo
não era meramente política, mas, na verdade, biológica”. Por isso, “o espaço que a
Alemanha estava reivindicando era para seu alimento (nourishsment) e sua defesa, uma
necessidade para a vida de sua espécie: ficar sem ele significava morte certa, seja por
fome ou por agressão militar” (CHAPOUTOT, 2018, p. 325).

Os alemães, portanto, precisavam se defender de todos esses perigoso


constantes: era uma luta entre a vida e a morte. Esse argumento, repetido tantas vezes ao
longo do tribunal por tantos nazistas diferentes, também era a perspectiva de Seyss-
Inquart, durante o Terceiro Reich, e ainda em Nuremberg:

Peço ao Tribunal que considere que o motivo mais importante e decisivo para
mim sempre foi o fato de o povo alemão estar engajado em uma luta de vida
ou morte. Hoje, olhando de outra perspectiva, a imagem parece diferente.
Naquela época, se disséssemos a nós mesmos que os judeus seriam mantidos
juntos em algum campo, mesmo que sob condições severas, e que após o fim
da guerra eles encontrariam um assentamento em algum lugar, as dúvidas
causadas por isso deveriam ser deixadas de lado em vista da consideração de
que sua presença na área de batalha poderia enfraquecer o poder de resistência
alemão. (BS, 16, p. 2)

A vida de qualquer povo era menos importante que a vida dos alemães, e a dos
judeus era, de fato, irrelevante. Os judeus, de acordo com o réu, deveriam ser entendidos
como “inimigos estrangeiros”, e, na Holanda, passaram a ser tratados da mesma forma
que os judeus de todo o Reich – o que significa, é claro, o envolvimento de muita
violência, os famosos “excessos” que os nazistas tanto afirmam em Nuremberg. Para
Seyss-Inquart, era “certo” que muitas medidas podem ter ocorrido “com uma dureza que
talvez fosse inevitável, e que poderia até em alguns casos ser considerada excessiva”. A
explicação que ele recebeu de Heydrich, no entanto, sobre os motivos para a evacuação
142

dos judeus da Holanda, era simples: “Ele explicou isso dizendo que a Holanda mais cedo
ou mais tarde seria um teatro de guerra, no qual não se poderia permitir que uma
população tão hostil permanecesse” (BS, 15, pp. 667-668). E, esse foi, mais uma vez, um
argumento de Heydrich que ele não se opôs. Afinal, mesmo tendo apenas um posto
honorário na SS, ao contrário de Heydrich, Seyss-Inquart declara que “estava muito
interessado na SS como uma formação ideológica e política”. E, mesmo que nunca tenha
ouvido falar nada sobre o extermínio, ele sempre esteve de acordo com a linha de
pensamento – e de ação – de “eliminar os judeus da população alemã e enviá-los para
algum lugar no exterior” (BS, 16, p. 20).

Para Seyss-Inquart, tudo isso poderia parecer insensível e brutal, entretanto, a


grande questão era que durante o regime nazista essas noções não eram vistas como tão
absurdas nem mesmo para outros países – e essa é mais uma das tantas contradições
existentes no Julgamento de Nuremberg. Chapoutot reforça que “para muitos no
Ocidente, o discurso nazista não era um estrondo gutural, propagado por ondas de rádio
crepitantes”, e sim “um argumento crível e, se não ganhasse o apoio total de seu público
no exterior, muitos o ouviram com compreensão e com até certa medida de boa vontade”
(CHAPOUTOT, 2018, p. 326). Por esse motivo, para Seyss-Inquart, o “trabalho” que ele
e outros nazistas estavam empreendendo na Holanda não era e nem deveria ser levado ao
nível que estava sendo levado naquele tribunal – e, também por isso, ele não nega sua
atuação e nem sua importância no desenvolvimento dos processos. Afinal, o réu
concordara com os preceitos na época, mas seguia concordando com boa parte deles
mesmo naquele momento do julgamento.

Trivial

O homem que não se declara como um burocrata, e que se sentava no banco


dos réus ao lado de figuras muito mais relevantes do regime nazista do que ele, não
conquistou a absolvição em Nuremberg. Seyss-Inquart, esse personagem quase esquecido
pela memória do pós-guerra, foi sentenciado à morte juntamente com Hermann Göring,
Alfred Rosenberg, Julius Streicher, Wilhelm Keitel e tantos outros. Apesar de sua
aparência simplória e do véu de desimportância de seus discursos, como qualquer outro,
o réu lutou por sua vida e acreditou que iria conseguir escapar da forca. Ao receber seu
veredito, Gilbert conta que “Seyss-Inquart sorriu, mas a falha em sua voz desmentiu a
casualidade de suas palavras”. Sorrindo e dando de ombros, o nazista declara: “Bem,
diante de toda a situação, nunca esperei nada diferente. Está tudo bem”. Em alinhamento
143

com a aparente irrelevância de sua figura, “ele perguntou se eles ainda conseguiriam
tabaco, então se desculpou por ser tão trivial em um momento como este” (GILBERT,
1995, p. 433).

Em Nuremberg, o que prevalece é sua tentativa de aplicar, precisamente, essa


banalidade em seu caso e em suas ações. Olhando retrospectivamente, Seyss-Inquart não
nega seu alinhamento aos preceitos nazistas, não diminui sua atuação com relação às
políticas repressivas e antissemitas na Holanda e tampouco deixa de lado sua participação
na deportação dos judeus nesse território. Entretanto, em sua perspectiva, nada disso lhe
parecia significativo: sua tarefa era similar a de tantos outros e ele a executou da melhor
forma possível por acreditar que estava fazendo o que era certo para o povo alemão. Dessa
forma, Seyss-Inquart admite “sem qualquer hesitação” que seguiu uma “política alemã”,
que ele define como “o resultado de uma luta pela existência por parte do povo alemão,
e essa luta foi liderada pelo Partido nacional-socialista” (BS, 16, pp. 26-27). Nessa luta,
parte de sua tarefa era “promover a política nacional-socialista sempre que possível na
Holanda”, mas que isso não poderia ser imposto na população, uma vez que “não se pode
forçar uma ideologia política a ninguém” (BS, 16, p. 25). Para Gilbert, por outro lado, em
uma de suas poucas declarações, ele apela para a coerção excessiva do regime nazista
como justificativa para sua adesão: “Quando a ideologia fanática é combinada com o
autoritarismo, não há limite para os excessos a que ela pode recorrer – assim como na
Inquisição” (SEYSS-INQUART apud GILBERT, 1995, pp. 186-187).

Por fim, seu caso é mais uma demonstração de como homens medíocres são
capazes de executar tarefas terríveis. De maneira muito similar a Adolf Eichmann, que
tantas vezes afirmou que pessoalmente nunca matou um único judeu, Seyss-Inquart
declara o seguinte sobre o assassinato de membros do movimento de resistência
holandesa:

Eu mesmo nunca pedi um único tiro. Mas gostaria de repetir: se, por exemplo,
eu chamasse a atenção da polícia para o fato de que em qualquer localidade da
Holanda um movimento de resistência ilegal estava causando muitos
problemas, e dei instruções à polícia para investigar o caso, era perfeitamente
óbvio para mim que os líderes do movimento de resistência poderiam ser
presos pela polícia que, com base no decreto do Führer, atiraria neles. Mas
devo repetir: tive que cumprir minha responsabilidade, mesmo diante de uma
situação difícil em que aqueles que eram culpados – isto é, legalmente
culpados, e não moralmente, porque moralmente eu provavelmente teria agido
da mesma forma que eles – esses culpados não foram levados a um tribunal.
(BS, 16, p. 47)

Apesar de não ter dado nenhum tiro, era óbvio para Seyss-Inquart que aquelas
144

pessoas iriam ser assassinadas – e ele não via qualquer problema nisso. Dessa maneira, a
grande diferença entre o seu discurso e o de Eichmann, está, justamente, na reflexão. A
atividade do pensamento se torna tema central na filosofia de Hannah Arendt após o
julgamento do nazista precisamente pelas repercussões do conceito de banalidade do mal,
no qual a autora se opôs a grande parte da tradição literária, teológica e filosófica para
pensar o fenômeno do mal. Esperando encontrar o mal tal como se conhecia até então,
isto é, como algo demoníaco ou fruto da fraqueza ou tentação humanas, no tribunal,
Eichmann se mostrou uma intrigante surpresa. Arendt diz: “aquilo com que defrontei,
entretanto, era inteiramente diferente e, no entanto, inegavelmente factual”, e “o que me
deixou aturdida foi que a conspícua superficialidade do agente tornava impossível rastrear
o mal incontestável de seus atos, em suas raízes ou em seus motivos, em níveis
profundos” (ARENDT, 2019, p. 18). Os atos cometidos por esse agente comum e banal
eram terríveis. Entretanto, em Eichmann, não era possível identificar motivações
ideológicas ou convicções firmes e más, de modo que Arendt conclui que suas ações não
eram fruto de estupidez, mas de irreflexão.

Ainda que sua teoria tenha sido revisitada, inclusive para analisar o caso de
Eichmann, como é o caso da pesquisa de David Cesarani, a grande questão, me parece, é
que, embora a aparente desimportância dos atores aproximem Arthur Seyss-Inquart e
Adolf Eichmann, suas narrativas se diferenciam, sobretudo, pela questão ideológica. Por
esse motivo, não acredito ser possível inclui-lo na categoria de banalidade do mal. Afinal,
Seyss-Inquart não precisava (re)pensar sobre suas ações: ele ainda acreditava que tinha
feito o que era necessário, e, principalmente, o que era correto. Ele não estava meramente
obedecendo às ordens irrefletidamente e nem fazendo apenas o que era esperado de sua
profissão. Também não se enxergava como mais um dentro da máquina burocrática do
regime nazista. Pelo contrário, como ele mesmo diz, Seyss-Inquart não era um
funcionário comum, como outro qualquer. Tampouco era um homem indiferente e
conformado: ele estava amparado na ideologia nacional-socialista, e, por ela, poderia ter
ido além.

Sua lealdade estava no povo alemão, na raça ariana e germânica, e, como


lembra Todorov, “a forte solidariedade entre membros de um grupo [...] facilita a
exclusão de todos aqueles que não fazem parte dele, inimigos exteriores ou interiores”
(TODOROV, 1995, p. 231). Os judeus holandeses eram esses “inimigos estrangeiros”
que deveriam ser eliminados para que o Reich pudesse garantir sua sobrevivência. Na
145

luta entre a vida e a morte, Seyss-Inquart escolheu a morte de outros para que a Alemanha
pudesse viver – e, como um bom defensor fiel, não demonstra arrependimento e nem se
questiona dessa escolha.
146

Capítulo Dois
Diplomatas da velha guarda

Franz von Papen


Konstantin von Neurath

E ele [Rosenberg] me diz inocentemente:


“Não entendo como os alemães chegaram a fazer essas coisas”
Então você sabe o que eu disse a ele?
“Posso entender muito bem!” Eu disse.
“Você e sua filosofia nazista e paganismo e ataques à Igreja e à moralidade
simplesmente destruíram todos os padrões morais”
Não é de admirar que tal barbaridade tenha resultado disso!
Franz von Papen (GILBERT, 1995, p. 129)
147

Neste capítulo irei analisar os diplomatas da velha guarda. Aqui nós temos
homens que participaram ativamente da ascensão e do desenvolvimento do regime nazista
e que não negam sua contínua adesão a muitos de seus princípios. No entanto, eles
gostariam que o nazismo tivesse permanecido “apenas” um regime conservador. Para
esses réus, o movimento tinha bons pressupostos e lutava por questões de fundamental
importância, como a libertação da Alemanha das amarras do Tratado de Versalhes. Hitler,
entretanto, havia “estragado” esse nazismo “inicial” e o transformado em uma ditadura
implacável. A intenção desses diplomatas era ser uma influência moderada dentro do
regime e controlar o Führer, o que se mostrou impossível em virtude de sua personalidade.
Para eles, caso não tivesse desviado de seu rumo, o nacional-socialismo, portanto, teria
sido uma boa ideia com bons resultados.

Para essa categoria temos os casos de Franz von Papen e Konstantin von
Neurath. Os dois trabalharam juntos no gabinete de Papen antes de Adolf Hitler chegar
ao poder e continuaram suas funções, além de assumirem outras, durante o Terceiro
Reich. Ambos vêm de uma longa tradição de elites tradicionais alemãs e usam seus
discursos para defender preceitos nazistas, apresentando-os, todavia, como princípios
meramente conservadores.
148

Franz von Papen (1879-1969)

“A principal acusação contra mim é que fui um oportunista inescrupuloso e que mudei
minhas ideias o mais rapidamente possível assim que os nazistas chegaram ao poder.
Isso não é verdade.”

(GOLDENSOHN, 2005a, p. 222)

Franz von Papen foi chanceler da Alemanha em 1932, vice-chanceler entre


1933 e 1934 e embaixador da Áustria em 1936. Foi julgado em Nuremberg por plano de
conspiração e crimes contra a paz, sendo declarado inocente de ambas as acusações e
libertado em 1946. No ano seguinte, foi reclassificado como criminoso por um tribunal
alemão de desnazificação e condenado à oito anos em um campo de trabalho, sendo, no
entanto, liberado após dois anos. Papen faleceu aos 89 anos, em 1969, tendo passado seus
últimos 20 anos de vida em liberdade.

Sobre a acusação, o diplomata declara:

A acusação me horrorizou por causa (1) da irresponsabilidade com que a


Alemanha foi lançada nesta guerra e da catástrofe mundial e (2) pela
acumulação de crimes que alguns do meu povo cometeram. Este último é
psicologicamente inexplicável. Acredito que o paganismo e os anos de
totalitarismo carregam a principal culpa. Através de ambos, Hitler tornou-se
um mentiroso patológico ao longo dos anos. (PAPEN apud GILBERT, 1995,
149

p. 6)

Esse homem, que nutria simpatia inicialmente não apenas por Hitler, mas
também por Francisco Franco, ditador espanhol (GILBERT, 1995, pp. 282-283), foi
descrito pelo psicólogo Gilbert como um “cavalheiro da velha guarda (gentleman of the
old school)” (GILBERT, 1995, p. 380) e assume desde o começo a postura de um homem
patriota e conservador. Julgando todos os outros nazistas no banco dos réus, Papen não
se reconhece como pertencente à mesma classe que esses homens, afinal, ele não se
enxerga como um nazista. Sua defesa é pautada na ideia de que ele era apenas um
conservador, um homem que se apegava às tradições e que não era necessariamente a
favor de princípios democráticos. Não ser democrata não era um crime, e, por esse
motivo, em sua visão, o nazismo tinha sido uma boa ideia, a princípio.

Papen estava em Nuremberg “para mostrar qual era, tem sido, é e sempre será
minha crença” (PAPEN apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 224) e esta era muito simples:
a Alemanha deveria ser uma grande nação novamente e sair da humilhação imposta pelo
Tratado de Versalhes. No entanto, esse diplomata da velha guarda teve um papel ativo
na destruição da República de Weimar e na ascensão de Adolf Hitler ao poder. Após sua
demissão, ele retorna ao governo e trabalha diretamente para o processo de anexação da
Áustria. Nesse sentido, Papen é o grande exemplo no tribunal da responsabilidade das
elites conservadoras e religiosas na escalada de regimes totalitários. Como lembra
Lukacs, “os principais e numerosos adversários respeitáveis de Hitler eram
tradicionalistas – crentes nos padrões patrióticos, não raro religiosos e, acima de tudo,
morais e nobres de um mundo mais antigo e melhor” (LUKACS, 1998, p. 152). Como
veremos, esse mundo antigo e melhor, para Papen, iria finalmente começar quando a
democracia ruísse.

O golpe final à República

30 de janeiro de 1933 marca a ascensão de Adolf Hitler ao poder como


chanceler da Alemanha e se torna “um calamitoso ponto de virada na história da Europa”
(KERSHAW, 2016, p. 221). Nesse momento, os nazistas estavam em uma queda
eleitoral, a primeira desde sua ascensão em 1929 (KERSHAW, 2016, p. 226). A derrota
em novembro de 1932, última eleição livre do país, veio com espanto, já que meses antes,
em julho de 1932, os nazistas tinham conseguido o maior número de assentos no
Reichstag e 1/3 do eleitorado, representando, 37,4% dos votos (EVANS, 2014a;
KERSHAW, 2016). Como reforça Michael Mann, os nazistas não eram uma maioria,
150

“embora em muitas democracias pudessem ter chegado com isto ao governo”, uma vez
que “tinham um percentual maior do eleitorado, por exemplo, do que os democratas ou
republicanos hoje em dia nos EUA. Na Alemanha, estavam assim autorizados, em termos
constitucionais, na qualidade de maior partido, a tentar formar o próximo governo”
(MANN, 2008, p. 252). Ao contrário do que se pode imaginar, Hitler e os nazistas não
precisaram dar um golpe de Estado, já que a enfraquecida República de Weimar
“consentiu sua própria queda”, nas palavras de Mann: “muitos acabaram dando as boas-
vindas a sua chegada ao poder, poucos os haviam ajudado, mas menos ainda foram os
que lhes impediram o caminho” (MANN, 2008, p. 268).

As elites e líderes dos partidos burgueses apoiaram o “sepultamento da


democracia” – e aqui entra o papel de Franz von Papen. O diplomata foi nomeado como
o novo chanceler do Reich pelo presidente Paul von Hindenburg para suceder a Heinrich
Brüning, que ainda havia tentado frear o avanço do Partido Nazista, sem sucesso. Papen
era amigo pessoal de Hindenburg, um “aristocrata rural” com uma posição “ainda mais à
direita que a de Brüning” e que “representava uma forma de autoritarismo político
católico comum em toda a Europa no início da década de 1930” (EVANS, 2014a, p. 352).
O historiador Richard Evans descreve o governo conservador de Papen em seu período
como chanceler:

A tarefa de que Papen incumbiu-se era voltar atrás na história, não apenas
quanto à democracia de Weimar, mas a tudo que havia acontecido na política
europeia desde a Revolução Francesa, e recriar a base hierárquica da sociedade
no lugar do conflito de classes moderno. Como um pequeno, mas potente
símbolo dessa intenção, ele aboliu o uso da guilhotina – símbolo clássico da
Revolução Francesa – nas execuções em partes da Prússia onde ela havia sido
introduzida no século XIX, e a substituiu pelo instrumento prussiano
tradicional, o machado. Enquanto isso, de uma forma mais prática e imediata,
o governo de Papen começou a estender a repressão à imprensa radical imposta
por seu predecessor também aos jornais democráticos, proibindo publicações
populares da esquerda liberal como o jornal diário social-democrata Avante
duas vezes em poucas semanas, proscrevendo jornais populares da esquerda
liberal como o Berliner Volkszeitung [Jornal Popular de Berlim] em duas
ocasiões distintas, e convencendo os comentaristas liberais de que a liberdade
de imprensa havia sido finalmente abolida. O conservadorismo utópico de
Papen restringiu a justiça às realidades políticas de 1932 (EVANS, 2014a, p.
353).

O gabinete do “conservadorismo utópico de Papen” era conhecido como


“gabinete dos barões”, devido a quantidade excessiva de aristocratas com pouca
experiência ocupando cargos. Seria em 20 de julho de 1932 o seu golpe final contra a
democracia alemã, no evento que ficou conhecido como Preußenschlag, ou o coup d’état
prussiano. Na ocasião, o presidente Hindenburg, a pedido de Papen, o nomeia comissário
151

do Reich, tornando-o o responsável efetivo pelo governo da Prússia, e removendo os


governantes eleitos. O golpe pelo controle da Prússia consolidou o fim da República de
Weimar, “destruiu o princípio federativo e abriu caminho para a centralização geral do
Estado”, em um momento em que não havia qualquer resistência significativa por parte
dos social-democratas, “os principais defensores que sobravam da democracia” (EVANS,
2014a, p. 356).

Papen, então imbuído de plenos poderes, limitou direitos fundamentais por


meio de um decreto, com a proibição de reuniões políticas públicas e com a instauração
da pena de morte para “qualquer um que matasse um oponente na disputa política movido
por raiva ou ódio”. Ainda que seu objetivo fosse limitar a ação dos comunistas, o tiro
acabou saindo pela culatra. Um grupo de camisas-pardas, a tropa de assalto nazista
conhecida com SA, atacaram e assassinaram com extrema violência um dos moradores
de uma fazenda, um simpatizante comunista e polonês, “tornando o incidente tanto racial
quanto político” (EVANS, 2014a, p. 366). Como a ação violava o decreto, Papen levou-
os a julgamento, condenando-os a morte, o que, naturalmente, levou a ira de outros
camisas-pardas que saíram pelas ruas destruindo lojas de judeus e criando um verdadeiro
caos nas cidades.

Após o incidente, Hitler, Hindenburg e Papen tentaram chegar a um acordo que


garantisse maior participação dos nazistas no poder. As negociações não deram a Hitler
o que ele queria, o que fez com que o nazista demonstrasse seu apoio às tropas de assalto
e, ao mesmo tempo, deslegitimasse o poder de Papen. Em um discurso após a tentativa
fracassada de um acordo, Hitler declara:

Camaradas da raça alemã! Qualquer um de vocês que possua qualquer


sentimento pela luta em favor da honra e liberdade da nação entenderá por que
me recuso a participar desse governo. A justiça de von Papen no fim talvez
condene milhares de nacional-socialistas à morte. Alguém pensou que também
poderia colocar meu nome nessa ação agressiva irracional, nesse desafio ao
povo inteiro? Esses cavalheiros estão enganados! Herr von Papen, agora eu sei
o que é sua ‘objetividade’ manchada de sangue! Eu quero a vitória de uma
Alemanha nacionalista, e a aniquilação de seus destruidores e corruptores
marxistas. Não tenho vocação para carrasco de nacionalistas que combatem
pela liberdade do povo alemão! (HITLER apud EVANS, 2014a, p. 366–367)

Os nazistas, com o maior número de assentos no Reichstag, queriam


efetivamente chegar ao poder. Papen e Hindenburg queriam lançar a pá de cal no sistema
parlamentarista. A solução de Papen foi tentar dissolver o Reichstag na próxima vez que
este se reunisse. Seu desejo foi completamente ignorado e demonstrou sua falta de apoio
entre as elites políticas. Novas eleições foram convocadas em novembro daquele ano, e,
152

como mencionado anteriormente, os nazistas perderam eleitores, mas ainda


representavam o maior partido. A atmosfera política levou a Papen a renunciar, abrindo
caminho para Hitler se tornar o novo chanceler em 1933.61 A sociedade alemã parecia
estar em ruínas: “intensificou-se demais a sensação de que uma nação outrora grande
estava agora tomada pela crise, com sua própria existência em perigo, humilhada,
impotente e inapelavelmente dividida”. Nesse tecido social que se “esgarçou” pela
constante pressão, nas palavras de Kershaw, o que restava das “estruturas da democracia
parlamentar capitularam”. O que ficou foi um “vácuo político” que seria prontamente
preenchido pelo Partido Nazista e por Adolf Hitler (KERSHAW, 2016, p. 220–221).

O novo governo nazista contava com muitos dos ministros de Papen, incluindo
o outro diplomata da velha guarda que será analisado neste capítulo, Konstantin von
Neurath, Ministro das Relações Exteriores. Papen seguiu como vice-chanceler e
comissário do Reich, de modo a garantir seu domínio sob a Prússia, e inocentemente
acreditava que Hitler e os nazistas seriam fáceis de controlar. Confiante de que os
conservadores tinham “absorvido” os nazistas, e não o contrário, o diplomata declarou
que “dentro de dois meses teremos apertado Hitler de tal forma que ele cederá” (EVANS,
2014a, p. 378). Como lembra Hannah Arendt, “os negociantes que ajudaram Hitler a
galgar o poder acreditavam ingenuamente estarem apenas apoiando um ditador, um
ditador feito por eles mesmos e que naturalmente governaria em proveito de sua própria
classe e em detrimento de todas as outras” (ARENDT, 1989, p. 290). É claro que essa
ingenuidade logo foi posta à prova, já que Hitler, em apenas seis meses, “estabeleceu seu
domínio total sobre a Alemanha” (KERSHAW, 2016, p. 227), eliminando
sistematicamente toda a oposição, dissolvendo o Reichstag e transformando o Partido
Nazista no único permitido por lei.62 O sistema bismarckiano conservador desejado por
Papen não se consolidou e, no ano seguinte, em agosto de 1934, Adolf Hitler funde os
cargos de chanceler e presidente após a morte de Hindenburg, tornando-se o Führer da
Alemanha com poder total e irrestrito. “Com essa jogada”, aponta Ian Kershaw, “o poder
do Estado e o poder do Führer eram exatamente a mesma coisa” (KERSHAW, 2016, p.

61
Para saber mais sobre o processo de ascensão de Hitler ao poder, conferir o post do Núcleo Brasileiro de
Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/B79MN8FJ7FT/ (Acesso em
14/09/2022)
62
Temos dois posts do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT) que tratam
diretamente das primeiras medidas de Adolf Hitler para assegurar seu controle total. O primeiro é sobre o
incêndio no Reichstag em 23 de fevereiro de 1933 (https://www.instagram.com/p/B9ExaxxFuFm), e o
segundo é sobre as legislações de exclusão social e de plenos poderes para Hitler, em março de 1933
(https://www.instagram.com/p/B9__yWHlnzN/). (Acesso em 14/09/2022)
153

228). Naquele momento não havia mais volta. Era o fim da República e o início do Reich.

Uma nação de segunda categoria

Não havia mais espaço para princípios republicanos no novo Reich e a


democracia estava morta. Franz von Papen, não obstante, não apenas assistiu ao fim da
República, como contribuiu ativamente para sua queda. Em Nuremberg, no entanto, o
diplomata reconhece que a República de Weimar era pautada em um modelo de
democracia que poderia ser boa para a Alemanha, embasada na democracia inglesa.
Contudo, para ele, a Constituição havia dado muitos direitos para o povo alemão, direitos
que “não correspondiam a sua maturidade política”, e, concomitantemente, dado pouca
autoridade para o governo. Nada havia sido feito para direcionar o movimento nacional-
socialista a um “caminho politicamente responsável” (BS, 13, pp. 242,243) e a ascensão
de Hitler ao poder, portanto, foi quase que uma consequência natural desses
acontecimentos.

É válido lembrar que a República de Weimar já estava fragilizada antes mesmo


da crise econômica de 1929. A crise, entretanto, agravou a situação e tornou o terreno
ainda mais fértil para discursos extremistas. A Alemanha já sofria com mais de 1,9 milhão
de desempregados no começo de 1930 e a Europa como um todo enfrentava a
desvalorização monetária, a queda dos preços de produtos agrícolas, a diminuição da
produção industrial e, é claro, o aumento vertiginoso da pobreza (KERSHAW, 2016, p.
211–216). Como aponta Kershaw, “quanto mais abrangente a crise, maior a probabilidade
de mobilização de amplos setores da população pela extrema direita” e, “a crise era mais
generalizada na Alemanha”, que respondeu de forma mais extrema (KERSHAW, 2016,
p. 220). Sobre essa resposta necessária, Papen não tinha dúvidas de que Hitler era a
decisão correta: “ora, quando realmente chegou a hora de formar o governo nazista sob
aquelas circunstâncias complicadas, os principais pontos que vieram à cabeça de todos os
alemães foram os 8 milhões de desempregados, os 12,5 milhões que não estavam
plenamente empregados e as greves” (PAPEN apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 223).
Naquele momento, “a principal preocupação de todos os alemães era encontrar uma
solução para os problemas sociais” (PAPEN apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 223). A
situação era urgente: todo o resto poderia esperar.

Como um homem da velha guarda, Papen tece diversas críticas ao Tratado de


Versalhes, que será abordado com mais profundidade no caso de Neurath. Para Papen, o
154

Tratado havia colocado a Alemanha em um “desconforto moral” e a transformado em


uma “nação de segunda categoria” sem nenhum tipo de soberania. O nazismo era uma
resposta a esses tempos difíceis e Papen gostaria que ele tivesse sido apenas um regime
conservador. Nesse sentido, a acusação estava errada em colocar a culpa nos homens que
permitiram o nazismo chegar ao poder, já que eles não poderiam prever o que o regime
iria se tornar:

Perante o fim criminoso do nacional-socialismo, [a promotoria] transfere toda


a culpa para os primeiros anos de seu desenvolvimento e qualifica de
criminosos todos aqueles que, por motivos puros, tentaram dar ao Movimento
um caráter construtivo e criativo. […] Hoje sabemos que todas essas tentativas
falharam e que um mundo desmoronou em ruínas. Mas é certo, por isso, acusar
milhões de pessoas de crimes por que tentaram obter algo de bom naqueles
dias? (BS, 16, p. 285)

Ainda assim, que ficasse claro: Papen não estava falando em nome do nacional-
socialismo. Sua defesa era “a da outra Alemanha” (BS, 16, p. 241), a Alemanha que
apenas queria ser um país forte novamente. Papen, como muitos outros conservadores,
tinha a esperança de que os nazistas não cumprissem todos os pontos de seu programa
quando chegassem no poder, já que, “na vida política, sempre acontece que um partido
radical – qualquer partido, mas particularmente um partido radical – se chega ao poder e
se torna o responsável [pelo país], tem que eliminar grande parte de seu programa” (BS,
16, p. 339). Inclusive, em sua visão, o programa nazista de 1933 havia sido um “programa
de coalisão”, que buscava “restaurar a unidade espiritual e política de nosso povo” (BS,
16, p. 269). Infelizmente, Hitler era incontrolável e “extraiu seu apoio” da “dinâmica do
Partido”, e, consequentemente, “mudou em um grau cada vez maior de um parceiro de
coalisão pronto para se comprometer para um autocrata que não conhecia concessões”
(BS, 16, p. 290). Mas o que ele poderia fazer, senão permanecer no seu posto?

O que eu poderia fazer? Eu poderia protestar — então, para não ser fuzilado
como traidor na Alemanha, teria de permanecer no exterior. Eu poderia
emigrar. Eu nunca teria feito isso, pois sempre acreditei que se pode trabalhar
melhor no próprio país do que como emigrante. Eu poderia renunciar; então
eu voltaria para a Alemanha e me tornaria um soldado. O melhor, parecia-me,
era ficar onde estava e onde melhor pudesse ajudar minha pátria. (BS, 16, pp.
327-328)

Afinal, “denunciar Hitler significaria simplesmente ser colocado contra a


parede e ser fuzilado, e não teria alterado nada” (PAPEN apud GILBERT, 1995, p. 120).
Para Papen, ficar onde estava, estava pautado em sua convicção de que o nacional-
socialismo não era a pior alternativa naquele momento, pelo contrário: “o programa do
Partido nacional-socialista previa a libertação da Alemanha da discriminação a que fomos
155

submetidos pelo Tratado de Versalhes”, já que os alemães verdadeiramente queriam


“voltar a ser uma grande potência, depois de ser uma nação de segunda categoria” (BS,
16, p. 344). Aliado como estava aos grandes empresários e outros grupos conservadores
da Alemanha, Papen não nega sua adesão inicial: “a construção do governo pelos nazistas
não desagradou ao grupo conservador que eu presidia” e a cooperação entre a iniciativa
privada, a administração e os trabalhadores seria a “solução para os problemas da
Alemanha”. Essa era a perspectiva de Hitler, com a qual ele estava em total acordo – ao
menos inicialmente (PAPEN apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 179).

Um outro ponto de concordância de Papen com o programa nazista era com


relação a Questão Judaica. O diplomata acreditava que os judeus tinham muita influência
na Alemanha, apesar de compreender que essa perspectiva não partia de maneira alguma
de uma questão racial. Para ele, existia um “tipo de monopólio estrangeiro” e uma
“influência esmagadora do elemento judaico nas esferas que formam a opinião pública
da nação, como imprensa, literatura, teatro, cinema e, principalmente, no direito”. Sendo
assim, “não parecia haver dúvida em minha mente de que esse monopólio estrangeiro não
era saudável e que deveria ser remediado de alguma forma” (BS, 16, p. 274).

Para Papen, portanto, os judeus não pertenciam à categoria de “alemão”. Eram


estrangeiros que tinham o monopólio de aspectos fundamentais da vida de uma nação.
Carl Schmitt, cinco anos antes da instauração da obrigatoriedade do uso da estrela amarela
no Reich, já havia sugerido que os trabalhos dos intelectuais judeus deveriam ser
colocados em locais separados nas bibliotecas e que os autores judeus deveriam ter a
palavra “judeu” acrescentada em suas citações. Dessa forma, os autores seriam facilmente
identificáveis e, como para ele, as ideias dos judeus não tinham validade, sobretudo no
campo jurídico, esses trabalhos poderiam ser descreditados rapidamente (CHAPOUTOT,
2018, p. 389). Como apresentado em capítulo anterior, o trabalho dos nazistas era, de
muita maneira, um esforço de prevenção. Identificar os judeus com a estrela de Davi, a
obrigatoriedade do uso de nomes judaicos, o acréscimo da letra “J” em seus passaportes:
todas essas eram tentativas de reconhecer o inimigo com mais facilidade.

Papen, como um conservador, acreditava em todos esses pressupostos:


“certamente havia alguma justiça em enfatizar os pontos positivos de determinada raça,
mas que jamais deveríamos chegar a ponto de combater uma raça devido a certas
qualidades e considerar outra raça melhor” (PAPEN apud GOLDENSOHN, 2005a, p.
223). No entanto, “isso não tinha nada a ver com a questão racial” (BS, 16, p. 274). Era
156

apenas uma “correção” que ele acreditava que “poderia ser feita de maneira normal e
tranquila” (PAPEN apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 181). Sua visão de uma política de
coalisão contemplava até mesmo essas questões mais sensíveis à população alemã. Ao
fim e ao cabo, Papen era apenas mais um homem que concordava com grande parte dos
princípios nazistas, mas rejeitava profundamente ser chamado de nazista: “acredito que
ninguém que me conheça, mesmo entre os cavalheiros sentados comigo neste banco dos
réus, sustentará que eu já fui um nacional-socialista em minha vida” (BS, 16, p. 324).

Um alemão patriota

Uma das ações mais conhecidas de Von Papen, e que ele utilizou em
Nuremberg para comprovar sua resistência ao nacional-socialismo, foi seu discurso de
Marburg em 17 de junho de 1934. Na ocasião, Papen, movido pelo desejo de controlar
Adolf Hitler, realizou um discurso na Universidade de Marburg no qual ele advogou por
uma “política razoável na Alemanha”. O discurso foi passado na íntegra pela sua defesa,
mas Papen explica o seu conteúdo:

Neste discurso, opus-me à exigência de um determinado grupo ou partido por


um monopólio revolucionário ou nacional. Eu me opus à coerção e abuso de
outros. Eu me opus aos esforços anticristãos e à invasão totalitária no domínio
religioso. Opus-me à supressão de todas as críticas. Opus-me ao abuso e à
arregimentação do espírito. Opus-me à violação dos direitos fundamentais e à
desigualdade perante a lei, e também me opus aos princípios bizantinos
seguidos pelo Partido. Ficou claro para mim que se eu conseguisse penetrar,
mesmo que apenas em um ponto, o círculo da ideologia nazista, poderíamos
forçar o sistema a ter ordem e restaurar, por exemplo, a liberdade de
pensamento e expressão. (BS, 16, pp. 291-292)

De acordo com Ian Kershaw, “nunca mais se ouviria no Terceiro Reich uma
crítica tão notável vinda de uma figura proeminente do centro do regime” (KERSHAW,
2010, p. 339). A publicação do discurso foi proibida pelo Ministro da Propaganda Joseph
Goebbels, mas cópias chegaram a ser distribuídas e a notícia se espalhou pela Alemanha
e por outros países. Ainda que suas críticas tenham se voltado para Adolf Hitler, o
discurso de Papen teve efeito oposto ao esperado e “serviu de gatilho para as medidas
brutais” tomadas em seguida pelo regime, sobretudo o expurgo conhecido como Noite
das Facas Longas, que será abordado com mais profundidade em capítulo posterior
(KERSHAW, 2010, p. 339). Papen foi preso durante o expurgo e pediu sua resignação
do cargo de vice-chanceler do Reich. Membros de seu gabinete foram presos e alguns
foram executados pela SA. De acordo com o diplomata, Hitler ainda tentou convencê-lo
a permanecer no cargo, mas Papen foi irredutível e disse ao Führer: “Herr Hitler, não há
explicação nem desculpa para este incidente” (BS, 16, p. 297).
157

Este homem, aparentemente arrependido de seu papel na ascensão de Hitler ao


poder, não permanece resistente por muito tempo. Poucos anos depois, em 1936, Papen
assume o cargo de embaixador da Áustria e, posteriormente, se envolve diretamente com
o processo de anexação do país ao Terceiro Reich, conhecido como Anschluss.63 A
anexação é tema constante nos procedimentos em Nuremberg por ser vista pela
promotoria como um dos princípios do crime de conspiração, conforme determinado pela
Alegação Um. Como mencionado brevemente no caso do defensor fiel Arthur Seyss-
Inquart, a Anschluss é compreendida como uma violação da autodeterminação da Áustria.
No entanto, todos os nazistas em Nuremberg enxergam o processo como justificável e
como a concretização de um desejo não só da Alemanha, mas também da Áustria. De
fato, a união dos países para a criação de uma Grande Alemanha tinha muito apelo
popular desde o século XIX e ambas as populações apoiaram a medida com entusiasmo,
sobretudo por ter sido mais uma expansão do Reich conquistada sem a necessidade de
guerra. A Anschluss foi o último sucesso diplomático que Hitler conseguiu quase sem
esforço e sem auxílio ou intervenção do Ocidente (KERSHAW, 2001).

Para Papen, não havia dúvida: a anexação da Áustria era a questão nacional
mais importante daquele momento de meados dos anos 1930. E, apesar de muitos terem
considerado, tanto na época quanto no tribunal em Nuremberg, que sua atuação na
Anschluss foi fruto de “falta de caráter”, o diplomata tinha convicção de que esta era “uma
questão que o indivíduo deve resolver com sua consciência, sem levar em conta a
compreensão [dos outros] ou a falta dela”. E, sobre isso, estava claro: sua consciência lhe
disse que Papen “deveria fazer tudo para restaurar a ordem nesta questão pelo menos”
(BS, 16, p. 301). Sendo assim, não há contradição em saber (e, no caso de Papen, ter sido
pessoalmente afetado) da violência do Partido em 1934 e retornar ao NSDAP pouco
tempo depois para solucionar a questão austríaca. Sua decisão, no entanto, não foi feita
sem dificuldades: “naturalmente, tive as mais terríveis lutas (struggles) com a
consciência”. Após membros do seu gabinete serem assassinados, ele estava em uma
situação muito difícil. Ainda assim, Papen disse a si mesmo “você ainda tem seu dever
para com a Pátria”. Ele enfatiza, contudo, que isso não foi nada fácil, na realidade, “foi
um conflito terrível!” (PAPEN apud GILBERT, 1995, p. 393).

Ele declara que sua atitude de manter sua lealdade a Hitler “pode parecer

63
Para saber mais sobre a Anschluss, ver o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto
(NEPAT): https://www.instagram.com/p/B9rZVvVDJQ_/ (Acesso em 14/09/2022)
158

surpreendente para quem está de fora, mas não para quem se lembra da atmosfera
histérica daqueles dias, pois naquela época todos os que se opunham ou criticavam o
sistema eram tachados de co-conspiradores” (BS, 16, pp. 417-418). Contudo, Papen não
era fiel a Hitler meramente por medo de represálias:

Com isso quero dizer o seguinte: nunca na história da Alemanha aconteceu de


um grande Partido cujo objetivo era a unidade da Alemanha existisse em
ambas as nações [Alemanha e Áustria]. Esse foi um evento histórico único. E
queria dizer que a força dinâmica desse movimento nos dois países, que
pediam (urging) a unidade, prometia uma solução. (BS, 16, p. 375)

Ainda que Hitler fosse “um mentiroso patológico”, Papen ainda acreditava que
o Führer “queria o melhor para a Alemanha no começo, mas se tornou uma força
irracional do mal com a bajulação de seus seguidores” (PAPEN apud GILBERT, 1995,
p. 29), homens como Himmler, Göring, e até mesmo Ribbentrop. Papen acreditava,
portanto, que havia sido enganado. O diplomata estava assumindo sua parcela de
responsabilidade, sem dúvida, mas queria deixar claro que esta deveria ser partilhada não
somente pelos outros nazistas, como também pelos próprios Aliados. Afinal, se algum
país, como os Estados Unidos, tivesse intervindo mesmo antes do início da Segunda
Guerra Mundial, quando a Alemanha começou a quebrar os princípios do Tratado de
Versalhes, “Hitler não teria sido possível. Toda a história do pós-guerra teria sido
diferente” (PAPEN apud GILBERT, 1995, p. 325). E, nesse sentido, como culpar pessoas
que, como ele, permitiram que esses eventos acontecessem, quando os próprios Aliados
também haviam permitido?

VON PAPEN: […] Mas o que você não sabe é o fato de que eu mesmo
frequentemente disse a Hitler que tal regime não poderia durar; e se me
perguntar, Sir David, por que, apesar de tudo, permaneci a serviço do Reich,
posso dizer apenas que, em 30 de junho, rompi pessoalmente as relações que
tínhamos estabelecido em 30 de janeiro. Daquele dia em diante, cumpri meu
dever, meu dever para com a Alemanha, se você quiser saber. Posso entender
muito bem, Sir David, que depois de todas as coisas que sabemos hoje, depois
dos milhões de assassinatos que ocorreram, você considera o povo alemão uma
nação de criminosos, e que você não pode entender que esta nação tenha seus
patriotas também. Fiz estas coisas para servir o meu país, e gostaria de
acrescentar, Sir David, que até à altura do Acordo de Munique, e até à época
da campanha na Polônia, até as grandes potências tentaram, embora soubessem
tudo o que estava acontecendo na Alemanha, trabalhar com essa Alemanha.
Por que você quer censurar um alemão patriota por agir da mesma forma, e por
esperar da mesma forma, a mesma coisa que todas as grandes potências
esperavam?
SIR DAVID MAXWELL-FYFE: As grandes potências não tiveram seus
funcionários assassinados, um após o outro, e não eram próximos de Hitler
como você. O que estou dizendo a você é que a única razão que poderia tê-lo
mantido a serviço do governo nazista quando você sabia de todos esses crimes
era que você simpatizava com eles e queria continuar com o trabalho dos
nazistas. Isso é o que estou colocando para você – que você tinha esse
conhecimento expresso; você tinha seus próprios amigos, seus próprios
159

funcionários, assassinados ao seu redor. Você tinha o conhecimento detalhado


disso, e a única razão que poderia tê-lo levado e feito você aceitar um trabalho
após o outro dos nazistas era que você simpatizava com o trabalho deles. É
isso que estou colocando contra você, Herr Von Papen.
VON PAPEN: Isso, Sir David, talvez seja a sua opinião; minha opinião é que
sou responsável apenas perante a minha consciência e perante o povo alemão
pela minha decisão de trabalhar para a minha pátria; e eu aceitarei seu veredito
(BS, 16, p, 416).

Portanto, para o diplomata, a Alemanha não era uma nação de criminosos.


Afinal, havia homens como ele, que apenas queriam servir ao seu país. Para Papen, “Sir
David não tem fatos, então ele tem que tentar manchar meu caráter. Eu disse a ele que
tinha que continuar sendo um bom patriota alemão, por mais difícil que fosse fazê-lo”
(PAPEN apud GILBERT, 1995, p. 392). O diplomata, mesmo naquele momento, ainda
estava disposto a se sacrificar pelo seu país: “estou perfeitamente disposto a aceitar meu
ano de prisão como meu sacrifício à causa de expor o regime de Hitler ao povo alemão.
O povo alemão deve ver como foi traído e também deve ajudar a eliminar os últimos
resquícios do nazismo” (PAPEN apud GILBERT, 1995, p. 176). E para que isso
acontecesse, todo o povo deveria ser “totalmente reeducado”, já que “a ideologia nazista
era a própria antítese de tudo o que era moral ou valioso da dignidade do homem”
(PAPEN apud GILBERT, 1995, p. 179).

Uma raposa encurralada

Os outros réus em Nuremberg não ficaram nada satisfeitos com a defesa de


Papen, sobretudo por sua tentativa de se apresentar como alguém que discordava da
ideologia nacional-socialista. Papen, inclusive, tenta se aproximar de Hjalmar Schacht, o
No-man e grande resistente em Nuremberg, que abordaremos em capítulo posterior, para
se inserir entre os homens que resistiram ao nazismo desde o início. Como ele afirma,
“minha linha política diferia imensamente da linha nazista não apenas nos pontos
principais, mas na maioria dos pontos” (PAPEN apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 178).
Arthur Seyss-Inquart corrobora essa visão de Papen. Em seu primeiro interrogatório em
Nuremberg antes do início dos procedimentos, ao ser questionado sobre o papel de Papen
na Anschluss, Seyss-Inquart afirma que o diplomata “não tinha um bom nome com os
verdadeiros nazistas (real nazis)”, e que ele “não era considerado um nazista de verdade,
um nazista 100 por cento (100 percent Nazi)”, algo que foi dito a ele pelos próprios
160

nazistas (RS, Suplemento B, p. 1487).64

Para Hans Frank, por outro lado, “o bom e velho von Papen” era como “uma
raposa encurralada”, que, apesar de ter tentado “fazer o seu melhor como um bom
nacionalista”, ainda assim, de forma incongruente, permaneceu no governo de Hitler.
Afinal, Papen se demitiu. Ele poderia ter se distanciado das questões políticas do Reich e
mantido sua dignidade. No entanto, “ele voltou pensando que poderia fazer algo de bom.
Ele escreveu o drama errado. Ele deveria ter escrito um último ato diferente. Agora
termina como tragédia em vez de uma comédia! Hahahaha!” (FRANK apud GILBERT,
1995, p. 386).

O “último ato” de Papen lhe rendeu a absolvição. No início dos procedimentos


em Nuremberg ele disse a Gilbert: “estou confiante na justiça americana e estou feliz por
ter a verdade trazida à luz por meio deste julgamento. Não é tão importante o que eles
fazem comigo – estou no fim da minha vida. Mas este tribunal tem uma missão superior
de estabelecer a justiça internacional” (PAPEN apud GILBERT, 1995, p. 29). Ainda
assim, Papen parece surpreso com o veredito final de seu caso: “eu tinha esperanças, mas
realmente não esperava por isso” (PAPEN apud GILBERT, 1995, p. 431). Seu último
gesto de solidariedade foi precisamente com o outro membro de sua categoria de
diplomatas da velha guarda, Konstantin von Neurath, que não teve tanta sorte com a
sentença: Neurath foi condenado à 15 anos de prisão. Gilbert conta que após as
deliberações, por compaixão pelo destino de Neurath, Papen lhe entrega uma laranja que
havia guardado do almoço (GILBERT, 1995, p. 431).

Franz von Papen está no centro da história da destruição consciente e desejada


da República de Weimar e da ascensão, se não desejada, no mínimo acolhida, do Partido
Nazista. Ao contrário do que se imagina, o autoritarismo não necessariamente precisa se
impor. Muitas vezes, ele é aceito de bom grado, até mesmo celebrado. O
descontentamento com a estrutura democrática na Alemanha nos anos 1930 era tão
grande entre as elites do “antigo regime” que apoiar Adolf Hitler era quase que um passo

64
As Red Series, que abreviei na citação para RS, possuem 8 volumes e 2 suplementos. Esse documento
contém uma coleção de evidências e documentos preparadas pela equipe de acusação americana e britânica
e apresentadas no tribunal de Nuremberg. No Suplemento B das Red Series, temos os interrogatórios
realizados pela acusação assim que os nazistas foram presos, em 1945. Esses interrogatórios são chamados
de “pre-trial interrogations” e foram realizados sem a presença dos advogados de defesa dos réus. Apesar
de ter lido todos os interrogatórios, que são extensos, escolhi não os analisar na tese para limitar o número
de fontes utilizadas na argumentação.
161

previsível e aparentemente inevitável: “durante pelo menos dois anos, esses nacionalistas
de direita haviam buscado um governo autoritário, sem se mostrar capazes de concretizá-
lo por si mesmos” (MANN, 2008, p. 271). O desejo de poder fez com que homens como
Papen sentenciassem à morte a liberdade coletiva e individual em troca de um pulso firme
para a resolução imediata dos problemas alemães. Como lembra Heloisa Starling, “o
individualismo liberal é incapaz de frear o experimento totalitário” (ARENDT, 2018, p.
17).

Esse foi o caso desse diplomata da velha guarda que, em sua percepção, sempre
havia feito o melhor para seu país, mesmo quando se mostrou conivente, “não tanto com
o golpe nazista quanto com o sepultamento da democracia” (MANN, 2008, p. 271). Sua
atuação é similar à de muitos conservadores que não apenas assistem, como participam
diligentemente na destruição das salvaguardas democráticas, e, não por acaso, essa é
apenas mais uma das muitas referências feitas entre o Brasil contemporâneo e a Alemanha
de Hitler. Os que não respeitam a democracia e as garantias constitucionais correm os
mesmos riscos que as elites de Weimar, como lembrou o ministro do STF Celso Mello
em sua comparação: para ele, os bolsonaristas “desprezam a liberdade e odeiam a
democracia”.65 Que casos como o de Franz von Papen nos deixem em alerta sobre a
fragilidade das linhas que tecem as democracias e nos advirtam dos riscos contínuos de
nossa sociedade enquanto, nas palavras de Hannah Arendt, o totalitarismo, o
autoritarismo e o fascismo, permanecerem parte da corrente subterrânea da história
ocidental (ARENDT, 1989, p. 13).

65
Ver reportagem na íntegra, disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/01/celso-de-
mello-ve-semelhanca-entre-brasil-atual-e-alemanha-nazista-e-diz-que-apoiadores-de-bolsonaro-odeiam-
democracia.ghtml (Acesso em 14/09/2022)
162

Konstantin von Neurath (1873-1956)

“Se eu fosse responsável por cada assassino, por cada alemão assassino que atuava no
exterior, teria muito trabalho a fazer, não teria?”

(BS, 17, p. 35)

Konstantin von Neurath foi o Ministro das Relações Exteriores até 1938 e
governador da Tchecoslováquia ocupada (renomeada para Protetorado do Reich da
Boêmia e Morávia) de 1939 a 1941, ainda que mantivesse o título de Ministro sem
portfólio (minister without portfolio) até 1943.66 Em Nuremberg foi julgado por plano de
conspiração, crimes contra a paz, crimes e guerra e crimes contra a humanidade, sendo
considerado culpado das quatro acusações. No entanto, ao contrário de todos os nazistas
que foram considerados culpados dessas acusações e sentenciados à morte, Neurath foi
condenado à apenas 15 anos de prisão, sendo liberado após um ataque cardíaco em
novembro de 1954, cumprindo apenas 8 anos da sentença. Ele morreu com 83 anos de
idade, passando os últimos dois anos de sua vida em liberdade.

66
O termo “Ministro sem portfólio”, traduzido por vezes como “Ministro sem pasta” é usado com
frequência em Nuremberg e se refere a homens que mantiveram o título de Ministro durante o regime
nazista, mas que deixaram de ter poder de decisão ou de atuação.
163

Com 73 anos, Neurath é o homem mais velho sendo julgado em Nuremberg.


Sobre a acusação, ele simplesmente diz: “sempre fui contra a punição sem possibilidade
de defesa” (NEURATH apud GILBERT, 1995, p. 6). O barão, que já era Ministro das
Relações Exteriores no governo de Papen, se apresenta como um diplomata da velha
guarda por ser um conservador que não se arrepende de sua atuação, e sim dos “excessos”
do regime nazista. Mobilizando diversas vezes o patriotismo, Neurath compreende seu
amor pela Alemanha como princípio norteador não só para as suas ações individuais,
como também para a sua função no Partido e no governo nazista.

Sendo assim, pautado em seu antigo conservadorismo, Neurath acreditava não


ter nenhuma relação com a ascensão de Hitler ao poder, uma vez que diz só ter
permanecido em seu cargo por “desejo urgente” de Hindenburg. E, mesmo naquele
momento, ele já “tinha sérias dúvidas” sobre Hitler, sobretudo pela “impossibilidade de
se formar um governo contra os nacional-socialistas”. Não aceitar o novo governo levaria
inevitavelmente a uma guerra civil, “sobre cujo resultado não poderia haver dúvida em
vista do número esmagador de seguidores de Hitler” (BS, 16, p. 607). Nesse momento
político tão difícil, Hindenburg queria que Neurath permanecesse em seu cargo “para
assegurar a continuação de uma política externa pacífica e impedir que Hitler tomasse as
medidas precipitadas que eram tão possíveis em vista de sua natureza impulsiva”. Seu
papel, resumidamente, seria “agir como um freio” (BS, 16, p. 608). No entanto, Neurath
não somente não utilizou esses freios, como, pelo contrário, acelerou a política
expansionista do Reich e assistiu com entusiasmo a destruição dos princípios do Tratado
de Versalhes e o prelúdio à Segunda Guerra Mundial.

Restauração da soberania

Assim como Franz von Papen, Neurath acreditava que a raiz do nacional-
socialismo e, consequentemente, da Segunda Guerra Mundial, tinha sido o Tratado de
Versalhes. Em sua perspectiva, o Tratado tinha “disposições sem sentido e impossíveis”,
nas quais “o sistema econômico do mundo inteiro foi colocado em um estado de
desordem”. Sendo assim,

Que uma nação grande e amante da honra, discriminada como foi pelo Tratado
de Versalhes, não pudesse suportar isso por muito tempo, era algo que qualquer
estadista perspicaz poderia reconhecer. E não foi apenas na Alemanha que se
apontou repetidas vezes que isso deveria levar a um fim maléfico; mas em
Genebra, o recreio de políticos eloquentes e vaidosos, isso caiu em ouvidos
surdos. (BS, 16, p. 602)
164

O Tratado de Versalhes foi assinado em 28 de junho de 1919 após o armistício


da Primeira Guerra Mundial, no ano anterior. Ele foi elaborado durante a Conferência de
Paris pelos líderes das potências vitoriosas (Estados Unidos, França, Inglaterra e Itália) e
estabeleceu os termos definitivos da paz em meio à nova constituição da Europa após os
conflitos. O novo mundo que emergiu das ruínas da guerra viu surgir dez Estados-Nação
com a dissolução de quatro impérios que existiam antes de 1914: o russo, o otomano, o
austro-húngaro e o alemão. Uma das determinações do Tratado foi a criação da Liga das
Nações, que servia como a garantia das decisões tomadas na Conferência. A Liga deveria
garantir a “segurança coletiva e a paz internacional” em meio a uma enorme crise
humanitária e econômica (KERSHAW, 2016, p. 132).67

Versalhes está no centro da mobilização ideológica do nacional-socialismo por


algumas razões. A primeira delas tem a ver com o princípio de autodeterminação do
Tratado, pautado em uma perspectiva de uma democracia liberal que deveria prevalecer
na Europa, ou seja, o desejo de um “governo por consentimento popular num Estado
fundamentado na soberania popular”. No entanto, naquele momento, a noção de
autodeterminação se chocava com o nacionalismo étnico, que era a base da soberania
nacional, com o problema adicional de que “a maioria dos territórios dos antigos impérios
continha mais de uma nacionalidade que reivindicava território, recursos e representação
política”. A autodeterminação parecia irreconciliável com as diferentes reivindicações de
Estados multiétnicos insurgentes (KERSHAW, 2016, p. 132). Essa questão ficou ainda
mais latente com a nova divisão do mapa europeu, que no fim, não respeitou a
autodeterminação e serviu para beneficiar algumas potências em detrimento de outras. A
Alemanha, declarada culpada da Primeira Guerra Mundial, sofreu com essa perda
territorial: o país perdeu 13% de seu território e todas as suas colônias ultramarinas. Por
fim, o Tratado também proibiu a unificação da Alemanha com a Áustria, que daria voz a
campanha pela Anschluss, como vimos no caso de Papen.

Com o “dedo acusador” apontado para a Alemanha, os líderes das potências


vitoriosas, conhecidos como os Quatro Grandes, também delimitaram os custos da
enorme indenização que o país deveria pagar, definido em 1921 no montante de 132
bilhões de marcos-ouro. Junto com as indenizações, vieram outras restrições que serviram
de combustível para Adolf Hitler alguns anos depois: a principal delas foi a proibição da

67
Sobre o Tratado de Versalhes, conferir o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto
(NEPAT): https://www.instagram.com/p/CB-6cwRFJv5/ (Acesso em 14/09/2022)
165

militarização da Alemanha.68 Os Aliados queriam “garantir que a Alemanha nunca mais


tivesse condições de lançar a Europa em outra guerra” (KERSHAW, 2016, p. 134), ainda
que muitos alemães sequer admitissem a derrota na Primeira Guerra Mundial. Afinal, a
guerra não havia acabado com o país sendo ocupado pelos Aliados e com um rastro de
destruição, pelo contrário: no momento do armistício, a Alemanha ainda ocupava a
Bélgica e Luxemburgo. Com as novas imposições de desmilitarização, “o outrora
poderoso Exército alemão, que ainda conseguira armar 4,5 milhões de homens em 1918,
deveria ser reduzido a nada mais que 100 mil homens, ficando vetado o alistamento
obrigatório” (KERSHAW, 2016, p. 135). A força aérea militar foi proibida, bem como a
existência de submarinos. Tudo isso transformou o Tratado de Versalhes em uma panela
de pressão: para os nazistas, todos os males que destruíram a antiga grande Alemanha
poderiam ser traçados ao momento da assinatura do documento.

Neurath, como um diplomata da velha guarda, acreditou na culpa de Versalhes


e continuou acreditando em Nuremberg. De acordo com o réu, mesmo naquele momento
do julgamento ele ainda não conseguia admitir que existia um desejo de guerra de
agressão por parte da Alemanha, já que “o direito à autodeterminação é uma condição
básica no Estado moderno, reconhecido pelo direito internacional”. Este foi a base do
Tratado de Versalhes, e, portanto, a reabsorção de antigos territórios não pode ser
considerada um crime. Ele afirma que “a união de todos os alemães com base neste
princípio reconhecido era, portanto, um postulado político absolutamente permissível, no
que diz respeito ao direito internacional e à política externa”. Dessa forma, Neurath
entende que o fim de Versalhes era uma demanda justa e válida:

A eliminação dos termos discriminatórios do Tratado de Versalhes, alterando


os termos do Tratado, é o objetivo essencial da política externa alemã, como
também de todos os governos burgueses e social-democratas que precederam
os nacional-socialistas. Não vejo como se possa deduzir qualquer intenção
agressiva se um povo se esforça para se livrar dos ônus de um tratado que
considera injusto, desde que isso seja feito por meios pacíficos. (BS, 16, p.
613)

Neste sentido, o rearmamento também era meramente uma questão política que
não tinha relação com um desejo de guerra: “o rearmamento como tal não envolve
nenhuma ameaça à paz, a menos que se decida usar as armas recém-fabricadas para outros
fins que não a defesa. Não houve tal decisão e nenhuma preparação naquele momento”

68
Para saber mais sobre o processo de remilitarização da Alemanha em 1935, conferir o post do Núcleo
Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/B9zHw2vhJFV/
(Acesso em 14/09/2022)
166

(BS, 16, p. 621). Em sua narrativa, prevalece a perspectiva de que a Alemanha estava,
como sempre esteve, em uma necessidade desesperada de se defender das ameaças –
internas e externas. Como demonstra o historiador Johann Chapoutot, “pior do que uma
necessidade, ou um estado de fato, o Tratado de Versalhes foi um ato ilegal e violento,
infringido à Alemanha em uma traição de todas as promessas, compromissos e princípios
declarados” (CHAPOUTOT, 2018, p. 306). Para os nazistas, as decisões tinham sido
tomadas em portas fechadas pelos Quatro Grandes e o Tratado foi imposto à Alemanha.
Não houve consentimento, e sim em uma coerção, um ato ilegal e ilegítimo. O Tratado
era, na realidade, um diktat. De acordo com o próprio Führer: “Não se pode extorquir a
assinatura de alguém segurando uma pistola na sua cabeça e ameaçando matar milhões
de pessoas de fome e depois proclamar que esse documento, enfeitado com uma
assinatura roubada, é uma lei oficial!” (HITLER apud CHAPOUTOT, 2018, p. 306).
Sendo assim, como ressalta Chapoutot:

Não só o Tratado de Versalhes não era um tratado – e muito menos um tratado


de paz – era algo muito pior: um ato de pirataria diplomática que havia
destruído qualquer possibilidade de uma sociedade universal de nações ou uma
coexistência pacífica dentro de uma comunidade internacional, porque havia
quebrado os últimos laços de confiança e respeito. As nações voltaram a um
estado de natureza: quem, agora, poderia criticar a Alemanha, vítima de
tamanha falta de civilidade e humanidade, por se engajar na pirataria em seu
desejo de corrigir os erros que sofreu? (CHAPOUTOT, 2018, p. 311)

E essa também era a perspectiva de Neurath, que diz que “a restauração da plena
soberania em todas as partes do Reich não teve significado militar, mas apenas político”
(BS, 16, p. 625). Ele acredita que, no início de seu governo, Hitler tinha interesses
pacíficos, “contrariamente às alegações da promotoria, que não ganham precisão pela
repetição” (BS, 16, p. 612). Ele se recorda de um discurso de maio de 1935 em que Hitler
“expôs um plano alemão concreto para a paz”, com apenas uma única condição, que ele
sempre fez em sua carreira política: “o reconhecimento da igualdade de direitos da
Alemanha”. Sendo assim, o Führer “queria provar que a Alemanha, apesar da conclusão
de alianças militares que ela considerava uma ameaça, e nosso próprio rearmamento,
continuava a desejar a paz” (BS, 16, pp. 623-624).

Sobre esse ponto, Neurath não está errado: Hitler usava a retórica69 de

69
Agradeço mais uma vez ao professor Newton Bignotto pelas contribuições na minha banca de defesa,
sobretudo por me lembrar como a ideologia nazista se torna viva através do discurso e como Hitler sabia
utilizar muito bem a retórica – no sentido de comunicação persuasiva. Sobre esse ponto, é válido chamar
atenção novamente para a análise de Pierre Ansart (2019) sobre a importância do discurso na mobilização
das paixões políticas.
167

Versalhes sem deixar claro seus verdadeiros planos porque sabia que a população não
queria uma nova guerra, sobretudo a geração mais velha, como era o caso do diplomata.
Dessa maneira, o entusiasmo com as políticas externas não se traduzia em um entusiasmo
para uma nova guerra, como foi o caso da Primeira Guerra Mundial. E, nesse momento,
a imagem do Führer se torna a de um “estadista, político nacional e líder da Alemanha”,
“um homem de paz, buscando atingir seus objetivos através da habilidade política e não
da força das armas, e construindo um poderio militar como uma arma defensiva e não
agressiva” (KERSHAW, 2001, p. 123).

Neurath, como a maioria dos nazistas em Nuremberg, também havia sido


tocado por essa imagem. No entanto, como argumenta Kershaw, Hitler havia preparado
o caminho diplomático apesar de ele próprio nunca ter tido a visão de uma grande
Alemanha conquistada por meio da paz. Em um discurso de 1938, o Führer declara que
“as circunstâncias me obrigaram a falar durante décadas quase que exclusivamente de
paz” já que “somente através da ênfase contínua no desejo alemão de paz e intenções de
paz foi possível para mim fornecer ao povo alemão os armamentos que sempre foram
necessários como a base para o próximo passo” (KERSHAW, 2001, p. 123–124). Nesse
sentido, Hitler produziu, conscientemente, uma imagem de um líder pacificador e
estadista – e essa imagem foi consciente precisamente porque esses não eram seus planos
desde o princípio. Os sucessos na política internacional apresentaram-se como um forte
instrumento de reintegração política e permaneceram na memória alemã como uma
reafirmação da capacidade do líder nazista de devolver à Alemanha o seu caráter
grandioso (KERSHAW, 2001). Ainda que o consenso e o apoio da população esteja
embasado, em parte, pela má compreensão das verdadeiras intenções de Hitler em relação
à guerra, Kershaw reforça que “a guerra de Hitler foi a guerra da Alemanha” e que até
mesmo os oponentes ideológicos do nacional-socialismo “estavam preparados, por razões
patrióticas e pelo ‘dever à Pátria’ – que agora era difícil distinguir do dever ao Führer –
para permitir que Hitler fizesse a guerra”, ainda que essa guerra fosse tão indesejável
inicialmente (KERSHAW, 2001, p. 144).70

Sendo assim, medidas populares no campo internacional, que era, afinal, o


campo de Neurath, foram fundamentais para o desenvolvimento de Hitler enquanto líder
do Reich. A reocupação da zona desmilitarizada da Renânia em março de 1936 foi uma

70
Esse parágrafo foi retirado e adaptado do artigo que escrevi sobre o caso de Wilhelm Keitel. Ver
VISCONTI, 2020, p. 124.
168

dessas medidas bem-sucedidas do Führer. A região de cinquenta quilômetros na margem


direita do Reno era estratégica para o Reich, sobretudo pela proximidade com a França,
e, de acordo com as determinações de Versalhes, deveria permanecer desmilitarizada. No
entanto, para Neurath, a operação “tinha um caráter puramente defensivo e não pretendia
ter nenhum outro propósito” (BS, 16, p. 628). Em mais uma violação do Tratado de
Versalhes, Hitler, novamente, provou que estava certo: “não houve confronto militar. […]
As democracias ocidentais protestaram, porém nada fizeram além disso. Ele obteve assim
seu maior triunfo até então” (KERSHAW, 2016, p. 267). Neurath, convicto de que
naquela época Hitler sequer pensava em guerra, declara sobre a campanha na Renânia:
“eu considerava a restauração da soberania em todo o Reich um passo em direção à paz
e ao entendimento” (BS, 16, p. 628).

Como aponta Kershaw, essa foi a última oportunidade das grandes potências de
impedirem que Hitler iniciasse a guerra: “caso os franceses tivessem optado por uma
demonstração de força militar, o golpe de prestígio de Hitler o teria enfraquecido bastante
aos olhos dos militares e da opinião pública alemã” (KERSHAW, 2016, p. 267). O que
aconteceu foi precisamente o contrário: a popularidade de Hitler foi às alturas e “o triunfo
nacional misturou-se com o alívio por ter sido alcançado sem derramamento de sangue”
(KERSHAW, 2001, p. 127). O Führer havia colocado um fim à “pirataria diplomática”
de Versalhes e estava assegurando um futuro digno e próspero para a Alemanha.

A política prática

A sequência de sucessos diplomáticos de Hitler foram os primeiros passos para


a Segunda Guerra Mundial. Apesar de a incorporação da Áustria ter ocorrido com certa
tranquilidade, os Sudetos, uma região na fronteira entre a Tchecoslováquia, a Polônia e a
Alemanha, se mostraram um grande problema para o Führer. Além de sua posição
estratégica que poderia garantir a invasão da Polônia, a Tchecoslováquia era uma região
rica em matérias-primas e com forte contingente de armamentos. O motivo mais
mobilizado pela propaganda nazista para a reincorporação dos Sudetos, no entanto, foi a
questão racial: milhares de alemães étnicos viviam naquela região e, portanto, deveriam
ser incorporados ao Reich. A solução diplomática para a crise que se estendeu por todo o
ano de 1938 foi a assinatura do Pacto de Munique, em 29 de setembro. O acordo foi
realizado entre Hitler, Edouard Daladier da França, Benito Mussolini da Itália e Arthur
Chamberlain da Inglaterra – sem a presença de um representante da Tchecoslováquia. A
“política de apaziguamento” das potências democráticas acabou por delimitar, no Pacto
169

de Munique, a entrega dos Sudetos a Adolf Hitler, visando a integração dessas regiões,
anteriormente perdidas no Tratado de Versalhes, ao Reich. Como lembra Ian Kershaw,
“as duas democracias ocidentais [Inglaterra e França] forçaram outra democracia a se
submeter à intimidação de um ditador” (KERSHAW, 2016, p. 338).

A guerra tinha sido evitada momentaneamente – e não por muito tempo. Hitler,
mais uma vez consagrado como um grande estadista, na verdade “estava realmente
furioso por ter sido manobrado em um acordo diplomático da questão” (KERSHAW,
2001, p. 138). Nos primeiros dois meses de 1939, o Führer fez discursos para os oficiais
do exército “reiterando a visão de uma Alemanha como potência dominante na Europa,
a crença em que o problema de espaço vital no leste da Europa precisava ser resolvido e
a convicção de que a força militar tinha que ser usada para se alcançar essas metas”
(EVANS, 2014c, p. 765). Pouco tempo depois, em 15 de março de 1939, Hitler
desrespeita o acordo diplomático de Munique e o exército alemão marcha para o restante
da Tchecoslováquia, tomando Praga e proclamando o Protetorado do Reich da Boêmia e
Morávia, um estado com nome da velha monarquia Habsburgo e que foi governado pelos
nazistas até 1945. Menos de seis meses depois, os nazistas ocupariam Danzig, no corredor
polonês, dando início à Segunda Guerra Mundial. O desejo expansionista de Hitler foi
fundamental para esse processo, mas não seria suficiente caso houvesse alguma
resistência das potências democráticas. Estas, tiveram um papel fundamental na
pavimentação desse caminho sombrio que terminaria com a destruição de boa parte da
Europa na segunda guerra total.71

Konstantin von Neurath foi o homem escolhido por Hitler para ser o protetor
do Reich, ou seja, governador (Reichsprotektor) desse estado da Boêmia e Morávia entre
1939 e 1941. O diplomata foi sucedido por ninguém menos que Reinhard Heydrich, cujos
rumos das ocupações durante a guerra serão abordados durante o caso de Ernst
Kaltenbrunner em capítulo posterior. De acordo com Richard Evans, Neurath e os oficiais
do exército alemão “tentaram seguir um rumo relativamente moderado, manter a
disciplina entre os ocupantes e agir com comedimento em relação aos tchecos. Aos
poucos, porém, a máscara de moderação começou a cair” (EVANS, 2014c, p. 767).
Neurath ordenou a detenção de comunistas, muitos dos quais acabaram em campos de
concentração, substituiu toda a administração por funcionários alemães, e instaurou

71
Os dois últimos parágrafos foram adaptados do post que escrevi para o Núcleo Brasileiro de Estudos de
Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/B9wi7dLFWEt/ (Acesso em 14/09/2022)
170

medidas repressivas e de identificação dos judeus no protetorado, com leis similares às


Leis de Nuremberg.

Sobre essa questão, Neurath afirma que era necessário se reconhecer que o povo
tcheco era “um povo diferente que deveria ser tratado, política e culturalmente, de acordo
com suas próprias características”, de modo que sua autonomia “tinha que ser mantida
dentro de certos limites, ditados pelas necessidades predominantes do Reich como um
todo, especialmente em tempos de guerra” (BS, 17, p. 3). Ele conclui: “o fato de ter sido
meu esforço constante manter o país quieto no interesse do Reich e, com isso, no interesse
de todos, dificilmente pode ser usado contra mim” (BS, 17, pp. 4-5).

Dessa maneira, esse diplomata da velha guarda não revê sua atuação no
Terceiro Reich e nem assume para si qualquer responsabilidade. Como um conservador
vindo de outros governos antes de Hitler, Neurath se enxerga como um ministro
defendendo os direitos da Alemanha – direitos que deveriam, naturalmente, se sobrepor
aos de outros países. Ele ainda acredita que sua influência garantiu que a Tchecoslováquia
não tivesse um fim pior do que de fato teve:

Em primeiro lugar, gostaria de lhe dizer por que permaneci tanto tempo, apesar
de todas essas ocorrências e dificuldades. A razão disso foi que eu estava
convencido, e estou convencido ainda hoje, que eu tinha que ficar o tempo que
eu pudesse conciliar isso com minha consciência, para evitar que este país, que
foi confiado à Alemanha, ficasse sob a dominação definitiva da SS. Tudo o
que aconteceu ao país depois da minha partida em 1941, na verdade, eu havia
impedido com a minha presença; e mesmo que meu trabalho tenha sido tão
limitado, acredito que, permanecendo, não só prestei um serviço ao meu
próprio país, mas também ao povo tcheco, e nas mesmas circunstâncias não
agiria de maneira diferente ainda hoje.
Além disso, eu acreditava que em tempos de guerra, especialmente, eu deveria
deixar um cargo tão difícil e responsável apenas em caso de extrema
necessidade. A tripulação de um navio não desce ao convés e cruza as mãos
no colo se o navio estiver em perigo.
Que eu não pude atender 100% aos desejos dos tchecos é algo que será
entendido por todos que tiveram que lidar com a política de maneira prática e
não meramente teórica. E assim acredito que, com minha perseverança no
cargo, evitei grande parte da miséria que se abateu sobre o povo tcheco depois
que saí. Esta opinião foi também partilhada por um grande número da
população checa, como pude depreender das numerosas cartas que me foram
dirigidas pelo povo tcheco mais tarde (BS, 17, p. 16).

Para Neurath, sua atuação na Tchecoslováquia era, portanto, uma tarefa de


assimilação. Infelizmente, quando ele percebe que essa assimilação iria demorar gerações
para ocorrer completamente – e, como vimos, a Alemanha estava correndo contra o tempo
-, Neurath tentou “cooperar para que houvesse paz e ordem”. Ele não queria “fazer os
tchecos desaparecerem como nação”, e sim, incorporá-los “mais intimamente ao Reich,
171

e é isso que quero dizer com a palavra ‘assimilar’”. E que não se esqueça que “do ponto
de vista racial – se você quiser usar essa expressão desagradável – havia um número
extraordinariamente grande de alemães na Tchecoslováquia” (BS, 17, pp. 63-64). O
diplomata, por isso, está plenamente de acordo com a ideologia nazista: o destino da
Alemanha, que havia sido injustamente estabelecido pelo Tratado de Versalhes, era uma
violação das leis mais básicas da natureza. Devia-se sempre pensar nos alemães, estejam
eles onde estiverem, já que todos fazem parte dessa “expressão desagradável”, nas
palavras de Neurath: a raça ariana. Como lembra Chapoutot, “os alemães haviam sido
‘perseguidos’ em todos os estados criados por Versalhes, nos quais se travava uma
‘guerra’ sistemática contra a ‘escola e língua materna’ alemã, com o objetivo explícito de
‘des-germanificação’” (CHAPOUTOT, 2018, p. 287).

A Tchecoslováquia foi o primeiro passo do projeto de colonização nazista e


Neurath não só participou de todo esse desenvolvimento, como acreditava não existir
nada de errado nem no processo nem em sua justificativa ideológica. Afinal, mesmo
quando ele discordava de alguma medida – e nunca se ouviu falar de “que todo ministro
do gabinete deve deixar o gabinete se ele não concordar com uma coisa em particular” -,
isso não tornava essa medida uma violação de princípios: “era uma medida política, mas
não imoral” (BS, 17, p. 27).

Um freio

O caso de Neurath mostra como, no pós-guerra, uma vez que ser chamado de
nazista se torna um insulto, os nazistas, para se reintegrarem na sociedade, enxergam a
necessidade de abandonar essa terminologia. Isso não significa que houve uma quebra na
adesão ideológica, pelo contrário. Homens como Neurath não negam seu contínuo
alinhamento com boa parte dos preceitos do regime nazista. No entanto, há uma tentativa
discursiva de apresentar esses princípios como crenças meramente conservadoras, nada
relacionadas ao extremismo e à violência nacional-socialista. Afinal, ser conservador não
era um crime, mas ser nazista era – ao menos, naquele momento em Nuremberg.

E, nesse sentido, Hitler também ocupava esse lugar contraditório: um homem


extremamente autoritário, mas que talvez pudesse ser controlado por esses senhores
conservadores. Neurath explica que Hitler tinha um “temperamento volátil (excitable)”,
que com frequência “se deixava levar” e dava “passos precipitados” que poderiam pôr a
“paz em perigo”. Por isso, ele deveria agir como esse freio, e ele acreditava que, aos
172

poucos, o extremismo de Hitler iria se esvanecer. Para o barão, servir a esse homem tão
difícil após a morte de Hindenburg era justamente um esforço pela paz:

Como eles [a promotoria] podem me censurar por isso é completamente


inexplicável para mim. Eu nunca pertenci a um partido; nunca jurei fidelidade
a programas partidários, e também nunca jurei fidelidade a líderes partidários.
Servi sob o governo imperial, fui convidado a reentrar no serviço diplomático
pelo governo socialista sob Ebert, e fui nomeado ministro e embaixador por
ele. Servi sob governos democratas, liberais e conservadores. Sem me
identificar com seus diversos programas, e muitas vezes em oposição ao
governo partidário da época, persegui apenas os interesses de minha pátria em
cooperação com os demais poderes.
Não havia razão para não tentar fazer o mesmo sob Hitler e o Partido nacional-
socialista. Podia-se pôr em prática as opiniões da oposição com qualquer
perspectiva de sucesso apenas a partir de dentro como membro do Governo. A
liberdade de expressão e o uso da imprensa eram proibidos na Alemanha, ou
pelo menos difíceis. A liberdade pessoal estava ameaçada. Além disso, não é
muito diferente em outros países; refiro-me a essa participação nos governos
de vários partidos […] (BS, 16, p. 610)

Sendo assim, em sua visão, sua atividade política não era diferente da de outros
diplomatas de outros países que serviram a vários governos ao longo dos anos. Hitler não
lhe parecia diferente. Na atualidade, sabemos dos perigos desse tipo de discurso que prega
a isenção partidária e ideológica e que justifica atuações com base no interesse da pátria.
Em Nuremberg, parece que essa segue sendo uma justificativa válida para homens como
Neurath.

O diplomata conta que, aos poucos, foi sendo substituído por Joachim von
Ribbentrop, que, como veremos, era um Yes-man, leal e obediente, e gradativamente
perdeu toda a influência que tinha na política internacional. Ribbentrop passou a fazer o
que Hitler queria e a guerra, que havia sido “a maior estupidez (the greatest piece of
stupidity)” foi inevitável. No entanto, Neurath, como todos os alemães, acreditava que
deveria permanecer no seu posto:

VON NEURATH: […] Abandonar meu cargo em um momento como aquele


seria deserção. Mas, por outro lado, eu acreditava que em uma guerra em que
estava em jogo a existência do povo alemão eu não poderia, como alemão – o
que sou, com total devoção – recusar meus serviços e meus conhecimentos.
Afinal, não era uma questão sobre Hitler ou o regime nazista, mas sim sobre
meu povo e sua existência.
DR. VON LUDINGHAUSEN: Portanto, permanecendo no cargo você não
quis indicar sua aprovação desta guerra, que foi provocada por Hitler?
VON NEURATH: Nunca. Pois era um fato consumado, para o qual eu não
havia contribuído; e eu disse a Hitler minha atitude e minha opinião sobre a
insanidade da guerra com bastante clareza. Mas eu teria me considerado um
traidor dos povos alemão e tcheco se, nesta hora de necessidade, tivesse
abandonado a difícil tarefa que empreendia em benefício e bem-estar de ambos
os povos, desde que pudesse, mesmo em condições restritas, viver à altura da
minha tarefa. Não acredito que qualquer pessoa decente teria agido de forma
diferente, pois, acima de tudo, e além dos desejos pessoais, existe o dever de
173

cada um para com seu próprio povo (BS, 16, pp. 661-662).

Como tantos outros nazistas em Nuremberg, Neurath se enxerga como o


executor de uma tarefa muito difícil, mas extremamente necessária. Para ele, não era
indispensável concordar com Hitler para continuar em seu governo e, menos ainda, para
auxiliar na luta pela existência do povo alemão – e, no caso de Neurath, para garantir
direitos básicos ao povo tcheco. É claro que essa decisão foi tomada a duras penas. Ao
ser questionado se ele havia lutado muito com sua consciência durante sua atuação no
Terceiro Reich, Neurath diz tristemente: “Sim, claro que sim. Não é fácil pertencer a um
governo cujas tendências você não concorda, e pelo qual você será responsabilizado mais
tarde” (BS, 17, pp. 97-98).

Nesse sentido, esse diplomata da velha guarda não é um nazista arrependido, e


sim um conservador frente a condições históricas únicas. Por esse motivo, e com uma
defesa muito similar a de Franz von Papen, Neurath acreditava que conseguiria sair de
Nuremberg com uma decisão favorável. Ao ouvir sua sentença, o barão, desacreditado,
“gaguejou: ‘15 anos!’”. Gilbert conta que “ele mal conseguia falar, mas ficou tocado com
a laranja de von Papen” (GILBERT, 1995, p. 434). Esse foi último gesto de compaixão
entre esses homens conservadores, responsáveis pela ascensão do nazismo e pelo seu
desenvolvimento, mas que buscavam a redenção na moderação de um discurso
tradicionalista.
174

Capítulo Três
Negacionistas relapsos

Ernst Kaltenbrunner
Fritz Sauckel
Walther Funk

Ah, Du lieber Gott!


Você ouviu como ele sentou lá e disse que não sabia de nada?
Ouviu isso, Herr Doktor?
Ele sentou lá e jurou a sangue-frio que não sabia de nenhuma dessas coisas! [...]
Alguém pode acreditar nele? Eu sei que os juízes não acreditam nele!
Hans Frank sobre a defesa de Kaltenbrunner (GILBERT, 1995, pp. 262-263)
175

Nesse capítulo irei adentrar na categoria que denominei como negacionistas


relapsos. Com isso, quero dizer aqueles que negam a participação em qualquer atividade
que possa ser considerada criminosa e alegam total desconhecimento sobre tudo – ou
quase tudo – que diz respeito ao seus próprios trabalhos durante o regime nazista.

É claro que é esperado um certo grau de negação de todos os julgados, afinal,


todos estão lutando pelas suas vidas em um tribunal militar internacional. Alguns temas,
como o conhecimento do extermínio, são negados por praticamente todos os réus em
Nuremberg. No entanto, os negacionistas relapsos chamam atenção pela intensidade da
negação. Nada que aconteceu no Terceiro Reich lhes diz respeito e seus trabalhos,
independentemente da importância ou do grau de inserção na cadeia de comando,
aparecem como atividades quase que irrelevantes. Esses homens, com frequência,
transparecem como ignorantes, bobos – por vezes, até mesmo patéticos.

Nesse arquétipo, irei analisar os casos de Ernst Kaltenbrunner, Walther Funk e


Fritz Sauckel. Como veremos, os três são diferentes em suas negações e por vezes suas
declarações são contraditórias, mas os padrões de narrativa fazem com que eles
pertençam à mesma categoria.
176

Ernst Kaltenbrunner (1903-1946)

“Sou considerado outro Himmler. Eu não sou. Os jornais fazem de mim um criminoso.
Eu nunca matei ninguém.”

(GOLDENSOHN, 2005b, p. 150)

Ernst Kaltenbrunner era um oficial da polícia e chefe do


Reichssicherheitshauptampt (RSHA), escritório principal de segurança do Reich, uma
enorme organização que controlava a polícia, a Gestapo, e os órgãos de segurança e de
administração de 1939 até 1945. A RSHA era responsável pelo serviço de inteligência na
Alemanha e no exterior, envolvendo investigação criminal e monitoramento, mas
também atuando diretamente na repressão dos inimigos durante a guerra. Os temidos
Einsatzgruppen, esquadrões da morte da SS responsáveis pelo extermínio em massa nos
territórios ocupados, também eram controlados pela RSHA. Kaltenbrunner era amigo de
Adolf Eichmann, que ocupava um cargo importante na RSHA, e foi o sucessor de
Reinhard Heydrich, sendo o homem com a patente da SS mais alta no banco dos réus em
Nuremberg. Foi julgado por plano de conspiração, crimes de guerra e crimes contra a
humanidade. Considerado culpado das duas últimas acusações, foi condenado à morte e
enforcado em 16 de outubro de 1946.
177

Kaltenbrunner era um advogado austríaco antissemita que ingressou na SS da


Áustria em 1930. “Esse homem gigantesco, esquelético e com o rosto cheio de cicatrizes”
sofreu uma hemorragia cerebral durante seu período em Nuremberg, ficando por algumas
semanas ausente dos procedimentos (GOLDENSOHN, 2005a, p. 182). Apesar de sua
figura hostil e da importância de seu cargo, Kaltenbrunner, mesmo durante o Terceiro
Reich, parecia uma presença que se sentava “silenciosa e ameaçadoramente no fundo da
sala” (KERSHAW, 2010, p. 931). Por ser o sucessor de Reinhard Heydrich e o
representante efetivo e simbólico da SS no tribunal, ele estava em Nuremberg para
responder, sobretudo, a acusação de crimes contra a humanidade. O caso da acusação
contra o réu gira em torno do processo de extermínio e é perceptível que seu cargo era
tão importante quanto o que seu cargo representava: o Holocausto.

Em sua narrativa, Kaltenbrunner tenta fugir da imagem que ele acredita ter sido
construída pela imprensa e pelo tribunal: a de um monstro sanguinário e sucessor de
Heydrich e Himmler. Isso já fica claro no início dos procedimentos quando o réu dá sua
opinião sobre a acusação: “não me sinto culpado de nenhum crime de guerra, apenas
cumpri meu dever como órgão de inteligência e me recuso a servir de substituto (ersatz)
para Himmler” (KALTENBRUNNER apud GILBERT, 1995, p. 5). Em uma das suas
primeiras declarações no tribunal, Kaltenbrunner afirma que estava “plenamente ciente
da gravidade das acusações contra mim” e que sabia “que o ódio do mundo é dirigido
contra mim; que eu – principalmente porque Himmler, Müller e Pohl72 não estão mais
vivos – devo aqui, sozinho, prestar contas ao mundo e ao tribunal” (BS, 11, p. 242). Essa
narrativa se repete diversas vezes ao longo de seu depoimento, como veremos.

O caso de Kaltenbrunner é notável porque ele é o primeiro réu que nega


absolutamente tudo – razão pela qual ele é representante mais importante dos
negacionistas relapsos. Doutor em direito e ciências políticas, de modo particular,
Kaltenbrunner usa o processo de acusação a seu favor: utiliza muito bem os documentos,
confere as datas, assinaturas e os prazos, e chama testemunhas para provar sua inocência.
Sua defesa se baseia em afirmar que ele não estava presente nas reuniões citadas, que não

72
Heinrich Müller era conhecido como “Gestapo Müller” e foi um membro da SS de alta patente e chefe
da Gestapo durante a Segunda Guerra Mundial. Oswald Pohl é mencionado diversas vezes em Nuremberg
por seu papel na chamada Solução Final. O membro da SS era o administrador do sistema de campos de
concentração nazista e teve seu próprio julgamento em 1947. O caso de Pohl foi o quarto dos treze
julgamentos realizados pelo governo estadunidense e não mediante corte internacional. Nesse julgamento,
Pohl e mais 17 membros da SS encarregados da administração e da parte econômica dos campos e
concentração foram julgados. Para saber mais, ver: PRIEMEL, 2016.
178

havia assumido o cargo na época das acusações, que os carimbos nos documentos
comprovavam que ele não tinha conhecimento de nada, e assim por diante. Quando
apresentadas a ele, a maioria de suas assinaturas são identificadas por ele como falsas, e
a culpa, portanto, seria de seus funcionários que falsificaram sua assinatura sem seu
conhecimento. Todos os documentos, declarações de testemunhas ou declarações que ele
mesmo havia feito, são refutadas como evidências forjadas. Apesar de sua alta patente e
da relevância de seu cargo, Kaltenbrunner se apresenta como um funcionário
completamente ignorante com relação a tudo que envolvia suas funções.

Extremamente diferente de Heydrich

A diferenciação que Kaltenbrunner faz de si mesmo com relação a Himmler e


Heydrich perpassa toda a sua narrativa, como veremos. Ele não apenas não se enxerga
como o representante desses homens, como também não se vê sequer como um
representante da SS. E isso se dava porque, apesar de ter ingressado no movimento nazista
em 1932, Kaltenbrunner afirma que discordava de pontos essenciais do nacional-
socialismo, “e isso é traçado como um fio vermelho” por toda a sua carreira “até os
últimos dias de guerra”. Ele conta que mencionou essa linha divisória para Himmler,
juntamente com todos os seus pontos de discordância, a saber: a política interna e externa
do Reich, a ideologia e as violações das leis pelo governo. Para Kaltenbrunner, a
administração do Reich era muito centralizada e sua perspectiva estava influenciada pela
forma como o nacional-socialismo estava se desenvolvendo de maneira mais “branda” na
Áustria, país de seu nascimento. Ele entende que até mesmo questões fundamentais, como
o antissemitismo, eram diferentes em terras austríacas, e que ele havia explicado a
Himmler que naquele país a política com relação aos judeus era pacífica e de emigração.
E, nesse sentido, “qualquer perseguição pessoal ou física aos judeus era completamente
desnecessária” (BS, 11, pp. 238-239).

Como alguém que se recusava a ser associado a Heydrich, Kaltenbrunner


também reforça que seu trabalho não tinha relação com a polícia, e sim, com serviços de
inteligência – e, por isso, ele também não tinha responsabilidade sobre a SS, a despeito
de sua alta patente na organização. Ele conclui dizendo que:

Eu também disse [a Himmler] que eu não era apenas extremamente diferente


de Heydrich pessoalmente, mas que também existiam diferenças materiais na
medida em que Heydrich era um especialista em assuntos policiais, enquanto
eu não era, e que a política com a qual ele, Himmler e Heydrich já haviam
desacreditado o Reich, não podia ser continuada por mim. Meu nome, minha
179

honra e minha família eram sagrados demais para mim para isso. (BS, 11, pp.
238-239)

É válido mencionar que Kaltenbrunner foi apontado como o sucessor de


Heydrich após ele ter sido assassinado em Praga, na Tchecoslováquia. A operação,
conhecida como Operação Antropoide, ocorreu em 27 de maio de 1942 e foi elaborada
por uma organização de inteligência britânica que recrutou exilados para a execução da
tarefa. Heydrich foi atingido por uma explosão e por dois tiros e, mesmo tendo sido
levado para o hospital, faleceu em virtude da gravidade dos ferimentos em 4 de junho.
Hitler ordenou a represália dos culpados, levando à prisão e morte de milhares de pessoas,
incluindo os responsáveis pelo atentado.73 Kaltenbrunner ficou sob responsabilidade de
Himmler por esse breve período após a morte de Heydrich e, no ano seguinte, em 1943,
se tornou o chefe da RSHA, estando abaixo apenas de Himmler na cadeia de comando da
SS.

Sua recusa de associação com Heydrich não é por acaso. Seu predecessor era
temido por muitos, um homem “insensível, frio, eficiente, com fome de poder e
plenamente convencido de que os fins justificam os meios” (EVANS, 2014c, p. 75).
Heydrich foi o fundador da SD (Sicherheitdienst), e um dos responsáveis pela dissolução
da SA na Noite das Facas Longas, que abordaremos com mais profundidade em capítulo
posterior. A SD era o setor primário do serviço de inteligência da SS, que passou a ser
administrado pela RSHA em 1939, e tinha o objetivo de vigiar todos os membros da SS
e do Partido Nazista. Ou seja, era um serviço de vigilância dentro “das próprias fileiras”
do NSDAP que também atuava de forma militante na luta política do nazismo pela
conquista do poder (INGRAO, 2015, p. 124). Um dos seus membros mais importantes é
Otto Ohlendorf, presente em Nuremberg como testemunha da acusação, e um dos
intelectuais nazistas analisados por Christian Ingrao em Crer e Destruir. Lado a lado, SD
e RSHA buscavam lutar contra os inimigos do Reich, o que significa “definir o inimigo
e recolher informações para tentar neutralizá-lo” (INGRAO, 2015, p. 134), inimigo este
entendido no sentido amplo do termo, como “o adversário das substâncias étnica, racial
e espiritual de nosso povo” (INGRAO, 2015, p. 135–136).

Heydrich consolidou as forças policiais nazistas e participou da organização

73
Esse trecho foi adaptado do post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT),
disponível em: https://www.instagram.com/p/CAsheFMle8z/ (Acesso em 15/09/2022)
180

da Noite dos Cristais,74 tendo posteriormente um papel ativo na execução do Holocausto.


Portanto, além de influente e muito importante dentro da cadeia de comando nazista, era
também diretamente responsável por políticas de segregação e extermínio, questões
muito sensíveis no Julgamento de Nuremberg. Kaltenbrunner sabia que precisava se
distanciar o máximo possível do cargo que ocupava, mas, mais ainda, da figura que
ocupava o cargo anteriormente. Heydrich, para Kaltenbrunner, era “terrivelmente
ambicioso” com um desejo “imensurável” de poder (KALTENBRUNNER apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 142) e seu apelido, “o carrasco” lhe parecia verdadeiramente
apropriado.

Apesar de se identificar como o anti-Heydrich, como a acusação reforça, essa


linha divisória de Kaltenbrunner e toda a discordância que ela implicava não foram
apresentadas para o mundo exterior durante sua atuação no Terceiro Reich. Sobre isso, o
réu declara que acreditava, erroneamente, “poder contar com as palavras do meu então
superior”. Ele reforça que era apenas nominalmente o chefe do RSHA, mas que as
diretrizes e ordens de Himmler eram assuntos da polícia do Estado nazista. Ele diz que
infelizmente, essas ordens, muitas vezes eram assinadas em nome do RSHA sem o seu
conhecimento. Por exemplo, “as atribuições especiais que haviam sido dadas a
Heydrich”, como “a tarefa relativa à Solução Final do problema judaico” eram
desconhecidas por ele e, portanto, não carregam sua responsabilidade. Kaltenbrunner
admite que, lamentavelmente, não havia deixado claro que as ordens da polícia não
deviam levar seu nome e, sua responsabilidade, então, residia na sua inocência: “que eu
não me preocupei suficientemente com isso é culpa de Himmler, mas provavelmente
também minha” (BS, 11, p. 241).

Kaltenbrunner declara veementemente, no entanto, que nem mesmo sua relação


com Himmler era próxima ou sequer amigável. O réu afirma que classificá-la dessa forma
era “totalmente errado”, uma vez que, “assim como todos os funcionários” ele tinha sido
“tratado por ele de uma maneira extremamente fria e reservada. Ele não era um homem
que poderia entrar em relacionamento pessoal com qualquer pessoa” (BS, 11, p. 305).

74
A Noite dos Cristais foi um pogrom que ocorreu entre 9 e 10 de novembro de 1938, no qual lojas e
estabelecimentos judeus foram destruídos por nazistas. O pogrom foi um passo fundamental para a escalada
da violência antissemita durante o Terceiro Reich. O nome do acontecimento faz referência aos vidros
quebrados nas calçadas após o ataque que depredou cerca de 7 mil estabelecimentos judeus e mais de 250
sinagogas. Centenas de judeus foram mortos e milhares levados para campos de concentração. Para saber
mais sobre o tema, ver o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT):
https://www.instagram.com/p/CWDzGwDMn-1/ (Acesso em 15/09/2022)
181

Enquanto Heydrich era sádico, Himmler era “uma pessoa mesquinha, reles”, que tinha
“prazer em punir os outros, como um professor que bate numa criança com uma vara mais
do que o necessário e sente prazer nisso” (KALTENBRUNNER apud GOLDENSOHN,
2005a, p. 193).

Heinrich Himmler, portanto, representava outro afastamento extremamente


necessário. O chefe da SS, que ingressou no Partido Nazista em 1923, aumentou suas
funções entre 1929 e 1945, transformando a SS em uma enorme organização que atuou
de maneira ativa e sistemática no extermínio. De acordo com Peter Longerich, biógrafo
de Himmler, o nazista tinha uma capacidade “de combinar, de modo muito eficiente,
visão de mundo e política de poder por meio da constante definição de novos objetivos
para a SS” (LONGERICH, 2013, p. 19). A partir de 1943, Himmler se tornou Chefe da
Polícia alemã e Ministro do Interior, passando a supervisionar toda a rede de segurança
nazista, interna e externa. Himmler era o coordenador de uma imensa rede de coerção e
extermínio na Alemanha nazista e, a partir de 1944, era a figura mais poderosa na
hierarquia do Partido. Como lembra Hannah Arendt, ele “demonstrou sua suprema
capacidade de organizar as massas sob o domínio total”, já que partiu “do pressuposto de
que a maioria dos homens não são boêmios, fanáticos, aventureiros, maníacos sexuais,
loucos nem fracassados, mas, acima e antes de tudo, empregados eficazes e bons chefes
de família” (ARENDT, 1989, p. 388).75

De acordo com o historiador Christian Ingrao, a SS pretendia ser a vanguarda


do Terceiro Reich. Ela encarnava “o futuro da Alemanha”, de modo que “o que vale para
a SS valeria amanhã para toda a Alemanha” (INGRAO, 2015, p. 87). Sob a liderança de
Himmler, e constituída sob o embasamento da ideologia nazista, as SS tinham como lema
“minha honra chama-se lealdade”. Essa obediente organização se transformou em
instrumento de terror no regime nazista, atuando, principalmente, na execução do
extermínio dos judeus. Os camisas negras, como eram conhecidos, passaram a englobar
outros órgãos de controle populacional nazista, como a Gestapo e a SD. A SS se tornou
responsável por detectar os inimigos do Estado, pela neutralização da oposição, pelo
policiamento da população e por prover inteligência doméstica e exterior. Ela ainda tinha
seu exército próprio: as Waffen-SS, e as temidas SS-Totenkopfverbände (Unidades da

75
Esse parágrafo foi adaptado do post que escrevi para o Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e
Holocausto (NEPAT), disponível em: https://www.instagram.com/p/CAiN7BIllIY/ (Acesso em
15/09/2022)
182

Caveira), responsáveis pela administração dos campos de concentração e de extermínio.76


A SS por si só era a organização soberana do Reich. Os militares não podiam questionar
as ações da SS ou da polícia, já que ambas deveriam responder apenas a Himmler, que,
por sua vez, respondia apenas ao Führer.

Himmler, como o grande responsável por essa enorme organização era, de fato,
extremamente influente durante o regime nazista. Ele não era, portanto, simplesmente um
funcionário ou um burocrata que se dirigia a uma repartição, mas sim, “alguém que, ao
longo das diversas missões de liderança de que foi incumbido pelo Führer, criou para si
uma forma única de poder”. Ele transformou o comando da SS em “garantia de sua
consciência interna e de seu potencial futuro a sua verdadeira razão de viver”
(LONGERICH, 2013, p. 20). Esse homem, conhecido por suas crenças não
convencionais (como o ocultismo), admirava profundamente o líder do movimento
nazista. Himmler “mantinha um retrato de Hitler na parede se seu escritório e dizem que
em certas ocasiões até mesmo entabulava conversa com ele” (EVANS, 2014a, p. 288).
Mais do que isso, Himmler representava os ideais do nacional-socialismo em sua máxima
potência, sobretudo com relação à política de ocupação no Leste. Em sua perspectiva, “o
nacional-socialismo é uma visão de mundo que abrange todos os domínios da vida”
(HIMMLER apud CHAPOUTOT, 2018, p. 155), e, por isso ele declarou que “tudo o que
nos aproxima da vitória está certo. Tudo o que mantém esses selvagens a nosso serviço
está certo, e está certo que um russo morra em vez de um alemão. Está certo, e podemos
defendê-lo diante de Deus e dos homens” (HIMMLER apud CHAPOUTOT, 2018, p.
374).

Para Himmler, o povo alemão estava à beira da destruição e era imperativo agir
no presente para garantir o futuro. Aquela era uma guerra racial radical, biológica, que
iria finalmente fazer com que a raça nórdica se livrasse de seus inimigos. O líder da SS
sabia que essa era uma tarefa difícil, mas ele tinha a seu dispor muitos argumentos para
convencer seus homens de que o correto era exterminar pessoas aparentemente inocentes.
Uma dessas razões era o simples fato de que, naquele momento, eles tinham Adolf Hitler
para liderá-los. Por isso, ele afirma com paixão que “esse processo tem sido realizado
com consequências, mas sem crueldade. Não estamos atormentando ninguém. Sabemos

76
Esse parágrafo foi adaptado do post que escrevi para o Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e
Holocausto (NEPAT), disponível em: https://www.instagram.com/p/B-kC02jAXib/ (Acesso em
15/09/2022)
183

que lutamos pela nossa existência e pela preservação do nosso sangue nórdico”
(HIMMLER apud CHAPOUTOT, 2018, p. 303). Afinal, de acordo com o próprio Hitler
em sua obra Mein Kampf, “só existe, porém, um direito sagrado e esse direito é, ao mesmo
tempo, um dever dos mais sagrados, consistindo em velar pela pureza racial, para, pela
defesa da parte mais sadia da humanidade, tornar possível um aperfeiçoamento maior da
espécie humana” (HITLER, 2005, p. 306). Esse aperfeiçoamento viria, é claro, do sangue
ariano (LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002).

Apenas uma elite de caráter e de inteligência poderia verdadeiramente entender


que tudo o que o Terceiro Reich fazia era justo e em prol do povo alemão, e essa elite
eram os generais da SS e seus comandantes. Himmler reforçava, no entanto, que esses
homens não eram assassinos. Essa vanguarda estava erradicando um mal para que a
Alemanha pudesse viver, uma atitude, portanto, heroica de sacrifício, para que a nova
geração não precisasse passar por isso. Fazendo uma analogia com o avatar moderno do
herói, Tzvetan Todorov demonstra como um homem da SS deveria ser: “ele deve ser
corajoso, ascético (evitar tanto a corrupção como o álcool) e, cima de tudo, leal, fiel: e, é
claro, bom camarada”. Sendo assim, “como podiam os SS não se sentir os herdeiros da
tradição heroica?” (TODOROV, 1995, p. 233). E Himmler, o homem ideal da SS, era,
consequentemente, o grande representante desse imaginário de heroísmo que precisava
superar inúmeros sacrifícios – dentre eles, a árdua e necessária tarefa de eliminar o
inimigo. De acordo com o nazista:

Quando um de vocês vem me ver e me diz: ‘Eu não posso usar mulheres e
crianças para cavar esta trincheira antitanque. É desumano. Vai matá-los.’ Eu
respondo: ‘Você é o assassino de seu próprio sangue, porque se esta trincheira
não for cavada, soldados alemães – ou seja, filhos de mulheres alemãs – serão
mortos. Esse é o nosso próprio sangue.’ Isto é o que eu gostaria de incutir em
meus SS e o que, acredito, consegui ensiná-los: uma das leis mais sagradas do
futuro é que nosso cuidado, nosso dever, é nosso povo, nosso sangue. Isso é o
que devemos sonhar e pensar, é para isso que devemos trabalhar, e nada mais.
Todo o resto não é nada para nós (HIMMLER apud CHAPOUTOT, 2018, p.
351–352, grifos meus).

Os nomes Reinhard Heydrich e Heinrich Himmler, portanto, representavam e


simbolizavam todo o horror do Terceiro Reich. Como demonstra Ian Kershaw, os dois
foram os grandes responsáveis pelo desenvolvimento da Solução Final na Polônia, sendo,
por vezes, mais extremos do que o próprio Hitler (KERSHAW, 2009, p. 62). Ao lado de
Adolf Eichmann, esses homens são o rosto do extermínio e uma metonímia de toda a
história de perseguição dos judeus (CESARANI, 2007). Em suas perspectivas, a Polônia
ocupada deveria passar por uma reordenação racial, e, já em setembro de 1939, Heydrich
184

teria dito que “queremos proteger a gente comum, mas os aristocratas, os poloneses e os
judeus devem ser mortos” (HEYDRICH apud EVANS, 2014b, p. 37). O processo se
iniciou em Wartheland, a maior das três áreas da Polônia ocidental ocupada pelo Reich.
Wartheland, que foi o berço das primeiras maiores deportações, abarcava Lódz, o
primeiro grande gueto, e teve as primeiras operações de gás em caminhões em Chelmno.
Ainda que Kershaw destaque a importância do papel de funcionários nazistas a nível
regional, como Arthur Greiser, governador da província de Wartheland, o processo de
extermínio foi encabeçado majoritariamente por Heydrich, Himmler, e também, Hans
Frank, cujo caso analisaremos em outro capítulo (EVANS, 2014b; KERSHAW, 2009).

Como Kaltenbrunner poderia se defender desse terrível legado? Apenas


negando todo e qualquer envolvimento com esses homens. Como Himmler havia tomado
para si todo o poder executivo da RSHA após a morte de Heydrich, as pessoas diretamente
responsáveis pelo extermínio estavam, por conseguinte, mortas ou desaparecidas. Para o
psicólogo Gilbert ele afirma categoricamente: “os campos de concentração não eram
minha responsabilidade. Nunca soube de nada disso” (KALTENBRUNNER apud
GILBERT, 1995, p. 175). Afinal, ele não havia dado e tampouco executado as ordens.
Gilbert e a acusação “não tem ideia de como essas coisas foram mantidas em segredo”
até mesmo dele, o chefe da RSHA (KALTENBRUNNER apud GILBERT, 1995, p. 255).
Kaltenbrunner declara que só havia tomado conhecimento de Auschwitz em novembro
de 1943, esse campo que estava em completo sigilo, de modo que “as declarações não
apenas dos réus, mas de qualquer outra pessoa a quem os americanos pudessem perguntar
‘você sabe sobre isso?’ e respostas negativas devem ser acreditadas” (BS, 11, p. 273).
Fazendo uma referência a um termo que em um futuro breve seria muito importante na
história contemporânea, Kaltenbrunner diz que “Himmler e sua organização mantiveram
os campos de concentração atrás de uma cortina de ferro”77 (BS, 11, pp. 315-316). E nem
mesmo ele tinha acesso ao outro lado dessa cortina.

Defendendo a veracidade

As negações de Kaltenbrunner desafiaram o sentido lógico e fizeram com que


todos no tribunal perdessem a paciência em diversos momentos, incluindo seus colegas

77
O termo “cortina de ferro” é utilizado para se referir à divisão da Europa em duas áreas de influência
política e econômica durante a Guerra Fria: o lado Ocidental, democrático, e o lado Oriental, comunista. O
conceito aparece pela primeira vez em um discurso do primeiro-ministro britânico da época, Winston
Churchill, no qual ele afirma que os países europeus sob influência da União Soviética estavam escondidos
atrás de uma implacável cortina de ferro.
185

nazistas no banco dos réus. Hans Fritzsche, por exemplo, um ex-nazista arrependido, se
diz surpreso que o advogado de defesa de Kaltenbrunner tenha permitido que ele seguisse
essa linha de narrativa negacionista, já que o nazista estava “tentando se apresentar como
alguém que não poderia machucar uma mosca” (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p.
256). Ele reitera, indignado: “pelo amor de Deus, alguém pode acreditar que ele não sabia
de nada sobre nada? E que ele discordava seriamente de Himmler mesmo em 1943?”.
Afinal, se isso fosse verdade, Kaltenbrunner “nunca teria durado até o final da guerra.
Eles o teriam liquidado em um minuto” (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 258).
Hans Frank, incrédulo, declara: “bem, parece que eu sou o único culpado no banco dos
réus! Todo mundo é tão inocente!” (FRANK apud GILBERT, 1995, 257).

Havia um consenso entre os julgados de que Kaltenbrunner estava mentindo,


de modo que Hjalmar Schacht se questiona: “qual é a utilidade de rodeios sobre se ele
assinou esta ou aquela ordem, ou se um subordinado assinou para ele e mostrou a ele? É
responsabilidade dele saber o que está acontecendo” (SCHACHT apud GILBERT, 1995,
p. 256). Ele segue afirmando que se fosse um juiz, estaria “envergonhado” dessa atitude
do nazista. Afinal, “como pode um homem mentir sob juramento assim? Não tenho a
menor dúvida de que os juízes não acreditam nele. Nem eu. Nem ninguém”. Uma
alternativa válida de defesa, na visão de Schacht, seria uma admissão de culpa da parte
de Kaltenbrunner. Ele poderia dizer que assinou documentos sem prestar atenção e que
mesmo que não soubesse de determinadas coisas, era seu dever e sua obrigação saber, e
que, portanto, deveria assumir essa responsabilidade. Isso, “poderia ser compreensível.
Mas essas negações e mentiras! Realmente isso nos deixa muito desconfortáveis porque
lança uma sombra sobre todos nós” (SCHACHT apud GILBERT, 1995, p. 262). Albert
Speer concorda com essa avaliação de Schacht. Ele afirma que a postura de Kaltenbrunner
prejudicava ainda mais o caso dos nazistas de maneira geral, especialmente os nazistas
membros da SS “porque toda a sua tradição era a lealdade a seus superiores, que deveriam
assumir a responsabilidade por quaisquer ordens dadas” (SPEER apud GILBERT, 1995,
p. 261).

E o que Kaltenbrunner pensava de sua própria defesa? Ao ser questionado por


Gilbert sobre quando, de fato, ele havia tomado conhecimento dos assassinatos em massa,
o réu declara:

KALTENBRUNNER: Essa é uma pergunta típica americana – você quer


tornar as coisas exatas. Não é tão simples assim. Não posso dizer que descobri
sobre isso em nenhuma data específica; tudo o que posso dizer é que, assim
186

que fiquei sabendo que as coisas não estavam sendo feitas de acordo com a lei
– afinal, sou advogado – protestei com Himmler.
GILBERT: Não deve ter sido um protesto muito eficaz.
KALTENBRUNNER: Vocês americanos, como o Coronel Amen, parecem
pensar que todo o nosso RSHA não passava de uma gangue organizada de
criminosos.
GILBERT: Devo dizer que essa impressão de fato existe.
KALTENBRUNNER: Então como posso me defender contra tal
preconceito? (GILBERT, 1995, pp. 260-261)

Dessa maneira, o réu compreende que estava tendo que se defender não apenas
com relação às suas ações, mas também com relação à visão já estabelecida que ele
acreditava que o tribunal – e o mundo – possuíam de sua figura. Em um momento,
respondendo às questões da acusação, Kaltenbrunner declara com firmeza: “peço-lhe,
senhor, que não me pegue desprevenido e me manobre em uma posição onde eu possa
desmoronar. Eu não vou quebrar (break down). Eu juro a você e jurei que quero ajudá-lo
a estabelecer a verdade” (BS, 11, p. 336). E a verdade, para ele, era apenas uma:
Kaltenbrunner não sabia de absolutamente nada que acontecia na Alemanha até 1943, e,
quando soube, imediatamente interveio e protestou com Himmler. De modo similar a
outros nazistas, o réu acreditava que deveria permanecer em seu cargo para evitar que a
catástrofe fosse ainda maior: “minha consciência não me permitiu deixar minha posição.
Eu achei que era meu dever tomar, pessoalmente, uma posição contra o que era errado”
(BS, 11, pp. 306-307). E por ter plena consciência do que era certo e do que era errado,
ele, pessoalmente, havia colocado um fim na perseguição aos judeus:

KALTENBRUNNER: Imediatamente após tomar conhecimento desse fato,


lutei, como havia feito anteriormente, não apenas contra a Solução Final, mas
também contra esse tipo de tratamento do problema judaico. Por essa razão,
quis explicar como, através do meu serviço de inteligência, tomei
conhecimento de todo o problema judaico e o que fiz contra ele.
PRESIDENTE: Ainda não sabemos o que você fez...
DR. KAUFFMANN: O que você fez? Eu estou lhe perguntando pela última
vez.
KALTENBRUNNER: Para explicar o que fiz, devo explicar como reagi,
assim como tenho que contar o que ouvi sobre isso.
DR. KAUFFMANN: Apenas nos explique suas reações.
KALTENBRUNNER: Primeiro, protestei com Hitler, e no dia seguinte com
Himmler. Eu não apenas chamei a atenção deles para minha atitude pessoal e
minha concepção completamente diferente que eu trouxe da Áustria e para
meus escrúpulos humanitários, mas imediatamente, desde o primeiro dia,
concluí praticamente todos os meus relatórios de situação dizendo exatamente
que não havia qualquer poder hostil que negociasse com um Reich que se
sobrecarregasse com essa culpa. Esses foram os relatórios que apresentei a
Himmler e Hitler, destacando também que o setor de inteligência teria que criar
o ambiente para discussões com o inimigo.
DR. KAUFFMANN: Quando terminou a perseguição aos judeus?
KALTENBRUNNER: Outubro de 1944.
DR. KAUFFMAN: Você quer dizer que isso foi devido à sua intervenção?
KALTENBRUNNER: Estou firmemente convencido de que isso se deve
principalmente à minha intervenção, embora vários outros também tenham
187

trabalhado com o mesmo objetivo. Mas eu não acho que houvesse alguém que
continuasse falando isso nos ouvidos de Himmler toda vez que ele o
encontrava ou que houvesse alguém que tivesse falado tão aberta e
francamente e com tanta abnegação a Hitler como eu fiz. (BS, 11, pp. 274-276)

De forma ambígua, portanto, Kaltenbrunner se apresenta como um negacionista


e um resistente. Não havia ninguém nesse Reich criminoso que “se expôs mais nesta
questão a favor de outra solução”. Se os dados de Eichmann, seu amigo e subordinado,
diziam que entre 4 e 5 milhões de judeus haviam sido exterminados, Kaltenbrunner,
simultaneamente, nunca havia ouvido tais dados, mas, quando ouviu, questionou
Himmler com firmeza. Himmler, por outro lado, negou tudo, ainda que Kaltenbrunner
soubesse que ele estava mentindo. Não há explicação lógica para sua linha de defesa nesse
sentido e a acusação chama sua atenção para essa incoerência argumentativa. No entanto,
ao fim e ao cabo, seu lado negacionista se sobressai mais do que qualquer outra faceta
que ele poderia ter:

COL. AMEN: Você tinha algum conhecimento pessoal ou algo pessoal a ver
com alguma das atrocidades que ocorreram em campos de concentração
durante a guerra?
KALTENBRUNNER: Não.
COL. AMEN: E, portanto, você não assume nenhuma responsabilidade
perante este Tribunal por tais atrocidades? Isso está correto?
KALTENBRUNNER: Não, eu não assumo nenhuma responsabilidade a esse
respeito.
COL. AMEN: E, nessa conexão, tal testemunho como foi dado aqui, por
Hollriegel por exemplo, que afirma que você testemunhou execuções em
Mauthausen, você nega? Isso está correto?
KALTENBRUNNER: Eu já fui informado ontem sobre o testemunho de
Hollriegel. Considero a declaração de que alguma vez vi uma câmara de gás,
em operação ou em qualquer outro momento, errada e incorreta.
COL. AMEN: Muito bom. Você não tinha nenhum conhecimento pessoal e
não fez nada pessoal sobre o programa de extermínio de judeus; isso está
correto, exceto para se opor a eles?
KALTENBRUNNER: Não, exceto que eu era contra isso. A partir do
momento em que eu soube disso como fatos e me convenci disso, levantei
objeções com Hitler e Himmler, e o resultado final foi que eles foram parados.
COL. AMEN: E, portanto, você não assume nenhuma responsabilidade por
nada feito em conexão com o programa para o extermínio dos judeus, certo?
KALTENBRUNNER: Sim.
COL. AMEN: E a mesma coisa se aplica ao programa de trabalho forçado?
KALTENBRUNNER: Sim.
COL. AMEN: E a mesma coisa se aplica, não é verdade, à destruição do gueto
de Varsóvia?78
KALTENBRUNNER: Sim.
COL. AMEN: E a mesma coisa se aplica à execução de 50 aviadores em

78
O Gueto de Varsóvia foi o maior gueto estabelecido sob população judaica na Alemanha Nazista e
recebeu milhares de judeus durante a guerra, a partir da ocupação da Polônia em 1939. Para saber mais,
conferir o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT):
https://www.instagram.com/p/B_Kq1AcB99r/ (Acesso em 15/09/2022)
188

conexão com Stalag Luft III?79


KALTENBRUNNER: Sim.
COL. AMEN: E a mesma coisa se aplica às várias ordens com respeito ao
abate de aviadores inimigos, correto?
KALTENBRUNNER: Sim.
COL. AMEN: E, na verdade, você fez todas essas mesmas negações no curso
de seus interrogatórios antes deste Julgamento, correto?
KALTENBRUNNER: Sim.
COL. AMEN: E você ainda os faz hoje?
KALTENBRUNNER: Sim. (BS, 11, pp. 318-319)

Esse trecho é apenas uma das dezenas de negações de Kaltenbrunner ao longo


de seu interrogatório. O réu, sempre que questionado sobre sua responsabilidade, não
sabia “nada, como sempre”, nas palavras de Amen. Kaltenbrunner queria se confrontar
com todas as testemunhas que confirmaram seu envolvimento e nega todos os
depoimentos e “todas as outras declarações de todas as outras pessoas”, como pontua o
impaciente Coronel Amen. Para o nazista, essa era a única maneira possível de agir, já
que seu único objetivo no tribunal, em suas palavras, era estabelecer a verdade. Mais de
vinte testemunhas foram ouvidas com relação ao caso de Kaltenbrunner e sua narrativa
se limita a dizer que todas estavam mentindo e que apenas ele dizia a verdade. Para o réu,
todos os documentos apresentados eram falsos ou com assinaturas que foram dadas sem
sua autorização ou seu conhecimento. São levados testemunhos de sobreviventes dos
campos que atestam a sua presença nesses locais, documentos em que ele assina as
execuções e outros que atestam que ele visitava os campos de concentração com
frequência. Ele nega a veracidade de todos os documentos, que não são “nem verdadeiros,
nem falsos”, mas “ridículos, e consequentemente, falsos” (BS, 11, p. 360). O réu usa
continuamente frases de efeito como “sob meu juramento, desejo declarar solenemente
que nem uma única palavra dessas declarações é verdadeira” (BS, 11, p. 325), ou, “eu
não quero que pareça ao Tribunal que eu posso me defender apenas depois de ter
consultado com meu advogado por horas. Eu quero dizer ao promotor na cara dele que
isso não é verdade. E eu faço; de alguma forma eu devo defender minha veracidade” (BS,
11, pp. 341-342).

Kaltenbrunner admite a autenticidade de sua assinatura em poucos documentos,


mas com a condição de que todos compreendessem que isso não significava, de maneira
nenhuma, que ele tinha qualquer conhecimento do que se passava na Alemanha. Como

79
Stammlager Luft III era um dos campos da rede comandada pela Luftwaffe (força aérea alemã) para
detenção dos prisioneiros de guerra das forças aéreas aliadas. Para saber mais, conferir o post do Núcleo
Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/B-HuKn8Dw0J/
(Acesso em 15/09/2022)
189

ele mesmo declara, muitas cartas e papéis podem ter sido submetidos para a sua assinatura
“entre milhares de outros papéis” que ele precisava examinar ao longo de um único dia.
Contudo, a partir disso, não se poderia tirar a conclusão de que ele sabia verdadeiramente
do assunto. Afinal, não se “pode imaginar a extensão das funções oficiais que assumi em
completo desconhecimento do background policial, sem instruções para o desempenho
das funções policiais”. Seu árduo trabalho era apenas o de “organizar e dirigir o vasto
serviço de inteligência” (BS, 11, pp. 366-367), uma tarefa tão difícil que “era quase
impossível para um homem lidar com o trabalho que eu fiz” (BS, 11, p. 321).

De maneira curiosa e muito distinta de outros julgados, Kaltenbrunner, em


alguns momentos, não nega os crimes do regime nazista, apenas sua participação ou
conhecimento deles. Ele afirma que “hoje não há dúvida de que esses crimes foram
cometidos no Leste”, mas o que deveria ser provado era “se eles são de alguma forma
devidos à minha influência, seja intelectual, legislativa ou administrativa, e se eu os
aprovava, e se eu poderia tê-los impedido; tudo isso devo absolutamente negar” (BS, 11,
p. 374). Uma vez que seu interesse no tribunal era o de estabelecer a verdade, ele não
poderia aceitar que mentiras fossem ditas sobre sua participação nesses crimes.
Confrontando a promotoria, Kaltenbrunner declara que “se você fizer acusações falsas
contra mim, devo declarar que são falsas. Não posso dizer ‘sim’ para tudo de que você
me acusa apenas porque a acusação está errada em determinar quem é o representante de
Himmler aqui” (BS, 11, pp. 352-353). Não é possível estabelecer se ele estava se
referindo a algum outro julgado em Nuremberg, todavia, sua posição de culpabilização
de Himmler é tão intensa que não parece que ele via necessidade de culpar mais ninguém.
Nesse sentido, nem mesmo o Führer aparece como culpado em seus discursos. Outros
nomes muito citados em Nuremberg como Joseph Goebbels e Martin Bormann também
não tem relevância para Kaltenbrunner. Himmler era o grande responsável pela tragédia
do Terceiro Reich. E, como ele não era o representante de Himmler ou de Heydrich, como
poderia ser culpado por qualquer coisa?

Nem Heydrich nem Himmler

Ernst Kaltenbrunner tem consciência da relevância de seu caso para a acusação,


e também sabe que o tribunal não o consideraria inocente. Sua função no RSHA era de
fundamental importância e não era necessário muito esforço argumentativo para
confirmar que ele era culpado dos crimes que estava sendo acusado. Não obstante, ao
contrário de Göring, Keitel, Ribbentrop e até mesmo Streicher, que ainda tentavam de
190

alguma forma defender ao menos uma parte do governo nazista, Kaltenbrunner se


apresenta como uma espécie de funcionário burro: alguém que não poderia causar
nenhum dano, uma vez que ele não estava lá, ele não poderia estar lá, seus funcionários
falsificaram sua assinatura, ele não sabia, nunca ouviu falar de nada, e assim por diante.
Sua alegada ignorância é totalmente contrastante com a importância de seu cargo e de sua
patente e, sobretudo, do legado que ele assumiu após a morte de Heydrich.

Apesar de sua aparência ameaçadora, como representante da SS, de Himmler e


de Heydrich em Nuremberg, Kaltenbrunner faz de tudo para se apresentar como um
sujeito inofensivo. Afinal, como ele diz a Goldensohn, “sempre foi assumido que eu sou
Kaltenbrunner, o grande homem mau ao lado de Himmler e o sucessor de Himmler”,
ainda que ele não fosse “o sujeito desagradável e grosseiro que o público provavelmente
pensa por causa de todas as atrocidades cometidas sob o governo de Himmler, e das quais
sou totalmente inocente” (KALTENBRUNNER apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 140).
Como é possível perceber, para o réu, o governo nazista estava verdadeiramente nas mãos
de Himmler e as atrocidades diziam respeito a Himmler. O Führer é uma figura
secundária em sua narrativa. É válido lembrar, no entanto, que Kaltenbrunner foi um dos
nazistas que permaneceu com Adolf Hitler em seu bunker em Berlim até os seus últimos
dias, ao lado de Albert Speer, Karl Dönitz, Joachim von Ribbentrop, Alfred Rosenberg e,
é claro, Heinrich Himmler.

Com o segundo QI mais baixo analisado em Nuremberg, perdendo apenas para


Julius Streicher, o negacionismo de Kaltenbrunner chama atenção para um outro ponto
elementar: neste homem não havia admiração pelo seu Reich derrotado, nem por Hitler,
nem por Himmler, nem pela SS, nem pelo povo ariano. Apesar de seu alto posto na SS,
essa organização pautada na honra e na lealdade e que agia como a vanguarda do
nacional-socialismo, em Kaltenbrunner não se vê nem lealdade nem honra. Ao contrário
de Hermann Göring, com seus valores “medievais” de heroísmo, ou de Joachim von
Ribbentrop, com sua devoção por Adolf Hitler, ou tantos outros réus que defendiam
princípios básicos da ideologia nacional-socialista como a rejeição ao Tratado de
Versalhes e o desejo de união da Grande Alemanha, Kaltenbrunner se destaca pela sua
completa indiferença. O nazismo e o Führer não despertam no réu nenhum sentimento de
fidelidade ou de responsabilidade. Kaltenbrunner não era um burocrata, como Eichmann,
mas, além da presença naquele julgamento, não parece compartilhar nada com seus
companheiros de cela.
191

Sabendo de sua posição no imaginário mundial, ele questiona a Goldensohn se


ele “tinha ficado enojado conosco, criminosos de guerra – particularmente eu, dentre
todos eles o chamado arquicriminoso” (KALTENBRUNNER apud GOLDENSOHN,
2005b, p. 150). Em completa oposição a Rudolf Höss, comandante de Auschwitz ouvido
em Nuremberg como testemunha, que afirma sem rodeios que “nós, homens da SS, não
devíamos pensar nessas coisas; isso nunca nos ocorreu. E, além disso, era algo já dado
como certo que os judeus eram os culpados por tudo” (HÖSS apud GILBERT, 1995, pp.
259-260), Kaltenbrunner apenas usa seu depoimento para negar toda e qualquer relação
com tudo que dizia respeito ao nazismo. Sua ignorância era mais importante do que
qualquer tentativa de colocar alguma integridade e justificativa para suas ações – afinal,
em suas palavras, ele nem sequer agiu. As ordens não eram criminosas se nem sequer
havia ordens a serem obedecidas.

Negar tudo que lhe foi apresentado mostra uma significativa falta de vaidade e
de autovalorização. E isso o difere de muitos julgados que tentam justamente atestar a
importância de seus trabalhos e de suas funções – não nos esqueçamos de Hermann
Göring falando de si próprio como o segundo homem do Reich. Se Göring era o segundo
homem abaixo do Führer, Kaltenbrunner era o segundo homem abaixo de Himmler.
Ambos ocupavam posições muito poderosas. Contudo, de acordo com a narrativa de
Kaltenbrunner, a organização mais importante do Terceiro Reich não era sequer tão
relevante assim. E ele também não era ninguém: o diretor da RSHA era apenas um
homem que era constantemente passado para trás por todos os seus funcionários. Se
Göring se via como alguém que seria uma figura de destaque em qualquer país,
Kaltenbrunner, pelo contrário, era alguém facilmente esquecível, dispensável e
irrelevante. Relapso e negacionista, o não-representante de Himmler permaneceu
indiferente até o fim. Ao ouvir o veredito de seu caso com a já esperada sentença de
morte, Gustave Gilbert destaca que suas mãos entrelaçadas “expressavam o medo que
não transparecia em seu rosto insensível” (GILBERT, 1995, p. 432).
192

Fritz Sauckel (1894-1946)

“Todo mundo seguiu uma regra, uma regra muito rígida, de fazer seu próprio trabalho,
e não interferir ou falar com os outros”

(GOLDENSOHN, 2005b, p. 212)

Fritz Sauckel era Plenipotenciário Geral para o Emprego de Trabalhadores do


Reich de 1942 a 1945, responsável pelos prisioneiros de guerra e pelo trabalho escravo
utilizado pela Alemanha durante o conflito. Foi julgado em Nuremberg pelas quatro
acusações: plano de conspiração, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a
humanidade. Sendo considerado culpado por crimes de guerra e crimes contra a
humanidade, Sauckel foi condenado à morte e enforcado em 16 de outubro de 1946.

Vindo de uma família de marinheiros e pai de dez filhos, Sauckel se considerava


um homem trabalhador, passando boa parte das entrevistas com Leon Goldensohn
buscando mostrar como tinha uma vida simples e sem luxos, “um verdadeiro plebeu, tanto
de origem quanto de estilo de vida” (EVANS, 2014b, p. 399), que não possuía nada, “nem
mesmo um jardim” (SAUCKEL apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 215). Ele ingressou no
193

movimento nazista em seus primórdios, em 1925, e, apesar de ser diretamente


responsável por muitas brutalidades e tratamentos desumanos dispensados aos
prisioneiros de guerra, Sauckel não enxerga como ele teria relação com essas violências,
uma vez que suas tarefas eram muito específicas. Sobre as acusações, ele declara a Gilbert
que “o abismo entre o ideal de comunidade social que eu imaginava e defendia como ex-
marinheiro e trabalhador e os terríveis acontecimentos nos campos de concentração me
abalou profundamente” (SAUCKEL apud GILBERT, 1995, p. 5). Como um
representante da categoria negacionistas relapsos, esse abismo perpassa toda a sua
narrativa.

Sauckel possuía o terceiro QI mais baixo em Nuremberg, perdendo para o outro


representante de sua categoria, Ernst Kaltenbrunner, e para Julius Streicher. No entanto,
ao contrário de Kaltenbrunner, Sauckel ainda possuía alguma fidelidade ao regime nazista
e a Adolf Hitler. O Führer, “o homem escolhido pelo destino para unir a Alemanha”
(SAUCKEL apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 208) lhe despertou admiração desde seu
primeiro encontro, em 1923. A partir deste momento, ele permaneceu um “seguidor
devoto e obediente” (SAUCKEL apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 209) com uma única
tarefa em mente: reconstruir a Alemanha e torná-la uma grande nação novamente. O réu,
marinheiro desde os 15 anos de idade, apesar de desprezar política, se viu na obrigação
de se envolver com os assuntos políticos de seu país devido ao caos que assolava a
Alemanha nos anos 1920. Dessa forma, “as condições me forçaram a assumir uma atitude
definitiva em relação aos problemas políticos. Ninguém na Alemanha naquela época
poderia fazer o contrário”, já que, naquele momento, o país estava “fundamentalmente
mudado e em estado de convulsão, e em grande necessidade espiritual e material” (BS,
14, p. 604).

Sua maior preocupação era com os trabalhadores, e essa acabou sendo a sua
esfera de trabalho, e pela qual estava sendo julgado em Nuremberg. Nesse sentido, para
Sauckel, ele sequer poderia ter alguma relação com o extermínio, uma vez que, dentro de
sua esfera de atuação, tudo o que ele fez foi para manter boas condições para os
trabalhadores estrangeiros. Esses crimes terríveis não eram justificáveis, é claro, mas não
estavam sob sua responsabilidade. Ele declara “eu era como uma agência de marinheiros.
Se eu fornecer mão-de-obra para um navio, não sou responsável por qualquer crueldade
que possa ser praticada a bordo do navio sem meu conhecimento”. Se ele fornecia os
trabalhadores, por ordem de Hitler, não era sua culpa se eles fossem “maltratados mais
194

tarde” (SAUCKEL apud GILBERT, 1995, p. 75). O descompasso entre suas ações e as
consequências de suas ações faz com que sua narrativa se aproxime, por vezes, da de
Adolf Eichmann. Contudo, como ele afirma a Goldensohn, ao contrário de Eichmann, ele
não era um especialista em antissemitismo e, por isso, o psiquiatra conclui que a
consciência de Sauckel estava limpa, “e ele faria novamente tudo o que ele havia feito
porque tudo tinha sido honroso” (GOLDENSOHN, 2005b, p. 205).

Um navio em uma tempestade

O caso de Sauckel era um dos mais óbvios para a promotoria no sentido da


culpabilidade do ator. Seu cargo estava subordinado diretamente a Hitler, mas o réu
trabalhava com Heinrich Himmler e com Albert Speer, com quem posteriormente teve
uma luta pelo poder. A combinação desses três homens garantia que a arregimentação de
trabalhadores para a guerra tivesse o elemento de coerção necessária. Richard Evans
demonstra como Sauckel tinha uma “ficha de nazista linha-dura”, o que “asseguraria ao
Partido que ele não seria mole com os ‘sub-humanos’ eslavos mesmo que o trabalho deles
fosse vital para o esforço de guerra alemão” (EVANS, 2014b, p. 400). Quando o réu
assumiu o cargo, já havia mais de um milhão de trabalhadores poloneses na Alemanha.

Sauckel acredita que seu trabalho era necessário e similar ao de outros países,
e inclusive questiona diversas vezes a Goldensohn: “o que você faria se o bem-estar do
seu país dependesse do trabalho? Quando um navio está em uma tempestade, ele precisa
de um capitão” (SAUCKEL apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 209). Sua justificativa para
empregar trabalhadores do Leste era simplesmente de que “a Rússia não havia aderido à
Convenção de Genebra e, portanto, a Alemanha, por sua vez, não estava vinculada a ela”,
e, sendo assim, “nos países bálticos e em outras regiões, a Rússia soviética também havia
reivindicado trabalhadores ou pessoas, e que, além disso, cerca de 3 milhões de chineses
estavam trabalhando na Rússia soviética” (BS, 14, p. 623).

A Convenção de Genebra de 1929 é mencionada diversas vezes em Nuremberg,


especialmente no caso de Sauckel, por ter sido a convenção que dizia respeito ao
tratamento de prisioneiros de guerra durante a Segunda Guerra Mundial. Sua história vem
de outras convenções, de 1899 e 1907, no entanto, foi durante a Primeira Guerra Mundial
que suas determinações se mostraram insuficientes. As inovações mais importantes da
convenção de 1929 estão na “na proibição de represálias e penas coletivas, na organização
do trabalho dos presos, na designação, pelos presos, de representantes e no controle
195

exercido pelos Poderes protetores”.80 Um dos pontos da convenção também era


regulamentar o trabalho de prisioneiros de guerra, que, de acordo com seus artigos,
deveriam ter boas condições de saúde, receber pelo trabalho realizado e não poderiam
trabalhar com funções relacionadas a guerra.

Obviamente, todas essas regulamentações foram infringidas durante o Terceiro


Reich, e, por conta desses crimes, a convenção foi substituída pela de 1949, que previu
novas regulamentações sobre tortura, experimentação médica e outras formas de
violência. Para Sauckel, no entanto, o emprego de mão-de-obra estrangeira era
“justificável de acordo com os princípios que apliquei e defendi e aos quais também aderi
no meu campo de trabalho. Afinal, eu era alemão e só podia me sentir alemão” (BS, 14,
p. 623). Sabemos, é claro, que o seu “sentimento” de alemão foi o suficiente para
compreender os trabalhadores estrangeiros como dispensáveis e substituíveis. Contudo,
do ponto de vista da guerra, para o réu, a alocação de trabalhadores de outros países era
fundamental e inevitável: “sem essa troca de mão de obra oriental e ocidental, a Alemanha
não poderia existir nem por um dia. O próprio povo alemão estava trabalhando no limite
extremo de sua capacidade” (BS, 15, p. 55).

Sendo assim, de acordo com Sauckel, o trabalho compulsório era feito em


qualquer país e as medidas coercitivas para garantir esse trabalho, em sua percepção,
também estavam dentro do escopo da legalidade. Quando a coerção entrava em um nível
extremo – e aqui estamos falando de vilas sendo queimadas e pessoas sendo assassinadas
a tiros -, a responsabilidade recaía sob as organizações locais. Na visão de Sauckel, essas
medidas extremas estavam “claramente em contradição com as diretivas e instruções que
emiti”, métodos “contra os quais, quando ouvi o mínimo a respeito, tomei medidas muito
severas” (BS, 15, p. 10). Ainda que, de acordo com o próprio réu, 5 milhões de
trabalhadores tenham vindo para a Alemanha de outros países, esse trabalho, quando feito
de acordo com suas diretrizes, era realizado de forma justa e digna. Como ele alerta a
Goldensohn, “você deve diferenciar entre o tratamento de Himmler e meu tratamento à
mão-de-obra estrangeira (SAUCKEL apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 215). Afinal, na
visão de Sauckel, Himmler e a SS eram os responsáveis pelas crueldades e pelas

80
As determinações da Convenção estão disponíveis na íntegra nos seguintes links:
https://avalon.law.yale.edu/20th_century/geneva02.asp
https://www.redcross.org/content/dam/redcross/atg/PDF_s/International_Services/International_Humanit
arian_Law/IHL_SummaryGenevaConv.pdf (Acesso em 15/09/2022)
196

violências, sobretudo nos campos.

Nesse sentido, não somente as deportações não eram de sua responsabilidade,


como também qualquer tipo de mal tratamento de trabalhadores durante esse processo de
deportação, algo que só poderia ter acontecido no transporte para os campos de
concentração – mais uma vez, recaindo sob a esfera de responsabilidade de Himmler.
Sauckel afirma que “eu não toleraria tais condições sob nenhuma circunstância, nem ouvi
falar delas. Tais coisas não eram de nenhuma vantagem para nós” (BS, 15, p. 18). Até
onde ele tinha conhecimento, as “condições gerais de vida dos trabalhadores estrangeiros
na Alemanha, na medida em que foram recrutados através dos escritórios da Alocação de
Trabalho, eram exatamente as mesmas dos trabalhadores alemães que foram alojados em
campos” (BS, 15, p. 23). Já que ele jamais trataria mal um trabalhador alemão, como ele
poderia fazer isso com pessoas de outras nacionalidades?

Dessa forma, assim como Kaltenbrunner, Sauckel alega completa ignorância


com relação às condições de trabalho dessas pessoas, afirmando que nunca recebeu
nenhum relatório e negando documentos assinados por ele. Seu desconhecimento, em sua
percepção, tem a ver com a sua mínima esfera de competência dentro do regime. Por
exemplo, ele era responsável pelas ordens de como alimentar os trabalhadores
estrangeiros, mas não por de fato alimentá-los, já que essa “não era tarefa e
responsabilidade das autoridades trabalhistas”, e sim “das fábricas, ou dos líderes dos
campos que tinham sido encarregados pelas fábricas de cuidar disso” (BS, 15, p. 116).
Aqui, ele está se referindo a fábricas como a siderúrgica da Krupp81 em Essen, cuja mão-
de-obra consistia em quase 40% de estrangeiros em 1943. Esses trabalhadores moravam
em alojamentos inadequados, sendo os soviéticos os que viviam em piores condições e
com dietas de menor qualidade. Um gerente da Krupp queixou-se de que “essa gente está
morta de fome e sem condição de fazer o serviço pesado na construção de caldeiras para
o qual foi designada” (EVANS, 2014b, p. 405).

Emoções impróprias

Como já abordado no caso de Alfred Rosenberg, a perspectiva nazista partia do

81
O terceiro caso dos industriais, conhecido como caso Krupp, foi o décimo dos doze julgamentos
realizados pelo governo estadunidense. Outros casos de industriais são o caso Flick e o caso da IG Farben.
Para saber mais sobre todos eles, conferir o episódio #42 do Podcast Desnazificando, que faz parte do
Núcleo Brasileiro de Nazismo e Holocausto (NEPAT). O episódio é intitulado “‘Inocentes no sentido da
acusação’? Analisando os Julgamentos subsequentes de Nuremberg (NMT)”, disponível em:
https://anchor.fm/dashboard/episode/e19crbl (Acesso em 15/09/2022)
197

pressuposto de que as fronteiras políticas impostas pelo Tratado de Versalhes deveriam


ser abolidas para dar espaço para a unidade biológica do espaço racial. Era necessário,
portanto, muito trabalho no Leste para transformá-lo no que os nazistas queriam e
sonhavam. Justamente por isso, a eliminação de todo o sangue estrangeiro não poderia
acontecer a princípio, já que aqueles braços eram necessários para o trabalho. A
germanização do Fremdvölkisch, o povo de natureza diferente do Volk, iria acontecer de
qualquer maneira, mas esta deveria ser o segundo passo. Em primeiro lugar, a pacificação
e o trabalho (CHAPOUTOT, 2018, p. 349–350).

A pacificação não seria possível sem violência, uma “calma obtida por meio de
repressão brutal”, extremamente necessária para garantir a produção e dominação alemã
naquele território, que afinal, na visão dos nazistas, era deles por direito. Os povos
estrangeiros que ali viviam deveriam ser usados para o trabalho, já que, como afirma
Joseph Goebbels, “nós não queremos estes povos: nós queremos o seu país”
(GOEBBELS apud CHAPOUTOT, 2018, p. 350). Himmler, em linha similar, declara
que o dever do alemão era “encher nossos campos com escravos – aqui eu gostaria de
dizer as coisas de forma clara e distinta – com escravos que trabalharão para nós e
construirão nossas cidades, nossas aldeias e nossas fazendas sem que nós prestemos a
menor atenção às perdas sofridas” (HIMMLER apud CHAPOUTOT, 2018, p. 350–351).
Essa mão-de-obra forçada era, portanto, fundamental para o projeto do Reich de mil anos.

De acordo com a ideologia nazista, por sua constituição natural, os eslavos


estavam destinados à escravidão, ao uso para projetos alheios, já que eles não eram
capazes de se governar e de se organizar. Nas palavras de Adolf Hitler, “o eslavo é um
escravo nato em busca de seu senhor; tudo o que ele pergunta é quem é o senhor”
(HITLER apud CHAPOUTOT, 2018, p. 351). Em uma direção coerente com o ideal
nacional-socialista, a natureza seguia comandando a política, e, sendo assim, usar os
eslavos era simplesmente o que a natureza demandava. Tudo deveria ser feito para
garantir a sobrevivência do povo alemão e essa era a moral existente, pautada na raça.
Não fazia sentido sequer questionar a prática da escravidão, de argumentar sobre os
direitos humanos ou sobre as leis que proibiam essa prática. Hitler é categórico ao dizer
que todo o aparato jurídico “é invenção do homem! A natureza não conhece registros de
terra e nem registradores de escrituras! Nossos céus conhecem apenas a força” (HITLER
apud CHAPOUTOT, 2018, p. 351). A antiga moral e a antiga legalidade eram
construções humanas, não eram o que a natureza exigia. Afinal, como Hitler declara em
198

Mein Kampf anos antes, “a liberdade individual deve ceder o lugar à conservação da raça”
(HITLER, 2005, p. 190).

Em 1943, Fritz Sauckel aposta todas as suas fichas nessa nova moral ariana e
declara:

Vamos nos livrar do que resta desse lixo (rubbish) de humanitarismo insípido
que ainda carregamos (dragging) conosco… É difícil separar os homens de
sua pátria e de seus filhos. Mas não queríamos a guerra! A criança alemã que
perde seu pai no front… é muito mais fortemente afetado. Por este meio,
vamos renunciar a todas as emoções impróprias (SAUCKEL apud
CHAPOUTOT, 2018, p. 351).

Para Sauckel, essas emoções humanitárias levavam as pessoas a terem simpatia


pelo inimigo, inimigo este que não hesitaria em eliminar o povo alemão quando tivesse a
chance. Era necessário, portanto, matar o mal pela raiz. No entanto, em Nuremberg, agora
como réu, esse homem responsável pelo trabalho escravo e por livrar os alemães desse
“lixo de humanitarismo” declara não acreditar no princípio de raça superior: “eu nunca
defendi isso. Quando jovem, viajei pelo mundo. Viajei pela Austrália e pela América e
conheci famílias que pertencem às lembranças mais felizes da minha vida”. Mas que
ficasse claro: “eu amava meu próprio povo e buscava, admito, igualdade de direitos para
eles; e sempre defendi isso. Nunca acreditei na superioridade de uma raça em particular,
mas sempre acreditei que a igualdade de direitos era necessária” (BS, 15, pp. 63-64). Sua
luta para se apresentar como um homem correto que se preocupava em cumprir seu dever
se transforma em uma luta contra seus próprios deslizes narrativos. Afinal, em algumas
declarações, é possível perceber como boa parte da ideologia nacional-socialista ainda
estava presente.

Um bom exemplo disso são seus depoimentos sobre a Questão Judaica. Sauckel
afirma que entrou “no Partido por um caminho bem diferente e por motivos bem
diferentes” (BS, 15, pp. 63-64) – isto é, sua adesão não era em função do antissemitismo
pregado por Hitler e por outros nazistas. Contraditoriamente, todavia, para Goldensohn,
Sauckel reconhece que os judeus eram, de fato, uma raça, apesar de ele não ser um
“especialista” em antissemitismo, como Streicher e Rosenberg: “de acordo com o
nacional-socialismo, os judeus não eram vistos como uma seita religiosa, mas como uma
raça inimiga” (SAUCKEL apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 214). E assim também
declarou o Führer em Mein Kampf: “o judaísmo nunca foi uma religião, e sim sempre um
povo com características raciais bem definidas” (HITLER, 2005, p. 227).
199

O que prevalece em Sauckel, apesar desses deslizes narrativos com relação a


ideologia nazista, é a negação. Ao ser apresentado uma declaração de seu interrogatório
em que ele se declara 100% nazista, Sauckel nega a veracidade do documento, afirmando
só tê-lo assinado por pressão e por medo. Ele acreditava que sua família estava ameaçada
em terras russas e, “certamente não teria feito essas declarações da maneira que fiz, se
pudesse agir livremente e de acordo com minha própria vontade” (BS, 15, p. 66). Lendo
sentença por sentença do documento para determinar tudo o que estava incorreto, Sauckel
afirma que só se declarou 100% de acordo com o programa de Adolf Hitler “na medida
em que o programa me pareceu justificado legal e constitucionalmente, e de acordo com
a ética e a moral” (BS, 15, pp. 66-67). Diferentemente do outro negacionista Ernst
Kaltenbrunner, Sauckel, no entanto, ainda se sentia na obrigação de defender o Führer:

Eu vi em Hitler, que naquela época eu reverenciava, um homem que era o líder


do povo alemão, que havia sido escolhido pelo povo alemão; e eu, como
cidadão alemão e membro de um departamento do governo alemão, considerei
meu dever justificar com meu trabalho em minha própria esfera a confiança
depositada em mim pelo chefe de Estado. […] Eu não conseguia ver um
criminoso em Hitler naquela época, e nunca senti que ele fosse um; mas me
senti obrigado a cumprir meu dever, nada mais. Como ser humano e como
resultado da minha formação, nunca apoiaria o crime (BS, 15, p. 150).

Hitler, portanto, não era um criminoso nem naquela época do Reich e nem
naquele momento em Nuremberg. Na maior parte do tempo, Sauckel se recusa, inclusive,
a reconhecer que algum crime sequer tenha acontecido. Leon Goldensohn acredita que a
forma como Sauckel se expressa demonstra que aquelas eram respostas automáticas
repetidas muitas vezes e durante muito tempo, tanto na vida privada quanto na vida
pública – uma autoapresentação para os outros, mas também para si mesmo. O psiquiatra
afirma que “ele estava pronunciando palavras que soavam bem e faziam parte do quadro
geral que ele estava tentando representar: um trabalhador bom e sólido que estava tão
ocupado fazendo o bem que foi junto com o Partido”, ainda que, por conta de seus ideais,
ele tenha percebido que “certos negócios desagradáveis” estavam acontecendo
(GOLDENSOHN, 2005b, p. 211). Para o psicólogo Gilbert, Sauckel também mantém
essa postura, afirmando diversas vezes “você tem que entender que era uma guerra e já
havíamos passado por muita coisa, e me deram uma missão que eu não podia recusar – e,
além disso, fiz o possível para tratá-los [os trabalhadores] bem”. As “coisas terríveis que
aconteceram nos campos de concentração” nunca fizeram parte do escopo de seu trabalho
e ele nunca soube que elas estavam acontecendo (SAUCKEL apud GILBERT, 1995, p.
171). Sauckel era, então, consistente até mesmo nas suas contradições.
200

A Solução Final para o Problema Trabalhista

Assumindo uma postura capitalista, Fritz Sauckel compreende que não fazia
sentido econômico torturar os trabalhadores, matá-los de fome e não lhes oferecer
condições mínimas de sobrevivência. Ainda em 1942, ele lembrou aos oficiais nazistas
responsáveis pelas indústrias alemãs que “russos fatigados, semimortos de fome ou
mortos não mineram carvão para nós, são totalmente inúteis para produzir ferro e aço”
(SAUCKEL apud EVANS, 2014b, p. 410). No tribunal, de forma similar, para comprovar
que não tinha conhecimento da Solução Final, ele diz: “teria tornado minha tarefa muito
mais fácil e eu teria muito menos dificuldade se todas essas pessoas, na medida em que
fossem capazes de trabalhar, tivessem sido incluídas no plano de trabalho de maneira
mais razoável”. Não só ele não sabia sobre o extermínio dos judeus, como considerava o
genocídio contraproducente e “totalmente contrário ao meu interesse” (BS, 15, p. 44).

Esse homem, que em já 1922 sabia “por destino, que deveria encontrar uma
solução para o problema trabalhista e social” (SAUCKEL apud GOLDENSOHN, 2005b,
p. 212), Sauckel tenta se apresentar para tribunal como um funcionário obediente. No
entanto, era preciso deixar claro que ele não era um soldado, mas um patriota, executando
a tarefa que lhe foi destinada da melhor forma possível:

GEN. ALEXANDROV: O senhor aprovou pessoalmente a política do


governo hitlerista em relação à deportação para a escravidão da população dos
territórios ocupados para assegurar a realização de uma guerra de agressão?
Você aprovou essa política?
SAUCKEL: Sou forçado a considerar sua pergunta à luz de uma acusação.
Pessoalmente, tenho dito repetidas vezes que não tenho nada a ver com a
política externa ou doméstica; eu não era um soldado, quis dizer. Recebi uma
tarefa e recebi ordens. Como alemão, tentei realizar essa tarefa corretamente
para o bem de meu povo e seu governo e realizá-la da melhor maneira possível,
pois ficou perfeitamente claro para mim que o destino de meu povo dependia
do cumprimento desta tarefa. Trabalhei com isso em mente e admito que fiz o
máximo para realizar essa tarefa da maneira que indiquei aqui. Eu concebi isso
como meu dever e devo reconhecer este fato aqui (BS, 15, pp. 149-150).

A perspectiva de que o destino do povo alemão dependia de que sua tarefa fosse
bem executada nos mostra mais um de seus deslizes narrativos. Esse discurso faz parte
da terminologia nazista e é usado frequentemente por outros julgados, inclusive pelos da
categoria defensores fiéis, como vimos em capítulo anterior. Contudo, prevalece na
narrativa de Sauckel, como um negacionista, frases como “essa foi uma decisão direta e
uma declaração do Führer, pela qual não sou responsável” (BS, 15, p. 90), “eu estava
cumprindo as ordens do Führer” (BS, 15, p. 92), e “eu tive que sair, porque eu tinha
ordens para sair” (BS, 15, p. 94). Os termos usados pela acusação também não
201

contemplavam sua visão, já que ele, na época “não podia estar convencido em plena
consciência de que estava cometendo um crime” (BS, 15, p. 137). De acordo com
Sauckel, ele não contribuiu para uma guerra de agressão e não estava tentando minimizar
seu trabalho. Como sua principal tarefa, e seu dever para com seu povo, era “a distribuição
e direção de mão-de-obra no Reich” ele fez o melhor que pôde. Seu trabalho era
extremamente importante e necessário, mas ele precisava dizer para o mundo inteiro, pela
sua consciência, que nada disso consistia em um crime – ou, pelo menos, não que ele
soubesse na época (BS, 15, p. 133).

Dentre todos os casos em Nuremberg, o caso de Sauckel não se destaca tanto,


sobretudo se comparado ao negacionista exemplar Ernst Kaltenbrunner. Todavia, é
interessante notar como, ainda que majoritariamente negacionista, ele se apresente como
um nazista patriota, se aproximando, por vezes da ignorância ideologicamente justificável
de Adolf Eichmann. O abismo, citado no começo, entre o ideal e as consequências desse
ideal, se traduz em um discurso contraditório e, por vezes, sem sentido.

Para concluir a sua incoerência, Sauckel tenta se mostrar como corajoso, apenas
para demonstrar em seguida que, como todo ser humano, também tinha medo da morte.
Ao descobrir que ele havia sido considerado culpado e sentenciado à morte, Sauckel
declara a Gilbert: “não considero a sentença justa. Eu mesmo nunca fui cruel. Sempre
quis o melhor para os trabalhadores. Mas eu sou um homem e posso aguentar”,
começando a chorar logo em seguida (SAUCKEL apud GILBERT, 1995, p. 433). Como
Friedrich Nietzsche alerta, se olharmos muito tempo para o abismo, o abismo nos olha de
volta.82

82
Na citação original de Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão: “Quem combate
monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E, se você olhar longamente para um
abismo, o abismo também olha para dentro de você”. A frase não deixa de ter uma ironia sinistra com o
tema desta tese.
202

Walther Funk (1890-1960)

“Hitler não precisava realmente de mim; ele era o verdadeiro ditador da economia,
e eu era apenas um título”

(GOLDENSOHN, 2005b, p. 81)

Walther Funk foi Ministro da Economia do Reich de 1937 a 1945, sucedendo


Hjalmar Schacht, também julgado em Nuremberg. Funk foi acusado de plano de
conspiração, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, sendo
considerado culpado dos últimos três. Apesar de ter sido sentenciado à prisão perpétua,
Funk foi liberado por motivos de saúde em maio de 1957, falecendo três anos depois.

O caso de Funk representa precisamente o que a tese sustenta: existem padrões


diferentes de negação de responsabilidade durante o tribunal. Isso porque Funk possuía o
mesmo cargo que Schacht e ambos têm acusações parecidas, no entanto, os dois não
poderiam ser mais diferentes em suas justificativas em Nuremberg. Como veremos,
Schacht era um No-man, o nazista mais antinazista no tribunal, alguém que declara
repetidas vezes que foi contra o regime desde o princípio e que fez de tudo para evitar os
crimes. Funk, por outro lado, se apresenta como apenas um banqueiro que não fazia a
203

menor ideia do que estava acontecendo na Alemanha e que permaneceu no seu cargo por
puro – e inocente – patriotismo. Schacht era o velho mago, mas Funk sequer era um
homem relevante: “ser pintado como o conselheiro econômico, o grande homem da
economia nazista! Ridículo! Schacht pode ser um gênio financeiro, eu não sei” (FUNK
apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 79).

Utilizando-se frequentemente de frases como “pessoalmente, não tive nada a


ver com isso” (BS, 13, p. 155), Funk vai além e passa a dizer que não se lembra de certas
coisas, como, por exemplo, os planos econômicos para a guerra na Polônia e a realocação
de dinheiro para a investida na União Soviética. De maneira diferente dos outros
negacionistas Ernst Kaltenbrunner e Fritz Sauckel, o banqueiro diz não se lembrar de
documentos nem de suas próprias declarações anteriores e, quando se lembra, afirma que
essas mesmas declarações estão incorretas: “e durante este interrogatório eu não pude
dizer ‘sim’ porque naquela época eu não me lembrava” (BS, 13, p. 166). O aparece,
portanto, como uma salvaguarda e como mais uma camada de seu negacionismo.

Sobre a acusação, o réu expõe: “eu nunca na minha vida fiz conscientemente
nada que pudesse contribuir para tal acusação. Se eu fui culpado dos atos que estão na
acusação, por erro ou ignorância, então minha culpa é uma tragédia humana e não um
crime” (FUNK apud GILBERT, 1995, p. 6). A tragédia desse negacionista relapso é a
sua falta de responsabilidade sob seu próprio cargo: Funk se apresenta como um Ministro
da Economia que não tinha nenhuma relação com a economia dos países ocupados, o
presidente do Reichsbank que não tinha nenhum poder sob as finanças do Reich. Por esse
motivo, em sua visão, sua culpa só existia a nível moral, não a nível criminal, e ele
percebeu isso logo no começo. Assim que chegou em Nuremberg, Funk admite que “tudo
era preto”. Com o passar do tempo e o desenvolvimento dos procedimentos no tribunal,
o banqueiro revê sua perspectiva e consegue “separar o preto do não tão preto”. As coisas
não saíram do preto e foram para o branco, elas apenas ficaram “mais claras” – ainda
pretas. Sendo assim, para Funk, o mundo não era dividido em preto e branco: não se podia
falar de homens intrinsicamente criminosos e nem de ações fundamentalmente erradas.
Por vezes, a intenção era boa, e Funk assim declara: “na verdade, eu sou culpado como
todo alemão que participou de um regime que fez coisas cruéis e desumanas”. Essa
afirmação, para ele, se estende ao longo da história, não era exclusividade do Terceiro
Reich (FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 92). Afinal, com relação ao passado e ao
futuro, o banqueiro afirma:
204

Na história mundial, temos outros exemplos de destruição assustadora. Houve


Alexandre, o Grande, e toda a destruição que ele causou. Napoleão também
teria destruído toda a Europa. Mas, infelizmente, o governo nazista do qual
infelizmente participei não teve um Talleyrand,83 mas tínhamos um
Ribbentrop. Através da política de Talleyrand, a França foi salva de uma
catástrofe que Ribbentrop teria causado (FUNK apud GOLDENSOHN,
2005b, p. 99).

Como obra do destino cruel sob o qual Funk não tinha nenhum poder de ação,
ele participava de um regime criminoso ao lado de um Ribbentrop, que, como veremos,
era um Yes-man, alguém que sempre dizia sim para o Führer e que permanecia fascinado
pela figura de Adolf Hitler mesmo em Nuremberg. Não havia alguém dentro do regime
nazista que pudesse salvá-los da catástrofe e ele, como um funcionário desimportante,
tinha suas mãos atadas. Como Funk não sabia de nada e não podia saber de nada, suas
ações foram movidas por amor ao seu país e pelo seu inabalável senso de dever. Suas
negações pautadas na ignorância, como veremos, o transformam no completo oposto de
seu predecessor Hjalmar Schacht, o grande resistente que pediu demissão quando
vislumbrou a “destruição assustadora” eminente.

Colapso espiritual

O caso de Funk está majoritariamente pautado no processo de exclusão dos


judeus da Alemanha, a princípio por medidas sociais e econômicas e, posteriormente,
com as deportações e o extermínio nos territórios ocupados. Por esse motivo, o banqueiro
é muito questionado sobre sua visão sobre o antissemitismo. Funk, assim como muitos
nazistas em Nuremberg, apesar de negar ser antissemita no sentido racial, admite que
acreditava que os judeus tinham muita influência na sociedade alemã, sobretudo no
aspecto cultural. Para ele, essa influência era “particularmente perigosa nessa esfera
porque tendências que eu sentia serem definitivamente antialemãs e não artísticas
surgiram como resultado da influência judaica, especialmente no domínio da pintura e da
música” (BS, 13, p. 96). Em sua perspectiva, criar leis para remover os judeus da vida
econômica era uma forma de protegê-los e garantir seus direitos. É claro que, na época
dessas medidas “certamente não se falava de um extermínio dos judeus”, ainda que já se
falasse sobre um plano de emigração organizada.

83
Charles Maurice de Talleyrand (1754-1838) foi um diplomata francês, uma figura influente que é
reconhecido pelo arquétipo de traidor. Foi fiel a Napoleão e conspirou contra ele, apoiou outros dirigentes
e os deixou posteriormente. Um homem visto como pragmático, que mudava de ideia conforme as
circunstâncias. Nesse caso, Funk faz referência a Talleyrand pelo seu papel na reconciliação de Napoleão
com a Europa. Para saber mais: https://www.bbc.com/portuguese/geral-57641109 (Acesso em 15/09/2022)
205

Funk, assim como Adolf Eichmann, afirma que pessoalmente não participou
“de forma alguma das medidas terroristas e violentas contra os judeus”. Ele declara:
“lamentei-as profundamente e as condenei com veemência. Mas eu tive que autorizar as
medidas para a execução dessas leis, a fim de proteger os judeus contra uma perda
completa de direitos e cumprir de maneira ordenada as estipulações legais que foram
feitas naquele momento” (BS, 13, p. 117). É com relação a essa “terrível tragédia” que
Funk se declara moralmente culpado – ainda que não criminalmente culpado:

E quando fui repreendido por essas medidas de terror e violência contra os


judeus, sofri um colapso espiritual, porque naquele momento me veio à mente
com toda clareza que a catástrofe seguiu seu curso dali em diante até as
horríveis e terríveis coisas de que ouvimos aqui e que eu sabia, pelo menos em
parte, desde o tempo da minha prisão. Senti um profundo sentimento de
vergonha e de culpa pessoal naquele momento, e sinto isso também hoje. Mas
que eu tenha emitido diretrizes para a execução das ordens e leis básicas que
foram feitas, isso não é crime contra a humanidade. Neste assunto, coloquei a
vontade do Estado acima da minha consciência e do meu sentido interior do
dever porque, afinal, eu era o servidor do Estado. Eu também me considerava
obrigado a agir de acordo com a vontade do Führer, o supremo Chefe de
Estado, especialmente porque essas medidas eram necessárias para a proteção
dos judeus, a fim de salvá-los da absoluta falta de proteção legal, de novos atos
arbitrários e violência (BS, 13, p. 120).

Nesse ponto, é pertinente apresentar brevemente a tese do filósofo Karl Jaspers


acerca da questão da culpa alemã. Jaspers divide o conceito de culpa em quatro tipos
diferentes, a saber: a culpa criminal, relacionada aos crimes contra as leis e cuja instância
é o tribunal que julga e aplica essas leis; a culpa política, representando as ações dos
homens de um Estado – algo similar ao que Hannah Arendt entende por responsabilidade
política – uma culpa da qual ninguém nunca se abstém, afinal, sempre estamos inseridos
em uma comunidade política; a culpa moral, compreendida como qualquer ação na
instância da consciência, ou seja, a responsabilidade que todos temos por tudo que
fazemos enquanto indivíduos pertencentes do mundo, inclusive ações política e militares;
e a culpa metafísica, que é um sentimento e corresponsabilidade por toda a injustiça do
mundo, algo não explicável nem em termos jurídicos, nem morais ou políticos. Funk,
nesse momento, e em vários outros durante sua narrativa, aceita sua culpa moral, mas
rejeita que essa possa ser transmutada em uma culpa criminal, precisamente porque a
culpa criminal é a única que acarreta uma consequência individual direta. É válido
lembrar, no entanto, que o contraponto dessas duas formas de culpa não é suficiente.
Afinal, de acordo com Jaspers – e, em total consonância com Arendt: “Nunca vale apenas
‘ordem é ordem’. Como muitos crimes continuam sendo crimes mesmo tendo sido
ordenados [...] toda ação permanece submetida também ao juízo moral. A instância é a
206

própria consciência⁠” (JASPERS, 2018, p. 23–24).

Funk é questionado sobre sua culpa moral diversas vezes pela acusação, apenas
admitindo que, na época da perseguição dos judeus ele estava envolvido “em um forte
conflito” com a sua consciência. Ele afirma que “estou admitindo uma culpa contra mim
mesmo, uma culpa moral, mas não uma culpa porque assinei as diretrizes para o
cumprimento das leis; em qualquer caso, não uma culpa contra a humanidade” (BS, 13,
p. 139). O réu cai em lágrimas em mais de uma ocasião durante seu interrogatório,
dizendo estar sendo tomado por sentimentos muito profundos de culpa. A acusação
entende que sua reação é uma resposta de sua consciência, uma “sombra que existe desde
que foi levado sob custódia” (BS, 13, pp. 178-179), mas Funk mantém, de acordo com o
próprio Mr. Dodd, “uma negação absoluta” de que ele teve qualquer tipo de conhecimento
a qualquer momento sobre as atrocidades cometidas pelo regime nazista (BS, 13, p. 178).
Para o psicólogo Gilbert, o banqueiro declara que “não há realmente nenhum de nós –
nem um único de nós – que escape de uma culpa moral neste assunto” e, considerando
sua consciência, “se isso me torna legalmente culpado ou não, é outra questão. Mas que
isso me torna moralmente culpado, não há dúvida” (FUNK apud GILBERT, 1995, pp.
406-407). Ainda assim, tudo o que ele podia fazer na época era “transmitir o que me foi
dado de cima” e sua obediência, em sua visão, não poderia ser considerada um crime
contra a humanidade (FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 88).

Nesse sentido, Walter Funk compreende que seu trabalho lhe coloca em um
patamar de culpa moral precisamente porque ele conta que teve conflitos com sua
consciência durante os anos do Terceiro Reich. No entanto, diferentemente de Eichmann,
por não estar diretamente ligado com o processo de extermínio, e, por afirmar não saber
que o extermínio estava acontecendo, essa culpa moral é, digamos, limitada. Na
perspectiva de Funk, ele pessoalmente nunca havia defendido o extermínio dos judeus,
nunca havia participado de “nenhuma medida contra os judeus, pois esses assuntos não
eram mais tratados em meus departamentos” e, “com exceção dessas medidas legais,
essas ordens executivas, não acredito que em meus departamentos eu tenha autorizado
novamente qualquer coisa mais relacionada aos assuntos judaicos” (BS, 13, p. 121).
Como as leis não eram de sua autoria, ele não via como poderia ter qualquer papel em
relação a elas. E, nesse sentido, desapropriar economicamente os judeus não era o
primeiro passo para o processo de extermínio porque ele pessoalmente não teve relação
com “exterminar um único judeu” (FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 85–86).
207

É fundamental, neste ponto, ressaltar a tese do historiador Raul Hilberg sobre


a compreensão do extermínio dos judeus durante o Terceiro Reich como um processo,
com início, meio e fim. De acordo com Hilberg, os passos são dados a partir de uma
estrutura, que se segue: 1. Definição, 2. Demissão de empregados e destruição das casas
de negócio, 3. Concentração, 4. Exploração do trabalho e medidas para matar de fome, 5.
Extermínio, 6. Confisco dos bens pessoais (BAUMAN, 1998a, p. 219–220). Na
definição, são escolhidas as ervas daninhas, para usar a terminologia do sociólogo
Zygmunt Bauman, ou seja, os elementos que atrapalham o projeto de um jardim mais
bonito. Em um segundo momento, esse grupo de pessoas passa a ser excluído do comércio
e das formas de convívio social, produzindo uma distância social. Na concentração, esse
processo de distanciamento se completa: “o grupo vitimizado e os restantes não se
encontram mais, seus processos de vida não se cruzam, a comunicação estanca”
(BAUMAN, 1998a, p. 221). O quarto estágio propõe medidas que parecem
misericordiosas, mas que apenas servem para legitimar práticas exterminacionistas, como
matar indivíduos para poupá-los do seu sofrimento. Então, quando chega o momento do
extermínio em massa, ele não aparece como uma mudança drástica e revolucionária: ele
é apenas mais um passo na sequência de passos anteriores e, embora não estivesse
previsto desde o começo, aparece simplesmente como uma sequência lógica. Como
Bauman aponta, “nenhum dos passos era inevitável em função do estado que as coisas já
tinham atingido, mas cada um deles tornava racional a escolha do estágio seguinte na rota
de destruição” (BAUMAN, 1998a, p. 221).84 O genocídio moderno pode ser explicado,
portanto, com a alegoria do jardineiro:

Alguns jardineiros odeiam as ervas daninhas que estragam seus projetos – uma
feiura no meio da beleza, desordem na serena ordenação. Outros não são nada
emocionais: trata-se apenas de um problema a ser resolvido, uma tarefa a mais.
O que não faz diferença para as ervas: ambos os jardineiros as exterminam. Se
indagados e com tempo para refletir, os dois concordariam que as ervas devem
morrer não tanto pelo que são, mas pelo que deve ser o belo e organizado
jardim. A cultura moderna é um canteiro de jardim. Define-se como um projeto
de vida ideal e um arranjo perfeito das condições humanas. [...] O genocídio
moderno, como a cultura moderna em geral, é um trabalho de jardineiro [...]
Se o projeto de um jardim define o que é erva daninha, há ervas daninhas em
todo jardim. E ervas daninhas devem ser exterminadas. Eliminá-las não é uma
tarefa destrutiva, mas criativa. Que não difere em essência de outras atividades
que se somam para a construção e manutenção de um perfeito jardim. Todas
as visões da sociedade como um jardim definem parte da população como
ervas daninhas. Que, como quaisquer ervas daninhas, devem ser segregadas,
contidas, impedidas de proliferar, removidas e mantidas fora dos limites da
sociedade; se todos esses meios se revelarem insuficientes, elas devem ser

84
Esse parágrafo foi retirado e adaptado de artigo que escrevi sobre a série Black Mirror. Ver: VISCONTI,
2017, p. 154–155.
208

mortas (BAUMAN, 1998a, p. 115–116).

Dessa forma, a acusação estava certa em ponderar que as leis de exclusão


econômica dos judeus foram alguns dos primeiros passos desse processo de extermínio.
Entretanto, de certa maneira, Funk também estava certo em dizer que isso não queria
dizer que o genocídio já estava predeterminado desde o momento de instauração dessas
leis. Nenhum dos passos era inevitável, mas, no regime nazista, eles não só não foram
evitados como foram estimulados, exaltados e desejados. Para Funk, contudo, toda essa
tragédia se refletia em apenas uma culpa moral.

Apesar de Hjalmar Schacht ter afirmado em seu depoimento que se ele fosse
Ministro da Economia nenhuma injustiça teria sido cometida, Funk se apresenta como
apenas um funcionário obediente com a consciência pesada, mas não pesada o suficiente
para resistir. Os decretos tinham que ser emitidos e ele afirma que “não tive dores (pangs)
de consciência porque os decretos foram emitidos. Eu tive dores de consciência por causa
das razões para eles” (BS, 13, p. 148). Ao contrário de Schacht, ele não tinha influência
dentro do Partido e não podia prevenir essas “ações terroristas (terror actions)”. Como
um bom homem preso dentro de um regime criminoso, Funk declara que: “fiz de tudo o
que estava ao meu alcance dentro do escopo da possibilidade para tornar as coisas
suportáveis para os judeus” (BS, 13, p. 122).

Envolvido até o pescoço

Funk se sente, portanto, injustiçado pelas acusações, as quais define como algo
“terrivelmente trágico”, já que “desde o primeiro momento” ele desaprovou e condenou
“muito fortemente” os “excessos” contra os judeus, que infelizmente o afetaram
“pessoalmente muito profundamente” (BS, 13, p. 120). Assim como Sauckel, ele era um
patriota que permaneceu no seu cargo para servir o povo alemão, para “ser útil,” e, nos
últimos anos da guerra, essa posição se tornou muito difícil. Funk conta que pessoalmente
se encarregou de “conseguir suprimentos para o povo, especialmente para aqueles que
haviam sido bombardeados” e fez de tudo para “evitar que bens do Estado e dinheiro do
Estado fossem destruídos e desperdiçados”, já que acreditou, “até o último minuto”, que
era seu dever e sua responsabilidade “continuar no cargo e aguentar até o fim” (BS, 13,
p. 133). O banqueiro diz que se sente envergonhado “de ter participado minimamente
mesmo como um instrumento naqueles dias sombrios. Mas fui obrigado a servir o Estado
ao qual havia prestado juramento. Foi um destino trágico” (FUNK apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 85).
209

Nesse sentido, naqueles tempos sombrios, as condições que a guerra lhe impôs
fizeram com que ele não enxergasse outra opção: a única coisa possível para ele e para
“todo alemão decente” era “permanecer em seu posto e fazer tudo ao seu alcance para
evitar esse caos”. Em uma clara provocação a outros julgados, como Albert Speer e,
obviamente, seu predecessor Hjalmar Schacht, Funk declara: “eu não tinha talento para
ser traidor ou conspirador, mas sempre amei apaixonadamente minha pátria e meu povo,
e até o fim tentei fazer todo o possível para servir meu país e meu povo e ser útil a eles”
(BS, 13, p. 133). Para Gilbert, Funk diz algo parecido: “asseguro-lhe que não tenho o
material (the stuff) [necessário] para heroísmo. Não tinha naquela época e não tenho
agora. Talvez esse seja o problema. Mas muitas vezes me pergunto o que teria feito se eu
soubesse dessas coisas antes. Acho que não teria sobrevivido a isso” (FUNK apud
GILBERT, 1995, pp. 201-202).

O banqueiro que não era herói, mas tampouco vilão, se apresentava, portanto,
como um homem pequeno dentro de uma enorme organização, sempre sujeito à tomada
de decisão de outras pessoas já que “a presidência do Reichsbank era um grande trabalho”
e ele não podia saber de tudo que acontecia (FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 92).
Ele não era político e “não estava nada apto para ser ministro de Estado”, já que toda a
sua personalidade “era contra a burocracia” (FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p.
98). Dessa forma, ele reconhece uma única culpa: Funk admite que “deveria ter fugido e
não ter nada a ver com esses criminosos em primeiro lugar. Mais tarde era tarde demais.
Eu estava [envolvido] até o pescoço (I was in up to my neck)” (FUNK apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 87).

A acusação sabe que ele estava “envolvido até o pescoço” durante a Segunda
Guerra Mundial e os promotores perdem a paciência com frequência em virtude do
negacionismo de Funk. Ironizando sua inocência, Mr. Dodd usa a expressão “muitas
vezes na porta, mas nunca permitido a entrada” (often at the door but never let in) para
defini-lo (BS, 13, p. 139), ainda que essa porta seja uma das mais obscuras dos bastidores
do Holocausto: a do recolhimento de pertences pessoais dos prisioneiros que iam para os
campos de concentração e extermínio afim de gerar lucro para o Reich. Richard Evans
descreve essa operação que ocorria durante as deportações:

Os judeus ainda carregavam alguns pertences pessoais consigo. Esses,


juntamente com suas roupas e o conteúdo das malas, eram tirados deles.
Objetos de valor eram recolhidos pelas autoridades do campo. Muitos foram
parar nos bolsos de indivíduos da SS e de seus ajudantes. As joias mais valiosas
210

eram remetidas junto com o ouro extraído das restaurações dentárias dos
mortos para um escritório central de classificação em Berlim, onde os metais
preciosos eram fundidos em barras para o Reichsbank e a pedraria era trocada
nos países neutros ou ocupados por diamantes industriais necessários às
fábricas de armas alemãs. […] Um relatório do escritório de Pohl estimou em
pouco menos de 180 milhões de reichsmark o valor total de posses judaicas
confiscadas pela Operação Reinhard85 até 15 de dezembro de 1943 (EVANS,
2014b, p. 334–335).86

Sobre seu papel nessa operação, Funk afirma que não era da responsabilidade
do presidente do Reichsbank sequer gerir o banco, já que essa era responsabilidade da
diretoria, que apenas lhe reportava quando era necessário. Nesse sentido, o réu não podia
saber que dentes de ouro e joias estavam sendo colocadas nos cofres do banco após a
apropriação desses bens pela SS. Ele declara categoricamente nunca ter visto essas joias
e itens dos milhares de assassinados e se justifica dizendo que estes pertences poderiam
ter vindo de depósitos: “de onde vieram esses dentes eu não sei. Não me foi relatado, nem
sei o que foi feito com aqueles dentes. […] Tampouco sei se o Reichsbank tinha as
instalações técnicas para trabalhar esse metal. Eu não sei sobre isso” (BS, 13, pp. 169-
170). Sendo assim, em sua visão, o testemunho de Pohl, já mencionado anteriormente em
outros casos, era difamatório e buscava propositalmente incriminá-lo. Afinal, “as pessoas
não podiam falar de atrocidades, porque estavam sob juramento de manter segredo. E se
as pessoas fossem decentes, não me contariam de qualquer maneira porque não gostariam
de me envolver” (FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 82). Como as Imagens 2 e 3
demonstram, não há possibilidade de ignorância quanto ao significado desses objetos:

85
A Operação Reinhard (Einsatz Reinhard/Aktion Reinhard) é como foi denominado o plano do fim de
1941 para sistematicamente exterminar os judeus no Governo Geral na Polônia ocupada. Os campos de
extermínio de Belzec, Sobibor e Treblinka foram criados como resultado da operação, que atuaram no
extermínio entre 1942 e 1943. Para saber mais:
https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/operation-reinhard-einsatz-reinhard. O Núcleo
Brasileiro de Nazismo e Holocausto (NEPAT) também possui um episódio do podcast Desnazificando
sobre a Operação: https://anchor.fm/desnazificando/episodes/66-Operao-Reinhard-Srie-A-construo-do-
Holocausto--Episdio-09-e1rq7ib (Acesso em 15/09/2022)
86
Mais sobre o processo: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/at-the-killing-centers (Acesso
em 15/09/2022)
211

Imagem 287 Imagem 388

O significado histórico desses tempos terríveis

Ainda que tenha vindo de uma família burguesa com muitos empresários, Funk
conta que tinha uma inclinação artística, sobretudo para a música, de modo que teria sido
muito mais feliz em sua vida se tivesse permanecido tocando um violino ou um piano, ao
invés de ingressar na política e no movimento nazista. Infelizmente, como ele mesmo
afirma, sua defesa não foi musical: “se eu tivesse permanecido com minha escrita e minha
música, estaria trabalhando agora e não seria um criminoso na prisão de Nuremberg”
(FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 98). Apesar disso, o réu não nega que assumiu
“com entusiasmo” (BS, 13, p. 90) seu trabalho no Partido Nazista, ainda que sempre tenha
sido considerado “mesmo nos círculos do Partido, um liberal e um outsider” (BS, 13, p.
84). Esse trabalho, é claro, era quase desimportante e, portanto, Funk não enxerga
nenhuma responsabilidade sob o “destino trágico” que se abateu sobre ele. A vida
aconteceu e não foi fruto de suas escolhas. Consciente de que a promotoria iria acusá-lo

87
Soldados estadunidenses do Primeiro Exército selecionando joias, incluindo obturações de ouro, tiradas
pela SS de prisioneiros no campo de concentração de Buchenwald (1945). United States Holocaust
Memorial Museum, disponível em: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1033248 (Acesso em
15/09/2022)
88
Um soldado mergulha as mãos em um caixote cheio de anéis confiscados de prisioneiros em Buchenwald
e encontrados por tropas estadunidenses em uma caverna ao lado do campo de concentração (1945). United
States Holocaust Memorial Museum, disponível em:
https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa18788 (Acesso em 15/09/2022)
212

“e com certo grau de razão, de fazer parte de um governo criminoso” (FUNK apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 82), o banqueiro tenta mostrar como ele era diferente dos
outros nazistas. Afinal, sua tragédia foi acreditar que estava servindo o povo alemão até
o fim. Ele admite que “se você seguir um determinado caminho por algum tempo, é
preciso uma enorme força de vontade para sair, embora você possa reconhecer que o
caminho não era tão bom”. No entanto, em seu caso, ele acreditou “e estava convencido
de que estava servindo e ajudando as pessoas até o último momento” (FUNK apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 98).

Tentando se desvencilhar de seu predecessor, Funk declara que “costumava ter


um respeito muito grande por Schacht, mas acho que ele se tornou moralmente
desacreditado” (FUNK apud GILBERT, 1995, p. 320). Como, em sua visão, nenhum dos
réus poderia escapar da culpa moral do Terceiro Reich, Schacht não era diferente, já que
esse homem era alguém sem lealdade, que poderia mudar de lado a qualquer momento,
além de ser muito ambicioso (FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 89). Funk, nesse
sentido, não tenta se apresentar como um resistente ao nazismo, ainda que seu apelo para
a ignorância contradiga sua própria perspectiva de que “a ignorância da lei não é desculpa.
Uma pessoa é culpada mesmo que infrinja a lei sem saber. Serei talvez o primeiro dos
réus a se levantar e admitir que sou pelo menos parcialmente culpado” (FUNK apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 82). O que prevalece em seu discurso, e o que salta aos olhos
até mesmo da acusação, é a negação de seu envolvimento em qualquer atividade que
pudesse ser considerada criminosa dentro do regime nazista. Sauckel, assim como os
outros negacionistas relapsos, era apenas mais um funcionário pouco importante,
descartável e, de muitas maneiras, omisso. Nesse sentido, o relapso é mais transparente
em sua narrativa do que o negacionista.

Reflexivo, o banqueiro declara a Gilbert: “talvez se tivéssemos nos reunido e


nos recusado a ir mais longe, poderíamos ter evitado essa desgraça final. Cada um de nós
tem essa culpa moral. Não vejo como o tribunal pode absolver qualquer um de nós”
(FUNK apud GILBERT, 1995, pp. 406-407). Apesar de suas palavras, dentre ele e
Hjalmar Schacht, o tribunal preferiu o velho mago. Schacht foi absolvido e Funk foi
condenado à prisão perpétua. Ao receber o veredito, o réu protesta com o psicólogo com
uma “perplexidade sorridente (simpering bewilderment)”: “prisão perpétua! O que isso
significa? Eles não vão me manter na prisão por toda a minha vida, vão? Eles não querem
dizer isso, não é?” (FUNK apud GILBERT, 1995, p. 432). De fato, Funk ainda viveu seus
213

três últimos anos de vida em liberdade.

Em seus últimos dias em Nuremberg, o banqueiro já previa como seria o futuro


da Alemanha após o Terceiro Reich. Chorando, ele conta a Gilbert que tinha certeza de
que as atrocidades seriam uma “vergonha permanente” para o país: “não importa o que
Göring ou qualquer outra pessoa diga – não importa quais sentenças sejam pronunciadas
– esse assassinato em massa sistemático de judeus continua sendo uma vergonha para o
povo alemão, na qual eles não superarão em gerações!” (FUNK apud GILBERT, 1995,
pp. 201-202). Tendo que lidar com uma situação “insuportável”, Funk acredita que a
desonra que se abateria à Alemanha era “pior do que qualquer consequência do
julgamento” (FUNK apud GILBERT, 1995, pp. 74-75). E essa desonra era fruto da culpa
de todos aqueles homens no banco dos réus, todos os não-heróis que se mantiveram em
seus postos. Ele declara: “esse é o problema: estávamos todos cegos” (FUNK apud
GILBERT, 1995, pp. 406-407).

Cegos pelo poder, como Göring, pela ambição, como Schacht, ou pelo desejo
de realizar um bom trabalho, como ele, Funk tenta apresentar uma lição sobre o
Julgamento de Nuremberg: “se este mundo está coberto com muitas coisas podres e
sujeira, algum poder deve removê-lo e algum novo instrumento deve ser criado. Essa é a
minha visão do significado histórico desses tempos terríveis” (FUNK apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 100). Os nazistas, como as coisas podres, precisavam de um
tribunal internacional inédito para fazer uma limpeza. Enquanto os outros dois
negacionistas foram condenados à morte, Funk escapou com uma prisão perpétua que
não durou toda sua vida. Seu caso e o de Schacht, como os banqueiros do Reich, nos
mostram, portanto, as falhas e as problemáticas desse processo da culpa criminal dos
nazistas.
214

Capítulo Quatro
No-man X Yes-man

Hjalmar Schacht
Joachim von Ribbentrop

[Ribbentrop] quer mostrar que ele não era um nazista típico.


Não, claro que não; ele só fez tudo o que Hitler queria que ele fizesse!
Hjalmar Schacht (GILBERT, 1995, p. 222)
215

Neste capítulo iremos tratar de duas categorias que funcionam em polos


opostos. De um lado, temos Hjalmar Schacht, o No-man, e, de outro, Joachim von
Ribbentrop, o Yes-man. Decidi manter o termo em inglês porque não consegui determinar
uma tradução apropriada para o português, sobretudo pelo contraponto das duas
categorias. Um No-man poderia ser entendido como um crítico, e um Yes-man como um
seguidor. Não obstante, as duas categorias também de diferenciam pelo próprio
personagem definidor: Schacht define a si próprio como um No-man, enquanto
Ribbentrop é definido pelos outros nazistas e pela acusação como um Yes-man. E, assim,
sendo, as duas categorias também possuem valores opostos no tribunal. Um No-man era
visto de forma positiva por ser um resistente, alguém que foi contra o regime nazista, que
sempre disse não às práticas do nacional-socialismo e a Adolf Hitler. Um Yes-man, pelo
contrário, era visto de forma negativa, já que significava alguém que não pensava por si
próprio e apenas obedecia, que dizia sim para tudo e agia como um “pau mandado”, um
“puxa-saco”, como coloquialmente dizemos em português.

Como No-man, Hjalmar Schacht se apresenta como o nazista antinazista por


excelência. Um grande desobediente e opositor desde os primórdios do movimento,
alguém que nunca concordou com a política do Reich e nunca sequer teve simpatia por
Adolf Hitler. Sua resistência passou a ser mais acirrada após o início da Segunda Guerra
Mundial e essa discordância fez com que ele fosse preso pelo regime nazista. Do outro
lado do espectro, temos o Yes-man Joachim von Ribbentrop, um verdadeiro saudosista e
defensor do Führer. Ribbentrop era visto como um homem fraco, mas, acima de tudo,
obediente. Um seguidor e defensor mais devoto à figura de Hitler do que do nazismo em
si. Seus casos são extremamente contrastantes e fazem parte da análise dicotômica deste
capítulo.
216

Hjalmar Schacht (1877-1970)

“Eu lhe digo, seria uma eterna desgraça para este Tribunal e para a justiça
internacional se eu não for absolvido”

(GILBERT, 1995, p. 423)

Hjalmar Schacht foi presidente do Banco do Reich (Reichsbank) até 1939 e


Ministro da Economia do Reich até 1943. Seu alegado conhecimento dos conspiradores
que tentaram assassinar Hitler em 20 de julho de 1944 fez com que ele fosse preso pelos
nazistas no campo de concentração de Ravensbrück e, posteriormente, Flossenbürg e
Dachau. Foi libertado pelos Aliados em 1945 e levado a julgamento em Nuremberg por
conspiração e crimes contra a paz e foi declarado inocente de ambas as acusações.
Schacht foi libertado em 1946 e morreu em 1970 aos 93 anos, tendo passado os últimos
24 anos de sua vida em liberdade. Nesse período, ele escreveu sua autobiografia,
intitulada Confissões do velho mago (old wizard): a autobiografia de Hjalmar Horace
Greeley Schacht e publicada em 1955.

Quando Schacht assumiu a presidência do Reichsbank em 1933, a situação


financeira da Alemanha era deplorável. A quebra da bolsa de valores em 1929 e a Grande
Depressão foram “nada menos que uma catástrofe para a Europa” (KERSHAW, 2016, p.
217

210) e uma de suas consequências mais dramáticas foi a destruição da democracia em


grande parte do continente. No princípio de 1930 a Alemanha já contava com mais de 1,9
milhão de desempregados e a pobreza extrema assolou o país (KERSHAW, 2016, p. 211–
213). A crise na Alemanha, no entanto, “não foi apenas ou principalmente econômica,
mas uma crise total do Estado e da sociedade” (KERSHAW, 2016, p. 221). O “mago das
finanças” Hjalmar Schacht chegou nesse momento crítico em que o nacional-socialismo
precisava se estabelecer efetivamente no poder. O economista, contudo, era uma figura
estranha em meio aos outros nazistas. De acordo com Richard Evans, “em ocasiões
oficiais, enquanto os outros ministros apareciam com botas de montar e uniforme,
Schacht destacava-se em seu traje civil cinza, colarinho alto branco, camisa e gravata,
sobretudo escuro e chapéu-coco”, um estilo que ele mantém durante os procedimentos
em Nuremberg. Por ter uma “franzina presença física um tanto despretensiosa”, o
banqueiro passava um “ar ligeiramente retraído e acadêmico, que também destoava da
energia tosca de outras lideranças do regime” (EVANS, 2014c, p. 395).

Sua formação cosmopolita lhe garantiu trabalhos com grandes economistas do


período Guilhermino. Entretanto, essa erudição e especialização não eram bem-vistas
pelo Führer. Em suas memórias, Albert Speer declara que Hitler sempre preferiu
“preencher os cargos de liderança com leigos” e que, “durante toda sua vida, ele respeitou,
mas desconfiou, de profissionais como Schacht” (EVANS, 2014b, p. 373). Apesar de sua
diferença de outros líderes nazistas, é válido pontuar, contudo, que ainda que Schacht
tenha sido um democrata durante os anos de Weimar, ele foi rapidamente arrebatado pelo
movimento nazista quando foi apresentado a Hitler em 1931. Assim como outros homens
conservadores, e, de maneira similar aos diplomatas da velha guarda, o economista
acreditava que “o radicalismo de Hitler poderia ser domado com a associação do nazista
a outras figuras mais conservadoras e mais experientes, como ele mesmo” (EVANS,
2014c, p. 396).

Hitler escalou Schacht para tomar as rédeas da economia alemã e promover a


recuperação econômica, ainda que esta não fosse “um fim em si mesma, e se subordinava
a um programa político voltado para um rearmamento rápido e uma posterior expansão
pela força militar” (KERSHAW, 2016, p. 238). A escolha não foi difícil para o Führer,
uma vez que Schacht era “simplesmente o melhor gerente financeiro das redondezas”
(EVANS, 2014c, p. 396) e extremamente necessário para o objetivo principal dos
nazistas: o rearmamento. De acordo com Ian Kershaw, a partir de 1934, “sustentada por
218

enormes verbas camufladas que Schacht repassava por meio de uma ‘contabilidade
criativa’, fora do orçamento da nação, a consolidação de Forças Armadas grandes e
poderosas ganhou impulso” (KERSHAW, 2016, p. 238). Como “o primado da economia
deu lugar ao primado da ideologia” (KERSHAW, 2016, p. 239) em pouco tempo, o
banqueiro havia se convertido suficientemente a ideologia nazista para “aprovar
entusiasticamente a meta primária do regime de rearmar a Alemanha em velocidade
máxima” (EVANS, 2014c, p. 396–397). Portanto, é sobretudo sobre seu papel na
preparação econômica alemã para a Segunda Guerra Mundial que Schacht é acusado em
Nuremberg.

Com 68 anos no momento do julgamento, Schacht possuía o maior QI dentre


os réus (GILBERT, 1995, p. 30). Exemplo da categoria No-man, o banqueiro se apresenta
como um forte antinazista. De uma forma sem precedentes em Nuremberg, esse “astuto
financista com fortes conexões políticas” (EVANS, 2014a, p. 156) nega qualquer relação
com a ideologia nazista, com os outros nazistas e com o Führer. Como ele diz a Leon
Goldensohn, “esses outros criminosos deveriam estar no banco dos réus, mas eu não”
(SCHACHT apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 219). Afinal, ele era um homem
democrático que se deixou levar pelo movimento nacional-socialista por enxergá-lo como
uma alternativa para a crise interna que a Alemanha estava sofrendo sob Weimar. Ele é
categórico em sua linha argumentativa e, sobre a acusação, declara: “Eu simplesmente
não entendo por que eu fui acusado!” (SCHACHT apud GILBERT, 1995, p. 6).
Goldensohn o descreve como repetitivo, alguém tentando manter duas autoimagens
distintas e contraditórias: em uma, Schacht era um homem que não causava nenhum risco
e que estava inativo desde 1939; em outra, ele era um grande nacionalista alemão que
trabalhou incansavelmente para que Hitler caísse, e, justamente por isso, havia sido um
ativo participante da tentativa de assassinato do Führer em 20 de julho 1944, que
abordaremos a seguir. Curiosamente, Schacht fala muito pouco sobre o atentado em seus
depoimentos para o tribunal.

Para o “velho mago”, como ele se autodenomina, o Terceiro Reich foi um


regime de terror, sob muitos aspectos totalitário, violento, que punia qualquer forma de
liberdade de expressão. Para explicar seu papel neste regime criminoso, ele diz que
trabalhou para o povo alemão, não para o nazismo. No entanto, o Terceiro Reich foi tão
ditatorial que a única maneira possível de oferecer resistência era de dentro do regime.
Assim, continuou a trabalhar como ministro para oferecer resistência, uma influência
219

moderada dentro daquele regime, chamando-se Ministro sem portfólio, que, como já
vimos, significava que ele era apenas um ministro representativo, sem nenhum poder de
fato. Afinal, Schacht estava atuando no regime nazista, mas não fazia parte dele. Como
ele diz: “nunca me considerei exatamente parte do regime, porque era contra” (BS, 13, p.
29). Consequentemente, ninguém foi mais contra o regime nazista do que ele. Ninguém
havia tentado prevenir os males do nacional-socialismo como ele: Schacht era o nazista
antinazista por excelência.

Convencido da sua inocência, o julgamento apareceu-lhe como uma


oportunidade de construir um futuro melhor para todos. Ele diz a Goldensohn que nunca
havia acreditado e nem apoiado a guerra, visto que esta era “um crime contra a
humanidade independentemente de ganhar ou perder”. Lendo um artigo em uma revista,
Schacht faz uma reflexão ao psiquiatra: “um dia a lua vai cair sobre a terra, mas tenho a
sensação de que até então devemos tentar fazer do mundo um lugar melhor para se viver”
(SCHACHT apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 236). Quem melhor para construir esse
novo mundo do que um inocente nazista antinazista?

Canais ordenados

O “velho mago”, como um forte opositor do nazismo, define a si mesmo como


um No-man, um título honorário que acredita ter conquistado por merecimento:

DR.DIX: Uma pergunta incidental: Você deve se lembrar que Göring


exclamou: ‘Eu gostaria de saber onde estão os ‘No-men’’. Eu o quero perguntar
agora, você reivindica este título honorário de ‘No-man’ para si mesmo?
Recordo-lhe particularmente a sua carta de novembro de 1942.
SCHACHT: Em todas as ocasiões em que eu não estava mais em condições
de fazer o que minha convicção interior exigia, eu dizia: ‘Não’. Não me
contentei em ficar calado diante dos muitos delitos cometidos pelo Partido. Em
todos os casos, expressei minha desaprovação a essas coisas, pessoalmente,
oficialmente e publicamente. Eu disse ‘Não’ a todas essas coisas. Eu bloqueei
os créditos. Opus-me a um rearmamento excessivo. Falei contra a guerra e
tomei medidas para evitar a guerra. Não sei a quem mais esse título honorário
de ‘No-man’ pode se aplicar, senão a mim.
DR. DIX: Você não fez um juramento de fidelidade a Hitler?
SCHACHT: Eu não fiz um juramento de fidelidade a um certo Herr Hitler.
Jurei fidelidade a Adolf Hitler como chefe de Estado do povo alemão, assim
como não jurei fidelidade ao Kaiser ou ao presidente Ebert ou ao presidente
Hindenburg, exceto na qualidade de chefe de Estado; da mesma forma não fiz
um juramento a Adolf Hitler. O juramento de fidelidade que fiz ao chefe do
Estado alemão não se aplica à pessoa do chefe do Estado; aplica-se ao que ele
representa, à nação alemã. Talvez eu possa acrescentar algo a esse respeito. Eu
nunca manteria um juramento de fidelidade a um mentiroso e Hitler acabou
por ser cem vezes mais um mentiroso. (BS, 12, pp. 518-519)

Apesar do discurso de “não”, Schacht, na realidade, disse muitos “sim”. Não


são raras as ocasiões em Nuremberg em que o economista defende diversos pontos e
220

princípios da ideologia nacional-socialista. Como ele diz a Gilbert, “não se esqueça de


que o que tentamos fazer no início não foi tão ruim. Tínhamos que ter alguma base para
existir” (SCHACHT apud GILBERT, 1995, p. 96). Alguns dos valores do movimento
estavam corretos, como a necessidade do espaço vital alemão e a resistência ao tratado
de Versalhes. Como um alemão orgulhoso e nacionalista, ele defendeu esses princípios
iniciais e, como era o caso com tantos acadêmicos e com os diplomatas da velha guarda,
Schacht afirmava ser um nazista que queria a forma “inicial” e “original” de nazismo:
“estou indo contra todo o sistema – não como era originalmente – mas como foi
pervertido por Göring e Hitler e aqueles generais” (SCHACHT apud GILBERT, 1995, p.
288). Ele queria modificar a política de Hitler, não a encerrar inteiramente. Em suas
palavras, “eu não disse que queria derrotar seu programa. Eu disse que queria direcioná-
lo para canais ordenados” (BS, 12, pp. 585-586).

Mesmo Mein Kampf, que em sua perspectiva foi escrito no pior tipo de alemão
por um homem semieducado e em certa medida fanático, tinha seus méritos. Schacht
compreende que o livro tinha diversos problemas, “mas, por outro lado, também tinha
muitas ideias razoáveis”. Duas coisas lhe chamaram atenção na obra do Führer,
compreendida como o manual dos princípios do movimento nazista. A primeira dizia
respeito à perspectiva de “que quem discorda do governo em questões políticas é obrigado
a dar sua opinião ao governo”. A segunda dizia que “embora o governo democrático, ou
melhor, parlamentar, devesse ser substituído por um governo do Führer, o Führer só
poderia permanecer se tivesse a certeza da aprovação de todo o povo”. Nesse sentido,
mesmo em um Estado onde reinava o Princípio de Liderança, o Führer também dependia
inteiramente do apoio popular (BS, 12, p. 422). Por esse motivo, em sua visão, o Princípio
de Liderança por si só não era criminoso. Citando a obra Falha na missão do autor Sir
Nevile Henderson,89 diplomata britânico que serviu como embaixador do Reino Unido
na Alemanha entre 1937 e 1939, “ditaduras nem sempre são más” (BS, 12, p. 444).

Entretanto, ainda que tentasse ressaltar alguns dos méritos do movimento


nazista, para Schacht, a acusação no tribunal tinha uma opinião uniforme – e errônea –
sobre o caráter criminoso do programa do Partido. O ministro não conseguia “ver no
programa do Partido como tal qualquer sinal de intenções criminosas”. Os exemplos que
o economista cita dizem respeito, por exemplo, ao direito de autodeterminação da

89
Henderson teve um papel importante nas questões diplomáticas entre Alemanha e Reino Unido, que
eventualmente levaram à Segunda Guerra Mundial. Ver: EVANS, 2014 e KERSHAW, 2016.
221

Alemanha, de igualdade do país mediante às outras nações na política internacional e a


consequente e lógica “abolição das discriminações impostas ao povo alemão pelo Tratado
de Versalhes”. Schacht enfatiza a posição imperialista do regime nazista como a
exigência de “terra e solo para a nutrição de nosso povo e o assentamento de nosso
excesso de população”. Para ele, não havia crime em compreender essas terras como
colônias, algo que ele mesmo apoiou “muito antes de o nacional-socialismo existir” (BS,
12, pp. 421-422).

Pensando nos outros aspectos da ideologia e na ação imperialista do Terceiro


Reich, Schacht defende a incorporação da Áustria e dos Sudetos, mas compreende que a
Tchecoslováquia era um “problema europeu”. Ainda assim, ele diz que “era lamentável
que naquele Estado, que tinha cinco milhões e meio de tchecos, dois milhões e meio de
eslovacos e cerca de três milhões e meio de alemães, o elemento alemão não tivesse meios
de expressão” (BS, 12, p. 435). Dessa forma, Schacht, de maneira similar a Alfred
Rosenberg, defende os princípios da expansão nazista em virtude da noção de direito e
necessidade de existência do povo alemão, como abordado no Capítulo Um. Por fim,
seguindo a linha de tentar apresentar o “lado bom” do nazismo, o réu destaca os aspectos
positivos da educação nacional-socialista:

A promoção da educação popular foi enfatizada como benéfica, e também a


ginástica e o esporte foram exigidos para a melhoria da saúde pública. Exigiu-
se a luta contra as mentiras políticas deliberadas, que Goebbels posteriormente
conduziu com muita energia. E, sobretudo, exigiam-se a liberdade de todas as
confissões religiosas e o princípio do cristianismo positivo.
Esse é, em essência, o conteúdo do programa do Partido nacional-socialista, e
não consigo ver nada de criminoso nele. De fato, teria sido bastante peculiar
se, se este fosse um programa criminoso do Partido, o mundo tivesse mantido
contato político e cultural contínuo com a Alemanha por duas décadas e com
os nacional-socialistas por uma década. (BS, 12, pp. 421-422)

Em uma clara provocação ao tribunal, Schacht compreende que o movimento


nazista não poderia ter princípios criminosos se foi aceito de tão bom grado pelo
Ocidente. Como apresentado na Introdução, Nuremberg se encontra no epicentro da
contradição da (re)inserção da Alemanha no mundo ocidental, tão necessária para a
reconstrução da Europa. Nesse sentido, Schacht diz que sempre teve orgulho “de
pertencer a uma nação que por mais de mil anos tem sido uma das principais nações
civilizadas do mundo” e que “deu ao mundo homens como Lutero, Kant, Goethe,
Beethoven, para citar apenas alguns”. E, por isso, ele sempre havia interpretado “o
nacionalismo como o desejo de uma nação de ser um exemplo para outras nações e manter
uma posição de liderança no campo da realização espiritual e cultural por meio de altos
222

padrões morais e realização intelectual” (BS, 12, pp. 425-426).

É claro que havia alguns excessos nos princípios nazistas. A Questão Judaica,
por exemplo, ia “um pouco além dos limites”. No entanto, na percepção de Schacht, ainda
que a exclusão dos judeus de seus direitos civis tenha sido um ponto negativo, “por outro
lado foi reconfortante que os judeus estivessem sob a proteção da Lei de Estrangeiros, ou
seja, sujeitos às mesmas leis que se aplicam a estrangeiros na Alemanha”. Essa era uma
proteção que ele desejava que todos os judeus recebessem, mas que, infelizmente, não
aconteceu. Não obstante, era válido ressaltar que o programa do NSDAP enfatizou “que
todos os cidadãos devem ter direitos e deveres iguais” (BS, 12, pp. 421-422). E nesse
sentido, como ele diz a Goldensohn, Schacht não estava sendo acusado de comportamento
antijudaico, e, portanto, não requeria defesa nesse aspecto. Se não há acusação, não há
necessidade de defesa (SCHACHT apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 227).

Ainda com relação aos “princípios positivos do movimento”, Schacht


acreditava que a maioria das pessoas que participaram do regime nazista eram indivíduos
decentes, e isso incluía os membros da SS, que ingressaram na organização porque
Himmler fez a SS parecer uma “Vida de Ideais”. Esses homens, portanto, haviam sido
seduzidos pelo que se provou ser uma ilusão. De acordo com o réu, a maioria das pessoas
“aderiu ao Partido por um instinto saudável e com boas intenções impulsionadas pela
necessidade em que se encontrava a nação alemã”, devido aos problemas advindos do
Tratado de Versalhes. Hitler, no entanto, conseguiu corromper até as pessoas com o
caráter mais distinto, reunindo e acorrentando “em torno de si todos os elementos ruins”.
Por esse motivo, a embriaguez se tornou “parte constitutiva da ideologia nazista”, já que
as pessoas, até mesmo dentro dos mais altos graus da cadeia de comando, recorriam “ao
álcool e a vários narcóticos para fugir de sua própria consciência, e que era apenas essa
fuga de sua própria consciência que lhes permitia agir daquela maneira” (BS, 12, p. 462).
Schacht poderia estar falando de diversos indivíduos com essa afirmação, mas,
naturalmente, o réu que se destaca é Hermann Göring, visto seu já mencionado vício em
drogas.

Nesse sentido, para o “velho mago”, somente um desligamento da própria


consciência poderia fazer alguém seguir o regime nazista e Adolf Hitler no fim da
Segunda Guerra Mundial. Se analisarmos esse trecho sob uma perspectiva arendtiana,
compreenderemos que, condenados a viver consigo mesmos, esses homens se
embriagavam para fugir do diálogo interno, e, portanto, escapar de uma crise de
223

consciência (ARENDT, 2004). Como já analisado na narrativa de Hermann Göring, a


negação de conhecimento conscientemente escolhida serviu à função de negação de uma
crise de moral. Nesse sentido, também, para Schacht, servir a um regime criminoso só
seria possível com uma negação completa de si mesmo, uma vez que a compreensão da
magnitude do crime só poderia levar o indivíduo ao suicídio. E, por isso, ele, como um
resistente, tinha a consciência tranquila. Afinal, de acordo com o ministro: “não conheço
ninguém na Alemanha que teria feito mais a esse respeito do que eu” (BS, 12, p. 560). E,
os nazistas que naquele momento o julgavam pela forma como estava conduzindo sua
defesa, na época, convenientemente, permaneceram em silêncio:

Gostaria muito de ter conhecido os cavalheiros que agora me julgam, numa


época em que poderia ter sido útil. Essas são as pessoas que sempre sabem
depois o que deveria ter sido feito antes. Posso apenas afirmar que, em primeiro
lugar, de 1920 até a tomada do poder por Hitler, tentei influenciar a nação e os
países estrangeiros de uma forma que teria impedido a ascensão e a tomada do
poder por um Hitler. Avisei o país para ser parcimonioso, mas não fui atendido.
Eu repetidamente adverti as nações estrangeiras a desenvolver uma política
econômica que permitisse à Alemanha viver. Não fui atendido, embora, como
parece agora, fosse considerado um homem inteligente e previdente. Hitler
chegou ao poder porque meu conselho não foi seguido (BS, 12, p. 555).

Sendo assim, Schacht, esse homem inteligente, previdente e distinto, conseguia


perceber com clareza nos primórdios do movimento os perigos que Hitler oferecia não só
à Alemanha, mas ao resto do mundo. Suas advertências não foram ouvidas e,
infelizmente, o que ele previu aconteceu. O resultado seria não apenas a destruição de
diversos países da Europa e o rastro de caos, violência e morte que a Segunda Guerra
Mundial deixou, mas, também, a ruína da Alemanha perante a opinião internacional.

Rompimento

De acordo com Schacht, não havia dúvidas de que, ao menos inicialmente,


Hitler não tinha “desejos malignos” e visava o bem do povo alemão. Suas ideias a
princípio lhe pareceram “bastante razoáveis e aceitáveis” (BS, 12, p. 420). O réu justifica
sua adesão inicial ao movimento dizendo que somente colocando o Partido Nazista no
poder é que seria possível controlar os desejos de Hitler. O Führer tinha um “tremendo
ímpeto” e “fervor propagandístico” que necessitava ser “capturado e aproveitado”. Para
Schacht, Hitler deveria ser admirado também por sua “energia inflexível” e sua “força de
vontade que superava todos os obstáculos”. Essas duas características, a psicologia de
massa e sua energia e força de vontade, explicam como Hitler “foi capaz de reunir até
40%, e mais tarde, quase 50% do povo alemão atrás dele” (BS, 12, pp. 450-451). Portanto,
deixar os nacional-socialistas na oposição, nesse sentido, lhes garantiria força e os faria
224

se tornarem ainda mais perigosos. No entanto, deixá-los no governo faria com que eles
entendessem seus limites e isso permitiria que o Führer pudesse ser controlado (BS, 12,
p. 423). Como vimos, essa também foi a perspectiva defendida por homens que tiveram
um forte papel na ascensão de Hitler ao poder, como Franz von Papen, um diplomata da
velha guarda.

Que ficasse claro, no entanto, que Schacht não gostava tanto de Hitler para
começo de conversa – em diversos momentos ele parece competir com Albert Speer pelo
monopólio do reconhecimento da “maldade” do Führer. E precisamente por isso, ele
nunca se sentiu decepcionado pelo líder, afinal, ele “não esperava dele mais do que minha
avaliação de sua personalidade me permitia”. A inexistente decepção deu lugar a um
sentimento certeiro de traição: “certamente me considero enganado, e enganado por ele
ao mais alto grau, porque tudo o que ele havia prometido anteriormente ao povo alemão
e, portanto, a mim, ele não cumpriu depois”. Hitler “fez de tudo para quebrar suas
promessas. Ele mentiu e enganou o mundo, a Alemanha e a mim (BS, 12, p. 454)”. Como
um patriota orgulhoso de seu pertencimento à nação alemã, Schacht havia sido, assim
como todos os alemães, iludido pelas promessas do Führer. Como ele aponta para Gilbert,
“o que Hitler fez foi um crime contra nossa cultura!” (SCHACHT apud GILBERT, 1995,
p. 153), já que o líder, como ele sempre havia deixado claro, “não tinha nenhuma
concepção de decência, honra e dignidade. Ele manteve a escória criminosa no poder e
forçou os homens decentes a renunciar, ou liquidou-os um após o outro” (SCHACHT
apud GILBERT, 1995, p. 304).

Em que momento Schacht teve sua mudança de opinião e se tornou um forte


opositor do Partido Nazista e de Hitler? De acordo com ele, esse momento nunca existiu:

Com licença. Acho que há um erro básico aqui. A partir disso, parece que eu
já fui um adepto convicto de Hitler em algum momento. Eu nunca fui isso. [...]
Portanto, não se tratava de um rompimento com Hitler. Um rompimento só
poderia ser feito se eu tivesse estado intimamente ligada a ele antes. No fundo,
nunca estive intimamente ligado a Hitler, mas, para todos os efeitos, trabalhei
no Gabinete (BS, 12, pp. 450-451).

Não se pode explicar um rompimento se nunca existiu adesão. Schacht é


categórico ao dizer que “nem em particular nem publicamente, nem em discursos e nem
por escrito, estive preocupado com Hitler ou seu Partido e de modo algum recomendei o
Partido” (BS, 12, p. 425). O Führer, para o ministro, era um homem que não possuía
educação escolar suficiente, mas que compensou a ausência de erudição com muito
conhecimento. Hitler fazia “malabarismos com esse conhecimento de forma magistral em
225

todos os debates, discussões e discursos”. Havia coisas a se admirar no líder porque ele
era “um psicólogo de massa de gênio realmente diabólico”. Sua influência era percebida
em inúmeras pessoas – não nele, naturalmente – e Schacht acreditava que originalmente
Hitler pensava “estar visando o bem, mas gradualmente ele próprio foi vítima do mesmo
feitiço que exercia sobre as massas”. Afinal, “quem se aventura a seduzir as massas acaba
sendo conduzido e seduzido por elas, e assim essa relação recíproca entre líder e
liderados, a meu ver, contribuiu para enredá-lo nos maus caminhos dos instintos de massa,
que todo líder político deve evitar” (BS, 12, pp. 450-451).

Uma das características da Modernidade, de acordo com a filósofa Hannah


Arendt, é a destruição do antigo padrão de uma sociedade dividida por classes, para dar
lugar a uma sociedade de massas. As massas se constituem de forma homogênea, sendo
composta por homens e mulheres sem representação política, sem organização, sem
interesses em comum e sem preocupação pelo coletivo. Não há mais indivíduos, apenas
seres da mesma espécie. Os homens passam a não ver mais o mundo como pertencente
ao público, nada os agrega a um objetivo ou interesse comum. Com o fim dos Estado
Nação, essas massas se voltam para um nacionalismo violento, atraindo até mesmo
membros da alta intelligentsia, uma vez que os indivíduos passam a ter consciência de
sua “desimportância e dispensabilidade”. As massas, nesse sentido, são uma
representação da crise democrática do século XX. De acordo com Arendt, “a queda das
paredes protetoras das classes transformou as maiorias adormecidas, que existiam por trás
de todos os partidos, numa grande massa desorganizada e desestruturada de indivíduos
furiosos”, indivíduos esses que “nada tinham em comum exceto a vaga noção de que as
esperanças partidárias eram vãs” (ARENDT, 1989, p. 365).

Esses homens e mulheres massificados são mais facilmente moldados pela


ideologia totalitária, que encontra sua expressão no nacional-socialismo. Os indivíduos
das massas, profundamente indiferentes à política, se recusam a participar da esfera
pública e não têm iniciativas para criar algo novo, tornando-os alvos fáceis para a
ideologia nazista. Sendo assim, o fim da pluralidade humana e da vontade de criar algo
novo em uma sociedade de massas reúne todos os homens em um cinturão de ferro e cria
o Um-Só homem. Essa massa de homens e mulheres suprime a singularidade e, ao mesmo
tempo, elimina o diferente. E, por esse motivo, o objetivo do totalitarismo é o de
transformar o ser humano em um animal de reações idênticas e previsíveis, como o cão
226

de Pavlov,90 referência que Arendt usa em muitos de seus textos (ARENDT, 2008a).

A figura do líder, enquanto representante das necessidades do povo e


transmissor de poder, oferece às massas uma visão e explicação do mundo. No caso do
Terceiro Reich, ao fim e ao cabo, visa-se a manutenção da sociedade de massas, não a
transformação de todos os indivíduos em fanáticos nazistas. Não se busca uma multidão
de defensores fiéis, e sim que todos os indivíduos se tornem o cão de Pavlov. Sem a
sociedade de massas e a força da ideologia e do terror, o nazismo, enquanto realização
histórica do conceito de totalitarismo, não seria possível.91 Todavia, essa relação entre
líder e massas é uma via de mão dupla: um não existe sem o outro. Arendt lembra que:

Essencialmente, o líder totalitário é nada mais e nada menos que o funcionário


das massas que dirige; não é um indivíduo sedento de poder impondo aos seus
governados uma vontade tirânica e arbitrária. Como simples funcionário, pode
ser substituído a qualquer momento e depende tanto do ‘desejo’ das massas
que ele incorpora, como as massas dependem dele (ARENDT, 1989, pp. 374–
375).

De forma similar a análise de Arendt, o historiador Ian Kershaw compreende a


relação entre as massas e o mito do Führer como uma ritualização que promovia uma
integração necessária à sociedade alemã. Hitler, nesse sentido, era muito preocupado com
a construção de sua imagem pública, em virtude de seu entendimento da necessidade do
regime de fabricar um consenso que promoveria unidade às massas. Kershaw, citando
T.W. Mason afirma que “Hitler compreendeu bem sua própria função, o papel que ele
teve que desempenhar como ‘Líder’ do Terceiro Reich, que ele ‘transformou-se em uma
função, a função do Führer’” (KERSHAW, 2001, p. 3). Essa percepção de Hitler como
um líder e um herói foi, simultaneamente, uma imagem criada pelas massas e imposta a
elas. Sendo assim, existe uma relação de interdependência entre líder e seguidores. Nas
palavras de Rudolf Hess, também julgado em Nuremberg, “o Partido é Hitler. Mas Hitler
é a Alemanha, assim como a Alemanha é Hitler” (HESS apud KERSHAW, 2001, p. 69).

Logo, Schacht tem razão ao compreender que existe uma correlação entre líder
e liderados, sobretudo em um governo baseado em uma personalidade carismática, se
formos utilizar a análise de Kershaw e sua leitura do conceito de carisma de Max Weber.

90
Experiência realizada pelo fisiologista russo Ivan Pavlov que consistia em treinar cães para salivar toda
vez que ouvissem uma sineta, já que associavam o barulho da sineta ao recebimento de comida. A
experiência comprovaria que nossos reflexos podem ser recriados e controlados, e mais ainda,
condicionados, abrindo espaço para a psicologia comportamental.
91
Os dois últimos parágrafos foram uma adaptação de trechos da minha dissertação de mestrado. Ver em:
VISCONTI, 2017, pp. 59–60.
227

Afinal, o líder carismático cria e forja uma estrutura social complexa, uma vez que ele
não é apenas “uma pessoa que ganha confiança, para quem são dirigidas grandes
expectativas ou a quem são atribuídas qualificações especiais: um líder carismático cria
um novo padrão de relações sociais” (LEPSIUS, 1986, p. 55). Por esse motivo, o nazista
antinazista Hjalmar Schacht se enxergava como um ponto tão fora da curva: ele havia
conseguido romper com essa nova estrutura social do Terceiro Reich e havia
compreendido como estava sendo manipulado pelo mito do Führer. Esse No-man se
recusava a ser um cão de Pavlov, um militar apartidário ou um defensor fiel. Hitler,
apesar de ser um grande psicólogo das massas, não conseguiu compreendê-las o
suficiente a ponto de não ser influenciado por elas – e esse foi o motivo de seu declínio.
E por não ter paciência nem compreensão, a grande tragédia da vida de Schacht foi não
conseguir trazer essas qualidades para a política do Führer, apesar de ter tentado
“arduamente”. Por fim, essa foi a sua “vida trágica”, que, em sua visão, ele não pôde
evitar (SCHACHT apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 236).

Um modelo de virtude

Definido pelo psicólogo Gilbert como alguém que se apresenta como um


“modelo de virtude (paragon of virtue)” (GILBERT, 1995, p. 312), o “gênio das
finanças” se considerava o homem mais inocente e inteligente na prisão de Nuremberg.
Suas virtudes se tornam evidentes quando Schacht diz ter ganhado a reputação de ser um
inimigo do nazismo, “um homem cujos pontos de vista eram contrários aos do Partido”.
Assim, “a partir desse momento, não só a possibilidade de minha cooperação, mas
também minha própria existência estava em perigo” (BS, 12, p. 510). Mesmo correndo
risco de vida, Schacht sentiu que sua missão era permanecer no governo para tentar
exercer algum controle sobre ele – e sobre Hitler. Ele trabalhava para o povo alemão, e,
“se fosse apenas uma questão de meu destino pessoal, nada teria sido mais simples”. No
entanto, “não era apenas uma questão de meu próprio bem-estar; mas como me dedicava
ao interesse público desde 1923, tratava-se da existência do meu povo, do meu país” (BS,
12, p. 556). Sua influência moderada fornecia a resistência necessária para colocar freios
no fanatismo de Hitler:

No que diz respeito à minha compostura e conforto pessoal, teria sido muito
simples não assumir o cargo e renunciar. Claro, eu me perguntei que ajuda isso
seria para o futuro desenvolvimento da política alemã se eu recusasse o cargo.
Já estávamos em um estágio em que qualquer oposição e crítica pública e
aberta contra o regime de Hitler se tornaram impossíveis. Reuniões não podiam
ser realizadas, sociedades não podiam ser estabelecidas, toda declaração de
228

imprensa estava sujeita a censura, e toda oposição política, sem a qual nenhum
governo pode prosperar, foi impedida por Hitler por meio de sua política de
terror. Só havia uma forma possível de criticar e até de opor-se que pudesse
impedir que medidas más e errôneas fossem tomadas pelo governo. E essa
oposição só poderia ser formada no próprio governo. Assim convencido,
ingressei no governo e esperava, ao longo dos anos, encontrar certo apoio e
respaldo entre o povo alemão. Ainda havia uma grande massa de líderes
espirituais, professores, cientistas e professores, dos quais eu não esperava que
simplesmente fossem aquiescer a um regime de coerção. Havia também muitos
industriais, líderes da economia, que eu não supunha que se curvariam a uma
política de coerção incompatível com a economia livre. Esperava um certo
apoio de todos esses círculos, apoio que me permitiria ter uma influência
moderadora e controladora no governo. Portanto, ingressei no Gabinete de
Hitler, não com uma aprovação entusiástica, mas porque era necessário
continuar trabalhando para o povo alemão e exercer uma influência
moderadora dentro do governo (BS, 12, p. 461).

Schacht tinha, de fato, alguma razão em sua afirmação. A resistência partidária


e político-ideológica ao regime nazista foi eliminada pouco após a chegada de Hitler ao
poder, já em 1933, quando grupos como comunistas, socialistas e liberais foram levados
a campos de concentração ou prisões. Neste mesmo ano foi emitido um decreto
emergencial que, entre outras coisas, proibia a distribuição de qualquer artigo impresso,
fosse ele um jornal, um pôster ou um panfleto, com o perigo de prisão imediata dos
autores do artigo e de qualquer pessoa que soubesse deste tipo de atividade ilegal e não a
denunciasse. Esse decreto também proibia reuniões ao ar livre que pudessem “colocar em
perigo a segurança pública”.92

Sobre essa aura de repressão, é válido também mencionar o episódio conhecido


como a “Noite das Facas Longas” ou “Noite dos Longos Punhais”, em 1934, quando os
líderes das “tropas de assalto” SA, liderados por Ernst Röhm foram detidos e executados.
A ação, mencionada diversas vezes no Julgamento de Nuremberg, foi fundamental para
fortalecer a repressão interna, já que nesse momento também foram eliminados todos os
adversários políticos do governo, como conservadores, católicos e até mesmo alguns
militares. O expurgo, que foi justificado pela falsa ameaça de uma conspiração liderada
por Röhm, executou ilegalmente pelo menos 85 pessoas, ainda que outras estimativas
girem em torno de 150 e 200.93 Não houve processo sumário e os acusados, antes de
serem fuzilados, apenas ouviram: “você foi condenado à morte pelo Führer! Heil Hitler!”
(KERSHAW, 2010, p. 344).

92
Esse trecho do parágrafo foi retirado e adaptado da minha dissertação de mestrado. Ver em: VISCONTI,
2017, p. 62.
93
Para saber mais sobre o episódio, conferir o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e
Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/CQv6Lm8ld6u/ (Acesso em 12/09/2022)
229

Como a SA já era abominada pela população por serem conhecidos como


“baderneiros” e pela onda de violência instigada por seus membros no princípio do
governo nazista, o expurgo não foi visto com maus olhos pela maioria dos alemães. Ainda
que as pessoas soubessem pouco ou nada sobre o aparato de poder, sobretudo mobilizado
pelo exército, e menos ainda sobre a crise de confiança entre Hitler e a SA e a fabricação
de uma tentativa de putsch para justificar o assassinato de Röhm e dos outros membros
da SA, a organização era tão odiada que o extermínio parecia até uma resposta branda
(KERSHAW, 2001, p. 83–87).

O expurgo simboliza de maneira surpreendente o estabelecimento do Terceiro


Reich como uma ditadura – ainda que a exclusão de todas as salvaguardas democráticas
já tivesse ocorrido no ano anterior, como vimos no caso dos diplomatas da velha guarda.
Hjalmar Schacht então, de maneira estratégica, utiliza da compreensão do nazismo como
uma ditadura do terror para justificar sua permanência no governo, ainda que não com
uma “aprovação entusiástica”. Ele tentou participar do regime nazista “não com a
intenção de apoiar esse homem em suas ideias extremistas, mas agir como um freio e, se
possível, direcionar suas políticas de volta aos canais normais” (BS, 12, p. 556). Esse era
o máximo que ele poderia fazer em um regime tomado pela coerção em que não era
possível existir nenhum tipo de liberdade:

Qualquer oportunidade de propaganda política dentro do povo alemão estava


obviamente fora de questão. Não havia liberdade de reunião. Não havia
liberdade de expressão. Não havia liberdade de escrita. Não havia
possibilidade de discutir as coisas mesmo em um pequeno grupo. Do começo
ao fim, alguém foi espionado, e cada palavra que foi dita entre mais de duas
pessoas foi dita com risco de vida. Havia apenas uma possibilidade diante
daquele terror, que estava além da reforma democrática e que barrava toda
crítica nacional. Isso foi para enfrentar essa situação com violência. Então
cheguei à conclusão de que, diante do terror de Hitler, só era possível um golpe
de Estado, um putsch e, finalmente, uma tentativa de assassinato (BS, 12, pp.
452-453).

Como um resistente convicto, Schacht compreende que a única alternativa para


acabar efetivamente com o Terceiro Reich seria um golpe e uma tentativa de assassinato.
É neste ponto que temos a breve e irrisória presença de Schacht no atentado à vida de
Hitler, ocorrido em 20 de julho de 1944. Na ocasião, o conspirador, o coronel
Stauffenberg, foi se encontrar com Hitler no quartel-general de Rastenburg, carregando
duas bombas em sua maleta. Seu objetivo era assassinar o Führer e iniciar um golpe
militar para derrubar o regime nazista. O golpe ficou conhecido como Operação
Valquíria. Stauffenberg plantou a bomba, saiu da sala alegando que precisava dar um
230

telefonema, assistiu à detonação e voou direto para Berlim para concluir o golpe.
Entretanto, apenas uma das bombas disparou e a explosão não foi fatal. Hitler sofreu
apenas algumas escoriações e teve os tímpanos estourados, mas não teve nenhum
ferimento grave. Stauffenberg foi preso juntamente com os demais conspiradores, que
rapidamente foram condenados à morte. O coronel, antes de ser morto, gritou “Longa
vida para a santa Alemanha!” (EVANS, 2014b, p. 733).

Hitler, inicialmente, acreditou que o golpe havia sido obra de alguns poucos
oficiais insatisfeitos. Contudo, à medida que a investigação da Gestapo progredia foi
ficando mais claro que havia um número considerável de envolvidos. Por fim, quase 5
mil pessoas foram presas, mil foram mortas ou se suicidaram, e em muitos casos a
punição se estendeu também às famílias dos conspiradores.94 Dentre essa segunda leva
de presos, encontrava-se Hjalmar Schacht. Ainda que ele de fato estivesse em contato
com os conspiradores, “mesmo antes de ficar sabendo disso, Hitler ordenou que fosse
capturado porque, ele ainda achava, Schacht sabotara o rearmamento na década de 1930”,
questão que abordaremos a seguir (EVANS, 2014b, p. 735).

Dessa forma, Schacht foi preso muito mais por já ter saído das graças do Führer
em anos anteriores do que efetivamente pelo seu ínfimo papel no atentado. O 20 de julho,
no entanto, é um recurso narrativo poderoso para o economista. Se colocando ao lado dos
resistentes e conspiradores, o ministro exerce uma outra função: ao destacar o
cerceamento de todas as formas de liberdade durante o regime nazista, o Schacht também
chama atenção para a dificuldade da própria população alemã de resistir. Dessa maneira,
sua absolvição também levaria a um perdão dos cidadãos alemães, presos em uma
sociedade de massas que permaneceu à sombra de uma ditadura, sem possibilidade de
ação.

A prova fundamental da resistência de Schacht, em sua perspectiva, é sua


demissão em 1939, quando passa a ser Ministro sem portfólio, até sua saída do governo
efetivamente em 1943. As condições da demissão de Schacht tem relação com os
problemas econômicos enfrentados em anos anteriores, e que se agravaram nos meses
que precederam a Segunda Guerra Mundial. O programa de rearmamento forçado já se
mostrava infundado a partir de 1938, e, “a política de ‘rearmar a qualquer custo’ mostrava

94
Os últimos dois parágrafos foram adaptados do post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e
Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/CgPMwHesjHy/ (Acesso em 13/09/2022)
231

que era sustentável apenas a curto prazo” (KERSHAW, 2010, p. 504). No entanto, nem
se passava pela mente de Hitler a possibilidade de recuar. Em suas palavras, “na minha
vida, eu sempre coloco todas as minhas fichas na mesa” (HITLER apud EVANS, 2014c,
p. 789). Para o setor econômico, essa aposta era alta demais. A direção do Reichsbank
enviou a Hitler um documento, ainda em janeiro de 1939, demandando uma contenção
financeira de modo emergencial para evitar o “problema ameaçador da inflação”. O
Führer enxergou o documento como uma tentativa de motim e, doze dias depois, Schacht
foi demitido. O problema, entretanto, não foi resolvido com a demissão do banqueiro: “a
demanda insaciável por matérias-primas, somada ao aumento da demanda dos
consumidores com o boom dos armamentos, havia deixado as finanças públicas em estado
desolador”. A solução para esse problema estrutural foi a confirmação do que Hitler vinha
afirmando há anos: a Alemanha precisava reconquistar seu espaço vital para garantir sua
sobrevivência. De acordo com Kershaw, “o aumento dos problemas econômicos
confirmava seu diagnóstico de que a posição da Alemanha jamais poderia ser fortalecida
sem conquista territorial” (KERSHAW, 2010, p. 505).

Usando sua demissão como uma poderosa salvaguarda, Schacht só assume


responsabilidade até 1938, uma vez que, a partir dessa data, ele passou a discordar ainda
mais veemente do regime, até a saída de seu cargo. Para o ministro, “quem assume a
responsabilidade também deve ter o comando; e se alguém tem o comando, então ele
também tem que assumir a responsabilidade” (BS, 13, p. 4) – e sua discordância com o
que seria demandado sob seu comando o fez deixar o governo. Sobre essa
responsabilidade, Schacht afirma que “por tudo o que fizemos anteriormente [no
Reichsbank] e por um rearmamento defensivo para alcançar direitos iguais para a
Alemanha na política internacional, assumimos de bom grado a responsabilidade, e a
assumimos perante a história e este Tribunal”. No entanto, “quando ficou claro que Hitler
estava trabalhando para aumentar ainda mais o rearmamento”, algo que demonstrava sua
intenção de iniciar uma guerra na Europa, foi redigido um memorando que apresentava
sua oposição “a qualquer aumento adicional das despesas do Estado” (BS, 12, pp. 533-
534). A ausência de evidências de sua resistência, sobretudo com relação à entrada da
Alemanha na Segunda Guerra Mundial, não é um problema para Schacht: para ele, a
inexistência de comprovação de um fato não faz com que o fato deixe de existir. Afinal,
“se alguém, por causa de sua miopia, não vê uma árvore em uma planície plana,
certamente não há prova de que a árvore não esteja lá” (BS, 12, p. 536).
232

O super-nazista na multidão

Por afirmar que “a verdade é a verdade e não há como impedir que ela saia”
(SCHACHT apud GILBERT, 1995, p. 297), e, também, por se considerar diferente dos
outros nazistas, Schacht é um grande crítico dos outros réus no julgamento. O grande alvo
das críticas do “gênio das finanças” foram os militares, sobretudo pela sua frequente
justificativa da obrigatoriedade de obediência de um soldado. O economista afirma que
isso “parece correto, e tudo o mais, mas não muda a culpa nem um pouco. E se ele
seguisse as ordens de Hitler e nada mais? Não há lei no mundo que me obrigue a cometer
assassinato” (SCHACHT apud GILBERT, 1995, p. 239). Em sua perspectiva, os
militares simplesmente não tinham estômago e força de vontade para se recusar a cumprir
ordens criminosas. Ele, ao contrário, se recusou, traçou uma linha fundamental quando a
Alemanha entrou em uma guerra que, para ele, não fazia sentido. Sua função em
Nuremberg, portanto, era a de mostrar para os alemães que ele, como resistente, não teve
participação no terrível destino da Alemanha: “meu povo deve ser mostrado como os
líderes nazistas os mergulharam em uma guerra desnecessária” (SCHACHT apud
GILBERT, 1995, p. 288). Por esse motivo, os membros das Forças Armadas também não
poderiam ser poupados no tribunal, afinal, “aqueles malditos militares não sabem nada
além de bater os calcanhares e dizer ‘Jawohl, nós arranjaremos uma guerra para você a
qualquer hora!’” (SCHACHT apud GILBERT, 1995, p. 288).

Suas críticas a ala militar lhe renderam inimizades e, ao fim e ao cabo, nenhum
dos réus parecia acreditar em sua postura antinazista. O almirante Karl Dönitz afirma que
mesmo se opondo a Göring e Rosenberg, ele pelo menos respeitava quem era consistente
e quem se mantinha fiel às suas visões. Por isso ele percebeu “um rato quando Schacht
tentou se fazer de inimigo do regime desde o início” (DÖNITZ apud GILBERT, 1995, p.
313). Hans Fritzsche caracteriza a defesa do ministro como um “suicídio
propagandístico” (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 316). Por outro lado, Schacht
angariou simpatia de alguns nazistas, sobretudo os ex-nazistas arrependidos, já que eles
próprios, por vezes, tentavam se apresentar como resistentes, como veremos. Franz von
Papen, um diplomata da velha guarda que tinha em comum com Schacht o pertencimento
às velhas elites de Weimar, também era favorável ao colega. Consolando von Papen após
sua defesa, o economista declara “sim, como conheço bem essas lutas com a consciência,
pesando o patriotismo contra essas outras coisas. Como eu sei. Eu tive o mesmo
problema” (SCHACHT apud GILBERT, 1995, p. 395).
233

Outros julgados viram a postura de Schacht como uma grande mentira e


totalmente incoerente com suas ações durante o Terceiro Reich. Baldur von Schirach, por
exemplo, afirma que a esposa de Schacht vestia um diamante com a suástica em eventos
nazistas, sendo usada pelo marido para demonstrar seu apoio ao regime. Em sua
perspectiva, na realidade, Schacht sempre havia desejado ser “o super-nazista na
multidão” (SCHIRACH apud GILBERT, 1995, p. 318). Um homem oportunista, que
havia sonhado em ser Presidente do Reich, e que, caso Hitler tivesse vencido a guerra,
teria tentado provar sua contínua lealdade ao Führer. Schirach conclui que naquele
momento era possível ver o verdadeiro caráter de Schacht, “um personagem realmente
astuto e sem escrúpulos, embora você não possa atribuir atos criminosos específicos a
ele” (SCHIRACH apud GILBERT, 1995, p. 319).

De fato, Schacht apresentou uma defesa condizente com as acusações


específicas que lhe foram atribuídas, e sua estratégia fez com que ele fosse inocentado
em Nuremberg. O próprio réu tem consciência disso ao dizer a Gilbert que o seu papel
no rearmamento não implica em uma participação efetiva na guerra: “isso não é crime, e,
de qualquer forma, não é por isso que sou indiciado. Eles podem atacar meu caráter,
minha duplicidade ou qualquer coisa que quiserem, mas sou indiciado por planejar uma
guerra agressiva. Essa acusação não foi provada” (SCHACHT apud GILBERT, 1995, p.
317). Schacht parecia ser o único confiante enquanto aguardava seu veredito em
Nuremberg e chegou a ser interrogado para fornecer informações sobre os industriais
alemães que seriam julgados em um procedimento posterior (GILBERT, 1995, p. 430).
Ainda que o banqueiro tenha providenciado “amplos fundos para o rearmamento antes da
guerra”, ele havia se aposentado antes da guerra – e essa foi sua grande garantia de
inocência (EVANS, 2014b, p. 849). Seu sucessor, Walther Funk, um negacionista
relapso, não teve a mesma sorte e foi sentenciado à prisão.

Apesar de a própria acusação dizer que “não é um crime ser um alemão


patriota” (BS, 12, p. 426), Schacht se sentia julgado por cumprir seu dever com o povo
alemão. É sempre válido lembrar, no entanto, nas palavras de Jackson, que “seu propósito
neste julgamento e o meu não são exatamente os mesmos” (BS, 12, p. 587). E para o
“velho mago”, a despeito de o tribunal estar preocupado com atos do passado, sua
esperança era a de que as lições de Nuremberg servissem de motivação para o futuro, e
isso significava “uma melhor compreensão dos problemas da Europa” (SCHACHT apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 235). Esse novo futuro, naturalmente, seria moldado com o
234

auxílio desse grande nazista representante da resistência antinazista, inocentado no


julgamento, e que viveu uma longa vida após suas ações no Terceiro Reich.
235

Joachim von Ribbentrop (1893-1946)

“Somos apenas sombras vivas, os restos de uma era morta, uma era que morreu com
Hitler”

(GILBERT, 1995, pp. 222-223)

Joachim von Ribbentrop era o Ministro das Relações Exteriores de 1938 a 1945,
famoso pelo Pacto Ribbentrop-Molotov, o tratado de não agressão firmado entre a
Alemanha e a União Soviética em agosto de 1939. Foi julgado em Nuremberg por plano
de conspiração, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Considerado culpado das quatro acusações, foi condenado à morte e enforcado em 16 de
outubro de 1946. Sobre a acusação, Ribbentrop diz a Gilbert que ela está “direcionada ao
povo errado” (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 5).

Ribbentrop teve uma série de empregos na Grã-Bretanha, no Canadá e na Suíça


Francesa antes de trabalhar para o regime nazista. Vindo de missões diplomáticas em
anos posteriores à Primeira Guerra Mundial e, como um grande frequentador de clubes
de cavalheiros em Berlim, Ribbentrop era um homem muito preocupado com as
aparências. O “von” de seu nome foi um prefixo inserido posteriormente, ao conseguir
236

ser adotado por uma tia do ramo aristocrático de sua família, como uma forma de
transferência de status de nobreza através do nome. No entanto, “o incidente foi típico
tanto da presunção social de Ribbentrop quanto de sua inépcia social: na Londres da
década de 1930, ele às vezes era chamado de ‘von Ribbensnob’”, fazendo referência à
palavra “esnobe”, snob, em inglês (EVANS, 2014c, p. 707). Apesar de sua adesão ao
nazismo em 1932, em anos anteriores, o diplomata era apenas mais um dos insatisfeitos
com a República de Weimar e temeroso do “perigo comunista”. “Longe de ser um nazista
de primeira hora”, Ribbentrop parecia para Hitler “um homem do mundo, experiente em
viagens ao exterior, poliglota, conhecedor da vida social”, e, por isso, um homem
experiente com bons recursos a seu dispor (EVANS, 2014c, p. 707).

No entanto, apesar de ter caído nas graças do Führer, o seu estilo de diplomacia
“brusco, peremptório, autoritário” não agradava outros diplomatas, e, tampouco outros
nazistas, inclusive os réus em Nuremberg. Em Londres ele logo conseguiu outro apelido:
“von Brickendrop”, algo como Quebra-Tijolo. O ressentimento vinha não somente de
estrangeiros por seu papel na diplomacia alemã, mas também dos próprios nazistas pela
importância de um cargo como o seu estar sendo ocupado por um recém-chegado
(EVANS, 2014c, p. 708). Esse homem, “linguisticamente capaz, mas infinitamente
vaidoso, arrogante e pomposo”, a despeito de ser um “iniciante”, gozava de muita
influência com o Führer – ainda que isso fosse fruto de uma combinação de sua bajulação
e adoração do Líder e da desconfiança de Hitler de diplomatas de carreira, como vimos
(KERSHAW, 2010, p. 370).

Ribbentrop é o caso mais extremo de fidelidade pessoal a Hitler em Nuremberg.


Sua contínua admiração pelo Führer transparece de forma clara no tribunal, mas mais
ainda em suas entrevistas a Gustave Gilbert. Descrito pelos advogados da acusação e
pelos outros nazistas como um Yes-man, Ribbentrop confirma o estereótipo mantendo
sua obediência irrestrita e paixão devota a Adolf Hitler. Por vezes, é questionado qual era
o seu ponto de vista, já que ele apenas falava sobre o ponto de vista do Führer (BS, 10,
pp. 393-394). Alguns nazistas o comparavam a um cachorro da marca de gramofone A
Voz do Dono (His Master’s Voice), como apresentado na Imagem 4 (KERSHAW, 2010,
p. 370). Ainda em Nuremberg essa fé não havia se abalado: “Você sabe, mesmo com tudo
que eu sei, se Hitler viesse até mim na cela agora e dissesse ‘Faça isso!’ – Eu ainda faria.
Não é incrível? Você não consegue sentir o magnetismo incrível de sua personalidade?”
(RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 68).
237

Imagem 495

Como um cachorro atento à voz de seu dono, Ribbentrop não mede esforços
para defender seu Führer. Talvez fosse difícil para outras pessoas compreenderem,
sobretudo pessoas que não estiveram próximas de Hitler, mas Ribbentrop afirma sem
pudor que “mesmo agora, seis meses depois de sua morte, não consigo me livrar
completamente de sua influência”. Não apenas ele, mas todos ficaram “fascinados” por
Hitler e, “mesmo que grandes intelectos se reunissem para uma discussão, em poucos
minutos eles simplesmente deixavam de existir e o brilho da personalidade de Hitler
brilhava sobre todos” (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 62). Era muito simples
dizer, como muitos nazistas diziam naquele momento, que teriam agido contra Hitler,
mas Ribbentrop estava certo e convencido de que se Hitler aparecesse no tribunal, todos
ficariam impressionados (amazed), e até mesmo os advogados de acusação, “pessoas que
parecem tão impressionantes agora encolheriam de tamanho”, porque as pessoas sempre
ficavam “terrivelmente impressionadas” com o Führer (RIBBENTROP apud GILBERT,
1995, p. 246).

Mas o que queria dizer, afinal, ser um Yes-man? O próprio Ribbentrop é


questionado pela acusação sobre o significado da expressão:

VON RIBBENTROP: Um yes-man per se. Um homem que diz ‘sim’ mesmo
quando ele mesmo – é um pouco difícil de definir. De qualquer forma, não sei
o que você quer dizer com isso em inglês. Em alemão eu deve defini-lo como
um homem que obedece às ordens e é obediente e leal.
COL. AMEN: E, na verdade, você foi um Yes-man para Hitler, não é verdade?

95
His Master’s Voice, 1898, do artista Francis Barraud (1856-1924). A pintura é a marca registrada de uma
empresa de gramofones. Fonte: Wikipedia.
Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/His_Master%27s_Voice#/media/File:His_Master's_Voice.jpg (Acesso em
14/09/2022)
238

VON RIBBENTROP: Eu sempre fui leal a Hitler, cumpri suas ordens, divergi
com frequência dele, tive sérias disputas com ele, pedi repetidamente minha
demissão, mas quando Hitler dava uma ordem, sempre cumpria suas instruções
de acordo com os princípios do nosso Estado autoritário. (BS, 10, pp. 415-416)

Obediência e lealdade são as definições de Ribbentrop para sua postura no


regime nazista. Mesmo divergindo de Hitler, ele cumpria suas ordens. Como lembra o
Col. Amen, “em outras palavras, ele sempre disse sim” (BS, 10, p. 418). E os motivos
para isso são simples: ele diz que viu “em Adolf Hitler o símbolo da Alemanha e o único
homem que poderia vencer esta guerra para a Alemanha e, portanto, não quis criar
nenhuma dificuldade para ele, e permaneci fiel a ele até o fim” (BS, 10, p. 416). Era
natural, da forma como a Alemanha se estruturava durante o Terceiro Reich, que ele
obedecesse às ordens do Führer. Essa obediência de Ribbentrop não se relaciona, no
entanto, com a atitude dos militares presentes em Nuremberg. Estes, apesar de também
dizerem que estavam apenas cumprindo ordens, como veremos em capítulo posterior, o
faziam sob a justificativa militar de cadeia de comando. Um soldado sempre deve
obedecer e não questionar suas ordens. O Yes-man não obedecia por isso: Ribbentrop
“sempre disse sim” por sua admiração irrestrita e contínua adoração ao Führer.

Para algumas pessoas, como o psiquiatra Leon Goldensohn, essa defesa de


Hitler era uma atitude calculada e ensaiada da parte de Ribbentrop. Goldensohn acredita
que o ministro “está ajudando a construir um mito já bem avançado do magnetismo de
Hitler, do governo de um homem só, do autocontrole e isolamento forçado deste homem,
suas qualidades humanas”, e, ao mesmo tempo, “a incapacidade de qualquer um de seus
colegas de trabalho de conhecê-lo” (GOLDENSOHN, 2005b, p. 184). Ao contrário de
outros julgados, como Hans Fritzsche, que diziam querer se livrar do mito heroico de
Adolf Hitler, Ribbentrop parecia determinado a reforçá-lo. O Führer era esse homem
carismático que, quando falava, todos simplesmente paravam para escutar. Ele admite
que “estava realmente sob o feitiço de Hitler, isso não pode ser negado” (RIBBENTROP
apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 191).

Por sua defesa apaixonada do Führer, Ribbentrop sabia que era visto como um
homem fraco pelos outros réus. Em um dado momento ele se questiona se sua admiração
por Hitler, incompreensível para tantos, era fruto de uma histeria:

Hitler sempre teve, até o fim, e mesmo agora, um estranho fascínio sob mim.
Você chamaria isso de algo anormal de minha parte? Às vezes, em sua
presença, quando ele falava de todos os seus planos, das coisas boas que faria
pelo Volk, férias, estradas, novos prédios, vantagens culturais e assim por
diante, lágrimas vinham aos meus olhos. Seria porque sou um homem fraco e
239

histérico? (RIBBENTROP apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 191)

Talvez não histérico, mas Ribbentrop estava certamente obcecado com a


possibilidade de ter algum problema de saúde que pudesse justificar suas ações. Ele
questiona a Goldensohn diversas vezes se suas atitudes poderiam ser explicadas por uma
possível infecção de sífilis. Ele também se queixa de perda de memória e dificuldade de
concentração. Seu advogado, no entanto, lhe garante que seu caso não era diferente dos
outros, já que todos na Alemanha estavam sofrendo uma “psicose de massa”
(RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 62). O psicólogo Gustave Gilbert relata que
Ribbentrop passava a imagem de um homem derrotado, com a moral baixa e sem
nenhuma perspectiva sobre o mundo, enterrando sua ansiedade em remédios para dormir
(GILBERT, 1995, p. 17). Gilbert conclui que “Hitler ainda é um ‘quebra-cabeça’ para
Ribbentrop, e ele expressa sua confusão (a confusão de um oportunista frustrado que não
pode racionalizar sua posição nem admitir sua culpa) da maneira mais insana”
(GILBERT, 1995, p. 129).

Uma chance

Para Ribbentrop, ingressar na política era um movimento necessário na época,


já que a Alemanha estava enfrentando “sintomas de uma guerra civil” com a falida
República de Weimar e a injustiça do tratado de Versalhes. O povo alemão, naquele
momento, manifestou uma “vontade natural” de “resistir a esse tratamento, que afinal não
significava nada além de querer viver”. Quando o diplomata foi apresentado a Adolf
Hitler por alguns colegas ninguém sabia o que iria acontecer. Mas Ribbentrop assegurou
seus companheiros: “deem uma chance à Alemanha e vocês não terão Adolf Hitler. Não
deem a ela uma chance, e Adolf Hitler chegará ao poder” (BS, 10, p. 227). Como as
grandes potências nunca deram à Alemanha essa chance, Hitler era a consequência lógica
da resolução necessária dessa questão. Em sua perspectiva, as demandas do país eram
absolutamente plausíveis e, caso tivessem sido ouvidos pelas grandes potências, a
Segunda Guerra Mundial jamais teria ocorrido. Ele afirma que a Alemanha precisava do
Lebensraum e que “se vocês tivessem nos dado uma única colônia, vocês nunca teriam
ouvido falar de Hitler” (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 89).

Já em seu primeiro encontro com Hitler, em agosto de 1932, “o vaidoso e


insosso futuro Ministro do Exterior do Reich” (KERSHAW, 2010, p. 268) foi fisgado
pela personalidade do Führer:
240

Adolf Hitler causou uma impressão considerável em mim mesmo naquela


época. Notei particularmente seus olhos azuis em sua aparência geralmente
sombria (dark), e então, talvez tão notável, sua natureza distante, devo dizer
reservada – não inacessível, mas reservada – e a maneira como ele expressava
seus pensamentos. Esses pensamentos e declarações sempre tinham algo final
e definitivo sobre eles, e pareciam vir de seu eu mais íntimo. Tive a impressão
de estar diante de um homem que sabia o que queria e que tinha uma vontade
inabalável e uma personalidade muito forte. Posso resumir dizendo que saí
daquele encontro com Hitler convencido de que, se existia alguém que poderia
salvar a Alemanha dessas grandes dificuldades e daquela angústia que existia
na época, era esse homem. (BS, 10, pp. 227-228)

Esse homem, com sua “vontade inabalável”, que poderia tirar os alemães do
sofrimento a que estavam submetidos, na realidade, só queria igualdade de direitos e
liberdade para o seu país. E, por isso, compreensivelmente, “as pessoas se amontoaram
(crowded) sob um líder forte como ovelhas em uma tempestade” (RIBBENTROP apud
GILBERT, 1995, p. 108). Contudo, os desejos da Alemanha não poderiam ser realizados
com negociações. Hitler, portanto, de acordo com Ribbentrop, deixou a Liga das Nações,
algo já abordado em capítulo anterior, por uma vontade genuína de igualdade de
armamentos, algo nada mais do que justo naquele momento, e que traria de volta a
dignidade para o país.

Todavia, Ribbentrop entendia que estava, durante todo seu período no


ministério, “à sombra de um titã”. Ele não poderia conduzir a política externa tal qual
algum outro político em um sistema parlamentar, afinal, “a personalidade do Führer
naturalmente dominou também a política externa” (BS, 10, p. 243). Hitler “sabia o que
queria” e se encarregava de todos os detalhes, lhe dando ordens específicas e definitivas
sobre como conduzir os assuntos de política externa. E aqui, assim como um soldado, só
lhe cabia obediência.

Não obstante, para Ribbentrop, Hitler sempre quis solucionar todos os


problemas alemães por meio da diplomacia. Uma vez resolvidas as questões de forma
pacífica na Europa, o Führer “tinha a intenção de criar um estado social ideal do povo” e
a Alemanha se tornaria um exemplo a ser seguido, um Estado social moderno e um
modelo. Hitler havia admitido a ele casualmente a possibilidade de um conflito armado,
mas a “impossibilidade de Versalhes” deveria ser tratada de forma pacífica tanto quanto
fosse possível (BS, 10, p. 244). Seu papel fundamental no pacto de não agressão,
conhecido como pacto Ribbentrop-Molotov, também era uma comprovação de que a
ideia sempre havia sido de resolver todos os problemas diplomaticamente. Seu trabalho
como diplomata lhe parecia similar ao de um jogador de poker, no qual por vezes tem-se
241

que apostar tudo mesmo sem ter certeza das cartas (RIBBENTROP apud GILBERT,
1995, p. 246). No entanto, no pacto, como tantas vezes durante sua carreira, Ribbentrop
demonstrou um “instinto para a inabilidade” (KERSHAW, 2010, p. 619).

De acordo com Ian Kershaw, “o pacto mais cínico que se possa imaginar”
(KERSHAW, 2016, p. 349), de não agressão entre a Alemanha e a URSS, selaram o
destino da Polônia. Após sua assinatura, em 24 de agosto de 1939, em apenas dez dias o
mundo se via ingressando na Segunda Guerra Mundial. O historiador Richard Evans
destaca que mesmo tendo sido inesperado, havia motivos válidos para ambas as partes
para a realização do pacto. De um lado, Hitler precisava de aprovação para a invasão
alemã à Polônia para evitar uma guerra europeia em duas frentes. De outro lado, a URSS
via como uma “atraente probabilidade de as potências capitalistas da Europa – Alemanha,
França e Grã-Bretanha – travarem uma guerra de destruição mútua”. No entanto, apesar
da perspectiva de comprometimento de não realização de guerra entre as duas potências,
havia cláusulas secretas no pacto que modificariam o cenário internacional. Por meio
dessas cláusulas, a Europa Oriental e Central foram previamente divididas em esferas de
influência, de modo que “Stálin assumiria a parte oriental da Polônia, junto com Letônia,
Lituânia e Estônia, e Hitler a parte ocidental”. Stalin e Hitler sabiam que os dez anos
prometidos no pacto não seriam respeitados, e, de fato, a falsa paz não durou nem dois
anos. Contudo, Evans ressalta que “a longo prazo, a fronteira traçada na Polônia entre
esferas alemãs e soviéticas se mostraria permanente, ao passo que a ocupação soviética
dos países bálticos duraria até próximo do final do século XX” (EVANS, 2014c, p. 778).

Apesar de a população de ambos os lados enxergarem o pacto entre as duas


potências rivais com desconfiança, no fim, muitos aquiesceram e concordaram que seus
líderes tinham o interesse de seu povo como prioridade. Permaneceu, portanto, a
perspectiva entre a maioria de que o acordo era uma medida tática que poderia ser positiva
para ambos os lados. Sobre a negociação, o Ministro da Propaganda Joseph Goebbels
escreveu em seu diário que “o Líder fez uma manobra brilhante” (GOEBBELS apud
EVANS, 2014c, p. 780). O pacto foi um dos prelúdios da Segunda guerra Mundial e foi
crucial para demonstrar como, entre os nazistas e os membros do exército, “internamente,
nada se interpunha à determinação de Hitler de buscar a guerra” (KERSHAW, 2016, p.
349). Na argumentação de Ribbentrop, no entanto, o pacto era uma demonstração clara e
precisa do esforço alemão de não ingressar em um conflito armado.

Esse é um ponto importante para a análise do mito do Führer, como propõe Ian
242

Kershaw. O historiador ressalta como Hitler havia sido bem bem-sucedido em muitos
aspectos da política internacional por meios supostamente diplomáticos. A campanha do
Ruhr, da Renânia e da anexação da Áustria são exemplos para muitos nazistas de sucessos
políticos que sequer necessitaram da utilização das Forças Armadas, como abordado em
capítulos anteriores. Como vimos, esse Hitler pacifista foi uma imagem cuidadosamente
construída, uma vez que o Führer nunca havia, de fato, desejado a paz (KERSHAW,
2001). A perspectiva de que tudo seria conquistado sem o derramamento de sangue
também era vista por homens como Ribbentrop como um triunfo, demonstrando uma
visão de que a Segunda Guerra Mundial havia sido o último recurso, uma necessidade
imposta após diversas tentativas pacíficas. Não obstante, Ribbentrop lembra que a guerra
era “uma luta de vida e morte” (BS, 10, pp. 393-394) e uma “guerra de prevenção” (BS,
10, p. 429). A anexação da Áustria, nesse sentido, também não foi um plano de agressão,
e sim, “a realização de um propósito” (BS, 10, p. 426).

Portanto, aos olhos de Joachim von Ribbentrop, Hitler havia sido forçado à
guerra, ainda que esta fosse uma guerra preventiva. Como seu “assistente fiel” e alguém
que compartilhava de sua visão da necessidade de fortalecimento da Alemanha, o
ministro ainda defendia as atitudes do Führer com relação à política internacional:

Além dos recintos deste Tribunal, a História comprovará a veracidade de


minhas palavras e mostrará como sempre me esforcei para localizar a guerra e
impedir que ela se espalhasse [para outros países]. Isso, acredito, também será
estabelecido. Portanto, para concluir, gostaria de dizer mais uma vez que a
eclosão da guerra foi causada por circunstâncias que, finalmente, não estavam
mais nas mãos de Hitler. Ele só podia agir da maneira que agia, e quando a
guerra se alastrava cada vez mais, todas as suas decisões eram principalmente
motivadas por considerações de natureza militar, e ele agia unicamente nos
mais altos interesses de seu povo. (BS, 10, p. 430)

Após ser forçado ao conflito armado, não havia outra forma do Führer conduzir
suas ações. Ele “só podia agir da maneira que agia”, e, mesmo tomando decisões por
vezes questionáveis, o seu interesse sempre esteve no povo alemão, a quem dedicou sua
vida e sua carreira política. A Segunda Guerra não poderia ser evitada e Hitler também
não tinha nenhuma culpa desse acontecimento. O “sim” desse Yes-man se fortalece em
sua narrativa como uma defesa de toda e qualquer atitude tomada por seu líder. Afinal,
como aponta Kershaw, parte fundamental da construção do mito do Führer era a
perspectiva de que Hitler estava sempre certo: “havia um sentimento residual duradouro,
evidentemente compartilhado por muitos, de que, quaisquer que fossem as dificuldades e
preocupações temporárias, o Führer estava no controle e sabia o caminho a seguir para
tempos melhores” (KERSHAW, 2001, p. 65–66). De acordo, Hannah Arendt também
243

afirma que “o líder sempre tem razão nos seus atos, e, como estes são planejados para os
séculos vindouros, o exame final do que ele faz é inacessível aos seus contemporâneos”
(ARENDT, 1989, p. 433). O Führer era infalível: “a base da estrutura não está na
veracidade das palavras do líder, mas na infalibilidade dos seus atos” (ARENDT, 1989,
p. 437). Ribbentrop, tomado pelo mito, tinha, portanto, convicção de que Hitler sempre
faria o melhor para a Alemanha – no passado, no presente e no futuro. Afinal, a qualidade
principal do Führer, nas palavras do nazista Rudolf Hess em 1934, era de que ele “sempre
teve razão e sempre terá razão” (ARENDT, 1989, p. 433).

A Solução Conciliatória da Questão Judaica

O antissemitismo e o conhecimento do extermínio são pontos fundamentais na


construção da narrativa de Ribbentrop. Ele afirma diversas vezes que a acusação está
tentando transformá-lo em um antissemita (“make an antisemitic out of me”), algo que
ele nunca havia sido: “no que diz respeito à matança (killing) dos judeus, só posso dizer
que isso teria sido totalmente contrário à minha convicção interior e que a matança dos
judeus nunca passou pela mente de ninguém naquele momento” (BS, 10, p. 300). Como
ele poderia, no entanto, ser um ministro tão importante e não ter sequer algum
conhecimento sobre os campos de concentração? Sobre isso, Ribbentrop recorre ao
argumento de que havia ouvido o nome Auschwitz pela primeira vez na prisão em
Nuremberg e que “essas coisas [os campos] foram mantidas em absoluto segredo e
ouvimos aqui, pela primeira vez, o que se passava nelas. Ninguém sabia nada sobre eles”
(BS, 10, pp. 388-389). Sobre a política antissemita do regime nazista, Ribbentrop declara:

É bastante claro que a tendência e a política antissemita básica do governo


alemão se espalharam por todos os departamentos e, naturalmente, em
qualquer esfera – quero dizer, todos os escritórios do governo, de uma forma
ou de outra, entraram em contato com esses assuntos. Nossa tarefa no
Ministério do Exterior – que poderia ser comprovada em milhares de casos se
os documentos fossem apresentados – era atuar como um intermediário nessa
esfera. Posso dizer que muitas vezes tivemos que fazer as coisas de acordo com
essa política antissemita, mas sempre nos esforçamos para impedir essas
medidas e chegar a algum tipo de solução conciliatória. Na verdade, a
Embaixada da Alemanha não era responsável por quaisquer medidas
antissemitas de qualquer tipo na França. (BS, 10, pp. 402-403)

Nesse sentido, Ribbentrop entende que “como seu fiel seguidor, aderi às ordens
do Führer mesmo neste campo, mas sempre fiz o máximo para aliviar a situação na
medida do possível”, e, é claro que, “nesse sentido, nunca fui antissemita. Mas eu era um
fiel seguidor de Adolf Hitler” (BS, 10, p. 412). Sendo assim, o que o atraiu no movimento
nacional-socialista e na proposta do governo, não foi a política antissemita – ainda que
244

tivesse aderido a esta política. Nesse sentido, é perceptível a ideia de motivos


generalizantes para a adesão ao movimento, como abordado na Introdução. Ribbentrop
não parecia dar grande importância à perseguição dos judeus: “eu mesmo sempre fui de
opinião de que a questão judaica era uma questão política temporária que encontraria sua
própria solução [...] Se eu soubesse delas [das atrocidades], mesmo no final desta guerra,
eu teria cometido suicídio” (RIBBENTROP apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 193). O
limite claramente se traçava no extermínio, mas, como ele não sabia das mortes, não havia
limite.

As descobertas do tribunal com relação ao extermínio causaram uma profunda


impressão no ministro. Todavia, isso se transmuta em uma flutuação de narrativa, por
vezes não acreditando em nada do que foi dito, por vezes demonstrando profundo
arrependimento, e, por vezes, buscando justificativas e racionalizações. Ribbentrop
declara que “nas atrocidades e perseguições aos judeus, nossa culpa como alemães é tão
grande que nos deixa sem palavras. Não há defesa, nem explicação”. Porém, “se você
deixar isso de lado, realmente, todos os outros países têm uma parcela de culpa por
provocar a guerra” (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 107). Sendo assim,
deixando de lado as consequências da guerra – e, aqui, incluindo a Solução Final -, a
guerra, por si só, como um último recurso, não poderia ser vista com um olhar de
julgamento tão grande.

Ribbentrop, portanto, apesar de fazer parte de um governo antissemita, não era


antissemita, “não era um fanático ideólogo como Rosenberg, ou Streicher, ou Goebbels”.
O diplomata era apenas “um empresário internacional que apenas queria resolver os
problemas industriais e deixar a riqueza nacional adequadamente preservada e usada. Se
o comunismo pudesse fazer isso, tudo bem. Se o nacional-socialismo poderia fazê-lo,
tudo bem também” (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 169). Mas, olhando em
perspectiva, “talvez a História vá mostrar que Hitler estava certo” e ele estava errado
(RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 150). E era isso que, por fim, ele acreditava.
Tomado pelo mito de Hitler, Ribbentrop, como muitos, também estava convencido de
estar na presença de um “Führer sem pecado”, alguém que nunca errou e nunca erraria
(KERSHAW, 2001).

A questão fundamental para esse seguidor apaixonado era: onde se encontra a


culpa de Adolf Hitler no processo de extermínio? Como era de se esperar, Ribbentrop
permanece desacreditado de que Hitler sequer soubesse que o extermínio estava
245

acontecendo na Alemanha. Em sua perspectiva, tudo havia sido feito debaixo dos panos
por homens como Himmler e Goebbels, e Hitler nem poderia ter tido conhecimento e
muito menos ordenado algo do tipo:

Mas todas as perseguições e atrocidades são revoltantes para todos nós, eu lhe
asseguro. Simplesmente não é alemão. Você pode me imaginar matando
alguém? Agora, você é psicólogo. Diga-me francamente, algum de nós parece
assassino? Não consigo imaginar Hitler ordenando essas coisas. Não acredito
que ele sabia disso. Ele tinha um lado difícil, eu sei, mas eu acreditava nele de
todo o coração. Ele realmente podia ser tão afetuoso. Eu estava disposto a fazer
qualquer coisa por ele (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 89).

Ribbentrop, portanto, compartilha da perspectiva de que o nazismo – e o lado


“bom” que provinha dessa ideia e desse movimento – estavam encarnados na pessoa de
Adolf Hitler. Este era o “símbolo da justiça política, um homem sem culpa, um ‘Führer
sem pecado’” (KERSHAW, 2001, p. 95). E, nesse sentido, o mito também contemplava
plenamente o ditado: “se apenas o Führer soubesse...”. Enquanto o Partido Nazista e os
“pequenos Hitlers”, isto é, os funcionários do Partido, lidavam com a insatisfação
popular, Hitler pairava sem resistência, justamente porque sua aura não era responsável
pelo dia a dia do Terceiro Reich. Quem executava as políticas, muitas vezes
desagradáveis, eram os funcionários locais, e a eles restava hostilidade e todas as críticas.
Para o Führer, apenas adoração (KERSHAW, 2001). Essas impressões permaneceram até
o fim do Terceiro Reich, mantendo uma atmosfera de desconfiança entre a população e
os membros do Partido, sobretudo entre seus representantes a nível local – que, como
vimos no caso de Ernst Kaltenbrunner, tiveram um papel fundamental em diversas
políticas nazistas, principalmente nas relacionadas à instauração do processo de
extermínio. De acordo com Ian Kershaw,

A imagem altamente positiva do Führer deve ser vista neste contexto. Como o
proverbial rei medieval cujos maus conselheiros levaram a culpa, Hitler
permaneceu protegido da impopularidade pela própria impopularidade dos
‘pequenos Hitlers’, seu ‘carisma’ intocado pelos resmungos e queixas da vida
cotidiana no Terceiro Reich. A convicção de que o Führer interviria
decisivamente se uma vez ficasse sabendo dos abusos diários de seus
subordinados era ela mesma um produto direto desses abusos, o resultado de
uma necessidade psicológica de autoridade imaculada e ‘justa’ que funcionava
como um mecanismo de fuga para descontentamento latente e, portanto, como
uma válvula de segurança para o regime (KERSHAW, 2001, p. 103–104).

Utilizando do conceito de “carisma” de Max Weber, Kershaw compreende que


a autoridade carismática está pautada, sobretudo, em seu caráter extraordinário. Como
essa autoridade surge como uma resposta à uma percepção coletiva de crise, ou seja, como
uma possível solução para uma situação extraordinária, o portador dessa autoridade
precisa, ele próprio ser, também, extraordinário. O carisma, portanto, é concebido como
246

uma qualidade sobrenatural, sobre-humana, ou, no mínimo, excepcional, e, por isso,


inacessível a pessoas comuns (LEPSIUS, 1986, p. 53). Hitler, então, estava duplamente
blindado: sua popularidade aumentava justamente porque ele não era associado às
desagradáveis e, por vezes, inaceitáveis, questões políticas do dia a dia da Alemanha. Ele,
como líder, tinha atributos extra-cotidianos. Os nazistas, no entanto, eram cotidianos,
normais, comuns – e, por isso, corruptíveis.

Homens comuns, diplomatas e políticos em Nuremberg: quem diria que ali


haveria um assassino? Certamente eles não aparentavam ser. E Hitler, um homem “tão
afetuoso” não poderia ser responsável pelo extermínio em massa. O relato de um homem
ao ouvir Adolf Hitler dar um discurso pela primeira vez se assemelha em muito à devoção
de Ribbentrop: “só havia uma coisa para mim, ou ganhar com Adolf Hitler ou morrer por
ele” (KERSHAW, 2001, p. 30). O reforço à ideia da genialidade do Führer era
compensado com suas “qualidades humanas”, como esse lado “afetuoso”. Dessa maneira,
o Führer conseguia ser, concomitantemente, um gênio e alguém próximo do cidadão
comum: “ele não era apenas o símbolo das esperanças futuras [do povo]; sua verdadeira
grandeza estava na simplicidade de sua personalidade” (KERSHAW, 2001, p. 59).

Ribbentrop reconhece, no entanto, que o Führer era um antissemita fervoroso e


que isso era algo que ele não conseguia discutir com o líder: “é preciso menos coragem
para entrar em dez batalhas contra bombas atômicas ou sei lá o quê, do que discutir com
o Führer sobre a Questão Judaica” (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, pp. 323-324).
Ele não havia deixado esse aspecto tão claro no tribunal quanto deixava para Gilbert ou
Goldensohn por um motivo simples: sua lealdade.

Eu não poderia ficar ali e atacar o Führer, isso simplesmente não poderia ser
feito. Não sou como certos alemães – agora não quero dizer nada contra
nenhum outro réu, mas não posso dizer que estava contra ele. Ah, ainda posso
dizer que não acredito que os judeus começaram a guerra, mas não posso expor
como me opus ao Führer nessa questão. […] Eu posso ter feito certas
observações concordando com a política – afinal, eu estava trabalhando para
um governo antissemita. Mas eu nunca fui antissemita. (RIBBENTROP apud
GILBERT, 1995, p. 324)

Aos olhos de Ribbentrop, trabalhar para um governo antissemita não


significava em absoluto uma adesão ideológica ao antissemitismo. Significava, porém,
uma promessa de fidelidade ao Führer, que não poderia ser traída nem naquele momento,
em um julgamento mediante uma corte internacional. Indivíduos de outros países,
sobretudo norte-americanos, não conseguiam compreender as particularidades do povo
alemão. Por natureza, os alemães eram muito leais e isso era parte da personalidade de
247

Ribbentrop. Sendo assim, ele jamais sequer tinha pensado em trair Hitler. Se soubesse
das atrocidades na época, seu único recurso, como ele mesmo diz, seria cometer suicídio,
e não tentar matar o Führer. Gilbert, em uma jogada clássica da psicologia e psiquiatria
da época, questiona se a sensação seria a de matar o seu próprio pai, ao que o ministro
responde que “sim, algo assim. E porque ele se tornou para mim o símbolo da Alemanha”.
Mesmo naquele momento, “se ele viesse a mim agora, eu simplesmente não poderia
renunciar a ele. Eu poderia não o seguir mais, mas repudiá-lo – não, eu simplesmente não
poderia fazê-lo” (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, pp. 235-236).

Servilismo

A postura de Ribbentrop no tribunal foi ridicularizada pelos próprios nazistas.


Hjalmar Schacht, o Yes-man e o contraponto de Ribbentrop em Nuremberg, estava
especialmente irritado com sua linha de defesa, sobretudo porque ele “apenas fazia tudo
que Hitler queria” (SCHACHT apud GILBERT, 1995, p. 222). Outros réus afirmam que
o ministro não era levado a sério nem mesmo durante o Terceiro Reich. Franz von Papen,
declara, surpreso, que “o homem simplesmente não sabia o que estava fazendo”, enquanto
Konstantin von Neurath pondera: “mas ele servilmente fez tudo o que Hitler queria que
ele fizesse, mesmo metendo o nariz em coisas que não eram da sua conta”. Esse
servilismo incondicional a Hitler segue gerando indignação entre os nazistas ao longo dos
procedimentos. Nas palavras de von Papen, a atitude de Ribbentrop era inacreditável,
porque o diplomata obediente estava “pronto para assinar qualquer coisa a qualquer
momento, quando Hitler pensasse nisso, ou antes, se possível”. Karl Dönitz, um pouco
mais cínico, acreditava que o Führer, consciente da fragilidade do diplomata, havia
deixado Ribbentrop no ministério justamente “para que ele próprio pudesse dirigir o
show” (NEURATH; PAPEN; DÖNITZ apud GILBERT, 1995, p. 225-226). Neurath
posteriormente diz a Gilbert que não era possível encontrar “outro funcionário que seja
tido em menor estima do que aquele homem Ribbentrop” (NEURATH apud GILBERT,
1995, p. 229).

Para Hans Frank, havia um motivo óbvio para a postura do ministro: ele era
justamente o homem que Hitler precisava. O nazista afirma: “Hitler cercou-se de homens
bajuladores (Yes-men) e ignorantes para dar a si mesmo uma aparência artificial de força”.
Hermann Göring, o segundo homem do Reich, em sua política de frente unida, considerou
a performance de Ribbentrop simplesmente deplorável: “Oh, Deus, é triste! Muito triste!
Não dou a mínima para como Kaltenbrunner explica seu papel no RSHA, ou como
248

Rosenberg defende sua filosofia, mas nossa política externa... Isso é algo que reflete em
todo o governo! Que calamidade!” (FRANK; GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 230-
231). Na análise do psicólogo Gilbert, Ribbentrop estava confuso e dizia não se lembrar
ou não saber de muitas coisas “em parte porque ele repetiu (parroted) os sentimentos de
Hitler irrefletidamente em primeiro lugar, mal percebendo o que ele estava dizendo”, e,
em parte porque “agora ele estava bloqueando e rejeitando tais fatos prejudiciais de
qualquer maneira, tornando a mentira mais fácil” (GILBERT, 1995, p. 229). O diplomata,
contudo, estava convencido de que, apesar dos esforços da promotoria e dos outros réus,
ele não entraria para a História como um homem humilhado, pelo contrário: Ribbentrop
acreditava que “a História terá uma visão diferente do assunto. E o povo alemão não vai
acreditar neles [na promotoria]. Eu sei o que meu povo pensa de mim. Eu apenas tentei
ajudá-los” (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 229).

Sombras vivas

Não vai valer a pena viver no mundo que surgirá depois do Líder e do nacional-
socialismo, e por isso levei meus filhos. [...] Agora temos somente um
objetivo: lealdade até a morte para com o Líder. O fato de podermos terminar
nossa vida com ele é uma misericórdia do destino pela qual não ousávamos
esperar. (Carta de Magda Goebbels antes de seu suicídio, 1945, EVANS,
2014a, p. 883)

Em 30 de abril de 1945 Adolf Hitler se suicida no bunker nazista em Berlim.


Em seus últimos meses de vida, Hitler não se assemelhava em nada ao grande Führer do
Terceiro Reich. De acordo com o arquiteto e ministro do armamento Albert Speer, “até
mesmo sua voz ficou trêmula e perdeu seu antigo tom de comando. Sua força tinha cedido
lugar a um jeito hesitante e monótono de falar” (EVANS, 2014b, p. 823). As tentativas
de assassinato de 1944 aceleraram a doença de parkinson e, em seus últimos dias, Hitler
parecia completamente entregue à histeria. Seu séquito, cada vez mais reduzido,
acompanhava com apreensão as inúmeras reuniões para definir estratégias de tropas que
nem sequer existiam e a crença insensata em uma vitória milagrosa da Alemanha na
guerra. Dentre esses homens, se destacam Albert Speer, Heinrich Himmler, Martin
Bormann, Wilhelm Keitel, Joseph Goebbels e, também, Joachim von Ribbentrop.

A última aparição pública do Führer foi no seu 56º aniversário em 20 de abril


de 1945. Dez dias depois, Hitler foi encontrado pelo seu secretário com um tiro na
têmpora direita, ao lado de Eva Braun, com quem havia se casado no dia anterior. Eva
havia ingerido veneno. Seguindo as instruções do Führer, seus corpos foram queimados.
249

Seguiu-se uma onda de suicídios nunca vista antes na história moderna. Não
apenas membros do alto escalão como Goebbels e Himmler, mas cidadãos comuns
escolheram a morte. De acordo com as estatísticas oficiais, os suicídios subiram de 239
em março de 1945 para 3.881 no mês seguinte – e os números aumentavam sobretudo
nas zonas ocupadas pelo Exército Vermelho (EVANS, 2014b, p. 839). Muitos membros
do alto escalão recorreram ao suicídio para evitar uma morte como a de Mussolini96 e seu
séquito. Outros, por completa desilusão e perda de sentido em um mundo onde o nacional-
socialismo não existiria mais. Como lembra Melita Maschmann, membro da Juventude
Hitlerista:

Eu tinha plena convicção de que não iria sobreviver ao ‘Terceiro Reich’. Se


ele fosse condenado a desaparecer, então eu também seria. Uma coisa se
seguiria à outra automaticamente, sem que eu tivesse de tomar nenhuma
atitude a esse respeito. Eu não vislumbrava minha morte como um sacrifício
final que deveria ter feito. Nem pensei em suicídio. Eu estava tomada por uma
impressão indistinta de que ‘meu mundo’ seria afastado de seu rumo, como
uma constelação em uma catástrofe cósmica, e iria me arrastar com ele – como
uma minúscula partícula de pó – para a escuridão lá fora. (EVANS, 2014b, p.
837–838)97

É claro que muitos nazistas convictos não se suicidaram ou sequer pensaram


em fazê-lo. Como vimos, Julius Streicher, Alfred Rosenberg e Hermann Göring,
representantes da categoria defensores fiéis, foram levados a julgamento – ainda que
Göring tenha se suicidado antes de ser executado.98 Este também foi o caso de
Ribbentrop, ainda que ele tenha confessado a Goldensohn que tinha veneno guardado
quando foi capturado e que estava preparado para usá-lo. No entanto, ele não havia se
arrependido de não ter cometido suicídio, já que entendia que “agora devo dançar de
acordo com a música” e que deveria “aceitar a responsabilidade, embora não tivesse poder
como Ministro das Relações Exteriores por estar em um Estado ditatorial”
(RIBBENTROP apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 194). Não obstante, o ministro havia
perdido todas as esperanças e sua vida parecia totalmente sem sentido. O que seria dele
sem seu líder? Assim como Melita Maschmann, Ribbentrop responde:

Ah, bem, não faz diferença. Somos apenas sombras vivas – os restos de uma

96
Benito Mussolini, o ditador fascista italiano, foi morto em 28 de abril de 1945 por partisans antifascistas.
Seu corpo, juntamente com o de sua amante, Claretta Petacci, foram expostos, pendurados de cabeça para
baixo, em Milão em praça pública. Por dias a população passava pela praça e atirava objetos e comidas nos
corpos.
97
Esse trecho foi adaptado do post que escrevi sobre a morte de Adolf Hitler para o Núcleo Brasileiro de
Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT). Ver em: https://www.instagram.com/p/B_nACUIlzF3/
(Acesso 12/09/2022)
98
No caso de Göring, contudo, o suicídio estava relacionado com não permitir que os Aliados tirassem a
sua vida. Esse ponto será abordado na Conclusão da tese.
250

era morta – uma era que morreu com Hitler. Quer alguns de nós vivam mais
dez ou 20 anos, não faz diferença. O que eu poderia fazer de qualquer maneira,
mesmo se fosse liberado, o que, claro, não vai acontecer? A antiga era morreu
com Hitler – nós não cabemos mais no mundo atual. Em 30 de abril eu deveria
ter sofrido as consequências. (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, pp. 222-
223, grifo meu)

De fato, Ribbentrop não cabia mais no mundo de 1946. A morte, no entanto,


como era de se esperar, lhe veio com surpresa e horror. Gilbert conta que, ao receber sua
sentença, o ministro “começou a andar pela cela apavorado, sussurrando: ‘Morte! Morte!
Agora não poderei escrever minhas belas memórias. Tsk! Tsk! Tanto ódio!’”
(RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 432). Contemplando o vazio, Ribbentrop era
o retrato de um “homem completamente quebrado” (GILBERT, 1995, p. 432). Destruído,
sem um líder, mesmo sem a forca como veredito, esse homem provavelmente não saberia
o que fazer com sua própria existência. Talvez, permanecesse olhando para o gramofone
ainda esperando ouvir a voz de seu dono.

De forma similar a Julius Streicher, Ribbentrop possuía uma bússola que dava
sentido e direção a sua vida. Para ele, contudo, esse direcionamento não vinha
necessariamente do nacional-socialismo e sim da figura de Adolf Hitler. E, por isso, seu
mundo havia acabado com a morte do Führer. Todas as esperanças do Terceiro Reich e
desse novo mundo a ser construído e sonhado morreram junto com o líder. Ele deveria
ter “sofrido as consequências” e morrido com Hitler, como Goebbels fez e como a carta
de sua esposa antes dos suicídios demonstra: o mundo depois de Hitler não valia a pena.
Ribbentrop é um retrato de um homem fiel. Não no sentido militar, do Princípio de
Liderança ou da obediência irrefletida. Mas no sentido da admiração e devoção a uma
figura que, a seus olhos, não poderia fazer nada de errado, nunca. Até o fim e a beira da
morte, Ribbentrop permanecia dizendo sim a Adolf Hitler.
251

Capítulo Cinco
Ex-nazistas arrependidos

Hans Frank
Albert Speer
Baldur von Schirach
Hans Fritzsche

E é assim com todo o povo alemão,


concentrado na minha pequena pessoa como um dos símbolos.
Claro, alguém tem que responder por isso.
Mas vamos explicar nossa posição diante do mundo,
para que pelo menos não morramos sob esse terrível fardo de vergonha.
Hans Fritzsche (GILBERT, 1995, p. 40)
252

Neste capítulo irei analisar o arquétipo que denominei como ex-nazistas


arrependidos. Aqui nós temos homens que não negam seu envolvimento no regime
nazista, mas que buscam a reabilitação na História por meio da demonstração de um
profundo remorso por suas ações. Dispostos em diversos pontos da cadeia de comando
do Terceiro Reich, e, apresentando diferentes graus simbólicos de importância, essa
categoria é composta por dois polos distintos: nazistas operacionais, isto é, funcionários
que atuaram ativamente na política externa e que possuíam grande influência e relevância
devido a suas atividades; e nazistas figurativos, ou seja, homens que eram muito mais
importantes em virtude da representatividade simbólica de suas funções do que
efetivamente por suas ações. Dentre os nazistas operacionais, temos os casos de Hans
Frank e de Albert Speer, e, representando os nazistas figurativos, temos as narrativas de
Baldur von Schirach e Hans Fritzsche. Essa diferenciação dentro da categoria de ex-
nazistas arrependidos, percebida até mesmo pela promotoria, não representa, no entanto,
uma distinção extrema dentre seus discursos. Todos os quatro utilizam seus depoimentos
para demonstrar seu desgosto por terem participado, alguns mais e outros menos, de um
regime que, naquele momento em Nuremberg, enxergavam como criminoso. Todos
fazem do tribunal um púlpito, alguns de maneira mais dramática que outros, para
denunciar e culpabilizar Adolf Hitler, o homem que não estava ali.

Com exceção de Frank, os outros três são classificados pelo psicólogo Gilbert
como a ala “jovem” do julgamento. Esses homens inclusive sentavam-se juntos no
refeitório da prisão em Nuremberg após a divisão feita pelo próprio Gilbert a pedido da
promotoria, como mencionado no caso de Hermann Göring. O objetivo de formar essa
organização do “refeitório jovem” (youth lunchroom), era, de acordo o psicólogo, além
de afastá-los da influência de Göring, “dar até mesmo a von Schirach a chance de declarar
que Hitler havia traído a Juventude Alemã e que a política racial era a catástrofe da
Alemanha” (GILBERT, 1995, p. 158–159). De fato, entre os jovens Speer, Schirach e
Fritzsche, há o consenso na potência de seus discursos para colocar um ponto final na
“lenda de Hitler”. Sua rejeição incisiva não somente do nazismo, mas também, e
sobretudo, do antissemitismo, faz com que até mesmo Gilbert acredite na sinceridade de
suas declarações. Quando Göring, em uma de suas explosões de raiva com as defesas que
denunciavam os crimes nazistas, afirma que os “jovens” haviam feito um pacto com a
promotoria para garantir uma absolvição com essas denúncias, Gilbert vem em prontidão
para defendê-los: “Eu disse a ele [Göring] que ele certamente deveria saber que isso
253

estava fora de questão”, e que “[eu] estava convencido de que Speer e von Schirach, pelo
menos, fizeram a denúncia por amarga desilusão e tentaram esclarecer o povo alemão
sobre a culpa de seus líderes” (GILBERT, 1995, p. 418).

Apesar de algumas nuances narrativas entre esses homens, especialmente por


suas funções dentro do Terceiro Reich, como veremos, há uma disputa entre os ex-
nazistas arrependidos pelo monopólio do arrependimento em Nuremberg. O “açougueiro
da Polônia” Hans Frank, especialmente, não aceita que outros réus admitam sua culpa e
acredita apenas na sinceridade de sua própria confissão. O que permanece nos discursos
desses quatro homens, entretanto, é a busca por uma reparação de seus papéis para, quem
sabe, serem reinseridos na sociedade ocidental não como criminosos, mas como ex-
membros de um regime criminoso.
254

Hans Frank (1900-1946)

“Não, eu posso ver que o destino me colocou aqui para expor o mal que está em todos
nós. Deus conceda que eu mantenha minhas forças para fazê-lo e que não enfraqueça
novamente”

(GILBERT, 1995, p. 264)

Hans Frank, conhecido como o “açougueiro da Polônia”, era o advogado


pessoal de Hitler e do NSDAP e Governador Geral da Polônia ocupada de 1939 a 1945.
Foi julgado em Nuremberg por plano de conspiração, crimes de guerra e crimes contra a
humanidade. Considerado culpado pelos dois últimos, o advogado foi condenado à morte
e enforcado em 16 de outubro de 1946.

Frank era um dos casos mais proeminentes em Nuremberg e um dos nomes que
a promotoria russa insistiu para que fossem levados para esse primeiro tribunal. Esse
homem esteve ao lado de Adolf Hitler desde os primórdios do movimento nacional-
socialista, participando, inclusive, do putsch da cervejaria de Munique em 8 de novembro
255

de 1923.99 Apesar de ter caído “rapidamente sob o encanto de Hitler”, Frank nunca
chegou a fazer parte do círculo mais íntimo do Führer (EVANS, 2014a, p. 234). Sobre a
acusação, ele declara: “considero este julgamento como um tribunal mundial da vontade
de Deus, destinado a examinar e pôr fim à terrível era de sofrimento sob Adolf Hitler”
(FRANK apud GILBERT, 1995, p. 5).

Frank é uma das personalidades mais controversas em Nuremberg e já era


conhecido no Reich por sua fascinação “pela pornografia da violência: admirava homens
de ação brutal, e com frequência usava a linguagem da violência com uma rudeza e
agressividade inigualada por quase nenhuma outra liderança nazista em tentativa de
parecer-se a eles”. No entanto, por ser formado em direito, com um doutorado obtido em
1924, o advogado tinha um treinamento e formação legal que “proporcionaram-lhe uma
crença residual na lei que, às vezes, se assentava desconfortavelmente junto com o pendor
para a linguagem grosseira e a defesa de atos assassinos” (EVANS, 2014a, p. 234). Frank
teve um papel importante nos primeiros anos do movimento por conseguir defender
judicialmente os baderneiros do Partido Nazista: até 1933 ele havia representado mais de
2400 casos contra os membros por atos de violência, em sua maioria (EVANS, 2014a, p.
234). Durante o Terceiro Reich, também foi responsável pela implementação de leis
repressivas e por tornar o direito uma ferramenta ideológica do nacional-socialismo. No
entanto, em Nuremberg, toda a atenção é voltada para sua responsabilidade direta e
inquestionável no Holocausto durante seu período como Governador Geral da Polônia.

Seu caso é um dos mais interessantes para análise por conta de sua constante
mudança de narrativa em seus depoimentos. Por ser um recém-convertido ao catolicismo,
Frank passa boa parte de suas entrevistas com o psicólogo Gilbert e com o psiquiatra
Goldensohn utilizando um vocabulário religioso e quase apocalíptico. Com explosões de
sentimentalismo, alternando entre lágrimas e histeria, Frank se apresenta como um
homem cheio de arrependimentos. Em outros momentos, no entanto, vai em defesa do
nazismo e de seus camaradas, deixando transparecer que via o tribunal como uma farsa.

99
O putsch da cervejaria foi um movimento inspirado na Marcha sobre Roma de Mussolini e representou
a tentativa de Adolf Hitler e de seus correligionários de derrubar o poder bávaro. Ao anunciarem, em uma
cervejaria de Munique, que o governo estava deposto, Hitler e seus apoiadores marcharam pelas ruas em
direção ao Ministério da Guerra, mas se depararam com policiais armados. A movimentação clandestina e
malsucedida causou a prisão de Adolf Hitler e de outros envolvidos em novembro de 1923. Detido na
cidade de Landsberg, ele escreveu o livro Mein Kampf, que se tornaria a base ideológica do regime nazista.
Para saber mais, ver o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT):
https://www.instagram.com/p/CWBOTMEM-0m/ (Acesso em 04/09/2022)
256

O advogado acredita ser o único homem em Nuremberg a admitir sua parcela de culpa,
compreendendo que estava em uma posição diferente da de outros julgados precisamente
pela sua responsabilidade. Em seus discursos no tribunal, contudo, a persona de Frank
não é a desse homem arrependido – ao menos, não com tanta ênfase. Durante o
julgamento, ele não fala mais do que o necessário, não provê longas explicações, e,
tampouco admite qualquer tipo de culpa criminal: sua culpa está meramente no campo da
moral. Como veremos, esse ex-nazista arrependido busca sua reabilitação com seus
discursos, e compreende muito bem as diferentes audiências para as quais está
endereçando suas palavras.

Grilhões intoleráveis

1 de setembro de 1939 marca o início da Segunda Guerra Mundial com a


invasão da Polônia pelos alemães. O primeiro ataque ocorreu em Danzig, região do
“corredor polonês”, que separava a Prússia Oriental do restante da Alemanha, e, ainda,
dava acesso ao mar báltico. Como mais um dos territórios que pertenciam ao império
alemão e que foram perdidos após Primeira Guerra Mundial, a ocupação de Danzig era
simbólica, e representava para os nazistas mais uma apropriação do que Versalhes havia
roubado. Após os já mencionados sucessos de ocupação da Tchecoslováquia, dos
Sudetos, da Áustria, e do distrito de Memel, na Lituânia, Danzig era o último obstáculo
que precisava ser superado. Como lembra Ian Kershaw, a invasão da Tchecoslováquia e
a criação do Protetorado da Boêmia e Morávia mostraram que “não podia mais haver
ilusões quanto a Hitler ser um mero político nacionalista interessado em incorporar
grupos de etnia alemã a um Reich expandido. Tratava-se de conquista imperialista pura
e simples” (KERSHAW, 2016, p. 344). Quando as democracias ocidentais finalmente “o
viram como realmente era”, ficou claro que a próxima ocupação levaria à guerra. E o
caminho para a Segunda Guerra Mundial “fora sinuoso – e, na prática, ‘pavimentado com
as boas intenções’ dos apaziguadores” (KERSHAW, 2016, p. 351), que, no fim, não
foram suficientes para conter os desejos expansionistas do Führer.

Pouco mais de quinze dias depois, a União Soviética também invade a Polônia,
colocando o fim determinante no já falido Pacto Ribbentrop-Molotov de não agressão,
abordado em capítulo anterior. Já em outubro de 1939, as unidades militares polonesas
remanescentes se renderam, demonstrando o primeiro triunfo de Hitler na sua estratégia
de Blitzkrieg, que ainda lhe renderia muitas vitórias e popularidade, por ser “uma guerra
de movimentação rápida” que nocauteava os inimigos com mínimas perdas para o lado
257

alemão (EVANS, 2014b, p. 27). Essa guerra-relâmpago tirou a vida de mais de 120 mil
poloneses, em comparação com 11 mil baixas alemãs.100

Os planos de Hitler para a Polônia, entretanto, eram bem diferentes de suas


intenções para o Protetorado da Boêmia e Morávia, como mencionados no capítulo sobre
os diplomatas da velha guarda. Como demonstra Richard Evans, “a Polônia ocupada
viria a se tornar o campo de prova para a criação da nova ordem racial na Europa centro-
oriental”, a execução prática da ideia de espaço vital. Era uma colônia com mais de 11
milhões de pessoas, “fora do Reich e além de sua lei, com os habitantes poloneses
efetivamente sem Estado e sem direitos” (EVANS, 2014b, p. 33). Hans Frank, como
Governador Geral, tinha poderes quase ilimitados e sua retórica “brutal e violenta
depressa se traduziria na realidade da ação brutal e violenta” (EVANS, 2014b, p. 34). A
Siedlung (colonização) necessitaria de Aufbau (estrutura), e essa era a função de Frank
(CHAPOUTOT, 2018, p. 330).

Os poloneses eram vistos por Hitler como “mais animais do que homens,
totalmente obtusos e amorfos”, e sua sujeira era “inimaginável” (EVANS, 2014b, p. 33).
Sendo assim, com sua colonização, o objetivo dos nazistas era manter a população
polonesa em um estado de diminuição cultural tão intenso que eles não teriam capacidade
de ganhar compreensão de sua identidade e de sua condição e, tampouco, assimilar que
estavam aos poucos, a médio e longo prazo, sendo levados à exploração para as
necessidades econômicas da Alemanha (CHAPOUTOT, 2018, p. 331). Como tudo até
então, os nazistas estavam apenas restabelecendo um balanço natural que havia sido
quebrado com fronteiras artificiais: os poloneses eram racialmente inferiores e, por isso,
deveriam ocupar seu lugar na natureza servindo a um povo superior – no caso, os arianos.
A educação no território ocupado deveria ser mínima, mantendo apenas o necessário para
a execução do trabalho, e os poloneses não tinham nenhuma seguridade de direitos. Não
se podia exterminar a população inteira de pronto, já que os braços eram necessários para
a servidão e o trabalho. Essas medidas eram duras, é claro, mas necessárias, e, mais
importante, coerentes: “era consistente porque se baseava em desigualdades naturais, e
justa, porque cada um estaria cumprindo seu papel e sua vocação biológica – os senhores
comandariam e os escravos obedeceriam” (CHAPOUTOT, 2018, p. 334).

100
Parte do conteúdo desses dois parágrafos foi retirado e adaptado do post do Núcleo Brasileiro de
Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/CTSITzil1nj/ (Acesso em 04/09/2022)
258

Hans Frank não nega seu alinhamento ideológico ao projeto colonizador do


Reich durante seus interrogatórios. Com relação ao seu cargo como Governador Geral da
Polônia ele afirma: “na minha própria esfera, fiz tudo o que se poderia esperar de um
homem que acredita na grandeza de seu povo e que está cheio de fanatismo (fanaticism)
pela grandeza de seu país, para conseguir a vitória de Adolf Hitler e do movimento
nacional-socialista” (BS, 12, p. 6). No entanto, ele não havia sido informado sobre a
extensão de seu trabalho quando assumiu seu posto, uma vez que todos os poderes
estavam, na realidade, nas mãos de Heinrich Himmler. Questões mais burocráticas
ligadas à economia, organização social e distribuição de suprimentos dentro da Polônia
também eram resolvidas por outros funcionários do Reich. Sendo assim, nas condições
da guerra, tudo que Frank podia fazer era construir “alguma espécie de ordem que
permitisse aos homens viver” e, por isso, seu trabalho não podia ser julgado “à luz do
momento, mas deve ser julgado em sua totalidade”. O advogado afirma, portanto, que seu
objetivo era meramente “salvaguardar a justiça sem prejudicar nosso esforço de guerra”
(BS, 12, pp. 7-8). Essa guerra, é claro, não havia sido desejada por ele:

A guerra não é uma coisa que se quer. A guerra é terrível. Nós a vivemos (lived
through it); mas não queríamos a guerra. Nós queríamos uma grande
Alemanha e a restauração da liberdade e do bem-estar, da saúde e da felicidade
de nosso povo. Era meu sonho, e provavelmente o sonho de cada um de nós,
fazer uma revisão do Tratado de Versalhes por meios pacíficos, algo que estava
previsto naquele mesmo tratado. Mas, como no mundo dos tratados, também
entre as nações, só quem é forte é ouvido; A Alemanha teve que se tornar forte
primeiro antes que pudéssemos negociar. Foi assim que eu vi o
desenvolvimento como um todo: o fortalecimento do Reich, o
restabelecimento de sua soberania em todas as esferas, e por esses meios nos
libertar dos grilhões (shackles) intoleráveis que haviam sido impostos ao nosso
povo. Fiquei feliz, portanto, quando Adolf Hitler, na mais maravilhosa
ascensão ao poder, sem paralelo na história da humanidade, conseguiu, no final
de 1938, alcançar a maioria desses objetivos; e fiquei igualmente infeliz
quando, em 1939, para minha consternação (dismay), percebi cada vez mais
que Adolf Hitler parecia estar se afastando daquele rumo e seguindo outros
métodos (BS, 12, pp. 7-8).

Dessa maneira, assim como outros nazistas, o discurso de Frank abarcava


totalmente a narrativa da impotência. É válido lembrar, contudo, que ainda em 1939 Frank
havia declarado que “o Reich nacional-socialista não é um regime ditatorial, e muito
menos arbitrário. Baseia-se na lealdade mútua do Führer e do povo” (FRANK apud
ARENDT, 1989, p. 407). Assim, naqueles tempos em que se sentia “um verdadeiro
sentimento revolucionário no ar” (FRANK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 26), Frank
foi tomado por entusiasmo e o desejo de Hitler também era o seu desejo. Ele viveu o seu
sonho. A guerra, no entanto, escancarou que o Führer não tinha desejos pacíficos de fato
259

e os maravilhosos feitos de Hitler foram obscurecidos pelos crimes nos campos de


extermínio. Esse discurso não era amparado na realidade dos fatos e, como veremos, o
“açougueiro” estava de acordo com os “outros métodos” usados na Polônia,
transformando o Governo Geral em um grande terreno de experimentações.

Paixões terríveis

Grande parte do caso da acusação se baseava em tentar comprovar que a polícia


estava subordinada ao Governo Geral, já que, se esse fosse o caso, então Hans Frank teria
responsabilidade pela SS, pelos Einsatzgruppen e pelo extermínio nos territórios
ocupados. É sobre essa acusação que Frank passa a maior parte de seu caso se
defendendo, negando qualquer relação com a polícia e com a SS e reiterando que estas
estavam apenas sob ordens diretas de Himmler. E, como ele não tinha responsabilidade
por esses homens, ele também não tinha responsabilidade pelos crimes cometidos, crimes
estes que ele sequer tinha conhecimento: seu poder, portanto, era meramente
administrativo, e ele era deixado no escuro no que diz respeito às grandes decisões do
Reich. Que ficasse claro, entretanto, que nem todos os homens da SS eram criminosos.
Frank os defende dizendo que conheceu muitos “soldados honestos, limpos e justos” e
que “a SS, como tal, não se comportou mais criminalmente do que qualquer outro grupo
social se comportaria ao participar de eventos políticos”. Ele continua: “o terrível foi que
o chefe responsável, e vários outros homens da SS que infelizmente receberam poderes
consideráveis, puderam abusar da atitude leal que é tão típica do soldado alemão” (BS,
12, pp. 9-10). Sendo assim, de modo geral, não se podia considerar a SS como uma
organização criminosa, já que nem todos os seus homens cometeram crimes.

Por esse mesmo motivo, Frank, ainda que pertencente a um regime criminoso,
só podia sentir uma culpa moral pelo extermínio dos judeus, nada além disso. Sua postura
é perceptível quando ele é questionado diretamente sobre sua participação na aniquilação
dos judeus:

Eu digo ‘sim’; e a razão pela qual digo ‘sim’ é porque, tendo vivido os 5 meses
deste julgamento, e particularmente depois de ter ouvido o depoimento da
testemunha Höss, minha consciência não me permite jogar a responsabilidade
apenas sobre esses homens menores. Eu mesmo nunca instalei um campo de
extermínio para judeus, nem promovi a existência de tais campos; mas se
Adolf Hitler pessoalmente colocou essa terrível responsabilidade sobre seu
povo, então é minha também, pois lutamos contra os judeus durante anos; e
nos entregamos às declarações mais horríveis – meu próprio diário testemunha
contra mim. Portanto, não é mais do que meu dever responder à sua pergunta
a esse respeito com ‘sim’. Mil anos se passarão e esta culpa da Alemanha ainda
não terá sido apagada (BS, 12, p. 13).
260

Os diários de Hans Frank de fato testemunham contra ele. Ele mesmo admite
que “algumas das palavras são terríveis. Eu mesmo devo admitir que fiquei chocado com
muitas das palavras que usei” (BS, 12, p. 20). No entanto, ele ressalta que era necessário
compreender que, dentro dos 43 volumes daquele diário, existia, como pano de fundo,
uma situação política e social dramática. O diário deveria ser analisado em seu contexto,
já que o Terceiro Reich “foi um período selvagem e tempestuoso cheio de paixões
terríveis, e quando um país inteiro está em chamas e uma luta de vida ou morte está
acontecendo, essas palavras podem facilmente ser usadas” (BS, 12, p. 20).

Frank sabe que o fato de ter entregado esses diários à acusação faz com que sua
defesa seja ineficiente, afinal, como negar o que ele próprio havia escrito? Entretanto,
para além dos diários, sabemos de dezenas de outras declarações “terríveis” do
“açougueiro da Polônia” que contradizem o que ele diz em Nuremberg. Em 16 de
dezembro de 1941, por exemplo, ele diz à sua equipe: “quanto aos judeus – quero dizer
isso a vocês com total franqueza -, deve-se dar um fim neles de um jeito ou de outro”.
Advertindo os oficiais contra “qualquer pensamento de pena”, Frank declara: “devemos
aniquilar os judeus onde quer que topemos com eles e sempre que possível a fim de
sustentar a estrutura total do Reich aqui” (FRANK apud EVANS, 2014b, p. 305). A
aniquilação começaria, como determinado anos antes, com o número de 3,5 milhões de
judeus. Estes deveriam ser eliminados de acordo com as determinações de Berlim, a
começar pela província de Wartheland em 1939, como mencionado brevemente no caso
de Ernst Kaltenbrunner.

Após a ordem de Himmler demandando a remoção de todos os judeus dos


territórios ocupados entre novembro de 1939 e fevereiro de 1940, Wartheland recebeu
instruções para uma deportação inicial de 200 mil poloneses e 100 mil judeus. O Governo
Geral se tornou, entre 1939 e 1941, um depósito para esses milhares de indivíduos
indesejados. Estima-se que mais de 400 mil tenham sido deportados e um número
equivalente tenha sido enviado para a Alemanha para realizar trabalhos forçados
(KERSHAW, 2016, p. 367). Com o passar do tempo, contudo, novas alternativas
precisavam ser pensadas, já que os nazistas subestimaram os problemas logísticos dessa
solução “territorial” do problema judaico. A alocação e concentração desse contingente
enorme de pessoas foi pensada como um recurso transitório para “abrir espaço para a
colonização” de grupos de alemães trazidos de outras localidades, como o Báltico
(KERSHAW, 2016, p. 367). No entanto, como demonstra Ian Kershaw, em 1941 ainda
261

não havia um consenso entre os nazistas sobre o que fazer com os guetos na Polônia, que
passaram a ser uma realidade concreta e não apenas uma solução temporária. O que
acelerou a ideia do genocídio foi a deflagração da guerra contra a União Soviética, com
a Operação Barbarossa em junho de 1941 (KERSHAW, 2009).

Como o próprio Hans Frank afirmou no discurso supracitado de dezembro de


1941, não era possível fuzilar 3,5 milhões de judeus. Em fins de setembro e outubro de
1941 já estava em curso a ideia de exterminar os judeus incapazes de trabalhar e, também,
de fazê-los trabalharem até a morte (KERSHAW, 2010, p. 730). Mesmo que ainda não
houvesse um plano de genocídio, ações isoladas de extermínio já estavam ocorrendo em
fins de 1941 em locais como Wartheland e, em 1942, milhares já haviam sido mortos
pelas autoridades locais, com a sanção do Governo Geral. Os assassinatos ocorridos nas
florestas de Wartheland em outubro de 1941 eram como uma experimentação para o que
seria executado posteriormente em Chelmno, um local especificamente designado para
isso, onde os judeus seriam mortos por gás por uma equipe especializada. Vans com gás
tóxico foram colocadas em funcionamento em dezembro daquele ano, como um
preparativo para o que viria no ano seguinte. Matar essas pessoas era basicamente uma
solução técnica para a resolução de um problema, já que aquele contingente de judeus
precisava ser eliminado para dar espaço para a colonização alemã na Polônia, e Hans
Frank e Hermann Göring não queriam “resolver” esse problema de outra maneira
(KERSHAW, 2009, pp. 69–70).

A Solução Final foi informada em 20 de janeiro de 1942 na Conferência de


Wannsee,101 que contou com a participação de oficiais do alto escalão do Partido Nazista,
incluindo Adolf Eichmann e Reinhard Heydrich. Na reunião foi decidido a sistematização
do processo de extermínio dos 11 milhões de judeus da Europa: a deportação em massa
colocaria os judeus como mão-de-obra, deixando morrer os mais fracos e tratando “de
forma correspondente” os mais fortes que sobrevivessem (KERSHAW, 2010, p. 731).
Todavia, como reforça Kershaw, quando a Conferência ocorreu, as operações de
extermínio em Wartheland já aconteciam há 6 semanas, demonstrando a importância das
autoridades locais para a execução do assassinato, mesmo que ainda não houvesse uma
ordem nacional e sistematizada sobre o que fazer com os judeus. A iniciativa de homens
como Arthur Greiser, governador da província de Wartheland e Wilhelm Koppe,

101
Sobre a Conferência, conferir o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto
(NEPAT): https://www.instagram.com/p/CY9MaJdMtdR/ (Acesso 04/09/2022)
262

funcionário de alta patente da SS na região e responsável pela política de deportação do


local, ainda que de acordo com as diretrizes de Himmler e Hitler, foi fundamental para
colocar o genocídio em andamento (KERSHAW, 2009).

Como demonstra Kershaw, a Conferência de Wannsee colocou o Governo


Geral no centro da decisão do extermínio: “um programa de deportação para aniquilar os
judeus mediante trabalho forçado e fome no território soviético ocupado, após uma guerra
vitoriosa, abriu caminho para a percepção de que os judeus teriam de ser sistematicamente
destruídos antes do final da guerra” e, então, “o principal lugar de sua destruição não seria
mais a União Soviética, mas o território do Governo Geral” (KERSHAW, 2010, p. 731–
732). A partir daquele momento, a Solução Final estava em andamento: os transportes
começaram em julho, com a maioria dos judeus sendo levados para o extermínio em
Auschwitz, e, no fim de 1942, de acordo com dados da própria SS, 4 milhões de judeus
já haviam sido assassinados (KERSHAW, 2010, p. 732).

O Governo Geral deixou de ser um local de “trânsito” para os judeus e passou


a ser o cerne de uma solução que não era mais territorial. Para Frank, no entanto, o
Governo Geral era como o governo de qualquer país em um território ocupado: “o
Governo Geral apresentou o mesmo quadro que todos os países ocupados. Não
precisamos olhar muito longe deste tribunal para ver como é a vida cultural em um país
ocupado” (BS, 12, p. 22). É válido pontuar que o Governo Geral tinha quatro campos de
extermínio dentro de seu território: Belzec, Treblinka, Majdanek e Sobibor. Como o
famoso campo de Auschwitz ficava fora da sua zona de influência, Frank utilizou-o como
um recurso para alegar sua ignorância com relação a tudo o que acontecia em todos os
outros campos. Ele afirma ter perguntado diversas vezes sobre o destino dos judeus
deportados, e sempre lhe disseram que eles estavam sendo levados para o Leste para
trabalhar. Contudo, ele diz: “o fedor parecia penetrar nas paredes e, portanto, persisti em
minhas investigações sobre o que estava acontecendo” (BS, 12, p. 18). Frank relata sua
consternação quando foi questionar sobre o extermínio a Adolf Hitler em 1941:

‘Meu Führer, os rumores sobre o extermínio dos judeus não serão silenciados.
Eles são ouvidos em todos os lugares. Ninguém é permitido em nenhum lugar.
Certa vez, fiz uma visita surpresa a Auschwitz para ver o campo, mas me
disseram que havia uma epidemia no campo e meu carro foi desviado antes de
eu chegar lá. Diga-me, meu Führer, há alguma coisa nele?’ O Führer disse:
‘Você pode muito bem imaginar que estão acontecendo execuções de
insurgentes. Fora isso não sei nada. Por que você não fala com Heinrich
Himmler sobre isso?’ E eu disse: ‘Bem, Himmler fez um discurso para nós na
Cracóvia e declarou na frente de todas as pessoas que eu havia convocado
oficialmente para a reunião que esses rumores sobre o extermínio sistemático
263

dos judeus eram falsos; os judeus estavam apenas sendo trazidos para o Leste’.
Então o Führer disse: ‘Então você deve acreditar nisso’. (BS, 12, pp. 18-19)

Frank, esse homem que estava em um “estado permanente de renúncia do


cargo” (BS, 12, p. 26), não se apresenta no tribunal como o homem arrependido que
conversa com Gilbert e Goldensohn. Sua culpa moral aparece no começo de seu
depoimento, mas, aos poucos, Frank, de modo similar a outros nazistas, nega seu
conhecimento dos crimes e evade questões alegando incapacidade de assumir
responsabilidade sob seus próprios funcionários. Como ele havia entregado seus diários,
essa lhe parece ser sua salvaguarda. Afinal, como ele diz, “admito sem reservas o que
pode ser admitido, mas também jurei não acrescentar nada” (BS, 12, pp. 41-42). Por esse
motivo, também, seu interrogatório, em total descompasso com a importância de seu
cargo, é o menor dentre todos os julgados em Nuremberg. Havia, entretanto, um outro
lado dessa história: a presença do “outro Frank”, acometido de um remorso profundo por
suas ações e que não se recusa a assumir sua parcela de responsabilidade, aquiescendo ao
seu inevitável destino, a pena de morte.

O outro Frank

O recém-convertido ao catolicismo Hans Frank acredita que o tribunal era um


“espetáculo da ironia do destino e da justiça celestial” e a prova do “divertimento de Deus
com a busca sacrílega dos homens pelo poder” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 20).
Seus discursos ao psicólogo Gustave Gilbert e ao psiquiatra Leon Goldensohn devem ser
analisados separadamente às suas declarações ao tribunal pela diferença de suas
narrativas nesses casos. Para Gilbert, Frank é um estranho personagem, beirando a
insanidade, com acessos de euforia e posterior arrependimento e culpa. Enquanto a
promotoria o descrevia como evasivo e grosseiro, para Gilbert, Frank era o retrato da
gentileza e de alguém que queria desesperadamente ser ouvido. Esse Hans Frank, o
arrependido, dizia que o Terceiro Reich era “uma tragédia terrível na história da
humanidade” e eles, os nazistas no julgamento, eram “os símbolos de um mal que Deus
está afastando” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 20). O próprio nazista compreende
sua dualidade:

É como se eu fosse duas pessoas: eu, eu, esse Frank aqui — e o outro Frank, o
líder nazista. E às vezes me pergunto como aquele homem, Frank, poderia ter
feito essas coisas. Este Frank olha para o outro Frank e diz: ‘Hmm, que parasita
(louse) você é, Frank! Como você pôde fazer essas coisas? Você certamente
deixou suas emoções correrem com você, não foi?’ [...] É como se eu fosse
duas pessoas diferentes. Estou aqui, eu mesmo – e aquele outro Frank dos
grandes discursos nazistas ali em julgamento. Fascinante, não é? (FRANK
264

apud GILBERT, 1995, p. 116)

Esse Frank do julgamento, inclusive, não se sentia à vontade de estar na mesma


categoria que “personagens tão repulsivos” como Göring, Streicher e Ribbentrop
(FRANK apud GILBERT, 1995, p. 82). Sendo assim, a maneira que ele enxergou de se
“livrar de uma vez por todas do outro Frank”, foi entregar seus diários (GILBERT, 1995,
p. 145), algo que mesmo naquele momento ele não se arrependia: “Deus sabe o que eu
fiz, então a humanidade também pode conhecer toda a verdade – toda a verdade – o bom
e o ruim. Não tenho ilusões sobre o meu destino, como sempre lhe disse. Agora só resta
a verdade” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 118). A verdade, no entanto, era relativa
e volátil. Ao longo de suas entrevistas, os dois Franks por vezes se confundem, e a
“violenta renúncia ao nazismo” começa a se esvair. Para Gilbert, Frank se mostra um
homem com uma enorme “fraqueza de caráter” e de “integridade básica”, de modo que
sua conversão ao catolicismo representava apenas um “sintoma da conversão histérica da
reação de culpa”, fruto de um ego ferido (GILBERT, 1995, p. 126). Ao observar que o
réu demonstra certa tristeza com a morte de Hitler, o homem que “colocou o mundo
inteiro em movimento” e que desapareceu sem deixar rastros, Gilbert conclui seu perfil
psicológico com uma análise patologizante, como era de se esperar:

Esta conversa é a mais reveladora que tive com Frank até agora. Ele revela
espontaneamente a homossexualidade latente (sic), que, além de sua ambição
implacável e falta de escrúpulos, o levou a seguir e identificar-se com o Führer
com um entusiasmo apaixonado que obscureceu toda razão e conceitos legais
ou humanitários de direitos humanos. Quando o gênio do mal que justificou
sua existência desmaiou em uma orgia de sangue, destruição e vergonha, ele
se dissociou dessa imagem intolerável de seu ego, entrou em um êxtase
religioso, renunciou ao mundo e ao seu eu maligno, bem como à figura maligna
que o seduziu; mas deixou seus diários para trás, porque a extinção completa
era intolerável para seu ego e a evidência de sua culpa também servia a uma
necessidade masoquista (GILBERT, 1995, p. 145).

Essa “homossexualidade latente” revelada por certo sentimentalismo


esporádico sob a figura de Hitler só aparece na análise de Gilbert sobre Hans Frank.
Outros homens com discursos muito mais apaixonados pelo Führer, como Joachim von
Ribbentrop, o Yes-man de Nuremberg, passam longe dessa avaliação de
“homossexualidade latente”102. Frank, na realidade, passa boa parte de suas entrevistas
com Gilbert afirmando que existia um “mal satânico” em Adolf Hitler, ainda que

102
É válido pontuar que essa conclusão de Gilbert está alinhada com os preceitos psiquiátricos em voga
naquela época. Até 1973 a homossexualidade era considerada um “transtorno antissocial da personalidade”
e esse era um diagnóstico formulado por psiquiatras, que entendiam, então, a homossexualidade como uma
doença. Para saber mais, ver o artigo da DW: https://www.dw.com/pt-br/h%C3%A1-30-anos-oms-retirava-
homossexualidade-da-lista-de-doen%C3%A7as/a-53447329 (Acesso em 15/05/23)
265

admitisse seu magnetismo. Em sua perspectiva, no entanto, havia um “mal elementar”


em todos os homens, e Hitler apenas o cultivava e o trazia à tona – mas o mal verdadeiro
estava na humanidade como um todo. O réu alerta que “sempre há um Mefistófeles” que
traz o mal à tona, alguém que diz: “‘Veja! O mundo é vasto e cheio de tentações. Veja!
Vou lhe mostrar o mundo! Há apenas um pouco de trivialidade em entregar sua alma!’”.
Ao entregar sua alma a Hitler, Hans Frank e os outros nazistas estavam condenados à
perdição: “e assim foi. Hitler era o diabo. Ele seduziu a todos nós assim” (FRANK apud
GILBERT, 1995, p. 144). Todos haviam sido enganados por esse homem, mas agora,
finalmente, a verdade aparecia e as máscaras haviam caído: “é como se a Morte colocasse
a máscara de um ser humano encantador e atraísse trabalhadores, advogados, cientistas,
mulheres e crianças – tudo – para a destruição! E agora vemos seu rosto desmascarado
como realmente era: um esqueleto de caveira!” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 281)

Mefistófeles, popular na obra do escritor alemão Johann von Goethe,


representa, desde a Idade Média, uma encarnação do mal que seduz almas inocentes para
roubar seus corpos, conforme demonstrado na Imagem 5. O demônio, que por vezes é
associado ao próprio diabo, rendeu produções culturais, como o livro Mephisto do autor
alemão Klaus Mann de 1936, que ganhou uma adaptação cinematográfica em 1981 e que
abordava precisamente o abandono dos padrões morais para comportar o pertencimento
ao Partido Nazista. Para Hans Frank, assim como Mefistófeles, Adolf Hitler, essa
encarnação do mal, não “violou o povo alemão, ele os seduziu!”. Os alemães “o seguiram
com um júbilo louco”, em “dias febris”, “uma loucura, uma embriaguez” (FRANK apud
GILBERT, 1995, p. 145). Para o réu, os crimes do Terceiro Reich seguiriam causando
espanto em séculos vindouros, uma vez que o que ocorreu na Alemanha sequer era um
crime: “crime é uma palavra muito branda para isso. Roubar é um crime, matar um
homem é um crime, mas isso… Isso está além da imaginação humana!”. O extermínio
burocrático que reduzia “o assassinato à produção em massa! Dois mil por dia, dentes e
anéis de ouro para o Reichsbank; cabelo embalado para colchões!”, tudo isso era
impressionante e repulsivo, sobretudo por ter sido “ordenado por um demônio que
apareceu em forma humana”, a “obra do diabo” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 386).
E onde estava Deus para impedir toda essa tragédia? Frank por vezes questiona sua fé
recém adquirida: “Deus ordenou tudo isso? Deus acenou com a cabeça 6 milhões de vezes
e disse sim quando os judeus foram levados para as câmaras de gás?”. Esses
acontecimentos são “o suficiente para fazer alguém se desesperar com a justiça divina”
266

(FRANK apud GILBERT, 1995, p. 386).

Imagem 5103

Para explicar esses “dias febris”, a promotoria exibe um vídeo durante os


procedimentos, no qual apresenta a ascensão do Partido Nazista e demonstra os princípios
do movimento nacional-socialista. Após assistir esse filme, Frank, muito alarmado, conta
a Gilbert: “você se senta no tribunal sob a pressão da culpa e da vergonha. Você quebra
a cabeça e busca explicações, agarrando-se a qualquer coisa. Então, Hitler aparece na tela.
Você estica a mão”. O advogado lembra, entretanto, que esse fascínio era pautado em
promessas vazias e que a verdade sempre viria à tona: “por um momento você está
embriagado e pensa: talvez… Mas então passa. Você abre a mão e ela está vazia,
totalmente vazia! A dura realidade da vergonha continua subindo diante de você dia após
dia em um tribunal muito sem emoção” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 83).
Justamente por não conseguir lidar com a percepção daquela ilusão, Frank havia tentado
suicídio antes do julgamento começar. Ele explica a Goldensohn: “tentei cometer suicídio
porque sacrifiquei tudo por Hitler. E aquele homem por quem sacrificamos tudo nos
deixou sozinhos. Se ele tivesse se suicidado quatro anos antes, tudo bem” (FRANK apud
GOLDENSOHN, 2005a, p. 54). Naquele momento, ele continuava com muita dificuldade

103
“Méphistophélès dans les airs”. Mefistófeles voando sobre Wittenberg, em uma litografia de Eugène
Delacroix, 1828. Fonte: National Gallery of Victoria, Australia. Disponível em:
https://www.ngv.vic.gov.au/explore/collection/work/25924/ (Acesso em 04/09/2022)
267

de lidar com a tragédia de seu país sob o domínio de Hitler:

E foi assim com todos nós. Agora podemos ver quão artificial era aquela velha
inspiração, vista contra o pano de fundo frio da razão e dos padrões morais do
mundo. Mas na época não conseguimos ver. Estava em toda parte. E assim que
uma fonte de inspiração se dissipava, outro evento, ou discurso, ou vitória
reforçava a ilusão. Ah, bem, é tarde demais. Estou vivendo em tempo
emprestado agora. Posso usá-lo para me purificar diante de Deus. Aquela
polonesa que me perguntou o que eu faria se não fosse condenado à morte, eu
queria dizer a ela, mas vou dizer a você: vou acabar com a minha própria vida.
Isso não pode continuar. (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 84)

Nesse sentido, o tribunal não era apenas justo, mas servia a uma função moral
e histórica: “este julgamento tem um grande significado porque mostra que o povo alemão
é inocente” (FRANK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 23). Os nazistas deveriam,
portanto, admitir sua culpa para que o povo alemão enquanto nação fosse inocentado:
“aqueles dentre nós que são culpados precisam pagar o preço disso e libertar o povo
alemão, para que não seja mais culpabilizado pela nossa estupidez” (FRANK apud
GOLDENSOHN, 2005a, p. 68). Em sua batalha pela memória do Terceiro Reich, Frank
afirma que os advogados da acusação estadunidenses não são advogados, e sim políticos,
porque serviam a uma causa política: a destruição da ideologia nazista. A conclusão de
seu raciocínio é um tanto quanto peculiar: para combater o surgimento de uma “lenda
sobre Hitler” era necessário, naquele momento, defender Hitler. Frank explica:

Minha ideia é defender Hitler. Não no sentido costumeiro do termo. Mas acho
que aqui em Nuremberg temos 21 réus, todos culpados em certo grau, mas o
homem que deveria ser o principal réu está ausente porque se suicidou. Ora,
Bormann, embora esteja ausente, tem um advogado de defesa. Mas a técnica
de todos os advogados de defesa tem sido de colocar a culpa em Hitler.
Portanto, de acordo com um procedimento judicial justo, o homem mais
acusado, tanto pela defesa como pela acusação, deveria ter um advogado ou
algum tipo de defesa. A questão não é se as ações de Hitler são defensáveis.
Elas não são. Seu testamento final, sozinho, é um documento assustador, em
que ele admite e alardeia a matança dos judeus. É o documento mais
abominável e assustador da história. Mas a menos que um espírito apareça no
tribunal nestas poucas semanas finais e fale por Hitler, ele não foi ouvido. […]
[Essa defesa] ajudaria a destruir, para a posteridade, a possibilidade de uma
‘lenda de Hitler’. Se Hitler é acusado de tantos atos covardes, e se ninguém se
manifesta por ele para responder às acusações, a lenda da grandeza de Hitler
poderia crescer. Mas se eu dissesse, ‘Bem, eu represento os interesses legais
de Hitler, responderei às acusações A, B, C e D’ etc. e passasse a responder a
elas como Hitler o faria, o absurdo da lenda de Hitler se dissiparia para sempre.
Porque não há resposta para as coisas que ele fez e o governo que criou. Só
uma coisa deveria e poderia acontecer se alguém como eu, ou o próprio Hitler,
viesse a responder às acusações contra ele. As respostas seriam desprezadas e
consideradas lixo e absurdo. O tribunal teria que pronunciar apenas uma
palavra a tudo aquilo que eu pudesse dizer em defesa de Hitler: a palavra
‘Auschwitz’. Isso seria suficiente. A lenda de Hitler estaria encerrada (FRANK
apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 70–71).

Consciente dos procedimentos jurídicos devido a sua formação, o advogado


268

tenta apresentar o Führer como um homem comum que merecia ser tratado de maneira
justa, e, para que isso ocorresse, ele precisava ter a possibilidade de defesa. Essa defesa
póstuma do homem ausente em Nuremberg aparece como mais um dos conflitos entre os
dois Frank: o Frank do tribunal diz “que sistema horrível tivemos! Quão cegos nós
fomos!” (FRANK apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 76), enquanto o Frank das entrevistas
declara que “mesmo na arte, não há luz sem sombras, e nenhuma sombra é lançada sem
alguma luz. Mesmo a sombra de Adolf Hitler é acompanhada de alguma luz” (FRANK
apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 72). Sua tentativa de salvaguardar Hitler representa uma
esperança de reabilitação não só do líder, mas de si mesmo, do Terceiro Reich e dos
outros réus. Frank, sem se atentar à ironia da declaração, acredita que os advogados de
defesa usam Hitler como um bode expiatório para diminuir a culpa de seus clientes: “a
ideia é atirá-lo num abismo e dizer: ‘Esses pobres réus não tinham nenhuma ideia do
monstro que ele era e não tiveram nada a ver com ele’. Acredite, nada poderia estar mais
longe da verdade” (FRANK apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 71–72).

O Führer, portanto, era “o principal réu deste julgamento”, que merecia ser
ouvido junto com todos os outros nazistas. Ouvi-lo vicariamente por meio de seu antigo
advogado era uma forma de evitar que essa memória traumática se transformasse em uma
lenda apaziguadora no futuro, afinal, “o tempo tem algum efeito conciliador. Sobre toda
ruína, acaba nascendo grama, depois algum arbusto e por fim, antes que se perceba, o que
é realmente uma ruína velha e feia torna-se uma paisagem e uma lenda romântica”
(FRANK apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 71–72). De fato, ele tinha razão quando, ao
se lembrar em Nuremberg do homem ao qual seu destino “estaria ligado no quarto de
século seguinte” (KERSHAW, 2010, p. 122), declara: “se havia um homem capaz de
dominar o destino da Alemanha, esse homem era Hitler” (FRANK apud KERSHAW,
2010, p. 123). Seu destino se uniu ao de Hitler e, ainda hoje, podemos refletir sobre o
domínio dessa figura sob a memória da Alemanha em anos futuros.

Acreditando na justiça do tribunal, Frank entende que sua culpa só podia ser
passível da pena de morte. As entrevistas fornecidas a Gilbert são “como uma confissão
no leito de morte”, de modo que esse Frank só aparecia para o psicólogo e para o padre
(FRANK apud GILBERT, 1995, p. 157). Ainda que ele nunca tenha dado ordens para o
assassinato de ninguém, o nazista afirma que as coisas que ele disse eram suficientes para
a condenação. Seus diários eram a prova de “como um homem sob a influência diabólica
de Hitler chega a dizer tais coisas totalmente fora de seu caráter” (FRANK apud
269

GILBERT, 1995, p. 157). Enquanto os outros nazistas estavam preocupados com suas
defesas, Frank era “o único culpado no banco dos réus – todo mundo é tão inocente!”
(FRANK apud GILBERT, 1995, p. 257). Indignado com o andamento dos discursos nos
procedimentos, Frank não admite que os outros nazistas não estejam assumindo sua
parcela de responsabilidade, perdendo a paciência com as defesas de outros julgados,
sobretudo os negacionistas, como Ernst Kaltenbrunner: “milhões de alemães morreram
por culpa do sistema e agora, quando seus próprios pescoços estão envolvidos, eles
sentam aqui e mentem e tentam esconder a verdade” (FRANK apud GILBERT, 1995, p.
263). Como o defensor da verdade e em busca de redenção, Frank diz ter jurado “pelo
crucifixo que contaria a verdade e exporia o pecado como meu último ato na terra”, uma
função que o destino colocou sob sua responsabilidade para “expor o mal que está em
todos nós” (FRANK apud GILBERT, 1995, pp. 263-264).

Essa tragédia da humanidade deveria ser compreendida dentro do grande


esquema das coisas: o Terceiro Reich “foi um ponto de virada na história da humanidade.
É o início de uma fase final horrível da evolução humana, ou é o fim de uma?” (FRANK
apud GILBERT, 1995, p. 163). Esse é um questionamento que mobiliza outras
indagações que seguem atuais na historiografia: Hitler foi um capítulo ou um episódio na
história alemã? Ou seja, ele foi algo excepcional e descontínuo, ou um capítulo pautado
em tendências históricas e antigas tradições? De acordo com Reinhold Schneider, “o povo
alemão, pouco importa como esta lista possa parecer grotesca, é o povo de Martinho
Lutero, de Karl Marx, de Friedrich Engels e também de Adolf Hitler” (LUKACS, 1998,
p. 140). Outros autores, como Joachim Fest, lembram que não devemos enxergar o Führer
como a representação do mal, uma vez que “ele foi muito menos uma grande contradição
do que um reflexo de seus tempos” (LUKACS, 1998, p. 140). Em Nuremberg, a memória
“desses tempos terríveis” estava sendo delineada, e Hans Frank e os outros réus fazem
parte desse movimento de reivindicação daquele período da história alemã. Sendo assim,
com as continuidades dessa ideologia na contemporaneidade, o questionamento de Frank
permanece atual: a ideologia nacional-socialista foi o início de alguma coisa que
permanece? Como lembra Horst Möller, “mudanças na avaliação dessa era da história
alemã são com frequência vistas como indicações sismográficas para nossa cultura
política” (LUKACS, 1998, p. 150). Tempos em que nossa avaliação sobre o nazismo
muda e passamos a recuperar traços de sua ideologia e diminuir e negar seus crimes
também são tempos em que vemos a curva acentuada da extrema-direita em nossos
270

horizontes.

Libertação

Como Hans Frank apresenta sua defesa como uma “confissão”, seu discurso
causa mal-estar entre alguns dos julgados, sobretudo Hermann Göring. No entanto, sua
atitude não parece nada impressionante para outros réus. Albert Speer, o outro
representante dessa categoria de ex-nazistas arrependidos, acredita que Frank somente
admitiu sua culpa por ter entregado seus diários. Como os diários eram evidentemente
incriminatórios, “naturalmente, não há mais nada para ele fazer agora, a não ser admitir
o que seu diário já provou”, disse Speer (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 277). Frank,
orgulhoso de sua confissão, somente recebeu palavras de conforto e apoio de Franz von
Papen e Arthur Seyss-Inquart. Após seu interrogatório, o advogado volta a Gilbert para
dizer que havia cumprido sua promessa e que, então, havia pagado sua conta, e passado
“pelos portões negros para o outro lado”, deixando de pertencer a este mundo (FRANK
apud GILBERT, 1995, p. 279):

Eu mantive minha promessa, não foi? Eu disse que, em contraste com as outras
pessoas ao redor do Führer que pareciam não saber nada, eu sabia o que estava
acontecendo. Acho que os jurados ficam realmente impressionados quando um
de nós fala com o coração e não tenta se esquivar da responsabilidade. Você
não acha? Fiquei muito satisfeito com a forma como eles ficaram
impressionados com a minha sinceridade (FRANK apud GILBERT, 1995, p.
277).

A “sinceridade” de Frank, sobretudo ao dizer que a Alemanha estava fadada a


sentir vergonha pelo nacional-socialismo por séculos vindouros, não foi bem-vista pela
maioria dos réus. Joachim von Ribbentrop e Alfred Rosenberg, por exemplo, não
acreditavam que um alemão deveria falar assim de seu próprio país. Baldur von Schirach,
também membro da categoria ex-nazistas arrependidos, enxergou a defesa de Frank
como uma nova fase do tribunal, na qual os réus finalmente demonstravam algum
remorso. Essa nova fase foi aplaudida por Hjalmar Schacht, o grande resistente, que ficou
satisfeito de ver que a criminalidade de outros nazistas estava finalmente emergindo nos
procedimentos. O militar Alfred Jodl se questiona se a confissão de Frank foi de fato
genuína, já que durante o Terceiro Reich o advogado era um pequeno rei construindo seu
império na Polônia (JODL apud GILBERT, 1995, pp. 282-289). Outro militar, Karl
Dönitz, acreditava que Frank deveria “ter falado por si mesmo”, uma vez que “ele era um
dos mais selvagens e não deveria dar a impressão de que todo o povo alemão era
selvagem” (DÖNITZ apud GILBERT, 1995, p. 290). Frank, todavia, não se abala com
271

sua má reputação entre os réus: “eu tinha que confessar meu pecado, para ficar em paz
com Deus, e talvez levantar um pouco os olhos para ele” (FRANK apud GILBERT, 1995,
p. 280).

Hans Frank, esse ex-nazista arrependido, para além de se indignar com os


negacionistas, também se mostra extremamente competitivo com os outros nazistas que
tentam admitir sua culpa, como é o caso de Albert Speer, ou Baldur von Schirach. Ele
não aceita as confissões de outros homens, enxergando seus discursos como uma atuação
e parte de um teatro. Sobre a defesa de Schirach, por exemplo, ele afirma: “mas não se
esqueça de que ele era parte de todo o sistema, e se ele realmente queria fazer uma
confissão, ele deveria ter feito até o fim e não fugir da culpa moral aqui e da
responsabilidade formal ali” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 357). Sobre Speer, Frank
declara: “não se esqueça que o próprio Speer ajudou a criar confiança na vitória com seus
grandes discursos sobre como ele varreria os céus das aeronaves inimigas com seus novos
aviões” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 397). Dessa maneira, Frank se coloca como
o único réu que admitiu não somente sua culpa criminal, mas, sobretudo, sua culpa moral,
uma culpa que todos partilhavam simplesmente por serem alemães que permitiram o
regime de Adolf Hitler acontecer. O advogado compartilha de uma visão que seria comum
nos primeiros anos do pós-guerra: a culpa coletiva do povo alemão, de Lutero a Hitler,
como classifica Hannah Arendt (ARENDT, 2004).

No fim dos procedimentos, o nazista aquiesceu sua sentença de morte, sorrindo


“educadamente” e “suavemente” ao descobrir o veredito. Sua declaração sobre a sentença
a Gilbert demonstra uma certa conformidade: “eu servi [a esse governo] e esperava [essa
sentença], como sempre lhe disse. Estou feliz por ter tido a chance de me defender para
pensar sobre as coisas nos últimos meses” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 432). Após
as reflexões provindas de suas entrevistas, a morte lhe pareceu, por fim, uma libertação
da culpa latente que sentia.

Gilbert conta que ao saber sobre a dificuldade que os inocentados estavam tendo
para sair da prisão,104 Frank riu em histeria clamando “Hahaha! Eles pensavam que
estavam livres! Eles não sabem que não há libertação do hitlerismo! Só nós estamos livres

104
Gilbert conta que assim que Von Papen, Fritzsche e Schacht foram soltos, a administração civil alemã
declarou a intenção de prendê-los novamente para julgá-los mediante uma corte alemã. Policiais
aguardavam na porta do Palácio da Justiça de Nuremberg para capturá-los assim que saíssem. Os
inocentados pediram para permanecer na prisão em Nuremberg por alguns dias. Eles foram soltos e presos
mais algumas vezes até conseguirem de fato aproveitar a liberdade (GILBERT, 1995, p. 434).
272

disso! Afinal, conseguimos o melhor negócio! Hahaha!” (FRANK apud GILBERT, 1995,
p. 434). Livre de sua culpa e de sua responsabilidade, Hans Frank caminhou para a morte,
saindo do outro lado da memória como o “açougueiro da Polônia”. Seu filho, Niklas
Frank, no documentário “What our fathers did: a Nazi legacy”, dirigido por David Evans
em 2015, não esconde a vergonha que sente do seu legado. Ele declara: “nunca vou viver
em paz com o meu pai. Porque não posso, jamais, perdoar o que ele fez. Todas estas
imagens estão vivas em minha mente. São crimes horríveis”. Niklas não apenas não pode
viver em paz com a lembrança do pai, como afirma, também, não querer: “Porque
encontrar a paz é encontrar uma maneira de perdoá-lo. E não posso perdoá-lo”.105 Parece
que, por fim, a culpa de Frank foi passada por gerações e corre no sangue de seus
familiares que não o enxergam como um homem, e sim, como um genocida. Afinal, a
liberdade da morte não trouxe perdão ou reabilitação para Hans Frank.

105
Sobre o documentário, ver o post no Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT)
redigido por Clara Lima: https://www.instagram.com/p/B-ClxtNAEvk/ (Acesso em 04/09/2022)
273

Albert Speer (1905-1981)

“A história é a história, não adianta esconder”

(GILBERT, 1995, p. 223)

Albert Speer era o arquiteto de Hitler e ministro de armamentos e de produção


para a guerra de 1942 a 1945. Em Nuremberg foi julgado por plano de conspiração,
crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, sendo considerado
culpado das duas últimas acusações. Foi condenado à 20 anos de prisão e foi liberado
após cumprir toda a pena em outubro de 1966. Ele faleceu com 76 anos, tendo passado
os últimos 15 anos de sua vida em liberdade.

Um dos homens mais jovens julgados em Nuremberg, com apenas 40 anos no


momento do tribunal, Speer ganhou popularidade em fins do século XX, após cumprir
sua pena e lançar seus livros autobiográficos Dentro do Terceiro Reich (1970) e Diários
de Spandau (1976). Ambos se tornaram best-sellers e deram notoriedade ao “mito de
Speer”, traduzido na sua persona estrategicamente apresentada em Nuremberg como um
tecnocrata e ex-nazista arrependido. Ao contrário de suas autobiografias, no tribunal, no
entanto, Speer é bem mais tímido e calculista em suas falas. Ele tem relutância em ser
entrevistado pelo psiquiatra Goldensohn, de modo que suas entrevistas são as menores
274

do livro, mas ele parece gostar do psicólogo Gilbert e o enxergar como um bom
interlocutor. Para Goldensohn, uma de suas poucas declarações é: “Eu senti essa guerra
chegando. Tentei, sem êxito, assassinar Hitler em 1945. Não estou preocupado com a
jurisdição do tribunal, como Hess ou outros” (SPEER apud GOLDENSOHN, 2005a, p.
299). Sobre a acusação, ele diz a Gilbert: “O julgamento é necessário. Há uma
responsabilidade comum por crimes tão horríveis mesmo em um sistema autoritário”
(SPEER apud GILBERT, 1995, p. 5).

Speer era filho de um arquiteto e pertencente à classe média alta educada da


Alemanha. Seu primeiro contato com Adolf Hitler foi em 1931, quando o ouviu discursar
pela primeira vez. Após o discurso, ele se viu totalmente tomado pelo movimento
nacional-socialista, aderindo ao Partido e começando a trabalhar para ele. Aos poucos,
Speer foi caindo nas graças de homens poderosos como Joseph Goebbels, atingindo
prestígio com a arquitetura dos comícios do Partido. De acordo com Richard Evans, “foi
Speer que, em 1934, criou o efeito de ‘catedral de luz’ produzido por holofotes voltados
para o alto e que tanto impressionou os visitantes estrangeiros” (EVANS, 2014c, p. 220).
Ainda na casa dos 20 anos, Speer já era um grande nome dentro do NSDAP, e logo se
tornaria arquiteto pessoal de Hitler, tendo uma relação muito próxima com o Führer. A
partir do final da década de 1930, o nazista passou a atuar construindo novos e
monumentais edifícios, como o Salão do Congresso, o Campo Zeppelin e o Campo de
Marte, que tinham capacidades que giravam em torno de 250 e 400 mil pessoas (EVANS,
2014c, p. 221).

Com o passar do tempo, Hitler passou a incumbir Speer de construções


propagandísticas, sobretudo em Berlim, que, de acordo com planos do líder, deveria se
tornar uma capital mundial, chamada Germânia, em 1950. O desejo do Führer era
direcionado para o futuro, afinal, “as construções durariam pela eternidade, seriam um
monumento ao Terceiro Reich muito depois que Hitler houvesse saído de cena” (EVANS,
2014c, p. 221). Apesar de ser conhecido pelo seu trabalho como arquiteto, em Nuremberg,
Speer estava sendo julgado primordialmente pelo seu trabalho como ministro dos
armamentos e de produção para a guerra. Em suas narrativas no tribunal, Speer se
apresenta como um perfeito representante da categoria ex-nazista arrependido: alguém
que admite sua parcela de responsabilidade, sobretudo por ser tão próximo a Hitler, mas
que percebeu a tragédia no fim da guerra e tentou agir para evitar o pior. Ainda que o
arquiteto tenha aberto os olhos tarde demais, ele se sentia no dever de admitir sua culpa,
275

ao contrário da maioria dos julgados em Nuremberg.

Ainda que ele diga a Goldensohn que “a história mostrará que os julgamentos
foram necessários” (SPEER apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 299), Speer acredita que
“julga-se indivíduos e movimentos pelos seus últimos momentos”, de modo que “teria
sido melhor deixar o nazismo terminar com uma nota de colapso e corrupção, e a podridão
básica e a desgraça da coisa toda, como aconteceu no fim da guerra”. Para ele, portanto,
seria melhor deixar o nazismo colapsar junto com a Alemanha com a ocupação de Berlim
em 1945 “em vez de adicionar outro capítulo final que dá a alguns líderes uma chance de
fazer belos discursos e fazer uma boa aparição na história, e fazer as pessoas pensarem
que havia algo de bom nisso, afinal” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 240). Speer, no
entanto, junto com os outros réus em Nuremberg, para o bem ou para o mal, estava
participando ativamente desse novo capítulo do nazismo, forjado às pressas por um
tribunal dos vencedores da guerra. Consciente de seu papel na história do Terceiro Reich
e do século XX, ele continuou por décadas em suas narrativas adicionando novas páginas
a esse novo capítulo, mantendo a fachada de arrependimento que, por fim, conquistou
tantos admiradores.

O terrível perigo do sistema autoritário

A nomeação do arquiteto para ministro dos armamentos e de produção para a


guerra surpreendeu o próprio Speer, uma vez que ele não tinha experiência militar ou
industrial. Contudo, Evans ressalta que, além de Hitler ser conhecido por nomear leigos
para cargos importantes, a escolha de Speer para o posto “não era tão irracional assim”.
Speer era “o gerente de um grande e complexo escritório envolvido em projetos enormes,
de fato gigantescos, de construção e design”, e “como inspetor-geral de obras em Berlim,
já estava familiarizado com os estragos que o bombardeio podia causar” (EVANS, 2014b,
p. 373–374). O aspecto mais importante, contudo, era que “ele era o homem de Hitler”,
seu amigo próximo, algo que ele próprio confirma em Nuremberg. No começo de seu
interrogatório, Speer admite: “eu pertencia a um círculo que consistia em outros artistas
e sua equipe pessoal. Se Hitler tivesse algum amigo, eu certamente teria sido um de seus
amigos íntimos” (BS, 16, p. 430).

Como alguém que notadamente não era um especialista, Speer afirma que, para
realizar bem a sua tarefa, selecionou “os melhores especialistas possíveis para serem
encontrados na Alemanha como meus colegas de trabalho” (BS, 16, p. 433). Seu trabalho,
276

entretanto, era o mais importante do país, uma vez que “em tempos de guerra, em casa,
há apenas duas tarefas que contam: fornecer soldados para o front e fornecer armas” (BS,
16, pp. 436-437). O caso de Speer se relacionava diretamente com o de Fritz Sauckel, um
negacionista já abordado em capítulo anterior. Como Sauckel era o responsável pelo
trabalho compulsório de prisioneiros de guerra, Speer fez questão de se distanciar o
máximo possível dessa esfera do conflito. Ele afirma categoricamente que os indivíduos
não eram forçados a trabalhar, nem morriam diretamente por fruto de excesso de trabalho:
“está fora de questão que em qualquer indústria alemã algo assim tenha acontecido sem
que eu tenha ouvido falar; e nunca ouvi nada desse tipo” (BS, 16, p. 446). Empregar
trabalhadores estrangeiros, no entanto, não era um problema em si: “eu não tive influência
sobre o método pelo qual os trabalhadores foram recrutados. Se os trabalhadores estavam
sendo trazidos para a Alemanha contra sua vontade, isso significa, a meu ver, que eles
eram obrigados por lei a trabalhar para a Alemanha”, mas, “se tais leis eram justificadas
ou não, isso foi uma questão que não verifiquei na época. Além disso, isso não era da
minha conta” (BS, 16, p. 457).

Por ser parte do trabalho de Sauckel, o arquiteto compreende que nada


relacionado à vida e à morte desses trabalhadores lhe dizia respeito. Ainda assim, Speer
não tem problemas em admitir os aspectos duros de seu ofício com relação à alocação de
mão de obra: “devo declarar com toda a franqueza que, embora tenha usado minha
influência para reduzir o recrutamento de mão de obra ou para pôr fim a medidas de
coerção e ataques, não a usei para interromper completamente a alocação de mão de obra”
(BS, 16, p. 470). Como veremos, faz parte de sua narrativa a admissão de sua parcela de
responsabilidade, de modo que Speer não nega que concordava com diversos aspectos
relacionados à atuação da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Ainda amparado pela
ideologia, ele declara que muitas das medidas utilizadas pelos nazistas eram justificadas
em tempos de guerra: “os trabalhadores foram trazidos para a Alemanha em grande parte
contra sua vontade, e eu não tinha objeção a que fossem trazidos para a Alemanha contra
sua vontade”. Ele completa: “também me esforcei para que o maior número possível de
trabalhadores fosse trazido para a Alemanha dessa maneira” (BS, 16, pp. 520-521).

Diretamente associado aos maus-tratos dos trabalhadores estrangeiros estavam


os campos de concentração e o que acontecia dentro desses locais. Com relação aos
campos, Speer não nega que eles possuíam má reputação na Alemanha, mas reforça que
não sabia de todos os detalhes que foram apresentados durante o tribunal. Os campos,
277

“sem dúvida” eram “um meio, uma ameaça usada para manter a ordem” (BS, 16, pp. 516-
517). Ele também admite que sabia que o Partido Nazista era antissemita e que os “os
judeus estavam sendo evacuados da Alemanha”, ainda que esse conhecimento se referisse
apenas à política de deportação, não ao extermínio (BS, 16, p 518). Entretanto, assim
como todos os outros nazistas, Speer obedecia ao Princípio de Liderança associado ao
Führer, e demorou a perceber que esse sistema autoritário não era, de fato, eficiente no
longo prazo. O nazista afirma que “o terrível perigo do sistema autoritário” só ficou claro
no fim da guerra, quando homens como ele puderam ver “o que realmente significava o
princípio, a saber, que toda ordem deveria ser cumprida sem críticas”, ordens estas que
visavam a destruição da Alemanha. Esse sistema era perigoso “independentemente da
personalidade de Hitler”, no entanto, “a combinação de Hitler e esse sistema, então,
provocou essas terríveis catástrofes no mundo” (BS, 16, pp. 533-534).

Terra arrasada

Em sua narrativa, portanto, Speer demonstra um arrependimento que


curiosamente se entrelaça a outras justificativas muito usadas em Nuremberg, como a
necessidade de obediência e a ignorância com relação a questões fundamentais. Por vezes
contraditório, o nazista compreende a importância de seu trabalho, mas também afirma
ter sido, durante a maior parte do tempo, apenas um “ministro técnico”, tendo poucas
responsabilidades e escasso poder de atuação. Speer declara que ele tinha “uma tremenda
tarefa pela frente”, de modo que ele “só poderia cuidar de assuntos” fora de sua “área” se
– e somente se – “algum fator particularmente importante” o “obrigasse a fazê-lo”. Não
sendo esse o caso, ele deveria ficar feliz se conseguisse ao menos finalizar sua carga de
trabalho, porque sua tarefa “não era pequena” (BS, 16, p. 561). Ainda que esse “ministro
técnico” tivesse um trabalho hercúleo, isso não significava, naturalmente, que ele
estivesse se eximindo de sua culpa:

DR. FLACHSNER: Então, como ministro técnico, você deseja limitar sua
responsabilidade à sua esfera de trabalho?
SPEER: Não. Gostaria de dizer algo de fundamental importância aqui. Esta
guerra trouxe uma catástrofe inconcebível ao povo alemão e, de fato, iniciou
uma catástrofe mundial. Portanto, é meu dever inquestionável assumir minha
parte de responsabilidade por este desastre perante o povo alemão. Esta é tanto
mais minha obrigação, tanto mais minha responsabilidade, pois o chefe do
governo evitou a responsabilidade perante o povo alemão e perante o mundo.
Eu, como importante membro da liderança do Reich, partilho, portanto, da
responsabilidade total, a partir de 1942 (BS, 16, pp. 482-483).

De modo similar ao outro ex-nazista arrependido Hans Frank, mas ao contrário


de muitos julgados, Speer não tem problemas em jogar a responsabilidade para Hitler.
278

Seu slogan “vitória ou destruição” selou o destino do povo alemão e, mesmo que a guerra
já estivesse perdida em 1945 do ponto de vista militar, o Führer continuava fazendo falsas
promessas e culpando o povo alemão pela sua própria derrota: “durante esse período [em
1945], ele atribuiu o resultado da guerra em grau crescente ao fracasso do povo alemão,
mas nunca se culpou. Criticou severamente este suposto fracasso do nosso povo que fez
tantos sacrifícios corajosos nesta guerra” (BS, 16, pp. 492-493). Esse novo “capítulo
muito desagradável” que se inicia em 1945 culmina com Hitler pretendendo
“deliberadamente destruir os meios de vida de seu próprio povo se a guerra fosse perdida”
(BS, 16, p. 490), a famosa política da “terra arrasada”. Essa política, antes direcionada ao
inimigo, estava sendo usada contra o próprio povo alemão, com a ordem de Hitler de
destruição de toda a infraestrutura de diversas cidades do país. Esse último ato
desesperado do Führer foi uma resposta condizente com a ideologia nazista, ainda que
parecesse o ápice de sua histeria e, notoriamente, o princípio do fim.

Esse “capítulo muito desagradável” a que Speer se refere está pautado em uma
enorme queda na popularidade de Hitler que já era percebida desde 1943, sobretudo após
a batalha de Stalingrado, que será abordada em capítulo posterior. Em fins de 1944 e
início de 1945, após tantas derrotas militares, era perceptível que a maioria da população
alemã havia perdido a fé no seu Führer. Como lembra Ian Kershaw, pautado na teoria de
Max Weber, a liderança carismática não pode sobreviver à ausência de sucesso
(KERSHAW, 2001, p. 200), e a Alemanha estava indo para um caminho de destruição
cada vez mais evidente. De acordo com um relatório de opinião popular tomado pela SS
na cidade de Stuttgard, no final de 1944, um comentário recorrente que aparecia de
diferentes maneiras dizia que “sempre se afirmou que o Führer nos foi enviado por Deus.
Eu não duvido. O Führer nos foi enviado por Deus, embora não para salvar a Alemanha,
mas para arruiná-la” (KERSHAW, 2001, p. 221). Hitler, percebendo a queda de sua
popularidade, passou se afastar cada vez mais da cena pública. Seu último discurso, em
24 de fevereiro de 1945, aniversário da promulgação do programa do Partido Nazista,
sequer foi proferido por ele: o texto foi lido por outro nazista, Hermann Esser. De acordo
com Kershaw, ao fim da guerra, “o maior demagogo da história já não tinha audiência”
(KERSHAW, 2001, p. 222).

A “condenação moral do Terceiro Reich” só ocorreu depois da guerra, tendo


início, sobretudo, no Julgamento de Nuremberg. Em 1945, Speer, assim como o resto da
população, “se considerava a principal vítima de Hitler” (KERSHAW, 2001, p. 223). O
279

arquiteto, entretanto, de fato havia tentado de todas as formas evitar essa destruição. Já
em janeiro de 1945, Speer havia enviado um memorando para Hitler informando que em
breve a produção de armamentos iria se esgotar e não seria mais possível suprir as
necessidades para dar continuidade à guerra. Hitler, impassível, proibiu Speer de enviar
memorandos a qualquer pessoa, demonstrando que não aceitaria qualquer opinião que
concluísse que a guerra estava perdida (KERSHAW, 2010, p. 934). Speer conta a Gilbert
que naquele momento ele “soube que ele [Hitler] estava determinado a destruir a nação
alemã ao invés de entregar seu poder” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 143).

Pouco tempo depois, em março de 1945, o arquiteto enviou outro documento


ao Führer informando que a economia alemã não se sustentaria e entraria em colapso
dentro de quatro a oito semanas. A guerra não poderia continuar e, portanto, “o primeiro
dever dos que dirigiam o país era fazer o que pudessem pela população civil”. A ordem
de Hitler, contudo, era de detonar pontes e destruir toda a infraestrutura dos transportes,
o que, para Speer, significaria “a eliminação de toda a possibilidade futura de existência
para o povo alemão”. O ministro de armamentos afirmou no documento: “não temos o
direito, nesse estágio da guerra, de empreender uma destruição que poderia afetar a
existência do povo. […] Temos o dever de deixar ao povo todas as possibilidades de
reconstrução no futuro distante” (SPEER apud KERSHAW, 2010, p. 946).

As palavras de Speer não tiveram qualquer efeito: Hitler queria fazer justamente
o contrário do que o arquiteto recomendara. Naquele momento era tudo ou nada, e,
seguindo os princípios da teoria racial nazista, se a Alemanha perdesse a guerra era
porque havia se demonstrado um povo fraco, e que, portanto, merecia a derrota. Em 19
de março, o Führer emitiu um decreto intitulado “Medidas destrutivas no Território do
Reich”, clamando, como o próprio nome diz, pela destruição do antigo sonho do Reich
de mil anos. O documento declarava que “todas as instalações de transporte militar,
comunicações, industriais e de suprimento, bem como bens materiais no interior do
território do Reich que o inimigo possa tornar utilizável imediatamente ou no futuro
próximo devem ser destruídas”, uma vez que “a luta pela existência de nosso povo obriga
ao uso de todos os meios, também dentro do território do Reich, para enfraquecer o poder
de luta de nosso inimigo em seu avanço” (KERSHAW, 2010, p. 947). O povo alemão,
por fim, havia se tornado vítima de medidas já realizadas por anos nos territórios
ocupados.

Ainda que essa ordem não tenha sido obedecida, ela demonstra como Hitler
280

estava disposto a ir até o fim, às custas de seu próprio povo. O Führer afirma que “se
tivermos que perder a guerra, o povo alemão também estará perdido”, já que ele teria se
revelado “o mais fraco, e o futuro pertence ao povo mais forte” (HITLER apud
CHAPOUTOT, 2018, p. 415). Contudo, a política de terra arrasada e a “lógica biológica”
(CHAPOUTOT, 2018, p. 415) que ordenava a morte do povo alemão não era apoiada
pelo séquito de Hitler em 1945 e nem mesmo pelos outros réus de Nuremberg. De acordo
com Speer, quem advogou por essa política eram os homens que agora estavam mortos e
que provavelmente “se mataram porque defenderam essa política e fizeram outras coisas
semelhantes” (BS, 16, p. 583).

Responsabilidade comum

Sendo assim, Hitler “queria arrastar a Alemanha para o abismo com ele” (BS,
16, p. 498), e Speer passou a deliberadamente desobedecer a suas ordens para evitar uma
catástrofe ainda maior no país. Assim como outros nazistas no tribunal, o arquiteto
justifica sua permanência em seu posto com a noção de dever para com seu país e com o
povo alemão, esse povo que infelizmente “permaneceu leal a Adolf Hitler até o fim” e
que foi tão tragicamente traído pelo Führer “com intenção”. Hitler traiu a confiança dos
alemães e tentou jogar o povo “definitivamente no abismo” (BS, 16, p. 504). Por esse
motivo, sua visão do Führer no julgamento era a mesma que no final da guerra: ele
enxergava Hitler como “uma força destrutiva egoísta que não tinha consideração pelo
povo alemão” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 74). Como conciliar sua contínua
aliança com esse homem que visava destruir seu próprio país? Ele explica seu senso de
dever:

DR. FLACHSNER: Eu tenho uma última pergunta. Foi possível para você
conciliar suas ações durante a última fase da guerra com seu juramento e sua
concepção de lealdade a Adolf Hitler?
SPEER: Há uma lealdade que todos devem sempre manter; e essa é lealdade
para com o seu próprio povo. Esse dever vem antes de tudo. Se estou em uma
posição de liderança e vejo que os interesses da nação são atacados dessa
maneira, então eu também devo agir. O fato de Hitler ter quebrado a confiança
da nação deve ter ficado claro para todos os membros inteligentes de sua
comitiva, certamente no mais tardar em janeiro ou fevereiro de 1945. Hitler
uma vez recebera sua missão do povo; ele não tinha o direito de jogar fora o
destino do povo com o seu. Portanto, cumpri meu dever natural como alemão.
Não tive sucesso em tudo, mas estou feliz hoje em dizer que, com meu
trabalho, pude prestar mais um serviço aos trabalhadores na Alemanha e nos
territórios ocupados (BS, 16, p. 504).

Dessa maneira, seu trabalho havia prevenido que a destruição fosse ainda maior
– e esse era, por fim, seu dever como alemão. Como alguém que antes havia tido tanta
281

admiração pelo Führer, Speer admite que “foi fraqueza” o motivo de sua permanência ao
lado desse homem por tanto tempo. Ele diz: “eu não quero me tornar mais bonito do que
sou (make myself any prettier than I am). Eu deveria ter percebido e realmente percebi
isso mais cedo, mas continuei jogando esse jogo hipócrita até que fosse tarde demais –
bem, porque era mais fácil” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 167).

É válido lembrar que Speer admite sua responsabilidade – ou, em suas palavras,
“eu me recuso a fugir da responsabilidade” (BS, 16, p. 545) – apenas com relação ao
campo específico de seu trabalho. Ao justificar o fato de que ele nunca teve um posto na
SS, Speer diz claramente que não queria nenhum desses postos porque acreditava que “só
se deve ocupar um posto onde se tem responsabilidade” e ele, portanto, “não queria
nenhuma responsabilidade em conexão com isso [o trabalho da SS]” (BS, 16, pp. 515-
516). Esse “ministro técnico” que contraditoriamente tinha tanto poder confronta a
promotoria em diversos momentos com relação à sua esfera específica de trabalho e
declara: “Naturalmente, é esperado que qualquer pessoa intimamente ligada aos assuntos
de Estado também ouvirá falar de assuntos não imediatamente relacionados com sua
própria esfera e de condições insatisfatórias existentes em outros setores”, contudo, “não
somos obrigados a lidar com essas condições e mais tarde não nos lembraremos delas em
detalhes. Você não pode esperar isso de mim” (BS, 16, p. 562). Speer, por fim, faz uma
diferenciação entre dois tipos de responsabilidade:

MR. JUSTICE JACKSON: Sua responsabilidade comum, o que você quer


dizer com sua responsabilidade comum junto com os outros?
SPEER: Ah, sim. Na minha opinião, um funcionário do Estado tem dois tipos
de responsabilidade. Uma delas é a responsabilidade pelo seu próprio setor e
por isso, claro, ele é totalmente responsável. Mas acima disso penso que, em
questões decisivas, há, e deve haver, entre os dirigentes, uma responsabilidade
comum, pois quem deve assumir a responsabilidade pelos desenvolvimentos,
senão os colaboradores próximos do chefe de Estado? Esta responsabilidade
comum, no entanto, só pode ser aplicada a questões fundamentais, não pode
ser aplicada a detalhes ligados a outros ministérios ou outros departamentos
responsáveis, pois de outra forma toda a disciplina na vida do Estado ficaria
bastante confusa e ninguém jamais saberia quem é individualmente
responsável em uma determinada esfera. Esta responsabilidade individual em
sua própria esfera deve, em todo caso, ser mantida clara e distinta (BS, 16, p.
563).

Nesse sentido, na “responsabilidade comum” assumida por Speer não cabia


criminalização, mas era de fundamental importância que essa responsabilidade fosse
reconhecida, mesmo em regimes autoritários. O nazista reforça que “mesmo em um
sistema autoritário os líderes devem aceitar uma responsabilidade comum”, uma
responsabilidade da qual eles não podiam escapar mesmo “após a catástrofe, pois se a
282

guerra tivesse sido vencida, os líderes presumivelmente também teriam reivindicado a


responsabilidade comum” (BS, 16, p. 586). E, do ponto de vista estratégico, Speer
também tinha consciência, assim como Hans Frank, de que assumir sua parcela de
responsabilidade significava tirar um pouco do fardo da culpa coletiva da Alemanha: “eu
disse a mim mesmo que depois da guerra a responsabilidade por todas essas destruições
não cairia mais sobre nós, mas sobre o próximo governo alemão, e as próximas gerações
alemãs” (BS, 16, pp. 530-531). Era precisamente isso que ele estava fazendo em
Nuremberg: assumindo a responsabilidade mediante a derrota, para, por um lado livrar o
povo alemão que havia sido enganado por Hitler, e, por outro lado, para evitar sua própria
hipocrisia, afinal, ele reconhecia que ele também iria querer colher os louros se os nazistas
tivessem ganhado a guerra. A grande questão era “até que ponto isso é punível sob a lei
ou a ética” (BS, 16, p. 586). E essa era uma decisão do tribunal: “eu não posso estabelecer
isso sozinho” (BS, 16, p. 581).

Linha anti-Hitler

Uma das questões que Speer levanta em seu interrogatório é a ausência de


resistência de membros do Partido, sobretudo nos momentos finais da guerra. Em uma
linha argumentativa que Gilbert define como “anti-Hitler”, Speer declara, decepcionado
que “nenhuma ação unificada foi tomada pelos líderes do círculo de Hitler” e o motivo
era que “esses homens se consideravam ou como puros especialistas ou como pessoas
cuja função era receber ordens – ou então se resignavam à situação” (BS, 16, p. 493). No
entanto, a partir de janeiro de 1945 era “extremamente fácil começar uma conspiração”
contra o governo do Führer. Era tão simples que “podia-se abordar praticamente qualquer
homem na rua e dizer-lhe qual era a situação, e então ele dizia: ‘Isso é loucura!’; e se ele
tivesse alguma coragem, ele se colocaria à sua disposição”. O arquiteto queria deixar
claro que a resistência não era, de maneira nenhuma, algo “tão perigoso quanto parece
aqui porque, na verdade, as pessoas irracionais que ainda restavam eram apenas algumas
dúzias. Os outros 80 milhões ficaram perfeitamente sensatos assim que souberam do que
se tratava” (BS, 16, p. 532). Nesse sentido, Speer corrobora a perspectiva de que o
nazismo foi um regime de alguns homens loucos que conseguiram enganar toda a
população. O povo alemão, que era bom por natureza, infelizmente, conseguia ser
facilmente iludido por sua inocência (CHAPOUTOT, 2018).

A decepção de Speer com os nazistas não resistentes serviu, na realidade, para


inflar a sua própria resistência – e para mostrar que era possível agir. Ele afirma que, em
283

sua agonia nos últimos meses da guerra, chegou a encomendar gás para assassinar Hitler:

Achei que não havia outra saída. Em meu desespero, quis dar esse passo, pois
desde o início de fevereiro se tornou óbvio para mim que Hitler pretendia
continuar a guerra a todo custo, sem piedade e sem consideração pelo povo
alemão. Era óbvio para mim que na perda da guerra ele confundiu seu próprio
destino com o do povo alemão e que em seu próprio fim ele viu o fim do povo
alemão também. Também era óbvio que a guerra estava perdida tão
completamente que mesmo a rendição incondicional teria que ser aceita (BS,
16, p. 493).

O réu conta que seu objetivo era introduzir o gás no ventilador do aparelho de
ar-condicionado na Chancelaria do Reich, uma operação que não seria tão difícil para ele,
dado seus conhecimentos da planta do edifício. O plano, entretanto, não deu certo, já que
Hitler pessoalmente alterou a estrutura do ventilador. Ainda que tenha dito ser contra o
assassinato de Hitler em 1944, referindo-se ao atentado de 20 de julho, Speer ressalta que,
a partir de 1945, não havia outra saída senão a eliminação do líder. Ele conta seus planos
e simultaneamente reforça sua indignação com a falta de resistência dos membros do
governo, repetindo que tais empreendimentos não eram “tão difíceis” de serem
realizados, “e nem eram tão perigosos, como se poderia imaginar, porque naqueles dias
– depois de janeiro de 1945 – qualquer medida razoável podia ser tomada na Alemanha
contra a política oficial” (BS, 16, pp. 495-496).

Além dessa tentativa falida de assassinar Hitler, Speer, como vimos, havia
desobedecido ordens diretas do Führer no fim da guerra. Sua resistência vira sua
salvaguarda no tribunal e faz com que ele se coloque como alguém com moral superior
aos outros julgados – e esse verniz de moralidade é comprado, por vezes, até mesmo pela
promotoria e pelo psicólogo. Referindo-se aos outros réus, e, sobretudo a Göring, Speer
diz a Gilbert: “Sim, eu sei, eles fizeram grandes discursos heroicos sobre lutar e morrer
pela Pátria, sem arriscar o próprio pescoço. E agora, quando suas próprias vidas estão em
jogo, eles estremecem e procuram todos os tipos de desculpas”. Homens como Göring
eram “o tipo de herói que tivemos levando a Alemanha à destruição!” (SPEER apud
GILBERT, 1995, p. 25). Sendo assim, fazia sentido que todos estivessem irritados com
sua postura no julgamento, já que ele era alguém que “tentou fazer algo a respeito, em
vez de obedecer a aquele maníaco destrutivo até o fim” (SPEER apud GILBERT, 1995,
pp. 103-104).

Speer e Göring estão em polos opostos no Julgamento de Nuremberg e ambos


têm consciência dessa dinâmica, de modo que passam boa parte do tempo lançando
indiretas (ou diretas) um para o outro por intermédio de Gilbert. Göring, o defensor fiel,
284

não admite que um homem de tão alto escalão esteja culpabilizando o Führer e, Speer, o
ex-nazista arrependido, se ressente desse outro membro importante da organização que
se recusa a assumir sua parcela de responsabilidade. Speer afirma que a política de frente
unida de Göring visava transformar todos os nazistas em heróis, apresentando o nazismo
como um regime que era o melhor para a Alemanha, muito melhor do que seria um
governo sob os Aliados (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 122). Göring aparecia, então,
como o maior herói dentre todos, mas necessitava de “uma comitiva de pelo menos vinte
heróis menores para sua grande entrada em Valhala”106 (SPEER apud GILBERT, 1995,
p. 156). Por esse motivo, aterrorizava e ameaçava os outros réus para que adequassem
seus discursos a uma defesa, ao menos passiva, do regime nacional-socialista, como
vimos. Por conta da postura de homens como Göring, Speer acreditava que o maior
castigo possível para os nazistas seria mantê-los no poder:

No que diz respeito aos líderes nazistas, eles deveriam estar contentes que os
Aliados estão salvando a Alemanha da fome em massa e da ruína que Hitler
forçou o país. Você sabe como teria sido possível desacreditar o nazismo de
uma vez por todas? Apenas deixando nossa administração ficar e governar a
Alemanha. Tudo o que vocês [os Aliados] tinham a dizer era: ‘Vá em frente,
tentem se governar; vocês [os nazistas] fizeram sua cama, agora se deitem nela.
Não vamos interferir, mas não é nossa responsabilidade alimentar o país.
Vocês começaram isso, agora terminem’. Ora, os alemães simplesmente teriam
morrido de fome aos milhões (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 166).

Portanto, de forma estratégica, Speer vende o discurso dos Aliados para eles
mesmos, flertando com a narrativa de que aqueles eram os bons moços da guerra, que
haviam finalmente colocado um fim no regime de terror de Adolf Hitler. Ele nem
precisava se esforçar muito para ter o efeito que desejava nessa construção narrativa,
afinal, os nazistas, ao negarem toda responsabilidade, acabavam se condenando com
facilidade: “a podridão desses homens se manifesta se você apenas lhes der corda
suficiente” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 294). Dizendo o que a promotoria queria
ouvir, Speer e alguns outros “foram capazes de se apresentar como tecnocratas enganados
e que apreciaram a necessidade de abraçar o modo ocidental” (PRIEMEL, 2016, p. 405).

106
Valhala aparece na mitologia nórdica como o salão no qual os guerreiros heróis e honrados mortos em
batalha são levados após a morte. Os guerreiros são recepcionados pelo deus Odin no salão, localizado em
Asgard, onde passam a viver. Valhala foi representada na cultura popular diversas vezes em filmes,
quadrinhos e séries. Suas representações mais recentes talvez sejam na série Vikings (2013-2020) que
inclusive conta com um spin-off chamado Vikings: Valhalla (2022), e nos filmes do personagem Thor, da
franquia da Marvel (2011-atual). Na Alemanha, na cidade de Ragensburg, há uma enorme construção em
mármore denominada Templo de Valhala, datando do século XIX, e que conta com mais de 130 bustos de
personalidades da história alemã. Dentre elas, temos, inclusive, a resistente Sophie Scholl. Ver: VISCONTI,
2017. Aqui, Speer está ironizando a crença de Göring de que ele seria merecedor o suficiente para entrar
em Valhala como um herói.
285

Reabilitação

A defesa de Speer, com sua estratégia de culpar Hitler, gerou um significativo


conflito entre os réus e dividiu opiniões em Nuremberg. Hjalmar Schacht, o grande
resistente do julgamento, por exemplo, afirmou que aquela tinha sido uma “defesa
magistral! Essa era a posição em que os alemães decentes estavam!”. Walther Funk, um
negacionista, por outro lado, disse tristemente que era “preciso abaixar a cabeça de
vergonha” ao ouvir as palavras de Speer. Göring estava tão irritado após o interrogatório
do arquiteto que apenas saiu sem falar nada. Posteriormente, ele foi ouvido falando com
Dönitz e Hess: “Nós nunca deveríamos ter confiado nele” (SCHACHT; FUNK; GÖRING
apud GILBERT, 1995, p. 398). Alfred Rosenberg, um defensor fiel, que já havia
demonstrado sua desaprovação aos discursos de Speer em outros momentos, não estava
nada satisfeito com a declaração do réu sobre sua tentativa falida de assassinar o Führer.
Ele reitera, impaciente: “bem, ele não teve coragem de ir até Hitler e atirar nele, então do
que ele está falando? É fácil bater no peito por causa de algo que você tentou fazer”
(ROSENBERG apud GILBERT, 1995, p. 396). Alfred Jodl, um dos militares, também
demonstra sua desaprovação, sobretudo porque Speer era um dos melhores amigos de
Hitler, o que tornava sua traição ser ainda maior.

Speer, entretanto, estava satisfeito com sua defesa: “bem, isso foi um grande
esforço, mas eu tirei isso do meu peito. Era a verdade e isso é tudo”. Em sua opinião,
Göring, como o segundo homem do Reich em Nuremberg, estava tentando “falsificar a
história fazendo uma lenda heroica desse negócio podre. Ele, especialmente, não tem o
direito de se tornar um herói, porque falhou tão miseravelmente e foi tão covarde em
nossa hora de crise” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 397). Retomando o que ele havia
falado no tribunal sobre a existência de uma responsabilidade comum mesmo em um
sistema autoritário, o arquiteto diz a Gilbert que os outros nazistas estavam irritados com
sua linha de defesa precisamente porque não queriam assumir essa responsabilidade
partilhada. Speer, no entanto, tinha coragem o suficiente para admitir sua culpa: “agora
estão todos loucos porque seus próprios pescoços estão em jogo. Mas você deveria ver
como eles estariam gritando para reivindicar uma parte da responsabilidade comum pela
vitória se tivéssemos vencido a guerra” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 399). Isso
demonstrava o oportunismo daqueles homens, que, ao contrário de Speer, não se
preocupavam com o povo alemão ou com o futuro do país: “você vai ver, à medida que
o julgamento se aproxima de seu clímax e seus nervos começam a sentir a tensão, suas
286

máscaras educadas cairão, e você os verá pelo que são” (SPEER apud GILBERT, 1995,
p. 403). Mesmo que ninguém concordasse com a sua postura e que ele tivesse que brigar
até mesmo com seu advogado para que ele aceitasse sua linha de defesa, Speer reitera
que, naquele momento, se sentia da mesma forma que em janeiro de 1945, e que não iria
“recuar para escapar da prisão perpétua” porque não queria se “odiar pelo resto da vida”.
Como ele estava na linha de frente e enxergou “o país inteiro jogado no desespero e
milhões de pessoas mortas por causa daquele maníaco”, nada, nem mesmo a morte,
poderiam fazê-lo “mudar de ideia” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 329).

Sua relação consigo próprio é algo que não podemos mensurar. Não sabemos se
Speer teve uma crise de consciência em algum momento e se, tal como Sócrates,
compreendera que “se sou um, é melhor estar em desacordo com o mundo do que estar
em desacordo consigo mesmo” (LAFER, 2003, p. 130). O que percebemos na superfície
de suas aparências é que Speer tem uma visão estratégica de sua linha de defesa, não só
durante o julgamento, como também a longo prazo. Apesar de relutante em ser
entrevistado por Goldensohn, o arquiteto se tornou reconhecido por suas narrativas no
pós-guerra. Ele diz a Gilbert, inclusive, que se sentiria mais livre para escrever sobre suas
visões sobre o nazismo quando o julgamento acabasse – o que ele, de fato, fez. O réu
declara que “gostaria apenas de sentar e escrever uma explosão final sobre toda a maldita
bagunça nazista e mencionar nomes e detalhes e deixar o povo alemão ver de uma vez
por todas em que corrupção podre, hipocrisia e loucura todo o sistema foi baseado!”, de
modo que ninguém poderia ser poupado, nem mesmo ele próprio: “somos todos culpados.
Eu também ignorei a dura verdade!” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 143).

Mantendo sua palavra, os detalhes e nomes são mencionados com diligência em


Dentro do Terceiro Reich e Diários de Spandau, publicados anos depois, obras que
rapidamente se transformaram em best-sellers, sendo traduzidas para diversas línguas.
Suas produções autobiográficas, em mais uma virada contraditória da memória no pós-
guerra, colocam Speer em outro patamar de notoriedade, dando fama e recursos para um
nazista que tenta se apresentar como um ex-nazista.

Os livros de Speer foram assimilados, não somente pelo público não


especializado como também por muitos especialistas no tema, como a descrição mais
detalhada do Terceiro Reich e de seus líderes, sendo usados como uma valiosa fonte
histórica por grandes nomes da historiografia como Ian Kershaw. O sucesso dessas
publicações entre o grande público, no entanto, perpassa a perspectiva de que Speer, no
287

fundo, era quem se mostrava ser em Nuremberg: um homem arrependido, apolítico, que
teria sido mais feliz se tivesse permanecido como um simples arquiteto – ainda que
“simples” dificilmente seja uma palavra possível de ser aplicada para qualquer um dos
cargos ocupados por Speer no regime nazista.

O livro de Gitta Sereny, Albert Speer e sua luta com a verdade (SERENY,
1998) é uma das obras mais importantes na desconstrução desse personagem, criado ainda
antes do julgamento, e mantido em suas obras posteriores. Entretanto, a figura de Speer
como um resistente, um ex-nazista arrependido, enganou a muitos, inclusive aos
presentes no tribunal, como Gustave Gilbert, que se sensibilizou com o réu ao mostrar
para ele fotografias da Alemanha antes de sua destruição e que, em diversas ocasiões,
apoiou seu lado na disputa com Hermann Göring. O psicólogo, que passa horas
entrevistando o arquiteto, cai diversas vezes no “mito de Speer”, e acredita que “ele
parece sincero em suas atuais convicções antimilitaristas e anti-Hitler, por mais tardias e
materialistas que essas convicções possam ser” (GILBERT, 1995, p. 167).

Apesar de ter dito a Gilbert inúmeras vezes que não tinha “ilusões” sobre sua
vida, e que estava somente preocupado com o povo alemão e com a sua família (SPEER
apud GILBERT, 1995, pp. 103-104), Speer, naturalmente, ficou aliviado por escapar da
forca. Ao receber sua sentença de 20 anos de prisão, ele “riu nervosamente” e disse ao
psicólogo que havia sido uma sentença justa: “Eles não poderiam ter me dado uma
sentença mais leve, considerando os fatos, e não posso reclamar. Eu disse que as
sentenças devem ser severas e admiti minha parcela de culpa, então seria ridículo se eu
reclamasse da punição. Mas estou feliz que Fritzsche tenha escapado” (SPEER apud
GILBERT, 1995, p. 433). A condenação branda de Speer foi encarada com olhos
confusos no tribunal, sobretudo porque Fritz Sauckel, cujo trabalho se relacionava tão
diretamente com o de Speer, havia sido condenado à pena de morte. Compreendendo a
importância histórica do Julgamento de Nuremberg, o arquiteto diz a Gilbert que a
conclusão dos procedimentos não poderia ser a de transformar nenhum daqueles homens
em mitos, nem mesmo ele mesmo: “Não, nenhum deles deve entrar na história como um
pouco digno de respeito. Que todo o maldito sistema nazista e todos os que participaram
dele, inclusive eu, caiam com a ignomínia e a desgraça que merecem!”. Por fim, “que as
pessoas esqueçam e comecem a construir uma nova vida em alguma base democrática
sensata” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 211).

Contrariando a si mesmo, Speer se transformou em um mito, em um homem


288

assimilado, em mais do que um ex-nazista arrependido: na memória, ele se tornou um


ex-nazista reabilitado. Speer é esse alguém que não era um especialista em sua função,
que era apenas um “ministro técnico”, e que, no fim, tentou evitar a catástrofe. O
arquétipo desse alguém permanece um dos grandes perigos de nossa sociedade moderna,
afinal, apontam para o pensamento instrumental e para os riscos do pragmatismo. Como
alerta Tzvetan Todorov, ainda que homens como Speer não tenham relação direta com o
extermínio, a construção de um mito em torno de sua figura nos mostra como “o
pensamento instrumental esquecido dos fins e a despersonalização dos seres não reinam
unicamente nos campos de concentração” (TODOROV, 1995, p. 218). Sua reabilitação é
uma constante ameaça que paira no ar da Modernidade, já que “poderemos nos livrar dos
Hitler e dos Himmler, mas os Speer ficarão ainda muito tempo entre nós” (TODOROV,
1995, p. 216).
289

Baldur von Schirach (1907-1974)

“O autoritarismo é um sistema que destrói a moralidade do homem.


Se você pegar um santo e lhe der poder, ele se transformará em um Hitler
ou em um demônio”

(GOLDENSOHN, 2005b, p. 245)

Baldur von Schirach foi o líder da Juventude Hitlerista e governador de Viena


de 1940 até o fim da guerra. Ele foi julgado em Nuremberg por conspiração e crimes
contra a humanidade, sendo considerado culpado apenas da última acusação e condenado,
assim como Albert Speer, a 20 anos de prisão. Ele foi solto após cumprir toda a pena em
setembro de 1966 e morreu em 1974 com 67 anos. Sua autobiografia intitulada Eu
acreditei em Hitler foi publicada em 1967.

Schirach é o réu mais jovem em Nuremberg, com 38 anos no momento do


julgamento, e fazia parte do grupo seleto de homens que se uniram a Hitler e ao
movimento nacional-socialista em seus primórdios. Essa “figura sólida e cada vez mais
importante no movimento nazista” cresceu em círculos conservadores e antissemitas de
Weimar, sendo educado em um internato cujas premissas seriam posteriormente a base
de sua visão para o seu projeto educacional para a juventude. Quando leu o livro de Hitler,
290

Minha Luta, em meados da década de 1920, Schirach foi imediatamente arrebatado pela
ideologia nacional-socialista, “desenvolvendo seu comprometimento em uma verdadeira
devoção ao herói quando ouviu Hitler discursar na cidade em 1925”. O jovem de 18 anos
logo caiu nas graças do futuro Führer da Alemanha “com um jorro aparentemente
infindável de poemas glorificando o movimento e seu chefe” que foram descritos como
“‘superiores às efusões de outros versejadores racistas’” (EVANS, 2014a, p. 273). Sua
carreira ascendeu exponencialmente e, em 1932, com apenas 25 anos de idade, Schirach
já era o líder da Juventude Hitlerista, sendo o membro mais jovem do Reichstag naquele
ano.

Esse ex-nazista arrependido está sendo julgado em Nuremberg


primordialmente pelo seu papel de líder da Juventude Hitlerista, que, segundo a acusação,
estava criando “guerreiros ideológicos” para o futuro (PRIEMEL, 2016, p. 111). Sobre a
acusação, ele diz a Gilbert: “Todo o infortúnio veio da política racial” (SCHIRACH apud
GILBERT, 1995, p. 6). O repúdio ao antissemitismo será seu mote durante toda a sua
defesa. Naturalmente, Schirach nega o conhecimento do extermínio e diz ter profundo
arrependimento dessa consequência terrível do projeto racial nazista. Apesar disso, assim
como Albert Speer e Hans Frank, o réu não nega ter aderido fervorosamente à ideologia
nazista, sobretudo ao antissemitismo. No entanto, o remorso de Schirach está direcionado
apenas ao que não diz respeito especificamente a seu cargo e suas funções: ele ainda tem
muito orgulho de seu trabalho com a juventude durante o Terceiro Reich, e, nas palavras
de Goldensohn, por esse motivo, era um homem que “se leva bem a sério”
(GOLDENSOHN, 2005a, p. 284).

Seu caso é um dos mais interessantes no tribunal porque aborda a questão da


educação e da formação de novas gerações no Terceiro Reich. Schirach, afinal, era o
grande responsável pela nova geração de nazistas, pelas crianças e jovens que iriam viver
nesse novo mundo do Reich de mil anos. São estes os que iriam desfrutar do novo cosmos
criado pelos nazistas e, como líder da Juventude Hitlerista, Schirach entende o tamanho
de sua responsabilidade com esse porvir. Como vimos no caso do defensor fiel Julius
Streicher, o objetivo do nacional-socialismo era de longuíssimo prazo, já que os próprios
nazistas compreendiam que a completa revolução cultural que eles almejavam demoraria
vários anos para ser concretizada. Como lembra Johann Chapoutot, essa tarefa difícil
“mais do que isso, pretendia aculturar as gerações vindouras e purificá-las da escória de
normas prejudiciais. Uma revolução na cultura e nas normas é um objetivo de longo
291

prazo” (CHAPOUTOT, 2018, p. 19). Como veremos, Schirach renuncia ao nazismo, mas
não desaprova seu trabalho nessa enorme revolução cultural nazista – muito pelo
contrário.

Guerreiros ideológicos

A postura de Schirach desde o início de seu depoimento é a de assumir toda


responsabilidade pela educação da juventude alemã. Em uma de suas primeiras falas ao
tribunal, o nazista afirma: “Mantenho a declaração que fiz na expectativa de que o
Tribunal me considerará a única pessoa responsável pela Liderança da Juventude e que
nenhum outro Líder da Juventude será convocado perante um tribunal por ações pelas
quais assumi responsabilidade” (BS, 14, p. 362). Ainda que a educação fosse pautada nos
princípios nacional-socialistas, Schirach busca se defender dizendo que os preceitos pelos
quais ele conduziu a juventude vieram dele, de suas experiências individuais, e, portanto,
não eram submetidos ao Partido Nazista. Essa “grande comunidade educacional com
bases políticas” (BS, 14, p. 518) não era liderada pelo NSDAP, e sim, por ele, sendo,
portanto, uma enorme organização independente dentro do Terceiro Reich. Sua tarefa
como educador era, assim, “formar os jovens para serem bons cidadãos do Estado
nacional-socialista” (BS, 14, p. 454) e “treiná-los para serem bons patriotas, que mais
tarde cumpririam seu dever no campo (field)” (BS, 14, p. 459). Sua perspectiva segue a
cartilha política de Adolf Hitler em Minha Luta, já que o Führer declara que “o jovem
deve ser de futuro uma unidade útil na sociedade humana” (HITLER, 2005, p. 319).

Apesar do óbvio alinhamento ideológico de sua função, durante seu


testemunho, Schirach tenta se desvincular do Partido Nazista e da visão de mundo nazista.
Entendendo a importância de sua posição como o líder da Juventude Hitlerista, ele busca
se colocar como um mero seguidor do tradicional movimento de juventude alemão, de
forma a apresentar o seu caso como o de um homem que queria levar a herança desse
movimento adiante, e que a única forma para isso acontecer, naquele momento, era por
meio do Partido Nazista. O movimento de juventude ao qual Schirach se refere era
formado por vários grupos, comumente chamados de Jungeschaft, que mantinham certos
elementos da cultura germânica vivos, similar ao movimento escoteiro: faziam
caminhadas, acampavam nas montanhas, tocavam hinos próprios. A Juventude Hitlerista
de fato incorporou muitas das práticas das Jungeschaft, como as caminhadas, as canções,
os rituais, as cerimônias, os jogos e os acampamentos. Porém, é válido lembrar que a
Juventude Hitlerista era, como pontua Richard Evans, “uma organização enfaticamente
292

controlada de cima, dirigida não pelos próprios jovens, como o antigo movimento jovem
havia sido, mas pela liderança da juventude do Reich” (EVANS, 2014c, p. 318).

A Juventude Hitlerista, e sua versão feminina, a Liga das Moças Alemãs,


começaram a crescer exponencialmente a partir de 1933 e no final de 1935 contavam com
4 milhões de meninos e meninas entre dez e 18 anos de idade. Em 1939, esse número
atingiu 8,7 milhões (EVANS, 2014c, p. 316). Sua marca era a rigidez e o controle: “todos
os que se filiavam tinham que jurar um voto de lealdade pessoal a Hitler. O treinamento
era compulsório e obrigatório por lei [...] As canções que cantavam eram nazistas, os
livros que liam eram nazistas [...] Com o passar do tempo, o treinamento militar assumiu
cada vez mais o primeiro plano” (EVANS, 2014c, p. 318). A ideologia passou a permear
todos os âmbitos das escolas e do método de ensino, e professores e alunos viviam com
medo de denúncias e se viam coagidos a compactuar com o regime. A Juventude
Hitlerista entrou como a cereja do bolo, como mais um passo na doutrinação ideológica,
proibindo todas as outras formas de livre associação e fazendo com que os jovens só
conhecessem o que existia dentro do pensamento nacional-socialista. Nas universidades
a situação também não era muito diferente: se na educação básica existia a Juventude
Hitlerista para doutrinar e controlar as crianças, nas universidades, existia a Liga dos
Estudantes Nazistas. Essa liga, apesar de ter uma abrangência mais limitada que a
Juventude Hitlerista, a partir de 1936 absorveu todas as fraternidades e grupos de jovens
que permaneciam nas universidades. Sendo assim, ela “obteve a supremacia entre o grupo
estudantil” e tirou “efetivamente do caminho outras instituições representativas de
estudantes” (EVANS, 2014c, p. 342).107

Para Schirach, contudo, a Juventude Hitlerista não era nada disso. Pelo
contrário, a organização era o projeto de sua vida, seu maior orgulho e sua esperança para
o futuro. Ele conta que foi o único nazista eleito para seu cargo, e não meramente
nominado, algo que “nunca aconteceu dessa forma na história do Partido” (BS, 14, p.
370). De fato, já em 1932, o nazista só obedecia diretamente a Hitler, e, por sua liberdade
de ação dentro do regime, seguiu com sua ideia de criar um “Estado da juventude”, uma
vez que ele acreditava que “não se pode liderar organizações de juventude como um
apêndice de um partido político; a juventude tem que ser liderada pela juventude” (BS,

107
Os dois últimos parágrafos foram adaptados da minha dissertação, na qual trabalhei com os grupos
Jungeschaft, uma vez que os membros da Rosa Branca participaram ativamente desses movimentos. Ver:
VISCONTI, 2017, p. 33-34; 50–51.
293

14, p. 372). E, por esse motivo, a Juventude Hitlerista era uma instituição que se mantinha
sozinha por meio taxas de adesão que os membros precisavam pagar. A adesão à
organização era voluntária até 1936, quando passou a ser compulsória, mas Schirach não
discordava dessa obrigatoriedade. Em sua perspectiva, jovens que não entravam na
Juventude Hitlerista perdiam a vivência da convivência em comunidade, as viagens, os
acampamentos e, por isso, até mesmo corriam o risco de virarem pessoas perturbadas e
hipocondríacas (BS, 14, p. 376). Sendo assim, também fazia sentido que, para exercer
algumas profissões, fosse obrigatório a participação anterior na Juventude Hitlerista.
Afinal, “é bastante claro que um professor não pode educar um jovem a menos que ele
mesmo conheça a vida desse jovem” e nesta profissão era necessário “estar familiarizado
com os modos de vida dos alunos que estavam sob sua supervisão” (BS, 14, p. 377). A
rigidez da instituição não era um problema para Schirach, e sim, uma consequência
natural dessa nova forma de organização e cooperação.

Para o nazista, a Juventude Hitlerista não era apenas um braço da ideologia


nazista, e sim algo muito maior: seu objetivo era criar um “Estado da juventude”, com
um ideal de organização e um verdadeiro projeto de estruturação para esses jovens.
Schirach reforça a independência da Juventude Hitlerista e era nessa independência que
se encontrava a força de sua organização. Esse “Estado da juventude” seria parte do
Estado nazista e pautado em dois princípios básicos: autoliderança e
autorresponsabilidade. Foi o nacional-socialismo que deu a oportunidade necessária a ele
para a fundação de seu ideal, um sonho embasado em sistemas educacionais já
existentes,108 como o internato que ele próprio estudou. Essas instituições eram escolas
que propunham a união dos jovens, não somente com as tarefas regulares do currículo
educacional, mas com a implementação de outras tarefas fundamentais que fortaleceriam
o vínculo entre a juventude, como atividades manuais e a valorização do exercício físico
(SCHIRACH apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 240).

Como o objetivo da promotoria era demonstrar que a Juventude Hitlerista era


uma organização paramilitar, Schirach se esforçou para apresentar sua iniciativa como

108
A escola que Schirach menciona é pautada na filosofia do educador alemão Hermann Lietz (1868-1919).
Suas premissas foram aplicadas por outros educadores, como Kurt Hahn (1866-1974), que fundou a escola
Gordonstoun, onde o Príncipe Philip da Inglaterra e depois seu filho, Príncipe Charles, estudaram. São
escolas focadas na educação física e em atividades em grupo como a vela e o montanhismo, com horários
e rotinas rigorosas, e que também utilizavam de punições físicas. A vivência do Príncipe Charles nessa
escola é abordada em um episódio de The Crown, uma das séries mais populares do serviço de streaming
Netflix.
294

pautada no Princípio de Liderança, mas independente de qualquer outra instituição


associada ao governo nazista, e isso incluía não somente o exército, como todos os ramos
da SS. Ele afirma que “é evidente que em um grupo desse tipo a execução de ordens e
diretivas ocorre de maneira totalmente diferente daquela em uma organização militar ou
em qualquer outra organização política” e que essa “liderança baseada na autoridade
natural” era algo que a juventude já estava familiarizada e que nunca se “degenerou” a
ponto de se transformar em uma ditadura (BS, 14, p. 377). Schirach retorna várias vezes
a esse ponto durante seu interrogatório e rejeita completamente que a Juventude Hitlerista
fosse militarista ou que tivesse treinamento militar. As armas utilizadas em seu
treinamento eram aprovadas pelo Tratado de Versalhes e o conteúdo dessa prática nunca
foi militarista. Como viviam em um Estado com treinamento militar obrigatório, os
educadores também estavam “ansiosos para treinar nossos jovens até o mais alto grau de
aptidão física para que eles também fossem bons soldados” (BS, 14, p. 463). Como em
qualquer organização, os jovens podiam posteriormente migrar para algum setor da SS
ou do exército, mas Schirach, certamente, não fornecia jovens para a SS: eles podiam ser
recrutados ou não. E, em uma provocação ao interrogador soviético, o líder da juventude
ressalta que “o treinamento militar da juventude da Alemanha fica muito atrás do da
União Soviética” (BS, 14, p. 520).

Schirach tinha, portanto, uma visão quase imaculada da Juventude Hitlerista:


ali estavam os melhores jovens da Alemanha, incapazes de fazer nenhum mal, jovens
que, de acordo com as músicas tocadas durante as expedições, eram os “soldados do
futuro”, “portadores de um futuro” (BS, 14, p. 450). Sendo assim, naturalmente, dentro
do movimento de juventude “houve um período de tempestade e estresse, um período de
desenvolvimento”, uma vez que “o resultado do trabalho educativo não pode ser julgado
até que tenham decorrido alguns anos” (BS, 14, p. 477). Era esperado que ocorressem
alguns excessos no início, no entanto, sendo esta uma organização voltada para o futuro,
não se podia analisar um dado acontecimento específico. Era necessário olhar para todo
o seu período de atuação. Por esse motivo, ele também diz a Goldensohn que não era
possível julgar ou culpar um grupo de pessoas enquanto organização, de modo que a
Juventude Hitlerista não poderia ser considerada criminosa. Sempre muito preocupado
com a formação de lendas no futuro, assim como Hans Frank, Schirach diz que “se você
banir (outlaw) meio milhão de pessoas, você as transforma em mártires”. Por exemplo,
“se você banir Robin Hood, está tudo muito bem, mas se você banir um grupo inteiro de
295

pessoas ao redor de Robin Hood, então Robin Hood e seus alegres companheiros se
tornarão uma lenda” (SCHIRACH apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 237).

Como os jovens – e ele incluso – haviam crescido “como uma geração de


líderes” (SCHIRACH apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 242), o baque da traição de Hitler
para essa parcela da população foi grande. Contudo, Schirach tinha convicção de que os
jovens ainda poderiam ser reeducados. Convencido de que após o extermínio nazista o
antissemitismo deixaria de existir, ele afirma que “as pessoas devem lutar contra essa
estigmatização social silenciosa e dissimulada que foi o terreno fértil para a doença”
(SCHIRACH apud GILBERT, 1995, p. 23). Schirach, portanto, era um ex-nazista
arrependido não tão arrependido assim. Sua atuação na Juventude Hitlerista e seu “Estado
dentro do Estado” era algo do qual ele se orgulhava e que ele acreditava que poderia ser
usado no futuro. Ele declara que “essas coisas não serão vistas objetivamente nesta época
em que os nazistas e o nazismo são criticados e a Juventude Hitlerista é vista apenas como
uma parte do nazismo”. No entanto, ele acreditava que “em alguns anos, quando o mundo
se acalmar, os aspectos positivos de meu programa serão reconhecidos” (SCHIRACH
apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 241).

Seu objetivo em Nuremberg era, então, separar totalmente a Juventude


Hitlerista do líder que deu nome à organização. Mesmo consciente de que esse programa
de um “Estado de juventude” “não sobreviverá assim como o nazismo não sobreviveu” –
e não havia dúvida de que o nazismo estava “totalmente morto” – Schirach tinha
esperança de que num futuro próximo “algumas coisas serão reconhecidas” em seu
programa para a juventude (SCHIRACH apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 241). Sendo
assim, sua perspectiva era a de que o seu projeto para o futuro fosse, de fato, aplicado em
um futuro em que o nazismo não existisse. Esse Estado independente poderia florescer
em outros regimes e, assim, seu legado estava seguro.

Lenha na fogueira

Ainda que buscasse se desvincular do nazismo, Baldur von Schirach não nega
ter sido antissemita – desde que ficasse claro que isso havia ficado no passado. Em
Nuremberg, sua função era admitir seu antissemitismo para renunciá-lo completamente,
demonstrando seu profundo arrependimento pelo que o nazismo havia feito em função
dessa ideologia, a saber, o extermínio de milhões de pessoas. Como, em sua perspectiva,
“há algo na natureza alemã que tende para a agressão”, quando Hitler e Himmler disseram
296

que os judeus deveriam ser exterminados, “com as tendências alemãs ao perfeccionismo


e exagero, isso foi tomado de forma literal” (SCHIRACH apud GOLDENSOHN, 2005b,
p. 238). Sendo assim, o antissemitismo não era genocida por si só, mas, após o Terceiro
Reich, ele definitivamente deveria deixar de existir.

O réu afirma que sua opinião nos anos 1920 era de que “os judeus deveriam ser
totalmente excluídos do serviço público. Sua influência na vida econômica deveria ser
limitada” e, por fim, “a influência judaica na vida cultural deveria ser restrita” (BS, 14,
pp. 418-419). Ainda que ele não tivesse participado da elaboração das legislações
antissemitas, como as Leis de Nuremberg, o nazista não era contra essa legislação, já que
elas resolveriam o problema judaico: “Depois que essas leis foram publicadas, éramos da
opinião de que agora, definitivamente, a última palavra havia sido dita sobre o problema
judaico” (BS, 14, p. 420). Ele salienta, ainda, que nem ele e nem a juventude tinham
qualquer relação com ações antissemitas violentas, como os pogroms de 1938, que ele
considerava “uma desgraça para nossa cultura” e “uma ação criminosa” (BS, 14, p. 423).
No tribunal, portanto, Schirach estava usando suas narrativas para “aliviar a juventude
alemã do fardo dessa loucura antissemita pela qual me senti parcialmente responsável, e
fazendo algo para facilitar as coisas para o futuro” (SCHIRACH apud GILBERT, 1995,
p. 303).

Que ficasse claro, no entanto, que, apesar de ser antissemita, Schirach não
tentou influenciar a juventude em torno desse aspecto da ideologia nazista. Ele declara:
“Não fiz nenhum discurso antissemita inflamado (inflammatory), pois tentei, tanto como
Líder da Juventude do Reich quanto como educador de jovens, não colocar lenha na
fogueira”. Isso não significava uma evasão de responsabilidade, apenas um
reconhecimento do que precisava ser reconhecido e uma negação do que precisava ser
negado: “Não vou ser ridículo afirmando aqui que não era antissemita; eu era, embora
nunca me dirigisse aos jovens nesse sentido” (BS, 14, p. 420). Schirach, por exemplo,
não foi contra a política de deportação dos judeus porque acreditava que, sendo
deportados, esses indivíduos estariam menos vulneráveis a ações antissemitas violentas,
como os pogroms mencionados anteriormente. Nesse sentido, ele não podia impedir a
deportação, mas sequer queria impedi-la, já que acreditava que aquela seria “uma
emigração judaica para países onde os judeus queriam ir”. Naturalmente, a deportação
não significava extermínio – ao menos não inicialmente: “Mas o plano de Hitler, tal como
existia na época – e acredito que naquela época a ideia de exterminar os judeus ainda não
297

lhe havia passado pela cabeça – esse plano de reassentamento me parecia perfeitamente
razoável – razoável naquele momento” (BS, 14, pp. 423-424).

Como um ex-nazista arrependido, Schirach admite que proferiu discursos


antissemitas, os quais, naquele momento em Nuremberg, lhe causavam profundo
remorso:

Primeiro, quero dizer que fiz esse discurso. A citação está correta. Eu disse
isso. Devo manter o que eu disse. Embora o plano de deportação dos judeus
fosse o plano de Hitler e eu não fosse responsável por sua execução, pronunciei
essas palavras, das quais agora sinceramente lamento; mas devo dizer que me
identifiquei moralmente com essa ação apenas por um sentimento de lealdade
equivocada ao Führer. Isso eu fiz, e isso não pode ser desfeito. Se vou explicar
como cheguei a fazer isso, só posso responder que naquela época eu já estava
‘entre o Diabo e o mar profundo’109. Acredito que também ficará claro a partir
de minhas declarações posteriores que, de um certo momento em diante, eu
tinha Hitler contra mim, a Chancelaria do Partido contra mim e muitos
membros do próprio Partido contra mim. […]; e eu simplesmente não tenho
desculpa. Mas talvez sirva de explicação, que eu estava tentando me livrar
dessa situação dolorosa falando de uma maneira que hoje não posso mais
justificar para mim mesmo (BS, 14, pp. 426-427).

Sendo assim, o réu compreende que não havia explicação para seus discursos
antissemitas além do simples fato de que ele estava intimamente envolvido no movimento
e na ideologia nacional-socialista. Uma explicação, certamente, e não uma desculpa: “não
quero minimizar minha própria responsabilidade de forma alguma” (BS, 14, p. 503).
Contudo, ele havia percebido os resultados do antissemitismo naquele tribunal e,
portanto, não poderia mais compactuar com o que seu “eu” do passado havia dito e
acreditado.

Ainda que ele só tenha tomado conhecimento da extensão do extermínio


durante os procedimentos em Nuremberg, Schirach admite que soube do início dos
assassinatos em 1944, mencionando o caso de Wartheland, já abordado em capítulo
anterior, e o extermínio na União Soviética. Ele diz que até mesmo chegou a visitar o
campo de Mauthausen em 1942, mas relata que o campo parecia na mais perfeita ordem,
listando instalações que demonstravam o cuidado com os prisioneiros, como a existência
de uma clínica odontológica (BS, 14, p. 436). Após essa visita, vendo com seus próprios
olhos as condições do campo, não havia qualquer motivo para duvidar que os prisioneiros
eram bem tratados. Schirach também visitou o campo de Dachau em 1935, mas declara

109
Aqui, Schirach talvez esteja fazendo uma referência a obra Fausto (1808), do autor alemão Johann
Wolfgang von Goethe (1749-1832), em uma relação com a escolha entre permanecer ao lado do demônio
Mephisto (também referenciado por Hans Frank, como vimos) na descoberta de novos mundos ou se deixar
afogar no oceano.
298

que sempre acreditou que nesses campos só estavam confinados prisioneiros políticos,
pervertidos sexuais e outros tipos de criminosos – isto é, pessoas que deveriam e
mereciam estar ali. O nazista afirma que uma vez até presenciou Heinrich Himmler
demandando o melhor tratamento possível para os judeus. Nessa ocasião, Himmler havia
dito: “Por favor, cuide desses judeus e trate-os bem; são meus bens mais valiosos”, e, por
essa razão, ele acreditava que tudo corria bem no Terceiro Reich (BS, 14, pp. 439-440).
Reinhard Heydrich, em sua perspectiva, também não era “um expoente de uma política
de terror” (BS, 14, p. 491). Schirach era, assim como Hans Fritzsche, que abordaremos a
seguir, um homem que acreditou inocentemente em tudo o que lhe disseram.

Em Nuremberg a verdade dos campos ficara evidente. Essa verdade foi recebida
por seus olhos assustados e lhe mostrou as consequências da política racial:

DR. SAUTER: Testemunha, eu gostaria de fazer uma pergunta de princípio.


Você admitiu ontem que se tornou um antissemita – e isso está de acordo com
sua concepção – em sua juventude. Nesse ínterim, você ouviu o testemunho de
Höss, o comandante de Auschwitz, que nos informou que somente naquele
campo, acredito, 2.500.000 a 3.000.000 pessoas inocentes, a maioria judeus,
foram mortas. O que, hoje, o nome de Auschwitz lhe transmite?
VON SCHIRACH: É o maior, o mais diabólico assassinato em massa
conhecido na história. Mas esse assassinato não foi cometido por Höss; Höss
era apenas o carrasco. O assassinato foi ordenado por Adolf Hitler, como é
óbvio em seu último testamento. O testamento é genuíno. Eu segurei a cópia
fotostática daquele testamento em minhas mãos. Ele e Himmler cometeram
juntos aquele crime que, para sempre, será uma mancha nos anais de nossa
história. É um crime que envergonha todos os alemães.
A juventude da Alemanha é inocente. Nossa juventude era antissemita, mas
não exigia o extermínio dos judeus. Não percebeu nem imaginou que Hitler
havia realizado esse extermínio pelo assassinato diário de milhares de pessoas
inocentes. Os jovens da Alemanha que hoje estão perplexos entre as ruínas de
sua terra natal, nada sabiam desses crimes, nem os desejavam. Eles são
inocentes de tudo o que Hitler fez ao povo judeu e ao povo alemão.
Gostaria de dizer o seguinte em relação ao caso de Höss. Eu eduquei esta
geração na fé e lealdade a Hitler. A Organização de Juventude que eu construí
levava seu nome. Eu acreditava estar servindo a um líder que tornaria nosso
povo e a juventude de nosso país grandes, felizes e livres. Milhões de jovens
acreditaram nisso, junto comigo, e viram seu ideal supremo no nacional-
socialismo. Muitos morreram por isso. Diante de Deus, diante da nação alemã
e diante do meu povo alemão, só eu carrego a culpa de ter treinado nossos
jovens para um homem que durante muitos anos considerei incontestável, tanto
como líder quanto como chefe de Estado, de criar para ele uma geração que o
visse como eu. A culpa é minha porque eduquei a juventude da Alemanha para
um homem que assassinou aos milhões. Eu acreditei nesse homem, isso é tudo
que posso dizer para minha desculpa e para caracterizar minha atitude. Esta é
a minha própria culpa pessoal. Eu era responsável pela juventude do país. Fui
colocado em autoridade sobre os jovens, e a culpa é só minha. A geração mais
jovem é inocente. Ela cresceu em um estado antissemita, governado por leis
antissemitas. Nossa juventude estava presa a essas leis e não via nada de
criminoso na política racial. Mas se o antissemitismo e as leis raciais podem
levar a Auschwitz, então Auschwitz deve marcar o fim da política racial e a
morte do antissemitismo. Hitler está morto. Eu nunca o traí; eu nunca tentei
derrubá-lo; permaneci fiel ao meu juramento como oficial, líder de jovens e
299

oficial. Eu não era um colaborador cego dele; nem fui oportunista. Eu era um
nacional-socialista convicto desde os meus primeiros dias – como tal, eu
também era um antissemita. A política racial de Hitler foi um crime que levou
o desastre para 5.000.000 judeus e para todos os alemães. A geração mais
jovem não tem culpa. Mas aquele que, depois de Auschwitz, ainda se apega à
política racial tornou-se culpado (BS, 14, pp. 432-433, grifos meus).

Sua culpa era individual para que a culpa coletiva da juventude alemã fosse
aliviada. Como os jovens o seguiram porque ele, ingenuamente, acreditou em Hitler, a
juventude não poderia ser penalizada por essa “mancha nos anais da história” alemã. Os
jovens haviam sido criados em um Estado nacional-socialista e agiram conforme lhes era
esperado por seus líderes, inseridos como estavam naquela ideologia. O líder da
Juventude Hitlerista havia sido um nazista convicto, e, ao renunciar suas crenças, buscava
uma absolvição – não de si, mas da juventude alemã. Ele não era inocente, mas seu
“Estado dentro do Estado”, sim. Afinal, como julgar uma geração que cresceu acreditando
em premissas antissemitas e que não conhecia um mundo fora do nazismo? Como julgar
os jovens “soldados do futuro” que viam em Hitler o portador de uma verdade
incontestável?

Para Schirach, Auschwitz colocaria, portanto, um fim em políticas pautadas no


racismo. Para Gilbert, o réu explica que “a exposição das atrocidades por si só não
colocará um fim ao antissemitismo e ao preconceito racial. Nem a punição nem a
vingança farão isso, pois pode até se recuperar nos anos posteriores. O único que pode
acabar com o antissemitismo é um antissemita”. Essa era, então, sua tarefa naquele
tribunal, sua “missão histórica”: se “levantar como Líder da Juventude Alemã e proclamar
diante de todo o mundo que nossa política racial foi um erro”. Essa declaração, vinda de
um antissemita como ele, acabaria com a questão “de uma vez por todas” (SCHIRACH
apud GILBERT, 1995, pp. 285-286).

Schirach também compartilha suas divagações com o psiquiatra Goldensohn:


“Depois de minha declaração no tribunal de que Hitler foi mil vezes assassino e de minhas
outras declarações sobre a falácia e o total equívoco do antissemitismo, repensei todas as
ideias que me guiaram durante os últimos 15 ou 20 anos de minha vida”. Ele conclui que
“a política racial como um todo é uma das maiores ameaças à humanidade” e passa a
analisar “de que modo todos esses homens diferentes estavam errados no que diziam, não
apenas quanto à influência judaica, mas quanto às outras questões”. Pensativo, ele
declara: “Continuo pensando nisso. Preciso refletir e tentar obter uma compreensão real
dos erros de nossas ações” (SCHIRACH apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 292).
300

Uma ditadura manda

Apesar de não negar seu antissemitismo, Schirach reforça que não ingressou no
movimento nacional-socialista pelo antissemitismo, e sim, pelo nacionalismo e pela
promessa de um futuro grandioso presentes em seus ideais. Ele foi atraído pelos discursos
de Hitler que pregavam a ideia de comunidade nacional, e esses discursos o encheram de
esperança. Schirach lembra que o futuro Führer da Alemanha lhe “pareceu o homem que
abriria o caminho para o futuro de nossa geração” e que acreditava verdadeiramente que
“através dele seria possível oferecer a essa geração mais jovem a perspectiva de trabalho,
de felicidade”. Esse homem que libertaria os alemães “dos grilhões de Versalhes” só
ascendeu ao poder por conta desse tratado, um tratado que, inevitavelmente “levou à
ditadura” (BS, 14, pp. 368-369). O réu usa o exemplo do Protestantismo e da Revolução
Francesa para mostrar “como, no início, as revoluções são radicais em vez de tolerantes”
(BS, 14, pp. 535-536), de modo que o nacional-socialismo, em seus primórdios, parecia
uma revolução social como qualquer outra – e, por isso, seu apelo entre a geração mais
jovem era tão grande.

Como, em sua perspectiva, servir ao seu país “era servir ao Todo-Poderoso”


(BS, 14, p. 481), naturalmente, comparações entre Hitler e Deus iriam surgir. Schirach,
no entanto, considerava esse tipo de comparação uma “blasfêmia”. Hitler, em seus olhos,
durante o Terceiro Reich, era “um homem enviado por Deus para liderar o povo”, assim
como “qualquer grande homem da história […] pode ser considerado um enviado de
Deus” (BS, 14, p. 478). Ele acreditou profundamente no Führer desde os primórdios do
movimento, mas mantém que aquilo havia ficado no passado: Auschwitz não permitia
que ele ainda enxergasse Hitler daquela maneira. Sendo assim, suas ações podem ser
explicadas – ainda que não desculpadas – pela sua “lealdade errônea” a Hitler, esse
homem que o enganou e iludiu todo o povo alemão (BS, 14, pp. 514-515). Antes de 1934,
Hitler, para Schirach era menschlich, humano; de 1934 a 1938 ele se tornou
übermenschlich, sobre-humano, superior, acima de todos. A partir de 1938, em um
período de queda, ele se tornou unmenschlich, inumano, um tirano (SCHIRACH apud
GILBERT, 1995, p. 23).

Tomando como ponto de partida a natureza ditatorial do regime nazista,


Schirach discordava da ideia de “conspiração” apresentada pela promotoria. Chamando
atenção para uma possível e aparente hipocrisia dos Aliados, Schirach diz que nada foi
“discutido a portas fechadas” e que “o que queríamos, reconhecemos francamente perante
301

a nação e, na medida em que o jornal impresso é lido em todo o mundo, todos no exterior
também poderiam ter sido informados sobre nossos objetivos e propósitos”. As palavras
de Hitler em seus discursos eram duras, e os outros países ocidentais poderiam ter
intervindo se quisessem. Como vimos em capítulos anteriores, o mundo inteiro assistiu –
e, em muitos sentidos, celebrou – a ascensão de Hitler e de outros regimes fascistas ao
poder. Não eram necessárias discussões “a portas fechadas” porque havia concordância.
Ainda sobre a acusação de “conspiração”, Schirach conclui sem medo de dizer que o
nazismo era uma ditadura e que ele estava de acordo com esses preceitos na época:
“Também não acredito que tenha havido uma conspiração; o pensamento de conspiração
está em contradição com a ideia de ditadura. Uma ditadura não conspira; uma ditadura
manda” (BS, 14, pp. 378-379).

Schirach viveu em uma ditadura e auxiliou a construir as bases desse regime.


Sua narrativa deixa um alerta: o nazismo e suas consequências poderiam “acontecer em
qualquer país, desde que as condições fossem como na Alemanha” (SCHIRACH apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 238). Para o réu, como “a ideia sempre foi mais essencial que
pão e manteiga para a nossa nação”, não era uma grande surpresa que os alemães,
sobretudo os jovens, tenham sido tocados pelas boas ideias iniciais do nacional-
socialismo (SCHIRACH apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 238). Entretanto, naquele
momento em Nuremberg, estava claro para ele, olhando em retrospectiva, que “um
verdadeiro sistema de governo deve impedir que um homem ou vinte ou trinta homens
concentrem todo o poder do Estado em suas mãos. É o poder que estraga as pessoas”,
uma vez que “a busca do poder é o grande perigo e o grande corruptor da humanidade”
(SCHIRACH apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 245). Por esse motivo, ele não conseguia
concordar com os outros réus que diziam que “uma ditadura pode ser boa se houver um
bom ditador”. Para Schirach, de maneira similar a Albert Speer, depois do nazismo,
estava óbvio que “um homem não consegue continuar bom depois que se torna ditador”
porque “o autoritarismo é um sistema que destrói a moralidade do homem” (SCHIRACH
apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 245). Seus discursos em Nuremberg são, então, sua
última tentativa de resgatar sua moralidade, tão fragilizada após tantos anos servindo a
um sistema ditatorial governado por um unmenschlich como Adolf Hitler.

Cabeça erguida

Alfred Rosenberg, um defensor fiel, ficou um tanto quanto perturbado com a


defesa de Schirach no tocante à sua denúncia do antissemitismo. Rosenberg tentou fazer
302

uma de suas “racionalizações Rosenbergianas” acerca do fenômeno, apresentando


justificativas históricas para a guerra e a perseguição dos judeus. O réu ficou ainda mais
irritado quando Schirach afirmou nunca ter lido seu livro, O mito do século XX. No
entanto, o líder da Juventude Hitlerista encontrou acolhimento nos outros jovens ex-
nazistas arrependidos, Albert Speer e Hans Fritzsche, que ficaram felizes que o colega
havia conseguido escapar das extorsões de Göring. Para eles, sua defesa foi vista como
“uma vitória sobre o cinismo de Göring e um serviço ao povo alemão” (GILBERT, 1995,
p. 350). Por outro lado, Hans Frank, outro membro da mesma categoria, como vimos, não
queria dividir seu posto de delator do nacional-socialismo. Após a defesa de Schirach,
Frank muda mais uma vez sua narrativa e se irrita com a postura do réu, afirmando que
ele não deveria ter julgado Adolf Hitler, afinal, “ao depor como testemunha, não se
assume o papel de juiz” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 349). Outros nazistas
concordaram com a denúncia de Hitler feita pelo réu, como Franz von Papen, o diplomata
da velha guarda, que afirmou categoricamente que o Führer era, de fato, “o maior
assassino de todos os tempos!” (PAPEN apud GILBERT, 1995, p. 350).

Schirach estava particularmente satisfeito com sua linha de defesa. Ele diz a
Gilbert, realizado: “bom, acho que esse é o fim do mito de Hitler” (SCHIRACH apud
GILBERT, 1995, p. 350). Ele acreditava que sua confissão havia “quebrado o último
vínculo moral com Hitler”, ainda que esse fosse um elo difícil de ser quebrado, uma vez
que “a juventude alemã foi criada para seguir um líder” (SCHIRACH apud GILBERT,
1995, p. 354). Firme em seu papel de assumir sua responsabilidade para salvar a reputação
da juventude, Schirach estava ciente que, também, não poderia evadir a punição. Ele
declara: “Quando todas as atrocidades vieram à tona no final da guerra, meus piores
medos se concretizaram e eu sabia que deveria morrer por isso. Mas eu não cometeria
suicídio como um covarde” (SCHIRACH apud GILBERT, 1995, p. 24). Mesmo que o
mundo – e homens como ele – tenham tomado conhecimento das atrocidades nazistas
naquele tribunal, Schirach sabia que eles não viveriam “o suficiente para usar nossa
sabedoria recém-descoberta”. Após o julgamento, tudo estaria acabado, e, assim como
Speer, ele não conseguia culpar os juízes por realizarem uma sentença dura: “Eu não
culparia o tribunal se eles apenas dissessem: ‘Corte todas as cabeças deles!’ Mesmo que
haja alguns inocentes entre os vinte, não faria a menor diferença entre os milhões que
foram assassinados” (SCHIRACH apud GILBERT, 1995, p. 71).

Sendo assim, o líder da Juventude Hitlerista acreditava que seria levado à forca
303

por suas denúncias dos crimes nazistas: “bem, agora fiz minha declaração e terminei
minha vida. Espero que o mundo perceba que só tive boas intenções” (SCHIRACH apud
GILBERT, 1995, p. 354). Ao receber sua sentença de 20 anos de prisão, o rosto de
Schirach “estava grave e tenso enquanto ele marchava para sua cela, de cabeça erguida”
(GILBERT, 1995, p. 433). Gilbert tentou tranquilizá-lo dizendo de que sua esposa ficaria
contente de saber que o marido não seria condenado à morte, mas Schirach apenas disse
que seria “melhor uma morte rápida do que uma lenta” (SCHIRACH apud GILBERT,
1995, p. 433). Ainda assim, é válido ressaltar que sua postura após o veredito foi a mesma
do começo do julgamento, quando, ainda em outubro de 1945 ele disse a Gilbert que
“enquanto eu puder manter minha cabeça, vou mantê-la erguida” (SCHIRACH apud
GILBERT, 1995, p. 22).

Baldur von Schirach caminhou para a prisão um homem jovem e saiu pelos
portões 20 anos mais velho, e com repertório suficiente para escrever uma autobiografia
para seguir com sua missão de renunciar a Adolf Hitler e ao antissemitismo. Eu acreditei
em Hitler, o título de sua produção, visa a manutenção e reabilitação do personagem que
ele construiu no tribunal: um ex-nazista arrependido, enganado pelo seu líder, que (ainda)
queria alertar a todos sobre os perigos da permanência do antissemitismo no tecido social.
Essa é também a visão de uma das testemunhas da defesa de seu caso, Fritz Wieshofer:

Mas e quanto ao seu país? Estou impressionado de ouvir oficiais americanos


expressarem sentimentos antissemitas mesmo agora! O mundo não aprendeu
nada com o horrível exemplo da Alemanha? Como ainda pode haver
antissemitas depois do que aconteceu na Alemanha? Claro, há alguns que
podem dizer que nunca perceberam antes a que o preconceito racial pode levar.
Mas agora? Depois de Auschwitz, como diz von Schirach? A Juventude Alemã
certamente aprendeu a lição. Está certo como ele diz aqui, ‘o que Hitler fez
tanto para o povo judeu quanto para o alemão’. Aprendemos na amargura e na
miséria a que leva o preconceito racial. Mas o resto do mundo ainda não
aprendeu? (WIESHOFER apud GILBERT, 1995, p. 353)

Tantos anos depois, essas palavras ainda ecoam para uma audiência que tampa
seus ouvidos: o mundo não aprendeu as consequências do preconceito racial e social, que
não se limitam ao caso do antissemitismo. Essa lição ficou no passado, atrelada aos crimes
do nacional-socialismo; um problema específico deste país e deste momento do século
XX. Políticas raciais pautadas em preconceitos históricos seguem intactas na atualidade,
reforçadas por políticos de extrema-direita que olham para esse passado com nostalgia: e
aqui está, até hoje, o perigo.
304

Hans Fritzsche (1900-1953)

“Eu pintava apenas em preto-e-branco – sem cores intermediárias.


Seu país e os demais Aliados fizeram a mesma coisa”

(GOLDENSOHN, 2005a, p. 97)

Hans Fritzsche era funcionário do Ministério da Propaganda e chefe da sessão


de rádio de 1942 em diante. Foi julgado em Nuremberg por planos de conspiração, crimes
de guerra e crimes contra a humanidade, sendo considerado inocente de todas as
acusações e liberado em 1946. Fritzsche passou os últimos sete anos de sua vida em
liberdade, falecendo em setembro de 1953 aos 53 anos de idade.

Mais um dos jovens em Nuremberg, Fritzsche ingressou no Ministério da


Propaganda nos primeiros meses de 1933 após a demissão em massa de antigos
funcionários. Na época, ele era ex-diretor do departamento de notícias da rádio de
Hugenberg e, para se manter no novo cargo, filiou-se ao Partido Nazista. Sua função era
verdadeiramente importante, já que o Ministro da Propaganda Joseph Goebbels
acreditava que o rádio era “o mais moderno e mais importante instrumento de influência
de massa que existe em qualquer lugar”, podendo substituir até mesmo o jornal impresso
305

(EVANS, 2014a, p. 492). Buscando uma profunda revolução cultural, já em 1933, pouco
após a ascensão de Hitler ao poder, os nazistas distribuíram aparelhos de rádios baratos
chamados de “receptores do povo” (Volksempfänger), instrumentos que o trabalhador
alemão conseguia comprar com uma semana de trabalho e que poderia ser pago em
parcelas se necessário. Em 1939, mais de 70% das casas alemãs possuíam um receptor, o
que possibilitou a propaganda nazista a se disseminar cada vez mais, inclusive para
regiões do interior do país, que até então estavam “relativamente afastadas do mundo
político” (EVANS, 2014c, p. 165). Os discursos de Hitler eram transmitidos por rádio,
bem como a “Hora da Nação”, que passava todas as noites.110 Dessa maneira, o rádio se
tornou o principal recurso propagandístico do regime nazista nos primeiros anos do
Terceiro Reich: apenas em 1933, 50 discursos de Hitler foram transmitidos via rádio, e
nas comemorações do Dia do Trabalho em 1 de maio de 1934, as transmissões com
discursos, marchas e canções ocuparam cerca de 17 horas do tempo das rádios (EVANS,
2014c, p. 168).

Como, para Goebbels, “não existe absolutamente nada que não tenha viés
político” (GOEBBELS apud EVANS, 2014c, p. 167), e Hitler também já havia sinalizado
em Mein Kampf a importância da propaganda para a disseminação das ideias do
movimento, Fritzsche estava no centro do aparato ideológico nazista. Apesar de ser um
comentarista de rádio muito conhecido, ele estava em Nuremberg por insistência dos
soviéticos como o representante da propaganda nazista, e, portanto, como um substituto
de Joseph Goebbels. Sua absolvição parecia algo dado desde o começo dos
procedimentos, já que “ficou claro que os crimes dele não eram, de jeito nenhum,
comparáveis aos de seu chefe” (EVANS, 2014b, p. 849). Assim como Baldur von
Schirach, as alegações contra Fritzsche estavam no âmbito da propagação da ideologia
nazista, na preparação do terreno para garantir a adesão ao regime, sobretudo durante a
Segunda Guerra Mundial (PRIEMEL, 2016). Sobre a acusação, ele declara: “é a acusação
mais terrível de todos os tempos. Só uma coisa é mais terrível: a acusação que o povo
alemão fará pelo abuso de seu idealismo” (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 7).

Esse ex-nazista arrependido, descrito por Goldensohn como alguém com “um
caráter jovial, ingênuo, sugestivamente adolescente” (GOLDENSOHN, 2005a, p. 84),
mantém esse perfil durante todo o processo em Nuremberg: um homem idealista, inocente

110
Parte desse parágrafo foi retirada e adaptada da minha dissertação de mestrado, ver: VISCONTI, 2017,
p. 47.
306

e ingênuo que defendeu o regime nacional-socialista por acreditar em falsos preceitos. A


verdade havia chegado à tona naquele momento e ele podia finalmente perceber que tudo
o que ele sempre acreditou havia sido uma mentira. Como um idealista, um representante
da ingenuidade germânica, ele havia acreditado na ideologia nazista, nas promessas do
Führer e, para isso, havia fechado os olhos para atrocidades, havia concordado com
princípios racistas – até aquele momento. Ao chegar em Nuremberg e ser apresentado
àquela “tragédia”, sua perspectiva havia mudado e ele conseguia ter uma visão melhor do
todo. E essa realização lhe causava grande sofrimento, como confidencia a Goldensohn:
“Espero que você chegue a alguma convicção sobre se sou ou não culpado. Se puder,
imagine que aqui estou eu, um ser humano que sofreu mais do que um humano deveria
sofrer – e que fiz descobertas que deveriam ser transmitidas aos outros”. Ele conclui
afirmando que suas ideias “são as únicas que precisam emergir destes julgamentos” e que
ele sentia que era seu dever “lutar pelo idealismo alemão deturpado” (FRITZSCHE apud
GOLDENSOHN, 2005a, p. 108). Sua luta no tribunal lhe rendeu uma longa lista de frases
de efeito e de conceitos fundamentais para compreender esse momento do imediato pós-
guerra, como veremos. Por fim, seu frágil idealismo abusado e deturpado conseguiu
sobreviver ao Julgamento de Nuremberg e seguiu com ele por anos em sua vida em
liberdade como um ex-nazista arrependido e inocentado.

Anacronismo

Assim como outros nazistas, Hans Fritzsche acredita que Hitler não teria sido
possível se o Tratado de Versalhes não tivesse trazido tanta miséria e humilhação para a
Alemanha. Ele havia se juntado ao Partido Nazista não por uma admiração a Hitler ou
por conta do radicalismo do NSDAP, e sim, porque foi este o único partido político que
conseguiu unir o povo alemão novamente. Como o NSDAP não tinha uma linha teórica
muito definida ou rígida, ele acreditou estar entrando em um movimento, e não em um
mero partido político. Esse movimento, de acordo com Fritzsche, lhe parecia composto
por contrastes, “variável em suas escolhas de métodos”, onde ele esperava encontrar “um
amplo fórum para discussões intelectuais que não mais se desenvolvessem com a
animosidade assassina que antes reinava na Alemanha, mas que pudesse ser realizada
com uma certa disciplina dominada por concepções nacionalistas e socialistas” (BS, 17,
pp. 137-138).

Fazendo concessões mesmo naquela época, o nazista havia deixado “de lado”
seus “próprios desejos” e “convicções políticas”, aconselhando outros a fazerem o
307

mesmo. Valeria a pena fechar os olhos quando não se concordava com alguma coisa,
porque se pensava estar “servindo uma boa causa”. Os alemães, portanto, “por puro
idealismo”, estavam “dispostos a sacrificar tudo a esta causa, tudo menos sua honra”. O
Führer, “o líder desta causa”, infelizmente “aceitou o sacrifício desses idealistas”, homens
como Fritzsche, e desperdiçou esse sacrifício, manchando “sua honra com um assassinato
sem sentido e desumano, único na história – um assassinato que nenhuma necessidade de
guerra poderia ter justificado” (BS, 17, pp. 137-138). O povo alemão merecia ser
reconhecido por sua sinceridade e sua “abnegação e disciplina patrióticas” (FRITZSCHE
apud GILBERT, 1995, p. 151). O idealismo da população era a garantia de sua redenção.
Hitler, no entanto, não tinha salvação. De acordo com Fritzsche, “mesmo sem a morte
das 5 milhões de vítimas dos campos de extermínio, Hitler entraria para a história como
o maior vilão de todos os tempos” (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 98).

O propagandista, no entanto, ao contrário dos militares apartidários, e de tantos


outros, não justifica suas ações em virtude da necessidade de obediência. Para Fritzsche,
“nenhum juramento isenta um homem de seus deveres gerais para com a humanidade.
Ninguém se torna uma ferramenta irresponsável por um juramento”. Ele conclui
afirmando categoricamente que seu juramento não foi feito a Hitler, e sim, ao povo
alemão, e, ainda acrescenta: “meu juramento nunca teria me feito cumprir uma ordem se
eu a reconhecesse como criminosa. Nunca na minha vida obedeci cegamente a alguém”
(BS, 17, pp. 137-138).

Não obstante, ele reforça que, ainda que Joseph Goebbels não fosse seu
superior imediato, ele tinha muitos níveis na cadeia de comando a quem responder: “Esta
é a primeira vez, aqui no banco dos réus, que estou sem superiores oficiais” (BS, 17, p.
142). Sua relação com Goebbels estava apenas pautada em um “caráter oficial, reservado
e até certo ponto formal” e ele nunca havia sequer conversado pessoalmente com Adolf
Hitler (BS, 17, p. 142). Contudo, com Goldensohn, Fritzsche é bem menos modesto. Para
o psiquiatra, o nazista faz questão de destacar sua esfera de influência em vários
momentos da entrevista, detalhando como ele conseguia demitir pessoas ou protegê-las.
Nem mesmo a Gestapo conseguia prejudicá-lo porque ele era capaz de demitir até os
membros dessa tão temida organização. Sua percepção do tamanho de seu papel dentro
do Terceiro Reich faz com que ele fale de si mesmo na terceira pessoa ao se referir a um
inspetor de rádio que falou dele “pelas costas”. O castigo foi proibir a entrada desse
indivíduo em todas as estações da Alemanha: “Ninguém exceto Fritzsche podia fazer uma
308

coisa dessas” (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 89), ele conta, orgulhoso.
Afinal, somente ele tinha tamanha influência e poder para realizar tais medidas. De
acordo com sua narrativa para Goldensohn, seu grande interesse na vida era o de
influenciar e impactar pessoas e, aparentemente, não ser responsabilizado por esse
impacto e influência.

O que se mantém em todas as suas linhas narrativas – e para todos os seus


interlocutores – é a revisão de todas as suas crenças durante o Julgamento de Nuremberg,
não somente com relação a ideologia nacional-socialista, mas também sobre teorias mais
abrangentes acerca do papel do Ocidente na tragédia generalizada do século XX.
Fritzsche dedica parte do seu depoimento, por exemplo, para falar sobre o nacionalismo,
afirmando ter sido um patriota, mas não um chauvinista, no sentido de um “nacionalismo
exagerado”. Ele afirma que, por sua formação como historiador, nos primórdios do
Terceiro Reich, ele já compreendia que “o velho nacionalismo era um anacronismo e que
era incompatível com as modernas comunicações e armas”. Ainda que nos anos 1930, “o
nacionalismo não era considerado um crime”, e era algo defendido em todo o mundo, em
sua perspectiva, o século XX havia mostrado que o nacionalismo era, impreterivelmente,
excludente: “o tempo do nacionalismo já passou, se a humanidade não quer cometer
suicídio, e que o período do internacionalismo chegou, para o bem ou para o mal” (BS,
17, p. 145). Para Goldensohn ele também afirma que “qualquer política racial adicional
é a base intelectual para novos assassinatos” e, nesse sentido, o que deveria ser combatido
de fato era o nacionalismo (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 108).

Alguns autores, no entanto, discordariam dessa análise de Fritzsche, sobretudo


em referência a segunda metade do século XX. John Lukacs, ao analisar as raízes do
nacional-socialismo, afirma que o nacionalismo sempre havia sido mais influente do que
o socialismo, uma vez que “nacionalidade era mais forte do que classe, porque
nacionalismo era mais forte do que internacionalismo”. Dessa maneira, o que restou do
século XX não foi a união entre os povos de várias localidades, e sim, a compreensão de
identidade circunscritos a um país: “O nacionalismo provou que é a principal realidade
política deste século. E ele foi seu representante máximo” (LUKACS, 1998, p. 176). Eric
Hobsbawm também reforça a perspectiva, comum no século XX, de que o nacionalismo
preencheu uma lacuna identitária e passou a colocar como equivalentes a nação, a raça, e
a língua. Como acreditava-se que as nações tinham descendências genéticas, forjou-se
uma nação racial e utilizou-se a língua como componente fundamental na elaboração de
309

uma engenharia social. O nacionalismo foi moldado para abarcar uma direita chauvinista,
imperialista, radical e racista: o que permaneceu, contudo, não foi uma proposta
internacional, e sim o triunfo do nacionalismo sob todas as ideologias rivais
(HOBSBAWM, 1998).

Pensando na complexidade da questão da identidade no momento do


surgimento dos Estado-Nação, Zygmunt Bauman e Hannah Arendt demonstram as
consequências dessa política nacional sob grupos marginalizados. Arendt, por exemplo,
dedica parte de sua vida e de sua atividade intelectual para a análise dos apátridas, esse
estranho fenômeno moderno de pessoas sem país dentro de um país (ARENDT, 1989).
Em consonância com a filósofa, Bauman propõe que a identidade forjada na identidade
nacional foi forçada nas comunidades, como uma ficção, pautada em uma “natividade do
nascimento”. Por ter sido forçada, também se constituiu como uma tarefa, “uma tarefa
ainda não realizada, incompleta, um estímulo, um dever e um ímpeto à ação”. Sendo
assim, “nascida como ficção, a identidade precisava de muita coerção e convencimento
para se consolidar e se concretizar numa realidade (mais corretamente: na única realidade
imaginável) – e a história do nascimento e da maturação do Estado moderno foi permeada
por ambos” (BAUMAN, 2005, p. 26).

Dessa maneira, a história do nacional-socialismo se confunde com a história do


surgimento dos Estado-Nação. Afinal, o sonho do grande Estado alemão unificado ainda
não havia se concretizado, ainda que a unificação tivesse acontecido décadas antes de
Hitler assumir o poder. Ao fim e ao cabo, há uma diferença fundamental entre a
materialidade dos fatos e sua simbologia. Na década de 1930, para a grande maioria dos
alemães, a Alemanha parecia qualquer coisa menos um Estado forte e unificado. Por esse
motivo, o historiador Richard Evans, em seu livro A chegada do Terceiro Reich, inicia o
primeiro capítulo com o questionamento: “é errado começar com Bismarck?” (EVANS,
2014a, p. 39). O fim da Guerra Austro-Prussiana e a separação entre Alemanha e Áustria
em detrimento da construção de um Estado pangermânico foram elementos que nunca
deixaram o imaginário alemão. Sendo assim, como vimos em capítulos anteriores, o fim
da Primeira Guerra Mundial e a perda de territórios germânicos com o Tratado de
Versalhes forneceram o combustível para o sentimento de um vazio de pertencimento
aliado a um desejo de vingança. A Revolução Alemã de Rosa Luxemburgo e sua
consequência, a República de Weimar, falharam em fornecer os subsídios ideológicos
para que esse vazio simbólico fosse preenchido. Quando Hitler chegou ao poder em 1933,
310

o que ele encontrou foi uma Alemanha ansiosa pela solução de seus grandes problemas
materiais, mas, também, de seus antigos questionamentos existenciais. Não surpreende,
olhando para trás, o apelo que o discurso nacionalista e de integração nacional teve nessas
pessoas.

A unidade nacional e a identidade nacional foram forjadas: construídas e


impostas. Não foi diferente com a ideologia nacional-socialista. Partindo de um princípio
mitológico, a construção do mundo ariano passou a ser a única realidade possível e
imaginável e, para isso, era necessária a ação constante dos indivíduos para tornar esse
sonho realidade. O sonho alemão, que ainda não havia sido realizado, seria, de fato,
construído por meio de uma guerra contra todos os outros (CHAPOUTOT, 2018;
LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002). Isso não quer dizer que a teoria do Sonderweg,
ou seja, do “caminho especial da Alemanha” rumo ao nacional-socialismo, seja
efetivamente verificável. Como vimos na Introdução, essa perspectiva, hoje vista como
datada, se apresenta por muitas vezes nos discursos da acusação no Julgamento de
Nuremberg: os alemães teriam uma pré-disposição a aceitar um regime como o de Adolf
Hitler e a constituição de seu passado tornou o presente quase que inevitável. Tão
diferente dos países ocidentais, a Alemanha havia tomado um outro rumo, no qual a
barbárie aparecia como o único caminho possível (PRIEMEL, 2016). Naturalmente, não
parece sequer plausível assumir uma ideia de inevitabilidade dos fatos em uma narrativa
histórica. Afinal, tudo poderia ter se dado de outra forma completamente diferente e seria
igualmente importante de ser estudado e analisado.111 No entanto, é igualmente verdade
que a história alemã tem um papel importante no desenrolar dos acontecimentos do século
XX.

Como um produtor da mobilização das massas, Hans Fritzsche tem um papel


relevante, e delicado, nesse processo de desenvolvimento do “velho nacionalismo”. Esse
“anacronismo” também faz parte de sua história. Sua justificativa, nesse ponto e em todos
os outros, sempre retorna para o idealismo. Como um ex-nazista arrependido, Fritzsche
fez tudo por acreditar em uma causa mentirosa: “gostaria de enfatizar explicitamente que
em cada caso, em cada ação, acreditei representar uma causa boa e justa” (BS, 17, p. 146).
Esse homem, “o único sobrevivente do público alemão”, acreditava que precisava estar
em Nuremberg para esclarecer sua posição e demonstrar como o regime nazista havia

111
Parafraseando o filme Mr. Nobody, de 2012, dirigido por Jaco Van Dormael e estrelado por Jared Leto:
“Tudo poderia ter sido outra coisa e teria o mesmo tanto de significado”.
311

sido uma sequência de miragens.

O autoritarismo lhe pareceu um bom governo na época, mas após Auschwitz,


não poderia haver dúvida de que a democracia era a melhor forma de governo: “Depois
que a forma totalitária de governo provocou a catástrofe do assassinato de 5 milhões,
considero essa forma de governo errada mesmo em tempos de emergência. Acredito que
qualquer tipo de controle democrático, mesmo um controle democrático restrito, tornaria
tal catástrofe impossível” (BS, 17, p. 150). Nesse sentido, o nazista entende que a
democracia teria conseguido frear o avanço nazista, algo que, ao analisar o caso de Franz
von Papen, prova-se como uma ilusão retrospectiva. A democracia moderna, na maior
parte das vezes, efetivamente não tem forças para proteger as próprias salvaguardas
constitucionais criadas previamente. Como lembra Hannah Arendt, a mistificação do
poder nos movimentos totalitários cresce “com facilidade diretamente proporcional ao
afastamento dos cidadãos das fontes do poder, ou seja, o misticismo do poder ocorre mais
facilmente nos países governados por burocracia, onde o poder positivamente transcende
a capacidade de compreensão do governado” (ARENDT, 1989, p. 288).

Esse argumento da existência de uma grande força democrática, mobilizado por


muitos intelectuais e diplomatas – e aqui também por Fritzsche -, demonstra uma perigosa
inocência mediante a gravidade da situação da Europa no momento da ascensão de Hitler
ao poder. De acordo com o Fritzsche, de um lado, havia uma massa de pessoas que eram
apenas idealistas e que acreditavam que todos deveriam renunciar a seus direitos
individuais, opiniões e desejos para garantir um Estado saudável. De outro, havia um
grupo menor, e no topo deste grupo ficava o Führer. Esse grupo e sua visão de mundo
quebraram sua promessa a milhões de pessoas que haviam lhe confiado suas esperanças
e utilizaram o poder de forma traiçoeira. O julgado afirma que o que se pensava serem
apenas tendências revolucionárias violentas – e passageiras – logo se mostraram ser, na
realidade, o cerne do próprio movimento nazista. Sendo assim, o que se acreditava ser
uma ala mais agressiva dentro do nacional-socialismo, na verdade, não era apenas uma
ala: era a ideologia na sua forma mais pura, era o próprio princípio do movimento
(FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 103). Como lembra Hannah Arendt,
terror e ideologia andam juntos, uma vez que “o terror é necessário para tornar e manter
o mundo coerente, para dominar os seres humanos até que percam a espontaneidade e,
com ela, a imprevisibilidade especificamente humana do pensamento e da ação”
(ARENDT, 2008a, p. 369). E, mais uma vez, a história de Hans Fritzsche está
312

intrinsecamente ligada à sua própria ruína, já que essa coerência do mundo totalitário é
forjada, precisamente, pela propaganda.

A responsabilidade moral do jornalista

Fritzsche acreditava que, pensando de maneira técnica, seu trabalho foi quase
perfeito: “nos detalhes trabalhamos de forma bastante limpa e honesta, tecnicamente até
perfeitamente”. Mesmo sem uma regulamentação internacional oficial quanto à
propaganda em tempos de guerra, o nazista acreditava firmemente ter uma consciência
livre da culpa, já que ele nunca havia usado de mentiras em sua atividade. Ele afirma
sempre ter enfatizado “a responsabilidade moral do jornalista”, e, se, em maio de 1945
ele não tirou sua vida junto com seu Führer, uma de suas razões era mostrar onde dentro
daquele sistema existia “o idealismo puro e os sacrifícios heroicos de milhões, e onde
havia mentiras e a brutalidade que não se esquivou de cometer crimes” (BS, 17, pp. 154-
155). Fritzsche, é claro, estava do lado dos idealistas. Apesar de ele não ter produzido
mentiras, seu trabalho, infelizmente, estava pautado nas mentiras que lhes foram
contadas. Contudo, era fundamental lembrar que ele, assim como todos os alemães, era
bom em sua natureza. O extermínio, do qual ele só tomou conhecimento durante os
procedimentos em Nuremberg, foi fruto de uma minoria que manchava a reputação do
bom povo germânico: “Ainda hoje acredito que o assassinato, a violência e os
Sonderkommandos apenas se agarraram como um corpo estranho, como um furúnculo,
ao corpo moralmente sadio do povo alemão e de suas Forças Armadas” (BS, 17, p. 162).
Sua inocência se equiparava a ingenuidade e ignorância da população como um todo:

Se o povo alemão soubesse desses assassinatos em massa, certamente não teria


mais apoiado Hitler. Eles provavelmente teriam sacrificado 5 milhões por uma
vitória, mas nunca o povo alemão teria desejado trazer a vitória pelo
assassinato de 5 milhões de pessoas.
Gostaria de afirmar ainda que este decreto de assassinato de Hitler me parece
o fim de toda teoria racial, toda filosofia racial, todo tipo de propaganda racial,
pois depois dessa catástrofe qualquer defesa adicional da teoria racial seria
equivalente à aprovação, na teoria, de mais assassinatos. Uma ideologia em
nome da qual 5 milhões de pessoas foram assassinadas é uma teoria que não
pode continuar a existir (BS, 17, pp. 180-181).

Como representante da categoria “propagandista” em Nuremberg, Fritzsche faz


questão de se distanciar do outro propagandista presente no tribunal: o defensor fiel Julius
Streicher. O jornalista não quer ter nenhuma relação com o tabloide de Streicher, o Der
Stürmer, tampouco com o seu antissemitismo, que ele define como um “antissemitismo
barulhento”, com teorias e métodos radicais. Streicher, “o principal agitador antijudaico
de todos os tempos” (BS, 17, pp. 165-166), não estava na mesma categoria que ele no
313

sentido da propaganda, até mesmo porque ele acreditava que o Der Stürmer era de tão
mau gosto que acabava servindo contra a causa alemã. Alfred Rosenberg também não é
alguém com quem Fritzsche quer se equiparar com relação ao seu trabalho.

Para Fritzsche, portanto, a propaganda aparecia como uma entidade mitológica,


quase que um presságio do que surgiria posteriormente nos romances de Neil Gaiman:112
uma instituição por si só, independente e, então, separada de seus produtores. Ainda que
ele tivesse um papel na sua elaboração, o nazista fala como se não tivesse qualquer relação
nem com suas consequências, nem com suas apropriações. Para ele, a propaganda – e ele
também – havia errado, primeiramente, em confiar “na humanidade de Adolf Hitler” e
em suas intenções pacíficas, e, em segundo lugar, por crer na “pureza ética do sistema”.
Ambas as crenças foram destruídas “pela ordem de assassinar 5 milhões de pessoas” e
“pelas ordens de tortura” (BS, 17, p. 197).

A propaganda sempre foi um ponto crucial para o desenvolvimento do


movimento nazista e, por isso, também foi um dos tópicos em que Adolf Hitler abordou
com mais detalhes em seu livro Minha luta. O futuro Führer da Alemanha afirma, por
exemplo, no primeiro parágrafo do capítulo A propaganda da guerra que havia
compreendido desde cedo que “a aplicação adequada de uma propaganda é uma
verdadeira arte, quase que inteiramente desconhecida dos partidos burgueses” (HITLER,
2005, p. 133). Por considerar a propaganda um meio para se atingir um fim, sendo esse
fim “a luta pela existência do povo alemão”, Hitler entende que o país havia falhado
miseravelmente em sua utilização para mobilizar a população durante a Primeira Guerra
Mundial.

A partir dessa conclusão, o nazista apresenta diversos pontos que seriam


necessários para a garantia de uma propaganda bem-sucedida. Em primeiro lugar, a
propaganda, de acordo com Hitler, “sempre terá de ser dirigida à massa”, e não a
intelectuais, uma vez que “o fim da propaganda não é educação científica de cada um, e
sim chamar a atenção da massa sobre determinados fatos, necessidades, etc., cuja
importância só assim cai no círculo visual da massa” (HITLER, 2005, p. 135). Como seu
objetivo era atingir a atenção e “o coração do povo”, Hitler entende a propaganda como

112
Referência a uma das personagens do livro Deuses Americanos do autor britânico Neil Gaiman,
publicado em 2001, e adaptado para a televisão em 2017. Partindo da premissa de que deuses existem
porque as pessoas acreditam neles, a personagem em questão é a deusa Mídia, que faz parte dos chamados
“novos deuses americanos modernos”. A Mídia assume diversas formas tanto no livro quanto na série de
TV, personificando a novidade e a variedade desse tipo de produção da modernidade.
314

uma arte que não necessariamente deve estar atrelada a realidade factual dos
acontecimentos. A atividade propagandista deve ser “fundamentalmente subjetiva e
unilateral” (HITLER, 2005, p. 137), e, por ser direcionada ao povo, às massas menos
esclarecidas, deve compreender sentimentos dicotômicos e extremos: amor ou ódio,
justiça ou injustiça, verdade ou mentira, nós ou eles, “nunca, porém, o meio termo”. A
massa, “sempre propensa a extremos” deve ser constantemente bombardeada pelas
mesmas informações, a fim de não se deixar espaço para questionamentos. Nesse sentido,
os propagandistas “têm de se contentar com pouco”: poucos pontos repetidos
frequentemente. Para Hitler, “a persistência, nesse caso, é, como em muitos outros deste
mundo, a primeira e mais importante condição para o êxito” (HITLER, 2005, p. 138). A
massa é convencida pela insistência, já que “todo anúncio, seja ele feito no terreno dos
negócios ou da política, tem o seu sucesso assegurado na constância e continuidade de
sua aplicação” (HITLER, 2005, p. 139).

Portanto, a propaganda nazista, ocupou um papel fundamental na gestão das


paixões políticas dos alemães, para usar a terminologia de Pierre Ansart. Essa gestão
abarca três perspectivas: a do ator detentor dessa mensagem simbólica; os dispositivos
usados para passar essa mensagem; e o receptor dessa mensagem, ele próprio um
indivíduo pertencente a uma sociedade, mas que também possui uma identidade própria
e um pertencimento a outros grupos, classes e questionamentos (ANSART, 2019). Nesse
sentido, para analisar a propaganda nazista, é necessário entender: o que eles queriam
transmitir, para quem, através de que recursos, em relação ao que?

Tomando a análise de Hannah Arendt como ponto de partida, conclui-se que as


principais características que garantiram o sucesso da propaganda nazista foram a
eliminação do imprevisível e a premissa básica de impossibilidade de verificação dos
fatos. Arendt afirma que “a melhor maneira de evitar discussão é tornar o argumento
independente de verificação no presente e afirmar que só o futuro lhe revelará os méritos”
(ARENDT, 1989, p. 395). E esse futuro, naturalmente, só poderia ser revelado pelo
Führer da Alemanha, o grande detentor do caminho do povo alemão, escolhido pelo
Destino, nas palavras do Ministro da Propaganda, Joseph Goebbels (KERSHAW, 2001,
p. 14). Hitler agia como agia porque estava ancorado em uma infalibilidade, fruto de sua
“correta interpretação de forças históricas ou naturais essencialmente seguras, forças que
nem a derrota nem a ruína podem invalidar porque, a longo prazo, tendem a prevalecer”
(ARENDT, 1989, p. 398).
315

A atuação do movimento nazista precisava ser amparada pela propaganda para


convencer o maior número possível de pessoas. Arendt, entretanto, ressalta que os temas
dessa propaganda não são totalmente inventados e que “as necessidades da propaganda
são sempre ditadas pelo mundo exterior; por si mesmos, os movimentos não propagam,
e sim doutrinam” (ARENDT, 1989, p. 392–393). As massas, buscando fugir de sua
realidade miserável, deixam de acreditar no que é visível, “na realidade da sua própria
experiência”, e passam a confiar apenas “em sua imaginação, que pode ser seduzida por
qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente em si”. Por isso, “o que convence
as massas não são os fatos, mesmo que sejam fatos inventados, mas apenas a coerência
com o sistema do qual esses fatos fazem parte” (ARENDT, 1989, p. 401). E é nesse
sentido que a propaganda totalitária tinha vantagem sob as outras formas de propaganda
conhecidas até então: ela abolia completamente a perspectiva de que as pessoas podiam
ter opiniões contrárias aos fatos apresentados. O nacional-socialismo passou a ser a única
forma possível de ser e estar no mundo, forjando a coerência necessária para a
manutenção do sistema. Nas palavras de Goebbels, “esperamos que chegue o dia em que
ninguém precisa mais falar sobre nacional-socialismo, visto que terá se tornado o ar que
respiramos!” (GOEBBELS apud EVANS, 2014c, p. 249).

Assim sendo, e seguindo à risca a cartilha proposta por Hitler em Minha luta,
Joseph Goebbels moldou o Ministério da Propaganda afim de instaurar permanentemente
a ideologia nacional-socialista na mente dos alemães. Mais do que isso, Goebbels também
foi o grande responsável pela construção da imagem do Führer e pela manutenção dessa
imagem no fim da guerra, ou seja, foi peça fundamental na criação do mito de Hitler, para
usar o conceito de Ian Kershaw. O ministro, no entanto, foi vítima de sua própria
fabricação e dedicou sua vida integralmente a seguir e idolatrar Adolf Hitler. De acordo
com Peter Longerich, responsável pela biografia de Goebbels, “Hitler lhe conferia a
necessária estabilidade para lidar com a vida, estabilidade que lhe faltava em virtude da
personalidade desequilibrada” (LONGERICH, 2014, p. 16). O líder foi definido por
Goebbels como “o Führer, o Profeta, o Lutador”, e “a última esperança das massas, o
símbolo brilhante da vontade alemã de liberdade” (GOEBBELS apud KERSHAW, 2001,
p. 41). Hitler passou a ser parte tão primordial da existência do propagandista que, em 1
de maio de 1945, um dia após a morte do líder, Goebbels tirou sua vida e a de toda sua
família, incluindo seus seis filhos. Hitler, em seu testamento, havia nomeado Goebbels a
Chanceler da Alemanha; no entanto, ele declina o cargo, afirmando aos prantos que
316

ficaria “ao lado do Líder, para terminar uma vida que, para mim, não tem mais valor se
não puder se usada a serviço do Líder e ao lado dele” (GOEBBELS apud EVANS, 2014b,
p. 833).113 As cápsulas de ácido cianídrico utilizadas para colocar fim à sua vida e à de
sua prole são uma sinistra representação do que restava após a morte de seu Führer: a
completa ausência de futuro. O nacional-socialismo era, de fato, o ar que ele respirava e,
no fim, assim como no início, a vida de Joseph Goebbels estava intimamente ligada à
vida de Adolf Hitler.

Como o representante – e substituto – de Goebbels no tribunal, Hans Fritzsche


precisava, consequentemente, responder a acusações relativas à propaganda do Terceiro
Reich de maneira geral. Nesse sentido, sua defesa em certos aspectos é similar a do
negacionista relapso Ernst Kaltenbrunner, que estava em Nuremberg como o
representante de Reinhard Heydrich (e, por vezes, de Himmler), como vimos. Para se
distanciar de Goebbels, Fritzsche se coloca em uma posição superior, tanto de influência
quanto em relação a suas atividades, ao mesmo tempo em que não se sente tão responsável
quanto o Ministro. Aqui está uma incongruência muito recorrente em seu discurso: ele,
que de acordo com suas próprias palavras, era a pessoa mais conhecida e independente
do Ministério e que, nos últimos quatro anos da guerra havia sido o responsável por tudo
na seção de rádio, contudo, não se via como o Número Dois dentro do Ministério. Nesse
sentido, a popularidade parecia ser compartilhada, mas a responsabilidade pela
propaganda e pelo poder, não. Fritzsche intensifica essa competição com Goebbels pela
fama e a estima ao longo das entrevistas com Goldensohn, reforçando que todos sabiam
que trabalhar para ele era uma honra muito maior do que trabalhar para o Ministro e que,
apesar de não receber inúmeros aplausos após um discurso, como Goebbels recebia, ele
possuía uma comunidade regular de seguidores que lhe eram muito devotos
(FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a).

Todavia, essa incongruência óbvia não parece problemática na narrativa e na


percepção de Fritzsche de si mesmo e, justamente por isso, sua autoconfiança não se
abala. Isso se aplica na sua visão sobre o seu caso no tribunal: para ele, não haveria
grandes problemas em sua defesa.

Minha defesa é que tudo não passou de idealismo de minha parte. Posso
defender tudo ponto por ponto. Mas não vou tentar fazer isso, porque tudo o

113
Algumas frases desse parágrafo foram retiradas do post que fiz sobre a morte de Goebbels para o Núcleo
Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/B_pksSUgNXC/
(Acesso em 04/09/22)
317

que fiz, fiz diante do público mundial. Do outro lado da moeda está o fato de
que, com base em meu trabalho, 5 milhões de pessoas foram assassinadas, e
atrocidades tremendas foram cometidas. Trata-se puramente de julgar se é
possível estabelecer uma ligação clara entre as duas coisas. Se apenas minha
pessoa estivesse envolvida, eu poderia me defender com uma frase – ‘fiz aquilo
como um patriota alemão’-, porque, se todo o povo alemão foi traído, eu
também fui: mas esse é um assunto complexo. Não é apenas minha pessoa que
está envolvida, mas todo o povo alemão, que na maior parte eu mantinha
informado (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 91).

Ao mostrar o “outro lado da moeda”, Fritzsche se insere na inocência de todo


o povo alemão. E, neste sentido, era apenas uma questão de julgamento – um julgamento
individual ou um julgamento de um tribunal – afirmar que existia uma conexão entre o
seu trabalho e o assassinato de 5 milhões de pessoas. Sua função era informar o povo
alemão, e, por informá-los por meio das mentiras que ele mesmo acreditou. Isso não o
tornava totalmente inocente, mas demonstrava sua ingenuidade: ele foi traído como todo
alemão comum. Nesse ponto, ele deixava de ser um homem importante no Reich e se
transformava em um indivíduo trivial, semelhante a tantos outros.

Pensar sobre isso o deixava deprimido e com uma “sensação de arrependimento


– e quando alguém tem arrependimento sente-se necessariamente culpado”. Sua culpa
não era no nível judicial das acusações em Nuremberg, e sim, a nível moral: “Não me
sinto culpado porque fui traído. Mas me sinto deprimido, porque não há saída para essa
sensação de traição. Em outras palavras, ninguém parece entender essa traição como
minha tragédia principal”. Fritzsche havia sido “usado como um instrumento do mal por
Goebbels e outros”, e, ainda que individualmente isento de qualquer ação criminosa, seu
trabalho “indiretamente levaram aos crimes”. Como um idealista, sua culpa moral estava
pautada em sua confiança pueril: “Tenho dito que nunca na história do mundo um homem
foi alvo de tanta fé e confiança como Hitler. De forma semelhante, nunca ninguém traiu
tantas pessoas e abusou da boa-fé como ele” (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN,
2005a, p. 109). Como ele estava “convencido de que Hitler e pelo menos alguns de seus
colegas mentiram deliberadamente ao povo em pontos decisivos, desde o início de sua
carreira política”, ele pessoalmente também se sentiu enganado (BS, 17, pp. 186-187). O
propagandista Hans Fritzsche havia sido apenas mais um que caiu nas garras de Adolf
Hitler, um iludido apaixonado que fora deixado de lado como um amante traído.

Uma constelação de culpas

Ainda que Fritzsche não pertença ao alto escalão do Terceiro Reich, ele parece
sedento por poder e reconhecimento, adquirindo um cinismo que Arendt julga
318

característico em certos membros da cadeia de comando (ARENDT, 1989). Talvez por


isso ele se esforce para apresentar compreensões generalizantes sobre o passado, o
presente e o futuro – e as consequências ainda não previsíveis de tudo que havia
acontecido no Reich. O cinismo também lhe serve nesse aspecto, uma vez que suas
análises abrangentes e estruturais removem uma grande parcela da culpa do regime
nazista pela Segunda Guerra Mundial.

Para Fritzsche, “o princípio do mal causou tanto dano ao mundo que não pode
ser de nenhuma maneira desculpado. Mas a maior catástrofe da humanidade foi a geração
de ódio e a crença de um homem de que ele está certo e seu oponente, errado”
(FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 105). Ou seja, por fundamento, o
problema era muito anterior ao nazismo, à Segunda Guerra ou ao preconceito racial: a
questão girava em torno da premissa da divisão do mundo entre dois grupos: bom e mau,
civilização e barbárie, certo e errado. Se sua existência e identidade se pautam na negação
do outro, naturalmente o que se encontra no outro espectro precisa ser eliminado e
destruído. Como aponta Hannah Arendt, a solução do problema judaico na Alemanha
nazista seguiu uma série de etapas, mas não se limitava aos judeus: era uma “eloquente
demonstração para o resto do mundo de como realmente ‘liquidar’ todos os problemas
relativos às minorias e apátridas” (ARENDT, 1989, p. 323). O jardineiro sempre precisa
limpar o jardim das ervas daninhas, para usar a alegoria de Zygmunt Bauman
(BAUMAN, 1998a). E, nesse sentido, o objetivo de Fritzsche no tribunal, para além de
demonstrar sua inocência, era de apresentar os problemas profundos e arraigados na
sociedade moderna que tornaram o nazismo possível – questões que ainda estavam
presentes mesmo após o fim do regime nazista. E, por isso, não havia homens isentos em
Nuremberg: os Aliados também tinham sua parcela de culpa:

Além disso, existe este julgamento completamente falso. Eu participaria de


todo coração de um julgamento se fosse para determinar a culpa por 5 milhões
de pessoas assassinadas e a culpa pelas atrocidades. Mas vejo uma infinidade
de outras coisas sendo apresentadas neste julgamento e tenho a sensação de
que, à sombra da culpa por esses assassinatos, o povo alemão será considerado
culpado de tudo, e à sombra dessa culpa os americanos, ingleses, franceses e
especialmente os russos vão querer se livrar de sua própria roupa suja. Sou da
opinião que é preciso distinguir duas coisas: primeira, o desejo do povo alemão
de viver e de travar uma luta digna por sua existência – uma luta que foi
conduzida. Segunda, e por outro lado, a culpa pelos assassinatos e atrocidades.
Trata-se de coisas totalmente diferentes (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN,
2005a, p. 87–88).

O desejo do povo alemão de lutar pela sua existência não estava errado em
princípio e sequer tinha qualquer relação com o extermínio. Para Fritzsche, esses eram
319

dois fios que não se encontravam. Sendo assim, sua inocência, e, por conseguinte, a
inocência do povo alemão, estavam atreladas a culpa de outras pessoas, que, não
necessariamente eram os outros nazistas – ou, somente os outros nazistas.

Apesar de ser apenas um instrumento, Fritzsche reitera que compreendia


perfeitamente que a responsabilidade pelas consequências do nazismo não era apenas dos
alemães – e sua compreensão dessa dinâmica era por acreditar que sua defesa estava bem
fundamentada. Ele não estava “criando uma ficção no tribunal”, e, por falar apenas a
verdade, lhe sobrava tempo e espaço mental para analisar as nuances do julgamento. De
acordo com o propagandista, o julgamento era injusto em seu princípio e em sua
constituição por ser formado por juízes do bloco Aliado. E, por isso, ele, como alemão,
não podia deixar de ter empatia pelo seu próprio povo: “Não posso abdicar do sentimento
do povo alemão em relação à guerra anterior e esta última: de que estava do lado certo”.
Ainda que Hitler tivesse uma ambição exagerada, a Segunda Guerra pareceu para todos
uma “guerra de defesa”. Infelizmente, o desfecho dessa guerra foi uma “tragédia” com
Hitler transformando-a em uma “guerra agressiva, e por meio de assassinatos em massa
e atrocidades” (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 88).

Como estava do lado certo e não enxerga qualquer conexão com o lado errado,
Fritzsche não tem problemas em admitir que sua propaganda foi um recurso fundamental
para o avanço da Alemanha durante a guerra. No entanto, ele reitera que para
compreender sua atuação era necessário objetividade, já que “sem objetividade, minhas
palavras não serviriam aos alemães, nem aos Aliados, nem ao mundo” (FRITZSCHE
apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 96). O nazista declara que sua propaganda foi quase
que exclusivamente direcionada ao conceito de necessidade de lutar, e que, certamente,
utilizou dos seus artifícios e métodos para enfraquecer os Aliados. Contudo, o réu acredita
não ter produzido mentiras com seu trabalho: “Declaro sob juramento: Em questões
realmente sérias, questões de política e de condução da guerra, não cometi uma única
falsificação e não usei conscientemente uma única mentira”. Todavia, restava um
questionamento latente: “Quantas vezes eu mesmo fui vítima de uma falsidade ou
mentira, não posso dizer depois das revelações deste Julgamento” (BS, 17, pp. 154-155).

É claro que sua propaganda seguia uma vertente tendenciosa, unilateral, já que
o objetivo de seu trabalho e de sua propaganda na Europa “era, e tinha que ser, conquistar
os povos da Europa para a causa alemã” (BS, 17, pp. 157-158). Naturalmente, isso era
apenas o esperado de um propagandista em tempos de guerra, já que se trabalhava
320

somente em “preto e branco”. Essa é uma expressão que Fritzsche recorre diversas vezes
em suas entrevistas com Goldensohn:

Posso dizer que não tentei atrair a atenção das pessoas para algo ruim, mas
para algo unilateral – e fiz isso durante todos os dez anos de minha atividade.
Eu pintava apenas em preto-e-branco – sem cores intermediárias. Seu país e os
demais Aliados fizeram a mesma coisa. […] Agora posso ver, para meu grande
desapontamento, que também neste julgamento apenas um quadro preto-e-
branco está sendo pintado. Ele pode ser necessário, do ponto de vista legal,
para que os julgamentos não se arrastem por muito tempo. Um veredito de
culpado não importa. Mas gostaria de ver este julgamento fazer a humanidade
progredir. A humanidade precisa ser melhorada após a morte de 5 milhões de
pessoas inocentes (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 97).

Um quadro em preto-e-branco, a saber, dividido entre bem e mal, entre


totalmente inocente e totalmente culpado, entre civilização e barbárie. Esse mundo
dividido havia sido definido pelos próprios nazistas e, de certa forma, continuava sendo
assim durante o tribunal. Em Nuremberg, os nazistas representavam o regresso, o retorno
a uma barbárie que pensava-se ter superado, uma traição aos valores iluministas e
progressistas que guiavam a civilização até então (PRIEMEL, 2016). Se tomarmos a
perspectiva de Fritzsche, como isso era tão diferente de separar o mundo entre arianos e
não arianos? Essa pintura em preto-e-branco sendo feita novamente em Nuremberg
significava apenas “mais um passo para o inferno”, afinal, ao culpabilizar todo o povo
alemão, os Aliados não estavam se distanciando dos valores nazistas, pelo contrário: os
extremos se aproximavam. Sendo assim, o réu levanta o questionamento: como o mundo
extremo que os Aliados estavam criando nesse processo de desnazificação poderia ser tão
distinto do mundo dos nazistas somente por estar teoricamente amparado em ideais de
liberdade?

Fritzsche havia se tornado culpado – ainda que sendo inocente – da morte de


milhões de pessoas porque: “o papel que desempenhei não importa – mas desempenhei
um papel” nesta tragédia que se abateu sobre o mundo (FRITZSCHE apud
GOLDENSOHN, 2005a, p. 96). Esse papel, o da manutenção da propaganda, em sua
própria perspectiva, era “o primeiro passo para o inferno”. A propaganda é descrita por
Fritzsche como um mecanismo produzido para “chamar a atenção das pessoas para um
lado e desviá-la do lado oposto”, sendo, por princípio, unilateral. Sua reflexão sobre isso
se estende ao julgamento em Nuremberg: o seu trabalho como propagandista durante o
regime nazista e o trabalho da acusação naquele momento do tribunal eram iguais. Ambos
buscavam produzir uma visão unilateral do Terceiro Reich. Ao mostrar a Goldensohn
uma caixa de fósforos com material da propaganda Aliada durante a guerra, com
321

caricaturas de Hitler, Mussolini e Hirohito e a chamada “Esmague o Eixo”, Fritzsche


tenta defender que aquela era uma propaganda de ódio – um tipo de propaganda que eles,
os nazistas, nunca haviam feito na Alemanha. Ao longo da pesquisa consegui identificar
a caricatura mencionada pelo réu, conforme apresentada na Imagem 6:

Imagem 6114

A caricatura está estampada em uma caixa de fósforos e contém os dizeres “Pise


neles! Trabalhe para esmagar o Eixo”. Vemos os pés de Tio Sam, o representante dos
Estados Unidos na guerra, pisando em três homens, facilmente identificáveis como
Mussolini, Hirohito e Hitler. É uma propaganda particularmente agressiva por ser mais
especificamente direcionada aos líderes dos países do Eixo e, para Fritzsche, representava
o seu ponto do “inferno unilateral”. É claro que não precisamos nos estender sobre esse
ponto porque é mais do que óbvio que os nazistas utilizaram do mesmo tipo de recurso
propagandístico que os Aliados. Para Fritzsche, no entanto, havia diferenças
fundamentais entre os princípios da propaganda nazistas e dos Aliados: de maneira
similar ao que Hitler proclama em Minha Luta, Fritzsche também acreditava que, desde
a Primeira Guerra, os Aliados perpetuavam mentiras com o propósito propagandístico. A
culpa das consequências dessa batalha ideológica, nesse sentido, recairia nos dois lados,
já que a propaganda sempre tinha o objetivo de esconder alguma coisa, e seu triunfo

114
“Caixa de fósforos de publicidade hoteleira com slogans anti-Eixo”. United States Holocaust Memorial
Museum Collection. Disponível em: https://collections.ushmm.org/search/catalog/irn189735 (Acesso em
04/09/2022)
322

estava justamente em fechar “nossos ouvidos para o que é certo ou o que é errado”
(FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 99). Para o réu, portanto, “o crime não
começa quando você assassina pessoas. O crime começa pela propaganda” (FRITZSCHE
apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 100).

Dessa maneira, o nazista seguia declarando que os problemas eram estruturais


e tiveram início muito antes do nacional-socialismo ascender ao poder. A Segunda
Guerra, por conseguinte, era tão culpa de Adolf Hitler quanto dos países que entraram em
guerra com a Alemanha. De acordo com Fritzsche, não era possível atribuir a culpa de
uma guerra a um homem ou a um Estado, e “Hitler não poderia ter travado essa guerra se
não houvesse uma constelação de culpas” (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a,
p. 100). E, assim, “entre o povo alemão, não há apenas o preto-e-branco, mas matizes de
culpa, assim como entre os Aliados” (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 99).
Afinal, se o Holocausto havia sido possível era “culpa, pelo menos em parte, do resto do
mundo” (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 100). Seu objetivo não era
minimizar a culpa dos líderes nazistas, mas mostrar a culpa compartilhada dos Aliados
para que a civilização pudesse avançar e os erros pudessem ser corrigidos. O “germe da
repetição” não poderia sobreviver após Nuremberg (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN,
2005a, p. 105).

Ao olhar para os “matizes de culpa”, é impossível não lembrar do conceito de


zona cinzenta de Primo Levi, essa zona que demonstra, justamente, que categorias
binárias de “bons” e “maus” não conseguem abarcar a sociedade como um todo, uma vez
que existem, entre os extremos, diversas camadas. Ao abordar a obscura experiência dos
campos de concentração, Levi reforça que “nunca se está no lugar de um outro. Cada
indivíduo é um objeto de tal modo complexo que é vão querer prever seu comportamento,
ainda mais em situações extremas; nem mesmo é possível antever o próprio
comportamento” (LEVI, 2016, p. 46–47). No caso de Fritzsche, naturalmente, esses
“matizes de culpa” fazem parte de sua estratégia de defesa. Entretanto, para analisar o
caso dos nazistas em Nuremberg, sobretudo partindo da premissa norteadora de que esses
homens são seres humanos comuns, a ideia de que os réus possuem “matizes de culpa”
distintas em virtude de suas ações, me parece particularmente produtiva.

Fritzsche, no entanto, em seu ensejo pela ponderação, deixa escapar algumas


vezes que o grande erro do nazismo tinha sido o extermínio, e não a guerra em si. Como
o réu acredita que “já houve uma Alemanha para a qual valeu a pena trabalhar”
323

(FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 65), ele afirma que a culpa da Alemanha na
guerra contra as potências ocidentais, levando em conta o Tratado de Versalhes, era de
apenas 50%. O que havia sido “imprudente e desnecessário” e que tornava a culpa alemã
em 100% foi a guerra contra o Leste europeu, onde as atrocidades ocorreram
(FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 64). É perceptível, pelo menos para Gilbert,
como o extermínio havia causado uma profunda impressão em Fritzsche. Já em fevereiro
de 1946, poucos meses depois do início dos procedimentos em Nuremberg, ele diz em
desespero: “Eu tenho a sensação de que estou me afogando na sujeira – seja deles ou
nossa – é irrelevante. Estou engasgando-me com isso […] eu não consigo continuar. É
uma execução diária” (FRITZSCHE apud GILBERT, p. 164). Ecoando o outro ex-nazista
arrependido, Hans Frank, Fritzsche também não consegue enxergar um futuro melhor
para a Alemanha. O nazismo deixara de ser parte do presente, mas se tornara um passado
trágico: “Nenhum poder no céu ou na terra apagará essa vergonha do meu país! Nem em
gerações, nem em séculos!” (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 46). Como ele teve
um papel significativo na construção ideológica que justificaria esse “inferno”, seu dever
moral no tribunal era utilizar de sua narrativa para a destruição dessa ideologia. Como o
propagandista que construiu, Fritzsche, naquele momento, deveria destruir seu trabalho
para que a Alemanha pudesse respirar aliviada. Nuremberg seria, finalmente, o fim do
mito de Hitler.

Exoneração

Como é característico dos membros da categoria ex-nazistas arrependidos,


Fritzsche não aceita dividir o protagonismo de sua inocência com nenhum dos outros
réus. Por se enxergar como um símbolo da ingenuidade do povo alemão, ele não
acreditava nas declarações de arrependimento dos outros nazistas e estava convencido de
que apenas ele falava a verdade. De acordo com Leon Goldensohn, Fritzsche estava
dividido em duas ideias conflitantes:

Primeiro, queria revelar ao tribunal claramente que fora um instrumento dos


nazistas, que havia sido enganado por Hitler e Goebbels e que, pessoalmente
não teve nenhum papel consciente nas maldades do regime nazista e no
‘terrível loucura racial’ que se seguiu. Segundo, ele queria indicar claramente
ao tribunal, em sua defesa, que a culpa não era apenas dos alemães, mas
também dos Aliados. Segundo ele, nenhum dos réus até então havia enfatizado
suficientemente aquele ponto, porque estavam preocupados demais em provar
a própria inocência. Na maioria dos casos, os réus, ao contrário dele, não eram
inocentes, mas, a exemplo de Kaltenbrunner, estavam criando uma ficção no
tribunal. Achava que apenas ele havia sido claramente um instrumento
inconsciente dos nazistas. Por isso, podia dedicar menos tempo à proclamação
de sua própria inocência e mais tempo para mostrar como a propaganda dos
324

Aliados devia compartilhar, em certo grau, a culpa pelos horrores da guerra


(GOLDENSOHN, 2005a, p. 96).

Fritzsche era um homem diferente dos nazistas, e, consequentemente, não tão


diferente dos Aliados. Sua propaganda serviu a um propósito político, assim como a
propaganda Aliada. Nessa constelação de culpas, ele não poderia ser o único a sofrer com
as consequências do desenrolar dos acontecimentos – sobretudo, acontecimentos trágicos
que não podiam ser previstos desde o princípio. Sua inocência estava ligada à sua
ignorância. No entanto, esse era um discurso que tinha consciência de como poderia ser
ouvido e entendido: nas palavras de Fritzsche, “quando alguém escreve duas
autobiografias, elas acabam saindo diferentes. Se eu contasse algumas coisas hoje – só
posso contar as características básicas do meu ser -, você sabe que eu poderia contá-las
de maneira diferente” (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 93). O réu,
portanto, sabia para qual audiência estava se dirigindo, e, usando uma analogia de um
sonho recorrente sobre dormir no colo de sua mãe, ele explica a Goldensohn:

Se eu fosse um psiquiatra, diria que esse sonho indica um sentimento


inconsciente de inocência. Porque quando estou acordado, duas forças agem
sobre mim. Uma força quer saber: ‘Por que você atuou nesse sistema – você
viu coisas em 1932 e 1938 -, por que você se deixou convencer por esse
sistema?’. A outra força dentro de mim é uma voz que sempre diz: ‘Mas como
você poderia saber dessas atrocidades, se você é inocente!’ (FRITZSCHE
apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 87).

De forma similar a Hans Frank, Fritzsche se enxergava como um homem


dividido. Ele poderia contar sua história de forma diferente, e escolheu contá-la de
maneira a garantir uma narrativa de arrependimento. Ainda que o réu afirme que “a
Alemanha não é exonerada. É uma cadeia de responsabilidade parcial que se estende a
todas as esferas do governo alemão” (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 334), o que
ele buscava em Nuremberg, naturalmente, era a reparação e possibilidade de reinserção
na civilização ocidental. Ao receber sua absolvição, Gilbert conta que Fritzsche estava
“tão nervoso e abatido que pareceu perder o equilíbrio e quase caiu como se estivesse
tonto”. Feliz, ele declara: “ser libertado aqui mesmo, e nem mesmo ser mandado de volta
para a Rússia. Isso foi mais do que eu esperava”. Ele estava muito satisfeito que o tribunal
tinha percebido, finalmente, que, “ao contrário de Streicher”, ele “não incitara o ódio”
com sua propaganda (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 431).

Nem Goebbels, nem Streicher e nem Rosenberg: no meio do caminho dos


extremos ficava Hans Fritzsche. Esse caminho, contraditório e esquivo, rendeu uma
narrativa considerada inocente. Por fim, o funcionário do Ministério da Propaganda
325

conseguiu convencer a acusação e o tribunal do que ele próprio acreditava: Fritzsche era
apenas um idealista ingênuo que indiretamente serviu a um papel dentro do Terceiro
Reich.
326

Capítulo Seis
Militares apartidários

Wilhelm Keitel
Alfred Jodl
Erich Raeder
Karl Dönitz

Sempre considerei que as Forças Armadas não deveriam ser


um órgão completamente alheio ao Estado.
Seria impossível ter uma força armada republicana em um estado monárquico
ou uma força armada com tendências monárquicas em um estado democrático.
Assim, nossas Forças Armadas teriam que ser incorporadas ao Estado nacional-socialista
na medida necessária para criar uma verdadeira comunidade popular,
e seria tarefa dos comandantes das Forças Armadas educar seus ramos das forças
de tal forma que eles reconheceriam e viveriam de acordo com os bons ideais
nacionais e socialistas do Estado nacional-socialista.

Erich Raeder (BS, 13, pp. 74-75)


327

Por fim, a última categoria de análise que temos em Nuremberg é a dos


militares apartidários. O termo designa homens que se apoiam no discurso militar
tradicional de obediência a ordens superiores. Aqui, temos indivíduos que se dizem
apolíticos e que se enxergam como completamente isolados ideologicamente dentro das
Forças Armadas. Justificativas comuns dentre esses réus são: um soldado não questiona
seu superior; ordens são ordens e devem sempre ser cumpridas; não há motivação política
por trás da obediência. Amparados pelo Princípio de Liderança, já mencionado, os réus
desse arquétipo são fontes valiosas porque encarnam plenamente a dicotomia de amigo
versus inimigo durante o tribunal. Afinal, os Aliados não são apenas seus juízes, mas
também são seus recentes inimigos na Segunda Guerra Mundial.115

De fato, os militares apartidários são a categoria de mais fácil identificação em


Nuremberg. No entanto, apesar de termos uma quantidade considerável de réus com
alguma patente militar no tribunal, são poucos os que utilizam dessa estratégia discursiva
e que se encaixam na categoria. Para esse capítulo especificamente, não farei uma
investigação aprofundada de cada caso e de cada indivíduo, uma vez que, como as
justificativas são recorrentes e praticamente não há diferença entre as narrativas,
metodologicamente é mais profícuo trazer uma análise geral dos argumentos dos réus.

Por esse motivo, farei uma breve introdução de cada réu e depois iniciarei a
análise de seus argumentos. Nesse arquétipo, temos os casos de Wilhelm Keitel, Karl
Dönitz, Erich Raeder e Alfred Jodl. Esses quatro nazistas ainda se interrelacionam por
conta de suas posições dentro das Forças Armadas: Jodl era o oficial subordinado a Keitel
e Dönitz entrou para substituir Raeder. Por fim, é válido pontuar que todos os réus
estiveram com Hitler, metaforicamente e/ou no bunker, até os momentos finais da
Segunda Guerra Mundial.

115
Parte desse capítulo foi retirada e adaptada do artigo que escrevi sobre o caso de Wilhelm Keitel. Ver
em: VISCONTI, 2020.
328

Wilhelm Keitel (1882-1946)

“Eu não tinha nenhuma autoridade. Era marechal-de-campo apenas de nome.


Não tinha nenhuma tropa, nenhuma autoridade – apenas cumpria as ordens de Hitler.
Eu tinha jurado fidelidade a ele”

(GOLDENSOHN, 2005a, p. 202–203)

O general, marechal de campo, chefe de comando das Forças Armadas e


conselheiro militar de Hitler, Wilhelm Keitel, foi julgado em Nuremberg por crimes de
conspiração, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Considerado culpado das quatro acusações, Keitel foi enforcado em 16 de outubro de
1946, depois de ter seu pedido de morte por fuzilamento (uma morte mais honrosa e
tradicional do ponto de vista militar) negado.

O “bajulador chefe do Comando Supremo das Forças Armadas” (EVANS,


2014b, p. 732) era tão fiel a Hitler que foi apelidado pelos oficiais mais jovens do bunker
do Führer de “servente de garagem do Reich” (KERSHAW, 2010, p. 949). Sobre a
acusação, Keitel declara exatamente o que é esperado de sua categoria: “para um soldado,
ordens são ordens!” (KEITEL apud GILBERT, 1995, p. 7). Se assemelhando muitas
vezes com o Yes-man de Nuremberg, Joachim von Ribbentrop, Keitel era um homem não
329

apenas obediente, como também devoto do Führer. O marechal, não obstante, reafirmava
sua posição como mero soldado e não como membro do Partido, diferenciando seu lugar
em relação ao alinhamento ideológico. Dizia apenas acompanhar Hitler nas reuniões do
Partido, mas não nas reuniões secretas – onde, supostamente, as decisões “ruins” estavam
sendo tomadas. Ele afirma que era “um soldado” e que trabalhou “para o Kaiser e sob as
ordens de Ebert, Hindenburg e Hitler, sempre da mesma maneira, nos últimos 44 anos”
(KEITEL apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 202).

Ao receber sua sentença, Keitel estava com “os punhos cerrados e os braços
rígidos, horror em seus olhos”. Ele anunciou, com a voz “rouca de intensa vergonha”:
“Morte por enforcamento! Isso, pelo menos, eu pensei que seria poupado”. Tristemente,
ele diz a Gilbert: “Não o culpo por ficar à distância de um homem condenado à morte por
enforcamento. Eu entendo isso perfeitamente. Mas ainda sou o mesmo de antes. Por
favor, só me visite algumas vezes nestes últimos dias” (KEITEL apud GILBERT, 1995,
p. 432). Esse pedido faz parte de uma relação mais íntima que vai sendo construída ao
longo do julgamento entre Keitel e Gilbert. O réu chega até mesmo a afirmar que o
psicólogo era “o único que eu posso dizer o que está em meu coração porque você está
acima de tudo isso, e não amarrado a isso”. Por fim, com os olhos baixos, ele confidencia
a Gilbert: “Eu acreditei nele [Hitler] tão cegamente. Se alguém se atrevesse a me dizer
alguma das coisas que descobri agora, eu teria dito: ‘Você é um traidor insano – eu vou
mandar atirarem em você!’ [...] Então ele nos usou. E agora nós nos sentamos aqui como
criminosos!” (KEITEL apud GILBERT, 1995, p. 110).

Não deixa de ser representativo o fato de Keitel ter sido um dos poucos nazistas,
juntamente com Martin Bormann, Joseph Goebbels e Alfred Jodl, que ficaram do lado de
Hitler até o fim da guerra, mesmo quando o líder já estava completamente entregue à
histeria. Keitel estava junto ao Führer após sua última aparição pública no seu 56º
aniversário, em 20 de abril de 1945, quando o Exército Vermelho já estava adentrando
Berlim. Estava presente nos ataques histéricos de Hitler, nas reuniões para definir
estratégias de tropas que nem sequer existiam, nos planos mirabolantes e na crença
absurda em uma vitória milagrosa da Alemanha na guerra. Coube a Wilhelm Keitel
assinar a ordem de rendição da Alemanha ao Exército Vermelho e avisar Hitler, às três
da manhã do dia 29 de abril de 1945, que a guerra iria acabar no fim do dia, o mesmo
Wilhelm Keitel que no ano anterior chorava de alegria ao constatar que seu líder havia
sobrevivido à tentativa de assassinato no bunker – o famoso atentado de 1944 (EVANS,
330

2014b, p. 732). Este era o mesmo Keitel que havia emitido a ordem em 1941 para fuzilar
todos os comissários políticos do Exército Vermelho que foram capturados, a quem ele
chamou de “criadores dos bárbaros métodos asiáticos de combate”, e que, em 1943, deu
cabo à ideia de guerra total, com o controle da frente doméstica e o aumento da produção
interna ao nível da exaustão populacional, que trabalhava sem acesso à matéria-prima
suficiente (EVANS, 2014, p. 211; 486). Wilhelm Keitel, o general que recebeu uma
grande soma de dinheiro ao subir de patente e que tinha profunda estima pelos ideais
prussianos militaristas e que, como a maioria dos generais, via “uma carreira e o posto de
marechal de campo” como “mais importantes que os grandes exemplos práticos e valores
morais que estão em jogo” (EVANS, 2014b, p. 567).

Cabiam todos esses homens dentro do Wilhelm Keitel que estava sendo julgado
em Nuremberg em 1945. Seu caso nos mostra como dentro de uma mesma pessoa existem
contradições e percepções irreconciliáveis. Afinal, como ser, ao mesmo tempo, apenas
um soldado desinteressado e compreender os soviéticos como bárbaros, um argumento
tão recorrente da retórica racial do nacional-socialismo? É um exemplo clássico do que
Tzvetan Todorov chama de fragmentação, a curiosa convivência do bem e do mal na
mesma pessoa, intensificada pelo processo de generalização do estado de guerra, no qual
o mundo se divide entre aliado e inimigo (TODOROV, 1995). Keitel, em suas narrativas,
busca construir um personagem mais palatável aos olhos do mundo do que ele parece ser
durante o julgamento. De acordo com o marechal, “para entender como vim parar nesse
banco de réus, talvez seja importante para um psiquiatra sabê-las [suas justificativas],
assim como é importante para mim” (KEITEL apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 205–
206). Era importante que Leon Goldensohn, um psiquiatra, entendesse como ele chegou
até ali, mas também era importante para ele próprio entender. Quais foram os passos que
ele deu até chegar naquele momento?
331

Alfred Jodl (1890-1946)

“Você pode ter certeza de que nós, generais, não queríamos a guerra.
Deus sabe que nós, veteranos da Primeira Guerra Mundial,
estávamos com a barriga cheia de guerra”

(GILBERT, 1995, p. 367)

Alfred Jodl era chefe de operações das Forças Armadas Alemãs, sob a direção
de Wilhelm Keitel. Em Nuremberg foi julgado pelas quatro acusações e considerado
culpado por todas: plano de conspiração, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes
contra a humanidade. Sentenciado à morte e enforcado em 16 de outubro de 1946, Jodl
foi exonerado por uma corte alemã de desnazificação em 1953, sendo inocentado de seus
crimes.

Enxergando o tribunal como uma farsa articulada por seus inimigos políticos,
Jodl declara sobre a acusação: “Lamento a mistura de acusações justificadas e propaganda
política” (JODL apud GILBERT, 1995, p. 7). Ansiando por um resultado diferente, como
todos os militares, Jodl ficou surpreso com a sua sentença. Quando recebeu o veredito,
ele “marchou para sua cela, rígido e ereto” e evitou o olhar de Gilbert. O psicólogo relata
332

a cena: “Depois de tirar as algemas e me encarar em sua cela, ele hesitou por alguns
segundos, como se não conseguisse pronunciar as palavras. Seu rosto estava manchado
de vermelho com a tensão vascular” (GILBERT, 1995, p. 433). O réu exclamou: “Morte
por enforcamento! Isso, pelo menos, eu não merecia. A parte da morte, tudo bem, alguém
tem que assumir a responsabilidade. Mas isso…Isso eu não merecia”, ele concluiu com a
boca tremendo e a voz engasgando (JODL apud GILBERT, 1995, p. 433).

Jodl é o claro exemplo de um militar que ainda sentia orgulho de sua posição e
de seu código de honra. Em sua defesa da posição da Alemanha na Segunda Guerra, ele
declara: “O princípio de tal guerra é olho por olho e dente por dente, e isso nem é um
princípio alemão” (BS, 15, p. 479). Dessa maneira, o que foi feito, estava feito – e estava
justificado. Nuremberg lhe parecia, portanto, um julgamento dos vencedores. Para ele, o
tribunal precisaria “realizar um estudo muito minucioso de todos os documentos
históricos, tanto do nosso lado como do outro lado”. Somente após essa análise poderia
ser tirada uma conclusão sobre “certo” e “errado” naquele momento histórico. No entanto,
“antes que isso tenha sido decidido, existe apenas uma opinião subjetiva. Eu tenho a
minha e você tem outra (BS, 15, p. 466).

Por enxergar a acusação como seus inimigos políticos e ideológicos, ele


provoca a promotoria, sobretudo os soviéticos, repetidas vezes em seu interrogatório. Em
dado momento, ele diz, sarcasticamente: “Você está produzindo uma imagem bastante
interessante do Führer como estrategista e líder militar, e é de interesse para o mundo;
mas não vejo como isso tem a ver comigo”. Os pensamentos que Hitler havia deixado
como comandante militar definitivamente “são de grande interesse para todos os soldados
do mundo. Mas o que isso tem a ver comigo? É isso que eu não entendo” (BS, 15, p. 473).
Afinal, para Jodl, Hitler permanecia sendo um grande líder militar e suas ordens deveriam
ser estudadas em guerras futuras. Ele cumpria suas diretrizes porque acreditava que o
Führer estava certo – e, para ele, Nuremberg iria provar para o mundo essa percepção.

Goldensohn o descreve como complacente, distante, mas amigável.


Curiosamente, a primeira coisa que Jodl nota é que Goldensohn visita “os outros” e não
ele. O psiquiatra, tentando tranquilizá-lo, afirma que Jodl aparentemente não precisava
de seus cuidados, de maneira irônica, o que o réu recebe com seriedade, respondendo
“sim, sou bem normal, tudo está OK, não me tornarei um caso psiquiátrico” (JODL apud
GOLDENSOHN, 2005a, p. 180).
333

Esse homem “bem normal” também é o que se espera de sua categoria: um


indivíduo cheio de orgulho. Para além de seu discurso ufanista sobre sua linhagem bávara,
o que Jodl tem na mais alta estima é sua relação pessoal com Hitler. Assim como Keitel,
portanto, o oficial seguia defendendo seu líder, sendo totalmente contra a visão,
apresentada inclusive pela acusação, de que Hitler havia ficado louco nos últimos meses
da guerra. Pelo contrário, para Jodl, “antes de qualquer pessoa no mundo, Hitler intuiu e
sentiu que a guerra estava perdida”. No entanto, não se podia “desistir de um Reich e de
um povo antes que estejam perdidos” e “um homem como Hitler não poderia fazer isso”
(JODL apud LUKACS, 1998, p. 116). As pessoas diziam – e aqui alguns nazistas em
Nuremberg se incluem – que Hitler “devia ter tombado em batalha, em vez de procurar
refúgio na morte”. Jodl, entretanto, está pronto para defendê-lo, afirmando que “ele queria
isso, e assim teria feito, se estivesse fisicamente apto. Da forma como estavam as coisas,
ele escolheu a morte mais fácil, mas também a mais certa”. O Führer, no fim, e também
no princípio, “agiu como agiram e agirão sempre todos os heróis da história. Ele se
enterrou nas ruínas de seu Reich e de suas esperanças. Os que desejarem condená-lo, que
o façam – eu não posso” (JODL apud LUKACS, 1998, p. 125).

O comandante não podia condenar seu líder, e, como veremos, tampouco


desaprovava seus desejos para o futuro da Alemanha, sobretudo, sua perspectiva
expansionista e colonizadora. Alfred Jodl era mais um dos militares que se colocava no
pedestal da representação da honra e da integridade alemãs, sem reconhecer que seu
trabalho nos territórios ocupados retiraria toda a estima e distinção que ele acreditava
possuir.
334

Erich Raeder (1876-1960)

“Depois de 1933, as questões políticas foram tratadas e decididas exclusivamente por


Hitler, e ele disse que fez todas as políticas”

(BS, 13, p. 139)

Erich Raeder foi almirante e líder naval da Alemanha antes e durante a guerra.
Ele foi substituído por Karl Dönitz em 1943 e foi julgado em Nuremberg por conspiração,
crimes de guerra e crimes contra a paz. Considerado culpado de todas as três acusações,
Raeder foi condenado à prisão perpétua, sendo libertado por motivos de saúde dez anos
depois, em 1955. Ele morreu aos 84 anos em 1960, mesmo ano em que sua autobiografia
Grande Almirante Erich Raeder: Minha vida foi publicada.

Apesar de ter publicado uma autobiografia, Raeder passa a maior parte do


julgamento calado e sem emitir suas opiniões. Seu interrogatório não é extenso e ele é o
único nazista que se nega a fazer uma declaração a Gilbert sobre a acusação, só aceitando
conversar com o psicólogo mais de seis meses após o início dos procedimentos. Suas
narrativas para Gilbert são escassas e tampouco temos registros de entrevistas com o
psiquiatra Leon Goldensohn.
335

Raeder mantém essa postura de silêncio até o fim. Quando recebeu sua
sentença, o almirante entrou no bloco de celas e “perguntou ao guarda no portão em uma
voz aguda, em uma tentativa desesperada de ser casual, se eles iriam caminhar esta tarde”.
Após se dirigir a sua cela mancando, ele se recusa a falar com Gilbert, que o questionou
qual era o veredito de seu caso. Raeder apenas disse: “Não sei. Eu esqueço” e dispensou
o psicólogo (RAEDER apud GILBERT, 1995, p. 433). Sua sentença não foi o que ele
esperava, já que, em um dos poucos momentos em que abre com Gilbert, ele declara que
gostaria de ser fuzilado: “não tenho vontade de cumprir uma pena de prisão na minha
idade” (RAEDER apud GILBERT, 1995, p. 341). Ainda assim, Raeder conseguiu ficar
apenas dez anos preso e passar os últimos cinco anos de sua vida em liberdade.

Apesar de sua discrição, durante os procedimentos há uma clara disputa por


popularidade entre Raeder e seu sucessor na Marinha, Karl Dönitz. Este acredita que as
críticas de Raeder dirigidas a ele eram apenas fruto de inveja, já que Dönitz, mesmo sendo
mais novo, havia virado chefe de Estado. No entanto, as relações de todos os militares
com Raeder foram abaladas após a sua famosa “declaração de Moscou”, um documento
que, segundo o réu, havia sido assinado durante seu período como prisioneiro dos
soviéticos somente porque acreditava que não seria julgado como um criminoso de guerra
(GILBERT, 1995, p. 340). Esse documento fazia denúncias aos nazistas de alto escalão,
como Göring, Keitel e Dönitz, o que explicava a postura evasiva de Raeder ao longo dos
procedimentos. Na “declaração de Moscou”, o almirante afirma que Göring agia de
maneira “não militar”, abraçando sua ambição e egoísmo, enquanto homens como Keitel
viviam com uma “fraqueza inimaginável”. Raeder apelida Dönitz de “o garoto de Hitler”
(Hitler-Boy Dönitz), e acredita que ele sequer tinha qualificações para assumir a Marinha
(GILBERT, 1995, p. 341-342). A declaração foi parcialmente lida durante o
interrogatório de Raeder e causou desconforto entre todos os réus, que se viram traídos
pelo almirante.

Como veremos, entretanto, apesar de permanecer mais calado que os outros


nazistas, Raeder não apresenta nenhuma particularidade dentre os militares apartidários.
Assim como todos os outros oficiais, o almirante busca fazer uma defesa da honra do
exército e se coloca como um mero soldado obediente. Por fim, seu silêncio diz o mesmo
que sua longa “declaração de Moscou”: Raeder era mais homem das Forças Armadas que
se enxergava totalmente desconectado da política do Terceiro Reich.
336

Karl Dönitz (1891-1980)

“É a mesma velha história com esses líderes nazistas.


Eles começaram todo esse tumulto e nós militares que não fizemos nada além de nosso
dever somos os sofredores!”

(GILBERT, 1995, p. 358)

Karl Dönitz foi almirante e comandante-chefe da Marinha alemã durante a


guerra e foi nomeado por Hitler como seu sucessor. Em Nuremberg foi julgado por
conspiração, crimes contra a paz e crimes de guerra. Considerado culpado das duas
últimas acusações, foi condenado à dez anos de prisão, sendo libertado após cumprir toda
a pena em 1956. Dönitz morreu em 1980, aos 89 anos, tendo passado os últimos 24 anos
de sua vida em liberdade, período no qual escreveu seu livro de memórias intitulado Dez
anos e vinte dias, que foi publicado pela primeira vez em 1959.

Dönitz foi nomeado o sucessor de Adolf Hitler em seu último testamento como
presidente do Reich, “um cargo que Hitler uma vez dissera estar tão impregnado com as
lembranças de seu ocupante anterior, Paul von Hindenburg, que nunca deveria ser
retomado” (EVANS, 2014b, p. 844). Ele não herdou o título de Führer, que morreu junto
337

com Hitler. Dentre os nazistas, a nomeação de Dönitz não foi uma grande surpresa,
“considerando seu alto prestígio junto a Hitler na fase final da guerra e, em particular, a
responsabilidade que recebera dias antes pelos negócios do Partido e do Estado, bem
como pelos outros assuntos militares no norte do país” (KERSHAW, 2010, p. 985). Como
o novo chefe das Forças Armadas, suas primeiras e únicas ações foram tentar assegurar
uma rendição mais digna para as tropas alemãs. Sua tática de tentar ganhar tempo para
que os soldados pudessem se retirar foi “parcialmente bem-sucedida, permitindo que
cerca de 1,7 milhão de soldados alemães se rendessem aos americanos e aos britânicos
em vez de aos soviéticos, cujo número de prisioneiros alcançava menos de um terço do
total”. Entretanto, Dönitz não conseguiu negociar uma rendição geral separada com os
Aliados ocidentais, de modo que, sob ameaças, ele e Jodl acabaram concordando com a
rendição total e incondicional. A ordem foi assinada nas primeiras horas da manhã de 7
de maio de 1945, colocando um fim definitivo na Segunda Guerra Mundial (EVANS,
2014b, p. 844).

Sobre acusação, e revelando uma postura que vai se delineando ao longo dos
procedimentos, Dönitz apenas declara: “Nenhuma dessas acusações me preocupa
minimamente. [É] humor típico americano” (DÖNITZ apud GILBERT, 1995, p. 7).
Plenamente convencido de sua inocência ao longo de toda a sua narrativa, Dönitz ficou
verdadeiramente surpreso por ter recebido a sentença de dez anos de prisão – ainda que
tenha escapado da pena de morte. O almirante acreditava que sairia andando dos portões
de Nuremberg como um homem livre e “não sabia muito bem como lidar” com o desfecho
de seu caso (GILBERT, 1995, p. 432). Afinal, ele passou todo o julgamento dizendo para
Goldensohn que o tribunal era “uma piada” porque acusar qualquer um dos nazistas de
conspiração era algo simplesmente “ridículo” em sua percepção. Seu caso, contudo, lhe
parecia “bastante claro”, e, por isso, ele sentava em sua cela com a consciência
perfeitamente “limpa” (DÖNITZ apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 14). Dönitz era tão
absorto em suas convicções que Goldensohn dedica um tempo das entrevistas para defini-
lo para os leitores:

Eu não acredito que este homem tenha qualquer noção do que está acontecendo
no mundo. Ele é perspicaz, de modo algum estúpido, mas sua mente parece ter
bloqueado as características mais importantes dos julgamentos até agora. Ele
rejeita as atrocidades, a matança de milhões de judeus, a barbárie da SS, todo
o modus operandi criminoso do Partido Nazista. Ele vê apenas que foi inocente
de qualquer crime, passado ou presente, e que qualquer tentativa de o
incriminar ou qualquer um dos outros em julgamento com ele é conivência
política. Ele sente que as ações da Alemanha foram o resultado da opressão
após a última guerra, por um lado, e por outro, não reconhece sua própria culpa
338

em ser um fiel servo de Hitler e seu regime. Ele nega as atrocidades no mar e
ainda tem dúvidas sobre elas em terra. E as evidências? (GOLDENSOHN,
2005b, p. 7)

A declaração de Goldensohn demonstra a complexidade do caso do almirante.


A acusação de Dönitz foi organizada pelos britânicos, que tiveram dificuldade em
comprovar qualquer atividade criminosa que pudesse ser atribuída diretamente ao réu, já
que ele subiu ao poder apenas nos últimos dias da guerra e suas únicas ações foram uma
tentativa desesperada de salvar o que ele podia. Sua atuação na marinha, além de tudo,
demonstrava mais um dos pontos de hipocrisia do tribunal, afinal, muitas das medidas
adotadas pelos alemães também foram adotadas pelos Aliados, de modo que a defesa
tinha “condições de jogar muita lama de volta na promotoria” (PRIEMEL, 2016, p. 114).
Sua sentença, talvez por esse motivo, foi a mais branda dentre os militares apartidários,
e, com exceção dos casos inocentados, foi a mais branda também de todo o tribunal.

Dönitz foi “o chefe de um governo impotente, mas ainda operacional,


representando até o fim a teoria das duas guerras, segundo a qual a guerra contra os
Aliados ocidentais fora lamentável, enquanto a guerra contra a Rússia fora
simultaneamente inevitável e heroica”. Essa teoria era também uma convicção de Dönitz,
de muitos nazistas e de muitos alemães durante anos depois da guerra, e, como tática, “é
razoável pensar que ela teria sido aprovada por Hitler” (LUKACS, 1998, p. 125–126).
Como Adolf Eichmann, Dönitz é o típico caso do funcionário que se recusa a assumir
qualquer responsabilidade política pelos seus atos, já que faz uma separação completa
entre seu trabalho e suas convicções pessoais e políticas: o seu trabalho era apenas o seu
trabalho e ele era responsável somente por submarinos e pela marinha. A transformação
do burguês no funcionário burocrático que visa cumprir o seu trabalho da forma mais
eficiente possível é o que leva ao mal cometido pela ausência de pensamento, como
lembra Hannah Arendt (ARENDT, 1999). Dönitz está inserido nessa lógica totalitária da
banalidade do mal, porém, diferentemente de Eichmann, seu cargo não requeria o
envolvimento direto com a Questão Judaica: sua função realmente era mais relacionada
à logística da marinha. O almirante me parece, então, nas palavras de Primo Levi, “não
um monstro nem um homem comum; no entanto, a nosso redor muitos são semelhantes
a ele” (LEVI, 2016, p. 52).
339

Guerra eterna é uma lei da vida

A guerra foi parte constitutiva da ideologia nazista, e “não foi acidental ao


nazismo. Estava no seu âmago. A guerra teve que ser travada e não poderia ser adiada até
um momento mais favorável” (KERSHAW, 2009, p. 36). Por ser um regime embasado
na luta de raças, uma guerra era apenas uma consequência de uma luta que já iria
acontecer na natureza, onde os mais fracos inevitavelmente iriam ser subjugados pelos
mais fortes. Como reitera Hannah Arendt, as Leis da Natureza se aplicariam como sempre
se aplicaram, e a ideologia totalitária abarca completamente a noção de guerra total –
afinal, o totalitarismo tem a perspectiva de dominação mundial (ARENDT, 1989). A
guerra, portanto, não é um desvio, e sim parte fundamental da ideologia nazista.

Com princípios pautados nas normais raciais, os nazistas acreditavam que, se o


povo alemão desejava viver, era imperativo travar uma luta por sua existência. O
historiador Johann Chapoutot chama atenção para esse aspecto ao nos lembrar que um
dos preceitos ideológicos do movimento era o de que “toda vida é luta”. O NSDAP havia
lançado um documentário em 1937 justamente com esse título e havia um jornal da SS
que afirmava que a “guerra eterna é uma lei da vida” (CHAPOUTOT, 2018, p. 156). Isso
significava, basicamente, uma concepção darwinista de mundo, algo que Adolf Hitler já
havia reforçado diversas vezes em seu livro, que, não por acaso, se chama Minha Luta.
Para os nazistas, portanto, na luta pela vida, apenas os melhores, os mais adaptados à essa
luta, iriam sobreviver.

Essa batalha que se travava entre outras raças também se apresentava em um


confronto interno: era necessário lutar contra a fraqueza e a mediocridade dentro de si.
Era preciso lutar contra si mesmo e contra toda a cultura existente para ser um verdadeiro
representante da raça ariana, afinal, a cultura vigente e toda a organização social –
incluindo os princípios e crenças ocidentais – eram fruto da dominação mundial judaica
que visava apenas a extinção da raça ariana. Havia uma guerra em curso cujo objetivo era
a eliminação biológica do povo alemão e, sendo assim, não lutar naquele momento, era
sentenciar esse povo à morte. A comunidade germânica era uma Volksgemeinschaft, uma
comunidade do povo, mas era, ainda, e sobretudo, uma Kampfgemeinschaft, uma
comunidade de combate, de luta (CHAPOUTOT, 2018).

A vida é luta, e, a cada minuto que passava, se tornava mais urgente e


imperativo que o ariano despertasse para a necessidade biológica desta batalha. Os
340

oficiais militares não estavam isentos de serem impactados por esse viés ideológico por
conta da propaganda nacional-socialista, já que, como afirma Arendt: “na Alemanha
nazista, duvidar da validade do racismo e do antissemitismo, quando nada importava
senão a origem racial, quando uma carreira dependia de uma fisionomia ‘ariana’” era o
mesmo que “colocar em dúvida a própria existência no mundo” (ARENDT, 1989, p. 412).
A brutalidade e a velocidade com que os militares alemães agiram durante a Segunda
Guerra dizia respeito a esse imperativo: o tempo estava se esgotando para a raça
germânica, e o combate era, portanto, uma urgência biológica (CHAPOUTOT, 2018). Se
o mundo era definido pela luta de raças, o estar no mundo só poderia ser entendido de um
lado ou de outro do espectro. Negar a premissa era, nesse sentido, negar a sua própria
existência.

Por isso, para Hitler, mesmo com uma vitória alemã na guerra, não haveria fim
para a luta no Leste. Afinal, para o Führer, “a guerra era a essência da atividade humana”.
Ele dizia que “o que encontrar um homem significa para uma moça, a guerra significa
para ele”. Sempre retomando às suas experiências durante a Primeira Guerra Mundial,
Hitler desejava, inclusive, que uma guerra ocorresse a cada 15 ou 20 anos. Sendo assim,
não havia espaço para qualquer humanitarismo mal direcionado: a perda de vidas alemãs
no front era justificável e um sacrifício que valeria a pena no futuro. “A vida é horrível”,
disse Hitler no bunker, “Vir à luz, existir e falecer, há sempre uma morte. Tudo que nasce
deve depois morrer. Seja por doença, acidente ou guerra, dá na mesma” (HITLER apud
KERSHAW, 2010, p. 666). De acordo com Kershaw, o Führer acreditava em uma luta
contínua, e, “suas noções de uma ‘nova ordem’ social precisam ser postas nesse contexto
de conquista, exploração implacável, o direito do poderoso, dominação racial e guerra
mais ou menos permanente num mundo em que a vida era barata e prontamente
descartável” (KERSHAW, 2010, p. 666). E aqui, é válido lembrar que “o princípio
fundamental continuava a ser a raça, à qual todo o resto estava subordinado”
(KERSHAW, 2010, p. 667) e que existia, portanto, uma simbiose entre política racial e
guerra. Nesse sentido, a guerra, para os nazistas, seria eterna e total – e, assim como a
raça, não permitia “cores intermediárias” (literalmente), como bem disse o réu Hans
Fritzsche.

Guerra Total

Há uma longa discussão na historiografia acerca da utilização do conceito de


guerra total para definir as experiências de batalha do século XX, sobretudo porque essa
341

definição, naturalmente, possui implicações metodológicas. Decerto, algumas


características básicas podem nos fazer compreender a Segunda Guerra Mundial como
uma guerra total, como: o fato de ela ter sido a maior guerra em contingente e extensão,
e a mais cara até então; por ter se estendido por todos os continentes e por ter envolvido
a maioria dos Estados; pela maior mobilização do exército; e, principalmente, pelo fim
de uma premissa de humanidade no combate. Seja no front interno ou externo, a única
coisa que valia era derrotar o inimigo. Nesse sentido, há uma tendência narrativa de se
enxergar a Segunda Guerra como um aperfeiçoamento da forma moderna de fazer guerra,
e, por isso, parte de um processo evolutivo e a sua dramática conclusão. Entretanto,
autores como Roger Chickering e Stig Förster tentam mostrar como o caminho para essa
guerra não foi óbvio e nem necessário, e sim, fruto de circunstâncias e processos
históricos que poderiam ter se dado de outra forma (CHICKERING; GREINER;
FOSTER, 2010).

Para compreender essa querela, precisamos voltar na definição do termo e suas


implicações. O conceito de Guerra Total aparece como um desdobramento do conceito
de mobilização total, cunhado por Ernst Jünger em 1934. A expressão, portanto, foi criada
em meio a um debate ideológico com implicações políticas, fomentando polêmicas desde
o seu surgimento – e, precisamente por conta dessas polêmicas, não podemos usar o
conceito sem uma devida análise histórica (CHICKERING; GREINER; FOSTER, 2010).
No caso específico dos militares nazistas, homens como Alfred Jodl utilizavam o termo
guerra total como forma de justificar suas ações, sobretudo suas ações violentas e que
violavam antigos tratados e acordos humanitários. Afinal, como o combate sai do
contexto exclusivo do campo de batalha, um grande diferencial nessa nova guerra
moderna é o tratamento dispensado aos civis, como já abordado. Um exemplo dessa
novidade é o desenvolvimento da tecnologia que permitiu o combate aéreo, fazendo com
que as bombas passassem a destruir cidades e estabelecimentos. Como consequência,
mesmo um ataque calculado iria necessariamente matar dezenas de civis e destruir a
infraestrutura da região atacada – e esse era um risco que os líderes e estrategistas
militares estavam dispostos a correr para o enfraquecimento do inimigo. Isso legitimou a
destruição de grupos de pessoas que eram consideradas perigosas mesmo sendo civis – e,
por esse motivo, o genocídio está no centro da ideia de guerra total (CHICKERING;
GREINER; FOSTER, 2010).

O conceito de guerra total, portanto, é fundamental para a acusação em


342

Nuremberg. Como vimos na Introdução, o objetivo da promotoria era, precisamente, o de


demonstrar que os nazistas haviam cruzado uma linha que feria direitos humanos básicos
– e é valido lembrar que o conceito de direitos humanos também foi criado
especificamente para esse julgamento. A Guerra das Guerras travada pelos nazistas
construiu a noção de Guerra Total e levou o combate para outro nível, um nível não
civilizado, e suscetível de punição por ter ferido a própria noção de humanidade. Quem
enxergava a linha que foi cruzada e aceitava como passível de compreensão a Primeira
Guerra e não a Segunda são, sobretudo, os Estados Unidos – ainda que o país não
estivesse disposto a assumir a sua responsabilidade pelas suas ações no conflito. Se a
Primeira Guerra terminou com um tratado, a Segunda terminaria com um julgamento –
um julgamento não apenas jurídico, como também histórico, político e moral (PRIEMEL,
2016).

Inimigo biológico

Ainda que tidas como modernas pelos próprios nazistas, é essencial destacar
que as visões de Hitler sobre a guerra eram, em substância, voltadas para um passado
idealizado: “as conquistas coloniais do século XIX forneciam sua inspiração. O que Hitler
estava oferecendo era uma versão modernizada da antiga conquista imperialista”, ainda
que, naquele momento, traduzida “para o campo etnicamente misto da Europa Oriental,
onde os eslavos seriam o equivalente germânico das populações nativas conquistadas na
Índia e na África pelo Império britânico” (KERSHAW, 2010, p. 667).116 Nesse processo,
a conquista de novos territórios estava pautada não só pela noção de espaço vital, já
abordada em capítulo anterior, mas também, pela reabsorção do sangue ariano que se

116
Não nos esqueçamos, é claro, que a Alemanha teve o seu próprio império colonial iniciado na década
de 1880, pautado em teorias raciais e em violência extrema contra povos de diversas partes de países
africanos, como o que hoje conhecemos como Ruanda, Tanzânia, Namíbia, Camarão, Congo, Nigéria, entre
outros. Campos de concentração para trabalhos forçados e a utilização de africanos como cobaias científicas
foram práticas comuns pelos colonizadores alemães nesse período. Dados indicam que a população herero
foi reduzida de 80 mil para 15 mil, 10 mil dos 20 mil namas foram exterminados, e, dos 17 mil africanos
em campos de concentração, apenas metade sobreviveu. O pai de Hermann Göring, inclusive, foi o primeiro
governador colonial na Namíbia. Ainda que essas práticas não fossem exclusividade dos alemães, Richard
Evans ressalta que “somente os alemães introduziram os campos de concentração, deram-lhes esse nome
específico e, de maneira deliberada, criaram condições tão severas e cruéis que seu propósito era claramente
duplo: tanto exterminar seus inimigos quanto forçá-los ao trabalho escravo (caberia aos nazistas cunhar o
apavorante termo ‘extermínio mediante o trabalho forçado’, mas o efeito era o mesmo). Somente os alemães
empreenderam a tentativa explícita de exterminar um povo colonizado em sua totalidade com base em
alegações de ordem racial. Somente os alemães proibiram os casamentos inter-raciais em suas colônias”
(EVANS, 2018, p. 18). Autores como Zoé Samudzi e Lisa Todd, alinhados às teorias decoloniais têm
elaborado extensas (e inéditas) pesquisas investigando a relação entre o passado colonial alemão do século
XIX e princípios do século XX e as práticas nazistas no Leste durante o Terceiro Reich.
343

encontrava em outros países: “a predação colonial era, portanto, também uma questão de
sangue: o sangue germânico perdido e à deriva tinha que ser recuperado, para garantir
que não se voltasse contra a raça nórdica” (CHAPOUTOT, 2018, p. 345). Esse era mais
um dos motivos pelos quais, ideologicamente, a guerra não poderia ter fim, já que, onde
houvesse arianos, existiria a tarefa de trazê-los para o Reich por qualquer meio necessário.
O meio utilizado, durante a Segunda Guerra, era, naturalmente, a violência, e a guerra
era, por fim, uma forma de biologia política.

Nesse estado de luta permanente, a premissa básica da política nazista durante


os anos “de paz” do Terceiro Reich permanecia a mesma em tempos de guerra: “a cada
momento, a pergunta a se fazer era ‘o que serve à Alemanha’ e somente à Alemanha”
(CHAPOUTOT, 2018, p. 348). Nesse sentido, nesse novo imperativo categórico, era
moral ser imoral com outros povos, porque a moralidade dizia respeito apenas ao que era
melhor para a Alemanha. O único propósito justo e que deveria estar sempre no horizonte
de todos os arianos era o bem da Alemanha. Portanto, “a compaixão e a piedade tinham
apenas um objeto válido, que era o povo alemão. Outros povos, não germânicos, não eram
dignos dessa atitude ou dessa consideração, ainda menos agora que estavam lutando
impiedosamente contra a Alemanha e seu povo” (CHAPOUTOT, 2018, p. 256). Nesse
sentido, “a natureza relativa dos valores foi um leitmotiv que estruturou o discurso nazista
sobre o Oriente” (CHAPOUTOT, 2018, p. 349). E o discurso se transformou em prática
em pouco tempo: o exercício da Herrenmenschentum, a dominação racial, “em um
império construído sobre a força militar, exigia a segregação, assim como a subjugação
absoluta das populações colonizadas” (CHAPOUTOT, 2018, p. 347). E foi precisamente
pautada nesses princípios que se deu a atuação dos nazistas no Leste.

Partindo desse pressuposto, os nazistas compreendem que o inimigo no front


não era meramente ideológico, mas sim, um inimigo biológico. E, por esse motivo, ele
precisava ser totalmente eliminado, caso contrário, o povo alemão estaria sempre em
perigo. E aqui estamos falando não somente dos judeus e poloneses, mas também, e
sobretudo, dos soviéticos. Para além da associação direta feita entre judeus e
bolcheviques/marxistas, para os nazistas, era fundamental compreender que o próprio
território soviético era “intrinsicamente hostil ao exército alemão”, uma vez que a União
Soviética era formada por um “conglomerado de povos eslavos, caucasianos e asiáticos”
(CHAPOUTOT, 2018, p. 259).

Nesse espaço contaminado, a destruição do inimigo era um direito e um dever


344

dos soldados alemães. Os homens do exército deveriam estar sempre em alerta, já que,
por sua natureza, os soviéticos eram traiçoeiros: “sua malignidade e sua crueldade
exigiram que o exército alemão exercesse a mais extrema prudência e justificasse a
violência mais extrema” (CHAPOUTOT, 2018, p. 260), violência essa que estava
amplamente amparada na paranoia. Por exemplo, os soldados alemães tinham ordens de
não ingerir nenhuma comida ou água em território soviético enquanto um médico alemão
não autorizasse, porque acreditava-se que tudo estaria envenenado. Afinal, essa
miscigenação de povos que compunha a população soviética havia envenenado até
mesmo a terra da Rússia, biologicamente e quimicamente, demonstrando que não havia
limites para a maldade desses homens. Por isso, os alemães não deveriam sequer entrar
em contato com os prisioneiros soviéticos ou tocar em seus pertences: a luta era, na
realidade, contra uma epidemia:

Território hostil, terra contaminada: o perigo de envenenamento redobrou o


perigo de contaminação – e de forma deliberada. A guerra bacteriológica
travada pelos russos foi ativa e passiva ao mesmo tempo, porque as pessoas no
Oriente também estavam doentes. Séculos de condições sanitárias miseráveis
e higiene deplorável, agravadas pela má gestão bolchevique, mantiveram as
comunidades eslavas, asiáticas e judaicas em um ambiente microbiano ao qual
se tornaram totalmente imunes, por meio de adaptação e habituação. O
resultado foi que os povos orientais eram os vetores saudáveis de milhares de
doenças desconhecidas no Ocidente (CHAPOUTOT, 2018, p. 261).

Como o sangue alemão deveria ser preservado a todo custo, especialmente em


um território tão hostil, as leis de guerra tradicionais não deveriam – e nem poderiam –
ser aplicadas. Não se podia esperar nenhuma humanidade do inimigo, e, portanto, os
soldados alemães tampouco deveriam ter clemência. Não somente suas vidas estavam em
risco, mas o futuro do Reich estava em jogo. Por isso, uma série de ordens e decretos
foram emitidas para delimitar como deveria ser o tratamento dos inimigos no front. Karl
Dönitz, por exemplo, emitiu ordens para impedir que os membros da marinha ajudassem
barcos inimigos ou sobreviventes desses barcos. De acordo com o almirante, eles
deveriam ser deixados para morrer apenas com a exceção de salvar os homens que
possivelmente poderiam oferecer informações relevantes. Como ele sabia que isso feria
o código de honra dos marinheiros, Dönitz apresentou uma justificativa perfeitamente
embasada na ideologia nacional-socialista para seus subordinados: “Sejam fortes.
Tenham em mente que o inimigo não poupa mulheres e crianças no bombardeio de
cidades alemãs” (DÖNITZ apud CHAPOUTOT, 2018, p. 263). O comportamento do
inimigo estava justificando a violação dos princípios de guerra: “Dönitz estava sugerindo
que a violência deveria escalar cumulativamente e refletir a própria violência do inimigo”
345

(CHAPOUTOT, 2018, p. 263).

Um outro exemplo é o famoso decreto Nacht und Nebel (Noite e Nevoeiro),


emitido por Adolf Hitler e assinado por Wilhelm Keitel em 7 de dezembro de 1941. No
documento, as autoridades alemãs estavam autorizadas a raptar indivíduos dos territórios
ocupados que, na perspectiva nazista, pudessem estar colocando “em risco” a segurança
do Reich. Essas pessoas simplesmente desapareciam e suas famílias não eram informadas
sobre seu destino ou sobre suas condições. A partir do decreto, os tribunais marciais que
eram instaurados para julgar esses supostos atos de resistência deveriam deixar de ser
lenientes e aplicar majoritariamente a pena de morte com a execução imediata.117 A
delimitação “violou todos os princípios da lei da guerra e jus gentium, que determinava
que qualquer ato de hostilidade contra uma força de ocupação deveria ser levado a
julgamento perante um tribunal militar ou civil” (CHAPOUTOT, 2018, p. 264). O
costume de guerra de sentenças longas de prisão ou da utilização de reféns para a obtenção
de informação sumiu do horizonte. Não havia proteções legais e os indivíduos presos
passaram a ser levados diretamente para a polícia ou para a SD. O Nacht und Nebel foi
aplicado principalmente na Europa Ocidental. No Oriente, a postura era totalmente
diferente porque, como vimos na comparação entre o caso da Holanda e o da Polônia, no
território oriental não havia vida útil. Afinal, “desde o início, as ordens para a Operação
Barbarossa previam retaliação coletiva contra civis por meio de execuções em massa e
destruição de aldeias ou bairros” (CHAPOUTOT, 2018, p. 266). Dessa forma, a guerra
dos nazistas estava intrinsecamente ligada à escravidão e ao genocídio. Como lembra
Fest, o lema de Hitler era uma “formulação de uma declaração de guerra… contra uma
visão de mundo existente como um todo” (FEST, 2005, p. 195).

Os militares, naturalmente, foram profundamente tocados pelos princípios


raciais da guerra nazista. Como declara Keitel, “as várias ordens foram então dadas para
acabar com o sistema jurídico em territórios não pacificados, para combater a resistência
com meios brutais, para considerar cada movimento de resistência local como a expressão
da profunda cisão entre as duas ideologias” (BS, 10, p. p. 532). Como Hitler estava
“convencido de que uma guerra iria estourar de uma forma ou de outra nos próximos anos
entre o Grande Império Eslavo do comunismo e o Reich alemão do nacional-socialismo”,
era melhor que essa guerra acontecesse “agora do que mais tarde” (BS, 10, pp. 606-607).

117
Sobre o decreto, ver: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/night-and-fog-decree (Acesso
em 09/10/2022)
346

E, assim, Keitel também estava convencido, justamente porque ele sabia “por anos de
experiência que nos territórios do Sudeste e em certas partes do território soviético, a vida
humana não era respeitada no mesmo grau [que na Alemanha]” (BS, 10, pp. 617-618).
Por esse motivo, estava claro que a Segunda Guerra Mundial foi “um tipo de guerra
inteiramente novo, baseado em argumentos e princípios completamente diferentes”, e
“ideias decididamente novas e muito impressionantes, mas também pensamentos que nos
afetaram profundamente” (BS, 10, p. 532).

O marechal declara tristemente que acreditou em todas essas premissas, que


somente naquele momento reconhecia que “talvez fossem construções fantasiosas”.
Keitel queria deixar explícito, no entanto, que “essa é a maneira como eu olhei para isso
naquela época. Não devo explicar como o vejo hoje, mas apenas como o via naquela
época” (BS, 10, pp. 606-607). Além disso, ainda que admitisse ter sido verdadeiramente
impactado por essas “novas ideias”, no momento em que as coisas estavam acontecendo,
Keitel nunca imaginou que seria julgado em um tribunal militar por suas ações, muito
menos por sua obediência, que ele considerava, afinal, uma virtude, e não um crime: “Eu
não tinha nenhuma convicção interna de me tornar criminoso ao fazê-lo [obedecer a
Hitler], pois afinal era o chefe de Estado que, no que nos dizia respeito, detinha todo o
poder legislativo. Consequentemente, não considerei que estava agindo criminalmente”
(BS, 11, pp. 24-25). A definição de crime, era, portanto, uma decisão dos vencedores –
algo que ele discordava veementemente, como era de se esperar.

O maior comandante militar de todos os tempos

Enquanto Speer via em Hitler o esfacelamento do povo alemão, homens como


Alfred Jodl, não mediam esforços para defender o Führer, esse “líder em um grau
excepcional”, que possuía a associação de conhecimento, intelecto, retórica e força de
vontade que “triunfaram no final em cada conflito espiritual sobre todos”. O magnetismo
de Hitler, mencionado por tantos em Nuremberg, dissipava todas as dúvidas que poderiam
surgir ao longo do caminho. Para Jodl, o Führer “combinou de forma incomum lógica e
clareza de pensamento, ceticismo e excesso de imaginação, que muitas vezes previam o
que iria acontecer, mas também muitas vezes se extraviavam”. Tudo em Hitler o
impressionava, e a decadência nos últimos meses no bunker observada por muitos, para
Jodl, na realidade, era a tradução de sua decência e simplicidade: “Sua vida no quartel-
general do Führer não passava de dever e trabalho. A modéstia em seu modo de vida era
impressionante” (BS, 15, p. 302). De maneira similar, Keitel vê em Hitler a representação
347

de um gênio, porque, para ele, “um gênio é um homem com tamanha capacidade de olhar
para o futuro, com uma tremenda capacidade para sentir as coisas, com um conhecimento
tão extenso de questões históricas e militares” (KEITEL apud GOLDENSOHN, 2005a,
p. 210–211). O Führer, em sua perspectiva, era “o maior comandante militar de todos os
tempos” (KEITEL apud KERSHAW, 2001, p. 153).

Tomar Hitler como um gênio tornava mais simples a justificativa de segui-lo


até o fim e até as últimas circunstâncias – e retoma o argumento de que não somente não
era possível resistir dentro do regime nazista, como, principalmente, não se queria
resistir. Erich Raeder, por exemplo, assim como os outros militares, ainda possuía muito
respeito e admiração pelo Führer, para além de suas obrigações como soldado. Ele declara
que deu “as boas-vindas a essa personalidade vigorosa que era obviamente muito
inteligente, tinha uma tremenda força de vontade, era um mestre em lidar com as
pessoas”. Era perceptível, ainda, que Hitler era “um grande político e muito habilidoso
cujos objetivos nacionais e sociais já estavam bem conhecidos e [eram] aceitos
integralmente pelas Forças Armadas e pelo povo alemão”. Desobedecendo o tribunal, que
o repreendeu dizendo que não queria ouvir mais sobre “essa qualidade ou poder da
habilidade de Hitler”, Raeder dedica uma parte significava de seu depoimento para
defender o Führer enquanto líder: “Seus primeiros passos na política interna e externa,
sem dúvida, suscitaram admiração por sua capacidade política” e, além disso,
“despertaram a esperança de que, [como ele] havia dado esses primeiros passos sem
derramamento de sangue ou complicações políticas, poderia resolver da mesma forma
quaisquer problemas, que poderiam surgir mais tarde”. Hitler era visto, como já abordado,
como um grande estadista e até mesmo diplomata até o início da guerra. E, por isso,
Raeder declara firmemente: “durante os primeiros anos não tive motivos para me
perguntar se deveria permanecer em minha posição ou não” (BS, 13, pp. 22-23). Essa foi
sua postura e sua “convicção definitiva”, e o máximo que ele poderia ser acusado era de
um “erro de julgamento” (BS, 13, p. 180).

A lealdade como produto

A mentalidade dos militares no fim da Segunda Guerra Mundial pode ser


definida como, no mínimo, fruto de um longo devaneio. Em abril de 1945 muitos desses
homens ainda acreditavam que a Alemanha poderia mudar os rumos de um destino há
muito anunciado e vencer o conflito, apesar de toda a evidência do contrário. Quando
Hitler declarou que a guerra estava perdida, Keitel e Jodl, por exemplo, tentaram dissuadi-
348

lo para manter os esforços de resistência. Pouco depois, quando Hitler se suicidou


deixando o governo nas mãos de Dönitz, muitos militares permaneceram se recusando a
“hastear a bandeira branca”, ocultando a morte do Führer pelo máximo de tempo possível
para garantir que os soldados continuassem lutando. De acordo com Fest, “o que
predominava em toda a sequência dos acontecimentos e custou inúmeras vidas foram, por
um lado, uma vontade inabalável e, por outro, uma adestrada submissão, ambos
encarcerados num mundo ilusório” (FEST, 2005, p. 200).

Essa ilusão também passava pela própria perspectiva do que se podia ou não
fazer naquele momento dramático da história alemã – e qual era a responsabilidade
individual dentro daquela longa cadeia de comando. É válido lembrar que o juramento
militar, que tradicionalmente era feito a nação alemã, passou a ser, a partir de 1934, um
juramento de lealdade pessoal a Hitler (EVANS, 2014b). A Reichswehr, organização do
exército até 1935, quando foi unificada com a Wehrmacht, composta pelo exército,
marinha e forças aéreas, não estava mais a serviço da Alemanha: estavam todos a serviço
do Führer (EVANS, 2014a). Isso é especialmente importante se levarmos em
consideração que esse foi um juramento realizado muito antes da Segunda Guerra
Mundial. Há aqui uma conexão profunda entre a guerra e o Führer. E, sendo o Führer não
somente o líder militar e o líder do Reich, como também o grande responsável pelo futuro
do povo germânico e o homem que sempre sabia o que era melhor para a nação, obedecê-
lo sequer deveria ser uma questão: era uma obrigação e um compromisso que todos os
alemães deveriam assumir de bom grado.

Nesse sentido, um ponto recorrente nas narrativas dos militares em Nuremberg


era a impossibilidade de resistir ou de agir de maneira diferente, sobretudo nos últimos
meses da guerra. Keitel, por exemplo, afirma que, por conta dos ânimos do Führer no
bunker, “ninguém em tal situação poderia ter encontrado uma abertura para dizer
qualquer coisa” (BS, 10, p. 485). Isso, muitas vezes, também estava ancorado na crença
de que Hitler ainda sabia o que era melhor para a Alemanha, já que ele teve tantos acertos
nos primeiros anos do nacional-socialismo. Keitel declara que “saudamos honestamente
e abertamente o fato de que à frente do governo do Reich havia um homem que estava
determinado a criar uma era que nos tiraria das deploráveis condições então
prevalecentes” (BS, 10, p. 500). Afinal de contas, mesmo sendo o chefe de comando das
Forças Armadas, Keitel se enxergava como “o aluno, e não o mestre” (BS, 10, p. 600).
Jodl, de forma similar, conta que na época em que Hitler ascendeu ao poder como
349

chanceler, ele disse a um camarada: “Isso é mais do que uma mudança de governo; é uma
revolução. Até onde isso nos levará, não sabemos” (BS, 15, p. 286). Nessa revolução, os
soldados estavam confortáveis em seguir Adolf Hitler, e, mesmo naquele momento,
sendo julgados por um tribunal militar, não se arrependiam de suas decisões.

Já que o nacional-socialismo era uma revolução, para Jodl, apenas outra


revolução conseguiria remover os nazistas do poder. Por isso, ele declara que o atentado
de 20 de julho, abordado em capítulo anterior, foi obra de indivíduos isolados, o que
tornou a ação malsucedida: “nesta revolta, nesta tentativa, nem um soldado, nem um
único braço da Wehrmacht, nem um trabalhador, se levantou. Todos os perpetradores e
todos os membros do putsch estavam sozinhos”, e, “para derrubar esse sistema, uma
revolução teria sido necessária, uma revolução mais poderosa, mais poderosa do que a
nacional-socialista”. Mas como o exército poderia, ao mesmo tempo, vencer uma guerra
e dar cabo de um golpe de Estado? Para Jodl, isso era impossível: “Mas como alguém
poderia travar uma guerra de vida ou morte com outros países e ao mesmo tempo realizar
uma revolução e esperar ganhar algo positivo para o povo alemão, eu não sei. Só gênios
que viveram na Suíça118 podem julgar isso”. Ele conclui afirmando categoricamente que
“a Wehrmacht alemã e os oficiais alemães não foram treinados para a revolução” (BS,
15, pp. 299-300). O militar lamenta, entretanto, a pouca extensão de sua possibilidade de
atuação: “Uma tremenda quantidade de dano teria sido evitada se nós, soldados,
estivéssemos em posição de conter o Führer” (BS, 15, p. 299).

Que ficasse claro, entretanto, que Jodl sequer era favorável a um golpe. Ele
reitera que “se hoje as pessoas que cooperaram ativamente para levar Hitler ao poder” e
que participaram desse governo “exigiam revolução e motim da Wehrmacht quando eles
não gostaram mais do homem [Hitler], ou quando ocorreram reveses, então só posso
chamar isso de perverso” (BS, 15, pp. 299-300). Essa atitude perversa, para ele, se devia
a homens fracos que consideram a lealdade como “algo a ser comprado e vendido como
as ações de um banqueiro”. Ele jamais iria apertar as duas mãos de um homem enquanto
ele fosse vitorioso e, assim que começasse a sofrer derrotas, “procurar um punhal”.
Mesmo que uma questão moral estivesse envolvida – e ele reconhecia “certos limites
morais à obediência e à lealdade” -, ele não poderia retirar sua lealdade “por causa da
tendência do mercado de ações” (JODL apud GILBERT, 1995, p. 322). Dessa forma, sua

118
Aqui, Jodl provavelmente está fazendo uma crítica à postura de neutralidade da Suíça durante a Segunda
Guerra Mundial.
350

lealdade não poderia ser comprada e não flutuava de acordo com o balanço das
modificações políticas.

Similarmente, Erich Raeder compreende a resistência e a deserção como


sinônimos. Ele declara que, como soldado, “não estava em condições de ir ao meu
Supremo Comandante e Chefe de Estado para lhe dizer: ‘Mostre-me suas razões para esta
ordem’, isso teria sido um motim e não poderia ter sido feito em nenhuma circunstância”
(BS, 13, p. 214). Como ele já era um soldado há mais de 15 anos quando estava servindo
a Hitler, ele estava habituado à obediência necessária em uma cadeia de comando. E, por
isso, Raeder reitera que jamais seria insubordinado com seu líder: “o que não se podia
fazer era jogar fora o trabalho e dar a impressão de ser insubordinado. Isso tinha que ser
evitado a todo custo, eu nunca teria feito isso. Eu era muito soldado para isso (I was too
much of a soldier for that)” (BS, 13, p. 219-220).

De maneira análoga, Keitel relata que nunca havia presenciado nenhum tipo de
resistência ou insubordinação por parte de outros oficiais “quando Hitler proclamou os
princípios da guerra ideológica e ordenou que fossem postos em prática” (BS, 10, p. 624).
Sobre sua própria posição, ele diz a Goldensohn:

Depois que as coisas ficaram ruins e houve reveses, eu disse para mim mesmo:
onde estou, estou. Só se pode ser morto num lugar. Não está certo ser obediente
apenas quando as coisas andam bem. É muito mais difícil ser um soldado bom
e obediente quando as coisas vão mal e os tempos são difíceis. Obediência e
confiança nesses tempos são uma virtude (KEITEL apud GOLDENSOHN,
2005a, p. 211).

Para Karl Dönitz, a ideia de um motim também era absolutamente desonrosa.


O Führer, essa “personalidade poderosa que tinha inteligência e energia extraordinárias e
um conhecimento praticamente universal, de quem o poder parecia emanar e que possuía
um notável poder de sugestão” era uma força a ser considerada (BS, 13, p. 301). Isso, por
si só, já era motivo suficiente para obedecer ao líder. Mas, ainda que Hitler não fosse essa
figura emblemática, ele era, não obstante, o chefe de Estado, e sua posição demandava –
e esperava – a subserviência de seus soldados. Sendo assim, resistência significava,
naquele contexto, deserção:

A palavra ‘putsch’ tem sido usada com frequência neste tribunal por uma
grande variedade de pessoas. É fácil dizê-lo, mas acredito que seria preciso
perceber o tremendo significado de tal atividade.
A nação alemã estava envolvida em uma luta de vida e morte. Estava cercado
por inimigos quase como uma fortaleza. E é claro, para manter o símile da
fortaleza, que cada distúrbio de dentro, sem dúvida, teria afetado nosso poderio
militar e poder de combate. Qualquer um, portanto, que viole sua lealdade e
seu juramento para planejar e tentar derrubar durante tal luta pela
351

sobrevivência deve estar profundamente convencido de que a nação precisa de


tal derrubada a todo custo e deve estar ciente de sua responsabilidade.
Apesar disso, todas as nações julgarão tal homem como um traidor, e a história
não o justificará a menos que o sucesso da derrubada realmente contribua para
o bem-estar e a prosperidade de seu povo. Isso, no entanto, não teria sido o
caso na Alemanha (BS, 13, p. 303-304).
Para Dönitz, portanto, a derrubada de Hitler não traria prosperidade para a
Alemanha, mesmo quando já estava claro que o líder não levaria o país à vitória, e sim, à
ruína. Essa é uma perspectiva totalmente diferente da de Albert Speer, que, como vimos,
observou Hitler unir seu destino ao da Alemanha e tentou, mediante suas possibilidades,
evitar que a catástrofe fosse ainda maior, desobedecendo as ordens da política de “terra
arrasada” do Führer. Nesse sentido, para homens como Dönitz, Albert Speer era um
traidor e seria julgado como tal, senão em Nuremberg, pela História.

Adolf Eichmann, o famoso “perito em questões judaicas” e um dos grandes


responsáveis pelo Holocausto, também recorre a essa justificativa da impossibilidade de
reação em seu julgamento em 1961 em Jerusalém. Dessa maneira, podemos observar
como Nuremberg pavimentou o caminho da noção de impossibilidade de desobediência,
ainda que nos próprios documentos de Nuremberg não tivesse sido encontrado “nenhum
caso de um membro da SS que tenha sofrido pena de morte por se recusar a participar de
uma execução” (ARENDT, 1999, p. 107). Sobre isso, Arendt disserta:

No próprio julgamento, uma testemunha de defesa, [Erich] von dem Bach-


Zelewski declarou que: ‘era possível evitar um encargo por meio de um pedido
de transferência. Sem dúvida, em casos individuais, era preciso estar preparado
para certas punições disciplinares. Não havia, porém, nenhum perigo de vida’.
Eichmann sabia muito bem que ele não estava de forma nenhuma na clássica
‘posição difícil’ de um soldado que pode ‘ser passível de fuzilamento por uma
corte marcial se desobedecer a uma ordem, e de enforcamento por um juiz e
júri se obedecer’– como afirma Dicey em seu famoso Law of the Constitution
-, porque como membro da SS ele nunca esteve sujeito à justiça militar, só
podendo ser julgado pela polícia e pelo tribunal da SS. Em seu último
depoimento à corte, Eichmann admitiu que podia ter recuado sob um pretexto
qualquer, e outros o fizeram. Ele sempre considerou tal passo ‘inadmissível’,
e ainda agora não o considera ‘admirável’; isso significaria nada mais que a
transferência para outro trabalho bem pago. A ideia de desobediência aberta,
surgida no pós-guerra, era um conto de fadas: ‘Naquelas circunstâncias esse
comportamento era impossível. Ninguém agia assim’. Era ‘impensável’
(ARENDT, 1999, p. 107).

O caso das Forças Armadas possui uma diferença fundamental, visto que, como
membros do exército, esses homens eram passíveis de um julgamento militar – ainda que
tal julgamento nunca tenha ocorrido durante o Terceiro Reich. É válido mencionar, ainda,
que outros membros da burocracia que não eram parte da SS e que se recusaram a
participar dos esforços de guerra foram apenas afastados por Hitler, como é o caso de
Konstantin von Neurath, o Ministro das Relações Exteriores até 1938, que, como vimos,
352

após repetidos pedidos de remoção de seu cargo foi finalmente substituído por Reinhard
Heydrich em 1941. Dessa maneira, a resistência era menos “inadmissível” ou
“impossível”, e mais “impensável”. Como reforça Todorov, o que une o extremo e o
ordinário é o fato de a maioria das pessoas escolherem seus valores vitais e a
autopreservação. Entretanto, “mesmo que isso tenha acontecido tão pouco, e mesmo que
se tratasse de um único caso, seria o suficiente para testemunhar que o homem pode ser
interiormente mais forte que seu destino” (TODOROV, 1995, p. 52).

Soldados políticos

Apesar de Keitel ter expressado perfeitamente bem que a guerra nazista era uma
guerra ideológica, Alfred Jodl, seu subordinado, por outro lado, não compreendia a
relação entre suas crenças e a ideologia nazista. O militar afirma, por exemplo, de maneira
muito similar ao defensor fiel Julius Streicher, que sua visão sobre os judeus era apenas
a declaração de fatos históricos. Ainda que ele acreditasse que “nenhum Partido, nenhum
Estado, nenhum povo e nenhuma raça, nem mesmo os canibais, são bons ou maus em si
mesmos, mas apenas o indivíduo”, ele também sabia que “o judaísmo, depois da guerra
e na desintegração moral que apareceu após a Primeira Guerra Mundial, veio à tona na
Alemanha de uma forma mais provocativa”. Isso, entretanto, não era uma convicção fruto
de incessante propaganda antissemita, pelo contrário: “esses eram fatos, que foram muito
lamentados pelos próprios judeus” (BS, 15, pp. 285-286).

Como os fatos não podem ser questionados, e aspectos fundamentais da


ideologia nazista eram vistos por ele como meramente a declaração de fatos, Jodl fazia
uma nítida separação entre a sua atuação e a visão de mundo que embasava seu trabalho.
O ideólogo do movimento nazista era Adolf Hitler, e, por isso, “as concepções
revolucionárias do Führer” (BS, 15, p. 401) eram de responsabilidade apenas do Führer.
Sendo assim, a acusação não deveria lhe questionar sobre ordens políticas, e ele declara
várias vezes que seria melhor que essas perguntas fossem direcionadas “às pessoas
responsáveis pela política alemã” (BS, 15, p. 468), homens que também estavam em
Nuremberg sendo julgados, como Joachim von Ribbentrop e Franz von Papen. Para
Gilbert, Jodl reitera que “as guerras são decididas por políticos e não por soldados”. Após
a experiência nazista na Segunda Guerra Mundial, o militar acredita que, “talvez ao
decidir guerras futuras os generais devam ser consultados. Mas nesta guerra a culpa
absoluta recai sobre um homem, apenas um homem – Adolf Hitler!” (JODL apud
GILBERT, 1995, p. 368).
353

Karl Dönitz é o que traça uma linha divisória decisiva e definitiva entre
militares e políticos – no Terceiro Reich e em Nuremberg. Ele declara a Gilbert: “foram
esses políticos que levaram os nazistas ao poder e começaram a guerra! Foram eles que
provocaram esses crimes repugnantes, e agora temos que nos sentar no banco dos réus
com eles e dividir a culpa!”. Por fim, para o almirante “há duas classes de pessoas nesse
banco dos réus: soldados e políticos” (DÖNITZ apud GILBERT,1995, p. 358). Após a
defesa do No-man do tribunal, Hjalmar Schacht, Dönitz, indignado, afirma que “esses
políticos não precisam subir em um cavalo tão alto”, afinal, “não foram os soldados e
marinheiros, mas os eleitores e políticos que colocaram Hitler no poder, e, se ele se
mostrou um homem mau, não é nossa culpa. Não tínhamos nada a dizer sobre declarar
guerra, só tínhamos que lutar nessa guerra” (DÖNITZ apud GILBERT, 1995, p. 290). A
decisão de entrar em guerra não foi sua nem dos militares, e sim do Führer e de outros
membros do regime nazista – e, por esse motivo ele não se importava com as motivações
por detrás daquela guerra, tampouco com os meios que eram necessários para que a
Alemanha a vencesse. Por fim, a disputa conceitual entre “guerra de agressão”, tal como
constava na acusação, e “guerra defensiva”, tal como defendida por diversos nazistas no
banco dos réus, lhe parecia totalmente irrelevante: “a guerra agressiva ou defensiva é uma
decisão política e, portanto, não tem nada a ver com considerações militares” (BS, 13, p.
250).

Para Goldensohn, Dönitz também reforça: “Eu não sou um político. Eu era um
capitão de um pequeno navio quando a guerra começou. Eu mal conhecia Hitler até 1942.
Ele sempre me pareceu razoável e suas exigências pareciam ser para o bem da
Alemanha”. O almirante afirma que havia descoberto a terrível verdade sobre o
extermínio em Nuremberg, mas reitera que, enquanto cumpria suas funções no Terceiro
Reich, só lhe cabia esse exercício. Hitler disse a ele que “cada homem deveria cuidar das
suas próprias tarefas” e as dele eram “os submarinos e a Marinha” (DÖNITZ apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 9). Não havia espaço para o pensamento e a reflexão, somente
para o cumprimento do dever. Mesmo se ele ouvisse qualquer coisa com relação ao
extermínio dos judeus, isso não era da sua conta, afinal, como ele declara: “eu estava
muito preocupado com os submarinos e os problemas navais para me preocupar com os
judeus” (DÖNITZ apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 11). É claro que, olhando em
retrospectiva, era fácil observar e pontuar os erros. Para Dönitz, contudo, as coisas
deveriam ser analisadas de acordo com o que era percebido na época em que estavam
354

acontecendo: “Acredito que depois da guerra a pessoa vê os acontecimentos de forma


diferente e não percebe plenamente a grande responsabilidade que carrega um
comandante desafortunado” (BS, 13, p. 292). Além de tudo, “Não há nada de errado com
o princípio do homem forte na política” (DÖNITZ apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 17).

Esse “comandante desafortunado” explica sua relação com Adolf Hitler a fim
de reforçar seu desligamento com preocupações políticas e ideológicas:

Em primeiro lugar, aceitei e concordei com as ideias nacionais e sociais do


nacional-socialismo: as ideias nacionais que encontraram expressão na honra
e dignidade da nação, sua liberdade e sua igualdade entre as nações e sua
segurança; e os princípios sociais que talvez tivessem como base: não a luta de
classes, mas o respeito humano e social de cada pessoa, independentemente de
sua classe, profissão ou posição econômica, e, por outro lado, a subordinação
de cada um ao interesses do bem comum. Naturalmente eu considerava a alta
autoridade de Adolf Hitler com admiração e a reconhecia com alegria, quando
em tempos de paz ele conseguiu tão rapidamente e sem derramamento de
sangue realizar seus objetivos nacionais e sociais.
Meu segundo laço foi meu juramento. Adolf Hitler, de maneira legal e legítima
(legal and lawful), tornou-se o Comandante Supremo da Wehrmacht, a quem
a Wehrmacht havia jurado lealdade. Que esse juramento foi sagrado para mim
é evidente e acredito que a decência neste mundo estará em todos os lugares
do lado daquele que cumprir seu juramento (BS, 13, p. 299).

Ironicamente, em sua defesa de uma perspectiva apolítica, Dönitz deixa claro


justamente o contrário, apresentando todos os motivos pelos quais ele abraçou o nacional-
socialismo como governo e, sobretudo, como doutrina política. Por conta de declarações
como essa, a acusação não conseguia desvencilhar Dönitz da ideologia nazista. No
entanto, dentre os outros réus no tribunal, o almirante era visto como um traidor devido à
sua defesa de uma capitulação alemã. Ainda que Dönitz de fato tenha tentado negociar a
rendição e tenha evitado que muitos soldados alemães fossem mortos, homens como
Göring e até mesmo Keitel, o enxergavam como um nazista fraco que não teve coragem
o suficiente para seguir o legado do Führer. Para Dönitz, contudo, sua posição era muito
compreensível: ele simplesmente tinha “a visão de que o povo alemão pertencia ao
Ocidente cristão” e acreditava “que a base das futuras condições de vida é a segurança
jurídica absoluta do indivíduo e da propriedade privada” (BS, 13, p. 306). Por isso, visto
que a guerra já estava perdida para Alemanha, ele, como Comandante-em-chefe em Chefe
naquele momento, deveria fazer todo o possível para a reintegração do país nos bons
olhos dos Aliados.

Keitel, que como veremos, queria lutar até o fim, mesmo quando nem sequer o
Führer queria dar continuidade a guerra, também tenta se colocar como um homem
apolítico e que estava apenas interessado nas atribuições específicas de seu cargo. Ele
355

afirma que “os escritórios militares não deveriam ter autoridade para decidir essa questão
[da capitulação] e não estão em condições de fazê-lo” e que “essas decisões não são tarefa
do soldado, mas unicamente do estadista” (BS, 10, p. 499). Ele, que sempre se considerou
um soldado e não “um soldado político ou um político”, conclui seu argumento
provocando a promotoria que lhe questiona se ele obedecia a Hitler “não porque o dever
o chamava, mas por causa de suas próprias convicções”: “Afirmei aqui que fui um
soldado leal e obediente do meu Führer. E não creio que existam generais na Rússia que
não prestem obediência implícita ao marechal Stalin” (BS, 10 p. 626). Ao fim e ao cabo,
“seja culpa ou obra do destino”, uma coisa estava certa para Keitel: “é impossível deixar
o subordinado assumir a culpa e negar a própria responsabilidade” (KEITEL apud
GILBERT, 1995, p. 245). E o Führer havia deixado muito claro que seus generais eram,
e sempre seriam, seus subordinados, e, sobre isso, o réu ainda se recordava das palavras
do líder. Keitel conta a Goldensohn que Hitler havia lhe dito: “Exijo três coisas de meus
oficiais e generais. Um, habilidade para sua posição; dois, que me relatem a situação com
sinceridade; e três, eles devem ser obedientes” (KEITEL apud GOLDENSOHN, 2005b,
p. 167).

As terras selvagens do Oriente

A distinção ideológica absoluta entre os oficiais do exército e o movimento


nacional-socialista cai por terra quando analisamos a postura dos militares nos países
invadidos. Desde a ocupação da Polônia, em 1939, as notícias sobre o tratamento do
exército alemão em relação aos poloneses e judeus poloneses mostravam que o objetivo
de Hitler era tornar a Polônia o seu terreno de teste de teorias e práticas raciais, como
vimos. Com a instalação do Governo Geral, comandado por Hans Frank, deu-se início às
práticas de confisco coletivo da propriedade polonesa, à exigência de trabalhadores
poloneses para a economia do Reich, além do tratamento violento dispensado aos
prisioneiros, que eram espancados constantemente e, finalmente, o extermínio em massa
da população. Richard Evans ressalta que oficiais de alta patente do exército alemão, que,
por vezes, eram menos influenciados pela ideologia nazista, criticaram com veemência
as políticas de ocupação na Polônia: a expulsão ilegal de moradores, o confisco de bens
dos poloneses, o auto enriquecimento ilícito devido ao furto, a apropriação indébita, a
desobediência, o abuso de bebidas alcóolicas e os maus tratos e estupro de mulheres
polonesas. Tais hábitos eram descritos como dignos de mercenários piratas (EVANS,
2014b, p. 46). Para os poloneses restou a deportação, a criação de guetos, o confinamento
356

em campos de concentração e, posteriormente, o extermínio.

Em novembro de 1944 o exército passou a deixar as cortes para o julgamento


de desertores a cargo do RSHA, o gabinete de segurança do Reich que estava sob
comando de Ernst Kaltenbrunner, um negacionista relapso. Nesse contexto, Keitel emitiu
uma ordem que dizia que “a família de um desertor que foi considerado culpado por um
tribunal militar de acordo com a forma deve responder pelo crime do culpado com seus
bens, sua liberdade ou sua vida”, e, nessa instância, seria o “Reichsführer SS [Himmler]
e o chefe da polícia alemã” que determinariam “o alcance desta responsabilidade caso a
caso”. Sendo assim, não apenas desertores eram mandados para a morte, como também
soldados que, de maneira bem abrangente, “haviam perdido seu caminho”. O número
desses soldados começou a aumentar na medida em que a guerra foi ficando mais violenta
e as unidades começaram a se desfazer. Nessa categoria também estavam prisioneiros
alemães que foram pegos pelo inimigo e que “não tinham lutado até o final”, ou seja, até
a morte. Nesse sentido, qualquer pessoa que sobrevivesse ao cativeiro inimigo passava a
ser considerada desertora, o que tornava a repressão a nova normalidade. Essas ações, no
entanto, eram justificadas aos olhos de Keitel pelo simples fato de que a vida no Leste
não tinha o mesmo valor que a vida no Ocidente, de modo que o extermínio deveria ser
multiplicado e com uma violência cada vez maior (CHAPOUTOT, 2018, p. 227).

O exército, portanto, por meio de um decreto assinado por Keitel em 1941, tinha
carta branca no território oriental porque partia-se da premissa que o inimigo era hostil
por definição, uma vez que era hostil biologicamente. Por esse motivo, a guerra se tornou
total, não restando resguardo para os civis e as “as tropas eram obrigadas a administrar a
justiça por conta própria, no local e sem demora”. Esse decreto expandiu a jurisdição
militar e autorizou “medidas de violência coletiva” contra qualquer “localidade” suspeita.
Os civis não tinham direito à proteção legal, enquanto os soldados da Wehrmacht, pelo
contrário, basicamente só possuíam direitos: “a única exceção a esse estado permanente
de exceção legal era para o próprio exército alemão: ações legais eram tomadas se e
somente se o ato em questão representasse um perigo para o exército” (CHAPOUTOT,
2018, p. 252). A definição de inimigo abarcava toda a população das regiões ocupadas
no Leste, afinal, aquele território era, por si só, uma ameaça ao povo ariano: “as terras
selvagens do Oriente eram povoadas por bárbaros e não podiam estar sujeitas às mesmas
regras que a Europa Central ou Ocidental” (CHAPOUTOT, 2018, p. 253). Colocando a
população civil em uma categoria de inimigo baseada em uma substância biológica, os
357

nazistas só deixavam uma opção para essas pessoas: morrer ou resistir.

Por outro lado, e como era costumeiro dentro da calculada desorganização do


Terceiro Reich, os militares não podiam questionar as ações da SS ou da polícia, e ambas
deveriam responder apenas a Himmler, que, por sua vez, respondia apenas ao Führer. Por
exemplo, se um oficial do exército visse algum membro da SS violar as leis de guerra,
ele não poderia levá-lo a uma corte marcial, como era o padrão até então. Ainda que
Keitel fosse o chefe do comando das Forças Armadas, a maior autoridade militar após
Hitler, a SS governava sozinha. A “única regra que o exército impôs aos comandos da SS
e da polícia foi ‘não interromper as operações militares’”, de modo que “o território e
seus habitantes” eram inteiramente do domínio da SS (CHAPOUTOT, 2018, p. 251).
Esses decretos foram revisados ao longo dos anos e ficaram mais brandos, entretanto, isso
não diminui a responsabilidade das Forças Armadas no processo de colonização do Reich.
A guerra que a Alemanha nazista estava travando não era meramente uma guerra
expansionista porque sua base era racial. O objetivo, portanto, não era apenas a ocupação,
e sim a “limpeza” dos territórios: era um conflito pautado em um projeto de construção
ativa de um mundo ariano. A guerra fazia parte da engenharia social que inicialmente
havia sido empregada no território alemão, e que, com o conflito, expandiu-se para os
territórios ocupados.

Se olharmos para as narrativas dos militares em Nuremberg, temos homens que


compreendem perfeitamente seus papéis dentro desse projeto racial. Alfred Jodl, por
exemplo, sequer nega as atrocidades ocorridas no front. Irritado com os “malditos
advogados” da acusação que utilizam documentos técnicos para construir o caso das
Forças Armadas, Jodl afirma que “cada soldado que lutou na frente oriental se lembra do
horror e do pesadelo que foi aquele inverno de 1941. É claro que milhares de prisioneiros
morreram de fome e frio!”. Ele se recorda, revoltado: “Os trens hospitalares chegaram
com vagões de soldados congelados russos e alemães. – Foi horrível! – horrível! – Foi
um pesadelo que nunca esqueceremos! Lutando em um deserto de espaço e neve – o
espaço russo está além da sua concepção” (JODL apud GILBERT, 1995, p. 253).

Jodl está se referindo aqui à ocupação de Leningrado (São Petesburgo), iniciada


em 8 de setembro de 1941. A ocupação, que culminou com a batalha de Stalingrado, foi,
de fato, o começo do fim. Naquele primeiro inverno do cerco, em 1941, foram registradas
886 detenções por canibalismo e cerca de um milhão de civis morreram de frio e fome
(EVANS, 2014b, p. 464–465). No fim de 1942 mais de 327 mil alemães já haviam sido
358

mortos devido às condições adversas do front. A solução dada por Hitler foi o avanço
para Stalingrado, em 12 de setembro de 1942, que era um centro industrial importante,
além de ser um ponto de distribuição de suprimentos do Cáucaso e para o Cáucaso.
Stalingrado demonstrou, acima de tudo, o descaso de Hitler com suas próprias tropas.
Apesar de não terem morrido congelados como no ano anterior, os alemães padeciam
com a escassez de comida e com as precárias condições a que estavam submetidos. Os
soldados tiveram que se sujeitar a comer carne de cavalo para lutar contra a fome
constante e acabaram contraindo diversas doenças em virtude dessa combinação de
fatores debilitantes. Em fins de janeiro de 1943, Hitler ainda negava os pedidos de
rendição do comandante encarregado, Friedrich von Paulus, utilizado como testemunha
da acusação em Nuremberg. Uma ordem foi emitida em 28 de janeiro de 1943 declarando
que “doentes e feridos deveriam ser deixados a morrer de fome”. Como reforça Evans,
“com efeito, as tropas alemãs estavam padecendo do mesmo destino que Hitler havia
planejado para os eslavos” (EVANS, 2014b, p. 477). Os alemães se renderam em 2 de
fevereiro, contabilizando mais de 200 mil mortos e 235 mil presos (EVANS, 2014b, p.
480).119

A Rússia, como vimos, era um ambiente hostil ao povo germânico. Era de se


esperar, portanto, que as condições fossem adversas e que passassem dos limites básicos
da humanidade – para ambos os lados. Isso não era nada de novo para homens como Jodl
e, apesar de descrever o período como um “pesadelo”, ocasiões como essa possuíam um
certo ar de normalidade no front. Era horrível, é claro, mas aquela era uma guerra
diferente de todas as outras e, justamente por isso, demandava mais sacrifícios. Jodl
reitera, entretanto, que “soldados alemães não são bestas (beasts)” e que fizeram o que
fizeram apenas pelo seu código de honra e de obediência (JODL apud GILBERT, 1995,
p. 289-290). O que Jodl não percebia, contudo, era que o código de honra militar não
impediu que os soldados alemães fossem tratados como bestas pelo próprio líder que os
colocou naquela situação deplorável.

A ética da profissão militar

Para refletir sobre as questões acerca da responsabilidade individual sobre a


guerra, é necessário analisar o caminho que a historiografia sobre o Terceiro Reich

119
Esse parágrafo foi adaptado da minha dissertação de mestrado. Ver: (VISCONTI, 2017b, p. 152–154).
Sobre Stalingrado, ver o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT):
https://www.instagram.com/p/CZejxwetv2s/ (Acesso em 10/10/2022)
359

percorreu ao longo dos anos. Em seu livro O Hitler da história, John Lukacs reitera que
a partir da década de 1950, houve uma tendência na historiografia de se considerar o
stalinismo, e sua consequente, porém errônea, identificação com o comunismo, como
mais perigosos do que o nazismo de Hitler. Colocar o nazismo como uma versão mais
branda do stalinismo deu origem a chamada teoria das duas guerras, que, de acordo com
Lukacs, entendia que a guerra do Terceiro Reich contra as democracias ocidentais deveria
ter sido evitada, porém, a guerra da Alemanha, como uma defensora da civilização
ocidental, contra a Rússia soviética, deveria ser compreendida. O historiador reitera que
essa disposição “equivalia (e ainda equivale) pelo menos ao perdão parcial do povo
alemão e de seus exércitos durante a Segunda Guerra Mundial, embora não de Hitler”
(LUKACS, 1998, p. 23).

Essa tendência perdurou até fins de 1980, com a chamada “Batalha dos
historiadores” (Historikerstreit), quando Ernst Nolte lançou o artigo The past that won’t
go away, em que tentava entender o nazismo alemão como uma reação ao bolchevismo
russo, de modo que os horrores do sistema de campos de concentração soviéticos teriam
precedido e até mesmo levado aos de Auschwitz. Os historiadores Andreas Hillgruber e
Joachim Fest reiteraram que esse tipo de disputa historiográfica foi motivada, em muitos
sentidos, por uma tentativa de reabilitação das Forças Armadas alemãs durante a Segunda
Guerra – ou seja, um esforço de positivação e de construção de uma narrativa heroica
sobre a Wehrmacht (LACAPRA, 1992).

Essa querela historiográfica nos mostra como existiu, de muitas maneiras, uma
separação entre os crimes nazistas e o exército alemão; partes da mesma moeda que não
se encontram, entidades separadas. Não há a menor dúvida nem na historiografia nem no
imaginário popular acerca da culpa das tropas de assalto nazistas, as tão temidas SS e
todos os seus ramos – sobretudo os Einsatzgruppen, o esquadrão da morte comandado
pela SS, responsável pela execução em massa durante a guerra nos territórios ocupados,
e os Sonderkommandos, unidades especiais da SS encarregadas de tarefas específicas,
incluindo o extermínio, deportação e encobrimento de evidências do extermínio. A
magnitude do Holocausto não nos deixa questionar essas unidades pessoalmente e
diretamente responsáveis pelo genocídio. No entanto, a pergunta paira no ar: e o exército?

Esse questionamento foi retomado recentemente, em 2019, quando o Exército


Brasileiro fez uma homenagem ao major do Exército Alemão Otto von Westernhagen,
360

causando revolta entre os historiadores nas redes sociais.120 É razoável inferir que ainda
na atualidade parece não haver um consenso sobre essa possível – ou impossível –
separação entre o exército e o Terceiro Reich. Defender essa fragmentação pode significar
a adesão a outras agendas perigosas, no entanto, a busca pelo distanciamento é antiga: em
1946, em Nuremberg, os nazistas já estavam reivindicando essa redenção das Forças
Armadas. Como muitos dos réus fizeram parte de algum grau do escalão do exército, era
de seu interesse demonstrar como servir ao regime nazista era similar a servir a qualquer
outro regime. A obediência ao país acabava sendo conveniente em suas justificativas, que
esbarram com frequência na própria responsabilidade dos militares no extermínio em
muitos locais da extensão do Reich.

Nesse sentido, dois pontos se destacam nas narrativas em Nuremberg: a ideia


de que esses homens estavam obrigados, pela sua noção de dever, a servir a Alemanha
como soldados, e, igualmente importante, a justificativa da cadeia de comando. Ordens
eram ordens e deveriam ser obedecidas, e, sobre essas ordens, havia uma
responsabilidade flutuante, para usar a expressão de Zygmunt Bauman. Os militares se
encontravam, então, em uma “situação na qual cada um e todos os membros da
organização estão convencidos, e assim o diriam caso indagados, de que estão sob as
ordens de outra pessoa, mas as pessoas apontadas pelas outras como responsáveis
passariam o bastão a uma terceira”. E, por isso, “a perpetuação coletiva de atos cruéis fica
bem mais fácil pelo fato de que a responsabilidade é essencialmente ‘inatribuível’,
enquanto cada participante desses atos está convencido de que ela compete a alguma
‘autoridade específica” (BAUMAN, 1998a, p. 190–191).

É precisamente a essa responsabilidade flutuante que Wilhelm Keitel se refere


quando diz que “nem sempre será possível separar claramente a culpa e o emaranhamento
nos fios do destino”. No entanto, ele estava convencido de que “a grande massa de nossos
bravos soldados era realmente decente, e que onde quer que ultrapassassem os limites do
comportamento aceitável, nossos soldados agiam de boa fé, acreditando na necessidade
militar e nas ordens que recebiam”. Esse também era o seu caso, que, foi “um soldado
por inclinação e convicção” e que serviu ao seu país por 44 anos acreditando que “deveria
fazer isso por uma questão de dever” (BS, 10, p. 470). Mesmo quando ele teve “objeções
militares” às suas ordens, “se a decisão tivesse sido finalmente tomada por Hitler”, ele

120
Sobre o caso, ver: https://exame.com/brasil/exercito-brasileiro-homenageia-major-alemao-que-
defendeu-exercito-nazista/ (Acesso em 09/10/2022)
361

não poderia fazer nada além de obedecer (BS, 10, p. 482). Afinal, “se Hitler ordenou, isso
era bom o suficiente para mim” (KEITEL apud GILBERT, 1995, p. 108).

Ainda que se próprio advogado de defesa, Dr. Nelte, o questione: “Mas você
não é apenas um soldado, você também é um indivíduo com vida própria”, Keitel não
conseguia enxergar nenhuma relação do seu trabalho com as suas convicções. Durante
toda sua carreira militar, ele foi “criado, por assim dizer, no velho conceito tradicional de
que nunca se discutia essa questão”. Dessa maneira, mesmo que ele tivesse sua vida
própria e sua opinião sobre um determinado assunto, “no exercício de suas funções
profissionais como soldado e oficial, o indivíduo abandonou essa vida, entregou-a”.
Como ele abandonou essa vida e esse mundo onde ele poderia ter suas próprias opiniões
e considerações, “nem na época e nem depois” ele sequer tinha dúvidas sobre “questões
de discrição puramente política”, uma vez que ele era um soldado, e, por isso, se reservava
no “direito de confiar em sua liderança estatal”, sendo “obrigado a fazer seu dever e
obedecer” (BS, 10, pp. 499-500). Para Gilbert, ele afirma, categoricamente: “Sou soldado
há 40 anos e esse é o único código que conheço” (KEITEL apud GILBERT, 1995, p.
327).

Alfred Jodl, o homem abaixo de Keitel, também compreende que a “obediência


é realmente a base ética da profissão militar”. No entanto, que ficasse claro que ele estava
“longe de estender esse código de obediência ao código cego de obediência imposto ao
escravo”. Ele, naturalmente, era um homem livre, ainda que, “especialmente em questões
operacionais desse tipo em particular, não pode haver outro curso para o soldado, a não
ser a obediência”. Provocando a promotoria, Jodl declara: “e se a acusação hoje está em
condições de indiciar oficiais alemães aqui, deve isso apenas ao conceito ético de
obediência de seus próprios bravos soldados” (BS, 15, p. 383). Ou seja, os Aliados só
estavam em posição de julgá-los porque seus soldados deram suas vidas por essa mesma
guerra. A única diferença, para Jodl, era que os Aliados tinham ganhado e os nazistas
tinham perdido, nada além. O exercício da profissão militar e a premissa da obediência
de um soldado eram os mesmos independentemente de qual país esse soldado vivia e por
qual causa ele lutava naquele momento.

Jodl, assim como Keitel, ainda manteve “sentimentos humanitários”, mas isso
não o impediu de cumprir suas ordens “na medida em que era absolutamente necessário
por razões militares” (BS, 15, p. 498). E, ainda que tivesse algumas reservas com relação
à alguns procedimentos no Leste, o réu queria deixar claro um princípio básico de sua
362

profissão: “não é tarefa de um soldado ser o juiz de seu comandante-em-chefe em Chefe.


Que a História ou o Todo-Poderoso faça isso” (BS, 15, p. 509). Para o militar, não havia
nenhum questionamento possível sobre suas ações, afinal, o próprio Führer havia
declarado para ele: “Não posso exigir que meus generais entendam minhas ordens, mas
exijo que as sigam” (BS, 15, p. 308). Não havia espaço para entender ou questionar por
que não havia espaço para o raciocínio e a reflexão, apenas para a obediência irrestrita.

Para Karl Dönitz também não havia dúvidas: sua nomeação para seu cargo na
marinha representava uma ordem que ele tinha que obedecer, “tal como tinha de obedecer
a todas as outras ordens militares, a não ser que por motivos de saúde não pudesse fazê-
lo”. Ele acreditava que poderia ser útil à marinha alemã, e, “naturalmente” aceitou “esse
comando com convicção interior. Qualquer outra coisa teria sido deserção ou
desobediência” (BS, 13, p. 299). O caso de Dönitz é interessante para analisar a questão
da obediência justamente porque ele próprio faz uma divisão de suas responsabilidades
por conta da diferenciação de suas funções ao longo dos anos. Sendo assim, para o
almirante, enquanto ele era um soldado, ele só podia obedecer a ordens. No entanto,
quando Hitler morreu e ele se tornou o chefe de Estado, então, as decisões eram somente
suas. Dönitz se encontra, portanto, nos dois lados do espectro: primeiro, o que obedece,
e, depois, o que manda. Ele explica:

Na primavera de 1945 eu não era chefe de Estado; eu era um soldado.


Continuar a luta ou não continuar a luta foi uma decisão política. O chefe do
Estado queria continuar a luta. Eu, como soldado, tive que obedecer. É
impossível que, em um Estado, um soldado declare: ‘Continuarei a lutar’,
enquanto outro declara: ‘Não continuarei a luta’. […] Portanto, a própria
existência do povo alemão neste último período difícil dependia acima de tudo
dos soldados que continuaram tenazmente até o fim. […] O mesmo princípio
básico – salvar e preservar a população alemã – me motivou no inverno a
enfrentar a amarga necessidade e continuar lutando (BS, 13, pp. 307-308)

Essa divisão estava tão clara para ele, que Dönitz sequer enxergava o Terceiro
Reich como uma ditadura militar: “Não se pode dizer ‘ditadura militar’. Não era uma
ditadura. Havia um setor militar e um setor civil, e ambos os componentes estavam unidos
nas mãos do Führer” (BS, 13, p. 321). O almirante estava, portanto, em perfeito
alinhamento com a declaração de um alemão ainda na década de 1930: “Vemos nele [no
Führer] o símbolo da força vital indestrutível da nação alemã, que em Adolf Hitler
adquiriu forma viva” (KERSHAW, 2001, p. 72). Nesses setores, bem separados, porém
unidos pelo Führer, Dönitz reitera que nenhum dos participantes tinha uma imagem
abrangente. “Em vez disso”, ele declara, “cada um tinha uma visão clara de seu próprio
departamento pelo qual era responsável. Uma imagem geral na mente de qualquer um
363

dos participantes está fora de questão. Só o Führer tinha isso” (BS, 13, p. 327). Apesar de
ser questionado pelo Coronel Pokrovsky como ele poderia “conciliar essas duas
declarações extremamente contraditórias” (BS, 13, p. 397), Dönitz não se abala: “Eu faria
exatamente a mesma coisa novamente hoje. Essa é a minha posição” (BS, 13, p. 344).

Colapso

No início de 1945, Hitler se desloca para o abrigo antiaéreo da Chancelaria do


Império, em Berlim. De acordo com Joachim Fest, o líder nazista possuía uma
“onipresente fobia” (FEST, 2005, p. 26), que se expressava desde 1933, e isso fez com
que sentisse a necessidade de construção de bunkers reforçados em diversos edifícios,
incluindo a Chancelaria, que passou por muitas reformas para a fabricação de túneis e
mais ambientes protegidos, como pode ser observado na Imagem 7. Mais de 90 células
de concreto estavam no andar térreo, conectadas ao bunker sob o salão de festas por um
corredor subterrâneo que possuía cerca de 80 metros (FEST, 2005, p. 27). Com o
andamento da guerra, Hitler continuou demandando ao arquiteto Albert Speer a
construção de mais adicionais de proteção no bunker, de modo que, somando todos os
cômodos, o andar subterrâneo continha 16 ambientes em 1945. Konrad Heiden, primeiro
biógrafo de Hitler, na década de 1930 “soube sintetizar numa expressão inesquecível a
essência do ‘Führer’ e de seu movimento, uma combinação de páthos, arrogância e
agressividade, descrevendo-os como ‘jactância em fuga’”. Com “o recolhimento de Hitler
na profundeza do bunker, de onde transmitia brados de vitória, parecia que aquela
observação, frequentemente tida como absurda, não era mais que a verdade” (FEST,
2005, p. 30).

Ao fim da guerra, o ambiente do bunker estava em estado deplorável, não


somente pela má iluminação e o odor insuportável de suor e urina, mas também pelas
péssimas condições de higiene e a falta de suprimento básicos, como a água potável. De
acordo com muitas testemunhas, “aquele ambiente apertado, de concreto e artificialmente
iluminado pesava sobre os ânimos” e até mesmo o fiel Joseph Goebbels evitava aqueles
locais para não se tornar vítima da “desolação reinante” (FEST, 2005, p. 31–32). Sendo
assim, não foi sem motivo que se chegou “à conclusão de que o cenário subterrâneo
contribuiu para as decisões irreais que foram tomadas, nas quais exércitos de fantasmas
eram convocados para operações de ataque que jamais aconteceram, e batalhas para
fechar o cerco eram deflagradas apenas na imaginação” (FEST, 2005, p. 32). Naquela
caverna a mais de 10 metros de profundidade todos eram afetados pelo clima de histeria
364

de Hitler. Enquanto muitos observadores se preocupavam com a condição de saúde do


antes decidido e imponente Führer, que naquele momento andava escorando nas paredes
do bunker para não cair, outros, mais desconfiados, “tinham a impressão de uma
caducidade dramaticamente simulada” porque Hitler passou a dar sinais de negligência.
Seus últimos momentos são descritos como a congruência entre o descaso pelos rumos
do país em uma guerra que já estava perdida e o descaso pela própria imagem. O “mito
do Führer” agora era apenas a lembrança localizada em um homem decadente: “seu
uniforme, até então impecável, apresentava manchas de restos de comida; nos cantos dos
lábios, havia migalhas de bolo; e sempre que segurava os óculos com a mão esquerda, ao
fazer um relato da situação, eles batiam de leve no tampo da mesa”. Ainda que a doença
de Parkinson tivesse se agravado consideravelmente nos últimos meses de sua vida,
Hitler garantiu a uma delegação de antigos combatentes: “mesmo que minha mão trema,
e mesmo se minha cabeça começar a tremer, meu coração jamais tremerá” (HITLER apud
FEST, 2005, p. 32).
365

Imagem 7121

O declínio do líder era nítido a todos os que o acompanhavam naqueles últimos


dias. Após dezenas de reuniões com o clima desesperador, nas quais os membros de seu
séquito observavam Hitler dar ordens para batalhões imaginários e alternar seus ânimos
entre a cólera e uma fragilizada – e descabida – esperança na vitória, com o passar do
tempo, o Führer finalmente aceitou a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial.
Quando decidiu que ia permanecer em Berlim e tirar sua vida, Hitler declarou que a guerra
estava acabada: “façam o que quiserem! Não tenho mais nenhuma ordem a dar” (HITLER
apud FEST, 2005, p. 82). Alguns homens ainda tentaram convencer Hitler a continuar
lutando, dentre eles, Keitel e Jodl, ainda que inutilmente. Keitel chegou a ter uma
discussão com o líder, afirmando que Hitler não poderia abandonar as Forças Armadas.
A resposta foi apenas a porta aberta para as ruas de Berlim: naquele momento, como
antes, não havia espaço para questionamentos no bunker. Keitel, ao sair, ainda disse a
Jodl: “é o colapso!” (KEITEL apud FEST, 2005, p. 84). De fato, aquele era o fim do
Terceiro Reich e o desmantelamento da Alemanha tal como se conhecia nos últimos anos.
Em seu último ato, em 30 de abril de 1945, Hitler cometeu suicídio e ordenou que seu
corpo fosse queimado, como apresentado em capítulo anterior. E seu “último desejo” foi
totalmente “destrutivo e desvenda, como um símbolo, a motivação dominante de sua
vida” (FEST, 2005, p. 164).

Como vimos no caso de Albert Speer, a maioria dos alemães já havia se


desencantado com a figura do Führer e estava ansiosa para que a guerra finalmente
acabasse. No entanto, para muitos, sobretudo para os soldados alemães, era imperativo
continuar lutando, de maneira até mesmo insensata, “para além das últimas forças, nos
escombros de um império que já era passado”. Esses homens, obedientes, não queriam se
entregar à morte. De acordo com Joachim Fest, “o que contribuía para justificar a
resistência, além da razão, não era só aquela noção enraizada de que tudo
verdadeiramente grande no mundo é legitimado apenas através da morte e do acaso”,
mas, além disso, “eles se sentiam nomeados ou até elevados à condição de atores
principais do último ato de uma tragédia histórica mundial; e eles haviam aprendido que
tragédias de tamanhas proporções emprestavam ao aparentemente absurdo um sentido
transcendente” (FEST, 2005, p. 93–94).

121
Planta do extenso sistema de bunkers sob o terreno da Chancelaria do Império. Imagem retirada de
(FEST, 2005, p. 28)
366

Desse modo, para muitos, a crença no nacional-socialismo e no direcionamento


do Führer ainda permaneciam latentes – até porque, como vimos, o Führer nunca errava.
E, se a existência no mundo estava pautada por uma guerra constante, se os alemães
estavam, desde sempre, correndo risco de vida, aquele era apenas mais um capítulo em
uma longa história de luta. E, por fim, muitos estavam conscientes de estarem vivendo
em um período extraordinário na história europeia, de maneira geral: “a ideia de viver em
uma época de ‘incêndios mundiais’ com finais trágicos fazia parte, digamos assim, do
equipamento básico” (FEST, 2005, p. 96). “E assim, o indivíduo caiu de um evento para
o outro”, disse Keitel, “como um homem cambaleando de uma coisa para outra sem se
tornar plenamente consciente e sem a capacidade de pensar sobre as coisas” (KEITEL
apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 165). Esse indivíduo cambaleante, ao fim e ao cabo, se
assemelha muito à imagem do próprio Führer nos corredores do bunker. Sobre a
atmosfera inebriante dos últimos dias, Keitel declara:

Sobre este esclarecimento, percebo que muitas ordens e notas que escrevi sobre
documentos encontrados e ordens que transmiti devem parecer
incompreensíveis para terceiros, para estranhos e principalmente para
estrangeiros. Para encontrar uma explicação para isso, devo dizer que você
tinha que conhecer o Führer, que você tinha que saber em que ambiente eu
trabalhei, dia e noite, durante anos; você não deve deixar de considerar
exatamente quais foram as circunstâncias em que esses eventos ocorreram.
Muitas vezes testemunhei aqui que queria dar expressão aos meus escrúpulos
e objeções, e o fiz. O Führer então avançava argumentos que lhe pareciam
decisivos e ele o fazia à sua maneira, devo dizer, contundente e convincente,
expondo as necessidades militares e políticas e fazendo sentir sua preocupação
com o bem-estar de seus soldados e sua segurança, bem como sua preocupação
com o futuro de nosso povo. Devo dizer que, por isso, mas também pela
emergência cada vez maior, militarmente falando, em que nos encontrávamos,
convenci-me e muitas vezes deixei-me convencer da necessidade e justificativa
de tais medidas. Assim, eu transmitia as ordens dadas e as promulgava sem me
deixar dissuadir por quaisquer possíveis efeitos que pudessem ter. Talvez isso
possa ser considerado uma fraqueza e talvez eu seja acusado da mesma culpa.
Mas, de qualquer forma, o que eu disse é a verdade. Durante o interrogatório
de Sir David, eu mesmo admiti e reconheci que muitas vezes tive sérios
conflitos de consciência e que muitas vezes me encontrei em uma posição em
que eu mesmo, de uma forma ou de outra, era capaz de extrair as consequências
dessas questões. Mas nunca me passou pela cabeça revoltar-me contra o chefe
de Estado e o Comandante Supremo das Forças Armadas ou recusar-lhe
obediência. No que me diz respeito, e como soldado, a lealdade é sagrada para
mim. Posso ser acusado de ter cometido erros, e também de ter mostrado
fraqueza ao Führer, Adolf Hitler, mas nunca se pode dizer que fui covarde,
desonroso ou infiel. Isto é o que eu tinha a dizer (BS, 11, pp. 26-27).

O que Keitel expressa nessa declaração é uma combinação de todo o acúmulo


da mentalidade militar na Alemanha nazista. Ainda que confrontado com evidências,
ainda que observando que Hitler acreditava, com justificativas raciais, que os alemães
mereciam sua própria ruína, ainda que consciente de que não havia mais esperança,
367

homens como Keitel com facilidade olhavam para o outro lado e se permitiam enxergar
apenas o que era sagrado para eles: a lealdade e a obediência que cabiam a um soldado.
Em meio ao colapso, para Keitel, a fatalidade maior não era os alemães que estavam
inutilmente morrendo em um front há muito tempo derrotado: a grande catástrofe era que
o líder ordenou que eles parassem de lutar. E ele, como os outros militares apartidários,
se viu em um impasse: obedecer, uma ação que quase fazia parte de seu organismo, tão
natural lhe parecia; ou, desobedecer e atender a uma outra demanda que sempre se
mostrou legítima e, em muitos sentidos, eterna: a urgência e a necessidade da luta. Se a
guerra era a lei da vida e o nacional-socialismo e Hitler eram o direcionamento de suas
existências, o fim da Segunda Guerra Mundial e a consequente queda do Terceiro Reich
deixou esses homens sem lugar no mundo. O que restava em Nuremberg para esses
soldados cansados era a reflexão por suas ações e a possível percepção da culpa pelos
crimes do regime nazista. A morte, talvez não percebessem ainda,122 fosse um alívio para
suas consciências.

122
Podemos nos questionar se Erich Raeder tinha essa percepção, já que, apesar de ter sido condenado à
prisão perpétua, solicitou ao tribunal que o veredito fosse substituído pela pena de morte.
368

Conclusão
És o que fizeste

Na verdade, nada estava acabado.


Pelo contrário, aos poucos,
tornava-se patente o que desaparecera já durante a ascensão de Hitler ao poder
e o que se perdera, irrevogavelmente, com sua morte.
De qualquer forma, muito mais do que era visível:
os mortos, os montes de escombros e os vestígios da devastação
espalhados pelo continente.
Possivelmente, um mundo.
Como acontece sempre durante os ocasos,
perde-se muito mais do que apenas o que é visível.
(FEST, 2005, p. 201–202)
369

Um canhão para matar um pardal

Em 26 de julho de 1946, dia 187 do tribunal, os Estados Unidos foram os


responsáveis por fazer os argumentos finais (summations) do caso da acusação. O
promotor Robert Jackson inicia seu discurso afirmando que naquele momento, após oito
meses de julgamento, era “impossível fazer mais do que delinear com traços ousados os
pontos vitais do registro louco e melancólico deste Julgamento, que viverá como o texto
histórico da vergonha e da depravação do século XX” (BS, 19, p. 397). Segue a
argumentação do promotor:

É comum pensar em nosso próprio tempo como estando no ápice da


civilização, a partir do qual as deficiências das eras anteriores podem ser vistas
com condescendência à luz do que se supõe ser ‘progresso’. A realidade é que,
na longa perspectiva da história, o século atual não ocupará uma posição
admirável, a menos que sua segunda metade redima a primeira. Esses vinte
anos no século XX serão registrados no livro dos anos como um dos mais
sangrentos de todos os anais. Duas Guerras Mundiais deixaram um legado de
mortos que é mais numeroso do que todos os exércitos engajados de alguma
forma que fizeram a história antiga ou medieval. Meio século nunca
testemunhou um massacre em tal escala, tais crueldades e desumanidades, tais
deportações em massa de pessoas para a escravidão, tais aniquilações de
minorias. O terror de Torquemada123 empalidece diante da Inquisição nazista.
Essas ações são os fatos históricos ofuscantes pelos quais as gerações
vindouras se lembrarão desta década. Se não podemos eliminar as causas e
impedir a repetição desses eventos bárbaros, não é uma profecia irresponsável
dizer que este século XX ainda pode conseguir trazer a ruína da civilização
(BS, 19, p. 397)

Reforçando a perspectiva de que a Alemanha precisava ser reintegrada ao


Ocidente (PRIEMEL, 2016), Jackson lembra que “como um tribunal militar, este tribunal
é uma continuação do esforço de guerra das nações Aliadas” e que “como tribunal
internacional, não está vinculado aos refinamentos processuais e substantivos de nossos
respectivos sistemas judiciário ou constitucional, nem suas decisões introduzirão
precedentes no sistema interno de justiça civil de qualquer país”. Com a união das duas
coisas, se constituindo em um Tribunal Militar e Internacional, Nuremberg então “se
eleva acima do provincial e transitório e busca orientação não apenas no direito
internacional, mas também nos princípios básicos da jurisprudência que são pressupostos
da civilização e que há muito encontram corporificação nos códigos de todas as nações”
(BS, 19, p. 398).

Os julgados, nas palavras de Jackson, representavam “um papel que se


encaixava em todos os outros” (BS, 19, p. 415). Tendo sido escolhidos por sua

123
Tomás de Torquemada (1420-1498), conhecido como “o Grande Inquisidor”, foi Inquisidor-Geral
espanhol, responsável pela cruzada contra judeus e muçulmanos convertidos na Espanha.
370

proeminência e representatividade, e, portanto, não por acaso, os réus pareciam ser a face
do Terceiro Reich: uma lista “composta por homens que desempenharam papéis
indispensáveis e recíprocos nessa tragédia” (BS, 19, p. 426). Entretanto, não é necessário
uma análise muito rigorosa para perceber que esses homens foram “selecionados de
maneira um tanto insincera principalmente por sua notoriedade (ou das organizações que
representavam)” (PRIEMEL, 2016, p. 405). Por esse motivo, partindo de preconceitos da
época – e que seguem sendo muito atuais –, os juízes, muitas vezes, julgaram esses
homens baseado no que acreditavam que aquela classe social representava. Nuremberg
foi, de maneira inédita, um tribunal que foi feito por vencedores, mas, de maneira regular,
com sentenças proferidas por homens comuns. Os juízes eram “normais e, portanto,
imprevisíveis e sujeitos a preconceitos”, demonstrando de muitas maneiras como “tais
tribunais para crimes de guerra são de pequeno valor real para se lidar com as transições
entre a guerra e a paz” (SMITH, 1979, p. 324).

De fato, Nuremberg tem sido visto, com relação ao aspecto legalista, de duas
formas: ou como uma história triunfante ou como um conto de fracasso. Como aponta
Kim Priemel, alguns pesquisadores reforçam o pioneirismo de Nuremberg e traçam uma
linha direta entre esse tribunal e outros tribunais internacionais, como o Tribunal de
Haia,124 “enquanto outros deploram a inconsequência de muitos vereditos, o abandono
quase instantâneo dos Aliados de seus próprios princípios ou, de forma mais geral, a
inaptidão da lei em lidar com a complexidade histórica” (PRIEMEL, 2016, p. 402). Ainda
que coloquemos essas duas visões em perspectiva, está claro que nenhuma delas “são
particularmente úteis para entender a formação e evolução do programa de julgamento
ou suas implicações para a justiça criminal internacional atual” (PRIEMEL, 2016, p. 402).

Pensando pelo lado positivo, é preciso ressaltar, como demonstra Bradley


Smith, que Nuremberg preveniu um sentimento de vingança no pós-guerra que poderia
ser ainda maior: “levando em consideração a atmosfera dos tempos, os sentimentos que
animavam as pessoas na época, é bem possível que as deliberações relacionadas com o
julgamento tenham evitado um banho de sangue”. Como vimos, o processo de
desnazificação não foi homogêneo e, em grande medida, foi marcado pela violência. “O
verão de 1945 não foi, para a maioria do povo europeu, uma época de tranquila reflexão”,

124
O Tribunal Internacional de Justiça é localizado no Palácio da Paz em Haia, nos Países Baixos, sendo
conhecido por Tribunal de Haia. É um órgão da justiça ligado à Organização das Nações Unidas (ONU)
fundado em 1945 com o objetivo de julgar casos relacionados à justiça internacional.
371

diz Smith, “e a única coisa que serviu de barreira à ação direta foi a perspectiva de que as
Grandes Potências tratariam da tarefa maior, mediante processo legal” (SMITH, 1979, p.
322). Era do interesse dos Aliados tentar manter minimamente a ordem naquele momento
após a Segunda Guerra Mundial. Mais ainda, parecia imperativo traçar linhas firmes e
claras do que era aceitável e do que não era aceitável nessa nova forma de guerra moderna.
E, assim, os conceitos de genocídio e de crime contra a humanidade aparecem como
aparatos discursivos e como ferramentas jurídicas.

Contudo, apesar dos esforços em prol de um processo justo e com o pressuposto


de um distanciamento das paixões daquele momento crítico da história mundial, em
diversas ocasiões, parecia que não eram os nazistas que estavam sendo julgados, e sim, a
Alemanha. A identificação da Alemanha como o país do nazismo fez com que a
absolvição da Alemanha fosse mais importante para muitos dos advogados de defesa em
Nuremberg, e, até mesmo, para muitos dos nazistas ali presentes, como vimos. Por anos
a fio observaríamos a mesma disputa narrativa iniciada em Nuremberg: os alemães não
podiam saber de nada por viverem em um Estado totalitário sob o domínio exclusivo de
Hitler e sem possibilidade de atuação versus a perspectiva de que Hitler era apenas o líder
de uma organização propositalmente desorganizada que contava com a ação de muitos
homens e mulheres. O debate já mencionado entre “intencionalistas” e “estruturalistas”
não ficou restrito à historiografia ou ao âmbito acadêmico: ele prevaleceu na cena pública.

Por outro lado, perdura o questionamento: qual era o objetivo de “estabelecer


essa espécie de sistema complicado para colher uma dúzia de sentenças de morte que se
poderiam ter conseguido com menos esforço e despesa, usando-se alguma forma de corte
marcial ou corte de ocupação?”. Como o juiz Parker disse sobre o caso de Fritzsche, o
dispendioso processo de Nuremberg foi “o mesmo que recorrer a um canhão para matar
um pardal” (PARKER apud SMITH, 1979, p. 323). Essa decepção quanto à efetividade
dos procedimentos parece inerente à compreensão de Nuremberg – que, para muitos,
pareceu ser a exceção e não a regra, “mais uma curiosidade do que um modelo”
(PRIEMEL, 2016, p. 41). Aos olhos do promotor Jackson, contudo, esse “sistema
complicado” era fundamental pelo seu papel, não tanto no presente, mas no futuro:

De uma coisa podemos ter certeza. O futuro nunca terá que perguntar, com
receio, o que os nazistas poderiam ter dito a seu favor. A história saberá que
tudo o que poderia ser dito, eles foram autorizados a dizer. Eles receberam o
tipo de Prova que eles, nos dias de seu pomposo poder, nunca deram a nenhum
homem.
Mas justiça não é fraqueza. A extraordinária imparcialidade dessas audiências
372

é um atributo de nossa força. O caso da Acusação, no final, parecia


inerentemente inatacável porque se apoiava fortemente em documentos
alemães de autenticidade inquestionável. Mas foram as semanas e semanas de
insistência neste caso, um após o outro dos réus, que demonstraram sua
verdadeira força. O fato é que o depoimento dos arguidos afastou qualquer
dúvida de culpa que, pela extraordinária natureza e magnitude destes crimes,
pudesse existir antes de eles falarem. Eles ajudaram a escrever seu próprio
julgamento de condenação.
Mas a justiça neste caso não tem nada a ver com alguns dos argumentos
apresentados pelos réus ou seus advogados. Não discutimos anteriormente e
não precisamos agora discutir os méritos de toda a sua filosofia obscura e
tortuosa. Não os estamos julgando pela posse de ideias desagradáveis. É seu
direito, se quiserem, renunciar à herança hebraica na civilização da qual a
Alemanha já fez parte. Tampouco é da nossa conta que eles também
repudiaram a influência helênica. A falência intelectual e a perversão moral do
regime nazista poderiam não ter sido motivo de preocupação para o direito
internacional se não tivesse sido utilizado para acelerar o Herrenvolk através
das fronteiras internacionais. Não são seus pensamentos, são seus atos
explícitos que consideramos crimes. Seu credo e ensinamentos são
importantes apenas como evidência de motivo, propósito, conhecimento e
intenção (BS, 19, p. 399, grifos meus)

Os nazistas foram autorizados a usarem sua própria voz para sua defesa. No
entanto, fornecer o palco para que esses homens pudessem explicar suas motivações não
os exime de culpa alguma. Pelo contrário, para os Aliados, isso fazia com que o caso da
acusação se tornasse ainda mais substancial. As justificativas dos réus, pautadas nesse
substrato cultural comum (INGRAO, 2015), nesse passado estabelecido na promessa de
um mundo a ser feito ariano (LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002), tornaram os
crimes ainda mais perceptíveis para a promotoria. Foi na rejeição dessa ideologia pelo
mundo exterior que os nazistas perderam a força argumentativa. Afinal, naquele
momento, e até mesmo durante o Terceiro Reich, existia uma “pressão exercida pelo
mundo exterior sobre os regimes totalitários — pressão que não é possível ignorar
totalmente mesmo atrás da ‘cortina de ferro’” (ARENDT, 1989, p. 392–393). Ainda
profundamente influenciados por essa “cortina de ferro”, os nazistas tiveram sua chance
de apresentar quem eram e por que eram como eram. Essa apresentação, entretanto,
serviu como evidência dos perigos de uma ideologia pautada em um propósito de
construção de um novo mundo por bases raciais. E, por isso, tanto a ideologia quanto os
atos advindos dessa ideologia, se tornaram criminosos – disso, não há dúvida.

Com a palavra: os nazistas

Em 31 de agosto de 1946, dia número 216 do Julgamento de Nuremberg, os


réus realizaram seus discursos finais perante o tribunal. Diferentemente das declarações
de culpado ou inocente no início dos procedimentos, neste momento, os nazistas eram
autorizados a, de fato, proferirem discursos. Esses homens, repreendidos ao longo de todo
373

o julgamento por expressarem suas opiniões, utilizaram esse palco final como o momento
de oferecer ao mundo uma declaração que, finalmente, não seria interrompida. Essas
últimas narrativas apenas reforçam a postura que os réus tiverem ao longo dos
procedimentos e tornam a definição dos arquétipos da tese ainda mais perceptíveis. Nesse
momento, essas categorias são percebidas até mesmo pela promotoria. Nas palavras de
Robert Jackson, “há certas linhas de defesa comuns a tantos casos que merecem alguma
consideração” (BS, 19, p. 419). A seguir, iremos caminhar em meio a essas narrativas e
oferecer alguma consideração sobre essas linhas de defesa.

Defensores fiéis

Hermann Göring: “Meio militarista e meio gângster”125

Hermann Göring abre os discursos dando o tom para os próximos nazistas:


Nuremberg não era um julgamento justo. O marechal afirma que “as declarações feitas
sob juramento pelos réus foram aceitas como absolutamente verdadeiras quando
poderiam servir para apoiar a acusação”, e, “inversamente, as declarações foram
caracterizadas como perjúrio quando refutaram a acusação” (BS, 22, p. 366). Os motivos
políticos do tribunal estavam claros para ele e saltavam aos olhos quando a promotoria
tentava provar “que tudo foi desejado e pretendido desde o início de acordo com uma
sequência deliberada e uma conexão ininterrupta”. Para Göring, o crime de conspiração
“é uma concepção errônea, totalmente desprovida de lógica, e que algum dia será
retificada pela história”. De fato, ele não estava errado. O debate entre “intencionalistas”
e “estruturalistas”, abordado na Introdução, demonstra como a percepção de um plano de
conspiração nazista que pudesse ser traçado desde os primórdios do movimento era, no
mínimo, simplista.

Como o “grande valentão” em Nuremberg que tentava intimidar os outros


julgados a seguirem sua linha de frente unida, Göring segue com suas críticas ao tribunal,
declarando que, caso os nazistas fossem condenados, o povo alemão não poderia ser
culpabilizado como um efeito colateral. Afinal, “o povo alemão depositou sua confiança

125
Os subtítulos ao lado dos nomes dos réus nessa seção representam a forma como os nazistas foram
descritos pelo promotor estadunidense Robert Jackson na sua conclusão (summations) do caso da acusação.
Em alguns poucos casos foi necessária uma pequena adaptação de linguagem, quando Jackson descrevia
os crimes sem inserir necessariamente um adjetivo para o indivíduo. Julgo que essas mínimas adaptações
não prejudiquem os valiosos insights que essas percepções da acusação nos trazem. O discurso original
pode ser consultado em: BS, 19, pp. 415-417.
374

no Führer e, sob seu governo autoritário, não teve influência nos acontecimentos”. O
“povo, leal, abnegado e corajoso, lutou e sofreu durante a luta de vida ou morte que
irrompeu contra sua vontade” e fizeram tudo isso sem ter “conhecimento dos graves
crimes que se tornaram conhecidos hoje”. Estava claro, portanto, que “o povo alemão está
livre de culpa” (BS, 22, p. 368).

Mantendo a perspectiva de que o Terceiro Reich era apenas uma das formas
possíveis de organização política, Göring, como um bom defensor fiel, por fim, declara:
“defendo as coisas que fiz (I stand up for the things that I have done), mas nego
enfaticamente que minhas ações tenham sido ditadas pelo desejo de subjugar povos
estrangeiros por guerras, assassiná-los, roubá-los ou escravizá-los ou cometer atrocidades
ou crimes”. Esse homem que, nas palavras de Gustave Gilbert, possuía “valores
medievais” recorda ao tribunal que o seu código de conduta era, e sempre seria, a honra
e a lealdade. Disso, ele não abria mão: “O único motivo que me guiou foi meu amor
ardente por meu povo, sua felicidade, sua liberdade e sua vida. E para isso convoco o
Todo-Poderoso e meu povo alemão para testemunhar” (BS, 22, p. 368).

É válido ressaltar que não foi apenas Jackson que definiu Hermann Göring
como um gângster. Essa também era a visão de outros participantes do julgamento, como
um representante do Ministério do Exterior britânico que, durante os interrogatórios,
descreveu o réu como um “gângster despudorado e não arrependido” (SMITH, 1979, p.
193). Como vimos, seu caso era o mais proeminente da acusação, afinal, ele era o Homem
Número Dois do Reich. Consciente da representatividade de seu caso, durante os
procedimentos, e, até o final, não parecia haver outro recurso para Göring “senão o de
assumir o papel de defensor do regime e usar seus talentos para manter em ordem os
outros réus e arrumar, com isso, a melhor defesa possível do sistema nazista” (SMITH,
1979, p. 193–194). E assim esse homem “adepto do realismo político acima de tudo”
(SMITH, 1979, p. 192) recebeu a esperada sentença de morte. Göring foi capaz,
entretanto, de ditar o final de sua vida, assim como havia ditado sua trajetória ao longo
do regime nazista. O Homem Número Dois, assim como o Homem Número Um, se
suicidou antes que os Aliados conseguissem assassiná-lo. Ao fim, Göring continuava
seguindo os passos de Adolf Hitler e, mesmo na morte, permaneceu no segundo lugar.

Julius Streicher: “O venenoso vulgar”

Possivelmente por estar consciente de como era desprezado pelos outros réus e
375

pelos membros do tribunal, Julius Streicher mantém sua última declaração focada nas
acusações individuais e específicas de seu caso e reafirmando que não era responsável
pelo extermínio. Ele era apenas um articulador das massas que pregava pelo sionismo.
Afinal, em sua perspectiva, ele não havia cometido crime algum, nem como Gauleiter e
nem como autor político. Suas últimas palavras são uma defesa pela sua atuação, que, até
aquele momento, ele considerava justa e correta. Streicher conclui seu caso argumentando
que não tinha nenhum pedido a fazer para si: “Tenho um [pedido] para o povo alemão de
onde venho. Meritíssimo, o destino deu-lhe o poder de pronunciar qualquer julgamento.
Não pronuncie um julgamento, Meritíssimo, que imprimiria a marca da desonra na testa
de uma nação inteira” (BS, 22, p. 387). Como um defensor fiel, Streicher estava disposto
e pronto para receber o maior dos castigos se isso significasse que a Alemanha saísse ilesa
daquele julgamento.

Estava claro para todos que Streicher “não se sentou no banco dos réus em
Nuremberg em razão de seu poder, mas por causa de sua notoriedade”. Definido por
Rebeca West como “um velho obsceno – da ‘espécie que causa distúrbios em lugares
públicos”, o caso de Streicher, de acordo com Smith, foi caracterizado pelo preconceito
com relação à sua figura (SMITH, 1979, p. 218). O réu representava o antissemitismo
pornográfico e militante do regime nacional-socialista e, além de tudo, era “uma criatura
extremamente desagradável e um tanto louca” (SMITH, 1979, p. 219). A força de seu
caso estava no próprio Streicher e, muito mais pela sua reputação do que por seus crimes
individuais, o réu foi condenado à morte e executado.

Alfred Rosenberg: “O sumo sacerdote intelectual da ‘raça superior’”

Para o ideólogo do nacional-socialismo, Alfred Rosenberg, suas ideias


beneficiavam a Alemanha e toda a Europa. Em seu discurso final, o réu segue com suas
racionalizações “Rosenbergianas” em defesa da sua proposta ideológica: “o nacional-
socialismo representava a ideia de superar a luta de classes que estava desintegrando o
povo e unir todas as classes em uma grande comunidade nacional” (BS, 22, p. 383). Ele
mantém ainda que, como ideólogo, não possuía nenhuma relação com e nem
conhecimento sobre o extermínio. Por esse motivo, ele conclui seu argumento afirmando
categoricamente que: “o serviço honesto para esta ideologia, considerando todas as
deficiências humanas, não foi uma conspiração e minhas ações nunca foram um crime”
(BS, 22, p. 383). Para esse defensor fiel e grande intelectual incompreendido, defender o
racismo não poderia ser considerado um crime – e, as consequências dessa ideologia não
376

eram de sua responsabilidade. Como o promotor estadunidense Robert Jackson afirma,


“sua filosofia confusa também acrescentou tédio à longa lista de atrocidades nazistas”
(BS, 19, p. 416).

Rosenberg, o único réu em Nuremberg que “se declarava pensador”, utilizou


de toda oportunidade discursiva para enfeitar-se “com as penas de pavão de filósofo do
movimento nazista” (SMITH, 1979, p. 208). A dicotomia de sua atuação, como ministro
e como ideólogo, tornou seu caso mais complexo – mas, ainda assim, resultou em uma
condenação fácil para o tribunal. Como ministro, Rosenberg não tinha exculpação. Como
ideólogo de um movimento responsável por um dos maiores genocídios da Modernidade,
menos ainda. Por fim, o nazista foi condenado à morte e executado junto com os outros
membros de sua categoria de defensores fiéis.

Arthur Seyss-Inquart: “A ponta de lança da quinta coluna austríaca”

Apesar de seu caráter quase desimportante e esquecível em Nuremberg, Arthur


Seyss-Inquart faz um longo discurso final em defesa de sua causa, explicando os “motivos
pessoais e considerações” para suas ações (BS, 22, p. 402). Abordando detalhadamente
seu papel na anexação da Áustria e no processo de ocupação dos Países Baixos, Seyss-
Inquart mantém a postura de não apresentar nenhum arrependimento, afinal, ele era “a
favor da unidade de todos os alemães, independentemente da forma de governo que a
Alemanha tivesse”. Oferecendo um serviço “incondicional” para seu país, esse defensor
fiel retoma os ensinamentos de Walther Rathenau (1867-1922), ministro das Relações
Exteriores da Alemanha durante a República de Weimar: “Nações corajosas podem ser
quebradas, mas nunca dobradas” (BS, 22, p. 403). O réu conclui sua argumentação com
uma provocação sobre o papel de Adolf Hitler em sua vida e em sua história:

E agora provavelmente ainda devo uma explicação sobre minha atitude para
com Adolf Hitler. Visto que ele via a medida de todas as coisas apenas em si
mesmo, ele se mostrou incapaz de cumprir uma tarefa decisiva para o povo
alemão, ou melhor, para a própria Europa, ou foi um homem que lutou, embora
em vão, até o ponto de cometer excessos inimagináveis, contra o curso de um
destino inexorável? Para mim, ele continua sendo o homem que fez da Grande
Alemanha um fato na história alemã. Eu servi este homem. E agora? Hoje não
posso gritar ‘Crucifique-o’, porque ontem gritei ‘Hosana’ (BS, 22, p. 405).

Sendo assim, para Seyss-Inquart, Hitler fora o homem que tornara o sonho
ariano realidade. E, por isso, ele não conseguia lhe virar as costas. As últimas palavras
de Seyss-Inquart em sua defesa foram sobre “o princípio pelo qual sempre agi e ao qual
aderirei até meu último suspiro: ‘Eu acredito na Alemanha’” (BS, 22, p. 405). Por fim, o
377

nazista foi condenado por “um argumento muito mal costurado e bem pouco convincente”
(SMITH, 1979, p. 256) e por sua representatividade da destruição da Europa Ocidental
pelos nazistas. Seyss-Inquart foi condenado à morte gritando “Hosana”, esse grito de
adoração em reconhecimento do caráter messiânico de Jesus Cristo – ou, nesse caso, de
Adolf Hitler. Seu princípio norteador fora, e continuara sendo, a crença na Alemanha
como uma nação superior à todas as outras, e, por isso, merecedora de dominar o resto da
Europa.

Diplomatas da velha guarda

Franz von Papen: “O agente piedoso de um regime infiel”

Franz von Papen, em seu último discurso, não poupa esforços para reforçar a
imagem que o tribunal havia construído sobre sua figura: ele “era homem muito mundano
e aristocrático para que o confundissem com a massa dos camisas-parda” (SMITH, 1979,
p. 302). Como um bom diplomata da velha guarda, ele apela para o seu inerente
patriotismo naquela época tão difícil para a Alemanha. “Naqueles dias de infortúnio do
meu país”, diz Papen, “eu acreditava, como um alemão responsável, que não tinha direito
de ficar inativo à margem” (BS, 22, p. 400). Por esse motivo, ele precisava agir, na
esperança vã de que seria possível colocar freios no nacional-socialismo e em Adolf
Hitler. Entretanto, naquele momento estava claro que “o poder do mal era mais forte que
o poder do bem e levou a Alemanha inevitavelmente à catástrofe”. Para Papen isso não
era motivo para “condenar aqueles que mantiveram a bandeira da fé hasteada na luta
contra a descrença” e não dava direito a Sir Hartley Shawcross de dizer com desprezo
que o diplomata “preferiu reinar no Inferno a servir no Céu” (BS, 22, p. 401).

Era imperativo, naquele momento, “defender valores transcendentais” para a


reconstrução da Europa. E por isso, homens como ele deveriam ser valorizados, e não
condenados. Afinal de contas, para Papen, “o único fator decisivo” para todas as suas
ações foi “o amor ao país e às pessoas”, e, por isso, estava claro que “não foi o regime
nazista, mas a pátria que servi”. O réu declara categoricamente: “Quando examino minha
consciência, não encontro nenhuma culpa onde a Acusação a procurou e afirma tê-la
encontrado. Mas onde está o homem sem culpa e sem falhas?” (BS, 22, p. 401). Como
não era possível culpar o povo alemão por ter confiado em Hitler, também não era
possível culpá-lo. Papen finaliza seu discurso com uma declaração impactante:

Este Tribunal Superior enfrenta esta tarefa infinitamente difícil sem ainda ter
378

ganho distância suficiente no tempo da catástrofe para poder reconhecer as


causas e resultados dos desenvolvimentos históricos em suas verdadeiras
conexões.
Somente se este Supremo Tribunal reconhecer e admitir a verdade histórica, o
significado histórico deste Tribunal será cumprido. Só então o povo alemão,
apesar da destruição de seu Reich, não apenas compreenderá seus erros, mas
também encontrará forças para sua futura tarefa (BS, 22, p. 402).

Em alguns pontos, Papen de fato tinha razão. Nuremberg estava julgando


homens sem nenhum espaço temporal para garantir que os ânimos fossem menos
exaltados. Sua posição na cadeia de comando e seu pedigree de aristocrata garantiram
sua inocência. Como lembra Smith, “a despeito de toda a sua flexibilidade cínica, Papen
não era um nazista, mas um dos aristocratas que pensavam poder controlar os nazistas e
tirar, no negócio, todo o possível proveito” (SMITH, 1979, p. 303). O papel que
desempenhou fez com que Papen fosse visto como menos importante e menos perigoso
que homens como Ernst Kaltenbrunner – ainda que, sem Papen, Hitler provavelmente
não tivesse conseguido ascender ao poder e destruir completamente a República de
Weimar. Por fim, como bem pontua Smith, se compararmos seu caso com o de Fritz
Sauckel, por exemplo, “é a velha história de que o criminoso violento das ruas, o
marginal, é condenado, e o vilão sutil e bem-vestido escapa ao castigo. É lamentável, mas
também é difícil censurar o Tribunal de Nuremberg por ter feito exatamente aquilo que,
em quase toda parte, se aceita como justiça” (SMITH, 1979, p. 310).

Konstantin von Neurath: “O diplomata antiquado”126

Konstantin von Neurath ofereceu a menor defesa de todos os nazistas em suas


últimas palavras. O réu estava convencido de que “a verdade e a justiça prevalecerão
perante este Tribunal Superior sobre todo o ódio, calúnia e deturpação” e, sobre sua
própria vida, acrescenta que esta foi “consagrada à verdade e à honra, à manutenção da a
paz e à reconciliação das nações, à humanidade e à justiça”. Ele estava, portanto, com “a
consciência tranquila”, sobretudo perante a história e o povo alemão, e mantinha que sua
atuação tinha permanecido no campo já conhecido da política conservadora. Neurath não
era, enfim, nazista: era apenas um antigo conservador. Por fim, ele conclui que, caso fosse
considerado culpado, ele poderia “suportar até mesmo isso e tomá-lo como último
sacrifício em nome do meu povo, para servir a quem foi a substância e o propósito da
minha vida” (BS, 22, p. 408).

126
Jackson utiliza a expressão “the old school diplomat”, ao passo que Gustave Gilbert utiliza “gentleman
of the old school” para descrever Franz von Papen. A adaptação dessas duas expressões acabou sendo o
nome que escolhi para o arquétipo desses homens: diplomatas da velha guarda.
379

Seu caso não convenceu suficientemente os juízes: “Neurath pareceu um


homem idoso e desarmado, atormentado e maltratado muito além de qualquer limite
sensato” (SMITH, 1979, p. 243). Ao contrário de Franz von Papen, a linha de defesa
desse diplomata da velha guarda não lhe rendeu a absolvição. Neurath foi condenado à
15 anos de prisão, dos quais cumpriu apenas sete, sendo libertado por problemas de saúde
e por sua idade já avançada. O nazista faleceu em 1956, dez anos depois de sua
condenação, com longos 83 anos de idade.

Negacionistas relapsos

Ernst Kaltenbrunner: “O grande inquisidor”

O maior representante da categoria negacionistas relapsos, Ernst


Kaltenbrunner, utiliza seu último discurso para reforçar sua ausência de responsabilidade.
Para o nazista, sua única culpa dizia respeito às suas obrigações mediante sua pátria:
“Deveria eu ter fugido da responsabilidade naquele momento, fingindo estar doente, ou
era meu dever lutar com todas as minhas forças para que essa barbárie sem paralelo fosse
detida? Essa é a única coisa a ser decidida aqui como minha culpa” (BS, 22, p. 380).
Afinal de contas, mesmo quando descobriu sobre os crimes, ele não poderia se colocar
“como juiz deles e que, de fato, nem mesmo este Tribunal aqui estará em condições de
pedir a expiação desses crimes” (BS, 22, p. 380). Suas ações, que eram vistas como crimes
pela acusação, eram pautadas em sua obediência e no seu dever inegociável como
membro da comunidade germânica. Caso fosse considerado culpado, isso só poderia ser
uma decorrência “de um destino que é mais forte do que eu e que me carrega consigo”.
Kaltenbrunner, por fim, faz questão de ressaltar, assim como em seus interrogatórios, que
ele não era o representante de Himmler ou de Heydrich – nem naquele tribunal e nem no
Terceiro Reich. Nem ele e nem os outros indivíduos honrados da SS eram culpados por
acreditarem em um ideal de defesa da Alemanha. Afinal, “como eu, eles acreditavam que
estavam agindo de acordo com a lei” (BS, 22, p. 380). Como a lei era o que Hitler decidia,
eles nunca poderiam ter agido de outra forma, e, por fim, suas ações estavam dentro da
nova concepção de atuação do povo ariano. Eles não estavam errados e nem poderiam
estar. O negacionismo de Kaltenbrunner não se modifica nesse último discurso,
entretanto, ele demonstra um pequeno resquício de fidelidade à sua organização, a SS,
algo que, até então, não havia demonstrado.

Para Smith, “o destino de Kaltenbrunner estava selado desde o começo do


380

julgamento, ou mesmo antes disso” (SMITH, 1979, p. 204). O representante de Himmler,


Heydrich e da SS em Nuremberg não tinha muita escapatória e sua linha de defesa
prejudicou ainda mais o seu caso. Seu negacionismo não só não convenceu os juízes,
como também o transformou em um homem digno de risadas. Um dos advogados de
defesa chegou a definir esse réu com sua enorme cicatriz no rosto como “o homem sem
assinatura [der Man ohne Unterschrift]” (SMITH, 1979, p. 206). Kaltenbrunner não
conseguiu se estabelecer como o não-representante do extermínio e a condenação parecia
clara para todos: o réu foi sentenciado à morte e executado.

Fritz Sauckel: “O maior e mais cruel escravagista desde os faraós do Egito”

Sauckel era o único operário entre os réus e suas origens fazem parte de sua
argumentação. Em seu último discurso, ele reforça que tinha consciência de onde vinha:
“Venho de um nível social completamente diferente dos meus camaradas acusados
comigo. Na minha natureza e pensamento, permaneci um marinheiro e um trabalhador”
(BS, 22, p. 396). Apesar da aparente humildade, Sauckel não poupa palavras, tendo uma
das narrativas mais longas desse momento final dos réus em Nuremberg. Defendendo sua
adesão ao nacional-socialismo pelo seu programa partidário que olhava para os
trabalhadores, Sauckel afirma que os princípios do movimento não tinham “nenhuma
contradição com as leis da humanidade” e que não reconheceu, a princípio, “nenhuma
ditadura arbitrária ou tirania no princípio de líderes e seguidores leais”. Em sua
perspectiva, seu erro havia sido o excesso de confiança em Hitler, alguém que ele
venerava: “Eu o conhecia apenas como o defensor dos direitos do povo alemão à
existência e o via como o homem que era gentil com trabalhadores, mulheres e crianças
e que promovia os interesses vitais da Alemanha”. Infelizmente, “o Hitler deste
Julgamento eu não pude reconhecer. Talvez minha solidão e submersão no mundo da
minha imaginação e do meu trabalho fossem outro defeito” (BS, 22, p. 397).

O Führer que lhe fora apresentado era alguém cruel que cometeu atrocidades
nunca vistas na história mundial. Entretanto, ele, como um homem trabalhador, só se
preocupava com seus funcionários e seus camaradas da mesma classe social, de modo
que ele não poderia saber de nada. Aos seus olhos, empregar trabalhadores estrangeiros
era uma necessidade, e não uma forma de escravidão. Afinal, a escravidão era algo que
nenhum alemão toleraria. Esse negacionista relapso segue se apresentando como um
homem simples e que desconhecia os princípios básicos do regime do qual fazia parte.
Por fim, Sauckel declara: “eu mesmo estou preparado para enfrentar qualquer destino que
381

a Providência tenha reservado para mim, assim como meu filho, que foi morto na guerra”.
Esse trabalhador finaliza seu discurso com um apelo: “Deus proteja meu povo, a quem
amo acima de tudo, e que o Senhor Deus abençoe novamente o trabalho dos trabalhadores
alemães, aos quais toda a minha vida e esforço foram dedicados, e que Ele dê paz ao
mundo” (BS, 22, p. 399).

Para Smith, o caso de Sauckel é um dos que mais reforçam o argumento da


influência do preconceito de classe dentro do tribunal:

Ao que tudo indica, parte da vulnerabilidade de Sauckel resultou do fato de ter


cometido atrocidades tanto no Ocidente, como no Oriente; também parece que
a classe de que provinha não era bem-vista na Corte, e que possuía uma
personalidade e um estilo pouco simpáticos. Sauckel era inequivocamente um
homem vulgar, um homem do povo, a tal ponto que um dos advogados de
defesa observou que o embaraçava e embaraçava seus colegas o alemão cru e
rude com que Sauckel se exprimia em seus depoimentos. Era como se os
advogados alemães se envergonhassem de que fosse revelado aos letrados que
o Reich confiara poder a uma pessoa de origem tão baixa e tão desprovida de
educação (SMITH, 1979, p. 226).

Não há dúvidas quanto ao papel desempenhado por essas questões de classe no


destino de Sauckel. O nazista foi sentenciado à morte, enquanto Albert Speer, que
desempenhou uma atuação muito similar na alocação de trabalhadores estrangeiros, foi
condenado à prisão. É claro que Speer, consciente de sua vantagem pautada em um
preconceito elitista, apontou o dedo para Sauckel durante sua defesa para que seu caso
fosse visto com olhos mais brandos (PRIEMEL, 2016, p. 139). Contudo, Smith
argumenta que “seria difícil sustentar que esses defeitos apareceram mais
acentuadamente em Nuremberg do que em qualquer tribunal” (SMITH, 1979, p. 233).
Dessa maneira, é importante sempre levarmos em consideração que esses juízes eram
homens de seu tempo, e que, “se ocorreu injustiça, isso deveu-se menos aos males da
justiça dos vencedores do que aos efeitos do preconceito social do dia a dia” (SMITH,
1979, p. 324).

Walther Funk: “O [organizador] da garantia mais bizarra da história do setor


bancário”

Em suas últimas palavras, Walther Funk apela para a noção de lealdade à sua
pátria, atrelada à legalidade do movimento nacional-socialista. A Alemanha estava,
sobretudo durante a guerra, ameaçada “ao extremo”, e ele sabia que “na guerra, o Estado
depende absolutamente da lealdade e fidelidade de seus oficiais”. Funk era um desses
homens leais e fiéis. O que prevalece neste momento de sua narrativa, assim como durante
382

os procedimentos, é a negação: “Esses atos criminosos me enchem, como todo alemão,


de profunda vergonha. Examinei minha consciência e memória com o maior cuidado e
disse ao Tribunal franca e honestamente tudo o que sabia e não escondi nada” (BS, 22, p.
387). Os campos de concentração não eram conhecidos por ninguém, muito menos por
ele, e, sobre isso, e sobre o extermínio, ele só havia tomado conhecimento durante o
tribunal. Funk declara: “Se eu soubesse desses crimes, Meritíssimos, não estaria sentado
no banco dos réus hoje, podem estar convencidos disso. Nesse caso, a sepultura teria sido
melhor para mim do que esta vida atormentada, esta vida cheia de suspeitas, calúnias e
acusações vulgares”. Como “nenhum ser humano jamais perdeu a vida” por suas ações e
por medidas decretadas por ele, não havia justificativa para suas acusações. Ele conclui:

A vida humana consiste em erro e culpa.


Eu também cometi muitos erros; eu também me deixei enganar em muitas
coisas e francamente reconheço, admito, que me deixei enganar com muita
facilidade e, em muitos aspectos, fui muito despreocupado e muito crédulo.
Nisso vejo minha culpa, mas me considero livre de qualquer culpa criminal em
que supostamente incorri no cumprimento de minhas obrigações oficiais. A
esse respeito, minha consciência está tão limpa hoje quanto no dia em que
entrei neste tribunal pela primeira vez há dez meses (BS, 22, p. 388).

A culpa desse negacionista relapso, portanto, era apenas a nível de sua


ignorância e da desimportância de seu cargo. Suas justificativas pautadas nesse
negacionismo incoerente não sustentaram uma sentença menor. Como Smith pontua,
“parece ter sido muito difícil para qualquer pessoa em Nuremberg levar a sério aquele
homem pequeno, mole e gordo”. O réu era alguém que tinha uma “aparência desprovida
de importância” (SMITH, 1979, p. 223) e que, de fato, se comparado a outros réus em
Nuremberg, não era tão proeminente. Ao contrário do outro banqueiro Hjalmar Schacht,
no entanto, Funk não conseguiu escapar de uma penalidade severa. O nazista foi
condenado à prisão perpétua – ainda que tenha sido liberado por motivos de saúde em
maio de 1957, falecendo três anos depois.

No-man x Yes-man

Hjalmar Schacht: “A fachada de respeitabilidade engomada”

O grande resistente em Nuremberg, o banqueiro Hjalmar Schacht, permanece


se apresentando em suas palavras finais como o maior opositor do regime nazista. O No-
man afirma que, por sua oposição às políticas de Hitler serem reconhecidas na Alemanha
e em todo o mundo, depois da guerra, ele era, sem dúvida, “um homem livre de culpa”.
Por sua postura fortemente antinazista, ele não poderia ser considerado como pertencente
383

à mesma categoria que “os personagens lamentáveis e quebrados” presentes no tribunal


(BS, 22, p. 389).

Seu erro político havia sido, infelizmente, “não perceber a extensão da natureza
criminosa de Hitler a tempo”. Que ficasse claro, entretanto, que ele nunca, sob nenhuma
hipótese, havia manchado suas mãos “com um único ato ilegal ou imoral”. Afinal, “o
terrorismo da Gestapo não me assustava. Pois o terrorismo deve sempre fracassar diante
do apelo à consciência” (BS, 22, pp. 389-390). O nazista antinazista era, portanto, a voz
da consciência da Alemanha dizendo “não” a Adolf Hitler. Schacht finaliza seu discurso
com uma reflexão: “Estou abalado nas profundezas da minha alma pelo sofrimento
indescritível que tentei evitar com todos os meus esforços pessoais e com todos os meios
possíveis, mas que no final não consegui evitar – não por minha culpa”. Como nem
mesmo o fato de ele não ter conseguido evitar aquela tragédia poderia ser considerada
sua culpa, Schacht declara categoricamente: “portanto, minha cabeça está erguida e sou
inabalável na crença de que o mundo se recuperará, não pelo poder da violência, mas
apenas pela força do espírito e pela moralidade das ações” (BS, 22, p. 390).

Felix Frankfurter talvez tenha a melhor definição para essa personalidade


curiosa: Hjalmar Schacht era seu “vilão preferido do regime nazista” (FRANKFURTER
apud SMITH, 1979, p. 287–288). A apelação de seu caso, dentro da linha escolhida de se
apresentar como resistente, surtiu efeito. Sir Geoffrey, um dos juízes, chamou atenção
para o fato de que “diferentemente dos outros réus, Schacht não era um rufião, mas um
banqueiro e, por conseguinte, deveria merecer atenção, pois era um ‘homem de
qualidade’” (SMITH, 1979, p. 296). Seu caso tinha, de fato, pouca plausibilidade jurídica.
De acordo com Smith, dificilmente um caso desse tipo “chegaria a um tribunal dos
Estados Unidos nos nossos dias” (SMITH, 1979, p. 302), e, no fim, Schacht, ao contrário
de seu sucessor Walther Funk, foi inocentado. Seu caso foi amparado por um certo apreço
que foi desenvolvido por sua figura ao longo dos procedimentos. Como Smith argumenta,
“vivemos num mundo em que foi possível para Hjalmar Horace Greeley Schacht ser
absolvido por uma corte inimiga, e isso talvez não seja mau sinal no que diz respeito à
capacidade de sobrevivência que tem os membros da raça humana” (SMITH, 1979, p.
302).

Joachim von Ribbentrop: “O vendedor de enganos”

O diplomata Joachim von Ribbentrop inicia seu testemunho afirmando que,


384

como o julgamento tinha o objetivo de “descobrir a verdade histórica”, o que ficava claro
com o fim dos procedimentos, era que era possível, “apelando a fórmulas jurídicas até
então desconhecidas e ao espírito de justiça”, de certa maneira, “fugir dos problemas
cardeais de 25 anos da mais grave história da humanidade” (BS, 22, p. 373). Sua crítica
ao nacional-socialismo, no entanto, permanece superficial. Negando a hipótese da guerra
de agressão conduzida pelos nazistas, Ribbentrop reforça que, na realidade, o Terceiro
Reich estava sendo profundamente incompreendido pelo tribunal. Afinal, “uma revolução
não se torna mais compreensível se for considerada do ponto de vista de uma
conspiração” (BS, 22, p. 375).

Curiosamente, o Yes-man de Nuremberg não utiliza suas últimas palavras para


defender o Führer. Percebe-se que, no final, ao lutar pela própria vida, o que
verdadeiramente importa é isso: a própria vida. Hitler estava morto. Ribbentrop, como
alguém que acreditava tanto no poder das mãos do destino, queria evitar este destino para
si. Por isso, ele precisava rejeitar os aspectos criminosos desse governo ao qual ele serviu
com tanta lealdade por tantos anos: “o destino fez de mim um dos expoentes dessa
revolução. Eu deploro os crimes atrozes que aqui se tornaram conhecidos e que maculam
esta revolução” (BS, 22, p. 375). E por isso, sua única conclusão quando olhava para trás,
para suas ações e desejos, era a de que: “a única coisa de que me considero culpado
perante meu povo – não perante este Tribunal – é que minhas aspirações em política
externa permaneceram sem sucesso” (BS, 22, p. 375). Sua culpa, por fim, era a de que
sua revolução não tenha sido bem-sucedida como ele idealizou.

Esse homem, visto como fraco pela sua obediência irrestrita, talvez não
pertencesse à mesma ala de outros nazistas mais proeminentes. Afinal, nem mesmo os
réus respeitavam Ribbentrop ou sua atuação. Adolf Hitler era o direcionamento de sua
existência e o desespero após o fim do Terceiro Reich fazia com que ele não enxergasse
a gravidade das acusações contra ele. Como Norman Birkett anotou em seu diário, era
como “se houvesse quebrado a mola principal de sua vida” (BIRKETT apud SMITH,
1979, p. 202). Sua “estratégia” de defesa – se é que podemos chamar assim – fez com que
ele fosse visto com ainda menos respeito por todos no tribunal. Por fim, esse homem que
sempre disse sim ao Führer foi condenado à morte e executado juntamente com outros
nazistas que não tiveram a mesma postura de defesa do líder.
385

Ex-nazistas arrependidos

Hans Frank: “O fanático”

O maior arrependido do tribunal manteve seu posicionamento em seu discurso


final – que, ao contrário de seu interrogatório, foi extenso. Por esse motivo, é relevante
apresentá-lo em sua maior parte:

Adolf Hitler, o principal réu, não deixou nenhuma declaração final ao povo
alemão e ao mundo. Em meio à mais profunda angústia de seu povo, ele não
encontrou nenhuma palavra de conforto. Ele ficou em silêncio e não cumpriu
seu cargo de líder, mas mergulhou na escuridão, um suicídio. Foi teimosia,
desespero ou rancor contra Deus e o homem? Talvez como se ele pensasse:
‘Se eu devo perecer, então deixe o povo alemão cair no abismo também.’
Quem vai saber?
Nós – e se agora uso o termo ‘nós’, então me refiro a mim mesmo e aos
nacional-socialistas que concordam comigo nesta confissão, e não àqueles
companheiros réus em nome dos quais não tenho o direito de falar – não
desejamos abandonar a nação alemã ao seu destino da mesma forma sem uma
palavra; não queremos dizer simplesmente: ‘Agora você apenas terá que ver
como pode lidar com esse colapso que deixamos para você’. Mesmo agora,
talvez como nunca antes, ainda carregamos uma tremenda responsabilidade
espiritual.
No início de nosso caminho, não suspeitávamos que nosso afastamento de
Deus pudesse ter consequências tão desastrosas e mortais e que
necessariamente nos tornaríamos cada vez mais profundamente envolvidos em
culpa. Naquela época, não poderíamos saber que tanta lealdade e disposição
de sacrifício por parte do povo alemão poderia ter sido tão mal dirigida por
nós.
Assim, ao nos afastarmos de Deus, fomos derrotados e precisávamos perecer.
Não foi por deficiências técnicas e circunstâncias desafortunadas sozinhas que
perdemos a guerra, nem foi infortúnio e traição. Antes de tudo, Deus
pronunciou e executou julgamento sobre Hitler e o sistema ao qual servimos
com mentes distantes de Deus. Portanto, que nosso povo também possa ser
chamado de volta da estrada em que Hitler – e nós com ele – os conduziu.
Rogo ao nosso povo que não continue nessa direção, nem que seja um único
passo; porque o caminho de Hitler era o caminho sem Deus, o caminho de se
afastar de Cristo e, em última análise, o caminho da tolice política, o caminho
do desastre e o caminho da morte (BS, 22, pp. 383-384).

Hitler, em sua análise, permanecia sendo a encarnação do anticristo, o homem


que, tal como o diabo, tirou ele e tantos outros alemães de seu caminho de bondade.
Solapados por uma fé direcionada a um falso messias, Hans Frank e os alemães haviam
caído em sua própria ruína. Agradecendo a oportunidade de poder defender seu caso, o
“açougueiro da Polônia” reforça o tom apocalíptico de seu discurso afirmando que
Nuremberg foi um “epílogo central e legal” realizado “sobre as sepulturas dos milhões
de mortos desta terrível Segunda Guerra Mundial” (BS, 22, p. 384). Como não queria
deixar “nenhuma culpa oculta”, Frank afirma mais uma vez que ele havia assumido com
clareza e sinceridade sua própria responsabilidade, para além de reconhecer “o grau de
culpa que me atribui como defensor de Adolf Hitler, seu movimento e seu Reich” (BS,
386

22, pp. 384-385).

Confiante de que a Alemanha não seria julgada pelos crimes dos nazistas, o réu
ainda tem esperança de que “de todos os horrores da guerra e de todos os
desenvolvimentos ameaçadores que já estão aparecendo em todos os lugares, talvez ainda
surja uma paz em cujas bênçãos até nossa nação possa participar”. Essa poderia ser a
função daquele momento histórico, ainda que, estivesse submetido à justiça dos céus: “é
a eterna justiça de Deus na qual espero que nosso povo esteja seguro e à qual somente me
submeto com confiança” (BS, 22, p. 385). Dessa maneira, Frank, esse ex-nazista
arrependido, se coloca à disposição do julgamento espiritual, confiante de que sua
sentença não representasse a sentença coletiva do povo alemão.

O caso de Hans Frank não era de difícil definição. Como Governador Geral da
Polônia, ele era uma lembrança viva do sistema de colonização do país e do processo de
extermínio com as câmaras de gás. Sua personalidade no tribunal tampouco ajudou o seu
caso. Ninguém estava convencido de sua inocência e, talvez, sua formação como
advogado fizesse com que ele fosse visto com certa desconfiança pela promotoria. Ainda
que apelasse para o divino e clamasse por um arrependimento e um sentimento intrínseco
de culpa, Frank permaneceu sendo, para todos, o “açougueiro da Polônia”. A única
punição possível para essa figura era a pena de morte – e assim se deu.

Albert Speer: “O executor do aumento da produção enquanto os trabalhadores


morriam de fome”

Speer, esse ex-nazista arrependido que competia com Hans Frank pelo
monopólio do arrependimento pelos crimes Terceiro Reich, se manteve calmo e
articulado durante seu último discurso. Convencido de que “após este julgamento, o povo
alemão desprezará e condenará Hitler como o autor comprovado de sua desgraça”, Speer
busca demonstrar os perigos não apenas do indivíduo Adolf Hitler, mas da ditadura
totalitária como forma de governo: “o mundo aprenderá com esses acontecimentos não
apenas a odiar a ditadura como forma de governo, mas também a temê-la”. Em uma
análise quase Arendtiana, o arquiteto declara que “a ditadura de Hitler diferiu em um
ponto fundamental de todas as suas predecessoras na história” por ter sido “a primeira
ditadura no atual período de desenvolvimento técnico moderno, uma ditadura que fez uso
completo de todos os meios técnicos de maneira perfeita para o domínio de sua própria
nação” (BS, 22, p. 405). Através das técnicas de propaganda, o povo alemão ficou
387

totalmente sujeito à vontade daquele homem, o Führer, sem possibilidade de ação. Em


uma defesa do totalitarismo como uma forma moderna de tecnocracia, Speer declara que
todos os poderes estavam concentrados nas mãos de Hitler, uma vez que “numerosos
escritórios e quartéis-generais estavam diretamente ligados à liderança suprema, da qual
recebiam suas ordens sinistras diretamente” (BS, 22, pp. 405-406). Ele segue:

Talvez, para quem está de fora, essa maquinaria do estado possa parecer as
linhas de uma central telefônica – aparentemente sem sistema. Mas, como este
último, poderia ser servido e dominado por uma única vontade.
Ditadores anteriores durante seu trabalho de liderança precisavam de
assistentes altamente qualificados, mesmo no nível mais baixo, homens que
pudessem pensar e agir de forma independente. O sistema totalitário no
período do desenvolvimento técnico moderno pode dispensá-los; só os meios
de comunicação permitem mecanizar a chefia subordinada. Como resultado
disso surge um novo tipo: o receptor acrítico de ordens (BS, 22, pp. 405-406).

Utilizando de fato o termo totalitarismo diversas vezes, Speer compreende que


o perigo contido no nazismo era o de nações serem dominadas por meios técnicos e
tecnológicos – perigos que na modernidade pareciam até mesmo inevitáveis. Hitler havia
conseguido subjugar a Alemanha, mas, mais do que isso, “ele quase conseguiu, por meio
de sua liderança técnica, subjugar toda a Europa”. “Portanto”, ele diz, “quanto mais
técnico o mundo se torna, mais necessária é a promoção da liberdade individual e a
consciência do indivíduo de si mesmo como contrapeso” (BS, 22, p. 406). Explicando
todos os avanços tecnológicos da Segunda Guerra Mundial, como os foguetes controlados
por controle remoto, novos tipos de submarino, bombas nucleares e armas químicas,
Speer apresenta uma imagem preocupante sobre o futuro da humanidade após a era da
guerra total. Em sua visão, “uma nova guerra em grande escala terminará com a
destruição da cultura humana e da civilização” e, por isso, a missão do Julgamento de
Nuremberg não era para o presente, e sim, para o futuro. O tribunal deveria prevenir que
novas guerras desse tipo acontecessem novamente e “estabelecer regras pelas quais os
seres humanos possam viver juntos”. Seu destino não tinha nenhuma importância perante
todos os problemas graves que o mundo encarava naquele momento.

Defendendo o “retorno” da Alemanha para as graças do Ocidente e, portanto,


demonstrando uma compreensão profunda das dinâmicas políticas em jogo naquele
tribunal, Speer finaliza seu argumento afirmando que “Não são apenas as batalhas da
guerra que moldam a história da humanidade, mas também, num sentido mais elevado,
as conquistas culturais que um dia se tornarão propriedade comum de toda a
humanidade”. Sendo assim, “uma nação que acredita em seu futuro nunca perecerá. Que
Deus proteja a Alemanha e a cultura do Ocidente” (BS, 22, p. 407).
388

Sua perspectiva, além de estar, em muitos sentidos, correta, também fora


apresentada de forma bem-organizada, coesa e, até mesmo, intelectualizada,
convencendo os juízes de sua sinceridade. De acordo com Bradley Smith, o juiz Biddle
chegou a argumentar que Speer parecia “inteiramente abatido” (BIDDLE apud SMITH,
1979, p. 238) e que seu arrependimento genuíno lhe tornava merecedor de uma nova
chance. Fisher argumentou, também, que “Speer possuíra, desde o início, a posição, a
inteligência e a educação para compreender as consequências morais do que fazia”,
entretanto, a questão era se “a Corte consideraria ou não que a posição e a educação
profissionais do réu o incriminavam” ou o desculpavam. Por fim, “levados pela
personalidade e flexibilidade de Speer, e também pelos preconceitos sociais da Corte, os
juízes do Tribunal, em maioria, decidiram em última instância que esses fatores
favoreciam mais o réu do que o condenavam” e Speer conseguiu se salvar da forca com
uma sentença conciliatória de 20 anos de prisão (SMITH, 1979, p. 238).

A forma como ele apresentou seu caso, inclusive em suas últimas palavras,
demonstrava que ele repudiava o Terceiro Reich e aceitava “a causa anglo-americana de
maneira que causaria a mais favorável das impressões na maioria dos promotores e
juízes” (SMITH, 1979, p. 240). Speer, contudo, conquistou muito mais do que sua
liberdade após esses 20 anos: galgou a reabilitação na memória coletiva como, de fato, o
arquétipo que apresentou em Nuremberg: um ex-nazista arrependido.

Baldur von Schirach: “O envenenador de uma geração”

Em seu último discurso, o líder da Juventude Hitlerista reforça sua inocência e


ingenuidade. Baldur von Schirach, que, nas palavras de Jackson, “iniciou a juventude
alemã na doutrina nazista, treinou-a em legiões para servir na SS e na Wehrmacht e
entregou-a ao Partido como fanática, executora inquestionável de sua vontade” (BS, 19,
p. 416), mantém sua postura de defender os jovens alemães. Ele ressalta que a juventude
alemã era “completamente inocente dos abusos e da degeneração do regime de Hitler que
se estabeleceram durante este Julgamento” e que “que nunca quis esta guerra e que nem
na paz nem na guerra participou de quaisquer crimes” (BS, 22, p. 393). Schirach reitera
que seu destino individual tinha pouca importância naquele momento, uma vez que a
juventude era a esperança do futuro alemão e, por isso, deveria ser poupada de qualquer
acusação. Por fim, o réu faz um pedido: “Que vocês, Senhores do Tribunal, contribuam
com seu julgamento para criar uma atmosfera de respeito mútuo entre a geração mais
jovem, uma atmosfera livre de ódio e vingança” (BS, 22, p. 394).
389

Schirach foi condenado à 20 anos de prisão em Nuremberg e cumpriu toda a


pena, sendo solto em 1966. Esse homem, visto como portador de “personalidade
instável”, “fraco, para quem a pose era mais importante que o objetivo”, morreu com 67
anos após passar os últimos oito anos de sua vida em liberdade. Sua defesa foi pautada
na construção de um personagem arrependido: “um jovem virtuoso e idealista que se
deixara extraviar” (SMITH, 1979, p. 253). De acordo com Smith, entretanto, sua sentença
foi o resultado de um rolar de dados: “foi simplesmente uma questão de chance, que ele,
em vez de uma centena de outros, fosse o escolhido para passar 20 anos na cadeia”
(SMITH, 1979, p. 258). Esse ex-nazista arrependido permanece até o fim defendendo a
juventude e se mostrando um “inocente útil um tanto confuso, talvez o arquétipo das
pessoas dessa espécie” (SMITH, 1979, p. 259).

Hans Fritzsche: “O manipulador da verdade”

Hans Fritzsche era sabidamente o representante da propaganda nazista e de


Joseph Goebbels no tribunal, um homem que, nas palavras de Jackson, “por meio da
manipulação da verdade, incitou a opinião pública alemã a apoiar freneticamente o
regime e anestesiou o julgamento independente da população para que eles fizessem
[tudo] sem questionar as ordens de seus mestres” (BS, 19, p. 417). Em seu longo discurso
final de defesa, Fritzsche reforça que era inocente e que se tivesse feito tudo pelo qual era
acusado “a nação alemã teria se afastado de mim e repudiado o sistema pelo qual falei”
(BS, 22, p. 408). Sua culpa, “nem mais, nem menos”, residia também na sua ingenuidade:
“Eu acreditava nas garantias de Hitler de um desejo sincero de paz. Portanto, fortaleci a
confiança do povo alemão neles. Eu acreditava nas negativas oficiais alemãs de todos os
relatórios estrangeiros de atrocidades alemãs”, e, por isso, “com minha crença fortaleci a
crença do povo alemão na retidão da liderança do estado alemão” (BS, 19, pp. 408-409).
Sendo assim, esse ex-nazista arrependido mantém sua linha argumentativa até o fim.
Fritzsche havia sido enganado, assim como todos os alemães, por falsas promessas, e
trabalhou servindo sua nação partindo de premissas mentirosas. O tribunal deveria ter
empatia e “por um momento entender a indignação daqueles que esperavam coisas boas
de Hitler e que então viram como sua confiança, sua boa vontade e seu idealismo foram
mal utilizados. Eu me encontro na posição de um homem que foi enganado, junto com
muitos, muitos outros alemães” (BS, 19, p. 409).

Para o réu, a acusação tentava apresentar a Alemanha como um “antro de


perdição (den of iniquity)”, o que não era, de maneira nenhuma, uma representação fiel
390

do povo alemão durante o Terceiro Reich. Afinal, “essa disposição de sacrifício não nasce
do crime, mas apenas do idealismo e da boa-fé, e de uma organização inteligente e
aparentemente honesta”. Para interromper mais uma camada de ódio na “montanha de
ódio que jaz sobre o mundo”, Fritzsche queria deixar claro que “o assassinato de cinco
milhões de pessoas é um terrível aviso, e hoje a humanidade possui os meios técnicos
para sua própria destruição” (BS, 22, p. 409). Ele não havia pregado o ódio, apenas
trabalhado para um sistema que ele acreditava – e apenas acreditava porque havia sido
enganado. Sobre sua responsabilidade, o réu apela para a ausência de responsabilidade
individual durante o Terceiro Reich:

É perfeitamente possível, talvez até compreensível, que a tempestade de


indignação que varreu o mundo por causa das atrocidades cometidas
obliterasse as fronteiras da responsabilidade individual. Se isso acontecer, se a
responsabilidade coletiva for atribuída mesmo àqueles que foram maltratados
de boa-fé, Meritíssimos, eu imploro que me responsabilizem. Como enfatizou
meu advogado de defesa, não me escondo atrás dos milhões que agiram de
boa-fé e foram maltratados. Vou me colocar diante daqueles para quem minha
boa-fé já foi uma garantia adicional da pureza de propósito do sistema. Mas
esta minha responsabilidade só se aplica àqueles que agiram de boa-fé, não
àqueles que originaram, auxiliaram ou souberam dessas atrocidades,
começando com assassinato e terminando com a seleção de seres humanos
vivos para coleções anatômicas.
Entre esses criminosos e eu só existe uma conexão: eles simplesmente me
usaram mal de uma maneira diferente do que usaram mal aqueles que se
tornaram suas vítimas físicas.
Pode ser difícil separar o crime alemão do idealismo alemão. Não é impossível.
Se esta distinção for feita, muito sofrimento será evitado para a Alemanha e
para o mundo (BS, 19, p. 410).

Seu idealismo lhe garantiu a inocência. O caso de Fritzsche, apesar de ser


representativo para os crimes da propaganda nazista, não se sustentava juridicamente – e,
aparentemente, todos sabiam disso, até mesmo os outros réus. O próprio Hermann Göring
disse para Fritzsche, após a absolvição, que “o senhor de fato não pertencia a nosso grupo,
e sinto-me sinceramente feliz com sua absolvição” (GÖRING apud SMITH, 1979, p.
317). Contudo, como bem pontua Bradley Smith, com essa afirmação, “Göring deixou
implícito que a promotoria estivera certa ao sustentar outra coisa: que ele próprio
pertencia a um grupo distinto de líderes nazistas que tinham merecido julgamento”
(SMITH, 1979, p. 317).

Militares apartidários

Wilhelm Keitel: “A ferramenta fraca e disposta”

Wilhelm Keitel, um dos homens que ficou ao lado de Hitler no bunker até seus
391

últimos momentos, admite que sua culpa estava pautada na sua obediência. Segundo o
militar, “é trágico ter que perceber que o melhor que eu tinha para dar como soldado,
obediência e lealdade, foi explorado para fins que não puderam ser reconhecidos na
época” e que, ainda “eu não vi que há um limite estabelecido até mesmo para o
cumprimento de seu dever por um soldado. Esse é o meu destino” (BS, 22, p. 378).
Rejeitando as acusações formais, esse soldado fiel não consegue conceber como poderia
ter agido de outra forma. Defendendo a honra da Wehrmacht, Keitel conclui seu breve
discurso declarando: “Do claro reconhecimento das causas, dos métodos perniciosos e
das terríveis consequências desta guerra, pode surgir a esperança para um novo futuro na
comunidade das nações para o povo alemão” (BS, 22, p. 378).

A condenação de Keitel parecia óbvia para todos no tribunal. Afinal, o militar


apartidário era o líder das Forças Armadas de maior patente no Reich, ficando abaixo
somente do Comandante-em-chefe em Chefe Adolf Hitler. Keitel representava, portanto,
o exército alemão e todos os horrores da Segunda Guerra Mundial. A linha de defesa
pautada na obediência não eximiu Keitel de sua responsabilidade e esse soldado fiel foi
condenado à morte e enforcado.

Alfred Jodl: “O traidor das tradições de sua profissão”

Calmo e conciso, Alfred Jodl “assumiu a única linha de defesa que estava
aberta” (SMITH, 1979, p. 229) e se manteve fiel a ela até o fim. Ele era apenas um militar
que obedeceu às ordens que lhe foram dadas – e estava confiante de que sua defesa tinha
bases firmes. Jodl inicia seu discurso final declarando:

É minha crença inabalável que os historiadores posteriores chegarão a um


veredicto justo e objetivo sobre os líderes militares superiores e seus
assistentes, pois eles, e toda a Wehrmacht Alemã com eles, foram confrontados
com uma tarefa insolúvel, a saber, conduzir uma guerra que eles não desejavam
sob um comandante-em-chefe cuja confiança eles não possuíam e em quem
eles próprios confiavam apenas dentro dos limites; com métodos que
frequentemente estavam em contradição com seus princípios de liderança e
suas opiniões tradicionais e comprovadas; com tropas e forças policiais que
não ficaram sob seu comando pleno; e com um serviço de inteligência que em
parte trabalhava para o inimigo. E tudo isso na plena e clara percepção de que
esta guerra decidiria a vida ou a morte de nossa amada pátria. Eles não serviram
aos poderes do Inferno e não serviram a um criminoso, mas sim ao seu povo e
à sua pátria.
No que me diz respeito, acredito que nenhum homem pode fazer mais do que
tentar alcançar o mais alto dos objetivos que lhe parecem atingíveis. Isso e
nada mais sempre foi o eixo orientador de minhas ações e, por essa razão,
senhores do Tribunal, não importa o veredito que possam me dar, deixarei este
tribunal com a cabeça tão erguida quanto quando entrei aqui muitos meses
atrás. […]
Pois acredito e declaro que o dever de um homem para com seu povo e sua
392

pátria está acima de qualquer outro. Cumprir esse dever era para mim uma
honra e a lei suprema (BS, 22, p. 400).

Jodl, cuja identidade estava inteiramente pautada em sua profissão, então,


marchou com a cabeça erguida para a sentença de morte. O militar foi exonerado por uma
corte alemã de desnazificação em 1953, quase dez anos após ter sido enforcado. Mesmo
tendo sido inocentado de seus crimes nessa corte posterior, parecia claro para a acusação
que Jodl não iria escapar da sentença máxima, por ser o segundo homem abaixo de
Wilhelm Keitel e por ter permanecido ao lado de Adolf Hitler até o final.

Erich Raeder: “O almirante político”

O predecessor de Karl Dönitz, que durante os procedimentos, não se aproximou


do psicólogo Gustave Gilbert ou do psiquiatra Leon Goldensohn, também é sucinto em
seu último discurso, utilizando boa parte dele para acusar a promotoria. De acordo com
esse militar apartidário, os promotores haviam, desde o princípio do julgamento, lhe
acusado e, consequentemente, acusado todo o povo alemão, “com o dedo levantado do
pregador da moral”. Raeder, entretanto, tinha “a consciência tranquila” de que nunca
soube de nenhuma atrocidade cometida pelo regime nazista, uma vez que era apenas um
militar obedecendo ordens (BS, 22, p. 391). Por fim, ele declara:

Resumindo: cumpri o meu dever de soldado porque estava convicto de que


esta era a melhor forma de servir o povo alemão e a pátria, para a qual vivi e
pela qual estou preparado para morrer a qualquer momento. Se incorri de
alguma forma em culpa, isso foi principalmente no sentido de que, apesar de
minha posição puramente militar, talvez eu não fosse apenas um soldado, mas
também até certo ponto um político, o que, no entanto, estava em contradição
com toda a minha carreira e a tradição das Forças Armadas Alemãs. Mas então
isso teria sido uma culpa, uma culpa moral, para com o povo alemão, e nunca,
em nenhum momento, poderia me rotular como um criminoso de guerra. Não
teria sido culpa perante um tribunal criminal humano, mas sim culpa perante
Deus (BS, 22, p. 392).

Este homem, apresentando “uma rude mistura de pedantismo e indiferença à


opinião alheia” (SMITH, 1979, p. 264) não conseguiu apresentar seu caso tão bem quanto
Dönitz – e, talvez por esse motivo, sua sentença foi mais severa. Raeder foi condenado
à prisão perpétua, sendo libertado por motivos de saúde dez anos depois, em 1955. Ele
morreu aos 84 anos em 1960, tendo passado os últimos cinco anos de sua vida em
liberdade.

Karl Dönitz: “O legatário da derrota de Hitler”

Dönitz, o sucessor de Adolf Hitler nos últimos dias da guerra, permanece até o
fim se apresentando primordialmente como almirante e militar. Categoricamente, o réu
393

declara: “vocês podem julgar a legalidade da guerra submarina alemã conforme suas
consciências ditarem. Considero esta forma de guerra justificada e agi de acordo com a
minha consciência. Eu teria que fazer exatamente o mesmo novamente” (BS, 22, p. 390).
A alegação de conspiração, aos olhos de Dönitz, era, portanto, um “dogma político” que
“não pode ser provado, mas apenas acreditado ou rejeitado”. A única concessão que o
almirante faz sobre suas acusações era o reconhecimento de que o Princípio de Liderança
– que ele chama de Princípio do Führer – era um princípio que não funcionava para a
política, apenas para os militares: “Que políticos e juristas discutam sobre isso; eles
apenas tornarão mais difícil para o povo alemão tirar uma lição deste Julgamento, que é
de importância decisiva para sua atitude em relação ao passado e a formação de seu
futuro”, uma vez que previa que “o reconhecimento de que o Princípio do Führer como
um princípio político é errado” (BS, 22, p. 390). O motivo disso era simples:
“aparentemente a natureza humana não está em posição de usar o poder deste Princípio
para sempre, sem cair nas tentações deste poder”. Como não se arrependia de como tinha
agido, e considerava que agiria da mesma forma dadas as mesmas circunstâncias, Dönitz
finaliza seu breve discurso afirmando: “minha vida foi dedicada à minha profissão e,
portanto, ao serviço do povo alemão. Como o último Comandante-em-chefe-em-Chefe
da Marinha Alemã e como último Chefe de Estado, assumo a responsabilidade perante o
povo alemão por tudo o que eu fiz e deixei de fazer” (BS, 22, p. 391).

Dönitz, esse “homem dedicado e combativo” (SMITH, 1979, p. 268), não


ganhou a simpatia dos juízes – mas, a antipatia não lhe garantiu a mais severa das
sentenças. Como bem pontua Smith, “como era justo ocorrer no julgamento de um
almirante, não foram sempre águas mansas as que Dönitz teve de atravessar. Não era uma
pessoa simpática ou amável; era apenas um duro comandante de submarino, e como tal
todos logo o reconheciam” (SMITH, 1979, p. 268). A sentença leve de dez anos de prisão
foi aplicada somente a ele. Dönitz foi libertado após cumprir toda a pena em 1956 e
morreu em 1980, aos 89 anos, tendo passado os últimos 24 anos de sua vida em liberdade
– em águas, definitivamente, muito mais mansas.

Último ato

Após os últimos discursos dos nazistas e últimos apelos da acusação e da defesa,


as sentenças foram proferidas pelos juízes na sessão da manhã de 1 de outubro de 1946,
dia 218 do Julgamento de Nuremberg. O Jornal O Globo inicia a edição Vespertina desse
dia com a chamada: “Na forca! Dentro de 15 dias serão executados os 12 grandes réus de
394

Nuremberg”. O título chamativo é seguido por uma enorme caricatura de Göring


(Imagem 8), “considerado o mais culpado de todos”. A edição conta como os réus
reagiram à leitura de suas sentenças: “Göring retira os fones e fica ligeiramente
ruborizado – Funk apavora-se – Streicher mostra-se aniquilado – Kaltenbrunner perfila-
se e faz continência – Neurath satisfeito – Schacht desafiador e calmo – Schirach alheio
à sorte dos comparsas – Hess não dá o menor sinal de emoção”.

Imagem 8127

De acordo com a edição Matutina do dia 1 de outubro de 1946 do Jornal O


Globo, havia uma “avalanche de curiosos em Nuremberg” para a leitura das sentenças
dos nazistas. “A velha cidade de Nuremberg”, declara o jornal, “não dispõe, desde ontem,
de nenhum alojamento para agasalhar a avalanche de curiosos que vem de todas as partes
da Europa”. Ainda que todos os quartos particulares, pensões e hotéis estivessem
superlotados, “a cidade enche-se, de momento a momento, de uma onda de forasteiros
das mais variadas nacionalidades e procedências que perambulam pelas ruas à procura de
um pouso onde possam passar uma noite”. O periódico ressalta que Nuremberg estava
ocupada militarmente “a fim de evitar que irrompam manifestações de desagrado por
ocasião de ser conhecida a sentença que o mundo inteiro aguarda, há mais de um ano,
com verdadeira ansiedade”. Essa mesma edição também coloca em destaque a seguinte

127
Caricatura de Hermann Göring retirada do Jornal O Globo, Edição Vespertina, 1 de outubro de 1946.
395

chamada: “Morrerão todos na forca!”.

Essa não foi, entretanto, a realidade para todos os julgados em Nuremberg. E


era visível para todos que as sentenças, que demoraram pouco mais de quarenta minutos
para serem proferidas, não agradaram aos membros da promotoria das Quatro Potências.
Na segunda página da edição Vespertina do O Globo, lê-se que os promotores
“manifestaram seu desapontamento em face das sentenças pronunciadas, porém, ficaram
satisfeitos com o fato de que ‘a guerra agressiva seja um crime pelo qual um estadista
possa sofrer punição isoladamente’”. As novas definições para a guerra moderna estavam
estabelecidas e essa parecia uma vitória naquele momento – ainda que, poucos anos
depois, o mundo se veria novamente em um novo tipo de conflito para o qual, mais uma
vez, ninguém estava preparado: a Guerra Fria e sua inerente possibilidade de destruição
global pelas armas atômicas.

Os nazistas condenados tinham apenas quatro dias para apresentarem seus


pedidos de clemência. Com exceção de Kaltenbrunner e Speer, todos os outros
condenados fizeram pedidos de reconsideração à Corte. Göring, Frank e Streicher
declararam que não queriam petições a seu favor, mas seus advogados as redigiram
mesmo assim (TAYLOR, 2013, p. 836). Keitel e Raeder fizeram o pedido de morte por
fuzilamento – ainda que Raeder tivesse sido condenado à prisão perpétua. As solicitações
foram analisadas entre 9 e 10 de outubro e, por fim, todas foram rejeitadas. Em 11 de
outubro os advogados dos condenados foram notificados da negação dos pedidos e
informaram seus clientes. Os nazistas, sobretudo os condenados à morte, apesar de
saberem “que o fim era iminente” não receberam “informações exatas” sobre como se
daria a execução das sentenças. Descreve o major e advogado Telford Taylor:128 “Longe
de aliviar sua situação nos últimos dias, a maioria das poucas comodidades foram
eliminadas”. Assim, “eles não podiam mais se exercitar no pátio da prisão; fora de suas
celas, eles sempre estavam algemados, e seu único exercício eram breves caminhadas
algemadas no bloco de celas”. Além disso, “as últimas conversas com seus familiares
foram vigiadas por policiais militares” (TAYLOR, 2013, p. 844). Em 12 de outubro,
quatro dias antes das execuções, os condenados foram informados que as próximas visitas
de seus familiares seriam as últimas. Nesse período, os condenados à sentenças variadas

128
Telford Taylor (1908-1998) fazia parte da comitiva da acusação estadunidense durante o Julgamento de
Nuremberg e, após a resignação de Robert Jackson, assumiu a posição de promotor principal dos 12
julgamentos realizados pelo governo dos Estados Unidos, conhecidos como Julgamentos Subsequentes de
Nuremberg.
396

de encarceramento foram levados para a prisão e, após alguns dias de tumulto, como
mencionado anteriormente, os inocentados finalmente conseguiram aproveitar sua
liberdade.

As execuções, que ocorreriam no ginásio da prisão, estavam marcadas para as


primeiras horas da madrugada do dia 16 de outubro. Em meio à muitas burocracias, foi
decidido, talvez precipitadamente, que representantes da imprensa poderiam estar
presentes nos enforcamentos (TAYLOR, 2013, p. 845). Por volta de 23h40 do dia 15, “o
guarda de Göring olhou para dentro de sua cela e o encontrou gemendo e se movendo de
forma espasmódica. O guarda gritou e, em rápida sucessão, o Pastor Gerecke, Andrus e
o Dr. Puecker chegaram à sala. Em alguns momentos, Göring foi declarado morto”
(TAYLOR, 2013, p. 846). O Homem Número Dois do Reich havia engolido uma cápsula
de cianureto e acabado com sua vida antes dos enforcamentos. Até hoje não foi
definitivamente estabelecido como Göring conseguiu obter o veneno para seu suicídio.

Os jornalistas cobrindo o fim do maior julgamento de todos os tempos não


contavam com o suicídio de Hermann Göring. E a surpresa também provocou uma
enorme gafe jornalística. Karla Monteiro relata, na sua biografia do jornalista brasileiro
Samuel Wainer, que “enquanto aguardavam o cumprimento das penas de morte, os
correspondentes se encontravam diariamente no bar do press camp. Por sorteio, só quatro
deles poderiam assistir ao evento”. No entanto, um dos correspondentes do Daily Express
decidiu tomar as rédeas da narrativa antes que a mesma acontecesse. Sua ansiedade, conta
Wainer, “foi uma ideia extremamente infeliz”. O repórter iniciou “sua reportagem com a
minuciosa narrativa da morte de Göring. Quando os quatro companheiros que haviam
assistido às execuções chegaram com a informação de que Göring cometera suicídio
horas antes, o Daily Express já circulava pelas ruas de Londres” com essa narrativa
equivocada (MONTEIRO, 2020, p. 124).

A edição vespertina do dia 17 de outubro de 1946 do Jornal O Globo relata a


morte de Göring, afirmando, em destaque, que o motivo de seu suicídio foi porque “o
pavor de Göring era o de ter o fim trágico de Mussolini”. O marechal, contudo, não tomou
essa “decisão desesperada” em silêncio. Horas antes do início das execuções, o jornal
relata que Göring havia dito ao psiquiatra Douglas Kelly:

Preferia ter-me entregado aos russos, porque estes ou me teriam morto logo ou
então me tratariam como um herói. Jamais pensei que os norte-americanos
fossem capazes de me tratar dessa maneira cruel. É bom que eles saibam que,
com esses julgamentos de criminosos de guerra, estão criando um precedente
397

na história. O mundo dá muitas voltas. Não sei o que acontecerá quando


também soar a hora daqueles que neste momento me julgam.

Em suas últimas horas de vida, Göring, portanto, mantinha-se fiel à sua narrativa
de defesa do regime nazista, e, sobretudo, permanecia enxergando a si mesmo como um
grande herói com uma garantida reabilitação em um futuro próximo. “Apesar da natureza
sensacional do golpe (coup) de Göring”, ressalta Taylor, “o tempo estava se aproximando
rapidamente para os dez prisioneiros condenados restantes” (TAYLOR, 2013, p. 846). Por
volta de uma hora da manhã, o Coronel Andrus visitou todas as celas para ler a sentença
de morte oficial de cada um. Seguem, então, as últimas palavras de alguns dos
condenados:
Joachim von Ribbentrop: Deus proteja a Alemanha. Deus tenha misericórdia
de minha alma. Meu último desejo é que a unidade alemã seja mantida, que o
entendimento entre o Oriente e o Ocidente seja realizado e que haja paz no
mundo!
Wilhelm Keitel: Peço ao Todo-Poderoso que tenha consideração pelo povo
alemão, forneça ternura e misericórdia. Mais de dois milhões de soldados
alemães foram para a morte por sua pátria. Agora sigo meus filhos. Alles für
Deutschland! Deutschland über Alles!
Ernst Kaltenbrunner: Servi ao povo alemão e à minha pátria de bom grado.
Cumpri meu dever de acordo com suas leis. Lamento que em sua hora difícil
ela não tenha sido liderada apenas por soldados. Lamento que tenham sido
cometidos crimes dos quais não participei. Boa sorte, Alemanha.
Hans Frank: Peço a Deus que me receba misericordiosamente.
Julius Streicher [após cuspir no sargento Woods]: Heil Hitler! Agora sou meu
pai por Deus (I am now by God my father)! Adele, minha querida esposa.
Fritz Sauckel: Eu morro inocentemente. O veredito estava errado. Deus
proteja a Alemanha e torne a Alemanha grande novamente. Deixe a Alemanha
viver e Deus proteja minha família.
Alfred Jodl: Eu te saúdo, minha Alemanha.
Arthur Seyss-Inquart: Espero que esta execução seja o último ato da tragédia
da Segunda Guerra Mundial e que uma lição seja aprendida para que a paz e o
entendimento sejam alcançados entre as nações. Eu acredito na Alemanha.
(TAYLOR, 2013, p. 847–848)

É notável como a necessidade de defender e saudar a Alemanha se mantém


como o ponto de encontro dos discursos dos nazistas. Mesmo em seus últimos segundos
de vida esse nacionalismo deturpado subsiste de forma latente em suas narrativas. Mais
do que protestarem por suas vidas, esses homens bradavam, esperançosos, pelo futuro de
seu país: o objetivo do nacional-socialismo, ainda que de um nacional-socialismo em
ruínas, permanecia sendo, por fim, “a eternidade da Alemanha” (CHAPOUTOT, 2018,
p. 173).

Após as execuções, os homens foram colocados com o rosto para cima em


398

caixões de madeira, e o cadáver de Göring foi colocado no caixão destinado a ele – à


revelia de seus profundos clamores de entrar na História como um herói dentro de um
caixão de mármore. Os corpos foram fotografados individualmente e posteriormente
levados para um crematório (TAYLOR, 2013, p. 848).129 Com as cinzas dos
perpetradores chegava ao fim o Julgamento de Nuremberg. Estava encerrado o primeiro
grande episódio do processo de desnazificação da Europa.

“Nuremberg” e Nuremberg

Nas palavras de Kim Priemel, o Julgamento de Nuremberg é, simultaneamente,


um exemplo e algo a se superar (PRIEMEL, 2016, p. 411–412). Como vimos, os
procedimentos permanecem um assunto recorrente, inclusive em países que sequer
passaram pela desnazificação, como é o caso do Brasil. Retomando as reflexões de Petra
Rau (2013) e tomando emprestada a sua terminologia, mesmo em 1946, mas mais ainda
na atualidade, Nuremberg se tornou “Nuremberg”: por um lado, uma designação para a
justiça de transição e para o caráter jurídico da pacificação; por outro lado, o reflexo da
vingança e do desejo de acertar as contas com os vilões da vez – ainda que esses vilões
sejam, recorrentemente, os fascistas. Em ambos os casos, esse “Nuremberg” recheado de
estereótipos está cada vez mais distante da complexa realidade histórica e da “natureza
contraditória” do Julgamento de Nuremberg. Os procedimentos se transformam não em
“uma luta para (for) a verdade, mas sobre (over) a verdade”, isto é, o palco onde a verdade
está sendo definida na disputa narrativa entre acusação e defesa (PRIEMEL, 2016, p. 9).
Essa verdade pode ser tida como relativa, e, por isso, como lembra Priemel, a “estrada de
Nuremberg a Haia” atualmente é “um dos tropos mais desgastados da história do direito”
(PRIEMEL, 2016, p. 411–412).

Essa ferramenta discursiva para identificar o que gostaríamos que Nuremberg


tivesse sido nos persegue como mais uma das complexidades desse tribunal. Afinal,
Nuremberg serviu de exemplo para todos os tribunais posteriores, mas, simultaneamente,
pareceu um exemplo a não ser seguido. “Nem todo julgamento do pós-guerra foi mais
um Nuremberg”, reforça Priemel, mas, contraditoriamente, “em muitos aspectos, nenhum
foi realmente [mais um Nuremberg]” (PRIEMEL, 2016, p. 412). Se tomarmos como
exemplo um outro julgamento-espetáculo, o processo contra Adolf Eichmann em 1961,

129
Essas fotos com seu aspecto sinistro podem ser facilmente acessadas na internet, demonstrando mais
uma camada da enorme espetacularização dos nazistas – em vida e em morte.
399

é inegável que os procedimentos partiram da premissa de Nuremberg. Entretanto, esse


tribunal foi profundamente diferente de seu predecessor de 1945: foi o julgamento de um
único indivíduo que, acreditava-se, representava O Holocausto, e abriu os caminhos para
a evidência colocada nos testemunhos de sobreviventes. O caso de Eichmann, de acordo
com Hanna Yablonka, foi “um ato de empoderamento da nação vítima, que afirmou o
Estado de Israel e redefiniu o lugar do Holocausto no discurso público”, uma vez que, em
1961, sabia-se muito mais sobre o Holocausto do que se sabia em 1945 (YABLONKA
apud PRIEMEL, 2016, p. 414). É perceptível, portanto, nas palavras de Telford Taylor,
que Nuremberg é “tanto o que realmente aconteceu lá quanto o que as pessoas pensam
que aconteceu, e o segundo é mais importante que o primeiro” (TAYLOR apud
PRIEMEL, 2016, p. 411–412).

A história é o pano de fundo desse “Nuremberg”, isto é, do que pensamos que


aconteceu no tribunal. Afinal, “a história é o que ajuda os advogados a entender os crimes
com os quais estão lidando, a dar sentido à guerra e à atrocidade” (PRIEMEL, 2016, p.
417). De fato, ainda não existia distância temporal suficiente para que se compreendesse
a magnitude dos crimes nazistas – podemos argumentar que nem hoje temos essa
dimensão. Auschwitz permanece fundamentado no trauma e em silêncios – para muitos,
por esse motivo, um evento irrepresentável (AGAMBEN, 2008).130 A sensibilidade
daquele momento em 1945 era latente, de modo que a linha entre jurisdição e
historiografia era fluida, transformando a história em uma “história torturada”, nas
palavras de Priemel. As centenas de milhares de páginas de documentação redigidas pelo
regime nazista e apreendidas pelos Aliados foram utilizadas pelo caso da acusação, mas
logo se tornariam fontes primárias para incontáveis outras pesquisas sobre o Terceiro
Reich. Ao fim e ao cabo, “a história foi filtrada por meio da lei, mas ao mesmo tempo, os
padrões de justiça carregavam a marca da análise histórica” (PRIEMEL, 2016, p. 418).
Nesse sentido, em Nuremberg parecia óbvio que “quanto maior o perfil do réu, mais
historiográficos tais julgamentos tendem a se tornar”, sobretudo, com relação ao seu
legado (PRIEMEL, 2016, p. 415). Dessa forma, para Priemel:

A justiça de transição não pode deixar de traçar linhas históricas e, se for esse
o caso elas devem ser desenhadas com a maior precisão possível em qualquer
tribunal, e com uma consciência de como o outro é construído no processo.
[...] Infelizmente, a maioria dos perpetradores não parece estar
excessivamente incomodada, muito menos assustada, com a perspectiva do

130
Há uma longa discussão na historiografia sobre a possibilidade de representação do Holocausto. Ver:
FRIEDLANDER, 1992; WHITE, 2006.
400

julgamento severo que a história pode ter reservado para eles. Parece que a
lei impõe (commands) maior autoridade e empunha uma espada mais afiada,
de fato mais poderosa que a palavra. Se os historiadores podem ajudar nessa
empreitada, deveriam. É improvável que vejamos a segunda onda (the second
coming) e, portanto, teremos que enfrentar a continuidade da guerra e
atrocidade em massa, bem como a possibilidade de genocídio. Esses são
crimes horríveis; com impunidade e sem nenhum efeito didático, por menores
(small) e por mais prolongados (portracted) que sejam [esses crimes], são
piores. O argumento a favor dos julgamentos e da contribuição dos
historiadores para eles é simples assim (PRIEMEL, 2016, p. 418, grifos meus).

Dessa maneira, Priemel nos mostra como, por mais que os crimes sejam tão
horríveis que eles permaneçam por décadas na história como uma memória nefasta, eles
precisam ser julgados para que possamos seguir em frente. Retomando as reflexões de
Joan Scott, Nuremberg aparece como O Julgamento da História por ser o primeiro de seu
tipo, o ponto sem retorno: a partir dali, estava claro que a História estaria submetida à
justiça (SCOTT, 2020). O desejo de que a História fosse julgar esses homens pelos seus
crimes não era maior do que a necessidade real de um tribunal para, de fato, julgar essa
culpa criminal. O Terceiro Reich estava em julgamento, mas, mais importante do que
isso: eram os homens do Terceiro Reich que estavam sentados no banco dos réus. E, nesse
sentido, decerto, muito mais significativo para a nossa sociedade são os julgamentos
jurídicos, e não os julgamentos simbólicos da História. Afinal, como vimos, a História
raramente julga. Pelo contrário, a memória segue sendo mobilizada por grupos
antagônicos e a “lenda sobre Hitler”, que aparecia como uma ameaça em Nuremberg, se
concretizou em uma realidade para a extrema-direita. Passados quase 80 anos do
julgamento, o negacionismo e a apropriação positiva do passado nazista não deixaram de
ocupar a cena pública. Não há julgamento histórico que possa pôr um ponto final nesse
tipo de discurso e, por isso, Priemel tem razão ao dizer que a espada da lei é a mais afiada.
Esse também é um dos legados de Nuremberg: o nazismo, de maneira geral, deve ser
criminalizado. E isso abarca as ações dos nazistas, mas, também, os discursos nazistas
que explicam e justificam essas ações. Não há dúvida de que, nesse ponto, Nuremberg
acertou.

Os olhos, ouvidos e mãos do Führer

“Os tribunais são instituições genuinamente pedagógicas destinadas a atingir


um público que deve ser educado”, argumenta Kim Priemel, “e os réus sentam no banco
dos réus tanto como indivíduos quanto como personagens alegóricos” (PRIEMEL, 2016,
p. 9). Esses personagens nesse palco teatral de Nuremberg, nas palavras de Jackson, estão
“na posição do menino fictício que assassinou o pai e a mãe e depois implorou por
401

clemência por ser órfão”. Os nazistas eram os grandes responsáveis pela desgraça que
eles clamavam ter se abatido sob seus destinos. “O que esses homens ignoraram é que os
atos de Adolf Hitler são os atos deles”, disse Jackson. Para o promotor estadunidense, os
réus, e “milhões de outros”, foram os responsáveis por colocar o Führer no poder na
Alemanha, e, a partir da acusação de crime de conspiração, consequentemente, foram os
responsáveis pela Segunda Guerra Mundial e por suas terríveis consequências: “Eles o
intoxicaram com poder e adulação. Eles alimentaram seus ódios e despertaram seus
medos. Eles colocaram uma arma carregada em suas mãos ansiosas.”. É verdade que
“coube a Hitler puxar o gatilho”, mas, quando o fez, “todos aprovaram” (BS, 19, p. 424).

Hitler confiava nesses nazistas para realizar suas tarefas. Eles eram “seus olhos
e ouvidos”, as “outras pernas” que deveriam executar suas empreitadas, as “outras mãos”
que deveriam realizar seus planos na construção daquele grande império (BS, 19, p. 430).
Dessa maneira, Hitler não carrega para si toda a responsabilidade pelo Reich. Afinal,
“foram esses homens mortos que esses vivos escolheram para serem seus parceiros nessa
grande irmandade conspiratória, e os crimes que cometeram juntos devem pagar um por
um” (BS, 19, p. 429). Não há redenção possível para esse regime e nem para os homens
que colocaram esse regime em movimento. Estava na premissa básica do movimento
nazista que, para “garantir ao Estado nazista um lugar ao sol”, todos os outros Estados e
indivíduos seriam levados “para a escuridão” e, quanto a isso, todos concordaram durante
o Reich – e, alguns, até mesmo após seu fim (BS, 19, p. 419). Dessa maneira, para
Jackson, dizer que esses homens não eram culpados “seria tão verdadeiro quanto dizer
que não houve guerra, não houve mortos, não houve crime (BS, 19, p. 432)”.

De fato, um dos maiores legados de Nuremberg foi a percepção de que o


genocídio, sobretudo o genocídio moderno, não é feito por um só homem. Auschwitz é a
conclusão de um longo processo de engenharia social que se inicia com a desumanização
do outro (BAUMAN, 1998a, p. 114–115). Ecoando a famosa formulação de Ian Kershaw,
“a estrada para Auschwitz foi construída pelo ódio, mas pavimentada com indiferença”
(KERSHAW, 2009, p. 5). Considerando que tanto o ódio quanto a indiferença são
princípios enraizados em nossa sociedade moderna, Bauman tem razão ao propor que “no
que diz respeito à modernidade, o genocídio não é nem uma anormalidade nem uma
disfunção” (BAUMAN, 1998a, p. 139), uma vez que as condições para a perpetração do
genocídio (KNITTEL; GOLDBERG, 2019) são “especiais, embora de forma alguma
excepcionais. Raras, mas não únicas. Não são atributo imanente da sociedade moderna,
402

mas também não um fenômeno estranho” (BAUMAN, 1998a, p. 139). Os réus em


Nuremberg foram os responsáveis pela perpetração do Holocausto, e, por isso,
conceituemos apropriadamente: são perpetradores, peças indispensáveis na construção
do Reich de mil anos. Olhando sob essa perspectiva, é inegável que o Holocausto não é
um problema exclusivo dos judeus ou um assunto restrito aos europeus. Pelo contrário: é
a concretização de que estivemos – e ainda estamos – fundamentalmente errados: a
humanidade não está caminhando para o progresso e tampouco o conceito de civilização
está pautado em uma moralidade superior. “Não aprendemos nada”, conclui Bauman. “A
civilização corre tanto perigo hoje quanto naquela época” (BAUMAN, 1998a, p. 140).
Afinal de contas, os germes da destruição da civilização estão dentro do próprio conceito
de civilização – e, consequentemente, inseridos na ideia de progresso.

Esse é mais um dos motivos, dentre tantos outros, pelos quais precisamos
continuar olhando para esse passado. O nazismo esteve – e está – nos campos de
possibilidades do fazer político: para combatê-lo, é imprescindível a tarefa infindável e
jamais completa, de compreendê-lo. Como bem pontua Hannah Arendt, compreender o
totalitarismo “não é desculpar nada, mas nos conciliar com um mundo onde tais coisas
são possíveis” (ARENDT, 2008a, p. 331). Compreender é “examinar e suportar
conscientemente o fardo que os acontecimentos colocaram sobre nós — sem negar sua
existência nem vergar humildemente a seu peso, como se tudo o que de fato aconteceu
não pudesse ter acontecido de outra forma” (ARENDT, 1989, p. 21). Tudo poderia ter se
dado de outra maneira, afinal, mesmo dentro de um burocrático processo de extermínio,
“nenhum dos passos era inevitável em função do estado que as coisas já tinham atingido”.
Entretanto, é igualmente verdade que cada um desses passos “tornava racional a escolha
do estágio seguinte na rota da destruição” (BAUMAN, 1998a, p. 221). Reconhecer a
complexidade desse passado traumático torna imperativo embarcar constantemente na
tarefa de “encarar a realidade, espontânea e atentamente, e resistir a ela — qualquer que
seja, venha a ser ou possa ter sido” (ARENDT, 1989, p. 21). Nas palavras de Tzvetan
Todorov:

Dizer para estabelecer a verdade: tal é o dever da testemunha. Julgar para que
revivam os princípios da justiça: é a vocação do juiz. Mas isso ainda não basta:
é preciso, custe-nos o que custar, realizar um último esforço e tentar
compreender melhor. Por que e como o mal aconteceu? Se nos contentamos
em dizer o acontecimento sem buscar ligá-lo a outros fatos no passado ou no
presente, fazemos na verdade um monumento; isso é melhor do que ignorar,
com certeza; no entanto, não basta. Pois a memória dos campos [de
concentração] deve se tornar um instrumento que informa nossa capacidade
de analisar o presente, e para isso é preciso reconhecer nossa imagem na
403

caricatura que enviam os campos, por mais deformante que seja tal espelho,
por mais doloroso que seja esse reconhecimento. Poderemos dizer, então, que,
do ponto de vista da humanidade pelo menos, a horrível experiência dos
campos serviu para alguma coisa: ela nos ensinará as lições, a nós, que cremos
viver em um universo inteiramente diferente. Recusar-se a ficar nessa
celebração invertida do horror que é o ato de dizer o passado sem tentar
compreendê-lo e, portanto, compará-lo com outros acontecimentos passados e
presentes, é não querer virar essa página da história; é, antes, enfim, decidir lê-
la (TODOROV, 1995, p. 284–285, grifos meus).

Ler as páginas do falho processo de desnazificação é crucial para reforçar


nossos princípios democráticos. Para nos reconciliar com esse passado sombrio é
imprescindível compreender que a reconciliação começa, em muitas maneiras, com a
reparação (JASPERS, 2018). E Nuremberg foi, sem dúvida, o primeiro passo, ainda que
trôpego, para essa reparação. A existência de órgãos, cortes e documentos internacionais
são de fundamental importância para a averiguação de atos de desrespeito aos Direitos
Humanos em todos os países do globo. Ainda que com diversas lacunas, não podemos
descartar o Julgamento de Nuremberg e nem o seu legado, e devemos continuar
trabalhando para que esses julgamentos não sejam apenas um ideal de como agir e sim a
representação da ação. Após tantos ataques recentes aos princípios democráticos ao redor
do mundo me parece, na realidade, que a transição democrática após as sombras do
fascismo não é algo que foi: é uma tarefa constante e interminável. E, nesse sentido,
infelizmente, 1945 não parece tão distante de nós assim.

Um processo de aparências

Ou se cria uma confiança no mundo de que em Nuremberg foi feita justiça e,


com isso, uma base foi estabelecida; nesse caso, o processo político terá se
transformado em um processo jurídico, o direito terá sido fundado e
concretizado de forma criativa para um mundo novo, a ser construído agora –
ou então a decepção pela falta de verossimilhança criaria um clima mundial
pior, que fomentaria novas guerras ainda piores; em vez de se tornar uma
bênção, Nuremberg se tornaria antes um fator de ruína; o mundo, por fim,
julgaria o processo como um processo de aparências, um processo espetáculo.
Isso não pode acontecer (JASPERS, 2018, p. 54).

Essa é a previsão esperançosa do filósofo alemão Karl Jaspers em um de seus


ensaios mais famosos, A questão da culpa, escrito no calor do momento do Julgamento
de Nuremberg em 1945. Como com frequência ocorre na história, entretanto, o que não
podia acontecer, foi exatamente o que aconteceu.

Em 1962, sete anos depois do início do julgamento, Karl Jaspers faz um


posfácio em seu livro e explica as condições durante as quais estava escrevendo aquelas
reflexões. Em 1945, ninguém sabia em detalhes a extensão dos crimes nazistas e a
Alemanha era tomada por uma “chuva de pedra das acusações de culpa” (JASPERS,
404

2018, p. 111). Naquela época, ele acreditava que “algo já brilhava no futuro e
transformaria o mundo”, a saber: “a criação de um direito mundial e de um estado mundial
em que, através da força conjunta das maiores potências, seriam averiguados com
seriedade crimes claramente definidos”. Com isso, “nenhum político, nenhum militar,
nenhum funcionário público futuramente poderá apoiar-se em razões de Estado ou
ordens” uma vez que “todos os atos de um Estado acontecem por meio de personalidades
humanas, seja pelos detentores do poder, seja pelos colaboradores de diversas
categorias”. A responsabilidade era de cada um dos membros do Estado, e não do Estado
como uma entidade separada da sociedade. Por isso, “há crimes de Estado, que ao mesmo
tempo, são crimes de determinados indivíduos. Há necessidade e honra no comando e na
obediência, mas a obediência não deve ser prestada se o obediente souber que está
cometendo um crime”. A incondicionalidade do juramento de fidelidade ao Estado só
teria validade se jurada à Constituição “ou na solidariedade de uma comunidade que
expresse seus objetivos e suas opiniões, jamais como juramento de fidelidade diante de
pessoas detentoras de cargos políticos ou militares” (JASPERS, 2018, p. 112–113).

Essa era a beleza da promessa de Nuremberg: finalmente ocorreria o


estabelecimento internacional do que havia sido clamado pelos revolucionários durante a
Revolução Francesa. A reformulação da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte da França revolucionária em
1789, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela Organização
das Nações Unidas (ONU) em 1948, parecia demonstrar que havia, enfim, espaço para a
refundação da paz mundial após a dita barbárie da Segunda Guerra Mundial. Uma breve
análise das duas declarações demonstra o impacto dos crimes nazistas na nossa concepção
moderna de direitos humanos. Afinal, anteriormente, a tradição estava pautada em uma
noção de Direito Natural, isto é, de que os seres humanos têm direitos inerentes à sua
condição. O século XX destruiu essa tradição.

Já no primeiro parágrafo da Declaração de 1789 é possível perceber essa


ruptura. Lê-se que “as únicas causas dos males públicos e da corrupção governamental”
são “a ignorância, a negligência ou o menosprezo dos direitos do homem” (HUNT, 2009,
p. 225). A Declaração de 1948 ressalta, por outro lado, que “o desrespeito e o desprezo
pelos direitos humanos tem resultado em atos bárbaros que ofenderam a consciência da
humanidade” (HUNT, 2009, p. 229). Como aponta Lynn Hunt, após a Segunda Guerra,
“a ‘ignorância’ e até a simples ‘negligência’ já não eram possíveis” e nem cabíveis no
405

cenário político mundial (HUNT, 2009, p. 208). Afinal, a ignorância, como vimos, foi
um dos argumentos que os próprios nazistas utilizaram para defender suas ações. A
negligência também foi um poderoso mobilizador para justificar o tratamento desumano
dado aos povos dos países ocupados pelos nazistas, sobretudo no Leste Europeu. Percebe-
se como a Declaração de 1948, como demonstra Lynn Hunt, cristaliza 150 anos de luta
por direitos, mas representa muito mais “um conjunto de aspirações em vez de uma
realidade prontamente alcançável. Delineava um conjunto de obrigações morais para a
comunidade mundial, mas não tinha nenhum mecanismo de imposição” (HUNT, 2009,
p. 206).

Os largos passos do nacionalismo étnico e genético iniciados no século XIX


encontram seu ápice durante o Terceiro Reich. Em sua completa rejeição pela Revolução
Francesa e por tudo que ela representava, os nazistas compreendiam que os Direitos
Humanos não eram pautados no nascimento e na condição humana natural, e sim, na
raça. Por esse motivo, ao contrário do que pregava a Revolução, os homens eram
diferentes por natureza. Dizer que todos os homens são iguais era algo antinatural porque
a essência de tudo era a diferença. Liberdade, igualdade e fraternidade eram conceitos
que tentavam superar a existência biológica concreta. Em uma sociedade racial, os
homens deveriam viver de acordo com as leis da raça. Não havia, portanto, Direitos
Humanos, apenas os deveres (ou, melhor dizendo, a missão) do homem ariano de
contribuir para o desenvolvimento de sua raça (CHAPOUTOT, 2018).

Com todo esse terrível pano de fundo, em 1945, o objetivo do Julgamento de


Nuremberg era claro: “nunca mais se repetiria o que aconteceu na Alemanha” (JASPERS,
2018, p. 113). Era o início de uma nova era – ou, ao menos, era o que se acreditava.
Contudo, Jaspers reconhece a ingenuidade dessas promessas. O pós-guerra fora um
período marcado por uma esperança ilusória, uma grande ideia que permaneceu no campo
das ideias, “não como realidade”. Ao fim e ao cabo, “o processo não instituiu uma
situação mundial com um direito mundial”, e o não cumprimento dessas promessas tem
consequências perigosas que nos perseguem até os dias atuais (JASPERS, 2018, p. 115).
Assim como a Declaração de 1948 se apresentou mais como aspiração do que como
realidade, Nuremberg também foi, portanto, “um processo de aparências”. No fim,
“nenhum direito foi fundado ali, mas a desconfiança contra o direito aumentou”
(JASPERS, 2018, p. 116). E aqui retornamos a uma reflexão da Introdução da tese: não
obstante, há, inegavelmente, um valor na superfície, isto é, uma riqueza nas aparências.
406

****

Esta tese percorreu as narrativas dos nazistas durante o Julgamento de


Nuremberg propondo a criação de arquétipos pautados nas formas de evasão da
responsabilidade131 durante esse tribunal. Sempre atenta ao fato de que esses discursos
são uma apresentação conscientemente escolhida para os juízes e acusadores e, ao fim e
ao cabo, para a História, o objetivo deste trabalho foi demonstrar como essas aparências
podem ser uma ferramenta profícua para a análise. Como observado ao longo dos
capítulos, e, sobretudo nos discursos finais dos nazistas, há padrões discursivos que se
repetem ao longo do tribunal e, sendo assim, transformar esses padrões em categorias
pode nos auxiliar a observar narrativas similares em outros julgamentos. É preciso nos
afastar das paixões latentes e do desejo de vingança daquele período da desnazificação –
e que seguem atuais –, e compreender os réus como seres humanos e, portanto, como
homens comuns (BROWNING, 1998). Afinal, tantos anos depois, os perpetradores,
sobretudo os perpetradores nazistas, permanecem sendo vistos como a encarnação do
mal. Tentei, ao longo da tese, romper com esse padrão de análise e, simultaneamente,
apresentar como a normalidade dos atores não diminui a magnitude dos horrores de seus
atos. Tampouco a percepção de sua humanidade exime esses nazistas de sua culpa – moral
e criminal.

Navegando pelas falhas do processo de desnazificação, busquei lançar um olhar


crítico para esse julgamento inaugural, tomando como ponto de partida não o tribunal, e
sim, os réus. Em Nuremberg temos homens diferentes, alguns mais proeminentes que
outros, enfrentando acusações distintas e que, por fim, tiveram sentenças variadas. Todos,
entretanto, se encontravam dentro desse substrato cultural comum do regime nazista
(INGRAO, 2015) e utilizaram o palco do julgamento de maneiras heterogêneas para
apresentar seu último registro sobre aquele período da história alemã. Reavaliando seus
papéis, os réus em Nuremberg demonstraram que, de fato, o que apresentamos e
representamos é o que permanece. A análise desta tese se construiu, portanto, em uma
proposta metodológica inserida na história das representações.

Por fim, tomando emprestada a analogia de Hannah Arendt, o tribunal “parecia


fornecer novas respostas à velha e incômoda pergunta ‘quem sou eu?’, que ocorre com

131
Agradeço profundamente ao professor Bruno Leal por pontuar, na banca de defesa, como essa tese é
também uma pesquisa sobre negacionismo.
407

redobrada persistência em tempos de crise. Se a sociedade insistia em ‘és o que pareces


ser’, o ativismo do pós-guerra respondia ‘és o que fizeste’” (ARENDT, 1989, p. 381). No
Julgamento de Nuremberg, os nazistas eram o que fizeram. Para esta tese, eles são, ao
fim e ao cabo, o que diziam que eram quando as sentenças de morte pareciam a parada
final em seus destinos que, até então, haviam sido determinados e moldados pela utopia
do Reich de mil anos.

Espero que estas reflexões tenham sido úteis ao leitor e que o livro da História
do pós-guerra permaneça sendo ocasionalmente aberto para que possamos estar atentos
às suas lições. Quem sabe, assim, estaremos menos “despreparados para notar e
decodificar os sinais de alerta – se estiverem agora, como estiveram então, flagrantemente
exibidos por toda parte” (BAUMAN, 1998a).
408

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extermínio no tribunal. In: SCHURSTER, KARL; REISS, CARLOS; FALAVINHA,
LUZILETE (Org.). . Novos estudos sobre o Holocausto: Historiografia, memória,
gênero e ensino. Recife: Edupe, 2022. .
WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Editora UnB, 1999.
WHITE, Hayden. Enredo e verdade na escrita da história. In: MALERBA, JURANDIR
(Org.). . A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto,
2006. .
415

RELAÇÃO DE FONTES:

1. Transcrições completas do Julgamento de Nuremberg, entre os anos de 1945


e 1946:

Blue Series: Os documentos originais em inglês estão divididos em 42 volumes


conhecidos como “Blue Series” e contam com o julgamento oficial do primeiro
Julgamento de Nuremberg. Disponível para download em:
https://www.loc.gov/rr/frd/Military_Law/NT_major-war-criminals.html (Acesso em
03/01/2023)

Para a tese, utilizei os documentos dos volumes 1 ao 22, que constam a


transcrição completa dos julgamentos. Os outros volumes contêm materiais da acusação
e outras evidências. Segue a lista da relação desses documentos:

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 1.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 2.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 3.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 4.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 5.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 6.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 7.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 8.
416

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 9.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 10.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 11.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 12.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 13.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 14.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 15.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 16.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 17.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 18.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 19.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 20.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 21.

• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 22.
417

2. Primeiro interrogatório realizado pelos membros da acusação assim que os


nazistas são presos, em 1945, sem a presença de seus advogados:

Red Series: A “Red Series” é uma coleção de evidência e documentos


preparadas pela equipe de acusação americana e britânica apresentados no Tribunal
Internacional de Nuremberg e contém o primeiro interrogatório. Disponível para
download em: https://www.loc.gov/rr/frd/Military_Law/NT_Nazi-conspiracy.html
(Acesso em 03/01/2023)

Para a tese, utilizei apenas o volume que contém esse interrogatório, a saber:

• Nazi Conspiracy and Aggression. Office of United States Chief of Counsel for
Prosecution of Axis Criminality. United States: Washington, 1948. Red Series:
Supplement B.

3. Entrevistas:

Entrevistas realizadas pelo psicólogo Gustave Gilbert e pelo psiquiatra Leon


Goldensohn durante o período de prisão dos nazistas em Nuremberg. No caso de
Goldensohn, utilizei tanto a versão original em inglês quanto a versão brasileira:

• GOLDENSOHN, Leon. Nuremberg Interviews: an american psychiatrist’s


conversations with the defendants and witness. Edited and with an introduction
by Robert Gellately. USA: Vintage Books, 2005.

• _________________. As entrevistas de Nuremberg: conversas de um psiquiatra


com os réus e as testemunhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

O arquivo com entrevistas na íntegra está disponível em Washington, nos


arquivos do United States Holocaust Memorial Museum (USHMM):
https://collections.ushmm.org/findingaids/2012.430.1_01_fnd_en.pdf (Acesso em
03/01/2023)

• GILBERT, G.M. Nuremberg Diary. USA: Da Capo Press, 1995.


418

4. Caricaturas dos réus:

As imagens dos réus que estou utilizando antes de iniciar cada caso são
caricaturas feitas pelo alemão Günter Peis durante os procedimentos em Nuremberg. A
data das caricaturas é 1 de outubro de 1946 e foram doadas ao United States Holocaust
Memorial Museum (USHMM) por Gerald (Gerd) Schwab.

Todas estão disponíveis no acervo do USHMM na seguinte pesquisa:


https://collections.ushmm.org/search/?utf8=%E2%9C%93&q=Caricature+of+Nurembe
rg+International+Military+Tribunal+&search_field=all_fields (Acesso em 03/01/2023).
Abaixo, a lista completa das caricaturas com os links de referência de cada uma:

• Erich Raeder (Fotografia número 49549):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137615

• Baldur von Schirach (Fotografia número 49554):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137621

• Fritz Sauckel (Fotografia número 49547):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137613

• Albert Speer (Fotografia número 49545):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137611

• Konstantin von Neurath (Fotografia número 49544):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137610

• Alfred Jodl (Fotografia número 49540):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137606

• Hjalmar Schacht (Fotografia número 49537):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137603

• Hermann Göring (Fotografia número 49538):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137604

• Hans Fritzsche (Fotografia número 49536):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137602

• Walther Funk (Fotografia número 49552):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137619
419

• Arthur Seyss-Inquart (Fotografia número 49551):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137618

• Franz von Papen (Fotografia número 49550):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137616

• Julius Streicher (Fotografia número 49548):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137614

• Karl Dönitz (Fotografia número 49535):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137623

• Wilhelm Keitel (Fotografia número 49542):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137608

• Ernst Kaltenbrunner (Fotografia número 49541):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137607

• Alfred Rosenberg (Fotografia número 49543):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137609

• Joachim von Ribbentrop (Fotografia número 49539):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137605

• Hans Frank (Fotografia número 49555):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137622

Também constam as caricaturas dos réus não analisados na tese, a saber:

• Wilhelm Frick (Fotografia número 49553):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137620

• Rudolf Hess (Fotografia número 49546):


https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1137612
420

5. Jornais:

Edições do Jornal O Globo durante o período do tribunal. As edições foram


adquiridas através da assinatura do Jornal O Globo, disponível no acervo (mediante
assinatura): https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/no-ultimo-ato-da-2-guerra-
tribunal-de-nuremberg-julga-carrascos-nazistas-18097402# (Acesso 03/01/2023).
Abaixo, a lista dos jornais utilizados e consultados na tese e, nas próximas páginas, os
jornais estão inseridos na mesma ordem desta lista:

• 21 de novembro de 1945, Matutina, Geral, página 1. Ano XX, número 5996, Rio
de Janeiro.

• 21 de novembro de 1945, Matutina, Geral, página 3. Ano XX, número 5996, Rio
de Janeiro.

• 21 de novembro de 1945, Vespertina, Geral, página 1. Ano XX, número 5996,


Rio de Janeiro.

• 5 de dezembro de 1945, Matutina, Geral, página 7.

• 1 de outubro de 1946, Matutina, Geral, Página 1. Ano XXI, número 6259, Rio de
Janeiro.

• 1 de outubro de 1946, Vespertina, Geral, página 1. Ano XXI, número 6259, Rio
de Janeiro.

• 1 de outubro de 1946, Vespertina, Geral, página 2. Ano XXI, número 6259, Rio
de Janeiro.

• 17 de outubro de 1946, Vespertina, Geral, página 1. Ano XXI, número 6273, Rio
de Janeiro.
421

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ANEXO I:

NAZISTAS JULGADOS EM NUREMBERG E SENTENÇAS

Condenados à morte:

Martin Bormann (julgado in absentia) (1900-1945)

Hermann Göring (1893-1946)

Joachim von Ribbentrop (1893-1946)

Wilhelm Keitel (1882-1946)

Ernst Kaltenbrunner (1903-1946)

Alfred Rosenberg (1893-1946)

Hans Frank (1900-1946)

Wilhelm Frick (1877-1946)

Julius Streicher (1885-1946)

Fritz Sauckel (1894-1946)

Alfred Jodl (1890-1946)

Arthur Seyss-Inquart (1892-1946)

Inocentados:

Hjalmar Schacht (1877-1970)

Franz von Papen (1879-1969)

Hans Fritzsche (1900-1953)

Condenados à prisão perpétua:

Rudolf Hess (1894-1987)


430

Walther Funk (1890-1960)

Erich Raeder (1876-1960)

Condenados à 20 anos de prisão:

Albert Speer (1905-1981)

Baldur von Schirach (1907-1974)

Condenado à 15 anos de prisão:

Konstantin von Neurath (1873-1956)

Condenado à 10 anos de prisão:

Karl Dönitz (1891-1980)


431

ANEXO II:

LISTA PARCIAL DE MEMBROS DO TRIBUNAL, ADVOGADOS DE DEFESA


E ACUSAÇÃO132

O tribunal:

Presidente do tribunal: Juiz Lorde Geoffrey Lawrence (Inglaterra)

Juiz titular dos Estados Unidos: Francis Biddle

Juiz titular da França: Professor Donnedieu de Vabres

Juiz titular da União Soviética: Major-General Nikitchenko

Juiz suplente da Inglaterra: Norman Birkett

Juiz suplente dos Estados Unidos: John J. Parker

Juiz suplente da França: R. Falco

Juiz suplente da União Soviética: Tenente-coronel Volchkov

Promotores dos Estados Unidos:

Robert H. Jackson

Robert C. Storey

Thomas J. Dodd

Promotores da Inglaterra:

Sir Hartley Shawcross

Sir David Maxwell Fyfe

132
A lista completa com todos os membros do tribunal está disponível em BS, 1, pp. 1-7.
432

Promotores da França:

François de Menthon

Auguste Champetier de Ribes

Charles Dubost

Edgar Faure

Promotores da União Soviética:

General R.A. Rudenko

Coronel Y.V. Pokrovsky

Advogados de defesa:

Otto Stahmer

Fritz Sauter

Martin Horn

Otto Nelte

Kurt Kauffmann

Alfred Thoma

Alfred Seidl

Hanns Marx

Rudolf Dix

Herbert Kraus

Flottenrichter Otto Kranzbuehler

Walter Siemers

Robert Servatius*
433

Franz Exner

Hermann Jahreiss

Gustav Steinbauer

Egon Kubuschok

Hans Flächsner

Otto Freiherr von Lüdinghausen

Heinz Fritz

Alfred Schilf

Otto Pannenbecker

Günther von Rohrscheidt

Friedrich Bergold

*Servatius também foi o advogado de defesa de Adolf Eichmann em seu julgamento em


Jerusalém em 1961

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