O Criptografo Mai Jia
O Criptografo Mai Jia
O Criptografo Mai Jia
Capa
Folha de rosto
Sumário
PARTE I: Prelúdio
1.
2.
3.
PARTE V: Conclusão
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Anexo
Sobre o autor
Créditos
PARTE I
Prelúdio
1.
1. Ele só teve a sorte de vir à luz graças à bondade e à coragem do senhor e de seu pai (Lao
Lillie);
2. Para todos os efeitos, ele é um descendente dos Rong, sua avó paterna era a pessoa que seu
pai mais amava e admirava neste mundo;
3. Trata-se de uma criança de extraordinária inteligência. Ao longo destes anos, como se
descobrisse terras incógnitas, fui-me deixando surpreender e fascinar com seu intelecto
incomum. À parte o seu jeito excêntrico e distante, ele em nada difere da avó, são idênticos
como duas gotas d’água: a mente invulgar, a agudeza de espírito, a personalidade forte. Foi
Arquimedes quem disse que, se dessem a ele um ponto de apoio, ele moveria a Terra, e tenho a
convicção de que nosso menino é uma pessoa assim. Mas, neste momento, ele ainda precisa de
nós, pois tem apenas doze anos incompletos.
Estimado senhor, por favor, acredite em mim e o leve daqui para viver ao seu lado. Ele precisa
do senhor, precisa ser amado, precisa ser educado. Precisa até que o senhor lhe dê um nome de
verdade.
Eu lhe suplico!
Eu lhe suplico!
É a súplica de um homem vivo.
Mas também a súplica de uma alma morta.
O moribundo R. J.
Tongzhen, 8 de junho de 1944
2.
Vivi oitenta e nove anos e gostaria de ter, no meu velório, oitenta e nove flores, uma para cada
ano.
Calcule quantos dias há em oitenta e nove anos e me enterre com o mesmo número de flores.
Nessa altura, Xiao Lillie entendeu que Coisinha não sabia multiplicar.
Por isso, só lhe restara o método mais difícil. Fez a conta ano a ano até
somar 365 oitenta e nove vezes e obter o número de 32485 (dias). Desse
número, subtraiu 253 (dias) e chegou ao resultado final de 32232 (dias).
“Meu resultado está certo?”, perguntou Coisinha.
Xiao Lillie pensou com seus botões: na verdade, o resultado não estava
correto, porque nem todos esses oitenta e nove anos tinham 365 dias. A
cada quatro anos, há um ano bissexto, com 366 dias. Mas também ele
considerou que o menino tinha apenas doze anos e não seria fácil para ele
efetuar uma soma dessa magnitude sem cometer nenhum erro. Para não o
deixar desapontado, ele disse que a resposta estava correta e fez um elogio
sincero: “Você se saiu muito bem num ponto: foi inteligente em fazer os
cálculos com base nos aniversários. Senão, teria de contar um a um os dias
do primeiro e do último ano, que são incompletos. Pelo seu método, você só
precisou contar quantos dias ele viveu depois do último aniversário. Isso te
poupou muito trabalho”.
“Mas agora tenho um método mais fácil”, disse o garoto.
“Qual método?”
“Não sei como chama, vou te mostrar.”
Enquanto falava, tirou mais folhas de rascunho da cabeceira.
Esses papéis diferiam nitidamente dos outros em tamanho, textura e até
no tom da tinta, sinal de que não tinham sido produzidos no mesmo dia.
Segundo Coisinha, foram escritos depois do funeral. Enquanto folheava,
Xiao Lillie percebeu que a coluna da esquerda trazia o mesmo cálculo por
adição, mas a da direita mostrava o método misterioso:
Ficou claro que seu misterioso “método do ponto” se tratava, na verdade,
da multiplicação. Como não sabia que sinal usar, anotou do seu jeito. Dessa
forma, os cálculos comparados se desenrolaram até o vigésimo ano. A partir
do vigésimo primeiro, ele inverteu a posição das colunas para deixar o
“método do ponto” na frente:
Certa noite, já mais para o final das férias de verão, a mestra Rong
mencionou, à mesa do jantar, uma notícia que havia lido no jornal daquele
dia: por causa da forte estiagem do ano anterior, algumas cidades tinham
mais mendigos que soldados. A mãe suspirou e disse que aquele fora um
ano duplamente bissexto, e esses anos, desde sempre, são cheios de
calamidades terríveis, sendo as pessoas mais simples as que mais sofrem.
Como Jinzhen não costumava abrir a boca, a sra. Rong tomava o cuidado de
incluí-lo nas conversas. Fez questão de perguntar a ele se sabia o que era
um ano duplamente bissexto. O menino balançou a cabeça, de forma que
ela, então, explicou: “É quando um ano bissexto pelo calendário solar
coincide com um ano bissexto pelo calendário lunar, ou os dois vêm
juntos”. Vendo que o menino ainda parecia confuso, ela perguntou: “Você
sabe o que é um ano bissexto?”.
Ele balançou a cabeça em completo silêncio. Era o seu jeito — sempre
que era possível se expressar sem abrir a boca, não dizia uma palavra. A
sra. Rong começou a falar sobre os anos bissextos, como isso funciona no
calendário lunar e no calendário solar, por que acontece, e assim por diante.
Depois de escutar tudo, o garoto fitou Xiao Lillie, perplexo. Parecia esperar
dele uma confirmação sobre o que a esposa acabara de dizer.
Xiao Lillie confirmou: “Exatamente, é isso mesmo”.
“Então os meus cálculos estavam errados?”, Jinzhen corou, segurando o
choro.
“O que estava errado?”, Xiao Lillie não entendeu a que o menino se
referia.
“A idade do meu pai. Pensei que todos os anos tivessem 365 dias.”
“De fato está errado, mas…”
Antes de Xiao Lillie terminar a frase, Jinzhen começou a soluçar.
Nada o fazia parar de chorar, palavra nenhuma lhe servia de consolo.
Xiao Lillie acabou perdendo a paciência, socou a mesa e lhe deu uma
bronca. Só então Jinzhen se conteve. Engolido o choro, a angústia ficou
mais intensa, e ele beliscava as próprias coxas com a fúria de um possuído.
Xiao Lillie lhe ordenou que pusesse as mãos sobre a mesa e prosseguiu,
num tom muito severo, mas com a óbvia intenção de confortá-lo: “Para que
essa choradeira? Ainda não terminei de falar. Deixe eu terminar primeiro.
Depois, se quiser, aí você chora”.
E continuou: “Quando eu disse que você estava errado, eu falava do
ponto de vista teórico, do conceito de ano bissexto. Mas, em termos
matemáticos, ainda é cedo para dizer se você estava mesmo errado. Isso
precisa ser verificado, porque todo cálculo admite uma margem de erro.
“Até onde eu sei, em números precisos, a Terra leva 365 dias, 5 horas, 48
minutos e 46 segundos para dar uma volta em torno do Sol. Por que
precisamos de anos bissextos? Justamente porque, segundo o calendário
solar, a cada ano, sobra um pouco mais de 5 horas; então, a cada 4 anos, é
preciso acrescentar um dia, fazendo o ano virar bissexto. Só que, pensa
bem, mesmo que você faça os cálculos contando 365 dias para os anos
normais e 366 dias para os bissextos, ainda vai haver uma diferença. Mas
isso é aceitável, até porque, se não admitíssemos nenhum erro nunca,
teríamos dificuldade para definir qualquer coisa. Com tudo isso, o que eu
quero dizer é: todo cálculo tem uma margem de erro, não existe precisão
absoluta.
“Agora, você pode ver quantos dos 89 anos de vida de Mr. Auslander
foram bissextos e somar ao seu resultado original o número de dias que
faltaram. Depois, é só comparar os dois resultados. Em cálculos que
envolvem números de cinco dígitos, a margem de erro aceitável
normalmente é de um milésimo. Mais que isso, o cálculo estaria errado, do
contrário, estaria perfeitamente correto. Agora, você pode conferir se o seu
erro está dentro dessa margem ou não.”
Mr. Auslander morrera em um ano bissexto aos 89 anos de idade, tendo
vivido, portanto, 22 anos bissextos. Com isso, são 22 dias a mais. Para os
mais de 30 mil dias em 89 anos, a margem de erro é inferior 0,1%. Xiao
Lillie, na verdade, se estendeu na explicação procurando uma saída para
que Jinzhen parasse de se culpar. Assim, graças ao falatório, o menino
finalmente se acalmou.
−6421
−6421 + 2696
−6421 + 2 × 2696
−6421 + 3 × 2696
−6421 + 4 × 2696
−6421 + 5 × 2696
−6421 + 6 × 2696
…
−6421 + 22 × 2696
Com base nisso, e sem que ninguém lhe ensinasse, ele conseguiu concluir
a fórmula da soma dos termos de uma progressão aritmética, assim:
Eu me lembro até hoje de um episódio interessante. Durante o recreio, um aluno notou uma
fileira de formigas no corredor. Chamou Jinzhen e lhe disse assim: ‘Você que gosta de contar
formigas, sabe me dizer quantas há aqui?’. Eram centenas, mas eu vi, com os meus próprios
olhos, ele dizer o número exato em poucos segundos. Outra vez, ele me pediu emprestado um
dicionário de provérbios. Dias depois, veio me devolver, eu disse que ele podia ficar mais tempo
com o livro, e ele me respondeu que não precisava mais, porque já tinha memorizado tudo.
Depois, fui descobrir que ele era mesmo capaz de recitar cada verbete de cor. Olha, posso
afirmar que, de todos os alunos que eu tive, nenhum chegou perto dele em termos de inteligência
e de aplicação. A memória, a capacidade de imaginação e de compreensão, a habilidade de
calcular, de extrapolar a partir da evidência, de sintetizar e de concluir, e ainda muitos outros
aspectos, eram excepcionais. As pessoas comuns não podiam sequer imaginar o que ele era
capaz de fazer. Na minha opinião, ele não precisava perder tempo no ginásio, podia ir direto para
o colegial. Mas o diretor da escola não aceitava, porque, dizem, o sr. Rong não autorizava.
Se você quer ser matemático, já está diante da melhor porta que existe; se não quiser, nem precisa
entrar. O que você sabe de matemática já basta para uma vida inteira!
Foi Robert Oppenheimer, o pai da bomba atômica, que disse uma vez:
“Na ciência, o tempo é o verdadeiro obstáculo. Dado um tempo ilimitado,
qualquer um consegue descobrir todos os segredos do universo”. Dizem
que o fato de a primeira bomba atômica ter surgido no momento em que
surgiu foi determinante para solucionar o tremendo problema que o mundo
enfrentava na época, que era acabar de uma vez com a Segunda Guerra
Mundial. Agora imagine se fosse Hitler que tivesse desenvolvido essa arma,
como o problema não teria sido muito, muito maior!
Zhendi respondeu a seis questões nos quarenta e cinco minutos
regulamentares. Em uma delas, Lisiewicz achou que ele cometera um erro
de conceito, por isso não deu nenhum ponto. O último problema era de
raciocínio, mas ele só tinha mais um minuto e meio. Por isso, nem pegou a
caneta e só ficou pensando. Segundos antes do fim do exame, ele conseguiu
dar a resposta certa. Essa atitude não fazia muito sentido, mas era mais
uma prova da intuição extraordinária de Zhendi. A avaliação dessa questão
era bastante flexível, uns podiam dar a pontuação cheia, outros, atribuir
menos pontos. Tudo dependia da perspectiva do examinador. O mínimo que
se podia receber pela resposta era 2,5. E Lisiewicz, rigoroso como era, deu
exatamente essa pontuação. Mesmo assim, Zhendi fez 42,5 pontos e ficou
acima da média dos dez mais bem colocados do Concurso Putnam daquele
ano, que era de 37,44.
Isso significava que se Zhendi tivesse participado de verdade da
competição ficaria entre os dez primeiros classificados, com acesso
garantido às universidades mais prestigiadas, às bolsas de estudos mais
generosas e à fama instantânea nos círculos matemáticos. Mas, como não
participou, tudo o que conseguiria se divulgasse o resultado seriam
risadas. Ninguém acreditaria que um moleque chinês mal saído do primeiro
ano da faculdade era capaz de alcançar uma nota tão alta, só podia ser
uma fraude. Uma fraude que ninguém levaria a sério. Uma fraude
estúpida. Quando viu o resultado da prova, o próprio Lisiewicz teve uma
vaga impressão de estar sendo trapaceado, mas, claro, isso logo se desfez.
Porque só o professor acreditava na autenticidade daquela pontuação, e só
ele levou a sério uma coisa que tinha começado de brincadeira…
[CONTINUA]
A primeira coisa que Lisiewicz fez foi procurar Xiao Lillie para contar,
em detalhes, toda a história da simulação do Concurso Putnam feita com
Jinzhen. Depois disso, sugeriu, sem rodeios, algo que tinha pensado havia
algum tempo.
“Posso afirmar, com toda certeza, que Jinzhen é hoje o melhor aluno do
nosso departamento e que, no futuro, poderá figurar entre os melhores em
universidades de prestígio, como Harvard, MIT, Princeton ou Stanford. Por
isso, ele deveria ir estudar no exterior, em Harvard, no MIT, onde quer que
seja.”
Xiao Lillie ficou em silêncio por um momento.
“Você precisa ter confiança nele, dê uma chance para o rapaz!”,
continuou Lisiewicz.
Xiao Lillie meneou a cabeça.
“Não acho que será viável”, disse.
“Por quê?”, quis saber Lisiewicz arregalando os olhos.
“Não temos dinheiro”, resumiu Lillie.
“Só precisaria arcar um semestre. No máximo, porque, com certeza, no
segundo ele já conseguiria uma bolsa.”
“Nem mesmo um semestre”, disse Xiao Lillie com um sorriso amarelo.
“Não temos condições de pagar nem a viagem.”
Lisiewicz saiu desiludido.
Parte de sua decepção foi por não conseguir o que esperava; outra parte
decorria de uma suspeita. Ele e Xiao Lillie nunca chegaram a um consenso
no tocante aos estudos de Jinzhen. Desta vez, não sabia se o tutor dizia a
verdade ou se era um pretexto para recusar a sugestão. Acabou achando a
segunda hipótese mais provável, porque era difícil acreditar que uma
família como a dos Rong pudesse estar em apuros financeiros.
Mas era verdade. Lisiewicz não sabia que, poucos meses antes, a fortuna
da família Rong já caíra em declínio e sofrera com as mudanças dos novos
tempos, reduzindo-se à metade de uma mansão caindo aos pedaços e
algumas casas. Dias antes, na cerimônia de posse do novo governo, Xiao
Lillie — como representante das personalidades patrióticas da Cidade C —
doara ao Estado o único imóvel comercial na capital provincial, em
manifestação de apoio à recém-fundada República Popular. Embora, nessas
circunstâncias, o gesto parecesse bajulatório, a doação fora arranjada por
alguém do governo. Além do mais, Lillie queria aproveitar a situação para
dar o exemplo e incentivar as elites a apoiar a República. Sem sombra de
dúvida, ele fazia jus ao tradicional fervor patriótico dos Rong. Sua lealdade
e generosidade para com o novo governo popular se deviam, em parte, à sua
percepção da conjuntura política, mas também à sua experiência pessoal ao
ter sido tratado com injustiça pelo governo nacionalista. De qualquer forma,
das propriedades que chegaram às mãos dos dois Lillie, pai e filho, umas
foram doadas, outras, perdidas, umas se arruinaram, outras, repartidas, de
tal forma que não restava praticamente nada. Já a poupança pessoal de Xiao
Lillie fora torrada na batalha para salvar a filha caçula. Nos últimos anos, o
salário, cada vez mais minguado, era consumido por completo em despesas
diversas. Assim, apesar de concordar plenamente com os estudos de
Jinzhen no exterior, Xiao Lillie não podia fazer nada para ajudar.
Lisiewicz tomaria ciência disso mais tarde. Precisamente mais de um mês
depois, quando recebeu uma correspondência da Universidade de Stanford.
Na carta, o então chefe do Departamento de Matemática daquela
universidade, dr. Gábor Szego, aceitava Jinzhen como bolsista e mandava
cento e dez dólares para as despesas de viagem. Isso se tornara realidade
graças ao entusiasmo e ao carisma de Lisiewicz. Ele havia escrito de
próprio punho ao dr. Szego uma carta de três mil palavras que agora se
transformava em um aceite e uma passagem para Jinzhen. Quando deu a
notícia a Xiao Lillie, Lisiewicz notou, satisfeito, um sorriso de emoção no
rosto do outro.
Àquela altura, Jinzhen já contava os dias para ir a Stanford. Antes da
viagem, queria passar suas últimas férias de verão na Universidade N. Mas,
ao final dessas férias, uma doença inesperada fez com que não pudesse mais
deixar o solo pátrio…
Jan Lisiewicz
Na véspera da partida
Sentado em uma das caixas de papelão, Xiao Lillie leu toda a carta de um
só fôlego. O vento remexia os papéis e, de quando em quando, os tocava
com fios de chuva como se quisesse espiar o conteúdo. Talvez por não ter
dormido bem, ou porque algo na carta lhe tocara no fundo da alma, o velho
permaneceu em silêncio, os olhos fixos no vazio. Só depois de um bom
tempo é que voltou a si e disse à tempestade que caía sem parar: “Adeus,
Lisiewicz, faça uma boa viagem…”.
A sra. Rong pôs os óculos, tomou nota do que o doutor dizia, repassou
tudo mais uma vez e esclareceu as dúvidas. Chegando em casa, pediu que a
filha fosse à universidade buscar lousa e giz. Copiou as instruções médicas
no quadro e o pendurou ao pé da escada, como um lembrete do que
precisaria fazer cada vez que subisse ou descesse os degraus. Para poder
acordar Jinzhen nos horários definidos, ela passou a dormir em outro
quarto, separada do marido. Mantinha dois despertadores à cabeceira da
cama: um tocava à meia-noite, o outro, nas primeiras horas do dia. Depois
de esvaziar a bexiga pela manhã, Jinzhen voltava a dormir, e a sra. Rong
começava a preparar a primeira das cinco refeições diárias. Apesar de ser
boa cozinheira, fazer comida para Jinzhen era a tarefa que a deixava mais
insegura. Achou mais fácil aprender a aplicar injeções, apesar do
nervosismo dos primeiros dias, afinal, tinha prática no manuseio das
agulhas de costura. Mas, quando o assunto era comida, a inescrutável
medida do sal se tornou uma aflição constante. Acertar a quantidade exata
era vital para Jinzhen nesse momento: um pouco a mais poderia pôr a
perder todos os esforços anteriores, um pouco a menos não ajudaria em sua
recuperação. A instrução do médico era: durante o período de
convalescença, a ingestão de sal pelo paciente deve começar quase do zero
e ir aumentando dia após dia.
É claro que se a porção diária de sal pudesse ser medida em gramas,
como os cereais, a questão não seria complexa, bastaria uma balança de
precisão. Mas o problema que a sra. Rong tinha diante de si evidentemente
não era tão simples: na falta de um padrão claro e concreto, só lhe restavam
a paciência e o afeto para ir tateando em busca de uma medida. Terminou
por levar ao hospital vários pratos com diferentes graus de salinidade e
pediu que o médico responsável experimentasse. Tinha anotado num papel
quantos grãos de sal usara em cada prato, depois tomaria como critério o
que fosse aprovado pelo médico. Cinco vezes por dia, ela colocaria os
óculos maternais para vista cansada e contaria os diminutos e coruscantes
grãos de sal, um por um, como se fossem grãos de vida para Jinzhen.
Fazia isso com extremo cuidado.
Fazia isso como quem realiza um experimento científico.
Assim, dia após dia, noite após noite, mês após mês, mostrava um
desvelo muito maior que o de um criador de camarões e não menor que o de
uma gestante. Às vezes, no intervalo desses trabalhos desgastantes,
apanhava a carta de Jinzhen, aquela escrita com sangue, e a relia. Era um
segredo dele, mas, desde que a descobrira por acaso, ela a guardava consigo
sem saber por quê. A carta, não datada, era agora um segredo
compartilhado, uma espécie de testemunho da força dos laços entre os dois.
Cada vez que olhava para aquele pedaço de papel, ela renovava a certeza de
que tudo o que vinha fazendo valeria a pena, e isso a encorajava a
prosseguir. A recuperação decerto chegaria em algum momento.
No ano seguinte, logo depois do Festival da Primavera, Jinzhen voltou à
sala de aula de onde se ausentara por tanto tempo.
10.
Como já disse, Jinzhen foi enviado por Deus para conduzir a pesquisa nesse campo. No passado,
eu me preocupava quanto à nossa capacidade de proporcionar a ele o ambiente e a força de que
necessita. No entanto, agora acredito que encontramos para ele o ambiente propício e uma força
que paira no ar: a Universidade de Princeton. Como diz um chiste de sua terra, “o vinho que um
compra, quem bebe é outro”. Então, quem sabe um dia as pessoas percebam que todo aquele
esforço sobre-humano da equipe de Samuelson só tenha servido para montar o palco onde o
jovem chinês pudesse um dia brilhar…
Na mesa, ainda estava o jornal que acabara de ler, com uma manchete tão
grande que parecia um slogan: “O imperialismo americano é um tigre de
papel”. A canção tonitruante e a manchete em letras garrafais o deixavam
com a sensação de estar perdido no tempo e no espaço. Não fazia ideia do
que deveria dizer àquele interlocutor distante. E também tinha certo receio,
um pressentimento de que alguém mais iria ler a resposta. Naquela altura,
ele já era reitor titular da Universidade N e também vice-prefeito da Cidade
C. Foi uma recompensa do Governo Popular à família Rong em
reconhecimento a sua longa dedicação à ciência e à pátria. Em suma, Rong
Xiaolai, o Xiao Lillie, da oitava geração dos Rong, revivia a glória que seus
antepassados conheceram em diversas ocasiões.
Foi o momento mais dignificante de sua vida. Ainda que não fosse o tipo
de pessoa que buscasse aplausos ou se deslumbrasse com o prestígio, ele,
por instinto, valorizava essa glória perdida havia tanto tempo. Seu ar
marcadamente intelectual, no entanto, fazia as pessoas pensarem que ele
não dava o devido valor a tudo que tinha.
Xiao Lillie acabou não respondendo a Lisiewicz. Levou a Jinzhen a carta
e dois jornais cheios de reportagens sobre as sangrentas batalhas entre os
soldados americanos e o Exército dos Voluntários do Povo Chinês.
Encarregou-o de responder ao professor.
“Agradeça a ele e diga que a guerra e a situação política já bloquearam
seu caminho de saída”, instruiu Lillie. “Ele com certeza vai ficar triste. E eu
também. Mas quem deve ficar ainda mais triste é você”, prosseguiu. “Acho
que, neste caso, Deus não está do seu lado”, acrescentou.
Mais tarde, quando Jinzhen lhe mostrou o rascunho, o velho,
aparentemente tendo esquecido as próprias palavras, riscou metade das
frases lamentosas que havia dito e atribuiu o restante a Jinzhen. Por fim,
deu mais instruções: “É melhor recortar as matérias do jornal e mandar
junto”.
Isso foi antes do Festival da Primavera de 1951.
Logo depois do Ano-Novo Chinês, Jinzhen voltou às aulas. Não foi em
uma sala de Stanford ou Princeton, mas da Universidade N. Quando
Jinzhen depositou na caixa de correio a carta cuidadosamente passada a
limpo junto com alguns recortes de jornal que cheiravam a pólvora, jogou
no abismo do tempo uma alternativa para sua carreira. Como dizia a mestra
Rong, algumas cartas registram a história, outras a transformam. Aquela
mudou completamente a vida de uma pessoa.
Muita gente quis entrar nessa equipe, mas, com a triagem feita pelo meu
pai, só Zhendi teve essa sorte. Ele foi o primeiro candidato recrutado e,
como se soube depois, o único destinado à pesquisa — o outro ia cuidar de
assuntos administrativos. Isso criou uma impressão muito ruim, parecia
que a nossa família tinha se apropriado de um projeto nacional de pesquisa
científica, os boatos corriam.
Meu pai era considerado um funcionário público exemplar. Na
contratação de pessoal, evitava a todo custo qualquer favoritismo que
fosse, a ponto de passar do limite do razoável. A nossa família havia
fundado a Universidade N, se reuníssemos todos os Rong, velhos e novos,
que trabalharam no campus, daria para compor duas mesas de jantar.
Quando o meu avô (Lao Lillie) era vivo, essas pessoas sempre recebiam
alguma atenção; quem era do setor administrativo tinha um cargo, quem
era do acadêmico tinha oportunidade de aprimorar os conhecimentos no
exterior. Ao assumir, meu pai exercia o cargo, mas não o poder. Por isso,
mesmo que quisesse, não poderia ajudar os parentes. Mais tarde, quando
enfim passou a acumular o cargo e o poder, meu pai parecia ter perdido o
interesse em ajudar. Enquanto foi reitor, não deu um emprego sequer a
nenhum membro da família Rong. Mesmo no meu caso, o departamento me
recomendou várias vezes para o cargo de vice-diretora, mas ele
invariavelmente riscava o meu nome, como quem risca um erro na prova.
Ainda mais irritante foi o que aconteceu com o meu irmão: voltou do
exterior com doutorado em física, era o candidato natural a um cargo na
Universidade N. Mas o meu pai o orientou a procurar um lugar melhor.
Veja bem, na Cidade C, que outra universidade podia ser melhor que a N?
Ele acabou encontrando um emprego em uma faculdade de pedagogia, em
condições muito inferiores. No ano seguinte, achou uma universidade
melhor em Xangai e se mudou para lá. A minha mãe ficou furiosa com o
meu pai, disse que ele tinha destruído a nossa família.
Mas, quando se tratou de recrutar Zhendi para o grupo de pesquisa, ele
deixou de lado toda aquela prudência exagerada e os princípios
antifavorecimentos. Não deu a mínima para as fofocas e fez o que lhe deu
na telha, parecia enfeitiçado. Ninguém entendeu o que o tinha feito mudar
de ideia — eu sabia porque, uma vez, ele me mostrou a carta de despedida
de Lisiewicz e me disse o seguinte: “Foi Lisiewicz que me instigou, mas eu
só fiquei tentado mesmo depois de ler a monografia de Jinzhen. Antes, eu
achava impossível, agora decidi experimentar. Quando eu era jovem, tinha
muita vontade de dar uma contribuição concreta para a ciência. Agora
pode ser tarde demais para começar, mas Jinzhen me dá essa coragem. Ah,
Lisiewicz tinha toda a razão, sem Jinzhen eu não poderia nem mesmo
pensar no assunto… Hoje, com a ajuda dele, quem sabe? Sempre
subestimei esse menino, agora chegou a hora de dar a ele o devido
valor”… [CONTINUA]
O sobrenome do homem era Zheng. Por ser manco, o nome parecia ter se
tornado um artigo de luxo, como uma medalha ou joia de uso reservado
para ocasiões especiais. No dia a dia, ficava guardado na gaveta e era
simplesmente substituído por Zheng Coxo.
Zheng Coxo!
Zheng Coxo!
O fato de a alcunha ser usada tão abertamente significava que Zheng
Coxo não ligava muito para sua deficiência. Havia duas razões para isso. A
primeira é que ficara coxo de forma gloriosa, e a claudicância era uma
lembrança do seu passado de armas no front. A segunda, pelo fato de a
deficiência não ser tão visível. A perna esquerda era pouca coisa mais curta
que a direita. Na juventude, resolvia o problema usando um sapato de sola
mais grossa. Só adotou a bengala depois dos cinquenta anos. Quando o
conheci, ele se apoiava em uma bengala de mogno finamente trabalhada.
Passava aquela imagem de autoridade que vem com o envelhecimento. Isso
foi no início dos anos 1990.
Mas, naquele verão de 1956, Zheng Coxo tinha apenas trinta anos, eram
os bons tempos de sua vida. O segredo da sola vinha cumprindo sua função,
fazendo-o andar quase como qualquer um. Foi por mero acaso que as
pessoas na Universidade N descobriram seu truque logo no início.
O que aconteceu foi o seguinte: no dia em que Zheng Coxo chegou à
universidade, todos os alunos estavam reunidos no auditório para uma
palestra sobre os feitos heroicos do Exército de Voluntários do Povo Chinês.
O campus estava em silêncio. Era um dia agradável, de sol ameno. A brisa
que produzia um sussurrar dos plátanos potencializava a sensação de
sossego. Encantado com aquela tranquilidade, Zheng, por impulso, pediu
que parassem o jipe que o trazia e instruiu o motorista a voltar para buscá-lo
na hospedaria da universidade três dias depois. Desceu do carro e começou
a caminhar sozinho pelo campus. Cerca de quinze anos antes, ele tinha
estudado ali durante os três anos do colegial e mais um da faculdade. Nessa
visita, tanto tempo depois, percebeu o que havia mudado em sua alma mater
— e o que permanecia igual. Memórias adormecidas começaram a
despertar da escuridão, acompanhando-o a cada passo da caminhada. Sua
passagem pelo edifício do auditório coincidiu com o fim da palestra. Uma
multidão de alunos se aglomerava porta afora como água derramando-se na
rua. Em um instante, viu-se cercado, ilhado no meio dos estudantes.
Desacelerou os passos, não queria ser empurrado — afinal, por causa da
sola modificada, o menor tropeço o levaria ao chão. Os alunos vinham em
ondas, como cardumes no rio, alcançavam-no e deixavam-no para trás.
Mais ondas vieram roçando-lhe os ombros. Caminhava em alerta máximo,
tentando evitar que esbarrassem nele, mas a agilidade dos jovens jamais o
ameaçou de fato. Mesmo quando parecia que seria derrubado, evitavam a
colisão em um piscar de olhos. Ninguém olhou para trás ou prestou atenção
naquele estranho. Seu sapato feito sob medida escondia quase perfeitamente
seu defeito físico. Quem sabe imbuído da confiança proporcionada pela sola
especial, ele, de súbito, começou a sentir certa afinidade por aquele grupo
de alunos. Era uma correnteza de homens e mulheres que, em passos
rápidos e conversas animadas, o impelia e o levava de volta a algum
momento do seu passado de estudante.
Quando chegou ao campo de futebol, a multidão se desfazia como ondas
quebrando na praia. Ele estava fora de perigo. Nesse momento, sentiu algo
cair em sua nuca. Antes de entender o que era, alguém gritou “chuva”,
“chuva”. Olhavam para o céu, mas ninguém se mexia. De repente, um raio
violento fez o céu desabar. Parecia que haviam aberto uma mangueira de
alta pressão. Imediatamente, a multidão se dispersou como uma manada em
pânico, uns corriam para a frente, outros, para trás, uns na direção do prédio
mais próximo, outros tentavam se abrigar sob o telhadinho do bicicletário.
Ele ficou ali, parado, no meio daquela correria, sem saber se corria ou não.
Se corresse, descobririam o segredo oculto na sola especial. Se não
corresse, ficaria encharcado. Talvez nem mesmo tenha pensado em correr.
Quem já enfrentou chuva de balas na guerra vai fugir de gotas d’água? Não
era um problema para ele, mas suas pernas pareciam não compartilhar da
mesma opinião e se puseram a saltar para a frente. Era seu jeito de correr,
dando pulos, como se tivesse cacos de vidro na sola dos pés.
No começo, quando só estavam preocupados em fugir da chuva, ninguém
prestou atenção nele. Depois que todos já tinham encontrado abrigo, ele
continuava no meio do campo. Desistira de correr. Obrigado a arrastar a
perna e a mala, como não ficaria para trás? E ficou muito para trás! Enfim,
restara apenas seu vulto solitário no enorme campo de futebol. Ao se dar
conta disso, quis sumir, mas só conseguia pular e coxear ainda mais, como
um herói cômico. Assistiam calados a seu espetáculo na chuva, até que
alguém começou a torcer por ele.
Força!
Força!
A gritaria da turba atraiu todos os olhares para ele. Era uma tonelada de
olhares pregando-o no chão. Então, simplesmente, parou e agitou o braço
no ar, acenando em resposta às pessoas. Pôs-se a dar um passo após o outro,
com um sorriso no rosto, como um ator que sai de cena. Nesse momento,
viram que ele caminhava a passos normais, como se os pulos tivessem sido
uma pantomima. A tentativa de dissimular sua condição, porém, acabou
tornando-a mais flagrante. A tempestade súbita serviu para expor sua perna
estropiada. Era uma situação constrangedora, mas, pelo menos, o tornava
conhecido. Um manco! Um manco engraçado. Na verdade, uma década e
meia antes, ele encerrara seus quatro anos de universidade de maneira quase
despercebida. Mas, naquela tarde, em questão de minutos, transformou-se
no homem mais conhecido do campus. Poucos dias depois, quando levou
Jinzhen em sua misteriosa missão, todos diziam: “Foi aquele aleijado que
dançou na chuva que levou ele embora”.
2.
Ninguém sabe qual foi, afinal, a conversa que Coxo teve com Xiao Lillie
por trás das portas — fechadas — daquele escritório. A mestra Rong conta
que o pai morreu sem deixar ninguém tocar no assunto. Quando
perguntavam, ele se irritava. Existem coisas que é melhor deixar apodrecer
na barriga, porque pôr para fora só causaria problemas, dizia ele. Mas uma
coisa certa, inquestionável, é: com aquela conversação secreta, Coxo foi
capaz de mudar o imutável. Bastou pouco mais de meia hora para Xiao
Lillie sair do escritório mandando a esposa arrumar as malas de Jinzhen.
Nem é preciso dizer que, depois desse episódio, o mistério em torno do
manco não tinha mais para onde crescer e foi, aos poucos, se transferindo
para Jinzhen.
3.
Sete anos antes, quando Lisiewicz partiu às pressas para o País X levando
mulher, sogros e parentes, certamente não fazia ideia de que, um dia, teria
de trazer de volta algumas dessas pessoas. Não teve escolha — esse era um
ponto inegociável. A sogra tinha uma saúde de ferro, mas a terra estrangeira
e a crescente nostalgia do país natal acabaram acelerando seu declínio
físico. Quando pressentiu que poderia morrer longe de suas raízes, ela
exigiu, com veemência maior que a de qualquer outro idoso chinês, que a
levassem para morrer em casa.
E essa casa onde era?
Na China.
O lugar para onde o País X apontava metade de suas armas.
Óbvio que não seria nada fácil atender ao pedido da sogra, e foi essa a
justificativa que Lisiewicz deu para recusá-lo. Mas, quando o honrado
sogro mostrou seu lado abjeto ameaçando suicídio com uma lâmina
reluzente na jugular, o polonês percebeu que se encontrava num beco sem
saída. O velho agira de forma tão extrema, sem dar brecha para negociação
por saber que, em algum momento, seria a sua vez de pedir a mesma coisa
que a esposa pedia agora. Com a faca apoiada no pescoço, ele deixou claro
que, se fosse para viver com a certeza de que terminaria seus dias no
estrangeiro, preferiria morrer já, junto com a mulher.
Para Lisiewicz, era difícil entender esses conceitos obscuros sobre a terra
natal arraigados nos sogros, mas o que importava entendê-los ou não? A
lâmina reluzente, o sangue prestes a jorrar, que diferença isso fazia? Só lhe
restava cumprir — sem entender, a contragosto e, sobretudo, pessoalmente.
Por causa da propaganda exagerada que circulava no País X, todos os
familiares, incluindo a esposa, receavam que essa haveria de ser para ele
uma jornada sem volta. Ainda assim, na primavera daquele ano, Lisiewicz
levou a sogra, já muito debilitada, de volta à China, em um longo percurso
que combinava trechos de avião, trem e, finalmente, automóvel. Segundo
contam, assim que a ajudaram a embarcar no carro alugado que a levaria à
sua cidade, ela ouviu o sotaque familiar do motorista, arregalou os olhos de
felicidade e, então, os fechou. Em paz e para sempre. Qual o significado da
expressão “a vida estar por um fio”? Pois a dela esteve mesmo pendurada
por um fio. O sotaque do motorista foi a faca que rompeu esse fio, e a vida
dela se dissipou com o vento.
A Cidade C era uma parada obrigatória na viagem de Lisiewicz, mas isso
não significava que ele poderia visitar a Universidade N. Permaneceu lá o
tempo todo sob rígidas restrições, não se sabe se da parte chinesa ou do País
X. De qualquer forma, duas pessoas o seguiam como se fossem sua sombra:
um chinês e um cidadão de X. Os dois eram como cordas que o puxavam
para a frente e para trás, controlavam seu itinerário e a velocidade de seu
deslocamento como se ele fosse uma marionete — ou algum tipo de
patrimônio nacional. Mesmo não passando de um matemático de prestígio,
pelo menos assim constava em seu passaporte. A mestra Rong achava que
tudo isso era resultado de circunstâncias históricas…
Caro Jinzhen,
Como vai?
Voltei para tratar de um assunto familiar e aproveitei para fazer uma breve parada na Cidade C.
Só então soube que você deixou a Universidade N e vem exercendo outra ocupação. Não sei
exatamente qual, mas, a julgar pelo mistério a seu respeito (incluindo seu endereço de
correspondência), posso imaginar que esteja envolvido em algum trabalho importante para
alguma unidade ultrassecreta de seu país, tal como eu vinte anos atrás. Há duas décadas, a
compaixão e o amor pelo meu povo me fizeram aceitar, equivocadamente, uma missão confiada
por um país [sendo Lisiewicz judeu, talvez se refira a Israel], o que só me proporcionou uma vida
lamentável. Com base nessa minha experiência e no que conheço a seu respeito, estou muitíssimo
preocupado com sua atual situação. Você tem uma natureza sensível e vulnerável. Não lhe
convém, em hipótese alguma, trabalhar sob pressão ou em confinamento. Na realidade, você já
havia alcançado resultados impressionantes em suas pesquisas sobre inteligência artificial. Se
continuar, pode conseguir toda fama e reconhecimento que desejar. Esse é seu caminho. Portanto,
se possível, aceite meu conselho e volte a seus trabalhos originais!
Lisiewicz
13 de março de 1957
Hotel da Amizade, Cidade C
Foi um sonho que me fez decidir escrever esta carta. Confesso que, ultimamente, não paro de me
perguntar de que, afinal, você se ocupa agora. Que tipo de tentação ou pressão o levou a uma
escolha tão inesperada? No sonho de ontem, você me contava que sua ocupação é no
Departamento de Criptografia da Agência de Inteligência do seu país. Não sei por que sonhei isso,
nem tenho seu dom de interpretar sonhos. Talvez seja só um sonho mesmo, sem nenhum
significado particular. Tomara! Mas acredito que o sonho em si expresse minha preocupação e
esperança em relação a você: com seu talento, é muito provável que seja recrutado para esse
trabalho, mas evite-o a todo custo. Por que digo isso? Duas razões me vêm à mente agora:
I. A NATUREZA DA CRIPTOGRAFIA
A criptografia reúne hoje inúmeros cientistas, alguns já a consideram uma ciência, e um bom
número de estudiosos brilhantes dedica a ela seus talentos e até suas vidas, mas nada disso
consegue mudar sua natureza. Com base em minha experiência, posso dizer que a criptografia —
tanto ao criar códigos quanto ao decifrá-los — é contrária à ciência e à civilização, é uma
conspiração, uma armadilha para envenenar a ciência e os cientistas. Requer inteligência, mas
uma inteligência demoníaca que só tornará a humanidade mais traiçoeira e malévola. É repleta de
desafios, mas desafios inúteis, que em nada contribuem para o progresso da humanidade.
Não sei por quê, mas, toda vez que penso em você, sinto uma mão de sangue agarrar meu coração
e comprimi-lo até me deixar completamente sem forças. Cada qual tem seu destino, talvez você
seja o meu. Jinzhen, meu caro Jinzhen, diga-me que você não está trabalhando com criptografia,
como naquele sonho que tanta preocupação me causou. Com seu talento, seu objeto de pesquisa e
seu longo silêncio, creio, cada vez mais, que aquele sonho infeliz é uma realidade. Ah,
criptografia, maldita criptografia! Que faro você tem para encontrar quem quiser, emboscá-lo em
sua armadilha, mantê-lo em sua prisão. Ah, Jinzhen, meu caro Jinzhen, se minha suspeita estiver
correta, você deve fazer de tudo para voltar atrás. Na menor oportunidade, não hesite, volte atrás
de imediato! Se realmente não tiver mais chance, então, Jinzhen, meu caro Jinzhen, você deve se
lembrar disto: escolha qualquer código para decifrar, menos o código PURPLE do País X!
Sinto o impulso irrefreável de lhe contar o meu segredo, realmente não sei que força é essa.
Talvez eu me arrependa depois de escrever e enviar esta carta. Jurei nunca revelar esse segredo a
ninguém, mas, se é para o seu bem, não tenho alternativa…
Que segredo?
Na carta, Lisiewicz explicou que, naquele inverno em que retornara à
Universidade N com dois baús cheios de livros, ele se preparava para
desenvolver sua pesquisa no campo de inteligência artificial. No entanto, na
primavera seguinte, uma personalidade importante do Estado de Israel veio
visitá-lo. Essa pessoa lhe disse: “Ter o nosso próprio país é o sonho comum
de todos os judeus. Mas estamos enfrentando grandes dificuldades. Você
quer ver seu povo continuar sofrendo?”. “Claro que não”, respondeu
Lisiewicz. “Então espero que você faça uma coisa por todos os seus
patrícios”, continuou o visitante.
Que coisa?
O polonês prosseguiu: “Queriam que eu decifrasse códigos militares de
países vizinhos, e passei anos nessa missão”. Provavelmente, era a esse fato
que se referia na carta que deixara para Xiao Lillie quando partiu para o
País X levando toda a família: “Nos últimos anos, venho trabalhando em
algo extremamente urgente e sigiloso para meus patrícios; seus problemas e
anseios me comoveram tão profundamente que me fizeram renunciar a
meus projetos”. E continuou: “Tive muita sorte. Depois de ser contratado
por eles, consegui decifrar uma boa quantidade de códigos de médio e alto
níveis. Em pouco tempo, conquistei, no círculo da criptografia, um prestígio
semelhante ao que ostentei entre os matemáticos”.
O que vinha a seguir era algo mais previsível: o País X o ajudava a todo
custo e o escoltava como um tesouro simplesmente porque precisava de
suas habilidades. Mas, depois de chegar a X, aconteceu algo que nem o
próprio Lisiewicz imaginara. Ele relatou:
Jamais pensei que seria chamado não para decodificar as mensagens inimigas, mas para quebrar o
PURPLE, do próprio país ao qual servia. Sem dúvida, se eu, um dia, tiver êxito, ou chegar próximo
disso, esse código será descartado. Meu trabalho é decidir se ele vive ou morre. Eu me tornei uma
espécie de indicador das possibilidades de decodificação pelos inimigos. Talvez eu devesse me
sentir honrado, já que pensam que se eu não descobrir sua chave, ninguém mais descobrirá.
Talvez por não gostar nem um pouco do papel que me coube, ou por detestar sua fama de
indecifrável, quero muito conseguir. Mas, até agora, não cheguei nem perto. É por isso que o
aconselho a não tocar no PURPLE …
Já não tenho uma vida independente, o único jeito de recuperar minha liberdade seria decodificar
o PURPLE … Quem sabe o senhor, que lidou com ele todos esses anos, possa me dar alguma
pista… Como não tenho experiência, preciso de orientação, e qualquer uma será bem-vinda…
Caro Lisiewicz, pode me bater, me insultar, me humilhar… acho que me tornei um judas…
Vinte e cinco anos mais tarde, o diretor Zheng me contaria, em uma sala
de visitas muito espartana, que enquanto todos, incluindo o vice-diretor-
geral, usavam um balde para medir o mar profundo que era Rong Jinzhen,
ele estava entre os poucos que ainda depositavam grande esperança no
rapaz, como se fosse a única pessoa sóbria em meio a uma multidão
inebriada. Não sei se é sua reinterpretação do passado ou se ele realmente
sentia isso na época, mas foi o que me disse:
Mais calmo agora, Rong Jinzhen percebeu que esperar que essas pessoas
fossem capazes de distribuir opiniões fundamentadas e pérolas de sabedoria
que o levariam a decifrar o BLACK era um disparate saído de algum sonho, o
absurdo dentro do absurdo, um disparate mais disparatado que os disparates
comuns. Então, procurou se consolar pensando o seguinte: “Não conte com
eles, não conte com eles. Essas pessoas não são capazes de indicar a você a
saída desse labirinto, não são, não são…”.
Ficou repetindo aquilo para si mesmo, talvez supondo que o ritmo forte o
ajudaria a esquecer a angústia.
Apesar de tudo, a viagem de Rong Jinzhen não foi de todo improdutiva.
Rendera pelo menos quatro frutos:
Os gênios são a alma do mundo, raros e, portanto, seletos; seletos, portanto, preciosos; preciosos,
portanto, um tesouro. E, como qualquer outro tesouro neste mundo, têm a delicadeza dos brotos
novos, se quebram ao simples toque e, uma vez quebrados, definham por completo.
Cada vez que se lembrava disso, Rong Jinzhen era tomado por um
remorso inexplicável, uma sensação de irrealidade. Olhando para a foto e a
obra de Johannes, ele costumava dizer a si mesmo: “Cada um tem seu herói,
você é o meu. Todo o meu conhecimento, toda a minha força vêm da sua
orientação, do seu incentivo. Você é o meu sol, o meu brilho não pode
existir sem a sua luz…”.
Esse pensamento um tanto autodepreciativo não decorria de uma
frustração, e sim de um extremo respeito. Na verdade, com exceção de
Klaus Johannes, Rong Jinzhen não admirava mais ninguém senão a si
próprio, e não acreditava que mais alguém na Unidade 701 seria capaz de
decifrar o BLACK. Não confiava nos colegas por um motivo simples: faltava
a eles aquele sentimento puro e sincero por Johannes, a gratidão vinda da
admiração. Enquanto as rodas do trem ressoavam nos trilhos, Rong Jinzhen
ouviu claramente sua voz dizendo a seu herói: “Eles não conseguem ver o
halo que te rodeia. E, se vissem, teriam medo, não se sentiriam honrados,
teriam vergonha. É por isso que não consigo confiar neles. Apreciar algo
belo de verdade requer coragem e talento; sem isso, a beleza extrema só
aterroriza”.
Sendo assim, Rong Jinzhen acreditava que a genialidade só se mostra aos
olhos de outros gênios. Aos olhos do homem comum, um gênio pode
parecer uma aberração, um tolo, porque se afastou demais dos outros. E
afastou-se mesmo: está muito à frente. Mas o homem comum acaba por
perdê-lo de vista e conclui que o gênio ficou para trás. É assim que pensam
as pessoas ordinárias. Quando você fica em silêncio, acham que você não
tem valor, ou que sucumbiu ao medo. Pensam que seu silêncio vem do
medo e não do desprezo.
Rong Jinzhen achava que a diferença entre ele e os colegas residia aí:
sabia apreciar Johannes e, por isso, o respeitava. Com isso, conseguia
brilhar sob a luz desse gigante, como um pedaço de vidro. Já os colegas que
não tinham essa capacidade eram como pedras que não deixavam a luz
penetrar.
Seguindo essa linha de pensamento, Rong Jinzhen achava apropriado
equiparar o gênio ao vidro e o homem comum à pedra. Um gênio tem
efetivamente muitas das qualidades do vidro: transparência, delicadeza,
fragilidade, propensão a se quebrar ao mínimo impacto, diferente da pedra.
Mesmo ao quebrar-se, a pedra não se estilhaça como o vidro; pode perder
uma lasca, mas continua pedra, sendo usada como pedra. Já o vidro não
apresenta essa resiliência — sua qualidade inata é a vulnerabilidade: uma
vez quebrado, fragmenta-se em mil pedaços inúteis. Um gênio é exatamente
assim, cortar sua cabeça proeminente é como partir uma alavanca — de que
vale o ponto de apoio sem ela? Voltou a pensar em Johannes, seu herói: se
não existissem mensagens cifradas, de que serviria esse herói? De nada!
Lá fora, a noite avançava lentamente.
4.
O que aconteceu depois foi irreal justamente por ser real demais.
Uma coisa real demais pode, muitas vezes, parecer irreal, a ponto de as
pessoas custarem a acreditar. Como ninguém acredita, por exemplo, que nas
montanhas de Guangxi se troca uma agulha de costura por um boi ou uma
adaga de prata pura. Doze anos antes, Rong Jinzhen decifrara os mistérios
do PURPLE depois de sonhar com Mendeleev (um sonho em que Mendeleev
descobria a tabela periódica). Essa era, sem dúvida, uma história
extraordinária. Mas, diante do que viria a seguir, não parecia nada de mais.
No meio da noite, Rong Jinzhen acordou com o barulho seco do trem
entrando na estação. Como de costume, a primeira coisa que fez após
despertar foi estender a mão para tocar a mala-cofre sob o leito. Estava
acorrentada à perna da mesinha.
Continuava ali.
Aliviado, deitou-se novamente, ouvindo passos indistintos na plataforma
e os alto-falantes da estação.
Anunciavam que o trem havia chegado à Cidade B.
Isso significava que a próxima parada já seria a Cidade A.
“Mais três horas e…”
“Chegamos em casa…”
“Estamos quase lá…”
“Faltam só cento e oitenta minutos…”
“Vou tirar mais uma soneca, estamos quase lá…”
Pensando assim, Rong Jinzhen pegou no sono outra vez.
Um instante mais tarde, o barulho do trem deixando a estação o acordou
novamente; as rodas tamborilavam, em um compasso cada vez mais rápido,
uma música motivadora. Seu sono, que nunca fora dos mais pesados, não
resistiria a um estorvo daqueles. As batidas secas dissiparam qualquer traço
de sonolência, e ele ficou totalmente desperto. O luar iluminava o seu leito
através da janela, as sombras oscilavam para cima e para baixo, atraindo
seu olhar letárgico. Foi então que notou que faltava algo ali, diante dele,
mas o que era? Arrastou os olhos sem pressa pelo compartimento,
matutando, e finalmente descobriu que a pasta de couro que devia estar no
gancho da parede — uma pasta preta de professor — havia sumido. Pulou
da cama e procurou no local onde se deitava, nada. Olhou no chão, na
mesinha, embaixo do travesseiro, e nada!
Chamou Vassíli e, nisso, acabou acordando o professor também. Este lhe
contou que, uma hora antes, ao levantar-se para ir ao banheiro (uma hora
antes, note-se bem), tinha visto um rapaz de jaqueta militar fumando
encostado na porta que dava para o outro vagão. Quando saiu do banheiro,
o professor viu o mesmo rapaz indo embora, “carregando uma pasta como a
que você descreveu”.
“Na hora não dei atenção, achei que a pasta fosse dele, nem tinha
reparado se ele estava carregando alguma coisa enquanto fumava. Além do
mais, imaginei que ele tinha ficado ali, parado, até terminar o cigarro. Mas,
pensando bem… eu devia ter prestado mais atenção.”
A explicação do professor era cheia de empatia.
Rong Jinzhen tinha ciência de que, muito provavelmente, aquele rapaz
levara sua pasta. Devia estar ali à espreita, esperando o momento de agir.
Ao se dirigir ao banheiro, o professor dera a ele uma pista, como um rastro
inconfundível na neve — bastava seguir aquelas pegadas para chegar à toca
do tigre. O pouco tempo do professor fora do leito havia sido o suficiente
para o larápio cometer o furto.
“Isso é que é aproveitar toda e qualquer oportunidade.”
Murmurando essa frase, Rong Jinzhen deixou escapar um sorriso
amargo…
Nos últimos dias, Rong Jinzhen havia usado o caderno duas vezes.
A primeira fora quatro dias atrás, à tarde. Tinha acabado de sair de uma
reunião, irritado com uma intervenção estúpida; voltou para o quarto
furioso e se jogou na cama, a cabeça fervendo, a janela bem diante de seus
olhos. Reparou que a noite ia tomando o céu, mas, como seu olhar estava
inclinado, o céu também parecia enviesado e girava toda vez que ele
piscava. Depois, sentiu a visão cada vez mais embaçada — a janela, o céu,
a cidade, o pôr do sol, tudo se dissolvia em silêncio, substituído pelo fluxo
do ar e pelo som do poente queimando o céu: chegou mesmo a ver o ar
informe e o movimento que fazia, revolvendo como labareda prestes a
transbordar das alturas. O fluxo do ar e o som do céu ardendo cresciam e o
envolviam, assim como a escuridão. Nisso, sentiu que uma corrente elétrica
familiar o atravessava. O corpo todo começou a brilhar, levitar… Agora ele
também era feito de ar e flamejava, fluía, evaporava, subia às nuvens, sumia
em um céu distante. Naquele momento, veio um som cristalino, delicado
como uma borboleta… Era a voz celestial, sua sina, uma canção da
natureza, um fulgor, uma chama, um gênio, e ele precisava anotar
imediatamente.
Depois dessa primeira anotação, pensou — não sem uma ponta de
orgulho — que a raiva tinha deflagrado nele aquela inspiração. A segunda
vez fora na madrugada anterior, já balançando no trem, quando sonhou que
conversava longamente com o professor Johannes. Logo ao acordar,
registrou no escuro o conteúdo do diálogo.
Pode-se dizer que, na longa jornada da criptografia e no caminho estreito
para a genialidade, Rong Jinzhen jamais gritou por ajuda nem rezou com
fervor, mas sempre caminhou apoiado em duas muletas: a diligência e a
solidão. A solidão o fez mais hermético, insondável; a diligência talvez lhe
tenha dado aquela sorte do outro mundo. A sorte é uma coisa endiabrada —
invisível, impalpável, inexplicável, incompreensível. Quanto mais se
espera, menos aparece. É sorrateira, misteriosa, talvez a coisa mais
intrigante que existe. Isso mesmo, endiabrada. Mas a sorte de Rong Jinzhen
não tinha mistério. Pelo contrário, era algo muito concreto que se escondia
nas entrelinhas de suas anotações…
E agora seu caderno desaparecia sem deixar vestígio!
Depois de entender o que havia ocorrido, Vassíli se inflamou e começou
a trabalhar nervosamente. Primeiro foi falar com o chefe de segurança do
trem, solicitando que todos os agentes a bordo ficassem em alerta para
impedir que alguém saltasse do veículo. Depois, por rádio, relatou fielmente
toda a situação à Unidade 701 (a mensagem foi retransmitida pela estação
ferroviária da Cidade A). A Unidade 701 informou a sede, que, em seguida,
reportou a seus superiores. Assim, de escalão em escalão, a notícia chegou
ao alto comando, que de imediato emitiu a seguinte instrução: “O objeto
perdido é item de segurança nacional, todos os órgãos competentes devem
fazer um esforço conjunto para encontrá-lo com a maior brevidade
possível”.
Como Rong Jinzhen pôde perder seu caderno? Era repleto de
informações confidenciais da Unidade 701 e de anotações diretamente
relacionadas à decifração do código BLACK. Um armazém de ideias: ali ele
reunia todos os seus insights para quebrar o código. Como podia perdê-lo?
Não podia mesmo!
O caderno precisava ser encontrado.
Agora o trem acelerava para chegar à próxima estação o quanto antes.
A próxima parada era a Cidade A, ou seja, Rong Jinzhen entrou em
apuros bem na porta de casa. Parecia algo arquitetado fazia muito tempo,
mas também uma obra do destino. Quem teria imaginado que, depois de
tantos dias sem incidentes, algo fosse ocorrer justamente agora, tão perto do
destino, ainda mais com a pasta preta (e não com o cofre)? Pelo jeito, o
culpado não era um inimigo temido, mas um maldito ladrão. Tudo aquilo
parecia um pesadelo. Rong Jinzhen se sentiu exaurido e confuso. A sina que
o torturava era um labirinto patético e sem sentido. Quanto mais o trem
avançava, mais forte ficava essa sensação, como se corressem não para a
Cidade A, mas para o inferno.
Chegando à estação, o trem foi selado. Toda a Cidade B, local da última
parada, já havia sido posta sob vigilância uma hora antes.
O bom senso dizia que o ladrão muito provavelmente desembarcara logo
depois do furto, ou seja, na Cidade B.
Todo mundo sabe que o melhor lugar para esconder uma folha é a
floresta, e o melhor lugar para uma pessoa se esconder é a multidão, a
cidade. Por isso, a solução desse caso era dificílima. Mais difícil ainda era
reconstituir todos os detalhes. Alguns dados talvez possam ilustrar, em
linhas gerais, o processo de investigação do caso.
De acordo com os registros feitos à época pela Equipe Especial de
Investigação, os órgãos direta ou indiretamente envolvidos eram os
seguintes:
Nos dias que se seguiram, Rong Jinzhen passou as tardes vagando como
alma penada por todas as ruas, vielas e becos da Cidade B, e as noites,
enlouquecedoras de tão longas, ele passava em meio a saudades vagas. Por
ter esperança demais, sentia um desespero imenso. As noites se tornaram
um tormento. Era nessas horas que remoía a sina infeliz. A lucidez
insuportável da insônia o abrasava. Vasculhava a mente para relembrar cada
dia e cada noite na tentativa de julgar a si mesmo e detectar onde havia
falhado. Pensava que errara em tudo e em nada, como em um sonho, em um
devaneio. Em meio a essa perplexidade sem fim, o remorso lhe queimava
os olhos. Ele era uma flor que se desfaz, perdendo as pétalas cada vez mais
rápido. Ou uma ovelha desgarrada, cujo desamparo cresce a cada balido.
Já era o sexto dia depois do incidente. Essa noite preciosa e triste
começou com uma chuva torrencial. O aguaceiro encharcou Vassíli e Rong
Jinzhen, que começou a tossir sem parar. Por isso, retornaram mais cedo ao
hotel. Deitaram-se, mas o cansaço era menos insuportável que o barulho
incessante da chuva que vinha lá de fora.
A enxurrada fez Rong Jinzhen se lembrar de uma questão terrível…
Rong Jinzhen, 37 anos, 1,65 m de altura, magro, pele clara. Foi visto pela última vez usando
óculos de grau com armação marrom, jaqueta azul-escuro, calça cinza-claro. Tinha no bolso da
camisa uma caneta-tinteiro importada e, no pulso, um relógio da marca Zhongshan. Fala
mandarim e inglês, gosta de jogar xadrez. Tem movimentos lentos e provavelmente está descalço.
Lisiewicz era observador de alto nível a serviço do Exército de X. Eu o vi quatro vezes, a última
no verão de 1970. Mais tarde, ouvi dizer que ele e Fan Lili foram postos em prisão domiciliar na
base militar PP, cujos motivos desconheço. Em 1978, Lisiewicz faleceu nessa mesma base. Em
1981, o Exército de X revogou a prisão domiciliar de Fan (Lili). Em 1983, Fan (Lili) me procurou
em Hong Kong. Queria que eu fizesse os arranjos necessários para seu retorno à China, o que
recusei. Em 1986, li no jornal que Fan (Lili) fizera uma doação para a construção de uma escola
em Linshui, distrito da Cidade C, sua terra natal. Segundo relatos, atualmente reside em Linshui.
Qian Zongnan, conforme explicou o diretor, era nosso camarada no País
X, encarregado de encaminhar as cartas de Lisiewicz. Seria uma ótima
fonte para obter mais informações sobre o professor, mas, lamentavelmente,
havia falecido pouco antes do Ano-Novo. Fan Lili, mencionada no
documento, era a esposa chinesa de Lisiewicz. Sem dúvida, a pessoa ideal
para fornecer mais informações sobre o estrangeiro.
O surgimento de Fan Lili produziu em mim uma alegria inesperada.
4.
Como não tinha um endereço específico, achei que seria muito mais
complicado localizar a sra. Fan Lili. Mas, ao perguntar por ela na Secretaria
de Educação de Linshui, tive a impressão de que todos naquele prédio a
conheciam. Isso porque, anos atrás, ela não só bancara a construção de três
escolas primárias da zona rural como também doara centenas de milhares
de yuans em livros a vários colégios. Entre os profissionais da educação do
lugar, não havia quem não a conhecesse e a respeitasse. No entanto, quando
a vi no hospital Jinhe, da Cidade C, levei um balde de água fria. A pessoa
que encontrei estava com a laringe aberta. Faixas de gaze deixavam seu
pescoço tão grosso quanto a cabeça, como se tivesse dois crânios. Era um
câncer de garganta. Segundo o médico, mesmo que a cirurgia fosse bem-
sucedida, ela não seria mais capaz de falar. Ainda muito debilitada por
causa da cirurgia, não tinha condições de me dar uma entrevista. Então, sem
dizer nada, fiz como inúmeros pais de alunos de Linshui e deixei flores,
votos de boa recuperação e fui embora. Nas duas semanas seguintes, voltei
três vezes ao hospital para visitá-la. Em todas essas ocasiões, ela pegou um
lápis e me escreveu pouco mais de mil palavras. Cada palavra foi quase um
choque.
De fato, sem essas mil e tantas palavras, jamais saberíamos a verdade
sobre Lisiewicz: sua verdadeira identidade, sua verdadeira situação, suas
verdadeiras intenções, seu verdadeiro impasse, seu verdadeiro sofrimento e
sua verdadeira tristeza. A questão é que, ao chegar ao País X, Lisiewicz
perdeu tudo o que deveria ter. Sua vida virou uma sucessão de
desencontros.
Essas mil e tantas palavras merecem efetivamente ser lidas com atenção e
paciência.
Transcrevo a seguir o texto integral:
PRIMEIRA VISITA —
1. Ele [Lisiewicz] não era especialista em criptoanálise.
2. Você já sabe que as cartas eram para confundir. Por que ainda acredita
no que ele escreveu? É tudo mentira. Decodificador coisa nenhuma. Ele
criava códigos, era o adversário dos decodificadores!
3. O PURPLE foi criação dele!
4. É uma longa história. Na primavera de [19]46, alguém o procurou, um
ex-colega de Cambridge. Parece que esse homem tinha um cargo
importante na criação do futuro Estado de Israel. Levou meu marido à
sinagoga da rua Gulou e lá pediu, em nome de Deus e de dezenas de
milhões de compatriotas, que ele criasse um código para I[srael].
Lisiewicz precisou de pouco mais de seis meses para realizar a tarefa, o
que os deixou muito satisfeitos. A missão estava cumprida, mas ele ainda
achava que seu código poderia ser decifrado. Cresceu acostumado às
glórias, tinha um ego muito forte, não admitia derrotas. Pensou que
aquele código feito às pressas apresentava uma série de defeitos e decidiu
criar outro por conta própria. Depois que começou, ficou cada vez mais
empolgado. Foram quase três anos até ele desenvolver um que o deixasse
satisfeito, era o futuro PURPLE. Pediu às autoridades israelenses para usar
esse novo código no lugar do anterior. Mas os testes mostraram que era
tão difícil que ninguém seria capaz de utilizar. Na época, Klaus Johannes,
o criptoanalista, ainda era vivo. Contam que, depois de ler um telegrama
criptografado com o PURPLE, ele comentou: “Eu precisaria de três mil
telegramas como este para começar a decifrar, mas, na situação atual [i.e.
pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial], eu talvez só tivesse
cerca de mil para ler [na ausência de grandes conflitos, o volume de
mensagens criptografadas diminuíra consideravelmente]”. Ele queria
dizer que jamais conseguiria decifrar aquele código. Quando soube disso,
X quis comprar o PURPLE, mas, como não pretendíamos deixar a
Universidade N, e tendo em vista as relações tensas entre X e a China,
meu marido recusou a oferta. Depois, foi como você disse, para resgatar
meu pai, usamos o PURPLE em uma permuta com X.
5. Sim, ele acreditava que Jinzhen, mais cedo ou mais tarde, decifraria o
PURPLE, por isso fez de tudo para impedi-lo.
6. Se havia uma pessoa que ele admirava, ela era Jinzhen. Para ele,
Jinzhen era uma alma que reunia os saberes do Oriente e do Ocidente,
um caso raro.
7. Estou cansada, [vamos continuar] outro dia.
SEGUNDA VISITA—
1. Isso [de ser observador da inteligência militar] era fachada. Na
verdade, ele trabalhava no desenvolvimento de criptografias.
2. Um código de alto nível é como o ator principal de um espetáculo,
precisa ter um substituto. Em geral, todo código dessa categoria é feito
em duas versões: uma para ser usada, outra para ficar de reserva. Mas o
PURPLE foi um projeto pessoal do meu marido, e ele sozinho não era capaz
de criar dois códigos ao mesmo tempo. Ele nem imaginava que esse
código seria de alto nível. Desenvolveu-o como se fosse uma nova
língua, visando precisão. Quando X classificou o PURPLE na categoria
mais elevada, decidiram criar logo um código reserva, que viria a ser o
BLACK.
TERCEIRA VISITA —
1. Sim, ele [Lisiewicz] era o próprio Weinacht.
2. É simples. Na época, ele trabalhava para o serviço secreto. Como
poderia usar o nome verdadeiro e se passar por cientista? Um cientista é
uma figura pública, isso não condizia com a natureza do seu trabalho
real. Não cabia na ética profissional receber um alto salário para se
dedicar a projetos particulares. Que entidade permitiria isso?
3. Como era mero observador [na criação do BLACK], ele [Lisiewicz] tinha
tempo e energia para se dedicar a outras pesquisas. Sonhava em
conseguir algum avanço na inteligência artificial. Sua teoria sobre a
natureza binária das constantes matemáticas contribuiu muito para o
desenvolvimento dos computadores. Por que ele queria tanto que Jinzhen
fosse trabalhar no exterior? A verdade é que ele pretendia integrar
Jinzhen à sua equipe de pesquisas sobre inteligência artificial.
4. A resposta a essa pergunta17 você precisa encontrar sozinho, não sei
responder. Lisiewicz era um cientista. Em termos políticos, era muito
ingênuo, vulnerável, fácil de ser manipulado. Alguns pontos que acabou
de mencionar [sobre seu anticomunismo radical] não têm nenhum fundo
de verdade. Não houve nada disso, posso assegurar!
5. Isso é fácil de responder:18 dois códigos de alto nível [PURPLE e BLACK]
foram decifrados sucessivamente, um criado por ele [Lisiewicz], o outro
criado com a participação dele. E quem decifrou foi um ex-aluno. Ele
escreveu todas aquelas cartas aparentemente para fazer uma cortina de
fumaça, mas quem garante que não escondiam informações nas
entrelinhas? A probabilidade de quebrar códigos desse nível é
baixíssima. De repente, alguém consegue quebrar dois, um depois do
outro, e tão rápido. Não era normal. A única explicação seria um
vazamento. Mas quem teria vazado? Lisiewicz era o principal suspeito.
6. Fomos postos em prisão domiciliar de fato quando souberam que o
BLACK havia sido quebrado. Isso aconteceu no segundo semestre de 1970.
Meses mais tarde, soube que ela havia passado por uma cirurgia de
crânio aberto e, mais alguns meses depois, que havia falecido. Dizem que
falou de mim no testamento, pedindo que eu não usasse os nomes
verdadeiros do casal no livro — “eu e meu marido queremos paz”. Neste
livro, Fan Lili e Lisiewicz são nomes fictícios. Isso vai contra meus
princípios como escritor, mas que outro remédio eu teria? Se uma idosa,
depois de viver tanta coisa, tem como último desejo ser deixada em paz, é
porque esse foi um luxo que não teve em vida!
5.
“Como assim?”
Eu me sentia partido ao meio de tanta ansiedade.
“É uma longa história!”
O velho suspirou e, com olhar ausente, mergulhou em antigas
lembranças.
6.
No final, Yan Shi ainda me disse: “Os inimigos criaram um código sem
chave porque se viram em uma situação desesperadora depois que o PURPLE
foi decifrado. Eles viram do que Rong Jinzhen era capaz. Se continuassem
optando por um confronto direto com o gênio, o fracasso seria inevitável.
Por isso enlouqueceram e, contra todos os riscos, lançaram mão de um
recurso tão incomum quanto traiçoeiro”.
Mas não contavam com uma última cartada de Rong Jinzhen. Sua
tragédia — como disse Yan — ainda serviria para revelar aos colegas, da
maneira mais impensável, a charada do black. Foi algo sem paralelo na
história da criptografia.
Hoje, quando olho para tudo isso, o passado e o presente de Rong
Jinzhen, seu talento assombroso, sinto uma infinita veneração, uma infinita
desolação, e vejo um mistério sem fim.
Anexo
1.
Ele sempre quis me ver levar uma vida de cogumelo, crescer com o que
vem do chão, morrer com o que cai do céu. Mas não deu. Agora virou um
animal de estimação.
A porra de um bicho de estimação!20
2.
O que ele sente é o seguinte: pavor de hospital.
No hospital, até o mais forte se torna um coitado. Um fraco. Uma
criança. Um velhote. Depende dos cuidados dos outros para viver… Como
um animal de estimação.
3.
Tudo é aceitável pela razão, mas nem sempre pelo coração… Foi ele que
disse isso, eu ouvi. E estava certo!
4.
No vidro da janela, você vê sua cabeça enfaixada, parece um ferido de
guerra…
5.
Se o sangramento no estômago é A, o sangramento na testa é B e a
enfermidade é X, então existe entre A e B uma relação bidirecional sob X: A
é interno, B é externo, ou seja, A é oculto, B é exposto. Avançando mais um
passo, é possível entender A como superior, positivo, o “isto”, e B como
inferior, negativo, o “aquilo”. Em todo caso, trata-se de uma relação
homóloga bidirecional. Essa relação não é construída sobre a base do
inevitável, mas do aleatório. Quando essa eventualidade acontece, o
aleatório se torna inevitável, ou seja, sem A não haverá B. B é a
contraparte necessária de A. Essa característica específica é semelhante à
teoria binária de Georg Weinacht…21 Será que Weinacht teve uma
experiência semelhante à que você teve? Algo que o inspirou a criar a
teoria dele?
6.
Lembro-me de uma história sobre testa quebrada:
Paulo disse: “O tempo urge, o que faz aqui sentado, chorando, em vez de
ir à lavoura?”.
O camponês respondeu: “Agora mesmo um burro me deu um coice, e eu
perdi os dois dentes da frente”.
Paulo disse: “Você devia estar rindo. Por que prefere chorar?”.
O camponês justificou: “Choro de dor e de tristeza. Por que deveria
estar rindo?”.
Paulo respondeu: “Porque Deus disse que, para um homem jovem,
perder os dentes e quebrar a testa é bom sinal. Significa que a felicidade
logo chegará para ele”.
O camponês disse: “Se é assim, peça a Deus que me dê um filho”.
E, de fato, o camponês teve um filho naquele ano…22
Agora que sua testa está quebrada, qual será a felicidade que o
aguarda?
Que algo vai acontecer, não há dúvida, difícil é afirmar se será bom ou
ruim. Porque nem você mesmo sabe o que é bom para você.
7.
Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo
era vaidade e correr atrás do vento. Aquilo que é torto não se pode
endireitar, e o que falta não se pode calcular. Disse comigo: eis que me
engrandeci e sobrepujei em sabedoria a todos os que antes de mim
existiram em Jerusalém; com efeito, o meu coração tem tido larga
experiência da sabedoria e do conhecimento. Apliquei o coração a
conhecer a sabedoria e a saber o que é loucura e o que é estultícia; e vim a
saber que também isto é correr atrás do vento. Porque na muita sabedoria
há muito enfado; e quem aumenta ciência aumenta tristeza.23
8.
Ele está muito rico, cada vez mais rico.
Ele está muito pobre, cada vez mais pobre.
Ele é ele mesmo.
E ele também é ele.
9.
O médico disse que um bom estômago é liso por fora e rugoso por
dentro. Virado pelo avesso, com o lado rugoso para fora, um bom estômago
pareceria um pintinho recém-nascido, coberto de uma penugem muito
homogênea. Mas o meu estômago do avesso teria a tal penugem toda
chamuscada, como um couro sarnento, cheio de feridas escorrendo sangue
e pus. O médico também disse que, em geral, prevalece a crença de que os
problemas do estômago sejam causados por maus hábitos alimentares,
mas, na verdade, a principal causa é o estresse. Ou seja, uma doença do
estômago não vem de uma alimentação desregrada, mas de pensamentos
desenfreados.
Pode ser. Quando foi que tive uma alimentação desregrada?
Meu estômago é como um corpo estranho no meu organismo, um inimigo
(um espião); nunca sorriu para mim.
10.
Você deveria odiar seu estômago.
Mas não consegue.
Porque ele tem a marca do seu pai .
Foi ele que fez o seu estômago ser assim: frágil, quebradiço como uma
flor de pereira.
Tem ideia de quantas flores de pereira você engoliu?
Quando seu estômago dói, você se lembra daquelas flores todas e se
lembra dele.
Pai, você não morreu, continua vivo no meu coração. No meu coração e
no meu estômago.
11.
Você está sempre empenhado em andar para a frente, não gosta de olhar
para trás.
E, por não gostar de olhar para trás, você se empenha ainda mais em
andar só para a frente.
12.
Tudo no mundo é vontade de Deus.
Se dependesse da sua própria vontade, você seria ermitão ou prisioneiro.
De preferência um prisioneiro inocente, ou um prisioneiro sem chance de
salvação; em todo caso, um homem livre do sentimento de culpa.
Agora, a vontade de Deus está de acordo com a sua vontade.
13.
Uma sombra te pegou.
Porque você parou de andar.
14.
Outra sombra te pegou!
15.
Para Klaus Johannes, dormir cansa por causa dos sonhos.
Mas acho que ficar sem trabalhar cansa mais, porque a cabeça fica
vazia, e o passado se aproveita desse vazio para entrar na cabeça e fazer
sonhar acordado.
Trabalhar é uma maneira de você esquecer o passado. E um motivo para
você se livrar dele.
16.
Como um pássaro que deixou o ninho.
Como se tivesse fugido…
17.
“Para onde você foi, seu mal-agradecido?”
“Estou em um vale… quilômetros a oeste de vocês.”
“Por que você nunca vem nos visitar?”
“Não dá…”
“Só prisioneiros é que nunca visitam os seus!”
“Sou praticamente um prisioneiro…”
Ele é prisioneiro de si mesmo!
18.
Vocês deram muito a ele, deram demais! Tanto que ele nem se atreve a
recordar, a simples lembrança o deixa inquieto… Sente-se indigno,
culpado… Sente-se um sortudo e um coitado, acha que usou a origem
miserável para tirar proveito da benevolência de vocês.
Os antigos diziam: “O muito é pouco, o cheio não basta”.
Deus disse: “Não há satisfação sob o céu”…
19.
Alguns, quando são amados, ficam felizes; outros, quando são amados,
sofrem.
Porque foi feliz, ele quer voltar.
Porque sofreu, ele quer partir.
Ele não partiu porque descobriu isso, ele só descobriu porque partiu.
20.
O ignorante não teme nada.
O medo é uma corda que o enleia, e puxa, e prende a perna para não
voltar, como se lá atrás ficassem os segredos que não podiam ser revelados.
21.
Mãe, está tudo bem com a senhora?
Mãe, mãe, mãezinha querida!
22.
Ontem à noite, antes de dormir, você se programou para sonhar. E
sonhou, mas não lembra o quê. Deve ter sido alguma coisa do trabalho, só
pode, porque você se programou para sonhar justamente para acabar com
o “tédio de não trabalhar”.
23.
Levantando o indicador, Klaus Johannes me falou que, na nossa
profissão, ele é o número um e eu sou o número dois. No entanto, ele
apontou dois erros graves que cometi: o primeiro foi seguir a carreira
pública; o segundo, o de sempre tentar decifrar códigos medíocres que
qualquer um conseguiria — o segundo erro deriva do primeiro.24 Johannes
falou que, se eu continuar assim, vou me afastar cada vez mais dele, em vez
de me aproximar. Respondi que o inimigo não está usando nenhum código
de alto nível, o que mais eu posso fazer? Johannes contou haver terminado
um livro que, em si, é o ápice dos códigos de alto nível, difícil de
decodificar mesmo por quem já entendeu todos os códigos do mundo, dos
mais simples aos mais sofisticados. Porém, quem decifrar esse código e
entender do que o livro trata será capaz de decifrar qualquer código
sofisticado do mundo nos próximos trinta anos. Ele me sugeriu decodificar
o livro. Mostrou-me o polegar e disse que, se eu conseguir decifrar o livro,
eu seria esse polegar.
Não deixa de ser uma missão interessante.
Mas onde está esse livro?
No meu sonho.
Não, está no sonho em que sonhei que Klaus Johannes sonhava.
24.
Se esse livro existir mesmo, só pode ter sido escrito por Klaus Johannes.
Só ele seria capaz!
Na verdade, a cabeça dele era um livro desses.
25.
Em vida, Johannes deixou um livro intitulado A escrita dos deuses.25
Alguém contou ter visto em uma livraria. Isso é pouco provável, já
mobilizei a agência atrás desse livro. Não acharam nada.
E quando a agência não encontra é porque a coisa não existe.
26.
Você é um rato.
Um rato dentro de um celeiro.
Mas não consegue comer grão nenhum.
Porque cada grão tem um revestimento especial que o protege dos seus
dentes.
— Criptografia é isso.
27.
A criptografia joga as informações que você quer bem na sua frente, ao
alcance da mão, e, ao mesmo tempo, cobre os seus olhos para que você não
veja nada.
28.
Na Coreia, Douglas MacArthur levantou a mão ao céu e a fechou como
se agarrasse algo, mostrou para seu criptógrafo o punho fechado e disse:
“Aqui está a informação que eu quero. Ela está em toda parte, basta
esticar a mão e pegar. Mas não consigo enxergar porque estou cego, quero
ver se você é capaz de me reaver a visão”.
Anos mais tarde, ele escreveu em suas memórias: “Meus criptógrafos
jamais conseguiram abrir meus olhos, nem um olho sequer. Foi sorte eu ter
voltado vivo”.
29.
Que tal repetir o gesto de MacArthur de estender a mão para o céu e
agarrar algo? Desta vez, não para agarrar o ar, mas um pássaro. O céu
está cheio de pássaros, mas a probabilidade de pegar um com a mão é
extremamente baixa. Extremamente baixa não quer dizer impossível, tem
gente que consegue por milagre.
— Decodificar é isso.
A maioria passa a vida tentando, mas só consegue agarrar uma pena ou
outra.
30.
Que tipo de pessoa consegue agarrar um pássaro?
John Nash talvez.26
Mas Lisiewicz não, apesar de seu talento não ser necessariamente
inferior ao de Nash.
31.
Nash podia pegar um pássaro em pleno voo, mas não saberia dizer
quando. Já Lisiewicz simplesmente observaria a direção do olhar de Nash,
o movimento da sua mão, a postura do corpo e a agilidade, a precisão, a
força de salto etc. Então, levando em conta o número de pássaros no céu, a
velocidade, o percurso, as peculiaridades e variações do seu voo, seria
capaz de prever quando Nash conseguiria apanhar um pássaro.
Ambos igualmente brilhantes, Lisiewicz era um gênio de mais rigor, mais
beleza, uma beleza angelical, divina. Nash era mais incomum, quase
grotesco, quase bárbaro, meio homem, meio demônio. A criptografia
transforma o homem em demônio porque reforça até não mais poder sua
natureza traiçoeira, sinistra, agressiva, diabólica. Por isso, Nash — meio
homem, meio demônio — tinha mais facilidade em se aproximar dessa
profissão.
32.
O sono e a morte têm o mesmo nome, mas não o mesmo sobrenome.
O sono é um ensaio para a morte. O reino dos sonhos é o reino das
sombras.
Dizem que ter uma alma grande demais para o corpo e uma cabeça
grande demais para o tronco é uma característica típica de demônio, de
coisa-ruim.
Também dizem que, por mexer com sonhos desde pequeno, você acabou
contaminado pelo sobrenatural, pelo inexplicável, e é por isso que tem
facilidade de agarrar um pássaro com a mão.
33.
Os sonhos contêm todos os segredos do mundo.
34.
Você só precisa mostrar do que é capaz.
Se você mostra, o oponente te ajuda a se afirmar.
Se você não mostra, ajuda o oponente a se afirmar.
35.
Você quer muito que alguém mais genial venha te fazer calar a boca,
mas, para isso, você precisa continuar falando. 27
36.
Trocaram minha secretária de Segurança porque ela não recolheu meu
caderno quando devia.
Ela não foi a primeira a sair. Nem será a última.
37.
É certo que mandarão outra mulher em seu lugar…28
38.
Quem é ela?
Você a conhece?
Você prefere que seja uma pessoa conhecida ou não?
Ela vem porque quer ou porque querem que ela venha?
Será que ela vem me ver amanhã?
Droga! Só de pensar dá dor de cabeça!
39.
O demônio tem filhos sem parar só para comer todos eles.
40.
O médico diz que meu estômago ainda apresenta algum sangramento.
Estranha que os melhores remédios não estejam surtindo efeito. Conto a ele
que, desde os doze anos, eu praticamente me alimento de remédios para o
estômago. Não fazem mais efeito em mim. Ele decide mudar a medicação,
tentar algo novo, e eu respondo que medicamento nenhum é novo para
mim, o que importa é aumentar a dose. Ele diz que é um risco muito
grande, que prefere não correr. Acho melhor me preparar para continuar
aqui por um bom tempo.
41.
A porra de um bicho de estimação!
42.
Ela veio.
Elas sempre chegam sem medo de sofrer ao seu lado.
43.
Quando ela está na enfermaria, o quarto de repente parece lotado.
Quando ela sai, vendo-a pelas costas, você quase se esquece de que é
uma mulher.
Ela precisa de sete pães para matar a fome.29
44.
Ela não tem a menor vocação para dissimular — seria um péssimo
código! Tanto que te faz pensar que, na frente das pessoas, ela não se sente
muito mais à vontade do que você. Se é assim, por que veio? Precisa saber
que é só o começo. Você mesmo, no fundo, desejou passar seus dias
sentindo-se confuso e desamparado. Seja como for, sei que ele jamais iria
criar empatia por um desencaminhado.
45.
Querer me ajudar é uma doença. Só se cura com repouso absoluto.
46.
Pensar demais também é uma doença.
47.
Céu azul, nuvem branca, copa de árvore, vento sopra, balança. Na
janela, pássaro que passa, breve como um sonho… Novo dia, tempo é
vento, vida é água… Lembranças, suspiros, dúvidas, inesquecíveis,
imprevistos, ridículos… Você vê dois pontos: um é o espaço, o outro é o
tempo, ou ainda: um é o dia, o outro é a noite…
48.
O médico achar que sonhar faz mal para a saúde também é uma doença.
49.
Ela me trouxe o melhor cigarro, a melhor tinta para escrever, o melhor
chá, um metrônomo de pêndulo, um bálsamo refrescante, um aparelho de
rádio, um leque de plumas,30 o Romance dos três reinos. Parece que está
me analisando… Mas errou em um ponto: não ouço rádio. Minha alma é
que é o meu rádio, passa os dias a me sussurrar coisas e, como meu
metrônomo, estremece com um simples passo e pendula sem parar.
Sua alma pende no ar, suspensa, como um pêndulo.
50.
Ele só começou a fumar depois de sonhar que fumava.
51.
Fumar cigarros dessa marca que ela trouxe, Daqianmen, foi um hábito
criado por Xiao Jiang.31 Ela era de Xangai. Voltou de lá certa vez com um
pacote, ele gostou tanto que ela pediu para a família mandar mais pelo
correio, todo mês. Ele gostava de ouvi-la falar o dialeto de Xangai, era um
canto de passarinho, melodioso, trinado, complexo, dava para imaginar
que tinha uma língua pontuda e fina. Ele quase gostou dela, mas não
passou pelo teste do tempo. O problema era que fazia muito barulho
quando andava, e um barulho ritmado. Depois que passou a usar uma
meia-sola de metal, então, ficou insuportável: um som de ferradura. Na
verdade, nem era pelo som. A questão era mesmo a alma dele, que toda
hora revoava, mas, a qualquer momento, podia se enganchar naquilo e
despencar no chão.
52.
Entre dia e noite, ele escolheria noite.
Entre montanha e rio, montanha.
Entre grama e flor, grama.
Entre fantasma e gente, fantasma.
Entre defunto e vivente, defunto.
Entre mudo e cego, mudo.
Enfim, ele detesta som, qualquer coisa que tenha som.
Isso também é uma doença, como o daltonismo. Há uma predisposição
maior ou menor ao nascer.
53.
Um feiticeiro incapaz de alcançar seu objetivo…
54.
Que bicho mais medonho!
Ela me conta que se chama quíton,32 dizem que é um cruzamento de sapo
com cobra33 e um santo remédio para doenças do estômago. Nisso eu
acredito: a medicina popular tem os melhores remédios para as piores
doenças. Além do mais, para tratar essa doença do cão que tenho no
estômago, só mesmo um remédio feio como ele. Diz que passou o dia na
montanha procurando por eles, deve ter dado muito trabalho mesmo.
Enquanto não chega a aurora e as sombras da noite não fogem, irei à
montanha da mirra e à colina do incenso.34
55.
À luz da lua, o bosque parece respirar: ora se encolhe, se embola,
diminui, as copas das árvores se eriçam; ora se expande, se desenrola
encosta abaixo em arbustos rasos, e vai formando uma imagem nebulosa e
distante…35
56.
De repente, senti meu estômago vazio e leve, como se não estivesse mais
ali — havia quantos anos eu não sentia isso! Por muito tempo, meu
estômago era uma fossa em ebulição, cheia de gases nauseabundos, agora
desinflou, murchou, cedeu, afrouxou. Dizem que os remédios da medicina
tradicional demoram vinte e quatro horas para fazer efeito, mas, até agora,
só se passaram umas dez horas, um milagre!
Será mesmo uma panaceia?
57.
É a primeira vez que a vejo sorrir.
Um sorriso muito contido, meio forçado, sem som, brevíssimo, mais
breve que um piscar de olhos. É como ver uma pintura sorrir.
Esse sorriso prova que ela não gosta de rir.
Será mesmo? Ou será que…
58.
Em tudo que faz, ele segue o provérbio do pescador que diz mais ou
menos o seguinte: a carne do peixe esperto é mais firme que a do peixe
estúpido, mas mais nociva. Porque o peixe estúpido come qualquer coisa,
enquanto o peixe esperto só come peixe estúpido…36
59.
O médico definiu minha dieta como quem prescreve uma receita: uma
tigela de sopa de arroz sem tempero, uma unidade de pão no vapor, um
pedaço de tofu. E frisou que eu só posso comer isso, e ninguém pode
alterar nem os itens, nem a quantidade. Mas, por experiência própria, o
que eu mais preciso agora é de uma tigela de macarrão, de preferência não
muito cozido.
60.
As ideias errôneas são tão enraizadas em nossas vidas que, muitas vezes,
parecem até mais corretas do que as ideias corretas.
Isso acontece porque as ideias errôneas se apresentam com uma cara de
especialista, de autoridade.
Quando se trata de decifrar códigos, você é o médico, eles são os
pacientes.
61.
Você os leva pelo mesmo caminho, por esse caminho você pode até
chegar ao paraíso, mas eles talvez só cheguem ao inferno. Você não criou
muito mais do que destruiu…
62.
Da sorte pode advir o azar.
63.
Pontual como um relógio, sempre chega na hora, sempre sai na hora.
Entra muda e sai calada.
Ela faz isso para te agradar ou é o jeito dela?
Acho que… não sei…
64.
De repente, espera que ela não venha hoje, mas, na verdade, receia que
ela não venha.
65.
Ela sempre faz mais do que fala. E tudo que faz é em completo silêncio,
como um pêndulo. Assim, aos poucos, ela vai estabelecendo alguma
autoridade sobre você.
Seu silêncio pode se transformar em ouro.
66.
Porque Deus está nos céus, e tu, na terra; portanto, sejam poucas as tuas
palavras. Porque dos muitos trabalhos vêm os sonhos, e do muito falar,
palavras néscias… Como na multidão dos sonhos há vaidade, assim
também nas muitas palavras.37
67.
Será que ela leu a Bíblia?
68.
Ela é órfã!
Ela é mais infeliz do que você!
Ela cresceu vivendo de favor!
Ela é uma órfã de verdade!
Órfão — a palavra que mais te toca!
69.
De repente, veio a resposta do enigma.
Ela é órfã, eis a resposta.
O que é um órfão? Um órfão é alguém que tem os dentes todos, mas não
tem uma língua inteira. Um órfão sempre fala pelos olhos. Um órfão nasce
da terra (as outras pessoas nascem da água). Um órfão tem uma cicatriz no
coração…
70.
Diga a ela que você também é órfão… Não, por que diria isso? Você
quer se aproximar dela? Quer se aproximar dela por quê? Porque ela é
órfã? Ou porque… porque… Como é que, de repente, você tem um monte
de perguntas? As perguntas são as sombras do desejo… Gênios e tolos não
têm perguntas, só demandas.
71.
A hesitação é também uma forma de poder, mas o poder das pessoas
comuns.
As pessoas comuns gostam de complicar as coisas, essa é uma
habilidade especial dos criadores de códigos, mas não dos decifradores.
72.
Hoje ela saiu meia hora mais tarde, porque leu para mim um trecho de
Assim foi temperado o aço.38 Contou que era o seu livro favorito. Sempre o
trazia para ler quando ficava ociosa. Hoje eu o peguei para folhear um
pouco. Ela perguntou se eu já tinha lido, e eu disse que não, então se
ofereceu para ler para mim. Sua pronúncia de mandarim é boa. Disse que
já trabalhou como telefonista na sede e tinha ouvido minha voz pelo
telefone alguns anos atrás…
73.
A diferença é a seguinte: algumas pessoas estão bastante preparadas
para tudo, outras não, mas nem por isso se culpam.
74.
Ele sonhou que andava em um rio com a água pela cintura enquanto lia
um livro sem palavras… Veio uma onda grande, ele pôs o livro sobre a
cabeça para não molhar. Quando a onda passou, descobriu que suas
roupas tinham sido levadas pela água e ele estava nu…
75.
Todo mundo já sonhou os sonhos sonhados por todo mundo!
76/77.
Ele começou a sonhar dois sonhos ao mesmo tempo, um para cima, outro
para baixo…39
… Acordou exausto, aquela experiência acabara com ele.
78.
Uma péssima descida pode arruinar uma escalada até o topo.
Mas não necessariamente.
79.
Você está pensando coisas que jamais imaginou pensar.
80.
Só há uma maneira de te mandar embora: te olhar nos olhos.
81.
Ouvindo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . um . . . . . . . . . . . . . você . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .olhar .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . o mais . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . em . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . você . . . . . . .40
82.
Duas enfermidades. Uma causa dor, a outra, sonhos. Uma se trata com
remédio, a outra também. Mas o remédio está nos sonhos. Uma está quase
curada, outra ainda é febre alta.
83.
Ah, é um sonho! Acorde, acorde!
Ah, é um sonho! Não acorde, não!
84/85.
Escute, desta vez ele não vai apagar o que escreveu, ele…41
… qual a macieira entre as árvores do bosque, qual o lírio entre os
espinhos! 42
86.
Um símbolo de sua vida está sumindo, como um inseto sendo engolido
por outro.
87.
Uma gaiola à espera de um pássaro…43
88.
É um caminho que todo mundo já percorreu, por isso é fácil reconhecer.
89.
Pássaro… ah!
90.
Será que ele ainda não lutou o suficiente? Uma gaiola está esperando
por um pássaro, ainda que…44
O conteúdo do caderno, apesar do texto confuso, sugere um afeto
crescente por Xiao Di. Esse sentimento se torna mais óbvio sobretudo nos
últimos registros. Acredito que os trechos eliminados falavam mais desses
sentimentos. A maioria, muito provavelmente, tinha um significado
nebuloso. Certa vez perguntei a ela se Rong Jinzhen havia escrito no
caderno algum “te amo” direto e sem rodeios, ela negou. Mas disse que
havia uma frase que dava a entender isso.
Depois de muita insistência, ela me contou, hesitante, que não eram
palavras dele, mas de uma passagem da Bíblia, Cânticos, 4, último
versículo. No exemplar da Bíblia em que pesquisei encontrei o seguinte, e
acho que é a isto que ela se referia: Levanta-te, vento norte, e vem tu, vento
sul: assopra no meu jardim, para que se derramem os seus aromas. Ah!
Venha o meu amado para o seu jardim e coma os seus frutos excelentes!
Não posso condená-la por querer proteger sua privacidade, mas, com a
supressão de certos trechos, fica mais difícil compreender a evolução
emocional do casal. Há uma infinidade de ressalvas, subentendidos e
segredos. Por isso, não acho inconcebível entender esse caderno como um
diário criptográfico de um relacionamento afetivo.
Conheço bastante sobre o Rong Jinzhen gênio, o criptógrafo brilhante,
mas nunca consegui abordar seu lado emocional — o parco material
disponível foi arrancado sem a menor sutileza. Tenho a impressão de que
escondem esse lado (afetivo) por acreditar que assim preservarão a imagem
de Rong. Talvez alguém como ele não devesse mesmo ter vínculos
emocionais com mulheres, família ou amigos. Daí ele mesmo já fazer de
tudo para encobrir essas emoções; as que deixava escapar, outros se
ocupavam de esconder. É isso.
Segundo Xiao Di, na tarde do terceiro dia depois de sair do hospital,
Rong Jinzhen chegou à sala dela quase no fim do expediente para lhe
entregar o caderno, como era de praxe. Na posição de secretária de
Segurança, cabia a ela inspecionar todos os cadernos entregues em busca de
páginas danificadas ou arrancadas: se houvesse, era preciso investigar os
responsáveis. Por isso, assim que recebeu o caderno, ela o folheou, também
como parte do protocolo. Rong Jinzhen, então, lhe disse o seguinte: “Não
há nenhum segredo de trabalho aí, só confidências pessoais. Se estiver
curiosa, pode ler. Aliás, até quero que você leia tudo e me diga o que acha”.
Xiao Di me contou que já era noite quando terminou de ler o caderno.
Voltou para casa andando no escuro e, sem saber como, foi parar no
apartamento de Rong Jinzhen. Xiao Di morava no Bloco 38, na direção
oposta à do prédio de Rong. As duas construções existem até hoje, o
primeiro é de tijolos vermelhos e três andares, o outro, de tijolos cinza e
dois andares. Tirei uma foto na frente deste último. Olhando essa foto
agora, ainda ouço a voz de Xiao Di: “Quando entrei, ele ficou me olhando
sem falar nada, nem me convidou para sentar. Ali mesmo, em pé, contei que
tinha lido o caderno. Ele disse: ‘Pode continuar, estou te ouvindo’. Falei:
‘Quero me casar com você’. Ele respondeu: ‘Está bem’. Três dias depois,
nos casamos”.
Foi simples assim, como um conto de fadas. Incrivelmente simples!
Ela me contou isso sem nenhuma expressão no rosto, nem tristeza, nem
felicidade, nem surpresa, nem curiosidade. Parecia não sentir mais nada
com essa memória, limitava-se a repetir um sonho já contado milhares de
vezes. Por isso, tive dificuldade de imaginar o que ela sentia naquele
momento. Então, tomei coragem e perguntei se amava Rong Jinzhen.
“Amo Jinzhen como amo meu país.”
Depois perguntei: “Dizem que o BLACK surgiu pouco depois do seu
casamento, é verdade?”.
“Sim.”
“Então, ele raramente voltava para casa?”
“Sim.”
“Ele até se arrependeu de ter se casado com você?”
“Sim.”
“E você também se arrependeu?”
Nesse instante, foi como se ela acordasse em um sobressalto. Fixou em
mim os olhos arregalados e disse, emocionada: “Me arrepender? Eu amo
meu país, acha que me arrependo disso? Claro que não! Nunca!”.
E, vendo as lágrimas encherem seus olhos, também senti vontade de
chorar.
Iniciado em julho de 1991, em Weigongcun, Pequim
Concluído em agosto de 2002, Luojianian, Chengdu
Notas
1. Região ao sul do baixo curso do rio Yangtsé, compreende o delta desse rio e seu entorno. (N. T.)
3. A tonsura manchu, corte de cabelo imposto aos homens chineses na dinastia Qing (1644-1911),
consistia em raspar a parte frontal da cabeça e deixar crescer os cabelos na parte posterior, que eram
presos em uma longa trança. Nos anos finais do império, cortar a trança era um ato de rebeldia.
Indicava uma ruptura com as tradições e um desejo de modernização. (N. T.)
4. Revolução de 1911 ou Revolução Xinhai: movimento que derrubou a dinastia Qing e instaurou a
República. (N. T.)
5. Lao, “velho”. Tratamento respeitoso empregado diante do nome de uma pessoa mais velha. (N. T.)
6. Xiao, “pequeno”. Tratamento respeitoso empregado diante do nome de uma pessoa mais jovem (N.
T.)
7. “Expedição do Norte”, campanha militar do Exército Nacionalista Chinês (1926-8). (N. T.)
8. Muyu, “peixe de madeira”. Pequeno instrumento de percussão que acompanha as orações budistas.
(N. T.)
11. ENIAC, o primeiro computador da história, foi produzido em 1946. (N. A.)
12. Junqi, ou luzhanqi, jogo de estratégia de origem chinesa em que a identidade das peças, que
representam unidades militares, permanece oculta para o oponente. (N. T.)
13. Entrada do Exército de Libertação Popular, braço militar do Partido Comunista Chinês. (N. T.)
14. Palavras usadas por Xiao Lillie no prefácio à tese de Rong Jinzhen. (N. A.)
15. Existe no mundo da criptografia uma regra não escrita: uma mesma pessoa só consegue criar ou
decifrar um código! Depois disso, seu conhecimento fica preso ao passado e se torna descartável,
porque nunca haverá dois códigos parecidos. (N. A.)
16. Contei a ela que não foi Rong Jinzhen quem decifrou o BLACK. (N. A.)
18. Por que o País X pôs o casal Lisiewicz em prisão domiciliar? (N. A.)
19. Artefato utilizado para exercitar as mãos e combater o estresse, o mesmo que “bolas baoding”.
(N. T.)
21. Weinacht: a verdadeira identidade de Lisiewicz. Rong Jinzhen não sabia que os dois eram a
mesma pessoa. (N. A.)
22. Episódio bíblico. A caminho de Jerusalém, o apóstolo Paulo encontrou um camponês em prantos
e o consolou. (N. A.)
24. Quanto a isso, não há dúvida. Como chefe da seção, ele devia participar da decifração de todos os
códigos. (N. A.)
25. A tradução de A escrita dos deuses foi publicada pela editora Chung Hwa em 1945 com um título
diferente, O livro celestial; talvez por isso os agentes não o tenham encontrado. (N. A.)
26. John Nash foi um matemático americano, criador da teoria dos jogos e ganhador do Prêmio
Nobel de Economia em 1994. Com realizações igualmente extraordinárias no campo da matemática
pura, foi um dos fundadores da moderna geometria diferencial. Infelizmente, sua carreira brilhante
teve um fim precoce em decorrência de uma esquizofrenia severa diagnosticada aos trinta e quatro
anos. (N. A.)
27. Como estava em inglês, provavelmente se trata de uma citação, mas não encontrei a fonte. (N.
A.)
28. Até meados dos anos 1970, havia normas rigorosas para o casamento dos funcionários da
Unidade 701. As mulheres, por exemplo, eram proibidas de namorar homens de fora da unidade, e os
homens que se interessassem por uma mulher de fora (apesar de buscarem um equilíbrio de gêneros
no recrutamento, havia, na prática, sempre mais homens que mulheres) precisavam reportar a
situação aos seus superiores, que mandariam investigar o histórico da “candidata”. Depois de
autorizado, o relacionamento podia passar para a próxima etapa. Se a pessoa não quisesse ou
encontrasse dificuldade para resolver o “problema”, podia solicitar a intervenção da Organização. A
questão do casamento de Rong Jinzhen inquietava os superiores. Sua idade avançava, mas nada
acontecia nesse aspecto, ele jamais tomou nenhuma iniciativa, nem pediu ajuda da Organização.
Quando passou dos trinta anos de idade, a Organização decidiu agir discretamente para arranjar seu
casamento. Primeiro, escolhiam uma “candidata” adequada e, em seguida, a empregavam como sua
secretária de Segurança. Além de ser alguém de total confiança da Organização, ela precisava estar
determinada a permanecer ao lado dele e se tornar sua esposa. Se não desse certo, essa pessoa era
mandada embora para dar chance a outra, quem sabe a próxima teria mais sorte. Assim, as secretárias
de Segurança foram sendo substituídas continuamente. Essa era a quarta. (N. A.)
29. Talvez uma alusão à Bíblia, não sei mais detalhes. (N. A.)
30. Objeto associado a Zhuge Liang, notável estrategista militar da Antiguidade e personagem do
Romance dos três reinos. (N. T.)
32. Quítons são moluscos raros encontrados entre rochas. Assustam pela aparência, mais áspera que a
de outros moluscos. Possuem várias propriedades medicinais. (N. A.)
33. Diferentemente do que diz a lenda, são simples moluscos. (N. A.)
38. Romance de Nikolai Ostrovski publicado em 1932 na União Soviética e de grande sucesso na
China. (N. T.)
39. A página estava preenchida até aqui, mas a seguinte não tinha cabeçalho; suspeito que algumas
folhas foram removidas. (N. A.)
40. Ele riscou o que havia escrito, restou apenas um punhado de caracteres legíveis. (N. A.)
44. O caderno estava preenchido até aqui, sendo possível notar que as folhas seguintes haviam sido
arrancadas. Impossível saber quantas páginas ainda continham alguma coisa. (N. A.)
CHAI LIZENG
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.
Título original
《解密》 Jieˇmì
Capa
Bloco Gráfico
Preparação
Fábio Fujita
Revisão
Clara Diament
Marise Leal
Versão digital
Rafael Alt
ISBN 978-65-5782-404-7