VISCONTI Tese Final Biblioteca
VISCONTI Tese Final Biblioteca
VISCONTI Tese Final Biblioteca
Belo Horizonte
2023
MARIA VISCONTI SALES
Belo Horizonte
2023
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, preciso agradecer aos meus pais por acreditarem em mim e
por me deixarem seguir com as minhas escolhas. Agradeço, também, por entenderem
quando me arrependi dessas escolhas e por me apoiarem nos novos caminhos que fui
traçando para mim. Minha base é sólida e forte e fui criada para ser dona de mim no
mundo. Hoje vejo o quanto isso é importante e como foi fundamental para que eu
sobrevivesse à tudo que a vida me jogou. Obrigada a vocês por ser quem eu sou.
Agradeço todos os dias ao Tiago, por ser mais que um companheiro, mais que
um melhor amigo, mais que minha pessoa favorita no mundo. Na dissertação de mestrado
eu disse e repito: você é minha casa. Você me ama como sou, e nesse processo, me ajudou
a me amar também. Obrigada por ser tão cuidadoso comigo e por estar do meu lado em
todos os momentos. Não é fácil segurar a mão de uma pessoa diariamente durante o
mestrado e menos ainda durante o doutorado. Mas você faz tudo parecer fácil. Obrigada
por me mostrar que “não parece, mas tem fim”. Obrigada por ver “sob a superfície” e por
me mostrar “quem eu sou se eu não posso carregar tudo” – e que esse eu “se dobra e
dobra”, mas às vezes quebra sim. Obrigada por juntar os pedaços quando eu não consegui.
Sou forte porque tenho você.
Bárbara Deoti e Anna Viana são nomes tão presentes na minha vida desde 2019
que nem consigo imaginar uma Maria sem elas. Obrigada por sonharem comigo e por me
mostrarem que sonhar junto é muito melhor. Obrigada por transformarem o NEPAT no
projeto da minha vida e por serem muito mais do que colegas de trabalho. Obrigada por
estarem do meu lado e por acreditarem tanto em mim (e na gente). Ainda quero realizar
muitos sonhos com vocês e ainda quero olhar para trás várias vezes e dizer: lembra
quando começamos? Lembra tudo que superamos? Somos nós por nós sempre. Obrigada
por serem as irmãs que não tive.
Ao Átila, “meu intérprete neste mundo”, obrigada por ser para mim o que você
não é para ninguém. Obrigada por, para mim, ser sempre só compreensão. Obrigada por
me mostrar que sonhos envelhecem e por, mais do que saber quem eu sou, ter consciência
de quem eu não sou. Amo você! À Isabela Dornelas, obrigada por ser essa força com a
qual me identifico tanto. Obrigada por me mostrar que temos que ter orgulho de ser quem
somos – e, principalmente, que precisamos reconhecer tudo que lutamos, superamos e
sobrevivemos. Nós fomos, “como ervas”, e não nos arrancaram, amiga. Obrigada!
Agradeço ao Gabriel Bueno por ser sempre uma injeção de realidade e de ânimo
em todos esses anos. Sua amizade é um presente! Clara Lima, com quem me sinto tão
confortável e por quem eu tenho um carinho maior do que o mundo: obrigada pela nossa
amizade. Agradeço sempre à Raquel Marçal, que mesmo longe nunca vai deixar de ter
um espaço enorme no meu coração. Ana Clara Ferraz, obrigada por ser quem você é, por
ser minha maior apoiadora e por estar comigo. Eu te amo muito! À Carol Vitter, amiga
que define a palavra “companheirismo” no meu dicionário. Você se tornou tão importante
nos últimos anos e eu só posso agradecer ao universo pela nossa aproximação. Obrigada
também ao Bruno Vinicius pela parceria na disciplina “Fracassos e produtos da
Modernidade” e por toda a ajuda que sempre me ofereceu ao longo dos anos.
Não é brincadeira quando dizem que a academia é uma máquina de moer gente.
Finalizar esse ciclo foi extremamente difícil. Não fossem os “outros que escolhemos viver
junto”, como diria Hannah Arendt, essa seria uma trajetória que poderia ser carregada
apenas de rancor. Eu tenho muita sorte pelos que escolhi para mim e que me deram força
mesmo quando não havia nenhuma estrela à vista. Repito o que disse nos agradecimentos
da dissertação: sigamos juntos para o que virá no futuro, com a certeza de que o
companheirismo e a amizade tornam tudo mais leve.
RESUMO
The Nuremberg Trials, which took place between 1945 and 1946, represent a
significant milestone in the denazification process in Europe after World War II. With a
tribunal composed of the Allied countries and war winners as judges and prosecutors, this
debut trial brought twenty-one Nazis to the dock. Considered the most outstanding
representatives of the Third Reich, these men used the courtroom as a stage to offer a
final consideration of the Nazi regime and their role in this dark period of German history.
The thesis aims to identify and interpret, based on the analysis of the narratives of
nineteen Nazis during the proceedings, the different ways that the defendants spoke about
themselves at the Nuremberg Trials, transforming these speeches into archetypes. The
sources used for this analysis are the transcripts of the Nuremberg Trials and the
interviews that the Nazis gave to the psychiatrist Leon Goldensohn and the psychologist
Gustave Gilbert during the trial period. The narratives were selected considering only the
defendants who testified during the trial. The starting point of the research was to
understand that, although all Nazis were fighting against the death penalty, it is possible
to recognize patterns and narrative strategies that are repeated throughout this trial and
come from different men with different government positions and who faced different
accusations – consequently, they also had different sentences. Some Nazis continued to
defend the National Socialist ideology until the end. Others denied involvement or
knowledge of the regime’s crimes and presented themselves as unimportant individuals
within the structure of the Third Reich. It was also possible to identify Nazis who claimed
to have deeply regretted their actions; men who said they were great resisters, despite
their positions in the regime; military personnel who justified themselves by the need to
obey orders; and diplomats who advocated for a non-extremist conservatism. By
identifying discursive patterns and transforming them into typologies, it is possible to
apply the archetypes developed in this thesis in subsequent analyzes of other
denazification courts. The main argument of this work is, in this sense and above all, a
proposal for creating a methodological analysis tool.
KEY-WORDS: Nuremberg Trial; Nazism; Denazification; Archetypes; Holocaust
A eliminação dos antinazistas convictos
não demonstra que os outros sejam nazistas convictos,
e a eliminação dos nazistas ‘famosos’
não significa que os outros odiassem o nazismo. [...]
O exemplo alemão mostra que o auxílio externo
não é capaz de despertar as forças internas de auto recuperação,
e que o domínio totalitário é algo mais do que uma simples tirania piorada.
O totalitarismo mata as raízes.
(ARENDT, 2008a, p. 282–293)
Sumário
REFERÊNCIAS
Referências bibliográficas ............................................................................................ 408
Relação de fontes .......................................................................................................... 415
ANEXOS
Anexo I: Nazistas julgados em Nuremberg e sentenças................................................. 429
Anexo II: Lista parcial de membros do tribunal, advogados de defesa e acusação........ 431
16
Prólogo
Democracia para sempre
Por que devemos olhar para o passado para nos prepararmos para o futuro?
Porque não há outro lugar para onde olhar.
James Burke
17
1
O discurso pode ser assistido na íntegra no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=TvoPmj3QHv4.
O jornal O Globo também elaborou uma reportagem sobre o caso:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/05/25/cpi-da-covid-tem-discussao-apos-renan-citar-
julgamento-de-nuremberg.ghtml (Acesso em 29/01/2023)
2
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) é uma investigação conduzida pelo Poder Legislativo. No
caso do Brasil, a Câmara Federal e o Senado podem integrar essa comissão temporária que vai ouvir
depoimentos e testemunhas e tomar informações sobre um determinado assunto de interesse público. Ao
final da CPI, é apresentado um relatório final que pode propor, por exemplo, um projeto de lei ou pode
encaminhar para o Ministério Público informações advindas da investigação da CPI, para que ele, então,
tome as providências visando responsabilizar possíveis infratores. Ou seja, a CPI não pune ninguém, ela
apenas investiga. A única possibilidade que existe, e, nesse caso, não é exclusividade da CPI, é o decreto
de uma prisão em flagrante desde que haja uma justificativa plausível para tal. Esse tema foi elaborado com
mais profundidade no episódio “#28: Do Julgamento de Nuremberg à CPI da COVID” do podcast
Desnazificando produzido pelo Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT). O
episódio está disponível em: https://anchor.fm/desnazificando/episodes/28---Do-Julgamento-de-
Nuremberg--CPI-da-COVID-e12hf8l (Acesso em 29/01/2023)
18
tratamento da malária, a cloroquina. Após ser interrompido por diversas vezes por outros
parlamentares indignados, Calheiros concluiu sua fala. Essa, entretanto, não foi a primeira
referência ao nazismo, e, principalmente, ao julgamento dos nazistas, durante a CPI da
COVID. Poucos dias antes, em 20 de maio, o senador Alexandre Vieira (Cidadania/RS)
comparou o ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello ao burocrata e funcionário da SS
Adolf Eichmann:
3
O vídeo com a fala do senador sobre o caso de Eichmann pode ser assistido na íntegra na reportagem do
Jornal O Globo: https://g1.globo.com/politica/video/video-senador-alessandro-vieira-cita-julgamento-do-
nazista-eichmann-durante-a-cpi-da-covid-9532431.ghtml. O jornal Correio Braziliense também elaborou
uma matéria sobre o caso: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/05/4925813-quem-foi-
adolf-eichmann-oficial-da-ss-citado-na-cpi-da-covid.html (Acesso em 29/01/2023)
4
Sobre o caso, ver a reportagem da Folha: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/10/prevent-
senior-repete-praticas-nazistas-e-serve-de-alerta-para-o-pais.shtml (Aceso em 29/01/2023)
19
6
Agradeço a minha colega Isabela Dornelas por ter conversado comigo sobre essa questão no episódio do
podcast Desnazificando, produzido pelo Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT)
intitulado “#38: Ciência e medicina: de Mengele à Capitã Cloroquina”. O episódio está disponível em:
https://anchor.fm/desnazificando/episodes/38---Cincia-e-medicina-de-Mengele--Capit-Cloroquina-com-
Isabela-Dornelas-e146bkm (Acesso em 29/01/2023)
20
Termino o doutorado, ao menos, com uma nota mais positiva do que quando
comecei. Afinal, o início desse doutorado também foi o início do governo de Jair
Bolsonaro. E, o fim desse doutorado também foi o fim do governo de Jair Bolsonaro.
2023 é o ano da retomada dos nossos compromissos democráticos e da nossa
reaproximação com os princípios republicanos que nos guiaram, ainda que com suas
limitações, por tantos anos. Como disse o presidente Luís Inácio Lula da Silva em seu
discurso de posse, “sob os ventos da redemocratização, dizíamos: ditadura nunca mais!
Hoje, depois do terrível desafio que superamos, devemos dizer: democracia para
sempre!”. Por hora, vencemos as sombras do fascismo e do autoritarismo. E tenhamos
em mente que essa é uma luta que não se finda com o resultado das eleições ou com o
reestabelecimento da ordem. Como veremos nesta tese, o esfacelamento da República de
Weimar demonstra como a democracia carrega o germe de sua destruição e como o
fascismo permanece sempre à espreita, em busca dessas brechas e fissuras na estrutura.
Contando com homens e mulheres conservadores à sua disposição para acabar com as
salvaguardas institucionais em troca de um pulso firme autoritário que promete a
resolução de problemas simbólicos, o fascismo e o autoritarismo parecem um perigo
constante. Eles são, juntamente com as mobilizações da extrema-direita, também, o que
21
permaneceu do século XX – e parte de nossa terrível herança. Não por acaso, Umberto
Eco denomina um de seus textos mais famosos como o “fascismo eterno” (ECO, 2018).
Afinal, esse “fascismo em potencial”, sobretudo na atualidade, parece nunca acabar.
Entretanto, como reforça Zygmunt Bauman, sempre nos resta uma escolha. E,
por isso, ser historiadora no Brasil pós-Bolsonaro é uma escolha que se fortalece pela
necessidade de (re)ocuparmos esse lugar na cena pública. Afinal, escrever historiografia
é uma forma de intervir no presente, como tão bem pontuou Pierre Rosanvallon
(ROSANVALLON, 2010). Esse passado traumático, que faz parte de nós, não pode nos
enclausurar. Como lembra Tzvetan Todorov, “em vez de permanecer prisioneiros do
passado, devemos colocá-lo a serviço do presente, como a memória – e o esquecimento
– será colocada a serviço da justiça” (TODOROV, 1995, p. 284). Concluo com a reflexão
de Bauman, que reitera como “a história não deve ser deixada só nas mãos dos políticos,
sejam eles democráticos ou autoritários”. A história, por não ser propriedade de “uma
doutrina política ou de um regime ao qual ela sirva”, deve ser compreendida como “o
projeto simbólico de nossa existência mais as escolhas morais que fazemos todos os dias.
Tal como a privacidade humana, nosso direito de estudar e questionar de forma crítica a
história é o alicerce da liberdade” (BAUMAN; DONSKIS, 2014, p. 40).
Introdução
O fracasso e o produto da civilização
O nazismo não resume o Ocidente e ele não é nem mesmo o seu fim necessário.
Mas tampouco é possível simplesmente descartá-lo como aberração,
ou como uma aberração simplesmente passada.
A segurança confortável quanto às certezas da moral e da democracia
não apenas não garante nada,
como também expõe o risco de não se perceber vir, ou voltar,
aquilo cuja possibilidade não dependeu de um simples acidente histórico.
Uma análise do nazismo não deve nunca ser concebida
como um simples dossiê de acusação,
mas, antes, como uma peça
dentro da desconstrução geral da história da qual viemos.
(LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002, p. 64)
23
PARTE I
O julgamento da História
Temos ouvido ao longo dos últimos anos, sobretudo no Brasil, muitos clamores
pelo julgamento da História. Frases como “a História irá julgar essas ações”, “espere que
a História te julgará” e “a História não deixará isso passar” são ditas com recorrência,
demonstrando que em nossos horizontes há a crença de que a justiça será feita no futuro.
Essa História, com H maiúsculo,8 aparece como uma entidade que permanece à distância,
esperando o presente se tornar passado para efetivar algum julgamento sobre essas ações,
agora pretéritas. Joan Scott, em On the Judgment of History, nos lembra que queremos
acreditar que determinados passados estão, de fato, no passado (SCOTT, 2020).
Entretanto, a despeito do que gostaríamos, o século XX não é um livro fechado. Pelo
contrário, essa história está longe de se encerrar, e os reflexos dos horrores desse século
seguem nos assombrando na atualidade. O Julgamento de Nuremberg, como o marco do
processo de desnazificação, está, de certa forma, no centro desse período complexo da
história contemporânea: ele representa a esperança de que a justiça seria feita e de que o
nazismo deixaria de ser “um fardo dos nossos tempos” (ARENDT, 1989) para se
transformar em apenas uma lembrança fatídica, um pesadelo que, apesar de angustiante,
é logo esquecido poucas horas depois de nos levantarmos da cama. Esse julgamento,
ocorrido há quase 80 anos atrás, ainda está em disputa e segue sendo reivindicado por
grupos com premissas ideológicas diferentes, em países que nada tiveram a ver com o
projeto de desnazificação, como é o caso do Brasil.
7
Fórmula analisada por Giorgio Agamben em seu livro Pilatos e Jesus sobre o processo judicial da lei
romana. A partir da figura de Pôncio Pilatos, o autor busca compreender “por que o cruzamento entre dois
mundos, o humano e o divino, o histórico e o que não tem história, tem a forma de um processo, de uma
krisis, isto é, de um juízo processual?” (AGAMBEN, 2014, p. 9). De acordo com Agamben, Pilatos não
encontra em Jesus nenhuma culpa, e, de acordo com a lei romana, deveria absolvê-lo ou suspender o
processo para angariar mais provas. Para isso, utiliza-se das fórmulas em latim: “Absolvo: eu o absolvo”;
“Videtur non fecisse: parece não ter feito nada”; “Non liquet: não é evidente”; e, por fim, “Amplius est
cognoscendum: deve-se conhecer mais profundamente”. Para além da ideia de krisis como um juízo
processual, “deve-se conhecer mais profundamente” me parece uma boa analogia para essa seção mais
conceitual da introdução.
8
Não tenho a pretensão de abordar o longo debate sobre as palavras História, história e estória. Deixo claro
apenas que, nesta tese, quando uso o termo História, estou me referindo à historiografia, ao aspecto mais
tradicional e ao estabelecimento da percepção pública dos acontecimentos do passado. Para uma análise
instigante acerca desses conceitos, ver (WHITE, 2006)
24
Esta tese é uma tentativa de entender melhor esses traços do passado em nós –
e, escrever uma das histórias possíveis sobre esse passado. O objetivo de Nuremberg era
julgar o Terceiro Reich e oferecer uma bússola moral para nos guiar no futuro. Afinal, a
partir dali, criou-se a definição de crime contra a humanidade, estabeleceu-se a
criminalização e definição do genocídio, reestruturou-se a Declaração dos Direitos
Humanos. A partir dali, dizia-se, o mundo tinha um acordo tácito sobre o que estava certo
e o que estava errado. Para que nunca mais esqueçamos, diziam; para que nunca mais
aconteça. Passadas décadas desde 1945, hoje podemos nos questionar se a História – ou,
ao menos, essa História – teve, de fato, um poder de redenção, para usar as palavras de
Scott. Não pretendo, com esta tese, dar respostas definitivas à essas questões. Pelo
contrário, a proposta é de continuar fazendo esses questionamentos e seguir olhando para
esse passado “que ainda não passou”, como diz François Hartog (2013).
9
Ainda que 21 nazistas tenham sido julgados em Nuremberg (desconsiderando Martin Bormann, julgado
in absentia), a seleção das narrativas para esta tese foi feita considerando apenas os réus que deram
depoimento durante o julgamento. Sendo assim, os casos de Rudolf Hess e Wilhelm Frick não estão sendo
analisados. Na seção “Casos não trabalhados” dessa Introdução, explico melhor sobre essa questão e falo
brevemente sobre os casos desses homens em Nuremberg.
10
Há uma longa tradição de estudos de arquétipos, sobretudo nos campos da filosofia e da psicologia.
Destaca-se o trabalho de Carl Jung, que utiliza o arquétipo como um conjunto de experiências em um
continuum que se aplica também no inconsciente coletivo. Desse modo, há padrões de comportamento e
símbolos que reforçam tradições culturais e que tornam um determinado conjunto de características
facilmente identificáveis em um indivíduo. Esses mitos que se repetem universalmente fazem parte de um
imaginário social que Jung acreditava estar atrelado a temas comuns do inconsciente da sociedade ao longo
de séculos. Os arquétipos são associados a tipos psicológicos e são amplamente utilizados na psicanálise
moderna e em diversas produções culturais, como filmes, livros e séries. Entretanto, nessa tese, não busco
utilizar “arquétipo” como um conceito, e sim, como um substantivo, referenciando-o por outros sinônimos
ao longo do texto, como “categorias” e “tipologias”. Compreendo a historicidade do conceito de
“arquétipo” e acredito que, em certa medida, uma análise mais profunda do termo poderia até reforçar meu
argumento – mas essa empreitada transformaria esse texto, por fim, em outra tese. Agradeço ao professor
Bruno Leal por levantar esse ponto na minha banca de defesa.
11
Estou atenta à polissemia do termo “discurso”, que se aplica, neste caso, tanto ao tipo textual quanto à
questão de Análise do Discurso, da ordem dos estudos da linguagem. Essa tese, no entanto, não se propõe
a fazer uma Análise do Discurso propriamente dita – ainda que essa análise seja feita em determinados
25
momentos, sobretudo quando é perceptível nas falas dos réus a sobrevivência do discurso nazista. A escolha
das palavras por esses homens é intencional e será possível perceber como a linguagem nazista está presente
em suas narrativas, ainda que muitos se declarem como desassociados da ideologia nacional-socialista. O
discurso permanece, demonstrando como a ideologia nazista ainda estava, de fato, muito viva. Dessa forma,
utilizo os termos “discurso” e “narrativa” não em sua concepção conceitual, e sim, como termos que dizem
respeito a uma fala proferida em um dado contexto. Agradeço ao professor Elcio Cornelsen por todas as
suas contribuições com relação a esse aspecto da linguagem nazista na minha defesa da tese, principalmente
por reforçar a importância de compreender o dito e também o modo de dizer.
12
As edições dos jornais utilizadas estão no Anexo II da tese.
13
Nesse ponto, é válido abordar brevemente o conceito de show trial, que foi aplicado muitas vezes para
descrever julgamentos de nazistas. De maneira geral, entende-se por show trial um julgamento apenas para
as aparências, no qual o veredito já havia sido determinado antes do início dos procedimentos. Um show
trial também pode ser um tribunal formulado apenas por questões políticas e/ou de opinião pública e não
necessariamente em interesse da verdade. Há ainda uma terceira questão: um show trial muitas vezes é
televisionado ou transmitido por diversos veículos de mídia e, também por isso, costuma atrair demasiada
espetacularização em torno de suas atividades – como foi o caso do julgamento de Adolf Eichmann. Quando
falo de julgamento-espetáculo ao longo da tese, não faço referência necessariamente ao conceito de show
trial. Entretanto, como ficará claro no decorrer do texto, a perspectiva de um julgamento de aparências e o
aspecto teatral de Nuremberg perpassa toda essa pesquisa.
26
14
Para tornar o texto menos poluído, reduzi as referências das fontes principais. Dessa forma, BS se refere
às Blue Series, o número em seguida se refere ao volume citado, de 1 a 22, e, por fim, a página. As
referências completas se encontram na bibliografia ao final da tese. É válido pontuar, ainda, que, por
questões de acessibilidade e por limite de espaço, toda a bibliografia e as fontes citadas que estavam no
original em inglês foram traduzidas por mim para o português. Mantive os fragmentos em inglês entre
parênteses em casos em que algum termo possa causar dualidade de compreensão.
27
15
No Anexo I da tese há uma lista com todos os nazistas julgados e suas respectivas sentenças.
28
escutamos Hitler jurar, durante o julgamento de Leipzig, que ‘as cabeças rolarão pela
arena quando chegarmos ao poder’”. O jornalista Frederick Oechsner concluiu sua análise
no periódico afirmando que “Hitler, que se presume tenha morrido entre as ruínas de seu
império, não estava aqui hoje para colher os frutos da semente que ele e seus cúmplices
semearam pela Europa”. O Führer, líder do movimento nazista, foi constantemente
referenciado em Nuremberg – de acordo com Kim Priemel, seu nome foi mencionado
cerca de 12 mil vezes durante o julgamento – e permaneceu sendo essa ausência, de fato,
muito presente nos procedimentos (PRIEMEL, 2016, p. 127).
16
A palavra Holocausto vem do grego e faz referência a algo queimado sendo oferecido aos deuses como
sacrifício, e se popularizou após 1970 como a forma de denominar o massacre dos judeus pela Alemanha
nazista, uma referência aos crematórios dos campos de extermínio. Muitos autores e membros da
comunidade judaica se recusam a usar o termo para denominar o extermínio dos judeus, por não aceitarem
a equiparação bíblica com o que aconteceu em Auschwitz. Para esses indivíduos, há uma preferência pela
utilização da palavra hebraica Shoah, que quer dizer calamidade. O termo Holocausto, no entanto, se
popularizou entre a comunidade acadêmica, se tornando um campo de estudos e gerando extensa produção
bibliográfica. Em virtude da internacionalidade do conceito, para além de sua utilização por muitos dos
autores trabalhados na tese, escolhi utilizar Holocausto e não Shoah. Como aponta Dominick LaCapra,
mais importante do que a fixação por um termo ou outro, é a compreensão do caráter indizível do
acontecimento dos campos de extermínio e a limitação de qualquer termo para a explicação do que
aconteceu em Auschwitz (LACAPRA, 1994).
29
fundamentalmente diferentes da atuação dos Aliados durante a guerra, algo que Priemel
chama de othering, ou seja, de enxergar o outro como diferente de si próprio. A
transformação da Alemanha em um Outro, por si só, criava uma contradição: a acusação
precisava declarar que os alemães eram diferentes, mas também precisava argumentar
que eles poderiam ser iguais, afinal, existia o desejo de que a Alemanha se mantivesse
como Ocidental. Ser Ocidental estava, essencialmente, atrelado a ser civilizado. A defesa,
por outro lado, clamava que os alemães já eram ocidentais. Essa linha argumentativa
estava no princípio do tribunal e seguiu a figura retórica de tu quoque, ou seja: eu sim,
mas você também (PRIEMEL, 2016, p. 6). Há, portanto, uma construção de uma
identidade ocidental no tribunal, transformando a localização geográfica em um conceito
cultural, sendo dinâmico e teleológico: as pessoas, as nações e as civilizações poderiam
se tornar ocidentais.
17
Aqui devo minha eterna gratidão ao professor Marcelo Jasmin, que realizou uma palestra na UFMG sobre
os conceitos de civilização e barbárie em 2019, me apresentando tanto o texto de Reinhard Koselleck quanto
o livro organizado por Adauto Novaes e Newton Bignotto sobre o tema. Essa leitura foi inspiradora.
30
violento fez com que o tribunal se transformasse “em uma ‘máquina discursiva’”,
organizando informações complexas e muitas vezes contraditórias, de modo a criar uma
narrativa coerente e consistente (PRIEMEL, 2016, p. 13). Essa narratologia, era, acima
de tudo, o processo de escrita da história: a história era “o próprio objeto de uma disputa
sobre a qual a versão dos eventos será lida no julgamento” e existia a perspectiva de que
a “opinião predominante” desse processo pudesse evoluir “para um consenso
historiográfico” (PRIEMEL, 2016, p. 14). A História serviria para provar o caso da
acusação e dar as bases do que viria a ser a democracia alemã depois disso, ao mesmo
tempo em que comprovaria a superioridade dos Aliados. Dessa maneira, o tribunal “não
foi apenas uma fonte de material histórico, mas um aspecto vital e absorvente da História
Contemporânea” (SMITH, 1979, p. XVI).18
O visual desse julgamento histórico também era importante, para além do seu
peso político e social. A edição do Jornal O Globo de 21 de novembro de 1945 descreveu
que a disposição do banco dos réus foi proposital para que os acusados fossem obrigados
a olhar “de frente” para as bandeiras das Nações Unidas. Assim, simbolicamente, os
grandes vilões da Modernidade deveriam encarar a democracia, que estava, mais uma
vez, tomando as rédeas da situação. O jornal também pontuou que compareceram no
início do julgamento 240 jornalistas e fotógrafos, dentre eles, o russo-brasileiro fundador
18
Agradeço também ao professor Bruno Leal por me apresentar o livro de Bradley Smith, uma leitura que
me trouxe reflexões importantes para a tese.
31
do jornal Última Hora, Samuel Wainer.19 Na realidade, o tribunal tinha 450 vagas
reservadas para os jornalistas e Wainer foi o único brasileiro a conseguir cobrir o
julgamento dos nazistas, chegando, assim como seu jornal, de última hora, na véspera da
sessão inaugural, depois de uma série de transtornos. O jornalista definiu Nuremberg
como um ambiente “incontrolavelmente passional” (MONTEIRO, 2020, p. 118–119).20
Nessa cena inaugural, para muitos, semelhante a uma peça de teatro, os atores
principais estavam ali em nome de tantos outros protagonistas que não haviam sido
capturados naquele momento ou que haviam cometido suicídio, como era o caso de
Heinrich Himmler, Joseph Goebbels e, é claro, de Adolf Hitler. Robert Jackson, ciente de
que muitos dos nazistas em Nuremberg eram figuras pouco importantes dentro da
estrutura do Terceiro Reich, declarou que o tribunal iria julgar “o cérebro e a autoridade
por trás de todos os crimes”. Afinal, homens como Joachim von Ribbentrop estavam em
uma posição que “não sujam as próprias mãos com sangue” e que, por isso, “sabiam como
usar pessoas inferiores como ferramentas” (BS, 2, pp. 104-105). Sendo assim, era nítido
que muitos réus eram, na realidade, atores coadjuvantes na construção daquela cena.
Jackson tinha uma visão similar à que a filósofa Hannah Arendt teria alguns
anos depois. Para Arendt, quando uma sociedade se desintegra em grupos, a anterior
exigência de representação – entendida como “a capacidade de apresentar, desempenhar,
interpretar aquilo que se realmente é” – passa a ser aplicada aos membros dos grupos, e
não aos indivíduos. Dessa maneira, “a conduta passa então a ser controlada por exigências
silenciosas e não por capacidades individuais, exatamente do modo como o desempenho
de um ator deve enquadrar-se no conjunto de todos os outros papéis da peça” (ARENDT,
1989, p. 107). Os nazistas ali presentes estavam enquadrados no conjunto dos papéis do
Terceiro Reich, alguns com mais relevância que outros – mas todos, igualmente
condenáveis aos olhos do mundo. A tarefa da acusação era, portanto, de acordo com o
promotor estadunidense, “alcançar os planejadores e projetistas (designers), os
incitadores e líderes”, figuras necessárias para a realização de uma “arquitetura maligna”
19
Agradeço à minha orientadora Heloísa Starling por ter me apresentado o livro sobre Wainer que me
auxiliou a “criar a cena” do Julgamento de Nuremberg.
20
Ainda assim, Wainer conseguiu se enveredar pelas centenas de jornalistas e chegou a receber uma carta
de Karl Dönitz, réu e almirante da marinha do Reich, admitindo a importância das bases aliadas brasileiras
no Nordeste para “o controle da ação dos submarinos do Eixo do Atlântico”. A carta, fruto de um
questionamento de Wainer repassada para o almirante, rendeu uma reportagem que se transformou em
matérias para a rádio BBC de Londres e outros jornais estrangeiros. Por fim, o documento integrou o Museu
Naval Brasileiro (MONTEIRO, 2020, p. 118–119).
32
e que, por fim, colocaram o mundo “por tanto flagelado com a violência e a ilegalidade,
e assolado pelas agonias e convulsões desta terrível guerra” (BS, 2, pp. 104-105). Como
veremos, esse é um dos principais legados de Nuremberg, que abriu o terreno para tantos
outros julgamentos posteriores, e que seguem até atualidade: a apresentação e condenação
desses indivíduos tidos como menos relevantes, mas que eram, ao mesmo tempo,
fundamentais para a elaboração e execução da ideologia nazista.
O valor da superfície
sendo escolhida e calculada, e que esteja deixando aparecer coisas para esconder outras,
isso não a torna menos relevante – a bem da verdade, a torna ainda mais. É por meio das
aparências que a análise histórica se torna possível, assim como foi por meio delas que a
condenação, ou não, dos réus em Nuremberg foi efetivada. Como lembra Arendt, “os
homens também apresentam-se por feitos e palavras, e, assim, indicam como querem
aparecer, o que, em sua opinião, deve ser e não deve ser visto” (ARENDT, 2019, p. 50–
51). A pergunta que guiará boa parte da minha argumentação é, precisamente: como esses
homens estão escolhendo se apresentar por meio dos seus discursos nessas
circunstâncias? E, ainda: como esses discursos apresentados lidam com a ideia de
responsabilidade e de culpa?
sempre havia sido contra o regime nazista e seu líder – ainda que tenha mantido seu cargo
até 1943. No capítulo cinco temos o arquétipo ex-nazistas arrependidos, que aborda réus
que não negaram sua atuação e, por vezes, até confessaram sua participação nos crimes,
mas que reforçaram que haviam se arrependido profundamente de suas ações. Hans
Frank, Albert Speer, Baldur von Schirach e Hans Fritzsche buscaram uma reabilitação na
memória e na opinião pública com seus discursos no tribunal, se apresentando como
indivíduos que foram enganados por Adolf Hitler e que só perceberam a tragédia quando
já era tarde demais. Por fim, no capítulo seis, temos o caso dos militares apartidários,
homens que diziam apenas estar obedecendo ordens de seus superiores porque um
soldado não questiona sua tarefa para com sua pátria, não importa o quão desumana essa
tarefa possa parecer. Ainda que tenhamos outros réus com patente militar em Nuremberg,
como é o caso do próprio Hermann Göring, não são todos os membros do exército que se
ampararam nesse discurso da necessidade da obediência pautada na lógica militar. Para
esta tipologia, temos os casos de Wilhelm Keitel, Alfred Jodl, Karl Dönitz e Erich Raeder.
21
Aqui, faço referência (e um agradecimento!) a um ponto que o professor Newton Bignotto reforçou na
minha banca de defesa. Essas categorias analíticas da tese têm relação com o que o sociólogo Max Weber
entende como tipo ideal, a saber, o conjunto de características que se organizam em tipologias, se tornando
ferramentas metodológicas que auxiliam na compreensão de um fenômeno ou de um grupo. Sobre os tipos
e sua utilização no estudo do Terceiro Reich, ver: CAVALLI, 1986. Ainda que Weber esteja presente nessa
tese, sobretudo pela utilização do conceito de autoridade carismática para a compreensão da personalidade
e influência de Adolf Hitler (algo muito marcante na abordagem de Ian Kershaw), o tipo ideal não é,
contudo, um dos referenciais teóricos que utilizo na pesquisa. O leitor perceberá que meus demarcadores
teóricos ficarão claros nessa Introdução.
22
Parafraseando o professor Newton Bignotto mais uma vez: são todos nazistas, mas são nazistas diferentes.
35
jurisprudência. Por isso, os réus não tinham uma linha de conduta ou estratégia de defesa
a priori, já que para eles, aquele também foi um momento inaugural. Como os nazistas
lidaram com essa nova jurisprudência? Como tentaram escapar das sentenças, sobretudo
da sentença de morte? Em Nuremberg temos uma miríade de indivíduos com diferentes
graus de inserção dentro da cadeia de comando do Terceiro Reich. Temos homens
importantes, como Hermann Göring, mas também homens quase esquecíveis, como Hans
Fritzsche. Entretanto, todos estavam tentando se manter vivos e, para isso, buscaram, de
formas diferentes, falhas e brechas nessa nova jurisprudência. Alguns réus
compreenderam melhor a dinâmica do julgamento e das acusações e usam isso a seu favor
para escapar da pena de morte, como é o caso de Albert Speer, que convenceu, não só os
juízes, como uma quantidade significativa de indivíduos, de seu arrependimento23.
Contudo, como aponta Ian Kershaw, é imprescindível ter sempre no horizonte que a
intencionalidade desses atores não pode ser determinada, apenas suas ações – e,
sobretudo no caso desta tese, o que eles dizem sobre essas ações (KERSHAW, 2009).
Deixando de lado toda a pretensão de compreender a psique desses homens e de analisar
o que eles poderiam estar sentindo, o que resta é apenas o que eles dizem para se salvar
– uma autoapresentação mediada pela inegável presença da corda no pescoço.
23
Speer convenceu, a princípio, até mesmo Gitta Sereny, que inicia suas entrevistas com o arquiteto
tentando compreender se ele havia mesmo se arrependido de suas ações no Terceiro Reich. Com o passar
do tempo e ao ganhar sua confiança, Sereny percebe que, ao contrário, o discurso de Speer era apenas uma
representação conscientemente escolhida. Ver: SERENY, 1998.
36
24
Agradeço mais uma vez ao professor Marcelo Jasmin por chamar atenção a esse aspecto tão fundamental
desses discursos durante minha banca de qualificação.
37
historiadores como Ian Kershaw. Ingrao diz que esses relatórios “são, por sua própria
subjetividade, uma fonte excepcional da história das representações”, especialmente
porque os homens responsáveis por eles “leem o real através de seu sistema de crenças”
(INGRAO, 2015, p. 145). Em Nuremberg não é diferente: esses discursos dados ao
tribunal são uma fonte valiosa da história das representações, justamente porque os
nazistas tentam se apresentar de formas diferentes, mas sem deixar de ler o mundo através
de seu sistema de crenças nessa apresentação/representação – e isso transparece no
discurso. Há, portanto, um “substrato cultural comum”, nas palavras de Ingrao, que une
esses réus por conta de seu passado (INGRAO, 2015, p. 107).
Dois casos presentes em Nuremberg não serão trabalhados na tese por serem
réus que não testemunharam perante o tribunal, sendo assim, não contidos na lista
principal de fontes deste trabalho. São estes os casos de Rudolf Hess e de Wilhelm Frick.
Além deles, ainda temos os casos de Robert Ley e Martin Bormann, que não estiveram
presentes no tribunal apesar do indiciamento e, portanto, também não estão no escopo da
presente tese. É válido, no entanto, uma breve apresentação destes homens, sobretudo
porque Hess foi condenado à prisão perpétua e Frick foi condenado à morte.
contra a humanidade. Hess foi considerado culpado por plano de conspiração e crimes
contra a paz e foi sentenciado à prisão perpétua, permanecendo preso até seu suicídio em
1987. Ele havia tentado se suicidar enquanto ainda era um prisioneiro na Grã-Bretanha,
em 1942, e outra vez em 1943. Ao longo desses anos fez greves de fome e foi
diagnosticado como instável e com tendências a paranoia (GILBERT, 1995).
Seu caso em Nuremberg ainda gera debates porque, ainda que o psiquiatra Leon
Goldensohn e o psicólogo Gustave Gilbert tenham atestado que Hess estava dentro de
suas faculdades mentais e que, portanto, poderia enfrentar o julgamento, o próprio Hess
havia se declarado como mentalmente incapacitado para ser julgado. Não sabemos se
Hess estava fingindo um desequilíbrio mental, mas há um consenso entre alguns
historiadores de que ele realmente estava sofrendo mentalmente no momento do
julgamento e que ele deveria ter sido considerado incapaz e levado a uma clínica
psiquiátrica, sobretudo levando em consideração suas tentativas de suicídio anteriores
(PRIEMEL, 2016).
Quanto ao caso de Robert Ley, o nazista foi capturado pelos Aliados e chegou
a ser levado a Nuremberg, mas conseguiu se suicidar antes do julgamento se estabelecer.
Ley, após a dissolução dos sindicados com a ascensão do Partido Nazista, passou a
comandar a Frente de Trabalho Alemã (Deutsche Arbeitsfront), que desempenhou um
papel de certa relevância durante a expansão da indústria de armas na Segunda Guerra
Mundial. Devido ao seu alcoolismo e à sua personalidade controversa, Ley foi substituído
por Fritz Sauckel. O nazista foi indiciado por plano de conspiração, crimes de guerra e
crimes contra a humanidade e se suicidou em 25 de outubro de 1945, poucos dias após o
início do tribunal.
Gustave Gilbert tem o único registro das falas de Ley antes de seu suicídio, já
que o visitou na véspera do ocorrido. O réu, atormentado pela intensidade de sua gagueira,
declarou: “Como posso preparar uma defesa? Devo me defender de todos esses crimes
39
dos quais nada sabia? Se depois de todo o derramamento de sangue desta guerra forem
necessários mais s-sacrifícios para satisfazer a v-vingança dos vitoriosos, muito bem”.
Com dificuldade, ele seguiu: “Coloque-nos contra uma parede e atire em nós! Tudo bem,
vocês são os vencedores. Mas por que eu deveria ser levado perante um Tribunal como
um c-…?”, sem conseguir pronunciar a palavra “criminoso” (LEY apud GILBERT, 1995,
p. 7–8)25. Foi devido ao suicídio de Ley que a segurança do tribunal se intensificou e
guardas foram colocados na porta das celas de cada um dos réus.
As fontes
25
Escolhi utilizar do termo apud nas citações para estabelecer uma distinção entre as falas dos nazistas nas
entrevistas e as declarações de Goldensohn e Gilbert sobre essas entrevistas. Agradeço ao professor Elcio
Cornelsen por ter me dado essa sugestão na banca de defesa da tese.
26
Todas as fontes estão listadas em detalhes na seção “Relação de fontes” da tese.
40
de uma vida se torna parte de um relato sobre esses acontecimentos, com uma origem e
um fim, forjando uma coerência e organização que não fazem parte, de fato, da vida. O
relato autobiográfico busca dar sentido, lógica e tornar razoável acontecimentos que,
enquanto aconteciam, eram confusos e esparsos. Para Bourdieu, a perspectiva de “tornar-
se o ideólogo de sua própria vida” (BOURDIEU, 2006, p. 184) faz com que o real, que é
naturalmente descontínuo e ilógico, se torne um conjunto compreensível e quase
previsível de acontecimentos: essa é a acordada ilusão retórica desse relato. Nos
discursos do tribunal, esse descompasso entre a desorganização da vida de um indivíduo
e a linha racional de atuação proposta pela promotoria, se torna ainda mais evidente. Essa
análise tem relação, inclusive, com o já mencionado conceito de narratologia proposto
por Kim Priemel, no qual o tribunal se torna uma “máquina discursiva” que busca dar
sentido a discursos e acontecimentos que são, em muitas medidas, desconexos.
ao texto e a se submeter, portanto, a uma prova de verificação”, ainda que seu objetivo
não seja a verossimilhança e sim a “imagem do real” (LEJEUNE, 2014, p. 36).
As transcrições do tribunal
As entrevistas
27
Existe é claro, uma questão com relação à tradução das próprias entrevistas – uma dificuldade presente
inclusive durante o próprio julgamento, que era traduzido simultaneamente em quatro línguas: inglês,
alemão, francês e russo. Optei por fazer a leitura na íntegra das entrevistas em inglês, língua original da
publicação e língua nativa de Goldensohn, e, ao utilizar citações, recorri à versão traduzida em português
da Companhia das Letras. Quando julguei que a tradução possuía discrepância, utilizei a versão em inglês
e fiz a minha própria tradução. As referências após as citações estão sempre relacionadas à versão do livro
utilizada para a tradução.
44
Como lembra Kim Priemel, o interesse pelo estudo da mentalidade dos nazistas
estava em evidência em Nuremberg. Afinal, “quando os espécimes mais proeminentes
dessa comunidade doente ficaram disponíveis para exame direto em 1945, uma série de
estudiosos imediatamente fez fila para ter acesso à prisão de Nuremberg”. Todas essas
pessoas foram dispensadas pelo promotor estadunidense Robert Jackson, que “temia que
os resultados pudessem fazê-lo perder réus se sua condição mental fosse considerada
perturbada”. Dessa maneira, temos homens como Goldensohn e Gilbert, além de Douglas
Kelley,28 como os especialistas em Nuremberg, desempenhando, nas palavras de Priemel,
“um papel duplo e bastante inconsistente, pesquisando, por um lado, o bem-estar
psicológico dos réus, enquanto, por outro lado, os estudavam em um ambiente de
laboratório peculiar e relatavam sobre suas descobertas para a acusação” (PRIEMEL,
2016, p. 124). Essa “função-dupla” é ainda mais evidente se levarmos em consideração
que esses profissionais também eram membros do exército estadunidense, possuindo
alguma patente, como é o caso de Goldensohn, um major. Sendo assim, como
estadunidenses vencedores da Segunda Guerra Mundial, como profissionais da saúde e
também como soldados, Gilbert, Goldensohn e Kelley ocupavam posições multifacetadas
em Nuremberg, e, por fim, auxiliaram a acusação oferecendo detalhes das estratégias de
defesa que os nazistas lhes confidenciavam.
28
O julgamento teve uma proeminência e liderança dos Estados Unidos e a equipe médica e psiquiátrica,
particularmente importante para a tese, era estadunidense. O primeiro psiquiatra a chegar em Nuremberg
foi o major Douglas M. Kelley, que permaneceu apenas no primeiro mês de julgamento e foi rapidamente
substituído por Goldensohn. Kelley também publicou sua versão do tribunal em 1947 no livro 22 Cells in
Nuremberg. A Psychiatrist Examines the Nazi Criminals.
29
Termo utilizado por Uğur Ümit Üngör e Kjell Anderson no texto From Perpetrators to Perpetration:
Definitions, typologies, and processes. Ver (KNITTEL; GOLDBERG, 2019). Kim Priemel também utiliza
o mesmo termo.
45
Imagem 131
30
Os testes de QI (Quociente de Inteligência) são usados há décadas para avaliar a inteligência de indivíduos
por meio de estimativas. QIs em torno de 85 e 115 são considerados padrão para um adulto, enquanto
números abaixo de 70 sugerem uma deficiência intelectual, de grau leve (entre 50-70), moderada (entre 35-
50) e grave (menor que 35). As primeiras tentativas de desenvolvimento de testes de QI datam do século
XIX, de modo que, em 1945, Gilbert já estava usando as técnicas mais modernas desses testes.
31
Testes de QI realizados por Gustave Gilbert na prisão em Nuremberg. Imagem extraída de GILBERT,
1995, p. 31.
46
Por fim, como destaca Kim Priemel, a diferença fundamental entre as análises
de Kelley e Gilbert foi perdida na percepção pública dos perpetradores. E, em Nuremberg,
prevaleceu uma “coincidência de que a linha entre normal/são e anormal/psicopatológico
correspondia àquela entre os réus que iriam para a forca e aqueles que não iriam”
(PRIEMEL, 2016, p. 125).
32
Uma das maiores críticas sobre a metodologia é com relação à pequena e pouco diversificada amostragem
que Milgram utilizou para o experimento e que erroneamente levou a uma conclusão generalista sobre a
natureza humana. Sobre isso, Stephen Gibson tem um capítulo muito interessante no livro The Routledge
International Handbook of Perpetrator Studies chamado Stanley Milgram’s obedience experiments. Ver
(KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 46–59)
47
Homens comuns
Embora ainda seja desafiador falar sobre o ponto de vista dos perpetradores, o
recente campo de Perpetrator Studies tem feito um grande esforço nesse sentido.
Questões básicas para o campo giram em torno de o que são os perpetradores e o que eles
significam e quais seriam os possíveis métodos e conceitos para compreendê-los, bem
como as implicações éticas e morais desse entendimento. De acordo com os autores Uğur
Ümit Üngör e Kjell Anderson, perpetradores são “qualquer indivíduo que contribui
diretamente e substancialmente para o genocídio – ou outras formas de atrocidades em
massa” (KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 7). E, nesse sentido, é de fundamental
importância diferenciar quem é um perpetrador para a lei e quem é um perpetrador para
o historiador. Essa foi uma das constantes querelas no Julgamento de Nuremberg, já que,
por vezes, não se conseguia comprovar juridicamente o envolvimento do indivíduo com
os crimes do nazismo – razão pela qual alguns homens foram inocentados. Isso não
significa, todavia, que, para a História, não tenha havido envolvimento. Essa definição
proposta por Anderson e Üngör vai além do que seria um perpetrador direto, mas também
não abraça a ideia de culpa coletiva (que será abordada em outra seção dessa Introdução),
ou seja, a crença de que todos os indivíduos daquele país são perpetradores, algo que
Hannah Arendt e Karl Jaspers já analisaram exaustivamente em seus ensaios
Responsabilidade e Julgamento (2004), e A questão da culpa (2018), respectivamente.
em seu conceito de banalidade do mal. Como David Cesarani pontua ao reavaliar o caso
de Adolf Eichmann, é fundamental partirmos da hipótese de que o curso dos
perpetradores “não foi predeterminado, que eles fizeram escolhas informadas ao longo
do caminho e que tiveram que se acomodar para as consequências de seus atos”
(CESARANI, 2007, p. 6). Dessa forma, como lembram Anderson e Üngür, “os
indivíduos não agem acriticamente com base em ordens claras; em vez disso, eles operam
em contextos de informações limitadas, muitas vezes interpretando ordens e exortações
de forma a promover seus próprios interesses” (KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 18).
Contudo, essa alegoria não vem sem graves consequências. Como aponta Rau,
o nazismo oferece, sobretudo para o Ocidente, “uma fenomenologia de alteridade
49
33
O conceito de totalitarismo, quando usado na tese, faz referência à compreensão de Hannah Arendt do
fenômeno. Para Arendt, esse conceito nos auxilia para analisar uma forma de dominação que atingiu as
sociedades modernas, e, neste sentido, o nazismo se apresentou como uma forma histórica desse novo tipo
de regime político, assim como o stalinismo na União Soviética. Arendt se empenha em apresentar os traços
desse tipo de regime que, para ela, foi único e que não poderia ser concebido dentro das teorias de regimes
tradicionais. A filósofa entende o totalitarismo como uma possibilidade política da Modernidade e que foi
possível justamente por estar inserido nessa Modernidade. Ainda que não tenha sido criado por Arendt, foi
através dela e das controvérsias provocadas por suas produções, que o conceito se popularizou. Arendt
estava ciente das diferenças entre as experiências dos diversos países sob a dominação totalitária e se
esforçou para demonstrar as particularidades de cada situação. Em muitos casos, a filósofa é criticada por
pesquisadores que não a compreendem profundamente ou que, amparados por preconceitos vindos de
outras escolas teóricas, rejeitam sua abordagem sem conhecer. Desconsiderando a perspectiva de Arendt
de totalitarismo para o fenômeno stalinista, que não é o escopo desse trabalho (e, do qual, possuo algumas
ressalvas), o conceito está sendo utilizado em todo esse trabalho pensando na análise da autora apenas para
o regime nazista. Sobre o fenômeno stalinista, outras produções, como as de Sheila Fitzpatrick, são muito
mais relevantes. Ver: FITZPATRICK, 2008.
50
Está claro, assim, que pensar nos nazistas como intrinsecamente maus não
auxilia na compreensão do Terceiro Reich e nem do Holocausto. Na realidade, como
pontua Pettitt, a mitologização do fenômeno tira de nossas preocupações a necessidade
de buscar explicações humanas para o genocídio. E, seguindo a análise da autora,
devemos ter em mente que compreender e condenar são atividades que não podem ser
feitas simultaneamente (PETTITT, 2018). Afinal, como reitera Tzvetan Todorov, “uma
das lições desse passado recente é exatamente a de que não há ruptura entre os extremos
e o centro, mas uma série de transições imperceptíveis” (TODOROV, 1995, p. 281) que
devem ser condenadas, mas, sobretudo, compreendidas, para que possamos tirar alguma
reflexão construtiva sobre esse período. O Terceiro Reich foi um regime – e um período
histórico – extremo. Contudo, como será possível observar na tese, os indivíduos que
deram cabo desse extremismo nem sempre eram, eles próprios, extremos. É
imprescindível, nesse sentido, apresentar uma visão com mais nuances – e, portanto,
menos simplificada.
Ainda sobre esse ponto, como será possível observar, os arquétipos muitas
vezes se encontram e estão intimamente interligados. Algumas características discursivas
aparecem em mais de um arquétipo e muitas formas de evasão de responsabilidade se
repetem em todas as tipologias. Contudo, a minha proposta definidora diz respeito à
característica do discurso que mais aparece nas narrativas daquele réu. Qual é a estratégia
discursiva mais frequente em seus interrogatórios? O que salta aos olhos ao ler as
exposições desse homem? Na maioria das vezes, essa estratégia é perceptível até mesmo
pela acusação e pelos outros réus.
Nicht schuldig
As justificativas dos nazistas não são, como lembra Johann Chapoutot, “de
forma alguma, excepcionais”. Como vimos, todos os réus em Nuremberg afirmam: Nicht
schuldig, inocente, e é fundamental compreender essas alegações. Para pensar em alguns
dos casos no tribunal, estou de acordo com o historiador quando ele propõe que “os
argumentos desses réus não foram cínicos ou provocativos, nem foram feitos em negação
ou desonestidade – esses homens realmente acreditaram no que estavam dizendo. A
maioria deles estava convencida de que estava fazendo a coisa certa”. Sendo assim, “em
outras palavras, os atos que eles cometeram fizeram sentido para eles” (CHAPOUTOT,
2018, p. 4). É imperativo sair de categorias simplistas já mencionadas, como a inerente
“barbaridade” específica dos alemães, para compreender, sobretudo, as falhas do
processo de desnazificação. Afinal, “além de confrontar o fato de que eles eram europeus
do século XX, devemos aceitar o fato de que os nazistas eram, simplesmente, pessoas”.
Analisar as circunstâncias a que eles estavam submetidos demonstra como os nazistas
“têm em comum com todos os outros humanos” o fato de que “suas vidas ocorreram
dentro de um universo de significados e valores. [...] Esses homens não eram loucos. Eles
não viam suas ações como criminosas. Em vez disso, eles estavam cumprindo uma tarefa,
um Aufgabe – talvez desagradável, mas ainda assim necessária” (CHAPOUTOT, 2018,
p. 6).34
34
Devo meus agradecimentos ao professor Johann Chapoutot por ter concedido uma entrevista ao Núcleo
Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT) e ter reforçado como é possível analisar as fontes
com esse olhar. Compreender a ideologia nazista como algo a ser levado a sério foi um divisor de águas
para mim. A entrevista está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Dn5J0I_8ZN0&t=1714s
(Acesso em 29/01/2023)
53
Nunca saberemos se isso é de fato verdade, afinal, como Bauman pontua, esse dilema nos
foi poupado (BAUMAN, 1998a, p. 234–235). Que fique claro, no entanto, que existe um
limite para essa compreensão, e esse limite é, precisamente, a responsabilidade pessoal
de cada um. Seguindo a perspectiva de Christopher Browning, os nazistas “enfrentaram
escolhas, e a maioria deles cometeu atos terríveis. Mas aqueles que mataram não podem
ser absolvidos pela ideia de que alguém na mesma situação teria feito o que eles fizeram.
Pois mesmo entre eles, alguns se recusaram a matar e outros pararam de matar”
(BROWNING, 1998, p. 188).35 Sendo assim, existe uma culpa individual do protagonista
específico dentro daquela situação em específico que precisa ser levada em conta e que
não pode ser minimizada pela presunção de um relativismo moral. Nesse sentido, pelo
menos, o Julgamento de Nuremberg fez o seu trabalho.
E, ainda que Nuremberg não seja o local para compreender o que os nazistas
pensavam durante o Terceiro Reich (se é que existe esse local), é o terreno ideal para
observar como, o que eles diziam era tão significativo e sério para eles, a ponto de muitos
continuarem pregando os mesmos princípios no tribunal – como é o caso dos defensores
fiéis. É demasiado simplista descartar o que os nazistas dizem no tribunal como meras
tentativas de exculpação, ainda que algumas de suas justificativas cheguem até mesmo a
serem risíveis, como é o caso das negações de Ernst Kaltenbrunner. Entretanto, como
alerta Chapoutot, é preciso superar o abandono desses discursos pelos historiadores. Essas
narrativas, assim como as analisadas por Chapoutot em The law of blood, “lançaram uma
nova luz sobre o nazismo e suas práticas, ao nos familiarizar com os medos, os postulados
e os projetos que o compreendiam” (CHAPOUTOT, 2018, p. 411). Acrescento, ainda,
que esses discursos dizem muito sobre quais partes de si mesmos os nazistas estavam
dispostos a abandonar para salvar suas vidas – e quais partes eles não abriam mão.
Tomando emprestada a analogia de Joanne Pettitt, existe um paradoxo nesse tipo de
julgamento, no qual o acusado pode até reconhecer sua culpa “nos termos expostos por
seus captores mas, simultaneamente, não consegue sentir essa culpa em si mesmo porque
trairia sua própria compreensão do valor ético” (PETTITT, 2018, p. 38). Afinal, como
será possível perceber, para muitos, esse sistema de valores ainda era nazista.
35
Mais um agradecimento é necessário: dessa vez, ao professor Christopher Browning por ter concedido
uma entrevista ao Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT), na qual essas questões
ficaram ainda mais evidentes para mim. Essa entrevista foi um ponto alto da minha trajetória e esclareceu
muitas das minhas angústias. A entrevista está disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=JLsAIlna3kc (Acesso em 29/01/2023)
54
Tentei, ao longo da escrita, sempre deixar claro que aquelas são as percepções
dos nazistas sobre si mesmos. Por vezes soa repetitivo a utilização de termos como “de
acordo com”; “na visão de”; “em sua perspectiva”; “para ele”. Essa foi uma estratégia
que recorri por estar muito consciente de que o terreno que estou pisando é extremamente
espinhoso:36 há placas de “Atenção!” por toda parte nesta tese. Ainda que esse tenha sido
um esforço cuidadoso, por vezes, tomei emprestada a metodologia de Johann Chapoutot
em The Law of the Blood, na qual ele lida com os discursos nazistas de forma mais direta.
Por exemplo, ao analisar a autobiografia de Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz,
Chapoutot utiliza de recursos narrativos na primeira e terceira pessoa, de modo a colocar
mais legitimidade e autenticidade no discurso do nazista:
Aliviado, Höss poderia agora mostrar seus sentimentos e deixar-se levar por
uma confortável autopiedade: a opinião pública, que o veria como um sádico
e um monstro, poderia entender “que ele tinha um coração, e que esse coração
não era ruim” Apenas uma ideia heroica do dever e uma profunda consciência
da necessidade desses procedimentos lhe permitiram realizar sua tarefa sem
falhar ou enfraquecer. (CHAPOUTOT, 2018, p. 397)
Sendo assim, em momentos da tese onde utilizo artifícios para tornar a escrita
mais fluida e, sobretudo, mais interessante, que fique claro que não estou, evidentemente,
concordando com o que os réus estão dizendo, ou “comprando” o seu discurso e
acreditando ingenuamente na forma como eles se apresentam para o tribunal. Menos
36
Agradeço, novamente, ao professor Marcelo Jasmin por ter me presenteado com essa analogia na minha
banca de qualificação: sim, meus “incensos estão espalhados por aqui”.
55
ainda que estou desculpando-os pelo que eles fizeram, uma vez que estavam em
circunstâncias únicas. Estou continuamente atenta à proposta metodológica que me
amparo e compreendo que estas narrativas são formas de autoapresentação
conscientemente escolhidas pelos nazistas com objetivos definidos. Não obstante, é
necessário ressaltar que, como propõe Kershaw, tornar mentalidades e comportamentos
passados mais explicáveis, compreensíveis, e, em certa medida, “normais”, não os torna
menos condenáveis – apenas mais historicamente situados (KERSHAW, 2009). Afinal,
o nazismo não está fora do método historiográfico e da análise sobre representações e
precisa ser tratado com a mesma objetividade e seriedade que qualquer outro período
histórico. Ir em busca do que George Mosse chamava de “olho do nazismo” é
simplesmente fazer história e “transformar plenamente o nazismo em objeto da história”
(CHAPOUTOT, 2022, p. 19).
Concluo reafirmando que sequer tenho a pretensão de dar uma resposta para o
problema da consciência dos nazistas, ou da moral dos seres humanos e da possibilidade
da onipresença do mal, tampouco quero apresentar quais são os verdadeiros motivos que
levam os indivíduos a fazer o que fazem. Busco, contudo, demonstrar como os nazistas
se apresentam no Julgamento de Nuremberg e contribuir para compreensão desse
período. Essas fontes, com suas particularidades próprias, não deixam de ser um material
rico de análise e não devem ser deixados de lado meramente pelo princípio de “não dar
voz aos nazistas”. Afinal, eles têm voz – e ainda tem voz. Ouvi-los não quer dizer perdoá-
los ou entendê-los em seus erros. Quer dizer lançar um olhar mais profundo para essa
ideologia e complexificar mais esse objeto. Todorov alerta que nos recusar “a acreditar
neles e, finalmente, a ouvi-los” é um mecanismo de defesa: “se o fizéssemos seríamos
obrigados a repensar radicalmente a própria vida. São dores que preferimos ignorar”
(TODOROV, 1995, p. 281). Chapoutot está absolutamente correto quando diz que “é
intelectualmente mais desestabilizador, humanamente mais perturbador e, para dizer a
verdade, psicologicamente mais perigoso penetrar numa maneira de encarar o mundo –
uma visão de mundo, portanto – que foi capaz de conferir sentido e valor a crimes
inomináveis” (CHAPOUTOT, 2022, p. 19). Entretanto, ele também tem razão ao concluir
que esse é um risco necessário para a compreensão desse passado. Por esse motivo, sem
pretender dar explicações simples para perguntas difíceis, busco oferecer caminhos de
respostas possíveis que espero que sejam úteis ao leitor. Afinal, como lembra Christopher
Browning:
56
PARTE II:
Peripeteia37
Desnazificação?
37
Um “ponto de virada decisivo (a decisive turning point)”, termo em latim usado pelo advogado Dr. Dix
durante o caso de Hjalmar Schacht (BS, 12, pp. 452-453).
38
Parte da minha argumentação nessa seção e na próxima foi retirada e adaptada do capítulo que escrevi.
Ver VISCONTI, 2022.
57
uma prisão adjacente, e, ainda, por ser de fácil acesso. O fato de ter um simbolismo por
ter sido o palco das leis de Nuremberg e dos comícios do Partido era apenas um bônus.
Além de tudo, Nuremberg ficava na zona estadunidense de ocupação (PRIEMEL, 2016).
No entanto, existiam inúmeras dificuldades para construir esse tribunal, não somente em
relação à reunião de provas, à construção dos argumentos e à formulação das denúncias,
mas sobretudo, em relação ao próprio objetivo. Como lembra Robert Gellately, “a questão
do destino dos líderes nazistas é de natureza política, e não judicial” (GOLDENSOHN,
2005a, p. 11). Estava claro, portanto, como “nunca houve um plano ou uma política fixa
e bem definida em Nuremberg” (SMITH, 1979, p. XVII).
39
A jurisdição inicialmente previa cobrir os crimes dos países europeus do Eixo, contudo, houve uma
enorme falta de interesse no caso italiano, sobretudo após a morte de Mussolini, e isso levou a inicialmente
apenas os alemães serem julgados mediante uma corte internacional (PRIEMEL, 2016). Entre 1946 e 1948
ocorreu também o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, também conhecido como
Julgamento de Tóquio, responsável por julgar os crimes cometidos pelo Império do Japão durante a
Segunda Guerra Mundial. É válido lembrar, entretanto, que os crimes cometidos pelo Japão em sua
ocupação na Coreia e na China não foram tratados nesse tribunal.
58
saber:
A Acusação 1 era a “menina dos olhos” dos Estados Unidos e previa que “os
acusados haviam ‘participado como líderes, organizadores, instigadores ou cúmplices de
formulação ou execução de um plano comum ou conspiração para cometer, ou que
envolvia o cometimento de Crimes contra a Paz, Crimes de Guerra e Crimes contra a
Humanidade’” (GOLDENSOHN, 2005a, p. 15–16). Era basicamente uma acusação que
englobava todas as outras e pautava todo o caso estadunidense, ainda que por si só não se
sustentasse juridicamente por se tratar de um aspecto teórico que impõe dificuldades na
apresentação de provas concretas em um tribunal. A Acusação 2 indiciava os réus “que,
durante muitos anos, ‘participaram do planejamento, preparação, início e
empreendimento de guerras de agressão, guerras essas que também violavam os tratados,
acordos e garantias internacionais’”. Uma acusação curiosa, que englobava a invasão
alemã na Polônia, mas que excluía o papel da União Soviética nessa invasão. A Acusação
3 “acusou os réus de possuírem um ‘plano comum ou conspiração para cometer crimes
de guerra’. A realização desse plano teria envolvido a prática da ‘guerra total’, que
excedia ‘as leis e costumes da guerra’”. Dessa forma, “os réus foram acusados de crimes
como o assassinato de populações civis e prisioneiros de guerra, além de maus-tratos
infligidos a eles, deportações e exploração do trabalho escravo, o assassinato de reféns e
a pilhagem e destruição injustificável de cidades e aldeias”. A última e mais controversa
Acusação, previa crimes contra a humanidade, incluindo “‘assassinato, extermínio,
escravização, deportação e outros atos desumanos cometidos contra populações civis
antes e no decorrer da guerra’” e também a “‘perseguição por motivos políticos, raciais e
religiosos na execução do, ou ligada ao, plano comum mencionado na acusação um’”
(GOLDENSOHN, 2005a, p. 15–16).
O tribunal foi composto por um juiz britânico que presidia os processos e mais
um juiz de cada país Aliado. Apesar de, no papel, os Estados Unidos serem os
responsáveis pelas Acusações 1 e 2 e a União Soviética e a França serem responsáveis
pelas Acusações 3 e 4, o que permaneceu foi uma grande imprecisão com acusações
59
“os réus ali estavam como representantes das organizações e dos episódios do Terceiro
Reich que os Aliados acharam mais repreensíveis e mais merecedores de punição. É
preciso acentuar o caráter coletivo e representativo dos réus” (SMITH, 1979, p. 13). De
fato, como ficará claro ao longo da tese, muitos dos nazistas estavam no tribunal como os
representantes não somente das organizações, mas também, como os representantes dos
homens ausentes.
40
Destes, três pediram que a execução fosse feita por fuzilamento, uma morte considerada mais digna e
padrão para oficiais militares: Alfred Jodl, Wilhelm Keitel e Erich Raeder. Os pedidos foram negados e
todos foram executados em 16 de outubro de 1946 por enforcamento, com exceção de Hermann Göring
que se suicidou na noite anterior.
41
NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeitpartei) era o Partido Nazista; a SA (Sturmabteilung) era
conhecida como a Tropa de Assalto nazista, uma organização paramilitar; a SS (Schutzstaffel) era uma
organização paramilitar que servia como Tropa de Proteção, mas que a partir de 1939 contava com o seu
próprio exército armado independente do exército nacional; a Gestapo (Geheime Staatspolizei) era a polícia
secreta do Estado.
61
Military Tribunals.
Nuremberg e o Holocausto
própria noção de guerra total. Como pontua Smith, a Acusação 4 “é a consequência lógica
da guerra total. […] Permitiu-se assim que fossem julgados ‘criminosos de guerra’
anteriores à própria guerra” (SMITH, 1979, p. 15).
Ainda que essa não seja uma tese sobre o Holocausto, o extermínio sistemático
dos judeus ocupa um espaço considerável na construção do meu raciocínio. Mesmo que
nem todos esses homens estivessem diretamente envolvidos com o genocídio e nem
sequer estivessem sendo acusados ou julgados sobre essa questão, foi em Nuremberg que
começou a se delinear o debate sobre o papel de Hitler na Solução Final. Nesse
julgamento já estava sendo colocado em pauta se existiu, de fato, uma ordem direta de
Hitler para seus subordinados demandando que os judeus fossem assassinados. Se tal
ordem não existiu, qual seria o papel de cada indivíduo dentro da cadeia de comando na
execução dos assassinatos? Qual seria, então, a dimensão da culpa a nível regional e como
a confusa burocracia do Terceiro Reich compreendeu o seu próprio papel?
Historiadores estruturalistas, por outro lado, ressaltam que Hitler não poderia
ser responsabilizado como um grande estrategista que tinha intenções claras e definidas
desde os primórdios do movimento nacional-socialista, visto que o caminho em direção
ao Holocausto foi inserido dentro da desorganização da estrutura interna do NSDAP,
onde burocratas tais como Eichmann muitas vezes tomavam decisões baseadas nas suas
interpretações das ordens que recebiam. Neste sentido, a dinâmica contraditória interna
possibilitava o caos entre os funcionários, o que leva a conclusão de que Hitler não havia
de fato dado uma ordem direta quanto ao genocídio dos judeus: a Solução Final teria
ocorrido muito mais pela interpretação dos funcionários do Partido, do Imperativo
Categórico do Terceiro Reich, o “agir de tal modo que o Führer, se souber de sua atitude,
aprove” (ARENDT, 1999, p. 153). Como é possível perceber, em Nuremberg, essas
discussões já estavam postas: afinal, o argumento da acusação estadunidense de “crime
de conspiração” perpassa a teoria intencionalista e a justificativa da defesa está
profundamente amparada na teoria estruturalista.
42
Sobre esse ponto, tenho muito a agradecer ao Newton Bignotto por todas as suas aulas sobre o conceito
de totalitarismo que tive o prazer de assistir ao longo dos anos.
66
Dessa forma, para alguns desses nazistas, existe, efetivamente, uma dimensão
de crença, do que significa ser nazista, do mito ariano, como propõem o historiador
Christian Ingrao e os filósofos Philippe Lacoue-Labarthe e Jean Luc-Nancy.
Destrinchando a parte teórica de Mein Kampf, de Adolf Hitler, e O mito do século XX, de
Alfred Rosenberg, Lacoue-Labarthe e Nancy compreendem o mito nazista como
formador de uma identidade e delimitador de uma diferença fundamental. Essa
identidade, entretanto, não é algo que está naturalmente posto: “nem como um fato, nem
como um discurso, mas que é sonhado. A potência mítica é propriamente a do sonho, a
da projeção de uma imagem com a qual nos identificamos” (LACOUE-LABARTHE;
NANCY, 2002, p. 49–50). Esse sonho que precisava ser sonhado e despertado
frequentemente dependia fundamentalmente da crença nesse sonho. E a raça ariana, com
toda a sua potência, era a grande portadora desse mito, que, ao fim e ao cabo, era um mito
fundador. Como lembra Johann Chapoutot, os nazistas acreditavam que o povo
germânico era apenas um galho do povo nórdico original, e, por isso, “a raça germânica
era ontológica e biologicamente moral” (CHAPOUTOT, 2018, p. 39).
própria sorte. E naquela hora derradeira, era imperativo e urgente que os alemães
tomassem de volta para si o seu direito natural de existir. Afinal, de acordo com o próprio
Hitler, “não é necessário que um de nós viva, mas é necessário que a Alemanha viva”
(CHAPOUTOT, 2018, p. 89). Essa perspectiva também é observada em alguns nazistas
em Nuremberg, sobretudo os pertencentes à categoria ex-nazistas arrependidos, que
buscavam demonstrar que, ainda que eles estivessem sendo julgados naquele tribunal, a
Alemanha não deveria ser posta a julgamento. Seguindo a cartilha nazista, esses homens
ainda acreditavam que os alemães eram bons por natureza.
A Alemanha era, portanto, o grande “mito ainda não realizado do século XX”,
que precisava, enfim, despertar para seu próprio potencial, uma vez que “a crença não
surge por si, ela deve ser despertada e mobilizada nas massas” (LACOUE-LABARTHE;
NANCY, 2002, p. 63). Em Nuremberg, muitos nazistas seguem repetindo os princípios
desse aspecto do mito, ao afirmarem que a Alemanha, até a ascensão do nazismo, nunca
tinha experienciado um Estado forte e verdadeiramente alemão. Essa “identidade mítica”,
“verdadeira e potente” era a “identidade da Alemanha”, que tinha sido despertada apenas
por Adolf Hitler (LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002). Nesse sentido, para os
filósofos Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, o hitlerismo era uma “exploração
lúcida – mas não necessariamente cínica, pois ela mesma está convencida – da
disponibilidade das massas modernas ao mito”. E, assim, a “manipulação das massas não
é apenas uma técnica: ela é também um fim, se, em última instância, é o próprio mito que
manipula as massas e nelas se realiza” (LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002, p. 63–
64). Essa concepção também está presente no discurso de nazistas no tribunal, como é o
caso de Hjalmar Schacht, que acredita que Hitler havia sido influenciado pelas massas na
mesma medida em que as massas haviam sido influenciadas por ele. Assim também o é
para Ian Kershaw: o mito de Hitler havia sido imposto ao Führer antes mesmo que ele
próprio tivesse acreditado nesse mito (KERSHAW, 2001).
tivessem sido apresentadas para a grande maioria desses homens por Adolf Hitler, tais
bases eram, para muitos, mais fortes e mais seguras em seu sistema de crenças do que o
homem que os levou a esse caminho. O caminho para o mundo ariano era mais firme e
mais facilmente vislumbrado pois compunha todo um sistema de crenças que se
sustentaria sem o Führer – e, de fato, se sustentou. Quando identificamos discursos
neonazistas nos dias atuais é possível observar que nem todos exaltam a figura de Hitler.
Na verdade, alguns movimentos de extrema-direita sequer se declaram neonazistas, por
não enxergarem nenhuma identificação de suas concepções com o Terceiro Reich ou com
o contexto do século XX. No entanto, se olharmos com cuidado, podemos perceber
permanências e manutenções de ideias que, apesar de não serem exatamente as mesmas,
possuem suas bases na crença de uma visão de mundo na qual existe uma superioridade
nacional e um desejo de limpeza étnica – é o caso das premissas políticas da AfD
(Alternativ für Deutschland), partido de extrema direita alemão, fundado em 2013, que
possui setores anti-islâmicos, machistas e homofóbicos e que busca uma reascensão da
Alemanha como uma grande potência superior em sua cultura. Há aqui, mais uma vez,
motivos generalizantes (KNITTEL; GOLDBERG, 2019), e estes são pautados,
sobretudo, no racismo.
demonstrada por outra realidade mais forte ou melhor” (ARENDT, 1989, p. 412), algo
que Hitler em Mein Kampf já havia compreendido: uma ideologia só pode ser combatida
por outra visão de mundo que a supere. A batalha necessária é no nível do acreditar,
muito mais do que na esfera da política tradicional.
O Terceiro Reich foi o regime de Adolf Hitler, mas foi, sobretudo, o regime de
homens convictos de seu papel na construção de uma utopia. Essa utopia e esse mundo
novo, a ser feito ariano, não permitia cores intermediárias, como afirma Hans Fritszche,
de maneira que o papel histórico de cada indivíduo também só poderia ser o de vencedor
ou de perdedor. Em Nuremberg estava claro, portanto, que os que restaram daquele Reich
idealizado, eram os perdedores.
70
O legado de Nuremberg
O regime nazista trouxe um colapso quase total dos antigos padrões morais. Os
Dez Mandamentos, cuja base cristã fazia com que os homens se sentissem moralmente
obrigados a cumprir, foram totalmente solapados. Como consequência, o “Não Matarás”
e o “Não prestarás falso testemunho” se transformaram do dia para noite em “Matarás” e
“Prestarás falso testemunho”. E é aqui que se encontra a atividade do pensar e sua relação
com o conceito de banalidade do mal – este, também, constantemente referenciado na
tese. Esse novo tipo de mal surgido nas sociedades de massa totalitárias está pautado,
sobretudo, na ausência de pensamento (ARENDT, 2004). O mal banal é, para Arendt, um
mal extremo, que ocupa o lugar do normal, mas que não é radical, uma vez que não possui
raízes profundas. Esse é mais um dos pontos em que Arendt foi amplamente
incompreendida. Para a filósofa, a banalidade do mal representava o mal realizado por
Ninguém, ou seja, por homens e mulheres tão dispostos a cumprir seu dever com
43
Parte dessa argumentação foi apresentada e elaborada com mais profundidade no episódio “#02:
Desnazificação?” do podcast Desnazificando, produzido pelo Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e
Holocausto (NEPAT). O episódio está disponível em: https://anchor.fm/desnazificando/episodes/02---
Desnazificao-egcn0s (Acesso em 29/01/2023)
72
Ele levou tão longe a dicotomia entre funções públicas e funções privadas,
entre profissão e família, que não consegue mais encontrar, em sua própria
pessoa, nenhuma ligação entre ambas. Quando sua profissão o obriga a
assassinar pessoas, ele não se considera um assassino, pois não fez isso por
inclinação pessoal, e sim em seu papel profissional. Por ele mesmo, jamais
faria mal a uma mosca. Se dissermos a um membro dessa nova categoria
profissional gerada por nossos tempos que ele é responsável pelo que fez, a
única coisa que ele sentirá é que foi traído. Mas se, sob o choque da catástrofe,
ele realmente toma consciência de que não era apenas um funcionário, mas
também um assassino, sua saída não será a revolta, e sim o suicídio.
(ARENDT, 2008a, p. 159)
individual deve ainda ser moral; uma ação recomendada pela sociedade – mesmo por
todo o conjunto da sociedade em uníssono – pode ainda assim ser imoral” (BAUMAN,
1998a, p. 206). A capacidade de julgamento para distinguir o certo e o errado é algo que
deve se basear além da consciência coletiva da sociedade e, por isso, enxergar os nazistas
como loucos e sádicos que fizeram tudo por terem uma “doença”, diminui a culpa e a
carga de responsabilidade do que realmente precisa ser analisado. Bauman chama atenção
para o perigo de entender a moralidade como um “produto social e explicada em termos
causais por referência a mecanismos que, se funcionam adequadamente, garantem seu
‘abastecimento constante’”, uma vez que, compreendida assim, o comportamento imoral
passa a ser visto como “‘desvio’ da norma e, em última análise, da deficiência ou
imperfeição dos mecanismos sociais destinados a exercer tais pressões” (BAUMAN,
1998a, p. 202–203). Para Bauman, portanto, a moralidade não é um produto da sociedade,
e sim algo que a sociedade manipula e utiliza. Sendo assim, os seres humanos têm a
responsabilidade moral de resistir à socialização. Isso significa que a minha
responsabilidade enquanto ser humano é incondicional: ela diz respeito ao Outro, à minha
relação com esse Outro e está inerente a mim enquanto humano. O dever moral só conta,
então, com essa responsabilidade humana essencial pelo Outro e, por isso, muitas vezes,
posturas morais são posturas de resistência.44
44
Esse parágrafo e alguns trechos dessa seção foram retirados e adaptados da minha dissertação de
mestrado. Ver: VISCONTI, 2017.
74
terríveis. Passados anos desse julgamento, sabemos que essa percepção não mudou tanto
e que não estamos vacinados contra essas armadilhas argumentativas. Contudo, como
alerta Bauman,
Hoje sabemos que escolher esse conforto não vem sem seus próprios riscos. No
nazismo e na atualidade, os atos podem ser monstruosos, mas os atores raramente são
monstros (TODOROV, 1995, p. 276). Em Nuremberg, a acusação ocupa o papel do dedo
acusador para demonstrar quais são as máximas consequências da aceitação dos
extremos. Ainda que hoje possamos ponderar sobre vários cursos de ação que poderiam
ter sido tomados durante o Julgamento de Nuremberg, como lembra Todorov, “o ódio ao
mal é, portanto, legítimo e, nesse exato momento da história, o nazismo encarna o mal,
como também todos aqueles que estão alistados no aparelho hitlerista e que não deram
provas de que não aderiram a ele.” Por isso, tanto na época quanto no presente, “combater
o nazismo não é responder ao mal com o mal, mas trabalhar pela erradicação do mal”
(TODOROV, 1995, p. 266). Todorov conclui, com razão, que não podemos tirar lições
sobre a natureza do homem com a experiência do totalitarismo, pois os homens ou não
são nem bons nem maus por natureza, ou são os dois. Argumento ainda que, talvez, não
possamos tirar lições sobre a natureza do homem com nenhuma experiência porque a
ideia de que os homens são bons e maus permanece verdadeira, a meu ver, em todos os
períodos históricos.
****
dele tiramos” (TODOROV, 1995, p. 278). Esse é um passado traumático forjado por
centenas de milhares de “homens comuns”, nas palavras de Browning. Por esse motivo,
ainda que seja mais confortável manter esse quadro na parede, “bem emoldurado para
fazer a separação entre a pintura e o papel de parede e ressaltar como diferia do resto da
mobília”, para usar a analogia de Bauman (BAUMAN, 1998a, p. 9), é fundamental que,
ao menos periodicamente, tiremos a poeira desse quadro. Afinal, “do contrário,
arriscamo-nos a não continuar humanos” (TODOROV, 1995, p. 282).
76
Capítulo Um
Defensores fiéis
Hermann Göring
Julius Streicher
Alfred Rosenberg
Arthur Seyss-Inquart
45
As imagens dos réus que estou utilizando antes de iniciar cada caso são caricaturas feitas pelo alemão
Günter Peis durante os procedimentos em Nuremberg. Para não poluir o texto, irei referenciá-las
individualmente na bibliografia ao final da tese, porém, já deixo claro que todas estão disponíveis no acervo
digital do Museu do Holocausto de Washington (USHMM) no seguinte link:
https://collections.ushmm.org/search/?utf8=%E2%9C%93&q=Caricature+of+Nuremberg+International+
Military+Tribunal+&search_field=all_fields (Acesso em 20/09/2022)
79
Um ponto por vezes deixado de lado por historiadores é o fato de Göring possuir
um vício seríssimo em drogas.47 O vício era reconhecido por todos os médicos presentes
no julgamento e por todos os nazistas que o conheciam. O processo de desintoxicação na
prisão foi notadamente difícil para o réu e isso também deve ser levado em conta ao
analisar seu “estado mental” durante os procedimentos, para usar as palavras de Gilbert.
46
Entre a acusação formal (indictment) e o começo do julgamento, os nazistas ficaram em celas solitárias
individuais e Gilbert pede que cada um deles assine o indictment e dê um breve comentário sobre ele.
Apresentarei as falas de cada um dos réus em todos os casos.
47
Não consegui determinar precisamente se seu vício era em múltiplas drogas, mas codeína é mencionada
tanto por Gilbert quanto por Goldensohn.
80
Não foge ao próprio Göring o fato de ele ser o “segundo homem da Alemanha”,
e ele chega a, de certa forma, competir pela popularidade com o Führer: “as únicas
pessoas populares na Alemanha éramos eu e Hitler – e, no final, somente eu” (GÖRING
apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 151). Afinal, em suas palavras, ele era Hermann, um
homem do povo, enquanto Hitler permanecia em um pedestal como o Führer. Seu papel,
entretanto, durante o nazismo e depois, era de uma defesa desse regime, mais do que uma
defesa de si próprio ou de Hitler. O psicólogo Gustave Gilbert define sua defesa como
uma frente unida (united front), na qual ele tenta apresentar o Terceiro Reich como um
governo como qualquer outro na Europa daquela época. O nazismo, nesse sentido, era
apenas mais uma das formas de organização possíveis e não havia nada de excepcional
na forma como seus governantes agiam. Para construir essa narrativa, Göring tenta
apresentar os nazistas como meros “homens de Estado” tradicionais e inteligentes, com
algumas poucas exceções de “lunáticos” – que, no entanto, influenciavam Hitler para o
“mal caminho”.
Nessa frente unida, os nazistas, em sua maioria, eram governantes similares aos
de qualquer outro país europeu e, então, não havia motivo para julgá-los como diferentes.
E é nesse sentido que Göring é um bom representante da categoria defensores fiéis: sua
defesa está amparada em uma equiparação do nazismo com outros regimes políticos e,
apesar de não reconhecer a legitimidade do julgamento, prevalece no réu a vontade de
deixar um registro positivo para a posteridade. O que a História, com H maiúsculo,
deveria escrever sobre o Terceiro Reich? Para Göring, essa narrativa futura deveria
mostrar todos os inúmeros aspectos positivos do nacional-socialismo enquanto regime e
enquanto ideologia atuante na Alemanha. Seu depoimento, portanto, era uma defesa e um
registro para o futuro, não só sobre sua função, mas sobre o regime nazista e seu legado.
compreensão da ideologia nazista, era respeitado por Göring, que o entendia como um
grande intelectual sob a jurisdição de um grande fanático, Heinrich Himmler, que será
abordado em capítulo posterior. Streicher, por outro lado, para ele, não era um homem
normal: apresentava sinais de insanidade, era “um porco”, “um louco”, nas palavras do
réu. Assim, Göring tentava se afastar dos nazistas mais extremistas e, ao mesmo tempo
deixava escapar suas concepções políticas, que vão ficando mais claras com o passar do
tempo nas entrevistas. Desta forma, também, ele se isentava das acusações de extermínio
vinculadas ao racismo, já que não acreditava pertencer à mesma ala antissemita que
Rosenberg e Streicher.
Excessos
feito tudo “para garantir ao Führer o lugar de chanceler do Reich que por direito lhe
pertencia” (BS, 9, p. 254). Sobre os “excessos”, Göring afirma:
Ainda que a ascensão do Terceiro Reich tenha sido uma “revolução alemã da
liberdade” pouco sangrenta, era essencial que limites fossem estabelecidos – ainda que
por meios violentos. Os campos de concentração surgiram nesse momento como uma
necessidade fundamental para assegurar a segurança do Estado, uma questão de “remover
o perigo”. O próprio termo “campos de concentração”, de acordo com Göring, foi criado
pela imprensa internacional como uma forma de diferenciar o que acontecia na Alemanha
do que acontecia no resto do mundo. Afinal, a custódia protetiva de inimigos do Estado
e de potenciais inimigos do governo não era nada novo e “não era uma invenção nacional-
socialista”. Essa medida de defesa do Estado era a única possibilidade disponível, já que,
“se se podia ou não provar que essas pessoas estavam envolvidas em um ato de traição
ou em um ato hostil ao Estado, se se podia esperar ou não tal ato deles, tal ato deve ser
prevenido e a possibilidade eliminada por meio da prisão preventiva” (BS, 9, pp. 257-
258).
2018). E nesse sentido, a Gestapo, fundada e defendida por Göring, era a instituição mais
equipada e preparada para lutar contra esse inimigo interno.
houve uma intensificação das atividades, bem como o aumento do temor geral em relação
aos agentes e espiões da Gestapo.48 Embora na realidade a Gestapo não fosse nada do que
aparentava, o medo servia como forte mobilizador – ou, nesse caso, desmobilizador. Mais
importante do que o terror enquanto prática, era o terror enquanto conceito e sobretudo,
o medo do terror. Em outras palavras, mais importante do que a população estar de fato
sendo ouvida e vigiada a todo momento, era o medo pela possibilidade estar sendo ouvido
e vigiado a todo momento.
Tudo isso parece ter saído do romance de George Orwell, 1984, quando o
personagem principal, em qualquer lugar que vai, se depara com um letreiro, uma pintura
ou cartaz, com as inscrições “O Grande Irmão está de olho em você”. O Grande Irmão
representa justamente essa ideia de uma entidade onipresente, sempre observando todos
os passos da população. Portanto, era menos importante que os alemães estivessem de
fato sendo vigiados: o que era indispensável era que eles acreditassem nisso.49 A Gestapo
ficou conhecida como a vanguarda do home front nazista e, de acordo com o advogado
Werner Best, líder da organização, “mais importante do que a repressão de delitos já
cometidos é a sua prevenção”, já que “um ato de alta traição, uma vez cometido, já
48
Os três últimos parágrafos foram retirados e adaptados do post que escrevi para o Núcleo Brasileiro de
Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/B_csv3ig7Bb/ (Acesso em 19/09/2022)
49
Os dois últimos parágrafos foram retirados e adaptados da minha dissertação de mestrado. Ver:
VISCONTI, 2017, p. 114–115.
86
De acordo com Best, existiam duas “ideias de vida” e duas concepções sobre o
homem, a comunidade, a regulação dessa comunidade e, por fim, a polícia. Em primeiro
lugar, a visão individualista-humanista, que valorizava em excesso o indivíduo e sua
independência, já que via o mesmo valor em todos os seres humanos. A humanidade,
nessa perspectiva, seria uma composição de todos esses indivíduos e, o Estado, portanto,
serviria apenas para proteger e preservar os direitos individuais das pessoas. Por outro
lado, no entendimento racial de mundo, o povo seria a realidade da existência humana,
mas não o povo da visão humanista, e sim, “uma entidade que transcende as pessoas
individuais e que perdurou ao longo do tempo, uma entidade definida por uma unidade
de sangue e de espírito” (CHAPOUTOT, 2018, p. 213). Nesse sentido, as pessoas, no
coletivo, são vistas como uma entidade que são o valor supremo da vida, e não o
indivíduo. O Estado, então, seria apenas um grupo de instituições que implementa e
preserva a ordem racial, e, a polícia, uma dessas instituições. Göring estava totalmente de
acordo com o entendimento racial do mundo e percebia sua função e a função da polícia
e da Gestapo, como instrumentos na luta do povo alemão contra os elementos externos e
internos que ameaçavam sua existência. Os “excessos”, portanto, estavam mais do que
justificados.
É claro que, como diz o próprio Göring, “isso foi em uma época em que
ninguém pensava que seria objeto de uma investigação perante um tribunal internacional”
(BS, 9, p. 260). Após anos, “em uma discussão tranquila sobre bases legais”, como era o
caso do tribunal em Nuremberg, muitas coisas podem soar incompreensíveis. No entanto,
seu objetivo naquele momento era demonstrar a atmosfera em que tais atos
incompreensíveis se deram, atos que nem sempre podem ser desculpados, mas que podem
ser compreendidos em vista de seu contexto (BS, 9, p. 326). Citando o primeiro-ministro
britânico Winston Churchill, em uma clara provocação aos juízes, Göring diz “na luta
entre a vida e a morte, no final, não há legalidade” (BS, 9, p. 364). E, nesse sentido, ele
também está plenamente de acordo com o que Hitler declara em Mein Kampf, anos antes:
“ninguém tem liberdade de errar à custa da posteridade, isto é, da raça” (HITLER, 2005,
p. 189).
Partido deveriam ser alcançados de qualquer forma, mesmo que formas ilegais. Afinal,
quem define o que é ilegal e o que não é? Essa é uma concepção que varia de acordo com
o momento e com o regime em questão: “se eu almejo uma revolução, então ela é uma
ação ilegal para o Estado então existente. Se eu for bem-sucedido, então [a revolução] se
torna um fato e, portanto, legal e dentro das leis” (BS, 9, p. 262). Ao obedecer às leis da
vida, o alemão estava sempre certo, uma vez que “o comportamento ético de um homem
é o resultado de sua visão de mundo”, e, “nossa ideologia é o nosso próprio código moral”
(CHAPOUTOT, 2018, p. 245). Por esse motivo Göring não reconhece a autoridade de
um tribunal internacional para julgar a Alemanha, um Estado “soberano” que agia de
acordo com as suas leis. Nuremberg era, em sua visão, de uma “presunção que é única na
história” (GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 193).
50
Não cabe aos propósitos desta tese fazer uma análise sobre o conceito de fascismo, entretanto, é válido
ressaltar que os próprios nazistas não se consideravam fascistas. Quando este conceito está sendo usado
aqui diz respeito à interpretação de Michael Mann, na qual o nazismo é uma variação do fascismo, ainda
que muito diferente do fascismo italiano.
88
Partido Nazista explorou amplamente esse inimigo fictício como uma fachada para o
objetivo real, que era o da conquista do Estado. Essa “ameaça marxista” e esses
“arruaceiros comunistas ou socialistas” podiam ser neutralizados pelo paramilitarismo e
por uma visão de mundo que transcendia a perspectiva de uma sociedade de classes. O
sentimento geral era o de “já tentei outros, chegou a hora de dar uma chance a Hitler”
(MANN, 2008, p. 262).
Número Dois
Adolf Hitler, em seu livro Minha Luta, já havia delineado alguns pontos
fundamentais para a compreensão do que viria a ser o Princípio de Liderança do Terceiro
Reich. De acordo com Hitler, o Führer “assume responsabilidade de tudo”, mas poderia
ser destituído de seu cargo pelos adeptos do movimento caso perceba-se que ele tenha
“abandonado os princípios fundamentais da causa ou tenha servido mal aos seus
interesses”. Sendo assim, qualquer indivíduo que desejar ser o líder de um movimento e
de uma nação “terá a mais ilimitada autoridade, ao lado da mais absoluta
responsabilidade”, e, por esse motivo, “só o herói está em condições de assumir esse
posto” (HITLER, 2005, p. 254). Esse herói, personificado no líder, tem uma posição única
no totalitarismo e distinta dos líderes de outros partidos e movimentos comuns: ao mesmo
tempo em que o líder tem total responsabilidade, “cada funcionário não é apenas
designado pelo líder, mas é a sua própria encarnação viva, e toda ordem emana
supostamente dessa única fonte onipresente” (ARENDT, 1989, p. 424). A consequência
prática dessa identificação do líder com o funcionário e do funcionário com o líder é que
“ninguém se vê numa situação em que tem de se responsabilizar por suas ações ou
explicar os motivos que levaram a elas”. A resposta de cada um sempre será: “não me
pergunte, pergunte ao líder”, já que “estando no centro do movimento, o líder poderá agir
como se estivesse acima dele” (ARENDT, 1989, p. 425). E é por esse motivo que Hitler
aparece como o grande culpado em Nuremberg, o homem ausente sendo constantemente
julgado.
51
Esse trecho foi retirado e adaptado do artigo que escrevi. Ver: VISCONTI, 2020.
91
Dar ao Führer poderes absolutos não era uma condição básica para se livrar de
Versalhes, mas para colocar em prática nossa concepção do Princípio da
Liderança. Dar a ele nosso juramento antes que ele se tornasse o chefe do
Estado era, de acordo com as condições então existentes, uma questão óbvia
para aqueles que se consideravam membros de seu seleto corpo de liderança.
Eu não sei e não posso dizer exatamente como o juramento foi dado antes da
tomada do poder; eu só posso dizer o que eu mesmo fiz. Depois de certo
período de tempo, quando eu tinha adquirido mais conhecimento sobre a
personalidade do Führer, eu lhe dei a mão e disse: ‘Eu uno meu destino com o
seu para o bem ou para o mal: eu me dedico a você nos bons tempos e nos
maus, até a morte’. Eu realmente quis dizer isso (I really meant it) – e ainda
quero. (BS, 9, pp. 439-440, grifos meus)
Esta censura [às atitudes de Hitler no final da guerra] foi feita contra ele por
um grande número de comandantes do Exército e de grupos do Exército. Foi
fácil para eles fazer essa censura porque estavam fora do alcance de Adolf
Hitler e não precisavam apresentar nenhuma proposta. Eu sei que,
93
Para Goldensohn, ele também declara que “os generais do exército de repente
ficaram todos mais espertos que Hitler. Mas quando ele estava comandando as coisas,
eles ouviam o que ele dizia e buscavam seu conselho” (GÖRING apud GOLDENSOHN,
2005a, p. 153). É inaceitável, em sua perspectiva, que os generais que haviam perdido a
guerra estivessem no banco dos réus fazendo críticas a Hitler e isso lhe parecia, de muitas
maneiras, oportunista. Göring afirma que, caso a Alemanha tivesse ganhado a guerra,
“esses réus e generais estariam agora dizendo, ‘Heil Hitler’, e não fariam essas malditas
críticas”. Essa declaração, que não deixa de ter uma grande parcela de verdade, demonstra
mais uma vez a compreensão que Göring tem do papel político daquele tribunal e das
circunstâncias específicas que os julgados estavam submetidos. Atribuir a culpa a Hitler
era uma maneira fácil de se isentar da própria responsabilidade. No entanto, boa parte
dessa culpa sequer existiria se a Alemanha tivesse sido vitoriosa na guerra.
quando seu ponto de vista era diferente do de Hitler, ele não poderia impor sua vontade:
“se eu tivesse imposto minha vontade todas as vezes, provavelmente teria me tornado o
homem Número Um.”. No entanto, “como o homem Número Um tinha uma opinião
diferente, e eu era apenas o homem Número Dois, sua opinião naturalmente prevaleceu”
(BS, 9, pp. 427-428). E aqui, novamente, o Reichsmarschall compreende que o grande
erro de Hitler não estava no Terceiro Reich como um todo, e sim, nos últimos anos da
Segunda Guerra Mundial.
Ele não apenas tornou a Alemanha a maior, mais respeitada e temida das
potências da Europa e não só reuniu os alemães da Áustria, Boêmia e Morávia,
a maioria desejando entusiasticamente aglutinar-se em uma Grande Alemanha
– mas deixou longe das realizações de Bismarck, e tudo isso sem disparar um
único tiro, sem guerra. Ele deu prosperidade e confiança aos alemães, o tipo
de prosperidade que é um dos resultados da confiança. A década de 1930, após
1933, foi de dias ensolarados para a maioria dos alemães: algo que permaneceu
na memória de uma geração inteira. Os campos de concentração, a eliminação
dos judeus alemães, a vulgaridade rouca da propaganda nazista estiveram
presentes e dolorosamente nítidos na mente de uma minoria amargurada
(LUKACS, 1998, p. 78).
estava claro desde o começo, podemos entrar nas diversas polêmicas acerca do
conhecimento da população alemã do que estava acontecendo em seu país, podemos
refletir sobre a linha de ação tomada por Hitler a partir de 1939. No entanto, como
estratégia de defesa, os nazistas traçam uma linha divisória marcante entre 1933 e os
últimos dois anos da guerra. O que Göring diz em suas declarações é precisamente esse
embate: a crença no Führer perpassa pela negação do lado sombrio que sempre esteve
presente em suas proposições.
Frente unida
Acredito, ainda, que é possível fazer uma análise da vaidade deste réu em seu
discurso: ao declarar constantemente que seu papel no Terceiro Reich era muito relevante
e que ele era o segundo homem depois de Hitler, Göring está exaltando a si próprio como
um grande estadista. Por conta dessa vaidade, o psicólogo Gustave Gilbert o define,
inclusive, como um “egoísta patológico”. Entretanto, quando percebe a relação direta
entre ser um homem muito importante dentro de uma organização e ser, portanto,
responsável pelas atrocidades dessa organização, Göring se desloca para o lado da traição
e da atribuição de culpa a outros homens e outros setores, sob os quais ele afirma não ter
nenhuma jurisdição. O Reichsmarschall cai constantemente na sua própria armadilha por
uma vaidade exacerbada e pela compreensão do regime nazista como um regime como
qualquer outro. De acordo com Leon Goldensohn, Göring tinha um desejo “de sustentar
sua linha de solidariedade com tudo o que fosse nazista, todos os ‘bons nazistas’, e
produzir uma lenda da traição por essa ou aquela pessoa que explicasse a derrota da
Alemanha e a mudança de personalidade de Hitler” (GOLDENSOHN, 2005a, p. 168).
Nesse sentido, a frente unida era, na realidade, uma defesa dos bons nazistas que ele
acreditava que existiram no Reich, e que, possivelmente, ainda existiam no julgamento.
Os que aceitavam fazer parte dessa parte “boa” do regime nacional-socialista, mereciam
o apoio e proteção do Número Um em Nuremberg. Todos os que se voltavam contra o
líder – e no papel de líder está Adolf Hitler e Hermann Göring – ou contra a organização,
mereciam, pelo contrário, sua censura, rejeição, crítica e, por fim, sua invalidação como
nazista e como um réu defensável.
Selvageria
Tudo isso naturalmente resultou em uma forte atitude defensiva por parte do
Partido e levou desde o início a uma intensificação da luta, como originalmente
não era a intenção do programa. Pois o programa visava muito definitivamente
a uma coisa acima de tudo – que a Alemanha deveria ser liderada por alemães.
E desejava-se que a liderança, especialmente a formação política do destino do
povo alemão, estivesse nas mãos de pessoas alemãs que pudessem levantar o
espírito do povo alemão novamente de uma maneira que pessoas de um tipo
diferente não pudessem. (BS, 9, p. 274)
Nesse sentido, para o réu, as Leis de Nuremberg eram necessárias para fazer
essa clara separação entre as raças e excluir raças mistas. Essas leis foram promulgadas
em 15 de setembro de 1935 e consistiam em duas leis distintas: a Lei de Proteção do
Sangue Alemão e da Honra Alemã e a Lei da Cidadania do Reich. A primeira proibia o
casamento e criminalizava as relações sexuais entre judeus e não-judeus, visando impedir
a miscigenação da raça germânica. Condenava, também, a contratação de empregadas
alemãs com menos de 45 anos por judeus, inferindo que estes obrigariam as mulheres a
cometerem atos de “poluição racial”. A segunda lei determinava que apenas pessoas com
ascendência ou sangue alemão/ariano poderiam ser consideradas cidadãs do Reich.
Assim, ela demarcava que os judeus não eram mais cidadãos, mas sim “súditos do
estado”. A definição era feita por meio do mapeamento da árvore genealógica e não
apenas da aparência, ainda que esta tenha sido continuamente mobilizada pelo Terceiro
Reich para a identificação de judeus.
Essas leis reverteram o quadro de ganho de direitos civis que os judeus estavam
vivenciando desde o século XIX e serviram como base para futuras medidas antissemitas
sancionadas na Alemanha nazista, que aprofundaram ainda mais a distinção entre judeus
e alemães. Embora elas se referissem especificamente a este grupo, também eram
aplicadas aos negros e aos roma e sinti (EVANS, 2014c; GELLATELY, 2011).52
52
Os últimos dois parágrafos foram retirados e adaptados do post do Núcleo Brasileiro de Estudos de
Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/Cih-EcXM45Q/ (Acesso em 19/09/2022)
100
Para Göring, portanto, sua adesão ao antissemitismo era tangencial à sua adesão
à proposta geral do Partido Nazista. Seu entendimento era o de que possivelmente Hitler
tenha sido antissemita para dar conta da plataforma política que ele tinha proposto, já que
o antissemitismo estava na ordem do dia naquela época. Se declarar antissemita garantia
uma maior chance de sucesso e, assim, Hitler estava, mais uma vez, absolvido. Como
grande parte dos nazistas julgados, Göring relata uma série de ações individuais que diz
ter feito para ajudar os judeus, acreditando que isso comprovaria que ele não poderia ser
antissemita e tampouco apoiar ações de extermínio. Ele ainda vai além ao dizer que “se
desaprovo experiências com animais, como poderia ser a favor da tortura de seres
humanos?” (GÖRING apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 160). Segundo Göring, como ele
era contra qualquer tipo de atrocidade, caso algum dos subordinados de Himmler o tivesse
procurado, ele poderia ter tentado impedir ou fazer algo pelas vítimas. Como ninguém o
procurou, ele não sabia de nada que estava acontecendo. E, por fim, como Número Dois,
a responsabilidade sobre a questão do antissemitismo e das consequências desse
antissemitismo, era na realidade, de Adolf Hitler.
uma política de emigração, e não de extermínio. E dessa política de emigração, ele sabia
muito pouco, uma vez que ela era da alçada de responsabilidade de Himmler e da SS.
Para Gilbert e Goldensohn ele também dá declarações evasivas, dizendo não acreditar
nos números de pessoas exterminadas apresentadas em Nuremberg, e afirmando que
aquilo era “tecnicamente impossível”. Ele também recorre ao argumento de que tudo o
que se ouvia sobre atrocidades, mesmo durante o regime nazista, eram apenas rumores
ou fruto de propaganda Aliada. No entanto, ao contrário de outros julgados, sua vaidade
não permite que ele não emita opiniões sobre o antissemitismo, ou que ele fuja
completamente da questão, como é perceptível no trecho a seguir:
Ainda que não tivéssemos o menor escrúpulo em exterminar uma raça, o bom
senso proclama que, em nossa civilização, se trata de uma selvageria, sujeita
a tantas críticas do exterior e internas, que seria condenada como a maior
ação criminosa da história. Compreenda que não sou moralista, embora tenha
meu código de honra. Se eu realmente sentisse que a matança dos judeus
significa alguma coisa, por exemplo, vencer a guerra, não me incomodaria
muito. Mas ela foi tão absurda e não beneficiou ninguém, servindo apenas para
manchar a reputação da Alemanha. Tenho consciência e acho que matar
mulheres e crianças simplesmente porque tiveram o azar de ser vítimas da
propaganda histérica de Goebbels não é conduta de um cavalheiro. Não
acredito que eu vá para o céu ou o inferno quando morrer. Não acredito na
Bíblia nem num monte de coisas que as pessoas religiosas pensam. Mas venero
as mulheres e acho injusto matar crianças. Esta é a coisa que mais me incomoda
no extermínio dos judeus. A segunda coisa que desaprovo é a reação política
desfavorável que tal programa absurdo de extermínio necessariamente
provoca. Quanto a mim, sinto-me livre de responsabilidade pelos assassinatos
em massa. Certamente, como o segundo homem mais importante do Estado
depois de Hitler, ouvi rumores de assassinatos em massa de judeus, mas eu não
podia fazer nada a esse respeito e sabia que era inútil investigar tais rumores
para descobrir a verdade sobre eles, o que não seria tão difícil, mas eu estava
ocupado com outras coisas, e se tivesse descoberto o que estava acontecendo
no tocante aos assassinatos em massa, simplesmente faria eu me sentir mal e,
de qualquer modo, nada poderia fazer para impedi-los. (GÖRING apud
GOLDENSOHN, 2005, p. 175, grifos meus)
Portanto, Göring deixa explícito que seu código de moral diz respeito apenas à
reputação da Alemanha. Dessa forma, o extermínio dos judeus não era um problema por
si só: ele se tornaria um problema dependendo da forma em que fosse executado. No caso
alemão, a Solução Final não beneficiou ninguém – sobretudo, não beneficiou a Alemanha,
de modo que parece, para Göring, que isso havia sido um desperdício de tempo e de
recursos. Além disso, ele também demonstra ter consciência do que é considerado
civilizado e do que é considerado bárbaro nas civilizações ocidentais: matar outro ser
humano não é “um ato de selvageria”, mas, exterminar outra raça por completo, sim. Esse
extermínio só trouxe uma “reação política desfavorável” a Alemanha e ao povo alemão,
como um todo. A parte mais impressionante da declaração de Göring, entretanto, é a
alegação quase Arendtiana sobre o processo de pensamento. Ao dizer que se soubesse (ou
102
se procurasse saber) dos assassinatos em massa, ele apenas se sentiria mal, Göring
entende, tal como Adolf Eichmann, que quase ninguém quer ser o vilão de sua própria
história e, portanto, a ignorância conscientemente escolhida é uma forma de fugir do
pensamento e da crise moral que pode surgir desse diálogo interno do dois-em-um
(ARENDT, 2004).53
Caixão de mármore
53
Agradeço ao professor Adriano Correia por ter chamado minha atenção para esse aspecto do conceito de
banalidade do mal na minha banca de defesa da tese. Como a própria Hannah Arendt afirma, existe, de fato,
alguns indivíduos que querem ser os vilões de sua própria história – mas esse não era o caso de Eichmann
e, menos ainda, de Göring. Para Arendt, “Eichmann não era nenhum Iago, nenhum Macbeth, e nada estaria
mais distante de sua mente do que a determinação de Ricardo III de ‘se provar um vilão’” (ARENDT, 1999,
p. 310).
103
como um traidor” (GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 96), o que está de acordo com o
que o historiador Johann Chapoutot diz sobre a noção de tempo para os nazistas. O tempo
dos nacional-socialistas é o tempo da História com H maiúsculo, do eterno, uma vez que
“o nazismo era nada menos do que uma releitura de toda a história” (CHAPOUTOT,
2018, p. 17) e, para Göring, o julgamento era mais um passo dessa releitura para entrar
na História, uma história que no futuro seria reescrita e deixaria os nazistas no topo
novamente. Göring não tinha muito a dizer sobre seu destino, porque “as forças da
história, da política, do poder e da economia são grandes demais para serem controladas”
e são elas que “determinam o curso dos eventos”, em uma “cadeia inescapável”
(GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 188). E o nazismo não havia acabado apenas porque
seus chefes de Estado estavam sendo julgados naquele tribunal:
Vocês americanos estão cometendo um erro estúpido com sua conversa sobre
democracia e moralidade. Você acha que tudo o que você precisa fazer é
prender todos os nazistas e começar a estabelecer uma democracia da noite
para o dia. Você acha que os alemães ficaram um pouco menos nacionalistas
porque os chamados partidos cristãos estão garantindo a maioria dos votos
agora? Não! O Partido Nazista está banido, então o que eles podem fazer?
Eles não podem se tornar comunistas ou social-democratas, então eles se
escondem atrás das saias dos padres por um tempo. Mas não pense que os
alemães se tornaram mais cristãos e menos nacionalistas de repente. […]
Tudo o que este tribunal está conseguindo é quebrar a vontade de seguir
ordens. Não é de admirar que você não encontre pessoas com liderança real
para assumir a responsabilidade da administração na Alemanha. Você sabe por
quê? Porque os melhores dirigentes nacionalistas estão na prisão e o resto
calcula se cumprirem as leis de desnazificação agora, quem sabe, mas isso em
10 anos – após a saída dos Estados Unidos, ou uma luta entre o Oriente e o
Ocidente mudar a situação – eles serão levados perante um tribunal nacional
alemão e julgados por traição. E então eles não poderão nem se esconder atrás
das desculpas de que estavam cumprindo ordens. Então eles imaginam por que
diabos eles deveriam arriscar o pescoço. E o que o povo alemão pensa? Já lhe
disse: ‘Sempre que as coisas estão ruins (lousy), temos democracia!’. Não se
engane, o povo sabe que estava melhor quando Hitler estava no poder antes da
guerra. O que ele fez foi certo do ponto de vista nacionalista – com exceção
dos assassinatos em massa, que realmente não faziam sentido nem mesmo do
ponto de vista nacionalista. (GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 401, grifos
meus)
Nesse sentido, os réus que se apresentavam como críticos ao regime eram prejudiciais
para a imagem do nazismo, mas, os que se apresentavam como homens irrelevantes eram
tão nocivos quanto. Por exemplo, ao falar sobre a defesa de Joachim von Ribbentrop,
Göring diz que “se ele quer se safar com esse longo discurso, ele tem que torná-lo
interessante – do jeito que eu fiz. Afinal, os juízes e os repórteres querem algo interessante
para ouvir, ou simplesmente não prestam atenção” (GÖRING apud GILBERT, 1995, p.
226). Portanto, não apenas sua defesa deveria representar sua lealdade ao Terceiro Reich,
mas ela também deveria ser interessante e apresentar o réu como alguém relevante para
o regime. Então, “a pergunta em si não importa tanto quanto a maneira como você a
responde” (GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 248–249). Dessa forma, Göring era um
homem consciente da importância da maneira de se contar uma narrativa, mais do que a
narrativa em si – ou, consciente da relevância do storytelling, se formos usar os termos
de comunicação e propaganda.
Sim, suponho que esta seja minha última chance de contar ao mundo, por seu
intermédio, tudo o que sei e qual foi sempre minha visão de mundo. O estranho
disso tudo é que não me sinto criminoso e que, se tivesse estado nos Estados
Unidos ou na América do Sul ou em qualquer outro lugar, provavelmente seria
uma figura de liderança em um desses países. (GÖRING apud
GOLDENSOHN, 2005, p. 174–175, grifos meus)
De fato, sua visão de mundo não havia mudado: Göring foi em Nuremberg o
que sempre foi. Nas palavras de Gilbert, seu suicídio era mais uma representação de seu
egocentrismo: “Göring morreu como viveu, um psicopata tentando zombar de todos os
valores humanos e distrair a atenção de sua culpa com um gesto dramático” (GILBERT,
1995, p. 435). Não cabe aqui uma análise sobre uma possível psicopatia presente em
Hermann Göring, sobretudo porque a proposta da tese é precisamente a de mostrar a
normalidade desses homens, que fizeram o que fizeram sem a necessidade de se justificar
por um desvio psíquico. Como vimos na Introdução, Goldensohn e Gilbert tentam inserir
os réus nas caixinhas tradicionais da psicologia e psiquiatria da época, justificando suas
106
ações, em grande medida, por conta de uma patologia que emergia à superfície em alguns
momentos de suas entrevistas. Ainda que Gilbert tenha concluído que todos os nazistas
tinham “perfis psicopatológicos de personalidade” (KNITTEL; GOLDBERG, 2019, p. 9;
PRIEMEL, 2016, p. 124–125), de acordo com o psicólogo, é fundamental que tenhamos
uma “visão das personalidades totais em interação em seu cenário social e histórico”, de
modo que mesmo os testes de QI realizados na prisão em Nuremberg, não demonstram
“nada além da eficiência mecânica da mente, e nada tem a ver com caráter ou moral, nem
as várias outras considerações que entram em uma avaliação de personalidade”. Como o
“sistema de valores” dos nazistas “estava psicologicamente em julgamento perante o
mundo”, analisar suas narrativas “provou ser mais revelador do que a soma de todos os
testes poderiam ser” (GILBERT, 1995, p. 31).
Ironicamente, como declara o réu Hans Frank, no fim, “Göring finalmente tem
o seu desejo: se tornando o porta-voz Número Um do regime nacional-socialista – o que
resta dele!” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 200). Se tornar o Número Um teve suas
consequências. Como um defensor fiel do nazismo, seu discurso em Nuremberg foi sua
última tentativa de proteger e salvaguardar um regime ao qual ele era tão leal e devoto.
No entanto, ainda que Göring tenha ficado no passado, seguimos tendo que conviver com
as permanências desses discursos e desse regime, ao menos, a nível ideológico. Isso fica
evidente logo após as sentenças, quando Gilbert conversa com um dos advogados alemães
presentes no julgamento que lhe diz, com frieza:
Para falar a verdade, eles [os alemães] pensam o que você quer que pensem.
Se eles sabem que você ainda é pró-nazista, eles dizem: ‘Não é uma vergonha
a forma como nossos conquistadores estão tomando vingança contra nossos
líderes! Espere!’ Se eles sabem que você está enojado com o nazismo, a
miséria e a destruição que ele trouxe para a Alemanha, eles dizem: ‘Isso serve
bem a esses porcos sujos! A morte é boa demais para eles!’ Veja, Herr Doktor,
temo que 12 anos de hitlerismo tenham destruído a fibra moral de nosso povo
(GILBERT, 1995, p. 436).
107
54
Como ficará mais claro na análise do caso de Alfred Rosenberg, o Völkischer Beobachter não era apenas
amparado no antissemitismo, uma vez que possuía um leque temático mais amplo. Por ser uma edição
diária, o jornal passava por diversos aspectos da ideologia nazista para além do antissemitismo.
108
entanto, permaneceu alta mesmo durante a guerra, chegando a mais de 300 mil
exemplares (KERSHAW, 2001, p. 247). Streicher foi declarado culpado por crimes
contra a humanidade e executado em 16 de outubro de 1946.
psicopata com conflitos sexuais e outros, cuja inadequação encontrou expressão numa
preocupação obsessiva” (GOLDENSOHN, 2005b, p. 253–254). Streicher, visto como um
indivíduo “grosseiro e depravado” pelos espectadores em Nuremberg (PRIEMEL, 2016,
p. 122) teve o QI mais baixo dos testes aplicados entre os nazistas na prisão. Ele foi
examinado por diversos médicos, a saber: Dr. Krasnushkin de Moscou, Coronel
Schroeder de Chicago, Dr. Delay de Paris, além de Gustave Gilbert e Leon Goldensohn.
Todos os psiquiatras designados consideraram que ele tinha uma obsessão neurótica e
paranoica pelo antissemitismo, ainda que não fosse clinicamente insano, o que
significava, portanto, que ele poderia enfrentar o julgamento normalmente. Seu caso
talvez seja o que toca mais profundamente na questão da patologização dos nazistas nesse
período do imediato pós-guerra.
Streicher representa a categoria dos defensores fiéis pois não nega o que
escreveu e não nega que aquelas ainda eram suas convicções. Sobre a acusação formal,
Streicher declara a Gilbert que “esse tribunal é um triunfo do Judaísmo (Jewry)
Mundial!”55 (STREICHER apud GILBERT, 1995, p. 6). Ele insiste que o tribunal era
55
É importante reforçar que todas as vezes em que traduzi a palavra “Jewry”, escolhi utilizar o termo
“judaísmo”, para expressar o povo judeu coletivamente, e não simplesmente “os judeus”. Como utilizei os
documentos originais em inglês, não sei como os nazistas usaram a palavra no alemão para que no inglês
fosse traduzido para “Jewry”. Penso, no entanto, que é possível que tenha sido no sentido mais pejorativo
associado a “judiaria” no português. Como não temos como ter certeza do tom utilizado, preferi manter
“judaísmo”.
110
injusto por ser composto por judeus: ele acreditava que os três juízes e os advogados de
acusação eram judeus, afinal, ele sabia “reconhecer o sangue” (STREICHER apud
GILBERT, 1995, p. 41). Entretanto, apesar de muito seguro de si e de suas crenças,
Streicher era desprezado por todos os outros nazistas no banco dos réus, que o
enxergavam como um “fanático” e um sujeito reconhecidamente abjeto. Hans Frank o
define como um ser com “caráter repulsivo” (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 82) e ele
era evitado “como a praga”. Como veremos, dentro da ala dos antissemitas, Rosenberg
tenta se distanciar de Streicher para ser visto como um intelectual, e o próprio Streicher
define Rosenberg como o “administrador espiritual do movimento”, ao contrário dele,
que estava mais focado no “esclarecimento popular” (BS, 12, p. 329).
Seu caso é polêmico desde o princípio, já que ele entra em longos debates com
seu advogado de defesa durante seu interrogatório por considerar que sua defesa não
estava sendo feita de forma justa. O réu acredita que seu advogado emite julgamentos
contra suas falas, ao invés de simplesmente defender seu caso. A tensão com seu
advogado culmina com Streicher sendo chamado de insolente pelo tribunal após
pronunciar que ele gostaria que seu advogado “não expressasse nenhum julgamento sobre
o que escrevi; [peço] para ele me questionar, mas não para expressar julgamento. A
acusação vai fazer isso” (BS, 12, p. 336). Dessa forma, o réu, por conta de sua atuação e
de sua personalidade, é, talvez mais do que outros, julgado constantemente por todos os
presentes em Nuremberg – e essa é uma perspectiva que perpassa toda a sua narrativa.
Contudo, ele não faz questão de mudar a opinião de ninguém sobre sua pessoa: Streicher
segue defendendo veementemente princípios extremamente antissemitas em todos os
seus discursos.
Atividade iluminadora
Esses eram fatos, simples assim. O destino o levou a esse ponto de sua vida, e
ele não se arrependia de nada: Streicher ainda tinha orgulho de sua visão de mundo. Seu
jornal, Der Stürmer, continha a verdade. Ele era, portanto, um defensor dessa verdade,
uma verdade que havia sido sustentada por séculos pela literatura antissemita e, de acordo
com sua visão, pelos próprios judeus. Sua obra e sua produção só poderiam ser definidas,
então, como uma “atividade iluminadora (enlighten activity)”: ele queria informar o povo
alemão e esclarecer a questão judaica de uma vez por todas. Para Streicher, suas palavras
não pregavam o ódio religioso porque os judeus não eram um grupo religioso, e sim, uma
raça. Como ele diz ao psicólogo Gustave Gilbert: “os judeus estão cometendo um erro se
me fizerem um mártir; você verá. Eu não criei o problema; ele existe por centenas de
anos” (STREICHER apud GILBERT, 1995, p. 73).
Para Streicher, portanto, a questão era clara: como era possível denominar uma
declaração de fatos, fatos comprovados cientificamente, de incitação de ódio? Como
Eichmann faria anos depois, Streicher afirma que escreveu propaganda, mas não fez as
leis discriminatórias contra os judeus, não foi consultado sobre as leis e não agiu de
acordo com essas leis. Portanto, ele não possui responsabilidade nesse sentido. Ele diz:
“isso não tem nada a ver com o que escrevi, nada a ver com isso. Eu não dei as ordens.
Eu não fiz as leis. Não me perguntaram quando as leis foram preparadas.” (BS, 12, p.
348). Ele tinha, então, a consciência limpa, como diz ao psiquiatra Leon Goldensohn: “Se
todos tivessem a consciência limpa como a minha, ninguém no mundo teria que tomar
remédios para dormir ou consultar médicos. Minha consciência está limpa como a de um
bebê” (STREICHER apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 258).
Ainda que não fosse responsável pelas leis discriminatórias, como as Leis de
Nuremberg, mencionadas anteriormente, Streicher permanecia convicto de sua
importância dentro do regime nazista. Para o réu, esse tipo de legislação era fundamental
em uma nação moderna e servia para sua proteção, representando um tipo de lei que os
judeus tinham para si mesmos. Nesse sentido, Streicher se coloca em diversos momentos
como um sionista, um defensor de um território próprio para os judeus. Ainda sobre as
Leis de Nuremberg, ele diz:
Sim, acredito que participei disso, pois durante anos escrevi que qualquer outra
mistura de sangue alemão com sangue judeu deve ser evitada. Eu escrevi tais
113
imputou e não via nenhuma relação entre informar e agir mediante essa informação. No
entanto, mesmo naquele ponto do julgamento, assim como Göring, Streicher ainda não
acreditava que o regime nazista havia cometido um genocídio: “até hoje não acredito que
5 milhões foram mortos. Considero tecnicamente impossível que isso pudesse ter
acontecido. Eu não acredito nisso. Não recebi prova disso até agora” (BS, 12, p. 374).
Nesse sentido, percebemos como nem mesmo os propagandistas estavam isentos de
serem arrebatados pelo poder da propaganda nazista em moldar a realidade de acordo
com os princípios do movimento.
Revolução
que “transcendeu o lugar-comum”, algo do qual ele tinha muito orgulho ainda naquele
momento. O Führer ainda era para ele objeto de adoração. Streicher diz que alguém que,
como ele, “conheceu as emoções mais profundas do Führer e sua alma”, ao ser
confrontado com seu testamento político no qual ele admite o extermínio dos judeus, se
encontra mediante um enigma (BS, 12, pp. 368-369).
Eu, além do mais, não deixei que ninguém duvidasse que, desta vez, não
somente milhões de [...] homens adultos se defrontariam com a morte, e não
somente centenas de milhares de mulheres e de crianças seriam incineradas
nas cidades e bombardeadas até a morte, mas também que os grupos
verdadeiramente responsáveis teriam de expiar sua culpa, ainda que fosse por
meios humanos (HITLER apud EVANS, 2014b, p. 832).
Para Streicher, contudo, o testamento não mudava sua opinião sobre Hitler –
ele inclusive duvidava da veracidade do documento. Afinal, o homem que ele conheceu
e que transformou a sua vida por meio da revolução nacional-socialista não era o mesmo
homem que estava sendo apresentado em Nuremberg. Como lembra Johann Chapoutot,
1933 representou para os atores uma revolução completa e não apenas uma troca de
117
governo. Essa revolução nazista, realizada sem derramamento de sangue56, havia sido um
movimento do povo, uma revolução nacional, cultural e uma insurreição do povo alemão,
em seu corpo e alma, contra uma ordem das coisas que lhes era prejudicial
(CHAPOUTOT, 2018, p. 149). Hitler acreditava que o conhecimento de que a Terra
girava ao redor do Sol levou a uma revolução na compreensão do mundo, e, assim seria
também com a doutrina do sangue e da raça. Essa nova doutrina, o nacional-socialismo,
levaria a uma revolução do conhecimento. E, como o próprio líder da SS, Heinrich
Himmler afirmou, o “nacional-socialismo é uma visão de mundo que abraça todos os
domínios da vida” (HIMMLER apud CHAPOUTOT, 2018, p. 155). As declarações de
Streicher não deixam dúvida de que ele também acreditava nesses princípios. A revolução
nacional-socialista foi o que colocou seu mundo em órbita e justamente por isso ele seguia
defendendo esse movimento.
De acordo com Streicher, os nazistas buscavam “criar uma nova fé para o povo
alemão, isto é, uma fé que negasse o caos e a desordem e que traria um retorno à ordem”
(BS, 12, p. 344). Essa nova fé requeria uma “Grande Alemanha, uma área onde todos os
alemães, pessoas de língua alemã, pessoas de sangue alemão, pudessem viver juntos”
(BS, 12, p. 346). Nesse sentido, Streicher tinha razão e seguia plenamente a cartilha
ideológica do NSDAP. Como explica Johann Chapoutot, o objetivo do movimento
nacional-socialista era, efetivamente, a criação de uma Volksgemeinschaft, uma
“comunidade do povo”, orgânica e harmônica, e não simplesmente um Estado. Essa
comunidade racial era pautada em uma homogeneidade interna em contraste absoluto
com a heterogeneidade externa e, por isso, o racismo imbricado nesse conceito unia,
consolidava, e oferecia coesão a uma sociedade até então, profundamente dividida
(CHAPOUTOT, 2018, p. 355).
Essa comunidade do povo era “uma comunidade de iguais”, que possuía uma
hierarquia interna para manter seu funcionamento. No entanto, no fundo, o nazismo era
igualitário para todos os alemães – e excludente para todos os não alemães. E quem era o
alemão, o germânico, o ariano? Um homem “com a mesma língua e a mesma cultura,
com o mesmo sangue e o mesmo destino, mesmo fora das fronteiras do Reich, [é] um
56
Como veremos no próximo capítulo, a ascensão de Hitler ao poder não ocorreu, de maneira alguma, sem
derramamento de sangue. Esse argumento, no entanto, faz parte do imaginário nazista e é retomado com
frequência pelos réus. Esse ponto também será melhor abordado em capítulos posteriores quando discutirei
a visão, constantemente propagada entre os nazistas, do Führer como um grande estadista e diplomata que
estava interessado na paz – ao menos, inicialmente.
118
Mas, para minha defesa, Sr. Promotor, quero poder dizer que as guerras
também podem ser assassinatos em massa, com suas bombas etc. E se for
provado que alguém diz que estamos forçando Hitler a entrar na guerra, então
posso dizer com certeza que um homem que sabe que Hitler está sendo forçado
a entrar na guerra é um assassino em massa. (BS, 12, p. 368)
Em sua perspectiva, portanto, quem sabia que Hitler fora forçado a guerra e não
fez nada a respeito, era de fato um assassino em massa. A conclusão óbvia era que, na
realidade, os Aliados é que eram os verdadeiros assassinos. Seguindo sua linha de defesa
do Führer, um aspecto importante de ser mencionado é a profecia de Hitler, referenciada
diversas vezes no caso de Streicher, e que tem relação direta com o último testamento do
líder. Na percepção do réu, não se sabia o que Hitler queria dizer com a profecia, mas ele
acreditava que era apenas um aviso aos judeus: “contra a ameaça deles, essa ameaça”
(BS, 12, p. 367). Ou seja, um movimento de defesa, e não de ataque – que, como já vimos,
era parte intrínseca da ideologia nacional-socialista. A famosa “profecia de Hitler” se
refere ao discurso do Reichstag de 30 de janeiro de 1939, no qual Hitler afirma que:
Após a sua defesa, Streicher busca em seus colegas sinais de aprovação e não
encontra anuência em nenhum dos réus. Por ser detestado em Nuremberg e um homem
do qual todos queriam se afastar, a defesa de Streicher não causou uma grande impressão
entre os julgados, que lhe deram as costas sem pensar duas vezes (GILBERT, 1995, p.
305). Para Hans Fritzsche, um ex-nazista arrependido, a acusação havia colocado “uma
corda no pescoço” de Streicher e que não havia mais volta (FRITZSCHE apud GILBERT,
1995, p. 306). O distanciamento dos nazistas ao colega de cela foi tão grande que,
segundo Gilbert, “havia uma relutância geral até mesmo em discutir Streicher como
alguém abaixo do desprezo” (GILBERT, 1995, p. 305). Ao receber sua sentença, ele
apenas dá um “sorriso torto”, e declara: “morte, claro. Exatamente o que eu esperava.
Todos vocês já deviam saber disso o tempo todo” (STREICHER apud GILBERT, 1995,
120
p. 432). Talvez o réu também estivesse convencido de que o veredito de seu caso fosse
mais um dos inúmeros complôs judaicos contra os nazistas. Afinal, para ele, tudo fazia
parte da grande conspiração judaica: o início e o fim do nazismo se pautavam nessa
convicção.
“Tenho que sorrir quando alguns dos réus dizem no tribunal que nunca leram meus
livros ou obras, porque é uma reflexão sobre sua incapacidade de seguir uma corrente
filosófica de pensamento”
do Mito do século XX, com o objetivo de “suprir o Partido Nazista de uma obra teórica
de peso”. Apesar de o livro ter vendido mais de um milhão de cópias em 1945, nem
mesmo Hitler dava muita importância para a obra, afirmando que “nunca leu mais do que
uma pequena parte dele” e que “não gostou do que viu como tom pseudorreligioso”.
Sendo assim, também é “improvável que mais do que uns poucos leitores dedicados
tenham conseguido abrir caminho através de seus acres de prosa empolada até o final”
(EVANS, 2014a, p. 233). Por ter vindo para a Alemanha fugido da Revolução Russa, foi
provavelmente Rosenberg que influenciou Hitler sobre a ameaça comunista aliada a
conspiração judaica. Nesse sentido, “através de Rosenberg, o antissemitismo russo, com
suas teorias conspiratórias extremistas e impulso exterminador, encontrou caminho para
dentro da ideologia nazista no início da década de 1920”. A partir daí, “o ‘bolchevismo
judeu’ tornou-se então um alvo importante do ódio de Hitler” (EVANS, 2014a, p. 234).
Esse homem, “cuja ambição pessoal era ser o filósofo do nazismo” (EVANS,
2014a, p. 507) mantém essa postura de intelectual no Julgamento de Nuremberg.
Rosenberg faz questão de se apresentar como um erudito, um homem de pensamentos
profundos e complexos, não acessíveis a todos, inclusive, não acessíveis a todos os
nazistas. Ao se colocar como um intelectual, alguém brilhante e capaz de formular teorias
filosóficas, Rosenberg se distancia de outros réus: ele busca se apresentar como um
homem inteligente e, portanto, não um nazista raso que não refletia sobre o que estava
fazendo e que seguiu Hitler cegamente. Sua arrogância “acadêmica”, por assim dizer, é
perceptível a todos os presentes no tribunal. Rosenberg chega a alertar Goldensohn para
tomar cuidado ao tomar suas notas para não “deturpar” suas “teorias e raciocínios bastante
complexos”. “Se a qualquer momento você não me acompanhar”, ele conclui ao
psiquiatra, “por favor, me interrompa, e eu explicarei melhor” (ROSENBERG apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 200).
Sua estratégia, entretanto, é um tiro que sai pela culatra. Afinal, ao adotar essa
postura, Rosenberg também acabava deixando transparecer que ele seguiu essas teorias
apesar de ser tão inteligente e erudito, como foi o caso de muitos intelectuais alemães,
como Martin Heidegger. Rosenberg formulou teorias que foram fundamentais para a
ascensão e estabelecimento do NSDAP e da ideologia nazista como um todo, mas parece
tentar se separar e se destacar como algo a mais: mais do que um nazista qualquer – um
nazista por excelência, um nazista de fundação, de base. Sua atuação nesse sentido não
se reduz ao Mito, associando-se também ao seu jornal, o diário do Partido, o Völkischer
123
Beobachter. Esse jornal nacional era “único entre os diários alemães”, e era publicado
simultaneamente em Munique e Berlim. Por ser “porta-voz da liderança do Partido,
tornou-se leitura essencial para os fiéis e de fato para qualquer um que quisesse saber o
que pensar e em que acreditar”. O diário tinha uma circulação gigantesca: ele foi o
primeiro jornal alemão a vender mais de um milhão de exemplares por dia e sua
circulação era de 1.192.500 em 1941 (EVANS, 2014c, p. 177). Völkischer Beobachter,
de Alfred Rosenberg, e Der Stürmer, de Julius Streicher, eram, portanto, os jornais mais
populares do Reich.
queria que o tribunal virasse uma “Inquisição contra uma ideologia, sem discussão sobre
o assunto” (ROSENBERG apud GILBERT, 1995, p. 257). À revelia de seus desejos, para
Rosenberg, foi exatamente isso que aconteceu.
Essa dualidade de sua figura e de sua atuação permanece viva durante todo o
caso de Rosenberg, visto e reconhecido como ideólogo, mas tendo que responder por suas
ações como ministro, e não por sua filosofia. O nacional-socialismo deveria ser entendido
como um conceito, mas, por fim, estava sendo julgado como um regime – e essa era,
afinal, a perspectiva da defesa de Hermann Göring de frente unida, como vimos.
Ausrottung
Mas não posso dizer aqui que medidas Heydrich tomou. No entanto, como
pode ser visto a partir disso, eu não poderia acreditar que uma ordem – que foi
atestada pela testemunha aqui ontem – foi dada a Heydrich ou Himmler pelo
Führer. Este relatório, e muitas outras comunicações que chegaram aos meus
ouvidos, sobre fuzilamentos de sabotadores e também de judeus, pogroms da
população local nos Estados Bálticos e na Ucrânia, tomei como ocorrências
desta guerra. Ouvi dizer que em Kiev um número maior de judeus foi fuzilado,
mas que a maior parte dos judeus deixou Kiev; e a soma desses relatos me
mostrou, é verdade, uma dureza terrível, especialmente alguns relatos dos
campos de prisioneiros. Mas que havia uma ordem para a aniquilação
individual de todo o judaísmo, eu não poderia supor e se, em nossas polêmicas,
também se falou do extermínio do judaísmo, devo dizer que essa palavra, é
claro, deve causar uma impressão assustadora em vista dos testemunhos que
achamos disponíveis agora, mas sob as condições que prevaleciam na época,
não foi interpretado como um extermínio individual, uma aniquilação
individual de milhões de judeus. (BS, 11, p. 502)
Para Rosenberg, portanto, uma situação de “dureza terrível” não queria dizer
126
genocídio. O significado das palavras e como elas estavam sendo usadas são de extrema
importância para o réu.57 Ao ser apresentado um de seus discursos, a acusação chega a
trazer um dicionário para procurar o significado da palavra “extermínio”. Isso leva a uma
sequência particularmente interessante:
57
Uma referência relevante para compreender a questão da terminologia nazista e a transformação do
vocabulário alemão durante os anos de Hitler é o livro do filólogo e sobrevivente Victor Klemperer, LTI:
A linguagem do Terceiro Reich (2009).
58
Rudolf Höss foi o comandante do campo de Auschwitz-Birkenau e o responsável pela implementação do
extermínio no campo, introduzindo novos métodos para seguir com a chamada Solução Final, incluindo o
uso do gás Zyklon-B nas câmaras de gás. Esse perpetrador estava em Nuremberg como testemunha da
acusação e foi julgado logo em seguida em outro tribunal, sendo sentenciado à morte em 1947. No entanto,
seu testemunho é um marco nos procedimentos de Nuremberg, sendo usado para mostrar o que “realmente
aconteceu” nos campos e como a máquina de morte do Terceiro Reich funcionava. Suas narrativas são
apresentadas como a “história verdadeira” do extermínio, a Verdade contada por um dos perpetradores mais
fundamentais na cadeia de comando nazista. O testemunho de Höss é apresentado logo antes da defesa de
Alfred Rosenberg, que afirma que foi um “truque baixo” usar Höss naquele momento porque tornaria difícil
para ele defender a sua ideologia após o tribunal escutar o passo-a-passo do extermínio que aquela mesma
ideologia executou (GILBERT, 1995, p. 266).
127
queria uma Reforma esclarecida, mas veja a sangrenta Guerra dos Trinta Anos com
protestantes e católicos matando uns aos outros em nome de Deus”. Estava claro para o
réu que as intenções de um movimento podem ser boas, mas que, por outro lado, não se
pode culpar os vanguardistas pelas consequências de suas ideias. Afinal, “você
responsabilizaria Lutero por essa guerra? Você não pode nos responsabilizar pelas
atrocidades que ocorreram. Essa não era a ideia original” (ROSENBERG apud
GILBERT, 1995, p. 97). A ideia original era meramente uma solução para um problema
que durava milênios – o problema do direito de existência do povo alemão. Essa era a
posição fundamental em que Rosenberg se encontrava: como um formulador da ideia
original.
muito claro quando compreendemos a conexão de suas filosofias e seu cargo de ministro,
e, sobretudo, por sua análise da retomada do espaço vital alemão, o famoso Lebensraum,
isto é, “a designação literal de um espaço que a raça necessitava para sua própria
sobrevivência” (CHAPOUTOT, 2018, p. 324). Para o réu, as terras ocupadas pelo Reich
eram terras alemãs que apenas estavam sendo tomadas de volta: “pois esta terra,
pertencente aos alemães por 700 anos e expropriada pelas jovens repúblicas da Estônia e
da Letônia quase sem indenização, certamente poderia ter sido devolvida facilmente aos
alemães” (BS, 11, p. 497).
Não obstante, de acordo com Rosenberg, outros países que ocuparam territórios
tiveram experiências parecidas e ele não poderia ter feito mais do que fez. A Segunda
Guerra Mundial, para ele, não era uma guerra de agressão, muito pelo contrário. Por esse
motivo, também, Hitler não era alguém por quem ele sentia desprezo: “servi esse
movimento nacional-socialista desde os primeiros dias e fui completamente leal a um
homem que admirei durante esses longos anos de luta, porque vi com que devoção pessoal
e paixão esse ex-soldado alemão trabalhou por seu povo” (BS, 11, pp. 514-515). Sobre
isso, retomando às questões do Princípio de Liderança, já mencionadas por Hermann
Göring, Rosenberg entende que Hitler havia sido uma exceção até dentro do próprio
movimento nacional-socialista:
Significam que afirmei que o Estado nacional-socialista não pode ser uma
casta que reina sobre a nação alemã e que o Führer de uma nação não deve ser
um tirano. No entanto, eu não vi em Adolf Hitler um tirano, mas como muitos
milhões de nacional-socialistas, confiei nele pessoalmente com a força da
experiência de uma luta de 14 anos. Eu não queria limitar seu poder totalmente,
embora consciente de que isso significava uma exceção pessoal para Adolf
Hitler, não de acordo com o conceito nacional-socialista de Estado. Nem era
este o Princípio de Liderança como o entendíamos ou uma nova ordem para o
Reich. Eu servi a Adolf Hitler lealmente, e o que o Partido pode ter feito
durante aqueles anos, também foi apoiado por mim. E os malefícios (ill
effects), devidos aos mestres errados, foram marcados por mim, em plena
guerra, em discursos perante líderes políticos, quando afirmei que essa
concentração de poder como existia naquele momento, durante a guerra, só
poderia ser um fenômeno da guerra e não poderia ser considerado como a
concepção nacional-socialista de um Estado. Pode ser oportuno para muitos,
pode ser oportuno para 200.000 pessoas, mas aderir a ele mais tarde
significaria a morte da individualidade de 70 milhões. Eu disse isso na
presença dos líderes das SS maiores e outros líderes da organização ou
Gauleiters. Entrei em contato com os chefes da Juventude Hitlerista, junto com
minha equipe, plenamente consciente de que depois da guerra teria que ser
feita uma reforma aqui no Partido, para que as velhas demandas do nosso
Movimento, para as quais eu também tinha lutado, encontrariam respeito. No
entanto, isso não foi mais possível; o destino terminou o Movimento e [tudo]
tomou um rumo diferente. (BS, 11, p. 516)
Neste sentido, para Rosenberg, após essa guerra que era justa e necessária,
deveria haver uma mudança dentro do movimento para que Hitler perdesse parte de seus
poderes, que naquele momento eram ilimitados. Um verdadeiro Estado pautado em um
Princípio de Liderança nacional-socialista não pressupunha um Líder tirano, mas um
Líder que assumisse para si a responsabilidade por todo o povo alemão. Essa perspectiva
estava de acordo com o próprio Hitler, o Líder que anos antes havia declarado que o
Estado tinha pouca importância se comparado com a raça: “a condição essencial para a
formação e uma humanidade superior não é o Estado, mas a raça” (HITLER, 2005, p.
299). Essa mudança que Rosenberg propunha não ocorreu, e o Movimento nacional-
socialista se perdeu nesse destino trágico da Alemanha. Esse era um espelho de seu
131
próprio destino, por fim: um precursor do movimento que se viu sendo julgado como um
perpetrador.
Ministro ou ideólogo?
Esse descrédito também pode ser observado com relação ao cargo de Rosenberg
como editor do jornal do Partido Nazista. Hans Fritzsche, o representante de Goebbels no
tribunal, apesar de definir Rosenberg como “o sumo sacerdote (high priest) da ideologia
nazista” (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 270), declara que sua influência era
“insignificante”: “Streicher não teve nenhuma influência na propaganda oficial alemã e
Rosenberg apenas em uma extensão que não era perceptível para mim” (BS, 17, p. 230).
Baldur von Schirach, líder da Juventude Hitlerista, também afirma que a promotoria
estava “estimando a influência” de Rosenberg “de forma bastante errada”. Ele conclui:
“Rosenberg certamente teve alguma influência sobre muitas pessoas que estavam
interessadas em problemas filosóficos e estavam em condições de entender suas obras.
132
Mas devo contestar a extensão da influência que você está atribuindo a ele” (BS, 14, p.
455). O almirante Karl Dönitz, em linha similar, após ouvir a defesa de Rosenberg declara
que “menos de 1% dos seus oficiais da marinha sequer leram o Mito” (DÖNITZ apud
GILBERT, 1995, p. 271), de modo que Rosenberg era apenas “um homem que está com
a cabeça nas nuvens”. Como um militar apartidário, Dönitz faz uma diferenciação de si
mesmo e de homens como Rosenberg, que ele denomina como “propagandistas”. “Não
tenho dúvidas de que ele [Rosenberg] é um homem que não faria mal a uma mosca”, diz
Dönitz, “mas também não há dúvida de que esses propagandistas foram realmente
responsáveis por pavimentar o caminho para esses terríveis atos antissemitas”. E, por isso,
era “uma pena que Hitler não esteja aqui. Ele fez muito do que é discutido aqui” (DÖNITZ
apud GILBERT, 1995, p. 274).
Será que, assim como os outros nazistas, a própria promotoria não leu o Mito
e/ou não compreendeu o livro? Será que, como seus companheiros de cela disseram, a
obra de Rosenberg foi considerada “intelectual demais” e não pareceu fundamentalmente
importante para a acusação? Afinal, Streicher é o único que defende o Mito como um
“estudo muito profundo”, dizendo ser, inclusive, profundo demais para seu entendimento.
Ao que me parece, a possibilidade mais plausível para essa desimportância dada ao
“Rosenberg ideólogo” gira em torno do fato de o tribunal já estar julgando outros dois
membros da imprensa, e, consequentemente, da ideologia nazista: Julius Streicher e Hans
Fritzsche. E, nesse sentido, o cargo de Ministro dos Territórios Ocupados era muito mais
relevante dentro da estrutura do Terceiro Reich do que o de um editor de um jornal, como
Streicher, ou de um comentarista de rádio, como Fritzsche. Não obstante, o réu se sente
constantemente julgado pela acusação, pelos juízes, e também por Goldensohn e Gilbert
por seus pensamentos e convicções: “se eles querem apenas fazer um julgamento
criminal, por que a promotoria não se apega a atos criminosos em vez de atacar minha
ideologia?” (ROSENBERG apud GILBERT, 1995, p. 267).
Por fim, apesar do esforço da acusação, para a memória, o que ficou, foi sua
posição enquanto ideólogo, e não como ministro. O Mito seguiu sendo vendido após o
Terceiro Reich e diversas obras foram dedicadas para a compreensão de sua teoria, como
é o caso do livro de Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, O mito nazista,
constantemente mencionado nesta tese. Após Nuremberg, talvez, finalmente, Rosenberg
tenha conseguido o que buscava desde o princípio: o lugar na História como o filósofo
do nazismo.
134
defensores fiéis, naturalmente, não é por conta de sua relevância dentro da cadeia
organizacional do Terceiro Reich, e sim, pela sua escolha narrativa durante o julgamento.
Ainda que tenha existido resistência por parte dos holandeses às medidas
nazistas, a existência de um forte movimento nazista no país inviabilizou a abrangência
dessa resistência. Hannah Arendt destaca como a Holanda “foi o único país em toda a
Europa” que abrigou uma greve estudantil quando os professores judeus foram
despedidos de seus cargos, além de ter abrigado uma onda de greves como uma reação à
primeira deportação dos judeus aos campos de concentração (ARENDT, 1999, p. 187).
No entanto, com o avanço das pesquisas, hoje já se sabe que a Holanda, assim como a
França, teve uma ocupação, no mínimo, controversa, e que não se pode verdadeiramente
falar de resistência no sentido coletivo no país. Como ressalta Richard Evans, “a ajuda da
massa da população holandesa não veio”. Pelo contrário, a polícia holandesa adotou
entusiasmada as medidas antissemitas e realizou a tarefa de deportar os judeus “com
brutalidade considerável”. O serviço público holandês e a polícia, de maneira geral,
“estavam habituados a trabalhar com os ocupantes alemães, e adotaram uma visão
estritamente legalista das ordens recebidas” (EVANS, 2014b, p. 441).
estavam realmente rodando; foi bem maravilhoso”.59 Por fim, o resultado da ocupação
“foi uma catástrofe sem paralelo em nenhum país ocidental, somente comparável à
extinção dos judeus poloneses, ocorrida em condições muitíssimo diferentes e, desde o
começo, completamente desesperadas” (ARENDT, 1999, p. 188).
59
A Casa Anne Frank tem um projeto interessante para explicitar de maneira mais detalhada o genocídio
na Holanda. Ver: https://www.annefrank.org/en/anne-frank/go-in-depth/netherlands-greatest-number-
jewish-victims-western-europe/ (Acesso em 30/09/2022)
139
tensão quando não há mais uma linha divisória entre o que é importante para o esforço
militar de guerra e o que é privado e de interesse civil” (BS, 15, pp. 646-647). Isso,
entretanto, em sua visão, era uma política esperada e comum em tempos de guerra e não
havia nada de especial no que os nazistas estavam fazendo.
Inimigos estrangeiros
60
Direito internacional ou os direitos básicos estendidos a nações estrangeiras ou inimigas.
140
antissemita e fui para a Holanda como tal. Não preciso entrar em detalhes sobre
isso aqui. Já disse tudo isso nos meus discursos e gostaria de encaminhá-los
para vocês. Tive a impressão, que será confirmada em todos os lugares, de que
os judeus, é claro, tinham que ser contra a Alemanha nacional-socialista. Não
houve discussão sobre a questão da culpa no que me dizia respeito. Como chefe
de um território ocupado, tive apenas que lidar com os fatos. Eu tive que
perceber que, particularmente nos círculos judaicos, eu tinha que contar com
resistência, derrotismo e assim por diante. […] Na primavera de 1941,
Heydrich veio até mim na Holanda. […] Ele me disse que os judeus teriam
pelo menos que ser tratados como outros inimigos estrangeiros. […] Admito
francamente que não me opus a esse argumento de Heydrich. Também senti
que isso era necessário em uma guerra que eu considerava absolutamente uma
luta de vida ou morte para o povo alemão. Por isso, em março de 1941, ordenei
que os judeus na Holanda fossem registrados. E, então, as coisas foram passo-
a-passo. Não direi que os resultados finais – no que diz respeito aos Países
Baixos – foram pretendidos assim desde o início; mas decidimos por este
método (BS, 15, p. 666-667).
Peço ao Tribunal que considere que o motivo mais importante e decisivo para
mim sempre foi o fato de o povo alemão estar engajado em uma luta de vida
ou morte. Hoje, olhando de outra perspectiva, a imagem parece diferente.
Naquela época, se disséssemos a nós mesmos que os judeus seriam mantidos
juntos em algum campo, mesmo que sob condições severas, e que após o fim
da guerra eles encontrariam um assentamento em algum lugar, as dúvidas
causadas por isso deveriam ser deixadas de lado em vista da consideração de
que sua presença na área de batalha poderia enfraquecer o poder de resistência
alemão. (BS, 16, p. 2)
A vida de qualquer povo era menos importante que a vida dos alemães, e a dos
judeus era, de fato, irrelevante. Os judeus, de acordo com o réu, deveriam ser entendidos
como “inimigos estrangeiros”, e, na Holanda, passaram a ser tratados da mesma forma
que os judeus de todo o Reich – o que significa, é claro, o envolvimento de muita
violência, os famosos “excessos” que os nazistas tanto afirmam em Nuremberg. Para
Seyss-Inquart, era “certo” que muitas medidas podem ter ocorrido “com uma dureza que
talvez fosse inevitável, e que poderia até em alguns casos ser considerada excessiva”. A
explicação que ele recebeu de Heydrich, no entanto, sobre os motivos para a evacuação
142
dos judeus da Holanda, era simples: “Ele explicou isso dizendo que a Holanda mais cedo
ou mais tarde seria um teatro de guerra, no qual não se poderia permitir que uma
população tão hostil permanecesse” (BS, 15, pp. 667-668). E, esse foi, mais uma vez, um
argumento de Heydrich que ele não se opôs. Afinal, mesmo tendo apenas um posto
honorário na SS, ao contrário de Heydrich, Seyss-Inquart declara que “estava muito
interessado na SS como uma formação ideológica e política”. E, mesmo que nunca tenha
ouvido falar nada sobre o extermínio, ele sempre esteve de acordo com a linha de
pensamento – e de ação – de “eliminar os judeus da população alemã e enviá-los para
algum lugar no exterior” (BS, 16, p. 20).
Trivial
com a aparente irrelevância de sua figura, “ele perguntou se eles ainda conseguiriam
tabaco, então se desculpou por ser tão trivial em um momento como este” (GILBERT,
1995, p. 433).
Por fim, seu caso é mais uma demonstração de como homens medíocres são
capazes de executar tarefas terríveis. De maneira muito similar a Adolf Eichmann, que
tantas vezes afirmou que pessoalmente nunca matou um único judeu, Seyss-Inquart
declara o seguinte sobre o assassinato de membros do movimento de resistência
holandesa:
Eu mesmo nunca pedi um único tiro. Mas gostaria de repetir: se, por exemplo,
eu chamasse a atenção da polícia para o fato de que em qualquer localidade da
Holanda um movimento de resistência ilegal estava causando muitos
problemas, e dei instruções à polícia para investigar o caso, era perfeitamente
óbvio para mim que os líderes do movimento de resistência poderiam ser
presos pela polícia que, com base no decreto do Führer, atiraria neles. Mas
devo repetir: tive que cumprir minha responsabilidade, mesmo diante de uma
situação difícil em que aqueles que eram culpados – isto é, legalmente
culpados, e não moralmente, porque moralmente eu provavelmente teria agido
da mesma forma que eles – esses culpados não foram levados a um tribunal.
(BS, 16, p. 47)
Apesar de não ter dado nenhum tiro, era óbvio para Seyss-Inquart que aquelas
144
pessoas iriam ser assassinadas – e ele não via qualquer problema nisso. Dessa maneira, a
grande diferença entre o seu discurso e o de Eichmann, está, justamente, na reflexão. A
atividade do pensamento se torna tema central na filosofia de Hannah Arendt após o
julgamento do nazista precisamente pelas repercussões do conceito de banalidade do mal,
no qual a autora se opôs a grande parte da tradição literária, teológica e filosófica para
pensar o fenômeno do mal. Esperando encontrar o mal tal como se conhecia até então,
isto é, como algo demoníaco ou fruto da fraqueza ou tentação humanas, no tribunal,
Eichmann se mostrou uma intrigante surpresa. Arendt diz: “aquilo com que defrontei,
entretanto, era inteiramente diferente e, no entanto, inegavelmente factual”, e “o que me
deixou aturdida foi que a conspícua superficialidade do agente tornava impossível rastrear
o mal incontestável de seus atos, em suas raízes ou em seus motivos, em níveis
profundos” (ARENDT, 2019, p. 18). Os atos cometidos por esse agente comum e banal
eram terríveis. Entretanto, em Eichmann, não era possível identificar motivações
ideológicas ou convicções firmes e más, de modo que Arendt conclui que suas ações não
eram fruto de estupidez, mas de irreflexão.
Ainda que sua teoria tenha sido revisitada, inclusive para analisar o caso de
Eichmann, como é o caso da pesquisa de David Cesarani, a grande questão, me parece, é
que, embora a aparente desimportância dos atores aproximem Arthur Seyss-Inquart e
Adolf Eichmann, suas narrativas se diferenciam, sobretudo, pela questão ideológica. Por
esse motivo, não acredito ser possível inclui-lo na categoria de banalidade do mal. Afinal,
Seyss-Inquart não precisava (re)pensar sobre suas ações: ele ainda acreditava que tinha
feito o que era necessário, e, principalmente, o que era correto. Ele não estava meramente
obedecendo às ordens irrefletidamente e nem fazendo apenas o que era esperado de sua
profissão. Também não se enxergava como mais um dentro da máquina burocrática do
regime nazista. Pelo contrário, como ele mesmo diz, Seyss-Inquart não era um
funcionário comum, como outro qualquer. Tampouco era um homem indiferente e
conformado: ele estava amparado na ideologia nacional-socialista, e, por ela, poderia ter
ido além.
luta entre a vida e a morte, Seyss-Inquart escolheu a morte de outros para que a Alemanha
pudesse viver – e, como um bom defensor fiel, não demonstra arrependimento e nem se
questiona dessa escolha.
146
Capítulo Dois
Diplomatas da velha guarda
Neste capítulo irei analisar os diplomatas da velha guarda. Aqui nós temos
homens que participaram ativamente da ascensão e do desenvolvimento do regime nazista
e que não negam sua contínua adesão a muitos de seus princípios. No entanto, eles
gostariam que o nazismo tivesse permanecido “apenas” um regime conservador. Para
esses réus, o movimento tinha bons pressupostos e lutava por questões de fundamental
importância, como a libertação da Alemanha das amarras do Tratado de Versalhes. Hitler,
entretanto, havia “estragado” esse nazismo “inicial” e o transformado em uma ditadura
implacável. A intenção desses diplomatas era ser uma influência moderada dentro do
regime e controlar o Führer, o que se mostrou impossível em virtude de sua personalidade.
Para eles, caso não tivesse desviado de seu rumo, o nacional-socialismo, portanto, teria
sido uma boa ideia com bons resultados.
Para essa categoria temos os casos de Franz von Papen e Konstantin von
Neurath. Os dois trabalharam juntos no gabinete de Papen antes de Adolf Hitler chegar
ao poder e continuaram suas funções, além de assumirem outras, durante o Terceiro
Reich. Ambos vêm de uma longa tradição de elites tradicionais alemãs e usam seus
discursos para defender preceitos nazistas, apresentando-os, todavia, como princípios
meramente conservadores.
148
“A principal acusação contra mim é que fui um oportunista inescrupuloso e que mudei
minhas ideias o mais rapidamente possível assim que os nazistas chegaram ao poder.
Isso não é verdade.”
p. 6)
Esse homem, que nutria simpatia inicialmente não apenas por Hitler, mas
também por Francisco Franco, ditador espanhol (GILBERT, 1995, pp. 282-283), foi
descrito pelo psicólogo Gilbert como um “cavalheiro da velha guarda (gentleman of the
old school)” (GILBERT, 1995, p. 380) e assume desde o começo a postura de um homem
patriota e conservador. Julgando todos os outros nazistas no banco dos réus, Papen não
se reconhece como pertencente à mesma classe que esses homens, afinal, ele não se
enxerga como um nazista. Sua defesa é pautada na ideia de que ele era apenas um
conservador, um homem que se apegava às tradições e que não era necessariamente a
favor de princípios democráticos. Não ser democrata não era um crime, e, por esse
motivo, em sua visão, o nazismo tinha sido uma boa ideia, a princípio.
Papen estava em Nuremberg “para mostrar qual era, tem sido, é e sempre será
minha crença” (PAPEN apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 224) e esta era muito simples:
a Alemanha deveria ser uma grande nação novamente e sair da humilhação imposta pelo
Tratado de Versalhes. No entanto, esse diplomata da velha guarda teve um papel ativo
na destruição da República de Weimar e na ascensão de Adolf Hitler ao poder. Após sua
demissão, ele retorna ao governo e trabalha diretamente para o processo de anexação da
Áustria. Nesse sentido, Papen é o grande exemplo no tribunal da responsabilidade das
elites conservadoras e religiosas na escalada de regimes totalitários. Como lembra
Lukacs, “os principais e numerosos adversários respeitáveis de Hitler eram
tradicionalistas – crentes nos padrões patrióticos, não raro religiosos e, acima de tudo,
morais e nobres de um mundo mais antigo e melhor” (LUKACS, 1998, p. 152). Como
veremos, esse mundo antigo e melhor, para Papen, iria finalmente começar quando a
democracia ruísse.
“embora em muitas democracias pudessem ter chegado com isto ao governo”, uma vez
que “tinham um percentual maior do eleitorado, por exemplo, do que os democratas ou
republicanos hoje em dia nos EUA. Na Alemanha, estavam assim autorizados, em termos
constitucionais, na qualidade de maior partido, a tentar formar o próximo governo”
(MANN, 2008, p. 252). Ao contrário do que se pode imaginar, Hitler e os nazistas não
precisaram dar um golpe de Estado, já que a enfraquecida República de Weimar
“consentiu sua própria queda”, nas palavras de Mann: “muitos acabaram dando as boas-
vindas a sua chegada ao poder, poucos os haviam ajudado, mas menos ainda foram os
que lhes impediram o caminho” (MANN, 2008, p. 268).
A tarefa de que Papen incumbiu-se era voltar atrás na história, não apenas
quanto à democracia de Weimar, mas a tudo que havia acontecido na política
europeia desde a Revolução Francesa, e recriar a base hierárquica da sociedade
no lugar do conflito de classes moderno. Como um pequeno, mas potente
símbolo dessa intenção, ele aboliu o uso da guilhotina – símbolo clássico da
Revolução Francesa – nas execuções em partes da Prússia onde ela havia sido
introduzida no século XIX, e a substituiu pelo instrumento prussiano
tradicional, o machado. Enquanto isso, de uma forma mais prática e imediata,
o governo de Papen começou a estender a repressão à imprensa radical imposta
por seu predecessor também aos jornais democráticos, proibindo publicações
populares da esquerda liberal como o jornal diário social-democrata Avante
duas vezes em poucas semanas, proscrevendo jornais populares da esquerda
liberal como o Berliner Volkszeitung [Jornal Popular de Berlim] em duas
ocasiões distintas, e convencendo os comentaristas liberais de que a liberdade
de imprensa havia sido finalmente abolida. O conservadorismo utópico de
Papen restringiu a justiça às realidades políticas de 1932 (EVANS, 2014a, p.
353).
O novo governo nazista contava com muitos dos ministros de Papen, incluindo
o outro diplomata da velha guarda que será analisado neste capítulo, Konstantin von
Neurath, Ministro das Relações Exteriores. Papen seguiu como vice-chanceler e
comissário do Reich, de modo a garantir seu domínio sob a Prússia, e inocentemente
acreditava que Hitler e os nazistas seriam fáceis de controlar. Confiante de que os
conservadores tinham “absorvido” os nazistas, e não o contrário, o diplomata declarou
que “dentro de dois meses teremos apertado Hitler de tal forma que ele cederá” (EVANS,
2014a, p. 378). Como lembra Hannah Arendt, “os negociantes que ajudaram Hitler a
galgar o poder acreditavam ingenuamente estarem apenas apoiando um ditador, um
ditador feito por eles mesmos e que naturalmente governaria em proveito de sua própria
classe e em detrimento de todas as outras” (ARENDT, 1989, p. 290). É claro que essa
ingenuidade logo foi posta à prova, já que Hitler, em apenas seis meses, “estabeleceu seu
domínio total sobre a Alemanha” (KERSHAW, 2016, p. 227), eliminando
sistematicamente toda a oposição, dissolvendo o Reichstag e transformando o Partido
Nazista no único permitido por lei.62 O sistema bismarckiano conservador desejado por
Papen não se consolidou e, no ano seguinte, em agosto de 1934, Adolf Hitler funde os
cargos de chanceler e presidente após a morte de Hindenburg, tornando-se o Führer da
Alemanha com poder total e irrestrito. “Com essa jogada”, aponta Ian Kershaw, “o poder
do Estado e o poder do Führer eram exatamente a mesma coisa” (KERSHAW, 2016, p.
61
Para saber mais sobre o processo de ascensão de Hitler ao poder, conferir o post do Núcleo Brasileiro de
Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/B79MN8FJ7FT/ (Acesso em
14/09/2022)
62
Temos dois posts do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT) que tratam
diretamente das primeiras medidas de Adolf Hitler para assegurar seu controle total. O primeiro é sobre o
incêndio no Reichstag em 23 de fevereiro de 1933 (https://www.instagram.com/p/B9ExaxxFuFm), e o
segundo é sobre as legislações de exclusão social e de plenos poderes para Hitler, em março de 1933
(https://www.instagram.com/p/B9__yWHlnzN/). (Acesso em 14/09/2022)
153
228). Naquele momento não havia mais volta. Era o fim da República e o início do Reich.
Ainda assim, que ficasse claro: Papen não estava falando em nome do nacional-
socialismo. Sua defesa era “a da outra Alemanha” (BS, 16, p. 241), a Alemanha que
apenas queria ser um país forte novamente. Papen, como muitos outros conservadores,
tinha a esperança de que os nazistas não cumprissem todos os pontos de seu programa
quando chegassem no poder, já que, “na vida política, sempre acontece que um partido
radical – qualquer partido, mas particularmente um partido radical – se chega ao poder e
se torna o responsável [pelo país], tem que eliminar grande parte de seu programa” (BS,
16, p. 339). Inclusive, em sua visão, o programa nazista de 1933 havia sido um “programa
de coalisão”, que buscava “restaurar a unidade espiritual e política de nosso povo” (BS,
16, p. 269). Infelizmente, Hitler era incontrolável e “extraiu seu apoio” da “dinâmica do
Partido”, e, consequentemente, “mudou em um grau cada vez maior de um parceiro de
coalisão pronto para se comprometer para um autocrata que não conhecia concessões”
(BS, 16, p. 290). Mas o que ele poderia fazer, senão permanecer no seu posto?
O que eu poderia fazer? Eu poderia protestar — então, para não ser fuzilado
como traidor na Alemanha, teria de permanecer no exterior. Eu poderia
emigrar. Eu nunca teria feito isso, pois sempre acreditei que se pode trabalhar
melhor no próprio país do que como emigrante. Eu poderia renunciar; então
eu voltaria para a Alemanha e me tornaria um soldado. O melhor, parecia-me,
era ficar onde estava e onde melhor pudesse ajudar minha pátria. (BS, 16, pp.
327-328)
apenas uma “correção” que ele acreditava que “poderia ser feita de maneira normal e
tranquila” (PAPEN apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 181). Sua visão de uma política de
coalisão contemplava até mesmo essas questões mais sensíveis à população alemã. Ao
fim e ao cabo, Papen era apenas mais um homem que concordava com grande parte dos
princípios nazistas, mas rejeitava profundamente ser chamado de nazista: “acredito que
ninguém que me conheça, mesmo entre os cavalheiros sentados comigo neste banco dos
réus, sustentará que eu já fui um nacional-socialista em minha vida” (BS, 16, p. 324).
Um alemão patriota
Uma das ações mais conhecidas de Von Papen, e que ele utilizou em
Nuremberg para comprovar sua resistência ao nacional-socialismo, foi seu discurso de
Marburg em 17 de junho de 1934. Na ocasião, Papen, movido pelo desejo de controlar
Adolf Hitler, realizou um discurso na Universidade de Marburg no qual ele advogou por
uma “política razoável na Alemanha”. O discurso foi passado na íntegra pela sua defesa,
mas Papen explica o seu conteúdo:
De acordo com Ian Kershaw, “nunca mais se ouviria no Terceiro Reich uma
crítica tão notável vinda de uma figura proeminente do centro do regime” (KERSHAW,
2010, p. 339). A publicação do discurso foi proibida pelo Ministro da Propaganda Joseph
Goebbels, mas cópias chegaram a ser distribuídas e a notícia se espalhou pela Alemanha
e por outros países. Ainda que suas críticas tenham se voltado para Adolf Hitler, o
discurso de Papen teve efeito oposto ao esperado e “serviu de gatilho para as medidas
brutais” tomadas em seguida pelo regime, sobretudo o expurgo conhecido como Noite
das Facas Longas, que será abordado com mais profundidade em capítulo posterior
(KERSHAW, 2010, p. 339). Papen foi preso durante o expurgo e pediu sua resignação
do cargo de vice-chanceler do Reich. Membros de seu gabinete foram presos e alguns
foram executados pela SA. De acordo com o diplomata, Hitler ainda tentou convencê-lo
a permanecer no cargo, mas Papen foi irredutível e disse ao Führer: “Herr Hitler, não há
explicação nem desculpa para este incidente” (BS, 16, p. 297).
157
Para Papen, não havia dúvida: a anexação da Áustria era a questão nacional
mais importante daquele momento de meados dos anos 1930. E, apesar de muitos terem
considerado, tanto na época quanto no tribunal em Nuremberg, que sua atuação na
Anschluss foi fruto de “falta de caráter”, o diplomata tinha convicção de que esta era “uma
questão que o indivíduo deve resolver com sua consciência, sem levar em conta a
compreensão [dos outros] ou a falta dela”. E, sobre isso, estava claro: sua consciência lhe
disse que Papen “deveria fazer tudo para restaurar a ordem nesta questão pelo menos”
(BS, 16, p. 301). Sendo assim, não há contradição em saber (e, no caso de Papen, ter sido
pessoalmente afetado) da violência do Partido em 1934 e retornar ao NSDAP pouco
tempo depois para solucionar a questão austríaca. Sua decisão, no entanto, não foi feita
sem dificuldades: “naturalmente, tive as mais terríveis lutas (struggles) com a
consciência”. Após membros do seu gabinete serem assassinados, ele estava em uma
situação muito difícil. Ainda assim, Papen disse a si mesmo “você ainda tem seu dever
para com a Pátria”. Ele enfatiza, contudo, que isso não foi nada fácil, na realidade, “foi
um conflito terrível!” (PAPEN apud GILBERT, 1995, p. 393).
Ele declara que sua atitude de manter sua lealdade a Hitler “pode parecer
63
Para saber mais sobre a Anschluss, ver o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto
(NEPAT): https://www.instagram.com/p/B9rZVvVDJQ_/ (Acesso em 14/09/2022)
158
surpreendente para quem está de fora, mas não para quem se lembra da atmosfera
histérica daqueles dias, pois naquela época todos os que se opunham ou criticavam o
sistema eram tachados de co-conspiradores” (BS, 16, pp. 417-418). Contudo, Papen não
era fiel a Hitler meramente por medo de represálias:
Ainda que Hitler fosse “um mentiroso patológico”, Papen ainda acreditava que
o Führer “queria o melhor para a Alemanha no começo, mas se tornou uma força
irracional do mal com a bajulação de seus seguidores” (PAPEN apud GILBERT, 1995,
p. 29), homens como Himmler, Göring, e até mesmo Ribbentrop. Papen acreditava,
portanto, que havia sido enganado. O diplomata estava assumindo sua parcela de
responsabilidade, sem dúvida, mas queria deixar claro que esta deveria ser partilhada não
somente pelos outros nazistas, como também pelos próprios Aliados. Afinal, se algum
país, como os Estados Unidos, tivesse intervindo mesmo antes do início da Segunda
Guerra Mundial, quando a Alemanha começou a quebrar os princípios do Tratado de
Versalhes, “Hitler não teria sido possível. Toda a história do pós-guerra teria sido
diferente” (PAPEN apud GILBERT, 1995, p. 325). E, nesse sentido, como culpar pessoas
que, como ele, permitiram que esses eventos acontecessem, quando os próprios Aliados
também haviam permitido?
VON PAPEN: […] Mas o que você não sabe é o fato de que eu mesmo
frequentemente disse a Hitler que tal regime não poderia durar; e se me
perguntar, Sir David, por que, apesar de tudo, permaneci a serviço do Reich,
posso dizer apenas que, em 30 de junho, rompi pessoalmente as relações que
tínhamos estabelecido em 30 de janeiro. Daquele dia em diante, cumpri meu
dever, meu dever para com a Alemanha, se você quiser saber. Posso entender
muito bem, Sir David, que depois de todas as coisas que sabemos hoje, depois
dos milhões de assassinatos que ocorreram, você considera o povo alemão uma
nação de criminosos, e que você não pode entender que esta nação tenha seus
patriotas também. Fiz estas coisas para servir o meu país, e gostaria de
acrescentar, Sir David, que até à altura do Acordo de Munique, e até à época
da campanha na Polônia, até as grandes potências tentaram, embora soubessem
tudo o que estava acontecendo na Alemanha, trabalhar com essa Alemanha.
Por que você quer censurar um alemão patriota por agir da mesma forma, e por
esperar da mesma forma, a mesma coisa que todas as grandes potências
esperavam?
SIR DAVID MAXWELL-FYFE: As grandes potências não tiveram seus
funcionários assassinados, um após o outro, e não eram próximos de Hitler
como você. O que estou dizendo a você é que a única razão que poderia tê-lo
mantido a serviço do governo nazista quando você sabia de todos esses crimes
era que você simpatizava com eles e queria continuar com o trabalho dos
nazistas. Isso é o que estou colocando para você – que você tinha esse
conhecimento expresso; você tinha seus próprios amigos, seus próprios
159
Para Hans Frank, por outro lado, “o bom e velho von Papen” era como “uma
raposa encurralada”, que, apesar de ter tentado “fazer o seu melhor como um bom
nacionalista”, ainda assim, de forma incongruente, permaneceu no governo de Hitler.
Afinal, Papen se demitiu. Ele poderia ter se distanciado das questões políticas do Reich e
mantido sua dignidade. No entanto, “ele voltou pensando que poderia fazer algo de bom.
Ele escreveu o drama errado. Ele deveria ter escrito um último ato diferente. Agora
termina como tragédia em vez de uma comédia! Hahahaha!” (FRANK apud GILBERT,
1995, p. 386).
64
As Red Series, que abreviei na citação para RS, possuem 8 volumes e 2 suplementos. Esse documento
contém uma coleção de evidências e documentos preparadas pela equipe de acusação americana e britânica
e apresentadas no tribunal de Nuremberg. No Suplemento B das Red Series, temos os interrogatórios
realizados pela acusação assim que os nazistas foram presos, em 1945. Esses interrogatórios são chamados
de “pre-trial interrogations” e foram realizados sem a presença dos advogados de defesa dos réus. Apesar
de ter lido todos os interrogatórios, que são extensos, escolhi não os analisar na tese para limitar o número
de fontes utilizadas na argumentação.
161
previsível e aparentemente inevitável: “durante pelo menos dois anos, esses nacionalistas
de direita haviam buscado um governo autoritário, sem se mostrar capazes de concretizá-
lo por si mesmos” (MANN, 2008, p. 271). O desejo de poder fez com que homens como
Papen sentenciassem à morte a liberdade coletiva e individual em troca de um pulso firme
para a resolução imediata dos problemas alemães. Como lembra Heloisa Starling, “o
individualismo liberal é incapaz de frear o experimento totalitário” (ARENDT, 2018, p.
17).
Esse foi o caso desse diplomata da velha guarda que, em sua percepção, sempre
havia feito o melhor para seu país, mesmo quando se mostrou conivente, “não tanto com
o golpe nazista quanto com o sepultamento da democracia” (MANN, 2008, p. 271). Sua
atuação é similar à de muitos conservadores que não apenas assistem, como participam
diligentemente na destruição das salvaguardas democráticas, e, não por acaso, essa é
apenas mais uma das muitas referências feitas entre o Brasil contemporâneo e a Alemanha
de Hitler. Os que não respeitam a democracia e as garantias constitucionais correm os
mesmos riscos que as elites de Weimar, como lembrou o ministro do STF Celso Mello
em sua comparação: para ele, os bolsonaristas “desprezam a liberdade e odeiam a
democracia”.65 Que casos como o de Franz von Papen nos deixem em alerta sobre a
fragilidade das linhas que tecem as democracias e nos advirtam dos riscos contínuos de
nossa sociedade enquanto, nas palavras de Hannah Arendt, o totalitarismo, o
autoritarismo e o fascismo, permanecerem parte da corrente subterrânea da história
ocidental (ARENDT, 1989, p. 13).
65
Ver reportagem na íntegra, disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/01/celso-de-
mello-ve-semelhanca-entre-brasil-atual-e-alemanha-nazista-e-diz-que-apoiadores-de-bolsonaro-odeiam-
democracia.ghtml (Acesso em 14/09/2022)
162
“Se eu fosse responsável por cada assassino, por cada alemão assassino que atuava no
exterior, teria muito trabalho a fazer, não teria?”
Konstantin von Neurath foi o Ministro das Relações Exteriores até 1938 e
governador da Tchecoslováquia ocupada (renomeada para Protetorado do Reich da
Boêmia e Morávia) de 1939 a 1941, ainda que mantivesse o título de Ministro sem
portfólio (minister without portfolio) até 1943.66 Em Nuremberg foi julgado por plano de
conspiração, crimes contra a paz, crimes e guerra e crimes contra a humanidade, sendo
considerado culpado das quatro acusações. No entanto, ao contrário de todos os nazistas
que foram considerados culpados dessas acusações e sentenciados à morte, Neurath foi
condenado à apenas 15 anos de prisão, sendo liberado após um ataque cardíaco em
novembro de 1954, cumprindo apenas 8 anos da sentença. Ele morreu com 83 anos de
idade, passando os últimos dois anos de sua vida em liberdade.
66
O termo “Ministro sem portfólio”, traduzido por vezes como “Ministro sem pasta” é usado com
frequência em Nuremberg e se refere a homens que mantiveram o título de Ministro durante o regime
nazista, mas que deixaram de ter poder de decisão ou de atuação.
163
Restauração da soberania
Assim como Franz von Papen, Neurath acreditava que a raiz do nacional-
socialismo e, consequentemente, da Segunda Guerra Mundial, tinha sido o Tratado de
Versalhes. Em sua perspectiva, o Tratado tinha “disposições sem sentido e impossíveis”,
nas quais “o sistema econômico do mundo inteiro foi colocado em um estado de
desordem”. Sendo assim,
Que uma nação grande e amante da honra, discriminada como foi pelo Tratado
de Versalhes, não pudesse suportar isso por muito tempo, era algo que qualquer
estadista perspicaz poderia reconhecer. E não foi apenas na Alemanha que se
apontou repetidas vezes que isso deveria levar a um fim maléfico; mas em
Genebra, o recreio de políticos eloquentes e vaidosos, isso caiu em ouvidos
surdos. (BS, 16, p. 602)
164
67
Sobre o Tratado de Versalhes, conferir o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto
(NEPAT): https://www.instagram.com/p/CB-6cwRFJv5/ (Acesso em 14/09/2022)
165
Neste sentido, o rearmamento também era meramente uma questão política que
não tinha relação com um desejo de guerra: “o rearmamento como tal não envolve
nenhuma ameaça à paz, a menos que se decida usar as armas recém-fabricadas para outros
fins que não a defesa. Não houve tal decisão e nenhuma preparação naquele momento”
68
Para saber mais sobre o processo de remilitarização da Alemanha em 1935, conferir o post do Núcleo
Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/B9zHw2vhJFV/
(Acesso em 14/09/2022)
166
(BS, 16, p. 621). Em sua narrativa, prevalece a perspectiva de que a Alemanha estava,
como sempre esteve, em uma necessidade desesperada de se defender das ameaças –
internas e externas. Como demonstra o historiador Johann Chapoutot, “pior do que uma
necessidade, ou um estado de fato, o Tratado de Versalhes foi um ato ilegal e violento,
infringido à Alemanha em uma traição de todas as promessas, compromissos e princípios
declarados” (CHAPOUTOT, 2018, p. 306). Para os nazistas, as decisões tinham sido
tomadas em portas fechadas pelos Quatro Grandes e o Tratado foi imposto à Alemanha.
Não houve consentimento, e sim em uma coerção, um ato ilegal e ilegítimo. O Tratado
era, na realidade, um diktat. De acordo com o próprio Führer: “Não se pode extorquir a
assinatura de alguém segurando uma pistola na sua cabeça e ameaçando matar milhões
de pessoas de fome e depois proclamar que esse documento, enfeitado com uma
assinatura roubada, é uma lei oficial!” (HITLER apud CHAPOUTOT, 2018, p. 306).
Sendo assim, como ressalta Chapoutot:
E essa também era a perspectiva de Neurath, que diz que “a restauração da plena
soberania em todas as partes do Reich não teve significado militar, mas apenas político”
(BS, 16, p. 625). Ele acredita que, no início de seu governo, Hitler tinha interesses
pacíficos, “contrariamente às alegações da promotoria, que não ganham precisão pela
repetição” (BS, 16, p. 612). Ele se recorda de um discurso de maio de 1935 em que Hitler
“expôs um plano alemão concreto para a paz”, com apenas uma única condição, que ele
sempre fez em sua carreira política: “o reconhecimento da igualdade de direitos da
Alemanha”. Sendo assim, o Führer “queria provar que a Alemanha, apesar da conclusão
de alianças militares que ela considerava uma ameaça, e nosso próprio rearmamento,
continuava a desejar a paz” (BS, 16, pp. 623-624).
Sobre esse ponto, Neurath não está errado: Hitler usava a retórica69 de
69
Agradeço mais uma vez ao professor Newton Bignotto pelas contribuições na minha banca de defesa,
sobretudo por me lembrar como a ideologia nazista se torna viva através do discurso e como Hitler sabia
utilizar muito bem a retórica – no sentido de comunicação persuasiva. Sobre esse ponto, é válido chamar
atenção novamente para a análise de Pierre Ansart (2019) sobre a importância do discurso na mobilização
das paixões políticas.
167
Versalhes sem deixar claro seus verdadeiros planos porque sabia que a população não
queria uma nova guerra, sobretudo a geração mais velha, como era o caso do diplomata.
Dessa maneira, o entusiasmo com as políticas externas não se traduzia em um entusiasmo
para uma nova guerra, como foi o caso da Primeira Guerra Mundial. E, nesse momento,
a imagem do Führer se torna a de um “estadista, político nacional e líder da Alemanha”,
“um homem de paz, buscando atingir seus objetivos através da habilidade política e não
da força das armas, e construindo um poderio militar como uma arma defensiva e não
agressiva” (KERSHAW, 2001, p. 123).
70
Esse parágrafo foi retirado e adaptado do artigo que escrevi sobre o caso de Wilhelm Keitel. Ver
VISCONTI, 2020, p. 124.
168
Como aponta Kershaw, essa foi a última oportunidade das grandes potências de
impedirem que Hitler iniciasse a guerra: “caso os franceses tivessem optado por uma
demonstração de força militar, o golpe de prestígio de Hitler o teria enfraquecido bastante
aos olhos dos militares e da opinião pública alemã” (KERSHAW, 2016, p. 267). O que
aconteceu foi precisamente o contrário: a popularidade de Hitler foi às alturas e “o triunfo
nacional misturou-se com o alívio por ter sido alcançado sem derramamento de sangue”
(KERSHAW, 2001, p. 127). O Führer havia colocado um fim à “pirataria diplomática”
de Versalhes e estava assegurando um futuro digno e próspero para a Alemanha.
A política prática
de Munique, a entrega dos Sudetos a Adolf Hitler, visando a integração dessas regiões,
anteriormente perdidas no Tratado de Versalhes, ao Reich. Como lembra Ian Kershaw,
“as duas democracias ocidentais [Inglaterra e França] forçaram outra democracia a se
submeter à intimidação de um ditador” (KERSHAW, 2016, p. 338).
A guerra tinha sido evitada momentaneamente – e não por muito tempo. Hitler,
mais uma vez consagrado como um grande estadista, na verdade “estava realmente
furioso por ter sido manobrado em um acordo diplomático da questão” (KERSHAW,
2001, p. 138). Nos primeiros dois meses de 1939, o Führer fez discursos para os oficiais
do exército “reiterando a visão de uma Alemanha como potência dominante na Europa,
a crença em que o problema de espaço vital no leste da Europa precisava ser resolvido e
a convicção de que a força militar tinha que ser usada para se alcançar essas metas”
(EVANS, 2014c, p. 765). Pouco tempo depois, em 15 de março de 1939, Hitler
desrespeita o acordo diplomático de Munique e o exército alemão marcha para o restante
da Tchecoslováquia, tomando Praga e proclamando o Protetorado do Reich da Boêmia e
Morávia, um estado com nome da velha monarquia Habsburgo e que foi governado pelos
nazistas até 1945. Menos de seis meses depois, os nazistas ocupariam Danzig, no corredor
polonês, dando início à Segunda Guerra Mundial. O desejo expansionista de Hitler foi
fundamental para esse processo, mas não seria suficiente caso houvesse alguma
resistência das potências democráticas. Estas, tiveram um papel fundamental na
pavimentação desse caminho sombrio que terminaria com a destruição de boa parte da
Europa na segunda guerra total.71
Konstantin von Neurath foi o homem escolhido por Hitler para ser o protetor
do Reich, ou seja, governador (Reichsprotektor) desse estado da Boêmia e Morávia entre
1939 e 1941. O diplomata foi sucedido por ninguém menos que Reinhard Heydrich, cujos
rumos das ocupações durante a guerra serão abordados durante o caso de Ernst
Kaltenbrunner em capítulo posterior. De acordo com Richard Evans, Neurath e os oficiais
do exército alemão “tentaram seguir um rumo relativamente moderado, manter a
disciplina entre os ocupantes e agir com comedimento em relação aos tchecos. Aos
poucos, porém, a máscara de moderação começou a cair” (EVANS, 2014c, p. 767).
Neurath ordenou a detenção de comunistas, muitos dos quais acabaram em campos de
concentração, substituiu toda a administração por funcionários alemães, e instaurou
71
Os dois últimos parágrafos foram adaptados do post que escrevi para o Núcleo Brasileiro de Estudos de
Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/B9wi7dLFWEt/ (Acesso em 14/09/2022)
170
Sobre essa questão, Neurath afirma que era necessário se reconhecer que o povo
tcheco era “um povo diferente que deveria ser tratado, política e culturalmente, de acordo
com suas próprias características”, de modo que sua autonomia “tinha que ser mantida
dentro de certos limites, ditados pelas necessidades predominantes do Reich como um
todo, especialmente em tempos de guerra” (BS, 17, p. 3). Ele conclui: “o fato de ter sido
meu esforço constante manter o país quieto no interesse do Reich e, com isso, no interesse
de todos, dificilmente pode ser usado contra mim” (BS, 17, pp. 4-5).
Dessa maneira, esse diplomata da velha guarda não revê sua atuação no
Terceiro Reich e nem assume para si qualquer responsabilidade. Como um conservador
vindo de outros governos antes de Hitler, Neurath se enxerga como um ministro
defendendo os direitos da Alemanha – direitos que deveriam, naturalmente, se sobrepor
aos de outros países. Ele ainda acredita que sua influência garantiu que a Tchecoslováquia
não tivesse um fim pior do que de fato teve:
Em primeiro lugar, gostaria de lhe dizer por que permaneci tanto tempo, apesar
de todas essas ocorrências e dificuldades. A razão disso foi que eu estava
convencido, e estou convencido ainda hoje, que eu tinha que ficar o tempo que
eu pudesse conciliar isso com minha consciência, para evitar que este país, que
foi confiado à Alemanha, ficasse sob a dominação definitiva da SS. Tudo o
que aconteceu ao país depois da minha partida em 1941, na verdade, eu havia
impedido com a minha presença; e mesmo que meu trabalho tenha sido tão
limitado, acredito que, permanecendo, não só prestei um serviço ao meu
próprio país, mas também ao povo tcheco, e nas mesmas circunstâncias não
agiria de maneira diferente ainda hoje.
Além disso, eu acreditava que em tempos de guerra, especialmente, eu deveria
deixar um cargo tão difícil e responsável apenas em caso de extrema
necessidade. A tripulação de um navio não desce ao convés e cruza as mãos
no colo se o navio estiver em perigo.
Que eu não pude atender 100% aos desejos dos tchecos é algo que será
entendido por todos que tiveram que lidar com a política de maneira prática e
não meramente teórica. E assim acredito que, com minha perseverança no
cargo, evitei grande parte da miséria que se abateu sobre o povo tcheco depois
que saí. Esta opinião foi também partilhada por um grande número da
população checa, como pude depreender das numerosas cartas que me foram
dirigidas pelo povo tcheco mais tarde (BS, 17, p. 16).
e é isso que quero dizer com a palavra ‘assimilar’”. E que não se esqueça que “do ponto
de vista racial – se você quiser usar essa expressão desagradável – havia um número
extraordinariamente grande de alemães na Tchecoslováquia” (BS, 17, pp. 63-64). O
diplomata, por isso, está plenamente de acordo com a ideologia nazista: o destino da
Alemanha, que havia sido injustamente estabelecido pelo Tratado de Versalhes, era uma
violação das leis mais básicas da natureza. Devia-se sempre pensar nos alemães, estejam
eles onde estiverem, já que todos fazem parte dessa “expressão desagradável”, nas
palavras de Neurath: a raça ariana. Como lembra Chapoutot, “os alemães haviam sido
‘perseguidos’ em todos os estados criados por Versalhes, nos quais se travava uma
‘guerra’ sistemática contra a ‘escola e língua materna’ alemã, com o objetivo explícito de
‘des-germanificação’” (CHAPOUTOT, 2018, p. 287).
Um freio
O caso de Neurath mostra como, no pós-guerra, uma vez que ser chamado de
nazista se torna um insulto, os nazistas, para se reintegrarem na sociedade, enxergam a
necessidade de abandonar essa terminologia. Isso não significa que houve uma quebra na
adesão ideológica, pelo contrário. Homens como Neurath não negam seu contínuo
alinhamento com boa parte dos preceitos do regime nazista. No entanto, há uma tentativa
discursiva de apresentar esses princípios como crenças meramente conservadoras, nada
relacionadas ao extremismo e à violência nacional-socialista. Afinal, ser conservador não
era um crime, mas ser nazista era – ao menos, naquele momento em Nuremberg.
poucos, o extremismo de Hitler iria se esvanecer. Para o barão, servir a esse homem tão
difícil após a morte de Hindenburg era justamente um esforço pela paz:
Sendo assim, em sua visão, sua atividade política não era diferente da de outros
diplomatas de outros países que serviram a vários governos ao longo dos anos. Hitler não
lhe parecia diferente. Na atualidade, sabemos dos perigos desse tipo de discurso que prega
a isenção partidária e ideológica e que justifica atuações com base no interesse da pátria.
Em Nuremberg, parece que essa segue sendo uma justificativa válida para homens como
Neurath.
O diplomata conta que, aos poucos, foi sendo substituído por Joachim von
Ribbentrop, que, como veremos, era um Yes-man, leal e obediente, e gradativamente
perdeu toda a influência que tinha na política internacional. Ribbentrop passou a fazer o
que Hitler queria e a guerra, que havia sido “a maior estupidez (the greatest piece of
stupidity)” foi inevitável. No entanto, Neurath, como todos os alemães, acreditava que
deveria permanecer no seu posto:
cada um para com seu próprio povo (BS, 16, pp. 661-662).
Capítulo Três
Negacionistas relapsos
Ernst Kaltenbrunner
Fritz Sauckel
Walther Funk
“Sou considerado outro Himmler. Eu não sou. Os jornais fazem de mim um criminoso.
Eu nunca matei ninguém.”
Em sua narrativa, Kaltenbrunner tenta fugir da imagem que ele acredita ter sido
construída pela imprensa e pelo tribunal: a de um monstro sanguinário e sucessor de
Heydrich e Himmler. Isso já fica claro no início dos procedimentos quando o réu dá sua
opinião sobre a acusação: “não me sinto culpado de nenhum crime de guerra, apenas
cumpri meu dever como órgão de inteligência e me recuso a servir de substituto (ersatz)
para Himmler” (KALTENBRUNNER apud GILBERT, 1995, p. 5). Em uma das suas
primeiras declarações no tribunal, Kaltenbrunner afirma que estava “plenamente ciente
da gravidade das acusações contra mim” e que sabia “que o ódio do mundo é dirigido
contra mim; que eu – principalmente porque Himmler, Müller e Pohl72 não estão mais
vivos – devo aqui, sozinho, prestar contas ao mundo e ao tribunal” (BS, 11, p. 242). Essa
narrativa se repete diversas vezes ao longo de seu depoimento, como veremos.
72
Heinrich Müller era conhecido como “Gestapo Müller” e foi um membro da SS de alta patente e chefe
da Gestapo durante a Segunda Guerra Mundial. Oswald Pohl é mencionado diversas vezes em Nuremberg
por seu papel na chamada Solução Final. O membro da SS era o administrador do sistema de campos de
concentração nazista e teve seu próprio julgamento em 1947. O caso de Pohl foi o quarto dos treze
julgamentos realizados pelo governo estadunidense e não mediante corte internacional. Nesse julgamento,
Pohl e mais 17 membros da SS encarregados da administração e da parte econômica dos campos e
concentração foram julgados. Para saber mais, ver: PRIEMEL, 2016.
178
havia assumido o cargo na época das acusações, que os carimbos nos documentos
comprovavam que ele não tinha conhecimento de nada, e assim por diante. Quando
apresentadas a ele, a maioria de suas assinaturas são identificadas por ele como falsas, e
a culpa, portanto, seria de seus funcionários que falsificaram sua assinatura sem seu
conhecimento. Todos os documentos, declarações de testemunhas ou declarações que ele
mesmo havia feito, são refutadas como evidências forjadas. Apesar de sua alta patente e
da relevância de seu cargo, Kaltenbrunner se apresenta como um funcionário
completamente ignorante com relação a tudo que envolvia suas funções.
honra e minha família eram sagrados demais para mim para isso. (BS, 11, pp.
238-239)
Sua recusa de associação com Heydrich não é por acaso. Seu predecessor era
temido por muitos, um homem “insensível, frio, eficiente, com fome de poder e
plenamente convencido de que os fins justificam os meios” (EVANS, 2014c, p. 75).
Heydrich foi o fundador da SD (Sicherheitdienst), e um dos responsáveis pela dissolução
da SA na Noite das Facas Longas, que abordaremos com mais profundidade em capítulo
posterior. A SD era o setor primário do serviço de inteligência da SS, que passou a ser
administrado pela RSHA em 1939, e tinha o objetivo de vigiar todos os membros da SS
e do Partido Nazista. Ou seja, era um serviço de vigilância dentro “das próprias fileiras”
do NSDAP que também atuava de forma militante na luta política do nazismo pela
conquista do poder (INGRAO, 2015, p. 124). Um dos seus membros mais importantes é
Otto Ohlendorf, presente em Nuremberg como testemunha da acusação, e um dos
intelectuais nazistas analisados por Christian Ingrao em Crer e Destruir. Lado a lado, SD
e RSHA buscavam lutar contra os inimigos do Reich, o que significa “definir o inimigo
e recolher informações para tentar neutralizá-lo” (INGRAO, 2015, p. 134), inimigo este
entendido no sentido amplo do termo, como “o adversário das substâncias étnica, racial
e espiritual de nosso povo” (INGRAO, 2015, p. 135–136).
73
Esse trecho foi adaptado do post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT),
disponível em: https://www.instagram.com/p/CAsheFMle8z/ (Acesso em 15/09/2022)
180
74
A Noite dos Cristais foi um pogrom que ocorreu entre 9 e 10 de novembro de 1938, no qual lojas e
estabelecimentos judeus foram destruídos por nazistas. O pogrom foi um passo fundamental para a escalada
da violência antissemita durante o Terceiro Reich. O nome do acontecimento faz referência aos vidros
quebrados nas calçadas após o ataque que depredou cerca de 7 mil estabelecimentos judeus e mais de 250
sinagogas. Centenas de judeus foram mortos e milhares levados para campos de concentração. Para saber
mais sobre o tema, ver o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT):
https://www.instagram.com/p/CWDzGwDMn-1/ (Acesso em 15/09/2022)
181
Enquanto Heydrich era sádico, Himmler era “uma pessoa mesquinha, reles”, que tinha
“prazer em punir os outros, como um professor que bate numa criança com uma vara mais
do que o necessário e sente prazer nisso” (KALTENBRUNNER apud GOLDENSOHN,
2005a, p. 193).
75
Esse parágrafo foi adaptado do post que escrevi para o Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e
Holocausto (NEPAT), disponível em: https://www.instagram.com/p/CAiN7BIllIY/ (Acesso em
15/09/2022)
182
Himmler, como o grande responsável por essa enorme organização era, de fato,
extremamente influente durante o regime nazista. Ele não era, portanto, simplesmente um
funcionário ou um burocrata que se dirigia a uma repartição, mas sim, “alguém que, ao
longo das diversas missões de liderança de que foi incumbido pelo Führer, criou para si
uma forma única de poder”. Ele transformou o comando da SS em “garantia de sua
consciência interna e de seu potencial futuro a sua verdadeira razão de viver”
(LONGERICH, 2013, p. 20). Esse homem, conhecido por suas crenças não
convencionais (como o ocultismo), admirava profundamente o líder do movimento
nazista. Himmler “mantinha um retrato de Hitler na parede se seu escritório e dizem que
em certas ocasiões até mesmo entabulava conversa com ele” (EVANS, 2014a, p. 288).
Mais do que isso, Himmler representava os ideais do nacional-socialismo em sua máxima
potência, sobretudo com relação à política de ocupação no Leste. Em sua perspectiva, “o
nacional-socialismo é uma visão de mundo que abrange todos os domínios da vida”
(HIMMLER apud CHAPOUTOT, 2018, p. 155), e, por isso ele declarou que “tudo o que
nos aproxima da vitória está certo. Tudo o que mantém esses selvagens a nosso serviço
está certo, e está certo que um russo morra em vez de um alemão. Está certo, e podemos
defendê-lo diante de Deus e dos homens” (HIMMLER apud CHAPOUTOT, 2018, p.
374).
Para Himmler, o povo alemão estava à beira da destruição e era imperativo agir
no presente para garantir o futuro. Aquela era uma guerra racial radical, biológica, que
iria finalmente fazer com que a raça nórdica se livrasse de seus inimigos. O líder da SS
sabia que essa era uma tarefa difícil, mas ele tinha a seu dispor muitos argumentos para
convencer seus homens de que o correto era exterminar pessoas aparentemente inocentes.
Uma dessas razões era o simples fato de que, naquele momento, eles tinham Adolf Hitler
para liderá-los. Por isso, ele afirma com paixão que “esse processo tem sido realizado
com consequências, mas sem crueldade. Não estamos atormentando ninguém. Sabemos
76
Esse parágrafo foi adaptado do post que escrevi para o Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e
Holocausto (NEPAT), disponível em: https://www.instagram.com/p/B-kC02jAXib/ (Acesso em
15/09/2022)
183
que lutamos pela nossa existência e pela preservação do nosso sangue nórdico”
(HIMMLER apud CHAPOUTOT, 2018, p. 303). Afinal, de acordo com o próprio Hitler
em sua obra Mein Kampf, “só existe, porém, um direito sagrado e esse direito é, ao mesmo
tempo, um dever dos mais sagrados, consistindo em velar pela pureza racial, para, pela
defesa da parte mais sadia da humanidade, tornar possível um aperfeiçoamento maior da
espécie humana” (HITLER, 2005, p. 306). Esse aperfeiçoamento viria, é claro, do sangue
ariano (LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002).
Quando um de vocês vem me ver e me diz: ‘Eu não posso usar mulheres e
crianças para cavar esta trincheira antitanque. É desumano. Vai matá-los.’ Eu
respondo: ‘Você é o assassino de seu próprio sangue, porque se esta trincheira
não for cavada, soldados alemães – ou seja, filhos de mulheres alemãs – serão
mortos. Esse é o nosso próprio sangue.’ Isto é o que eu gostaria de incutir em
meus SS e o que, acredito, consegui ensiná-los: uma das leis mais sagradas do
futuro é que nosso cuidado, nosso dever, é nosso povo, nosso sangue. Isso é o
que devemos sonhar e pensar, é para isso que devemos trabalhar, e nada mais.
Todo o resto não é nada para nós (HIMMLER apud CHAPOUTOT, 2018, p.
351–352, grifos meus).
teria dito que “queremos proteger a gente comum, mas os aristocratas, os poloneses e os
judeus devem ser mortos” (HEYDRICH apud EVANS, 2014b, p. 37). O processo se
iniciou em Wartheland, a maior das três áreas da Polônia ocidental ocupada pelo Reich.
Wartheland, que foi o berço das primeiras maiores deportações, abarcava Lódz, o
primeiro grande gueto, e teve as primeiras operações de gás em caminhões em Chelmno.
Ainda que Kershaw destaque a importância do papel de funcionários nazistas a nível
regional, como Arthur Greiser, governador da província de Wartheland, o processo de
extermínio foi encabeçado majoritariamente por Heydrich, Himmler, e também, Hans
Frank, cujo caso analisaremos em outro capítulo (EVANS, 2014b; KERSHAW, 2009).
Defendendo a veracidade
77
O termo “cortina de ferro” é utilizado para se referir à divisão da Europa em duas áreas de influência
política e econômica durante a Guerra Fria: o lado Ocidental, democrático, e o lado Oriental, comunista. O
conceito aparece pela primeira vez em um discurso do primeiro-ministro britânico da época, Winston
Churchill, no qual ele afirma que os países europeus sob influência da União Soviética estavam escondidos
atrás de uma implacável cortina de ferro.
185
nazistas no banco dos réus. Hans Fritzsche, por exemplo, um ex-nazista arrependido, se
diz surpreso que o advogado de defesa de Kaltenbrunner tenha permitido que ele seguisse
essa linha de narrativa negacionista, já que o nazista estava “tentando se apresentar como
alguém que não poderia machucar uma mosca” (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p.
256). Ele reitera, indignado: “pelo amor de Deus, alguém pode acreditar que ele não sabia
de nada sobre nada? E que ele discordava seriamente de Himmler mesmo em 1943?”.
Afinal, se isso fosse verdade, Kaltenbrunner “nunca teria durado até o final da guerra.
Eles o teriam liquidado em um minuto” (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 258).
Hans Frank, incrédulo, declara: “bem, parece que eu sou o único culpado no banco dos
réus! Todo mundo é tão inocente!” (FRANK apud GILBERT, 1995, 257).
que fiquei sabendo que as coisas não estavam sendo feitas de acordo com a lei
– afinal, sou advogado – protestei com Himmler.
GILBERT: Não deve ter sido um protesto muito eficaz.
KALTENBRUNNER: Vocês americanos, como o Coronel Amen, parecem
pensar que todo o nosso RSHA não passava de uma gangue organizada de
criminosos.
GILBERT: Devo dizer que essa impressão de fato existe.
KALTENBRUNNER: Então como posso me defender contra tal
preconceito? (GILBERT, 1995, pp. 260-261)
Dessa maneira, o réu compreende que estava tendo que se defender não apenas
com relação às suas ações, mas também com relação à visão já estabelecida que ele
acreditava que o tribunal – e o mundo – possuíam de sua figura. Em um momento,
respondendo às questões da acusação, Kaltenbrunner declara com firmeza: “peço-lhe,
senhor, que não me pegue desprevenido e me manobre em uma posição onde eu possa
desmoronar. Eu não vou quebrar (break down). Eu juro a você e jurei que quero ajudá-lo
a estabelecer a verdade” (BS, 11, p. 336). E a verdade, para ele, era apenas uma:
Kaltenbrunner não sabia de absolutamente nada que acontecia na Alemanha até 1943, e,
quando soube, imediatamente interveio e protestou com Himmler. De modo similar a
outros nazistas, o réu acreditava que deveria permanecer em seu cargo para evitar que a
catástrofe fosse ainda maior: “minha consciência não me permitiu deixar minha posição.
Eu achei que era meu dever tomar, pessoalmente, uma posição contra o que era errado”
(BS, 11, pp. 306-307). E por ter plena consciência do que era certo e do que era errado,
ele, pessoalmente, havia colocado um fim na perseguição aos judeus:
trabalhado com o mesmo objetivo. Mas eu não acho que houvesse alguém que
continuasse falando isso nos ouvidos de Himmler toda vez que ele o
encontrava ou que houvesse alguém que tivesse falado tão aberta e
francamente e com tanta abnegação a Hitler como eu fiz. (BS, 11, pp. 274-276)
COL. AMEN: Você tinha algum conhecimento pessoal ou algo pessoal a ver
com alguma das atrocidades que ocorreram em campos de concentração
durante a guerra?
KALTENBRUNNER: Não.
COL. AMEN: E, portanto, você não assume nenhuma responsabilidade
perante este Tribunal por tais atrocidades? Isso está correto?
KALTENBRUNNER: Não, eu não assumo nenhuma responsabilidade a esse
respeito.
COL. AMEN: E, nessa conexão, tal testemunho como foi dado aqui, por
Hollriegel por exemplo, que afirma que você testemunhou execuções em
Mauthausen, você nega? Isso está correto?
KALTENBRUNNER: Eu já fui informado ontem sobre o testemunho de
Hollriegel. Considero a declaração de que alguma vez vi uma câmara de gás,
em operação ou em qualquer outro momento, errada e incorreta.
COL. AMEN: Muito bom. Você não tinha nenhum conhecimento pessoal e
não fez nada pessoal sobre o programa de extermínio de judeus; isso está
correto, exceto para se opor a eles?
KALTENBRUNNER: Não, exceto que eu era contra isso. A partir do
momento em que eu soube disso como fatos e me convenci disso, levantei
objeções com Hitler e Himmler, e o resultado final foi que eles foram parados.
COL. AMEN: E, portanto, você não assume nenhuma responsabilidade por
nada feito em conexão com o programa para o extermínio dos judeus, certo?
KALTENBRUNNER: Sim.
COL. AMEN: E a mesma coisa se aplica ao programa de trabalho forçado?
KALTENBRUNNER: Sim.
COL. AMEN: E a mesma coisa se aplica, não é verdade, à destruição do gueto
de Varsóvia?78
KALTENBRUNNER: Sim.
COL. AMEN: E a mesma coisa se aplica à execução de 50 aviadores em
78
O Gueto de Varsóvia foi o maior gueto estabelecido sob população judaica na Alemanha Nazista e
recebeu milhares de judeus durante a guerra, a partir da ocupação da Polônia em 1939. Para saber mais,
conferir o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT):
https://www.instagram.com/p/B_Kq1AcB99r/ (Acesso em 15/09/2022)
188
79
Stammlager Luft III era um dos campos da rede comandada pela Luftwaffe (força aérea alemã) para
detenção dos prisioneiros de guerra das forças aéreas aliadas. Para saber mais, conferir o post do Núcleo
Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/B-HuKn8Dw0J/
(Acesso em 15/09/2022)
189
ele mesmo declara, muitas cartas e papéis podem ter sido submetidos para a sua assinatura
“entre milhares de outros papéis” que ele precisava examinar ao longo de um único dia.
Contudo, a partir disso, não se poderia tirar a conclusão de que ele sabia verdadeiramente
do assunto. Afinal, não se “pode imaginar a extensão das funções oficiais que assumi em
completo desconhecimento do background policial, sem instruções para o desempenho
das funções policiais”. Seu árduo trabalho era apenas o de “organizar e dirigir o vasto
serviço de inteligência” (BS, 11, pp. 366-367), uma tarefa tão difícil que “era quase
impossível para um homem lidar com o trabalho que eu fiz” (BS, 11, p. 321).
Negar tudo que lhe foi apresentado mostra uma significativa falta de vaidade e
de autovalorização. E isso o difere de muitos julgados que tentam justamente atestar a
importância de seus trabalhos e de suas funções – não nos esqueçamos de Hermann
Göring falando de si próprio como o segundo homem do Reich. Se Göring era o segundo
homem abaixo do Führer, Kaltenbrunner era o segundo homem abaixo de Himmler.
Ambos ocupavam posições muito poderosas. Contudo, de acordo com a narrativa de
Kaltenbrunner, a organização mais importante do Terceiro Reich não era sequer tão
relevante assim. E ele também não era ninguém: o diretor da RSHA era apenas um
homem que era constantemente passado para trás por todos os seus funcionários. Se
Göring se via como alguém que seria uma figura de destaque em qualquer país,
Kaltenbrunner, pelo contrário, era alguém facilmente esquecível, dispensável e
irrelevante. Relapso e negacionista, o não-representante de Himmler permaneceu
indiferente até o fim. Ao ouvir o veredito de seu caso com a já esperada sentença de
morte, Gustave Gilbert destaca que suas mãos entrelaçadas “expressavam o medo que
não transparecia em seu rosto insensível” (GILBERT, 1995, p. 432).
192
“Todo mundo seguiu uma regra, uma regra muito rígida, de fazer seu próprio trabalho,
e não interferir ou falar com os outros”
Sua maior preocupação era com os trabalhadores, e essa acabou sendo a sua
esfera de trabalho, e pela qual estava sendo julgado em Nuremberg. Nesse sentido, para
Sauckel, ele sequer poderia ter alguma relação com o extermínio, uma vez que, dentro de
sua esfera de atuação, tudo o que ele fez foi para manter boas condições para os
trabalhadores estrangeiros. Esses crimes terríveis não eram justificáveis, é claro, mas não
estavam sob sua responsabilidade. Ele declara “eu era como uma agência de marinheiros.
Se eu fornecer mão-de-obra para um navio, não sou responsável por qualquer crueldade
que possa ser praticada a bordo do navio sem meu conhecimento”. Se ele fornecia os
trabalhadores, por ordem de Hitler, não era sua culpa se eles fossem “maltratados mais
194
tarde” (SAUCKEL apud GILBERT, 1995, p. 75). O descompasso entre suas ações e as
consequências de suas ações faz com que sua narrativa se aproxime, por vezes, da de
Adolf Eichmann. Contudo, como ele afirma a Goldensohn, ao contrário de Eichmann, ele
não era um especialista em antissemitismo e, por isso, o psiquiatra conclui que a
consciência de Sauckel estava limpa, “e ele faria novamente tudo o que ele havia feito
porque tudo tinha sido honroso” (GOLDENSOHN, 2005b, p. 205).
Sauckel acredita que seu trabalho era necessário e similar ao de outros países,
e inclusive questiona diversas vezes a Goldensohn: “o que você faria se o bem-estar do
seu país dependesse do trabalho? Quando um navio está em uma tempestade, ele precisa
de um capitão” (SAUCKEL apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 209). Sua justificativa para
empregar trabalhadores do Leste era simplesmente de que “a Rússia não havia aderido à
Convenção de Genebra e, portanto, a Alemanha, por sua vez, não estava vinculada a ela”,
e, sendo assim, “nos países bálticos e em outras regiões, a Rússia soviética também havia
reivindicado trabalhadores ou pessoas, e que, além disso, cerca de 3 milhões de chineses
estavam trabalhando na Rússia soviética” (BS, 14, p. 623).
80
As determinações da Convenção estão disponíveis na íntegra nos seguintes links:
https://avalon.law.yale.edu/20th_century/geneva02.asp
https://www.redcross.org/content/dam/redcross/atg/PDF_s/International_Services/International_Humanit
arian_Law/IHL_SummaryGenevaConv.pdf (Acesso em 15/09/2022)
196
Emoções impróprias
81
O terceiro caso dos industriais, conhecido como caso Krupp, foi o décimo dos doze julgamentos
realizados pelo governo estadunidense. Outros casos de industriais são o caso Flick e o caso da IG Farben.
Para saber mais sobre todos eles, conferir o episódio #42 do Podcast Desnazificando, que faz parte do
Núcleo Brasileiro de Nazismo e Holocausto (NEPAT). O episódio é intitulado “‘Inocentes no sentido da
acusação’? Analisando os Julgamentos subsequentes de Nuremberg (NMT)”, disponível em:
https://anchor.fm/dashboard/episode/e19crbl (Acesso em 15/09/2022)
197
A pacificação não seria possível sem violência, uma “calma obtida por meio de
repressão brutal”, extremamente necessária para garantir a produção e dominação alemã
naquele território, que afinal, na visão dos nazistas, era deles por direito. Os povos
estrangeiros que ali viviam deveriam ser usados para o trabalho, já que, como afirma
Joseph Goebbels, “nós não queremos estes povos: nós queremos o seu país”
(GOEBBELS apud CHAPOUTOT, 2018, p. 350). Himmler, em linha similar, declara
que o dever do alemão era “encher nossos campos com escravos – aqui eu gostaria de
dizer as coisas de forma clara e distinta – com escravos que trabalharão para nós e
construirão nossas cidades, nossas aldeias e nossas fazendas sem que nós prestemos a
menor atenção às perdas sofridas” (HIMMLER apud CHAPOUTOT, 2018, p. 350–351).
Essa mão-de-obra forçada era, portanto, fundamental para o projeto do Reich de mil anos.
Mein Kampf anos antes, “a liberdade individual deve ceder o lugar à conservação da raça”
(HITLER, 2005, p. 190).
Em 1943, Fritz Sauckel aposta todas as suas fichas nessa nova moral ariana e
declara:
Vamos nos livrar do que resta desse lixo (rubbish) de humanitarismo insípido
que ainda carregamos (dragging) conosco… É difícil separar os homens de
sua pátria e de seus filhos. Mas não queríamos a guerra! A criança alemã que
perde seu pai no front… é muito mais fortemente afetado. Por este meio,
vamos renunciar a todas as emoções impróprias (SAUCKEL apud
CHAPOUTOT, 2018, p. 351).
Um bom exemplo disso são seus depoimentos sobre a Questão Judaica. Sauckel
afirma que entrou “no Partido por um caminho bem diferente e por motivos bem
diferentes” (BS, 15, pp. 63-64) – isto é, sua adesão não era em função do antissemitismo
pregado por Hitler e por outros nazistas. Contraditoriamente, todavia, para Goldensohn,
Sauckel reconhece que os judeus eram, de fato, uma raça, apesar de ele não ser um
“especialista” em antissemitismo, como Streicher e Rosenberg: “de acordo com o
nacional-socialismo, os judeus não eram vistos como uma seita religiosa, mas como uma
raça inimiga” (SAUCKEL apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 214). E assim também
declarou o Führer em Mein Kampf: “o judaísmo nunca foi uma religião, e sim sempre um
povo com características raciais bem definidas” (HITLER, 2005, p. 227).
199
Hitler, portanto, não era um criminoso nem naquela época do Reich e nem
naquele momento em Nuremberg. Na maior parte do tempo, Sauckel se recusa, inclusive,
a reconhecer que algum crime sequer tenha acontecido. Leon Goldensohn acredita que a
forma como Sauckel se expressa demonstra que aquelas eram respostas automáticas
repetidas muitas vezes e durante muito tempo, tanto na vida privada quanto na vida
pública – uma autoapresentação para os outros, mas também para si mesmo. O psiquiatra
afirma que “ele estava pronunciando palavras que soavam bem e faziam parte do quadro
geral que ele estava tentando representar: um trabalhador bom e sólido que estava tão
ocupado fazendo o bem que foi junto com o Partido”, ainda que, por conta de seus ideais,
ele tenha percebido que “certos negócios desagradáveis” estavam acontecendo
(GOLDENSOHN, 2005b, p. 211). Para o psicólogo Gilbert, Sauckel também mantém
essa postura, afirmando diversas vezes “você tem que entender que era uma guerra e já
havíamos passado por muita coisa, e me deram uma missão que eu não podia recusar – e,
além disso, fiz o possível para tratá-los [os trabalhadores] bem”. As “coisas terríveis que
aconteceram nos campos de concentração” nunca fizeram parte do escopo de seu trabalho
e ele nunca soube que elas estavam acontecendo (SAUCKEL apud GILBERT, 1995, p.
171). Sauckel era, então, consistente até mesmo nas suas contradições.
200
Assumindo uma postura capitalista, Fritz Sauckel compreende que não fazia
sentido econômico torturar os trabalhadores, matá-los de fome e não lhes oferecer
condições mínimas de sobrevivência. Ainda em 1942, ele lembrou aos oficiais nazistas
responsáveis pelas indústrias alemãs que “russos fatigados, semimortos de fome ou
mortos não mineram carvão para nós, são totalmente inúteis para produzir ferro e aço”
(SAUCKEL apud EVANS, 2014b, p. 410). No tribunal, de forma similar, para comprovar
que não tinha conhecimento da Solução Final, ele diz: “teria tornado minha tarefa muito
mais fácil e eu teria muito menos dificuldade se todas essas pessoas, na medida em que
fossem capazes de trabalhar, tivessem sido incluídas no plano de trabalho de maneira
mais razoável”. Não só ele não sabia sobre o extermínio dos judeus, como considerava o
genocídio contraproducente e “totalmente contrário ao meu interesse” (BS, 15, p. 44).
Esse homem, que em já 1922 sabia “por destino, que deveria encontrar uma
solução para o problema trabalhista e social” (SAUCKEL apud GOLDENSOHN, 2005b,
p. 212), Sauckel tenta se apresentar para tribunal como um funcionário obediente. No
entanto, era preciso deixar claro que ele não era um soldado, mas um patriota, executando
a tarefa que lhe foi destinada da melhor forma possível:
A perspectiva de que o destino do povo alemão dependia de que sua tarefa fosse
bem executada nos mostra mais um de seus deslizes narrativos. Esse discurso faz parte
da terminologia nazista e é usado frequentemente por outros julgados, inclusive pelos da
categoria defensores fiéis, como vimos em capítulo anterior. Contudo, prevalece na
narrativa de Sauckel, como um negacionista, frases como “essa foi uma decisão direta e
uma declaração do Führer, pela qual não sou responsável” (BS, 15, p. 90), “eu estava
cumprindo as ordens do Führer” (BS, 15, p. 92), e “eu tive que sair, porque eu tinha
ordens para sair” (BS, 15, p. 94). Os termos usados pela acusação também não
201
contemplavam sua visão, já que ele, na época “não podia estar convencido em plena
consciência de que estava cometendo um crime” (BS, 15, p. 137). De acordo com
Sauckel, ele não contribuiu para uma guerra de agressão e não estava tentando minimizar
seu trabalho. Como sua principal tarefa, e seu dever para com seu povo, era “a distribuição
e direção de mão-de-obra no Reich” ele fez o melhor que pôde. Seu trabalho era
extremamente importante e necessário, mas ele precisava dizer para o mundo inteiro, pela
sua consciência, que nada disso consistia em um crime – ou, pelo menos, não que ele
soubesse na época (BS, 15, p. 133).
Para concluir a sua incoerência, Sauckel tenta se mostrar como corajoso, apenas
para demonstrar em seguida que, como todo ser humano, também tinha medo da morte.
Ao descobrir que ele havia sido considerado culpado e sentenciado à morte, Sauckel
declara a Gilbert: “não considero a sentença justa. Eu mesmo nunca fui cruel. Sempre
quis o melhor para os trabalhadores. Mas eu sou um homem e posso aguentar”,
começando a chorar logo em seguida (SAUCKEL apud GILBERT, 1995, p. 433). Como
Friedrich Nietzsche alerta, se olharmos muito tempo para o abismo, o abismo nos olha de
volta.82
82
Na citação original de Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão: “Quem combate
monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E, se você olhar longamente para um
abismo, o abismo também olha para dentro de você”. A frase não deixa de ter uma ironia sinistra com o
tema desta tese.
202
“Hitler não precisava realmente de mim; ele era o verdadeiro ditador da economia,
e eu era apenas um título”
menor ideia do que estava acontecendo na Alemanha e que permaneceu no seu cargo por
puro – e inocente – patriotismo. Schacht era o velho mago, mas Funk sequer era um
homem relevante: “ser pintado como o conselheiro econômico, o grande homem da
economia nazista! Ridículo! Schacht pode ser um gênio financeiro, eu não sei” (FUNK
apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 79).
Sobre a acusação, o réu expõe: “eu nunca na minha vida fiz conscientemente
nada que pudesse contribuir para tal acusação. Se eu fui culpado dos atos que estão na
acusação, por erro ou ignorância, então minha culpa é uma tragédia humana e não um
crime” (FUNK apud GILBERT, 1995, p. 6). A tragédia desse negacionista relapso é a
sua falta de responsabilidade sob seu próprio cargo: Funk se apresenta como um Ministro
da Economia que não tinha nenhuma relação com a economia dos países ocupados, o
presidente do Reichsbank que não tinha nenhum poder sob as finanças do Reich. Por esse
motivo, em sua visão, sua culpa só existia a nível moral, não a nível criminal, e ele
percebeu isso logo no começo. Assim que chegou em Nuremberg, Funk admite que “tudo
era preto”. Com o passar do tempo e o desenvolvimento dos procedimentos no tribunal,
o banqueiro revê sua perspectiva e consegue “separar o preto do não tão preto”. As coisas
não saíram do preto e foram para o branco, elas apenas ficaram “mais claras” – ainda
pretas. Sendo assim, para Funk, o mundo não era dividido em preto e branco: não se podia
falar de homens intrinsicamente criminosos e nem de ações fundamentalmente erradas.
Por vezes, a intenção era boa, e Funk assim declara: “na verdade, eu sou culpado como
todo alemão que participou de um regime que fez coisas cruéis e desumanas”. Essa
afirmação, para ele, se estende ao longo da história, não era exclusividade do Terceiro
Reich (FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 92). Afinal, com relação ao passado e ao
futuro, o banqueiro afirma:
204
Como obra do destino cruel sob o qual Funk não tinha nenhum poder de ação,
ele participava de um regime criminoso ao lado de um Ribbentrop, que, como veremos,
era um Yes-man, alguém que sempre dizia sim para o Führer e que permanecia fascinado
pela figura de Adolf Hitler mesmo em Nuremberg. Não havia alguém dentro do regime
nazista que pudesse salvá-los da catástrofe e ele, como um funcionário desimportante,
tinha suas mãos atadas. Como Funk não sabia de nada e não podia saber de nada, suas
ações foram movidas por amor ao seu país e pelo seu inabalável senso de dever. Suas
negações pautadas na ignorância, como veremos, o transformam no completo oposto de
seu predecessor Hjalmar Schacht, o grande resistente que pediu demissão quando
vislumbrou a “destruição assustadora” eminente.
Colapso espiritual
83
Charles Maurice de Talleyrand (1754-1838) foi um diplomata francês, uma figura influente que é
reconhecido pelo arquétipo de traidor. Foi fiel a Napoleão e conspirou contra ele, apoiou outros dirigentes
e os deixou posteriormente. Um homem visto como pragmático, que mudava de ideia conforme as
circunstâncias. Nesse caso, Funk faz referência a Talleyrand pelo seu papel na reconciliação de Napoleão
com a Europa. Para saber mais: https://www.bbc.com/portuguese/geral-57641109 (Acesso em 15/09/2022)
205
Funk, assim como Adolf Eichmann, afirma que pessoalmente não participou
“de forma alguma das medidas terroristas e violentas contra os judeus”. Ele declara:
“lamentei-as profundamente e as condenei com veemência. Mas eu tive que autorizar as
medidas para a execução dessas leis, a fim de proteger os judeus contra uma perda
completa de direitos e cumprir de maneira ordenada as estipulações legais que foram
feitas naquele momento” (BS, 13, p. 117). É com relação a essa “terrível tragédia” que
Funk se declara moralmente culpado – ainda que não criminalmente culpado:
Funk é questionado sobre sua culpa moral diversas vezes pela acusação, apenas
admitindo que, na época da perseguição dos judeus ele estava envolvido “em um forte
conflito” com a sua consciência. Ele afirma que “estou admitindo uma culpa contra mim
mesmo, uma culpa moral, mas não uma culpa porque assinei as diretrizes para o
cumprimento das leis; em qualquer caso, não uma culpa contra a humanidade” (BS, 13,
p. 139). O réu cai em lágrimas em mais de uma ocasião durante seu interrogatório,
dizendo estar sendo tomado por sentimentos muito profundos de culpa. A acusação
entende que sua reação é uma resposta de sua consciência, uma “sombra que existe desde
que foi levado sob custódia” (BS, 13, pp. 178-179), mas Funk mantém, de acordo com o
próprio Mr. Dodd, “uma negação absoluta” de que ele teve qualquer tipo de conhecimento
a qualquer momento sobre as atrocidades cometidas pelo regime nazista (BS, 13, p. 178).
Para o psicólogo Gilbert, o banqueiro declara que “não há realmente nenhum de nós –
nem um único de nós – que escape de uma culpa moral neste assunto” e, considerando
sua consciência, “se isso me torna legalmente culpado ou não, é outra questão. Mas que
isso me torna moralmente culpado, não há dúvida” (FUNK apud GILBERT, 1995, pp.
406-407). Ainda assim, tudo o que ele podia fazer na época era “transmitir o que me foi
dado de cima” e sua obediência, em sua visão, não poderia ser considerada um crime
contra a humanidade (FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 88).
Nesse sentido, Walter Funk compreende que seu trabalho lhe coloca em um
patamar de culpa moral precisamente porque ele conta que teve conflitos com sua
consciência durante os anos do Terceiro Reich. No entanto, diferentemente de Eichmann,
por não estar diretamente ligado com o processo de extermínio, e, por afirmar não saber
que o extermínio estava acontecendo, essa culpa moral é, digamos, limitada. Na
perspectiva de Funk, ele pessoalmente nunca havia defendido o extermínio dos judeus,
nunca havia participado de “nenhuma medida contra os judeus, pois esses assuntos não
eram mais tratados em meus departamentos” e, “com exceção dessas medidas legais,
essas ordens executivas, não acredito que em meus departamentos eu tenha autorizado
novamente qualquer coisa mais relacionada aos assuntos judaicos” (BS, 13, p. 121).
Como as leis não eram de sua autoria, ele não via como poderia ter qualquer papel em
relação a elas. E, nesse sentido, desapropriar economicamente os judeus não era o
primeiro passo para o processo de extermínio porque ele pessoalmente não teve relação
com “exterminar um único judeu” (FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 85–86).
207
Alguns jardineiros odeiam as ervas daninhas que estragam seus projetos – uma
feiura no meio da beleza, desordem na serena ordenação. Outros não são nada
emocionais: trata-se apenas de um problema a ser resolvido, uma tarefa a mais.
O que não faz diferença para as ervas: ambos os jardineiros as exterminam. Se
indagados e com tempo para refletir, os dois concordariam que as ervas devem
morrer não tanto pelo que são, mas pelo que deve ser o belo e organizado
jardim. A cultura moderna é um canteiro de jardim. Define-se como um projeto
de vida ideal e um arranjo perfeito das condições humanas. [...] O genocídio
moderno, como a cultura moderna em geral, é um trabalho de jardineiro [...]
Se o projeto de um jardim define o que é erva daninha, há ervas daninhas em
todo jardim. E ervas daninhas devem ser exterminadas. Eliminá-las não é uma
tarefa destrutiva, mas criativa. Que não difere em essência de outras atividades
que se somam para a construção e manutenção de um perfeito jardim. Todas
as visões da sociedade como um jardim definem parte da população como
ervas daninhas. Que, como quaisquer ervas daninhas, devem ser segregadas,
contidas, impedidas de proliferar, removidas e mantidas fora dos limites da
sociedade; se todos esses meios se revelarem insuficientes, elas devem ser
84
Esse parágrafo foi retirado e adaptado de artigo que escrevi sobre a série Black Mirror. Ver: VISCONTI,
2017, p. 154–155.
208
Apesar de Hjalmar Schacht ter afirmado em seu depoimento que se ele fosse
Ministro da Economia nenhuma injustiça teria sido cometida, Funk se apresenta como
apenas um funcionário obediente com a consciência pesada, mas não pesada o suficiente
para resistir. Os decretos tinham que ser emitidos e ele afirma que “não tive dores (pangs)
de consciência porque os decretos foram emitidos. Eu tive dores de consciência por causa
das razões para eles” (BS, 13, p. 148). Ao contrário de Schacht, ele não tinha influência
dentro do Partido e não podia prevenir essas “ações terroristas (terror actions)”. Como
um bom homem preso dentro de um regime criminoso, Funk declara que: “fiz de tudo o
que estava ao meu alcance dentro do escopo da possibilidade para tornar as coisas
suportáveis para os judeus” (BS, 13, p. 122).
Funk se sente, portanto, injustiçado pelas acusações, as quais define como algo
“terrivelmente trágico”, já que “desde o primeiro momento” ele desaprovou e condenou
“muito fortemente” os “excessos” contra os judeus, que infelizmente o afetaram
“pessoalmente muito profundamente” (BS, 13, p. 120). Assim como Sauckel, ele era um
patriota que permaneceu no seu cargo para servir o povo alemão, para “ser útil,” e, nos
últimos anos da guerra, essa posição se tornou muito difícil. Funk conta que pessoalmente
se encarregou de “conseguir suprimentos para o povo, especialmente para aqueles que
haviam sido bombardeados” e fez de tudo para “evitar que bens do Estado e dinheiro do
Estado fossem destruídos e desperdiçados”, já que acreditou, “até o último minuto”, que
era seu dever e sua responsabilidade “continuar no cargo e aguentar até o fim” (BS, 13,
p. 133). O banqueiro diz que se sente envergonhado “de ter participado minimamente
mesmo como um instrumento naqueles dias sombrios. Mas fui obrigado a servir o Estado
ao qual havia prestado juramento. Foi um destino trágico” (FUNK apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 85).
209
Nesse sentido, naqueles tempos sombrios, as condições que a guerra lhe impôs
fizeram com que ele não enxergasse outra opção: a única coisa possível para ele e para
“todo alemão decente” era “permanecer em seu posto e fazer tudo ao seu alcance para
evitar esse caos”. Em uma clara provocação a outros julgados, como Albert Speer e,
obviamente, seu predecessor Hjalmar Schacht, Funk declara: “eu não tinha talento para
ser traidor ou conspirador, mas sempre amei apaixonadamente minha pátria e meu povo,
e até o fim tentei fazer todo o possível para servir meu país e meu povo e ser útil a eles”
(BS, 13, p. 133). Para Gilbert, Funk diz algo parecido: “asseguro-lhe que não tenho o
material (the stuff) [necessário] para heroísmo. Não tinha naquela época e não tenho
agora. Talvez esse seja o problema. Mas muitas vezes me pergunto o que teria feito se eu
soubesse dessas coisas antes. Acho que não teria sobrevivido a isso” (FUNK apud
GILBERT, 1995, pp. 201-202).
O banqueiro que não era herói, mas tampouco vilão, se apresentava, portanto,
como um homem pequeno dentro de uma enorme organização, sempre sujeito à tomada
de decisão de outras pessoas já que “a presidência do Reichsbank era um grande trabalho”
e ele não podia saber de tudo que acontecia (FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 92).
Ele não era político e “não estava nada apto para ser ministro de Estado”, já que toda a
sua personalidade “era contra a burocracia” (FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p.
98). Dessa forma, ele reconhece uma única culpa: Funk admite que “deveria ter fugido e
não ter nada a ver com esses criminosos em primeiro lugar. Mais tarde era tarde demais.
Eu estava [envolvido] até o pescoço (I was in up to my neck)” (FUNK apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 87).
A acusação sabe que ele estava “envolvido até o pescoço” durante a Segunda
Guerra Mundial e os promotores perdem a paciência com frequência em virtude do
negacionismo de Funk. Ironizando sua inocência, Mr. Dodd usa a expressão “muitas
vezes na porta, mas nunca permitido a entrada” (often at the door but never let in) para
defini-lo (BS, 13, p. 139), ainda que essa porta seja uma das mais obscuras dos bastidores
do Holocausto: a do recolhimento de pertences pessoais dos prisioneiros que iam para os
campos de concentração e extermínio afim de gerar lucro para o Reich. Richard Evans
descreve essa operação que ocorria durante as deportações:
eram remetidas junto com o ouro extraído das restaurações dentárias dos
mortos para um escritório central de classificação em Berlim, onde os metais
preciosos eram fundidos em barras para o Reichsbank e a pedraria era trocada
nos países neutros ou ocupados por diamantes industriais necessários às
fábricas de armas alemãs. […] Um relatório do escritório de Pohl estimou em
pouco menos de 180 milhões de reichsmark o valor total de posses judaicas
confiscadas pela Operação Reinhard85 até 15 de dezembro de 1943 (EVANS,
2014b, p. 334–335).86
Sobre seu papel nessa operação, Funk afirma que não era da responsabilidade
do presidente do Reichsbank sequer gerir o banco, já que essa era responsabilidade da
diretoria, que apenas lhe reportava quando era necessário. Nesse sentido, o réu não podia
saber que dentes de ouro e joias estavam sendo colocadas nos cofres do banco após a
apropriação desses bens pela SS. Ele declara categoricamente nunca ter visto essas joias
e itens dos milhares de assassinados e se justifica dizendo que estes pertences poderiam
ter vindo de depósitos: “de onde vieram esses dentes eu não sei. Não me foi relatado, nem
sei o que foi feito com aqueles dentes. […] Tampouco sei se o Reichsbank tinha as
instalações técnicas para trabalhar esse metal. Eu não sei sobre isso” (BS, 13, pp. 169-
170). Sendo assim, em sua visão, o testemunho de Pohl, já mencionado anteriormente em
outros casos, era difamatório e buscava propositalmente incriminá-lo. Afinal, “as pessoas
não podiam falar de atrocidades, porque estavam sob juramento de manter segredo. E se
as pessoas fossem decentes, não me contariam de qualquer maneira porque não gostariam
de me envolver” (FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 82). Como as Imagens 2 e 3
demonstram, não há possibilidade de ignorância quanto ao significado desses objetos:
85
A Operação Reinhard (Einsatz Reinhard/Aktion Reinhard) é como foi denominado o plano do fim de
1941 para sistematicamente exterminar os judeus no Governo Geral na Polônia ocupada. Os campos de
extermínio de Belzec, Sobibor e Treblinka foram criados como resultado da operação, que atuaram no
extermínio entre 1942 e 1943. Para saber mais:
https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/operation-reinhard-einsatz-reinhard. O Núcleo
Brasileiro de Nazismo e Holocausto (NEPAT) também possui um episódio do podcast Desnazificando
sobre a Operação: https://anchor.fm/desnazificando/episodes/66-Operao-Reinhard-Srie-A-construo-do-
Holocausto--Episdio-09-e1rq7ib (Acesso em 15/09/2022)
86
Mais sobre o processo: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/at-the-killing-centers (Acesso
em 15/09/2022)
211
Ainda que tenha vindo de uma família burguesa com muitos empresários, Funk
conta que tinha uma inclinação artística, sobretudo para a música, de modo que teria sido
muito mais feliz em sua vida se tivesse permanecido tocando um violino ou um piano, ao
invés de ingressar na política e no movimento nazista. Infelizmente, como ele mesmo
afirma, sua defesa não foi musical: “se eu tivesse permanecido com minha escrita e minha
música, estaria trabalhando agora e não seria um criminoso na prisão de Nuremberg”
(FUNK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 98). Apesar disso, o réu não nega que assumiu
“com entusiasmo” (BS, 13, p. 90) seu trabalho no Partido Nazista, ainda que sempre tenha
sido considerado “mesmo nos círculos do Partido, um liberal e um outsider” (BS, 13, p.
84). Esse trabalho, é claro, era quase desimportante e, portanto, Funk não enxerga
nenhuma responsabilidade sob o “destino trágico” que se abateu sobre ele. A vida
aconteceu e não foi fruto de suas escolhas. Consciente de que a promotoria iria acusá-lo
87
Soldados estadunidenses do Primeiro Exército selecionando joias, incluindo obturações de ouro, tiradas
pela SS de prisioneiros no campo de concentração de Buchenwald (1945). United States Holocaust
Memorial Museum, disponível em: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1033248 (Acesso em
15/09/2022)
88
Um soldado mergulha as mãos em um caixote cheio de anéis confiscados de prisioneiros em Buchenwald
e encontrados por tropas estadunidenses em uma caverna ao lado do campo de concentração (1945). United
States Holocaust Memorial Museum, disponível em:
https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa18788 (Acesso em 15/09/2022)
212
“e com certo grau de razão, de fazer parte de um governo criminoso” (FUNK apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 82), o banqueiro tenta mostrar como ele era diferente dos
outros nazistas. Afinal, sua tragédia foi acreditar que estava servindo o povo alemão até
o fim. Ele admite que “se você seguir um determinado caminho por algum tempo, é
preciso uma enorme força de vontade para sair, embora você possa reconhecer que o
caminho não era tão bom”. No entanto, em seu caso, ele acreditou “e estava convencido
de que estava servindo e ajudando as pessoas até o último momento” (FUNK apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 98).
Cegos pelo poder, como Göring, pela ambição, como Schacht, ou pelo desejo
de realizar um bom trabalho, como ele, Funk tenta apresentar uma lição sobre o
Julgamento de Nuremberg: “se este mundo está coberto com muitas coisas podres e
sujeira, algum poder deve removê-lo e algum novo instrumento deve ser criado. Essa é a
minha visão do significado histórico desses tempos terríveis” (FUNK apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 100). Os nazistas, como as coisas podres, precisavam de um
tribunal internacional inédito para fazer uma limpeza. Enquanto os outros dois
negacionistas foram condenados à morte, Funk escapou com uma prisão perpétua que
não durou toda sua vida. Seu caso e o de Schacht, como os banqueiros do Reich, nos
mostram, portanto, as falhas e as problemáticas desse processo da culpa criminal dos
nazistas.
214
Capítulo Quatro
No-man X Yes-man
Hjalmar Schacht
Joachim von Ribbentrop
“Eu lhe digo, seria uma eterna desgraça para este Tribunal e para a justiça
internacional se eu não for absolvido”
enormes verbas camufladas que Schacht repassava por meio de uma ‘contabilidade
criativa’, fora do orçamento da nação, a consolidação de Forças Armadas grandes e
poderosas ganhou impulso” (KERSHAW, 2016, p. 238). Como “o primado da economia
deu lugar ao primado da ideologia” (KERSHAW, 2016, p. 239) em pouco tempo, o
banqueiro havia se convertido suficientemente a ideologia nazista para “aprovar
entusiasticamente a meta primária do regime de rearmar a Alemanha em velocidade
máxima” (EVANS, 2014c, p. 396–397). Portanto, é sobretudo sobre seu papel na
preparação econômica alemã para a Segunda Guerra Mundial que Schacht é acusado em
Nuremberg.
moderada dentro daquele regime, chamando-se Ministro sem portfólio, que, como já
vimos, significava que ele era apenas um ministro representativo, sem nenhum poder de
fato. Afinal, Schacht estava atuando no regime nazista, mas não fazia parte dele. Como
ele diz: “nunca me considerei exatamente parte do regime, porque era contra” (BS, 13, p.
29). Consequentemente, ninguém foi mais contra o regime nazista do que ele. Ninguém
havia tentado prevenir os males do nacional-socialismo como ele: Schacht era o nazista
antinazista por excelência.
Canais ordenados
Mesmo Mein Kampf, que em sua perspectiva foi escrito no pior tipo de alemão
por um homem semieducado e em certa medida fanático, tinha seus méritos. Schacht
compreende que o livro tinha diversos problemas, “mas, por outro lado, também tinha
muitas ideias razoáveis”. Duas coisas lhe chamaram atenção na obra do Führer,
compreendida como o manual dos princípios do movimento nazista. A primeira dizia
respeito à perspectiva de “que quem discorda do governo em questões políticas é obrigado
a dar sua opinião ao governo”. A segunda dizia que “embora o governo democrático, ou
melhor, parlamentar, devesse ser substituído por um governo do Führer, o Führer só
poderia permanecer se tivesse a certeza da aprovação de todo o povo”. Nesse sentido,
mesmo em um Estado onde reinava o Princípio de Liderança, o Führer também dependia
inteiramente do apoio popular (BS, 12, p. 422). Por esse motivo, em sua visão, o Princípio
de Liderança por si só não era criminoso. Citando a obra Falha na missão do autor Sir
Nevile Henderson,89 diplomata britânico que serviu como embaixador do Reino Unido
na Alemanha entre 1937 e 1939, “ditaduras nem sempre são más” (BS, 12, p. 444).
89
Henderson teve um papel importante nas questões diplomáticas entre Alemanha e Reino Unido, que
eventualmente levaram à Segunda Guerra Mundial. Ver: EVANS, 2014 e KERSHAW, 2016.
221
É claro que havia alguns excessos nos princípios nazistas. A Questão Judaica,
por exemplo, ia “um pouco além dos limites”. No entanto, na percepção de Schacht, ainda
que a exclusão dos judeus de seus direitos civis tenha sido um ponto negativo, “por outro
lado foi reconfortante que os judeus estivessem sob a proteção da Lei de Estrangeiros, ou
seja, sujeitos às mesmas leis que se aplicam a estrangeiros na Alemanha”. Essa era uma
proteção que ele desejava que todos os judeus recebessem, mas que, infelizmente, não
aconteceu. Não obstante, era válido ressaltar que o programa do NSDAP enfatizou “que
todos os cidadãos devem ter direitos e deveres iguais” (BS, 12, pp. 421-422). E nesse
sentido, como ele diz a Goldensohn, Schacht não estava sendo acusado de comportamento
antijudaico, e, portanto, não requeria defesa nesse aspecto. Se não há acusação, não há
necessidade de defesa (SCHACHT apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 227).
Rompimento
se tornarem ainda mais perigosos. No entanto, deixá-los no governo faria com que eles
entendessem seus limites e isso permitiria que o Führer pudesse ser controlado (BS, 12,
p. 423). Como vimos, essa também foi a perspectiva defendida por homens que tiveram
um forte papel na ascensão de Hitler ao poder, como Franz von Papen, um diplomata da
velha guarda.
Que ficasse claro, no entanto, que Schacht não gostava tanto de Hitler para
começo de conversa – em diversos momentos ele parece competir com Albert Speer pelo
monopólio do reconhecimento da “maldade” do Führer. E precisamente por isso, ele
nunca se sentiu decepcionado pelo líder, afinal, ele “não esperava dele mais do que minha
avaliação de sua personalidade me permitia”. A inexistente decepção deu lugar a um
sentimento certeiro de traição: “certamente me considero enganado, e enganado por ele
ao mais alto grau, porque tudo o que ele havia prometido anteriormente ao povo alemão
e, portanto, a mim, ele não cumpriu depois”. Hitler “fez de tudo para quebrar suas
promessas. Ele mentiu e enganou o mundo, a Alemanha e a mim (BS, 12, p. 454)”. Como
um patriota orgulhoso de seu pertencimento à nação alemã, Schacht havia sido, assim
como todos os alemães, iludido pelas promessas do Führer. Como ele aponta para Gilbert,
“o que Hitler fez foi um crime contra nossa cultura!” (SCHACHT apud GILBERT, 1995,
p. 153), já que o líder, como ele sempre havia deixado claro, “não tinha nenhuma
concepção de decência, honra e dignidade. Ele manteve a escória criminosa no poder e
forçou os homens decentes a renunciar, ou liquidou-os um após o outro” (SCHACHT
apud GILBERT, 1995, p. 304).
Com licença. Acho que há um erro básico aqui. A partir disso, parece que eu
já fui um adepto convicto de Hitler em algum momento. Eu nunca fui isso. [...]
Portanto, não se tratava de um rompimento com Hitler. Um rompimento só
poderia ser feito se eu tivesse estado intimamente ligada a ele antes. No fundo,
nunca estive intimamente ligado a Hitler, mas, para todos os efeitos, trabalhei
no Gabinete (BS, 12, pp. 450-451).
todos os debates, discussões e discursos”. Havia coisas a se admirar no líder porque ele
era “um psicólogo de massa de gênio realmente diabólico”. Sua influência era percebida
em inúmeras pessoas – não nele, naturalmente – e Schacht acreditava que originalmente
Hitler pensava “estar visando o bem, mas gradualmente ele próprio foi vítima do mesmo
feitiço que exercia sobre as massas”. Afinal, “quem se aventura a seduzir as massas acaba
sendo conduzido e seduzido por elas, e assim essa relação recíproca entre líder e
liderados, a meu ver, contribuiu para enredá-lo nos maus caminhos dos instintos de massa,
que todo líder político deve evitar” (BS, 12, pp. 450-451).
de Pavlov,90 referência que Arendt usa em muitos de seus textos (ARENDT, 2008a).
Logo, Schacht tem razão ao compreender que existe uma correlação entre líder
e liderados, sobretudo em um governo baseado em uma personalidade carismática, se
formos utilizar a análise de Kershaw e sua leitura do conceito de carisma de Max Weber.
90
Experiência realizada pelo fisiologista russo Ivan Pavlov que consistia em treinar cães para salivar toda
vez que ouvissem uma sineta, já que associavam o barulho da sineta ao recebimento de comida. A
experiência comprovaria que nossos reflexos podem ser recriados e controlados, e mais ainda,
condicionados, abrindo espaço para a psicologia comportamental.
91
Os dois últimos parágrafos foram uma adaptação de trechos da minha dissertação de mestrado. Ver em:
VISCONTI, 2017, pp. 59–60.
227
Afinal, o líder carismático cria e forja uma estrutura social complexa, uma vez que ele
não é apenas “uma pessoa que ganha confiança, para quem são dirigidas grandes
expectativas ou a quem são atribuídas qualificações especiais: um líder carismático cria
um novo padrão de relações sociais” (LEPSIUS, 1986, p. 55). Por esse motivo, o nazista
antinazista Hjalmar Schacht se enxergava como um ponto tão fora da curva: ele havia
conseguido romper com essa nova estrutura social do Terceiro Reich e havia
compreendido como estava sendo manipulado pelo mito do Führer. Esse No-man se
recusava a ser um cão de Pavlov, um militar apartidário ou um defensor fiel. Hitler,
apesar de ser um grande psicólogo das massas, não conseguiu compreendê-las o
suficiente a ponto de não ser influenciado por elas – e esse foi o motivo de seu declínio.
E por não ter paciência nem compreensão, a grande tragédia da vida de Schacht foi não
conseguir trazer essas qualidades para a política do Führer, apesar de ter tentado
“arduamente”. Por fim, essa foi a sua “vida trágica”, que, em sua visão, ele não pôde
evitar (SCHACHT apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 236).
Um modelo de virtude
No que diz respeito à minha compostura e conforto pessoal, teria sido muito
simples não assumir o cargo e renunciar. Claro, eu me perguntei que ajuda isso
seria para o futuro desenvolvimento da política alemã se eu recusasse o cargo.
Já estávamos em um estágio em que qualquer oposição e crítica pública e
aberta contra o regime de Hitler se tornaram impossíveis. Reuniões não podiam
ser realizadas, sociedades não podiam ser estabelecidas, toda declaração de
228
imprensa estava sujeita a censura, e toda oposição política, sem a qual nenhum
governo pode prosperar, foi impedida por Hitler por meio de sua política de
terror. Só havia uma forma possível de criticar e até de opor-se que pudesse
impedir que medidas más e errôneas fossem tomadas pelo governo. E essa
oposição só poderia ser formada no próprio governo. Assim convencido,
ingressei no governo e esperava, ao longo dos anos, encontrar certo apoio e
respaldo entre o povo alemão. Ainda havia uma grande massa de líderes
espirituais, professores, cientistas e professores, dos quais eu não esperava que
simplesmente fossem aquiescer a um regime de coerção. Havia também muitos
industriais, líderes da economia, que eu não supunha que se curvariam a uma
política de coerção incompatível com a economia livre. Esperava um certo
apoio de todos esses círculos, apoio que me permitiria ter uma influência
moderadora e controladora no governo. Portanto, ingressei no Gabinete de
Hitler, não com uma aprovação entusiástica, mas porque era necessário
continuar trabalhando para o povo alemão e exercer uma influência
moderadora dentro do governo (BS, 12, p. 461).
92
Esse trecho do parágrafo foi retirado e adaptado da minha dissertação de mestrado. Ver em: VISCONTI,
2017, p. 62.
93
Para saber mais sobre o episódio, conferir o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e
Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/CQv6Lm8ld6u/ (Acesso em 12/09/2022)
229
telefonema, assistiu à detonação e voou direto para Berlim para concluir o golpe.
Entretanto, apenas uma das bombas disparou e a explosão não foi fatal. Hitler sofreu
apenas algumas escoriações e teve os tímpanos estourados, mas não teve nenhum
ferimento grave. Stauffenberg foi preso juntamente com os demais conspiradores, que
rapidamente foram condenados à morte. O coronel, antes de ser morto, gritou “Longa
vida para a santa Alemanha!” (EVANS, 2014b, p. 733).
Hitler, inicialmente, acreditou que o golpe havia sido obra de alguns poucos
oficiais insatisfeitos. Contudo, à medida que a investigação da Gestapo progredia foi
ficando mais claro que havia um número considerável de envolvidos. Por fim, quase 5
mil pessoas foram presas, mil foram mortas ou se suicidaram, e em muitos casos a
punição se estendeu também às famílias dos conspiradores.94 Dentre essa segunda leva
de presos, encontrava-se Hjalmar Schacht. Ainda que ele de fato estivesse em contato
com os conspiradores, “mesmo antes de ficar sabendo disso, Hitler ordenou que fosse
capturado porque, ele ainda achava, Schacht sabotara o rearmamento na década de 1930”,
questão que abordaremos a seguir (EVANS, 2014b, p. 735).
Dessa forma, Schacht foi preso muito mais por já ter saído das graças do Führer
em anos anteriores do que efetivamente pelo seu ínfimo papel no atentado. O 20 de julho,
no entanto, é um recurso narrativo poderoso para o economista. Se colocando ao lado dos
resistentes e conspiradores, o ministro exerce uma outra função: ao destacar o
cerceamento de todas as formas de liberdade durante o regime nazista, o Schacht também
chama atenção para a dificuldade da própria população alemã de resistir. Dessa maneira,
sua absolvição também levaria a um perdão dos cidadãos alemães, presos em uma
sociedade de massas que permaneceu à sombra de uma ditadura, sem possibilidade de
ação.
94
Os últimos dois parágrafos foram adaptados do post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e
Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/CgPMwHesjHy/ (Acesso em 13/09/2022)
231
que era sustentável apenas a curto prazo” (KERSHAW, 2010, p. 504). No entanto, nem
se passava pela mente de Hitler a possibilidade de recuar. Em suas palavras, “na minha
vida, eu sempre coloco todas as minhas fichas na mesa” (HITLER apud EVANS, 2014c,
p. 789). Para o setor econômico, essa aposta era alta demais. A direção do Reichsbank
enviou a Hitler um documento, ainda em janeiro de 1939, demandando uma contenção
financeira de modo emergencial para evitar o “problema ameaçador da inflação”. O
Führer enxergou o documento como uma tentativa de motim e, doze dias depois, Schacht
foi demitido. O problema, entretanto, não foi resolvido com a demissão do banqueiro: “a
demanda insaciável por matérias-primas, somada ao aumento da demanda dos
consumidores com o boom dos armamentos, havia deixado as finanças públicas em estado
desolador”. A solução para esse problema estrutural foi a confirmação do que Hitler vinha
afirmando há anos: a Alemanha precisava reconquistar seu espaço vital para garantir sua
sobrevivência. De acordo com Kershaw, “o aumento dos problemas econômicos
confirmava seu diagnóstico de que a posição da Alemanha jamais poderia ser fortalecida
sem conquista territorial” (KERSHAW, 2010, p. 505).
O super-nazista na multidão
Por afirmar que “a verdade é a verdade e não há como impedir que ela saia”
(SCHACHT apud GILBERT, 1995, p. 297), e, também, por se considerar diferente dos
outros nazistas, Schacht é um grande crítico dos outros réus no julgamento. O grande alvo
das críticas do “gênio das finanças” foram os militares, sobretudo pela sua frequente
justificativa da obrigatoriedade de obediência de um soldado. O economista afirma que
isso “parece correto, e tudo o mais, mas não muda a culpa nem um pouco. E se ele
seguisse as ordens de Hitler e nada mais? Não há lei no mundo que me obrigue a cometer
assassinato” (SCHACHT apud GILBERT, 1995, p. 239). Em sua perspectiva, os
militares simplesmente não tinham estômago e força de vontade para se recusar a cumprir
ordens criminosas. Ele, ao contrário, se recusou, traçou uma linha fundamental quando a
Alemanha entrou em uma guerra que, para ele, não fazia sentido. Sua função em
Nuremberg, portanto, era a de mostrar para os alemães que ele, como resistente, não teve
participação no terrível destino da Alemanha: “meu povo deve ser mostrado como os
líderes nazistas os mergulharam em uma guerra desnecessária” (SCHACHT apud
GILBERT, 1995, p. 288). Por esse motivo, os membros das Forças Armadas também não
poderiam ser poupados no tribunal, afinal, “aqueles malditos militares não sabem nada
além de bater os calcanhares e dizer ‘Jawohl, nós arranjaremos uma guerra para você a
qualquer hora!’” (SCHACHT apud GILBERT, 1995, p. 288).
Suas críticas a ala militar lhe renderam inimizades e, ao fim e ao cabo, nenhum
dos réus parecia acreditar em sua postura antinazista. O almirante Karl Dönitz afirma que
mesmo se opondo a Göring e Rosenberg, ele pelo menos respeitava quem era consistente
e quem se mantinha fiel às suas visões. Por isso ele percebeu “um rato quando Schacht
tentou se fazer de inimigo do regime desde o início” (DÖNITZ apud GILBERT, 1995, p.
313). Hans Fritzsche caracteriza a defesa do ministro como um “suicídio
propagandístico” (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 316). Por outro lado, Schacht
angariou simpatia de alguns nazistas, sobretudo os ex-nazistas arrependidos, já que eles
próprios, por vezes, tentavam se apresentar como resistentes, como veremos. Franz von
Papen, um diplomata da velha guarda que tinha em comum com Schacht o pertencimento
às velhas elites de Weimar, também era favorável ao colega. Consolando von Papen após
sua defesa, o economista declara “sim, como conheço bem essas lutas com a consciência,
pesando o patriotismo contra essas outras coisas. Como eu sei. Eu tive o mesmo
problema” (SCHACHT apud GILBERT, 1995, p. 395).
233
“Somos apenas sombras vivas, os restos de uma era morta, uma era que morreu com
Hitler”
Joachim von Ribbentrop era o Ministro das Relações Exteriores de 1938 a 1945,
famoso pelo Pacto Ribbentrop-Molotov, o tratado de não agressão firmado entre a
Alemanha e a União Soviética em agosto de 1939. Foi julgado em Nuremberg por plano
de conspiração, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Considerado culpado das quatro acusações, foi condenado à morte e enforcado em 16 de
outubro de 1946. Sobre a acusação, Ribbentrop diz a Gilbert que ela está “direcionada ao
povo errado” (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 5).
ser adotado por uma tia do ramo aristocrático de sua família, como uma forma de
transferência de status de nobreza através do nome. No entanto, “o incidente foi típico
tanto da presunção social de Ribbentrop quanto de sua inépcia social: na Londres da
década de 1930, ele às vezes era chamado de ‘von Ribbensnob’”, fazendo referência à
palavra “esnobe”, snob, em inglês (EVANS, 2014c, p. 707). Apesar de sua adesão ao
nazismo em 1932, em anos anteriores, o diplomata era apenas mais um dos insatisfeitos
com a República de Weimar e temeroso do “perigo comunista”. “Longe de ser um nazista
de primeira hora”, Ribbentrop parecia para Hitler “um homem do mundo, experiente em
viagens ao exterior, poliglota, conhecedor da vida social”, e, por isso, um homem
experiente com bons recursos a seu dispor (EVANS, 2014c, p. 707).
No entanto, apesar de ter caído nas graças do Führer, o seu estilo de diplomacia
“brusco, peremptório, autoritário” não agradava outros diplomatas, e, tampouco outros
nazistas, inclusive os réus em Nuremberg. Em Londres ele logo conseguiu outro apelido:
“von Brickendrop”, algo como Quebra-Tijolo. O ressentimento vinha não somente de
estrangeiros por seu papel na diplomacia alemã, mas também dos próprios nazistas pela
importância de um cargo como o seu estar sendo ocupado por um recém-chegado
(EVANS, 2014c, p. 708). Esse homem, “linguisticamente capaz, mas infinitamente
vaidoso, arrogante e pomposo”, a despeito de ser um “iniciante”, gozava de muita
influência com o Führer – ainda que isso fosse fruto de uma combinação de sua bajulação
e adoração do Líder e da desconfiança de Hitler de diplomatas de carreira, como vimos
(KERSHAW, 2010, p. 370).
Imagem 495
Como um cachorro atento à voz de seu dono, Ribbentrop não mede esforços
para defender seu Führer. Talvez fosse difícil para outras pessoas compreenderem,
sobretudo pessoas que não estiveram próximas de Hitler, mas Ribbentrop afirma sem
pudor que “mesmo agora, seis meses depois de sua morte, não consigo me livrar
completamente de sua influência”. Não apenas ele, mas todos ficaram “fascinados” por
Hitler e, “mesmo que grandes intelectos se reunissem para uma discussão, em poucos
minutos eles simplesmente deixavam de existir e o brilho da personalidade de Hitler
brilhava sobre todos” (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 62). Era muito simples
dizer, como muitos nazistas diziam naquele momento, que teriam agido contra Hitler,
mas Ribbentrop estava certo e convencido de que se Hitler aparecesse no tribunal, todos
ficariam impressionados (amazed), e até mesmo os advogados de acusação, “pessoas que
parecem tão impressionantes agora encolheriam de tamanho”, porque as pessoas sempre
ficavam “terrivelmente impressionadas” com o Führer (RIBBENTROP apud GILBERT,
1995, p. 246).
VON RIBBENTROP: Um yes-man per se. Um homem que diz ‘sim’ mesmo
quando ele mesmo – é um pouco difícil de definir. De qualquer forma, não sei
o que você quer dizer com isso em inglês. Em alemão eu deve defini-lo como
um homem que obedece às ordens e é obediente e leal.
COL. AMEN: E, na verdade, você foi um Yes-man para Hitler, não é verdade?
95
His Master’s Voice, 1898, do artista Francis Barraud (1856-1924). A pintura é a marca registrada de uma
empresa de gramofones. Fonte: Wikipedia.
Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/His_Master%27s_Voice#/media/File:His_Master's_Voice.jpg (Acesso em
14/09/2022)
238
VON RIBBENTROP: Eu sempre fui leal a Hitler, cumpri suas ordens, divergi
com frequência dele, tive sérias disputas com ele, pedi repetidamente minha
demissão, mas quando Hitler dava uma ordem, sempre cumpria suas instruções
de acordo com os princípios do nosso Estado autoritário. (BS, 10, pp. 415-416)
Por sua defesa apaixonada do Führer, Ribbentrop sabia que era visto como um
homem fraco pelos outros réus. Em um dado momento ele se questiona se sua admiração
por Hitler, incompreensível para tantos, era fruto de uma histeria:
Hitler sempre teve, até o fim, e mesmo agora, um estranho fascínio sob mim.
Você chamaria isso de algo anormal de minha parte? Às vezes, em sua
presença, quando ele falava de todos os seus planos, das coisas boas que faria
pelo Volk, férias, estradas, novos prédios, vantagens culturais e assim por
diante, lágrimas vinham aos meus olhos. Seria porque sou um homem fraco e
239
Uma chance
Esse homem, com sua “vontade inabalável”, que poderia tirar os alemães do
sofrimento a que estavam submetidos, na realidade, só queria igualdade de direitos e
liberdade para o seu país. E, por isso, compreensivelmente, “as pessoas se amontoaram
(crowded) sob um líder forte como ovelhas em uma tempestade” (RIBBENTROP apud
GILBERT, 1995, p. 108). Contudo, os desejos da Alemanha não poderiam ser realizados
com negociações. Hitler, portanto, de acordo com Ribbentrop, deixou a Liga das Nações,
algo já abordado em capítulo anterior, por uma vontade genuína de igualdade de
armamentos, algo nada mais do que justo naquele momento, e que traria de volta a
dignidade para o país.
que apostar tudo mesmo sem ter certeza das cartas (RIBBENTROP apud GILBERT,
1995, p. 246). No entanto, no pacto, como tantas vezes durante sua carreira, Ribbentrop
demonstrou um “instinto para a inabilidade” (KERSHAW, 2010, p. 619).
De acordo com Ian Kershaw, “o pacto mais cínico que se possa imaginar”
(KERSHAW, 2016, p. 349), de não agressão entre a Alemanha e a URSS, selaram o
destino da Polônia. Após sua assinatura, em 24 de agosto de 1939, em apenas dez dias o
mundo se via ingressando na Segunda Guerra Mundial. O historiador Richard Evans
destaca que mesmo tendo sido inesperado, havia motivos válidos para ambas as partes
para a realização do pacto. De um lado, Hitler precisava de aprovação para a invasão
alemã à Polônia para evitar uma guerra europeia em duas frentes. De outro lado, a URSS
via como uma “atraente probabilidade de as potências capitalistas da Europa – Alemanha,
França e Grã-Bretanha – travarem uma guerra de destruição mútua”. No entanto, apesar
da perspectiva de comprometimento de não realização de guerra entre as duas potências,
havia cláusulas secretas no pacto que modificariam o cenário internacional. Por meio
dessas cláusulas, a Europa Oriental e Central foram previamente divididas em esferas de
influência, de modo que “Stálin assumiria a parte oriental da Polônia, junto com Letônia,
Lituânia e Estônia, e Hitler a parte ocidental”. Stalin e Hitler sabiam que os dez anos
prometidos no pacto não seriam respeitados, e, de fato, a falsa paz não durou nem dois
anos. Contudo, Evans ressalta que “a longo prazo, a fronteira traçada na Polônia entre
esferas alemãs e soviéticas se mostraria permanente, ao passo que a ocupação soviética
dos países bálticos duraria até próximo do final do século XX” (EVANS, 2014c, p. 778).
Esse é um ponto importante para a análise do mito do Führer, como propõe Ian
242
Kershaw. O historiador ressalta como Hitler havia sido bem bem-sucedido em muitos
aspectos da política internacional por meios supostamente diplomáticos. A campanha do
Ruhr, da Renânia e da anexação da Áustria são exemplos para muitos nazistas de sucessos
políticos que sequer necessitaram da utilização das Forças Armadas, como abordado em
capítulos anteriores. Como vimos, esse Hitler pacifista foi uma imagem cuidadosamente
construída, uma vez que o Führer nunca havia, de fato, desejado a paz (KERSHAW,
2001). A perspectiva de que tudo seria conquistado sem o derramamento de sangue
também era vista por homens como Ribbentrop como um triunfo, demonstrando uma
visão de que a Segunda Guerra Mundial havia sido o último recurso, uma necessidade
imposta após diversas tentativas pacíficas. Não obstante, Ribbentrop lembra que a guerra
era “uma luta de vida e morte” (BS, 10, pp. 393-394) e uma “guerra de prevenção” (BS,
10, p. 429). A anexação da Áustria, nesse sentido, também não foi um plano de agressão,
e sim, “a realização de um propósito” (BS, 10, p. 426).
Portanto, aos olhos de Joachim von Ribbentrop, Hitler havia sido forçado à
guerra, ainda que esta fosse uma guerra preventiva. Como seu “assistente fiel” e alguém
que compartilhava de sua visão da necessidade de fortalecimento da Alemanha, o
ministro ainda defendia as atitudes do Führer com relação à política internacional:
Após ser forçado ao conflito armado, não havia outra forma do Führer conduzir
suas ações. Ele “só podia agir da maneira que agia”, e, mesmo tomando decisões por
vezes questionáveis, o seu interesse sempre esteve no povo alemão, a quem dedicou sua
vida e sua carreira política. A Segunda Guerra não poderia ser evitada e Hitler também
não tinha nenhuma culpa desse acontecimento. O “sim” desse Yes-man se fortalece em
sua narrativa como uma defesa de toda e qualquer atitude tomada por seu líder. Afinal,
como aponta Kershaw, parte fundamental da construção do mito do Führer era a
perspectiva de que Hitler estava sempre certo: “havia um sentimento residual duradouro,
evidentemente compartilhado por muitos, de que, quaisquer que fossem as dificuldades e
preocupações temporárias, o Führer estava no controle e sabia o caminho a seguir para
tempos melhores” (KERSHAW, 2001, p. 65–66). De acordo, Hannah Arendt também
243
afirma que “o líder sempre tem razão nos seus atos, e, como estes são planejados para os
séculos vindouros, o exame final do que ele faz é inacessível aos seus contemporâneos”
(ARENDT, 1989, p. 433). O Führer era infalível: “a base da estrutura não está na
veracidade das palavras do líder, mas na infalibilidade dos seus atos” (ARENDT, 1989,
p. 437). Ribbentrop, tomado pelo mito, tinha, portanto, convicção de que Hitler sempre
faria o melhor para a Alemanha – no passado, no presente e no futuro. Afinal, a qualidade
principal do Führer, nas palavras do nazista Rudolf Hess em 1934, era de que ele “sempre
teve razão e sempre terá razão” (ARENDT, 1989, p. 433).
Nesse sentido, Ribbentrop entende que “como seu fiel seguidor, aderi às ordens
do Führer mesmo neste campo, mas sempre fiz o máximo para aliviar a situação na
medida do possível”, e, é claro que, “nesse sentido, nunca fui antissemita. Mas eu era um
fiel seguidor de Adolf Hitler” (BS, 10, p. 412). Sendo assim, o que o atraiu no movimento
nacional-socialista e na proposta do governo, não foi a política antissemita – ainda que
244
acontecendo na Alemanha. Em sua perspectiva, tudo havia sido feito debaixo dos panos
por homens como Himmler e Goebbels, e Hitler nem poderia ter tido conhecimento e
muito menos ordenado algo do tipo:
Mas todas as perseguições e atrocidades são revoltantes para todos nós, eu lhe
asseguro. Simplesmente não é alemão. Você pode me imaginar matando
alguém? Agora, você é psicólogo. Diga-me francamente, algum de nós parece
assassino? Não consigo imaginar Hitler ordenando essas coisas. Não acredito
que ele sabia disso. Ele tinha um lado difícil, eu sei, mas eu acreditava nele de
todo o coração. Ele realmente podia ser tão afetuoso. Eu estava disposto a fazer
qualquer coisa por ele (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 89).
A imagem altamente positiva do Führer deve ser vista neste contexto. Como o
proverbial rei medieval cujos maus conselheiros levaram a culpa, Hitler
permaneceu protegido da impopularidade pela própria impopularidade dos
‘pequenos Hitlers’, seu ‘carisma’ intocado pelos resmungos e queixas da vida
cotidiana no Terceiro Reich. A convicção de que o Führer interviria
decisivamente se uma vez ficasse sabendo dos abusos diários de seus
subordinados era ela mesma um produto direto desses abusos, o resultado de
uma necessidade psicológica de autoridade imaculada e ‘justa’ que funcionava
como um mecanismo de fuga para descontentamento latente e, portanto, como
uma válvula de segurança para o regime (KERSHAW, 2001, p. 103–104).
Eu não poderia ficar ali e atacar o Führer, isso simplesmente não poderia ser
feito. Não sou como certos alemães – agora não quero dizer nada contra
nenhum outro réu, mas não posso dizer que estava contra ele. Ah, ainda posso
dizer que não acredito que os judeus começaram a guerra, mas não posso expor
como me opus ao Führer nessa questão. […] Eu posso ter feito certas
observações concordando com a política – afinal, eu estava trabalhando para
um governo antissemita. Mas eu nunca fui antissemita. (RIBBENTROP apud
GILBERT, 1995, p. 324)
Ribbentrop. Sendo assim, ele jamais sequer tinha pensado em trair Hitler. Se soubesse
das atrocidades na época, seu único recurso, como ele mesmo diz, seria cometer suicídio,
e não tentar matar o Führer. Gilbert, em uma jogada clássica da psicologia e psiquiatria
da época, questiona se a sensação seria a de matar o seu próprio pai, ao que o ministro
responde que “sim, algo assim. E porque ele se tornou para mim o símbolo da Alemanha”.
Mesmo naquele momento, “se ele viesse a mim agora, eu simplesmente não poderia
renunciar a ele. Eu poderia não o seguir mais, mas repudiá-lo – não, eu simplesmente não
poderia fazê-lo” (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, pp. 235-236).
Servilismo
Para Hans Frank, havia um motivo óbvio para a postura do ministro: ele era
justamente o homem que Hitler precisava. O nazista afirma: “Hitler cercou-se de homens
bajuladores (Yes-men) e ignorantes para dar a si mesmo uma aparência artificial de força”.
Hermann Göring, o segundo homem do Reich, em sua política de frente unida, considerou
a performance de Ribbentrop simplesmente deplorável: “Oh, Deus, é triste! Muito triste!
Não dou a mínima para como Kaltenbrunner explica seu papel no RSHA, ou como
248
Rosenberg defende sua filosofia, mas nossa política externa... Isso é algo que reflete em
todo o governo! Que calamidade!” (FRANK; GÖRING apud GILBERT, 1995, p. 230-
231). Na análise do psicólogo Gilbert, Ribbentrop estava confuso e dizia não se lembrar
ou não saber de muitas coisas “em parte porque ele repetiu (parroted) os sentimentos de
Hitler irrefletidamente em primeiro lugar, mal percebendo o que ele estava dizendo”, e,
em parte porque “agora ele estava bloqueando e rejeitando tais fatos prejudiciais de
qualquer maneira, tornando a mentira mais fácil” (GILBERT, 1995, p. 229). O diplomata,
contudo, estava convencido de que, apesar dos esforços da promotoria e dos outros réus,
ele não entraria para a História como um homem humilhado, pelo contrário: Ribbentrop
acreditava que “a História terá uma visão diferente do assunto. E o povo alemão não vai
acreditar neles [na promotoria]. Eu sei o que meu povo pensa de mim. Eu apenas tentei
ajudá-los” (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, p. 229).
Sombras vivas
Não vai valer a pena viver no mundo que surgirá depois do Líder e do nacional-
socialismo, e por isso levei meus filhos. [...] Agora temos somente um
objetivo: lealdade até a morte para com o Líder. O fato de podermos terminar
nossa vida com ele é uma misericórdia do destino pela qual não ousávamos
esperar. (Carta de Magda Goebbels antes de seu suicídio, 1945, EVANS,
2014a, p. 883)
Seguiu-se uma onda de suicídios nunca vista antes na história moderna. Não
apenas membros do alto escalão como Goebbels e Himmler, mas cidadãos comuns
escolheram a morte. De acordo com as estatísticas oficiais, os suicídios subiram de 239
em março de 1945 para 3.881 no mês seguinte – e os números aumentavam sobretudo
nas zonas ocupadas pelo Exército Vermelho (EVANS, 2014b, p. 839). Muitos membros
do alto escalão recorreram ao suicídio para evitar uma morte como a de Mussolini96 e seu
séquito. Outros, por completa desilusão e perda de sentido em um mundo onde o nacional-
socialismo não existiria mais. Como lembra Melita Maschmann, membro da Juventude
Hitlerista:
Ah, bem, não faz diferença. Somos apenas sombras vivas – os restos de uma
96
Benito Mussolini, o ditador fascista italiano, foi morto em 28 de abril de 1945 por partisans antifascistas.
Seu corpo, juntamente com o de sua amante, Claretta Petacci, foram expostos, pendurados de cabeça para
baixo, em Milão em praça pública. Por dias a população passava pela praça e atirava objetos e comidas nos
corpos.
97
Esse trecho foi adaptado do post que escrevi sobre a morte de Adolf Hitler para o Núcleo Brasileiro de
Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT). Ver em: https://www.instagram.com/p/B_nACUIlzF3/
(Acesso 12/09/2022)
98
No caso de Göring, contudo, o suicídio estava relacionado com não permitir que os Aliados tirassem a
sua vida. Esse ponto será abordado na Conclusão da tese.
250
era morta – uma era que morreu com Hitler. Quer alguns de nós vivam mais
dez ou 20 anos, não faz diferença. O que eu poderia fazer de qualquer maneira,
mesmo se fosse liberado, o que, claro, não vai acontecer? A antiga era morreu
com Hitler – nós não cabemos mais no mundo atual. Em 30 de abril eu deveria
ter sofrido as consequências. (RIBBENTROP apud GILBERT, 1995, pp. 222-
223, grifo meu)
De forma similar a Julius Streicher, Ribbentrop possuía uma bússola que dava
sentido e direção a sua vida. Para ele, contudo, esse direcionamento não vinha
necessariamente do nacional-socialismo e sim da figura de Adolf Hitler. E, por isso, seu
mundo havia acabado com a morte do Führer. Todas as esperanças do Terceiro Reich e
desse novo mundo a ser construído e sonhado morreram junto com o líder. Ele deveria
ter “sofrido as consequências” e morrido com Hitler, como Goebbels fez e como a carta
de sua esposa antes dos suicídios demonstra: o mundo depois de Hitler não valia a pena.
Ribbentrop é um retrato de um homem fiel. Não no sentido militar, do Princípio de
Liderança ou da obediência irrefletida. Mas no sentido da admiração e devoção a uma
figura que, a seus olhos, não poderia fazer nada de errado, nunca. Até o fim e a beira da
morte, Ribbentrop permanecia dizendo sim a Adolf Hitler.
251
Capítulo Cinco
Ex-nazistas arrependidos
Hans Frank
Albert Speer
Baldur von Schirach
Hans Fritzsche
Com exceção de Frank, os outros três são classificados pelo psicólogo Gilbert
como a ala “jovem” do julgamento. Esses homens inclusive sentavam-se juntos no
refeitório da prisão em Nuremberg após a divisão feita pelo próprio Gilbert a pedido da
promotoria, como mencionado no caso de Hermann Göring. O objetivo de formar essa
organização do “refeitório jovem” (youth lunchroom), era, de acordo o psicólogo, além
de afastá-los da influência de Göring, “dar até mesmo a von Schirach a chance de declarar
que Hitler havia traído a Juventude Alemã e que a política racial era a catástrofe da
Alemanha” (GILBERT, 1995, p. 158–159). De fato, entre os jovens Speer, Schirach e
Fritzsche, há o consenso na potência de seus discursos para colocar um ponto final na
“lenda de Hitler”. Sua rejeição incisiva não somente do nazismo, mas também, e
sobretudo, do antissemitismo, faz com que até mesmo Gilbert acredite na sinceridade de
suas declarações. Quando Göring, em uma de suas explosões de raiva com as defesas que
denunciavam os crimes nazistas, afirma que os “jovens” haviam feito um pacto com a
promotoria para garantir uma absolvição com essas denúncias, Gilbert vem em prontidão
para defendê-los: “Eu disse a ele [Göring] que ele certamente deveria saber que isso
253
estava fora de questão”, e que “[eu] estava convencido de que Speer e von Schirach, pelo
menos, fizeram a denúncia por amarga desilusão e tentaram esclarecer o povo alemão
sobre a culpa de seus líderes” (GILBERT, 1995, p. 418).
“Não, eu posso ver que o destino me colocou aqui para expor o mal que está em todos
nós. Deus conceda que eu mantenha minhas forças para fazê-lo e que não enfraqueça
novamente”
Frank era um dos casos mais proeminentes em Nuremberg e um dos nomes que
a promotoria russa insistiu para que fossem levados para esse primeiro tribunal. Esse
homem esteve ao lado de Adolf Hitler desde os primórdios do movimento nacional-
socialista, participando, inclusive, do putsch da cervejaria de Munique em 8 de novembro
255
de 1923.99 Apesar de ter caído “rapidamente sob o encanto de Hitler”, Frank nunca
chegou a fazer parte do círculo mais íntimo do Führer (EVANS, 2014a, p. 234). Sobre a
acusação, ele declara: “considero este julgamento como um tribunal mundial da vontade
de Deus, destinado a examinar e pôr fim à terrível era de sofrimento sob Adolf Hitler”
(FRANK apud GILBERT, 1995, p. 5).
Seu caso é um dos mais interessantes para análise por conta de sua constante
mudança de narrativa em seus depoimentos. Por ser um recém-convertido ao catolicismo,
Frank passa boa parte de suas entrevistas com o psicólogo Gilbert e com o psiquiatra
Goldensohn utilizando um vocabulário religioso e quase apocalíptico. Com explosões de
sentimentalismo, alternando entre lágrimas e histeria, Frank se apresenta como um
homem cheio de arrependimentos. Em outros momentos, no entanto, vai em defesa do
nazismo e de seus camaradas, deixando transparecer que via o tribunal como uma farsa.
99
O putsch da cervejaria foi um movimento inspirado na Marcha sobre Roma de Mussolini e representou
a tentativa de Adolf Hitler e de seus correligionários de derrubar o poder bávaro. Ao anunciarem, em uma
cervejaria de Munique, que o governo estava deposto, Hitler e seus apoiadores marcharam pelas ruas em
direção ao Ministério da Guerra, mas se depararam com policiais armados. A movimentação clandestina e
malsucedida causou a prisão de Adolf Hitler e de outros envolvidos em novembro de 1923. Detido na
cidade de Landsberg, ele escreveu o livro Mein Kampf, que se tornaria a base ideológica do regime nazista.
Para saber mais, ver o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT):
https://www.instagram.com/p/CWBOTMEM-0m/ (Acesso em 04/09/2022)
256
O advogado acredita ser o único homem em Nuremberg a admitir sua parcela de culpa,
compreendendo que estava em uma posição diferente da de outros julgados precisamente
pela sua responsabilidade. Em seus discursos no tribunal, contudo, a persona de Frank
não é a desse homem arrependido – ao menos, não com tanta ênfase. Durante o
julgamento, ele não fala mais do que o necessário, não provê longas explicações, e,
tampouco admite qualquer tipo de culpa criminal: sua culpa está meramente no campo da
moral. Como veremos, esse ex-nazista arrependido busca sua reabilitação com seus
discursos, e compreende muito bem as diferentes audiências para as quais está
endereçando suas palavras.
Grilhões intoleráveis
Pouco mais de quinze dias depois, a União Soviética também invade a Polônia,
colocando o fim determinante no já falido Pacto Ribbentrop-Molotov de não agressão,
abordado em capítulo anterior. Já em outubro de 1939, as unidades militares polonesas
remanescentes se renderam, demonstrando o primeiro triunfo de Hitler na sua estratégia
de Blitzkrieg, que ainda lhe renderia muitas vitórias e popularidade, por ser “uma guerra
de movimentação rápida” que nocauteava os inimigos com mínimas perdas para o lado
257
alemão (EVANS, 2014b, p. 27). Essa guerra-relâmpago tirou a vida de mais de 120 mil
poloneses, em comparação com 11 mil baixas alemãs.100
Os poloneses eram vistos por Hitler como “mais animais do que homens,
totalmente obtusos e amorfos”, e sua sujeira era “inimaginável” (EVANS, 2014b, p. 33).
Sendo assim, com sua colonização, o objetivo dos nazistas era manter a população
polonesa em um estado de diminuição cultural tão intenso que eles não teriam capacidade
de ganhar compreensão de sua identidade e de sua condição e, tampouco, assimilar que
estavam aos poucos, a médio e longo prazo, sendo levados à exploração para as
necessidades econômicas da Alemanha (CHAPOUTOT, 2018, p. 331). Como tudo até
então, os nazistas estavam apenas restabelecendo um balanço natural que havia sido
quebrado com fronteiras artificiais: os poloneses eram racialmente inferiores e, por isso,
deveriam ocupar seu lugar na natureza servindo a um povo superior – no caso, os arianos.
A educação no território ocupado deveria ser mínima, mantendo apenas o necessário para
a execução do trabalho, e os poloneses não tinham nenhuma seguridade de direitos. Não
se podia exterminar a população inteira de pronto, já que os braços eram necessários para
a servidão e o trabalho. Essas medidas eram duras, é claro, mas necessárias, e, mais
importante, coerentes: “era consistente porque se baseava em desigualdades naturais, e
justa, porque cada um estaria cumprindo seu papel e sua vocação biológica – os senhores
comandariam e os escravos obedeceriam” (CHAPOUTOT, 2018, p. 334).
100
Parte do conteúdo desses dois parágrafos foi retirado e adaptado do post do Núcleo Brasileiro de
Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/CTSITzil1nj/ (Acesso em 04/09/2022)
258
A guerra não é uma coisa que se quer. A guerra é terrível. Nós a vivemos (lived
through it); mas não queríamos a guerra. Nós queríamos uma grande
Alemanha e a restauração da liberdade e do bem-estar, da saúde e da felicidade
de nosso povo. Era meu sonho, e provavelmente o sonho de cada um de nós,
fazer uma revisão do Tratado de Versalhes por meios pacíficos, algo que estava
previsto naquele mesmo tratado. Mas, como no mundo dos tratados, também
entre as nações, só quem é forte é ouvido; A Alemanha teve que se tornar forte
primeiro antes que pudéssemos negociar. Foi assim que eu vi o
desenvolvimento como um todo: o fortalecimento do Reich, o
restabelecimento de sua soberania em todas as esferas, e por esses meios nos
libertar dos grilhões (shackles) intoleráveis que haviam sido impostos ao nosso
povo. Fiquei feliz, portanto, quando Adolf Hitler, na mais maravilhosa
ascensão ao poder, sem paralelo na história da humanidade, conseguiu, no final
de 1938, alcançar a maioria desses objetivos; e fiquei igualmente infeliz
quando, em 1939, para minha consternação (dismay), percebi cada vez mais
que Adolf Hitler parecia estar se afastando daquele rumo e seguindo outros
métodos (BS, 12, pp. 7-8).
Paixões terríveis
Por esse mesmo motivo, Frank, ainda que pertencente a um regime criminoso,
só podia sentir uma culpa moral pelo extermínio dos judeus, nada além disso. Sua postura
é perceptível quando ele é questionado diretamente sobre sua participação na aniquilação
dos judeus:
Eu digo ‘sim’; e a razão pela qual digo ‘sim’ é porque, tendo vivido os 5 meses
deste julgamento, e particularmente depois de ter ouvido o depoimento da
testemunha Höss, minha consciência não me permite jogar a responsabilidade
apenas sobre esses homens menores. Eu mesmo nunca instalei um campo de
extermínio para judeus, nem promovi a existência de tais campos; mas se
Adolf Hitler pessoalmente colocou essa terrível responsabilidade sobre seu
povo, então é minha também, pois lutamos contra os judeus durante anos; e
nos entregamos às declarações mais horríveis – meu próprio diário testemunha
contra mim. Portanto, não é mais do que meu dever responder à sua pergunta
a esse respeito com ‘sim’. Mil anos se passarão e esta culpa da Alemanha ainda
não terá sido apagada (BS, 12, p. 13).
260
Os diários de Hans Frank de fato testemunham contra ele. Ele mesmo admite
que “algumas das palavras são terríveis. Eu mesmo devo admitir que fiquei chocado com
muitas das palavras que usei” (BS, 12, p. 20). No entanto, ele ressalta que era necessário
compreender que, dentro dos 43 volumes daquele diário, existia, como pano de fundo,
uma situação política e social dramática. O diário deveria ser analisado em seu contexto,
já que o Terceiro Reich “foi um período selvagem e tempestuoso cheio de paixões
terríveis, e quando um país inteiro está em chamas e uma luta de vida ou morte está
acontecendo, essas palavras podem facilmente ser usadas” (BS, 12, p. 20).
Frank sabe que o fato de ter entregado esses diários à acusação faz com que sua
defesa seja ineficiente, afinal, como negar o que ele próprio havia escrito? Entretanto,
para além dos diários, sabemos de dezenas de outras declarações “terríveis” do
“açougueiro da Polônia” que contradizem o que ele diz em Nuremberg. Em 16 de
dezembro de 1941, por exemplo, ele diz à sua equipe: “quanto aos judeus – quero dizer
isso a vocês com total franqueza -, deve-se dar um fim neles de um jeito ou de outro”.
Advertindo os oficiais contra “qualquer pensamento de pena”, Frank declara: “devemos
aniquilar os judeus onde quer que topemos com eles e sempre que possível a fim de
sustentar a estrutura total do Reich aqui” (FRANK apud EVANS, 2014b, p. 305). A
aniquilação começaria, como determinado anos antes, com o número de 3,5 milhões de
judeus. Estes deveriam ser eliminados de acordo com as determinações de Berlim, a
começar pela província de Wartheland em 1939, como mencionado brevemente no caso
de Ernst Kaltenbrunner.
não havia um consenso entre os nazistas sobre o que fazer com os guetos na Polônia, que
passaram a ser uma realidade concreta e não apenas uma solução temporária. O que
acelerou a ideia do genocídio foi a deflagração da guerra contra a União Soviética, com
a Operação Barbarossa em junho de 1941 (KERSHAW, 2009).
101
Sobre a Conferência, conferir o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto
(NEPAT): https://www.instagram.com/p/CY9MaJdMtdR/ (Acesso 04/09/2022)
262
‘Meu Führer, os rumores sobre o extermínio dos judeus não serão silenciados.
Eles são ouvidos em todos os lugares. Ninguém é permitido em nenhum lugar.
Certa vez, fiz uma visita surpresa a Auschwitz para ver o campo, mas me
disseram que havia uma epidemia no campo e meu carro foi desviado antes de
eu chegar lá. Diga-me, meu Führer, há alguma coisa nele?’ O Führer disse:
‘Você pode muito bem imaginar que estão acontecendo execuções de
insurgentes. Fora isso não sei nada. Por que você não fala com Heinrich
Himmler sobre isso?’ E eu disse: ‘Bem, Himmler fez um discurso para nós na
Cracóvia e declarou na frente de todas as pessoas que eu havia convocado
oficialmente para a reunião que esses rumores sobre o extermínio sistemático
263
dos judeus eram falsos; os judeus estavam apenas sendo trazidos para o Leste’.
Então o Führer disse: ‘Então você deve acreditar nisso’. (BS, 12, pp. 18-19)
O outro Frank
É como se eu fosse duas pessoas: eu, eu, esse Frank aqui — e o outro Frank, o
líder nazista. E às vezes me pergunto como aquele homem, Frank, poderia ter
feito essas coisas. Este Frank olha para o outro Frank e diz: ‘Hmm, que parasita
(louse) você é, Frank! Como você pôde fazer essas coisas? Você certamente
deixou suas emoções correrem com você, não foi?’ [...] É como se eu fosse
duas pessoas diferentes. Estou aqui, eu mesmo – e aquele outro Frank dos
grandes discursos nazistas ali em julgamento. Fascinante, não é? (FRANK
264
Esta conversa é a mais reveladora que tive com Frank até agora. Ele revela
espontaneamente a homossexualidade latente (sic), que, além de sua ambição
implacável e falta de escrúpulos, o levou a seguir e identificar-se com o Führer
com um entusiasmo apaixonado que obscureceu toda razão e conceitos legais
ou humanitários de direitos humanos. Quando o gênio do mal que justificou
sua existência desmaiou em uma orgia de sangue, destruição e vergonha, ele
se dissociou dessa imagem intolerável de seu ego, entrou em um êxtase
religioso, renunciou ao mundo e ao seu eu maligno, bem como à figura maligna
que o seduziu; mas deixou seus diários para trás, porque a extinção completa
era intolerável para seu ego e a evidência de sua culpa também servia a uma
necessidade masoquista (GILBERT, 1995, p. 145).
102
É válido pontuar que essa conclusão de Gilbert está alinhada com os preceitos psiquiátricos em voga
naquela época. Até 1973 a homossexualidade era considerada um “transtorno antissocial da personalidade”
e esse era um diagnóstico formulado por psiquiatras, que entendiam, então, a homossexualidade como uma
doença. Para saber mais, ver o artigo da DW: https://www.dw.com/pt-br/h%C3%A1-30-anos-oms-retirava-
homossexualidade-da-lista-de-doen%C3%A7as/a-53447329 (Acesso em 15/05/23)
265
Imagem 5103
103
“Méphistophélès dans les airs”. Mefistófeles voando sobre Wittenberg, em uma litografia de Eugène
Delacroix, 1828. Fonte: National Gallery of Victoria, Australia. Disponível em:
https://www.ngv.vic.gov.au/explore/collection/work/25924/ (Acesso em 04/09/2022)
267
E foi assim com todos nós. Agora podemos ver quão artificial era aquela velha
inspiração, vista contra o pano de fundo frio da razão e dos padrões morais do
mundo. Mas na época não conseguimos ver. Estava em toda parte. E assim que
uma fonte de inspiração se dissipava, outro evento, ou discurso, ou vitória
reforçava a ilusão. Ah, bem, é tarde demais. Estou vivendo em tempo
emprestado agora. Posso usá-lo para me purificar diante de Deus. Aquela
polonesa que me perguntou o que eu faria se não fosse condenado à morte, eu
queria dizer a ela, mas vou dizer a você: vou acabar com a minha própria vida.
Isso não pode continuar. (FRANK apud GILBERT, 1995, p. 84)
Nesse sentido, o tribunal não era apenas justo, mas servia a uma função moral
e histórica: “este julgamento tem um grande significado porque mostra que o povo alemão
é inocente” (FRANK apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 23). Os nazistas deveriam,
portanto, admitir sua culpa para que o povo alemão enquanto nação fosse inocentado:
“aqueles dentre nós que são culpados precisam pagar o preço disso e libertar o povo
alemão, para que não seja mais culpabilizado pela nossa estupidez” (FRANK apud
GOLDENSOHN, 2005a, p. 68). Em sua batalha pela memória do Terceiro Reich, Frank
afirma que os advogados da acusação estadunidenses não são advogados, e sim políticos,
porque serviam a uma causa política: a destruição da ideologia nazista. A conclusão de
seu raciocínio é um tanto quanto peculiar: para combater o surgimento de uma “lenda
sobre Hitler” era necessário, naquele momento, defender Hitler. Frank explica:
Minha ideia é defender Hitler. Não no sentido costumeiro do termo. Mas acho
que aqui em Nuremberg temos 21 réus, todos culpados em certo grau, mas o
homem que deveria ser o principal réu está ausente porque se suicidou. Ora,
Bormann, embora esteja ausente, tem um advogado de defesa. Mas a técnica
de todos os advogados de defesa tem sido de colocar a culpa em Hitler.
Portanto, de acordo com um procedimento judicial justo, o homem mais
acusado, tanto pela defesa como pela acusação, deveria ter um advogado ou
algum tipo de defesa. A questão não é se as ações de Hitler são defensáveis.
Elas não são. Seu testamento final, sozinho, é um documento assustador, em
que ele admite e alardeia a matança dos judeus. É o documento mais
abominável e assustador da história. Mas a menos que um espírito apareça no
tribunal nestas poucas semanas finais e fale por Hitler, ele não foi ouvido. […]
[Essa defesa] ajudaria a destruir, para a posteridade, a possibilidade de uma
‘lenda de Hitler’. Se Hitler é acusado de tantos atos covardes, e se ninguém se
manifesta por ele para responder às acusações, a lenda da grandeza de Hitler
poderia crescer. Mas se eu dissesse, ‘Bem, eu represento os interesses legais
de Hitler, responderei às acusações A, B, C e D’ etc. e passasse a responder a
elas como Hitler o faria, o absurdo da lenda de Hitler se dissiparia para sempre.
Porque não há resposta para as coisas que ele fez e o governo que criou. Só
uma coisa deveria e poderia acontecer se alguém como eu, ou o próprio Hitler,
viesse a responder às acusações contra ele. As respostas seriam desprezadas e
consideradas lixo e absurdo. O tribunal teria que pronunciar apenas uma
palavra a tudo aquilo que eu pudesse dizer em defesa de Hitler: a palavra
‘Auschwitz’. Isso seria suficiente. A lenda de Hitler estaria encerrada (FRANK
apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 70–71).
tenta apresentar o Führer como um homem comum que merecia ser tratado de maneira
justa, e, para que isso ocorresse, ele precisava ter a possibilidade de defesa. Essa defesa
póstuma do homem ausente em Nuremberg aparece como mais um dos conflitos entre os
dois Frank: o Frank do tribunal diz “que sistema horrível tivemos! Quão cegos nós
fomos!” (FRANK apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 76), enquanto o Frank das entrevistas
declara que “mesmo na arte, não há luz sem sombras, e nenhuma sombra é lançada sem
alguma luz. Mesmo a sombra de Adolf Hitler é acompanhada de alguma luz” (FRANK
apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 72). Sua tentativa de salvaguardar Hitler representa uma
esperança de reabilitação não só do líder, mas de si mesmo, do Terceiro Reich e dos
outros réus. Frank, sem se atentar à ironia da declaração, acredita que os advogados de
defesa usam Hitler como um bode expiatório para diminuir a culpa de seus clientes: “a
ideia é atirá-lo num abismo e dizer: ‘Esses pobres réus não tinham nenhuma ideia do
monstro que ele era e não tiveram nada a ver com ele’. Acredite, nada poderia estar mais
longe da verdade” (FRANK apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 71–72).
O Führer, portanto, era “o principal réu deste julgamento”, que merecia ser
ouvido junto com todos os outros nazistas. Ouvi-lo vicariamente por meio de seu antigo
advogado era uma forma de evitar que essa memória traumática se transformasse em uma
lenda apaziguadora no futuro, afinal, “o tempo tem algum efeito conciliador. Sobre toda
ruína, acaba nascendo grama, depois algum arbusto e por fim, antes que se perceba, o que
é realmente uma ruína velha e feia torna-se uma paisagem e uma lenda romântica”
(FRANK apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 71–72). De fato, ele tinha razão quando, ao
se lembrar em Nuremberg do homem ao qual seu destino “estaria ligado no quarto de
século seguinte” (KERSHAW, 2010, p. 122), declara: “se havia um homem capaz de
dominar o destino da Alemanha, esse homem era Hitler” (FRANK apud KERSHAW,
2010, p. 123). Seu destino se uniu ao de Hitler e, ainda hoje, podemos refletir sobre o
domínio dessa figura sob a memória da Alemanha em anos futuros.
Acreditando na justiça do tribunal, Frank entende que sua culpa só podia ser
passível da pena de morte. As entrevistas fornecidas a Gilbert são “como uma confissão
no leito de morte”, de modo que esse Frank só aparecia para o psicólogo e para o padre
(FRANK apud GILBERT, 1995, p. 157). Ainda que ele nunca tenha dado ordens para o
assassinato de ninguém, o nazista afirma que as coisas que ele disse eram suficientes para
a condenação. Seus diários eram a prova de “como um homem sob a influência diabólica
de Hitler chega a dizer tais coisas totalmente fora de seu caráter” (FRANK apud
269
GILBERT, 1995, p. 157). Enquanto os outros nazistas estavam preocupados com suas
defesas, Frank era “o único culpado no banco dos réus – todo mundo é tão inocente!”
(FRANK apud GILBERT, 1995, p. 257). Indignado com o andamento dos discursos nos
procedimentos, Frank não admite que os outros nazistas não estejam assumindo sua
parcela de responsabilidade, perdendo a paciência com as defesas de outros julgados,
sobretudo os negacionistas, como Ernst Kaltenbrunner: “milhões de alemães morreram
por culpa do sistema e agora, quando seus próprios pescoços estão envolvidos, eles
sentam aqui e mentem e tentam esconder a verdade” (FRANK apud GILBERT, 1995, p.
263). Como o defensor da verdade e em busca de redenção, Frank diz ter jurado “pelo
crucifixo que contaria a verdade e exporia o pecado como meu último ato na terra”, uma
função que o destino colocou sob sua responsabilidade para “expor o mal que está em
todos nós” (FRANK apud GILBERT, 1995, pp. 263-264).
horizontes.
Libertação
Como Hans Frank apresenta sua defesa como uma “confissão”, seu discurso
causa mal-estar entre alguns dos julgados, sobretudo Hermann Göring. No entanto, sua
atitude não parece nada impressionante para outros réus. Albert Speer, o outro
representante dessa categoria de ex-nazistas arrependidos, acredita que Frank somente
admitiu sua culpa por ter entregado seus diários. Como os diários eram evidentemente
incriminatórios, “naturalmente, não há mais nada para ele fazer agora, a não ser admitir
o que seu diário já provou”, disse Speer (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 277). Frank,
orgulhoso de sua confissão, somente recebeu palavras de conforto e apoio de Franz von
Papen e Arthur Seyss-Inquart. Após seu interrogatório, o advogado volta a Gilbert para
dizer que havia cumprido sua promessa e que, então, havia pagado sua conta, e passado
“pelos portões negros para o outro lado”, deixando de pertencer a este mundo (FRANK
apud GILBERT, 1995, p. 279):
Eu mantive minha promessa, não foi? Eu disse que, em contraste com as outras
pessoas ao redor do Führer que pareciam não saber nada, eu sabia o que estava
acontecendo. Acho que os jurados ficam realmente impressionados quando um
de nós fala com o coração e não tenta se esquivar da responsabilidade. Você
não acha? Fiquei muito satisfeito com a forma como eles ficaram
impressionados com a minha sinceridade (FRANK apud GILBERT, 1995, p.
277).
sua má reputação entre os réus: “eu tinha que confessar meu pecado, para ficar em paz
com Deus, e talvez levantar um pouco os olhos para ele” (FRANK apud GILBERT, 1995,
p. 280).
Gilbert conta que ao saber sobre a dificuldade que os inocentados estavam tendo
para sair da prisão,104 Frank riu em histeria clamando “Hahaha! Eles pensavam que
estavam livres! Eles não sabem que não há libertação do hitlerismo! Só nós estamos livres
104
Gilbert conta que assim que Von Papen, Fritzsche e Schacht foram soltos, a administração civil alemã
declarou a intenção de prendê-los novamente para julgá-los mediante uma corte alemã. Policiais
aguardavam na porta do Palácio da Justiça de Nuremberg para capturá-los assim que saíssem. Os
inocentados pediram para permanecer na prisão em Nuremberg por alguns dias. Eles foram soltos e presos
mais algumas vezes até conseguirem de fato aproveitar a liberdade (GILBERT, 1995, p. 434).
272
disso! Afinal, conseguimos o melhor negócio! Hahaha!” (FRANK apud GILBERT, 1995,
p. 434). Livre de sua culpa e de sua responsabilidade, Hans Frank caminhou para a morte,
saindo do outro lado da memória como o “açougueiro da Polônia”. Seu filho, Niklas
Frank, no documentário “What our fathers did: a Nazi legacy”, dirigido por David Evans
em 2015, não esconde a vergonha que sente do seu legado. Ele declara: “nunca vou viver
em paz com o meu pai. Porque não posso, jamais, perdoar o que ele fez. Todas estas
imagens estão vivas em minha mente. São crimes horríveis”. Niklas não apenas não pode
viver em paz com a lembrança do pai, como afirma, também, não querer: “Porque
encontrar a paz é encontrar uma maneira de perdoá-lo. E não posso perdoá-lo”.105 Parece
que, por fim, a culpa de Frank foi passada por gerações e corre no sangue de seus
familiares que não o enxergam como um homem, e sim, como um genocida. Afinal, a
liberdade da morte não trouxe perdão ou reabilitação para Hans Frank.
105
Sobre o documentário, ver o post no Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT)
redigido por Clara Lima: https://www.instagram.com/p/B-ClxtNAEvk/ (Acesso em 04/09/2022)
273
do livro, mas ele parece gostar do psicólogo Gilbert e o enxergar como um bom
interlocutor. Para Goldensohn, uma de suas poucas declarações é: “Eu senti essa guerra
chegando. Tentei, sem êxito, assassinar Hitler em 1945. Não estou preocupado com a
jurisdição do tribunal, como Hess ou outros” (SPEER apud GOLDENSOHN, 2005a, p.
299). Sobre a acusação, ele diz a Gilbert: “O julgamento é necessário. Há uma
responsabilidade comum por crimes tão horríveis mesmo em um sistema autoritário”
(SPEER apud GILBERT, 1995, p. 5).
Ainda que ele diga a Goldensohn que “a história mostrará que os julgamentos
foram necessários” (SPEER apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 299), Speer acredita que
“julga-se indivíduos e movimentos pelos seus últimos momentos”, de modo que “teria
sido melhor deixar o nazismo terminar com uma nota de colapso e corrupção, e a podridão
básica e a desgraça da coisa toda, como aconteceu no fim da guerra”. Para ele, portanto,
seria melhor deixar o nazismo colapsar junto com a Alemanha com a ocupação de Berlim
em 1945 “em vez de adicionar outro capítulo final que dá a alguns líderes uma chance de
fazer belos discursos e fazer uma boa aparição na história, e fazer as pessoas pensarem
que havia algo de bom nisso, afinal” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 240). Speer, no
entanto, junto com os outros réus em Nuremberg, para o bem ou para o mal, estava
participando ativamente desse novo capítulo do nazismo, forjado às pressas por um
tribunal dos vencedores da guerra. Consciente de seu papel na história do Terceiro Reich
e do século XX, ele continuou por décadas em suas narrativas adicionando novas páginas
a esse novo capítulo, mantendo a fachada de arrependimento que, por fim, conquistou
tantos admiradores.
Como alguém que notadamente não era um especialista, Speer afirma que, para
realizar bem a sua tarefa, selecionou “os melhores especialistas possíveis para serem
encontrados na Alemanha como meus colegas de trabalho” (BS, 16, p. 433). Seu trabalho,
276
entretanto, era o mais importante do país, uma vez que “em tempos de guerra, em casa,
há apenas duas tarefas que contam: fornecer soldados para o front e fornecer armas” (BS,
16, pp. 436-437). O caso de Speer se relacionava diretamente com o de Fritz Sauckel, um
negacionista já abordado em capítulo anterior. Como Sauckel era o responsável pelo
trabalho compulsório de prisioneiros de guerra, Speer fez questão de se distanciar o
máximo possível dessa esfera do conflito. Ele afirma categoricamente que os indivíduos
não eram forçados a trabalhar, nem morriam diretamente por fruto de excesso de trabalho:
“está fora de questão que em qualquer indústria alemã algo assim tenha acontecido sem
que eu tenha ouvido falar; e nunca ouvi nada desse tipo” (BS, 16, p. 446). Empregar
trabalhadores estrangeiros, no entanto, não era um problema em si: “eu não tive influência
sobre o método pelo qual os trabalhadores foram recrutados. Se os trabalhadores estavam
sendo trazidos para a Alemanha contra sua vontade, isso significa, a meu ver, que eles
eram obrigados por lei a trabalhar para a Alemanha”, mas, “se tais leis eram justificadas
ou não, isso foi uma questão que não verifiquei na época. Além disso, isso não era da
minha conta” (BS, 16, p. 457).
“sem dúvida” eram “um meio, uma ameaça usada para manter a ordem” (BS, 16, pp. 516-
517). Ele também admite que sabia que o Partido Nazista era antissemita e que os “os
judeus estavam sendo evacuados da Alemanha”, ainda que esse conhecimento se referisse
apenas à política de deportação, não ao extermínio (BS, 16, p 518). Entretanto, assim
como todos os outros nazistas, Speer obedecia ao Princípio de Liderança associado ao
Führer, e demorou a perceber que esse sistema autoritário não era, de fato, eficiente no
longo prazo. O nazista afirma que “o terrível perigo do sistema autoritário” só ficou claro
no fim da guerra, quando homens como ele puderam ver “o que realmente significava o
princípio, a saber, que toda ordem deveria ser cumprida sem críticas”, ordens estas que
visavam a destruição da Alemanha. Esse sistema era perigoso “independentemente da
personalidade de Hitler”, no entanto, “a combinação de Hitler e esse sistema, então,
provocou essas terríveis catástrofes no mundo” (BS, 16, pp. 533-534).
Terra arrasada
DR. FLACHSNER: Então, como ministro técnico, você deseja limitar sua
responsabilidade à sua esfera de trabalho?
SPEER: Não. Gostaria de dizer algo de fundamental importância aqui. Esta
guerra trouxe uma catástrofe inconcebível ao povo alemão e, de fato, iniciou
uma catástrofe mundial. Portanto, é meu dever inquestionável assumir minha
parte de responsabilidade por este desastre perante o povo alemão. Esta é tanto
mais minha obrigação, tanto mais minha responsabilidade, pois o chefe do
governo evitou a responsabilidade perante o povo alemão e perante o mundo.
Eu, como importante membro da liderança do Reich, partilho, portanto, da
responsabilidade total, a partir de 1942 (BS, 16, pp. 482-483).
Seu slogan “vitória ou destruição” selou o destino do povo alemão e, mesmo que a guerra
já estivesse perdida em 1945 do ponto de vista militar, o Führer continuava fazendo falsas
promessas e culpando o povo alemão pela sua própria derrota: “durante esse período [em
1945], ele atribuiu o resultado da guerra em grau crescente ao fracasso do povo alemão,
mas nunca se culpou. Criticou severamente este suposto fracasso do nosso povo que fez
tantos sacrifícios corajosos nesta guerra” (BS, 16, pp. 492-493). Esse novo “capítulo
muito desagradável” que se inicia em 1945 culmina com Hitler pretendendo
“deliberadamente destruir os meios de vida de seu próprio povo se a guerra fosse perdida”
(BS, 16, p. 490), a famosa política da “terra arrasada”. Essa política, antes direcionada ao
inimigo, estava sendo usada contra o próprio povo alemão, com a ordem de Hitler de
destruição de toda a infraestrutura de diversas cidades do país. Esse último ato
desesperado do Führer foi uma resposta condizente com a ideologia nazista, ainda que
parecesse o ápice de sua histeria e, notoriamente, o princípio do fim.
Esse “capítulo muito desagradável” a que Speer se refere está pautado em uma
enorme queda na popularidade de Hitler que já era percebida desde 1943, sobretudo após
a batalha de Stalingrado, que será abordada em capítulo posterior. Em fins de 1944 e
início de 1945, após tantas derrotas militares, era perceptível que a maioria da população
alemã havia perdido a fé no seu Führer. Como lembra Ian Kershaw, pautado na teoria de
Max Weber, a liderança carismática não pode sobreviver à ausência de sucesso
(KERSHAW, 2001, p. 200), e a Alemanha estava indo para um caminho de destruição
cada vez mais evidente. De acordo com um relatório de opinião popular tomado pela SS
na cidade de Stuttgard, no final de 1944, um comentário recorrente que aparecia de
diferentes maneiras dizia que “sempre se afirmou que o Führer nos foi enviado por Deus.
Eu não duvido. O Führer nos foi enviado por Deus, embora não para salvar a Alemanha,
mas para arruiná-la” (KERSHAW, 2001, p. 221). Hitler, percebendo a queda de sua
popularidade, passou se afastar cada vez mais da cena pública. Seu último discurso, em
24 de fevereiro de 1945, aniversário da promulgação do programa do Partido Nazista,
sequer foi proferido por ele: o texto foi lido por outro nazista, Hermann Esser. De acordo
com Kershaw, ao fim da guerra, “o maior demagogo da história já não tinha audiência”
(KERSHAW, 2001, p. 222).
arquiteto, entretanto, de fato havia tentado de todas as formas evitar essa destruição. Já
em janeiro de 1945, Speer havia enviado um memorando para Hitler informando que em
breve a produção de armamentos iria se esgotar e não seria mais possível suprir as
necessidades para dar continuidade à guerra. Hitler, impassível, proibiu Speer de enviar
memorandos a qualquer pessoa, demonstrando que não aceitaria qualquer opinião que
concluísse que a guerra estava perdida (KERSHAW, 2010, p. 934). Speer conta a Gilbert
que naquele momento ele “soube que ele [Hitler] estava determinado a destruir a nação
alemã ao invés de entregar seu poder” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 143).
As palavras de Speer não tiveram qualquer efeito: Hitler queria fazer justamente
o contrário do que o arquiteto recomendara. Naquele momento era tudo ou nada, e,
seguindo os princípios da teoria racial nazista, se a Alemanha perdesse a guerra era
porque havia se demonstrado um povo fraco, e que, portanto, merecia a derrota. Em 19
de março, o Führer emitiu um decreto intitulado “Medidas destrutivas no Território do
Reich”, clamando, como o próprio nome diz, pela destruição do antigo sonho do Reich
de mil anos. O documento declarava que “todas as instalações de transporte militar,
comunicações, industriais e de suprimento, bem como bens materiais no interior do
território do Reich que o inimigo possa tornar utilizável imediatamente ou no futuro
próximo devem ser destruídas”, uma vez que “a luta pela existência de nosso povo obriga
ao uso de todos os meios, também dentro do território do Reich, para enfraquecer o poder
de luta de nosso inimigo em seu avanço” (KERSHAW, 2010, p. 947). O povo alemão,
por fim, havia se tornado vítima de medidas já realizadas por anos nos territórios
ocupados.
Ainda que essa ordem não tenha sido obedecida, ela demonstra como Hitler
280
estava disposto a ir até o fim, às custas de seu próprio povo. O Führer afirma que “se
tivermos que perder a guerra, o povo alemão também estará perdido”, já que ele teria se
revelado “o mais fraco, e o futuro pertence ao povo mais forte” (HITLER apud
CHAPOUTOT, 2018, p. 415). Contudo, a política de terra arrasada e a “lógica biológica”
(CHAPOUTOT, 2018, p. 415) que ordenava a morte do povo alemão não era apoiada
pelo séquito de Hitler em 1945 e nem mesmo pelos outros réus de Nuremberg. De acordo
com Speer, quem advogou por essa política eram os homens que agora estavam mortos e
que provavelmente “se mataram porque defenderam essa política e fizeram outras coisas
semelhantes” (BS, 16, p. 583).
Responsabilidade comum
Sendo assim, Hitler “queria arrastar a Alemanha para o abismo com ele” (BS,
16, p. 498), e Speer passou a deliberadamente desobedecer a suas ordens para evitar uma
catástrofe ainda maior no país. Assim como outros nazistas no tribunal, o arquiteto
justifica sua permanência em seu posto com a noção de dever para com seu país e com o
povo alemão, esse povo que infelizmente “permaneceu leal a Adolf Hitler até o fim” e
que foi tão tragicamente traído pelo Führer “com intenção”. Hitler traiu a confiança dos
alemães e tentou jogar o povo “definitivamente no abismo” (BS, 16, p. 504). Por esse
motivo, sua visão do Führer no julgamento era a mesma que no final da guerra: ele
enxergava Hitler como “uma força destrutiva egoísta que não tinha consideração pelo
povo alemão” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 74). Como conciliar sua contínua
aliança com esse homem que visava destruir seu próprio país? Ele explica seu senso de
dever:
DR. FLACHSNER: Eu tenho uma última pergunta. Foi possível para você
conciliar suas ações durante a última fase da guerra com seu juramento e sua
concepção de lealdade a Adolf Hitler?
SPEER: Há uma lealdade que todos devem sempre manter; e essa é lealdade
para com o seu próprio povo. Esse dever vem antes de tudo. Se estou em uma
posição de liderança e vejo que os interesses da nação são atacados dessa
maneira, então eu também devo agir. O fato de Hitler ter quebrado a confiança
da nação deve ter ficado claro para todos os membros inteligentes de sua
comitiva, certamente no mais tardar em janeiro ou fevereiro de 1945. Hitler
uma vez recebera sua missão do povo; ele não tinha o direito de jogar fora o
destino do povo com o seu. Portanto, cumpri meu dever natural como alemão.
Não tive sucesso em tudo, mas estou feliz hoje em dizer que, com meu
trabalho, pude prestar mais um serviço aos trabalhadores na Alemanha e nos
territórios ocupados (BS, 16, p. 504).
Dessa maneira, seu trabalho havia prevenido que a destruição fosse ainda maior
– e esse era, por fim, seu dever como alemão. Como alguém que antes havia tido tanta
281
admiração pelo Führer, Speer admite que “foi fraqueza” o motivo de sua permanência ao
lado desse homem por tanto tempo. Ele diz: “eu não quero me tornar mais bonito do que
sou (make myself any prettier than I am). Eu deveria ter percebido e realmente percebi
isso mais cedo, mas continuei jogando esse jogo hipócrita até que fosse tarde demais –
bem, porque era mais fácil” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 167).
É válido lembrar que Speer admite sua responsabilidade – ou, em suas palavras,
“eu me recuso a fugir da responsabilidade” (BS, 16, p. 545) – apenas com relação ao
campo específico de seu trabalho. Ao justificar o fato de que ele nunca teve um posto na
SS, Speer diz claramente que não queria nenhum desses postos porque acreditava que “só
se deve ocupar um posto onde se tem responsabilidade” e ele, portanto, “não queria
nenhuma responsabilidade em conexão com isso [o trabalho da SS]” (BS, 16, pp. 515-
516). Esse “ministro técnico” que contraditoriamente tinha tanto poder confronta a
promotoria em diversos momentos com relação à sua esfera específica de trabalho e
declara: “Naturalmente, é esperado que qualquer pessoa intimamente ligada aos assuntos
de Estado também ouvirá falar de assuntos não imediatamente relacionados com sua
própria esfera e de condições insatisfatórias existentes em outros setores”, contudo, “não
somos obrigados a lidar com essas condições e mais tarde não nos lembraremos delas em
detalhes. Você não pode esperar isso de mim” (BS, 16, p. 562). Speer, por fim, faz uma
diferenciação entre dois tipos de responsabilidade:
Linha anti-Hitler
sua agonia nos últimos meses da guerra, chegou a encomendar gás para assassinar Hitler:
Achei que não havia outra saída. Em meu desespero, quis dar esse passo, pois
desde o início de fevereiro se tornou óbvio para mim que Hitler pretendia
continuar a guerra a todo custo, sem piedade e sem consideração pelo povo
alemão. Era óbvio para mim que na perda da guerra ele confundiu seu próprio
destino com o do povo alemão e que em seu próprio fim ele viu o fim do povo
alemão também. Também era óbvio que a guerra estava perdida tão
completamente que mesmo a rendição incondicional teria que ser aceita (BS,
16, p. 493).
O réu conta que seu objetivo era introduzir o gás no ventilador do aparelho de
ar-condicionado na Chancelaria do Reich, uma operação que não seria tão difícil para ele,
dado seus conhecimentos da planta do edifício. O plano, entretanto, não deu certo, já que
Hitler pessoalmente alterou a estrutura do ventilador. Ainda que tenha dito ser contra o
assassinato de Hitler em 1944, referindo-se ao atentado de 20 de julho, Speer ressalta que,
a partir de 1945, não havia outra saída senão a eliminação do líder. Ele conta seus planos
e simultaneamente reforça sua indignação com a falta de resistência dos membros do
governo, repetindo que tais empreendimentos não eram “tão difíceis” de serem
realizados, “e nem eram tão perigosos, como se poderia imaginar, porque naqueles dias
– depois de janeiro de 1945 – qualquer medida razoável podia ser tomada na Alemanha
contra a política oficial” (BS, 16, pp. 495-496).
Além dessa tentativa falida de assassinar Hitler, Speer, como vimos, havia
desobedecido ordens diretas do Führer no fim da guerra. Sua resistência vira sua
salvaguarda no tribunal e faz com que ele se coloque como alguém com moral superior
aos outros julgados – e esse verniz de moralidade é comprado, por vezes, até mesmo pela
promotoria e pelo psicólogo. Referindo-se aos outros réus, e, sobretudo a Göring, Speer
diz a Gilbert: “Sim, eu sei, eles fizeram grandes discursos heroicos sobre lutar e morrer
pela Pátria, sem arriscar o próprio pescoço. E agora, quando suas próprias vidas estão em
jogo, eles estremecem e procuram todos os tipos de desculpas”. Homens como Göring
eram “o tipo de herói que tivemos levando a Alemanha à destruição!” (SPEER apud
GILBERT, 1995, p. 25). Sendo assim, fazia sentido que todos estivessem irritados com
sua postura no julgamento, já que ele era alguém que “tentou fazer algo a respeito, em
vez de obedecer a aquele maníaco destrutivo até o fim” (SPEER apud GILBERT, 1995,
pp. 103-104).
não admite que um homem de tão alto escalão esteja culpabilizando o Führer e, Speer, o
ex-nazista arrependido, se ressente desse outro membro importante da organização que
se recusa a assumir sua parcela de responsabilidade. Speer afirma que a política de frente
unida de Göring visava transformar todos os nazistas em heróis, apresentando o nazismo
como um regime que era o melhor para a Alemanha, muito melhor do que seria um
governo sob os Aliados (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 122). Göring aparecia, então,
como o maior herói dentre todos, mas necessitava de “uma comitiva de pelo menos vinte
heróis menores para sua grande entrada em Valhala”106 (SPEER apud GILBERT, 1995,
p. 156). Por esse motivo, aterrorizava e ameaçava os outros réus para que adequassem
seus discursos a uma defesa, ao menos passiva, do regime nacional-socialista, como
vimos. Por conta da postura de homens como Göring, Speer acreditava que o maior
castigo possível para os nazistas seria mantê-los no poder:
No que diz respeito aos líderes nazistas, eles deveriam estar contentes que os
Aliados estão salvando a Alemanha da fome em massa e da ruína que Hitler
forçou o país. Você sabe como teria sido possível desacreditar o nazismo de
uma vez por todas? Apenas deixando nossa administração ficar e governar a
Alemanha. Tudo o que vocês [os Aliados] tinham a dizer era: ‘Vá em frente,
tentem se governar; vocês [os nazistas] fizeram sua cama, agora se deitem nela.
Não vamos interferir, mas não é nossa responsabilidade alimentar o país.
Vocês começaram isso, agora terminem’. Ora, os alemães simplesmente teriam
morrido de fome aos milhões (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 166).
Portanto, de forma estratégica, Speer vende o discurso dos Aliados para eles
mesmos, flertando com a narrativa de que aqueles eram os bons moços da guerra, que
haviam finalmente colocado um fim no regime de terror de Adolf Hitler. Ele nem
precisava se esforçar muito para ter o efeito que desejava nessa construção narrativa,
afinal, os nazistas, ao negarem toda responsabilidade, acabavam se condenando com
facilidade: “a podridão desses homens se manifesta se você apenas lhes der corda
suficiente” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 294). Dizendo o que a promotoria queria
ouvir, Speer e alguns outros “foram capazes de se apresentar como tecnocratas enganados
e que apreciaram a necessidade de abraçar o modo ocidental” (PRIEMEL, 2016, p. 405).
106
Valhala aparece na mitologia nórdica como o salão no qual os guerreiros heróis e honrados mortos em
batalha são levados após a morte. Os guerreiros são recepcionados pelo deus Odin no salão, localizado em
Asgard, onde passam a viver. Valhala foi representada na cultura popular diversas vezes em filmes,
quadrinhos e séries. Suas representações mais recentes talvez sejam na série Vikings (2013-2020) que
inclusive conta com um spin-off chamado Vikings: Valhalla (2022), e nos filmes do personagem Thor, da
franquia da Marvel (2011-atual). Na Alemanha, na cidade de Ragensburg, há uma enorme construção em
mármore denominada Templo de Valhala, datando do século XIX, e que conta com mais de 130 bustos de
personalidades da história alemã. Dentre elas, temos, inclusive, a resistente Sophie Scholl. Ver: VISCONTI,
2017. Aqui, Speer está ironizando a crença de Göring de que ele seria merecedor o suficiente para entrar
em Valhala como um herói.
285
Reabilitação
Speer, entretanto, estava satisfeito com sua defesa: “bem, isso foi um grande
esforço, mas eu tirei isso do meu peito. Era a verdade e isso é tudo”. Em sua opinião,
Göring, como o segundo homem do Reich em Nuremberg, estava tentando “falsificar a
história fazendo uma lenda heroica desse negócio podre. Ele, especialmente, não tem o
direito de se tornar um herói, porque falhou tão miseravelmente e foi tão covarde em
nossa hora de crise” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 397). Retomando o que ele havia
falado no tribunal sobre a existência de uma responsabilidade comum mesmo em um
sistema autoritário, o arquiteto diz a Gilbert que os outros nazistas estavam irritados com
sua linha de defesa precisamente porque não queriam assumir essa responsabilidade
partilhada. Speer, no entanto, tinha coragem o suficiente para admitir sua culpa: “agora
estão todos loucos porque seus próprios pescoços estão em jogo. Mas você deveria ver
como eles estariam gritando para reivindicar uma parte da responsabilidade comum pela
vitória se tivéssemos vencido a guerra” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 399). Isso
demonstrava o oportunismo daqueles homens, que, ao contrário de Speer, não se
preocupavam com o povo alemão ou com o futuro do país: “você vai ver, à medida que
o julgamento se aproxima de seu clímax e seus nervos começam a sentir a tensão, suas
286
máscaras educadas cairão, e você os verá pelo que são” (SPEER apud GILBERT, 1995,
p. 403). Mesmo que ninguém concordasse com a sua postura e que ele tivesse que brigar
até mesmo com seu advogado para que ele aceitasse sua linha de defesa, Speer reitera
que, naquele momento, se sentia da mesma forma que em janeiro de 1945, e que não iria
“recuar para escapar da prisão perpétua” porque não queria se “odiar pelo resto da vida”.
Como ele estava na linha de frente e enxergou “o país inteiro jogado no desespero e
milhões de pessoas mortas por causa daquele maníaco”, nada, nem mesmo a morte,
poderiam fazê-lo “mudar de ideia” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 329).
Sua relação consigo próprio é algo que não podemos mensurar. Não sabemos se
Speer teve uma crise de consciência em algum momento e se, tal como Sócrates,
compreendera que “se sou um, é melhor estar em desacordo com o mundo do que estar
em desacordo consigo mesmo” (LAFER, 2003, p. 130). O que percebemos na superfície
de suas aparências é que Speer tem uma visão estratégica de sua linha de defesa, não só
durante o julgamento, como também a longo prazo. Apesar de relutante em ser
entrevistado por Goldensohn, o arquiteto se tornou reconhecido por suas narrativas no
pós-guerra. Ele diz a Gilbert, inclusive, que se sentiria mais livre para escrever sobre suas
visões sobre o nazismo quando o julgamento acabasse – o que ele, de fato, fez. O réu
declara que “gostaria apenas de sentar e escrever uma explosão final sobre toda a maldita
bagunça nazista e mencionar nomes e detalhes e deixar o povo alemão ver de uma vez
por todas em que corrupção podre, hipocrisia e loucura todo o sistema foi baseado!”, de
modo que ninguém poderia ser poupado, nem mesmo ele próprio: “somos todos culpados.
Eu também ignorei a dura verdade!” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 143).
fundo, era quem se mostrava ser em Nuremberg: um homem arrependido, apolítico, que
teria sido mais feliz se tivesse permanecido como um simples arquiteto – ainda que
“simples” dificilmente seja uma palavra possível de ser aplicada para qualquer um dos
cargos ocupados por Speer no regime nazista.
O livro de Gitta Sereny, Albert Speer e sua luta com a verdade (SERENY,
1998) é uma das obras mais importantes na desconstrução desse personagem, criado ainda
antes do julgamento, e mantido em suas obras posteriores. Entretanto, a figura de Speer
como um resistente, um ex-nazista arrependido, enganou a muitos, inclusive aos
presentes no tribunal, como Gustave Gilbert, que se sensibilizou com o réu ao mostrar
para ele fotografias da Alemanha antes de sua destruição e que, em diversas ocasiões,
apoiou seu lado na disputa com Hermann Göring. O psicólogo, que passa horas
entrevistando o arquiteto, cai diversas vezes no “mito de Speer”, e acredita que “ele
parece sincero em suas atuais convicções antimilitaristas e anti-Hitler, por mais tardias e
materialistas que essas convicções possam ser” (GILBERT, 1995, p. 167).
Apesar de ter dito a Gilbert inúmeras vezes que não tinha “ilusões” sobre sua
vida, e que estava somente preocupado com o povo alemão e com a sua família (SPEER
apud GILBERT, 1995, pp. 103-104), Speer, naturalmente, ficou aliviado por escapar da
forca. Ao receber sua sentença de 20 anos de prisão, ele “riu nervosamente” e disse ao
psicólogo que havia sido uma sentença justa: “Eles não poderiam ter me dado uma
sentença mais leve, considerando os fatos, e não posso reclamar. Eu disse que as
sentenças devem ser severas e admiti minha parcela de culpa, então seria ridículo se eu
reclamasse da punição. Mas estou feliz que Fritzsche tenha escapado” (SPEER apud
GILBERT, 1995, p. 433). A condenação branda de Speer foi encarada com olhos
confusos no tribunal, sobretudo porque Fritz Sauckel, cujo trabalho se relacionava tão
diretamente com o de Speer, havia sido condenado à pena de morte. Compreendendo a
importância histórica do Julgamento de Nuremberg, o arquiteto diz a Gilbert que a
conclusão dos procedimentos não poderia ser a de transformar nenhum daqueles homens
em mitos, nem mesmo ele mesmo: “Não, nenhum deles deve entrar na história como um
pouco digno de respeito. Que todo o maldito sistema nazista e todos os que participaram
dele, inclusive eu, caiam com a ignomínia e a desgraça que merecem!”. Por fim, “que as
pessoas esqueçam e comecem a construir uma nova vida em alguma base democrática
sensata” (SPEER apud GILBERT, 1995, p. 211).
Minha Luta, em meados da década de 1920, Schirach foi imediatamente arrebatado pela
ideologia nacional-socialista, “desenvolvendo seu comprometimento em uma verdadeira
devoção ao herói quando ouviu Hitler discursar na cidade em 1925”. O jovem de 18 anos
logo caiu nas graças do futuro Führer da Alemanha “com um jorro aparentemente
infindável de poemas glorificando o movimento e seu chefe” que foram descritos como
“‘superiores às efusões de outros versejadores racistas’” (EVANS, 2014a, p. 273). Sua
carreira ascendeu exponencialmente e, em 1932, com apenas 25 anos de idade, Schirach
já era o líder da Juventude Hitlerista, sendo o membro mais jovem do Reichstag naquele
ano.
prazo” (CHAPOUTOT, 2018, p. 19). Como veremos, Schirach renuncia ao nazismo, mas
não desaprova seu trabalho nessa enorme revolução cultural nazista – muito pelo
contrário.
Guerreiros ideológicos
controlada de cima, dirigida não pelos próprios jovens, como o antigo movimento jovem
havia sido, mas pela liderança da juventude do Reich” (EVANS, 2014c, p. 318).
Para Schirach, contudo, a Juventude Hitlerista não era nada disso. Pelo
contrário, a organização era o projeto de sua vida, seu maior orgulho e sua esperança para
o futuro. Ele conta que foi o único nazista eleito para seu cargo, e não meramente
nominado, algo que “nunca aconteceu dessa forma na história do Partido” (BS, 14, p.
370). De fato, já em 1932, o nazista só obedecia diretamente a Hitler, e, por sua liberdade
de ação dentro do regime, seguiu com sua ideia de criar um “Estado da juventude”, uma
vez que ele acreditava que “não se pode liderar organizações de juventude como um
apêndice de um partido político; a juventude tem que ser liderada pela juventude” (BS,
107
Os dois últimos parágrafos foram adaptados da minha dissertação, na qual trabalhei com os grupos
Jungeschaft, uma vez que os membros da Rosa Branca participaram ativamente desses movimentos. Ver:
VISCONTI, 2017, p. 33-34; 50–51.
293
14, p. 372). E, por esse motivo, a Juventude Hitlerista era uma instituição que se mantinha
sozinha por meio taxas de adesão que os membros precisavam pagar. A adesão à
organização era voluntária até 1936, quando passou a ser compulsória, mas Schirach não
discordava dessa obrigatoriedade. Em sua perspectiva, jovens que não entravam na
Juventude Hitlerista perdiam a vivência da convivência em comunidade, as viagens, os
acampamentos e, por isso, até mesmo corriam o risco de virarem pessoas perturbadas e
hipocondríacas (BS, 14, p. 376). Sendo assim, também fazia sentido que, para exercer
algumas profissões, fosse obrigatório a participação anterior na Juventude Hitlerista.
Afinal, “é bastante claro que um professor não pode educar um jovem a menos que ele
mesmo conheça a vida desse jovem” e nesta profissão era necessário “estar familiarizado
com os modos de vida dos alunos que estavam sob sua supervisão” (BS, 14, p. 377). A
rigidez da instituição não era um problema para Schirach, e sim, uma consequência
natural dessa nova forma de organização e cooperação.
108
A escola que Schirach menciona é pautada na filosofia do educador alemão Hermann Lietz (1868-1919).
Suas premissas foram aplicadas por outros educadores, como Kurt Hahn (1866-1974), que fundou a escola
Gordonstoun, onde o Príncipe Philip da Inglaterra e depois seu filho, Príncipe Charles, estudaram. São
escolas focadas na educação física e em atividades em grupo como a vela e o montanhismo, com horários
e rotinas rigorosas, e que também utilizavam de punições físicas. A vivência do Príncipe Charles nessa
escola é abordada em um episódio de The Crown, uma das séries mais populares do serviço de streaming
Netflix.
294
pessoas ao redor de Robin Hood, então Robin Hood e seus alegres companheiros se
tornarão uma lenda” (SCHIRACH apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 237).
Lenha na fogueira
Ainda que buscasse se desvincular do nazismo, Baldur von Schirach não nega
ter sido antissemita – desde que ficasse claro que isso havia ficado no passado. Em
Nuremberg, sua função era admitir seu antissemitismo para renunciá-lo completamente,
demonstrando seu profundo arrependimento pelo que o nazismo havia feito em função
dessa ideologia, a saber, o extermínio de milhões de pessoas. Como, em sua perspectiva,
“há algo na natureza alemã que tende para a agressão”, quando Hitler e Himmler disseram
296
O réu afirma que sua opinião nos anos 1920 era de que “os judeus deveriam ser
totalmente excluídos do serviço público. Sua influência na vida econômica deveria ser
limitada” e, por fim, “a influência judaica na vida cultural deveria ser restrita” (BS, 14,
pp. 418-419). Ainda que ele não tivesse participado da elaboração das legislações
antissemitas, como as Leis de Nuremberg, o nazista não era contra essa legislação, já que
elas resolveriam o problema judaico: “Depois que essas leis foram publicadas, éramos da
opinião de que agora, definitivamente, a última palavra havia sido dita sobre o problema
judaico” (BS, 14, p. 420). Ele salienta, ainda, que nem ele e nem a juventude tinham
qualquer relação com ações antissemitas violentas, como os pogroms de 1938, que ele
considerava “uma desgraça para nossa cultura” e “uma ação criminosa” (BS, 14, p. 423).
No tribunal, portanto, Schirach estava usando suas narrativas para “aliviar a juventude
alemã do fardo dessa loucura antissemita pela qual me senti parcialmente responsável, e
fazendo algo para facilitar as coisas para o futuro” (SCHIRACH apud GILBERT, 1995,
p. 303).
Que ficasse claro, no entanto, que, apesar de ser antissemita, Schirach não
tentou influenciar a juventude em torno desse aspecto da ideologia nazista. Ele declara:
“Não fiz nenhum discurso antissemita inflamado (inflammatory), pois tentei, tanto como
Líder da Juventude do Reich quanto como educador de jovens, não colocar lenha na
fogueira”. Isso não significava uma evasão de responsabilidade, apenas um
reconhecimento do que precisava ser reconhecido e uma negação do que precisava ser
negado: “Não vou ser ridículo afirmando aqui que não era antissemita; eu era, embora
nunca me dirigisse aos jovens nesse sentido” (BS, 14, p. 420). Schirach, por exemplo,
não foi contra a política de deportação dos judeus porque acreditava que, sendo
deportados, esses indivíduos estariam menos vulneráveis a ações antissemitas violentas,
como os pogroms mencionados anteriormente. Nesse sentido, ele não podia impedir a
deportação, mas sequer queria impedi-la, já que acreditava que aquela seria “uma
emigração judaica para países onde os judeus queriam ir”. Naturalmente, a deportação
não significava extermínio – ao menos não inicialmente: “Mas o plano de Hitler, tal como
existia na época – e acredito que naquela época a ideia de exterminar os judeus ainda não
297
lhe havia passado pela cabeça – esse plano de reassentamento me parecia perfeitamente
razoável – razoável naquele momento” (BS, 14, pp. 423-424).
Primeiro, quero dizer que fiz esse discurso. A citação está correta. Eu disse
isso. Devo manter o que eu disse. Embora o plano de deportação dos judeus
fosse o plano de Hitler e eu não fosse responsável por sua execução, pronunciei
essas palavras, das quais agora sinceramente lamento; mas devo dizer que me
identifiquei moralmente com essa ação apenas por um sentimento de lealdade
equivocada ao Führer. Isso eu fiz, e isso não pode ser desfeito. Se vou explicar
como cheguei a fazer isso, só posso responder que naquela época eu já estava
‘entre o Diabo e o mar profundo’109. Acredito que também ficará claro a partir
de minhas declarações posteriores que, de um certo momento em diante, eu
tinha Hitler contra mim, a Chancelaria do Partido contra mim e muitos
membros do próprio Partido contra mim. […]; e eu simplesmente não tenho
desculpa. Mas talvez sirva de explicação, que eu estava tentando me livrar
dessa situação dolorosa falando de uma maneira que hoje não posso mais
justificar para mim mesmo (BS, 14, pp. 426-427).
Sendo assim, o réu compreende que não havia explicação para seus discursos
antissemitas além do simples fato de que ele estava intimamente envolvido no movimento
e na ideologia nacional-socialista. Uma explicação, certamente, e não uma desculpa: “não
quero minimizar minha própria responsabilidade de forma alguma” (BS, 14, p. 503).
Contudo, ele havia percebido os resultados do antissemitismo naquele tribunal e,
portanto, não poderia mais compactuar com o que seu “eu” do passado havia dito e
acreditado.
109
Aqui, Schirach talvez esteja fazendo uma referência a obra Fausto (1808), do autor alemão Johann
Wolfgang von Goethe (1749-1832), em uma relação com a escolha entre permanecer ao lado do demônio
Mephisto (também referenciado por Hans Frank, como vimos) na descoberta de novos mundos ou se deixar
afogar no oceano.
298
que sempre acreditou que nesses campos só estavam confinados prisioneiros políticos,
pervertidos sexuais e outros tipos de criminosos – isto é, pessoas que deveriam e
mereciam estar ali. O nazista afirma que uma vez até presenciou Heinrich Himmler
demandando o melhor tratamento possível para os judeus. Nessa ocasião, Himmler havia
dito: “Por favor, cuide desses judeus e trate-os bem; são meus bens mais valiosos”, e, por
essa razão, ele acreditava que tudo corria bem no Terceiro Reich (BS, 14, pp. 439-440).
Reinhard Heydrich, em sua perspectiva, também não era “um expoente de uma política
de terror” (BS, 14, p. 491). Schirach era, assim como Hans Fritzsche, que abordaremos a
seguir, um homem que acreditou inocentemente em tudo o que lhe disseram.
Em Nuremberg a verdade dos campos ficara evidente. Essa verdade foi recebida
por seus olhos assustados e lhe mostrou as consequências da política racial:
oficial. Eu não era um colaborador cego dele; nem fui oportunista. Eu era um
nacional-socialista convicto desde os meus primeiros dias – como tal, eu
também era um antissemita. A política racial de Hitler foi um crime que levou
o desastre para 5.000.000 judeus e para todos os alemães. A geração mais
jovem não tem culpa. Mas aquele que, depois de Auschwitz, ainda se apega à
política racial tornou-se culpado (BS, 14, pp. 432-433, grifos meus).
Sua culpa era individual para que a culpa coletiva da juventude alemã fosse
aliviada. Como os jovens o seguiram porque ele, ingenuamente, acreditou em Hitler, a
juventude não poderia ser penalizada por essa “mancha nos anais da história” alemã. Os
jovens haviam sido criados em um Estado nacional-socialista e agiram conforme lhes era
esperado por seus líderes, inseridos como estavam naquela ideologia. O líder da
Juventude Hitlerista havia sido um nazista convicto, e, ao renunciar suas crenças, buscava
uma absolvição – não de si, mas da juventude alemã. Ele não era inocente, mas seu
“Estado dentro do Estado”, sim. Afinal, como julgar uma geração que cresceu acreditando
em premissas antissemitas e que não conhecia um mundo fora do nazismo? Como julgar
os jovens “soldados do futuro” que viam em Hitler o portador de uma verdade
incontestável?
Apesar de não negar seu antissemitismo, Schirach reforça que não ingressou no
movimento nacional-socialista pelo antissemitismo, e sim, pelo nacionalismo e pela
promessa de um futuro grandioso presentes em seus ideais. Ele foi atraído pelos discursos
de Hitler que pregavam a ideia de comunidade nacional, e esses discursos o encheram de
esperança. Schirach lembra que o futuro Führer da Alemanha lhe “pareceu o homem que
abriria o caminho para o futuro de nossa geração” e que acreditava verdadeiramente que
“através dele seria possível oferecer a essa geração mais jovem a perspectiva de trabalho,
de felicidade”. Esse homem que libertaria os alemães “dos grilhões de Versalhes” só
ascendeu ao poder por conta desse tratado, um tratado que, inevitavelmente “levou à
ditadura” (BS, 14, pp. 368-369). O réu usa o exemplo do Protestantismo e da Revolução
Francesa para mostrar “como, no início, as revoluções são radicais em vez de tolerantes”
(BS, 14, pp. 535-536), de modo que o nacional-socialismo, em seus primórdios, parecia
uma revolução social como qualquer outra – e, por isso, seu apelo entre a geração mais
jovem era tão grande.
a nação e, na medida em que o jornal impresso é lido em todo o mundo, todos no exterior
também poderiam ter sido informados sobre nossos objetivos e propósitos”. As palavras
de Hitler em seus discursos eram duras, e os outros países ocidentais poderiam ter
intervindo se quisessem. Como vimos em capítulos anteriores, o mundo inteiro assistiu –
e, em muitos sentidos, celebrou – a ascensão de Hitler e de outros regimes fascistas ao
poder. Não eram necessárias discussões “a portas fechadas” porque havia concordância.
Ainda sobre a acusação de “conspiração”, Schirach conclui sem medo de dizer que o
nazismo era uma ditadura e que ele estava de acordo com esses preceitos na época:
“Também não acredito que tenha havido uma conspiração; o pensamento de conspiração
está em contradição com a ideia de ditadura. Uma ditadura não conspira; uma ditadura
manda” (BS, 14, pp. 378-379).
Cabeça erguida
Schirach estava particularmente satisfeito com sua linha de defesa. Ele diz a
Gilbert, realizado: “bom, acho que esse é o fim do mito de Hitler” (SCHIRACH apud
GILBERT, 1995, p. 350). Ele acreditava que sua confissão havia “quebrado o último
vínculo moral com Hitler”, ainda que esse fosse um elo difícil de ser quebrado, uma vez
que “a juventude alemã foi criada para seguir um líder” (SCHIRACH apud GILBERT,
1995, p. 354). Firme em seu papel de assumir sua responsabilidade para salvar a reputação
da juventude, Schirach estava ciente que, também, não poderia evadir a punição. Ele
declara: “Quando todas as atrocidades vieram à tona no final da guerra, meus piores
medos se concretizaram e eu sabia que deveria morrer por isso. Mas eu não cometeria
suicídio como um covarde” (SCHIRACH apud GILBERT, 1995, p. 24). Mesmo que o
mundo – e homens como ele – tenham tomado conhecimento das atrocidades nazistas
naquele tribunal, Schirach sabia que eles não viveriam “o suficiente para usar nossa
sabedoria recém-descoberta”. Após o julgamento, tudo estaria acabado, e, assim como
Speer, ele não conseguia culpar os juízes por realizarem uma sentença dura: “Eu não
culparia o tribunal se eles apenas dissessem: ‘Corte todas as cabeças deles!’ Mesmo que
haja alguns inocentes entre os vinte, não faria a menor diferença entre os milhões que
foram assassinados” (SCHIRACH apud GILBERT, 1995, p. 71).
Sendo assim, o líder da Juventude Hitlerista acreditava que seria levado à forca
303
por suas denúncias dos crimes nazistas: “bem, agora fiz minha declaração e terminei
minha vida. Espero que o mundo perceba que só tive boas intenções” (SCHIRACH apud
GILBERT, 1995, p. 354). Ao receber sua sentença de 20 anos de prisão, o rosto de
Schirach “estava grave e tenso enquanto ele marchava para sua cela, de cabeça erguida”
(GILBERT, 1995, p. 433). Gilbert tentou tranquilizá-lo dizendo de que sua esposa ficaria
contente de saber que o marido não seria condenado à morte, mas Schirach apenas disse
que seria “melhor uma morte rápida do que uma lenta” (SCHIRACH apud GILBERT,
1995, p. 433). Ainda assim, é válido ressaltar que sua postura após o veredito foi a mesma
do começo do julgamento, quando, ainda em outubro de 1945 ele disse a Gilbert que
“enquanto eu puder manter minha cabeça, vou mantê-la erguida” (SCHIRACH apud
GILBERT, 1995, p. 22).
Baldur von Schirach caminhou para a prisão um homem jovem e saiu pelos
portões 20 anos mais velho, e com repertório suficiente para escrever uma autobiografia
para seguir com sua missão de renunciar a Adolf Hitler e ao antissemitismo. Eu acreditei
em Hitler, o título de sua produção, visa a manutenção e reabilitação do personagem que
ele construiu no tribunal: um ex-nazista arrependido, enganado pelo seu líder, que (ainda)
queria alertar a todos sobre os perigos da permanência do antissemitismo no tecido social.
Essa é também a visão de uma das testemunhas da defesa de seu caso, Fritz Wieshofer:
Tantos anos depois, essas palavras ainda ecoam para uma audiência que tampa
seus ouvidos: o mundo não aprendeu as consequências do preconceito racial e social, que
não se limitam ao caso do antissemitismo. Essa lição ficou no passado, atrelada aos crimes
do nacional-socialismo; um problema específico deste país e deste momento do século
XX. Políticas raciais pautadas em preconceitos históricos seguem intactas na atualidade,
reforçadas por políticos de extrema-direita que olham para esse passado com nostalgia: e
aqui está, até hoje, o perigo.
304
(EVANS, 2014a, p. 492). Buscando uma profunda revolução cultural, já em 1933, pouco
após a ascensão de Hitler ao poder, os nazistas distribuíram aparelhos de rádios baratos
chamados de “receptores do povo” (Volksempfänger), instrumentos que o trabalhador
alemão conseguia comprar com uma semana de trabalho e que poderia ser pago em
parcelas se necessário. Em 1939, mais de 70% das casas alemãs possuíam um receptor, o
que possibilitou a propaganda nazista a se disseminar cada vez mais, inclusive para
regiões do interior do país, que até então estavam “relativamente afastadas do mundo
político” (EVANS, 2014c, p. 165). Os discursos de Hitler eram transmitidos por rádio,
bem como a “Hora da Nação”, que passava todas as noites.110 Dessa maneira, o rádio se
tornou o principal recurso propagandístico do regime nazista nos primeiros anos do
Terceiro Reich: apenas em 1933, 50 discursos de Hitler foram transmitidos via rádio, e
nas comemorações do Dia do Trabalho em 1 de maio de 1934, as transmissões com
discursos, marchas e canções ocuparam cerca de 17 horas do tempo das rádios (EVANS,
2014c, p. 168).
Como, para Goebbels, “não existe absolutamente nada que não tenha viés
político” (GOEBBELS apud EVANS, 2014c, p. 167), e Hitler também já havia sinalizado
em Mein Kampf a importância da propaganda para a disseminação das ideias do
movimento, Fritzsche estava no centro do aparato ideológico nazista. Apesar de ser um
comentarista de rádio muito conhecido, ele estava em Nuremberg por insistência dos
soviéticos como o representante da propaganda nazista, e, portanto, como um substituto
de Joseph Goebbels. Sua absolvição parecia algo dado desde o começo dos
procedimentos, já que “ficou claro que os crimes dele não eram, de jeito nenhum,
comparáveis aos de seu chefe” (EVANS, 2014b, p. 849). Assim como Baldur von
Schirach, as alegações contra Fritzsche estavam no âmbito da propagação da ideologia
nazista, na preparação do terreno para garantir a adesão ao regime, sobretudo durante a
Segunda Guerra Mundial (PRIEMEL, 2016). Sobre a acusação, ele declara: “é a acusação
mais terrível de todos os tempos. Só uma coisa é mais terrível: a acusação que o povo
alemão fará pelo abuso de seu idealismo” (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 7).
Esse ex-nazista arrependido, descrito por Goldensohn como alguém com “um
caráter jovial, ingênuo, sugestivamente adolescente” (GOLDENSOHN, 2005a, p. 84),
mantém esse perfil durante todo o processo em Nuremberg: um homem idealista, inocente
110
Parte desse parágrafo foi retirada e adaptada da minha dissertação de mestrado, ver: VISCONTI, 2017,
p. 47.
306
Anacronismo
Assim como outros nazistas, Hans Fritzsche acredita que Hitler não teria sido
possível se o Tratado de Versalhes não tivesse trazido tanta miséria e humilhação para a
Alemanha. Ele havia se juntado ao Partido Nazista não por uma admiração a Hitler ou
por conta do radicalismo do NSDAP, e sim, porque foi este o único partido político que
conseguiu unir o povo alemão novamente. Como o NSDAP não tinha uma linha teórica
muito definida ou rígida, ele acreditou estar entrando em um movimento, e não em um
mero partido político. Esse movimento, de acordo com Fritzsche, lhe parecia composto
por contrastes, “variável em suas escolhas de métodos”, onde ele esperava encontrar “um
amplo fórum para discussões intelectuais que não mais se desenvolvessem com a
animosidade assassina que antes reinava na Alemanha, mas que pudesse ser realizada
com uma certa disciplina dominada por concepções nacionalistas e socialistas” (BS, 17,
pp. 137-138).
Fazendo concessões mesmo naquela época, o nazista havia deixado “de lado”
seus “próprios desejos” e “convicções políticas”, aconselhando outros a fazerem o
307
mesmo. Valeria a pena fechar os olhos quando não se concordava com alguma coisa,
porque se pensava estar “servindo uma boa causa”. Os alemães, portanto, “por puro
idealismo”, estavam “dispostos a sacrificar tudo a esta causa, tudo menos sua honra”. O
Führer, “o líder desta causa”, infelizmente “aceitou o sacrifício desses idealistas”, homens
como Fritzsche, e desperdiçou esse sacrifício, manchando “sua honra com um assassinato
sem sentido e desumano, único na história – um assassinato que nenhuma necessidade de
guerra poderia ter justificado” (BS, 17, pp. 137-138). O povo alemão merecia ser
reconhecido por sua sinceridade e sua “abnegação e disciplina patrióticas” (FRITZSCHE
apud GILBERT, 1995, p. 151). O idealismo da população era a garantia de sua redenção.
Hitler, no entanto, não tinha salvação. De acordo com Fritzsche, “mesmo sem a morte
das 5 milhões de vítimas dos campos de extermínio, Hitler entraria para a história como
o maior vilão de todos os tempos” (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 98).
Não obstante, ele reforça que, ainda que Joseph Goebbels não fosse seu
superior imediato, ele tinha muitos níveis na cadeia de comando a quem responder: “Esta
é a primeira vez, aqui no banco dos réus, que estou sem superiores oficiais” (BS, 17, p.
142). Sua relação com Goebbels estava apenas pautada em um “caráter oficial, reservado
e até certo ponto formal” e ele nunca havia sequer conversado pessoalmente com Adolf
Hitler (BS, 17, p. 142). Contudo, com Goldensohn, Fritzsche é bem menos modesto. Para
o psiquiatra, o nazista faz questão de destacar sua esfera de influência em vários
momentos da entrevista, detalhando como ele conseguia demitir pessoas ou protegê-las.
Nem mesmo a Gestapo conseguia prejudicá-lo porque ele era capaz de demitir até os
membros dessa tão temida organização. Sua percepção do tamanho de seu papel dentro
do Terceiro Reich faz com que ele fale de si mesmo na terceira pessoa ao se referir a um
inspetor de rádio que falou dele “pelas costas”. O castigo foi proibir a entrada desse
indivíduo em todas as estações da Alemanha: “Ninguém exceto Fritzsche podia fazer uma
308
coisa dessas” (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 89), ele conta, orgulhoso.
Afinal, somente ele tinha tamanha influência e poder para realizar tais medidas. De
acordo com sua narrativa para Goldensohn, seu grande interesse na vida era o de
influenciar e impactar pessoas e, aparentemente, não ser responsabilizado por esse
impacto e influência.
uma engenharia social. O nacionalismo foi moldado para abarcar uma direita chauvinista,
imperialista, radical e racista: o que permaneceu, contudo, não foi uma proposta
internacional, e sim o triunfo do nacionalismo sob todas as ideologias rivais
(HOBSBAWM, 1998).
o que ele encontrou foi uma Alemanha ansiosa pela solução de seus grandes problemas
materiais, mas, também, de seus antigos questionamentos existenciais. Não surpreende,
olhando para trás, o apelo que o discurso nacionalista e de integração nacional teve nessas
pessoas.
111
Parafraseando o filme Mr. Nobody, de 2012, dirigido por Jaco Van Dormael e estrelado por Jared Leto:
“Tudo poderia ter sido outra coisa e teria o mesmo tanto de significado”.
311
intrinsecamente ligada à sua própria ruína, já que essa coerência do mundo totalitário é
forjada, precisamente, pela propaganda.
Fritzsche acreditava que, pensando de maneira técnica, seu trabalho foi quase
perfeito: “nos detalhes trabalhamos de forma bastante limpa e honesta, tecnicamente até
perfeitamente”. Mesmo sem uma regulamentação internacional oficial quanto à
propaganda em tempos de guerra, o nazista acreditava firmemente ter uma consciência
livre da culpa, já que ele nunca havia usado de mentiras em sua atividade. Ele afirma
sempre ter enfatizado “a responsabilidade moral do jornalista”, e, se, em maio de 1945
ele não tirou sua vida junto com seu Führer, uma de suas razões era mostrar onde dentro
daquele sistema existia “o idealismo puro e os sacrifícios heroicos de milhões, e onde
havia mentiras e a brutalidade que não se esquivou de cometer crimes” (BS, 17, pp. 154-
155). Fritzsche, é claro, estava do lado dos idealistas. Apesar de ele não ter produzido
mentiras, seu trabalho, infelizmente, estava pautado nas mentiras que lhes foram
contadas. Contudo, era fundamental lembrar que ele, assim como todos os alemães, era
bom em sua natureza. O extermínio, do qual ele só tomou conhecimento durante os
procedimentos em Nuremberg, foi fruto de uma minoria que manchava a reputação do
bom povo germânico: “Ainda hoje acredito que o assassinato, a violência e os
Sonderkommandos apenas se agarraram como um corpo estranho, como um furúnculo,
ao corpo moralmente sadio do povo alemão e de suas Forças Armadas” (BS, 17, p. 162).
Sua inocência se equiparava a ingenuidade e ignorância da população como um todo:
sentido da propaganda, até mesmo porque ele acreditava que o Der Stürmer era de tão
mau gosto que acabava servindo contra a causa alemã. Alfred Rosenberg também não é
alguém com quem Fritzsche quer se equiparar com relação ao seu trabalho.
112
Referência a uma das personagens do livro Deuses Americanos do autor britânico Neil Gaiman,
publicado em 2001, e adaptado para a televisão em 2017. Partindo da premissa de que deuses existem
porque as pessoas acreditam neles, a personagem em questão é a deusa Mídia, que faz parte dos chamados
“novos deuses americanos modernos”. A Mídia assume diversas formas tanto no livro quanto na série de
TV, personificando a novidade e a variedade desse tipo de produção da modernidade.
314
uma arte que não necessariamente deve estar atrelada a realidade factual dos
acontecimentos. A atividade propagandista deve ser “fundamentalmente subjetiva e
unilateral” (HITLER, 2005, p. 137), e, por ser direcionada ao povo, às massas menos
esclarecidas, deve compreender sentimentos dicotômicos e extremos: amor ou ódio,
justiça ou injustiça, verdade ou mentira, nós ou eles, “nunca, porém, o meio termo”. A
massa, “sempre propensa a extremos” deve ser constantemente bombardeada pelas
mesmas informações, a fim de não se deixar espaço para questionamentos. Nesse sentido,
os propagandistas “têm de se contentar com pouco”: poucos pontos repetidos
frequentemente. Para Hitler, “a persistência, nesse caso, é, como em muitos outros deste
mundo, a primeira e mais importante condição para o êxito” (HITLER, 2005, p. 138). A
massa é convencida pela insistência, já que “todo anúncio, seja ele feito no terreno dos
negócios ou da política, tem o seu sucesso assegurado na constância e continuidade de
sua aplicação” (HITLER, 2005, p. 139).
Assim sendo, e seguindo à risca a cartilha proposta por Hitler em Minha luta,
Joseph Goebbels moldou o Ministério da Propaganda afim de instaurar permanentemente
a ideologia nacional-socialista na mente dos alemães. Mais do que isso, Goebbels também
foi o grande responsável pela construção da imagem do Führer e pela manutenção dessa
imagem no fim da guerra, ou seja, foi peça fundamental na criação do mito de Hitler, para
usar o conceito de Ian Kershaw. O ministro, no entanto, foi vítima de sua própria
fabricação e dedicou sua vida integralmente a seguir e idolatrar Adolf Hitler. De acordo
com Peter Longerich, responsável pela biografia de Goebbels, “Hitler lhe conferia a
necessária estabilidade para lidar com a vida, estabilidade que lhe faltava em virtude da
personalidade desequilibrada” (LONGERICH, 2014, p. 16). O líder foi definido por
Goebbels como “o Führer, o Profeta, o Lutador”, e “a última esperança das massas, o
símbolo brilhante da vontade alemã de liberdade” (GOEBBELS apud KERSHAW, 2001,
p. 41). Hitler passou a ser parte tão primordial da existência do propagandista que, em 1
de maio de 1945, um dia após a morte do líder, Goebbels tirou sua vida e a de toda sua
família, incluindo seus seis filhos. Hitler, em seu testamento, havia nomeado Goebbels a
Chanceler da Alemanha; no entanto, ele declina o cargo, afirmando aos prantos que
316
ficaria “ao lado do Líder, para terminar uma vida que, para mim, não tem mais valor se
não puder se usada a serviço do Líder e ao lado dele” (GOEBBELS apud EVANS, 2014b,
p. 833).113 As cápsulas de ácido cianídrico utilizadas para colocar fim à sua vida e à de
sua prole são uma sinistra representação do que restava após a morte de seu Führer: a
completa ausência de futuro. O nacional-socialismo era, de fato, o ar que ele respirava e,
no fim, assim como no início, a vida de Joseph Goebbels estava intimamente ligada à
vida de Adolf Hitler.
Minha defesa é que tudo não passou de idealismo de minha parte. Posso
defender tudo ponto por ponto. Mas não vou tentar fazer isso, porque tudo o
113
Algumas frases desse parágrafo foram retiradas do post que fiz sobre a morte de Goebbels para o Núcleo
Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT): https://www.instagram.com/p/B_pksSUgNXC/
(Acesso em 04/09/22)
317
que fiz, fiz diante do público mundial. Do outro lado da moeda está o fato de
que, com base em meu trabalho, 5 milhões de pessoas foram assassinadas, e
atrocidades tremendas foram cometidas. Trata-se puramente de julgar se é
possível estabelecer uma ligação clara entre as duas coisas. Se apenas minha
pessoa estivesse envolvida, eu poderia me defender com uma frase – ‘fiz aquilo
como um patriota alemão’-, porque, se todo o povo alemão foi traído, eu
também fui: mas esse é um assunto complexo. Não é apenas minha pessoa que
está envolvida, mas todo o povo alemão, que na maior parte eu mantinha
informado (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 91).
Ainda que Fritzsche não pertença ao alto escalão do Terceiro Reich, ele parece
sedento por poder e reconhecimento, adquirindo um cinismo que Arendt julga
318
Para Fritzsche, “o princípio do mal causou tanto dano ao mundo que não pode
ser de nenhuma maneira desculpado. Mas a maior catástrofe da humanidade foi a geração
de ódio e a crença de um homem de que ele está certo e seu oponente, errado”
(FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 105). Ou seja, por fundamento, o
problema era muito anterior ao nazismo, à Segunda Guerra ou ao preconceito racial: a
questão girava em torno da premissa da divisão do mundo entre dois grupos: bom e mau,
civilização e barbárie, certo e errado. Se sua existência e identidade se pautam na negação
do outro, naturalmente o que se encontra no outro espectro precisa ser eliminado e
destruído. Como aponta Hannah Arendt, a solução do problema judaico na Alemanha
nazista seguiu uma série de etapas, mas não se limitava aos judeus: era uma “eloquente
demonstração para o resto do mundo de como realmente ‘liquidar’ todos os problemas
relativos às minorias e apátridas” (ARENDT, 1989, p. 323). O jardineiro sempre precisa
limpar o jardim das ervas daninhas, para usar a alegoria de Zygmunt Bauman
(BAUMAN, 1998a). E, nesse sentido, o objetivo de Fritzsche no tribunal, para além de
demonstrar sua inocência, era de apresentar os problemas profundos e arraigados na
sociedade moderna que tornaram o nazismo possível – questões que ainda estavam
presentes mesmo após o fim do regime nazista. E, por isso, não havia homens isentos em
Nuremberg: os Aliados também tinham sua parcela de culpa:
O desejo do povo alemão de lutar pela sua existência não estava errado em
princípio e sequer tinha qualquer relação com o extermínio. Para Fritzsche, esses eram
319
dois fios que não se encontravam. Sendo assim, sua inocência, e, por conseguinte, a
inocência do povo alemão, estavam atreladas a culpa de outras pessoas, que, não
necessariamente eram os outros nazistas – ou, somente os outros nazistas.
Como estava do lado certo e não enxerga qualquer conexão com o lado errado,
Fritzsche não tem problemas em admitir que sua propaganda foi um recurso fundamental
para o avanço da Alemanha durante a guerra. No entanto, ele reitera que para
compreender sua atuação era necessário objetividade, já que “sem objetividade, minhas
palavras não serviriam aos alemães, nem aos Aliados, nem ao mundo” (FRITZSCHE
apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 96). O nazista declara que sua propaganda foi quase
que exclusivamente direcionada ao conceito de necessidade de lutar, e que, certamente,
utilizou dos seus artifícios e métodos para enfraquecer os Aliados. Contudo, o réu acredita
não ter produzido mentiras com seu trabalho: “Declaro sob juramento: Em questões
realmente sérias, questões de política e de condução da guerra, não cometi uma única
falsificação e não usei conscientemente uma única mentira”. Todavia, restava um
questionamento latente: “Quantas vezes eu mesmo fui vítima de uma falsidade ou
mentira, não posso dizer depois das revelações deste Julgamento” (BS, 17, pp. 154-155).
É claro que sua propaganda seguia uma vertente tendenciosa, unilateral, já que
o objetivo de seu trabalho e de sua propaganda na Europa “era, e tinha que ser, conquistar
os povos da Europa para a causa alemã” (BS, 17, pp. 157-158). Naturalmente, isso era
apenas o esperado de um propagandista em tempos de guerra, já que se trabalhava
320
somente em “preto e branco”. Essa é uma expressão que Fritzsche recorre diversas vezes
em suas entrevistas com Goldensohn:
Posso dizer que não tentei atrair a atenção das pessoas para algo ruim, mas
para algo unilateral – e fiz isso durante todos os dez anos de minha atividade.
Eu pintava apenas em preto-e-branco – sem cores intermediárias. Seu país e os
demais Aliados fizeram a mesma coisa. […] Agora posso ver, para meu grande
desapontamento, que também neste julgamento apenas um quadro preto-e-
branco está sendo pintado. Ele pode ser necessário, do ponto de vista legal,
para que os julgamentos não se arrastem por muito tempo. Um veredito de
culpado não importa. Mas gostaria de ver este julgamento fazer a humanidade
progredir. A humanidade precisa ser melhorada após a morte de 5 milhões de
pessoas inocentes (FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 97).
Imagem 6114
114
“Caixa de fósforos de publicidade hoteleira com slogans anti-Eixo”. United States Holocaust Memorial
Museum Collection. Disponível em: https://collections.ushmm.org/search/catalog/irn189735 (Acesso em
04/09/2022)
322
estava justamente em fechar “nossos ouvidos para o que é certo ou o que é errado”
(FRITZSCHE apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 99). Para o réu, portanto, “o crime não
começa quando você assassina pessoas. O crime começa pela propaganda” (FRITZSCHE
apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 100).
(FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 65), ele afirma que a culpa da Alemanha na
guerra contra as potências ocidentais, levando em conta o Tratado de Versalhes, era de
apenas 50%. O que havia sido “imprudente e desnecessário” e que tornava a culpa alemã
em 100% foi a guerra contra o Leste europeu, onde as atrocidades ocorreram
(FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 64). É perceptível, pelo menos para Gilbert,
como o extermínio havia causado uma profunda impressão em Fritzsche. Já em fevereiro
de 1946, poucos meses depois do início dos procedimentos em Nuremberg, ele diz em
desespero: “Eu tenho a sensação de que estou me afogando na sujeira – seja deles ou
nossa – é irrelevante. Estou engasgando-me com isso […] eu não consigo continuar. É
uma execução diária” (FRITZSCHE apud GILBERT, p. 164). Ecoando o outro ex-nazista
arrependido, Hans Frank, Fritzsche também não consegue enxergar um futuro melhor
para a Alemanha. O nazismo deixara de ser parte do presente, mas se tornara um passado
trágico: “Nenhum poder no céu ou na terra apagará essa vergonha do meu país! Nem em
gerações, nem em séculos!” (FRITZSCHE apud GILBERT, 1995, p. 46). Como ele teve
um papel significativo na construção ideológica que justificaria esse “inferno”, seu dever
moral no tribunal era utilizar de sua narrativa para a destruição dessa ideologia. Como o
propagandista que construiu, Fritzsche, naquele momento, deveria destruir seu trabalho
para que a Alemanha pudesse respirar aliviada. Nuremberg seria, finalmente, o fim do
mito de Hitler.
Exoneração
conseguiu convencer a acusação e o tribunal do que ele próprio acreditava: Fritzsche era
apenas um idealista ingênuo que indiretamente serviu a um papel dentro do Terceiro
Reich.
326
Capítulo Seis
Militares apartidários
Wilhelm Keitel
Alfred Jodl
Erich Raeder
Karl Dönitz
Por esse motivo, farei uma breve introdução de cada réu e depois iniciarei a
análise de seus argumentos. Nesse arquétipo, temos os casos de Wilhelm Keitel, Karl
Dönitz, Erich Raeder e Alfred Jodl. Esses quatro nazistas ainda se interrelacionam por
conta de suas posições dentro das Forças Armadas: Jodl era o oficial subordinado a Keitel
e Dönitz entrou para substituir Raeder. Por fim, é válido pontuar que todos os réus
estiveram com Hitler, metaforicamente e/ou no bunker, até os momentos finais da
Segunda Guerra Mundial.
115
Parte desse capítulo foi retirada e adaptada do artigo que escrevi sobre o caso de Wilhelm Keitel. Ver
em: VISCONTI, 2020.
328
apenas obediente, como também devoto do Führer. O marechal, não obstante, reafirmava
sua posição como mero soldado e não como membro do Partido, diferenciando seu lugar
em relação ao alinhamento ideológico. Dizia apenas acompanhar Hitler nas reuniões do
Partido, mas não nas reuniões secretas – onde, supostamente, as decisões “ruins” estavam
sendo tomadas. Ele afirma que era “um soldado” e que trabalhou “para o Kaiser e sob as
ordens de Ebert, Hindenburg e Hitler, sempre da mesma maneira, nos últimos 44 anos”
(KEITEL apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 202).
Ao receber sua sentença, Keitel estava com “os punhos cerrados e os braços
rígidos, horror em seus olhos”. Ele anunciou, com a voz “rouca de intensa vergonha”:
“Morte por enforcamento! Isso, pelo menos, eu pensei que seria poupado”. Tristemente,
ele diz a Gilbert: “Não o culpo por ficar à distância de um homem condenado à morte por
enforcamento. Eu entendo isso perfeitamente. Mas ainda sou o mesmo de antes. Por
favor, só me visite algumas vezes nestes últimos dias” (KEITEL apud GILBERT, 1995,
p. 432). Esse pedido faz parte de uma relação mais íntima que vai sendo construída ao
longo do julgamento entre Keitel e Gilbert. O réu chega até mesmo a afirmar que o
psicólogo era “o único que eu posso dizer o que está em meu coração porque você está
acima de tudo isso, e não amarrado a isso”. Por fim, com os olhos baixos, ele confidencia
a Gilbert: “Eu acreditei nele [Hitler] tão cegamente. Se alguém se atrevesse a me dizer
alguma das coisas que descobri agora, eu teria dito: ‘Você é um traidor insano – eu vou
mandar atirarem em você!’ [...] Então ele nos usou. E agora nós nos sentamos aqui como
criminosos!” (KEITEL apud GILBERT, 1995, p. 110).
Não deixa de ser representativo o fato de Keitel ter sido um dos poucos nazistas,
juntamente com Martin Bormann, Joseph Goebbels e Alfred Jodl, que ficaram do lado de
Hitler até o fim da guerra, mesmo quando o líder já estava completamente entregue à
histeria. Keitel estava junto ao Führer após sua última aparição pública no seu 56º
aniversário, em 20 de abril de 1945, quando o Exército Vermelho já estava adentrando
Berlim. Estava presente nos ataques histéricos de Hitler, nas reuniões para definir
estratégias de tropas que nem sequer existiam, nos planos mirabolantes e na crença
absurda em uma vitória milagrosa da Alemanha na guerra. Coube a Wilhelm Keitel
assinar a ordem de rendição da Alemanha ao Exército Vermelho e avisar Hitler, às três
da manhã do dia 29 de abril de 1945, que a guerra iria acabar no fim do dia, o mesmo
Wilhelm Keitel que no ano anterior chorava de alegria ao constatar que seu líder havia
sobrevivido à tentativa de assassinato no bunker – o famoso atentado de 1944 (EVANS,
330
2014b, p. 732). Este era o mesmo Keitel que havia emitido a ordem em 1941 para fuzilar
todos os comissários políticos do Exército Vermelho que foram capturados, a quem ele
chamou de “criadores dos bárbaros métodos asiáticos de combate”, e que, em 1943, deu
cabo à ideia de guerra total, com o controle da frente doméstica e o aumento da produção
interna ao nível da exaustão populacional, que trabalhava sem acesso à matéria-prima
suficiente (EVANS, 2014, p. 211; 486). Wilhelm Keitel, o general que recebeu uma
grande soma de dinheiro ao subir de patente e que tinha profunda estima pelos ideais
prussianos militaristas e que, como a maioria dos generais, via “uma carreira e o posto de
marechal de campo” como “mais importantes que os grandes exemplos práticos e valores
morais que estão em jogo” (EVANS, 2014b, p. 567).
Cabiam todos esses homens dentro do Wilhelm Keitel que estava sendo julgado
em Nuremberg em 1945. Seu caso nos mostra como dentro de uma mesma pessoa existem
contradições e percepções irreconciliáveis. Afinal, como ser, ao mesmo tempo, apenas
um soldado desinteressado e compreender os soviéticos como bárbaros, um argumento
tão recorrente da retórica racial do nacional-socialismo? É um exemplo clássico do que
Tzvetan Todorov chama de fragmentação, a curiosa convivência do bem e do mal na
mesma pessoa, intensificada pelo processo de generalização do estado de guerra, no qual
o mundo se divide entre aliado e inimigo (TODOROV, 1995). Keitel, em suas narrativas,
busca construir um personagem mais palatável aos olhos do mundo do que ele parece ser
durante o julgamento. De acordo com o marechal, “para entender como vim parar nesse
banco de réus, talvez seja importante para um psiquiatra sabê-las [suas justificativas],
assim como é importante para mim” (KEITEL apud GOLDENSOHN, 2005a, p. 205–
206). Era importante que Leon Goldensohn, um psiquiatra, entendesse como ele chegou
até ali, mas também era importante para ele próprio entender. Quais foram os passos que
ele deu até chegar naquele momento?
331
“Você pode ter certeza de que nós, generais, não queríamos a guerra.
Deus sabe que nós, veteranos da Primeira Guerra Mundial,
estávamos com a barriga cheia de guerra”
Alfred Jodl era chefe de operações das Forças Armadas Alemãs, sob a direção
de Wilhelm Keitel. Em Nuremberg foi julgado pelas quatro acusações e considerado
culpado por todas: plano de conspiração, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes
contra a humanidade. Sentenciado à morte e enforcado em 16 de outubro de 1946, Jodl
foi exonerado por uma corte alemã de desnazificação em 1953, sendo inocentado de seus
crimes.
Enxergando o tribunal como uma farsa articulada por seus inimigos políticos,
Jodl declara sobre a acusação: “Lamento a mistura de acusações justificadas e propaganda
política” (JODL apud GILBERT, 1995, p. 7). Ansiando por um resultado diferente, como
todos os militares, Jodl ficou surpreso com a sua sentença. Quando recebeu o veredito,
ele “marchou para sua cela, rígido e ereto” e evitou o olhar de Gilbert. O psicólogo relata
332
a cena: “Depois de tirar as algemas e me encarar em sua cela, ele hesitou por alguns
segundos, como se não conseguisse pronunciar as palavras. Seu rosto estava manchado
de vermelho com a tensão vascular” (GILBERT, 1995, p. 433). O réu exclamou: “Morte
por enforcamento! Isso, pelo menos, eu não merecia. A parte da morte, tudo bem, alguém
tem que assumir a responsabilidade. Mas isso…Isso eu não merecia”, ele concluiu com a
boca tremendo e a voz engasgando (JODL apud GILBERT, 1995, p. 433).
Jodl é o claro exemplo de um militar que ainda sentia orgulho de sua posição e
de seu código de honra. Em sua defesa da posição da Alemanha na Segunda Guerra, ele
declara: “O princípio de tal guerra é olho por olho e dente por dente, e isso nem é um
princípio alemão” (BS, 15, p. 479). Dessa maneira, o que foi feito, estava feito – e estava
justificado. Nuremberg lhe parecia, portanto, um julgamento dos vencedores. Para ele, o
tribunal precisaria “realizar um estudo muito minucioso de todos os documentos
históricos, tanto do nosso lado como do outro lado”. Somente após essa análise poderia
ser tirada uma conclusão sobre “certo” e “errado” naquele momento histórico. No entanto,
“antes que isso tenha sido decidido, existe apenas uma opinião subjetiva. Eu tenho a
minha e você tem outra (BS, 15, p. 466).
Erich Raeder foi almirante e líder naval da Alemanha antes e durante a guerra.
Ele foi substituído por Karl Dönitz em 1943 e foi julgado em Nuremberg por conspiração,
crimes de guerra e crimes contra a paz. Considerado culpado de todas as três acusações,
Raeder foi condenado à prisão perpétua, sendo libertado por motivos de saúde dez anos
depois, em 1955. Ele morreu aos 84 anos em 1960, mesmo ano em que sua autobiografia
Grande Almirante Erich Raeder: Minha vida foi publicada.
Raeder mantém essa postura de silêncio até o fim. Quando recebeu sua
sentença, o almirante entrou no bloco de celas e “perguntou ao guarda no portão em uma
voz aguda, em uma tentativa desesperada de ser casual, se eles iriam caminhar esta tarde”.
Após se dirigir a sua cela mancando, ele se recusa a falar com Gilbert, que o questionou
qual era o veredito de seu caso. Raeder apenas disse: “Não sei. Eu esqueço” e dispensou
o psicólogo (RAEDER apud GILBERT, 1995, p. 433). Sua sentença não foi o que ele
esperava, já que, em um dos poucos momentos em que abre com Gilbert, ele declara que
gostaria de ser fuzilado: “não tenho vontade de cumprir uma pena de prisão na minha
idade” (RAEDER apud GILBERT, 1995, p. 341). Ainda assim, Raeder conseguiu ficar
apenas dez anos preso e passar os últimos cinco anos de sua vida em liberdade.
Dönitz foi nomeado o sucessor de Adolf Hitler em seu último testamento como
presidente do Reich, “um cargo que Hitler uma vez dissera estar tão impregnado com as
lembranças de seu ocupante anterior, Paul von Hindenburg, que nunca deveria ser
retomado” (EVANS, 2014b, p. 844). Ele não herdou o título de Führer, que morreu junto
337
com Hitler. Dentre os nazistas, a nomeação de Dönitz não foi uma grande surpresa,
“considerando seu alto prestígio junto a Hitler na fase final da guerra e, em particular, a
responsabilidade que recebera dias antes pelos negócios do Partido e do Estado, bem
como pelos outros assuntos militares no norte do país” (KERSHAW, 2010, p. 985). Como
o novo chefe das Forças Armadas, suas primeiras e únicas ações foram tentar assegurar
uma rendição mais digna para as tropas alemãs. Sua tática de tentar ganhar tempo para
que os soldados pudessem se retirar foi “parcialmente bem-sucedida, permitindo que
cerca de 1,7 milhão de soldados alemães se rendessem aos americanos e aos britânicos
em vez de aos soviéticos, cujo número de prisioneiros alcançava menos de um terço do
total”. Entretanto, Dönitz não conseguiu negociar uma rendição geral separada com os
Aliados ocidentais, de modo que, sob ameaças, ele e Jodl acabaram concordando com a
rendição total e incondicional. A ordem foi assinada nas primeiras horas da manhã de 7
de maio de 1945, colocando um fim definitivo na Segunda Guerra Mundial (EVANS,
2014b, p. 844).
Sobre acusação, e revelando uma postura que vai se delineando ao longo dos
procedimentos, Dönitz apenas declara: “Nenhuma dessas acusações me preocupa
minimamente. [É] humor típico americano” (DÖNITZ apud GILBERT, 1995, p. 7).
Plenamente convencido de sua inocência ao longo de toda a sua narrativa, Dönitz ficou
verdadeiramente surpreso por ter recebido a sentença de dez anos de prisão – ainda que
tenha escapado da pena de morte. O almirante acreditava que sairia andando dos portões
de Nuremberg como um homem livre e “não sabia muito bem como lidar” com o desfecho
de seu caso (GILBERT, 1995, p. 432). Afinal, ele passou todo o julgamento dizendo para
Goldensohn que o tribunal era “uma piada” porque acusar qualquer um dos nazistas de
conspiração era algo simplesmente “ridículo” em sua percepção. Seu caso, contudo, lhe
parecia “bastante claro”, e, por isso, ele sentava em sua cela com a consciência
perfeitamente “limpa” (DÖNITZ apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 14). Dönitz era tão
absorto em suas convicções que Goldensohn dedica um tempo das entrevistas para defini-
lo para os leitores:
Eu não acredito que este homem tenha qualquer noção do que está acontecendo
no mundo. Ele é perspicaz, de modo algum estúpido, mas sua mente parece ter
bloqueado as características mais importantes dos julgamentos até agora. Ele
rejeita as atrocidades, a matança de milhões de judeus, a barbárie da SS, todo
o modus operandi criminoso do Partido Nazista. Ele vê apenas que foi inocente
de qualquer crime, passado ou presente, e que qualquer tentativa de o
incriminar ou qualquer um dos outros em julgamento com ele é conivência
política. Ele sente que as ações da Alemanha foram o resultado da opressão
após a última guerra, por um lado, e por outro, não reconhece sua própria culpa
338
em ser um fiel servo de Hitler e seu regime. Ele nega as atrocidades no mar e
ainda tem dúvidas sobre elas em terra. E as evidências? (GOLDENSOHN,
2005b, p. 7)
oficiais militares não estavam isentos de serem impactados por esse viés ideológico por
conta da propaganda nacional-socialista, já que, como afirma Arendt: “na Alemanha
nazista, duvidar da validade do racismo e do antissemitismo, quando nada importava
senão a origem racial, quando uma carreira dependia de uma fisionomia ‘ariana’” era o
mesmo que “colocar em dúvida a própria existência no mundo” (ARENDT, 1989, p. 412).
A brutalidade e a velocidade com que os militares alemães agiram durante a Segunda
Guerra dizia respeito a esse imperativo: o tempo estava se esgotando para a raça
germânica, e o combate era, portanto, uma urgência biológica (CHAPOUTOT, 2018). Se
o mundo era definido pela luta de raças, o estar no mundo só poderia ser entendido de um
lado ou de outro do espectro. Negar a premissa era, nesse sentido, negar a sua própria
existência.
Por isso, para Hitler, mesmo com uma vitória alemã na guerra, não haveria fim
para a luta no Leste. Afinal, para o Führer, “a guerra era a essência da atividade humana”.
Ele dizia que “o que encontrar um homem significa para uma moça, a guerra significa
para ele”. Sempre retomando às suas experiências durante a Primeira Guerra Mundial,
Hitler desejava, inclusive, que uma guerra ocorresse a cada 15 ou 20 anos. Sendo assim,
não havia espaço para qualquer humanitarismo mal direcionado: a perda de vidas alemãs
no front era justificável e um sacrifício que valeria a pena no futuro. “A vida é horrível”,
disse Hitler no bunker, “Vir à luz, existir e falecer, há sempre uma morte. Tudo que nasce
deve depois morrer. Seja por doença, acidente ou guerra, dá na mesma” (HITLER apud
KERSHAW, 2010, p. 666). De acordo com Kershaw, o Führer acreditava em uma luta
contínua, e, “suas noções de uma ‘nova ordem’ social precisam ser postas nesse contexto
de conquista, exploração implacável, o direito do poderoso, dominação racial e guerra
mais ou menos permanente num mundo em que a vida era barata e prontamente
descartável” (KERSHAW, 2010, p. 666). E aqui, é válido lembrar que “o princípio
fundamental continuava a ser a raça, à qual todo o resto estava subordinado”
(KERSHAW, 2010, p. 667) e que existia, portanto, uma simbiose entre política racial e
guerra. Nesse sentido, a guerra, para os nazistas, seria eterna e total – e, assim como a
raça, não permitia “cores intermediárias” (literalmente), como bem disse o réu Hans
Fritzsche.
Guerra Total
Inimigo biológico
Ainda que tidas como modernas pelos próprios nazistas, é essencial destacar
que as visões de Hitler sobre a guerra eram, em substância, voltadas para um passado
idealizado: “as conquistas coloniais do século XIX forneciam sua inspiração. O que Hitler
estava oferecendo era uma versão modernizada da antiga conquista imperialista”, ainda
que, naquele momento, traduzida “para o campo etnicamente misto da Europa Oriental,
onde os eslavos seriam o equivalente germânico das populações nativas conquistadas na
Índia e na África pelo Império britânico” (KERSHAW, 2010, p. 667).116 Nesse processo,
a conquista de novos territórios estava pautada não só pela noção de espaço vital, já
abordada em capítulo anterior, mas também, pela reabsorção do sangue ariano que se
116
Não nos esqueçamos, é claro, que a Alemanha teve o seu próprio império colonial iniciado na década
de 1880, pautado em teorias raciais e em violência extrema contra povos de diversas partes de países
africanos, como o que hoje conhecemos como Ruanda, Tanzânia, Namíbia, Camarão, Congo, Nigéria, entre
outros. Campos de concentração para trabalhos forçados e a utilização de africanos como cobaias científicas
foram práticas comuns pelos colonizadores alemães nesse período. Dados indicam que a população herero
foi reduzida de 80 mil para 15 mil, 10 mil dos 20 mil namas foram exterminados, e, dos 17 mil africanos
em campos de concentração, apenas metade sobreviveu. O pai de Hermann Göring, inclusive, foi o primeiro
governador colonial na Namíbia. Ainda que essas práticas não fossem exclusividade dos alemães, Richard
Evans ressalta que “somente os alemães introduziram os campos de concentração, deram-lhes esse nome
específico e, de maneira deliberada, criaram condições tão severas e cruéis que seu propósito era claramente
duplo: tanto exterminar seus inimigos quanto forçá-los ao trabalho escravo (caberia aos nazistas cunhar o
apavorante termo ‘extermínio mediante o trabalho forçado’, mas o efeito era o mesmo). Somente os alemães
empreenderam a tentativa explícita de exterminar um povo colonizado em sua totalidade com base em
alegações de ordem racial. Somente os alemães proibiram os casamentos inter-raciais em suas colônias”
(EVANS, 2018, p. 18). Autores como Zoé Samudzi e Lisa Todd, alinhados às teorias decoloniais têm
elaborado extensas (e inéditas) pesquisas investigando a relação entre o passado colonial alemão do século
XIX e princípios do século XX e as práticas nazistas no Leste durante o Terceiro Reich.
343
encontrava em outros países: “a predação colonial era, portanto, também uma questão de
sangue: o sangue germânico perdido e à deriva tinha que ser recuperado, para garantir
que não se voltasse contra a raça nórdica” (CHAPOUTOT, 2018, p. 345). Esse era mais
um dos motivos pelos quais, ideologicamente, a guerra não poderia ter fim, já que, onde
houvesse arianos, existiria a tarefa de trazê-los para o Reich por qualquer meio necessário.
O meio utilizado, durante a Segunda Guerra, era, naturalmente, a violência, e a guerra
era, por fim, uma forma de biologia política.
dos soldados alemães. Os homens do exército deveriam estar sempre em alerta, já que,
por sua natureza, os soviéticos eram traiçoeiros: “sua malignidade e sua crueldade
exigiram que o exército alemão exercesse a mais extrema prudência e justificasse a
violência mais extrema” (CHAPOUTOT, 2018, p. 260), violência essa que estava
amplamente amparada na paranoia. Por exemplo, os soldados alemães tinham ordens de
não ingerir nenhuma comida ou água em território soviético enquanto um médico alemão
não autorizasse, porque acreditava-se que tudo estaria envenenado. Afinal, essa
miscigenação de povos que compunha a população soviética havia envenenado até
mesmo a terra da Rússia, biologicamente e quimicamente, demonstrando que não havia
limites para a maldade desses homens. Por isso, os alemães não deveriam sequer entrar
em contato com os prisioneiros soviéticos ou tocar em seus pertences: a luta era, na
realidade, contra uma epidemia:
117
Sobre o decreto, ver: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/night-and-fog-decree (Acesso
em 09/10/2022)
346
E, assim, Keitel também estava convencido, justamente porque ele sabia “por anos de
experiência que nos territórios do Sudeste e em certas partes do território soviético, a vida
humana não era respeitada no mesmo grau [que na Alemanha]” (BS, 10, pp. 617-618).
Por esse motivo, estava claro que a Segunda Guerra Mundial foi “um tipo de guerra
inteiramente novo, baseado em argumentos e princípios completamente diferentes”, e
“ideias decididamente novas e muito impressionantes, mas também pensamentos que nos
afetaram profundamente” (BS, 10, p. 532).
de um gênio, porque, para ele, “um gênio é um homem com tamanha capacidade de olhar
para o futuro, com uma tremenda capacidade para sentir as coisas, com um conhecimento
tão extenso de questões históricas e militares” (KEITEL apud GOLDENSOHN, 2005a,
p. 210–211). O Führer, em sua perspectiva, era “o maior comandante militar de todos os
tempos” (KEITEL apud KERSHAW, 2001, p. 153).
Essa ilusão também passava pela própria perspectiva do que se podia ou não
fazer naquele momento dramático da história alemã – e qual era a responsabilidade
individual dentro daquela longa cadeia de comando. É válido lembrar que o juramento
militar, que tradicionalmente era feito a nação alemã, passou a ser, a partir de 1934, um
juramento de lealdade pessoal a Hitler (EVANS, 2014b). A Reichswehr, organização do
exército até 1935, quando foi unificada com a Wehrmacht, composta pelo exército,
marinha e forças aéreas, não estava mais a serviço da Alemanha: estavam todos a serviço
do Führer (EVANS, 2014a). Isso é especialmente importante se levarmos em
consideração que esse foi um juramento realizado muito antes da Segunda Guerra
Mundial. Há aqui uma conexão profunda entre a guerra e o Führer. E, sendo o Führer não
somente o líder militar e o líder do Reich, como também o grande responsável pelo futuro
do povo germânico e o homem que sempre sabia o que era melhor para a nação, obedecê-
lo sequer deveria ser uma questão: era uma obrigação e um compromisso que todos os
alemães deveriam assumir de bom grado.
chanceler, ele disse a um camarada: “Isso é mais do que uma mudança de governo; é uma
revolução. Até onde isso nos levará, não sabemos” (BS, 15, p. 286). Nessa revolução, os
soldados estavam confortáveis em seguir Adolf Hitler, e, mesmo naquele momento,
sendo julgados por um tribunal militar, não se arrependiam de suas decisões.
Que ficasse claro, entretanto, que Jodl sequer era favorável a um golpe. Ele
reitera que “se hoje as pessoas que cooperaram ativamente para levar Hitler ao poder” e
que participaram desse governo “exigiam revolução e motim da Wehrmacht quando eles
não gostaram mais do homem [Hitler], ou quando ocorreram reveses, então só posso
chamar isso de perverso” (BS, 15, pp. 299-300). Essa atitude perversa, para ele, se devia
a homens fracos que consideram a lealdade como “algo a ser comprado e vendido como
as ações de um banqueiro”. Ele jamais iria apertar as duas mãos de um homem enquanto
ele fosse vitorioso e, assim que começasse a sofrer derrotas, “procurar um punhal”.
Mesmo que uma questão moral estivesse envolvida – e ele reconhecia “certos limites
morais à obediência e à lealdade” -, ele não poderia retirar sua lealdade “por causa da
tendência do mercado de ações” (JODL apud GILBERT, 1995, p. 322). Dessa forma, sua
118
Aqui, Jodl provavelmente está fazendo uma crítica à postura de neutralidade da Suíça durante a Segunda
Guerra Mundial.
350
lealdade não poderia ser comprada e não flutuava de acordo com o balanço das
modificações políticas.
De maneira análoga, Keitel relata que nunca havia presenciado nenhum tipo de
resistência ou insubordinação por parte de outros oficiais “quando Hitler proclamou os
princípios da guerra ideológica e ordenou que fossem postos em prática” (BS, 10, p. 624).
Sobre sua própria posição, ele diz a Goldensohn:
Depois que as coisas ficaram ruins e houve reveses, eu disse para mim mesmo:
onde estou, estou. Só se pode ser morto num lugar. Não está certo ser obediente
apenas quando as coisas andam bem. É muito mais difícil ser um soldado bom
e obediente quando as coisas vão mal e os tempos são difíceis. Obediência e
confiança nesses tempos são uma virtude (KEITEL apud GOLDENSOHN,
2005a, p. 211).
A palavra ‘putsch’ tem sido usada com frequência neste tribunal por uma
grande variedade de pessoas. É fácil dizê-lo, mas acredito que seria preciso
perceber o tremendo significado de tal atividade.
A nação alemã estava envolvida em uma luta de vida e morte. Estava cercado
por inimigos quase como uma fortaleza. E é claro, para manter o símile da
fortaleza, que cada distúrbio de dentro, sem dúvida, teria afetado nosso poderio
militar e poder de combate. Qualquer um, portanto, que viole sua lealdade e
seu juramento para planejar e tentar derrubar durante tal luta pela
351
O caso das Forças Armadas possui uma diferença fundamental, visto que, como
membros do exército, esses homens eram passíveis de um julgamento militar – ainda que
tal julgamento nunca tenha ocorrido durante o Terceiro Reich. É válido mencionar, ainda,
que outros membros da burocracia que não eram parte da SS e que se recusaram a
participar dos esforços de guerra foram apenas afastados por Hitler, como é o caso de
Konstantin von Neurath, o Ministro das Relações Exteriores até 1938, que, como vimos,
352
após repetidos pedidos de remoção de seu cargo foi finalmente substituído por Reinhard
Heydrich em 1941. Dessa maneira, a resistência era menos “inadmissível” ou
“impossível”, e mais “impensável”. Como reforça Todorov, o que une o extremo e o
ordinário é o fato de a maioria das pessoas escolherem seus valores vitais e a
autopreservação. Entretanto, “mesmo que isso tenha acontecido tão pouco, e mesmo que
se tratasse de um único caso, seria o suficiente para testemunhar que o homem pode ser
interiormente mais forte que seu destino” (TODOROV, 1995, p. 52).
Soldados políticos
Apesar de Keitel ter expressado perfeitamente bem que a guerra nazista era uma
guerra ideológica, Alfred Jodl, seu subordinado, por outro lado, não compreendia a
relação entre suas crenças e a ideologia nazista. O militar afirma, por exemplo, de maneira
muito similar ao defensor fiel Julius Streicher, que sua visão sobre os judeus era apenas
a declaração de fatos históricos. Ainda que ele acreditasse que “nenhum Partido, nenhum
Estado, nenhum povo e nenhuma raça, nem mesmo os canibais, são bons ou maus em si
mesmos, mas apenas o indivíduo”, ele também sabia que “o judaísmo, depois da guerra
e na desintegração moral que apareceu após a Primeira Guerra Mundial, veio à tona na
Alemanha de uma forma mais provocativa”. Isso, entretanto, não era uma convicção fruto
de incessante propaganda antissemita, pelo contrário: “esses eram fatos, que foram muito
lamentados pelos próprios judeus” (BS, 15, pp. 285-286).
Karl Dönitz é o que traça uma linha divisória decisiva e definitiva entre
militares e políticos – no Terceiro Reich e em Nuremberg. Ele declara a Gilbert: “foram
esses políticos que levaram os nazistas ao poder e começaram a guerra! Foram eles que
provocaram esses crimes repugnantes, e agora temos que nos sentar no banco dos réus
com eles e dividir a culpa!”. Por fim, para o almirante “há duas classes de pessoas nesse
banco dos réus: soldados e políticos” (DÖNITZ apud GILBERT,1995, p. 358). Após a
defesa do No-man do tribunal, Hjalmar Schacht, Dönitz, indignado, afirma que “esses
políticos não precisam subir em um cavalo tão alto”, afinal, “não foram os soldados e
marinheiros, mas os eleitores e políticos que colocaram Hitler no poder, e, se ele se
mostrou um homem mau, não é nossa culpa. Não tínhamos nada a dizer sobre declarar
guerra, só tínhamos que lutar nessa guerra” (DÖNITZ apud GILBERT, 1995, p. 290). A
decisão de entrar em guerra não foi sua nem dos militares, e sim do Führer e de outros
membros do regime nazista – e, por esse motivo ele não se importava com as motivações
por detrás daquela guerra, tampouco com os meios que eram necessários para que a
Alemanha a vencesse. Por fim, a disputa conceitual entre “guerra de agressão”, tal como
constava na acusação, e “guerra defensiva”, tal como defendida por diversos nazistas no
banco dos réus, lhe parecia totalmente irrelevante: “a guerra agressiva ou defensiva é uma
decisão política e, portanto, não tem nada a ver com considerações militares” (BS, 13, p.
250).
Para Goldensohn, Dönitz também reforça: “Eu não sou um político. Eu era um
capitão de um pequeno navio quando a guerra começou. Eu mal conhecia Hitler até 1942.
Ele sempre me pareceu razoável e suas exigências pareciam ser para o bem da
Alemanha”. O almirante afirma que havia descoberto a terrível verdade sobre o
extermínio em Nuremberg, mas reitera que, enquanto cumpria suas funções no Terceiro
Reich, só lhe cabia esse exercício. Hitler disse a ele que “cada homem deveria cuidar das
suas próprias tarefas” e as dele eram “os submarinos e a Marinha” (DÖNITZ apud
GOLDENSOHN, 2005b, p. 9). Não havia espaço para o pensamento e a reflexão, somente
para o cumprimento do dever. Mesmo se ele ouvisse qualquer coisa com relação ao
extermínio dos judeus, isso não era da sua conta, afinal, como ele declara: “eu estava
muito preocupado com os submarinos e os problemas navais para me preocupar com os
judeus” (DÖNITZ apud GOLDENSOHN, 2005b, p. 11). É claro que, olhando em
retrospectiva, era fácil observar e pontuar os erros. Para Dönitz, contudo, as coisas
deveriam ser analisadas de acordo com o que era percebido na época em que estavam
354
Esse “comandante desafortunado” explica sua relação com Adolf Hitler a fim
de reforçar seu desligamento com preocupações políticas e ideológicas:
Keitel, que como veremos, queria lutar até o fim, mesmo quando nem sequer o
Führer queria dar continuidade a guerra, também tenta se colocar como um homem
apolítico e que estava apenas interessado nas atribuições específicas de seu cargo. Ele
355
afirma que “os escritórios militares não deveriam ter autoridade para decidir essa questão
[da capitulação] e não estão em condições de fazê-lo” e que “essas decisões não são tarefa
do soldado, mas unicamente do estadista” (BS, 10, p. 499). Ele, que sempre se considerou
um soldado e não “um soldado político ou um político”, conclui seu argumento
provocando a promotoria que lhe questiona se ele obedecia a Hitler “não porque o dever
o chamava, mas por causa de suas próprias convicções”: “Afirmei aqui que fui um
soldado leal e obediente do meu Führer. E não creio que existam generais na Rússia que
não prestem obediência implícita ao marechal Stalin” (BS, 10 p. 626). Ao fim e ao cabo,
“seja culpa ou obra do destino”, uma coisa estava certa para Keitel: “é impossível deixar
o subordinado assumir a culpa e negar a própria responsabilidade” (KEITEL apud
GILBERT, 1995, p. 245). E o Führer havia deixado muito claro que seus generais eram,
e sempre seriam, seus subordinados, e, sobre isso, o réu ainda se recordava das palavras
do líder. Keitel conta a Goldensohn que Hitler havia lhe dito: “Exijo três coisas de meus
oficiais e generais. Um, habilidade para sua posição; dois, que me relatem a situação com
sinceridade; e três, eles devem ser obedientes” (KEITEL apud GOLDENSOHN, 2005b,
p. 167).
O exército, portanto, por meio de um decreto assinado por Keitel em 1941, tinha
carta branca no território oriental porque partia-se da premissa que o inimigo era hostil
por definição, uma vez que era hostil biologicamente. Por esse motivo, a guerra se tornou
total, não restando resguardo para os civis e as “as tropas eram obrigadas a administrar a
justiça por conta própria, no local e sem demora”. Esse decreto expandiu a jurisdição
militar e autorizou “medidas de violência coletiva” contra qualquer “localidade” suspeita.
Os civis não tinham direito à proteção legal, enquanto os soldados da Wehrmacht, pelo
contrário, basicamente só possuíam direitos: “a única exceção a esse estado permanente
de exceção legal era para o próprio exército alemão: ações legais eram tomadas se e
somente se o ato em questão representasse um perigo para o exército” (CHAPOUTOT,
2018, p. 252). A definição de inimigo abarcava toda a população das regiões ocupadas
no Leste, afinal, aquele território era, por si só, uma ameaça ao povo ariano: “as terras
selvagens do Oriente eram povoadas por bárbaros e não podiam estar sujeitas às mesmas
regras que a Europa Central ou Ocidental” (CHAPOUTOT, 2018, p. 253). Colocando a
população civil em uma categoria de inimigo baseada em uma substância biológica, os
357
mortos devido às condições adversas do front. A solução dada por Hitler foi o avanço
para Stalingrado, em 12 de setembro de 1942, que era um centro industrial importante,
além de ser um ponto de distribuição de suprimentos do Cáucaso e para o Cáucaso.
Stalingrado demonstrou, acima de tudo, o descaso de Hitler com suas próprias tropas.
Apesar de não terem morrido congelados como no ano anterior, os alemães padeciam
com a escassez de comida e com as precárias condições a que estavam submetidos. Os
soldados tiveram que se sujeitar a comer carne de cavalo para lutar contra a fome
constante e acabaram contraindo diversas doenças em virtude dessa combinação de
fatores debilitantes. Em fins de janeiro de 1943, Hitler ainda negava os pedidos de
rendição do comandante encarregado, Friedrich von Paulus, utilizado como testemunha
da acusação em Nuremberg. Uma ordem foi emitida em 28 de janeiro de 1943 declarando
que “doentes e feridos deveriam ser deixados a morrer de fome”. Como reforça Evans,
“com efeito, as tropas alemãs estavam padecendo do mesmo destino que Hitler havia
planejado para os eslavos” (EVANS, 2014b, p. 477). Os alemães se renderam em 2 de
fevereiro, contabilizando mais de 200 mil mortos e 235 mil presos (EVANS, 2014b, p.
480).119
119
Esse parágrafo foi adaptado da minha dissertação de mestrado. Ver: (VISCONTI, 2017b, p. 152–154).
Sobre Stalingrado, ver o post do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT):
https://www.instagram.com/p/CZejxwetv2s/ (Acesso em 10/10/2022)
359
percorreu ao longo dos anos. Em seu livro O Hitler da história, John Lukacs reitera que
a partir da década de 1950, houve uma tendência na historiografia de se considerar o
stalinismo, e sua consequente, porém errônea, identificação com o comunismo, como
mais perigosos do que o nazismo de Hitler. Colocar o nazismo como uma versão mais
branda do stalinismo deu origem a chamada teoria das duas guerras, que, de acordo com
Lukacs, entendia que a guerra do Terceiro Reich contra as democracias ocidentais deveria
ter sido evitada, porém, a guerra da Alemanha, como uma defensora da civilização
ocidental, contra a Rússia soviética, deveria ser compreendida. O historiador reitera que
essa disposição “equivalia (e ainda equivale) pelo menos ao perdão parcial do povo
alemão e de seus exércitos durante a Segunda Guerra Mundial, embora não de Hitler”
(LUKACS, 1998, p. 23).
Essa tendência perdurou até fins de 1980, com a chamada “Batalha dos
historiadores” (Historikerstreit), quando Ernst Nolte lançou o artigo The past that won’t
go away, em que tentava entender o nazismo alemão como uma reação ao bolchevismo
russo, de modo que os horrores do sistema de campos de concentração soviéticos teriam
precedido e até mesmo levado aos de Auschwitz. Os historiadores Andreas Hillgruber e
Joachim Fest reiteraram que esse tipo de disputa historiográfica foi motivada, em muitos
sentidos, por uma tentativa de reabilitação das Forças Armadas alemãs durante a Segunda
Guerra – ou seja, um esforço de positivação e de construção de uma narrativa heroica
sobre a Wehrmacht (LACAPRA, 1992).
Essa querela historiográfica nos mostra como existiu, de muitas maneiras, uma
separação entre os crimes nazistas e o exército alemão; partes da mesma moeda que não
se encontram, entidades separadas. Não há a menor dúvida nem na historiografia nem no
imaginário popular acerca da culpa das tropas de assalto nazistas, as tão temidas SS e
todos os seus ramos – sobretudo os Einsatzgruppen, o esquadrão da morte comandado
pela SS, responsável pela execução em massa durante a guerra nos territórios ocupados,
e os Sonderkommandos, unidades especiais da SS encarregadas de tarefas específicas,
incluindo o extermínio, deportação e encobrimento de evidências do extermínio. A
magnitude do Holocausto não nos deixa questionar essas unidades pessoalmente e
diretamente responsáveis pelo genocídio. No entanto, a pergunta paira no ar: e o exército?
causando revolta entre os historiadores nas redes sociais.120 É razoável inferir que ainda
na atualidade parece não haver um consenso sobre essa possível – ou impossível –
separação entre o exército e o Terceiro Reich. Defender essa fragmentação pode significar
a adesão a outras agendas perigosas, no entanto, a busca pelo distanciamento é antiga: em
1946, em Nuremberg, os nazistas já estavam reivindicando essa redenção das Forças
Armadas. Como muitos dos réus fizeram parte de algum grau do escalão do exército, era
de seu interesse demonstrar como servir ao regime nazista era similar a servir a qualquer
outro regime. A obediência ao país acabava sendo conveniente em suas justificativas, que
esbarram com frequência na própria responsabilidade dos militares no extermínio em
muitos locais da extensão do Reich.
120
Sobre o caso, ver: https://exame.com/brasil/exercito-brasileiro-homenageia-major-alemao-que-
defendeu-exercito-nazista/ (Acesso em 09/10/2022)
361
não poderia fazer nada além de obedecer (BS, 10, p. 482). Afinal, “se Hitler ordenou, isso
era bom o suficiente para mim” (KEITEL apud GILBERT, 1995, p. 108).
Ainda que se próprio advogado de defesa, Dr. Nelte, o questione: “Mas você
não é apenas um soldado, você também é um indivíduo com vida própria”, Keitel não
conseguia enxergar nenhuma relação do seu trabalho com as suas convicções. Durante
toda sua carreira militar, ele foi “criado, por assim dizer, no velho conceito tradicional de
que nunca se discutia essa questão”. Dessa maneira, mesmo que ele tivesse sua vida
própria e sua opinião sobre um determinado assunto, “no exercício de suas funções
profissionais como soldado e oficial, o indivíduo abandonou essa vida, entregou-a”.
Como ele abandonou essa vida e esse mundo onde ele poderia ter suas próprias opiniões
e considerações, “nem na época e nem depois” ele sequer tinha dúvidas sobre “questões
de discrição puramente política”, uma vez que ele era um soldado, e, por isso, se reservava
no “direito de confiar em sua liderança estatal”, sendo “obrigado a fazer seu dever e
obedecer” (BS, 10, pp. 499-500). Para Gilbert, ele afirma, categoricamente: “Sou soldado
há 40 anos e esse é o único código que conheço” (KEITEL apud GILBERT, 1995, p.
327).
Jodl, assim como Keitel, ainda manteve “sentimentos humanitários”, mas isso
não o impediu de cumprir suas ordens “na medida em que era absolutamente necessário
por razões militares” (BS, 15, p. 498). E, ainda que tivesse algumas reservas com relação
à alguns procedimentos no Leste, o réu queria deixar claro um princípio básico de sua
362
Para Karl Dönitz também não havia dúvidas: sua nomeação para seu cargo na
marinha representava uma ordem que ele tinha que obedecer, “tal como tinha de obedecer
a todas as outras ordens militares, a não ser que por motivos de saúde não pudesse fazê-
lo”. Ele acreditava que poderia ser útil à marinha alemã, e, “naturalmente” aceitou “esse
comando com convicção interior. Qualquer outra coisa teria sido deserção ou
desobediência” (BS, 13, p. 299). O caso de Dönitz é interessante para analisar a questão
da obediência justamente porque ele próprio faz uma divisão de suas responsabilidades
por conta da diferenciação de suas funções ao longo dos anos. Sendo assim, para o
almirante, enquanto ele era um soldado, ele só podia obedecer a ordens. No entanto,
quando Hitler morreu e ele se tornou o chefe de Estado, então, as decisões eram somente
suas. Dönitz se encontra, portanto, nos dois lados do espectro: primeiro, o que obedece,
e, depois, o que manda. Ele explica:
Essa divisão estava tão clara para ele, que Dönitz sequer enxergava o Terceiro
Reich como uma ditadura militar: “Não se pode dizer ‘ditadura militar’. Não era uma
ditadura. Havia um setor militar e um setor civil, e ambos os componentes estavam unidos
nas mãos do Führer” (BS, 13, p. 321). O almirante estava, portanto, em perfeito
alinhamento com a declaração de um alemão ainda na década de 1930: “Vemos nele [no
Führer] o símbolo da força vital indestrutível da nação alemã, que em Adolf Hitler
adquiriu forma viva” (KERSHAW, 2001, p. 72). Nesses setores, bem separados, porém
unidos pelo Führer, Dönitz reitera que nenhum dos participantes tinha uma imagem
abrangente. “Em vez disso”, ele declara, “cada um tinha uma visão clara de seu próprio
departamento pelo qual era responsável. Uma imagem geral na mente de qualquer um
363
dos participantes está fora de questão. Só o Führer tinha isso” (BS, 13, p. 327). Apesar de
ser questionado pelo Coronel Pokrovsky como ele poderia “conciliar essas duas
declarações extremamente contraditórias” (BS, 13, p. 397), Dönitz não se abala: “Eu faria
exatamente a mesma coisa novamente hoje. Essa é a minha posição” (BS, 13, p. 344).
Colapso
Imagem 7121
121
Planta do extenso sistema de bunkers sob o terreno da Chancelaria do Império. Imagem retirada de
(FEST, 2005, p. 28)
366
Sobre este esclarecimento, percebo que muitas ordens e notas que escrevi sobre
documentos encontrados e ordens que transmiti devem parecer
incompreensíveis para terceiros, para estranhos e principalmente para
estrangeiros. Para encontrar uma explicação para isso, devo dizer que você
tinha que conhecer o Führer, que você tinha que saber em que ambiente eu
trabalhei, dia e noite, durante anos; você não deve deixar de considerar
exatamente quais foram as circunstâncias em que esses eventos ocorreram.
Muitas vezes testemunhei aqui que queria dar expressão aos meus escrúpulos
e objeções, e o fiz. O Führer então avançava argumentos que lhe pareciam
decisivos e ele o fazia à sua maneira, devo dizer, contundente e convincente,
expondo as necessidades militares e políticas e fazendo sentir sua preocupação
com o bem-estar de seus soldados e sua segurança, bem como sua preocupação
com o futuro de nosso povo. Devo dizer que, por isso, mas também pela
emergência cada vez maior, militarmente falando, em que nos encontrávamos,
convenci-me e muitas vezes deixei-me convencer da necessidade e justificativa
de tais medidas. Assim, eu transmitia as ordens dadas e as promulgava sem me
deixar dissuadir por quaisquer possíveis efeitos que pudessem ter. Talvez isso
possa ser considerado uma fraqueza e talvez eu seja acusado da mesma culpa.
Mas, de qualquer forma, o que eu disse é a verdade. Durante o interrogatório
de Sir David, eu mesmo admiti e reconheci que muitas vezes tive sérios
conflitos de consciência e que muitas vezes me encontrei em uma posição em
que eu mesmo, de uma forma ou de outra, era capaz de extrair as consequências
dessas questões. Mas nunca me passou pela cabeça revoltar-me contra o chefe
de Estado e o Comandante Supremo das Forças Armadas ou recusar-lhe
obediência. No que me diz respeito, e como soldado, a lealdade é sagrada para
mim. Posso ser acusado de ter cometido erros, e também de ter mostrado
fraqueza ao Führer, Adolf Hitler, mas nunca se pode dizer que fui covarde,
desonroso ou infiel. Isto é o que eu tinha a dizer (BS, 11, pp. 26-27).
homens como Keitel com facilidade olhavam para o outro lado e se permitiam enxergar
apenas o que era sagrado para eles: a lealdade e a obediência que cabiam a um soldado.
Em meio ao colapso, para Keitel, a fatalidade maior não era os alemães que estavam
inutilmente morrendo em um front há muito tempo derrotado: a grande catástrofe era que
o líder ordenou que eles parassem de lutar. E ele, como os outros militares apartidários,
se viu em um impasse: obedecer, uma ação que quase fazia parte de seu organismo, tão
natural lhe parecia; ou, desobedecer e atender a uma outra demanda que sempre se
mostrou legítima e, em muitos sentidos, eterna: a urgência e a necessidade da luta. Se a
guerra era a lei da vida e o nacional-socialismo e Hitler eram o direcionamento de suas
existências, o fim da Segunda Guerra Mundial e a consequente queda do Terceiro Reich
deixou esses homens sem lugar no mundo. O que restava em Nuremberg para esses
soldados cansados era a reflexão por suas ações e a possível percepção da culpa pelos
crimes do regime nazista. A morte, talvez não percebessem ainda,122 fosse um alívio para
suas consciências.
122
Podemos nos questionar se Erich Raeder tinha essa percepção, já que, apesar de ter sido condenado à
prisão perpétua, solicitou ao tribunal que o veredito fosse substituído pela pena de morte.
368
Conclusão
És o que fizeste
123
Tomás de Torquemada (1420-1498), conhecido como “o Grande Inquisidor”, foi Inquisidor-Geral
espanhol, responsável pela cruzada contra judeus e muçulmanos convertidos na Espanha.
370
proeminência e representatividade, e, portanto, não por acaso, os réus pareciam ser a face
do Terceiro Reich: uma lista “composta por homens que desempenharam papéis
indispensáveis e recíprocos nessa tragédia” (BS, 19, p. 426). Entretanto, não é necessário
uma análise muito rigorosa para perceber que esses homens foram “selecionados de
maneira um tanto insincera principalmente por sua notoriedade (ou das organizações que
representavam)” (PRIEMEL, 2016, p. 405). Por esse motivo, partindo de preconceitos da
época – e que seguem sendo muito atuais –, os juízes, muitas vezes, julgaram esses
homens baseado no que acreditavam que aquela classe social representava. Nuremberg
foi, de maneira inédita, um tribunal que foi feito por vencedores, mas, de maneira regular,
com sentenças proferidas por homens comuns. Os juízes eram “normais e, portanto,
imprevisíveis e sujeitos a preconceitos”, demonstrando de muitas maneiras como “tais
tribunais para crimes de guerra são de pequeno valor real para se lidar com as transições
entre a guerra e a paz” (SMITH, 1979, p. 324).
De fato, Nuremberg tem sido visto, com relação ao aspecto legalista, de duas
formas: ou como uma história triunfante ou como um conto de fracasso. Como aponta
Kim Priemel, alguns pesquisadores reforçam o pioneirismo de Nuremberg e traçam uma
linha direta entre esse tribunal e outros tribunais internacionais, como o Tribunal de
Haia,124 “enquanto outros deploram a inconsequência de muitos vereditos, o abandono
quase instantâneo dos Aliados de seus próprios princípios ou, de forma mais geral, a
inaptidão da lei em lidar com a complexidade histórica” (PRIEMEL, 2016, p. 402). Ainda
que coloquemos essas duas visões em perspectiva, está claro que nenhuma delas “são
particularmente úteis para entender a formação e evolução do programa de julgamento
ou suas implicações para a justiça criminal internacional atual” (PRIEMEL, 2016, p. 402).
124
O Tribunal Internacional de Justiça é localizado no Palácio da Paz em Haia, nos Países Baixos, sendo
conhecido por Tribunal de Haia. É um órgão da justiça ligado à Organização das Nações Unidas (ONU)
fundado em 1945 com o objetivo de julgar casos relacionados à justiça internacional.
371
diz Smith, “e a única coisa que serviu de barreira à ação direta foi a perspectiva de que as
Grandes Potências tratariam da tarefa maior, mediante processo legal” (SMITH, 1979, p.
322). Era do interesse dos Aliados tentar manter minimamente a ordem naquele momento
após a Segunda Guerra Mundial. Mais ainda, parecia imperativo traçar linhas firmes e
claras do que era aceitável e do que não era aceitável nessa nova forma de guerra moderna.
E, assim, os conceitos de genocídio e de crime contra a humanidade aparecem como
aparatos discursivos e como ferramentas jurídicas.
De uma coisa podemos ter certeza. O futuro nunca terá que perguntar, com
receio, o que os nazistas poderiam ter dito a seu favor. A história saberá que
tudo o que poderia ser dito, eles foram autorizados a dizer. Eles receberam o
tipo de Prova que eles, nos dias de seu pomposo poder, nunca deram a nenhum
homem.
Mas justiça não é fraqueza. A extraordinária imparcialidade dessas audiências
372
Os nazistas foram autorizados a usarem sua própria voz para sua defesa. No
entanto, fornecer o palco para que esses homens pudessem explicar suas motivações não
os exime de culpa alguma. Pelo contrário, para os Aliados, isso fazia com que o caso da
acusação se tornasse ainda mais substancial. As justificativas dos réus, pautadas nesse
substrato cultural comum (INGRAO, 2015), nesse passado estabelecido na promessa de
um mundo a ser feito ariano (LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002), tornaram os
crimes ainda mais perceptíveis para a promotoria. Foi na rejeição dessa ideologia pelo
mundo exterior que os nazistas perderam a força argumentativa. Afinal, naquele
momento, e até mesmo durante o Terceiro Reich, existia uma “pressão exercida pelo
mundo exterior sobre os regimes totalitários — pressão que não é possível ignorar
totalmente mesmo atrás da ‘cortina de ferro’” (ARENDT, 1989, p. 392–393). Ainda
profundamente influenciados por essa “cortina de ferro”, os nazistas tiveram sua chance
de apresentar quem eram e por que eram como eram. Essa apresentação, entretanto,
serviu como evidência dos perigos de uma ideologia pautada em um propósito de
construção de um novo mundo por bases raciais. E, por isso, tanto a ideologia quanto os
atos advindos dessa ideologia, se tornaram criminosos – disso, não há dúvida.
o julgamento por expressarem suas opiniões, utilizaram esse palco final como o momento
de oferecer ao mundo uma declaração que, finalmente, não seria interrompida. Essas
últimas narrativas apenas reforçam a postura que os réus tiverem ao longo dos
procedimentos e tornam a definição dos arquétipos da tese ainda mais perceptíveis. Nesse
momento, essas categorias são percebidas até mesmo pela promotoria. Nas palavras de
Robert Jackson, “há certas linhas de defesa comuns a tantos casos que merecem alguma
consideração” (BS, 19, p. 419). A seguir, iremos caminhar em meio a essas narrativas e
oferecer alguma consideração sobre essas linhas de defesa.
Defensores fiéis
125
Os subtítulos ao lado dos nomes dos réus nessa seção representam a forma como os nazistas foram
descritos pelo promotor estadunidense Robert Jackson na sua conclusão (summations) do caso da acusação.
Em alguns poucos casos foi necessária uma pequena adaptação de linguagem, quando Jackson descrevia
os crimes sem inserir necessariamente um adjetivo para o indivíduo. Julgo que essas mínimas adaptações
não prejudiquem os valiosos insights que essas percepções da acusação nos trazem. O discurso original
pode ser consultado em: BS, 19, pp. 415-417.
374
no Führer e, sob seu governo autoritário, não teve influência nos acontecimentos”. O
“povo, leal, abnegado e corajoso, lutou e sofreu durante a luta de vida ou morte que
irrompeu contra sua vontade” e fizeram tudo isso sem ter “conhecimento dos graves
crimes que se tornaram conhecidos hoje”. Estava claro, portanto, que “o povo alemão está
livre de culpa” (BS, 22, p. 368).
Mantendo a perspectiva de que o Terceiro Reich era apenas uma das formas
possíveis de organização política, Göring, como um bom defensor fiel, por fim, declara:
“defendo as coisas que fiz (I stand up for the things that I have done), mas nego
enfaticamente que minhas ações tenham sido ditadas pelo desejo de subjugar povos
estrangeiros por guerras, assassiná-los, roubá-los ou escravizá-los ou cometer atrocidades
ou crimes”. Esse homem que, nas palavras de Gustave Gilbert, possuía “valores
medievais” recorda ao tribunal que o seu código de conduta era, e sempre seria, a honra
e a lealdade. Disso, ele não abria mão: “O único motivo que me guiou foi meu amor
ardente por meu povo, sua felicidade, sua liberdade e sua vida. E para isso convoco o
Todo-Poderoso e meu povo alemão para testemunhar” (BS, 22, p. 368).
É válido ressaltar que não foi apenas Jackson que definiu Hermann Göring
como um gângster. Essa também era a visão de outros participantes do julgamento, como
um representante do Ministério do Exterior britânico que, durante os interrogatórios,
descreveu o réu como um “gângster despudorado e não arrependido” (SMITH, 1979, p.
193). Como vimos, seu caso era o mais proeminente da acusação, afinal, ele era o Homem
Número Dois do Reich. Consciente da representatividade de seu caso, durante os
procedimentos, e, até o final, não parecia haver outro recurso para Göring “senão o de
assumir o papel de defensor do regime e usar seus talentos para manter em ordem os
outros réus e arrumar, com isso, a melhor defesa possível do sistema nazista” (SMITH,
1979, p. 193–194). E assim esse homem “adepto do realismo político acima de tudo”
(SMITH, 1979, p. 192) recebeu a esperada sentença de morte. Göring foi capaz,
entretanto, de ditar o final de sua vida, assim como havia ditado sua trajetória ao longo
do regime nazista. O Homem Número Dois, assim como o Homem Número Um, se
suicidou antes que os Aliados conseguissem assassiná-lo. Ao fim, Göring continuava
seguindo os passos de Adolf Hitler e, mesmo na morte, permaneceu no segundo lugar.
Possivelmente por estar consciente de como era desprezado pelos outros réus e
375
pelos membros do tribunal, Julius Streicher mantém sua última declaração focada nas
acusações individuais e específicas de seu caso e reafirmando que não era responsável
pelo extermínio. Ele era apenas um articulador das massas que pregava pelo sionismo.
Afinal, em sua perspectiva, ele não havia cometido crime algum, nem como Gauleiter e
nem como autor político. Suas últimas palavras são uma defesa pela sua atuação, que, até
aquele momento, ele considerava justa e correta. Streicher conclui seu caso argumentando
que não tinha nenhum pedido a fazer para si: “Tenho um [pedido] para o povo alemão de
onde venho. Meritíssimo, o destino deu-lhe o poder de pronunciar qualquer julgamento.
Não pronuncie um julgamento, Meritíssimo, que imprimiria a marca da desonra na testa
de uma nação inteira” (BS, 22, p. 387). Como um defensor fiel, Streicher estava disposto
e pronto para receber o maior dos castigos se isso significasse que a Alemanha saísse ilesa
daquele julgamento.
Estava claro para todos que Streicher “não se sentou no banco dos réus em
Nuremberg em razão de seu poder, mas por causa de sua notoriedade”. Definido por
Rebeca West como “um velho obsceno – da ‘espécie que causa distúrbios em lugares
públicos”, o caso de Streicher, de acordo com Smith, foi caracterizado pelo preconceito
com relação à sua figura (SMITH, 1979, p. 218). O réu representava o antissemitismo
pornográfico e militante do regime nacional-socialista e, além de tudo, era “uma criatura
extremamente desagradável e um tanto louca” (SMITH, 1979, p. 219). A força de seu
caso estava no próprio Streicher e, muito mais pela sua reputação do que por seus crimes
individuais, o réu foi condenado à morte e executado.
E agora provavelmente ainda devo uma explicação sobre minha atitude para
com Adolf Hitler. Visto que ele via a medida de todas as coisas apenas em si
mesmo, ele se mostrou incapaz de cumprir uma tarefa decisiva para o povo
alemão, ou melhor, para a própria Europa, ou foi um homem que lutou, embora
em vão, até o ponto de cometer excessos inimagináveis, contra o curso de um
destino inexorável? Para mim, ele continua sendo o homem que fez da Grande
Alemanha um fato na história alemã. Eu servi este homem. E agora? Hoje não
posso gritar ‘Crucifique-o’, porque ontem gritei ‘Hosana’ (BS, 22, p. 405).
Sendo assim, para Seyss-Inquart, Hitler fora o homem que tornara o sonho
ariano realidade. E, por isso, ele não conseguia lhe virar as costas. As últimas palavras
de Seyss-Inquart em sua defesa foram sobre “o princípio pelo qual sempre agi e ao qual
aderirei até meu último suspiro: ‘Eu acredito na Alemanha’” (BS, 22, p. 405). Por fim, o
377
nazista foi condenado por “um argumento muito mal costurado e bem pouco convincente”
(SMITH, 1979, p. 256) e por sua representatividade da destruição da Europa Ocidental
pelos nazistas. Seyss-Inquart foi condenado à morte gritando “Hosana”, esse grito de
adoração em reconhecimento do caráter messiânico de Jesus Cristo – ou, nesse caso, de
Adolf Hitler. Seu princípio norteador fora, e continuara sendo, a crença na Alemanha
como uma nação superior à todas as outras, e, por isso, merecedora de dominar o resto da
Europa.
Franz von Papen, em seu último discurso, não poupa esforços para reforçar a
imagem que o tribunal havia construído sobre sua figura: ele “era homem muito mundano
e aristocrático para que o confundissem com a massa dos camisas-parda” (SMITH, 1979,
p. 302). Como um bom diplomata da velha guarda, ele apela para o seu inerente
patriotismo naquela época tão difícil para a Alemanha. “Naqueles dias de infortúnio do
meu país”, diz Papen, “eu acreditava, como um alemão responsável, que não tinha direito
de ficar inativo à margem” (BS, 22, p. 400). Por esse motivo, ele precisava agir, na
esperança vã de que seria possível colocar freios no nacional-socialismo e em Adolf
Hitler. Entretanto, naquele momento estava claro que “o poder do mal era mais forte que
o poder do bem e levou a Alemanha inevitavelmente à catástrofe”. Para Papen isso não
era motivo para “condenar aqueles que mantiveram a bandeira da fé hasteada na luta
contra a descrença” e não dava direito a Sir Hartley Shawcross de dizer com desprezo
que o diplomata “preferiu reinar no Inferno a servir no Céu” (BS, 22, p. 401).
Este Tribunal Superior enfrenta esta tarefa infinitamente difícil sem ainda ter
378
126
Jackson utiliza a expressão “the old school diplomat”, ao passo que Gustave Gilbert utiliza “gentleman
of the old school” para descrever Franz von Papen. A adaptação dessas duas expressões acabou sendo o
nome que escolhi para o arquétipo desses homens: diplomatas da velha guarda.
379
Negacionistas relapsos
Sauckel era o único operário entre os réus e suas origens fazem parte de sua
argumentação. Em seu último discurso, ele reforça que tinha consciência de onde vinha:
“Venho de um nível social completamente diferente dos meus camaradas acusados
comigo. Na minha natureza e pensamento, permaneci um marinheiro e um trabalhador”
(BS, 22, p. 396). Apesar da aparente humildade, Sauckel não poupa palavras, tendo uma
das narrativas mais longas desse momento final dos réus em Nuremberg. Defendendo sua
adesão ao nacional-socialismo pelo seu programa partidário que olhava para os
trabalhadores, Sauckel afirma que os princípios do movimento não tinham “nenhuma
contradição com as leis da humanidade” e que não reconheceu, a princípio, “nenhuma
ditadura arbitrária ou tirania no princípio de líderes e seguidores leais”. Em sua
perspectiva, seu erro havia sido o excesso de confiança em Hitler, alguém que ele
venerava: “Eu o conhecia apenas como o defensor dos direitos do povo alemão à
existência e o via como o homem que era gentil com trabalhadores, mulheres e crianças
e que promovia os interesses vitais da Alemanha”. Infelizmente, “o Hitler deste
Julgamento eu não pude reconhecer. Talvez minha solidão e submersão no mundo da
minha imaginação e do meu trabalho fossem outro defeito” (BS, 22, p. 397).
O Führer que lhe fora apresentado era alguém cruel que cometeu atrocidades
nunca vistas na história mundial. Entretanto, ele, como um homem trabalhador, só se
preocupava com seus funcionários e seus camaradas da mesma classe social, de modo
que ele não poderia saber de nada. Aos seus olhos, empregar trabalhadores estrangeiros
era uma necessidade, e não uma forma de escravidão. Afinal, a escravidão era algo que
nenhum alemão toleraria. Esse negacionista relapso segue se apresentando como um
homem simples e que desconhecia os princípios básicos do regime do qual fazia parte.
Por fim, Sauckel declara: “eu mesmo estou preparado para enfrentar qualquer destino que
381
a Providência tenha reservado para mim, assim como meu filho, que foi morto na guerra”.
Esse trabalhador finaliza seu discurso com um apelo: “Deus proteja meu povo, a quem
amo acima de tudo, e que o Senhor Deus abençoe novamente o trabalho dos trabalhadores
alemães, aos quais toda a minha vida e esforço foram dedicados, e que Ele dê paz ao
mundo” (BS, 22, p. 399).
Em suas últimas palavras, Walther Funk apela para a noção de lealdade à sua
pátria, atrelada à legalidade do movimento nacional-socialista. A Alemanha estava,
sobretudo durante a guerra, ameaçada “ao extremo”, e ele sabia que “na guerra, o Estado
depende absolutamente da lealdade e fidelidade de seus oficiais”. Funk era um desses
homens leais e fiéis. O que prevalece neste momento de sua narrativa, assim como durante
382
No-man x Yes-man
Seu erro político havia sido, infelizmente, “não perceber a extensão da natureza
criminosa de Hitler a tempo”. Que ficasse claro, entretanto, que ele nunca, sob nenhuma
hipótese, havia manchado suas mãos “com um único ato ilegal ou imoral”. Afinal, “o
terrorismo da Gestapo não me assustava. Pois o terrorismo deve sempre fracassar diante
do apelo à consciência” (BS, 22, pp. 389-390). O nazista antinazista era, portanto, a voz
da consciência da Alemanha dizendo “não” a Adolf Hitler. Schacht finaliza seu discurso
com uma reflexão: “Estou abalado nas profundezas da minha alma pelo sofrimento
indescritível que tentei evitar com todos os meus esforços pessoais e com todos os meios
possíveis, mas que no final não consegui evitar – não por minha culpa”. Como nem
mesmo o fato de ele não ter conseguido evitar aquela tragédia poderia ser considerada
sua culpa, Schacht declara categoricamente: “portanto, minha cabeça está erguida e sou
inabalável na crença de que o mundo se recuperará, não pelo poder da violência, mas
apenas pela força do espírito e pela moralidade das ações” (BS, 22, p. 390).
como o julgamento tinha o objetivo de “descobrir a verdade histórica”, o que ficava claro
com o fim dos procedimentos, era que era possível, “apelando a fórmulas jurídicas até
então desconhecidas e ao espírito de justiça”, de certa maneira, “fugir dos problemas
cardeais de 25 anos da mais grave história da humanidade” (BS, 22, p. 373). Sua crítica
ao nacional-socialismo, no entanto, permanece superficial. Negando a hipótese da guerra
de agressão conduzida pelos nazistas, Ribbentrop reforça que, na realidade, o Terceiro
Reich estava sendo profundamente incompreendido pelo tribunal. Afinal, “uma revolução
não se torna mais compreensível se for considerada do ponto de vista de uma
conspiração” (BS, 22, p. 375).
Esse homem, visto como fraco pela sua obediência irrestrita, talvez não
pertencesse à mesma ala de outros nazistas mais proeminentes. Afinal, nem mesmo os
réus respeitavam Ribbentrop ou sua atuação. Adolf Hitler era o direcionamento de sua
existência e o desespero após o fim do Terceiro Reich fazia com que ele não enxergasse
a gravidade das acusações contra ele. Como Norman Birkett anotou em seu diário, era
como “se houvesse quebrado a mola principal de sua vida” (BIRKETT apud SMITH,
1979, p. 202). Sua “estratégia” de defesa – se é que podemos chamar assim – fez com que
ele fosse visto com ainda menos respeito por todos no tribunal. Por fim, esse homem que
sempre disse sim ao Führer foi condenado à morte e executado juntamente com outros
nazistas que não tiveram a mesma postura de defesa do líder.
385
Ex-nazistas arrependidos
Adolf Hitler, o principal réu, não deixou nenhuma declaração final ao povo
alemão e ao mundo. Em meio à mais profunda angústia de seu povo, ele não
encontrou nenhuma palavra de conforto. Ele ficou em silêncio e não cumpriu
seu cargo de líder, mas mergulhou na escuridão, um suicídio. Foi teimosia,
desespero ou rancor contra Deus e o homem? Talvez como se ele pensasse:
‘Se eu devo perecer, então deixe o povo alemão cair no abismo também.’
Quem vai saber?
Nós – e se agora uso o termo ‘nós’, então me refiro a mim mesmo e aos
nacional-socialistas que concordam comigo nesta confissão, e não àqueles
companheiros réus em nome dos quais não tenho o direito de falar – não
desejamos abandonar a nação alemã ao seu destino da mesma forma sem uma
palavra; não queremos dizer simplesmente: ‘Agora você apenas terá que ver
como pode lidar com esse colapso que deixamos para você’. Mesmo agora,
talvez como nunca antes, ainda carregamos uma tremenda responsabilidade
espiritual.
No início de nosso caminho, não suspeitávamos que nosso afastamento de
Deus pudesse ter consequências tão desastrosas e mortais e que
necessariamente nos tornaríamos cada vez mais profundamente envolvidos em
culpa. Naquela época, não poderíamos saber que tanta lealdade e disposição
de sacrifício por parte do povo alemão poderia ter sido tão mal dirigida por
nós.
Assim, ao nos afastarmos de Deus, fomos derrotados e precisávamos perecer.
Não foi por deficiências técnicas e circunstâncias desafortunadas sozinhas que
perdemos a guerra, nem foi infortúnio e traição. Antes de tudo, Deus
pronunciou e executou julgamento sobre Hitler e o sistema ao qual servimos
com mentes distantes de Deus. Portanto, que nosso povo também possa ser
chamado de volta da estrada em que Hitler – e nós com ele – os conduziu.
Rogo ao nosso povo que não continue nessa direção, nem que seja um único
passo; porque o caminho de Hitler era o caminho sem Deus, o caminho de se
afastar de Cristo e, em última análise, o caminho da tolice política, o caminho
do desastre e o caminho da morte (BS, 22, pp. 383-384).
Confiante de que a Alemanha não seria julgada pelos crimes dos nazistas, o réu
ainda tem esperança de que “de todos os horrores da guerra e de todos os
desenvolvimentos ameaçadores que já estão aparecendo em todos os lugares, talvez ainda
surja uma paz em cujas bênçãos até nossa nação possa participar”. Essa poderia ser a
função daquele momento histórico, ainda que, estivesse submetido à justiça dos céus: “é
a eterna justiça de Deus na qual espero que nosso povo esteja seguro e à qual somente me
submeto com confiança” (BS, 22, p. 385). Dessa maneira, Frank, esse ex-nazista
arrependido, se coloca à disposição do julgamento espiritual, confiante de que sua
sentença não representasse a sentença coletiva do povo alemão.
O caso de Hans Frank não era de difícil definição. Como Governador Geral da
Polônia, ele era uma lembrança viva do sistema de colonização do país e do processo de
extermínio com as câmaras de gás. Sua personalidade no tribunal tampouco ajudou o seu
caso. Ninguém estava convencido de sua inocência e, talvez, sua formação como
advogado fizesse com que ele fosse visto com certa desconfiança pela promotoria. Ainda
que apelasse para o divino e clamasse por um arrependimento e um sentimento intrínseco
de culpa, Frank permaneceu sendo, para todos, o “açougueiro da Polônia”. A única
punição possível para essa figura era a pena de morte – e assim se deu.
Speer, esse ex-nazista arrependido que competia com Hans Frank pelo
monopólio do arrependimento pelos crimes Terceiro Reich, se manteve calmo e
articulado durante seu último discurso. Convencido de que “após este julgamento, o povo
alemão desprezará e condenará Hitler como o autor comprovado de sua desgraça”, Speer
busca demonstrar os perigos não apenas do indivíduo Adolf Hitler, mas da ditadura
totalitária como forma de governo: “o mundo aprenderá com esses acontecimentos não
apenas a odiar a ditadura como forma de governo, mas também a temê-la”. Em uma
análise quase Arendtiana, o arquiteto declara que “a ditadura de Hitler diferiu em um
ponto fundamental de todas as suas predecessoras na história” por ter sido “a primeira
ditadura no atual período de desenvolvimento técnico moderno, uma ditadura que fez uso
completo de todos os meios técnicos de maneira perfeita para o domínio de sua própria
nação” (BS, 22, p. 405). Através das técnicas de propaganda, o povo alemão ficou
387
Talvez, para quem está de fora, essa maquinaria do estado possa parecer as
linhas de uma central telefônica – aparentemente sem sistema. Mas, como este
último, poderia ser servido e dominado por uma única vontade.
Ditadores anteriores durante seu trabalho de liderança precisavam de
assistentes altamente qualificados, mesmo no nível mais baixo, homens que
pudessem pensar e agir de forma independente. O sistema totalitário no
período do desenvolvimento técnico moderno pode dispensá-los; só os meios
de comunicação permitem mecanizar a chefia subordinada. Como resultado
disso surge um novo tipo: o receptor acrítico de ordens (BS, 22, pp. 405-406).
A forma como ele apresentou seu caso, inclusive em suas últimas palavras,
demonstrava que ele repudiava o Terceiro Reich e aceitava “a causa anglo-americana de
maneira que causaria a mais favorável das impressões na maioria dos promotores e
juízes” (SMITH, 1979, p. 240). Speer, contudo, conquistou muito mais do que sua
liberdade após esses 20 anos: galgou a reabilitação na memória coletiva como, de fato, o
arquétipo que apresentou em Nuremberg: um ex-nazista arrependido.
do povo alemão durante o Terceiro Reich. Afinal, “essa disposição de sacrifício não nasce
do crime, mas apenas do idealismo e da boa-fé, e de uma organização inteligente e
aparentemente honesta”. Para interromper mais uma camada de ódio na “montanha de
ódio que jaz sobre o mundo”, Fritzsche queria deixar claro que “o assassinato de cinco
milhões de pessoas é um terrível aviso, e hoje a humanidade possui os meios técnicos
para sua própria destruição” (BS, 22, p. 409). Ele não havia pregado o ódio, apenas
trabalhado para um sistema que ele acreditava – e apenas acreditava porque havia sido
enganado. Sobre sua responsabilidade, o réu apela para a ausência de responsabilidade
individual durante o Terceiro Reich:
Militares apartidários
Wilhelm Keitel, um dos homens que ficou ao lado de Hitler no bunker até seus
391
últimos momentos, admite que sua culpa estava pautada na sua obediência. Segundo o
militar, “é trágico ter que perceber que o melhor que eu tinha para dar como soldado,
obediência e lealdade, foi explorado para fins que não puderam ser reconhecidos na
época” e que, ainda “eu não vi que há um limite estabelecido até mesmo para o
cumprimento de seu dever por um soldado. Esse é o meu destino” (BS, 22, p. 378).
Rejeitando as acusações formais, esse soldado fiel não consegue conceber como poderia
ter agido de outra forma. Defendendo a honra da Wehrmacht, Keitel conclui seu breve
discurso declarando: “Do claro reconhecimento das causas, dos métodos perniciosos e
das terríveis consequências desta guerra, pode surgir a esperança para um novo futuro na
comunidade das nações para o povo alemão” (BS, 22, p. 378).
Calmo e conciso, Alfred Jodl “assumiu a única linha de defesa que estava
aberta” (SMITH, 1979, p. 229) e se manteve fiel a ela até o fim. Ele era apenas um militar
que obedeceu às ordens que lhe foram dadas – e estava confiante de que sua defesa tinha
bases firmes. Jodl inicia seu discurso final declarando:
pátria está acima de qualquer outro. Cumprir esse dever era para mim uma
honra e a lei suprema (BS, 22, p. 400).
Dönitz, o sucessor de Adolf Hitler nos últimos dias da guerra, permanece até o
fim se apresentando primordialmente como almirante e militar. Categoricamente, o réu
393
declara: “vocês podem julgar a legalidade da guerra submarina alemã conforme suas
consciências ditarem. Considero esta forma de guerra justificada e agi de acordo com a
minha consciência. Eu teria que fazer exatamente o mesmo novamente” (BS, 22, p. 390).
A alegação de conspiração, aos olhos de Dönitz, era, portanto, um “dogma político” que
“não pode ser provado, mas apenas acreditado ou rejeitado”. A única concessão que o
almirante faz sobre suas acusações era o reconhecimento de que o Princípio de Liderança
– que ele chama de Princípio do Führer – era um princípio que não funcionava para a
política, apenas para os militares: “Que políticos e juristas discutam sobre isso; eles
apenas tornarão mais difícil para o povo alemão tirar uma lição deste Julgamento, que é
de importância decisiva para sua atitude em relação ao passado e a formação de seu
futuro”, uma vez que previa que “o reconhecimento de que o Princípio do Führer como
um princípio político é errado” (BS, 22, p. 390). O motivo disso era simples:
“aparentemente a natureza humana não está em posição de usar o poder deste Princípio
para sempre, sem cair nas tentações deste poder”. Como não se arrependia de como tinha
agido, e considerava que agiria da mesma forma dadas as mesmas circunstâncias, Dönitz
finaliza seu breve discurso afirmando: “minha vida foi dedicada à minha profissão e,
portanto, ao serviço do povo alemão. Como o último Comandante-em-chefe-em-Chefe
da Marinha Alemã e como último Chefe de Estado, assumo a responsabilidade perante o
povo alemão por tudo o que eu fiz e deixei de fazer” (BS, 22, p. 391).
Último ato
Imagem 8127
127
Caricatura de Hermann Göring retirada do Jornal O Globo, Edição Vespertina, 1 de outubro de 1946.
395
128
Telford Taylor (1908-1998) fazia parte da comitiva da acusação estadunidense durante o Julgamento de
Nuremberg e, após a resignação de Robert Jackson, assumiu a posição de promotor principal dos 12
julgamentos realizados pelo governo dos Estados Unidos, conhecidos como Julgamentos Subsequentes de
Nuremberg.
396
de encarceramento foram levados para a prisão e, após alguns dias de tumulto, como
mencionado anteriormente, os inocentados finalmente conseguiram aproveitar sua
liberdade.
Preferia ter-me entregado aos russos, porque estes ou me teriam morto logo ou
então me tratariam como um herói. Jamais pensei que os norte-americanos
fossem capazes de me tratar dessa maneira cruel. É bom que eles saibam que,
com esses julgamentos de criminosos de guerra, estão criando um precedente
397
Em suas últimas horas de vida, Göring, portanto, mantinha-se fiel à sua narrativa
de defesa do regime nazista, e, sobretudo, permanecia enxergando a si mesmo como um
grande herói com uma garantida reabilitação em um futuro próximo. “Apesar da natureza
sensacional do golpe (coup) de Göring”, ressalta Taylor, “o tempo estava se aproximando
rapidamente para os dez prisioneiros condenados restantes” (TAYLOR, 2013, p. 846). Por
volta de uma hora da manhã, o Coronel Andrus visitou todas as celas para ler a sentença
de morte oficial de cada um. Seguem, então, as últimas palavras de alguns dos
condenados:
Joachim von Ribbentrop: Deus proteja a Alemanha. Deus tenha misericórdia
de minha alma. Meu último desejo é que a unidade alemã seja mantida, que o
entendimento entre o Oriente e o Ocidente seja realizado e que haja paz no
mundo!
Wilhelm Keitel: Peço ao Todo-Poderoso que tenha consideração pelo povo
alemão, forneça ternura e misericórdia. Mais de dois milhões de soldados
alemães foram para a morte por sua pátria. Agora sigo meus filhos. Alles für
Deutschland! Deutschland über Alles!
Ernst Kaltenbrunner: Servi ao povo alemão e à minha pátria de bom grado.
Cumpri meu dever de acordo com suas leis. Lamento que em sua hora difícil
ela não tenha sido liderada apenas por soldados. Lamento que tenham sido
cometidos crimes dos quais não participei. Boa sorte, Alemanha.
Hans Frank: Peço a Deus que me receba misericordiosamente.
Julius Streicher [após cuspir no sargento Woods]: Heil Hitler! Agora sou meu
pai por Deus (I am now by God my father)! Adele, minha querida esposa.
Fritz Sauckel: Eu morro inocentemente. O veredito estava errado. Deus
proteja a Alemanha e torne a Alemanha grande novamente. Deixe a Alemanha
viver e Deus proteja minha família.
Alfred Jodl: Eu te saúdo, minha Alemanha.
Arthur Seyss-Inquart: Espero que esta execução seja o último ato da tragédia
da Segunda Guerra Mundial e que uma lição seja aprendida para que a paz e o
entendimento sejam alcançados entre as nações. Eu acredito na Alemanha.
(TAYLOR, 2013, p. 847–848)
“Nuremberg” e Nuremberg
129
Essas fotos com seu aspecto sinistro podem ser facilmente acessadas na internet, demonstrando mais
uma camada da enorme espetacularização dos nazistas – em vida e em morte.
399
A justiça de transição não pode deixar de traçar linhas históricas e, se for esse
o caso elas devem ser desenhadas com a maior precisão possível em qualquer
tribunal, e com uma consciência de como o outro é construído no processo.
[...] Infelizmente, a maioria dos perpetradores não parece estar
excessivamente incomodada, muito menos assustada, com a perspectiva do
130
Há uma longa discussão na historiografia sobre a possibilidade de representação do Holocausto. Ver:
FRIEDLANDER, 1992; WHITE, 2006.
400
julgamento severo que a história pode ter reservado para eles. Parece que a
lei impõe (commands) maior autoridade e empunha uma espada mais afiada,
de fato mais poderosa que a palavra. Se os historiadores podem ajudar nessa
empreitada, deveriam. É improvável que vejamos a segunda onda (the second
coming) e, portanto, teremos que enfrentar a continuidade da guerra e
atrocidade em massa, bem como a possibilidade de genocídio. Esses são
crimes horríveis; com impunidade e sem nenhum efeito didático, por menores
(small) e por mais prolongados (portracted) que sejam [esses crimes], são
piores. O argumento a favor dos julgamentos e da contribuição dos
historiadores para eles é simples assim (PRIEMEL, 2016, p. 418, grifos meus).
Dessa maneira, Priemel nos mostra como, por mais que os crimes sejam tão
horríveis que eles permaneçam por décadas na história como uma memória nefasta, eles
precisam ser julgados para que possamos seguir em frente. Retomando as reflexões de
Joan Scott, Nuremberg aparece como O Julgamento da História por ser o primeiro de seu
tipo, o ponto sem retorno: a partir dali, estava claro que a História estaria submetida à
justiça (SCOTT, 2020). O desejo de que a História fosse julgar esses homens pelos seus
crimes não era maior do que a necessidade real de um tribunal para, de fato, julgar essa
culpa criminal. O Terceiro Reich estava em julgamento, mas, mais importante do que
isso: eram os homens do Terceiro Reich que estavam sentados no banco dos réus. E, nesse
sentido, decerto, muito mais significativo para a nossa sociedade são os julgamentos
jurídicos, e não os julgamentos simbólicos da História. Afinal, como vimos, a História
raramente julga. Pelo contrário, a memória segue sendo mobilizada por grupos
antagônicos e a “lenda sobre Hitler”, que aparecia como uma ameaça em Nuremberg, se
concretizou em uma realidade para a extrema-direita. Passados quase 80 anos do
julgamento, o negacionismo e a apropriação positiva do passado nazista não deixaram de
ocupar a cena pública. Não há julgamento histórico que possa pôr um ponto final nesse
tipo de discurso e, por isso, Priemel tem razão ao dizer que a espada da lei é a mais afiada.
Esse também é um dos legados de Nuremberg: o nazismo, de maneira geral, deve ser
criminalizado. E isso abarca as ações dos nazistas, mas, também, os discursos nazistas
que explicam e justificam essas ações. Não há dúvida de que, nesse ponto, Nuremberg
acertou.
clemência por ser órfão”. Os nazistas eram os grandes responsáveis pela desgraça que
eles clamavam ter se abatido sob seus destinos. “O que esses homens ignoraram é que os
atos de Adolf Hitler são os atos deles”, disse Jackson. Para o promotor estadunidense, os
réus, e “milhões de outros”, foram os responsáveis por colocar o Führer no poder na
Alemanha, e, a partir da acusação de crime de conspiração, consequentemente, foram os
responsáveis pela Segunda Guerra Mundial e por suas terríveis consequências: “Eles o
intoxicaram com poder e adulação. Eles alimentaram seus ódios e despertaram seus
medos. Eles colocaram uma arma carregada em suas mãos ansiosas.”. É verdade que
“coube a Hitler puxar o gatilho”, mas, quando o fez, “todos aprovaram” (BS, 19, p. 424).
Hitler confiava nesses nazistas para realizar suas tarefas. Eles eram “seus olhos
e ouvidos”, as “outras pernas” que deveriam executar suas empreitadas, as “outras mãos”
que deveriam realizar seus planos na construção daquele grande império (BS, 19, p. 430).
Dessa maneira, Hitler não carrega para si toda a responsabilidade pelo Reich. Afinal,
“foram esses homens mortos que esses vivos escolheram para serem seus parceiros nessa
grande irmandade conspiratória, e os crimes que cometeram juntos devem pagar um por
um” (BS, 19, p. 429). Não há redenção possível para esse regime e nem para os homens
que colocaram esse regime em movimento. Estava na premissa básica do movimento
nazista que, para “garantir ao Estado nazista um lugar ao sol”, todos os outros Estados e
indivíduos seriam levados “para a escuridão” e, quanto a isso, todos concordaram durante
o Reich – e, alguns, até mesmo após seu fim (BS, 19, p. 419). Dessa maneira, para
Jackson, dizer que esses homens não eram culpados “seria tão verdadeiro quanto dizer
que não houve guerra, não houve mortos, não houve crime (BS, 19, p. 432)”.
Esse é mais um dos motivos, dentre tantos outros, pelos quais precisamos
continuar olhando para esse passado. O nazismo esteve – e está – nos campos de
possibilidades do fazer político: para combatê-lo, é imprescindível a tarefa infindável e
jamais completa, de compreendê-lo. Como bem pontua Hannah Arendt, compreender o
totalitarismo “não é desculpar nada, mas nos conciliar com um mundo onde tais coisas
são possíveis” (ARENDT, 2008a, p. 331). Compreender é “examinar e suportar
conscientemente o fardo que os acontecimentos colocaram sobre nós — sem negar sua
existência nem vergar humildemente a seu peso, como se tudo o que de fato aconteceu
não pudesse ter acontecido de outra forma” (ARENDT, 1989, p. 21). Tudo poderia ter se
dado de outra maneira, afinal, mesmo dentro de um burocrático processo de extermínio,
“nenhum dos passos era inevitável em função do estado que as coisas já tinham atingido”.
Entretanto, é igualmente verdade que cada um desses passos “tornava racional a escolha
do estágio seguinte na rota da destruição” (BAUMAN, 1998a, p. 221). Reconhecer a
complexidade desse passado traumático torna imperativo embarcar constantemente na
tarefa de “encarar a realidade, espontânea e atentamente, e resistir a ela — qualquer que
seja, venha a ser ou possa ter sido” (ARENDT, 1989, p. 21). Nas palavras de Tzvetan
Todorov:
Dizer para estabelecer a verdade: tal é o dever da testemunha. Julgar para que
revivam os princípios da justiça: é a vocação do juiz. Mas isso ainda não basta:
é preciso, custe-nos o que custar, realizar um último esforço e tentar
compreender melhor. Por que e como o mal aconteceu? Se nos contentamos
em dizer o acontecimento sem buscar ligá-lo a outros fatos no passado ou no
presente, fazemos na verdade um monumento; isso é melhor do que ignorar,
com certeza; no entanto, não basta. Pois a memória dos campos [de
concentração] deve se tornar um instrumento que informa nossa capacidade
de analisar o presente, e para isso é preciso reconhecer nossa imagem na
403
caricatura que enviam os campos, por mais deformante que seja tal espelho,
por mais doloroso que seja esse reconhecimento. Poderemos dizer, então, que,
do ponto de vista da humanidade pelo menos, a horrível experiência dos
campos serviu para alguma coisa: ela nos ensinará as lições, a nós, que cremos
viver em um universo inteiramente diferente. Recusar-se a ficar nessa
celebração invertida do horror que é o ato de dizer o passado sem tentar
compreendê-lo e, portanto, compará-lo com outros acontecimentos passados e
presentes, é não querer virar essa página da história; é, antes, enfim, decidir lê-
la (TODOROV, 1995, p. 284–285, grifos meus).
Um processo de aparências
2018, p. 111). Naquela época, ele acreditava que “algo já brilhava no futuro e
transformaria o mundo”, a saber: “a criação de um direito mundial e de um estado mundial
em que, através da força conjunta das maiores potências, seriam averiguados com
seriedade crimes claramente definidos”. Com isso, “nenhum político, nenhum militar,
nenhum funcionário público futuramente poderá apoiar-se em razões de Estado ou
ordens” uma vez que “todos os atos de um Estado acontecem por meio de personalidades
humanas, seja pelos detentores do poder, seja pelos colaboradores de diversas
categorias”. A responsabilidade era de cada um dos membros do Estado, e não do Estado
como uma entidade separada da sociedade. Por isso, “há crimes de Estado, que ao mesmo
tempo, são crimes de determinados indivíduos. Há necessidade e honra no comando e na
obediência, mas a obediência não deve ser prestada se o obediente souber que está
cometendo um crime”. A incondicionalidade do juramento de fidelidade ao Estado só
teria validade se jurada à Constituição “ou na solidariedade de uma comunidade que
expresse seus objetivos e suas opiniões, jamais como juramento de fidelidade diante de
pessoas detentoras de cargos políticos ou militares” (JASPERS, 2018, p. 112–113).
cenário político mundial (HUNT, 2009, p. 208). Afinal, a ignorância, como vimos, foi
um dos argumentos que os próprios nazistas utilizaram para defender suas ações. A
negligência também foi um poderoso mobilizador para justificar o tratamento desumano
dado aos povos dos países ocupados pelos nazistas, sobretudo no Leste Europeu. Percebe-
se como a Declaração de 1948, como demonstra Lynn Hunt, cristaliza 150 anos de luta
por direitos, mas representa muito mais “um conjunto de aspirações em vez de uma
realidade prontamente alcançável. Delineava um conjunto de obrigações morais para a
comunidade mundial, mas não tinha nenhum mecanismo de imposição” (HUNT, 2009,
p. 206).
****
131
Agradeço profundamente ao professor Bruno Leal por pontuar, na banca de defesa, como essa tese é
também uma pesquisa sobre negacionismo.
407
Espero que estas reflexões tenham sido úteis ao leitor e que o livro da História
do pós-guerra permaneça sendo ocasionalmente aberto para que possamos estar atentos
às suas lições. Quem sabe, assim, estaremos menos “despreparados para notar e
decodificar os sinais de alerta – se estiverem agora, como estiveram então, flagrantemente
exibidos por toda parte” (BAUMAN, 1998a).
408
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• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
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• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
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• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
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• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
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416
• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
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• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
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• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
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Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 12.
• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
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• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
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• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
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• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
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• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
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• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 19.
• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 20.
• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 21.
• Trial of the major war criminals before the International Military Tribunal.
Nuremberg, Germany, 1947. Blue Series, vol. 22.
417
Para a tese, utilizei apenas o volume que contém esse interrogatório, a saber:
• Nazi Conspiracy and Aggression. Office of United States Chief of Counsel for
Prosecution of Axis Criminality. United States: Washington, 1948. Red Series:
Supplement B.
3. Entrevistas:
As imagens dos réus que estou utilizando antes de iniciar cada caso são
caricaturas feitas pelo alemão Günter Peis durante os procedimentos em Nuremberg. A
data das caricaturas é 1 de outubro de 1946 e foram doadas ao United States Holocaust
Memorial Museum (USHMM) por Gerald (Gerd) Schwab.
5. Jornais:
• 21 de novembro de 1945, Matutina, Geral, página 1. Ano XX, número 5996, Rio
de Janeiro.
• 21 de novembro de 1945, Matutina, Geral, página 3. Ano XX, número 5996, Rio
de Janeiro.
• 1 de outubro de 1946, Matutina, Geral, Página 1. Ano XXI, número 6259, Rio de
Janeiro.
• 1 de outubro de 1946, Vespertina, Geral, página 1. Ano XXI, número 6259, Rio
de Janeiro.
• 1 de outubro de 1946, Vespertina, Geral, página 2. Ano XXI, número 6259, Rio
de Janeiro.
• 17 de outubro de 1946, Vespertina, Geral, página 1. Ano XXI, número 6273, Rio
de Janeiro.
421
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422
https://acervo.oglobo.globo.com/Acervo/?service=printPagina&imagemPrint=https%3a%2f%2fduyt0k3aayxim.cloudfront.net%2fPDFs_XMLs_artigos%2fo_gl… 1/3
423
https://acervo.oglobo.globo.com/Acervo/?service=printPagina&imagemPrint=https%3a%2f%2fduyt0k3aayxim.cloudfront.net%2fPDFs_XMLs_paginas%2fo_g… 1/1
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https://acervo.oglobo.globo.com/Acervo/?service=printPagina&imagemPrint=https%3a%2f%2fduyt0k3aayxim.cloudfront.net%2fPDFs_XMLs_artigos%2fo_gl… 1/2
425
https://acervo.oglobo.globo.com/Acervo/?service=printPagina&imagemPrint=https%3a%2f%2fduyt0k3aayxim.cloudfront.net%2fPDFs_XMLs_paginas%2fo_g… 1/1
426
https://acervo.oglobo.globo.com/Acervo/;jsessionid=FEBF501947B983772DCCF4AB41B979F1?service=printPagina&imagemPrint=https%3a%2f%2fduyt0k3… 1/1
427
https://acervo.oglobo.globo.com/?service=printPagina&imagemPrint=https%3A%2F%2Fduyt0k3aayxim.cloudfront.net%2FPDFs_XMLs_artigos%2Fo_globo%… 1/1
428
https://acervo.oglobo.globo.com/?service=printPagina&imagemPrint=https%3A%2F%2Fduyt0k3aayxim.cloudfront.net%2FPDFs_XMLs_paginas%2Fo_globo… 1/1
429
ANEXO I:
Condenados à morte:
Inocentados:
ANEXO II:
O tribunal:
Robert H. Jackson
Robert C. Storey
Thomas J. Dodd
Promotores da Inglaterra:
132
A lista completa com todos os membros do tribunal está disponível em BS, 1, pp. 1-7.
432
Promotores da França:
François de Menthon
Charles Dubost
Edgar Faure
Advogados de defesa:
Otto Stahmer
Fritz Sauter
Martin Horn
Otto Nelte
Kurt Kauffmann
Alfred Thoma
Alfred Seidl
Hanns Marx
Rudolf Dix
Herbert Kraus
Walter Siemers
Robert Servatius*
433
Franz Exner
Hermann Jahreiss
Gustav Steinbauer
Egon Kubuschok
Hans Flächsner
Heinz Fritz
Alfred Schilf
Otto Pannenbecker
Friedrich Bergold