Theodore Dalrymple - A Vida Na Sarjeta - Compressed

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aftvmpU - q m T s SOW ElÍ 1 INTRODUgAü DEJHEOD

'A Vida
rf|.o*ép.a MORAL I APRESENTAÇÃO DE_
SO DA

na Os chiqueiros
os porcos?

Sarjeta
O que os m oradores pei
blocos de apartam entos?
urina. O s espaços público
de todos os blocos dos cc
tacionais que conheço estt
damente im pregnados d>
odo r é inextirpável. E tuc
ria ser am assado, o foi.
' Lo g o , os chiqueiros fazei
os porcos fazem os chiqu
que exista, com o meu
dizer, uma relação dialéí
o C ÍR C U L O n C JO S O D A M I S É fíJ A M O fíA L

-E ste é um relato e uma devastad a n á l i s e

vfda da subclasse. É um clássico d e jio ssa .


T h o m a s S o w e ll ------------ -
Form i
A p r e s e n t a ç ã o porThomas SowelJ.............................................................................7

I n t r o d u ç ã o .....................................................................................................................15

I. REALIDADE SOMBRIA

1. E a Faca Entrou.................................................................................. Tl
2. Adeus, Mundo C ru el.......................................................................37
3. Leitor, São Marido e Mulher... Infelizmente............................49
4. Um Amor de Valentão..................................................................... 59
5. Dói, logo Existo.................................................................................71
6. Festa e Ameaça................................................................................... 81
7. Não Queremos Nenhuma Educação..........................................91
8. E Chique Ser Grosseiro................................................................ 101
9. O Coração de um Mundo sem Coração.................................111
10. Não Há um Pingo de M érito.................................................. 123
11. Escolhendo o Fracasso............................................................... 135
12. Livres para Escolher.................................................................... 145
1 3 . 0 Que É Pobreza?........................................................................155
14. Os Chiqueiros Fazem os Porcos?...........................................165
15. Perdidos no Gueto.......................................................................175
16. E, Assim, Morrem ao Nosso Redor Todos os Dias........... 187

II. TEORIA AINDA MAIS SOMBRIA

1 7 . 0 ím peto de Não Emitir Juízo ...................................... 199


18. Qual É a Causa do C rim e?.....................................................2 1 3
19. Com o os Criminologistas Fom entam o C rim e............2 2 5
2 0 . Policiais no País das Maravilhas..................................... 239
2 1 . Intolerância Z e r o ......................................................................251
2 2 . Ver Não É C r e r ........................................................................... 261

ín d ic e ....................' ................................................................................273
Apresentação
Thomas Sowell

obreza costumava significar passar fome e não possuir as roupas ade­


quadas para vencer o mau tempo, assim como passar longas horas
em um trabalho desgastante para conseguir pagar as contas no fim do
mês. Mas hoje a maioria das pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza
oficial não só tem bastante comida como, em geral, é provável que esteja
acima do peso. Há tantas vestimentas que os jovens delinquentes brigam por
causa de roupas de grife ou. tênis de marca. Quanto à ocupação, hoje existe
menos trabalho em lares de baixa renda do que entre os mais ricos.
A maioria dos pobres hoje tem televisão em cores e forno de m icro­
ondas. A pobreza no antigo sentido material está longe de ser tão dis­
seminada quanto outrora. A vida nas camadas mais baixas da sociedade,
eonludo, não é brincadeira - muitas vezes é um pesadelo.
A Vida na Sarjeta, livro recentemente publicado, retrata com acuidade
brilhante a dolorosa situação da subclasse - o vazio, as agonias, a violên-
d a e a sordidez moral. Este livro trata de uma região de classe baixa da
ürâ-Bretanha onde o autor, Theodore Dalrymple, trabalha como médico.
Na verdade, isso pode tornar a mensagem mais fácil para muitos norte-
-americanos, para que a compreendam e aceitem.
A maioria das pessoas sobre quem Dalrymple escreve é branca, de
modo que é possível contemplar hohestamente as causas e consequências
do modo de vida da subclasse, sem medo de ser chamado de "racista",
I ■-..»s |h' sko«i\ <iih la/m i as mesmas coisas socialm ente destrutivas e auto-
destrutivas que são feitas nos bairros de classe baixa dos Estados Unidos
não podem alegar que tal com portam ento se deve ao fato de seus ances-
li.lis terem sido escravos ou porque enfrentam discrim inação racial.
Elim inadas as justificativas, talvez possam os encarar a realidade e
argum entar de m aneira razoável sobre com o as coisas ficaram tão con ­
fusas e horríveis. C om o m édico do serviço de em ergência, Theodore
Dalrym ple atende jovens que foram espancados a ponto de precisar de
cuidados m édicos - por tentar ir bem na escola. Quando isso acontece
nos guetos norte-am ericanos, as vítim as são acusadas de “ agir com o os
brancos” por buscar um a form ação. N o outro lado do Atlântico, tanto as
vítimas quanto os agressores são brancos.
A região de baixa renda britânica em que Dalrym ple trabalha, assim
com o sua contrapartida norte-am ericana, tem com o característica o que
denom ina de um “ tipo de jovem egoísta e feroz, de quem m anteria dis­
tância em plena luz do d ia” . Ele também observa a “ destruição dos sólidos
laços familiares nos m ais pobres, laços que, pela m era existência, faziam
com que um grande núm ero de pessoas saísse da pobreza” .1
O próprio pai de Dalrym ple nasceu em um bairro pobre — mas num
contexto social m uito diferente daquele da subclasse de hoje. Prim eiro,
seu pai teve um ensino de verdade. Os manuais escolares nos quais apren­
deu seriam considerados m uito difíceis na era da educação facilitada.
0 pai de D alrym ple ad quiriu ferram entas para sair da pobreza, ao
passo que à subclasse de hoje não só são negados tais instrum entos,
com o ela aprende justificativas para perm anecer na pobreza - e as id eo ­
logias colocam a culpa dos problem as nos outros, estim ulando a inveja
e o ressentim ento. O resultado geral é um a geração de pessoas que têm
dificuldade para escrever palavras sim ples ou para realizar operações m a­
temáticas elem entares, e que não têm nenhum a intenção de desenvolver
habilidades p rofissio n ais.
Por ter as necessidades materiais providas por um Estado assistencial,
com o se fossem animais em umn la/onda, essa subclasse lem “ uma vida

1 Cd|). I , "U m Am or de V>lli'iil ,i"" Vi i, iif ir l i >1,, | , t.'J

a \ Vif 111 llil HmjHjl


i v,i, t-.til.i de ‘.Iguilii ti|m" , 1( i iiui.i dl/ I >,i11y 1111i|i , |,i 111m ii.ii 11ii uh ui ui 11K
n ii i Sf oigulh.ii di‘ ri ui i guli |Hlg.u .1 | ui ipil.i (i m ild .ir .1 |irúpi l,i r,i'.,i r< mu i
Ir/,cr,mi as gcr.H.i» s 111n ,i ,iutecedti.ini IMor .lind.i, e abandonada sem m
nhiiin senso de n \pimsabllldade num inundo seni Jiii/os de valoi
A lguns ed u cadores, intelectuais e o u lro s creem estar sen d o .iin ip *s
dos pobres ao ju stificar o u “ en ten d er” esse c o m p o rla m e n lo autodi slru
livo e ao estim ulá-los a ter u m a visão paranóica d o m u n d o que i is i r n ,i
No entanto, a coisa m ais im portante que alguém pode lazer pelo:, pobn
é ajudá los a sair da pob reza, assim co m o o pai de D alrym ple lól ajud ado
por aqueles qu e lhe ensinaram e possib ilitaram qu e ascendesse ,i um nível
m e lh o r- lratan do-o co m o um ser lu im an o responsável, não co m o gado
N en hum su m ário faz ju stiça aos vívid os exem p lo s e às argutas Im
pressões de A Vida na Sarjeta, Precisa ser lido — com o d iscern im eu lo <b que
a história deste livro tam bém é a nossa história.

('.ip M , "Õ Qm-Í! I’n h l i '/ . i l Ver, nesle llvit», p I << '

\|ii, ui H i m im i
Essa é a m a ra v ilh o s a to lic e d o m u n d o : q u a n d o as

co isa s n ã o n o s c o r r e m b e m - m u ita s v ezes p o r

cu lp a d e n o s so s p r ó p r io s e x c e s s o s — p o m o s a cu lp a

d e n o s so s d esastres n o so l, n a lu a e n as estrelas,

c o m o se fô s s e m o s ce le ra d o s p o r n e ce ssid a d e , to lo s
p o r c o m p u ls ã o ce le ste , v e lh a co s, la d rõ e s e tra id o re s

p e lo p r e d o m ín io das esferas; b ê b e d o s , m e n tir o s o s


e a d ú lte ro s, p ela o b e d iê n c ia fo r ç o s a a in flu ên cias

p la n e tá ria s , se n d o to d a n o s sa ru in d a d e a trib u í­

da à in flu ê n cia d iv in a ... Ó tim a e s c a p a tó ria p a ra o


h o m e m , èsse m e s tre d a d ev assid ão , re sp o n sa b iliz a r
as estrelas p o r su a n a tu re z a d e b o d e !1

W illia m S h ak esp eare, Rei Lear, A to I, C en a II

1 U tiliz am o s aqui a v ersão em p o rtu g u ês da seg u in te e d ição : W illiam


Shakespeare, Rei Lear. In: Tragédias:Teatro Completo. Trad. C arlos A lberto N un es. R io

d e Ja n e iro , Agir, 2 0 0 8 , p. 6 7 3 . (N .T .)
Inlr<>( lucilo

1 1 1 3 m espectro assombra o m undo ocidental: a “ subclasse” .1


Essa subclasse não é pobre, ao m enos pelos padrões que prevaler
ceram ao longo de grande parte da história humana. Existe, erh
gratis variados, em todas as sociedades ocidentais. Com o todas as outras
( l.issrs sociais, beneficiou-se enorm em ente do grande aumento geral da
riqueza dos últimos cem anos. Em certos aspectos, de fato, desfruta de
comodidades e confortos que dariam inveja a um im perador rom ano ou a
um monarca absolutista.Também não é politicamente oprim ida: não teme
di/cr o que pensa nem tem m edo de ser surpreendida por forças de segu-
i an«,a durante a m adrugada. Sua existência, no entanto, é miserável, de um
m od o especial de m iserabilidade que lhe é próprio.

1 Nu o rig in al, underclass. O te rm o , sem equivalente exato e m p o rtu g u ês, refere-se

cl.isse co m p o sta p o r d esem p reg ad os, jovens n ão em p regáveis p o r falta de q ua-


lllii'.i(,ão profissional e / o u d ep en d ên cia q u ím ica, su b em p reg ad o s, d oen tes c r ô ­

m io s , id o so s e pessoas c o m deficiên cia física, m ães o u pais so lteiro s, m in o rias


ri nicas, e tc., que são vítim as da arm ad ilh a da p ob reza e n ão tê m m e io s de sair
1 1( •.■..« circu n stân cia. N o vo cab u lário m arxista p o d e ria m ser ch am ad o s de lu m p e-

. 111 .iii i ou su b p ro letariad o e, e m te rm o s m ais g en érico s, p o d e ria m ser co n sid era-


ili r. i is "e x c lu íd o s " ou “d esfav o recid os” , m as a ad o ção de tais term o s p ecaria p o r
(lein.c.i.id.i generalização o u p od eria dar tons id eo ló g ico s ao d iscu rso d o autor,

que iipinii por em p reg ar u m a term in o lo g ia neutra em seu id io m a. (N .T .)


Com o m édico, trabalhei na últim a década em um hospital geral m uito
m ovim entado num a região pobre da Inglaterra, e tam bém em um a peni-
l ci ici ária nos arredores, e estive em posição privilegiada para observar a
vida dessa subclasse pobre. Entrevistei, por exem plo, umas dez m il pessoas
(|iic tentaram com eter suicídio (ainda que a tentativa tenha sido débil), e
cada uma dessas pessoas contou-m e da vida de quatro ou cinco pessoas de
seu círculo: vidas dom inadas, quase sem exceção, por violência, crim e e
degradação. Minha amostra é seleta, sem dúvida, com o todos os exem plos
derivados da experiência pessoal, mas não é pequena.
Além disso, por ter trabalhado anteriorm ente com o m édico em al­
guns dos países m ais pobres da África, bem com o em com unidades pobres
do Pacífico e na Am érica Latina, não hesito em dizer que o em pobreci­
mento mental, cultural, em ocional e espiritual da subclasse pobre ociden­
tal é m aior que o de qualquer outro grande grupo de pessoas que já tenha
conhecido em qualquer outro local.
Com o m édico, é claro, m eu com prom isso é tratar cada paciente com o
um indivíduo. E não poderia ser diferente: quando falamos com um a pes­
soa sobre detalhes tão íntim os da vida, dificilm ente nos ocorreria crer que
essa pessoa é algo diferente de um agente plenamente consciente que, em
essência, não difere de nós mesmos.
Apesar disso, surgem padrões de com portam ento, no caso da sub­
classe, quase todos autodestrutivos. Dia após dia, ouvi falarem da mesma
violência, da m esm a negligência e dos maus tratos às crianças, dos m es­
mos relacionamentos destruídos, das mesm as vitim izações pelos crimes,
com o m esm o niilism o e o m esm o desespero silencioso. Se todos som os
indivíduos únicos, com o surgem m odelos desse tipo?
O determ inism o econôm ico, da variedade do círculo vicioso de p o­
breza, dificilm ente parece dar um a resposta nesse caso. Não só a subclasse
não é pobre, com o ainda trazemos na m em ória recente incontáveis m i­
lhões de pessoas que saíram da pobreza - na Coreia do Sul, por exem plo.
Caso a pobreza realm ente gerasse um círculo vicioso, o hom em ainda
estaria vivendo na caverna.
O determinismo genético ou racial não é melhor. Será uma surpresa
para os leitores norte am erii....... - sabei que .1 maioria da subclasse britânica

li. \ \ 1« l u I u i N i l i j H i i
e branca, i ' <11H a| ii cM ii i ,i |i li las tis mcMiM’. | Mii ili h'|.i . m ii la|% iit-sn bolasse nr
gra nos listados Unidos por m otivos soun lhanit i claro. A genclica, alem
disso, dificilm ente pode explicar tais ............................... o surgim ento, desde
o linal dos anos 1950, de um a massa, sem precedentes na história, de filhos
ilegítimos.
O papel do Estado previdenciário na elevação (se essa é bem a pala
via) da subclasse é, igualm ente, muito enfatizado. N o m áxim o, ele pode
ter sido a condição necessária para tal ascensão: tornou-a possível, não
inevitável. Estados previdenciários existiram por períodos substanciais de
tempo sem desenvolver a subclasse m oderna: obviamente, é necessário
um ingrediente adicional.
Esse ingrediente é encontrado no campo das ideias. O com por ta meu
to humano não pode ser explicado sem fazer referência ao significado
e às intenções que as pessoas dão aos próprios atos e om issões; e
possuem um Weltanschauung, umaj visão de m undo, saibam ou não
São as ideias de m eus pacientes que me fascinam - e, para ser
horrorizam -m e: eles m esm os são a fonte da própria miséria.
Suas ideias se tornam manifestas até na linguagem que empregam
A frequência de locuções de passividade é um exem plo surpreendente
Um alcoólatra, ao explicar sua conduta quando bêbado, dirá: “ A cerveja
e muito doida” . U m viciado em heroína, ao explicar seu recurso à agu
lha, dirá, “ tá tudo dom inado pela heroína” , com o se a cerveja bebesse o
alc<lólatra e a heroína se injetasse no viciado.
Outras locuções sim plesm ente possuem um a função justificativa e u
presentam a negação do agente e, portanto, da responsabilidade pcv.nal
() assassino alega que a faca entrou ou que a arma disparou. O homem qm
ataca a parceira sexual alega que “ ficou m uito d oid o” ou “ perdeu a cabi
i, a ", com o se fosse a vítim a de um a espécie de epilepsia, da qual o devei
do m édico é curá-lo. Até a cura, é claro, ele pode continuar a maltratai a
parceira pois tais violações lhe trazem certas vantagens - certo de que <•
ele, c não a parceira, a verdadeira vítima.
Passei a ver a descoberta dessa desonestidade e autoengano com o par
te c.sencial do meu trabalho. Quando um hom em diz-me, com o explica
i,.lo para seu com portam ento antissocial, que ele se deixa levar facilmente,

iiiiiin liii;iiii I
pergu n to lln se .ilgum a vez se deixou levar pelo estudo da matemática ou
do subjuntivo dos verbos franceses. Invariavelmente, o hom em com eça a
rir: o absurdo do que ele disse se torna aparente para ele mesmo. De fato,
reconhecerá que sabia o tem po todo com o era absurdo o que fazia, mas
existem algumas vantagens, psicológicas e sociais, decorrentes da m anu­
tenção dessa farsa.
A ideia de que a pessoa não é agente, mas um a vítim a indefesa das cir­
cunstâncias, ou de grandes forças ocultas sociológicas ou econôm icas, não
surge naturalmente, com o um a com panheira inevitável da experiência. Ao
contrário, somente em circunstâncias extremas o desamparo é experim en­
tado diretamente da m aneira com o experim entam os o azul do céu. De
m odo diferente, o agir é um a experiência com um a todos. Sabemos que
nossa vontade é livre, e que tem limites.
A ideia contrária, no entanto, foi propagada incessantemente por in ­
telectuais e acadêm icos que não acreditam nisso no que diz respeito a eles
m esmos, é claro, mas somente no que concerne a outros em posições m e­
nos afortunadas. Há nisso um elemento considerável de condescendência:
algumas pessoas não chegam à condição plena de humanos. A ampliação
do termo “ com pulsão” , por exem plo, para cobrir qualquer com porta­
m ento repetido indesejável, mas m esm o assim gratificante, é um exem plo
da negação do ato pessoal que veio do m eio acadêmico e rapidamente
se infiltrou. Não m uito tem po depois que os teóricos da crim inologia
propuseram a teoria de os crim inosos reincidentes possuírem um desejo
com pulsivo pelo crim e (reforçando essas teorias com diagramas im pres­
sionantes de circuitos neurais do cérebro para com prová-las), um ladrão
de carros, de inteligência limitada e de pouca educação, pediu-m e que tra­
tasse de sua com pulsão de roubar carros - e, ao não receber tal tratamento,
é claro, via-se m oralm ente justificado para continuar a livrar os donos de
carros de suas propriedades.
Na verdade, a m aioria das patologias sociais apresentadas por essa
subclasse tem origem em ideias filtradas da intelligentzia. Nada é m ais verda­
deiro que o sistema de relações sexuais que atualmente prevalece na popu­
lação da subclasse, cujo resultado é de 70% de nascimentos ilegítim os no
hospital em que Ir.ili.ilho (um núm ero que chegaria m uito perto de 100%,

lit \ V m In i h i ' » t i |t*lM


ii.ii i Inssr |»'l.i I>ii riii,,i n,i i i (Ir u i11 j.m.uhli 11u11u i (i (Ir diiivi ,iiiii". ili i
m i Ih ( i n l i n r i i l r Ii h I i .i i k >) .

A liirraliira r o senso com um com provam que, ao longo do lempo, .r.


icl.içoes sexuais entre hom em e m ulher sempre foram cheias de difii ulda
de:., exalam ente porque o hom em não é apenas um ser biológico,-m as um
mi social consciente que carrega consigo um a cultura. Os intelectuais do
'.(■( ulo XX, todavia, buscaram libertar todas as relações sexuais dr quais
quer obrigações sociais, contratuais ou m orais e de qualquer significado,
de m odo que dali em diante somente o puro desejo sexual contaria n.i
lo m.ida de decisão.
Os intelectuais foram tão sinceros quanto a rainha M aria Antoniei.i
.to fingir ser pastora. M uito em bora os com portam entos sexuais deles le
nli.un se tornado mais descontraídos e liberais, não obstante, continuaram
.1 reconhecer obrigações inescapáveis com relação aos filhos, por exemph >
() que quer que tenham dito, não tencionavam rom per com as relações
Iamiliares mais do que M aria Antonieta realmente pretendia ganhar .nvid.i
cuidando de ovelhas.
Essas ideias foram adotadas, no entanto, literal e indiscrim inada me n
(e, pela mais baixa e mais vulnerável das classes sociais. Se alguém quisei
ver com o são as relações sexuais livres de obrigações sociais e contratuais,
d r uma olhada no caos das vidas das pessoas que com põem a subclasse.
Aí, toda a gama de tolices, perversidades e torm entos hum anos pode
ser exam inada livrem ente - em condições, recordem os, de prosperidade
sem precedentes. Temos abortos realizados por golpes de kung fu no ah
dôm en; crianças que têm filhos em núm eros dantes desconhecidos em
épocas precedentes ao advento da contracepção quím ica e da educação
sexual; mulheres abandonadas pelo pai das crianças um mês antes ou um
mês após o nascimento; ciúm es insensatos, que são o reverso da m orda d.i
prom iscuidade geral e que resultam na mais odiosa opressão e violênc ia,
uma grande parcela de padrastos seriais que acabam violentando fisica
e sexualm ente as crianças; e todo tipo de perda de distinção do que é
sexualm ente perm issível ou não.
A ligação entre essa lassidão e a m iséria de m eu s pacientes é tão óhvi.i
q ue uegá la requer con sid erável sofisticação intelectual (e d eson estidade).

I i i I k h I iii. H ii
O clim a dc relativism o m oral, cultural e intelectual - um relativis-
iilo que com eça com o um m odism o de intelectuais - foi com unicado
de m aneira exitosa para aqueles m enos capazes de resistir aos seus de­
vastadores efeitos práticos. Quando o professor Steven Pinker nos diz
cm seu best-seller, 0 Instinto da Linguagem2 (escrito, é claro, em um padrão
de inglês gram aticalm ente correto, e publicado sem erros de grafia),
que não existe um a form a gram aticalm ente correta de linguagem , que
a criança não precisa ser instruída na própria linguagem porque está
destinada a aprender a falar da m aneira adequada a suprir as próprias
necessidades, e que todas as form as de linguagem são igualm ente ex­
pressivas, o autor está ajudando a enclausurar as crianças da subclasse
uo m undo em que nasceram . N ão som ente os professores dessas crian­
ças se sentirão absolvidos da árdua tarefa de corrigi-las, mas rum ores
da tolerância gram atical do professor Pinker (um a versão linguística da
m áxim a de A lexander Pope, “ seja lá o que for, está certo” ) chegarão nas
próprias crianças. Elas, dali em diante, m elindrar-se-ão com o correto,
que tom arão por “ ileg ítim o ” e, portanto, “ hu m ilhante” . Eppur si muove:3o
que quer que o professor Pinker diga, o m undo exige um a gram ática e
ortografia corretas de quem quer nele progredir. Além de ser claram ente
falso que a linguagem do hom em com um é igual às suas necessidades,
um fato óbvio para quem leu as tentativas lam entáveis de as pessoas da
subclasse se com unicarem por escrito com outras, especialm ente com a
burocracia. O relativism o linguístico e educacional ajuda a transform ar
uma classe em casta - quase em um a casta de intocáveis.
Assim com o dizem não existir um a gramática ou ortografia corre­
tas, da m esm a m aneira não há alta ou baixa cultura: a própria diferença
é a única distinção reconhecível. Esse é um ponto de vista disseminado

2 Steven Pinker, 0 Instinto da Linguagem: Como a Mente Cria a Linguagem. São Paulo, M ar­

tins Fon tes, 2 0 0 2 . (N .T .)

3 D ito atribu íd o a G alileu Galilei e significa “N o en tan to , ela se m o v e ” . A frase


teria sido p ro n u n ciad a após a n eg ação da teo ria h elio cên trica diante d o tribunal
da Inquisição. S im b o licam en te rep resen ta a reb elião científica co n tra as co n v en ­

çõ es da autoridade. (N .T.)

mi \ \ li III m i ' m l | l ' ll l


I II I• I I II i l l I I I II I I |l|. I I II I I I I< I I 11 11 I I I ,1 I (||| I I I > 11 11 I I 11 II ill' 11, 1 I ill

1111 >1 1.1111 I I'm I I 11 1 1 ill I. 11 11 ii 11 . 1 11 1! 11 I IH 1 111 .li I ii I ii I ( I 11 li n,i I l u l u hi I 1 1.1

liili'lll||('iil/l(i I ii I ij.>I < . M.i.i In ii.m u .I The <iiiiiiiliiin (i 11 ic I ii ii 11 >1 ,i In m i,ii I,mu n l r
I xl^ll.l, ('111 III illlc il.l I 11.111 1,Ii Ic e K",pi'll,llillldiltlc I'OIII III IS, 1 11IC Ind.I .1 pi i
pul.ic.hi livcssc iiccsso ,i all,I u i l i i i u ) li.i pou co tem po publicou him ,irily;o
m i I hc uni cvcnto cm Nov,I York descrito ii.i m anchete co m o o en c o iilio
"d ,is m .iiorcs m ciilcs d os Estados U n id o s".
Ii I p ich I s.n) css,is mai( >rcs m ciilcs dos listados LJ n idos? S u iam cicn
Ir,u s agraciad os com Prêm io N o b el, físico s e b ió lo g o s m olci u la n " , 1,',i
11,m i os m elh ores a ca d ê m ico s co n te m p o râ n eo s d os listados I inidi i\ ’ < >11
lalvrz em p resá rio s de eletrô n ica qu e tran sform aram o m u n d o na ulliiii.i
11icl,Kle do século?
Nào, algum as das m aiores m entes dos Estados U nidos perlem iam, u.i
o p in ião do Guardian, a cantores de rap co m o Puff Daddy, que c .i .iv,i!m ■
cn co n iran d o em N ova York (num a “ conferência de cú p u la", <.......... Ii\ . n
jornal) para dar fim à onda de assassinatos entre os cantores d r ni|> d.i ( \ , i
l.rsir e O este e para m elh o rar a im agem pú b lica do rap co m o yen em V ,
los dos detentores dessas m entes gigantescas acom panhavam .1 repm i.iyi ui

de m o d o que, m esm o qu e n ão soubéssem os que os co m p o silo ii s d r ui|i


norm alm en te defendem u m conjunto brutal e estúpido de valores, saiu
ríam os im ediatam ente qu e esses intelectos supostam ente vasios perlem i.im
a pessoas que, com facilidade, p o d eriam ser con fu ndid as com bandidos,
A falta de sin cerid ad e do elo gio é óbvia para qu alqu er pessi >a que leuh.i
um con h ecim ento m ín im o da gran diosid ade dos feitos hiimaiK >s I1iiim ii
cehível que o autor de tal artigo, ou o editor do jornal, am bos lio m u i'
educados, realm ente acreditem qu e P u ff D addy et ul. possuem as m.Hon
m entes dos Estados U n idos. O fato é que a culiiira aviltada, da qual a ninsli ,i
rap é um produto, recebe tam anha atenção e elo gio s sérios que ilude seus
o u vin tes, levando-os a su p or qu e não existe nada m elhor que aquilo qm |.i
conhecem e de que gostam .Tal adulação é, portanto, a m orte d,i aspii ,n,,n >,
r a fá11a d r aspiração é, certam ente, uma das causas da passividade
Será que o destin o dessa subclasse im porta? Sc a m iséria de m llhoes
I Ir pessoas ui ipi irt.i, enl.io, i ei 'lam ente, a rcsposla r sim M esm o se esllvei
m os salisleiios em confiai o d esliiio de i.iuliis cidadãos ao pu rj,ulorio d.i

I i i H i m I mi Hl)
vida nos bairros pobres, esse não seria o fim da questão. Há claros sinais
de c|ue essa subclasse se vingará de todos nós.
N o m undo m oderno, más ideias e suas consequências não podem ficar
confinadas ao gueto. Am igos meus, de classe média, ficaram horrorizados
ao descobrir que a ortografia ensinada à filha na escola estava, muitas vezes,
errada; ficaram ainda mais chocados quando levaram o caso à diretora e
ouviram que isso não tinha a m enor importância, já que a ortografia estava
quase certa e que, m esm o assim, todo m undo entendera o que ela quis dizer.
Outras instituições têm sido igualm ente destruídas pela aceitação de
ideias que encorajam e m antêm a subclasse. Quando as prostitutas foram,
em núm ero considerável, para as esquinas das ruas do bairro onde m oro,
o chefe de polícia local disse, em resposta aos pedidos dos m oradores
para que fossem tomadas providências, que não poderia fazer nada já que
aquelas mulheres vinham de lares desprivilegiados e, provavelmente, eram
drogadas. Disse que não estava preparado para vitim izá-las ainda mais. Era
nosso dever com o cidadãos retirar as camisinhas usadas de nossas roseiras.
Assim é a vida sob o regim e de intolerância zero.
Pior ainda, o relativism o cultural se alastra m uito facilm ente. Os
gostos, a conduta e os costum es da subclasse estão se in filtrando na
escala social com surpreendente rapidez. O visual “ heroin chic” 4 é um a
m anifestação disso, em bora alguém que saiba realm ente quais são os
efeitos da heroína não possa achar algum a coisa chique na droga e
nos efeitos. Q uando um m em bro da fam ília real britânica revelou que
adotou um a das m odas dos bairros pobres e que colocou um piercing
no um b igo, n in guém ficou surpreso.5 N o que diz respeito à m oda do

4 Visual p o p u la riz a d o e m m e a d o s d o s an os 1 9 9 0 , e m q u e m o d e lo s u m tan to


a n d ró g in o s ap resen tav am u m a im a g e m esq u álid a e ab atida, o lh eiras ressal­
tadas, c o m o se fo sse m u su ário s de d ro g as p esad as, id en tifican d o glamour n a
d e ca d ê n cia h u m a n a . (N . T.)

5 R eferên cia a Z ara Phillips, filha da p rin cesa A nne c o m o cap itão M ark Phillips e
n eta m ais velha da Rainha Elizabeth II da In g laterra, q ue aos 17 an os, e m 1 9 9 8 ,
ap areceu c o m um piercing na lín gua e o u tro n o u m b ig o . A tu alm en te é u m a atleta
de h ip ism o e i.im pe.l eu ro p eia. (N .T .)

\ V i l I II MM ’ ‘ Ml |l l i l
vi".I ii.ii h I, du'. .nl< >i in f. 11 h I h h .ils c d.I m iïslr.i/^ .1 su bclasse (|iirin , dc
m o d o « icsi I■1111■. Inijii line <i I il m m > N u m .I .1111«"•. a sp iro u se .lit.111 >,.it nl
vels culturais i3o l>alx*>s.
( ) padrão desastroso de relações luunanas que existe na subclasse lam
béni tem se tornado com um na escala social mais alta. Com l.i
u d a ve/ maior consulto enfermeiras, tradicionalmente e por m uito lempo
originárias ou pertencentes à respeitável classe média baixa (ao menos,
.ipós Florence N ightingale6), que têm filhos ilegítim os de homens que, Inl
cialmente, praticaram algum tipo de abuso, e depois as abandonaram lissa
violência e posterior abandono são, em geral, m uito previsíveis dados o
histórico e a personalidade desses hom ens, mas as enfermeiras que lin.uu
tratadas dessa maneira dizem que se abstiveram de julgar o comp.mheim
porque é errado fazer juízos de valor. Se, contudo, não lóiem iap.i/i di
emitir um juízo sobre o hom em com quem viverão e com quem n i.i< i li
lhos, sobre o que emitirão juízos?
“ Não deu certo” , dizem , e o que não deu certo Inl o n I n i. i.ti• u\ih• •
que concebem com o algo possuidor de existência m deprii'li nu d i >lm
pessoas que o com põem , e que exerce uma mlluein I.in.i n.i iil> ■■■,,<
sr fosse um a conjunção astral. A vida é sorte.
N os textos a seguir tentei, prim eiram ente, d c.i n v n m di I in 11 i
realidade da subclasse e, então, revelar a origem d< v.a n 111• I nl> q ..........
propagação de ideias m ás, insignificantes e insincei.r. I l.m ................. .
dizer que um a avaliação verdadeira das causas da iiiIm i i.i d.i *.ul" 11 > >
proveitosa, caso desejem os com batê-las e, principalm ente, • \ li.u uln
ções que só agravarão esse cenário. Se traço um quadro de um i Miln d*
vida que é totalm ente sem encanto ou m érito, e descrevo nitiii.e. |n ■u
pouquíssim o atraentes, é im portante lem brarm o-nos de <|in , i.e.o h.ij.i
culpa, um a grande parte é devida aos intelectuais. N ão deveriam tei sido
tão tolos, m as sem pre preferiram evitar-lhes o olhar. Consideraram a pu
re/a das ideias m ais im portante que as reais consequências. Desconheço
egotism o mais profundo.

Florence Nightingale (1820 1910) tornou so famosa .10 tr.n.ii' ilos lí-i ldn'. n.i
j.MH-i r.i da <’rlmc-la r loi .i pioneira da cnlerina^eni profisNion.il moderna ( N I )

l u l l I M ll H, H o X\
realidade
sombria
K a Faca Entrou...

17
1 — Ü um erro supor que todos os hom ens, ou ao m enos todos os in-
| gleses, q ueiram ser livres. Ao contrário, se a liberdade acarretar
i H responsabilidade, m uitos não querem nenhum a das duas. Felizes,
i roçariam a liberdade por um a segurança m odesta (ainda que ilu só ­
ria). M esm o aqueles que dizem apreciar a liberdade ficam m uito p ouco
entusiasm ados quando se trata de aceitar as consequências dos atos.
() propósito oculto de m ilh ões de pessoas é ser livre para fazer, sem
mais nem m en os, o que quiserem e ter alguém para assum ir quando as
coisas derem errado.
N as últim as décadas u m a p sic o lo g ia p ecu liar e característica sur-
gin na In glaterra. Há m u ito se fo ram a c ivilid ad e, a in d ep en d ên cia
firm e e o ad m irável esto icism o que con d u ziram os in gleses ao lo n g o
dos anos de gu erra. Isso fo i su b stitu íd o p o r u m a lam ú ria escu sató ria
constante, q u eix as e alegações esp eciais. O colap so do caráter b r i­
tânico fo i ráp id o e co m p leto , assim co m o o colap so do p o d e rio da
(Ira bretanha.
Ao ouvir o relato que as pessoas fazem das próprias vidas, com o faço
iodos os dias, fico tomado de surpresa pela pequeníssim a parte que atri­
buem aos próprios esforços, escolhas e ações. Im plicitamente discordam
da lamosa máxima de Francis Bacon de que “ o m olde da fortuna dos
hom ens csiá, piliu ipalmente, nas mãos deles” .1 Em vez disso, v m n se
com o massa nas mãos do destino.
É instrutivo ouvir a linguagem que utilizam para descrever suas vidas.
A linguagem dos prisioneiros, em especial, nos ensina m uito a respeito
do fatalismo desonesto com que as pessoas buscam explicar-se para os
outros, especialm ente quando os outros estão em posição de ajudá-las de
algum a maneira. Com o m édico que assiste pacientes um a ou duas vezes
por semana, fico fascinado com o uso da voz passiva e de outros tipos de
discurso utilizados pelos prisioneiros para indicar o suposto desamparo.
Descrevem -se com o m arionetes do acaso.
Não faz m uito tempo, um assassino foi ao m eu consultório na peni­
tenciária logo após ser preso para buscar um a receita de metadona, droga
em que era viciado. Disse-lhe que prescreveria um a dose menor, e que num
espaço de tem po relativamente curto deixaria de receitá-la. Não iria receitar
um a dose de manutenção para um hom em condenado à prisão perpétua.
- E - ele disse —, sorte m inha ter vindo para cá com essa acusação.
Sorte? Já havia cum prido um a dezena de sentenças prisionais, muitas
por violência, e, na noite em questão, trazia consigo um a faca, que deveria
saber, por experiência, estar disposto a utilizar. A vítim a do esfaqueam en-
to, no entanto, é que foi o verdadeiro autor da ação hom icida: se ela não
estivesse lá, ele não a teria matado.
M eu assassino, de m odo algum , está sozinho ao explicar seu feito
com o algo que se deveu a circunstâncias além do controle. Por coinci­
dência, agora existem três esfaqueadores na prisão (dois deles em prisão
perpétua) que utilizaram exatamente a m esm a expressão ao m e descrever
o que aconteceu. “ A faca entrou” , disseram , quando pressionados a recu­
perar a m em ória supostamente perdida dos acontecimentos.
A faca entrou, aparentemente, não guiada por m ão hum ana. As tão
odiadas vítim as eram encontradas pela faca, e facas levadas às cenas dos
crim es não eram nada, se com paradas à força de vontade dos próprios
objetos inanim ados que determ inaram o desfecho infeliz.

1 F ran cis B a co n , Ensaios. Trad. e pref. Á lvaro R ibeiro. L isb oa, G uim arães E ditores,
1 9 9 2 , X L , p. 1 4 6 . (N .T .)

211 \ \ II III I I M ' ' Ml jl l l l


I \ h i i|i > p i | t i 1111 1 1 i i H • <1111 i 11. >' ( l a i i i, 111u ■ . r . I . i i , .1 u i i . r . (Ii v .i \ IH iii n ir.

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(1111• .I p.ir.l 11111 >111.11 ,1 1111 >111 il.l'. vllllll.is .1 1(111,'.IS lór.l (lo c o lllliilc ilrlr'.
u iii reconhcí iiik iiIo ili i <",|><>iis.il>iIi(liicli- m uito rápid<> poderia resull.u ii< >
( ( »lapso total de seus ân im o s r, possivelm en te, levaria ao su icíd io. A evasai <

m ental da p ró p ria resp on sabilid ad e pelos atos co m etid o s, co n tu d o, n.io


c d r m an eira algu m a d iferen te da apresentada p o r crim in o so s de m rn o i
p ericu losid ad e: os qu e p erp etram crim es contra a p ro p ried ad e ou , m ais
especificam en te, contra os p o ssu id o res de p rop ried ad e.
Bastam p o u c o s ex e m p lo s. U m p ris io n e iro re cé m -e n c a rc e ra d o pel.i
en é sim a vez v e io a m im p ara reclam ar q u e estava d e p rim id o desde (pir
o p ro b lem a co m eça ra n o vam en te. E qu al era, p e rg u n te i, o prob lem a <pir
se iniciava p e rio d ic a m e n te ? A rro m b a r e in va d ir ig re ja s, ro u b a r as peças
de valor, in c en d iá-la s e d e stru ir as provas. E p o r q u e igreja s? Será <|iie
ló ra arrastad o q u a n d o crian ça a ce rim ô n ia s ted iosas p o r pais h ip ó critas
e q u isera , talvez, v in g a r-se da re lig iã o ? A b so lu tam en te. Era so m en te poi
q u e as ig reja s eram m al p ro te g id as, fáceis de a rro m b a r e tin h am valioso s
o b je to s de prata.
C u riosam en te, dessa exp licação pragm ática, razoável e honesta nao
in feriu a escolh a p e lo ro u b o de igrejas co m o u m a carreira e que, poi
isso m esm o , ele era o resp on sável p e lo p ro b lem a q u e m istérios,intente
o tom ava cada vez qu e era solto: culpava as autoridades eclesiásticas prla
segu ran ça d éb il qu e lh e p e rm itiu ro u b ar p ela p rim eira vez, e q u r (Ir poi
só re fo rç o u sua co m p u lsã o p e lo rou b o. R ep etin d o a p o lícia, q u r ( ada vi
m ais cu lpa os p ro p rietá rio s pelos ro u b o s - p o r d eixarem de tom ai as pn
cau ções devidas contra a m alversação dos bens - em vez cie culpai a q m > i
q u e verd ad eiram en te execu taram o ro u b o , o ladrão de igrejas (IIsm <111■
as au to rid ad es eclesiásticas deveriam saber de suas p ro p en sõ cs r tom ai .r,
m edidas n ecessárias para evitar qu e ele pu d esse agir contra as igrejas
O utro assaltante p e d iu para qu e eu lhe explicasse p o r que ele repeti
d am en te in vadia casas e rou bava videocassetes. P erg u n to u -m r agressiva
m ente, co m o se “ o sistem a” o tivesse d esapontado p o r n ão lhe olerei u
essa resposta; co m o se fosse meu dever, co m o m éd ico , p ro p o rcio n ai lhe
o seg red o p sic o ló g ico ocu lto qu e, um a vez revelado, po d eria lev.i lo,

Itritliiliiili Siillllillll I MI ui ii I 11111iii


iiil.illvrlinenlc, .ui cam inho da virtude. Até lá, continuaria invadindo .is
casas e roubando videocassetes (quando estivesse livre para fazê-lo), e a
culpa seria m inha.
Quando m e recusei a exam inar o seu passado, exclam ou:
—Mas algum a coisa m e obriga a fazer isso!
- Que tal ganância, preguiça e a ânsia por excitação? - sugeri.
— Que tal a m inha infância? —perguntou.
- N ão tem nenhum a relação com isso - respondi firm e.

O lhou para m im com o se o tivesse atacado. Na verdade, pensei


que o assunto era m ais com plexo do que admitira, mas não queria que
com preendesse errado a m inha m ensagem principal: ele era o responsável
pelos próprios atos.
Outro prision eiro alegou sentir um a com pulsão por roubar carros
tão forte que era irresistível — um vício, disse-m e. R oubou uns quarenta
veículos em um a semana, mas, apesar disso, considerava ser, no fundo,
um a boa pessoa porque nunca fora violento com n inguém , todos os v eí­
culos que rou bou tinham seguro e, portanto, seus donos não perdiam
nada. Independente de qualquer incentivo financeiro para agir assim,
afirmava, roubava carros pela excitação que isso lhe trazia: se evitasse
fazê-lo por alguns dias, ficava inquieto, depressivo e aflito. Era um ver­
dadeiro vício, repetia em intervalos frequentes, caso eu tivesse esquecido
disso nesse m eio tempo.
H oje a concepção prevalecente de vício, em geral, é a de um a doença
caracterizada por um ím peto irresistível (m ediado neuroquim icam ente e
hereditário por natureza) para consum ir um a droga ou outra substância,
ou para se com portar de m aneira autodestrutiva ou antissocial. U m vicia­
do não tem culpa e, por seu com portam ento ser a m anifestação de um a
doença, possui tanto conteúdo m oral quanto as condições m eteorológicas.
Portanto, o efeito do que o ladrão de carros dizia-m e era: o furto com ­
pulsivo de autom óveis não era som ente culpa sua, mas a responsabilidade
por im pedi-lo de apresentar aquele com portam ento, neste caso, era m i­
nha, já que eu era o m édico que o tratava. E até que a profissão m édica en­
contrasse o equivalente com portam ental de um antibiótico no tratamento

:il) \ \ M III I I I I ' ' I I I |i I I I


< 1,1 I ) I K M 11 I K I t 1 l e t , l i t I 1 1 1 1 1 1 1 ! 11 . t I 1,1 ,1 ( . H I N , I I lllll « ‘ I K II I I I «' M >1 1 1 1 1 1 « ' I l l I I I ' III) I HI

veuieiite I i.i iii I in 111111M Iil ,t 1 1<)>, ilc ( ,ii ii is e, ,m ui,I .issl 111, 11 insider,ll sr la,
I 111 K l . l 11 K M 1 1 . 1 111 K ' 1 1 1 1 ' . lllll,I III ", S I 1,1 < I < T C I I I < '

( ) l . l l o i l c I is < l l 111 11K is< is sc III I l i e l l ' . l li sleril ' ci ll .1 l'CS|)( n is, 11il IK l,l< It* tie

si ns ,iins para o iilro loc.il c ilustrada por algu m as das exp ressõ es (|iie uli
ll/am (in n m ais freq u ên cia nas consultas. A o descrever, por ex e m p lo , a
'perda tic e q u ilíb rio que os leva a agredir qu em q u er q u e os desagrade
s i i I k ien lcm cn le, dizem , “ tenho a cabeça quente” , “ perdi a cab eça” ,
( ) qu e exatam ente querem dizer com isso? Querem d i/c r q u e con
sideram so frer de um a form a de epilepsia ou outra pato lo g ia cerebral
i ii|,i única m anifestação é a fúria involuntária, e que é dever d o m édii o
i 11 i.i los. Muitas vezes, p õem -m e de sobreaviso dizendo q u e alé q u e aclie
.< cura para tal com portam ento, ou ao m enos prescreva as dro gas qm
so licitam , matarão ou m utilarão alguém . A responsabilidade, q u an d o n
li / in in, será m inha e não deles, pois sei o que farão e terei fracas.s.u li i n n
len i,ir evitar. Assim , suas doenças putativas não som ente exp licam e absi il
vem as más condutas anteriores, com o tam bém os exoneram de qu alqm i
i o m lu la im própria no futuro.
Além disso, por advertirem -m e das intenções de efetuar luturos ala
ques, colocam -se com o vítim as e não com o perpetradores. Di/em ás au
loriilades (no caso, eu) o que farão, e m esm o assim as autoridades (eu, de
novo) nada fazem. Então, quando voltarem à prisão após com clei oiilio
crim e horroroso, sentir-se-ão prejudicados pois “ o sistem a” , rcpre.seiilaili i
pela minha pessoa, m ais um a vez os decepcionou.
Se, no entanto, eu tomasse a direção oposta e sugerisse a dfieui.ilo
preventiva até que consigam controlar os temperamentos, seniii se iam
ultrajados pela injustiça da m edida. Que tal um habeas corpus? Que dl/ci da
inocência até que provem a culpa? E nada deduzem do fato de que geial
mente podem controlar os ânim os na presença de um a força suficiente
mente antagônica.
Crim inosos violentos muitas vezes usam um a expressão auxiliai a
"p e rd e r a cabeça” ao ex p licar seus atos: “ não estava em m im ” . Eis o "psl
e o lo g u ê s ” dos b airros pobres, eis co m o a doutrina do “ verdadeiro e u " é
refletida pelas lentes da degradação urbana. () “ verdadeiro e u ” não guarda

M i m ll, ti li ti S i l l l l l ll I I I I ll I I II H I l l l l l l l l II
relação algum a com o "eu fen om ên ico” , aquele “ e u ” que toma as bolsas
das senhoras, entra nas casas das pessoas, espanca a m ulher e os filhos ou
que bebe dem ais frequentem ente e se envolve em brigas. N ão, o “ verda­
deiro eu ” é um a concepção im aculada, intocada pela conduta hum ana:
é aquele inexpugnável núcleo de virtude que perm ite m anter o respeito
próprio, não im portando o que faça. O que sou não é, de m odo algum ,
determ inado pelo que faço, e enquanto aquilo que fizer não tiver nenhum
significado m oral, caberá aos outro garantir que o m eu “ eu fen om ên ico”
aja conform e o “ verdadeiro eu ” .
Por isso os detentos am iúde usam outra expressão: “ precisar pôr a
cabeça em ordem ” . A im agem visual que têm de suas m entes, suspeito, é a
de blocos de montar, em pilhados de m aneira desordenada, que o m édico,
ao rem exê-los dentro do crânio, tem a capacidade e o dever de colocar
em perfeita ordem , assegurando que, dali em diante, toda a conduta será
honesta, obediente à lei e econom icam ente vantajosa. Até que essa arru­
m ação seja feita, sugestões construtivas - aprenda um ofício, m atricule-se
num curso por correspondência - esbarram no refrão: “ Farei, quando ti­
ver posto m inha cabeça em ord em ” .
N o centro de toda essa passividade e recusa de responsabilidade está
um a profunda desonestidade - o que Sartre teria cham ado de m á-fé. M ui­
to em bora os crim inosos violentos possam tentar culpar outras pessoas,
e m esm o que consigam transmitir qualquer aparência de sinceridade, sa­
bem , ao m enos por um tempo, que o que dizem é falso.
Isso fica claro no hábito de viciad o s em d rogas de, reiteradam ente,
alterar a lin g u agem segun do o interlocutor. C om m éd ico s, assistentes
sociais e agentes de liberd ade co n d icio n al - com todos os q u e possam
se m ostrar úteis, p or receitar ou p or ter capacidade de dar testem u­
n ho —, eles enfatizam o desejo esm agador e irresistível pela d roga, a
in to lerabilid ad e dos efeitos da abstinência, os efeitos deletérios que a
droga tem sobre o seu caráter, sobre a capacidade de ju lgam en to e o
com portam ento. Entre os viciad o s, no entanto, a lin g u agem é bem d i­
ferente, otim ista, em vez de abjeta: versa sobre on de se p o d e con segu ir
um a droga de m elh o r q ualidad e, on de a droga é m ais barata e com o
aum entar os efeitos.

:i2 \ \ II III I I I ! ' >*ll |l I I I


S iim h 'I ii I ( I Ini h h ii ii.iii IMIV,. I ijirov.ir, .1 ii.ii >sci pt m b re v e , i d a l o s) i pic
II II ICSI1K I ,H I llllcit .1 I'll 111 I >'• ' Ici I III I I'. ( Veil ) I pit’ II.II I f III IV.I .1 ( 111'.cl V.U, .11I
de I pic ,is pi Isin". ..h I Iin I vi ii.iil.it les tin ii im c . O s p risio n e iro s, et ml m In,
I iiv .ii i.ivclm entc tlcscrcvcin ,ios m éd ico s c aos p sic ó lo g o s .is tliln iiltl.itlt",
ih ml.'uicia (tpic ap rt'scn lam , n.i o ca sião , c o m o sc lo sscm rclitpii.c. tic
l.m iilia), os pais v io le n to s o u au sen tes, a p o b re z a e todas as d ific u ld ad es
ï d esvan tagen s q u e são h era n ça da raça u rb an a. Entre eles, no c n la n lo ,
ipial será o d isc u rso q u a n d o estab elecem con tatos, ap ren d em novas let
nu as e z o m b a m d o s p o b re s to lo s q u e g a n h a m a vid a h o n e stam c n le, iii.c,
iimit a lica m rico s?
A perspectiva d esonesta e in teresseira fica aparente n a postura to m
ipie tratam aqueles qu e acreditam ter-lhe feito m al. Por ex e m p lo , sobre 11*.
p o lk ia is q u e su p õ em (volta e m eia, de m an eira razoável) q u e os lenliam
' sp.m cado não d izem : “ Pobres policiais! F oram criad o s em lares aulorii.i
rios e agora p ro jetam sua raiva em m im , m as, na verdade, ela é dl ri\>i< l.i
aos pais q u e os m altrataram ” . A o co n trário , d izem co m força e em o ço es
ex p lo sivas: “ os im b e c is !” . P ressu p õ em q u e a p o lícia age p o r livre arbítric),
para não dizer, p o r u m a vo n tad e m alévola.
O m o d o de o p risio n e iro apresentar-se ao pú b lico m uitas vezes guard
cu riosa sem elhança co m o retrato que deles fazem os progressistas li co m o
se dissessem : “ Vocês q u erem que eu pareça u m a vítim a das eirciinsi.mi i.e. '
Pois bem , para vocês serei vítim a ” . A o repetir essa história, com eça a at n dl
lar nela, ao m en os acredita p o r certo tem po e co m u m a parcela de sua lii!< ll
j'cn eia. A negação da c u lp a - t a n t o a ju ríd ica quanto a m oral se ........a, di i
m aneira, possível frente à lem b rança das m en ores dreunstâm i.e. tio 11 inn
O h o m e m sem p re teve a capacidade de en gan ar os outros < . < • Iam
de autoen gan o. F oi F rie d ric h N ietzsch e q u em fez a fam osa o b v i v.u,,in
tie tpie o o rg u lh o e o a m o r-p ró p rio n ão têm dificu ld ad e tie supei.u i
m em ó ria, e cada m e ca n ism o m en tal de defesa co n h ecid o pelo p s11 ú lo g o
m o d ern o aparece em alg u m a parte da o b ra de W illia m Shakespeare. A lin
pressão q u e fica, n o entanto, é a da facilid ad e co m q u e as pessoas rejeitam
a resp on sabilidade p o r a q u ilo q u e fizeram - a deson estidade inlclet lual
e em o cio n al sobre as p ró p rias ações - q u e au m en to u en o rm em en te nas
i i 1111nas décadas.

I<«I|IhllM|| ''MlIII um I II 1'IHII IMll I«III


Por que isso acontece exatam ente quando, objetivam ente làlando, a
liberdade e a oportunidade para o indivíduo jam ais foram tão grandes?
Em p rim eiro lugar, existe hoje um eleitorado m uito am pliado para as
visões progressistas: legiões de voluntários e cuidadores, assistentes sociais
e terapeutas, cujas rendas e carreiras dependem da suposta incapacidade
de um grande núm ero de pessoas de se defender ou de se com portar
razoavelmente. Sem os drogados, os assaltantes e outros supostamente im ­
potentes que se deparam com as próprias inclinações indesejáveis, esses
redentores profissionais não teriam ocupação. Tais pessoas têm grande in ­
teresse em psicopatologias e sua visão terapêutica é a do paciente passivo,
vítim a desam parada de m ales que legitim am o próp rio com portam ento
do qual pretendem redim i-lo. De fato, as vantagens para o m alfeitor de
parecer desam parado são, hoje, tão evidentes que quase não precisa ser
encorajado a fazê-lo.
Em segundo lugar, há um ampla disseminação dos conceitos psicote-
rapêuticos, ainda que de form a adulterada ou m al interpretada. Esses con­
ceitos se tornaram lugar com um , m esm o para os ignorantes. Assim, foi
incutida a ideia de que, se a pessoa não conhece ou com preende os m otivos
inconscientes dos próprios atos, não é verdadeiramente responsável por
eles. Isso se aplica, é claro, àqueles atos que podem ser tidos com o indesejá­
veis; não há dúvidas quanto aos próprios m éritos. U m a vez que não existe
um a única explicação derradeira para algum a coisa, a pessoa sempre pode
alegar ignorância dos próprios m otivos. Essa é um a escapatória perpétua.
Terceiro, a anuência geral do determ inism o sociológico, em especial,
pelas classes m édias abarrotadas de culpa. Associações estatísticas têm sido
utilizadas indiscrim inadam ente com o provas do nexo causal. Assim, se o
com portam ento crim inoso é m ais com um entre as classes pobres, deve ser
a pobreza que causa o crim e.
N inguém , é claro, se sente sociologicam ente determ inado - certamen­
te, não o sociólogo, e poucos progressistas que apoiam tais princípios reco­
nhecem suas consequências profundam ente desumanizadoras. Se a pobreza
é a causa do crim e, os assaltantes não decidem invadir as casas mais do que
as amebas decidem m over seus pseudópodos para pegar um a partícula de
alimento. São autômatos - e, talvez, devam ser tratados com o tais.

ti \ \ 1« I I I I M l H l |l 11|
I1!!:. qui' vrm ,i lini.i .1 1111111 <111 1.1 miIiIiiiiIii.ii <1.1 lllosolla marxista .1
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I 1,1. 111.is, .KI et ml 1,11 in, .1 ex 1st cm 1.1 MK'i.il c| lie determ ina a conscient la Sc
I .r.'.ini, os homens .mula deveriam morar em cavernas, mas c liasi.inlc
vi’ iossim il para abalar a confiança das classes médias que o crim e 1 nin
I>1 <iblcma moral e não um problem a de disposição de ânimo.
Nessa rica mistura de incerteza e equívoco, os historiadores sociais im
dem .1 acrescentar um a pitada de provocação, assinalando que as classes me
dias viam o crim e com o um problem a m oral desde o século XVIII, quando
I mi ,1 muitos malfeitores a situação era realmente outra, já que, nessa ópih .1.
nimias vezes o único m odo de conseguir alimento era roubar. Afirm ar Issi 1,
I' 1 Iam, é negligenciar a mudança fundamental nas oportunidades de vida
.pu m orreram desde então. Na Londres georgiana, por exem plo, a expet
taiiv.i de vida ao nascer estava em torno de 25 anos, ao passo que hoje esta
1111 / S anos. N o auge da era vitoriana, a expectativa de vida da família real
II a '>()% mais baixa que a das parcelas m ais pobres da população de hoje
( Vriamente, agarrar-se a explicações que podem ter tido certa força, mas
que não são mais plausíveis, no sentido m ais literal, é ser reacionárit >.
O próprio m odo de explicação oferecido pelos progressistas para
crim e m oderno - que parte das condições sociais direto para o compni
lamento, sem passar pela m ente hum ana - oferece aos crim inosos uma
desculpa perfeita; desculpa cuja falsidade é percebida com ,1 panela dt
inteligência que possuem mas que, no entanto, é útil e conveniente p.u 1
lidar com a burocracia.
Por fim , consideremos o efeito popular da constante repclli.ao da
injustiças realizada pelos m eios de comunicação. As pessoas, loup dt >,<
acharem extremamente afortunadas se comparadas a todas as populai.m
anteriores, passam a acreditar que vivem nos dias atuais na pior das épi 11 as
1 sob os mais injustos regimes. Cada convicção errônea, cada exem plo dt
( 1 mduta ilegal da polícia são tão alardeados que até os criminosos pr<iflssli 1
nais, mesmo aqueles que cometeram os atos mais horrorosos, devem api n >
rislicamente sentir que podem ter sido tratados com injustiça ou hipocrisia
li a noção dissem inada de que a desigualdade material é, em si, um
sím bolo de injustiça institui ionall/ada também ajuda a fom entar o crim e

IIiiIhImiIi S i h ill him I' o I ni h I ' . i l i u m


St ,i p ro p ried ad e é um roubo, logo, o roubo é um a form a de justa re
tribuição. Isso leva ao desenvolvim ento de um fenôm eno extrem am ente
fu rio so : o ladrão ético. Esse ladrão orgulha-se de roubar som ente daqueles
t|ue, a seu ver, podem suportar a perda. Assim , vi m uitos assaltantes dize­
rem, num ardor de satisfação pessoal, que não roubam idosos, crianças e
pobres, pois isso seria errado.
— Na verdade, você só rouba pessoas com o eu - disse a ele.
(Por acaso, a casa defronte da m inha foi assaltada quatro vezes em
dois anos.)
Eles concordam ; e por m ais estranho que pareça, esperam que eu
aprove essa crim inalidade contida. As coisas já chegaram a esse ponto.

1994

\ \ li III U M M t U j i I n
1 ma das enferm arias do hospital onde trabalho é destina
pacientes que se envenenam deliberadam ente por overdose. Trata
y m os cerca de 1.200 casos por ano, de m odo que a cada dia de
i rabalho tenho a firm e convicção de que até aquele m om ento já ouvi todas
as lolices, todas as depravações, todas as fraquezas e toda a crueldade que
os seres hum anos têm a oferecer em form a de narrativa. A cada dia que
passa, no entanto, m inha fé na capacidade de os seres hum anos arruina
rem totalmente suas vidas é renovada: não foi à toa que LeonTolstói escre
veu no início de ./lima Karenina que todas as fam ílias felizes se parecem enln
si; as infelizes são infelizes cada um a à sua maneira. E claro que pode ,< i
um exagero cham ar os arranjos sociais em que vive a m aioria de meus pa
cientes de fam ílias, mas, ainda assim, o argum ento é válido. Sincera nu ni<
as formas de m iséria hum ana são infinitas.
Façam os um retrato p an orâm ico da enferm aria e exam inem os o
que pescam os no dia anterior nesse grande oceano de infelicidade que
nos circunda.
Na prim eira das seis camas está um a jovem , descendente das índias
( )cidentais, 21 anos, cabelos tingidos de laranja e unhas pintadas de ama
relo brilhante. Diz-me que fora professora da escola de enfermagem , mas
depois “ caiu doente” de um mal cuja natureza seria indelicado perguntar,
|á que o produto, e não a preeondição de receber auxílio-doença dos cofres
públicos, é um a total fraude. Ela tem um tremendo olho roxo e um grande
inchaço na testa. Conta que tom ou um a overdose depois que o ex-namorado,
de dezenove anos, a espancou.
- Por que ele fez isso? —perguntei.
-T elefo n ei para ele - respondeu. - Disse que não queria que lhe tele­
fonasse nunca mais.
- Então ele voltou e bateu em você?
-É .
- Ele sem pre bate em você?
- N ão - disse - , norm alm ente, ele m e dá um a cabeçada.

Na p róxim a cama está um hom em de uns cinquenta anos, um ex-pa­


ciente de nossa enferm aria. N a época, tomara pílulas porque o irm ão - seu
m elhor am igo e, praticamente, o único contato social confiável desde que
se divorciara - havia falecido. Dessa vez, no entanto, a overdose foi causada
por um a questão totalmente diferente.
- Uns ciganos estavam quebrando a m inha janela, então peguei a
arma e atirei num deles.
- Ele ficou ferido? - perguntei.
- N ão, nada sério. Acho que m achucou um pouco a perna. Atirei com
balas caseiras, sabe, um pouco de pólvora e sucata de metal.
- A polícia apareceu?
- Não.

Após o acontecido, nenhum a das partes da transação estava m uito


desejosa de buscar a proteção ou a interferência da lei.
—Acho que agora você está com m edo de voltar para o seu apartamen­
to porque acha que eles virão atrás de você novamente e, dessa vez, não
serão as janelas que irão quebrar, certo?
- Isso mesmo.

Consegui fazer com que fosse adm itido no hospital psiquiátrico, o


refúgio que escolheu.

:iii \ V l l l n MM M f t l j H H
N .1 |il t )h111l.i >.1111,1 h lllii', illii.i yarola e'.yuiia île 1111111 / r .uni'. I Js.l mil
li.lliilll Vrim rlllii VIVI i i 11 >1111.1'. Iiclll |IISl.lS, CIK Ile SC de «<>1111<I.I e depuis
viimil.i tudo |.i «'ï 11 >u il’. |ni l-.< >s cm diversas ocasioes loinou as |il 111 l.r.
h

aiil h oagulantcs do padrasto, que precisa torná- las, pois sofreu uma eu ui
y;ia cardíaca, li uma criança problemática e foi levada ao hospital pela mai-
11 hno se losse um saco de batatas. O gesto suicida da fi Ilia a atrasara para . i
bmyo. Fazendo beicinho e sem pre à beira de um ataque de birra.a menina
di/ (|iie não quer voltar para casa.
Por causa da sua mãe e do seu padrasto? —perguntei.
Não —diz ela.

Nao quer voltar para casa porque fora estuprada há três meses cm
ah;iini\lugar do conjunto habitacional onde m ora e, desde então, aparei <■
iam algum as pichações dizendo que ela gostara de ser estuprada e <111< c
uma "piran ha” (ou seja, um a m enina de virtudes m ais fáceis que a média,
.1 levarmos em conta a idade, classe social, o nível educacional, etc.). I ss<
c um ponto de vista com o qual a m ãe concorda plenam ente, e por isso a
paciente decidiu sair de casa e viver nas ruas, em vez de voltar para ( asa
líla também não quer ir para o abrigo m unicipal de m enores, e na< >
posso culpá-la. Diz querer ser descoberta por um a fam ília do serviço de
acolhim ento familiar, mas a assistente social inform ou-m e que não só ■
■liIh il arranjar um a fam ília às pressas, mas que, um a vez que a família di
acolhim ento conheça seu histórico — as constantes faltas à escola, a buli
mia, os pulsos cortados —não concordarão em ficar com ela. A única ■<du
çao possível seria viver com a tia (irm ã da m ãe), onde vivera ante. i Ima
lao léliz que se com portara bem. A mãe, porém , exercendo seus dm u< r
para não dizer deveres, parentais, proibiu, de m odo específico, que ,i lilli i
\ ivesse lá exatamente porque, suponho, na tia, a filha se comportara bem
A mãe queria livrar-se dela tanto quanto ela queria livrar-se da mãe, ma-,
a mãe também queria manter a ilusão de que esse desejo decorria unit a
mente do m au com portam ento da filha. Para disfarçar sua parcela de culpa
nessa situação e a indiferença que nutria pela própria prole, era imperii>si >
que não fosse encontrado nenhum lugar que fosse tão agradável à filha a
I » mio de lazê la m elhorar de c<>mp<irtamento.

Mniliilmli Sninlii m > ...... . 1 **mI


Surgiu um impasse. Assim, minha paciente era com o a Rússia <l<> a n d

go provérbio em que todos os cam inhos levavam ao desastre.


Passemos à cama seguinte. Nela está um hom em de uns trinta anos,
com pleição física forte e um a fisionom ia m aligna - um a com binação in ­
feliz, segundo experiência própria. Tomou um a overdose das pílulas antide-
pressivas da mulher, e não é preciso ser um Sherlock Holm es para deduzir
que ele é a razão da necessidade das pílulas. Tomou um a overdose após pren­
dê-la contra a parede pelo pescoço, ao redor do qual, diz ele, ficaram agora
equim oses “ do tamanho de um chupão” . Ela com eçou, diz ele, portanto,
a culpa é dela; estava deixando-lhe com dor de ouvido de tanto falar sobre
o fato de ele beber o dia inteiro.
- Eu não aguentava m ais; então, saí de casa e ela não q u eria deixar
que eu saísse. Daí, p eg u ei-a p elo p escoço e em p u rrei contra a parede —
m ostran do-m e, com gestos, com o fez. - Todo m un do tem um lim ite,
até você.
Disse-m e que discutem constantemente. —Sobre o quê? —perguntei.
- Quando estava na prisão, ela teve um caso com um negro que batia
nela, e fez um aborto.
- Quanto tem po você ficou na prisão? - perguntei.
-T rê s anos.
- Ficar preso por tanto tem po não ajuda o relacionam ento - observei.
- E, m as não pedi pra ela se deitar e abrir as pernas, né?
- Então você está m orando com ela?
- Ela é a mãe dos meus filhos; eles são a única coisa que já tive nesse
mundo. Se ela carregá-los para longe de m im , terei de voltar direto para o
crim e, porque não vai m e restar m ais nada. Vou atacar tão rápido as pessoas
e a polícia que ninguém vai saber o que aconteceu. Para m im , não passam
de baratas. E digo m ais, m uito em breve terei dinheiro no bolso, muito
mais do que você já teve nesta vida.
Cham ei atenção para o fato de a história indicar o contrário: ele já
tinha passado dezesseis anos de sua vida na prisão.
- E, mas desta vez vou fazer algo grande; não tem por que pegar três
ou cinco. — Seus olhos cintilavam, com o delirante brilho da mais pura
psicopatia.

m i \ \ é» III M H í ' I II |l' |fl


liu mmi aq u ilo em (iiif i'ss.i sociedade 1 1 y i >vnno me Iranslom i.t
i mi M m pai Ierrou c o m ig o .10 me m andar para o re lo rm ató rio c111.111<l<)
i 111 1.1 \«.i 1 ( iio, e (udo o qu e aprendi lá foi com o co m eter m ais crim es. Bem ,
iu;i 11.1 (|iic eles (cm o c|iie q u erem , é m elh o r prestar atenção se Ibrem 1ir.11
u n ir . Illhos de m im .

N.10 l!i/ m u ito sen tid o co n tin u a r essa co n versa, p o rta n to , p assem o s
11.11.1 o p róxim o leito. N ele está um a m ulher m agra de 27 anos, origi
11.111.1 d.is índias O cidentais, que bebeu m eio vid ro de m etadona. lil.i
......seguiu com um am igo, que con seguiu com outro am igo (a pesso.i
p.11.1 quem , na verdade, a substância foi receitada é com o um ancestral
disi.m ie, que som ente um diligente genealogista pod eria esperar desco
In ir) lila tom ou a m etadona para ajudá-la a largar o crack, que já vinha
ii'..mdo muitas vezes ao dia, p or dois anos. V ivia em casa com a m ãe e .1
11111.1 de nove anos.
li o pai da sua fdha? - perguntei delicadamente, com o se estivesse
mvesligando seu histórico de doença venérea.
Não tenho m ais nada com ele.
lile ajuda, de algum a maneira, a filha?
As vezes, ele a vê.
Com que frequência?
Quando tem vontade.

A paciente fora secretária numa firm a de advocacia até um namora d 1 1


apresentá-la ao crack.
Você não precisava ter aceitado —disse a ela.
lira de graça —respondeu.
Quer dizer que se eu lhe desse cinquenta pílulas agora, sem cobrar
nada, você as aceitaria?
Aceitaria se visse você tomá-las e se elas dessem um “ barato” .

() crack gratuito não durou para sempre, é claro, e logo ela teve de pagai
I■. por icr perdido o em prego, a única maneira de pagar foi aceitar o que o
New liii(|l(iinl (oiirnal of Mcili« n«'1 1 1 Tlir l iincii agora chamam de “ trabalhe>sexual"

l ( t I i I k I i k Ii ' illllllum \<l < H m M m i i .I I I Ml I


Perguntei se atualmente ela tinha um namorado.
- Ele está na prisão.
- Por quê?
- Assalto. Vai sair em dois anos.

A mãe da m oça, que tom a conta de sua filha, chega à enfermaria. Tem
uns cinquenta anos, veste um tailleur azul e um chapéu fora de m oda com
véu e luvas brancas. Com o um a pessoa de m uito respeito, dona de casa e
m em bro da igreja que aos dom ingos fala em línguas, está profundam ente
aflita com a vida dissoluta de vícios da filha, em bora faça um grande es­
forço para disfarçar tamanha e profunda angústia. Assim, enviam os a filha
para um centro de reabilitação de drogados.
N o últim o dos seis leitos da enferm aria está um a m enina de dezoito
anos olhando para o teto. Tom ou sua overdose, diz-m e, p orq ue detesta a
vida. De acordo com a m inha experiência, contudo, pessoas que detes­
tam a vida dificilm ente se preocupam tanto com a própria aparência,
donde deduzo que algo m ais específico a está incom odando. Saiu de casa
e foi viver com um a am iga. Tom ou um a overdose após um a briga com o
nam orado, dez anos m ais velho do que ela, um ex-soldado dispensado
do exército de m aneira desonrosa por fum ar m aconha. Há nove meses
ela é sua nam orada (por toda a sua vida sem iadulta), e até agora ainda
não foi m orar com ele. Ele, no entanto, tem m uitos ciúm es dela. Quer
saber onde ela está a cada m inuto do dia, e a acusa de infidelidade, visto ­
ria suas coisas, checa suas atividades quando ela está ausente e exam ina
a sua bolsa. Apesar de ainda não ter batido nela, p or vezes ameaça. Agora
ela tem pavor de ir a qualquer lugar sem ele, pois tem e sua reação. Se
saem juntos, ela nunca som e de vista.
-V o cê sabe alguma coisa a respeito das ex-namoradas dele? - perguntei.
- Ele estava vivendo com um a delas, mas ela o deixou quando desco­
briu que ele estava saindo com outra.
- O que m ais interessa o seu nam orado, a não ser você? - perguntei.
- Na verdade, nada.
- E quais são os seus interesses? - perguntei de novo.
- N ão m e interesso por nada. - ela respondeu.

\ \ | i ! m m m ! <m i |i M i
H.i i l r i i ’ ,1.1 i i I 1111111 I ' n m.il i c i h i i n c r . iilii ( Itic ii.u i .1 I i ,i
11' ( 111< - 1 11 t i 11111111

hi li> Lu lc I -, Iii v i Hi I n.ii 1111 1<- cl,I Ici 1 11.1 algum a habilidade 1.1 iam ui .1 CM I ill
i , i 111 q u e p ô d e , e m b o r a e u c o n s i d e r e q u o H a to m tu n a i n t e l i g ê n c i a a c l m a

Il.t media, lim todo caso, Ha nunca se esforçou por estudar porque iss< i nau
i ia MH ialmente aceito. Em suma, disse-lhe que sempre optara pelo iiienoi
i slorço, e com o advertira W illiam Shakespeare, “ de nada sairá nada" 1
() que devo fazer? - perguntou-m e.
O seu nam orado a aprisionará - disse-lhe. - Ele dom inará m
plci.unciiic a sua vida e, se você for viver com ele, ficará violento. Voo
pav.ará muitos anos sendo m altratada e sofrendo abusos; por fim , você o
deixará, mas não terá sido um a vítim a. Ao contrário, terá sido coaulora
da própria desgraça, porque agora eu lhe disse o que você deve esperai
ilcv.c relacionam ento, da m esm a m aneira que seus pais e am igos a acon
■.filiaram.
Mas eu o amo.
Você tem dezoito anos. A lei diz que você é adulta. Você deve decidii
Aqui está meu núm ero de telefone, ligue para m im se precisar de ajuda

Nosso passeio pelos seis leitos term inou: nada incom um ou fora do
comum hoje, na rede só pescamos um a m édia de patologia social, desco
iiliei iinento das realidades da vida e busca voluntária pela angústia. Ama
iilia c outro dia, mas a mesma maré de infelicidade baterá em nossas p< n i.r.
A atitude suicida - tam bém conhecida com o “ parassuicídio" ou
"m aus (ratos intencionais” , esforço vão de encontrar um term o científico
pcrléito — é a causa m ais com um de entradas nas em ergências dos hos
pilais na Inglaterra entre mulheres e a segunda causa mais com um entre
homens. Há mais de 120 m il casos por ano, e a Inglaterra ostenta um dos
índices mais altos desse com portam ento no m undo. O índice de suicídios
II impletados, no entanto, é bastante baixo para os padrões internacional',
Não creio que isso indique um a queda geral comparativa na competência
técnica dos ingleses (“ Made in England” , afinal, não indica mais qualidade c

1William Shakespeare, ltd Inn In TVtifjrtlias:Ibatro Completo.Trad. Carlos Alberto Nil


lit". Rio ile Janeiro, A^IT, ZOOM, alt i I, i ena I, p. 668, e alo I, cena 4, p. 6/ 6. (N T )

Itmllilnili ‘illinium \ilrn*i MhihIh I i"*l


i'<>niíal>iIiclatlc", mas o oposto): representa apenas que m uitos daqueles que
tentam o suicídio não pretendem morrer.
N em sem pre foi assim. A tentativa de suicídio desfrutou, se é que essa
é a palavra, de um crescim ento explosivo no final dos anos 1950 e início
dos 1960. Até então, tentar o suicídio era considerado crim e na Inglaterra,
e continuava a ser um evento com parativam ente raro. Algo m ais que a des-
crim inalização, no entanto, aconteceu, pois as com portas do autoenvene-
nam ento tam bém foram abertas para todo o m undo ocidental. Em poucos
anos, a overdose se tornou tão tradicional quanto o Natal.
Suicídios e tentativas de suicídio cham aram a atenção de sociólogos,
psicólogos e psiquiatras desde a publicação, em 1897, da grande obra de
Emile Durkheim , O Suicídio. Hoje, cresce um a disciplina cham ada Suicido-
logia. Grande parte dos trabalhos publicados por esses suicidologistas é
matemática: os escritos são inundados de tabelas estatísticas densas que
correlacionam um fator (taxa de desem prego, classe social, renda, e até
m esm o fases da lua) com o ato suicida ou de tentativa de suicídio.
N ão deveríam os esquecer que um a correlação não sign ifica causa e
efeito, o im pacto global desse trabalho é sugerir que, som ente se um n ú ­
m ero razoável de variáveis forem analisadas, som ente se bastantes dados
forem coletados e “ analisados” com suficiente sofisticação, as “ causas”
do suicídio e da tentativa de suicídio poderão ser encontradas. A im p or­
tância daquilo que se passa na cabeça dos seres hum anos individuais
é, dessa m aneira, im plicitam ente negada em favor de grandes forças
im pessoais reveladas por regularidades estatísticas que, supostam ente,
determ inam o com portam ento das pessoas. Assim , a Suicidologia une-
-se a outros grandes m ovim entos intelectuais do século XX, com o o
Freudianism o, o M arxism o e, m ais recentem ente, a Sociobiologia, ao
negar qualquer im portância à consciência na conduta hum ana. Por esse-
prisma, o pensam ento é irrelevante à ação; e, apreendendo vagam ente as
correntes intelectuais de seu tem po, as pessoas com uns, na verdade, co ­
m eçam a se perceber incapazes de influenciar o próp rio com portam en­
to. M uitos pacientes descreveram -m e com o tom aram as pílulas e, assim
com o Lutero ao postar as teses nas portas da catedral, não p oderiam agir
de outro m odo.

\ V i l l i l l l i i ' >t|l ji h i
A :. I c y M il.ii 11 1 . 1 1 11 • I .in -.in .r., < I n ) t l i c i t I, I I .I < m i , I , -.1 t i l i l l / . i t I . I -. I < H 11

I'll 11 i ( l | t l . l t l f , I I I II I I I 11 11 I I I I I I I I I r l 1 , 1' . I > I •. I . I •. St 11II f II 1 1 I I I I 11 I 111 I I f 11 . S . 11 11. 1

|n '.m i ,f. I’m f xt i 11| >lt I, o m iiiit'Ki tlf pat ifiilc s t|iif ingressaram n.i ini'.
I fn it I m aria tlim iiniiii tlf m od o arrebatador durante os p rim eiro s di.f,
■la (Ju crra do G o llo f durante os cam peon atos eu ro peu s de luiebol A',
p. ..I i.i', eslavam absortas, durante u m p erío d o , em assuntos diferentes d r
I nu '.mas para pensar em su icíd io — se b em qu e viam televisão. () tédio
.In riisim csm a m en to é, portanto, u m dos p ro m o to res das atitudes sim i
.1,1-., r lit ar ligado p o r u m tem po em u m m o n ito r card íaco ou tom ar uma
in lir.ao intravenosa p e lo b raço ajuda a aliviá-lo. Sou tratado, logo existo.
Padrões tam b ém são discern íveis n o flu x o d iário de um a ala hospila
lai .it.irelada. Há, por exem p lo , a overdose p ré-co m p arecim en to ao tribunal,
. ii n uim elrada para evitar precisam en te o com p arecim en to d o su jeito no
I i.iii i o dos réus e calculada para evocar co m p aix ã o qu an d o ele íin alm en tr
11 m ipareter, ofertan do, ao m e sm o tem po, u m a h istória psiquiátric a. Qual
<11ii i um to m h istó rito p siq u iátrico , provavelm ente, não deve ser m uito
11 .|)t ins.ivel pelas p ró p rias ações e, p o r isso, p o d e esperar recebi'r a t< >riv.
pm itlente redução de sentença.
D epois tem os a overdose pré-em p reg o. U m n ú m ero s u rp re e n d n ilr dr
p f.s o a s d esem p regadas qu e, p o r fim , eneontram u m a o cu pação tom am
uma overdose na n oite da vésp era do p rim eiro dia de trabalho. O nat >11 mipa
u i m ifiito na m anhã segu in te os p õ e na ru a antes m esm o de c thiu i. i h iii
r assim ingressam , m ais u m a vez, nas fileiras de desem pregadi >■.
I'! então tem os, novam en te, as jovens indianas que tom am ovniliiu p.u i

t•viIai os tasam entos arranjad os o u a ira dos pais quando descolm m ■| ■


ui co n trário do có d ig o de to n d u ta da com un id ade, suas lillia:. .................
ir|.in do hom en s qu e elas m esm as escolh eram , o que traz uma d t.m n .i
1111■xt i rpável às fam ílias.
( )s padrões e re gu larid ad es estatísticas, n o entanto, p o r si sós, pom o
nos in ló rm am , a m en o s q u e estejam os preparad os para buscar srus siy;
iiilicad o s e tal sign ificad o sem pre é en contrado nas m en tes dos h om eir. t
d.r. m ulheres.
I’m (|iie, então, tantas pessoas são levadas a tom ar pílulas? A final, tomai
uma tlose maciça de pílulas sem pretender verdadeiram ente m orrei é algo

Hi nil) Ini li •<ii 111ii 111 \ i l r i i . Mi i i mI m I mu I


eslr.mho o específico da sociedade ocidental m oderna ou da mentalidade
ocidental. As pessoas não fazem isso no Senegal ou na M ongólia Exterior.
Um gesto direcionado à morte, m esm o sendo somente um gesto, ain­
da é um potente sinal de angústia. N o entanto, em 90% dos casos (segundo
minha experiência), a desgraça é autoinfligida ou, ao m enos, é a conse­
quência de não saber com o viver. As em oções que circundam a m aioria das
overdoses são, ao m esm o tempo, intensas e superficiais.
Nos Estados de Bem-Estar Social m odernos, a luta pela subsistência foi
abolida. Na África, onde também trabalhei, o pobre tem de entrar numa
batalha cruel para conseguir água, alimento, lenha e abrigo para passar o
dia, m esm o nas cidades. A luta confere sentido às suas existências e um
dia a m ais vivid o sem fom e, digam os, em Kinshasa, é um tipo de vitória
pessoal. Sobreviver lá é um a façanha e ocasião de comemoração.
Não é assim na m inha cidade, onde a subsistência é m ais ou m enos
garantida, independente da conduta. Por outro lado, existe um grande
núm ero de pessoas que são destituídas de am bição ou de interesses. Desse
m odo não têm nada a temer e nada por esperar, e se é que trabalham, são
trabalhos que não oferecem quase nenhum estímulo. Sem a crença religio­
sa para dar um sentido exterior de transcendência à vida, não são capazes
de conferir a si mesm as um sentido interior.
O que restou para essas pessoas? Entretenimento e relacionam entos
pessoais.
Entretenimento, absorvido passivamente pela televisão e pelos filmes,
com unica-lhes um m undo materialm ente m ais abundante e um estilo de
vida mais glam oroso e, assim, alimenta o ressentimento. A sensação da
própria insignificância e da incapacidade gera em oções poderosas — em
especial, ciúm e e um desejo intenso de dom inar ou possuir alguém para
sentir que têm o controle, ao m enos, de algum aspecto da vida. E um m un­
do em que os hom ens dom inam as mulheres para inflar os próprios egos e
as mulheres querem ter filho “ pois, ao m enos, tenho algo m eú ” ou “ tenho
alguém para amar e alguém que m e am a” .
Relacionam entos pessoais nesse m undo são puramente instrumentais
para atender às necessidades do m om ento. São fugazes e caleidoscópi­
cos, apesar de proporcionalm ente intensos. Afinal, nenhuma obriyMç.io ou

iii
11M ,|| I 111i.i ni i li i ImmI ,i h Ul i Hl iU It il 11i.i I ili III 11111' l.r. 1.11'. |ii ' Mi.r.
I I IIII Hl l VIIII 111<I 11,11,1 , , 11 Lu II >
11,111 III ||| IS |ICÍ.M 1,1 Is I .1 IIII I ".'.II L|| Ir I II
iL m 111 do iiin in tiiiii, i ii.iiLi i ui, iis lortr, porem mais inconstante, <|iu ,i
ui 11 .'.K Lide e o (leseji >sem ,is amarras da obrigação.
Inlcli/.m ente, os caprich o s de duas pessoas raras vezes coin cidem
V im, as vidas em o cio n ais dessas pessoas — qu e, lem b rem o s, têm poit
■111i'. .i 11ias coisas qu e tragam co n fo rto o u atraiam o interesse estão rcpci i
■Lmienle cm crise. São as estrelas das p ró p rias novelas. U m a overdose com ,i
■' 11e/a de que a ajuda está à m ão - sem pre é o m e io m ais fácil de alivi.u ,r,
i oiii inuas crises de suas vidas. O hospital é caloroso e acolhedor, a equ ip e.
i dinprocnsiva. N o m u n d o que descrevi, para onde m ais p o d e m recorrer?
I J.i m aio ria das vezes os pais são hostis e os am igo s estão n o m esm o barco
A m aior parte dos que to m am overdose — n em todos, é claro - vivem
..... vazio existencial. São vozes que b rad am de u m abism o — um abism o
i i i.iilo, em gran de parte, pela ideia, vend id a p o r gerações de intelectuais,
iL (|uc a segurança m aterial e relacionam entos h u m an o s sem qualqiiei
iip o de am arras necessárias torn ariam a h um an id ad e livre, m u ito além dos
Mm lios das incultas e m en o s afortunadas eras do passado. Ser ou não ser?
i >s qu e optam p ela overdose esco lh eram u m a terceira via.

I9‘>/

Mniliiliiilr Sniuhriii \i Iiiim MihhIn I iiirl I


I jpÍIoi; Síio Miirido r Mulher.
luldi/mrnlr

uando os m u lticultu ralistas im agin am o futuro , su sp eito qm


vislu m b ram algo com o a g lo rio sa m u ltip licid ad e de reslau
rantes de todas as cu lin árias do m un do que agora podem
ser en con trad os na m aio ria das grandes cidades. Podeim r,
<iim cr no restaurante tailandês às segu n d as-feiras; no italian o às lei
■ as leiras; no chin ês às qu artas-feiras; no h ú n garo às q u in tas-feiras,
■ assim p or diante, sem nen hu m esforço. Q uem quer que já (enlia
sup ortad o os rig o re s da cu lin ária in glesa dará bo as-vin d as a essa pai
i uai lar evolução.
A visão m ulticulturalista da boa sociedade, no entanto, parrc r um

ser láo p rofun da e realista quanto a fam osa descrição de Karl Mai di
ru m o seria a vida sob o regim e com unista, um a vez que a ■•(» i< <la< !•
ri ao estaria m ais d ividida em classes concorrentes. N a sociedade m n n i
ilista, escreveu M arx, n in gu ém teria u m a esfera de atividades exclusiva
em vez disso, o h o m em p od eria caçar pela m anhã, pescar à Urde. ,i
noile dedicar-se à criação de gado, criticar após o jantar, exatariieiile
de acordo com a p ró p ria vontade, sem que jam ais se “ torne caçador,
pescador, pastor ou c rítico ” .1 Sob o m ulticulturalism o, a pessoa pode

1 K.u l M arx e F rie d rich Fngels, A Ideologia Alemã. Trad. R. Enderle, N. Selincidci i l
Marli ira ui >. São Pau In, Uc liirm pn , 7 ,007, p. 38. (N. T.)
voltar-se a M eca pela m anhã, sacrificar um a galinha de tarde, r ir à
m issa de n oite sem jam ais tornar-se m uçu lm an o, anim ista ou católico.
Com o um m édico que trabalha num bairro pobre com muitos im i­
grantes, vejo o multiculturalismo de baixo para cima e não do alto da teoria
para baixo. E claro que, pelo que assisto quase todos os dias, nem todos os
valores culturais são compatíveis ou podem ser conciliados pela enunciação
de lugares-comuns. A ideia de que todos podem os viver bem juntos, sem
a lei ter de distinguir favoravelmente um conjunto de valores culturais de
outro, é mais do que simplesmente falsa, e não faz nenhum sentido.
D eixem -m e dizer, de um a vez por todas, que acredito na im igração
com o um fenôm eno saudável, especialmente para um a nação com o a Grã-
-Bretanha que, caso contrário, seria insular e introversa. Em geral, os im i­
grantes são trabalhadores incansáveis, em preendedores, e enriquecem a
vida cultural —isto é, desde que não lhes deem a distinção social de vítim a
ex officio e a cultura deles não seja do m esm o tipo de patrocínio condescen­
dente com que o Estado Soviético tratava as m inorias.
U m grande núm ero de im igrantes, de fato, consegue viver m uito bem
em duas culturas ao m esm o tempo: não porque alguém lhes diz para agir
assim, mas porque querem e porque precisam.
Apesar de tais sucessos, contudo, muitas vezes surgem conflitos entre
indivíduos e grupos por causa de padrões culturais, crenças e expectati­
vas diferentes. Para nós, esses conflitos podem ser resolvidos ao apelar­
m os para o princípio superior, profundam ente arraigado na lei, de que
os indivíduos têm direito (dentro de lim ites definidos) de escolher com o
viver. Essa noção ocidental de individualism o e tolerância não é, de m odo
algum , vista da m esm a m aneira em todas as culturas.
Sou procurado por um grande núm ero de m oças jovens, cujos pais
vieram da índia ou do Paquistão para a Inglaterra, mas perm aneceram
profundam ente arraigados aos valores que vigoravam nas aldeias remotas
de onde em igraram há vinte ou trinta anos. Até m esm o é possível que,
não obstante o espírito em preendedor que os fez sair da terra natal, se­
jam , culturalmente, ainda mais conservadores que os compatriotas que
perm aneceram no país de origem , visto que m igrar m eio m undo é m uito
estressante e desorientador. Dessa maneira, os costumes antigos tornam se

>i) \ \ l l l f l H M ! <HI ( M m
I I I I .1 . i l l ' l l I I ' . 11 I I I J ' l , l I I I I I > • 111 • I III I U I 1 1 II I ' . 1 11 III 11 II 1.1 ‘ . . I I I 1 1 . 1 1 .1 . 1 . 1 I 1 . 1111 , .1 I H I

I .1 1 1 1 ) 1 III II.I l l II I I I ill ' , ' 1 . 1 11 ' I ' I I I I I l l I I 11 >

!.r|,l «'OHIO I'H, .I'. 11 111, r. 1 11 ", ' , rs 11II i g r a n t I'S, |)ol I n cl 11 c r e s t l< l< > i'll I I III I

II m i o t nil in .11 <I1I<1<11IC, 11.111 a c e i t a m m a is o s c o s t ill I i c s a " ' . <|i iai s o s p a r . •.<

III 11.mi com tanla tenacidade c <]ii<' llics par<‘<cm tão ii)(|iirslioi)avi'lmrnli
1 1 Hiriiis r naturais. O conflito norm alm ente gira em torno <l<■ assuntos
■omo rstiulo, carreira e amor.
lim a jovem m uçulm ana de dezesseis anos foi me encaminhada poi
■ini linha com eçado a urinar na cama à noite. Estava acompanhada d "
pai, um operário sem m aiores qualificações de origem paquistanesa, >
111 ■lamente vestida em cetins e sedas, com os tornozelos e pulsos cobertos
dl pulseiras e braceletes de ouro. O pai relutava em deixar ela que lalassi
......... go sozinha, mas por insistência minha, por fim , perm itiu.
I )r imediato, percebi que a jovem era altamente inteligente <■ prolun
da mente infeliz. Por conta da m inha experiência em casos conn >esse, na< i
di morou m uito para que descobrisse a fonte de sua infelicidade.
1 ) pai decidira que ela tinha de casar dentro de alguns meses com um lio
um 11 um prim o - de quem ela nada sabia. A moça, por outro lado, desejava
continuar a estudar para ingressar no curso de Literatura Inglesa na Univri
adade e, depois, tornar-se jornalista. Conquanto ela se controlasse bem
nas circunstâncias, heroicamente - não havia dúvida da intensidade passi< mal
IIr seus desejos e do desespero. O pai, no entanto, nada sabia a respciii >div.i i
p< irquc se soubesse, provavelmente, a trancaria em çasa e a proibiria d< s.m
•.alvo sob a rigorosa vigilância de um acompanhante. N o entendei do p.u
instrução, carreira e a escolha do marido não eram assunto para u n »,a-.
A jt)vem assistia ao desenrolar sem fim da vida futura dianIe <11 s i, \ t.1
.se <asada com um hom em que não amava, realizando tarefas d<um .10 1
ui;; ralas não só para ele, mas para os sogros, que, segundo o cost unir, vivi
II am c(>m o casal, ao passo que ela perm aneceria sonhando com um 1111111
■li 1 muito m aior que tão breve e tentadoramente vislum brou na csc<>la
lintrevistei o pai tam bém , sozinho. Perguntei o que ele achava estai
ei rado com a filha.
Nada - respondeu. Ela é um a m oça norm al e feliz. Só está urinan
d< 1 na cama.

M n i l l t liii I r S m i i i I H ill I •■■((*»• M" ^ I t» » í' I* • • ^ I m I I m t liilrli/m riilr


Não havia nada que pudesse fazer, an ã o ser prescrever unia medii ação.
Caso tentasse interferir, certamente precipitaria nele um a reação extrema.
( )s temores da m oça de ser trancafiada em casa não eram, de m odo algum,
exagerados ou absurdos. Vi muitos casos de m oças, com o ela, aprisionadas
em casa, às vezes por anos, pelos pais; existe até um a unidade especial da
polícia local dedicada a resgatá-las, um a vez que recebam a inform ação de
que as jovens são mantidas em casa contra a vontade.
N ão que fugir da casa dos pais seja, necessariamente, um a resposta
para um a jovem nessa situação, por vários motivos. Prim eiro, os senti­
mentos dela com relação aos pais, provavelmente, são m uito ambivalentes:
laços familiares são extrem am ente fortes e não se rom pem facilmente. As
filhas amam e respeitam os pais, aos quais norm alm ente honram e obede­
cem, m esm o que estes lhas im ponham um futuro que só causará o m aior
e mais indizível tormento. Os pais não são negligentes e incompetentes,
com o os da subclasse branca: de acordo com suas luzes, são altamente
preocupados com aquilo que consideram o bem das filhas.
Além disso, a “ com unidade” condenará a m oça que sair de casa e a
enxergará, literalmente, com o um a prostituta. Visto que tais moças não
estão plenam ente integradas no restante da sociedade britânica e, até o
m omento, viveram vidas resguardadas, elas não têm para onde ir ou quem
quer que as ampare.
N a escala de valores dos pais, o respeito da com unidade está acima da
felicidade individual da prole e, de fato, é precondição. A necessidade de
respeito estimula certo padrão de conduta, mas este fia-se no filho cum ­
prir as obrigações impostas pelos pais, sem opor resistência. Assim , um a
vez que um casamento tenha sido arranjado, é indissolúvel - ao menos,
por parte da mulher. Conheço m ulheres jovens que são tratadas de m odo
bruto e im piedoso pelos m aridos, mas que os pais recom endam que su­
portem os maus-tratos, em vez de trazer vergonha para toda a fam ília ao
separar-se do marido.
Um a jovem paciente m inha tentou se enforcar. Tinha passado por um
casamento arranjado, mas, na noite de núpcias, o m arido chegara à con­
clusão, sem dúvida <'(|uivocada, de que a m oça não era mais virgem e
administrou lln uma \rvci a surra, que o restante da família, naiu ialm rulc,

S \ li In n u H |i M i
11 > i i >v<>ii I ) . i 11 c h i (li.inic, ii.mcou ,i cm casa, constantemente a surrava e a
11ui■miava com isqueiro, líla conseguiu tugir, em bora o m arido tivesse dito,
:1111c1., (|uc se algum dia a pegasse tentando fugir ou depois que fugisse,
ele i m.ilaria, para que ela pagasse na m esm a m oeda a hum ilhação que
el.i o li/,era passar na com unidade. A jovem voltou para a casa da m ãe que,
horrorizada pelo com portam ento da filha, disse que a m oça devia im e­
diatamente voltar para o m arido (m esm o que ele fosse assassiná-la) para
pieservar o bom nom e da família. Suas outras filhas não conseguiriam
ui,iis se casar, caso a com unidade ficasse sabendo que esse era o tipo de
i (Hiduta a que a fam ília estava propensa. Se a m inha paciente não voltas-
'.e para o m arido, ela - sua m ãe - iria com eter suicídio. Dividida entre a
■iineaça de suicídio da m ãe e a perspectiva de ser assassinada pelo m arido,
« l.i escolheu a forca.
Na cidade, no m eu quarteirão, existe um a agência de detetives espe­
cializada em localizar m oças im igrantes que fugiram dos m aridos ou dos
p.iis. Um a vez encontradas, provavelmente serão sequestradas por parentes
ou por um m em bro do com itê de vigilância da localidade — um a expe­
riência que várias de minhas pacientes já viveram . E espantoso com o as
pessoas, hoje em dia, não reagem ao ver um a pessoa ser arrancada à força
de um local e jogada dentro de um carro - ninguém qiier se envolver nos
problemas dos outros. E a polícia, em geral, é m enos diligente nas investi
gações de tais casos por m edo de ser criticada com o racista.
Com frequência encontro jovens cujos pais, em flagrante desrespeito à
lei, proíbem as filhas de frequentarem a escola. Os pais recorrem a uma v.i
i icdade de subterfúgios para proteger as filhas da contaminação das idci.is
ocidentais. M édicos com placentes, do m esm o grupo étnico e cultural, <•
que partilham dos m esm os interesses dos pais, dão atestados m édicos para
doenças fictícias, seja para a criança seja para a m ãe da criança, que exi
gem a presença da criança em casa. Outra técnica é mandar a mciiin.i p.ii.i
.1 escola apenas um a semana por m ês, para manter os inspetores cseol.iri".
.ilástados. Estes, tam bém , agem cautelosamente, com m edo das acusaçi
de preconceito racial.
Uma paciente foi, desse m odo, m antida fora da escola após os
ou/e anos de idade por medo de contaminação pelas ideias ocidentais

l(i iiliiIimli l i i i l ii l i ll i i I i ll"l Mu MiiiiiIm r Mnlliri 11 1 1< 11 / 1 1H' 11 1(


ImiI enviada para .1 índia e lá Ileou durante meses, para que .1 escola não
descobrisse seu paradeiro. Graças à sua inteligência natural m uito superior
e às leituras clandestinas pelas quais era apaixonada, a jovem agora está
(aos 28 anos) contem plando a possibilidade de ingressar na universidade
para estudar Direito. O restante de sua história, todavia, é instrutiva e não
difere do que sem pre ouço.
Aos quinze anos fora levada novamente para a índia, dessa vez na
com panhia dos pais e de um m enino de dezesseis anos, que até então
havia sido criado com o seu “ irm ão” , na m esm a casa. Quando chegaram
na aldeia natal de seus pais, em Gujurat, contaram para ela que o “ irm ão”
era, na verdade, seu p rim o-irm ão e que se casaria com ele no dia seguinte.
A jovem disse que não faria isso, e em seguida o pai a espancou. Ela ainda
tem as cicatrizes dessa surra e seu rosto ficou um tanto assim étrico no
lugar em que o m axilar foi fraturado. Continuou contra o casamento até o
pai ameaçar divorciar-se da mãe e lançá-la nas ruas aos 45 anos, a m enos
que a filha consentisse em casar. A ameaça do pai não era vã.
Leitor, ela se casou; mas não som ente isso, os parentes queriam a
garantia de que o casamento se consum ara. Visto que o feliz casal fora
criado com o irm ão e irm ã, a consum ação parecia-lhes incesto, mas os pa­
rentes não aceitariam um não com o resposta e os trancaram juntos num
quarto por duas semanas. Colocaram um gravador em baixo da cama para
garantir que fora feita a justiça. Quando descobriram que nada ocorrera
entre eles, am eaçaram agir com violência; depois disso veio o final feliz,
e ela ficou grávida.
A jovem viveu com o m arido por doze anos após voltarem à Inglater­
ra, e nunca o am ou com o m arido, mas temia deixá-lo por m edo da reação
do pai. O m arido, por sua vez, nunca am ou a mulher, mas temia deixá-la
por m edo da reação dos próprios parentes. N o final das contas, separaram -
-se, mas m antiveram a ficção de que ainda viviam juntos, ficção cuja ve­
rossim ilhança foi m antida graças a um grande esforço e criatividade - um
verdadeiro desperdício de talento por vergonha da desonra.
Um a das presunções do multiculturalism o é não tolerar o que é supos­
tamente a solução soberana, vista com o um a característica apenas da socie­
dade anfitriã N.i imaginação em pobrecida dos multiculturalislas, todos os

S \ iilll MH h t l ji I I I
1 1III 11.li I I u i I <1 li t i l l , III ll I lii'ii 11111' 11 111, .1 I 11 III 11.1 III Ti l l III ill I.II I l f I ", 1,1m f l l l | i r

I ill,|i|( IS IIIIII l.l 11 ll,l i I 111111111 ,| I I ini I ,i ,| I l f g c I ui il I l.l I >| II cssiv. l r I l eg í I II 11,1

A if.ilid.ulf, '.f yum |i I 111 li 11i.i experiência, f inn I,mln ililrt'cnlc I'm
I hi m Iili I, ,i re I.ii, .li) m l re imigrantes il<) sul it I ml i lie Ilie i nili,I ii<) f d,i J.im.ii
1 .1, .in meiK is ii.i m inIia cidade, muitas vc/cs está longe de ser am igável, e a
In i'.i ilid.idf é extensiva às gerações nascidas na Inglaterra. As famílias lim
ilii1. 11u.ise sempre ficam consternadas (para usar um termo gentil) <pi,in
■In as lillias escolhem por amante um jamaicano. Sei de duas que li ira m
...... . por parentes próxim os para redim ir a honra da família aos olhos
il,i 11 imunidade. A prim eira, enforcada em casa; a segunda, levada de volta
p.ii.i o Paquistão, onde foi espancada até a m orte, e a polícia local conside
n mi iv,<i ii procedim ento correto, dadas as circunstâncias.
/\ tolerância religiosa não é um valor universalmente admirado. Não
M11 l.i ii.io é imitada ou praticada, assim com o o ceticism o polido, ou seja,
.1 indicação de um a absoluta falta de fé, é visto por m uitos com o anátema.
V, ielações entre hindus sikhs e os hindus m uçulm anos, por exem plo, s.io
particularmente tensas, e dificilm ente há desastre m aior num a família
ai r. i ilhos das respectivas com unidades - que um de seus jovens se apaixi i
in- por outro de religião diversa. As em oções telúricas suscitadas por tais
iclaçües muitas vezes acabam em violência. E difícil-um a semana cm que
nao tome conhecim ento de um caso trágico ou terrível.
Uma m oça sikh sim pática e inteligente, de dezoito anos, a pedido d.i
I.iniíIia, foi fazer com panhia à avó idosa, levando-a para casa de táxi, para
reiornar, depois, no m esm o carro. A com panhia de táxi era gerem i.nl.i
por sikhs, que não só trabalhavam transportando público em geral, m,e.
também atuavam com o vigilantes e guardiões da honra da com unidade
i ) m otorista em questão relatou ao irm ão da m oça ao deixá-la cm i asa
que, durante a viagem de volta, ao passarem por um bairro de maioria
m uçulm ana, ela acenara para um rapaz m uçulm ano. O irm ão, temendo
o pior, cham ou-a ao seu quarto e perguntou se a jovem , de fato, li/,era
aquilo. A m oça negou, mas ele não acreditou na irm ã. Pegou o bastão
de beisebol (um esporte que praticamente não é praticado na Inglaterra,
mas m uitos bastões são vendidos com o armas e detectores de mentira) e
tentou extorquir o que achava ser a verdade. M ais tarde, a m oça apareceu

llriiliilni lr Si.iiil.nii I r i l n l ' >IH i M m li In I M u l l ti I I nl i - l i / i i H' i i l r


ui i m m In ispll.il com uma severa fratura no crânio; todavia, u iiii I i i i k u i <I i
zendo à polícia que fora abordada na porta de casa por pessoa ou pessoas
desconhecidas.
U m rapaz sikh com eçou um nam oro com um a m oça m uçulm ana. Era
um rapaz extrovertido, bom aluno e excelente atleta que representava a
escola e a cidade em vários esportes diferentes. Costumava encontrar a
nam orada, clandestinamente, no apartamento de um rapaz m uçulm ano
am igo —ou alguém que ele considerava amigo. O am igo, contudo, telefo­
nou para os irm ãos da m oça e perguntou por quanto tem po deixariam a
fam ília ser desonrada.
Quanto estava a cam inho de seu em prego noturno, o rapaz sikh foi ata­
cado pelos irm ãos da m oça, arm ados com facões. Derrubaram -no e am ea­
çaram, na próxim a vez, cortar-lhe a garganta. Depois retalharam, repetidas
vezes, os dois braços do rapaz. Isso aconteceu a uns cem m etros da entrada
principal do hospital em que trabalho. O jovem teve um a fratura exposta
no úm ero e m uitos dos tendões foram cortados, de m odo que nunca mais
recuperará plenam ente o uso das m ãos e dos braços.
Os três irm ãos foram detidos e julgados. Infelizmente, foram -lhes
concedidas fianças, e quando ficou claro que o veredito do julgam ento
certamente seria a culpabilidade, eles não com pareceram ao tribunal, fo ­
ram julgados à revelia e condenados a um longo período na prisão. Meu
paciente foi esconder-se numa cidade a uns 650 km daqui, temia deixar
o apartamento e sem pre dorm ia com um a faca em baixo do travesseiro.
Recebera inform ação de fonte confiável de que os três irm ãos ainda o
procuravam e que iam matá-lo, caso encontrassem. Talvez o aspecto mais
alarmante da história seja que os três irm ãos não foram vistos com o delin­
quentes pelos dem ais m em bros da com unidade, mas com o pessoas que se
portaram de m aneira decente e honrada. Desobedeceram à lei para praticar
a vingança, com risco de prisão, somente pela honra: eram rapazes corajo­
sos dos quais deveriam se orgulhar.
E claro que m inha ocupação põe-m e em contato com as fases mais
dramáticas da intolerância entre castas, religiões e culturas, mas poderia
contar muitas outras histórias, com protagonistas que conhecem vários
casos semelhanIvs que desconheço. Assim , o que vejo é a ponta do iceberg,

\ \ i < I n i i /i S n r j r l n
I ll.ui I >.i 1 .1 1111 h lit I d iiimAIum I''' I ill 111h >*i iluevlvi nli". ilr um ,I i.ii.i
I \| ni h I-n I r x I ll li, .li I
N.m estou, ilr u i.uh 11 ,i algum a, I lu'g,null I ,i c I mi Ins,hi ilr <11U’ .is I nl
II il .is 1 1 esses 11. li lei I lei. u.n > | h issm mi m il Hi is, de 11 lie na< > 11 , 1 I i.k l.i ( |lle pus
s.mu is .ipi'ender com el,is (poi exem p lo , sobro o papel da so lidaried ad e
la mi I i.u ao possibilitar (|ue m u ilas crianças, qu e vivcm cm co n d içõ es li
su ai I i c i iie pobres, con sigam frequentar a esco la), ou m e sm o de q u i' não
lia nada qu e possa ser dito em favor da escala de valores q u e defen dem
<.Miando falo co m pais qu e acreditam nessas escalas de valores, m uilas ve
•i s lalam co m bastante elo q u ên cia e in teligên cia a resp eito da devastação
social qu e veem ao redor, na subclasse dos brancos, para os quais os re
......... nam entos h u m an o s são m u táveis co m o caleid o scó p io s, e cujas vidas
sai ' construídas sobre as areias m ais movediças. Com preendo perfeitamen
ii que aquilo que veem somente reforça a decisão de viver segundo as
IhI iprias crenças, e o que não desejam é ver suas crianças se transformand< >
naquela subclasse.
Não obstante, persiste o fato doloroso e inescapável de que muitos
aspectos das culturas que tentam preservar são incom patíveis, não só c< >m
I is costum es de um a dem ocracia liberal, mas com seus fundam entos ju
ridicos e filosóficos. N ão há dem onstração de preocupação ou eulém is
mos suficientes que possam alterar esse fato. Perm itir que certos grupos
se recusem a enviar as filhas para a escola, com o fundam ento de que
não faz parte da cultura deles, é dar a tais grupos um a espécie de direito
corporativo que, inevitavelm ente, resultará em um a guerra civil crônli a
com todo e qualquer grupo que reivindique tais direitos. Os indivíd..... .
tam bém terão de renunciar por com pleto às liberdades acreditadas pela
dem ocracia liberal ocidental.
A ideia de que é possível fundamentar um a sociedade sem nenhum
pressuposto cultural ou filosófico, ou alternativamente que todos os pros
supostos sejam tidos com o iguais de m odo que não se faça nenhuma es
colha, é absurda. Os im igrantes enriquecem - e enriqueceram nossa
cultura, mas o fazem por adição, e não por subtração ou divisão.

I 'm

I (min III) li ' S i hI il il III I ï Iliil 1 Ul i i Mill lil" I Mi ill h I li ilili/i I h i il r


I mi Amor <l <‘ Valentão

i | em ana passada, um a m oça de dezessete anos foi admitida na m inha


' enferm aria severamente em briagada, tão m al que quase não podia
respirar sozinha, já que o álcool causa depressão respiratória. Q uan­
do finalmente acordou, doze horas depois, contou-m e que era grande
consum idora de álcool desde os doze anos.
Havia parado de beber por quatro meses, antes de dar entrada no hospital,
disse, mas voltara à bebida por causa de uma crise. Seu namorado, de dezes­
seis anos, acabara de ser condenado a três anos de detenção por uma série de
invasões de domicílio e assaltos. Ele era o que ela chamou de “ terceiro relacio­
namento sério” —os dois primeiros duraram quatro e seis semanas, respecti­
vamente. Após quatro meses de vida com esse jovem assaltante, no entanto, a
I>crspectiva da separação era demasiado dolorosa, e isso a fez retornar à bebida.
Acontece que eu tam bém conhecia sua mãe, um a alcoólatra crônica
com predileção por nam orados violentos; o últim o fora apunhalado no
coração, poucas semanas antes, num a briga de bar. Os cirurgiões do hospi-
tal salvaram-lhe a vida; e para celebrar a recuperação e a alta, ele foi direto
para casa, bêbado, e espancou a m ãe da m inha paciente.
Minha paciente era inteligente, mas tinha pouca cultura, com o só o
sistema educacional britânico pode produzir após onze anos de frequência
escolar com pulsória Achava <|ue a Segunda Guerra M undial acontecera na
década de 11>/() e u.m 11 nr.i giilu acertar nenhum a data histórica.
Perguntei se ela achava que um jovem assaltante violento era n.ilm en
te um bom com panheiro. Ela adm itiu que o rapaz não era bom , mas era
do tipo físico que ela gostava; além disso - em ligeira contradição - todos
os rapazes são iguais.
Adverti, da maneira mais clara que pude, que ela já estava muito abaixo
na ladeira rum o à pobreza e miséria - e, com o aprendi pela experiência com
incontáveis pacientes, ela logo teria uma sucessão de namorados violentos,
possessivos e exploradores, a menos que mudasse de vida. Disse-lhe que, nos
últimos dias, tinha visto duas pacientes cujas cabeças foram arrebentadas no
banheiro, uma outra paciente que teve a cabeça esmagada contra a janela e
a garganta cortada por um caco de vidro; outra que teve o braço, maxilar e
crânio fraturados; e ainda uma que fora suspensa pelos tornozelos do lado de
fora da janela do décimo andar de um prédio ao som de “ Morra, vagabunda!” .
- Sei tomar conta de m im - disse-m e a m oça de dezessete anos.
- Mas os hom ens são m ais fortes que as m ulheres - disse. - Quando
se trata de violência, eles estão na vantagem.
—Você está sendo m uito sexista —respondeu.

Um a m oça que não absorvera nada na escola tinha, contudo, assim ila­
do o jargão do politicam ente correto e, em particular, do fem inism o.
- Mas é um fato sim ples, direto e inescapável - respondi.
- É sexista - a garota reiterou com firm eza.

U m a recusa obstinada em enfrentar fatos inconvenientes, não im por­


tando quão óbvios sejam, im pregna nossas posturas acerca da relação entre
os sexos. U m filtro ideológico que tom a desejos por realidade retém tudo
o que preferim os não reconhecer a respeito dessas relações difíceis e con­
troversas, com resultados previsivelm ente catastróficos.
Deparo-m e com tal recusa em todos os lugares, m esm o entre as enfer­
m eiras da m inha ala. Esse grupo de pessoas inteligentes e capazes, decentes
e dedicadas, no quesito julgam ento de caráter, parecem , total e quase de­
liberadamente, incompetentes.
N a enferm aria deToxicologia, por exem plo, 98% dos 1.300 pacientes
que atendem os a cada ano tentaram suicídio por overdose. Um pouco mais

<>o \ \ I i I m MM 1 *111 j H t l
‘ Li li u i . it I< „111 In u i n u I ,n I 11 in ll IS / 0" ii I li'li". let I'lllt l IId l l r ( <I I I If Ii l Mill

,il)'iini .ili> d' vi' ilt in 1.1 tit nnt lit.I Apt)', t'slilt Iin .ii . fsl I. mjMiI.u oil .iprn.t:.
I'.in I n.itpii'l.is t|iic .Ivmii,i .ip.nt tfin nos registros m édicos com o comp.i
nlit'li.e., (omam uma overdose ao menos por um desses três m otivos, e às
vi i s, pelos três: para evitar com parecer ao tribunal; para chantagear emo
i ii in.ilmeiile suas vítim as; e para m ostrar que sua violência é uma circuns
i.iiMt.i médica, sendo dever do m édico curá-la. Das pacientes femininas
• 1111* tentam suicídio, uns 70% sofreram violência doméstica.
I i.id.is as circunstâncias, não é de surpreender que agora possa afirmar
num sim ples relance - com um bom grau de acurácia - , que um homem
■ violento para com os que considera im portantes (isso não significa, é
i Lm i, <111e possa dizer quando um hom em não é violento com sua com
I unhe ira). Na verdade, os indícios não são particularm ente sutis. Um.i
i il>et,',i hem raspada com muitas cicatrizes, fruto de pancadas com garralàs
■ai t tipos; nariz quebrado; tatuagens azuladas nas m ãos, braços e pescoço,
II >m mensagens de amor, ódio ou protesto, mas, sobretudo, um a expres
Hi làci.il de m alignidade concentrada, egoísm o indignado e desconfiança
li i.il ludo isso para não m ostrar logo o jogo. De fato, não analiso mais os
li illicit >s e deduzo a conclusão: a propensão de um hom em para a violência
i Imediatamente identificável no rosto e no com portam ento, assim com o
i|u.ilt|uer outro traço de caráter.
() que m ais m e surpreende, no entanto, é que as enferm eiras peru
linn as coisas de m aneira diferente. N ão veem a violência no rosto, nos
P tos, na conduta e nos adornos corporais do sujeito, m uito emhor.i n
uli.uii a mesma experiência que tenho com os pacientes, ouçam t|ii.r.i
i mesmas histórias, vejam os m esm os sinais, entretanto, não la/cm "
m esmos juízos. E m ais ainda, parecem nunca aprender. A experiênt i.i
com o a sorte, no fam oso dito de Louis Pasteur - só favorece os espíi In >■
preparados. E quando, num olhar rápido, adivinho que um hom em é um
inveterado espancador de esposas (utilizo o term o “ esposa” bem Iivh
m ente), elas ficam estarrecidas com a brusquidão de m eu julgam ento, ale,
mais uma vez, eu provar estar certo.
Isst >não é só um a questão de m ero interesse teórico para as enfermei
i .is, muilas delas, nas vidas privadas, são vítim as complacentes de homens

lt. i i li i lm l ' Miil i ll ll III Mm \lll"l -I' It iiliiit


^ -I Ill
violentos. Por exem plo, o nam orado de um a de m inhas enli i nn ii.r. st*
nior, um a jovem atraente e alegre, recentem ente a manteve sob a m ira de
um revólver e a am eaçou de m orte, após tê-la deixado, nos m eses ante­
riores, várias vezes com o olho roxo. Encontrei com ele um a vez, quando
foi procurar por ela no hospital: era exatam ente o tipo de jovem egoísta e
feroz, de quem m anteria distância em plena luz do dia.
Por que as enferm eiras relutam tanto em chegar às conclusões in e­
vitáveis? O treinam ento que recebem diz, acertadamente, que o dever é
cuidar de todos sem levar em conta m éritos ou dem éritos; m as para elas,
não há diferença entre suspender o juízo para determ inados propósitos e
não fazer nenhum juízo em hipótese algum a. E com o se tem essem m uito
m ais dar um veredito negativo a respeito de um a pessoa do que tomar
um soco no rosto — a consequência bastante provável, incidentalm ente,
é o erro de discernim ento. Já que dificilm ente é possível reconhecer um
hom em que bate na m ulher sem condená-lo intim am ente, assim, não é
seguro reconhecê-lo quando ela o vê pela prim eira vez.
Esse erro de reconh ecim en to é quase universal entre m inhas p a­
cientes violen tam en te m altratadas, m as, nelas, essa fun ção difere um
tanto das enferm eiras. As en ferm eiras precisam m anter certo apreço p e­
los pacientes para que con sigam realizar suas fun ções; no entanto, nas
vítim as de violên cia, a falha em perceber antecipadam ente a violên cia
do ho m em que escolhem serve para absolvê-las de todas a respon sabi­
lidade pelo que acontece depois disso, p erm itin do -lh es pensar que são
apenas vítim as, e não vítim as e cúm plices, com o o são. Adem ais, isso
dá ocasião para que consintam em obedecer os im p ulsos e caprichos,
dá-lhes liberdade para supor que a atração sexual é a m edida de todas
as coisas, e que a prudência na escolha de um com pan heiro m asculino
n ão é possível ou desejável.
Por diversas vezes a im prudência dessas m ulheres seria digna de riso,
não fosse trágica: am iúde, na m inha ala hospitalar, vi surgirem relaciona­
m entos entre um a m ulher vítim a de violência e um paciente m asculino
que maltrata m ulheres, m eia hora após se conhecerem ; logo, posso va­
ticinar a respeito da relação - e profetizar que certamente terminará em
violência, assim com o o sol nascerá novam ente amanhã.

S\ lllll MH ' t i l l ( I ' l l l


Ni I liiii 11 1 I I mi it mi I I legal ii 111 it .1 v 11 ilc Iii 1.1 ■Ih' I mi 11 ii I e. 11 >,,■ I ii I
I IVI I <,) II, III<I<. I II I ','1 IIII o, III I Cl II. II III I, M fl,|', ,11 11,1111 <1111 III III 1.1 I III II
M ilo antecipadam ente, ,i gran d e m aioria nove en lre dez respon dem
• |in .m i, el,no. Ii q u an d o pergu n to co m o elas pensam c|ue eu co iisegu ít i.i
pen e ller, en u m eram p recisam en te os fatores q u e m e levariam àquela m n
• lir.ao; p o rla n lo , a cegu eira é in tencion al.
A desastrosa desatenção atual a respeitei de qu estõ es tão sérias t o m o o
M lai lo n am ento entre sexos, certam ente, é algo n o vo na h istória: m esm o
h i ii mia anos, as pessoas d em ostravam u m a circu n sp ecção m u ilo ..........
■I" que hoje em dia para co m eçar u m relacion am en to. A m u dan ça re
pn .em a, é claro, o cu m p rim e n to da revolu ção sexu al. O s pro fetas dev.a
iiM ilu çã o desejavam esvaziar do relacion am en to entre os sexo s todo o
i 1 1 1 ( í c a do m o ral e d estru ir os costu m es e as in stitu içõ es q u e o regiam
i i eu to m o lo gista A lfre d K in sey reagiu à p ró p ria criação repressora e pui na
11.1 ao co n clu ir q u e todas as fo rm as de repressão sexu al eram in ju siifii ad.r.
' p sico lo gicam en te p reju d iciais. O rom an cista N o rm an M ailer, levand........
estereótipos raciais tão a sério qu an to q u alq u er m e m b ro da Ku K lux K lan ,
viu na sexu alid ad e su po stam en te d esin ib id a dos n eg ro s a esperança do
m u n do para u m a vid a m ais abundante e rica. O a n tro p ó lo g o social de
i am b rid g e, E dm u n d Leach, in fo rm o u ao p ú b lico pen san te b ritân ico , peli i
i a1 1i<), q u e a fam ília n u clear era a resp on sável p o r todo o descon te 111a m e 11
lo h um an o (isso n o sécu lo d e A d o lf H itler e Jo s e f Stalin !); o psiq u iaii.i I'
I > l.aing cu lp o u a estru tu ra fam iliar p o r sérias doenças m entais. De nn '<l< ■
dileren tes, N o rm an O. B ro w n , Paul G o o d m an , H erb ert M arcuse e W illi< lm
He u h en traram na cam pan h a para con ven cer o m u n d o ocidental d< qm
I sexu alid ad e sem entraves era o seg red o da felicid ad e e que a repiev.ao
sexu al, ju ntam ente co m a vid a fam iliar b u rgu esa qu e outrora lim itava e ■11
u i ninava a sexu alid ad e, n ão eram nada além de m e can ism o s da patoli igia
Todos esses entusiastas acreditavam qu e, se as relações sexu ais pmli ■,
em ser libertadas das artificiais in ib içõe s sociais e das restrições legais,
alg o belo su rgiria: u m a vid a em qu e n en h u m d esejo p recisaria sei Iriis
trado, u m a vid a em q u e a m esq u in h ez h u m an a derreteria c o m o a neve
11.1 prim avera. O co n flito e a d esigu ald ad e entre os sexo s d esapareceriam ,
p o rq u e todos teriam a q u ilo q u e ele o u ela q u isessem , qu an d o ele ou ela

lim ln In iIr S o i l l l >1 Hi I mi Slitm •I* N ilinlim d l


quisessem , ü s m otivos das em oções burguesas iriviais, com o ciúm e c in­
veja, desapareceriam : num m undo de perfeita satisfação, cada pessoa seria
tão feliz quanto a outra.
O program a dos revolucionários sexuais foi m ais ou m enos execu
tado, especialm ente nas classes m ais baixas da sociedade, no entanto, os
resultados foram im ensam ente diferentes do que fora previsto de m aneira
tão estúpida. A revolução foi a pique na rocha da realidade inconfessa: de
que as m ulheres são m ais vulneráveis à violência que os hom ens exclusi­
vamente em virtude da biologia, e que o desejo da posse sexual exclusiva
do parceiro continuou tão forte quanto antes. Esse desejo é incom patível,
é claro, com o desejo igualm ente poderoso - eterno nos sentim entos hu­
m anos, m as até agora controlado por inibições sociais e legais - de total
liberdade sexual. Por conta dessas realidades biológicas e psicológicas, os
frutos da revolução sexual não foram o adm irável m undo novo de felici­
dade hum ana, m as, ao contrário, um enorm e aum ento da violência entre
os sexos por razões prontam ente com preensíveis.
E claro, m esm o antes de qualquer explicação, a realidade desse au­
m ento é refutada pela negativa raivosa daqueles que possuem interesses
ideológicos escusos e pretendem dissim ular os resultados das mudanças
que ajudaram a im plem entar e saúdam entusiasticamente. Utilizarão o
tipo de ofuscação que os crim inologistas progressistas há m uito em pre­
gam para convencer-nos de que o m edo do crim e, e não o próp rio crim e,
aum entou. Dirão (acertadamente) que a violência entre hom em e m ulher
sem pre existiu em todas as épocas e lugares, m as nossa postura diante dis­
so m udou (talvez, tam bém corretam ente), de m odo que os maus-tratos
são relatados com m aior frequência do que antes.
Ainda assim, continua a ser verdadeiro o fato de um hospital, com o o
em que trabalho, ter experim entado nas últim as duas décadas um aum ento
enorm e no núm ero de m aus-tratos à mulher, a m aioria dos casos resultado
da violência dom éstica e m uitos do tipo que sem pre requer cuidados m é­
dicos. O aum ento é real, não um artefato produzido pela denúncia. Um a
entre cinco m ulheres, dos dezesseis aos cinquenta anos, que vivem na área
atendida pelo m eu hospital, dão entrada no setor de em ergência durante
o ano em decorrência dos ferim entos sofridos durante um a briga com o

o i A V id n iiii S n r j r l n
ii.im orado ou m arido; e não há m otivo para supor que m eu hospital seja
i Illim ité de qualquer outro hospital local, que junto com o m eu oferecem
,u rudim ento m édico à m etade da população da cidade. Nos últim os cinco
,iiios lratei de, pelo m enos, uns dois m il hom ens que foram violentos com
su,is mulheres, nam oradas, amantes e concubinas. Parece-m e que tamanha
vi( ilência, em tão grande escala, não poderia ter sido facilm ente negligen-
(1,1 da em épocas anteriores —m esm o por m im . \
Existe um a excelente razão por que esse tipo de violência deve ter
.minentado durante a nova dispensação sexual. Se as pessoas procuram
liberdade sexual para si m esm as, m as fidelidade sexual da outra parte, o
i estiliado é a excitação do ciúm e, pois é natural supor que aquilo que um
l.i/,, está sendo feito da m esm a m aneira pelo outro - e o ciúm e é o preci-
p iu d o r m ais frequente da violência entre os sexos.
O ciúm e sempre foi um a característica das relações entre hom ens e m u-
II teres: a peça Otelo, escrita por W illiam Shakespeare há quatro séculos, ainda
é instantaneamente compreensível. Encontro ao m enos uns cinco Otelos e
umas cinco Desdêmonas por semana, e isso é algo novo,\caso os livros de
I isiquiatria impressos há poucos anos estejam certos ao afiri^iar que o ciúme
de lipo obssessivo é um caso raro. Longe de ser raro, hoje em dia é quase
,i norma, em especial entre os hom ens da subclasse, cujo senso frágil de
.uiioestima deriva unicamente da posse de um a m ulher e está sempre se
equilibrando à beira da perspectiva humilhante de perder seu esteio na vida.
A crença na inevitabilidade do ciúm e m asculino é um a das principais
r.i/.ões de as m inhas pacientes violentam ente maltratadas não deixarem
os hom ens que as maltratam. Essas m ulheres experim entaram , sucessi-
v.miente, uns três ou quatro hom ens desse tipo, e quase não faz sentido
Irocar um pelo outro. Os m aus-tratos conhecidos são m elhores que os
desconhecidos. Q uando pergunto se elas não estariam m elhor sem n e­
nhum hom em do que com um algoz m asculino, elas respondem que
uma m ulher solteira na vizinhança é vista com o presa fácil para todos os
hom ens, e, sem o protetor nom eado por ela m esm a, ainda que violento,
s( >
1ivria m ais violência, e não m enos.
O ciúm e masculino - e a paixão é mais com um nos hom ens, apesar de
,r, mulheres, por sua vez, estarem quase alcançando os hom ens e se tornando

Itmliilmlr Sniiiln m I ' mi \ mi mi ilr \i||i>||l!ïn


violentas — é a projeção, na mulher, do próprio comportamento. A grande
m aioria dos hom ens ciumentos que encontrei são extremamente infiéis ao
objeto da suposta afeição, e alguns mantêm outras m ulheres na m esm a sub­
m issão ciumenta em outra parte da cidade e até a uns 15 0 km de distância.
N ão têm escrúpulos em imaginar, saber, ver ou estar com a m ulher de outros
hom ens e, na verdade, têm prazer em fazê-lo com o um m eio de inflar os
próprios egos frágeis. O resultado é que im aginam todos os outros homens
com o rivais: pois a rivalidade é um relacionamento recíproco.
Assim , um a sim ples olhadela num bar dirigida à nam orada de um
hom em desses é o suficiente para com eçar um a briga, não só entre a m oça
e o amante, mas, m esm o antes disso, entre os dois hom ens. Graves crim es
de violência continuam a aum entar na Inglaterra, m uitos deles ocasiona­
dos por ciúm e sexual. Cherchez la femme1nunca foi um indicador seguro para
explicar um a tentativa de assassinato com o nos parece, hoje em dia; e a
natureza extrem am ente instável das relações entre os sexos é o que o torna
um preceito tão sólido.
A violência do hom em cium ento, no entanto, nem sem pre é ocasio­
nada pelo suposto interesse da com panheira por outro hom em . Ao contrá­
rio, tem função profilática e ajuda a manter a m ulher totalmente subm issa
a ele, até o dia em que ela decidir deixá-lo: pois o ponto central da vida
dessa m ulher é evitar a cólera furiosa. Evitar, todavia, é im possível, já que
é a própria arbitrariedade da violência que a m antém submissa. Assim,
quando escuto de um a paciente que o hom em com quem vive a espancou
severamente por um m otivo banal —por ter servido batatas assadas quando
ele as queria cozidas, por exem plo, ou por ter deixado de espanar o pó
de cim a da televisão - im ediatam ente sei que o hom em é obsessivam ente
cium ento, pois o hom em cium ento deseja ocupar todos os pensam en­
tos da mulher, e não há m étodo m ais eficiente de conseguir isso do que
esse terrorism o arbitrário. Desse ponto de vista, quanto m ais arbitrária e

1 L ite ra lm e n te , “P ro c u re a m u lh e r” . A e x p re ssã o , u tilizad a p ela p rim e ira vez

p o r A le x a n d re D u m as, e m 1 8 S 4 , é e m p re g a d a n as h istó ria s de d etetiv e n o


se n tid o d e se m p re b u scar e n c o n tra r a m u lh er, p o is n ela e n co n tra se a raiz d o
p ro b le m a . (N . T.)

V \ i i I m Mm M m | H n
liam plctam enle desproporcional a violência, m ais funcional ela é, De Jato,
muitas vez.cs ele estabelece condições im possíveis de a m ulher cum prir -
tjur a releição esteja pronta, esperando por ele, no m om ento em que che
jjrti', por exem plo, em bora não diga nem m esm o quatro horas antes quan
do chegará em casa - exatamente para ter oportunidade de surrá-la. Na
verdade, esse m étodo é tão eficiente que a vida mental de muitas das m u ­
lheres violentamente maltratadas qúe atendo esteve concentrada, durante
a In is, nos seus amantes - no seu paradeiro, desejos, com odidades, estados
de espirito - a ponto de pôr de lado todas as outras coisas.
Quando ela finalm ente o deixa, com o quase sem pre ocorre, ele vê a
partida com o um ato de extrem a traição e conclui que deve tratar a próxi
ma ( <M/ípanheira com severidade ainda m aior para evitar que isso se repila.
Ao observar a instabilidade dos relacionam entos sexuais ao seu redor e
.u i refletir sobre a própria experiência recente, ele se torna vítim a de uma
permanente paranóia sexual.
Pior ainda, a tendência social desses tipos de relacionam entos é de
aulorreforço: as crianças que geram são criadas supondo que todos os
relacionamentos hom em -m ulher são apenas tem porários e estão sujeitos a
revisão. Desde a m ais tenra idade, portanto, as crianças vivem num a atmos
fera de tensão entre o desejo natural de estabilidade e o caos em ocional
que veem ao redor. N ão são capazes de dizer se o hom em de suas vidas - o
hom em a quem cham am de “ papai” hoje - estará lá amanhã. (Com o me
contou uma de m inhas pacientes ao falar da decisão de deixar o últim o
namorado. “ Ele foi o pai de m eus filhos até semana passada.” N ão é preciso
di/cr c|tie ele não era o pai biológico de nenhum a das crianças, todos esses
partiram muito antes.)
ü filho aprende que a m ulher está sem pre prestes a abandonar o h o ­
m em ; a filha, que os hom ens, inevitavelmente, são violentos e não são
confiáveis. A filha é m ãe da m ulher: e já que aprendeu que todos os re­
lacionam entos com hom ehs são violentos e tem porários, conclui que
não há m uito que pensar no amanhã, ao m enos no que diz respeito a
escolher um com panheiro. N ão apenas há pouca diferença entre eles,
exceto qualidades acidentais de atratividade física, com o qualquer erro
pode ser consertado ao abandonar o hom em ou os hom ens em questão,

llciiliilnilt' H o m l i r i n I l i n A i n i i f tll* V y w i f l i i 07
Assim , podem os iniciar relacionam entos sexuais quase com a mesma serie­
dade de raciocínio que dedicam os à escolha do cereal de café da m anhã —
esse era, precisam ente, o ideal de Kinsey, M ailer et ai.
Por que a m ulher não abandona o com panheiro assim que ele m an i­
festa ser violento? Porque, perversam ente, a violência é o único sinal de
com prom isso que ela possui. Da m esm a m aneira com o ele quer a posse
sexual exclusiva da m ulher, ela quer um relacionam ento perm anente
com seu hom em . Ela im agina — falsam ente - que um soco no rosto ou
um a esganadura é, ao m enos, sinal de contínuo interesse, o único sinal,
além das relações sexuais, que provavelm ente receberá a esse respeito. Na
ausência de um a cerim ôn ia de m atrim ônio, um olho ro xo é um a nota
p rom issória de amor, honra, cuidado e proteção.
N ão é tanto a violência dele que faz com que ela o deixe, mas a
percepção derradeira de que a violência dele não é, de fato, um sinal de
com prom isso. Descobre que ele é infiel ou que sua renda é m aior do
que ela suspeitara e que é gasta fora de casa; é som ente aí que a violência
parece intolerável. Ela está tão convencida de que a violência é um a parte
intrínseca e indispensável da relação entre os sexos que se, por acaso, na
próxim a vez ela se relacionar com um hom em que não é violento, sofrerá
um terrível desconforto e desorientação; poderá até deixá-lo por esse h o ­
m em não dem onstrar suficiente preocupação por ela. M uitas das m inhas
pacientes violentam ente maltratadas contaram -m e que acham os hom ens
que não são violentos intoleravelm ente indiferentes e em ocionalm ente
distantes, visto que a ira é a única em oção que já viram um hom em ex­
pressar. Elas os abandonam m ais rapidam ente do que deixam os hom ens
que as espancam e maltratam.
Os revolucionários sexuais queriam libertar as relações sexuais de
todos os conteúdos, exceto o m eram ente biológico. Doravante, tais re­
lacionam entos não estariam m ais sujeitos aos arranjos contratuais restri­
tivos dos burgueses — ou, Deus nos livre, aos sacram entos - tais com o o
casamento religioso. N ão haveria estigm a social relacionado a qualquer
conduta sexual que fosse vista, previam ente, com o repreensível. O único
critério que regeria a aceitabilidade das relações sexuais seria o consen­
timento m útuo dos que nelas ingressavam: nenhum a ideia de dever para

S V i i l t l Ml I ' i f l M r l M
II tuI 11 i ii il 111 ( t ( ii 11 .r. | ii 1 1 | ii 1,1 . i I i.ii ii, ,i',, | ii ii i \ e iim l< l) .111 ,i| i.i II i.i I l.i .1 l r .ill

n, ,ii i d o desejo . A 1 1 i i \ l l ,ii,,io sex ua l 1 1 iH o <le ■il Miga ço es s o c ia is ,u 11llt lats e


■11 11 \ii iMii1, er.i o Inimigo, e ,i lupoi risia ,i i <his<•<11u•ik i.i inevitável de
iii.iiilei as pessoas presas a padrões de conduta era o pior perado,
() c<iiaçao (píer coisas c<)iilradilórias, incompatíveis; as i<inveiiçi>«-. mi
i l.ii '.urgiram para resolver algunàconflitos de nossos próprii>s im pulso .,
,i • i< 11 i.i frustração é uma com panheira inescapável da civilização, com o
I lend i ihservara todas essas verdades recalcitrantes não (oram pen elnd,r,
pelos proponentes da liberação sexual, o que condenou a revolução ,io
f i,n .isso definitivo.
\ < > Iracasso atingiu em cheio a subclasse. N em por um m om ento se
■1111 i os libertadores sexuais pararam para considerar os efeitos da d« s
II uh .io dos sólidos laços fam iliares nos m ais pobres, laços que, pela m eu
< ■r i« ui ia, faziam com que um grande núm ero de pessoas saísse da p<)bre
i listavam preocupados somente com os dramas insignificantes das pró
pi i.r. vidas e com as próprias insatisfações. Ao subestimar, obstinadamenii .
i mais óbvias características da realidade, com o fizera m inha pacienti
■I' div.essete anos que pensava na superioridade da força física masculina
' ■mio um m ito sexista socialmente construído, seus esforços contribui
i.iin, em grande parte, para a intratabilidade da pobreza nas cidade, um
. 1. mas. Apesar do grande aumento geral da riqueza, a revolução - u il
11 a11sI<irmou os pobres de classe em um a casta da qual estão impedldi i , I,
ui. enquanto a revolução prosseguir.

M i i i l n l i l l | | - S t M i i l »1 u i I mi \iiin i «Ir V i i l m l i l n <»•>


Dói, lo«r() l ] xistO

À\ / causa da crim inalidade entre a população branca da Inglaterra é


„ // \ \ perfeitamente óbvia para qualquer pessoa com razoável capacida-
, 'i i' i <le de observação, em bora os crim inologistas ainda não tenham
n> ii.!• l< i lissa causa é a tatuagem.
Um virus de ação lenta, com o o do tremor epizoótico nos ovinos, é
mm mlu/.ido no corpo hum ano pela agulha de tatuagem e aloja-se no cére-
I*ii >, onde, dentro de poucos anos, faz com que o indivíduo afetado furte
i .11 ms, invada residências e assalte pessoas.
1'o n n u le i pela p rim e ira vez m in h a teoria v irai da crim in alid ad e
ipi.m do p erceb i q u e n ove entre dez p risio n e iro s bran co s in g leses são
U liu d o s, três o u quatro vezes m ais que a p ro p o rção na p o p u lação
n u geral. Tenho certeza de q u e associação estatística do crim e com
,i i.uuagem é m ais forte do que a existen te entre o crim e e q u alq u er
"iii io fator, com exceção , talvez, do fum o. P raticam ente todos os c r i­
m in osos in gleses fu m am , um fato que os so c ió lo g o s in ú m eras vezes
li. g ligen ciam .
I lá duas principais escolas de tatuagem: a do faça-você-m esm o e a
Iii i ilissional. Elas não são, de m aneira algum a, m utuam ente exclusivas; ao
II iiiti.irio, o relacionam ento é um tanto com o o da m edicina alternativa
(ou (om plem entar) e a ortodoxa (tradicional). Os devotos de um a muitas
i i . ..io, simultaneamente, devotos da outra.
As diferenças entre as duas escolas são m uito m arcantes A t.miagem
caseira possui coloração m onocrom ática preto-azulada, ao passo que a
tatuagem p rofissional é policrom ática. Os desenhos da prim eira são sim ­
ples, em bora não sejam , por isso, m enos im pressionantes. Os desenhos
da outra escola são elaborados e m uitas vezes executados com p rim orosa
habilidade, ainda que m e façam lem brar de um antigo ditado m édico
q ue diz que se não vale a pena fazer determ inada coisa - um a m astec-
tom ia radical, por exem plo - não vale a pena ser bem feita. Por fim , a
tatuagem caseira é de baixa tecnologia; a profissional, de alta tecnologia.
Por toda a Inglaterra, jovens da subclasse, entre quatorze e dezoito
anos, entregam -se a um estranho e bárbaro rite de passage, em núm eros que
excedem em m uito os dos que realizam tais ritos m undo afora. Pegam um a
agulha de costura com um , enrolam em gaze de algodão e m ergulham -na
em nanquim . Perfuram a própria pele, introduzindo um a pequena quan­
tidade de tinta na derme. Repetem o procedim ento até que o desenho ou
as palavras desejadas surjam , indeléveis, nos tegumentos.
Com o as operações cirúrgicas antes da descoberta dos anestésicos, esse
tipo de tatuagem muitas vezes é realizado enquanto o sujeito está bêbado,
diante de uma multidão de espectadores que o encorajam a suportar a dor do
processo. De qualquer modo, essa dor tende a diminuir e se tornar uma dor­
mência após poucas perfurações da agulha, assim disseram-me os pacientes
autotatuados. A vermelhidão da inflamação retrocede em poucos dias.
Quais m ensagens esses jovens querem com unicar ao m undo? Em ge­
ral, são breves e vão direto ao ponto: todos expressam de m aneira sucinta
o violento niilism o de suas vidas. A tatuagem m ais com um consiste em
duas palavras, com um a letra em cada um dos dedos da m ão: “ amor ” e
“ ódio ” .1Outra tatuagem bastante com um são pontos nos quatro dedos de
um as das m ãos, com ou sem as letras A C A B, que significam Ali Cops Are
Bastards [todos os policiais são im b ecis].
0 tema antipolicial é um dos que já vi representado de m odo m ais
explícito, na form a de um a forca da qual pendia um policial. N o caso
de o sign ificado não estar suficientem ente claro para os espectadores,

1 Em inglês, as palavras de quatro letras “love” e “hate” , respectivam ente (N.T.)

7*1 N\i* Ih Mil Hm jrin


i II.ilavi.IS RNFOHQUiíM iodos os policiais estavam apensadas abaixo Inle
Ii 111< ni <•, essa expressão de sentim entos franca e viril nem sem pre (oi
vâtit.ijosa ao portador, visto que estava frequentem ente sob custódia da
11>i<,-I policial e a tatuagem, por estar no antebraço, não era tão fácil de
i i i Hidcr dos olhos da polícia. Retornarei m ais adiante às várias desvan
i.igciiN da tatuagem.
l)m núm ero surpreendentem ente grande de autotatuadores escolhem
Iuim o exercício de sua arte derm atológica o principal mote das indústrias
• li m tviço britânicas, a saber fuck off [foda-se]. Por que alguém gostaria
iIc le r tais palavras gravadas de m aneira indelével na pele é um m istério
■ii |o significado ainda não com preendi. Ainda assim, m inhas pesquisas
i ■Mitinuam, mas lem bro de um paciente que tinha essas duas palavras ta
iii,idas de m odo espelhado na testa, de m aneira que as pudesse ler todas
r manhãs, ao se olhar no espelho do banheiro, e recordar-se da futilidade
>l,i. preocupações terrenas.
Não é somente nas indústrias de serviço que a Grã-Bretanha fica para
II .is, é claro. A antiga oficina do m undo fabrica tão poucas coisas hoje que
i,i i ,i mente vem os as palavras made in england em algum lugar - exceto, é
i l.iro, tatuadas em volta do m am ilo ou do um bigo de um ex-aluno menos
i rrebrino das escolas de pouco renome.
Naturalmente, esse tipo de tatuagem tam bém serve para propósitos
mm,in ticos. Os hom ens, com o é bem sabido, estão constantemente pre
par.idos para suportar dores intensas por amor, e não é de todo surpreen
dente que o nom e da nam orada seja gravado não a caneta ou no papel,
ui.c. impresso na pele. Infelizmente, as disposições românticas tendem a
mi um tanto instáveis na era da autotatuagem, e não é incom um ver toda
iini.i história rom ântica gravada, com o um a listagem, no braço, às vezes,
<oin um nome riscado quando a separação foi particularm ente amarga.
Dm jovem que conheci tinha tatuado suas aspirações românticas, em
vi■/ <l.i própria história romântica. Os dedos de um a m ão traziam gravadas,
em letras rudes, L T F C; e os da outra m ão, E S U K. Quando entrelaçava
1 1 . dedos um sím bolo da m ensagem que queria transmitir, de que uma
pi ',■,0,1 sozinha é incom pleta e que duas form am um todo - nas letras
11unhi nadas lia-se u:ts fuck [vam os transarj.
- Isso já funcionou? - perguntei com algum ceticismo.
- Bem , já - respondeu com grande polidez às vezes.

Muitas vezes, a tatuagem funciona com o o em blem a de m em bros de


um grupo. Por exem plo, um pequeno ponto azul na maçã do rosto indica
que o portador já foi para Borstal, um a instituição correcional para jovens
instáveis, cujo nom e é o m esm o da aldeia de Kent, o jardim da Inglaterra,
local da prim eira dessas instituições. O sím bolo azul da rebelião é usado
da m esm a m aneira que as antigas gravatas das escolas, para que antigos
borstalinenses possam reconhecer - e ser reconhecidos. N os círculos que
frequentam , o significado do ponto azul é bem conhecido e com preendi­
do: Noli me tangere.2
Assim com o aquelas m ariposas e borboletas peculiares, sobre as
quais os naturalistas têm im enso prazer em nos inform ar que im itam a
plum agem colorida de espécies venenosas sem ser venenosas, de m odo
que o potencial predador de um a lepidóptera não a incom oda, igualm en­
te alguns jovens tatuam o ponto azul sem nunca terem ido para Borstal.
Usam o ponto azul tanto por proteção com o um m eio de conseguir a
admiração dos pares; mas, para m udar um pouco a m etáfora, a cunhagem
é logo enfraquecida, e o que fora sinal de considerável valor, agora, quase
não o possui.
Dessa m aneira, o estudo de um problem a social aparentemente m e­
nor, tal com o a tatuagem, nos perm ite vislum brar o m undo m oral hob-
besiano habitado por um a parte da população com a qual, norm alm ente,
temos m enos contato. Na verdade querem ser considerados psicopatas. As
tatuagens, e não os olhos, são as janelas dessas almas.
Outra padronagem popular —em bora dê arrepio pensar no processo
com o é gravada na pele ou nas consequências, caso haja erro - é a teia
de aranha na lateral do pescoço. Algum as vezes, a tatuagem espalha-se
p or toda a face, e até m esm o pelo couro cabeludo. Prim eiram ente supus
que esse desenho tivesse um significado sim bólico, m as questionando
m uitos de seus portadores, e tendo sido assegurado por eles de que não

2 “N ão m e to q u e s” . (N .T .)

\ \ Ii I m h m H mi | H m
■ isle Ia I sign i lie.idi», agora estou convem i<t<» <h* <|tir e .1 beleza ml rinse
1.1, 1 certa conotação vagam ente sinistra relacionada às teias de aranhas
que atrai as pessoas para essa padronagem e as induz a se adornarem
r i m Adem ais, recordo nitidam ente a cena de um julgam ento de assas
‘»maio em que fui testem unha. O juiz e o advogado estavam enredados
mim debate ilustrado dos pontos m ais sutis da mens rea,3 sendo assistidos
IMlo crim inoso no banco dos réus e por sua fam ília nos assentos destina
■h i'. .10 público - todos, até a enésim a geração tinham proem inentes leias
■li aranha tatuadas no pescoço. N unca o p rin cíp io classista (com o os
m.irxistas costum avam cham ar) da justiça britânica esteve m ais visível
iln.ts ( lasses separadas, dentre outras coisas, pela propensão, por parte de
tim.i delas, para o autodesfiguram ento.
Um núm ero considerável entre os autotatuados introduz no corpo
■ 1 u/es suásticas. Inicialmente, achei profundam ente desagradável, um re
Hex o de suas crenças políticas, mas no m eu alarme, não levei em cot 1la
1 ignorância histórica abissal dos que infligem tais coisas a si m esm os
1’essoas que acreditam (com o um de m eus pacientes recentes) que a Se
iMiuda Guerra M undial com eçou em 1918 e term inou em 1960 - uma
aproxim ação m elhor das verdadeiras datas do que algumas que já ouvi
provavelmente não sabem o que eram os nazistas e o que representava o
sim bolo, além da brutalidade vulgar com que estão fam iliarizados, admi
ram e aspiram alcançar.
Um em vinte autotatuados ingleses adorna-se com linhas poniillud.is
ao redor do pescoço ou dos pulsos, com a instrução para o público cimin
AgiM, com o se fossem cupons de desconto em um a revista ou em um
|ornal - um a instrução que m uitos de seus conhecidos são perli i 1.11 m 111<
1 apazes de obedecer, visto que costum eiram ente carregam facas aliadas
Tais tatuagens p odem ter consequências sérias. Há pouco lem po,
um prisioneiro com as palavras no fear [sem m edo] tatuada de manelia
bem visível na lateral do pescoço veio queixar-se para m im e com ecei
.1 perguntar sobre seu histórico m édico. Ele costumava raspar o cabelo
e seu couro cabeludo parecia um gato velho, de um olho só e de orcllu

1 In ten ção d olosa. (N. T.)

Itl llllllllilr SiiMlIirill I)ói. Ill/i" I vl ili


rasgada c|iR' Uca 110 jardim do m eu vizinho, cuja cabeça era um amon
toado de cicatrizes.
—Você já teve algum ferim ento grave? - perguntei.
- N ão - respondeu.
- Já esteve internado em um hospital por algum a coisa? —continuei.
- Sim, quatro vezes.
- Por quê?
- Fratura de crânio.

Devo fazer um parêntese para explicar que as classes de tatuados na


Inglaterra não consideram fraturas de crânio com o ferim entos graves,
m esm o quando acabam em cirurgia, com introdução de placas de aço
no restante do crânio e prolongados períodos de internação hospitalar.
E difícil para eles com preender ocorrências com uns com o algo sério. Por
exem plo, um paciente teve o crânio quebrado por um bastão de beisebol,
mas disse que o incidente foi “ apenas um a briga com um de vizinhos” e,
portanto, nada para preocupar policiais ou m édicos.
- E com o você conseguiu essas fraturas de crânio? —perguntei a m eu
paciente.
A sua tatuagem foi a responsável. Todo m undo supôs que no fear que­
ria dizer exatamente “ sem m ed o” , logo, toda vez que ele entrava no bar,
era desafiado a brigar com aqueles que se sentiam no direito de serem
temidos, e que viam a falta de m edo com o um insulto pessoal. Além disso,
muitas vezes, no bar, tinha recebido “ copadas” , e o copo sido esmagado
no rosto ou na cabeça por conta de sua tatuagem.
Quando perguntei por que infligiam aquelas marcas de Caim neles
m esm os, o tatuado citou a pressão do grupo e o tédio. Talvez a dor da
tatuagem dê a eles a certeza de que estão vivos: dói, logo existo.
“ Estava chateado” , disse um hom em cujas m ãos estavam cobertas de
marcas de tais tatuagens, e que afirmava que as marcas o m antiveram de­
sem pregado por m uitos anos. “ Ou eu m e tatuava ou saía roubando.” N e­
nhum a outra possibilidade se apresentava àquela inteligência m alformada;
mas de qualquer m odo, a distração causada pela tatuagem logo perdeu o
efeito, e ele continuou roubando da mesma maneira.

N \ l l i l t ( I I I 1 t||| |l | II
Assim eiiino m iillos c<imeçam iia in.u ■h111.1 c lei miii.uu mimimK, ,r,
m i m i.unbém a m aioria dos que se autotalnam > ontlnnam sendo (atuados
Ixti profissionais. E ilegal na Grã-Bretanha tatuar m enores de dezoito anos
(t mbora, naturalmente, se o governo quisesse realmente dim inuir o nú
mero de tatuados, deveria tornar a tatuagem obrigatória). Os estúdios de
i.m ugem daqueles que suponho dever cham ar de tatuadores éticos que
r recusam a tatuar o pênis dos clientes, por exem plo — são regularm en
le inspecionados pelo Departamento de Saúde para atestar a higiene e .1
lei nica estéril. Os tatuadores afixam as licenças na parede, bem com o as
.diliações de várias organizações de artistas da tatuagem, com o o fazem os
m édicos nos Estados Unidos.
Estúdios de tatuagem e piercing —agora já visitei vários - são todos mui
in parecidos tanto em aparência com o em atmosfera. N a área da recepção
existem cartazes ilustrando os m odelos a partir dos quais a m aioria dos
clientes escolhe, tatuagens sob encom enda são consideravelmente mais
caras. Os padrões parecem inspirados pela m itologia nórdica subwagnc
11,ma, as figuras fem ininas inspiradas igualm ente em Brünnhilde e Ursul.i
Andress, as m asculinas em Siegfried e Arnold Schwarzenegger. Cobras en
roladas em caveiras, tigres-dentes-de-sabre e buldogues m ostrando suas
presas também são populares.
Os proprietários são bastante tatuados, em bora alguns deles, em nos
•..is conversas privadas, tenham admitido que não se tatuariam, ao mem >•.
não numa extensão tão grande, caso pudessem voltar no tempo. Ncgócli 1 c
negócio, e a demanda é m ais que suficiente para mantê-los em .ilivld.uh
lislLmo que, em nossa cidade de um m ilhão de habitantes, cerca de in ••
mil pessoas são tatuadas por profissionais a cada ano: uma proporç.u >.1I1.1
do que os epidem iologistas cham am de “ população em risco” , qut i d 1/ • 1.
rapazes entre dezoito e trinta anos.
De fato, a popularidade da tatuagem em alguns círculos parece n c ,
cer em vez de diminuir. E um a característica curiosa de nossa época qui
as influências culturais agora pareçam fluir das classes sociais mais baix.r.
para as mais altas, e não das classes mais altas para baixo, de m odo que um
grande núm ero de pessoas da classe m édia está se tatuando mais do qu<
nunca. E aquilo que fora exclusivo dos hom ens, não mais o é; jimtamcnle

Huilii l/u Ir Sdiiihi in l)ni, l < » 1'MNln


com o trabalho nos bancos e os clubes de cavalheiros, outro bastião do
patriarcado caiu.
Assim com o a Grã-Bretanha é, culturalmente, o país m ais degradado
da Europa, da m esm a m aneira sua influência cultural cresce. A tatuagem
costumava ser pouco com um e discreta na França, por exem plo, no en­
tanto (assim m e disseram vários tatuadores), está se tornando cada vez
m ais popular nesse país. U m dos estúdios abriu um a filial na Espanha,
sobretudo - mas, infelizm ente, não só - para o m ercado de idiotas britâ­
nicos bêbados.
N ão dem ora ou custa m uito fazer um a tatuagem pequena, embora
um a ou duas horas desse procedim ento é o que a m aior parte das pessoas
aguenta por sessão. Você pode estigmatizar-se com pletamente em um a
hora por apenas cinquenta dólares, mas aqueles que quiserem cobrir todos
os tegum entos (85% da superfície corporal coberta por tatuagem não é, de
m odo algum , algo raro) poderá passar anos da sua vida num estúdio de ta­
tuagem. Ao observar jovens rapazes ainda não tatuados escolhendo os m o ­
delos na recepção do estúdio, senti-m e com o um evangelizador vitoriano
ou um militante contra a prostituição, experim entando dentro de m im
um im pulso crescente para exortá-los a renunciar ao mal. Ao adotarem, no
entanto, a expressão característica da subclasse urbana (uma com binação
de vazio bovino e m alignidade lup in a), logo fizeram com que deitasse por
terra m eu im pulso humanitário.
Poucos são os tatuados que, dep ois, não se arrependem da tolice
da juventude, tanto p or razões estéticas com o p or razões práticas. U m
paciente descreveu com o suas tatuagens sem pre im p ediram que con se­
guisse um em p rego : nas entrevistas era capaz de co b rir as linhas p o n ­
tilhadas no p escoço com um a gola alta, com o o ru fo n os séculos XVI
e XVII cob ria a escrófu la, m as as linhas em torn o dos p ulsos sem pre o
denunciavam .
Bem , talvez ele não estivesse m esm o tão disposto a trabalhar, mas a úl­
tima gota - que precipitou o desespero - foi ser proibido de entrar numa
boate por causa das tatuagens. Ao vê-lo, o segurança na porta se pôs diante
dele e deixou-o do lado de fora; m esm o num m undo em que há poucas e
brutais distinções, as tatuagens tornaram -no inaceitável.

711 \ \ »1 I n H M H « | J» I H
As lollces dir, lolu1. \.io as ÖporlUllldadrs d( 1’. '..i I»I«>S, e claro Aprendl
|m 1.1 Paginas Am.irelas <|ut*. |>ara cada cinco esiiidios de laluagem, Ii.t tres
1 liuleas de rem oção de tatuagem a laser (foi assim que nosso produto iulei
in 1 In uto cresceu). A mais sofisticada dessas clínicas possui vários lasers p.»r.i
11<l.i 1 com cada tipo de cor, que são sensíveis a diferentes com prim entos de
...... Os lasers partem a partícula do pigm ento, e os próprios macrófágos
■In corpo podem rem over os pequenos fragmentos. Muitos estúdios dr
i.iiuagem também oferecem o serviço de rem oção, mas o m étodo mais
1 ■imumente utilizado, a injeção de ácido para dissolver a tatuagem, deixa
( li alrizes na pele, de m odo que os resultados não são bons.
As principais desvantagens do tratamento a laser são o custo e a dura
K >. I)ma única sessão dem ora dez minutos e custa 160 dólares. A pele nã<>
li dera um tratamento mais prolongado, e entre cada sessão deve se guardar
o intervalo de seis a oito semanas. Um a tatuagem m édia no bíceps, de 8
x 8 cm, requer cinco a oito sessões para a rem oção total. Já que muitas
pessoas têm um a área adornada por tatuagem m uito m aior que essa, elas
lem de investir m ilhares de dólares para a remoção. Em geral, tais pessoas
vêm dos segm entos m ais pobres da sociedade.
Não obstante, a dem anda por tratamento ultrapassa a oferta, e uma
empresa já possui quatro clínicas por todo o país e está abrindo mais
duas. O tratamento, geralmente, não está disponível no Sistema Nacio
uai de Saúde (o sistema britânico de m edicina socializada), exceto para
aqueles pacientes cujas tatuagens causam sérias perturbações psicológicas
ou psiquiátricas. O desespero com as tatuagens pode levar a tentativas de
suicídio, e m esm o a tentativas de arrancá-las da pele com facas de co/i
ulia. Uma paciente que tentou retirar a sua tatuagem com um a lâmina de
barbear disse-m e que, durante anos, não conseguia pensar em outra coisa,
A obsessão dela com suas tatuagens (a propósito, as tatuagens foram feitas
s<>b coação por outras internas em um orfanato fem inino) tirou sua vonta
de de viver, e som ente depois que foram rem ovidas é que ela foi capaz de
com eçar um a vida norm al.
Em geral as pessoas não sabem que o Serviço de Saúde faz algumas
exceções nesses casos (subcontratando o trabalho das clínicas privadas),
e certamente isso não é anunciado, por m edo de provocar uma onda de

I I i m l « ‘ Simiil»1111 I M I"; MI •»ImIh


“ distúrbios psicológicos para econom izar dinheiro” cnirc n*. taiu.idos.
E um fato lamentável que a angústia psicológica expanda para atender a
oferta de serviços custeados pelo público, e disponibilizados para reduzi-la.
O correu-m e, entretanto, ainda que num m om ento de fraqueza in-
com um , que a prisão em que trabalho deveria oferecer um serviço de
rem oção de tatuagem para seus hóspedes involuntários. Afinal, m esm o os
crim inosos reincidentes, sem suas marcas de Caim, estariam num a posição
m ais favorável para encontrar em pregos honestos.
Foi aí que lem brei que cada política pública tem suas consequências
não desejadas. Se as tatuagens fossem rem ovidas de graça na prisão, os
tatuados com eteriam crim es especificamente para aproveitarem essa opor­
tunidade e, então, a associação de tatuagem com crim inalidade ficaria ain­
da mais forte.

1995

ui i S Mil H l l l J I - l n
s ingleses, com o observado por um aristocrata francês nos idos
do século XVIII, desfrutam dos prazeres de um m odo trisl«*
Hoje em dia, tam bém o têm feito passivamente, com o o vidadc >
cm drogas que busca, ao m esm o tempo, felicidade e esquecimento d.i
maneira m ais sim ples possível.
Não quero dizer com isso que o inglês não se esforce por buscar en
iretenimento; ao contrário, com o o viciado busca a droga, tal busca, mui
las vezes, é a única ocupação séria de suas vidas. O entretenimento, uma
vez encontrado, requer - para realmente entreter - a m enor contribuição
de atividade mental possível por parte do entretido.
Primus inter pares é, por certo, a televisão. A m édia de televisão que uni
adulto inglês assiste por semana hoje, dizem, está em 27 horas, duas ve/es
mais que há vinte anos. N isso os ingleses nada diferem de outros país<:., d<
lato, os norte-am ericanos desperdiçam quase a mesma proporção de mi.e.
vidas em frente da telinha com o os daqui da Ilha.
De qualquer m odo, os núm eros podem ser enganadores. Minha rx
periência de atendimentos m édicos dom iciliares convenceu-me de que a
televisão ligada não quer dizer, necessariamente, que as pessoas estejam
assistindo à televisão. Ela fica piscando ao fundo, com petindo por Irag
mentos de atenção, dividida com um rádio e, talvez, com um a ou duas
discussões domésticas; o m esm o quando é assistida, não há garantia de
que qualquer coisa vá m uito além dos nervos ópticos. Muitas v e /r. pedi
aos pacientes que visitei em casa, enquanto estavam sentados diante da
televisão, que descrevessem o que estavam assistindo, e fui atendido com
o silêncio da incapacidade ou da incom preensão. Alguém poderia ter per­
guntado a um habitue dos antros de ópio o que se passava pela sua consciên­
cia, assim com o perguntamos aos espectadores m odernos o que ocorre
nas consciências deles.
Quando era jovem e inexperiente, costumava pedir ao paciente, ou
aos parentes, para desligar a televisão; mas na Inglaterra isso significa (na
m elhor das hipóteses) apenas um a pequena redução do volum e. É descon­
certante fazer um exam e m édico enquanto um a figura fica se m ovendo e
m udando a lum inosidade do aposento, e o paciente tentando espiar por
cima do om bro, ou ao redor do m édico, para dar um a olhada, enquanto
confunde as perguntas com o diálogo da novela. U m a vez fui fazer um
atendimento na casa de um a senhora paralítica e encontrei a televisão liga­
da. Pedi á filha, que estava presente, para desligá-la.
—N ão sei desligar —disse ela. E não desligou.

Hoje em dia, entro decidido na casa e eu m esm o desligo a televisão.


E a única maneira de conseguir total atenção do paciente - m esm o quando
ele, ou ela, está seriamente doente e provavelmente venha a falecer caso
não tenha assistência médica.
Agora, no hospital, é visto com o algo cruel privar o paciente da tele­
visão diária, tanto que assistir a ela está se tornando praticamente com pul­
sório ou, ao m enos, inescapável para aqueles que não estão em condições
de se mover. Idos são os dias em que o hospital era um local de quietude
(na m edida do possível) e repouso. Atualmente ninguém m orre sem o
benefício do talk show.
Muitas vezes tentei fazer um experim ento simples: num a enferm aria
repleta de pacientes incapacitados, desliguei a televisão ou as televisões e
deixei o recinto por cinco minutos. Infalivelmente, a televisão ou televi­
sões estavam ligadas no m om ento em que retornava, mas quem as ligava
de novo, nunca fui capaz de descobrir. Os pacientes não poderiam tê-lo
feito, e as enferm eiras negam. E um m istério total, com o o Sudário do

it .1 \ \ lilu HM N ||| |i 11|


lurlm . As enferm eiras, n<> entanto, sempre dl/em : "o s pacientes querem .1
l V ligada” e continuarão a dizê-lo, m uito em bora uma votação informal
tu >1 malmente revele o contrário.
1’arece-me im provável prima facie que um a senhora de oitenta anos
com hem iplegia do lado direito após um derram e, e com dificuldade de
deglutição da própria saliva realmente queira assistir ao Mr. Motivator,
uni personal trainer fanático, num a roupa colante de lycra de cores flúores
tentes, demonstrando, ao som de um a batida de discoteca incessante, os
exercícios para o telespectador perder a celulite nas coxas. Há alguém na
1 nlermaria, no entanto (um pós-m odernista, talvez), que acredita que um
m om ento sem entretenimento é um m om ento perdido, e que um a mente
não preenchida pela bobagem de outro alguém é um vácuo do tipo que .1
natureza abomina.
No entanto, é no sábado à noite, no centro da província, que a inex
tliiguível sede inglesa por entretenimento - ao m enos entre os jovens é
vista com m ais proveito. Chegar ao sábado é o ápice da am bição de boa
parte da juventude inglesa. Nada preenche suas mentes com tanta expor
utiva e ânsia. Não existe carreira, passatempo ou interesse que possa com
polir com as alegrias da noite de sábado, quando o centro da cidade é
transformado em um a Sodom a e Gom orra de film é-B, não destruída por
Deus porque (temos de admitir) há lugares piores na Terra que clamam
por uma extinção m ais imediata.
Na noite de sábado, o centro da cidade tem um a atmosfera bem ear.u
lorística. Está apinhado de pessoas, mas não existem compradores <illuiu l>1
.is vitrines com o ovelhas na grama; quase não se vê ninguém com m.ih di
Irmta anos nas ruas. E com o se um a epidem ia devastadora tivesse v.urido
0 país e não deixado vivo ninguém de meia-idade.
Há festa no ar, mas tam bém ameaça. O cheiro de perfum e barati 1 me.
lura se com o odor das com idas de fast-food (fritas e gordurosas) e com
.1 m orrinha de álcool e vôm ito. Os rapazes - especialmente aqueles qm
1 aspam a cabeça e penduram quinquilharias no nariz e nas sobrancelha1.
1 ra/em um olhar furtivo e raivoso para com o m undo, com o se esperassen 1
mm atacados a qualquer m om ento, de qualquer direção, ou com o se .il
giiém tivesse tirado algo que lhes coubesse por direito. É, de fato, perigi>s< >

Hniliilíulr Siiiiihrm I phIm r \m n irii


olhar nos olhos deles por m ais de uma fração de segundo; qu.il«|iit-i e<>nla
to visual m ais prolongado pode ser tom ado com o um desafio, um convite
à resposta armada.
Até m esm o algumas moças parecem agressivas. Duas delas passaram
por m im na rua, discutindo, eloquentemente, seus conflitos pela afeição
de Darren.
-V o c ê gosta dele! - disse a prim eira com rispidez.
—Não gosto porra nenhuma! - respondeu, com raiva, a segunda.
—Você gosta daquele m erda...
—Ah, vai se foder!

Recordo-m e de um a paciente, cuja visão foi destruída de form a per­


manente por um grupo de m oças que lhe deram um a “ copada” em um
clube (ou seja, quebraram alguns copos e enfiaram as pontas quebradas
no seu rosto e pescoço) porque ela tinha olhado por m uito tem po e com
intenso interesse para o nam orado de um a das agressoras.
Do lado de fora do clube Ritzy, enquanto passava, vi um a poça de
sangue ainda não coagulado, e perto, um a garrafa de cerveja quebrada.
A arma estava patente e, também, o m otivo. O infeliz nem sequer chegou
a levar um a “ copada” : levou um a “ garrafada” .
As pessoas na fila para entrar no Ritzy, contudo, não estão in co m o ­
dadas com o sangue; isso não vai estragar-lhes a noite. U m a lâm pada
de n eon cor-de-rosa faz brilhar sobre as pessoas um a luz interm itente e
lú gu bre, enquanto os seguranças, de dois em dois, as revistam buscan­
do por facas que, em outras circunstâncias, ao m en os a m etade delas
traria consigo.
Todos os carros por ali transmitem a insistente batida da m úsica qua-
drifônica, que colide nas pedras da calçada e vai direto para as pernas das
pessoas que estão andando ou de pé. As minhas pernas tremem com a
vibração. As vezes fico pensando se essas pessoas que tocam suas músicas
bem alto acham que estão prestando um serviço público.
Prossigo caminhando. U m grupo de rapazes cambaleantes saem do bar
Newt and Cucumber, bêbados, cantando - não poderíam os chamar aqui­
lo de cantar - uma música obscena. Esse é o som que aterroriza os resorts

H l \ \ MIn h m H m i |i i ii
h , h ,i i o s ( L i s c o s i . e . ,|.i I i i i i i i i .i e d e q u a l q u e r c i d a d e d o c o n t i n e n t e t * n r * > | m -ii

q u e tc u h a a in lé llc ld a d e d e si'd iar u m tim e d e fu teb o l da Inglaterra.

Entro no Newl and Cucumber. Todos estão gritando, mas ninguém


eonsegue se fazer ouvir (o que, talvez, seja para ser assim m esm o). Vinte
televisões estão ligadas: dois grupos de oito estão tocando duas músicas
dilérentes (rock e reggae), e quatro retransm itindo um a luta. Dez segun
ilos disso e a pessoa parece estar com um liquidificador na cabeça fim
eionando na velocidade m áxim a: eu também saí cambaleando. A base do
poste próxim o dali fora fertilizada com vôm ito durante a m inha breve
visita ao bar.
Prossigo a cam inhada, m aravilhando-m e com a m agnífica vulgari
dade das m oças inglesas. Fico im aginando, será que esse país não tem
espelhos? Ou sim plesm ente as m oças inglesas não têm olhos para vei 1
lividentem ente, escolhem as roupas com extrem o cuidado, pois tal des
m a/elo espalhafatoso não é natural. C om prim em seus talhes gordos ■
cheios de banhas - m uita com ida ruim na frente da televisão - em r<>11
pas justas e iridescentes, que não deixam de revelar nenhum contorno,
ou em saias m uito curtas, que puxam para baixo uns centímetros qiian
do sentem um a lufada do vento outonal e com eçam a tremer. As únicas
moças m agras são as que fum am m ais de cinquenta cigarros por dia ou
as que têm anorexia.
Encontro um a passagem de pedestres em que cada porta é um clube
A passagem é fechada aos carros, exceto para a BM W verm elha do chi*le
dos seguranças, que faz questão de dispersar a multidão. Estaciona, osien
si vãmente, onde não deveria e anda com um ar de importante ao cumpri
mentar os subordinados.
Com 1,80 m de altura e 1,40 m de largura, ele é um belo exemplai
da espécie. Acertá-lo deve ser com o tentar abrir a socos um cofre laciadi >
Tem um a barba de uns três dias por fazer (fico im aginando com o sempre
conseguem m antê-la parecendo que tem três dias?) e um brinco. Um e<>i
dão de ouro oscila em seu pescoço de touro. Há cicatrizes na cabeça ras
pada. Exsuda anabolizantes e, obviam ente, passa mais tem po na academia
de ginástica do que a m aioria dos ingleses em frente da televisão. Senhor
da inspeção - e vistoria os arredores constantemente - inicia um ritual

H niliilm lr S o i i i I m III h niiii SniMiHi


elaborado de apertos de m ão com seus subordinados, que serl.i <l<>inicres
se dos antropólogos que estudam as cerim ônias dos hom ens prim itivos.
A verdade é que fazer a segurança de nightdubs é em parte trabalho, e
noutra parte proteção do crim e organizado. U m enferm eiro psiquiátrico
contou-m e que foi segurança de clubes nas horas vagas e que os clubes
m enores - os que não são propriedades de grandes corporações - são
dom inados por gangues de seguranças, que oferecem cuidar dos clientes,
mas que também ameaçam denunciar o clube e destruí-lo, caso não sejam
mais empregados. Assim, protegem o clube que os em prega contra outras
gangues de seguranças. As gangues recrutam pessoal nas prisões, onde
atrozes m olestadores e bandidos armados afiam os talentos e o físico no
ginásio da prisão.
O sábado à noite na Inglaterra provinciana pertence aos seguranças
Por algum m otivo, olhá-los faz-m e lem brar da infância, quando a BBC ti­
nha um program a de rádio educacional para crianças em que os repórteres
voltavam no tem po e eram m andados para 60 m ilhões de anos atrás, para
relatar a aparência e o com portam ento dos dinossauros. Com o os repórte­
res diziam sentir-se pequenos e vulneráveis entre os ameaçadores gigantes
sáurios! Sinto-m e da m esm a m aneira nesta noite de sábado!
Escolhi o m eu clube; parece um pouco m ais respeitável que os outros
(não perm ite jeans ou couro), e os seguranças parecem mais calm os e
m ais confiantes que nos outros locais, em bora ainda possam os ver a pro-
tuberante m usculatura sob os smokings. Mais tarde, um deles disse-m e que
fizera um a escolha sábia; só tinha problem a sério naquele local um a vez a
cada duas semanas.
Eis a M eca de todos os jovens que m e disseram que o único inte­
resse na vida é frequentar clubes! Eis o centro de atração de m ilhões de
vidas inglesas!
A m úsica é alta, mas ao m enos só toca um a m úsica por vez. As luzes
piscam caleidoscopicam ente. A pista de dança é no andar de cim a, o bar
principal em baixo. Nele, as m ulheres solitárias sentam-se, olhando des­
consoladam ente para suas bebidas com o num a pintura de Degas. Duas jo ­
vens, um a gorda e a outra tão bêbada que certamente vom itaria em breve,
sacodem -se com a música, mas sem nenhum ritmo.

^ \ >, L i i u i u i p i ti
N,i piúlHI.i I >i li .|> 'I 1111 I I 111 .i ss.i cli i vesot nil i|c pcv.i i.i >, move m
( cmu I ■.(■ I( i'.m in Inl it In ii I . I i.i 1.11.1 Com tim mi mero tão gi .mdc dc |>cnm >,e.
.mumtoadas cm um i \p,içi> tan pequeno c surpreendente vei quc nan ha.
■ litre clas, nenluim contato social. A m aioria dos pares nem mesmo se
iilh.un nos olhos; por causa do barulho, a com unicação verbal está lór.i
di i|uestão. Dançam solipsisticamente, cada um no próprio mundo, lite
i.dmcnte arrebatados pelo ritm o e pela contínua atividade física. Dançam
pelo mesmo m otivo que os escoceses frequentam o bar: para apagar ,i
lembrança de suas vidas.
Alguns seguranças patrulham o clube, portando walkie-talkies; alguns
postam-se em locais de observação. Abordo dois deles - um branco c um
negro — e pergunto-lhes a respeito do serviço; temos de gritar para nu ,
lazer ouvir. Am am o trabalho e têm orgulho de fazê-lo bem. São porte..... .
não seguranças. Têm diplom a de prim eiros socorros e prevenção di m
eêndios. São estudiosos da natureza hum ana (palavras deles, não m m li.i.)
—Sabemos quem vai ser problem a, antes m esm o de entrarem.
—Tentamos evitar problem as, e não ter de lidar com eles depois de.u-
o branco.
—Você não usa palavras —explica o negro. —Não discute com eles. Ism i
só piora o problem a, porque se você está parado ali discutindo, os ouin >s
percebem e entram na conversa.
— Um a operação sim ples, cirúrgica, e eles são postos para fora. Vm e
tem de usar o m ínim o de força possível.

Perguntei que tipo de problem a sério esperavam ter.


— Bem, tem um a gangue na cidade chamada “ Zulus” cuja divei \.i> > i
destruir os clubes - diz o porteiro negro. - Eles são muitos, não podeim <■.
dar conta de todos.
—N o entanto — acrescentou o branco, tentando ver o lado p< >siii vi > .
eles nos conhecem , não iriam nos matar ou coisas do tipo.
—Só nos dariam uns bons chutes, não mais do que isso.

Se eu tentasse chutá-los - e não sou um anão - seria mais provável


que antes quebrasse meu dedão do que conseguisse machuca los.

| ( l l l l l l 1(11 ll ' 11 M i l l >1 III I • 'h l I \ l l l » Ml M


- E o que você faria se levasse uns bons chutes? - pergu u u i Certa
mente, você desejaria trocar de em prego, não?
- Não, você tem de voltar na noite seguinte, senão perde o respeito -
disse o negro, sorrindo, mas sério.

Com eça um tumulto na pista de dança. Os dois porteiros-seguranças


são cham ados para ajudar na retirada do criador de caso. M ovem -se com
surpreendente agilidade, em uníssono. Já vi tal coordenação antes, entre
hom ens que são, em m uitos aspectos, iguais a eles: guardas penitenciários,
que lidam com distúrbios nas celas de m aneira semelhante.
U m jovem m iúdo, parecendo um peixe-piloto entre tubarões, é es­
coltado para fora do local por oito seguranças. Ao passar, noto que ele
tam bém é fisiculturista: os bíceps ameaçam rasgar as m angas curtas da
camisa. Está bêbado, mas não tão bêbado que não possa reconhecer um a
força irresistível quando a vê.
Sigo-o. Perto dali, um a m oça em calças curtas de cetim creme, de
pernas gordas e brancas com o cera, e com sapatos de salto alto de veludo
negro está jogada com o um saco no om bro do nam orado, o São Cristóvão
que a carrega pela rua porque está incapacitada de andar por si só. Está
bêbada e vom ita, felizmente, não nas costas do nam orado, mas na calçada,
certamente. O vôm ito será lim po pela manhã: isso faz você sentir orgulho
de pagar os im postos locais.
São duas da manhã. U m pouco m ais adiante, um a pequena multidão
se reúne debaixo da janela do prim eiro andar. U m a m ulher de aparência
desgrenhada, com o cabelo oxigenado e um cigarro preso com saliva seca
no canto da boca, grita o nom e de um bairro da cidade para a m ultidão
em baixo. E o escritório do serviço de táxi, e ela grita o destino dos táxis
assim que chegam . Alguns dos pretensos passageiros estão bêbados de­
m ais para identificar os destinos dos táxis que eles m esm os solicitaram, de
m odo que ela tem de repeti-los.
Somente taxistas em situação financeira desesperadora trabalham
nos sábados à noite. Todos já foram assaltados, é claro, principalm ente
com faca, e um a pesquisa inform al que eu m esm o fiz revelou que cerca
de um terço deles já teve os carros roubados. Lem bro de um motorista

IIH S \ li In i u i ' m i |i<|fi


Im Ii.iIli.iM ili) ,,iIt.n|), i ii,,iii |i.ii,i p a g a t | i i 11 m i i i l i v i i H I n 1 1 1 ii i n i l i . i i i , l i ,

e l e i o s t e l . i s 1 1 . 1 1 1 li .li I r p i i| p a s s a g e i r o s 1 1 I H | H , i i , ii i i l l l d i g l 1.1« l( >S ( 1 1 1 , 1 i x l « ) r l i

I K‘(Ihi que pagasseni ,i ( ui i iil.i, ( 'oiii() os porteiros após os cluiles, o moio


ilsia voltou imediatamente ao trabalho.
N.i segunda-feira seguinte, andei pela enferm aria do hospital. Na pri
meu a cama estava sentada um a m oça de dezoito anos, vestindo um roupão
• li li.mlio de seda dourada, olhando fixam ente para o nada. Sua pressão
sanguínea estava alta, os batimentos cardíacos acelerados, as pupilas dila
i,ui.e.. Quando falei com ela, não m e ouvia, ou, ao m enos, não respondia
leniei três perguntas sim ples, e então ela inclinou-se para frente e grilou
"Si »corro!” e caiu para trás nos travesseiros, exausta e aterrorizada.
I la esteve no XL Club na noite de sábado, um galpão grande transló
hi.k Io em pista de dança onde todos tom am ecstasy - m etilenodioxim ci.ui
lt lamina, de pureza m uito variável —e entrou em transe.Temos um flim >
II inslante de pacientes do XL Club: não faz m uito tempo, um deles já « a a
v,i m orto ao dar entrada no hospital e o am igo que chegou junto com ele
eslava com lesões cerebrais permanentes. Essa m oça, contudo, com eçou .i
agir de m aneira estranha após deixar o XL —gesticulando loucam ente para
algo que não existia —e foi levada ao hospital por um amigo.
Próxim o a ela estava outro produto do XL Club. A m oça chegou em
• asa no sábado, mas depois tentou pular da janela porque pensou que
os inim igos de seu nam orado estavam vindo matá-la.Tom ava ecstasy lodo
..ibado à noite havia seis meses, o que a deixava paranóica na m aior parle
do tempo. De fato, tinha desistido de trabalhar em um escritório porque
ai liava que os outros funcionários conspiravam contra ela. Estranhamente,
sabia que o ecstasy não lhe era benéfico, que quase arruinara sua vida.
- Então, por que você o toma? - perguntei.
- Quero ficar acordada a noite toda.

Noutra parte do hospital está um a m oça de dezesseis anos que t<>im m


uma ovcrdose para forçar que as autoridades locais lhe dessem um ap.u
lamento. Tais apartamentos são distribuídos com base na necessidade e
vulnerabilidade, e dificilm ente poderia haver m aior necessidade de ajuda
que uma jovem que tentasse o suicídio. Ela detesta a mãe porque brigam o

| { r n l l i l i n l r Sni i i l » rÍ l i 1« In i \ l l l n i H i 11«)
tem po todo, e deixou a casa para viver nas ruas; não sabe quem é seu pai,
e não se im porta com isso. Detestava a escola, é claro, e abandonou-a assim
que a lei perm itiu - não que a lei im porte muito.
- Quais são seus interesses? - perguntei.
Ela não entendeu o que quis dizer e fez um a cara feia. Reform ulei a
pergunta.
- Em que você se interessa?
Ela ainda não com preendia o que queria dizer. N ão obstante, tinha
um a inteligência boa —na verdade, m uito boa.
- O que você gosta de fazer?
- Sair.
- Para onde?
- Para os clubes. Todo o resto é um a merda.

1 9 9 6
Não OurtTmos Nenhuma
líducação

educação sem pre foi um interesse m inoritário na Inglaterra. < >•■


ingleses, em geral, preferiram manter intacta a plena beleza di
ignorância e, no geral, saíram-se extraordinariamente bem, ii.io
obstante os 125 anos de educação com pulsória de seus rebentos.
N o passado a ign orân cia era puram ente passiva; m era ausência de
conhecim ento. Recentem ente, no entanto, assum iu um a qualidade m ais
positiva e m aligna: um a profun da aversão p or qualquer coisa que chei
re a in teligência, educação ou cultura. N ão faz m uito tem po havia uma
canção popular cujos p rim eiro s versos capturavam , com sucesso, o cli
ma generalizado de hostilidade: “ N ão precisam os de nenhum a educa
Vão / não precisam os de n en hu m controle m en tal” .1Alguns m eses ali.e.
notei uns cartazes nas paredes anunciando um a nova canção: “ Polm .
branco e estú p id o” .
Gostaria de poder dizer que havia algum a ironia, mas o culto à c.tu
pidez se tornou, na Inglaterra, o que o culto à celebridade é nos list.ido-,
Unidos. Chamar alguém de inteligente nunca foi um elogio óbvio na In
glaterra, mas é necessário um tipo especial de perversidade por parte 11<>s

1 N o original: “We don’t need no education / We don’t need no thought control” . Treclio dr
“A nother Brick in die Wall (Part 2 )” , faixa do álbum The Wall (19 7 9 ) da band.i
inglesa Pink Floyd. (N.T.)
estudantes da escola secundária situada a mis 350 m elros <ln Iu >-.)>ii.11cm
que trabalho, para dizer a um dos colegas que tom ou uma overdose por
conta do constante assédio m oral a que foi subm etido: “ Você é estúpido
porque é inteligente” .
O que quiseram dizer com esse aparente paradoxo? Indicar que
qualquer um que faça um esforço para aprender e tenha bom desem pe­
nho escolar está perdendo tem po, quando p oderia estar envolvido nas
verdadeiras coisas da vida, tais com o cabular aulas no parque ou vagar
pelo centro da cidade. Além disso, havia am eaça nas palavras deles: se
você não co rrig ir os m odos e juntar-se a nós, diziam , vam os bater em
você. Isso não era um a am eaça vazia: m uitas vezes encontro pessoas na
m inha prática hospitalar, nos seus vinte ou trinta anos, que desistem da
escola sob tal constrangim ento e, subsequentem ente, percebem que per­
deram um a oportunidade que, caso tivessem aproveitado, teria m udado
m uito todo o curso de suas vidas para m elhor. E aqueles que freq u en ­
tam as poucas escolas na cidade que m antêm padrões acadêm icos altos
arriscam -se a levar um a surra, caso se atrevam a ir aonde os brancos
estúpidos vivem . N o ano passado, tratei de dois m eninos na em ergência
após tal espancam ento, e de dois outros que tom aram overdoses por m edo
de receber um a surra pelas m ãos dos vizinhos.
Assim com o é im possível ir à falência subestim ando o gosto do públi­
co norte-am ericano, da m esm a m aneira é im possível exagerar as abismais
profundezas educacionais nas quais um a grande proporção de ingleses
agora está im ersa, m au sinal para o futuro do país 110 m ercado global.
M uito poucos dos jovens de dezesseis anos que atendo com o pacientes
conseguem ler ou escrever com facilidade, e não veem a questão de serem
ou não capazes de ler com o algo, no m ínim o, surpreendente ou insultante.
Atualmente, testo o grau de instrução básica de quase todo jovem que en­
contro, no caso de a falta de instrução provar ser um a das causas de seu so­
frim ento. (Recentemente, tive um paciente cujo irm ão com eteu suicídio,
em vez de enfrentar a hum ilhação pública de expor ao funcionário da se­
guridade social que era incapaz de ler os form ulários que tinha de preen­
cher.) Podem os ver só pelo m odo com o esses jovens seguram uma caneta
ou um livro que não têm nenhum a fam iliaridade com tais instrumentos.

\ V i l h l MH Í í i i l j r l n
M c , m o aqueles 111H ii ui ,i im pressão de que p o d r m In ou c.< rever de m.i
In li.i adequada são co m p le lam e n te derrotados poi palavras do irôs silalus,
........ hora possam, às vezes, ler as palavras de um texto, não as com preen
dom m elhor do que se estivessem escritas em eslavo eclesiástico.
Não lem bro de ter encontrado um a m enina branca de dezesseis anos,
I ii i >( odente do conjunto habitacional p róxim o ao hospital, que conseguis
•■■■ multiplicar 9 x 7 (não estou exagerando). As vezes 3 x 7 os derrota. Um
lapaz de dezessete anos disse-m e: “ Ainda não estamos tão adiantados n.i
ui,iii ria” . Isso depois de doze anos de educação com pulsória (ou, devo
dizer, frequência escolar).
Quanto aos conhecim entos em outras esferas, são quase os m esm os
padrões da matemática. A m aioria dos jovens brancos que encontrei não
consegue, literalmente, nom ear um único escritor e, por certo, não sabe
roei lar um verso de poesia. N enhum de m eus jovens pacientes sabia as datas
d,i Segunda Guerra M undial, para não m encionar as da Prim eira Guerra;
alguns nunca ouviram falar dessas guerras, em bora um deles, que ouvira
lalar da Segunda Guerra há pouco tempo, pensasse que tivesse acontecido
no século XVIII. N a circunstância da total ignorância reinante, fiquei im
pressionado por ele ter ouvido falar no século XVIII. O nom e de Jo se f Staliu
nada significa para esses jovens e nem m esm o soa m inim am ente familiar,
com o (às vezes) acontece com o nom e de W illiam Shakespeare. Para eles,
1066 é m ais parecido com um preço do que com um a data histórica.'1
Assim , os jovens estão condenados a viver num eterno presente, um
presente que existe sim plesm ente, sem conexão com o passado que p< ide
explicá-lo ou com um futuro que dele possa surgir. A vida desses jovi ie,
é, verdadeiram ente, um a sucessão de m aldições. Da m esm a m aneira, i •<
tão privados de quaisquer padrões razoáveis de com paração pelos qual-,
111Igar os próprios males. Acreditam que são carentes porque as únn ,e
pessoas com as quais podem com parar-se são as que aparecem nos anún
cios ou na televisão.
O sim ples sem ianalfabetism o e a ignorância não necessariamente m
pedem esses jovens de passar nos exam es públicos, ao m enos nas provas de

2 A no da c o n q iiisu da Inglaterra p elos n o rm a n d o s. (N .T .)

l i m l i t l m l i * S u m i u ui N ilii ü m u m ih iw N i i i i i i u i i ii | <lu< n n i n
nível m ais baixo. U m a vez que o insucesso é visto, agora, com u làulm eule
prejudicial à autoestima, quem quer que se apresente para fazei as pro­
vas provavelm ente sairá com um diplom a. Recentemente estive com um
rapaz de dezesseis anos em m inha clínica que escrevia “ Dear sir” [Prezado
senhor] com o “ Deer sur” e “ I'm as im e” [I’m as I am - Sou com o sou] (a
gram ática está em plena consonância com sua ortografia), que fora apro­
vado nas provas públicas - em Inglês.
Claramente, algo m uito estranho está acontecendo em nossas escolas.
Nossas práticas educacionais atuais são tão grotescas que seria um a afronta
à pena de Jonathan Sw ift satirizá-las. Na grande área m etropolitana em
que trabalho, por exem plo, os professores receberam instruções de que
não devem m inistrar as tradicionais disciplinas de ortografia e gramática.
Dizem que a atenção m esquinha aos detalhes da sintaxe e da ortografia
inibe a criatividade da criança e a capacidade de autoexpressão. Além disso,
afirm ar que existe um a m aneira correta de falar e de escrever é favorecer
uma espécie de im perialism o cultural burguês; e dizer para a criança que
ela fez algo errado é necessariam ente conferir-lhe um senso de in feriori­
dade debilitador do qual nunca se recuperará. Encontrei poucos professo­
res que desobedeceram tais instruções numa atmosfera de clandestinidade,
tem endo pelos próprios em pregos, o que lem bra um pouco a atmosfera
que cercava aqueles que secretamente tentavam propagar a verdade por
trás da Cortina de Ferro.
Contaram -m e de um a escola em que o diretor autorizara os profes­
sores a fazer correções, m as som ente cinco por trabalho, independente do
núm ero verdadeiro de erros. Assim , é claro, preservava-se o amour-propre
das crianças, mas parecia não ter ocorrido a esse pedagogo que a regra
de cinco correções teria consequências lamentáveis. O professor p ode­
ria escolher corrigir um erro ortográfico de um a palavra, por exem plo, e
desconsiderar exatamente o m esm o erro num p róxim o exercício. Com o a
criança interpretará essa correção segundo o princípio do diretor? O m e­
nos inteligente, talvez, verá com o um a espécie de desastre natural, com o
as condições m eteorológicas, e a respeito disso, pouco pode fazer; ao passo
que o m ais inteligente provavelmente chegará à conclusão de que o princí­
pio de correção, com o tal, é inerentem ente arbitrário e injusto.

\ \ ii w i h m H i m « 'In
() iii.ii'. .i1.11111.1111■ i <|u< i :.s.i arbit rariedad< lelórça pu i is.i11n•iU<' o
tipo de disciplina <11n ve|o, ao meu redor, ser exercida por pais tuja filo
olia educacional é uma criação laissez-faire m isturada com fúria insensata
IJm a criança pequena corre fazendo barulho, causando estragos e des
ii uiyão ao seu redor; a m ãe (os pais dificilm ente existem , exceto na mera
ai cpção biológica), prim eiro, ignora a criança; depois, grita para ela p arai.
novamente a ignora; suplica que ela pare; volta a ignorá-la; ri da criança;
pc ir lim , perde a cabeça, grita algum as ofensas e dá-lhe um safanão.
Que lição a criança tira disso? Aprende a associar a disciplina, não ao
pi incípio e à punição, não ao próprio com portam ento, mas a associá- los
,io estado exasperado da mãe. Esse próprio hum or dependerá de muitas
variáveis, poucas sob o controle da criança. A m ãe pode estar irritadiça
por conta da últim a briga com o últim o nam orado ou por um atraso no
ultimo pagam ento do cheque da seguridade social, ou ela pode estar com
parati vãmente tolerante porque recebeu convite para um a festa ou tenha
acabado de descobrir que não está grávida. O que a criança certamente
nunca aprenderá, no entanto, é que a disciplina tem um significado além
da capacidade física e do desejo da m ãe de im pô-la.
Tudo é reduzido ao m ero concurso de vontades, e assim a criança
aprende que toda lim itação é apenas um a im posição arbitrária de alguém
ou algo m aior e m ais forte do que ela. Estão lançadas as bases para uma
intolerância sangrenta para com qualquer autoridade, m esm o que essa
autoridade esteja baseada num a patente superioridade, no conhecim enio
benevolente e na sabedoria. O m undo é, dessa m aneira, um m undo de
egos perm anentem ente inflam ados, que tentam im por as próprias vonia
des uns aos outros.
Nas escolas, as crianças pequenas não são m ais ensinadas em cia:,
ses, mas em pequenos grupos. Esperam que aprendam por descoberta',
e brincadeiras. N ão há quadro-negro e nada é aprendido de cor. Talve/. o
m étodo de ensino que transform a tudo em brincadeira funcione quandi >
o professor é talentoso e as crianças já estejam socializadas para ap ren d ei.
todavia, quando, e norm alm ente é o caso, nenhum a dessas condições
ocorre, os resultados são desastrosos, não só no curto prazo m as, prova
velm ente, para sempre.

M n i l l i l i H l r S i »l i li MIM ÍNll* * U l M I* MMw INm i I h i i i i h l\i llM IM.ÍM»


As próprias crianças, no final, percebem que há algo errado, m esm o
que não sejam capazes de articular esse conhecim ento. Das gerações de
crianças que cresceram com tais m étodos pedagógicos, é im pressionante
ver quantas, das m ais inteligentes do grupo, percebem , por volta dos vinte
anos, que falta algo nas suas vidas. N ão sabem o que é, e perguntam -m e o
que poderia ser. Cito-lhes Francis Bacon: “ M au centro de ações humanas é
a própria pessoa” .3 Perguntam -m e o que isso quer dizer, e respondo que
se não têm interesses além deles m esm os, o m undo torna-se tão pequeno
quanto o era no dia em que nasceram , e que os horizontes não se expan­
dem m inim am ente.
- Com o vam os nos interessar por algum a coisa? —perguntam.

E aí que o efeito fatal da educação com o m ero entretenim ento se


faz notar. Para o desenvolvim ento do interesse, é necessário p oder de
concentração e a capacidade de tolerar certo grau de tédio enquanto
são aprendidos os elem entos de um a determ inada habilidade visando
um fim m eritório. Poucas pessoas são atraídas naturalm ente pelos ca­
prich os da ortografia inglesa ou pelas regras da aritm ética elem entar;
no entanto, tais regras devem ser dom inadas, caso a vida diária em um
m undo cada vez m ais com p lexo deva ser transacionada com sucesso.
E um sim ples dever dos adultos, do ponto de vista de possuidores de
m aior conhecim ento e experiên cia de m undo, transm itir às crianças o
que precisam saber, de m od o que, m ais tarde, possam verdadeiram ente
escolher. A equação dem agógica de toda autoridade ser um injustificado
autoritarism o político, m esm o para as crianças pequenas, som ente con ­
duz ao caos pessoal e social.
Infelizm ente, vinte anos não é idade para aprender a concentrar-se
nem a tolerar esforços que, em si, não são prazerosos. Por nunca terem
experim entado as alegrias de dom inar algo pelo esforço disciplinado e
com m entes profundam ente influenciadas pelos m ovim entos rápidos
e superficiais de im agens excitantes na televisão, esses jovens adultos

3 F ran cis B a co n , Ensaios. Trad. e p ref. Á lvaro R ibeiro. Lisboa, G uim arães E ditores,
1992, X III, p. 98. (N .T.)
di -.cobrem <|ui um i ti .................... ui Intl. ido em ■111.11<11M■i coisa «". 1.1 além
ilii alcance No i i i o i Ii i i i i i 11ui i i i lo urbano, qu a l qu e r um <|tic não consiga
1 1 i nccnl rar se ó, na veid.uli . ....... alma perdida, pois as c o mu n i d a d e s em
ial m undo são aquilo que cresce cm torno de interesses que as pessoa1,
léui em com um . Além disso, num a era de crescente m udança tecnológica,
r. pessoas sem habilidade ou disposição para o aprendizado ficarão cada
ve/ mais para trás.
A patética noção pedagógica de que a educação deva ser “ relevanle"
I '.11,1 as vidas das crianças ganhou terreno na Inglaterra nos anos 1960
A ideia de que isso confinaria as crianças ao m undo que já conheciam e
que (ambém era um m undo bastante desanimador, com o pode dar (es
lem unho qualquer um com o m enor contato com a classe trabalhadora
In;,'lesa - aparentemente nunca ocorreu àqueles educadores que alegavam
lei excepcional com iseração pelos que estavam em relativa desvantagem
I 111110 resultado, a estrada para o progresso social - talvez, am iúde, a mais
II tlliada - estava-lhes, substancialmente, fechada.
In felizm ente, é m uito d ifícil d erru b ar esses in crem en tos pedagó
yieos (ou an tiped agógico s) m esm o h o je, q uan do o go vern o cenlr.il
percebeu tardiam ente as con sequên cias desastrosas. Por quê? Prim ei
ui, os professores e os p rofessores dos p rofessores nas faculdades de
1’ed agogia estão p rofu n d am en te im b u íd os dessas ideias educacionais
que nos fizeram ch egar a esse ponto. Segundo, um a en orm e burocracia
educacional cresceu na In glaterra (um burocrata p or professor, piilu
laudo com o alm irantes nas m arinhas su l-am erican as), que usa de tod<
o-, su b terfú gio s para evitar a m udança: da falsificação de estatístii .r. .1
m ierpretações errôneas in tencionais da p o lítica do governo. O m in i1.
Iro da educação p rop õe, m as a bu rocracia dispõe. Dessa m aneira, sói
a 1 <ui tecer de a G rã-Bretanha gastar um a parcela percentualm ente maloi
do Pltí 11a educação que qualquer um dos concorrentes e acabar com
..... . população catastroficam ente m al-ed ucada, cuja falta de inteligèn
1 1.1 torna-se evidente n o olhar b o vin o visto em cada rua do país, e que
e notado p or m eus am igos estrangeiros.
Más com o tem sido as políticas educacionais, contudo, subsiste uma
dim ensão cultural im portante e refratária ao problem a. E fácil - ao m enos

l(i iiliilmlr ,Ht11ui iiiii INiin O i i n r i i M i H INciiliiiiim Kiliiniçfln


conceitualm ente - ver o que deve ser feito no plano d,i polliu pública,
p orém o desdém inglês pela educação não é facilm ente superado, m esm o
no princípio.
N o bairro em que trabalho há m uitos grupos de im igrantes. Os m aio­
res são do noroeste da índia, de Bangladesh e da Jam aica. Há tam bém um
grande núm ero de brancos da classe trabalhadora. As crianças de todos
esses grupos frequentam as m esm as escolas ruins, com os m esm os maus
professores, mas os resultados são expressivam ente diferentes. As crianças
dos im igrantes pobres e desem pregados do noroeste da índia nunca são
analfabetos ou sem ianalfabetos; um núm ero considerável prossegue nos
estudos, chegando até o nível m ais alto, apesar da casa superlotada e da
aparente pobreza. Os outros grupos com petem entre si para ver quem o b ­
tém padrão educacional m ais baixo.
O fato lam entável é que um a proporção substancial da população
inglesa sim plesm ente não percebe a necessidade da educação. Parece que
estão presos na ideia vitoriana de que a Inglaterra é, p or direito e pela
providência divina, a oficina do m undo, que os ingleses, em virtude do
local de nascim ento, vêm ao m undo sabendo tudo o que é necessário
que saibam e, se não houver em pregos para o trabalho não qualificado
(e um tanto relutante, deve-se dizer) é culpa da união do governo com
os plutocratas de cartola e casaca que conspiraram para explorar a m ão
de obra japonesa barata. U m a coisa que um inglês jovem desem pregado
definitivam ente não fará é concentrar esforços para adquirir qualquer ha­
bilidade para o mercado.
Tive esse tipo de conversa, em inúm eras ocasiões, com jovens em tor­
no dos vinte anos que estão desem pregados desde que deixaram a escola,
cujo nível educacional geral está esboçado acima:
-V o c ê não pensa em m elhorar sua form ação?
- Não.
- Por que não?
- N ão tem porquê. N ão tem em prego.
- Será que não teria outro m otivo para buscar um a educação melhor?
- Não. (Isso após ficar perplexo com o que eu estava tentando dizer
com aquilo.)

\ ^ M111 MM H # n j « * l M
I l.i (III,is mb,.is 111 it i|i vi iiid', nnt.ii ness,I couvei s.i A prim eli.i é que
|oveui clesei 111 ii I u 111 Mhi.M In ,i o núm ero de em pregos tie inn.i ecd
11111111a com o uma quantidade lixa. Assim com o a renda nacional é um
I>i 'l(> ,i ser repartido em lâtias iguais ou desiguais, da m esm a maneir.i o
núm ero de em pregos num a econom ia não guarda nenhum a relação com
,i 11 mduta das pessoas que nela vivem , m as está fixado de m odo im utávd
Iv.i i e um conceito de com o o m undo funciona que é assiduam ente ven
illilo, não só nas escolas durante os “ Estudos Sociais” , mas nos m eios de
' om unicação de massa.
A segunda coisa que é digna de atenção é a ausência total da idei.i
do eultivo do intelecto com o um bem em si m esm o, que possui um va
Ini independente das perspectivas de em prego. Assim com o as respostas
dus pacientes às m esm as doenças e incapacidades variam de acordo com
,i predisposição e o tem peram ento, da m esm a m aneira a resposta de um
hom em ao desem prego. Alguém com interesse em buscar, ou ao m enos
rum as ferramentas mentais para procurar, algo que lhe interesse não está
■ ui situação tão desesperadora quanto alguém que, obrigado pela tábula
usa do próprio intelecto, tem o olhar vago em quatro paredes por senia
nas, meses ou anos a fio. Provavelmente, terá um a ideia de um em prego
•uiUmomo ou, pelo m enos, buscará trabalho em higares e cam pos novos.
Na o está condenado à estagnação.
Existe um a grande vantagem p sicológica para a subclasse branca
manter desdém pela instrução: perm ite que m antenham a ficção de que
i sociedade que os rodeia é brutal ou até grotescam ente injusta e que
eles são as vítim as dessa injustiça. Se, ao contrário, a educação fosse vista
por eles com o um m eio disponível para todos ascenderem no mundo,
com o de fato p ode acontecer em m uitas sociedades, todo o ponto dr
vista deles terá, naturalm ente, de mudar. Em vez de atribuir seus inlôriú
nios aos outros, terão de olhar para dentro deles m esm os, o que sem pn
i um processo doloroso. Aqui vem os o m otivo de o sucesso escolar sei
extrem am ente desencorajado, e aqueles que não o abandonam serem
perseguidos nas escolas da subclasse: é percebido, de m odo incipiente,
m iii dúvida, com o um a am eaça para todo o Weltanschauung. O sucesso de
um é a exprobração de todos.

Hi hIhIjk Ii Siiinliiin ■INflo (,)iiri(*niuH Ncnlitmm Illinium»


Todo um m odo de vida está em jogo. Esse m odo de vld.i v scmclliante
ao vício das drogas, em que o crim e é a heroína e a pensão do Bem-Estar
Social, a metadona. Esta última, sabemos, é o hábito mais difícil de rom
per, e seus prazeres, apesar de m enos intensos, duram por mais tempo.
A satisfação amarga de ser dependente do sistema de seguridade social é
inerente ã atribuição da condição de vítim a, o que por si só explica, si­
m ultaneam ente, o insucesso da pessoa e a absolve da obrigação de fazer
algo por si m esm a, ex hypothesi im possível, por causa da natureza injusta da
sociedade que a tornou, prim eiram ente, num a vítim a. O valor redentor da
educação destrói todo o cenário de faz de conta: não é de adm irar que tais
pessoas não queiram ser educadas.
De certo m odo (e som ente de um m o d o ), no entanto, a subclasse foi
vitim izada ou, talvez, traída seja um a palavra melhor. Os disparates peda­
gógicos im pingidos às classes m ais baixas foram ideias, não dessas pró­
prias classes, mas daqueles que estavam em posição de evitar seus efeitos
perniciosos, ou seja, os intelectuais da classe m édia. Caso tivesse propen­
são para a paranóia (o que, felizm ente, não tenho), diria que os esforços
dos pedagogos foram parte de um im enso com plô das classes m édias para
conservar o poder para si m esm as e restringir a com petição, no processo
de criar sinecuras para alguns de seus m em bros m enos capazes e dinâm i­
cos - a saber, os pedagogos. Caso essas classes m édias tenham conservado
o poder, foi em um país enfraquecido e em pobrecido.

1 9 9 5
i I 12 o últim o m ês de junho, em Paris, um jovem inglês enlr.......mm

bar frequentado por britânicos, pois com binara de eiu on ii .u m


ali com a nam orada. Durante todo o dia tinham experim nii.uli i
llll ( III ia de briga e o rapaz pedira que ela saísse dali com ele; mas, i <um ■
iM.iva se divertindo, ela objetou. Em seguida, ele a arrastou para a sal.i .i<I
|.u cute, derrubou-a com um soco e a chutou de m aneira tão viciosa que
id briu a cabeça e o estôm ago da m oça com equim oses. U m funcionário
do liar o puxou e o rapaz foi expulso, mas não sem antes recebei um
" ( ildsjjovv Kiss” - um a cabeçada - do cavalheiresco dono do bar.
Apenas dois m eses antes, um tribunal absolvera o jovem iugli ■■ p<n
uma investida contra a nam orada anterior, a m ãe de seu filho (Ic d< >
1 am
i * rasai brigara a respeito do direito de visita à criança, e a mulln i 11< ......
para rebater o argum ento dele, que o rapaz a espancara. Ao s.i bi'i d.i .ilmiu
n,ida absolvição, provavelmente im erecida, sua nova namorada .i qiu ■ I*
■ spancou em Paris —disse: “ para qualquer pai, o que ele tem paw.ido i um
pesadelo, mas o caso não afetará nosso relacionam ento” , (l’os\m lun nii
com o mãe de um a criança de três anos de um relacionamento .mu iim.
ela linha uma percepção especial do coração dos pais). Quando a e\ n.i
morada, a mãe de seu filho, soube da agressão à sua sucessora cm l'ai is.
loi menos sentimental. “ Francam ente” , disse, “ não estou surpresa de que
ou Iro alguém tenha se colocado na posição de receber algo desse lipo"
Qu.iildo o jovem inglês tevt h nipo ilr relletir sobre o incidente,
disse "A rrep en d o -m e totalm ente de tudo o que acon teceu” , com o se
o que acontecera tivesse sido um tufao nas índias O rientais que não
pudesse ter in fluenciad o de m aneira nenhum a.
Kxcetuando o cenário parisiense, todos os aspectos dessa história são fà
miliares ao estudioso da vida da subclasse inglesa: ego facilmente inflamável,
rápida perda de calma, violência e filhos ilegítimos dispersos, autojustificação
pelo uso de um a linguagem impessoal. O jovem inglês, no entanto, não é
membro da classe desprivilegiada, nem a m ulher que ele agrediu. Só o salário
do rapaz estava em 1,25 milhão de dólares por ano, e a m oça era uma conhe­
cida apresentadora televisiva da “ previsão do tem po” transformada em âncora
de um talk show. A pobreza não é a explicação do comportamento deles.
O jovem inglês é um fam oso jogador de futebol. E verdade que joga­
dores de futebol norm alm ente saem das classes sociais próxim as à subclas­
se, e que um deslize para baixo é m uito fácil. N o passado, todavia, aqueles
que conseguiam escapar da origem hum ilde norm alm ente aspiravam a ser
tom ados com o verdadeiros m em bros da classe m édia ou da classe alta, ao
conform ar suas condutas aos padrões da classe média.
O jovem jogador de futebol não sentia tal im pulso, e por que deve­
ria, um a vez que seu com portam ento público não resultou em sanção
legal, ostracism o social ou m esm o forte desaprovação? A verdade é que, na
m oderna Grã-Bretanha, a direção da aspiração cultural foi invertida. Pela
prim eira vez na história as classes m édia e alta é que aspiram a ser tomadas
pela classe social inferior, um a aspiração que (na opinião deles) necessita
do mau com portam ento. N ão é de admirar, portanto, que o jovem jogador
de futebol não tenha sentido que sua nova fortuna lhe im punha obrigação
algum a de m udar os m odos.
Os sinais - grandes e pequenos - do reverso no fluxo das aspirações
estão em toda parte. Recentemente, um m em bro da fam ília real, um a neta
da rainha, teve um botão de metal inserido na língua e orgulhosam en­
te apresentou-o à im prensa. Tais piercings corporais com eçaram com o uma
moda exclusiva da subclasse, em bora tenham se espalhado por toda a in
dústria da cultura popular, da qual a m onarquia rapidam ente está se trans
lõrm ando, é claro, em um dos ramos

\ \ I' III I I I I N t l l | l ' l l l


Moças di' classe média agora consideram chique ostentar um a tatua­
gem outra m oda da subclasse, com o rapidam ente atesta um a visita a
qualquer prisão inglesa. A ideia de que um a m oça deva deixar-se tatuar
leria horrorizado a classe m édia há m uito pouco tempo, com o, por exem ­
plo, há dez anos. As m oças da classe m édia agora orgulhosam ente usam
as latuagens com o em blem as de rebeldia antinom iana, de independência
Inlelectual e de identificação, talvez, com os supostamente oprim idos - se
lião os do m undo, ao m enos os dos nossos bairros pobres.
A propaganda agora confere glamour ao estilo de vida da subclasse e a
sua postura diante do m undo. Stella Tennant, um a das m ais famosas m ode­
los britânicas e, ela m esm a, um a aristocrata de nascim ento, adotou quase
( (»mo m arca registrada a postura e expressão facial de estúpida hostilidade
y;eral a tudo e a todos, que é característica de m uitos de m eus pacien­
tes da subclasse. U m anúncio recente para um a m arca de camisas esporte
mostrava um rapaz que falava de m aneira ríspida “ Tá olhando o quê?” -
exatamente as mesm as palavras que surgem em tantas brigas de faca entre
jovens rapazes da subclasse de extraordinário ego sensível. U m novo estilo
loi inventado: o grosseiro-chique.
A dicção, na Inglaterra, sempre foi um importante identificador social,
em certa medida, até m esm o determinante da posição da pessoa na hierar­
quia social. Podemos discutir se esse é um fenôm eno saudável, mas é um
lato inquestionável. Mesmo hoje, os psicólogos sociais descobrem que os
britânicos, quase universalmente, associam aquilo que é conhecido com o
"receivedpronunciation” 1com grande inteligência, boa educação e um m odo de
vida culto. Certo ou errado, veem isso com o um indicador de autoconfiança,
riqueza, honestidade e até asseio. Os sotaques regionais, em geral, costumam
identificar as qualidades opostas, m esm o para as pessoas que os possuem.
Dessa m aneira, é um a evolução digna de nota que, pela prim eira vez
em nossa história m oderna, pessoas que pelo m odo com o foram criadas
e educadas usavam a “ received pronunciation” rotineiram ente, agora, buscam
suprim i-la. Em outras palavras, estão aflitas para não aparentar ser inteli­
gentes, bem-educadas e cultas para os com patriotas, com o se tais atributos

1 Sotaque p adrão <la língua In^lcs.i c o m o falado n o sul da In glaterra. (N .T .)

Hi wiliilin!«' H i MI i l iriii ! < !ili|U< ^ * 1 I h h *H i h I O i' I


fossem , de algum a m aneira, vergonhosos ou desvantajosos. ( )ndr outrora
o aspirante deva ter im itado a dicção dos que eram os seus superiores so­
ciais, as classes altas agora im itam a dicção dos inferiores. Pais que enviam
os filhos para escolas particulares caras, por exem plo, hoje relatam, com
regularidade,' que os filhos saem com a dicção e um vocabulário que p ou ­
co difere da gíria da escola estadual local.
A BBC, que até poucos anos insistia, com m uito poucas exceções, na
“ received pronunciation” de seus locutores, agora está correndo para assegurar
que a fala enviada pelas ondas do rádio seja dem ograficam ente represen­
tativa. A ideologia política por trás da decisão dessa m udança é clara e
simples, um remanescente do m arxism o: as classes altas e m édias são más;
o que era tradicionalm ente considerado alta cultura não é nada mais senão
algo usado para esconder o jugo das classes m édia e alta sobre a classe
trabalhadora; a classe trabalhadora é a única cuja dicção, cultura, m odos
e gostos são verdadeiros e autênticos, pois são valorados por si m esm os
e não com o um m eio de m anter a hierarquia social. A utopia comunista
pode estar m orta na Rússia, mas é m odelo na BBC — exclusivam ente entre
as pessoas de classe alta e de classe m édia, é claro.
Sim bólico dessa m udança radical de influência cultural, fruto do ódio
a si m esm a da classe m édia progressista, é o contraste entre dois recen­
tes prim eiros-m inistros, a Sra. Margaret Thatcher e o Sr. Tony Blair. A Sra.
Thatcher, de origem hum ilde, aprendeu a falar com o um a pessoa da no­
breza; o Sr. Blair, m ais próxim o da nobreza por nascim ento, agora brinca
com a oclusiva glotal e outros m aneirism os vocais das classes m ais baixas,
tais com o o a curto em palavras com o “ class” e “ pass” . Os únicos clubes
dos quais o Sr. Blair admite participar ao entrar para o Who’s Who [Quem
é quem ] 2 são o Trim don Colliery and D eaf H ill W orking M en’s Club e o
Fishburn W orking M en ’s Club. De fato, a organização social m ais exclusiva
de que qualquer um de seus auxiliares de gabinete admite fazer parte no
Who’s Who é o Covent Garden Com m unity Centre. Por outro lado, o ga­
binete parece restringir a socialização ao Jew el M iners’ Welfare Club e o

2 P u b licação b ritân ica anual q u e, d esde 1 8 4 9 , traz a biografia de b ritân ico s fa­
m o so s. (N. T.)

I(i i \ V í i Im i m i M m |i *i ii
N o w c r a ig l ia l l M llie i •/ W e l l.u e C l u h : u iii l e n ô m e n o c ui l o s o |>.ir.i u m gi ii|io

■l< pessoas notabili/.icl.is principalm ente pela riquc/a.


Após sua eleição, Sr. Blair perdeu pouco tem po para provar que seus
gosios eram com uns, ao contrário da im pressão criada pela recente vend.i
<l< sua casa por um m ilhão de dólares. Convidou um dos irm ãos Gallaglier,
dc i grupo pop Oasis, para sua prim eira festa em Dow ning Street, aparente
mento com o um a questão de urgência nacional.
Os irm ãos Gallagher são notórios pela rudeza. Suas travessuras podem
ei mero golpe publicitário, é claro, e é possível que, em privado, sejam uns
encantos de pessoas; mas foi com o figura pública que um deles foi con
vldado para Dow ning Street. Eu m esm o os vi atuando quando um jornal
podia-m e para ir a um dos shows, um evento que, noutra circunstânc ia,
leria feito esforço por evitar. Nove m il jovens fas (a 30 dólares cada ingres
so) lotavam o salão; eram, em grande m aioria, pessoas dos mais baixos
segmentos do espectro social e educacional. Os agentes publicitários do
grupo deram -m e tampões de ouvido, certamente um m odo estranho de
.itrair a simpatia para um show de música. Não que houvesse perigo de nã< >
conseguir ouvir, pois apesar dos tampões, as ondas sonoras eram tão fortes
que senti a vibração na garganta, e podia detectá-la até na minha mão.
Os Gallaghers estavam vestidos exatamente com o as pessoas da sul»
( lasse; os m aneirism os precisam ente os m esm os de m eus pacientes d.i
subclasse. Entre as m úsicas, um deles falava um as poucas palavras, donin
,is quais “ fuck” 3 e seus vários derivados eram frequentes, ditas n e m l.in in
para com unicar um significado, mas para transmitir um clima gei.il di
desafio arrogante. Mais ou m enos na m etade do show, um dos I■in.i< •
perguntou à audiência:
- A lg u m filho da puta aí fora tem algum a m erda de droga?'1

3 E m inglês, “ fuck” é u m a palavra m u ltiuso. C o m o in terjeição p o d e indic .n' de li.i


a alegria; após u m p ro n o m e in terro g ativ o serve p ara enfatizar o que está sem ln
d ito ; antes d e u m adjetivo, in d ica g ran d e quan tidad e, m u ito ; e dá o rig e m .i rs

p ressões c o m o “ cai fo ra ” (fuckoff), “p .q .p ” (fucking hell); “ filho da p u ta ” (fudici) r


inolherfucker (grau m.iis nlen sivo de fiicker). (N .T .)

1No origlii.il "I >'"ii liidur, mil ilinrfloi any fucking drugs? (N.T.)

Hi 'hIii IihIi ’'Hl III II III I I llli|tn i I i1' ‘ IM in:


É claro que a postura de insolência feroz e intocável não li >
1.1 toa com
essa audiência; nem o será o endosso eficaz dado pelo convite do p rim ei­
ro-m inistro. Por que coibir e manter a circunspecção se tal vulgaridade
conscienciosa pode ganhar não apenas dinheiro e fama, mas total aceitação
social? Para centenas de milhares de rapazes e m oças que foram a shows
do Oasis, o que é bom para os Gallaghers e para o prim eiro-m inistro, será
bom para eles.
Por ter convidado um dos Gallaghers de m aneira tão faustosa, o pri-
m eiro-m inistro também endossou um a crença a respeito da m úsica que
hoje está generalizada na Inglaterra: não existe m úsica m elhor ou pior, so­
mente a m úsica popular e impopular. A diferença é feita não para separar a
qualidade da m úsica, mas para classificar o tamanho e a com posição social
da audiência, de m odo que o fácil e o popular, que antes eram conside­
rados piores, agora são considerados não somente iguais, mas m elhores.
Até pessoas que poderíam os ter esperado que defendessem a alta cultu­
ra sucum biram desgraçadamente ao populism o - na verdade, abanaram
suas chamas com fervor multicultural. Recentemente ouvi um professor
de estudos clássicos de O xford declarar que em termos de qualidade não
existia escolha algum a entre Mozart e as produções dos m ais recentes gru ­
pos de rap (em bora m e atreva a adivinhar quais sejam as preferências da
pessoa, por trás de toda aquela pose e m á-fé). Quando qualquer um m en­
ciona grandes com positores, agora, é obrigatório juntar os Beatles com
Schubert para consagrar a própria abertura mental, a bona fides democrática.
O M idland Bank acabou de retirar o patrocínio à Royal Opera House, Co-
vent Garden - alegando que a ópera é interesse de um a m inoria - e agora
dará o dinheiro para um festival de m úsica pop. O mecenato das artes,
por conseguinte, transform ou-se em mera pesquisa de opinião pública e
exploração dos gostos mais baixos e das fraquezas das pessoas.
M esm o no com portam ento, a nova ortodoxia para todas as classes é
a seguinte: já que nada é m elhor e nada é pior, o p ior é m elhor porque é
m ais popular. Todos sabem que as torcidas inglesas de futebol são as piores
em com portam ento da Europa, se não forem as piores do m undo; mas
o que poucos sabem é que essas m ultidões não são compostas, somente
ou principalm ente, de pessoas da m ais baixa extração social c, de fato,
verdadeiros chiada«>n d.i classe média perpeliam miillos dos ploies atos
< > que ailles era um entretenimento proletário agora é nilidam enie hui
iMK ",, e longe de ter m elhorado os com portam entos nos jogos, a mudança
na com posição social da audiência causou a deterioração.
Presenciei isso em Rom a, aonde fui para fazer uma reportagem p.u .i
um jornal sobre o vandalismo das torcidas de futebol inglesas num jogo
i ui re Itália e Inglaterra. Durante a invasão inglesa, o clima em Roma era o
•le uma cidade sitiada (embora os bárbaros estivessem dentro dos portões).
Milhares de policiais estavam de prontidão em toda a cidade para evitai
motins de bêbados e saques, nos quais a multidão inglesa, caso deixada à
vi miade, agora, quase sempre degenera.
Durante o jogo propriam ente dito, no estádio O lím pico, a m ultidão
inglesa com portou-se com os típicos m odos desagradáveis. Por cerca de
irés horas - antes, durante e depois da partida - lançou insultos em unis
sono à torcida italiana. Cantavam: “ Que porra vocês pensam que são?" c
"Vocês são uns merdas e sabem disso” ,5 quase sem parar. Até onde sei, eu
era a única pessoa na seção inglesa do estádio que não aderiu à cantoria.
1'oi exatamente para isso que m ilhares se dirigiram a Roma. Pior ainda,
essa turba de ingleses livres acompanhavam o canto com o que parecia
inconscientemente um a saudação fascista - levando o adágio “ Em Roma,
aja com o os rom anos” , um passo além da urbanidade.
Os dez m il britân icos que foram a R om a - um a cidade noloi i.i
mente cara - têm em p rego s que pagam m uito bem , que exigem iusii u
ção e treinam ento. O hom em que estava p erto de m im , por exemplo,
era um p rogram ad o r de com putad ores, responsável pela tecnologia di
inform ação de um a Câm ara M unicipal. Todos aqueles a que peum im i
eram fu n cion ário s qualificad os; um leilo eiro da Sotheby’s, dissci.nu
me, estava na m ultidão.
Perguntei aos poucos que estavam ao m eu redor por que se compi n
tavam daquela maneira. Não achavam im próprio viajar 1.600 km somente
para gritar obscenidades para estranhos?Todos afirmaram que era diverti
do e, para eles, um a libertação necessária. Libertação exatamente de <|tie ’

' N o original "W \w llir lw l<ilo ymi ilimk ymi are?” e “ You’reshit and y ou know you um' . ( N I )

Itl ll ll lllllll S l l l l l l ......... I I l l l ' l .................. ..... ........... III


Da frustração, responderam , caso respondessem algum a lois.i, A neiilmm
deles ocorreu que os dramas m esquinhos de suas vidas particulares não
justificam um a atividade antissocial. Pensavam que a frustração era com o
o pus em um abscesso, m elhor fora do que dentro, e recordei-m e de um
assassino que certa vez m e disse que teve de matar a vítim a, caso contrário
não sabia o que poderia ter feito.
N o aeroporto de R om a testem unhei um m om ento extraordinário
do desejo pela aparência, se não pela realidade, da m obilidade social
descendente. U m a inglesa de uns trinta anos que estava na m inha frente,
sem dúvida da classe m édia alta, falava educadam ente em um inglês de
“ received pronunciation” , com a balconista no check-in. U m p ouco depois a
vi novam ente no ônibus que nos conduzia para a aeronave. A gora que
estava entre os am igos torcedores de futebol com quem fo i para Rom a,
adotou o sotaque da classe baixa e entrem eava na fala, com liberalidade,
a palavra de quatro letras.
De m odo algum os torcedores de futebol são os únicos britânicos
prósperos que em pregam o vandalism o da subclasse no estrangeiro. R e­
centemente, o vice-cônsul britânico na ilha de Ibiza dem itiu-se por não
querer mais resgatar cidadãos de seu país das consequências jurídicas dos
próprios com portam entos incontinentes.
Por que os britânicos se tornaram pessoas tão vulgares e despudoradas
em questão de três ou quatro décadas? Por que agora opera um a espécie
de lei de Gresham com portam ental, de m odo que a m á conduta expulsa
a boa conduta?
Com o m uitos dos m ales m odernos, a rudeza do espírito e do co m ­
portam ento cresce das ideias cultivadas na academ ia e entre os in te­
lectuais — ideias que transbordaram e que agora têm efeito prático no
restante da sociedade. O relativism o que regeu a academ ia p or m uitos
anos, hoje, vem reger a m entalidade da população. A classe m édia b ri­
tânica com prou o jargão m ulticultural de que, n o que diz respeito à
cultura, só há diferença, não m elhor ou pior. C om o questão prática,
sign ifica que não há nada que escolher entre boas e más m aneiras, re­
finam ento e rudeza, discern im en to e falta de discernim ento, sutileza e
grosseria, o elegante e o mal educado.

H m S \ l i l i i | u i M m ii* | li
Iís<|iilv.ii M ili ui 11mi li.r. s ol eiras <las pori as, d i g a m o s , n ã o ó m e l h o i
<11o uri nar: é apenas d l f e i c n i e , e a prcferf-ncia p o r sol eiras d e p or i as s em
0 c heiro de urina não é nada mais que um preconceito burguês sem jus
iillcaliva intelectual ou m oral. Já que é m ais fácil e imediatamente1 mais
yt.ililicante com portar-se sem qualquer restrição do que com limitações,
1 nao 1iá mais qualquer argum ento amplamente aceito ou m esm o predis
|ni',ições favoráveis à restrição que orientem o decoro público, não exisie
mais um ponto de vista a partir do qual possam os criticar a vulgaridade
A sociedade e a cultura britânicas estiveram ainda m ais vulneráveis
aos alaques dos intelectuais, pois historicam ente eram abertamente eli
II'.ias e, portanto, supostamente não democráticas. Que suas produções
( tiliurais foram m agníficas, que Isaac N ew ton e Charles Darwin, W illiam
Shakespeare e Charles Dickens, David H um e e Adam Smith não falaram de
ou para um a elite nacional, mas para toda a hum anidade, isso tem sido
convenientemente esquecido. N em im porta, para propósitos ideológicos,
que, em bora elitista, a sociedade e a cultura britânicas nunca foram lê
i líadas, mas que qualquer pessoa de talento era capaz de dar sua contri
In lição; que a Grã-Bretanha absorveu com facilidade forasteiros nos seus
( írculos mais restritos, de Sir Anthony van Dyck a Joseph Conrad, de Sir
W illiam Herschel a Sir Karl Popper, de Georg Friedrich Händel a Sir Ernsl
(iom brich. Foi vendida um a narrativa sim plificada da história britânica,
.egundo a qual essa história nada foi senão opressão, exploração e esno
bism o (todos existiram , é claro). Um a rejeição às tradições da alta cultura
britânica foi, em si, um ato político m eritório, um sinal de solidaried.idi
com aqueles que a história oprim iu e explorou.
LJma prim eira manifestação dessa rejeição foi a metam orfose do vr.
conde de Stansgate em T on y Benn, o político de esquerda, por m eio d>>
estágio interm ediário ou de pupa com o Anthony W edgwood-Ben n. lilc l<ii
(ihrigado a renunciar à nobreza hereditária para continuar com o m cm bio
da Câmara dos Comuns, mas a contração plebeia de seu nom e de lá mi
lia lói invenção própria. Esquerda em tudo, m enos nas próprias finanças,
m andou os filhos, com m uita publicidade, para a escola pública local, sem
m encionar o grande núm ero de aulas particulares que recebiam. Uma so
Iução perfeita para o dilem a m oral que enfrenta todo pai de classe média

Hiwiliiliulr H n m b r m l 1* ( i l l i l l l J i Wi*H «H w iH iti 100


nu ,iIta com tendências f.sq\u*i<Iim .c. .upcrioridade moral poi in n -|rltado
abnegadamente a educação privada, enquanto, ao m esm o tempo, evita os
desastrosos baixos padrões educacionais do sistema público que deixou ao
menos um quarto da população britânica praticamente analfabeta.
A com binação de relativism o e antipatia com a cultura tradicional
exerceu um grande papel na criação da subclasse, transformando, dessa
m aneira, a Grã-Bretanha de sociedade de classes em sociedade de castas.
As pessoas m ais pobres foram privadas tanto de um senso de hierarquia
cultural com o de um im perativo m oral para conform ar suas condutas a
qualquer padrão. Doravante, o que tinham e faziam valia tanto quanto
qualquer outra coisa, porque todas as culturas e todos os artefatos culturais
eram iguais. Aspirações eram despropositadas; e assim, foram im obiliza­
dos na pobreza - material, mental e espiritual - de m aneira tão absoluta
quanto os condenados ao Inferno de Dante.
Por ter, em parte, criado essa subclasse, a intelligentzia britânica, sentin­
do-se culpada pelos próprios antecedentes supostamente não dem ocráti­
cos, sente-se obrigada a agradá-la pela imitação e convenceu o restante da
classe m édia a fazer o mesmo. Dessa maneira, assim com o na Rússia czaris-
ta em que cada cidade e vila tinha seu santo louco de Deus cujo egoísm o e
conduta im própria eram tomados com o sinais de com prom isso profundo
com os princípios cristãos, nós, na Grã-Bretanha, temos agora centenas
de milhares, talvez m ilhões, de pessoas de classe m édia cuja disposição de
gritar “ cai fora” 6 por horas para os italianos é a prova viva da pureza de
seus sentimentos democráticos.
Para aquele que não quer ver o triunfo do m enor denom inador cul­
tural com um , mas que também perm anece preso ao ideal da democracia
liberal, o espetáculo da vulgaridade britânica é m uito perturbador. Obtém-
-se mais votos lisonjeando a vulgaridade do que a combatendo.
Isso quer dizer que a vulgaridade será sem pre vitoriosa?

1 9 9 8

6 N o o rig in al: "l;mk off". (N .T .)


0 Coração de um Mundo
sem Coração

a frente da m inha casa, no centro da praça, há um a igreja gótica


vitoriana, um a construção de certa grandeza, que se eleva aos
céus com imensa ousadia. Seu interior está intocado; os vitrais,
magníficos. Está quase sem pre vazia.
O arquiteto, quando a construiu, só poderia ter suposto que estava
expressando, em pedra, um a fé que duraria para sempre. N ão imaginai ia
que, 125 anos depois, a igreja oficial que encom endara aquele esplêndido
edifício estaria à beira da extinção, seus bispos futilmente se esforçando
para alcançar a m odernidade ao assinar em baixo das inverdades socioló
gicas da m oda de décadas passadas ou ao sugerir que Jesus era homosse
xual e que não ressuscitou corpoream ente de m odo algum. Menos aind.i
poderia im aginar que os m em bros do sínodo da Igreja da Inglaterra, .11
jHim dia, interessar-se-iam mais pelas dívidas do Terceiro M undo 011 p< I"
aquecim ento global que pelo pecado. Do típico m odo m orno e tímid< 1, a
Igreja adotou (e diluiu) a Teologia da Libertação que precipitou a erosão
da hegem onia católica na Am érica Latina.
A Igreja da Inglaterra, no entanto, é um a igreja tolerante, e o vi
gário dessa paróquia é um sobrevivente dos dias em que Deus ainda
estava do lado das classes m ais abastadas. Ex-militar, usa m onóculo e
tem 11111 trem or 110 outro olho. E um dos m ais divertidos convidados
de 11111 jantar, muitísMino co rtês para trazer à baila assuntos de religião
Não guarda qualquer semelhança com seu bispo bolchevique; .t111<l.i acre
dita em boas obras inspiradas por um coração bondoso, agora vistas com o
um a concepção de caridade retrógrada, até reacionária. Certa vez conse­
guiu um em prego na igreja para um de m eus pacientes, um ex-detento
alcoólatra que, finalm ente, queria emendar-se. Disse, com um a risada afá­
vel que se a Igreja não pudesse dar oportunidade aos pecadores arrepen­
didos, quem lhes daria?
Entretanto, a religião tolerante e com edida do vigário não é do tipo que
desencadeia avivamentos, e ele sabe que é um dos últim os de sua espécie.
A influência de um a Igreja na sociedade é com o a florada da uva, um a vez
ocorrida, vai-se para sempre.
A crença no sobrenatural, no entanto, não acabou necessariam ente
na m esm a proporção que a frequência à Igreja da Inglaterra. Até bem
pouco tem po supunha, um tanto casualm ente, que os ingleses estives­
sem entre os povos m enos religiosos, e que tivessem , de algum a m an ei­
ra, se tornado indiferentes ao superlunar m undo de anjos, dem ônios,
m aus espíritos e daí por diante. Abandonei m inha suposição dem asiado
côm oda em um program a de debates na televisão, em que fui convidado
a participar do painel sobre exorcism o, representando a ciência —ou, ao
m enos, a racionalidade.
Os outros participantes incluíam um bispo autoproclam ado que cria­
ra uma “ igreja católica” em oposição àquela governada pelo im postor de
Rom a e um m em bro ativo da Associação Humanista Britânica, um tipo
que passa as chuvosas tardes de dom ingo no Recanto do Orador, no Hyde
Park, pregando ferozmente serm ões contra Deus para um a congregação
de um a pessoa.
Ao m eu lado, no estúdio, sentou um hom em que cum prira várias
sentenças na prisão por crim es violentos, obviam ente um psicopata que,
no entanto, em endara-se desde seu exorcism o, no qual vom itara um
pequeno dem ônio verde num balde de plástico. Desde então não fora
sentenciado e fui instado - com o o único representante da razão no es­
túdio - a comentar.
Obviamente, fui incapaz de hum ilhar o psicopata exorcizado diante
de dez m ilhões de telespectadores. Usei o argumento padrão e o que me

' ' i i Im h i h M i i i |)'l i i


ui I t i c c i k leu I<)I .1 I c.k/.x I (l.i a u d i ê n c i a , 11,iI i.i11i,n l< ii I ■ i|t* ui 11.1 1.1hrk ii l( it al
Icv.kIon para lá n a q u e l a n o i t e . A t e o r i a d o p e q u i n o d e m ô n i o v e rd e para

i x p l l i a r o d e s v i o d e c o n d u t a e r a t id a c o m o p e r f e i t a m e n t e p la u s ív e l c n ã o

....... inerentemente absurda. Fiquei surpreso.


Desde então, prestei m ais atenção aos sintom as de um renascim cn
li i i< ligio so na cidade. Grandes placas (e com petitivas) exortam o Iran
'.cnnle a ler o A lcorão, o Deus do últim o Testam ento ou a ler a Bíblia
allies da vinda de Cristo. Nas Páginas Am arelas, surpreendentem ente,
existem listados tantos locais de adoração quanto bares - dentre eles,
i m esquita do presidente Saddam H ussein, que recentem ente recebeu
uma doação de 75 m il dólares do conselho m un icipal para am pliar o
i st acionam ento, que agora será, suponho, o m aio r de todos os esla
i lonam entos. A Eterna O rdem Sagrada dos Q uerubins e Serafins, poi
outro lado, não consta na lista p orq ue não tem telefone — em bora o
ap óstolo-chefe tenha celular. Acontece que a capela da Eterna Ordem
Sagrada não fica a m ais de 180 m etros da ig re ja defronte a m inha casa,
e em bora falte certa gran diosidade à construção, pois ainda dem onstra
algum as características arquitetônicas da fria escola g ra d grin d ian a1que
lora, não há dúvidas de que dela em ana um sentim ento de cordialidade
durante as cerim ônias.
Encontrei pela prim eira vez a Eterna O rdem Sagrada no Leste da N i
geria, perto da cidade de Port Harcourt, onde a Ordem foi fundada. Tod<
os dom ingos, um grande núm ero de fiéis, trajando vestes seráficas, com
pridas e brancas, marchava por um cam inho de terra batida em meio .i
vegetação exuberante até a grande igreja de tijolos de concreto, onde i ,ui
lavam e oravam com entusiasmo, esquecidos por um breve mom ento d.e,
inseguranças da vida em um país em que a polícia e os soldados alugavam
as armas à noite para bandidos, e onde ao m enos um dos quatro cavale.....
do Apocalipse nunca esteve m uito longe.

1 R eferên cia à p e rso n a g em Mr. G rad grind d o ro m a n ce de Charles D ickens Kuril

Times, caracterizad o c o m o u m p rofessor pedan te, rig o ro so , q ue gostava so m en te


de “ fatos e cálcu lo s” . N a verd ade, era u m a crítica ab erta aos filósofos m ilitarist.f.
ingleses, Jerem y Bentham r Jam es Mill. (N .T .)

Ki'mIiiImiI''Miiiiiliuii m h iih h h iIi imii MiimiIm n rn i ( hm; 41


ii
Assim, a 180 metros da igreja onde a religião da classe alia inglesa
gentilmente dá os últim os suspiros, um a assembleia de im igrantes nigeria­
nos (todos do estado de Rivers, no sudeste da N igéria) veste suas túnicas
(agora de cetim ), canta e grita aleluia. Dentro da capela, sentimos o ar
pesado de incenso, dilacerado por preces urgentes. A polícia inglesa não
aluga suas armas para bandidos, pelo m enos ainda não o faz, mas a vida
perm anece cheia de inseguranças para esses imigrantes. N ão são acolhi­
dos, de m odo algum , pela população local de braços abertos; acham o
clima frio; o custo de vida inesperadamente alto e os perigos m orais para
seus filhos m ultiform es e pervasivos.
- A h , Senhô - diz suspirando um apóstolo júnior (o apóstolo sênior viajou
para Jerusalém) - muitos tão sem emprego, muitos tão sem mãe nem pai, m ui­
tos tão sem casa. Vos pedimo, Senhô, ache trabalho prá eles, ache casa pró eles, leve
consolo pros qui tão sem pai nem mãe.

A congregação está de joelhos, com pessoas voltadas para todas as


direções, e profere em uníssono um am ém sincero, com algumas batidas
de cabeça no chão, para dar mais ênfase. Depois, uma das mulheres da
congregação — com posta por dois terços de mulheres —vai à frente e ora
em uma linguagem nitidamente bíblica, inspirada na versão da Bíblia do
rei Jam es, para os doentes do m undo, em especial para a irm ã Okwepho
que está no hospital com dores abdominais. Pede ao Senhor que guie os
m édicos e os cientistas que estão tentando acabar com as doenças do m un­
do, e daí derivou, por progressão natural, para a Segunda Vinda, quando
não haverá m ais sofrim ento ou dores abdominais, quando não haverá mais
doença ou fom e, injustiça ou guerra, desem prego ou pobreza, mas so­
mente bondade, irm andade e contentamento. Agora a congregação está de
pé, com as mãos levantadas e com eça a balançar ritmicamente, de olhos
fechados, já banhados pela bem-aventurança do m undo sem os hostis céus
cinzentos, sem um departamento de im igração suspeitoso, ou tentações
para os adolescentes com eçarem a andar em más companhias.
A capacidade de dar sentido às vexações diárias da existência e de su
perá-las, ao m enos na imaginação, é um a das características que unem uma
miríade de florescentes igrejas, invisíveis, salvo quando buscadas entre os

S N l i l i i ( mi H m i )i ' I m
Iitibres. A uns noventa melros da poniteiul/ula oudi ti .iballio exisle iiiu.i
' >iii i .1 igreja que não pode ser encontrada 110 catálogo das Páginas Amarelas,
um.! grande construção octogonal (um panóptico benthamita eclesiásli
■o para com binar com a prisão ao lado) com capacidade para oitocentas
|lessi >as sentadas, construída por subscrição de seus m em bros pobres.
S.10 jamaicanos ou pessoas de ascendência jamaicana e vivem no cen
iro do turbilhão, tanto física quanto socialmente, de um a favela urbana.
1 > que para m im são m eros acontecimentos dignos de observação e ela
b( tração de teorias, para eles são os problem as diários da vida; e dois dias
.m i e s , assisti a um culto na igreja: um jovem traficante de crack fora assas
ui,ido a tiros, disparados de um carro em m ovim ento, a uns vinte metros
do portão da prisão e, uns poucos m inutos depois, outro traficante foi
11K irto a uns quatrocentos metros. N o total, uns cinco jovens foram m ortos
1 1 iros no mês passado; um registro baixo para os padrões de Washington,
talvez, mas suficiente para instilar m edo na população local.
Conheci os suspeitos de assassinato na prisão no dia anterior à ceri­
mônia na igreja, três jovens negros de uns vinte anos, para os quais matar
não era m ais m oralm ente problem ático que dar um telefonema: homens
que, ao conversar, notei estarem tão convencidos da im ensa injustiça do
mundo que também tinham a certeza de que qualquer coisa que fizessem
não acrescentaria nada ao montante.
A congregação - de, talvez, um as quatrocentas pessoas fiéis e, mais
uma vez, com posta por uns dois terços de m ulheres - era toda negra. Os
( ongregantes estavam elegantem ente vestidos, com chapéus requintadi >\
c vestidos deslum brantes; as m ais idosas usavam véu e luvas. Poderíam os
Iicar tentados a rir dessa pitoresca indum entária que im ita a respeita
bi Iidade de eras passadas, mas há m uito tem po aprendi, quando poi
um breve período exerci a m edicina em uns m unicípios na África do
Sul, que a ânsia das pessoas pobres por respeitabilidade, por parecerem
limpas e bem -vestidas em público, não é de m odo algum risível, mas ao
contrário, é algo nobre e inspirador. É prerrogativa dos prósperos que
não se dão conta da própria prosperidade desdenhar das virtudes bur
gucsas, e hoje recordo-m e com desgosto, nesse sentido, de m eus gestos
e da m inha presunção adolescentes.

KrilIliliMlr SnmllMM 11 *1* MIM MiiIhIh <irm ( inHH.rtn


Os tiroteios estavam na mente da congregação, pois t.uiio ,r; vílimas
com o os perpetradores poderiam ser seus filhos, irm ãos ou consortes
(dificilm ente ouso falar de m aridos, por m edo de que pensem que sou
im plicitam ente intolerante) das mulheres que agora soluçavam orações
im provisadas, de cabeças baixas nos bancos. A pregadora, um a m ulher jo ­
vem , convocou a congregação a dar testemunho do Senhor e um a senhora
idosa, m anca, com quem cruzara por diversas vezes na rua, dirigiu-se para
a frente da audiência. Agradeceu ao Senhor, em voz vacilante, por todas as
bênçãos que Ele lhe cumulara, Sua serva, dentre as quais estava o próprio
dom da vida.
-A gra d eço -te, Senhor! Agradeço-te, Senhor! Agradeço-te, Senhor!

Foi extraordinário ouvir essa senhora, que em outras circunstâncias


parecia retraída e pouco expansiva, levar um a grande congregação ao fre­
nesi de em oção pela repetição de um a frase sim ples, com entonação cada
vez maior. Logo após, com maestria instintiva da psicologia das massas
(que partilhava com m uitos outros que depois foram à frente da assem­
bleia), esperou o tumulto de gratidão incendida acalmar, escolhendo o
m om ento preciso para retom ar o testemunho.
- Agradeço-te, Senhor, pelo dom da cura.
-A m é m ! - m urm urou a congregação. - Louvado seja o Senhor!
- Semana passada caí da escada e cortei a perna. Fui para o hospital
[era o hospital em que trabalho, e diversas enferm eiras estavam na assem­
bleia] , veio o doutor e viu que eu estava sangrando. Ele disse que teria de
dar uns pontos; deu os pontos e ainda estava sangrando. (Isso realmente
parece o m eu hospital, pensei.) - Daí, o doutor disse: “ vou ter de fazer um
curativo” , mas ainda saía sangue pelo curativo. Então, orei para o Senhor
Jesus fazer parar de sangrar. E sabem o que aconteceu? O sangue estancou.

A congregação estava profundam ente com ovida.


- Doutor Jesus! Doutor Jesus! Doutor Jesus! — exclam ou a senhora
idosa.
Um rapaz m uito anim ado que estava à m inha direita - achei-o um
pouco exibicionista —com eçou a falar em línguas.

\ \ V !<• <lii H w |c'Iii


Slul.il.i y . u , i l ' il i v i 1
.1 il.il.il.i slngapatola h a ilia g a i tlga! <1 1 • ( 111.1 I a.
i m i menos).

A senhora idosa deixou-o falar até ficar sem fôlego, o então, quando
rir term inou, ela voltou ao testemunho.
Todos som os pecadores, Senhor! Por isso im ploram os o teu perd.ii >.
Nem sempre seguim os tuas veredas, Senhor; som os orgulhosos, teimosos,
querem os fazer as coisas da nossa maneira. Só pensamos em nós mesm< >s
I por isso, Senhor, que há tanto pecado, tantos roubos, tanta violência em
nossas ruas.

Lembrei dos rostos dos jovens na prisão que agora eram acusados dr
assassinato; dos olhares duros, brilhantes e inexpressivos - jovens que ii.k >
reconheciam lei algum a senão o próprio desejo momentâneo. A scnlioi.i
Idosa descreveu (e explicou) o egoísm o radical deles em term os religi< >s<>s
Rum ores de assentimento eram ouvidos em toda parte. N ão era culp.i
da polícia, do racism o, do sistema ou do capitalismo; era a incapacidade
dos pecadores de reconhecer qualquer autoridade m oral acim a do capri
i ho pessoal. Ao afirm ar isso, a congregação reconhecia a própria liberdade
c dignidade: seus m em bros podiam ser pobres e desprezados, mas aind.i
eram hum anos o suficiente para decidir, por si m esm os, entre o certo e i >
errado.Tam bém davam esperança aos outros, pois se um a pessoa escolhes
se lazer o mal, m ais tarde poderia, por um ato de vontade, fazer o Item
Ninguém tinha de esperar até que chegasse a justiça perfeita deste mundo,
ou que todas as circunstâncias fossem perfeitas, antes que ele m esm o pu
desse fazer o bem.
A um a centena de metros há ainda outra igreja pentecoslal. N.i p.m
de lateral dessa igreja está pintada, em letras de quase um metro, ,i I m ■
<) AMOR DE DEUS NÃO É SORTE. Dentro, com o se para enfatizar que I )rus
■i|uda a quem se ajuda, um a nota aconselha os congregantes a não estacli >
narem na rua, mas no estacionamento da igreja, que possui um sistem.i
de segurança.
Qual é a necessidade, Deus m eu, desse aviso! As calçadas de todas a:,
ruas locais estão apinhadas de cacos de vidro dos m ilhares de furtos dr

MnilicImlr Snmhiiii 111 h ih i Hh i Ii iiim Miiilllo mciii ( •iuiu),nii


veículos (ou de coisas dos vei« ul< >s) ali estacionados; mas o liuto é o que
menos importa nesses arredores, com o fiquei sabendo pelos m eus pacien
(cs. Uma paciente vive num a casa que dá vista para a igreja, onde é pra
ticamente prisioneira do crim e. Seu carro já foi levado, a casa arrombada
Irês vezes 110 últim o ano e a filha, que a visita todos os dias, com prou um
celular para ligar para a mãe assim que o ônibus chegasse no ponto. A mãe
olha do andar de cima para ver se há possíveis assaltantes e diz a ela que
está tudo calm o, mas, m esm o assim, ela corre os 180 m etros que separam
o ponto de ônibus da porta de entrada da casa da mãe. Ela já foi assaltada
com um a faca certa vez; e assim com o um a vítim a francesa dos campos
de concentração alemães observou que um a vez torturada, a pessoa per­
manece torturada para o resto da vida, do m esm o m odo, se a pessoa já foi
assaltada e ameaçada com um a faca, perm anece com m edo de ser assaltada
e retalhada pelo resto da vida.
Também com vista para a igreja - na verdade, avistando-a do alto —
está o prédio de vinte andares do conjunto habitacional público, ao qual
os ironistas do Departamento de Habitação deram um nom e repleto de
conotações rurais (descobri que quanto m ais rural o nom e, m aior é a área
de concreto ao redor). Conheço m uito bem esse determ inado bloco, já
atendi duas chamadas dom iciliares lá - acom panhado pelo batalhão de
choque para proteger-m e, o que se m ostrou um a precaução m uito neces­
sária. Um a outra paciente que lá vive já se apunhalou, por diversas vezes,
110 abdôm en (pelo m enos cinco vezes) num a tentativa, até agora inútil, de
fazer o Departamento de Habitação - cuja preocupação com os arrendatá­
rios faz com que qualquer senhor de terras do século XVIII pareça, indis­
cutivelmente, um sentimental - m udá-la para um lugar m enos violento.
O Departamento insiste em afirm ar que ela está adequadamente estabele­
cida, e com isso quer dizer que ela está entre quatro paredes e tem um teto
im perm eável à agua, mas não ao barulho ou aos intrusos.
Assim, penso saber o que Karl M arx queria dizer quando escreveu que
a religião é o suspiro do oprim ido, o coração de um m undo sem coração,
o ópio do povo. E claro, errou a identidade do opressor. Na Inglaterra
de hoje, o opressor não é o plutocrata envaidecido; é o vizinho trafican
te que ouve rock nas alturas e bate com bastão de beisebol nos outros.

S \ i i I A i i m N h i |i I n
I 'i i il 1 1 1 1 1< I l y>l r ) , t | h i i l r i i r . l . 1 1 i ) | i . i ' i l ( il :.r d i r i g e pal a .1 J.'I . U I« I < . l ' . ' i C ' l l l I

lin s.ihc m iiilo Ki-ni o <|ne é viver à sombra <l«i ilegalidade, onde reina .i
|-*,l( ii|),iiia, Cita o caso de um a m enina de sete anos, colocada em cima da
1111" i de um bar e vendida, pela própria mãe, para o abusador que desse
h n u io r lance, para fazer o que quisesse com ela por um a noite - uma
In .1 ( >i ia que tenderia a descartar com o apócrifa, caso não ouvisse, todos os
di.r.. casos tão m edonhos quanto esse no hospital.
lissa congregação possui um a característica surpreendente: é metade
ui jM.i e metade branca. Isso é ainda m ais notável visto que, a um a centena
• le m elros, existem bares com segregação racial, onde um a pessoa da raça
i i r.ula é tão bem -vinda quanto um blasfem ador no Irã. Na igreja, no en
Ia 111o, todas as raças estão unidas pela experiência m útua da m iséria mora I
111ie as rodeia e pela incapacidade das autoridades públicas de combatê la,
ou mesm o de reconhecer sua existência.
Mais um a vez, buscam ter certeza de que o sofrim ento não é em vão.
< ongregante após congregante fala de delinquência e uso de drogas, de
l i lhos ilegítim os e violência doméstica, de crim inalidade e de crueldade,
li »los oram para a conversão do m undo e, exultantes com a perspectiva
Iminente, falam em línguas. Essa paralinguagem de sons inarticulados é
I>r<inundada com um sentim ento profundo: é um a catarse, um a libertaçãi >.
A busca desesperada por ordem em m eio à anarquia muitas vezes
la/, com que as pessoas fiquem vulneráveis a certas autoridades autopro
■ lamadas, que avançam para preencher o vácuo moral. U m paciente, re
(cntem ente, revelou-m e um m undo de cultos religiosos que florescem,
anonim amente, e que não é visto pelo resto de nós, nas cidades m odci n.r.
M eu paciente foi levado ao hospital por quase ter conseguido sim l
dar-se. O suicídio era o único m eio, acreditava, pelo qual poderia esi apai
( l<i culto que abraçara e que o abraçara nos seus dias difíceis.
- Se não posso tirar a Igreja da m inha vida - disse - ao m enos |» u.m
tirar m inha vida da Igreja.

Era um hom em inteligente que abandonara a faculdade para casar se


cedo. Poucos anos depois, a m ulher o trocou por outro. Começou a bebei
muito, e em pouco tem po estava num a situação desesperadora. Perdera

Mi 'li In Iih li Sumiu ui U I "i H- Un i 1« um \ li ii i<lit m-iii ( iurnçlui


não só a m ulher e o filho, mas a casa e o em prego. Os pais o deserdaram
por conta da tendência à agressividade quando estava em briagado. Desceu
de padrão social m uito rapidam ente e logo se viu em um albergue para
hom ens com histórias semelhantes.
Estava contem plando a possibilidade do suicídio quando encontrou,
nas ruas, um a jovem m issionária de um culto cham ado Jesus Army [Exército
de Jesus], Ela o levou a um encontro em um a das muitas casas comunais
mantidas por esse grupo na cidade.
Nesse lugar, as pessoas pareciam profundam ente satisfeitas, felizes e
sorrindo o tem po todo; batiam palmas e cantavam nos encontros diários.
Demonstravam um profundo interesse pelo bem -estar do m eu pacien­
te e pareciam oferecer um am or incondicional, que som ente m ais tarde
ele reconheceu ser altamente condicional, m anipulador e falso. Quando
pediram que entrasse para um a das casas com unais do Aimy, pensou ter
encontrado a salvação, e prontam ente concordou.
A m aioria dos outros internos desses lares esteve em situações se­
m elhantes, causadas por bebidas ou drogas. E não havia dúvida de que,
ao ingressar no Jesus Aimy, eles superavam os vícios (dem onstrando assim,
com o afirm am m uitos especialistas, que o vício é um a questão m oral ou,
ao m enos, existencial). Ainda que, sem dúvida, o Jesus Army salvasse a vida,
não a engrandecia.
Tentavam recriar as prim eiras com unidades cristãs no m undo m o ­
derno, tom ando os Atos dos Apóstolos com o texto fundamental. Todos
os bens eram com uns e o uso era determ inado pelos chefes da Igreja.
A ninguém era perm itido ter dinheiro algum , e m esm o a m ais ínfim a
despesa, tal com o um a passagem de ônibus, tinha de ser justificada em
termos teológicos. O pedido de um a barra de chocolate, por exem plo,
seria recebido com um a pergunta irreplicável: “ Em que isso ajuda na obra
redentora da igreja?” . Dessa maneira, a insignificância da existência antes
do culto era substituída pela igualm ente desanim adora profunda insig
nificância dos desejos e ações m ais triviais, e o pedido de um a barra de
chocolate tornava-se ocasião de um a batalha entre as forças do bem e do
mal. N enhum tipo de entretenimento era perm itido: nada de rádio, tele
visão, jogos, revistas ou livros. A igreja era chamada dr "U rin o ", e tudo
II q iir ll.li I Cl .1 (l.l lyMr|,l I I ,1 I 11.IIIKKl(> I Ir " M lllll lo " ( '.|(|,| meml>l'<>I lllll.l o

<ii pa s t o r , u m d e g r a u ,u i m a na h i e r a r q u i a , q u e agi a c o m o u m e s p i ã o das

.iiiloridades da igreja e de q u e m nad a p o d ia ser ocultado. N o R e i n o nao

■ i.im perm itidos segredos.


O Army tinha os próprios negócios, dentre eles, clínicas m édicas e
■ i ilórios de advocacia, que vistos de fora pareciam com pletamente noi
ui,iis. IJm paciente da clínica m édica do Army (fundada pelo Serviço Na
.......I de Saúde) não perceberia a diferença entre essa e qualquer outra
i In lira; mas os salários pagos à equipe de tais estabelecimentos, incluindo
i r. m édicos e advogados, iam diretamente para os cofres do culto: os con
i r.H Ileques dos pagam entos eram m eram ente nom inais. Se um em pregado
dr um dos negócios do culto decide recair em erro e opta por trocar o
Urino pelo M undo, im ediatamente perde o em prego. Considerado pelo
listado com o desem pregado voluntário, a ele será oferecida um a assistên
ria m ínim a em term os de auxílio desem prego; um acordo que convém
admiravelmente aos propósitos do Army.
É claro que aqueles que ingressam no Reino são encorajados a rom
prr os laços com quaisquer m em bros de suas fam ílias que permaneçam
no Mundo. Em poucos meses, portanto, um novo estreante está mais en
rodado no Reino que m osca em teia de aranha. Sem nenhum dinheiro,
prrtences, em prego e fam ília é difícil para um m em bro da igreja deixar o
Urino, quaisquer que sejam as reservas pessoais a respeito disso. Ademais,
sr o desejo de deserdar tornar-se conhecido, im ediatamente é submeti
do a m étodos de reform a mental chineses que o farão m udar de idci.i
Ki/em -no sentir-se um m em bro do partido de Judas Iscariotes. Ninguém
sr liberta do poder do culto de um a só vez: perm anece sem pre a dúvid.i
dr que, afmal de contas, talvez o culto seja o cam inho, a verdade e a vid.i
() apóstata tem de acreditar que o culto não é de todo mau, caso contrárii>,
seria forçado a concluir que fora tolo e crédulo — o que todos nós reluta
mos, com preensivelm ente, em admitir.
Muitas centenas de pessoas vivem nas com unidades do Jesus Army na
minha cidade. Os sinais m ais visíveis da existência desse grupo são os gran
drs ônibus em que os m issionários pescam pessoas vulneráveis nas ruas.
Esse não é, de m odo algum , o iinico culto nas ruas ou o m ais extremo,

Itmlnljiili' H i iiii I hi m H l »» i m i .II i m Ii mim M i u i i l n nrni ( i n n i n m


Outro culto manda seus pastores diretamente para o redil d.r. ovelhas: o
pastor é enviado para viver na casa do novo m em bro, e a fam ília é mantida,
praticamente, com o prisioneira do pastor até que este o julgue suficiente
m ente doutrinado para deixá-lo viver por conta própria.
Apesar da aparente indiferença religiosa, nossa cidade tem, inespera
damente, um a intensa vida religiosa. Em um a época de relativism o, as pes­
soas buscam por certezas; quando a violência grassa ao acaso, buscam um
sentido transcendente; quando o crim e não é punido pelo poder secular,
buscam refúgio na lei divina; quando reina a indiferença pelo próxim o,
buscam com unidade. Todos com quem falei acreditam que há um a espécie
de renascim ento religioso subterrâneo acontecendo em nossos bairros p o ­
bres. N o que diz respeito ao Jesus Aimy, quanto m ais degradado o m undo,
m ais rica será a colheita para o Reino. Com o Vladim ir Lenin e Mao Tse-
-Tung, sabem que as contradições devem ser avivadas. Com o disse Lenin,
de m aneira tão encantadora, quanto pior, melhor.

1996

\ \V|I III M t l N m I |( 'l M


s britânicos têm um a postura curiosa com relação à riquc/a
desejam -na para si, mas querem negá-la aos outros. Dess.i m.i
neira, não é surpresa algum a que aprovem poucos métodi >s |>.ii .i
,i<l(|uirir fortuna. Dentre os aprovados está o jogo de azar.
Quando, em 1991, o governo instituiu a loteria nacional, os brllâni
tos foram im ediatam ente fisgados. Parecia-lhes que com prar um bilhete
prem iado era um a m aneira perfeitam ente legítim a - talvez a única perlei
Umente legítim a - de ganhar m uito dinheiro. Afinal, quem compra um
bilhete tem um a oportunidade igual: o esforço e o talento norm alm en
te necessários para acum ular riqueza são redundantes. Um a pessoa et nu
problemas mentais tem a m esm a chance de ganhar que um gênio, um
preguiçoso perdulário tem a m esm a chance de um industrioso p<nip.n li n
Isso é o que os britânicos entendem agora quando falam de igu.ild.nlr >h
oportunidade - em bora ainda não tenham descido ao nível do .uiioi nl
geriano do manual de autoajuda que, para ilustrar a necessidade do Ii.iIm
lho árduo com o condição prévia para o sucesso, pergunta retoricameiilt
"C 'om o um a pessoa pode ganhar na loteria se não preencher o bilhete
Anúncios de página inteira na im prensa britânica recentemente ,i!.u
t le.iram o im enso sucesso da loteria nacional. Em sua breve existência (j.i<
tava se o anúncio) obteve m ais dinheiro que suas equivalentes no Japão,
na I;rança e na Espanha, e acrescentava que esse sucesso não era por acast>
Não, certamente não é por acaso: a população brltâulc.i é rrcoiihe
cida universalm ente com o a de pior nível educacional de todos os países
da Europa Ocidental e, com o escreveu um com entarista, qualquer loteria
nacional pode ser criada com o um im posto sobre a estupidez. N a verdade,
é m uito m ais um im posto sobre a falta de esperança e im paciência do que
sobre a estupidez. Os m ais pobres e aqueles de pior nível educacional gas­
tam m ais, tanto relativa quanto absolutamente, em bilhetes de loteria. Os
que sentem que não há com o fugir de seu predicam ento pelos próprios
m éritos estão m ais dispostos a recorrer à loteria; e toda semana — e, logo,
duas vezes por semana - a escolha de núm eros ao acaso atiça as brasas de
esperança de inúm eras pessoas em desespero.
A loteria nacional tanto é um a espécie de jogo de azar com o um a
verdadeira tributação por m eio da qual os pobres pagam pelos prazeres
dos ricos. U m com itê concede os lucros para orquestras, galerias de arte,
com panhias de dança — e m esm o um grupo teatral de ex-presidiárias fe­
m inistas radicais. O m aior beneficiário até agora foi a Royal Opera House
em Covent Garden, onde um assento, altamente subsidiado, ainda pode
custar quatrocentos dólares. Com o todos os jogos de azar, os com pradores
de loteria não pensam em para onde vão as apostas perdidas, mas com o
irão dispor de seus ganhos.
Se os britânicos aceitassem, contentes, as desigualdades de renda com o
parte da natureza das coisas, realm ente com o precondição e consequência
de um a sociedade livre, o efeito pernicioso da loteria nacional na m ora­
lidade da nação não seria tão grande. Seria apenas um pouco de diversão;
mas a m aioria dos britânicos equaciona desproporção de rendas com de­
sigualdade e injustiça, e explica o im pulso por tal enriquecim ento súbito
com o um a espécie de vingança do pobre contra um sistema que perm ite a
alguns acum ularem um a enorm e e injusta porção dos bens terrenos pelo
talento e trabalho árduo. Ainda assim, há m ais júbilo na Grã-Bretanha pela
falência de um m ilionário que ficou rico pelos próprios m éritos do que
pelo enriquecim ento de 99 pobres.
A legitim idade social do jo g o de azar na Grã-Bretanha é de origem re­
lativam ente recente. Quando era criança, ouvia indiretas obscuras de que
um tio m eu perdera suas posses em pôneis; também iiii Im , n.is palavras
• In Si M.iiii .i Ii n i ili Nlilinlir Nlcklfby, i<l<> "alr.is do dem ónio do I,ilido dos
• .Mv.", c apostara i penlera uma fortuna neles, ('asas de aposlas cm
i ,iv,dos (delicadam eiile c hamadas, nos prim órdios, de agências de lurlc
|i.ii,i conferir-lhes um ar de respeitabilidade profissional) eram ilegais
ui I 963. Na verdade, m eu p rim eiro contato com jogo s de a/,ar, quando
i i lança, foi na barbearia local, que m antinha um livro ilegal de aposlas. ()
I »ai beiro interrom pia o cortador de cabelo no pescoço (ainda posso ouvii
II zum bido) e corria para o telefone, onde falava, sotto voce, em um jargão
incom preensível - exata 4- 9, placê, acum ulada, e assim por diante.
Nesse m eio tem po, ficava a contem plar os m isteriosos envelopinhos
ii ixos e beges na prateleira em frente, que m eu irm ão, mais velho e mais
„ihido, explicou-m e, m ais tarde, se tratar de “ cam isinhas” . Assim, sexo c
|ogos de azar vieram a simbolizar, para m im , o ilícito e o proibido. Alé
hoje, na m inha cabeça, sexo e jogos de azar têm um a ligação: m uilas di
minhas jovens pacientes, ao explicar a existência de um ou dois filhos 11<
gitim os, usam as expressões universalm ente com uns por estas redondezas
"peguei gravidez” ou “ ganhei um m en in o” . Inevitavelmente, vem à menle
a im agem de um a roleta girando, cada vez m ais devagar, até que a bola caia
no com partim ento que, em vez de um núm ero, traz a palavra “ m en in o"
ou “ m enina” .
Poucas p ro ib içõ es sociais p erm an ecem : agora as Páginas Am arelas
listam cassinos e casas de b in g o na m esm a categoria que as associações
de veteranos, clubes p olíticos e sociedades volun tárias que oferecem
diversão aos id osos. Bookmakers, no entanto, têm um a seção própria
consideravelm ente m ais lo n ga que a seção seguin te que lista os vendi
dores de livros.
Além da Loteria Nacional e das “ raspadinhas” , que transformaiani
Iodos os superm ercados, lojas de conveniência e postos de gasolina em
( asas de jogos, há três tipos de estabelecimento para jogos de azar na cida
de, cada um com sua própria clientela, que listo em ordem ascendente de
ui sociabilidade: o bingo, a casa de apostas e o cassino.
A indústria do bin go expandiu nos anos 1960 e o que antes fora um
divertim ento jogado uma vez ao ano à beira-m ar durante as férias tornou
se o ponto focal das vidas sociais de centenas de m ilhares de britânicos

l ln i ll i ll li l r S iIIlllIIIII N l l i i I l*l U M ! P l l l f i n •1« M riild


N ão Iiá cidade, por m enor que srj.i, sem uma casa de bingo, e quase to
dos os cinem as tornaram -se bingos com nom es com o Rilzy, Rex ou Roxy.
Assim com o fram boesas, que hoje em dia são im portadas durante todo o
ano das partes m ais rem otas do planeta de m odo que nunca deixem os de
tê-las, agora o bingo é perene. Chova ou faça sol, os jogadores podem ser
avistados ao chegar na casa de bin go tão pontualm ente quanto alcoólatras
na hora em que os bares são abertos.
Luzes neon rosa ou verde-lim ão decoram a parte exterior dos prédios,
conferindo um ar festivo barato e espalhafatoso. A atmosfera no interior, no
entanto, no auditório Alt Déco, é bem diferente. A m ultidão, dem ografica-
mente, parece as congregações ortodoxas russas na época de Khrushchev:
preponderantem ente com posta de senhoras, com grande concentração de
viúvas e de bengalas. Todos os hom ens - não m ais de um quinto do total
- são idosos; um olhar rápido m ostra que m uitos sofrem da antiga ruína
da classe trabalhadora inglesa, a bronquite crônica.
Não é para m enos: o ar está repleto de fum aça de cigarro, tão denso
que sinto um a irritação na garganta, com o em um ataque com gás. Meus
olhos com eçam a arder. N ão respirava um ar assim desde a infância, quan­
do a névoa de novem bro em Londres fazia-nos andar na frente dos ônibus
para guiá-los e ficava m uito escuro para ir à escola.
O politicam ente correto da m edicina ainda não chegou aos salões d
bingo. É com algum prazer — melhor, com alegria — que vejo m ulheres
com o físico e a m obilidade de baleias encalhadas renovando constante­
mente as forças (enquanto m arcam suas carteias) com montanhas de co­
m idas cheias de colesterol e grandes copos de cerveja inglesa aguada. N o
dia seguinte irão aos m édicos, é claro, e dirão que, por m ais que tentem,
parecem não perder peso: engordam só de olhar.
Imediatam ente sou reconhecido com o alguém que não pertence
àquele lugar, seja por m inha relativa juventude ou por m inha ignorân­
cia sobre o que fazer e com o jogar. U m hom em m ais idoso, um viúvo,
tom ou-m e sob sua proteção e ensinou-m e o que fazer. Aconselha-m e a
pegar som ente duas carteias por vez: um novato com o eu não conseguiria
lidar com m ais do que isso. Está feliz por iniciar um a geração mais jovem
na cultura do bingo, satisfeito por saber que o bingo sol) revi verá a ele.

I2(i \ \ i \ I ii l u i S m jrln
I ’.11.1 hllllll.l ill V'II'.I, r iu illlll'o MIC l'<>CIc'ill l< I (le '111II i l l l l o ' i . l S l
nIil 1111H', c.isi i aparei i i ni nu hospital, normalmente eu lai u n li sic |i.u,i
■ï ni.il de Al/.heimcr; m airam oito, dez e doze cariei.is simultâneas rom
i ic i ilda.de. Têm tem po até para fazer observações bem -hum oradas com
il. vi/iiilios. Dão conta de uns 180 núm eros em um a única olhada e mai
• mi us números tão logo são cantados, sem dificuldade algum a, com o se
11vi '.'.('111 m em orizado perfeitam ente todas as carteias. Será que o exercício
mental de m arcar as carteias, horas e horas e dias após dias, mantivera
l"M ns os cérebros? Será que a esperança renovada, sistematicamente, de
.Miiliar o jackpot do dia - um a ou duas semanas em Tenerife com todas as
■I' pesas pagas ou um jogo com pleto de panelas Le Creuset - é o que põe cm
hei |ne a degeneração neuronal?
Dm rapaz de smoking de cetim dourado que canta os núm eros ale.i
Im ios gerados pelo com putador tenta, desesperadamente, infundir .io
pioccsso um atrativo hum ano: alguns núm eros parecem surpreende In e
outros, diverti-lo. Alguns dos núm eros são conhecidos por apelidos: "um
atrás do outro” para o núm ero 11, por exem plo. Os participantes saúdam
ni »com um a m urm uração apreciativa, com o se fossem velhos amigos.
Pouco tem po d ep ois algu ém grita: “ b in g o !” . Eu e todos os dem ais
perdem os, m as o triu n fo do ven ced o r não parece dar ensejo à inveja,
som ente ao prazer verd ad eiro e até gera cu m p rim en tos: afinal, podei i.i
1er sido qualquer um de nós e, da p ró xim a vez, provavelm ente scr.i
C om o disse Lorde M elb ou rn e, p rim eiro -m in istro britân ico no século
XIX ao exp licar as vantagens da O rdem da Jarreteira, a m ais ilusin
con decoração britân ica que, na ocasião, era dada exclusivam ente ,io n
m em bros da alta aristocracia: “ N ão há um p in g o de m é rito ” . Trim ifn
sem m érito, certam ente, é o sonho de m etade da hum anidade e . |<
/S % dos britânicos.
As prim eiras rodadas de bingo quase prenderam a m inha atein,.m,
mas o encanto logo se evaporou e acabou em tédio. Com o se sentisse meu
incipiente enfado ao térm ino da segunda rodada, o hom em que cantava
ns números disse ter um anúncio im portante a fazer: era o aniversário de
Bcryl. Irrom pem os aplausos e o sujeito puxa um “ Parabéns a vo cê” para
Heryl. Pede que Beryl vá à frente e receba o “ champagne” —na verdade, iim.i

Itrillliliiilr HlUIlhrill Nll.i I lo MIMPtll(í" ili' Miírilo 127


1
IIIIII.II, .11 I li.ll .1 .1 c o m <11II (I y i l i n l r .1 III p i e S()lí( ll<) CSlá Irl I/ I li I |)11 .i li1
tr.i l.i ne s sa o c a s i ã o a u s p i c i o s a . M a i s a p l a u s o s .

Iodos licam em ocionados. Beryl faz um a m esura com o se livesse con


i|iiislado algo. Na verdade, a casa de bin go celebra ao m enos um .mivei
sário por dia, às vezes uns cinco ou seis, porque para ingressar no dulie
(por lei ninguém pode entrar direto em um salão de bin go e jogar) .i
pessoa tem de ter dado à gerência sua data de nascimento. O com putador
cospe convites de aniversário para os m em bros com em orarem a data no
estabelecimento. Já que o clube possui m ais de três m il m em bros, lem ao
m enos um aniversário por dia. N o entanto, cada aniversário, com o cada
garrafa de vinho acham panhado, não só acende o encanto, m as a surpresa,
e cada aniversário pode ser aplaudido com vontade, pois não há um pingo
de m érito: todo m undo faz aniversário.
Beryl volta ao anonim ato após passar com o um cometa pelo firm a­
m ento do salão de bin go e de ter acabado o assunto sério do dia. Agora
estou com pletam ente entediado.
- Quantas vezes o senhor vem aqui? — pergunto ao m eu m entor de
bingo.
-T rê s a quatro vezes por semana - responde - , mas não sou um faná­
tico com o alguns deles.
- Isso é com um ? - pergunto.
- Sim, para eles é um lugar para frequentar e algo para fazer.

A vida, por esse ponto de vista, é feita de setenta anos de tédio im ­


prensada entre duas eternidades de esquecimento. D eixo o salão de bingo
com um am álgam a estranho de reflexões e sentim entos, pois o bin go ofe­
rece para muitas pessoas idosas ao m enos um sim ulacro de vida social e,
com exceção dos poucos que se tornam obsessivos a ponto de gastar todos
os rendim entos no jogo, é inofensivo. A atmosfera no salão é calorosa, re­
ceptiva, tão tranquilizadora quanto um útero, e os jogadores são gente de­
cente que pretende se divertir um pouco. A repetição displicente do jogo
di/ m uito do vazio mental e espiritual que, dada a idade dos jogadores,
evidentem ente está presente na Inglaterra por m uitos anos. Som os um país
não de pão e circo, mas de batatas fritas e bingo.

\ \ MI n mí Hi i i j Hi !
h n r o m p . u ,k,.io, ,i\ r.is.is d e a p o s l a s s.i< i uiii.i á re a d e p r e s e r v a ç ã o m a s

i ui In i 11 ii 110 r<>st 111 n a v a m s e r o s rlubes londrinos. Com o m eu hospital está


1 111 Min.i rejM.io de g r a n d e núm ero de desem pregados ( n a verdade, 24 % ) ,
I " r.n 111 várias casas de apostas em poucas centenas de metros da entrada
pi hm 1p.1l Nunca vi um a cliente fem inina em nenhum a dessas casas, e a
II mm 11 i,i dos frequentadores é pobre e desem pregada. N ão precisam os ser
11 vi iliieionários m arxistas para notar com o os pobres são espoliados do
pi H11 o dinheiro que possuem —com a colaboração ardente deles m esm os,
1 1 l,i ro pelos donos do capital, nesse caso, os proprietários das casas de
<1111 islas, afiliados a um a ou duas grandes cadeias com erciais. Os pobres,
1111 no (ibservou certa vez um bispo alem ão do século XVI, são um a m ina
dr o u r o — em bora, curiosam ente, entre os m eus pacientes som ente tenha
Hm nitrado aqueles que dizem ganhar nos cavalos, nunca perder.
I )entro da casa de apostas, cujas janelas voltadas para a rua sem pre
■„*« 1 opacas (um resíduo do tabu contra jogos de azar), um am ontoado de
1101 ne ns se reúne para discutir os m exericos locais e as dicas quentes das
1 01 ridas do dia. Irrom pem discussões sobre os m éritos relativos de Kevins
Nllpper e /Vlüddins Cave para a corrida de 3h 30 em Uttoxeter. São o tipo de
homem que conheço bem de m inha prática m édica: hom ens cujas dores
I rônicas nas costas lhes im pedem , para sem pre, de obter um em prego
Iurraiivo, mas que são capazes de surpreendentes façanhas de resistência
li si ca nas circunstâncias corretas, tais com o em um a briga de bar.
Afixados às paredes estão os resultados das corridas. H om ens de m eia-
idade os leem com um ar atento, exam inando-os com pernósticos óculos
meia-lua. Acho um pouco d ifícil acom panhar a linguagem técnica, com o
11,1 descrição de um cavalo: “ Dancing Alone: filho de um sprinter vencedor, mas
sem sinal da habilidade para Pip Payne aos dois, quando açoitado em Maidens
e por um vendedor (instruído pelo últim o); fora das pistas desde então,
eslreia em novo g ru p o ” . A linguagem da corrida de cães, sucinta, é quase
la< >obscura: “ Bem colocado na largada, vem num a cadeira de balanço” ou
"liin cion ou m uito bem no ‘verm elho’ , m erece respeito” .
Até m esm o a m aneira de realizar as apostas requer conhecim ento téc-
II iro especializado de diferentes tipos de aposta: a Round Robin, a Patent, a
Ydiikec e a SuperYankee, a Tricast e a Alphabet. A casa de apostas não é tanto um a

M n i l i i l m l r S o i III MUI N H i * 11" '»mi 1'iii/mi i 1« Mrnlo


for iim (Ir r iilr r lr n im a ilo , ui.r. r ,n piili i i|iir os anlropóli)g<>s sociais n< n ir
am ericanos cham ariam de um a ciiluira. E um m odo de vida: de norlc .1
sul do país, m ilhares de pessoas passam todo o dia, toda a semana, na casa
de apostas. Nunca há m enos de quinze pessoas nas lojas em que estive, e já
que existem ao m enos um as duzentas lojas do tipo na cidade, deve haver
ao m enos um as trezentas pessoas nas casas de apostas, a qualquer m om eii
to do dia, na nossa cidade de m enos de um m ilhão de pessoas, ou cerca cie
1% da população m asculina adulta.
Acim a de nossas cabeças as televisões transmitem as corridas ao vivo:
um a cacofonia de com entários rivalizam-se, m isturados aos anúncios no
sistema de som que prom ovem novos tipos de aposta - não somente em
cavalos ou cães — com prêm ios de 150 m il dólares para um a aposta de
apenas 1,50 dólar. Parece que a pessoa pode apostar em qualquer coisa: nos
resultados de partidas de futebol a lutas de boxe, nos resultados da próxim a
eleição, em um debate na Câmara dos Comuns, no núm ero de ganhadores
da faixa de núm ero três desta noite no estádio de corrida de cães de Small
Heath, e até m esm o na possibilidade de o fim do m undo acontecer no ano
2000, em bora o possível recebim ento do prêm io, na hipótese de o evento
ocorrer, possa se mostrar difícil.
U m h o m em de casaco de lã de cam elo e b igod e de gângster dos
anos 1920 aborda-m e e aponta para um a das telas de TV: um cavalo
está ganhando a corrid a p or um a m ilha. M eu in terlocu tor com porta-se
com o algu ém sup erior à escória que fum a d rogas na esquin a (o cen-
lro de tráfico de crack é num local p ró xim o à casa de apostas). Por isso
ap roxim ou -se de m im .
-A q u e le é um bom cavalo - diz, com ares de profundo conhecedor. -
Ele ganhou assim da últim a vez. Estou pensando em apostar nele para o
Clássico. O que acha?
— Eu... é... — não sei bem o que dizer: ele está sendo cordial e que
com eçar um a longa e versada conversa sobre as chances de White Admirai
no Clássico, m as não levará m uito tem po para descobrir que não sei nada a
respeito, que sou um com pleto ignorante, um estrangeiro nesse campo. -
Pessoalmente, aposto a esm o —respondi e desejei boa sorte, provavelmente
considerado o cúm ulo do mau gosto nesses círculos.

I ui ^ N !• I l l \ l III S l l l j c l l l
Ilin I >i 11K 11 g111 •111 i-i >111 de loteria é boa sorte, ganhai nos cavalos e
ii '.ii Ii .k Io i le um loiij'1 >i \t udo dos estilos de corrida e de uma perspicácia
Mipenor. O estudo dos estilos de corrida é, de um a só vez, a filologia, a
liloNolia, a ciência e a crítica literária do apostador.Tal apostador investe
um esforço im enso e lon gos períodos ao cogitar perm utações de variá
veis a partida, as desvantagens ou vantagens concedidas, o desem penho
anterior, os jóqueis, a posição na largada, e assim por diante - com o
alquimistas que se dedicavam com pedantism o inútil na transmutação
de um metal ordinário em ouro. Quantas “ viúvas” de apostadores não
i ncontro no hospital, que quase não veem os m aridos enquanto as casas
de apostas estão abertas!
O terceiro tipo de estabelecimento de jogos de azar em nossa cidade é
11 cassino. A um a curta distância da m inha casa existem dois deles, e agora
■a ui m em bro do m ais salubre. As vezes, ao caminhar, passo por prostitutas
que fazem ponto toda noite na esquina da m inha rua, e sigo até passar o
cassino, um prédio vitoriano reform ado com um a decoração de bordel
11 a de-rosa com pequenos lustres turcos. N o estacionamento, a toda hora
do dia ou da noite, podem ser vistos Jaguares e BMW s, e parece que seus
proprietários sem pre têm de dar um últim o telefonema antes de seguirem
para as mesas de roleta. São hom ens de negócio com dinheiro para jogar
li >ra: perdem uns m ilhares diante de seus colegas, e m antêm o sangue-frio,
0 que lhes traz prestígio. Devem ir m uito bem nas finanças, um a vez que
ao perder um a som a com o essas, em questão de m inutos, dificilm ente
1 >arecem ficar incom odados.
Esses não são os únicos clientes. Peixes m enores tam bém abundam,
normalm ente vestidos em distintas roupas surradas, vêm arriscar nas me
•:as de jo go rendim entos que m al podem dispensar. N inguém fica de fora
i >cassino é um a instituição democrática.
Existem cinco cassinos em nossa cidade, e a lei diz que a pessoa tem
de ser m em bro ao m enos por 48 horas antes de entrar em um deles. Apre
\ento m eu passaporte e ouço as seguintes regras: 1) É proibida a entrada
de pessoas de camiseta; 2) E proibida a entrada de pessoas de tênis.
Prometo observar as restrições, e dois dias depois recebo m inha car
leira de m em bro e uma carta de algo cham ado Com itê dos M em bros,

M i n l i i l i i i l r Ht h u i mi m I Nl l i » 11" mm * 1' i m j h i •!« M r n l n


que soa com o uma invenção de G. K. Chesterlon: "<) <'om lio dos Mcm
bros tem o prazer de vos in form ar que Vossa Senhoria l<>i eleita com o
sócio vitalício do Clube N ão pude deixar de sentir-m e lisonjeado,
em bora tenha vin d o a descobrir m ais tarde que m ais de 3% da popula
ção de nossa cidade, ou m elhor, trinta m il pessoas são igualm ente mem
bros vitalícios deste m esm o cassino, exclusivam ente. Com o o gerente de
um outro cassino explicou -m e, a verdadeira pergunta é: quantos desses
m em bros continuam ativos? Essa é exatam ente a m esm a pergunta que as
igrejas fazem : em batism os e funerais está tudo m uito bem , mas o que
acontece no intervalo?
Os cassinos não m udaram m uito com o passar do tempo. Tudo o que
pode ser observado no cassino em que sou m em bro vitalício pode ser
encontrado em um a história de Fiódor Dostoiévski escrita em 1866.1jo ­
gar em um cassino é um vício solitário, antissocial e atomístico. Assisto a
um h om em arremessar, desesperadamente, sessenta dólares para o crupiê,
que pega as notas e rapidam ente as insere nas entranhas da m esa com a
rapidez de um lagarto, entregando ao hom em algum as fichas. N o intervalo
de dois m inutos ele ganhara - e perdera - dezesseis m il dólares. Com o a
avó na obra de Dostoiévski, ele ganhara duas vezes seguidas em um único
núm ero; e assim com o os espectadores quando o protagonista do romance
ganha um a im ensa soma, quero recom endar-lhe com insistência que vá
em bora, que parta enquanto está ganhando; no entanto, não é possível:
m ais um m inuto e perdera tudo. Com o observa Dostoiévski, não há outra
atividade hum ana que ofereça em oções tão fortes em tão curto tempo:
um a esperança febril, desespero, júbilo, m iséria, excitação, desapontamen
to. E um crack de cocaína sem quím ica.
Viúvas com grandes solitários de diam ante andam ao redor das m e­
sas com bloq uin hos oferecid os p elo cassino para m arcar os núm eros
e tentar desenvolver um m étodo. E claro que não existe um m étodo,

1 R eferên cia ao ro m a n c e 0 Jogador. A o b ra p o d e ser en co n trad a e m diversas edi


çõ e s e m p o rtu g u ê s e n a rra , e m p rim e ira p esso a, as aventuras e desventuras de
u m jo g a d o r co m p u lsiv o , b em c o m o m o stra os d estin o s trág ico s d os frequ en ta
d o res d o cassino. (N .T .)

I \ Vl i l n mi Hiirji1!!!
imi mi .i In ui ve, ii.ii i i iii i li i li <1111 - as 11 ui 1 1 1 * - 1 1 ■. ei ii I ) |ii||inlin . n u l.iv.i 1 1 1
,iii r e d o r d,is iiies.i'. m m l i l i k | i i í i i 1i o s o f e r e c i d o s p e lo c a s s i n o l e n t a n d o

• li .e n v o lv e r um m é t o d o . . .
( )s melhores clientes dos cassinos m udaram : costumavam ser os jn
di ir., depois os gregos, os chineses, e agora cresce o núm ero dos hindus.
A mesa de jogo, no entanto, desfaz todas as barreiras raciais e sociais:
muçulm anos e hindus, hom ens de negócio e trabalhadores sem qualifica
i,.i< i iornam -se irm ãos e iguais nas voltas da roleta. Se o leão e o cordeiro
Ihm lessem jogar roleta, perm aneceriam um ao lado do outro em plena paz.
Observo um hom em de uns cinquenta anos, que obviam ente não é
rico e está m al-vestido, com prar quarenta dólares em fichas. Perde tudo
em poucos minutos. Retira vinte dólares do bolso e os perde ainda mais
rapidamente. Ao perdê-los, está sem um tostão. Desespero e desgosto -
i onsigo m esm o e com o m undo - estão estampados no seu rosto; mas
vi iliará, provavelmente amanhã, ou quando sua pensão chegar.
Fui a um a reunião dos Jogadores Anónim os, realizada em um peque­
no e lúgubre centro com unitário. Há cinco grupos com o esse na cidade,
no m esm o núm ero de cassinos. A m aioria dos jogadores tiveram proble­
mas com a lei: desviaram dinheiro das em presas em que trabalhavam;
mentiram; trapacearam; furtaram e desfalcaram até os próprios parentes e
entes queridos para custear seus hábitos. N ão havia, praticamente, nenhu
ma profundeza em que não tivessem im ergido, e poderiam recuperar suas
perdas em um único e últim o lance.
- Com o organização, os Jogadores Anônim os não têm nenhuma opi
n i.ío a respeito de jogos de azar — disse um deles, um hom em “ viciado"
■ ui caça-níqueis. Jogava por m ais de oito horas por dia antes de freqiionl.u,
ou de ser forçado a frequentar por ter sido ameaçado de responder judi
cialmente por desfalque, e cair em si.
M ilhões de pessoas jogam sem causar nenhum tipo de dano.
Mas os jogos de azar devem ser oficialm ente estim ulados ou deses
limulados?
Silêncio.

1997

Mi nliiliuli Snmhriii Nfm I In um I*n»/»•»<l< M rrilo l.l.l


Ks< o I I i c i m Io o Fracasso

s filhos dos im igrantes do subcontinente indiano form am um


quarto de todos os estudantes de m edicina britânicos, doze vezes
m ais que a proporção de pessoas da população geral. Da m es­
ma m aneira estão sobrerrepresentados nas faculdades de Direito, Ciência
v Econom ia de nossas universidades. Além disso, entre os im igrantes in ­
dianos que chegaram ao país com quase nada, dizem que há hoje alguns
milhares de m ilionários.
Apesar da reputação de ser ossificada e determ inada por classes so­
ciais, a Grã-Bretanha ainda é um local em que é possível haver m obilidade
social — desde que, é claro, a crença de que a Grã-Bretanha é um a socie­
dade ossificada e estratificada não tenha abafado com pletam ente o esforço
pessoal. E a mente, e não a sociedade, que forja as algemas que m antêm as
I>essoas presas aos seus infortúnios.
Onde há m obilidade social ascendente, há m obilidade na direção con-
irária. Os filhos dos indianos estão divididos em dois grupos: um segm en-
lo que escolhe o cam inho ascendente, e um segm ento que escolhe descer
até a classe m ais baixa.
As vezes a divisão ocorre dentro da m esm a família. Por exem plo, sem a­
na passada encontrei dois prisioneiros de origem indiana, os dois tinham
irmãos que cursaram faculdade e se tornaram profissionais ou hom ens de
negócios. Os irmã«>s «• irmãs escolheram o direito, a m edicina, o com ércio;
eles e s c o l h e r a m a h e r o í n a , o ,iv„i ll o c ,i I n t i m i d a ç ã o do l e s l e m u n l i . r .

A condição financeira dos pais não explicava as escolhas: o pai dr um e u


m otorista de ônibus e o pai do segundo era um agente de turism o brm
-sucedido, e am bos os pais não só estavam dispostos e tinham condições,
mas desejavam patrocinar-lhes um a educação superior, caso desejassem.
N otei os p rim eiros sinais de um a subclasse indiana há p oucos anos
na p risão em que trabalho, onde houve um aum ento inexorável l.m
to em núm eros absolutos quanto relativos de p rision eiros de origem
indiana. N os últim os oito anos, a p roporção de p rision eiros indianos
m ais que dobrou, e se continuar a crescer na m esm a taxa nos próxim os
oito anos, os p rision eiros in dian os terão ultrapassado sua proporção em
relação à população geral. C om o a p roporção de indianos na faixa etári.i
de m aio r p robabilid ade de ir para a prisão não aum entou, a dem ograli.i
não explica a m udança.
Há oito anos a m aior parte dos prisioneiros indianos era acusada por
crim es do colarinho-branco, tais com o evasão fiscal, que não é o tipo de
coisa que faça alguém temer andar pelas ruas à noite. A gora tudo isso m u­
dou. Assaltos a prédios, furtos nas ruas, furto de carros, tráfico de drogas,
com suas respectivas violências, tornaram -se tão com uns entre eles que a
m enção da seriedade disso só causa um enfastiado dar de om bros de in ­
com preensão. Por que fazer todo esse estardalhaço por conta de algo tão
corriqueiro com o um assalto? Todo m undo assalta. Os liberais aos quais
m encionei o fenôm eno aplaudiram -no com o representativo da assim ila­
ção e aculturação de um a m inoria étnica na grande sociedade.
Eles estão corretos ao ver essa evolução com o um fenôm eno cultu­
ral. Existem m uitos outros sinais externos da aculturação dos indianos às
camadas m ais baixas da sociedade. Embora suas com pleições físicas não
sejam de m odo algum adequadas, a tatuagem está crescendo rapidam en­
te entre o grupo. Outros adornos, com o argolas nas sobrancelhas ou no
nariz, por exem plo, são sinais de adesão de alguns clãs. Dentes frontais de
ouro, seja substituindo os incisivos ou cobrindo-os com uma coroa de
ouro, são praticamente um diagnóstico de vício em heroína e criminalida
de. Tal odontologia decorativa im ita os negros das camadas m ais inferiores
e pretende ser sinal tanto de sucesso com o de periculosidade.

S \ jiló |ui Hlirjrlii


<• jn v c lIS 111<11,1 l h r , I II I I I M l I I . 1 1 1( >1. 11.1111 O S 11 II l< || >'. <|| .1 l e j ' , l 111 e S ( 1.1 l ' M v . e

i • 111.iI aspiram perlem ei Aj><ira andam cheios de si, com o m esm o |tassi>
i ipldi i e ladino dos compatriotas brancos, não apenas com o m eio de loco
iiH M,ai), mas com o m eio de com unicar ameaça. Com o os brancos, raspam
i ' abeças para revelar as cicatrizes, as feridas da guerra da subclasse de
■ id.i um contra todos.
li miaram com o seus os gestos e posturas dos m entores brancos e
ui ;,;ios. Quando um m em bro dessa em ergente subclasse indiana vem ao
11 .iiMiIlório, senta-se na cadeira de um m odo m uito desmazelado, forman
dn um ângulo agudo com o chão que nunca acreditei ser possível, para
nau dizer confortável, que alguém pudesse ficar naquela postura. Ele, no
• ui.mlo, não está em busca de conforto: está declarando seu desrespeito a
alguém que supõe ser um a autoridade. Seu frágil ego exige que dom ine
i' »las as interações sociais e não se submeta a nenhum a convenção.
Ele tam bém adota um a expressão facial exclusiva da subclasse bri
lanica. Ao ser questionado, responde arqueando e projetando metade o
lábio superior para frente, parte rosnando, parte escarnecendo. Essa é
uma expressão tanto de desdém quanto de ameaça, e de m odo algum
lácil de fazer, com o pude com provar ao tentar, sem sucesso, reproduzi-
la diante do espelho. D em onstra a necessidade, ao m esm o tempo, de
perguntar: “ Por que você está m e perguntando isso?” e adverte: “ Não
abuse!” . Essa é a resposta para todas as perguntas, não im portando quão
inócuas tenham sido, pois em um m undo em que cada contato é uma
lula por poder, o m elhor é dem onstrar im ediatam ente que não se deve
ser menosprezado.
A crescente subclasse indiana adere aos valores da subclasse branca
valores que são, ao m esm o tem po, p ouco profundos e defendidos com
ínlensidade. Por exem plo, certa vez fui testem unha em um julgam euio
de assassinato de quatro jovens indianos acusados de matar um de seus
com panheiros no decorrer de um a briga a respeito da m arca de tênis
<Ilie um deles usava. D ebochavam do rapaz porque o tênis dele não era
do últim o tipo. Por fim , o rapaz, transtornado, partiu para bater-lhes. Na
briga que se seguiu, m ataram o rapaz e deixaram o corpo na entrada do
prédio em que morava.

M c i i I m Ií m Ii * S o i i i I m i í i I i m I I m i m Ih m I i m m i u m m
N ascim entos ilegítim os agor.i rslão com eçando a surgir cnlre os
indianos. De prática quase desconhecida para um indiano, hoje em di.i,
os filh os fora do casam ento não são nem m ais algo raro. Os indianos
chegaram a um n ível de 5% da taxa de filh os ilegítim os na população
inglesa, e a partir daí isso cresceu exponencialm ente desde os anos de
1960. N ão há m otivo para que, em poucos anos, não alcancem a m édia
nacional de 33%, pois quando a história se repete, norm alm ente ela o
faz em passo acelerado.
N o início, som ente os hom ens indianos geravam filhos ilegítim os;
alguns dos rapazes que eram subm etidos a casamentos arranjados m anti­
nham concubinato, norm alm ente com um a m ulher branca, mas às vezes
negra, em algum lugar da cidade. Muitas vezes, a concubina, nada sabendo
dos antecedentes, da biografia ou da cultura do hom em , não fazia ideia
de que ele era casado. Ela tinha o filho daquele hom em com base na im ­
pressão totalmente errada de que conseguiria prender sua atenção, até o
m om ento, inconstante.
M ais recentem ente, contudo, dar à luz filhos ilegítim os dissem inou-
-se entre as jovens indianas. U m a m oça indiana foge de casa após um
lon go p eríod o de conflito com os pais por causa da m aquiagem , das ro u ­
pas, da hora de voltar da boate para casa e assim p or diante. Em pouco
tem po, cai no laço de um jovem - branco, negro ou indiano - m uitíssi­
m o disposto a provar a própria m asculinidade ao engravidá-la e depois,
é claro, abandoná-la.
Dessa experiência ela nada aprende. Está sozinha, necessita de uma
com panhia m asculina e - no m undo predatório em que agora se encontra -
precisa da proteção masculina. O ciclo se repete até que ela tenha três fi­
lhos de três pais diferentes, em bora ao final de sua carreira reprodutiva ela
perm aneça tão isolada e sem am igos quanto no m om ento em que deixou
a casa dos pais. Poderíam os supor que jovens indianas fariam qualquer
coisa para evitar um a sina tão terrível e previsível quanto essa. N em tanto:
cada vez m ais a abraçam com o se fosse algo invejável. Em bora o núm ero
delas ainda seja pequeno, são a legião do futuro.
Com o a subclasse indiana form ou-se tão rapidamente? Por que
uma parcela da população indiana abraçou essa vid.i d«- classe baixa com

S \ l i K ( i u i N i m |i ' I m
.iIu iciiic eiiium.r...... 1I i ..ui |>crj>11111.is im porlanlrs .1 rr.posi.i <11n • l.i
101110,s rcllelirá e dcici minará (oda a nossa filosofia social.
() esquerdista, sem dúvida, afirm ará que a form ação de uma subclasse
Midi.ma é a resposta inevitável à pobreza, ao preconceito e ao desespero
I pie suscitam. Com o cam inho do progresso bloqueado por nossa socicd.i
de racista, os jovens indianos saem da escola, raspam as cabeças, tatuam o
II >rpo, injetam heroína, fazem filhos fora do casamento e cometem crimes.
Mas, se estão aprisionados em um círculo vicioso de pobreza e pre
ci inceito, por que m uitos de seus com patriotas chegam a obter sucesso, e
.10 espetacularm ente bem -sucedidos? Por que os filhos de pais indianos
liem -sucedidos tam bém escolhem o m od o de vida da subclasse? E por
que o sucesso esplêndido e o fracasso odioso tantas vezes acontecem 11a
m esma fam ília?
A explicação, por certo, deve envolver um a escolha hum ana conscicii
lo. jovens indianos não aderem à subclasse por inadvertência ou por fbrç.i
do exem plo dos pais, com o fazem os jovens brancos - agora na tercei r. 1
geração desse m odo de vida —no m ais das vezes. Em todos os casos de que
lom ei conhecim ento, nenhum dos genitores dos jovens indianos aprovou
as escolhas dos filhos; na verdade, ficaram horrorizados.
Esses pais com frequência vêm m e consultar após assistirem, com
crescente consternação, a um ou todos os filhos tomarem a estrada dos
pra/.eres para a perdição urbana. Por exem plo, um m otorista de táxi que,
,is vezes, leva-m e para casa, pediu que falasse com seu filho. O motorista
era, claro, um a espécie perfeita do pequeno-burguês do tipo que, quando
não é verdadeiram ente detestado pelos intelectuais, é desprezado com o
serviçal desinteressante e sem im aginação, cujo sonho é alcançar aquilo
que há tanto escarneceram - um a independência respeitável. Está, por 1.111
lo, proscrito da com preensão compassiva, pois os hom ens hum ildes só de
vem ser defendidos caso consintam em perm anecer vítimas, necessiladi r,
de auxílios custeados pelo público.
O filho do m otorista (o único dos seus cinco filhos) tinha com eçad
,1 usar drogas injetáveis, e ao fazê-lo, causara um a tristeza ao pai além da
sua capacidade de expressá-la em inglês. O filho agora roubava do própri( >
lar, mentia, trapaceava, bajulava, ameaçava e até era violento ao arrancar

Hnilhlnilr S n m b m i I " i i I I i h m Im i i I im mmmm 1.1')


dinheiro dos pais e dos irm ãos para com prar drogas, < > pal nao queria
expulsá-lo de casa ou entregá-lo à polícia, mas também não queria traba
lhar longas horas para prover o filho das drogas que, um dia, o matariam,
Perguntei ao filho —com os dentes frontais todos em ouro, calças baggy
e boné de beisebol com a aba para trás, usado m esm o dentro do consulto
rio, e tênis da últim a m oda - por que ele com eçara a usar heroína.
- N ão tem m ais nada para fazer na rua - respondeu. - E a sociedade
que te coloca nessa vida.
A atribuição da própria escolha à sociedade não é incom um . Pergun
tei-lhe se não conhecia os perigos da heroína antes de com eçar a utilizá-la.
- Sim - respondeu.
- E m esm o assim você com eçou a usar? —perguntei.
- Sim.
- Por quê?
- Sem querer ofender, doutor, mas as pessoas que m e apresentaram a
essa droga conhecem mais a vida que o senhor. Eles sabem do que se trata,
sabem com o é a vida nas ruas. E não têm preconceitos ou são racistas.
Ele estava sob a influência da ideia de que alguns aspectos da realidade
são mais reais do que outros; de que o lado m oralm ente degradado da
vida é mais verdadeiro, mais autêntico, que o lado refinado e culto - e
certamente m ais glam oroso que o lado respeitável e burguês. Essa ideia
poderia ser tomada com o a prem issa fundam ental da m oderna cultura
popular. Quanto à referência ao racismo, ela pretendeu claramente ser uma
autojustificativa universal, um a vez que seu irm ão era um advogado de
razoável sucesso.
Outros pais consultaram -m e a respeito do filho de dezoito anos que
tinha optado por um cam inho semelhante. O pai e a mãe tinham em pre­
gos administrativos e não eram nem ricos nem pobres. Por volta dos treze
anos, o filho com eçou a cabular as aulas, fum ar m aconha, beber álcool,
passar a noite fora de casa e a enfrentar a lei. Nas poucas ocasiões em que
ia à escola, discutia com os professores e, finalmente, foi expulso ao ata
car um deles. D eixou a casa dos pais aos dezesseis anos para viver com a
nam orada que estava grávida, cujo nom e tatuou no antebraço com o um
preâm bulo ao com pleto abandono da moça ao dfM obi u que ele ainda

\ ii In mm S m |i i M
n,ii i < ’.l.iv.» | ii i niii i I mi i i i i 1 1,1 |i l.i i li n n c sl l( .1 1 .iIn ii.i 111,ii >'. i li i’í 11 ,ilii ,iiili \
■li «In iv,is c vi vi.i ,ip ii ,i iiin,i vml.i ilinci'.mIr, esquivaml<> se d,i lei, cedendo
ui (iiick o, vi*/ ou ouli.i, acabando no hospital com ovcrdoxe, tomada nem
i.iiiid para sc matar, mas para buscar proteção temporária ou asilo d.r.
sequências do próprio estilo de vida.
() pai disse que seu filh o tornara-se exatam ente aquilo que nuiic.i
■I' ■.(• j(ui c|ue fosse: um m em bro da subclasse inglesa. Vira o rapa/ dcs
i ei ao barbarism o, m uito ciente da p róp ria im potência para evilar iwa >
l nlicil mente a Inquisição espanhola p od eria ter inventado um a tortur.i
pior para o pai.
Seu filho era m uito inteligente e fora tido pelos professores com o
alguém que seria bem -sucedido. Perguntei ao rapaz por que objetara lanli >
a I requentar a escola.
- Q ueria ganhar dinheiro.
- Para quê?
Para m e divertir. E com prar roupas.

As roupas que ele queria eram deselegantes, mas eram o uniform e


caro (e em constante mutação) da juventude dos bairros pobres. O divci
m se consistia somente em frequentar clubes com milhares de jovens dt
mesma mentalidade. Nada havia na sua concepção de bem -viver que Iónm
(lilerente de excitação constante e gratificação instantânea. Sua ideia d(
I>,i raíso era um a vida com o a MTV
—Você não acha que ainda tem coisas a aprender?
- Não.

Em outras palavras, considerava-se perfeitamente form ado e ........ >l< i >-


aos treze anos de idade. Adolescente precoce, estava preso na imatui k I.k l<
lim certo sentido era um a vítima: não da pobreza, do racism o ou dc .....
círculo vicioso de privações, mas da cultura popular que primeiram ente 11
atacou e depois o dom inou por com pleto, porém sempre pela mediai,. h >
das próprias escolhas.
Existe um a previsibilidade terrível na explicação que os jovens ín
di,mos dão para ("•'■a queda à subclasse, igual à dada pelas conlraparli

Mn i l l i l i i i l i 1 S i l l l l hr i f l I " **11M I m I m h I MH M iwi III


hiancas. "l'iii lat iIinonle levado", di/i m "( .11 na liirm a errada" < >uvi rv..e.
coisas umas centenas de vezes. Eles lingem não notar a nature/a .mio
dclcnsiva dessas respostas, cuja verdade esperam que aceite sem maiores
explicações.
Pergunto-lhes: “ Por que, se vocês são tão facilmente levados, os scir.
pais não foram capazes de orientá-los? E vocês escolheram sair com a iin
ma errada ou caíram nela com o um a pedra?” .
Quanto ao m otivo de terem com eçado a usar heroína, a justificai i
va padrão é a que Sir Edm und H illary deu quando perguntado por que
escalou o m onte Everest: “ Porque ele estava lá” . N o caso da heroína, no
entanto, o “ lá ” é “ em toda parte” : “ A heroína está em toda parte” , dizem,
com o se fosse o ar que não pudessem deixar de respirar.
-V o c ê está dizendo para m im que todas as pessoas da sua área usam
heroína?
- Não, claro que não.
- Logo, você escolheu usar, não foi?
- E, acho que sim.
- Por quê?

Assim com o os brancos, fazem algum esforço para dar um a resposta


diferente de “ porque gosto” e sentem prazer em fazer aquilo que sabem
que não deveriam.
“ M eu avô m orreu” ou “ m inha nam orada me d eixo u ” , ou “ estava na
prisão” : nunca admitem um a escolha ou um a decisão consciente. Mesmo
assim, sabem que aquilo que estão a dizer não é verdadeiro, pois im edia­
tamente entendem quando lhes digo que o m eu avô tam bém já m orreu e
nem por isso uso heroína, com o tam bém não o faz a m aioria das pessoas
cujos avós já m orreram .
N a verdade, foram assim ilados à cultura local e ao clim a intelectual;
um clim a em que a explicação pública do com portam ento, até m esm o
do p róprio com portam ento, contradiz com pletam ente toda a experiência
luimana. Essa é a m entira que está no âm ago de nossa sociedade, uma
m entira que favorece o surgim ento de toda form a de autojustificativa
destrutiva; pois enquanto atribuím os a condui.i .r, pressões externas,

\ \ I*In l \|i 1t i i l j r l i i
I>
1it I In ri Iii c. ,ii>'. I ■I *11 ■ In., 11111 I>i< >1.1111 iln nosso i ill lino, i o nc c dc n d o
, ui . I In.inc.I I>.i I .i ci H111 ii >>'l .uno nos c o m o desejarmos. Dessa maneira,
I 1111111« > n o s b e m ao a g lr m a l.
I . .o não c negar que os fatores sociais na educação influenciem o
mudo com o as pessoas pensam e tomam decisões. Se a incom petência
in gligenie, e por vezes brutal, de grande parcela dos pais (cuidadosamen-
II■ j ii si II 'nados por intelectuais de esquerda e subsidiados pelo Estado de
r.i mi lislar Social) explica a perpetuação e expansão da subclasse britânica
In,iiK .1, se não suas origens, será que a severidade e rigidez da educação
indiana, com binada com o canto de sereia de autossatisfação da cultu-
i.i britânica, pode explicar o desenvolvim ento de um a subclasse indiana?
i > laio de a população m uçulm ana ter um índice de crim inalidade seis
vo/cs m aior que a hindu e três vezes m aior que a dos sikhs indica que essa
pode ser um a explicação, pois a cultura m uçulm ana do subcontinente,
cm geral, tem m ais dificuldade de transigir criativamente com a cultura
i iiidental que as duas outras religiões. Essa diferença surpreendente é mais
um argum ento contra aqueles que veem o aparecimento da subclasse in ­
diana com o um a resposta inevitável ao preconceito racial, pois certamente
é improvável que aqueles que possuem preconceitos raciais se deem ao
iiabalho de diferenciar m uçulm anos, sikhs e hindus. Os pais m uçulm a­
nos são mais refratários que os pais sikhs e hindus em reconhecer que
m us filhos, criados em um ambiente cultural m uito diferente do que eles
m esmos cresceram, inevitavelmente desviam dos costumes tradicionais e
aspiram a um m odo de vida diferente. Enquanto m uitos pais muçulm anos
mandam as filhas para fora do país aos doze anos de idade para evitar que
M‘j a m infectadas pelas ideias locais (mas, com o os jesuítas lhes diriam , já
c muito tarde - deveriam mandar as filhas em bora aos sete anos), poucos
sikhs e nenhum hindu o fazem.
A inflexibilidade dos pais é um convite à revolta adolescente, portan
l<), dificilm ente surpreende que, no crescimento de um a subclasse indiana,
os muçulmanos predom inem de m odo tão pronunciado. Existe, todavia,
mais de um m eio de rebeldia e, infelizmente, os adolescentes indianos
rebeldes têm de lidar com um exem plo antinom iano na form a de uma
subclasse britânica preexistente. A cultura popular diz que cuspir na cara
ilr quem <11it i <11u- seja é iiMi Mn.il de escolha moral à medida <|ih* é pos
sívcl escolher moralm ente em um mundo sem julgam ento moral. A vid.i
da subclasse oferece-lhes a perspectiva da liberdade sem responsabilidade,
ao passo que os pais oferecem somente responsabilidades sem liberdade.
Têm de descobrir sozinhos que o exercício da liberdade requer virtude,
para não vir a ser um pesadelo.
O surgim ento de um a subclasse indiana na Grã-Bretanha é uma que
tão de im portância m aior do que os núm eros parecem sugerir. N ão é unia
resposta quase m ecânica às condições econôm icas, ao preconceito racial
ou a qualquer outra form a de opressão amada pelos engenheiros sociais de
esquerda. E a refutação de um a m áxim a m arxista infinitamente perniciosa
que tem corrom pido a vida intelectual ao afirm ar que “ não é a consciência
dos hom ens que determ ina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social
que determ ina a consciência” . Hom ens - até m esm o os adolescentes -
pensam: e o conteúdo daquilo que pensam determina, em grande parte,
o curso de suas vidas.
\| emana passada um hom em de m eia-idade foi levado ao m eu hos­
pital em condição desesperadora. Há três semanas tinha saído por
conta própria de um hospital psiquiátrico contra as recomendações
médicas; ao chegar em casa, percebeu que a perspectiva de viver com sua
mulher era tão convidativa quanto a vida nas alas de um hospício. Foi
para o centro da cidade, onde acam pou em plena rua, em um jardinzinho
público próxim o a um hotel de luxo. Lá ficou, com endo nada e bebendo
pouco, até que finalmente foi encontrado inconsciente e tão desidratado
i|ue o sangue espessara e coagulara em um a das pernas, que estava gangre
nada e, portanto, tinha de ser amputada.
Que história ilustraria m elhor a suposta indiferença fria e o individua
lismo cruel de nossa sociedade que a do hom em encontrado próxim o .1
um hotel com diárias de duzentos dólares, à sim ples vista não só dos hós
pedes, mas de m ilhares de cidadãos, quase m orto no m eio da cidade poi
lâltar-lhe um pouco d ’água?
Outras interpretações dessa história, todavia, são possíveis. Talve/ o:,
milhares de transeuntes que viram o infeliz sujeito enfraquecer a ponto de
i Iiegar à beira da m orte estivessem tão acostumados com a ideia de que o
listado iria (e deveria) intervir naquilo que não sentiam com o um devei
pessoal agir em prol desse hom em . Afinal, a pessoa não paga metade da sua
renda em im postos para assumir responsabilidade pessoal pelo bem eslar
(In próxim o! ( )s impostos devem pievenii .1 lalla de cuidados 11.10 \ó i|n
contribuinte, mas de todas as demais pessoas. Assim com o ninguém e uil
pado quando todos o são, ninguém é responsável quando todos o são
Novamente, talvez os transeuntes pensassem que o homem eslava
apenas exercendo seu direito de viver com o desejava, com o advogad( > por
aqueles prim eiros defensores da desinstitucionalização dos doentes men
tais, os psiquiatrasThom as Szasz e R. D. Laing. Quem som os nós para julgar,
em um país livre, com o as pessoas devem viver? Exceto por uma pequena
desordem , o hom em não perturbava o público. Talvez os transeuntes pen
sassem, ao tolerar que quase chegasse à morte, que ele estava cuidando de
sua vida, e no conflito entre agir com o o bom samaritano e o imperativo
do respeito às autonom ias pessoais, este últim o prevaleceu. N o ambiente
m oderno, afinal de contas, os direitos sempre prevalecem sobre os deveres.
M esm o assim, a existência de pessoas que m oram nas ruas, ou que
não têm estadia fixa, é geralmente tomada, ao m enos pelos esquerdis­
tas, não com o um a indicação do com prom isso de nossa sociedade com
a liberdade, mas do com prom isso com a injustiça, com a desigualdade e
a indiferença ao sofrim ento humano. Não há assunto m ais provável que
moradores de rua para gerar pedidos de que o governo intervenha para
pôr fim ao escândalo; e não há assunto que m elhor satisfaça a mais agra­
dável das atividades humanas: a preocupação compassiva.
N o entanto, com o muitas vezes é o caso dos problem as sociais, a na­
tureza exata e a localização da suposta injustiça, da desigualdade e da in ­
diferença aos que sofrem não estão claras caso o problem a seja visto em
si m esm o, e não visto por m eio de generalizações éticas ( “ ninguém em
uma sociedade afluente deveria não ter onde m orar” ) ou estatísticas (os
m oradores de rua crescem em períodos de desem prego).
Em prim eiro lugar, está mais que provado que nossa sociedade, em
abstrato, é indiferente aos que não têm onde morar. De fato, a falta de tetos
é a fonte de em prego de um considerável núm ero de pessoas da classe
média. O pobre, escreveu um bispo alemão do século XVI, é um a mina de
ouro; e assim, por sua vez, os m oradores de rua.
Por exem plo, em um abrigo para os m oradores de rua que visitei,
situado em uma igreja vitoriana um tanto grande, porém fora de uso e

S \ iiIn i ^ i SiiijiHii
11' .1 I HIN.lgl .1<l.l, 111 I III II | 11 u • ll.lVI.I li", II Icillrs (' I I mClllIllOS ( 1.1l'(|UÍ|H‘;
...... . 111(• pi>iK <i'. deli ■, i uiIi.iin (11i.il<11u-r contato direto com os objetos de
.um assistência.
( )■. desabrigados pernoitavam em dorm itórios sem nenhum a priva-
■ id ad e, I lavia um cheiro rançoso que qualquer m édico reconhece (mas
...... .i registra nos prontuários) com o cheiro de m endicância. Depois,
.d i passar pelo corredor e p or um a porta com fechadura de com binação
I mm evitar introm issões inconvenientes, de repente, ingressam os em um
outro m undo: o m undo higienizado, refrigerad o (e herm ético) da bu-
loeracia da com paixão.
() núm ero dos escritórios, todos com putadorizados, era espantoso.
A equipe, vestida em elegantes roupas inform ais, estava concentrada nas
i.irelas, diligentem ente observando as telas dos com putadores, im p rim in ­
do docum entos e correndo apressadamente para consultas urgentes entre
M, A quantidade de atividade era impressionante, o senso de propósito
eslava claro; tive de esforçar-m e para recordar os residentes que encon-
irara ao entrar no abrigo, espalhados no que antes fora o pátio da igreja,
que estavam agitados, caso estivessem na vertical, ou roncando, caso na
horizontal, rodeados por latas vazias e garrafas plásticas de sidra com 9%
de leor alcoólico (que oferece a m aior relação álcool por dólar disponível,
no m om ento, na Inglaterra). Nero tocava violino enquanto Rom a pegava
logo, e os administradores do abrigo faziam “ gráficos de pizza” enquanto
(>s residentes bebiam até cair.
Existem 27 abrigos catalogados nas Páginas Amarelas de nossa cidade,
e m uitos que conheço não estão na lista. Alguns dos abrigos são m enores
e possuem m enos funcionários que o que descrevi, mas certamente umas
i entenas de pessoas - e possivelm ente milhares - devem seus em pregos a<>s
desabrigados. Além dos próprios em pregados dos abrigos, existem para <>s
desabrigados os assistentes sociais e os agentes do serviço de habitação; há
uma clínica especial com m édicos e enferm eiras, e um time de psiquia
I ims de cinco pessoas, capitaneado por um m édico com salário anual de
cem m il dólares, que toma conta dos doentes mentais m oradores de rua
O m édico é um acadêm ico que passa m etade do tempo em pesquisa e
eu estaria disposto a apostar um a boa quantia de dinheiro que a extensão

H n i l l i l j i i l r S n i i i l i MH I M •• | "i i n I ■h I I m i
«los problemas dos desabrig.ul< »*.«<>m doença mental em n<>ss.i cidade nau
dim inuirá na proporção do núm ero de artigos acadêmicos es« rilos ou do
núm ero de conferências acadêmicas em que o m édico comparecerá.
Já que nossa cidade não é de m odo algum atípica e possui aproxl
madamente 2% da população da Grã-Bretanha, é justo presum ir que nào
m uito m enos de cinquenta m il pessoas ganham o sustento por conta dos
desabrigados nestas ilhas. Isso pode representar um sinal de ineficiêniia,
incompetência, ou m esm o prodigalidade, mas dificilm ente de indiferença
110 sentido esquerdista da palavra; e com paixão para alguns é, sem dúvida,
uma boa jogada na carreira.
Poderiam argumentar, no entanto, que toda essa atividade nada mais é
senão um Band-Âid na fratura ou um a aspirina para a malária. Pelo trabalho
das agências de caridade e agências governamentais, a sociedade abranda
a consciência e fecha os olhos para as causas fundam entais da situação dos
m oradores de rua.
É aceito com o axiom ático que a situação dos m oradores de rua é inal­
terável. Quem pode contem plar os arredores da m aioria dos abrigos sem
asco, ou olhar para a com ida que vem dos “ sopões” sem náusea? Não é
verdade que aqueles que passam a vida nessas condições são os mais desa­
fortunados dos seres e devem ser recuperados?
Quando criança, sem pre que via na estrada um cavalheiro que se
vestia um tanto com o Leon Tolstói ao fingir ser cam ponês, com a bar­
ba grisalha emaranhada, m urm urando im precações e invocando todas as
m aldições do m undo, não sentia pena dele, ao contrário, pensava que era
um tipo superior de ser, na verdade, um tanto com o o Deus do Antigo
Testamento ou, ao m enos, com o um de seus profetas. Esses hom ens eram
esquizofrênicos, sem dúvida, e logo deixei de lado a ideia absurda de
que o com portam ento estranho deles era consequência de um a sabedoria
esotérica que lhes fora conferida, mas que não o fora, digam os, aos meus
pais. M esm o nesses dias, digam os, de cuidados com unitários aos lunáti­
cos, o esquizofrênico responde som ente por um a m inoria dos desabriga
dos. Aprendi por outros cam inhos, no entanto, que não devem os apenas
sentir pena dos m oradores de rua, com o sentim os de um porco-espinho
mac hucado ou de um passarinho de asa quebrada (|ue pode ser curado

\ \ M III I NI H l I I | l ' l i l
I>i ii iiin .i i n l c r v i m,.H i I ii ui 11111-1ii i <in,i(l,i (Ir a u x i li a r e s pr< ilissu m .iis, de Ikiii I

ni bus. O m o r a d o r de n i.i sofro, certamente, mas nem sem pre da m aneira


*i i i |)rl< is m otivos que imaginamos.
Um senhor de 55 anos que passou metade da vida de abrigo em abri-
y;i i ,io redor do país deu entrada na m inha enferm aria sofrendo de ddirium
Iniuciis. Sua condição, na ocasião, era deplorável; estava apavorado pelos
.inimaizinhos que via rastejando, saindo das roupas de cama e das pa­
redes, seu tremor era tão profundo que não podia ficar de pé, e segurar
uma xícara ou um talher estava fora de questão. Ao olhar para sua cama
poderíam os crer que estávamos sob um longo e sério terremoto. Sofria de
incontinência urinária e tinha de utilizar um cateter; o suor escorria com o
.1 chuva goteja da folhagem de um a floresta tropical. Levou um a semana de
IMilhos para tirar o cheiro de m endicância e um a semana de tranquilizan-
Ics para acalmá-lo. Certamente, poderíam os pensar, qualquer tipo de vida
rr.i preferível a um a vida que chega a esse ponto.
N o entanto, um a vez recuperada a saúde, ele não era m ais a criatura
digna de pena que fora há tão pouco tempo. Ao contrário, era um hom em
inlrligente, perspicaz e cativante. Havia um brilho m aroto em seus olhos.
Também não tinha o tipo de antecedente fam iliar que com um ente (e de
maneira errônea) supom os que o com peliria a um futuro desanimador:
sua irm ã era um a enferm eira-chefe e seu irm ão era diretor de um a gran
i Ir empresa pública. Ele m esm o saíra-se bem na escola, mas insistira em
.ibaiidoná-la na prim eira oportunidade e fora para o mar. Após um casa
mento prematuro, o nascim ento de um filho e a tediosa hipótese de um.i
hipoteca, ansiou por recuperar a liberdade pré-m atrim onial e redescobriu
,is alegrias da irresponsabilidade: abandonou a esposa e o filho, não trab.i
lliou m ais e, em vez disso, passou os dias a beber.
Dentro de pouco tem po desceu do nível de casa para apartamenii >,
deste para quarto de aluguel e daí para um a cama no abrigo. De nada se
arrependia: disse que sua vida fora cheia de acontecimentos, atrativos e
diversão, m uito m ais do que se tivesse seguido o cam inho estreito das
viriiides que conduz diretamente ao recebim ento de um a pensão. Pedi
lhe que quando estivesse plenamente recuperado escrevesse um arligo
curto descrevendo um incidente de seu passado, e ele escolheu a prim eira

Mnilldndi Sninhriil I-i h i | m u <i I . i h o II hm'


ui >lle que passara em um abrigo. ( 'liovl.i muito e uma (Ha de vagabundt>>.
esperava, do lado de fora, perm issão para entrar no prédio do Exéreilu
da Salvação. Com eçou um a briga e um hom em arrastou o outro pelos
cabelos. O uviram algo sendo rasgado, e o atacante ficara com o escalpo da
vílim a nas mãos.
Longe de isso ser algo tão terrível a ponto de decidir imediatamente se
emendar, m eu paciente ficou curioso. Seu tem peram ento era o de alguém
que buscava sensações; detestava o tédio, a rotina e receber ordens de ou
tras pessoas. Juntara-se à grande fraternidade de andarilhos que viviam à
m argem da lei, que tomavam trens sem bilhete, insultavam os burgueses
das pequenas cidades com seu com portam ento ultrajante, enfureciam os
magistrados ao confrontá-los com a própria im potência, e muitas vezes
acordavam a umas centenas de quilôm etros de onde tinham partido na
noite anterior, sem recordar com o chegaram ali. Em suma, a vida de um
m orador de rua crônico, de altos e baixos.
E claro que, quanto m ais se vive esse tipo de vida, m ais difícil torna-
-se abandoná-la, não só por conta do hábito, mas porque é cada vez mais
difícil a pessoa se reinserir na sociedade norm al. U m hom em de 55 anos
pode sentir algum a dificuldade de explicar para um potencial em prega­
dor o que estivera fazendo nos últim os 27 anos. Com a idade, contudo,
as dificuldades físicas da existência aumentam, e m eu paciente disse-me
que acreditava que, a m enos que desistisse da vida errante, não teria muito
mais tem po de vida. Concordei com ele.
Consegui para ele um abrigo para alcoólatras recuperados e com pro­
metidos a não voltar mais a beber. N um prim eiro m om ento, com portou-se
perfeitamente: manteve as consultas com igo e estava se saindo m uito bem.
Parecia até feliz e satisfeito. Surpreendentemente, possuía m uita leitura e
I ivemos agradáveis conversas literárias.
Depois de cerca de três m eses dessa existência estável, m eu paciente
confessou que estava ficando inquieto novamente. Sim , estava feliz e tam ­
bém estava fisicam ente bem - m uito melhor, de fato, do que se sentira em
muitos anos; mas faltava algum a coisa na vida. Era a agitação: ser persegui
do pelas ruas por policiais, a presença nos tribunais, a sim ples cordialidade
e com panheirism o do bar. Sentia saudades daquela pergunta importante

IM)
< iiii 111m- (<>'.111111.11 i<>•i •I,ii iodas as imnliàs "O nde esloii>" Andar pelos
m esm os lugares todos os dias não tinha, nem de longe, a m esm a graça.
I 11 i lo que faltou à última consulta e nunca m ais o vi.
lisse não é, de m odo algum , um caso isolado: lon ge disso. Pessoas
i iiini) esse paciente são a categoria m ais num erosa entre os m oradores
• l<r. abrigos. Ao m enos dois deles dão entrada em m inha ala a cada se-
.....na. H oje, p or exem plo, conversei com um hom em de 45 anos que
11vera um em prego de responsabilidade com o gerente de loja, m as que
li ira adm itido há p oucos dias com delirium tremens. C oncordou que sua
vida de vagabundo, na ocasião decorridos doze anos, não havia sido
I oi a Imente m iserável. Este paciente, que bebia tanto quanto qualquer
outro paciente que já v i, orgulhava-se do fato de não ter tido proble
mas com a polícia nos últim os sete anos, não porque tenha deixado
de desobedecer à lei. O pagam ento que recebia da previdência social
era totalm ente inadequado ao seu consum o de bebidas destiladas, e
lornara-se um experien te ladrão, “ em bora só roubasse para aquilo que
eu precisava, d o u to r” . Estava claro que a arte de furtar sem ser p ego lhe
irouxe m uito prazer. A d m itiu que não fora levado ao furto p or neces
idade: disse-m e que era um talentoso pintor de retratos e poderia ter
j;.m liado, em poucas horas, bastante dinheiro com essa habilidade para
m antê-lo bêbado p or um a semana.
- Na m inha época tive um bocado de dinheiro, doutor. Dinheiro não
c problem a para m im . Posso conseguir um m onte de novo, mas quanio
mais eu ganho, m ais caio na bebedeira.
Esse paciente também sabia que voltaria à vida que levava, não impoi
I,indo o que fizéssemos por ele, o que quer que lhe oferecêssemos.
Tais m oradores de rua, portanto, fizeram um a escolha que pode
mos até d ignificar com o um a escolha existencial. A vida que escolhei.im
não é privada de com pensações. U m a vez superado o asco inicial das
condições físicas em que decidem viver, encontram segurança: mais se
jmrança, na verdade, que a m aioria da população que luta para manlei
um padrão de vida e que não possui nenhum a garantia de sucesso, lísses
hom ens sabem, por exem plo, que existem abrigos em vários lugares, em
cada bairro e cidade, que estes o aceitarão, o alim entarão e o m anterão

1m I n i• ..... . I •«iIIh-i
l(i iiIkImlt ' -Mini>
aquecido, não im portando o que aconteça ou se o m ercado esi.i cm .ilu
ou em baixa. N ão tem em o fracasso e vivem sem quaisquer restrições
da rotina: a única tarefa diária é aparecer na hora da refeição e a íinii .1
tarefa sem anal é sacar o dinheiro da previdência social. Além disso, s.10
autom aticam ente parte de um a fraternidade - conflituosa e, por ve/es,
violenta, m as que tam bém é tolerante e, m uitas vezes, divertida. A doeu
ça segue no território, mas um hospital nunca está longe dem ais, c o
tratam ento é gratuito.
Para a m aioria de nós é difícil aceitar que esse tipo de vida, tão pouc< >
atraente na superfície, seja livrem ente escolhido. Pensamos, por certo, que
deve haver algo errado com aqueles que escolhem viver dessa maneira.
Sem dúvida devem sofrer algum a doença ou anom alia mental que ex
plique tal escolha e, portanto, devem os ter pena deles. Ou ainda, com o
acreditam os assistentes sociais que visitam os abrigos, todos os que lá se
hospedam são vítim as de infortúnios dos quais não têm culpa e que estão
além de seu controle. A sociedade, com o é representada pelos assistentes
sociais, deve, portanto, resgatá-los. Consequentem ente, os assistentes so­
ciais escolhem alguns dos m oradores m ais antigos dos abrigos para aquilo
que cham am de reabilitação, o que quer dizer rem anejam ento para algu­
ma residência cadastrada no Serviço N acional de Habitação, completado
com doações de algum as centenas de dólares para a com pra daqueles bens
de consum o cuja ausência, hoje, é considerada pobreza. N ão é difícil im a­
ginar os resultados: após um mês, o aluguel do apartamento continua sem
pagam ento e o dinheiro doado foi gasto, não em refrigeradores ou fornos
de m icro-ondas. Alguns dos m oradores de rua m ais experientes já foram
rem anejados umas três ou quatro vezes, o que lhes assegurou períodos
curtos, porém gloriosos, de extrem a popularidade no bar à custa do paga­
dor de im postos.
Dizer, contudo, que a escolha é livre não significa endossá-la com o
boa ou sábia. N ão há dúvidas de que esses hom ens vivem de maneira
com pletam ente parasitária, em nada contribuindo para o bem comum e
abusando da tolerância da sociedade para com eles. Quando famintos, têm
apenas de com parecer à cozinha de um abrigo; quando doentes, vão ao
hospital. São profundam ente antissociais.

111 N j i r j r i i i
\ \m Im 1
I i li/cr 111 li I i i i >|11 i i |i |. . i livre M.II» i' liry .u i |i lr i .11 ri, .1 di i 111111«*11

• i r , r xlrm .is. I )ni.i p,u crl.i .ij>nilít ativa <I<> contc xl o s< »i i.il drsscs nun .i
. ......... de rua é unia so rird adr preparada a nada exigir drlrs. lislá, dr l.iio,
I>ii p.irada para subsidiá-ios na bebedeira —na em briaguez até a n iorlr li»
■I' ’ . rlrs, sem exceção, consideram isso parte da ordem natural r iniulávrl
■11 , r< lisas c|ue a sociedade deve prover; todos, sem exceção, cham am <>at< >
• Ir rrccber pensão da previdência social de “ ser p ago” .
lissrs “ cavalheiros” da rua são acom panhados na ausência de residrn
■ i.i lixa por um núm ero cada vez m aior de jovens que fogem de seus larrs
■I r s a s i rosos, onde a ilegitim idade, a sucessão de padrastos abusivos e .1
.lusriicia total de autoridade é a norm a. Som os constantemente advertidos
por aqueles esquerdistas cujas panaceias do passado contribuíram tão lar
1.11 nr 11 te para essa situação miserável que a sociedade (leia-se o governo)
drvr (ázer ainda m ais por essas pessoas tão dignas de pena. Mas a (alia
dr 11111 lar não é, ao m enos na sociedade de hoje, a instância especial dr
uma lei, enunciada pela prim eira vez por um colega m édico britânico, dr
<1111- a m iséria aumenta para satisfazer os m eios disponíveis para redu/i l.i'
li o com portam ento antissocial não aumenta na proporção das desculpa:,
criadas pelos intelectuais?

1996

I (« 11 lli li |( Ir S n i i i l u m I IM ' I"" " I 1 •»11M*1


que cham am os de pobreza? N ão aquilo que Charles Dickens,
W illiam Blake ou H enry M ayhew cham avam . H oje nin guém
espera seriam ente passar fom e na Inglaterra ou viver sem água
corrente, cuidados m édicos ou m esm o televisão. A pobreza fo i red efin i­
da nos países industriais, de m odo que nin guém na cam ada m ais baixa
da distribuição de renda seja, p or assim dizer, pobre ex officio —pobre em
vi ilude de ter m enos que o rico. E claro que, p or essa lógica, a única
m aneira de elim inar a pobreza é pela redistribuição igualitária da riq u e­
za - m esm o se, com o resultado, a sociedade com o um todo venha a se
lornar m ais pobre.
Tal redistribuição era o objetivo do Estado de Bem-Estar Social. N o
entanto, ele não elim inou a pobreza, apesar das enorm es quantias gastas
c não obstante o fato de os pobres estarem agora substancialmente mais
ricos - de fato, pelos padrões tradicionais, não são pobres de m odo algum ,
línquanto existirem ricos, deverão existir pobres com o agora os definim os.
Certamente estão na m iséria - um a descrição m uitíssim o mais precisa
da condição dessas pessoas do que pobreza - apesar de a renda per capita
ter aumentado em três vezes, m esm o a do pobre, desde o final da última
juierra. O m otivo de estarem nessa situação requer um a explicação - e
cham ar essa situação de pobreza, ao em pregar um a palavra m ais apropria-
(l.i para a Londres de H enry M ayhew do que para a realidade atual, faz com
q u e n ã o c a p L e n u >s q u ã < > g r a n d e f< >i a uiiidan<,a n o q u i n h ã o " d o s |><>br<

N ão há dúvida de que “ sem pre tereis p< >l>ies c< m vosco” ,1mas h o j e n.u >s.i< >
pobres da m aneira tradicional.
0 pobre inglês vive um a vida mais curta e m enos saudável q u e o m a r.
próspero de seus compatriotas. M esm o que não conheçam os as eslalís
ticas, o problem a de saúde seria óbvio em um a observação fortuita das
áreas ricas e pobres, assim com o os observadores vitorianos notaram que
os pobres eram, em m édia, o equivalente a um a cabeça mais baixos que
os ricos, graças a gerações de desnutrição e difíceis condições de vida. As
razões das diferenças atuais na saúde, todavia, não são econôm icas. Não há
hipótese de o pobre não conseguir com prar um rem édio ou seguir uma
dieta nutritiva; nem viver em casas superlotadas sem higiene adequada,
com o na época de Mayhew, ou trabalhar quatorze exaustivas horas por dia
dentro de m inas com ar poluído ou m oinhos. Epidem iologistas estimam
que o alto consum o de cigarro entre os pobres é responsável por metade
da diferença na expectativa de vida entre as classes m ais ricas e m ais pobres
da Inglaterra - e fum ar tanto assim custa m uito!
Também notório é o índice de m ortalidade infantil, duas vezes mais
alto na classe social m ais baixa do que na m ais alta. A taxa de mortalidade
infantil de crianças ilegítim as, no entanto, é duas vezes m aior que a de
crianças legítim as, e a taxa de ilegim im idade aumenta drasticamente à m e­
dida que descem os na escala social. Assim , a deterioração do casamento, a
ponto de quase desaparecer na classe social m ais baixa, pode m uito bem
ser a responsável por grande parte do excesso de m ortalidade infantil. É o
m odo de vida, e não a pobreza per se, que mata. Hoje, a causa m ais com um
de m orte entre os 15 e 44 anos é o suicídio, que aum entou m ais precipi­
tadamente entre aqueles que vivem no m undo dos padrastos tem porários
da subclasse e da conduta sem restrições por lei ou convenção.
Assim com o é m ais fácil reconhecer a saúde prejudicada em alguém
que não vem os por algum tem po em vez de reconhecê-la em uma pes
soa que vem os diariamente, da m esm a m aneira um visitante, chegando
a um a sociedade vindo de outro lugar, muitas vezes pode enxergar mais

1 São Jo ã o 12, 8.

\ \li 1m iui S m | r li i
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I i , i 11 1.11 |ii ii u m , m i i u 11 11i i m i 11o s p i t a l . E I a s e i n a n l e o b s e r v a I < >s < l< • •11v i >I v < ■i

1111 i i r e s p o s t a à m i s é r i a b r i t â n i c a .
No início, estão entusiasm ados e dão igual atenção a todos de iii.inei
i i ;.;i nerosa e sem hesitação, independente da condição econôm ica. Ide-.
11H -.mos provêm de cidades —Manila, Bom baim , Madras —onde, em mm
i " 1. dos casos que vem os em nosso hospital, os pacientes simplesmente
ui abandonados para morrer, muitas vezes, sem socorro algum, hc.un
impressionados por nosso zelo ir além do m eramente m édico: ninguém
In .i sem com ida, roupas, abrigo ou m esm o entretenimento. Parece exislu
..... . agência pública para lidar com cada problem a im aginável. Por umas
-.emanas pensam que tudo isso representa o ponto alto da civilização, es
peeialmente quando recordam os horrores nos seus países de orij;em
A |ii )breza —com o eles a conhecem —foi abolida.
Em pouco tempo, contudo, com eçam a sentir um vago desconíorio
I Ima médica filipina perguntou-m e, por exem plo, por que tão poucas pes
soas pareciam estar agradecidas por aquilo que estava sendo feito por elas
< > que suscitou a pergunta fora um drogado que, após tom bar por um.i
nvcrdose acidental de heroína, foi levado ao nosso hospital. Precisou de cui
d.idos intensivos para recuperar os sentidos, com m édicos e enferm eiras
lratando dele durante toda a noite. Suas prim eiras palavras para o médii o
quando, subitamente, recuperou a consciência, foram : “ Me dá a merda de
um cigarro pra b o lar!” (enrolar manualm ente o fum o). A grosseria impe
i iosa não proveio de um a sim ples confusão: continuou a tratar a equipi
lo m o se eles o tivessem sequestrado e o m antivessem no hospital conli.i i
sua vontade, para realizar experiências. “ Deixa eu sair fora dessa p o rra'"
N.ío havia qualquer reconhecim ento naquilo que havia sido feito poi i I'
tam pouco gratidão. Caso acreditasse que havia recebido algum benelii m
daquela estadia, bem , isso era, sim plesm ente, obrigação.
Meus m édicos de Bom baim , Madras ou Manila assistem a esse lipo
de conduta boquiabertos. N o início, supõem que os casos testemunhadi is
são falhas estatísticas, um a espécie de erro de amostragem, e que, passa
do certo tempo, encontrarão um a parcela melhor, mais representai iv.i da

Itrnliililil) S miI i I mIJI Hlli I I ’m| III-/IIV


p<)pulaça<>• Aos poucos, no enlanlo, In ,i < l,uo para eles que o que v li.11 n 1
representativo. Quando qualquer benelieio recebido é 11111 direilo, 11.10 há
lugar para boas maneiras, m uito m enos para gratidão.
Cada caso os faz reconsiderar a opinião favorável inicial Deniio di
p ouco tem po já terão experim entado centenas, e o ponto de vist.i dd< \
terá m udado com pletam ente. Semana passada, por exem plo, para o .issi >111
bro de um m édico recentem ente vindo de Madras, um a m ulher de quasi
trinta anos deu entrada em nosso hospital na condição mais com um <im­
os transform a em nossos pacientes: um a overdose intencional. Inicial 11 u-111 < ,
não queria falar nada além de que desejava partir dessa vida, de que já es
tava cansada daqui. Perguntei um pouco mais. Antes de tom ar a overdose, se 11
ex-nam orado, pai do seu filho m ais novo de oito m eses (que agora estava
com a m ãe desse ex-nam orado), invadira seu apartamento, arrebentando
a porta da frente. Destruiu o interior do apartamento, quebrou todas a-,
janelas, roubou 110 dólares em dinheiro e arrancou o telefone da parede.
—Ele é m uito violento, doutor - contou que ele quebrara o seu pole
gar, costelas e a m andíbula ao longo dos quatro anos que ficaram juntos, e
seu rosto precisou ser suturado diversas vezes. - Ano passado precisei pói
a polícia atrás dele.
—O que aconteceu?
- T ir e i as acusações. A m ãe dele disse que ele iria mudar.
Outro problem a era estar grávida de cinco semanas e não querer o
bebê.
— Quero m e livrar disso, doutor.
—Q uem é o pai?
Era o ex-nam orado violento, é claro.
—Ele a estuprou?
—Não.
—Logo, você concordou em ter relações com ele?
—Eu estava bêbada; não foi amor. Esse bebê veio do nada e m e pegou
de surpresa. N ão sei com o isso aconteceu.

Perguntei a ela se pensava ser boa ideia ter relações sexuais com 11111 lio
mem que repetidamente batia nela e de quem ela disse que queria separar se.

\ \ H III II11 ' >111 ll l l l


l i c< i i 11| i l i e . K | i i, ' li i i i i i i i . Á s v e z e s a v id a ac a lia m -im Ii i a s s i m

() c|iie ela sabia a respeito desse hom em antes de ter relações com ele?
1 i iiilieceu-o em um a boate; e ele foi im ediatamente m orar com ela porque
ii.ui tinha onde ficar. Ele tinha um filho com outra m ulher e não pagava
|icnsão a nenhum dos dois. Estivera na prisão por assalto. Tom ou drogas.
I Junca trabalhou, a não ser em uns “ bicos” . E claro que nunca se ofereceu
|iara ajudá-la com dinheiro algum ; ao contrário, a conta do telefone dela
i 11 sc eu vertiginosam ente.
lila nunca fora casada, mas tinha dois outros filhos. A prim eira, um a
menina de oito anos, ainda vivia com ela. O pai era um hom em que ela
abandonara porque descobrira que ele fazia sexo com m eninas de doze
anos. A segunda criança era um m enino, cujo pai era “ um idiota” com
quem passara apenas um a noite. Aquela criança, agora com seis anos, vivia
com o “ idiota” , e ela nunca o vira.
O que sua experiência tinha ensinado?
— N ão quero pensar nisso. O Serviço de Habitação irá m e cobrar pel
eslrago, e não tenho esse dinheiro. Estou deprim ida, doutor; não estou
leliz. Quero m e mudar, ir para longe dele.

Mais tarde, naquele dia, sentindo-se solitária, telefonou para o ex


nam orado e ele foi visitá-la.
Discuti o caso com o m édico recém -chegado de Madras, que sentia
que havia entrado em um m undo insano. N em m esm o nos sonhos mais
l<iiicos ele havia im aginado que poderia ser assim. Não havia nada em Ma
dras que pudesse ser com parado com aquilo. Perguntou-m e o que acou
teceria ao feliz casal.
-- Encontrarão um apartamento novo para ela. Com prarão m óveis m .
vos, um a televisão e um a geladeira, pois viver sem isso hoje em dia é de
uma pobreza inaceitável. N ão cobrarão da m oça nada pelos danos no au

ligo apartamento porque ela não pode pagar nada e por não ter sido ela

quem o danificou. Ele sairá dessa ileso e sem ter de pagar nada. Uma ve/
acom odada no novo apartamento, ela o convidará para ficar por lá, eli­

d e , struirá tudo de novo e, então, encontrarão outro lugar para ela morai

M i n l i i I n « 1« S<iiiilMu i •* V " 1 I ' " I i i i ■/ 11


Não há nada, de lato, (|ur ela possa la • t i pn .n a n c ir na perda da ohi iy;a
ção estatal de oferecer casa, comida < d lvrr.ão

Perguntei ao m édico de Madras se pobreza seria a palavra que ele ir.a


ria para descrever a situação dessa mulher. Disse que não: o problem a dela
era não aceitar lim ites ao próprio com portam ento, ela não temia a possi
bilidade de passar fom e, a condenação por parte dos pais, dos vizinhi>s <>11
de Deus. Em outras palavras, a m iséria da Inglaterra não era econômica,
m as espiritual, m oral e cultural.
Muitas vezes levo m eus m édicos do terceiro m undo para um a breve
cam inhada do hospital à prisão próxim a. São os setecentos metros mais
instrutivos. Em um bom dia - bom dia para fins didáticos - há, no trajei<>,
umas sete ou oito poças de vidro estilhaçado na sarjeta (nunca acontece
não haver nenhum a, exceto durante o m ais inclem ente dos climas, quatnl< >
até m esm o o ladrão de carros m ais m aníaco controla os im p u lso s).
—Cada um a dessas poças de vidro representa um carro que foi ar rom
bado — digo a eles. — Haverá m ais amanhã, caso as condições m eteoroló
gicas perm itam .

As casas ao lon go do percurso são, com o são as habitações públi


cas, bem decentes. As autoridades locais, finalm ente, aceitaram que juntai
pessoas em inexpressivos e gigantescos blocos de concreto à Le Corbusin
era um erro, e passaram a construir casas individuais. Somente algumas
janelas estão tapadas. Por certo, em com paração com a casa dos pobres em
Bom baim , Madras ou Manila, são bastante espaçosas e luxuosas. Cada uma
delas tem um pequeno jardim gram ado na frente, com um a cerca viva e
um quintal bem m aior; a m etade tem antena parabóhca. Infelizmente, os
terrenos estão tão cheios de entulho quanto o lixão m unicipal.
D igo aos m eus m édicos que nos quase nove anos em que faço esse
percurso quatro vezes por semana, nunca vi, em nenhum m om ento, al
guém tentando lim par o jardim . Já vi, no entanto, mais entulho ser des
pejado; em um bom dia chego até a ver algum a das pessoas da parada de
ônibus jogarem algo no chão, m esm o estando a m eio metro da lata de lixo
—Por que não limpam os jardins? —pergunta me um médico de Bombaim

loll \ \iiIn nu S m jrlíi


Um.) ho.i |><-1y,11111.1 .illii.il, ,i m aioria das c.in.is possui ao menos um.i
I)■ so.i com (empo Iivk 'Icxla vez que fiz, essa pergunta, a resposta sempre
loí ,i mesma: já talei com a administração local a respeito disso, mas eles
.mula não vieram . C om o inquilinos, sentem ser responsabilidade <lo se
uliorio manter o quintal e o jardim lim pos, e não estão dispostos a làzei
o trabalho da administração local, m esm o que isso signifique ter de abrir
■.iminlio no m eio do lixo - o que literalm ente fazem. Por um lado, a au
ii ii idade não pode dizer a eles o que fazer; por outro, tem um a infin ilude
de responsabilidades para com essas pessoas.
Pedi aos m eus m édicos do terceiro m undo que exam inassem de peru >
0 lixo. Deu-lhes a im pressão de que nenhum britânico é capaz de andar
mais de dez m etros sem consum ir junk food. Cada arbusto, cada gram ado, e
,iie m esm o cada árvore estavam enfeitados com em balagens de chocolates
on invólucros de com ida fast-food. Latas vazias de cerveja e refrigerantes
lli .mi espalhados pela sarjeta, nos canteiros de flores, em cim a das cercas
vivas. Mais um a vez, em um bom dia, realm ente observam os alguém arre
messando um a lata cujo conteúdo já fora consum ido, da m esm a maneira
que um russo joga fora o copo de vodea.
Além do desdém social pelo bem com um que cada um desses aios
de espalhar detritos encerra (centenas p or sem ana no intervalo de ape
nas setecentos m etros), a enorm e quantidade de com ida consum ida na
1 u.i tem im plicações m ais profundas. D igo aos m édicos que, em todas as
m inhas visitas às casas dos brancos na área, e que já fiz centenas de ve
/es, nunca —n en hu m a vez - vi qualquer in d ício de algu ém cozinhand« >
< > mais p ró xim o dessa atividade que já testem unhei foi alguém aque
i eu do um a com ida industrializad a p ré-pronta, n orm alm ente no m icro
i uidas. E, por essa m esm a razão, nunca vi sinal algum de refeições f cii. e.

em com um com o um a atividade social — a m enos que duas pessoas eo


1 1 h •n d o ham búrguer juntas na rua enquanto cam inham seja c o n s id e ra d o

uma alividade social.


Isso não quer dizer que não vi pessoas com endo em casa; ao con
ii.ii i o , sempre estão com endo quando chego. Com em sozinhas, m esm o
se eslão presentes outros m em bros da casa, e nunca se sentam à mesa
I ,i,io afundados no sofá diante da televisão.Todos na casa com em quando

|hl
querem e no horário <|(ic escolhem A i < ni< .m o em i i n u questão 1.10 < 1«
m entar quanto comer, não há autodisciplina algum a, mas, em vez dl:.:.o,
um a obediência im periosa ao im pulso. É desnecessário dizer que .1 o p o i
tunidade de conversa ou socialização que oferece um a refeição tomada em
conjunto é perdida. As refeições inglesas são, portanto, solitárias, pobre:,,
desagradáveis, brutais e curtas.
Pedi aos m édicos que com parassem as lojas em áreas habitadas poi
brancos pobres e aquelas em que vivem os im igrantes indianos polm s
É um a com paração instrutiva. As lojas dos indianos estão sempre apiuh.i
das de todos os tipos de produtos frescos e atraentes que, pelos padrões
dos superm ercados, são surpreendentem ente baratos. As m ulheres eslor
çam -se para com prar bem e fazem distinções sutis. N ão existem comidas
pré-prontas. Em com paração, um a loja frequentada por brancos pobres
oferece um a gam a restrita de produtos, na m aioria, com idas pré-prontas
relativam ente caras que requerem , no m áxim o, adição de água quente.
A diferença entre os dois grupos não pode ser explicada por diferen
ças de renda, pois são insignificantes. A pobreza não é a questão. A disposi
ção dos indianos para escolher cuidadosam ente o que com em e para tratai
as refeições com o ocasiões sociais im portantes que im põem obrigações
e, por vezes, requerem a subordinação da vontade pessoal é indicativa de
toda um a postura diante da vida que muitas vezes lhes perm ite, apesat
dos baixos rendim entos, subir 11a hierarquia social. De m odo alarmante,
no entanto, a ânsia dos filhos de im igrantes de pertencer à cultura local
predom inante está com eçando a criar um a subclasse indiana (ao m enos
entre os rapazes): o gosto por fast-food, e tudo m ais que tal gosto encerra,
está crescendo rapidam ente entre eles.
Quando tal desm azelo alim entar espraia-se para todas as outras es fé
ras da vida, quando as pessoas satisfazem todos os apetites com o m esm o
m ín im o esforço e falta de com prom isso, não é de admirar que se deixem
cair na arm adilha da m iséria. N ão tenho problem as em m ostrar para os
m eus m édicos da índia e das Filipinas que a m aioria de nossos pacientes
aplicam a postura fast-food a todos os prazeres, obtendo-os da maneira mais
fugaz e com o m ínim o esforço. N ão têm atividades culturais próprias, e
suas vidas parecem ser, até m esm o para eles, sem propósito. N o Estado de
hi ui listai So( ial, .1 11ii i.1 sobrevivência não é <> 11ii-.in<i leito heroico <111< .
digam os, nas cidades da África e, portanto, não conlérc aulorrespeilo, que
e ,i precondição do autoaprim oram ento.
Ao fim de três meses, m eus m édicos, sem exceção, mudaram a opi
in .io original de que o Estado de Bem-Estar Social, com o exem plificado i u
Inglaterra, representa o ápice da civilização. Ao contrário, veem com o isso
a>’<n a está criando um m iasm a de apatia subsidiada que frustra as vidas d< >s
■ai postos beneficiários. Com eçam a perceber que o sistema de Bem-Estar,
por não fazer quaisquer julgam entos m orais ao alocar retribuições e c o n ò
micas, prom ove o egoísm o antissocial. O em pobrecim ento espiritual da
população parece-lhes pior do que qualquer coisa que já viram antes nos
próprios países. E o que veem é pior, é claro, porque poderia ser muito
11icllior. A riqueza que perm ite que todos tenham, sem esforço, com ida cn i
quantidade suficiente poderia ser algo libertador, e não aprisionador. Ao
contrário, isso criou um a grande casta de pessoas para quem a vida é, n.i
realidade, um lim bo em que nada têm a esperar ou a temer, nada a ganhai
o u a perder. E um a vida esvaziada de significado.
“ N o geral” , disse-m e um m édico filipino, “ é preferível a vida nas la
velas de M anila” . Disse sem quaisquer ilusões com relação à qualidade de
vida em Manila.
Esses fizeram a m esm a jornada que eu m esm o fiz, mas em direção
oposta. Ao chegar com o jovem m édico na África há 25 anos, prim eira
mente, fiquei horrorizado com condições físicas de um tipo que nunca
experim entara antes. Pacientes com insuficiência cardíaca que andavam
(iilenta quilôm etros debaixo de um sol escaldante, com respiração ofegan
te e pernas inchadas, para conseguir tratamento - e depois voltavam camí
n liando para casa. Tumores ulcerados e supurados eram comuns. Homens
descalços contraíam tétano pelas feridas infligidas pelo bicho-de-pé que
punha ovos entre os dedos. A tuberculose reduzia as pessoas a esqueletos
vivos. As crianças eram m ordidas por surucucus e os adultos eram atacad<>s
por leopardos.Yi leprosos cujos narizes haviam apodrecido e lunáticos que
vagavam nus debaixo de chuvas torrenciais.
Mesmo os acidentes eram espetaculares. Cuidei dos sobreviveu
les de iiui acidente na Tanzânia no qual, pela falta de freios — o que era

MmlliIiii 1« MHiil hui **M"' * ! I ■ i l(. t


perfeitam ente norm al e esperado i u s < i h nusi.iiu ias , o cam inhão tom e
çou a derrapar ladeira abaixo. Estava carregado de sacas de m ilho, sohre
as quais encontravam-se vinte passageiros, dentre eles, muitas crianças
Ao derrapar, os passageiros, em prim eiro lugar, e depois o m ilho, caíram
Quando cheguei ao local, dez crianças m ortas estavam alinhadas à margem
da estrada, dispostas em ordem ascendente, tão bem arranjadas quanto os
tubos de um órgão. Foram esmagadas e sufocadas pelas sacas de m ilho que
caíram em cim a delas: um a m orte tristemente irônica em um país com
escassez crônica de alimentos.
Adem ais, a autoridade política nos países em que trabalhei era ar
bitrária, inconstante e corrupta. Na Tanzânia, por exem plo, é possível
identificar só pela circunferência quem são os representantes do único e
onipotente partido político, o Partido da Revolução. Os tanzanianos são
m agros, mas os hom ens do Partido são gordos. O representante do partido
da m inha aldeia m andou um hom em para a prisão porque a esposa do
sujeito recusou-se a dorm ir com ele. Na N igéria, a polícia aluga as armas
para os bandidos à noite.
N o en tan to, nada do que vi - nem a pobreza ou a opressão ostensiva -
jam ais teve o m esm o efeito devastador na personalidade humana que o in ­
discrim inado Estado de Bem-Estar Social. Nunca vi a perda de dignidade,
o egocentrism o, o vazio espiritual e em ocional ou a absoluta ignorância de
com o viver que vejo diariam ente na Inglaterra. N um a espécie de manobra
de duplo envolvim ento, portanto, eu e os m édicos da índia e das Filipinas
chegam os à m esm a e terrível conclusão: o p ior da pobreza está na Ingla­
terra —e não é a pobreza material, mas a pobreza da alma.

1999

A
N V m In i u i H m c I n
té bem pouco tempo atrás, supunha que a extrema feiura da cidadi
em que vivo era atribuível à Luftwaffe. Acreditava que as construi,i »*■*.
altas, baratas e sem nenhum encanto que desfiguram a paisagem
urbana tinham sido construídas pela necessidade de preencher os vazios dei
xados pelos bombardeiros Heinkel. Passei boa parte da infância brincande m u
■ibrigos antiaéreos abandonados nos parques públicos e, apesar de ter nascidi >
.ilguns anos após o fim da guerra, a grande conflagração ainda tinha uma iu
lluência considerável na imaginação das crianças britânicas de minha gcraç.K >
Descobri quão errado estava quando entrei em um a loja cujas parede,
eram decoradas com grandes fotos antigas da cidade antes da guerra I m .
na ocasião, um lugar agradável, à m oda grandiloqüente dos vitoriano:,
( ada construção, sem dúvida de m aneira pom posa e ridícula, balcj.iv.i rei
lo orgulho m unicipal. A indústria e o trabalho eram glorificados n,i <■• *
iuária, e um germ e dos tem plos gregos e da Renascença italiana nuiir.n ,i
a arquitetura neogótica veneziana.
— Foi um a pena essa guerra - disse à vendedora, que tinha idade p,i i
relembrar dos velhos tem pos - , veja com o a cidade está agora.
- A guerra? - disse e la .- A guerra não teve nada com isso. Foi o Conselln >

O Conselho M unicipal - os representantes eleitos do povo , soube


causou m uito mais danos às construções da cidade nos anos de 19 S() <•
1960 do que a força aérea de Herm ann Gôring. Dr fat<>, conseguiram
transform á-la em um terrível ordálio visual para quem quer que tenha ,i
m enor sensibilidade visiva.
A prim eira das razões para esse vandalism o arquitetônico em larga
escala foi o prolongado asco a tudo o que era vitoriano. Na Grã-Bretanha
isso ficou particularm ente pronunciado após a guerra porque, pela pri
m eira vez, tinha ficado m uitíssim o evidente o quanto a nação decaíra cm
influência e com o potência m undial desde o apogeu vitoriano; um a deca
dência que se tornou fácil de suportar, em termos psicológicos, pela d ila
m ação firm e e descarada não só dos próprios vitorianos, mas igualm enic
de todas as suas ideias e obras.
Fui testem unha de um exem p lo notável dessa repugnância em mi
nha p ró p ria casa. M eu pai, um com unista e, portanto, predisposto a
ver o passado sob um a luz lúgubre, especialm ente se com parado às
inevitáveis glórias pós-revolucion árias que haveriam de vir, com prara
várias pinturas vitorianas na Sotheby’s durante a guerra p or dez shilling*
cada. (Os com unistas não necessariam ente se op õem a tirar vantagem
de um a baixa de preços tem porária.) M anteve as pinturas no sótão da
casa. Então, um dia na década de 1960, m uito arbitrariam ente, achou
que elas estavam ocupan do m uito espaço - ao contrário das frutas em
lata que arm azenara durante a G uerra da C oreia na expectativa de que
o con flito, aos p oucos, tornar-se-ia um a guerra no terceiro m undo c
que, agora, estão com eçando a explodir, m as sem pre as guardou. Pegou
todas as pinturas, exceto um a, e fez um a fogu eira, um ato que m esm o
aos dez anos parecia ser de um terrível barbarism o. Im p lo rei-lh e que
não o fizesse - que doasse as pinturas se não gostava delas - m as não,
el^s tinham de ser destruídas.
1 Lá estava a arrogância m odernista não apenas com relação ao passado
vitoriano, mas a todos os séculos anteriores - m inha cidade varrera muitc >s
dos prédios do século XVIII juntam ente com os edifícios vitorianos e edu
ardianos. Os arquitetos britânicos finalm ente se equipararam ao arquiteto
italiano M arinetti que, sem exceção, condenou o passado, que exigia a
total ruptura com tudo o que existira antes, que ridicularizou todos os cs
tilos anteriores e que adorou som enlc aqucli •. ali lltulir, da modernidade
velocidade e I.iin.inllo I leni i e os projetos, est.iv.i o .ilerr.inieitto dos ( ,111,11
de Veneza e a substituição dos j)tilazzi por fábricas modernas.
Assim com o os arquitetos italianos de sua época estavam lecnoloj>ic,i
mente atrasados, da m esm a m aneira os arquitetos m odernizadoros brii.t
micos não estavam m ais na vanguarda e há m uito a vitória da m odernidade
|.i passara aos Estados Unidos. Os arquitetos acreditavam que a moderni
d.ide linha um valor que transcendia a todas as demais virtudes; pensavam
que poderiam despertar o país de seu torpor nostálgico, arrastando o ,10
■.eculo XX ao em pregar o que lhes parecia o mais m oderno dos matei ur,
de construção - o concreto armado - em tudo. Por isso, dentre muitos
outros crim es, derrubaram todos os elegantes ornatos de ferro batido vi
torianos da estação de trem da cidade, com os esplêndidos tetos abauladi
sobre as plataform as e trilhos e, em seu lugar, erigiram um a construção
.ibrutalhada de aço e concreto esm aecido; um plano que não se mostrou
mais prático e funcional que o antigo.
Minha cidade está longe de ter sido a única a sofrer esse fervor dem<ill
tório bakuninista dos modernizadores (com o disse Mikhail Bakunin, ,1 p.u
xão por destruir também é um a paixão criativa). Até as pequenas cidades do
interior não passaram despercebidas: Huntingdon, o local de nascimento de
( )li ver Cromwell, ganhou um anel rodoviário de aparência muito feia c des
funcional, que ao m esm o tempo dificulta e torna perigosa a entrada e saíd.i
da cidade, cujo estudo por arquitetos e planejadores urbanos ao redor do
mundo, hoje em dia, é feito com o um a admoestação. Shrewsbury, o local <l<
nascimento de Charles Darwin e a cidade que por vários séculos conseeuni
combinar os estilos arquitetônicos mais diversos de m odo que a p.us.ip m
urbana com o um todo fosse maior que a soma das partes, foi arruinada c< .......
experiência estética por uns prédios modernos de escritórios v is u .ilm e n h
inoscapáveis e edifícios-garagem de vários andares. Seria igualmente depi 1
mente listar as cidades e vilarejos ingleses estragados por esse tratamente >
São as habitações públicas, no entanto, que exem plificam de m.mei
ra mais clara as ideias daqueles que transform aram a paisagem urbana
inglesa durante as décadas de 1950 e 1960. Aí a nova estética está com
binada com o zelo socialista por reform a para produzir um desastre em
m últiplos níveis.

M i m i I m I i u Ii ' N i h i i I h i i i D » • iilijiiH h i l ím im ii um IN im iH ? I í »7
Depois da guerra, bini pcnsiinieoue<miaram univeisalmente <|u<- a m>
ciedade britânica pré-guerra era totalmente injusta. A classe tiahalhadii
ra, diziam , fora vergonhosam ente explorada, com o eslava cvidenlr na>i
grandes desigualdades de renda e nas habitações apinhadas de yenie l lm
im posto de renda fortem ente progressivo (que em determ inado .......t"
chegou a 95%) iria retificar as desigualdades de renda, ao passo <|m i
rem oção dos bairros pobres e a construção de projetos em larga ca ala
m itigaria o problem a habitacional.
Os reform adores de classe m édia pensavam na pobreza em icrnm',
totalmente físicos: insuficiência de alim ento e calefação, falta de espa<,o
Com o, perguntavam, as pessoas conseguiriam as boas coisas da vida se as
necessidades básicas eram providas de m odo tão inadequado? O que sig
nificaria liberdade (recordo m eu pai perguntando isso) diante da ausêui la
de condições decentes de m oradia? U m a vez que os problem as sociais
com o o crim e e a delinquência (que logo descobriríam os estarem no iuí
cio) eram atribuíveis à privação física - ao m eio, e não ao crim inoso ou
ao delinquente —a construção de casas decentes resolveria imediatamente
todos os problemas.
Mas o que era um a m oradia decente? U m funcionário público, Parkei
M orris, deu um a resposta: um determ inado núm ero de metros cúbicos
de espaço vital por habitante.1O M inistério da Habitação adotou o padrai •
Parker M orris para todas as habitações públicas; ele regia o tamanho e nu
m ero de quartos —e isso era tudo.
Nas circunstâncias, quem ficaria surpreso em saber que o estilo ai
quitetônico de construção, se é que pode ser cham ado de estilo, d e l.e
Corbusier chegou a dom inar as obras das habitações públicas, mesmo
depois de já ter se m ostrado desastroso em um lugar —em Marselha, <>n<li
fora dado a Le Corbusier o controle total? Era o m od o m ais sim ples e mais

1 D en tre as diversas n o rm a s d o p ad rão Parker M o rris está a p ro v isão d c t as. r .

d e área total de 7 2 m 2, c r ité rio que atu alm en te, n a cid ad e de L on d res, jsu il......
m ais 10% de área total. Vale le m b ra r q u e tal m e tra g e m é m u ito m a io r que i is
p a d rõ e s de resid ên cias p op u lares d o Brasil, q u e o scila m , em m éd ia, e n trr I ’ <
6 2 m 2. (N .T .)

Ii.ft VA li In iui ' wi i | H i i


I Mi ,iI() de sujeil.ii m ,ii i , i v ’(>i,i, sacrossauU>s padrões l’.irkei Mori is, Ali iu
dc.su, l.e Corbusier er.i mu espírito afim de burocratas e planejadores
iiilu n os - não só um arquiteto, m as um visionário e um aspirante ,i re
li ii uiador social. De Paris, escreveu: “ Im agine todo esse lixo, que até ,i;;< ir.i
I i spalliou sobre o solo com o um a crosta seca, elim inado e rem ovido,
Milisiiiuído por im ensos cristais lím pidos de vidro, de quase duzentos
metros de altura!” . Nesse espírito, m uito da m inha cidade, especialmente
r. irrraced houses2 da classe trabalhadora, foram elim inadas e rem ovidas,
p.ii.i serem substituídas pela “ cidade vertical [...] banhada por luz e ar"
i li I,e Corbusier. Pouca luz, pouco ar!
Não ocorreu a nenhum a autoridade que, talvez, algo mais que lima
mera crosta suja estivesse sendo varrido. Se os reform adores estivessem
i ert< >s, as pessoas que viviam em tais habitações pobres deveriam recordai
i' '„is condições com amargura; mas isso não ocorre. M esm o levando em
i onla o brilho róseo que a passagem do tem po confere à experiência, o
i |tie os meus pacientes contam -m e das ruas em que cresceram não just i Iir.»
i is relórmadores.
É verdade, as casas em que meus pacientes viviam careciam das eo
modidades básicas que hoje julgam os ser necessárias, com o encanamen
tos internos apropriados, por exem plo. Isso era algo difícil. Muitas dessas
imaced houses - conhecidas com o dois para cima, dois para baixo - eram
esteticamente indistinguíveis; mas com adaptações imaginativas e m ellio
rias (tardiamente em andamento, agora, no que restou de tal casario),
poderiam ter sido criadas acom odações m ais que adequadas, até m esm o
.igradáveis, sem a total destruição das com unidades resultante das demoli
çoes indiscrim inadas dos anos de 1950 e 1960.
Com o m e dizem os pacientes, um senso de com unidade real meu u
existia naquelas ruas de casinhas de tijolos verm elhos, de tal m odo que
os que m oravam poucas ruas adiante eram tidos com o estranhos, qua
se estrangeiros. N ão há dúvidas de que o sentim ento de com unidade
resultava de certo sectarism o m esquinho, mas tam bém significava que

’ T ip o d e casas g em in ad as d e d ois an dares, co n stru íd as e m fileiras, de aparêm l.i

idên tica e que se g u e m o cu rso da ru a. (N .T .)

M n iln ln ili ' In m h r íii * * ‘ lm |in imn I n /n 1 1 um IW m H?


a vicia não ora, naquela epoc.i, um.i ym i i .i I egos pci m .inruleiui
< < n

te in f la m a d o s q u e p o d e m s e r e n c o n i i .i d o N u o s p r o j e t o s l i a b i l . K .......u

corbusianos - egos inflam ados pelo fato de os m oradores it h m '.ulo


e continuarem a ser, tratados pelos form uladores de políticas públii .1
de m odo tão evidente, com o algo sem rosto, substituível, com o i ih.e.
passivas cujo único m od o de afirm ar a in dividualidade 6 com poii.u >
antissocialm ente. B rigo, lo go existo.
Esse senso de comunidade, agora destruído, permitiu que as pcwo.i*
resistissem a verdadeiras privações —privações que não eram autoi n11i>;id.i
com o muitas dos dias de hoje. Lem bro-m e de um paciente que desci eu u
m uito calorosamente a rua em que vivera quando criança “ até qu<
acrescentou, “ A d o lf Hitler fez com que nos m udássem os” . Que adm iu vrl
profundidade de caráter, sem reclamar diante do infortúnio que aqu< l.t
poucas palavras comunicavam! Atualmente, a vítim a de um bombardeio
com o esse provavelmente estaria, antes de mais nada, culpando o gove......
por ter declarado guerra aos nazistas.
Os projetos habitacionais foram construídos naquilo que (para a (ii.i
-Bretanha) era considerada velocidade recorde, e a quem quer que dcse|<
ver por si mesm o a reduetio ad absurdum da concepção materialista e racic>11.1
lista do que é a vida humana, não há nada m elhor que visitar um desse.
projetos. A ideia de que felicidade e bem-estar consistem na satisfação de
umas poucas e simples necessidades físicas e podem , portanto, ser plane
jados em benefício da sociedade por administradores benevolentes é, aqui,
causticamente ridicularizada.
Com o os arquitetos não previram, os espaços entre as grandiosas
form as geométricas dos blocos de apartamentos corbusianos funcionam
com o túneis de vento, transformando a m enor brisa em um furacãc >. ('o
nheço um a senhora idosa que já foi arrastada pelo vento tantas vezes que
não se atreve mais a fazer as suas compras. A própria natureza é translôi
mada em mais uma fonte de hostilidade. As calçadas são isoladas e mal
ilum inadas, de m odo que os estupradores podem abduzir pessoas com
segurança: duas de minhas pacientes foram estupradas a caminho para
m inha clínica, em uma passagem de pedestres a menos de uma ccnte
na de metros do local. Avisos fincados no gramado ao redor dos b lo c o 1.

\ \ i V ji l MM UI |I III
' li .11 >.11i.i1111-nI< 111 in M 1.................1<»■. ImI >11.11 ii >n.ii. ii I<ii i, ,ii 11 ii i .{ii11111
■I I I ll.ll IO (l( >llIJM I .1111< ■I. ,1 I i 111 ,11 I ,11K ,K los | >clo. I r\ll |i| III I l/\l >l’IM I I* 1

-i f IAl M i; |ST< ' íi UM lll f IM l< li i l'AKA T< 'I )OS.

(,)u.mio aos próprios prédios, são a desforra das “ máquinas de morai


■I' I.c <'(»rbusier —embora, talvez “ de existir” fosse mais preciso, li a supre
mi ii ia da linha e do ângulo retos: não há curvas, nenhum toque decoraiiv< i
iui ml, nenhum material para abrandar e dar aconchego ao metal, ao vidro
■ ui concreto. Não há nada que Mies van der Rohe, outro ditador dos re
i .limentos arquitetônicos, pudesse condenar com o “ especulação estética".
(> que os m oradores pensam de seus blocos de apartamentos? Votam
• "in urina. Os espaços públicos e elevadores de todos os blocos dos conjun
to s habitacionais que conheço estão tão profundamente im pregnados de
.......a que o odor é inextirpável. E tudo o que poderia ser amassado, o foi.
As pessoas que habitam esses apartamentos estão completamente isola
i las. () que as une é somente o barulho que fazem, muitas vezes considerável,
que perpassa paredes, tetos e assoalhos finos. Provavelmente estão desempre
sidas, não possuem muita instrução, e não são sociabilizadas pelo trabalho
nem por passatempos. Mães solteiras alojam-se aí, garantindo o empobre
i i mento do ambiente social dos filhos; e na Grã-Bretanha estamos agora na
segunda geração de crianças que não conhecem nenhum outro ambiente.
Em tais condições não é possível nenhuma vida cívica ou coletiva e,
p< irtanto, não há padrões de conduta: qualquer capricho individual é lei; e
■>s fisicamente mais fortes e mais im piedosos são aqueles que im prim em (>
i<mi e criam as regras. Quando uma paciente foi pendurada pelos calcanha
ies de uma janela de seu apartamento no décimo prim eiro andar por um
namorado ciumento, ninguém notou ser ou considerou um dever intei vii
I la mesma não estava ciente de que havia algo de moralmente repreensível
(em oposição a algo meramente desagradável) na conduta do namorai l<>
É verdade que, quando outro paciente m eu desceu de seu aparta meu
i< i no décim o quarto andar escalando seu bloco de apartamentos, a poli« ia
"licitou -m e que o visitasse para determinar se havia alguma explicação
II iécIica para seu comportamento. O que encontrei, todavia, convenceu me
de que nenhum eremita do deserto jamais esteve tão só quanto o moradoi
dos conjuntos habitacionais ingleses.

I (< iili< I íii It S m i i h r m * lin |in irn , h n /r iiu » . lu n


Meu paciente passara <>s úllinu nu • |< .u.i vida cheirando col.i cm
seu apartamento. A água e a eletricidade n nlum sido cortadas por l.ili.i de
pagamento. Vivia em constante escuridão, com as cortinas sujas sempie
cerradas. O apartamento não tinha m ais um a peça de m obília, mas no
m eio da sala de estar - no padrão Parker M orris - estava um antigo barril
de óleo que utilizara com o braseiro para queim ar os m óveis e mantê I"
aquecido. As brasas do últim o pedaço de cama brilhavam fracas.
Por que, perguntei, ele pegara um a corda e descera pela parede exlei
na do prédio?
- Porque - respondeu - temia que o braseiro pudesse pôr fogo em
seu apartamento e queria testar um a rota de fuga.
— E os outros m oradores do bloco? —perguntei.

U m olhar um tanto perplexo passou por seu rosto. Com o assim?


O vago receio de que o padrão Parker M orris não bastaria para um
vida urbana agradável passou, finalmente, pela cabeça dos funcionários
públicos britânicos. A resposta? Centros com unitários.
Esses tam bém eram construídos em concreto. Com grandes côm odos
m orrediços eram radicalm ente incapazes de manter a calefação, e desa
gradavelmente frios, m esm o no verão. N os porões, que poderiam servi:
com o câmaras de tortura, alojavam mesas de pingue-pongue. Tudo o que
poderia ter sido roubado já o fora, fosse ou não útil para o ladrão: na vei
dade, isso era mais pela prática. Afinal, o que alguém pode fazer com uma
rede de pingue-pongue na falta de um a mesa de pingue-pongue? Logo
ficou claro que a fórm ula Parker M orris acrescida de mesa de pingue
-pongue também não funcionava. Os centros com unitários tornaram se
locais em que os jovens desem pregados e os esquizofrênicos crônicos iam
para trocar segurança social por maconha.
Quando externei minhas opiniões sobre os conjuntos habitacionais brilâ
nicos para um arquiteto inglês —a quem, em m eu coração, imputava uma parti­
da culpa coletiva por aquela situação calamitosa - ele imediatamente replia >i i
“ Sim, mas os chiqueiros fazem os porcos ou os porcos fazem os chiqueiros?”
Uma questão profunda, talvez a mais profunda que pode ser feita. Afinal,
podemos levar o assaltante até a vítima, mas não podenu >s là/è lo assaltar.

\ \ li In lin i nu jr ln
No Iih k ><Ic m IM I ii 111 mu I Ii.i hi lac ion.11 p,n Ik ul.u menie ameaçat li >i .i< >
11 li.11i'lTla vez in i ( h.mi.ulo tuna mãe solteira ameaçava imolar seu li lho
Ii.ivi.i um bloco de apartamentos visivelm ente m enos desagradável que os
'lem.iis. lira totalmente habitado por pensionistas idosos: que não tinh.im
m.ir; lorça para vandalism os ou não tinham tal propensão. Se o padr.it)
I 11 ke r M orris não era condição suficiente para um a vida decente, tam bé m
n.io era condição suficiente para o oposto.
() que realmente fazia diferença, concluí, era a política de alocação tio
r.lema habitacional, que teve uma oferta limitada, apesar da recente expansãt >
• l.i i <instrução civil nas últimas décadas. Em condições de escassez, a justiça de
i< ri iiiiiava que as habitações existentes fossem alocadas segundo a necessidade:
e que prova m aior de necessidade poderia existir senão a patologia social?
Uma m ulher solteira desem pregada com três filhos de três pais tli
lerentes, e que nenhum dos pais oferecesse qualquer auxílio aos filhos,
poderia ser considerada em m aior necessidade que um casal com em
prego, regularm ente casado e com um filho, dos quais podem os esperar,
in innalmente, que cuidem de si mesmos. Mirabile dictu, logo havia patologia
st itial mais do que suficiente para ocupar o espaço disponível. Na verdatle,
tlesenvolveu-se um a espécie de corrida armamentista de patologia social
minha violência para com o próxim o subjuga suas tentativas de suicídio.
Os resultados dessa política foram verdadeiramente grotescos. Porque
.is habitações públicas são subsidiadas, m uitos as desejam.Tradicionalmen
ie, os conselhos m unicipais com o proprietários relutam em despejar seus
inquilinos, não im portando qual seja o comportamento ou se deixam tie
pagar o aluguel, em parte para chamar a atenção para a diferença ideoló
gica entre os setores público e privado, para ganho do prim eiro. Diferenle
tia luta insensível e exploradora dos proprietários privados por vantagens
particulares, o senhorio do Conselho M unicipal oferece de maneira be
nevolente um serviço social. Assim, a locação de uma habitação pública e
para os psicopatas o que a estabilidade no em prego é para os professores
universitários: não há com o imaginar m elhor convite à irresponsabilid.itk-
Curiosamente, o encorajamento do que seria considerado um compor
lamento antissocial foi realizado em nom e de uma recusa, supostamente lo
leranle, de fazer juízos morais; todavia, uma vez que aqueles que se punham

H cn liih itlr Him ii I h iii I ) n I lihjiM'llM'i I 'li/ m i oh Rd I'i 'oh ^ I I


cm |)<>siçã< > de IHH'CSSÍ( Itldc pelo | III ipi 11 I I I II11pi >11.111 H*nI<> C l ,1111 1,1 V I III I |i || r.
em detrimento dos que deixavam de la/c In, um julgamenlo ímplíello, di
fato, estava sendo feito: um julgamento cuja perversidade é evidente u< >■. p<
didos que recebo de meus pacientes de cartas para as autoridades lubii,u n i
nais reforçando seus casos para que recebam a locação de um apartamenli i.
Nessas missivas, dizem -m e os pacientes, devo dar ênfase ao alcoolis
m o ou ao vício em drogas, ao seu m au tem peram ento ou à tendênc ia .i
agredir todos ao seu redor - consequência m anifesta da falta de acomoda
ções apropriadas. Devo m encionar as repetidas overdoses, o fato de lançarem
m ão de tranquilizantes obtidos ilegalmente, de que realizaram diversos
abortos e agora estão grávidas pela quinta vez, de que tiveram uma su
cessão de três nam orados violentos, de que apostam incontrolavelmenle
(ou descontroladamente) em jogos de azar. Em nenhum caso alguém me
pediu que escrevesse que é um cidadão decente, trabalhador e honrado c
que poderia ser um bom locatário. Isso o levaria direto para o fim da linha.
Certamente, o critério perverso pelo qual as habitações públicas têm
sido distribuídas durante as últimas duas ou três décadas reforça o cresci
m ento inexorável na proporção de jovens adultos m orando sozinhos, uma
tendência encorajada por muitas correntes fortes de nossa cultura. Nos anos
deThatcher, o núm ero de adultos não idosos m orando sozinhos ou de pais
solteiros dobrou em termos absolutos e quase com o um a proporção do to
tal de lares. Dificilmente passo um dia sem encontrar um jovem de dezoito
ou dezenove anos desempregado, sem recursos financeiros, sem habilida
des ou treinamento, sem o apoio da família, sem sucesso mental, que ga
nhou um apartamento à custa do dinheiro público. A m oradia é um direito,
e o governo, portanto, tem o dever de fornecê-la. A possibilidade é de que
o fará somente se houver m au com portam ento ou ações suficientemente
im pulsivas com o um irritante nas relações domésticas: se um m ovim ento
noutro local é um a possibilidade real, podem os nos dar ao luxo de deixar
uma pequena divergência se transformar em um a ruptura irreparável.
Logo, os chiqueiros fazem os porcos ou os porcos fazem os chiqueiros?
Suspeito que exista, com o m eu pai costumava dizer, uma relação dialética.

I99S

V \ III n iiii S m j r ln
Pm lidos no Gueto

1 1 h r 1m a das terríveis fatalidades que podem recair sobre um ser lui


m ano é nascer inteligente e com sensibilidade em um bairro
pobre inglês. É com o um a tortura requintada, longa e vagarosa,
imaginada por um a divindade sádica de cujas maldosas garras é quase
impossível fugir.
Isso nem sempre foi assim. M eu pai nasceu em um bairro pobre nos
.mos que antecederam a Prim eira Guerra M undial. N o distrito em que nas
( eu, uma a cada oito crianças m orria no prim eiro ano de vida. Naqueles
tempos de ignorância, no entanto, quando algumas crianças londrinas,
pobres demais para com prar sapatos, iam para a escola descalças, o “ círcu
lo vicioso da pobreza” ainda não havia sido descoberto. N ão ocorrera aos
governantes da nação que as circunstâncias de nascimento de um a pesso.i
podem selar seu destino. Dessa m aneira, m eu pai, tido com o inteligente
por seus professores, recebeu lições de latim, francês, alemão, matemátic.i,
c iências, literatura inglesa e história, com o se fosse plenamente capaz de
ingressar na corrente da civilização superior.
Quando ele faleceu, encontrei os livros escolares que ainda estavam
entre seus pertences, e eram de um rigor e de um a dificuldade que ater
rorizariam um professor m oderno, para não dizer uma criança. Ele, con
tudo, que nunca fora generoso ao elogiar os outros e sempre imputava os
piores m otivos aos seus semelhantes, lembrava de seus professores com
profundo respeito e aleição, |><ns ii.it> imh.un lhe ensinado apenas ,r. li
ções, mas dedicaram m uito das horas livres para levar as crianças polm s
porém inteligentes, dentre as quais ele m esm o, aos museus e cont ei los,
para m ostrar-lhes que a vida nas localidades pobres não era a tíiiit .1 vida
que existia. Dessa m aneira m eu pai foi despertado para a própria p< >s .11>i
lidade da possibilidade.
É infinitam ente im provável para um a criança que nasça lioje, m i
um bairro pobre, com a m esm a inteligência do m eu pai encontrar i.u
mentores. Afinal, os professores de hoje, im pregnados da ideia de (|tie
é errado ordenar hierarquicam ente civilizações, culturas ou m odos <l<
vida, negariam o valor de um a civilização superior, e seriam incapa/es
de transmiti-lo. Para eles não há altura ou profundeza, superioridade otl
inferioridade, profundidade ou superficialidade; há somente diferença
Duvidam até m esm o de que exista um m odo correto e um m odo erradi 1
de grafar um a palavra ou construir um a frase - um ponto de vista apoiadt >
por obras populares e supostamente com petentes com o The Language In.slim I
[O Instinto da Linguagem ] 1 do professor Steven Pinker (escrita, é claro,
sem quaisquer erros ortográficos ou gram aticais). Os professores de h<>je
pressupõem que a criança dos bairros pobres está plena e culturalmonti
guarnecida do necessário 110 am biente em que vive. Seu discurso é, poi
definição, adequado às necessidades; seus gostos são, por definição, acei
táveis e não piores ou mais baixos que quaisquer outros. Não há m otivos,
portanto, para introduzi-las a nada.
A criança dos bairros pobres não encontraria mentores com o meu
pai encontrara, pois a crença na igualdade das culturas, que é um a or
todoxia pedagógica de longa data, agora já se infiltrou na população em
geral. Atualmente, os m oradores dos bairros pobres estão agressivamen
te convencidos da suficiência do próprio conhecim ento, por mais resli 1
to que seja, e da própria vida cultural, ou no que quer que ela consista
Meus pacientes mais velhos usam a palavra “ educado” com o um term o de

1 E m p o rtu g u ê s, o livro p o d e ser en co n trad o n a segu in te ed ição : Steven Pinkci,


0 Instinto da Linguagem: Como a Mente Cria a Linguagem. Trad. Claudia Berliner. São P.iuln,
M artins Editora, 2 0 0 2 . (N .T .)

\ \ llln mm í ’i i i | i ' l n
.11 ii ( iv.it, at >; 1111 li. |i.ii 11 111 < ui. ir . n iiv o s . 11111 h . i <,)i I, unl i i i nt '11 |>.ii i'i,i i i i. ui

■i. ninguém linha tlúvitl.i:. sobro o que significava st-i educado ou <|ih
ii' Hi.iv.i o valor de uma educação tal com o a que ele recebeu, mas já que
■i-, |i,iis i- professores agora veem todas as manifestações culturais o campt
.!.•<< )iihocimento hum ano com o coisas de igual valor, por que ter trabalho
paia com unicar ou para receber um a educação tão rigorosa, difícil o pou
....... aiural com o m eu pai recebera, um a vez que qualquer outra instruçát>
(ou nonhuma) é igualm ente boa? Pior, tal esforço iria im por um padrão
ii bilrário de valor - um m ero disfarce para a continuação da hegem onia
i la rlile tradicional - e, portanto, destruiria a autoconfiança da m aioria <■
reli irçaria as divisões sociais.
Infelizmente, no longo prazo, a cultura de periferia é profundamente
11r.ai isfatória para as pessoas inteligentes. A tragédia é que, m esm o o nível
■|e inteligência nos bairros pobres sendo mais baixo que em qualquer ou
iro lugar, muitas pessoas inteligentes tiveram o infortúnio de nascer neles;
i la/.emos todo o possível para assegurarm o-nos que aí permaneçam.
lilas com eçam a perceber, em diferentes fases da vida, que há algo
errado com a cultura que as rodeia. Algum as percebem isso quando che
vain à adolescência, outras somente quando os próprios filhos vão para a
escola. Muitas são incapazes de apontar o que exatamente está errado: aos
trinta anos, só estão cientes de um a ausência. Essa ausência vem a ser a
lalta de qualquer assunto que ocupe suas mentes e seja diferente do fluxo
diário de suas existências.
E bem sabido que crianças inteligentes que não são suficientemenle
instigadas na escola e são obrigadas a repetir as lições que já entenderam
-,o porque outros em sua classe, mais lentos do que elas, não as dominam,
muitas vezes ficam inquietas, com portam -se mal e tornam-se até deliu
quentes; o que é m enos percebido é que esse padrão destrutivo persiste
igualmente na vida adulta. Os entediados - dentre os quais estão aqueles
rujo grau de inteligência é m uito incom patível com as exigências do ani
biente cultural - frequentem ente resolvem o problem a ao fomentar crises
lat ilmente evitáveis e totalmente previsíveis na vida pessoal. A mente, as
sim com o a natureza, abom ina o vácuo, e se nenhum interesse cativante l<>i
desenvolvido na infância e na adolescência, tal interesse é imediatamente

I (< i i l l i l i l i l< ! II I l l l l »1 III I V m Ih I" III • ( i l M ||


criado com os materiais que in n à ilisp«»*.1«,.it» () liomcm tanto é um .mi
m al criador de problem as com o é um solucionador de problem as lim a
crise é m elhor que o tédio perm anente da insignificância.
Não obstante as genuflexões oficiais na direção da diversidade e da
tolerância, o triste fato é que a cultura de periferia é m onolítica e profun
damente intolerante. Q ualquer criança que tente resistir às lisonjas de ial
cultura não conta com o apoio ou defesa de nenhum adulto, que agora
pode equacionar tanto liberdade e dem ocracia com tirania da maioria
M uitos de m eus pacientes inteligentes que m oram em bairros pobres con
tam com o, na escola, expressaram o desejo de aprender, e só sofreram
zom barias, foram excom ungados e, em algumas instâncias, sofreram vi<>
lência absoluta de seus pares. U m a m enina inteligente de quinze anos,
que tomara um a overdose com o um gesto suicida, disse que era submetida
a constantes provocações e maus tratos por seus colegas: “ Dizem que sou
estúpida” , disse-m e ela, “ porque sou inteligente” .
Os professores raramente protegem tais crianças ou encorajam -uas
a resistir à absorção daquela cultura que, em breve, irá aprisioná-las na
condição social em que nasceram , pois os próprios professores, em geral,
absorveram , acriticam ente, a noção de que a justiça social - que sigui
fica pouco m ais que igual distribuição de renda - é o summum bonum da
existência humana. O uvi dois professores apresentarem a teoria de que
com o a m obilidade social reforça a estrutura social existente, ela atrasa a
realização da justiça social ao privar as classes m ais baixas de militantes
e líderes em potencial. Assim , encorajar individualm ente um a criança a
fugir da herança de infinitas novelas e m úsicas pop, jornais sensaciona
listas, pobreza, im undície e violência dom éstica é, aos olhos de m uitos
professores, encorajar a traição à classe social. Isso tam bém , de m odo
conveniente, absolve o professor da responsabilidade tediosa pelo bem
-estar individual de seus pupilos.
Entretanto, surgem crianças nos locais mais im prováveis com ambi
ções m uito diferentes das dem ais e, felizmente, nem todos os professores
acreditam que nenhum a criança deva fugir dos bairros pobres a menos
que todas o façam. Um a de minhas pacientes, por exem plo, desde cedo
desenvolveu um a paixão pela cultura e literatura li.mc t ..r. (nunca apareceu

V \ h In i mi H m | r iu
no hospital sem um livro de Victor Hugo, I lonorc de bal/ac ou ( 'li.irlt".
M.uidelaire, que é um pouco com o ver um urso polar num a floresta). I )e
( idiu, desde pequena, que iria estudar francês na universidade e teve s<>ri<,
se levarmos em conta a escola que frequentou, de encontrar um prolesst n
i|iie efetivamente não a desencorajou. Para ela, o custo nas relações soc iais
com uns com seus pares, todavia, foi incalculável. Tinha de sentar-se longe
i los colegas na sala de aula e criar seu próprio m undinho fechado em meu >
.1 constante desordem e barulheira; foi debochada, provocada, ameaçad.i
e humilhada; foi escarnecida enquanto esperava no ponto de ônibus; iu o
linha am igos e foi sexualm ente violada por rapazes que desprezavam, e
i.ilvez secretamente temessem, sua paixão notória por livros; recebeu ex
ire mentos na caixa de correio de sua casa (uma expressão de desaprov.it,.i<>
com um em nossa admirável nova Grã-Bretanha). Quanto aos pais el.i
tinha muita sorte de ter os dois - , eles não a com preendiam . Por que el.i
não podia ser com o os outros e deixá-los em paz? N ão era nem mesmo
com o se um a predileção por literatura francesa levasse automaticamente .1
um em prego m uito bem pago.
Ela chegou à universidade e foi feliz por três anos. Pela prim eira ve/
na vida encontrou pessoas cujo m undo intelectual ia além da própria ex
periência restrita. Seu desem penho na universidade era digno, embora nãt >
losse brilhante, pois com o ela m esm o admitia, faltava-lhe originalidade
Sempre quisera o m agistério, acreditando que não havia vocação mais n< >
bre que despertar a mente dos jovens para as riquezas culturais que, de
outro m odo, perm aneceriam desconhecidas; mas ao se graduar, por (alt.ii
lhe poupança, voltou à casa dos pais graças à economia.
Conseguiu um em prego para ensinar francês nas im ediações, no tipo
de escola em que fora educada. Voltara a um m undo em que o conhei 1
mento não era m elhor que a ignorância, e a correção, fosse na ortogr.ill.i
ou 11a conduta, era, por definição, um insulto pessoal, uma afronta ao <■>;< >
Quem era ela — quem era, na verdade, o adulto —para dizer às crianças 1 >
que deveriam aprender ou fazer (uma questão bastante delicada, impos
sível de responder, caso acreditemos no igual valor de todas as atividades
humanas)? Mais um a vez ela viu-se ridicularizada, im portunada e liuim
Ilíada e estava sem forças para im pedir isso. Por fim, um de seus alunos se

Mriilii Imli 1'imiliiin IShIIiI" u i < ih In


essa é palavra para descrever <> jovem cm qu< ,t.w i tentou estupr.i la, t i .•.«»
fez com que sua carreira de magistério tivesse um fim prematuro.
A gora ela consideraria qualquer em prego que a tirasse da região em
que nasceu ou de qualquer área com o aquela: o que corresponde di/ei,
ao m enos, um terço da Grã-Bretanha. Até fugir, no entanto, ficou pres.i
na casa dos pais, sem nin guém para conversar sobre as coisas que lhe
interessavam , fosse dentro ou fora de casa.Talvez, devaneava, tivesse sido
m elhor se tivesse capitulado à m aioria enquanto ainda estava na escola,
pois sua luta heróica ofereceu-lhe pouco, apenas três anos de prorroga
ção tem porária da m iséria.
O caso dela não é, de m odo algum , algo isolado. Com um im enso
aparato de Bem -Estar Social, que consom e cerca de um quinto da rentl.i
nacional, não sobra nada para um a jovem de dezoito anos, com o a que
se consultou com igo sem ana passada, que se esforça m ui valorosam ente
para escapar de sua triste experiência pregressa. O pai era um alcoólatra
que bateu na m ãe da jovem todos os dias da vida de casados, e muitas
vezes tam bém batia nos três filhos, até que finalm ente decidiu que já era
o bastante e deixou-os. Infelizm ente, o irm ão m ais novo de m inha pa
ciente assum iu a posição e tornou-se tão violento quanto o pai. Batia na
mãe e, certo dia quebrou um vidro e usou a ponta quebrada para in fligir
um ferim ento extrem am ente grave no braço esquerdo de m inha pacien
te, do qual ela, dois anos depois, ainda não se recuperou totalmente, e
provavelm ente nunca o fará.
Aparentemente dotada por natureza de um a personalidade forte, mi
nha paciente insistiu não só em cham ar a polícia, mas em apresentar quei
xa contra o irm ão, que tinha quatorze anos na ocasião. Os magistrados
concederam -lhe a suspensão condicional da pena. A mãe de m inha pa
ciente, estarrecida com a falta de solidariedade familiar, expulsou-a de casa
aos dezesseis anos, para cuidar de si mesma. Isso pôs fim aos seus planos
form ulados sob as mais inauspiciosas circunstâncias - de continuar os es
tudos e tornar-se um a advogada.
Aos dezesseis anos, estava condenada aos serviços sociais por ter mui
ta idade para os orfanatos, mas ainda não ter idade suficiente para receber
quaisquer benefícios sociais. A única acom odação que o aparato local do

m o \ \ m In m i S m | i 'i n
Hem listar Social po<l< encontrar para ela Ibi um (|uarlo em nma casa
niili/.ada para realocar crim inosos. Enquanto sen irm ão recebia toda .1
atenção dos assistentes sociais, ela não recebia nenhum a, já que não havia
nada de errado com ela. Sua colega de quarto crim inosa na casa dividida
era o que ela cham ou de “ um a baghead” 2 - um a viciada em heroína
i- também ladra profissional.
Inteligente e esforçada, m inha paciente encontrou em prego com o
escriturária em um escritório de advocacia e nele trabalha desde então,
li cobrada na íntegra pelo aluguel barato de seu quarto miserável e todos
os apelos às autoridades para ser realocada são negados com a justificativa
de que ela já está adequadamente acom odada e, de qualquer m odo, ainda
é incapaz para gerir os próprios negócios. Quanto à assistência pública
para estudar em tem po integral, isso está fora de questão, já que para obter
tal educação em tem po integral ela teria de desistir do em prego, e seria,
então, considerada com o voluntariam ente desempregada, o que a inabili
taria para receber assistência pública. Caso ela se esmerasse em ficar grávi
da, ora, aí a assistência pública estaria à disposição, em generosas porções.
Dificilm ente a m oral da história dessa jovem seria mais nítida. Pri
meiro, os m oradores de seu m eio de origem consideram o dever de não
inform ar às autoridades m uito superior ao seu direito de não ser maltrata
da. Segundo, as próprias autoridades consideraram o ataque à jovem com o
não m erecedor de verdadeira atenção. Terceiro, ela não receberá ajuda al
gum a ao fugir das circunstâncias nas quais nasceu. Tratá-la com o um cas< >
digno de atenção especial, afinal, seria sugerir que houve casos que não
mereciam atenção; e aceitar isso seria equivalente a admitir que um estilo
de vida é preferível a outro - m oral, econôm ica, cultural e espiritualmente
Esse é um raciocínio que deve, a todo custo, ser elim inado, ou toda a ide< >
logia da educação e do Bem-Estar Social m odernos desmorona. Poderia set
questionado, é claro, se foi justa a ausência de assistência pública que, mi
cialmente, agrilhoou a alma de m inha paciente (ela ainda estava decidida

2 L iteralm en te, “ cab eça de s a c o ” . C o m o a cu ltu ra da h ero ín a n ão é m u ito dilim


dida n o Brasil, n ão p o ssu ím o s term in o lo g ia equivalente, visto q ue é u m a m anei

ra injuriosa e re ce n te de referir-se ao v iciad o e m h eroín a. (N .T .).

I (t‘11111tiMti Ni 11III IIIII ftltllil" llii I mi 11 llll


.i (|ti.ililK.u se c o m o a d v o g a d a ) ; m a s < . i n 1.1 ,i r e s p o s t a .1 um.) p e r g u n t a

dilcrenle e um p o u co dura d e m a i s para o m e u g o s t o .


No entanto, ao m enos essas duas jovens, cada um a excepcional a seu
m o d o , vislum braram de certa m aneira a existência de outro m undo, mes
1110 que nenhum a delas tenha sido bem -sucedida em ingressar plenaim n
te nele. A consciência de que a cultura de periferia não era suficiente pat.i
manter um a pessoa inteligente chegou m uito cedo - com o ou por qm .
elas não conseguem mais recordar.
Essa percepção chega consideravelmente tarde para a m aioria de meus
pacientes inteligentes que, contudo, reclam am aos trinta anos de uma m
satisfação vaga, persistente e severa com as presentes existências. A agitaçã< 1
da juventude acabou: na cultura dos bairros pobres, hom ens e m ulheres |.i
passaram da fase áurea aos 25 anos. Suas vidas pessoais, dito gentilmente,
estão em desordem : os hom ens são pais de crianças com as quais têm
pouco ou nenhum contato; as m ulheres, preocupadas em suprir as exigên
cias cada vez m ais im periosas dessas mesm as crianças, trabalham duro em
em pregos mal pagos, tediosos e inconstantes (o índice de ilegitim idade na
Grã-Bretanha recentemente ultrapassou 40% e, em bora m uitos nascimen
tos sejam registrados em nom e dos dois pais, as relações entre os sexos
ficaram ainda m ais instáveis). As diversões que outrora pareciam ser tão
prementes tanto para os hom ens quanto para as m ulheres - na verdade,
eram o propósito da vida - não o são mais. Esses pacientes são desatentos,
irritados e descontentes. Cedem a com portam entos autodestrutivos, antis
sociais ou irracionais; bebem m uito, envolvem -se em brigas sem sentido,
pedem dem issão dos em pregos sem poder, acum ulam dívidas por ninha
rias, buscam relacionamentos obviam ente desastrosos e m udam de casa
com o se o problem a fossem as paredes que os cercam.
O diagnóstico é tédio, um fator m uito subestim ado na explicação da
conduta hum ana indesejável. Logo que a palavra é m encionada, agarram
11a, quase com alívio: o reconhecim ento do problem a é instantâneo, em
hora não tivessem pensado nisso antes. Sim, estão entediados - entediados
até as profundezas do ser.
Perguntam -m e por que estão entediados. A resposta, é claro, é que
nunca usaram suas inteligências 110 trabalho, na vida pessoal ou no tempo

III .' A \ m 1« 1 1 u i S m O H i i
livre, c a inteligência i uma nítida desvantagem quando não é usada: volta-
se contra a pessoa. Rem em orando as histórias de vida, percebem pela
|n i m eira vez que em todos os m om entos escolheram a via de m enor re-
r,in icia, o cam inho m enos cansativo. Nunca tiveram orientação algum a
porque todos concordavam que um cam inho era tão bom quanto outro
qualquer. Nunca despertaram para o fato de que a vida é um a biografia
c não uma série de m om entos desconexos, mais ou m enos agradáveis,
I » irém cada vez m ais tediosos e insatisfatórios, a m enos que a pessoa lhes
im ponha um a intenção propositada.
A educação que receberam foi por obrigação e, aparentemente, um a
iiiicnninável irrelevância: nada do que os professores ou pais lhes disse-
i.ira, nada do que absorveram da cultura que os rodeava fizeram supor
que os prim eiros esforços na escola, ou a falta de esforço, teriam , poste-
i iorm ente, algum efeito nas suas vidas. Os em pregos obtidos assim que
se veem capazes de trabalhar são sim plesm ente para custear os prazeres
do m om ento. Criam relações com o sexo oposto por capricho, sem p en ­
sar no futuro. As crianças nascem com o instrum entos, seja para consertar
relacionam entos problem áticos seja para preencher o vazio em ocional
ou espiritual, e lo go se revelam insuficientes para tais funções. Os am i­
gos - pela prim eira vez vistos com o pessoas de m enor inteligência -
agora lhes cansam. E, pela prim eira vez, ao desejar escapar das crises
artificiais, autoestim uladas, que não m ais divertem , sofrem de um indis-
larçável tedium vitae da periferia.
E claro que a inteligência não é a única qualidade da cultura m o ­
derna que a periferia pune. Quase todas as m anifestações de sentim en­
tos m ais refinados, quaisquer sinais de fraqueza, quaisquer tentativas de
recolhim ento à vid a privada são aniquiladas sem piedade, com o presas,
e exploradas. Condutas aprim oradas, a rejeição à blasfêm ia em p ú b li­
co, qualquer interesse intelectual, a aversão ao grosseiro, o reclam ar da
desordem e do lixo são objeto de troça e m aledicência; portanto, é n e­
cessário coragem , e até m esm o heroísm o, para portar-se de m odo o rd i­
nariam ente decoroso.
Uma de minhas pacientes é um a m ulher robusta, de cinquenta anos,
cjLie oulrora poderia sn cham ada de um a em pregada idosa. E totalmente

I (• i i I m I<m l< S m iiiI m ih h m Im I " H > i • , l l t |i


inofensiva, na verdade, é uma iiuiIIm i di sensibilidade dHicadr.smi.i
É tão tím ida que um a palavra áspera é o bastante para levá la às l.ígi 111i.e.
Sem pre pede desculpas pela inconveniência que acredita causar me pel.i
própria existência; nunca pude tranquilizá-la por com pleto nesse quesito
É a Miss Flite de nossa época.3
N ão é preciso dizer que a vida de um a pessoa com o essa em uni.i
m oderna vizinhança pobre inglesa é um pesadelo vivo. As crianças d.i
rua escarnecem dela sem cessar ao sair de casa; colocam excrem entos
em sua caixa de correio de brincadeira. Há m uito já desistiu de apelai
às m ães, já que sem pre ficam do lado dos filhos e consideram qualquer
com entário desfavorável a respeito do com portam ento deles com o um
insulto pessoal. Longe de corrigir os filhos, tratam-na com m ais violência
As incansáveis e alegres revelações nos jornais, no rádio e na televisão de
qualquer transgressão e confissão de erro p or parte das autoridades, não
com pensadas por nenhum a crítica dos m em bros do público em geral,
causaram um a atrofia na faculdade de autocrítica e dispõem o raciocínio
a olhar sem pre para o exterior, nunca para o interior, em busca da fonte
de insatisfação e de conduta ilegal. Vox populi, vox Dei - cada pessoa é um
deus no próprio panteão.
M inha paciente, é claro, é alvo fácil para arrom badores e ladrões. Su.i
casa já foi arrom bada cinco vezes no últim o ano, e foi assaltada na rua três
vezes no m esm o período, duas vezes na presença de transeuntes.
Esse tipo de pessoa não conta com a simpatia das autoridades. A poli
cia já lhe disse, mais de um a vez, que a culpa era dela: alguém assim não
deveria viver em um local com o aquele. As ruas, em outras palavras, devem
estar livres para hooligans, vândalos e assaltantes exercerem seus ofícios ine
vitáveis em paz, sendo dever dos cidadãos evitá-los. N ão faz parte do dever
do Estado defender as ruas de tais pessoas.

3 M iss Flite é u m a p e rso n ag em d o ro m a n ce Bleak House de Charles D ickens. Idosa

e u m tan to e x cê n trica , M iss Flite é o b cecad a pela id eia de co rtes de justiça e


ju lg a m e n to s, além d e criar v ário s p ássaros q u e serão lib ertad o s “n o ju ízo final"
E m p o rtu g u ê s, a o b ra p o d e ser en co n trad a na segu in te e d ição : Charles D ickens,
A Casa Soturna. Trad. O scar M endes. R io de Jan eiro , Nova t ront ei r a, 1 9 8 6 . (N .T .)

Illl \ ViiInViíi Siii|i'in


líin Iais i it« 11■i- i tii( ta:;, decência 6 111i.isc- sinónim o de vulin-1.11>i11<l.i<l<
uma (|ualidade que não conta com a simpatia das autoridades. Ouira |>.1
( lente m inha, um a m ulher jovem de respeitáveis antepassados na classe
trabalhadora e caráter im aculado, desistiu de tentar encontrar um homem
compatível: sua experiência nesse cam po foi uniform em ente desastrosa.
I )ecidiu, desde então, viver com o um a solteirona, dedicando a vida a res
galar anim ais abandonados. Sua casa, infelizm ente, era em um a das ruas
de uin conjunto habitacional público em que todas as dem ais casas foram
abandonadas após repetidos atos de vandalism o e agora estão lacradas por
lapumes. Assim , a rua tornou-se um local de encontros e ponto de entrega
de traficantes de drogas que não hesitam em arrom bar a casa de m inha
paciente para usar o telefone (econom izando nas contas dos próprios te
lt'fones celulares) e servem -se de qualquer com ida que esteja presente,
lintram na casa m esm o quando ela está presente, debocham do m edo dela
e a insultam por ser incapaz de fazer algum a coisa. Sua m aior despesa
tornou-se a conta do telefone que eles usam. Am eaçaram-na de morte,
caso vá à polícia.
N o entanto, ela foi à polícia e tam bém às autoridades habitacionais.
O conselho foi o m esm o: ela deveria com prar um cão de guarda. Ela se
guiu o conselho, mas fez pouca diferença porque o cachorro logo se acos­
tum ou aos traficantes, que o alimentavam com petiscos. M inha pacienle,
todavia, pegou am or ao cão.
Minha paciente pediu às autoridades habitacionais que a mudassem
para um outro lugar. A princípio — isso quer dizer, durante dois anos ,
seu pedido foi negado, pois julgavam que ela não tinha m otivos suficien
tes para desejar mudar. Quando finalm ente as autoridades concordaram
em descobrir um novo local para ela viver, ofereceram um apartamento
em que era proibido ter animais. Minha paciente observou que tinha um
cachorro, um a criatura pela qual agora tinha dem asiado afeto, um fato
perfeitamente óbvio para quem quer que conversasse com ela a respeito
da vida, ainda que por breves m om entos. As autoridades habitacionais !ô
ram irredutíveis: era pegar ou largar. Em vão, ressaltou que, inicialmente,
loram eles m esm os que a aconselharam a ter um cão. O argum ento das
autoridades habitacionais foi o de que se ela realmente estivesse falando

l(i nliilnili SnillItllH I *i mIu Im iim ( im lt» Ih:


st i li) si >Ihi m udar se do aluai miei no, i l.i devei ia aceitar qualqu er olei t,i
Alinal, centenas de milhares de pais h iiiâ m cos abandonavam seus lillios
sem refletir nem m e s m o p o r u m m o m e n to : p o r q u e tanto exagero senti
meiitalista p o r u m anim al estúpido?
A vida nos bairros pobres da Grã-Bretanha dem onstra o que acoutei <•
(|uaudo a m aior parte da população, bem com o as autoridades, perde
le na hierarquia de valores. O resultado é todo tipo de patologia: onde
o conhecim ento não é preferível à ignorância, e a alta cultura à baixa, os
inteligentes e os que têm sensibilidade sofrem a perda total do signifu adi >
das coisas. O inteligente se autodestrói e o que tem sensibilidade perde as
esperanças; e onde a decorosa sensibilidade não é alimentada, encorajada,
apoiada ou protegida, abunda a brutalidade. A falta de padrões, com o oh
servou José Ortega y Gasset, é o início do barbarism o: e a m oderna Grã
Bretanha já passou desse início há m uito tempo.

2000
1% Assim, Morrem ao Nosso
Redor Todos os Dias

julgam ento, em janeiro, de M arie Therese Kouao e seu amante,

O Cari M anning, pelo assassinato da criança de oito anos que tu­


telavam, Anna Clim bie, causou com oção na Inglaterra: não só
porque o patologista que realizou a necropsia na criança disse, no tribunal,
que era o p ior caso de violência infantil que já vira, m as por conta da enor­
me incom petência e pusilanim idade revelada pelos funcionários públicos
responsáveis por prever, im pedir e responder a tal violência.
Talvez não seja surpreendente que a com petência dos servidores p ú ­
blicos jenha dim inuído com o nível geral de instrução de nosso país; mas,
nesse caso, as autoridades se portaram com tamanha falta de senso com um
que devem os considerar algo m ais que m era ignorância. Parafraseando
ligeiramente o Dr. Johnson, tal estupidez não existe na natureza. Tem de
ser trabalhada ou adquirida. Com o sempre, devem os buscar a influência
perniciosa de ideias equivocadas para explicá-la.
Anna Clim bie m orreu de hipoterm ia em fevereiro de 1999. Seu corpo
m orto apresentava 128 marcas de agressão, causadas por cinto de couro,
cabides de metal, correia de bicicleta e por um martelo. Foi queim ada por
ri garros e escaldada na água quente. Seus dedos foram cortados com na­
valha. Por seis m eses foi forçada a dorm ir em um saco preto de lixo (em
lugar das roupas) em um a banheira; às vezes, era deixada na água fria de
pés c mãos atados por 24 horas. Emagreceu de fom e; suas pernas estavam
tão rigidam ente dobradas que quando deu m irada n<) hospital um di.i
antes de morrer, elas não conseguiram ser endireitadas.
N ão é que não houve sinais da terrível sina de Anna. Ela fui leva
da ao hospital duas vezes nos meses anteriores à sua m orte; os médicos
alertaram os funcionários do serviço social sobre a violência que eslava
sofrendo, pelo m enos seis vezes, e a polícia foi alertada mais de uma ve/
N in guém fez absolutamente nada.
M arieTherese Kouao veio, originalm ente, da Costa do M arfim , em lio
ra fosse cidadã francesa e tenha vivido na França pela m aior parte da vida
Ela voltava à Costa do M arfim de tem pos em tem pos para convencer <>s
parentes a lhe entregarem os filhos, de m odo que ela os levaria para a liu
ropa, assegurando-lhes um futuro m ais prom issor que na África Ociden
tal, dizia. Alegava ter um em prego m uito bem rem unerado no aeroporto
Charles De Gaulle em Paris.
Ela usava as sucessivas crianças con fiadas aos seus cu idados para
req u erer ben efício s do sistem a de Bem -Estar Social, p rim eiro , na Frati
ça, e d ep o is, na Inglaterra. M u d ou -se para a Inglaterra com Anna por
que as autoridades francesas estavam e x ig in d o o reem b olso de três mil
dólares de ben efício s aos quais não tinha direito. Ao chegar à Inglater
ra, im ediatam ente recebeu ben efício s, coin cid en tem en te, de m ais três
m il dólares.
Quando acabaram os benefícios, ela conheceu o m otorista do ônibus
em que viajava, um indiano ocidental estranho e solitário cham ado Cari
Manning. Ele era quase um autista, um desajustado social cujos principais
interesses eram rotas de ônibus e pornografia na internet. Imediatamente
foram m orar juntos.
É possível que tenham desenvolvido um estranho estado psiquiátrico
conhecido com o folie à deux, prim eiram ente descrito por dois psiquiatras
franceses no século XIX. Nesse estado, duas pessoas que são mutuamente
dependentes e que possuem um a estreita parceria incom um vêm a par
tilhar da m esm a ideia delirante. N orm alm ente, a pessoa com a persona
lidade mais forte e de m ais inteligência é o originador da ideia delirante,
em que acredita com certeza inabalável; o outro, mais fraco e m enos in
teligente, prossegue com isso, pois não tem loiça paia resistir. Quando a

u m \ \ li In i u i !
personalidade m.iis lí .ua é separada da m ais forte, aquela d eixa de acredi
lar na ideia delirante.
Kouao - indiscutivelm ente a personalidade mais forte entre os dois
precisava de M anning porque ele tinha um apartamento e ela não tinha
nenhum outro lugar para ficar; M anning precisava de Kouao porque ela
era a única mulher, salvo um a prostituta, com quem já tivera um rela
( ionamento sexual. Quando Kouao com eçou a acreditar que Anna estava
possuída pelo dem ônio, M anning aceitou o que ela dissera e uniu forças
para expulsar o dem ônio de Anna. Levaram-na para várias igrejas funda
mentalistas, cujos pastores realizavam exorcism os. De fato, no próprio dia
da m orte de Anna foi o taxista que os levava para um a dessas igrejas para
u in exorcism o que percebeu que Anna m al estava consciente e insistiu em
levá-la para um posto de saúde, de onde foi encam inhada ao hospital em
que veio a falecer.
O com portam ento dos dois réus no tribunal ratifica o diagnóstico de
Iblie à deux. M anning foi subjugado e reconheceu a culpa. Kouao, no entanto,
manteve todo o tem po a Bíblia nas m ãos e muitas vezes teve de ser retirada
do banco dos réus por conta de seus arroubos religiosos. Com portou-se
com o se realmente estivesse louca.
Dois parentes distantes de Kouao que m oravam na Inglaterra testem u
nliaram que cham aram a atenção dos funcionários do serviço social para
o estado de Anna. Nada aconteceu. U m a babá que tom ou conta de Anna
quando Kouao encontrou em prego estava tão preocupada com sua con
dição geral, com a incontinência urinária e as marcas na pele que a levou
para um hospital. Aí, Kouao conseguiu convencer um m édico experiente
que o m aior problem a de Anna era sarna, da qual derivavam todos os
demais problemas. Kouao alegava que as marcas na pele da m enina eram
resultado do p róprio ato de coçar para aliviar irritação da sarna.
Nove dias depois, todavia, a própria Kouao levou Anna a outro lios
pitai. Lá, alegou que as queim aduras feitas por água quente na cabeça da
criança tinham sido causadas pela débil tentativa de Anna de jogar águ.i
quente sobre o corpo para aliviar a coceira da sarna. Dessa vez, no entanto,
os médicos e as enferm eiras não foram enganados. Não só notaram os
lérim entos de Anna, com o também seu estado de desnutrição e a imens.i

H p I i I i i Ii h I i ' S n l l l l i i m I V tm M h i i i III I I I I N üM MIi U r d i u I } ) ( | lIN i »m I M l U 1


discrepam ia entre os lanapos qin .1 nu nina usava < .1 r ir ia m 1.1 1111,11 nlada
da m ulher que presum iam ser sua mãe lila com eu vorazmente, lo n m m-
não estivesse acostumada a bastante com ida — e, certamente, não c.u va
A equipe do hospital observou que a m enina apresentava inconiim-nc 1,1
com a perspectiva da visita dessa m ulher ao hospital, e tuna cu lu 11x11.1
relatou que ela ficava em alerta e tremia quando Kouao chegava.
A m édica responsável, diligentem ente, inform ou à assistente social
e à policial designada para o caso suas bem -fundadas suspeitas. Amb.r.
tam bém eram negras, e rejeitaram totalmente as suspeitas sem, eniretan
to, um a investigação apropriada, acreditando, m ais um a vez, no relato d<
Kouao do acontecido - ou seja, que Anna tinha sarna e, por isso, tudo o
m ais acontecera. A assistente social e a policial, elas m esm as, não viram a
criança nem as fotografias do hospital sobre o estado da criança. Insisti
ram que Anna fosse entregue novam ente aos cuidados (se é que essa é a
palavra) de Kouao — a assistente social explica o evidente m edo de Anu.»
por Kouao com o um a m anifestação de profundo respeito que as crianças
afro-caribenhas têm pelos m ais velhos e superiores. O fato de a Costa do
M arfim ser na África Ocidental, e não nas índias Ocidentais, não passou
pela cabeça da assistente social cujo m ulticulturalism o, obviam ente, cons
tituía-se de estereótipos m uito rígidos.
Ao descobrir que Anna retornara para Kouao, a m édica responsável
pelo caso escreveu duas vezes para as autoridades do serviço social expies
sando sua grave preocupação pela segurança da criança, as quais enviaram
a m esm a assistente social para o apartamento de M anning, que o achou
apertado, m as lim po. Isso foi tudo o que ela viu, digno de ser comenta
do. Nessa ocasião, Anna era m antida em um a banheira durante a noite e
espancada com regularidade com (dentre outras coisas) um martelo nos
dedos dos pés. M anning escreveu em seu diário que os ferim entos de Anna
eram autoinfligidos, um a consequência de sua “ feitiçaria” .
A assistente social e a policial nunca m ais voltaram. De m odo me
ficaz, alegaram ter ficado com m edo de pegar sarna de Anna. Por 11111,
Kouao visitou a assistente social e afirm ou que M anning estava abusaudc>
sexualm ente de Anna, e logo depois retirou a queixa. A assistente soc ial r
a policial presum iram que a acusação era apenas um estratagema por parle

l‘»C) \ \ i< I ji 1
in S i i r j r h i
i Ir K<>ii4o |>.ii ,i ( ( ui ■ y mi ,ii i iiuodaçõcs mais cs|wv<>sas |>ai a si <• as mvrsli
^açõcs não envolveram , evidentemente, o exam e de Arma.
Dois m eses depois, Anna estava morta.
O caso, naturalmente, provocou um a série de com entários, muitos
lora de contexto. A assistente social e a policial foram transformadas em
bodes expiatórios, com o sugeriram os correspondentes do Guardian o
grande órgão da esquerda progressista na Grã-Bretanha. O verdadeiro pro­
blema era a falta de recursos: os assistentes sociais estavam m uito sobrecai
regados e eram m uito mal rem unerados para executar devidamente suas
tarefas. E im pressionante com o tudo hoje em dia pode ser transformado
em reivindicação salarial.
U m a ex-assistente social, contudo, escreveu para o Guardian e sugeriu
(|ue a ideologia, em particular, no treinam ento do serviço social, era o
problem a fundamental. Aí, é claro, tocou no âm ago da questão. A temát ii a
da raça e as posturas oficiais com relação a isso percorrem o caso de Anna
Clim bie com o um lamento.
O politicamente correto penetrou tão rapidamente em nossas inslilm
ções que hoje, praticamente, ninguém tem um a ideia clara sobre raça. As
instituições de Bem-Estar Social estão preocupadas com raça a ponto de isso
ser um a obsessão. O antirracismo oficial deu às questões raciais um a impor­
tância cardeal que nunca tiveram antes. As agências de Bem-Estar dividem
as pessoas em grupos raciais para propósitos estatísticos com um a m etia i
losidade que não experimentava desde a época em que vivi, brevemente,
na África do Sul há um quarto de século. Não é mais possível, ou mesmo
desejável, para as pessoas envolvidas no serviço social fazer o m elhor ca\o
a caso, sem (desde que humanamente possível) preconceito racial. De litii >,
há pouco tempo recebi um convite de m eu hospital para participar de um
curso de consciência racial, baseado no pressuposto de que o pior ..........
perigoso tipo de racista era o m édico que se iludia ao pensar que tratava to
dos os pacientes igualmente, dando o m elhor de sua capacidade. Ao men< >s i >
eurso de consciência racial (ainda) não é com pulsório: um am igo advogai li i
recentemente nom eado juiz foi obrigado a passar por um exercício com o
esse para juizes recém -nom eados e estava enfurnado, por um fim de sem.i
na, em um hotel provinciano miserável com representantes de acusação de

Mniliflllilr SniillilKl I N mm Mnin niiiu Nmhho Hnlm ludiin n l >in l«M


cada uma das principais "c< >mtm idades ( 'hey.iila ,i In >ra di >),iiilai' d ic iic c i
ramento, um representante muçulmano rei usou sc a sentar pci lo dc um <l<>*.
juizes recém -em possados porque era judeu.
0 desfecho do casoA nna Clim bie, certamente, poderia ter s i d o dlle
rente, caso a policial e a assistente social nesse centro fossem brancas, ma1,
as razões do desenlace teriam sido um tanto diferentes. Com o negros t|iir
representavam a autoridade —num a sociedade em que todos os pensado
res sérios acreditam que os negros oprim idos estão em constante lula com
os brancos opressores - tais funcionários juntaram forças com o agressi >i,
ao m enos na cabeça daqueles que acreditam em tais dicotom ias simplistas
Nessas circunstâncias, dificilm ente seria de surpreender que mostrassem
certa relutância, ao lidar com outros negros, em fazer cum prir vigorosa
m ente as regras por m edo de parecerem ser um “ PaiTom ás” ,1 fazendo o
trabalho dos brancos para os brancos. Em um m undo dividido em “ eles"
e “ n ó s” (e teria sido difícil para a assistente social e a policial, dada a
atual conjuntura, escapar com pletam ente desse m odo de pensar), “ nós"
estamos unidos de m aneira indissolúvel contra “ eles” : portanto, se um de
nós tratar m al um semelhante, é um escândalo que devem os ocultar para
nosso p róprio bem coletivo. U m am igo m eu, africano e negro, que esteve
refugiado na Zâm bia, certa vez publicou um artigo em que expunha a cor
rupção do regim e de lá. Seus am igos africanos disseram -lhe que, embora
nada do que dissera 110 artigo fosse falso, ele não deveria tê-lo publicado
porque expunha a roupa suja da África para o olhar racista dos europeus
Em outras palavras, a assistente social e a policial acreditaram em Ma
rieT h erese Kouao porque queriam evitar ter de agir contra um a m ulher
negra, por m edo de parecerem dem asiado “ brancas” . Assim , recorreram às
disparatadas racionalizações de que a Costa do M arfim é um a ilha nas ín
dias Ocidentais e de que as crianças das índias Ocidentais ficam em alerta
quando suas mães as visitam no hospital.
A m édica branca que foi tapeada pela história ridícula de sarna de
Kouao (um diagnóstico negado pelo derm atologista tanto na ocasião com o

1T erm o p ejo rativ o b asead o n a p erso n ag em de H a rrie t B e e c h e r Stow e para desij;


n a r os afro d escen d en tes q u e ag em de m o d o su b serv ien te às figuras de autorid.i
d e d o s b ran co s. (N. T.)

\ \ iiI h 111 S m | c l 11
1
lu lu i r< )| >si,i ) i inli.i h h i le i ili |>arecei nmito severa lia avaliaçat >de K< >ii.k ».
para cvilar a acusaç.io de ser racista, ici la de m odo tão corrente nesse:,
tempos de fácil indignação. Caso não tivesse fingido acreditar em Kouao,
■ la leria de ter tom ado um a atitude para proteger Anna, correndo o i isco
de Kouao acusá-la de ter m otivação racial. E um a vez que (para citar outro
m em orando de m eu hospital) “ assédio racial é aquela ação percebida pela
vítima com o tal” , parecia m ais seguro deixar Kouao com seus cabides,
martelos, águas ferventes e assim por diante. Por isso, tam bém, o d esféclx>
«lo caso não poderia ter sido diferente caso a assistente social e a polic ial
lossem brancas: os m edos teriam sido diferentes dos tem ores das colegas
negras, mas os derradeiros efeitos desses m edos seriam os m esm os.
Kouao, M anning e Anna Clim bie não foram tratados com o seres lni
m anos, mas com o m em bros de um a coletividade: um a coletividade pu
ramente teórica, cuja correpondência à realidade era extrem am ente débil.
Nem o m ais requintado racista poderia ter aventado um cenário m enos
lisonjeiro das relações entre crianças e adultos negros do que aquele que
a assistente social e a policial pareciam aceitar com o norm al no caso de
Kouao e Anna Clim bie. Se o prim eiro m édico, a assistente social e a poli
ciai tivessem se prendido m enos no problem a da raça e estivessem mais
preocupados em fazer o m elhor possível em cáda caso, Anna Clim bie
ainda poderia estar viva; e Kouao e M anning passariam m enos tempo de
suas vidas na prisão.
Vejo tal “ consciência racial” - a crença de que os m otivos raciais su
peram todos os outros - com bastante frequência. Há bem pouco tempo
pediram -m e que assumisse o lugar de um m édico que iria ausentar-se p< n
um período m ais longo e que era bem conhecido por sua simpatia ideo
lógica por negros de origem jamaicana. Para ele, os altos índices, tanto de
prisões com o de psicoses, de rapazes jam aicanos eram prova daquilo que
licou conhecido na Inglaterra, desde um fam oso relatório oficial feito pela
polícia m etropolitana de Londres, com o “ racism o institucionalizado” .
Um a enferm eira pediu-m e que visitasse um dos pacientes desse mé
dico, um rapaz negro que vivia em um a terraced house2 perto do hospital

'V er n o ta 2 d o cap ítu lo 1 4 , “ Os C h iq u eiro s F azem os P o rco s?” . (N .T .)

Ml lllidlldr S< HI il II III I N il M MhMI III Mil N ll'iun Un II i| Ii ii Im 1*1 I


Tinha uma longa história <I< psii t>sr < i n u i\,i .r ,i tomar a medie,u,a<> I i
seu prontuário no hospital e fui à sua casa
Quando cheguei, o vizinho da porta ao lado, um negro de meia Idadr,
disse: “ Doutor, o senhor tem de fazer alguma coisa, senão alguém vai sei mm
to” . O jovem, nitidamente louco, acreditava que tinha sido enganado prla
família a respeito de um a herança que o teria deixado extremamente rio >,
Só soube, mais tarde, do histórico de violência desse jovem. A última
vez em que o m édico que eu substituía visitou a casa, o jovem o persegu111,
em punhando um facão. O jovem atacara seus fam iliares por diversas ve/es
e expulsou a mãe da casa que era dela. Fora obrigada, pelas ameaças d i»
rapaz, a buscar abrigo noutro local.
N em essa propensão à violência nem o incidente com o facão conn
tavam no prontuário. O m édico reconhecia que o registro dos incidentes
iria “ estigm atizar” o paciente e acresceria algo ao prejuízo que sofria, de
m aneira crônica, com o m em bro de um grupo já estigmatizado. Ademais,
tratá-lo contra a própria vontade por sua perigosa loucura - o que a lei m
glesa perm ite —seria sim plesm ente dilatar o núm ero já excessivo de jovens
negros que solicitam tal tratamento com pulsório por psicoses causadas
(com o diria m eu colega) pelo racism o inglês.
Tal delicadeza de sentimentos não ocorreu em relação à mãe des
se jovem, no entanto, ela passou muitos e irrepreensíveis anos de sua
vida com o enfermeira, pagando a casa de onde o filho a expulsara. A sim
patia era apenas para o rapaz, que preenchia os requisitos de alguém
que necessita proteção de um a sociedade pouco compreensiva e hostil
O fato de que, caso alguém não interviesse, ele poderia muito bem matar ou
ferir gravemente qualquer pessoa e terminar em um m anicômio judiciário
por toda a vida não preocupava. M eu colega interpretaria isso como mais uma
prova da natureza opressiva e racista da sociedade, e da necessidade de tratar
pessoas com o esse rapaz com um a delicadeza de sentimentos ainda maioi
Não há casos dos quais não possam ser derivadas as conclusões erradas.
Até m esm o eu, apesar da acérrim a oposição ao raciocínio ou ações
raciais, achei difícil resistir totalmente ao espírito da época. U m dos piores
erros que já com eti foi por perm itir-m e dar im portância à raça quand< >, <l<
m odo algum , deveria ter sido dada.

I 'H \ \ h Iii ii m S i H j r i n
( ) j o v e m I l ey I * I, 1111■ .mu!.I vivi.i c o m .1 m. i e, c o m e ç o u .1 r e c o l h e i se,
r u m o se estivesse 111..... . concha. N u n ca nmito co m unicativo on exlrover
lido, continuava a trabalhar, m as não a falar. E111 uma oportunidade làlou
coin a mãe - a respeito da doação de seus pertences caso ele morresse.
Certo dia a m ãe retornou e encontrou a casa barricada. O f i l h o estava
dentro, e colocara a m obília diante das portas e janelas. A m ãe chamou
os bom beiros, que tiveram dificuldade em entrar. Encontraram o rapaz
inconsciente, com os pulsos cortados e sangue por toda a parte.Tam bém
tomara um a overdose de pílulas.
Perdera tanto sangue que precisou de um a transfusão antes do início
da cirurgia para consertar os tendões. U m a tentativa mais determ inada de
suicídio dificilm ente poderia ser im aginada. Sugeri à mãe que, após a re­
cuperação da cirurgia, ele fosse transferido para a ala psiquiátrica.
Prim eiram ente ela concordou, aliviada com a sugestão; mas depois,
outro de seus filhos e um am igo chegaram ao hospital, e a atmosfera ime­
diatamente m udou. Pela postura deles para com igo, qualquer um supori.i
que fora eu quem cortara os pulsos do jovem , que o prendera dentro da
casa e quase o levara à morte. M inha argum entação de que sua conduta a<>
longo das últimas semanas sugeria que ele estava, de algum m odo, men
talmente perturbado, que isso requereria m aiores investigações e que ele
corria grave risco de suicidar-se foi cham ada de racista: eu não teria dedu
zido isso se m eu paciente fosse branco. O hospital era racista; os m édicos
eram racistas e eu, em particular, era racista.
Infelizm ente a mãe, com quem m inhas relações até a chegada dos
outros dois hom ens tinham sido cordiais, agora tomara o partido deles
Em hipótese algum a ela perm itiria que seu filho fosse para a ala psiqui.i
trica, onde costum eira (e propositadam ente) drogavam jovens negros .11 <
a morte. O irm ão e o am igo advertiram -m e que, caso insistisse, levari.....
os am igos para criar um tumulto no hospital.
A lei perm itia que eu desconsiderasse a mãe do rapaz, o irm ão e <>
am igo, mas o cenário estava ficando feio. M arquei um a reunião com eles
no dia seguinte, na esperança de que aquela atitude tivesse sido apenas .1
manifestação de um a aflição passageira, mas aí a postura endureceu. Cedi,
mas antes de fazê-lo, fiz a m ãe assinar um a declaração de que eu lhe avisar,1

Ml i i ll il ti i ii S n i l l l i i m I \ H IM , Mniiriii no N ohho Rnlni I n i l l M n u I )|<|'


(I.is consequências de recusai im,....... | ii . jiii* r. <• o I ralamenlo 'I ' 1 lilli-
pelas <|u.iis ihm11 eu, nem o hospiial poderíam os scr respi msabili ado
O docum ento não tinha nenhum a validade jurídica, qualquer lona i|m
tivesse era estritamente moral.
N ão desisti realmente. M andei um a enferm eira para a casa do iapa
mas a sua entrada foi por diversas vezes negada com a alegação de que m-te,
serviços (racistas) não eram necessários. Poucas semanas depois o jovem
se suicidou por enforcamento.
Ao m enos a fam ília não teve a audácia de processar-me por nao n i
invocado a plena força da lei (com o, refletindo, eu deveria ter feito). NS< >
afirm aram que deixei de hospitalizá-lo contra a sua vontade por moiivo\
racistas, não m e im portando com o destino de um sim ples hom em negn >
um a argum entação que, sem dúvida, teria soado para algum as pessoas
com o totalmente plausível. De fato, não invoquei a lei por questões de
raça, em bora não por m otivos racistas, pois se fosse um a fam ília bram a,
certamente os teria desconsiderado. Capitulei, todavia, à ortodoxia de que
evitar o conflito racial deve superar todas as outras m otivações, até mesim i
o sim ples bem-estar dos indivíduos. N o atual clim a de opinião, todo In >
m em branco é racista até que se prove o contrário.
N inguém duvida da sobrevivência do sentimento racista. Outro dia, p< >i
exemplo, estava em um táxi conduzido por um jovem motorista indiano
que não gostava do m odo com o um jovem jamaicano estava dirigindo. ‘‘ J<>
guem um a banana para esse hom em !” , exclam ou quase sem pensar, lisse
arroubo espontâneo revelou muito sobre seus verdadeiros sentimentos.
A sobrevivência de tais sentimentos, contudo, dificilmente requer ou
justifica a presunção de que todos os serviços públicos são inerente e ma
lignamente racistas, e que, portanto, compensações de justiça social devem
ter um papel m aior na prestação desses serviços do que as considerações de
ordem individual. Nessa situação, negros e brancos estão unidos por um
tipo próprio de folie à deux: os negros, ao temer que todos os brancos sejam
racistas, e os brancos, ao temer que todos os negros os acusem de racismo
Enquanto estiverm os presos a essa tolice, inocentes com o Anua
Clim bie m orrem .

200 I

l-K. \ \ II III >||| ' MII |t'l


teoria
ainda
mais '
sombria
0 Iri1 1 mMo dé Não Em itir Juízo

á pouco tem po perguntei a um paciente com o ele descreveria a


própria personalidade. Parou por um m om ento, com o se sabo­
reasse um delicioso bocado.
— Aceito as pessoas com o são — respondeu no devido tempo. — Não
sou de julgar as pessoas.

N o m om en to em que dois de seus com p an heirds de quarto ti­


nham acabado de fugir, rou ban d o seus pertences m ais p recio so s e
d eixan d o -o com d ívid as ru in o sas para pagar, essa neutralidad e para
com o caráter h u m an o n ão p arecia generosa, m as estúpida; u m a esp é­
cie de preven tivo, con trário ao aprender da exp eriên cia. N o entanto,
,i não em issão de ju ízo s de valor fo i tão u n iversalm en te aceita com o
,i m ais excelsa, e certam ente a ún ica, das virtu d es que ele falava da
p róp ria p erson alid ad e com o se colocasse um a m edalha de m érito e x ­
cep cion al no p ró p rio peito.
Naquela m esm a semana, fui questionado por outra paciente que ex­
perimentara consequências ainda piores da não manifestação de juízos de
valor, muito em bora dessa vez a culpa não fosse totalmente dela. Sua vida
lora a da m oderna m oradora de bairros pobres: três filhos de pais diferen-
ics, r nenhum deles a am parou de m aneira algum a, sendo que o últim o
• i.i um alcoólatra violento, perverso. Separara-se dele fugindo com o filho
de dois .mos p.u,i uin abrigo p.u,i 1111111tr*i• tyrrdida.s; logo drpor., viu si
riu uin apartamento cujo parad ein >o úliimo c<>mpanbeiro drsc<>nIu-t 1.1
Infelizmente, algum tem po depois, ela deu entrada no hospital p.u.1
uma cirurgia. Com o não tinha ninguém a quem pudesse confiar a c ri.i 11», .1,
buscou a ajuda do serviço social. Os assistentes sociais insistiram qur .1
criança, contra seus apelos m ais desesperados, deveria ficar com o pai I>n 1
lógico enquanto ela estivesse no hospital. Fizeram ouvidos m oucos p.u .1
os argum entos dela de que ele era um guardião inapto, ainda que por dii.r.
semanas: consideraria a criança com o um estorvo, um a interferência 111
tolerável na rotina diária de embebedar-se, frequentar prostitutas e brigai
Os assistentes sociais disseram que era errado em itir juízos com o aquele,
a respeito de um hom em e am eaçaram -na com terríveis consequência*,
caso ela não concordasse com o plano. Assim, a criança de dois anos lo!
mandada para o pai com o exigiram .
Em um a sem ana, ele e a nam orada m ataram a criança, balançando .1
repetidam ente pelos tornozelos contra a parede e lhe esm agando a ca
beça. Ainda que em m om ento um tanto tardio, a sociedade, relutante
mente, em itiu um julgam ento: am bos os assassinos foram sentenciados
à prisão perpétua.
E claro que o ím peto de não em itir juízos de valor é parte de u 111,1
reação à aplicação cruel ou irrefletida de códigos m orais no passado. Um
am igo, recentemente, descobriu um a m ulher de uns noventa anos que
vivera com o “ paciente” em um grande hospício por m ais de setenta anos,
cuja única doença - até onde ele foi capaz de descobrir - fora dar à luz 11111
filho ilegítim o nos anos de 1920. N inguém , por certo, desejaria o retoi 110
de um encarceramento tão m onstruoso e a destruição, sem cerim ônias, da
vida das m ulheres, mas isso não significa que a ilegitim idade em massa
(33% do país com o um todo e 70% em m eu hospital) seja um a coisa boa,
ou ao m enos não seja algo ruim . Juízo é exatamente isso: julgar. Não é
mensurar cada ação com um instrum ento rígido e infalível.
Os apologetas da não em issão de juízos de valor salientam, sobrrludi >,
suas supostas qualidades de com paixão. U m hom em que julga os dem.ii:,
irá, às vezes, condená-los e, portanto, negar-lhes ajuda e assistência; .10
passo que o hom em que se rrcusa a rm ilir juízos de valor não exclui

\ \ i'lii I ui S i i i | r l M
ninguém <!c ■.! i.i < < m1 1 1 > . i i x ã < > abrangente. Nunca pergunta de onde vem o
sof rim ento do próxim o, seja autoinfligido ou não, pois qualquer que seja
.1 liiiite, ele com preende e socorre o sofredor.
O departamento de habitação da m inha cidade aderiu rapidam ente a
essa doutrina. Aloca escassas habitações públicas, diz nos folhetos autoelo-
giosos, com base somente na necessidade (tirando um a ou duas relações
nepotistas — afinal, até os que não gostam de em itir juízo de valor são
hum anos). Nunca perguntam com o prim eiram ente surgiu a necessidade,
lá estão para cuidar e não para condenar.
N a prática, é claro, as coisas são um pouco diferentes. É verdade que
o departamento de habitação não julga os m éritos dos candidatos por li­
beralidade, mas é precisam ente por isso que não pode expressar nenhuma
com paixão humana. A avaliação da necessidade é matemática, baseada no
cálculo perverso da sociopatia.
Para retomar o caso da m inha paciente cujo filho foi assassinado: ela
foi expulsa de casa pelos vizinhos que achavam que era a responsável pela
m orte da criança e, por isso, agiram com o bons cidadãos indignados ao
tentar, por duas vezes, incendiar o apartamento em que ela morava. Depois
disso, ela encontrou acom odação barata em um a casa que tam bém abriga­
va um usuário de drogas violento, que tentou galanteá-la à força. Quando
fez um requerim ento ao departamento de habitação solicitando ajuda, esta
foi recusada visto que ela já estava devidamente alojada, no sentido de ter
quatro paredes ao seu redor e um teto sobre a cabeça (e seria totalmen­
te errado estigmatizar viciados em drogas com o vizinhos indesejáveis),
e também porque ela não possuía m enores dependentes — seu único de­
pendente m enor de idade fora m orto e, portanto, não fazia m ais parte d.i
equação. As pedras devem ter chorado pela situação de m inha pacienlc,
mas não o departamento de habitação: é dem asiado im parcial para fazê l<>.
M uito curiosam ente, m inha paciente era perfeitam ente capaz - com
um pouco de encorajam ento - de aceitar que seus infortúnios não pro
vinham totalm ente do nada, que contribuíra para que ocorréssem com ,i
própria conduta e, portanto, não era um a vítim a pura ou im aculada. Ao
seguir a trilha de m en or oposição, com o fizera por toda a vida, conseni i
r.i em ter os filhos de um h om em que sabia ser totalm ente inapto com o

l< ni ui AÍimIji Mui '«.m lin -t < > Iiii|h I n i l r IN/m 1 ui li Jiií/.n
I 1 MH
pai. De fato, sabia que ele era vi<»lento e bêbado, m esm o antes de u vlv< i
com ele, m as m esm o assim o achava atraente e viveu em uma sociedadr
que prom ovia sua própria versão do Serm ão da M ontanha o di.i >I*
am anhã terá suas p róprias atrações. A gora aprendera com a experiéiu 1.1
(antes tarde do que nunca) — o que nunca aprenderia caso deixasse dr
em itir juízos sobre si m esm a e sobre os outros. C om o resultado, rejein ui
outro am ante violento, renunciou à própria bebedeira contum az e dei i
diu fazer faculdade.
Na clínica, é claro, um a espécie de suspensão de juízo prevalece r
deve prevalecer: os m édicos nunca devem negar tratamento com base em
deficiências morais. M oisés M aim ônides, o rabino e m édico do séculc> XII,
escreveu: “ que jamais enxergue no paciente nada além de um irm ão que
sofre” - certamente, um a nobre aspiração, ainda que de algum a maneira
seja difícil de alcançar na prática.
A m edicina, no entanto, não é somente a contem plação passiva do
sofrim ento: é a tentativa, por m eios nem sem pre bem -sucedidos, de .ili
viá-lo. E não pode ter escapado da atenção dos m édicos que m uito do
sofrim ento m oderno tem o sabor evidente da autoimposição. Não falo, n< >
m om ento, das doenças físicas que derivam de hábitos tais com o o fumo,
mas do sofrim ento crônico causado por não saber com o viver, ou melhoi,
por im aginar que a vida pode ser vivida com o entretenimento, com o uni.i
versão televisiva ampliada, que não é nada além de um a série de prazeres
do mom ento. O turbilhão do tem po traz vinganças — ao m enos em um
clima frio com o o nosso.
Se o m édico tem o dever de aliviar o sofrim ento dos pacientes, deve
ter algum a ideia de onde vem tal sofrim ento, e isso envolve a definição
de um juízo, até m esm o de um juízo m oral. E, na m edida em que pudei
dizer de boa-fé que a m iséria de seus pacientes deriva do m odo com o
vivem , tem o dever de dizer-lhes isso — o que muitas vezes envolve unu
condenação m ais ou m enos explícita do m odo de vida deles com o algo t<>
talmente incom patível com um a existência satisfatória. Ao evitar o assunto,
o m édico não está sendo respeitoso com os pacientes; está sendo covarde
Ademais, ao recusar im putar o ônus aos pacientes para m elhorar-lhes ,i
sina, provavelmente, os induz ao erro, fazendo com que suponham que

\ \ i i l i i i ui N íu ji h l
exisla unia resposta pur.unente técnica ou larm iuológlca par.» os prolile
mas, ajudando a perpetuá-los.
Por exem plo, sou consultado ao m enos um a ou duas vezes por dia
semana sim , semana não; ano sim , ano não —por m ulheres que reclamam
de ansiedade e depressão, cujas biografias contêm explicações óbvias para
esses sentimentos desagradáveis. As m ulheres, muitas vezes, passaram por
mais de um relacionam ento sexual violento, às vezes uns quatro relacio
namentos sucessivos, e possuem m ais de um filho pequeno para criar.
Embora sintam o m edo de gerir sozinhas a vida, sem a ajuda de outro
adulto, chegam à conclusão de que todos os hom ens não são confiáveis, e
são um tanto psicopatas. Estão, aparentemente, num dilem a insolúvel: que
situação é melhor, quando apanham ou quando estão sozinhas?
Ajudadas por algum as perguntas simples, não dem ora m uito para que
analisem a situação, em bora desde o início, invariavelmente, atribuam a
infelicidade à m á sorte ou ao destino. O poder do autoengano é tal que
até as considerações mais óbvias lhes escapam. Poucas semanas atrás, uma
m ulher veio até m im reclam ando de sua vida miserável e dizendo estar
insatisfeita há vinte anos. O m arido a tratava com o escrava, e quando não
era obedecido, ficava agressivo, chegando a lançar objetos no recinto, a
estilhaçar janelas e a bater nela.
- Por que não o abandona? - perguntei.
- Tenho pena dele.
- Por quê?
- Bem , doutor, ele não é m uito inteligente, e não sabe ler ou escrever.
Não conseguiria resolver as coisas sozinho; não pode fazer nada por si
mesmo. Eu tenho até que discar os núm eros do telefone para ele porque
não saber ler os números.
- Ele trabalha?
- Sim, sempre trabalhou.
- O que ele faz?
- É o chefe da segurança na Prefeitura - um enorm e casarão elizabe
tano nos arredores da cidade, de propriedade do m unicípio.
- Quantas pessoas trabalham lá no departamento de segurança? - per­
guntei a ela.

IfMUM A llliln M h Í "UmImIm 1 H l l l | i r l n i l r N » n l l l i l l u J IIí/n


—Dezesseis.
—Você está a dizer que toda ve/, que ele precisa dar um lelelonem a m i
serviço pede a um dos funcionários para discar porque ele não consterne
ler os núm eros? Ou que cada vez que recebe um a carta, alguém tem . 1.
ler para ele?
Minha paciente olhou-m e com os olhos arregalados. Era tão óbvio
que ela nunca tinha pensado nisso.
- Não é m uito provável que um a pessoa com o essa seja escolhida para
a chefia, ou é? - acrescentei.

Ela tinha deixado de pensar, por covardia e com odism o, sobre a nítida
discrepância entre a carreira de seu m arido e o suposto desamparo em
casa, pois caso reconhecesse isso, não poderia m ais pensar em si mesma
com o um a vítim a (com todo o conforto psicológico que a vitim izayjo
confere), mas, em vez disso, tinha de se ver com o coautora da própria
desgraça. Ela queria evitar um doloroso dilem a: aceitar a situação com o
era ou fazer algo a respeito.
Apcxs outras duas conversas com igo, ela tom ou um a atitude. Deu um
ultimato ao m arido: ou ele mudava de com portam ento, ou ela o deixaria.
Além disso, se ele encostasse um dedo nela mais um a vez, chamaria a po
lícia e daria parte dele. Desde então, ele tem se com portado e até fez aquilo
que ela, por vinte anos, acreditou que ele fosse incapaz de fazer: uma xí
cara de chá para si mesmo. Nesse m eio tempo, ela está frequentando aulas
de artes em vez de aprisionar-se no apartamento esperando os comandos
arbitrários do marido.
Essa paciente tinha apenas um hom em violento com quem lidar; mui
tas de m inhas pacientes tiveram um a série deles. Pergunto onde elas os
conheceram , e quase sem exceção foi em um bar ou em um a boate, quait
do ambos estavam sem ter o que fazer, com um relacionamento prévio
que terminara há um a semana ou m esm o no dia anterior. Pergunto o que
tinham em com um , além do sentimento de perda e solidão. A resposta
invariável: atração sexual e o desejo de um a saída divertida.
Tais coisas não são, em si mesmas, desprezíveis, é claro, mas como bases
de relacionamentos de longo prazo e de paternidade são muito tênues, e

\ Viityi i ui S m ji iii
I l l g o lil . 1111 III h I I I I 1,11 I II ' Il II. I'. P c i g U U l O I 11 II I II I I I > > I l 111 I I .1 I •• .1 I I II I

Ihcres e scii'. . u n . mil . ii ui cm comum, e sem r x rc ç o r:,, «•!«••. n.io cxislcm


( >corre-corre diário constitui todo o seu m undo: lazer as compras, cozinhar,
ai rumar alguma coisa, assistir muita televisão, fazer uma visita ao escritório
do serviço social e umas poucas horas no bar, enquanto houver dinheiro, lissa
rotina sem objetivo logo cansa, mas m esm o assim continua a ser objelo de
( (instantes e acrimoniosas desavenças. Além disso, não existe pressão - seja
a pressão moral da comunidade seja a pressão econômica do sistema tribu
tário ou dos benefícios da previdência social —para manter os casais unidos.
Pouco depois, nem necessidade nem desejo consolidam os relacionamentos,
somente a inércia, pontuada pela violência. Para o hom em violento, ter a mu
lher tremendo de m edo dele é a única garantia de relevância pessoal.
Com o, perguntam as m ulheres, elas encontrarão hom ens que não são
assim? Com o um a m ulher encontra alguém que não irá explorá-la, seja
com o um ticket refeição ou com o um objeto de alívio da tensão sexual, que
não irá gastar o próprio dinheiro do benefício social em um a única noite
e depois exigir que ela também entregue o seu dinheiro, não obstante o
dinheiro seja necessário para alimentar os filhos? Com o ela será capaz de
encontrar um hom em que verdadeiramente dará algo em troca, tal com o
com panheirism o e apoio incondicional?
A resposta necessariamente envolve a análise de com o elas viveram da
infância em diante; pois se, com o afirm o e elas concordam , é necessário
ter interesses em com um para ter algum a profundidade em um relaciona
mento, prim eiram ente, com o tais interesses são concebidos?
A maneira inadequada com o foram criadas e educadas e a lamentável
visão de m undo tornam -se nítidas para elas, quiçá pela prim eira vez.
- Que tipo de coisa a interessa? - pergunto. A questão surge como um
tiro de alerta.
- Bem ,... na verdade, nada —respondem. Reconhecem, imediatamniii ,
a natureza insatisfatória da resposta - que também é bastante verdadeira
- Esforçou-se na escola?
- Não.
- E o que ficava fazendo?
- Ficava à toa, com o todo mundo.

li'iM 'in \ i i h I i i M i i i h S o i i il m u i ( ) Im p rlo «Ir N ilo K n iilii Ju ízo


( )', id ic ta s descstiinulaiii, .r. \ imi m elo de violência I r.lt a , *i*.
poucos (|ne dem onstram algum a inclinação para trabalhar Para iv .iM lt
ao ethos predom inante seria necessária uma coragem excepcional, bem
com o apoio dos pais, que quase sem pre não existe. O m elhor é segui i u
gru p o e desfrutar dos prazeres ilícitos do m om ento. O trabalho, na ver
dade, não im porta; afinal, sem pre haverá com ida suficiente, um teto so
bre a cabeça e um a televisão para assistir, graças às subvenções do listade>,
Além disso, um a verdade universalm ente aceita nos bairros pobres é <|iie
não há nada a ganhar por esforço pessoal, já que o m undo é organizadi >
de m odo tão injusto. N a ausência de tem or e esperança, só o m om ento
presente tem algum a realidade: faça o que é m ais divertido, ou o menos
tedioso, a cada m om ento que passa.
N a ausência de interesse ou de carreira, a maternidade parece uma
boa escolha; só depois fica claro com o é aprisionante, especialmente quau
do o pai —previsivelmente, porém não predizivelm ente —não toma parte
nos deveres parentais.
Sem nenhum a experiência ou conhecim ento dos m undos da ciência,
da arte ou da literatura, e destituídas da mera necessidade de ganhar a
subsistência, minhas pacientes não são ricas de nada, a não ser do tempo
que têm nas mãos, de m odo que embarcam nas Liaisons Dangereuses [Ligações
Perigosas] da periferia. Os relacionam entos em que se enredam, no entan­
to, são, por si sós, incapazes de sustentar por um longo tem po o fardo que
lhes é im posto, e chegam à indigência, à escravidão, à sordidez, e o m edo
é quase imediato.
Aos vinte e tantos anos, a mais inteligente entre elas diz-m e: “ Falta
algum a coisa na m inha vida, mas não sei o que é ” . Fazem-me lem brar dos
jovens que encontrei atrás da Cortina de Ferro, que nunca tinham conheci
do outra vida senão aquela sob o regim e comunista, que pouco conheciam
a respeito do m undo do lado de fora, e, m esm o assim, sabiam que seu
estilo de vida era anorm al e intolerável.
M inhas pacientes m edicalizam tanto a própria m iséria quanto a con
duta terrível dos amantes violentos; um a m aneira de explicar a insatisla
ção existencial que as absolve de responsabilidade. Leva um pouco mais
de tem po, porém , para desiludi-las dessas ideias erradas, e o fato de

\ \ li l n \ i u i ! *111 j r l i i
III|11( MI I .11i . l . |l | i i | | II l'V i s t H'S llll IIll I ,l| II I l i i III.HI-' ' || V || I > I IIII l<>
dl uossas consuli.e. du m odo com o os amantes com portaram sc com
d a s as surpreende. Semana passada, vi um a paciente que tinha tom ado
uma ovcrdose depois de o nam orado espancá-la. N osso diálogo seguiu um
padrão definido.
— As vezes ele põe as m ãos ao redor do seu pescoço, aperta e tenta
estrangulá-la? —perguntei.
—Com o o senhor sabia disso, doutor?
—Porque escuto isso praticamente todos os dias nos últimos sete anos,
e você tem marcas no pescoço.
—Ele não faz isso sempre, doutor. —Essa é a atenuante universal.
— E é claro que ele pede desculpas depois e diz para você que isso
nunca acontecerá novamente; e você acredita nele.
—É. Realmente acho que ele precisa de ajuda, doutor.
—Por que você diz isso?
— Bem, quando ele faz essas coisas, muda completamente; vira outra
pessoa; os olhos ficam vidrados; é com o se tivesse um ataque. Acho m es­
mo que ele não consegue evitar isso, não tem nenhum controle.
—Será que ele faria isso na m inha frente, aqui, agora, neste quarto?
—Não, claro que não.
—Então, ele consegue evitar, não é?

O desejo da m ulher de fugir de um dilem a doloroso - am á-lo e ser


espancada ou deixá-lo e perdê-lo - fez com que ela evitasse fazer para si
mesma a pergunta m ais óbvia: de por que o “ ataque” só aconteceria na
privacidade do apartamento deles. De m odo repentino, inevitavelmente, a
responsabilidade de m itigar a própria m iséria coube a ela m esm a: tinha de
fazer uma escolha.
—Mas o amo, doutor.
O triunfo da doutrina da soberania do sentimento sobre a consciênci
sem dúvida, teria deliciado os rom ânticos, mas prom oveu uma quantidade
exorbitante de sofrimento.
—E pouco provável que seu nam orado mude. Ele a estrangula porque
gosta disso e tem um sentimento de poder ao fazê-lo. Isso o faz sentir se

11 41 ! Ill \ l i n l i i M m 1 " ' i i i l ' i hi O 11 1 1 1 M'l<> ( I r I Ni l n I i n i l i l J I I í / n ’<)


impuii.m ii "I slraiigulo c rl.i .11 1III ) 1 1 II .mi i hign devo si i ícalm cnic m.i
i ,iv 1 11 1 <>s< i Sc v(K'(‘ dei xá li >, r i r r ui i mi i .1 1 . 1 (ml l i >alguém para rsl i angulai
denlro de uma semana.
Mas é difícil, doutor.
Não disse que é fácil; disse que é necessário. N ão há por que <> nr
cessário também deva ser fácil, mas você não pode esperar que os médu n‘,
a façam feliz enquanto seu amante ainda a está estrangulando, ou làçam
com que pare de estrangular. N enhum a dessas coisas é possível. Vocr drvr
lazer uma escolha. Sim plesm ente não há com o contornar isso.
Dizer à paciente que ela é responsável, tanto na prática quanto mo
ralmente, pela própria vida não é negar ajuda, é dizer a verdade. Forçá l.i
a enfrentar a cum plicidade na sua m iséria não é abandoná-la ao próprio
destino. Em muitas ocasiões coloquei tais m ulheres em contato com ,nl
vogados, consegui para elas acom odações seguras, consegui vagas cm
faculdades. Também não exijo um a decisão im ediata; o que levon anos
para desenvolver raras vezes é desfeito em um a ou duas horas. N o enlan
to, atenho-m e a um a verdade fundam ental: nenhum m édico, nenhum
assistente social, nenhum policial pode m elhorar a qualidade de vida
dessa mulher, a m enos que ela esteja disposta a renunciar a qualquei
gratificação que receba do nam orado violento. N ão há um m odo indoloi
de resolver o dilem a.
Em quase todos os casos as m ulheres voltam poucas semanas depois
com o hum or m uito melhor. O am or que pensavam ter pelos algozes j.i
tinha evaporado; acham d ifícil, em retrospecto, d istingui-lo do m edo
que sentiam.
O que devemos fazer agora? Perguntam-me.
Com o irei respondê-las? Devo fingir um agnosticismo a respeito da
quilo que poderia constituir um a vida m elhor para elas e seus filhos? Devi >
lingir que a outorga prom íscua de favores ao prim eiro hom em que eu
contram em um bar é tão bom quanto tomar um pouco mais de cuidado
nessas questões? Isso não seria a extrema traição?
Digo a todas que a prim eira responsabilidade é fazer o possível para
evitar que os filhos sigam seus passos; elas têm de tentar abrir os lion
zontes dos filhos além da visão miserável e sórdida dos bairros polires

\ \ 11In i\i\ -ui j r l n


l'.so envolvr |í.i ii um n-mpn com cies, mlt m*s \.ii m pelos ir.ihâllios <li
escola, aprendei .1 dl/e 1 "n ã o ” quando surgir a oportunidade, 0, acima de
ludo, assegurar que nunca testemunhem cenas de violência doméstica.
Quanto a elas, devem tentar um a faculdade: ainda que isso não ren
da um em prego melhor, ao m enos terão um sentimento de realização e,
p<issivelmente, adquirirão um interesse duradouro. Caso isso signifique
desrespeito às regras do seguro social —que ordenam que elas estejam te«
ricamente disponíveis para o trabalho e, portanto, não estejam estudando
em tempo integral - bem , não inform arei às autoridades, que (parece)
preferem que seus dependentes sejam completamente passivos.
Muitas vezes elas seguem minhas sugestões. (Uma de m inhas pacien­
tes, que fora espancada durante vinte anos, desde então se tornou en-
ferm eira e muitas outras se tornaram assistentes em casas de repouso;
o desejo de ajudar o próxim o é o corolário do desejo de ajudar-se a si
mesmas.) Provavelmente sou a única pessoa que elas já encontraram para
quem a violência de suas vidas não é tão natural com o o ar que respiram,
mas o resultado de escolhas humanas; sou a única pessoa que já sugeriu
que podem com portar-se de m odo diferente.
Seria inútil sugerir que essa abordagem funciona em todas as ocasiões.
É necessário um julgam ento, também, para selecionar os casos; há aqueles
que já são m uito antigos, demasiado frágeis psicologicam ente ou jovens
demais para suportar a dor de aceitar parte da responsabilidade pela pró­
pria desgraça. Infelizmente, há um período durante a espiral descendente
de autodestruição em que pouco pode ser feito, com o se a autodestruição
tivesse um curso natural e próprio. Assim com o alcoólatras e viciados em
drogas podem levar anos para aceitar, prim eiro, que são viciados, e segun
do, que o vício não é nem um a desculpa para o comportamento deles,
nem um a sina im posta pelas circunstâncias, assim a autodestruição in
tencionai que vejo ao m eu redor muitas vezes tem um curso prolongado,
graças à capacidade do autoengano das pessoas.
Raramente pode ser cortado pela raiz. Por exem plo, na semana em
que a m ulher cujo filho foi assassinado consultou-se com igo, duas jovens
vieram ter com igo, nenhum a delas pensava no futuro ou no passado, e as
duas andavam no presente com o sonâmbulas.

Im11 iii \nMIn Mm 1mihIimi i 1 lni|H-ln 1Ir IN/u1 I 11 iH11 Jiií/n


A priinciiM (leias IiliIi.i ili < i i .hm ' iliii.i menina branca, y1;i ,ivhI.i
<lr dois meses de um assaltante muçulmano. listava coberla <l<• equim o
m s . Conheceram -se quando ele arrom bava a casa em que eslava, onde
lôra deixada sozinha durante a noite por sua m ãe solteira, com quem
brigava com o cão e gato a respeito do horário em que ela deveria voltai
para casa dos clubes e boates (a m ãe sugeria o horário anorm alm ente
cedo de m eia-noite). O assaltante pediu que fosse m orar com ele, e el.i
o fez; desde então, ele a enclausurou, nunca perm itindo que saísse do
apartam ento, proibiu qualquer contato com outras pessoas, batia nela
até ficar toda roxa, chutava-a regularm ente no estôm ago, e exigia que se

convertesse ao islã (ele m esm o era um bêbado); no geral, esperava que


ela fosse sua escrava.
Quando ele deu entrada no hospital para uma pequena cirurgia - res
taurar o tendão do braço; machucado quando arrombava uma casa —ela teve
oportunidade de escapar. Ofereci a ela todas as facilidades para fazê-lo, de
um esconderijo aos serviços de um advogado pago com dinheiro público.
— N ão p o sso d eixá-lo . A m o -o , e ele disse que se m ataria caso eu
o deixasse.
Sei por experiência que um hom em com o aquele poderia tomar uma
overdose com o um a form a de chantagem em ocional: a grande m aioria das
overdoses masculinas em m inha enferm aria é de hom ens que bateram nas
mulheres - as overdoses cum prem a dupla função de chantagear a mulliei
para perm anecer com ele e de apresentá-los com o vítimas, e não com o
perpetradores da própria violência.Tam bém sei, por experiência, que um
assaltante m uçulm ano nunca se mataria realmente; mas quando uma jo
vem diz que teme o suicídio do amante, na verdade, ela está dizendo que
ela não o deixará, e nada a fará m udar de ideia.
Enquanto o assaltante ficou no hospital, ela apareceu todos os dias,
vestida em roupas punjabi, para cuidar de seu amante-algoz, trazendo lhe
iguarias indianas e todos os pequenos confortos de que carecia no hospital
A segunda paciente era um a m oça negra, agora com dezessete anos,
cujos pais só souberam de seu caso com um jovem branco, um ano mais
velho do que ela, quando seu professor levou-a da escola para casa, quand< >
linha quatorze anos, por ter sido espancada pelo rapaz no pálio da escola

’ lii \ \ m In u h H i i l | r l n
Poucos iTN.i i li |ii M i leu .1 lir/. o lllho cicie c li iram viver juntos. (Não há
dúvidas de que os luturos historiadores sociais encontrarão contradição
entre nossa preocupação, de um lado, com o abuso sexual, e de outro, nos-
sa conivência e indiferença com a atividade sexual precoce, assim com o
vemos o contraste entre o puritanism o sexual vitoriano e a grande quan­
tidade de mulheres de reputação suspeita no período.) A paternidade não
m elhora a conduta de um jovem : ele quebrou-lhe a mandíbula, fraturou
suas costelas, estrangulava-a parcialmente, socava-a regularm ente e usou a
cabeça dela para quebrar um a janela fechada antes de lançá-la janela abai­
xo. Ele não trabalhava, pegava o dinheiro dela para beber, passava as noites
com outras m oças e exigia que suas refeições estivessem prontas sempre
que lhe conviesse.
O fereci-lhe todas as oportunidades para deixá-lo, toda proteção le ­
gal que era possível conseguir, mas sua taça de am arguras, com o a da
prim eira m oça, ainda não estava cheia (“ Para você está tudo bem ; você
não o am a!” ) e, portanto, ainda não estava pronta para ser desinfetada.
Tudo o que podíam os fazer era oferecer auxílio quando ela estivesse
pronta para pedi-lo.
N enhum a dessas jovens apresentava déficit de inteligência, longe
disso; e em poucos anos, quando aparecerem novam ente em m eu h o sp i­
tal, com o inevitavelm ente o farão, estarão prontas para interrogar a fonte
de seus sofrim entos, tendo perdido tanto tempo. Espero que alguém
tenha a coragem e com paixão de guiá-las até essa fonte, pois som ente se
o véu do autoengano for arrancado de seus olhos poderão m elhorar a
qualidade de suas vidas.
A experiên cia en sin ou -m e que é errado e cruel suspender o ju í­
zo, que o não m anifestar juízos de valor é, na m elhor das hipóteses,
indiferença para com o sofrim en to alheio e, na p io r das hipóteses,
um a form a disfarçada de sadism o. Com o p odem os respeitar as pessoas
com o m em bros da raça hum ana a m en os que con sigam os m antê-las
em um padrão de conduta e de veracidade? C om o as pessoas podem
aprender da exp eriên cia a m enos que sejam avisadas de que p odem e
devem m udar? N ão ex ig im o s de ratos de laboratório que façam me
llior, mas o hom em não é um rato. N ão con sigo pensar em um m odo

li ui ui \iinlii Mm 1mimiIhim * >11•11m■


(o ilr N/hi I mitir Juízo
m a i s d e s d e n h o s o d o tratar as pessoa' , <pie a t r i b u i r lhos tanta r e s po n s a
bilidade quanto atribuím os a tais ralos.
De qualquer m odo, não em itir juízos de valor não é tão isento do |ui
zos. É o raciocínio de que, nas palavras de um cruel tango argentino, "lodo
es igual,nada es mejor” : tudo é o m esm o, nada é melhor. Essa é a doutrina mais
bárbara e inverídica que já surgiu da fértil mente do hom em .

I 9‘>/

\ Vil 111Utl Hlirjrlil


Qual E a Causa do Crime?

o peram bular por um a livraria logo após m inha chegada, numa

A visita recente à Nova Zelândia, deparei-m e com um livro de es­


tatísticas nacionais em que descobri, para m inha surpresa, que a
população carcerária da Nova Zelândia é, novamente, metade do núm ero,
per capita, de prisioneiros da Grã-Bretanha. De repente, aquela nação re­
mota, geograficam ente tão distante da Grã-Bretanha e culturalmente tão
próxim a, pareceu para alguém com o eu, que se interessa pelo crim e, um
enorm e enigma.
Afinal, por m ais de um século nós, britânicos, pensávam os em n os­
sa ex-co lô n ia com o um a Grã-Bretanha m elhor, m ais pura. Por volta de
1900, a N ova Zelândia já era o lugar m ais saudável do m undo. Quase
do m esm o tam anho da Grã-Bretanha, possui um a população igual à da
grande M anchester apenas. Está livre da im un dície e da decadência tão
evidente em todas as cidades e vilas britânicas, e se lá não há grande
riqueza, tam bém não há m uita pobreza. Com um dos p rim eiros p ro gra­
mas de Bem -Estar Social do m undo, possui um ethos igu alitário, e não
podem os diferenciar rapidam ente um m ecânico de um n eurocirurgião
pelo m odo de falar ou se vestir. O estilo de vida é in form al, e o ritm o
é descontraído. Para im pressionar, acrescentem os a isso os altos índices
do PIB per capita, e a N ova Zelândia tem um dos m elhores padrões de
vida do m undo.
1.11 '.u U ed .lde p ró sp e ra , d e n i m l.llli ,1 iy u .l l ll .il 1.1 (level 1.1 ‘.II III.I
lli amente ism la tie crim es, c asii ,c. ( \pin açi m-s conuins d<>s pn>gn v .im .i-.
sobre ,i crim inalidade fossem verdadeiras; mas não são, e a Nova '/.rl.ui
dia, hoje, é tão dom inada pelo crim e quanto seu país natal, o pai:, mar
ilum inado pelo crim e da Europa Ocidental (juntamente com a pmspt i.i,
democrática e igualitária Holanda). De fato, nas tendências crescentes das
ei I ras dos crim es, a Nova Zelândia está apenas um bocado de anos at r.is i l.i
(irã-Bretanha e, em termos de hom icídio, uns poucos anos adiante, liv.e
fato é de grande interesse teórico, ou deveria ser: é a refutação esmagadi >i .1
do padrão progressista de explicação do crime.
Vasculhando ainda mais na livraria, não fiquei nem um pouco es
pantado de ver exposto um livro de um crim inologista de esquerda que

explicava as alarmantes estatísticas carcerárias pelo que chamava de “ 0I1


sessão” do sistema judicial neozelandês com a punição. Por certo, uma
vez que o núm ero de crim es sérios na Nova Zelândia (com o em todos i >s
outros lugares) aum entou em um a proporção m uito m aior que o númerc 1
de prisioneiros, seria m ais correto acusar o sistema de um a obsessão com
a falta de repressão, apelos de abrandamento das penas, busca de desculpa ,
e leniência —qualquer coisa m enos punição.
Logo após m inha ida à livraria, minha anfitriã em W ellington recor
dou-se, ao longo do jantar, de um curioso episódio de sua infância 11a
cidade de Christchurch. Quando ela tinha seis anos, contou, sua mãe a
levou para um a espécie de peregrinação ao local exato onde o fam oso as
sassinato Parker-Hulme ocorrera seis anos antes, em 1954. Esse assassinato
foi objeto do célebre e recente film e neozelandês Almas Gêmeas [Heavenly
Creatures] , 1e nas últimas duas décadas foi objeto de reinterpretações p n >
gressistas - ou seja, untuosam ente im parciais - , que a intelligentzia agora
quase universalmente, e irrefletidam ente, aceita. Essa aceitação é um íe
nômeno de grande significado cultural, e com eça a responder a dilíi il
questão que tanto m e fascinou ao visitar a Nova Zelândia.

1 O film e é u m a p ro d u çã o de R ein o U n id o , A lem an ha e N ova Zelândia, de I 9'M .


d irig id o p o r Peter Jack so n , e traz n os papéis p rin cip ais Kate W inslet e Mel.mie

Lynskey. (N .T .)

1
\ \ «In n u ' n iii« i n
lalenios.i'. i 1111■ lijM Mics, Juliel I lulmc (proiuiiu ia se com o "litim e ’)
i■ 1’auline Parker tinham acabado de term inar os estudos na m ais bem con
ceituada escola de m eninas de Christchurch. O relacionam ento delas era
excepcionalm ente próxim o, mas o im inente retorno da fam ília H ulm e à
Inglaterra am eaçou separá-las. Quando a mãe de Parker negou autorização
à filha para ir com Hulm e, as m eninas decidiram matá-la. Golpearam sua
cabeça repetidas vezes com um tijolo dentro de um a m eia, depois de a
encontrarem propositalm ente no parque para um a xícara de chá e um pas­
seio. O assassinato foi prem editado, com o com provado pelo tom jocoso
com que Parker anteviu o acontecim ento em seu diário.
O caso paralisou a Nova Zelândia e grande parte do m undo. A mãe
de m inha anfitriã levou a filha ao local desse assassinato extraordinário
por conta do fascínio que o m al encerra para os que têm pouco contato
com ele. Christchurch era, naqueles dias, um a cidade provinciana, calma,
próspera, que se orgulhava das boas maneiras inglesas, que não possuía
um único restaurante fora dos hotéis e o m ais perto que tinha chegado da
excitação de um delito fora na decretação do “ six o’clock swill” , um a estranha
instituição criada pela lei, que proibia a venda de álcool em bares públi­
cos após as seis da tarde. Os hom ens podiam beber o quanto desejassem
e o mais rápido que conseguissem entre a hora em qüem deixavam seus
escritórios e seis da tarde, com alguns resultados nada edificantes. A vida
em Christchurch era tão calma que até hoje todos os habitantes acim a de
determ inada idade podem indicar o local exato do assassinato, apesar da
explosão de crim es sérios no período subsequente.
A m udança na interpretação do caso Parker-H ulm e aponta para
um m ar de m udanças na postura da N ova Zelândia para com o crim e
em geral, um a m udança que ocorreu em todos os locais do m undo
ocidental. Toda a op in ião pública da época via o caso do assassinato
Parker-H ulm e com o um ato m au, de garotas m ás, que agiram p or foi­
ça de um a paixão m aléfica. H oje em dia, um a interpretação diferente
é quase universal. U m livro m uito con h ecid o sobre o caso, Parker and
Hulme: A LesbianView [Parker e H ulm e: U m a V isão Lésbica] de duas aca
dêm icas lésbicas, Ju lie G lam uzina e A lison Laurie, resum e a op in ião
prevalecente de hoje.

Iímm i j i \iih Iji Mjii ' •"MiI ihm O iiiiI ! \ n ( i n n s j i <l<> ( . r i n i c ?


Segundo .1 remierpretaçao, n i r... I',i11< i 11nlinc ii.k >f<>i uni .iw.r.-.i11.1
1«) In iii.il e sem sfiitido, mas o desle< In > natural e inevitável de uiu.i gian
de paixão Ir listrada por preconceitos sociais tacanhos e pela inlolei.uii i.i
A Nova Zelândia era, na ocasião, um a sociedade reprim ida c reprcssoia, a>
coisas não poderiam continuar daquele jeito. As autoras, sem questionai,
aceitaram o m odelo hidráulico do desejo hum ano, segundo o qual .1 pai
xão é com o o pus em um abcesso, que, se não é drenado, causa septicemia,
delírio e morte. Se a sociedade im pediu que duas adolescentes iéshi< a-
agissem de acordo com suas paixões, consequentem ente, era de se espi 1 ai
que devessem matar a m ãe de um a delas. O erro prim ordial de dar g<>lpes
esm agadores em pessoas com tijolos esvaiu-se por completo.
Em apoio a tal hipótese, as duas autoras perguntaram a várias léshii a
que cresceram na época sobre o caso e quais foram as suas reações. Sim,
responderam, com preendiam m uito bem as m eninas, pois elas m esm a’,
tinham nutrido sentimentos assassinos com relação aos pais. Ambas as a 11
toras e as pessoas que responderam às questões negligenciaram a dilerem.a
m oral significativa entre o desejo ocasional de que a mãe m orra e o aio
que faz com que isso realmente aconteça. Tal obtusidade não é exchisi
va das lésbicas. O Los Ancjeles Times inform ou que o próprio diretor, IVin
Jackson, não achava que seu filme fazia juízos de valor. Isso, é claro, revela
a curiosa postura moral de nossa época: não é errado golpear com um
tijolo um a m ulher inocente até a morte, mas é errado condenar o feito <■
os perpetradores.
Parker e Hulm e foram tidas com o monstros de depravação e, agora,
surgem quase com o m ártires de um a causa. A opinião pública as admira
não porque conseguiram , após se libertarem dos cinco anos de prisão,
levar vidas novas e bem -sucedidas, indicando a esperança e a possihilid.idi
de redenção (Juliet Hulm e tornou-se um a escritora de romances polii iar.
internacionalmente famosa, sob a alcunha de Anne Perry). Ao contrário, c
porque pensavam que tinham tido um caso am oroso lésbico numa epo
ca de extrem o form alism o e decoro na Nova Zelândia - em hora Hulme
explicitam ente negue que era esse o caso. Acreditam que elas agiram |><>1
desejos proibidos, a m aior das proezas heróicas que os bien-pensunls de n< >v,a
época podem imaginar.

\ \ t l l i l I I I I ' >111 |i l i l
li riam <|iic\ •,< i n n n ssão do desejo losse verdadeiram ente a causa
do crim e, poderíam os esperar que as taxas de crim e caíssem conform e
os obstáculos de expressão sociais e legais fossem rem ovidos. E não pode
haver dúvida de que a Nova Zelândia tenha se tornado um lugar m ui-
lo m enos rigoroso que nos anos 1950. E m uito m ais tolerante com as
pessoas que seguem seus próprios interesses do que era então. E, assim,
um experim ento natural para a verificação ou refutação do m odelo h i­
dráulico de desejo.
Quando Parker e H ulm e com eteram o assassinato, toda a N ova Ze­
lândia registrava, anualmente, cerca de um a centena de graves crim es v io ­
lentos. Certamente fo i o extrem o contraste entre a brutalidade do crim e
e a placidez do país que o tornou tão alarmante: caso tivesse ocorrido na
Colôm bia ninguém teria dado a m ínim a atenção. Quarenta anos depois,
após a contínua dim inuição das restrições de expressão dos desejos, o
núm ero de crim es violentos na Nova Zelândia aum entou para um as qua-
Iro ou cinco centenas de vezes. A população, nesse intervalo, quase não
cliegou a dobrar.
Talvez as práticas de relato tam bém tenham m udado, m as ninguém
poderia sinceramente desconfiar que os crim es violentos tivessem au­
mentado de m aneira tão tremenda (cerca de 400% somente entre 1978
e 1995), e aum entassem igualm ente em perversidade. Não há gênero do
m oderno crim e — do estupro serial ao assassinato em massa - do qual
a Nova Zelândia esteja im une hoje. Já se foram para sempre os dias (na
m em ória das pessoas que não são de m odo algum idosas) em que todas
as pessoas deixavam suas casas destrancadas e as entregas de dinheiro nos
bancos do interior eram deixadas da noite para o dia, intocadas, na calçada
do lado de fora.
O caso Parker-Hulme está longe de ser o único caso na Nova Zelândia
em que a explicação passou inexoravelm ente para a neutralidade m oral
e depois para a justificação total do crim e. Essa neutralidade moral, que
com eça com os intelectuais, logo se difunde para o restante da sociedade
e oferece um a absolvição antecipada para aqueles predispostos a agir por
impulso. Age com o solvente de qualquer freio remanescente. Os crim ino-
s( >s aprendem a ver seus crim es não com o resultado de decisões que eles

li u r í n \nnln M m ' "iiiltn t O in il I M < jiiih im Iu ( im iic ? 2\


1
it u ",mt is 11 ui 1.11 ,m I, m a s t <>nn I i m I v. 11 ii i|i' 1>i I I , a I >sl I al as e 1111| >e\s< >al tin

que não exercem influência alguma

O caso mais fam oso da Nova Zelândia que agora eslá sofrendo u m a

reinierpretação escusatória é o de um a m ulher chamada Gay O ak f. qin


atualmente cum pre prisão perpétua pelo assassinato de seu com panlitin >
Doug Garden, pai de quatro de seus seis filhos. Em um dia de 1994, ela |>ôn
veneno no café, e ele m orreu. Enterrou-o no quintal: das cinzas às ciir/as,
do pó ao pó e de Doug Garden a dug garden,2por assim dizer.
0 caso tornou-se um a causa célebre porque D oug Garden era, pela
m aioria dos relatos (mas não por todos) um h om em m uito desagradável
que, sem dó, espancou e violentou Gay Oakes durante os dez anos de
relacionam ento. Oakes escreveu e publicou agora um a autobiografia, a
qual apensou um breve ensaio de sua advogada, um a das m ais conhecii las
da Nova Zelândia, Ju d ith Ablett-Kerr. A advogada, que luta para conscgim
a redução da pena da cliente, argum enta que Oakes sofria daquilo que
cham ou de “ síndrom e da m ulher espancada” e, portanto, não poderia sei
considerada plenam ente responsável por seus atos, incluindo o envene
namento. As m ulheres que sofrem violência por um período tão longo,
continua o argum ento, não pensam clara ou racionalm ente e devem, poi
isso, ser consideradas segundo um padrão de conduta diferente do res
tante das pessoas.
N ão há dúvidas, é claro, que mulheres que sofreram violência por um
longo período estão, muitas vezes, em um estado mental confuso. Ao me
nos um a dessas m ulheres se consulta com igo a cada dia de trabalho de mi
nha vida. A ideia, no entanto, de que um a m ulher espancada sofre de uma
síndrom e que desculpa sua conduta, não im portando o que seja, tem uma
consequência lógica desastrosa: os hom ens espancadores também sofrem
de um a síndrom e e não podem ser responsabilizados por aquilo que li/e
ram. Isso não é um perigo m eramente teórico: tenho pacientes homens
que alegam exatamente isso e pedem ajuda para superar essa síndrom e de

1 “Ja rd im cav ad o ” : tro cad ilh o intraduzível c o m o n o m e da v ítim a, u m a v e / que

garden significa jard im e a p ro n ú n cia d o n o m e p ró p rio Doug é sem elh an tr .i dug,


fo rm a irreg u lar d o passado e p articíp io passado tio verbo to dig (cav ar). ( N . T )

.’ l i t \ \ D III I'll! ■ <111 | H | |


espancamento I )n 1.1 il,i. muitas indicações de c|11<■i m i >mp<>i tamenli >dclc,
está sob controle voluntário é que pedem ajuda quando ameaçados cm
processo judicial ou em separação, e voltam à conduta destrutiva um a ve/
que o perigo tenha passado.
A “ síndrom e da m ulher espancada” é um conceito intransigente na
rejeição da responsabilidade pessoal. A verdade é que a m aioria (embora
nem todas) das m ulheres espancadas contribuíram para essa situação in-
íeliz pela m aneira com o escolheram viver. A autobiografia de Gay Oakes
de m aneira clara, senão inconsciente, ilustra a cum plicidade com relação
ao p róprio destino, em bora ela registre ingenuam ente as crises sórdidas e,
em grande parte, autoprovocadas de sua vida com o se não tivessem ligação
umas com as outras ou com quaisquer outras coisas que fez ou deixou de
lazer. M esm o na prisão, com m uito tem po à disposição, m ostrou ser inca­
paz de refletir sobre o significado do próprio passado; vive com o sempre
viveu, em um eterno m om ento presente incrivelm ente miserável, cheio
de crises. A história de sua vida é lida com o um a novela escrita por Ingm ar
Bergman. E quanto m ais as pessoas escolhem viver com o ela viveu —e são
financeiramente autorizadas pelo Estado - m ais desse tipo de violência
que ela experim entou existirá. As lições a serem tiradas desse caso são vá­
rias, mas não são aquelas que os progressistas tiraram.
Nascida na Inglaterra, Oakes foi viver na Austrália no com eço da ado­
lescência. Embora não fosse destituída de inteligência, escolheu seguir a
patota e não levou a escola a sério, casando-se im pensadam ente aos de­
zesseis anos. O casamento não durou ( “ não estava pronta para isso” ), e
aos vinte anos tinha dois filhos de hom ens diferentes. A firm ou amar o
segundo com panheiro mas, apesar disso, trocou-o por um caso ocasional
com um outro hom em : seu capricho era a lei. Então, ainda na Austrália,
encontrou sua futura vítim a. U m a das prim eiras experiências com ele foi
vê-lo destruir um bar num acesso de bebedeira.
Dentro em pouco, segundo o relato dela m esm a, ele estava constante­
mente em briagado, era cium ento e violento. Várias vezes ele a enganou e
pegou o seu dinheiro para jogar, contou m entiras ultrajantes e nítidas, e era
preguiçoso m esm o com o “ ladrão de galinhas” . Quebrou as prom essas de
se reform ar incontáveis vezes. N ão obstante, não ocorreu a ela questionar

llM iriti \ in iln Mm i i» I n( .i i ii h i i < ln ( irinirV


( 11» 111 lhe o c o r r e u jlllgá lii .1 ji.iilli <|e mm mi lllút i.ts) Sr lal h o m e m eia
u m |),ii a p r o p r i a d o para s eus 11 11x >:.
lim quatro anos de relacionam enlo, período em que já linha du.r.
das quatro crianças, ele a abandonou por sua Nova Zelândia natal. A ip im
tem po depois, escreveu para ela dizendo que tinha abandonado o á lc o i >
1e
reconhecendo que a tinha tratado m uito mal. Será que ela iria juntai .1 ,1
ele na Nova Zelândia?
Em bora ela recebesse inúm eras prom essas com o essa, e ele tivcv.i
provado várias vezes ser in d ign o de confiança, p reguiçoso, instável, de
sonesto e cruel —se devem os crer no próp rio relato dela a esse respeito
apesar disso, ela acolheu a proposta. “ Durante todo esse tem po, Dom;
cu lp ou -m e por seu com portam ento e, ao adm itir que era responsável
pelas próprias ações, ilu d iu -m e” , escreveu. “ Ainda o amava e realnicnit
acreditei que finalm ente tinha percebido que o m odo com o m e tratava
era errado, lutei com ig o m esm a se iria ou não para a N ova Zelândia
N o final, tive de adm itir para m im m esm a que sentia saudades de Douy;
e q ueria estar com ele.”
Tendo envenenado seu am ado seis anos e dois filhos depois, ela des
cobriu que ele era m uito pesado para enterrar sem ajuda de um a amijM
Na m etade do cam inho para o funeral (que ela não revelou para ninguém
até a polícia achar o corpo quatorze m eses depois), temia que ela e .1
am iga fossem pegas em flagrante e ficou cheia de dúvidas. “ Estava terrível
mente arrependida de ter envolvido a Jo [sua am ig a|” , recordou. “ P e n se i

que devíam os apenas em purrá-lo de um penhasco qualquer.”


Essa é a m ulher que nós (e os tribunais neozelandeses) fom os seria
mente levados a acreditar ser um a vítim a indefesa, um a m ulher que, em
bora não seja m entalmente deficiente, parece nunca na vida ter pensado
adiante m ais que dez m inutos, m esm o em assuntos com o trazer ao m undo
uma criança. Nisso, é claro, ela é um a verdadeira filha da cultura m odri
na, com o culto à espontaneidade e autenticidade, e a insistência de que

o repúdio à gratificação instantânea é desnecessário, e até m esm o um mal


a ser evitado. Nesse sentido - e som ente nesse sentido - ela é um a vílma
Enquanto intelectuais progressistas na Nova Zelândia explicam crimes
com o esse de m aneira frívola, todo o sislem a crim inal da Nova Zelândia

’ SO \ Vii In ||ii
i slá seiKlo ,11,11 adi11 ui iini.i espécie de m ovim ento <l< pinça. I lá dois lipos
de erro judicial um (|ue os progressistas usam para fins incendiários c
destrutivos, e outro que lança dúvidas quanto à sanidade dos tribunais
destrói a confiança de que distinção entre culpa e inocência ainda é uma
i.irefã digna de ser levada a cabo. Se culpa e inocência são tão facilmente
((infundidas, tão difíceis de distinguir tanto em teoria com o na prática,
<|uai o benefício da autocontenção?
O erro judicial que os progressistas ostentam com o bandeira é o caso
de David Bain, um jovem que definha na prisão, acusado de ter assassina­
do toda a fam ília em um a m anhã de 1994. U m hom em de negócios de
Auckland, Jo e Karam, desde então, dedica sua vida e recursos para expor
o trabalho desleixado da polícia, as fragilidades no caso da prom otoria, a
incom petência da defesa e a im obilidade do sistema recursal que resultou
na prisão perpétua do jovem . Karam m uito razoavelmente convenceu m ui-
los neozelandeses de que está certo, e que sua história alternativa para a
morte da fam ília Bain - ou seja, de que o pai atirou na fam ília e depois em
si m esm o —é m uito m ais crível que a versão oficial da polícia.
O p ró p rio Karam ch ego u à conclusão, n o livro que escreveu sobre
isso, de que o veredicto prova a inadequação essencial do sistem a de
justiça crim in al. Isso é um a reação com preensível, em bora equivocada,
de um hom em que m ergu lh ou por anos em um único caso de in ju sti­
ça. Sua conclusão de b o a-fé, todavia, é ecoada e am plificada, de m á-fé,
pelos progressistas.
Sustentam, com base no caso Bain (e em um ou dois outros), que
a Nova Zelândia encarcera erroneam ente m ilhares de pessoas, e que por
isso deve m udar com pletam ente o sistema de justiça crim inal. O que eles
sabem m uito bem e artisticamente suprim em , no entanto, é que qualquer
sistema que lide com um grande núm ero de casos irá, ocasionalmente,
com eter erros, e até erros graves, já que as instituições hum anas são im ­
perfeitas. O novo sistema que substituiria o antigo, do m esm o m odo, co­
meteria erros, não necessariam ente m enos erros. O que os progressistas
c<mtestam em seus corações não é o sistema de justiça crim inal, mas qual­
quer sistema de justiça crim inal. Para a visão progressista, todos somos
igualm ente culpados e, portanto, igualm ente inocentes. Q ualquer tentativa

li« iim A i i m Iu M iim Mh i h I m I" H mm I I n < Ijíiihji <!«» ( Irim i*? , V\


lie 111'.111H, .Il ) I Ijls'O lili'lo llljuM .I I',II l i l I I 11111111 (1,1111, .11111a I. .t| (Cl 1.1«. (I ill

y; 1,1 is 11 n u c u le s c1111 ' li/cm m <><11 n <11 i .i i .<|iit-i gait )tas inocentes teriam lelii •
Ii.i< 11 u'I.is circunstâncias.
Outro caso de injustiça ainda m ais destrutivo nos efeitos do qui' o

( aso Bain é o caso de Peter Ellis, um rapaz acusado e condenado, cm I


I><ir um horroroso abuso sexual de crianças em um a creche municipal > m
Christchurch. O caso tem muitas, e estranhas, semelhanças com o célebn
caso acontecido na cidade de Wenatchee, em W ashington.
Foi alegado e supostamente provado no tribunal que Ellis amarram .r.
crianças com cordas, as sodom izara, e as obrigara a beber urina c a la/< i
sexo oral nele. Isso prosseguiu por um período prolongado sem nenhuma
prova física de suas atividades jam ais ter vindo à tona. N enhum pai sus
peitou de nada errado até que foi feita a prim eira acusação; daí em diante
seguiram -se acusações de m aneira epidêm ica.
Agora surge a ideia de que muitas das provas tinham defeitos. A mu
Hier que fez a prim eira acusação era um a fanática que possuía e já linha
lido m uita literatura sobre abusos satanistas. O detetive responsável pela
investigação (que desde então se desligou da polícia) tinha um caso com
ela e com outras das mães acusadoras. O p rim eiro jurado do júri era pa
rente de um dos acusadores. Muitas das crianças, desde então, têm ic
I irado seus depoim entos, que assistentes sociais obtiveram com longos
interrogatórios. Agora, o lobby hom ossexual alegou que Ellis foi acusado,
em prim eiro lugar, porque era hom ossexual, e porque não é com um paia
um hom em trabalhar em um a creche. A controvérsia sobre o caso ameaça
degenerar em um a discussão de quem é o m ais politicam ente correio.
U m tribunal da Nova Zelândia deu crédito a acusações que até a In
quisição espanhola teria considerado absurdas, um sinal bastante curioso

de até onde os tribunais podem chegar influenciados pelos bien-pensanl.s, e


quanto tem em sua censura e alm ejam aprovação. O abuso sexual é o cri nu­
que escapa da com preensão tolerante e do perdão de tais progressistas,
por ser um crim e cuja suposta infiltração em todas as idades expõe comi >
hipócritas todas as pretensões de decência e m oralidade de um a socieda
de burguesa e deixa igualm ente claro que qualquer um de nós, nas mãos
de um terapeuta suficientem ente inteligente, poderá descobrir a própria

\ \ II l il M i l \ . i I I |t I f I
vil iin i/ação s<‘( rci.i, que nos absolverá de qualquer responsabilidade pela
vi<Ia v por nossas ações. O abuso sexual é, assim, um aríete intelectual com
o qual desacreditam o edifício tradicional da autocontenção e que retira
a responsabilidade pessoal dos indivíduos, e nenhum juiz, aos olhos do
pensam ento correto, pode fazer mal a si m esm o ao tomar a direção da
linha mais dura e punitiva, caso algo tenha realm ente ocorrido em deter­
minada instância ou não.
Logo, no que diz respeito ao crim e, a N ova Zelândia apresenta um
padrão curiosam ente fam iliar para um visitante da Grã-Bretanha (e, sem
dúvida, para um visitante norte-am ericano tam bém ): um a taxa de cri­
mes incrivelm ente elevada, um a com placência progressista em explicar
os piores crim es exceto os relativos a abuso sexual, e um declínio da con­
fiança pública, assiduamente cultivado, na capacidade do sistema judicial
de discernir o inocente do culpado. A N ova Zelândia, distante, porém não
m ais isolada, está agora plenam ente incorporada na principal corrente da
cultura moderna.
E claro, os progressistas neozelandeses ainda batem nos velhos tam bo­
res tam bém , culpando a pobreza e a desigualdade pelo crim e. A prim eira
vista, a porção desproporcional de crim es na Nova Zelândia com etidos
por m aoris e m igrantes das ilhas do Pacífico parece vir ao socorro deles.
Os m aoris e ilhéus são relativamente pobres (em bora não absolutamente)
e sofrem discrim inação (em bora não nas m ãos do governo). Correspon­
dendo a som ente 1/8 da população, com etem m etade dos crim es. Ergo,
pobreza e discrim inação causam o crime.
Mas isso convence. Se os m aoris e ilhéus tivessem os m esm os índi­
ces crim inais dos brancos, o total de crim es da Nova Zelândia ainda seria
apenas 1/3 m ais baixo do que é hoje. Esse total ainda representaria um
aum ento dramático na taxa nas últimas décadas. Certamente, a retirada dos
crim es dos m aoris e ilhéus da equação representaria um atraso de apenas
uns poucos anos na tendência ascendente.
Ademais, havia, proporcionalm ente, quase tantos m aoris nos anos em
(|ue a taxa de crim es estava m uito baixa e eles eram m ais pobres e sofriam
discrim inação m ais abertamente. Dessa m aneira, pobreza e discrim inação
não podem contar para a ascensão da taxa de crim es na Nova Zelândia.

|i«ollil Xi I mIi I Mui-■'"I mI mIm I II ( lilllHII (lo (


Jissi' aum ento não dá base .1 nenhuma in h i,i progressista do itiiih-, ih
nhum sustentáculo para o tipo de pessoa que prova a força da conipai \.m
deles ao conceber os que cum prem m enos a lei com o autômatos, nicm s
executores do que é ditado pelas circunstâncias. E verdade, é claro, que a
decisão dos crim inosos de com eter crim es deve ter antecedentes; mas estes
não devem ser buscados na pobreza, no desem prego ou na desigualdade
da N ova Zelândia. Melhor, devem ser encontrados nos cálculos prudeiu íar.
que tais crim inosos fazem (a probabilidade de serem pegos, aprisionados
e daí por diante) e tam bém nas características da cultura, particularm ente
da cultura popular, de onde constroem suas ideias sobre o m undo. E essa
é um a cultura que não só despreza os feitos das eras passadas, inflam ai ul< >
o egotism o ignorante ao ensinar que não precisam os de nenhum a ligaçã«»
com elas, m as é profundam ente antinom iana —da qual não poderia exisl 11
m elhor ilustração que o nom e de um a banda de rock, com centenas de
pôsteres de show que estavam colados em todos os lugares em Wellington
e Christchurch durante m inha visita: Ben Harper and the Innocent Criminais | IVn
Harper e os Crim inosos Inocentes].

1998
Como os Criminologislas
Fomentam o Crime

emana passada na prisão perguntei a um rapaz por que ele estava ili
- Somente pelos arrom bam entos norm ais —respondeu.
- N orm ais para quem ? - perguntei
- Sabe, som ente pelos norm ais.

Ele queria dizer, creio, que arrom bam entos eram com o céus nubkck >s
em um inverno inglês: inevitáveis e esperados. Em um sentido atuarial, ele
está certo: a Grã-Bretanha é hoje a capital do m undo de assaltos por ar mm
bamento, com o quase todos os donos de casa poderão atestar. Há também
um sentido profundo das palavras, pois a norm alidade estatística rapida
mente vem à cabeça com o norm alidade moral. As esposas dos assaltam c.
muitas vezes falam com igo do “ trabalho” dos m aridos com o se inv.uln ,i
casa dos outros fosse apenas um turno da noite em um a fábrica. N5o só o
arrom bam ento é “ n orm al” na avaliação dos perpetradores. “ Só um .iss.th« >
norm al” é outra resposta frequente dada pelos prisioneiros à minha pei
gunta, a palavrinha “ só” enfatiza a inconsciência do crime.
Mas com o o crim e veio a parecer n orm al para os p erp etra d o res'
Seria um m ero reconhecim ento do fato brutal de um a taxa de crim e',
im ensam ente alta? Ou p od eria ser, ao contrário, um a das próprias i.m
sas do aum ento, visto que representa um enfraquecim ento da inibição
da crim inalidade?
C o m o s e m p r e , d e v e m o s o l h a r p r i m e i r o p.ir.i .1 a c a d e m i a .id traçai .r.

origens de um a m udança no Zeitgeist. C) que com eça com o uma hipótese


acadêmica de prom oção de carreira term ina com o um a ideia tão ampla
mente aceita que se torna não somente um a ortodoxia indiscutível, mas um
clichê m esm o entre os incultos. Os acadêm icos utilizaram dois argument« is
intimamente ligados para estabelecer a estatística da norm alidade 11101 ,il
do crim e e a consequente ilegitim idade das penas do sistema judiciário
crim inal. Prim eiro, alegam que, em todo caso, som os todos crim inosos; <
quando todos são culpados, todos são inocentes. O segundo argumento,
marxista na inspiração, é que a lei não tem conteúdo m oral, sendo simples
mente a expressão do poder de certos grupos de interesse - do rico contra
o pobre, por exem plo, ou do capitalista contra o trabalhador. Um a vez (|tie
a lei é um a expressão de força bruta, não há distinção m oral essencial entre
o com portam ento crim inoso e o não crim inoso. E apenas um a questão de
qual pé calça a bota.
Crim inologistas são a im agem espelhada de Hamlet, que exclam ou
que, se cada um recebesse conform e os m éritos, ninguém escaparia «la
chibata. Ao contrário, dizem os crim inologistas, m ais liberais que o prín
cipe (sem dúvida por causa de suas origens sociais m ais hum ildes): nin
guém deve ser punido. Essas ideias ressoam na m ente do crim inoso. Se sua
conduta ilegal é tão norm al, pensa, por que todo esse alarido a respeito d« 1
seu caso, ou por que ele tem de ficar onde está - na prisão? E notoriam ente
injusto para ele ser encarcerado por aquilo que todos em liberdade fazem.
Ele é a vítim a de um a discrim inação ilegítim a e injusta, um pouco com o
um africano sob o regim e de apartheid, e a única coisa razoável é que, ao ser
solto, deva vingar-se dessa sociedade dem asiado injusta continuando ou
expandindo sua atividade crim inal.
É im possível determ inar precisam ente quando o Zeitgeist m udou e o
crim inoso tornou-se vítim a nas cabeças dos intelectuais: não só a histó
ria, mas a história de um a ideia, é um a túnica inconsútil. D eixem -m e, 110
entanto, citar um exem plo, agora com m ais de um terço de século, lim
19 6 6 (na época em que N orm an Mailer, nos Estados U nidos, e Jean Paul
Sartre, na Europa, retrataram os crim inosos com o heróis existenciais re
voltados contra um m undo sem coração e inautêntico), o psiquiatra Karl

\ Viiin mi Siii|i'in
M enninger publU im mu livro com o título revelador dt- The Crime of Punish
inent [O Crim e He Punição]. Baseava-se nas Isaac Ray Lectures que proferira
lrês anos antes - Isaac Ray foi o prim eiro psiquiatra norte-am ericano qtir
preocupou-se com problem as relativos ao crime. M enninger escreveu:

O crime é a tentação de todos. É fácil olhar com orgulho desdenho


so para aquelas pessoas que foram pegas —as estúpidas, as desaf<>i
tunadas, as ruidosas, mas quem não fica nervoso quando o carro cl<
polícia segue a pessoa de perto? Torcemos com as declarações do
Imposto de Renda e fazemos uns ajustes. Dizemos ao funcionário da
alfândega que não temos nada a declarar —bem, praticamente nada.
Alguns de nós, que nunca fomos presos por crime, apanhamos mais
de dois bilhões de dólares de mercadoria ano passado nas lojas de
que somos fregueses. Mais de um bilhão de dólares foram desviados
por funcionários no ano passado.

A m oral da história é que aqueles que chegam ao tribunal e vão para


a prisão são, na m elhor das hipóteses, vítim as do acaso, e na pior, vítimas
do preconceito: preconceito para com os m ais hum ildes, os sujos, não
instruídos, os pobres — aqueles que os críticos literários cham am , solene
mente, de o Outro. Isso é exatamente o que dizem m uitos de m eus pacien
tes na prisão. M esm o quando foram presos em flagrante, com o produto
subtraído ou sangue nas m ãos, acreditam que a polícia os está perseguindo
injustamente. Tal postura, é claro, faz com que não reflitam a respeito da
própria contribuição para a classe: acaso e preconceito não são forças so
bre as quais o indivíduo tenha m uito controle pessoal. Quando pergunto
aos prisioneiros se voltarão após serem libertados, poucos dizem que nã< >
com um a veem ência totalmente crível; estes são aqueles que fazem a cot
relação mental entre sua conduta e o destino. A m aioria diz que não sabe,
que não podem prever o futuro, que depende dos tribunais, dizem que
tudo depende dos outros, e nunca deles m esm os.
N ão d em orou m uito para que o intento de M en n inger perm easse
o pensam ento oficial. U m docum ento do governo britân ico de 19 6 8
sobre delin quên cia juven il, Children in Trouble [Crianças em A p u ros], de
clarou: “ Provavelm ente são m in oria as crianças que crescem sem jamais

IÍMM'111 Vl 11«III Mm ' MMIII MIfl < "III..... . ( I || | III |i »1«ipirtl 11H I I HI Mill ill 11••< I IIIII
II M III '.I ■ (■( ill i|)( >I'Ll CIO <11 11MI K I I I I I mi I II i.i .1 lii (' mu 11ri I m i ii i.i. I ,i I

( ( ii 111 j( ii tiimcnh I não é senão uni iik ideiile no padrão do desenvolvi


m cn io norm al cia crian ça” .
lim certo sentido é perfeitam ente verdadeiro, pois na auscnci.i d<
orientação adequada e de controle, a configuração padrão dos sere:, liu
m anos, certamente, é o crim e e a conduta antissocial, e todos (|iicl>r,im .e.
regras em um determ inado m om ento. Em um período de crescente pei
III issividade, no entanto, m uitos chegam exatamente à conclusão errada a
respeito do potencial universal da natureza para a delinquência: de lato, i >
único m otivo pelo qual os com entadores citam esse potencial é para iirai
uma conclusão progressista predeterm inada — de que os atos de deliu
quência, sendo norm ais, não devem dar ensejo às sanções.
Nesse espírito, Children in Trouble trata a delinquência das crianças noi
mais com o se sua transitoriedade fosse o resultado de um processo pura
mente biológico ou natural em vez de um processo social. A delinquência
é com o dentes de leite: predeterm inados para ir e vir em certo estágio do
desenvolvim ento da criança.
Não faz muito tempo, essa postura teria parecido a qualquer pessoa
<|uase com o absurda. Todos sabiam, com o se por instinto, que o compoi
lamento hum ano é um produto da consciência, e a consciência da criança
deve ser moldada. Posso ilustrar m elhor o que quero dizer com a minha pró
pria experiência. Aos oito anos, roubei um a barra de chocolate de um /x imy
da loja da esquina. Senti um a emoção ao fazê-lo, e saboreei ainda mais o
chocolate pelo fato de ele não ter representado um a invasão no m eu dinliei
ro semanal (seis pence). Insensatamente, no entanto, confidenciei a façanha
para o m eu irm ão mais velho, numa tentativa de ganhar o seu respeito pela
bravura, algo que estava m uito em questão na época. Ainda mais impruden
temente, esqueci que ele sabia dessa história incrim inadora quando, furk>s< >
com ele por conta das implicâncias de sempre, disse para minha mãe que
ele proferira um a palavra que nunca era ouvida, naquela época, nos lares
respeitáveis. Em retaliação, ele disse à m amãe que eu roubara o chocolate.
M inha m ãe não partilhava do ponto de vista de que isso era um epi
SÓdio m om entâneo de delinquência que passaria no devido tempo. Sabia
instintivamente (pois naquela época ninguém havia confundido a cabeça

\ \ M Im ' nu | r l ( i
(las pessoas .ui m k tiIi ii coni i ário) (11ic o necessário para a (k*linc|iitMicia
triunfar era, para ela, não fazer nada. Ela não pensou que m eu furto fora
iim ato natural de autoexpressão, ou revolta contra a desigualdade entre o
poder e a riqueza das crianças e o dos adultos, ou, na verdade, algo dife­
rente do m eu desejo de ter o chocolate sem pagar por ele. Ela estava certa,
é claro. O que fiz foi m oralm ente errado, e para que gravasse esse fato, ela
m archou com igo até a Sra. Marks, dona da loja, onde confessei m eu peca­
do e paguei em dobro, com o form a de restituição. Esse foi o fim da m inha
carreira de furtos em lojas.
Desde então, é claro, o entendimento do que é furto e de outras ati­
vidades crim inosas ficou mais com plexo, ainda que não necessariamente
mais preciso ou realista. Esse foi o efeito, e bem possivelmente a intenção,
dos crim inologistas para lançar um a nova obscuridade na questão do cri­
m e: a opacidade dos escritos, às vezes, leva-nos a pensar se eles realmente
já encontraram um crim inoso ou a vítim a de um crime. Certamente é do
interesse profissional deles que as fontes dos crim es perm aneçam mistérios
insondáveis, pois de que outra maneira iriam convencer os governos de
que aquilo que um país dom inado pelo crim e (com o a Grã-Bretanha) pre­
cisa é mais pesquisa feita por um núm ero ainda m aior de crim inologistas?
Provavelmente não é por coincidência que a profissão de crim inologista
teve um a enorm e expansão, aproximadamente na mesma época em que a
atividade criminal iniciou a fase mais aguda de seu aumento exponencial.
Os criminologistas na Grã-Bretanha eram, outrora, poucas dúzias, e a crim i­
nologia, considerada im própria para universitários, era ensinada somente
em dois institutos. Atualmente, é difícil existir cidade ou aldeia do país que
não possua um departamento acadêmico de crim inologia. Metade dos o i­
tocentos criminologistas que hoje trabalham na Grã-Bretanha foi formada
(a m aioria em Sociologia) no final dos anos 19 6 0 e início dos anos 19 7 0 ,
durante o apogeu do ativismo radical; e estes form aram a outra metade.
É claro que o problem a pode ter suscitado os próprios estudantes; mas
um a vez que os problem as sociais são, muitas vezes, de natureza dialética,
não poderia ser o caso de os alunos terem feito vir à tona o problem a de
les? (O econom ista britânico John Vaizey certa vez escreveu que qualquer
problem a que tenha se tornado objeto de um a “ logia” estava destinado a

Inirui -Win Mm 1' H i i i l . i m ( mi n u u h ( l i i i i i i i i u l u g i n l n H lu iiiriilm ii u <riim


sc tornai serio.) Uma vez que a ( .itis.i • li ■11 um c a decisão dos a mime>u >•.
de com etê-lo, o que se passa em suas cabeças não é irrelevante, As idcia\
são filtradas seletivamente da academia até a população em geral, por dls
cussões (e muitas vezes por expurgos) nos jornais e na TV, e tornam se a
m oeda corrente intelectual. Dessa m aneira, as ideias dos criminologi:,t,r.
podem tornar-se, realmente, um a causa do crim e. Além disso, essas ideias
afetam deleteriam ente o m odo de pensar da polícia. Em nosso hospital,
por exem plo, a polícia colocou notas em todos os lugares advertindo ao:,
funcionários, pacientes e visitantes acerca do roubo de veículos. Motorista!
diz o cartaz. Seu carro está em perigo! Esta é um a expressão bem crim ino lógica,
ao sugerir um a força m isteriosa — com o, digam os, a gravidade —contra a
qual a m era vontade hum ana, tal com o exercida por assaltantes e policiais,
não dispõe de força alguma.
N o processo de transmissão da academ ia para a população, as ideias
podem m udar de m aneiras sutis. Quando o célebre crim inologista Jot k
Young escreveu que “ a norm alização do uso de drogas é acompanhada
pela norm alização do crim e” , e por causa dessa norm alização, o com por
tamento crim inoso nos indivíduos não exige m ais um a explicação espe­
cial, certamente não queria dizer que não se im portava que os próprios
filhos com eçassem a injetar heroína ou assaltar velhinhas nas ruas. Nem
poderia ficar indiferente à entrada de ladrões na própria casa, atribuiu
do isso sim plesm ente à índole dos tempos e tom ando-o com o um acon
tecim ento m oralm ente neutro. Isto, todavia, é exatamente com o “ só ” os
ladrões de lojas, “ só ” os arrom badores, “ só ” os assaltantes, “ só” os hom i
cidas aproveitam a sugestão dele e de outros com o ele, e passam a ver (ou,
ao m enos, a dizer que veem ) as próprias ações: sim plesm ente evoluíram
com o tem po e, portanto, não fizeram nada errado. E não é surpresa al
gum a que os crim es que agora atraem qualificação deprecatória “ só” ati
m entam em seriedade nesses últim os dez anos em que frequento a prisão
com o m édico, de m odo que até já ouvi um prisioneiro descartar “ só uma
estúpida acusaçãozinha de h o m icíd io” . O m esm o é verdade para as droga:,
que os prisioneiros usam : onde respondiam que “ só ” fum avam maconha,
agora dizem que “ só” usam crack, com o se, por assim se restringirem , lós
sem protótipos de abnegação e autodisciplina.

MU \ YiVJn iui S m jH ii
A tcndèiu i.i de ii', Intelectuais progi essr.t,i\ t.ir. <<um > )(>t'k Y<nin^ 11,10
pretenderem dizer exatamente o que dizem , e expressarem se mais para
exibir a m agnanim idade de suas intenções do que para propagar a ve rd a
de, é um a característica geral. Não faz m uito tem po estive envolvido cm
um debate de rádio com um crítico de cinem a im portante a respeito dos
efeitos sociais (ou antissociais) da exposição constante das crianças a re
presentações de violência. Ele vigorosam ente negou que quaisquer efeiu>s
m aléficos ocorriam ou eram passíveis de acontecer, mas adm itiu en passam
que não perm itiria um a dieta de violência para os próprios filhos. Talvc/
não tenha percebido que sob essa postura contraditória havia um desprc/( >
indizível por m etade da hum anidade. N a realidade, estava a dizer que as
proles estavam tão distantes da redenção, eram tão im orais por natureza,
que nada poderia torná-las m elhores ou piores. Elas não faziam escolhas;
não respondiam às influências m orais ou im orais; eram violentas e cri mi
nosas em essência. Os filhos dele, pelo contrário, responderiam apropria
damente à sua orientação cuidadosa.
N ão é preciso dizer que os crim inologistas não são m onolíticos nas
explicações de crim inalidade: um a disciplina acadêmica precisa de debates
teóricos com o as forças armadas necessitam de inim igos potenciais. No
entanto, acima da cacofonia de explicações oferecidas, um a ideia se faz ou
vir em alto e bom tom, ao m enos para os crim inosos: explicar tudo é tudo
desculpar. Os escritos crim inológicos, em geral, concebem os crim inosos
com o objetos, com o bolas de bilhar que respondem mecanicamente a
outras bolas que incidem sobre elas. Mas, m esm o quando são vistos coiik 1
sujeitos, cujas ações são resultado das próprias ideias, os crim inosos con
tinuam a ser inocentes, pois suas ideias, afirm am os crim inologistas, s.10
razoáveis e naturais dadas as circunstâncias em que se encontram. Há alyi 1
m ais natural que um hom em pobre desejar bens materiais, especial menti
em um a sociedade materialista com o a nossa?
Recentemente, teorias biológicas do crim e voltaram à m oda. Tais teo
rias rem ontam ao passado: crim inologistas italianos e franceses do século
XIX e psiquiatras forenses elaboraram a teoria da degeneração hereditária
para dar conta da incapacidade do crim inoso de conform ar-se à lei. Ati
bem pouco tempo, no entanto, teorias biológicas do crim e —normalmente

1« III UI \||m 111 M m ' 1' iMllut'i < M i i K M i i < ,1 l l l l l l i o l o p n l J I M I n l l i r n l i i l l l 11 < IIIIII
temperadas com uma boa d< )se <U* ^•» nc-i li .1 <l< .1 r.i<11u* eram o cam po tl.i
direita antiprogressista, que levou à esterilização forçada e a outras medi
das eugenistas.
As últimas teorias biológicas do crim e, contudo, enfatizam que os
crim inosos não podem deixar de agir com o agem: está nos genes, na sua
neuroquím ica ou nos lobos tem porais.Tais fatores não oferecem resposta
a por que o sim ples aum ento da taxa de crim es na Grã-Bretanha entie
19 9 0 e 19 9 1 foi m aior que o total de todas as taxas de crim e em I '>'>()
(para não falar nos aumentos acelerados desde 1 9 9 1 ) , m as essa falha ná< 1
detém m inim am ente os pesquisadores. Livros acadêmicos com títulos tais
com o Genetics of Criminal and Antisocial Behavior [Genética do Com portam ento
Crim inoso e Antissocial] proliferam e não evocam a indignação entre os
intelectuais que saudaram o lançam ento de Crime and Personality [Crim e c
Personalidade], em 19 6 4 , de H. J. Eysenck, um livro que sugeria que a
crim inalidade era um fator hereditário. Por m uitos anos, os progressistas
viram Eysenck, professor de psicologia na Universidade de Londres, comi >
praticamente um fascista por sugerir a hereditariedade de quase todas as
características hum anas; todavia, desde então perceberam que as explica
ções genéticas do crim e podem ser m atéria-prim a igualm ente fácil para
suas usinas de teorias escusatórias e exculpatórias, assim com o podem ser
úteis para as dos conservadores.
Há pouco tem po um a série de televisão na Grã-Bretanha concentrou
-se na ideia de que o crim e é resultado de um a disfunção cerebral. O livro
que acom panhou a série afirm a que os dois autores:

acreditam que - por admitir as descobertas dos médicos sem quais


quer censuras penais —muitos criminosos agem como fazem pelo
modo como seus cérebros se formaram. As duas últimas décadas
expandiram imensamente os horizontes do conhecimento, e acre
ditamos que é tempo de nos beneficiarmos desse saber —o resulta
do da obra de endocrinologistas, biofisiologistas, neurofisiologistas,
bioestatísticos, geneticistas e muitos outros.

Mas, apesar de alegada falta de censuras penais, a mensagem final é


bastante familiar:

\ \ M m 1ui iS iirjH n
() que procede de praticamente centenas de artigos e estudos crinii
nais dos vários tipos de criminosos é prova ampla e convincente <le
mentes desordenadas resultantes de cérebros disfuncionais [... | N< i
entanto, não identificamos; simplesmente condenamos. O encarce
ramento é uma reação cara e sem proveito.

Am bas as partes dessa m ensagem são bem acolhidas por m eus pa


cientes na prisão: de que são doentes e necessitam de tratamento, e di­
que o encarceram ento não só não é sem sentido, mas cruel e m oralm ente
injustificado - m enos justificado, na verdade, que seus crim es. Afinal, os
juizes que os condenam à prisão não podem absolvê-los por seus cére
bros disfuncionais.
N ão é de admirar que a cada semana um prisioneiro diga-m e: “ a pri­
são não é boa para m im , doutor; a prisão não é o que p reciso” . Pergunto-
-lhes de que necessitam.
Ajuda, tratamento, terapia.
A ideia de que a prisão é principalm ente um a instituição terapêutica é
hoje, praticamente, inerradicável. A ênfase nas taxas de reincidência com o
m edida de sucesso ou fracasso na cobertura que a im prensa faz da prisã< >
( “ pesquisas feitas por crim inologistas dem onstram que...” , etc.) reforça
esse ponto de vista, com o o faz a teoria fomentada pelos crim inologistas
de que o crim e é um a desordem mental. The Psychopathology of Crime [A Psi
copatologia do Crim e] de Adrian Raine, da U niversity o f Southern Cali
fornia, afirm a que a reincidência é um a desordem mental com o qualquer
outra, muitas vezes acompanhada de disfunção cerebral. Addicted to Crime.’
[Viciados no Crim e?], um livro editado por psicólogos de um a das poucas
instituições da Inglaterra para os crim inosos insanos, traz o trabalho de
oito acadêmicos. A resposta à pergunta do título é, certamente, sim ; sendo
o vício - falsamente - concebido com o um a com pulsão à qual é inútil
esperar que qualquer um resista. (Se houver uma segunda edição do livro,
sem dúvida o ponto de interrogação desaparecerá com o sum iu o da se
gunda edição do livro de Beatrice e Sidney Webb sobre a U nião Soviética,
The Soviet Union: A New Civilisation? [A U nião Soviética: U m a Nova Civiliza
ção?] que trazia tudo a respeito da Rússia, m enos a verdade.)

I í m i i k i A u IIIII M u i í m i i I m Iii ' m i t i n i n ( i ii m i i i o l u g i H l m i h i i i i n i i M l t ! n 1 m m


Não c surpreendeu ir <pie assallanlt s iclncldentes e ladrões de (.11
ros agora solicitem terapia para o vicio, certos por saber que nenhum.!
terapia p ode ou estará acessível, justificando, portanto, a continuai,a"
do hábito? “ Pedi aju d a” , sem pre reclam am com igo, “ m as não obtive
n ada” . U m jovem de 2 1 anos, que cum pria um a sentença de seis me
ses (em três m eses sairia por bom com portam ento) por ter ro u lu d o
sessenta carros, con tou-m e que na verdade roubara m ais de qviinhen
tos carros e ganhara cerca de 16 0 m il dólares p or isso. Certam ente e
um a m istificação desnecessária construir um a elaborada explicação
n euro psico ló gica para sua conduta.
Arrom badores que m e dizem ser viciados nesse ofício, querendo, p< >r
m eio disso, insinuar que a culpa será m inha p or não tê-los tratado com
sucesso caso continuem a arrom bar prédios após serem soltos, sempre
reagem da m esm a m aneira quando lhes pergunto quantos arrom bam en
tos pelos quais nunca foram presos fizeram : dão um sorriso feliz, mas
não totalmente tranquilizador (do ponto de vista de um proprietário),
com o se estivessem recordando os m om entos m ais felizes da vida — que
em breve retornarão.
Os crim inosos solicitam terapia para o com portam ento antissocial
curiosam ente, contudo, som ente depois que tal com portam ento os con
duz à prisão, não antes. Por exem plo, semana passada um rapaz que li
nalm ente foi preso por repetidos ataques à nam orada e à mãe, dentre
outros, disse-m e que a prisão não lhe faria nenhum bem , que aquilo q u e
precisava era de um a terapia para o gerenciam ento de raiva. Observei que
seu com portam ento na prisão fora exem plar: sem pre era educado c fa/ia
o que era solicitado.
- N ão quero ser levado para o final do bloco [para o andar da puni
ção], não é? - respondeu revelando sua estratégia.

Tinha sido violento com a nam orada e com a m ãe porque, até então,
havia vantagens, mas não desvantagens, para sua violência. Agora que a
equação era diferente, não tinha problem a “ gerenciar” a raiva.
A grande m aioria das teorias que os crim inologistas propõem levam a
justificação dos crim inosos, e estes, avidamente, com eçam a estudar essas

12* 14 A Vh m i N m jfltn
teorias no <l< •.« )n de apresentarem se com o vílim.is, e nao com o vitimi
/adores. Por exem plo, não faz m uito tem po, a “ teoria do etiquetamen
l o ” arrebatou os crim inologistas. Segundo ela, a quantidade do crim e, o

tipo da pessoa, a ofensa selecionada para ser crim inalizada, as categorias


utilizadas para descrever e explicar os que se desviavam dos padrões são
construções sociais. O crim e, ou o desvio, não é um a “ coisa” objetiva. Até
agora, não tentei essa teoria com m eus pacientes que não são crim inosos
cujas casas foram arrom badas três vezes em um ano - ou que foram ata
cados nas ruas m ais de um a vez, com o é com um entre esses pacientes -
mas acho que posso im aginar a resposta. Para os crim inosos, é claro, uma
teoria que sugira que o crim e é um a categoria social totalmente arbitrária
sem conteúdo m oral justificado é altamente gratificante — exceto quando
eles m esm os foram vítim as de um crim e, quando reagem com o todas as
demais pessoas.
U m a vez que os crim inologistas e sociólogos já não podem , razoa­
velmente, atribuir o crim e à pobreza bruta, agora buscam um a “ privação
relativa” para explicar sua ascensão em tempos de prosperidade. Sob tal
óptica, veem o crim e com o um protesto quase político contra um a distri
buição injusta dos bens do mundo. Vários comentaristas crim inológicos
lamentaram o fato aparentemente contraditório de' que é o pobre quem
mais sofre, perdendo até a propriedade, com os crim inosos, sugerindo
que seria mais aceitável se os crim inosos roubassem os ricos.
Ao discutir a política de tolerância zero, o crim inologista Jock Young
afirm a que poderia ser utilizada seletivamente para fins “ progressivos” :
“ um a pessoa” , diz, “ pode ter tolerância zero à violência contra a mulhei
e ser tolerante com relação às atividades dos despossuídos” . Poderíamos
supor, a partir disso, que entre as atividades toleráveis dos despossuídos
nunca houve nenhum a violência contra as mulheres.
Ademais, o próprio term o “ despossuído” traz consigo conotações
em ocionais e ideológicas. Os pobres não fracassaram ao obter, ao invés,
foram roubados naquilo que era deles por direito. O crim e é, assim, a
expropriação dos expropriadores — e, afinal, não é tanto um crim e, no
sentido moral. Essa é um a postura que encontramos muitas vezes entre os
arrom badores e ladrões de carros. Acreditam que quem quer que possua

l i n l III \ í l M I II M i i l » H i i I h I m III < I n il l ll OH ( !l'ÍlllÍlin |o gÍHlflM I n l l i r i l l m i l II < I I I I I I


11>;<>podc, ipso lin lo, s111>
<il'l.11 .1 pn i l,i h p|i r 111 |iic .iljMirin (|iic ii,k >|» i .'.u.i
i Ici cru lin.td.i cois.i cslá, ipso fdclo, jir.lifli ad( i ao loniá-la. O cri inc c apeii.e,
iiiii.i l<ni i i.i île tributação redistribui i va vinda de baixo.
( )u <|iiando com etido por mulheres —o crim e pode ser visto "l.ilvc/,
com o 11n ui maneira de proclam ar que as mulheres são tão indepcudeiiu ■
i|ii.uilo os hom ens” , para citar Elizabeth Stanko, um a crim inologisia li
......... norte-am ericana que leciona em um a universidade britânica. Ir.
que nos inovem os no terreno nebuloso de Frantz Fanon, o psiquiaira da1,
índias Ocidentais que crê que um assassinatozinho faz maravilhas para .i
psique dos oprim idos, e que veio a ser um ícone exatamente na época da
grande expansão da crim inologia com o disciplina universitária.
A “ justiça” , nos escritos de m uitos crim inologistas, não se refere aos
meios pelos quais um indivíduo é recom pensado ou punido por sua c o ii

(lula na vida. Refere-se à justiça social. A m aior parte dos crim inologis
ias não consegue distinguir entre iniquidade e injustiça, e conclui que
qualquer sociedade em que a iniquidade continuar a existir (com o deve
continuar) é, portanto, injusta. A questão da justiça social sempre se reduz
à da igualdade, com o diz, severamente, JockY oung: “ Tolerância zero para
com o crim e deve significar tolerância zero para com a desigualdade, se
isso quiser dizer algum a coisa” . Já que um a das restrições ao crim e (com<>
o crim e é com um ente entendido pelas pessoas que passaram por isso ou
provavelmente passarão) é a percepção de legitim idade do sistema jurídico
sob o qual o crim inoso em potencial vive, aqueles que propagam a ideia
de que vivem os em um a sociedade fundam entalm ente injusta também
propagam o crim e. Os pobres colhem o que os intelectuais semeiam.
N inguém ganha crédito na fraternidade crim inológica por sugcrii
(|ne a polícia e a punição são necessárias em um a sociedade civilizada.
Fazê-lo seria parecer pouco progressista e descrente na bondade prim or
dial do hom em . E m uito m elhor para a reputação da pessoa, por exempli »,
reférir-se ao grande núm ero de prisioneiros dos Estados U nidos com o “ o
(|iil(ig norte-am ericano” , com o se não existissem diferenças relevantes entre
.i cx-U nião Soviética e os Estados Unidos.
De fato, os crim inosos sabem tudo sobre o poder da punição: tau
lo o efeito im peditivo qnanio <> reabililadoi A prisão é uma sociedade

\ \ it I n u m S to | i r l í i
i laram enlr dlvl< 1 1<l.i cm duas partes, entre guardas e prisioneiros. Os p ri­
sioneiros mantêm um a divisão rígida entre si por um código de penas
extremam ente severo. Caso um prisioneiro tente rom per essa divisão, os
outros infligirão, imediatamente, um a punição pública e rigorosa. Por
conseguinte, a divisão se m antém , m uito em bora um grande núm ero dos
prisioneiros prefira ficar do lado dos guardas do que de seus pares.
A crim inologia não é m onolítica, e há m ais dissidentes hoje que ja­
m ais houve, com o reconhece Jock Young.

Esse recente espécime [de criminologistas que acreditam na deten­


ção e na punição] contrasta com uma geração de opinião e estudos
progressistas cujo propósito era minimizar a intervenção policial e
diminuir o número de policiais. Poderíamos até dizer que essa é a
agenda oculta da criminologia acadêmica desde o século XIX.

Do ponto de vista do crim inoso, a crim inologia é m otivo de orgulho.

19 9 9

I ímii Íh Ahm I<i Miii i ' "lllhl mi <nimi oh ( ;rimÍnolofíÍHlíiH I oomoI hiii o <mor
Policiais no País das Maravilhas

longa m archa pelas instituições — por m eio da qual os intelec­

A tuais radicais buscaram refazer sub-repticiam ente a sociedade,


sem recorrer às barricadas - foi tão com pleta e bem-sucedida
na Grã-Bretanha que, às vezes, parece que aconteceu um a transvaloração
nietzschiana de todos os valores. A polícia é o prim eiro caso em ques­
tão. Seus líderes estão, hoje, tão desesperados pela aprovação da crítica
esquerdista que muitas vezes parecem estar m ais voltados para as relações
públicas que para a prevenção e detenção do crim e - protegem sua repu­
tação em vez de proteger o público. Com o resultado, a Grã-Bretanha sofre
um a onda de crim es que afeta áreas que até então estavam livres desse
problem a, tais com o o West End de Londres - o assalto nas ruas na capital
aum entou em 20% só nos últim os doze meses.
Por m edo de críticas dos progressistas, as ações das polícias muitas
vezes, agora, são m eros reflexos do que deveriam ser - e do que são cm
Nova York e em outras cidades norte-am ericanas, nais quais resultam em
reduções dramáticas nas taxas de crime. Assim , por mais im buídos ou afe
tados pelos valores progressistas que se tornem os policiais, os progressis
tas nunca os aceitarão com o m em bros plenos da raça humana ou deixarão
de criticá-los, pois, no fundo, é a mera existência da polícia o que ofende
a consciência progressista, e não qualquer um de seus atos particulares.
A necessidade perm anente de um a força policial sugere que a configuração
padrão da humanidade não <• a virtude m .1 harmonia social e que uma

pressão externa na conform ação do coni|iorl.mi(‘iHo decenle é 11111 c o m

ponente necessário de qualquer sociedade c ivilizada. A admissão de <111<


as coisas são assim (o que é certamente óbvio para quem não rslá anula

em busca de sonhos utópicos adolescentes) enfraquece as próprias supo


sições sobre as quais está baseado o desejo do progressism o m oderno de
elim inar todas as limitações. Não detestamos tanto um a coisa quanto a

refutação viva de nossas mais diletas ideias.


E claro que não devem os exagerar o grau em que a polícia foi s<>
lapada: a percepção de cada um depende, em parte, de que extrcm i
dade do telescópio escolhem os olhar o problem a. Vista da prisão, |><>i
exem plo, a p olícia ainda deve estar cu m p rin d o m uito de sua m issão
tradicional, pois qual seria a razão de term os tantos m alfeitores atrás das
grades?Todo dia um a nova safra, de tam anho inalterado, entra pelos por
tões. De fato, são raros os casos daqueles erroneam ente aprisionados
em bora a im prensa alardeie os poucos que vieram à tona para destrui 1
a confiança pública “ no sistem a” . Por m eio dos velhos artifícios retóri
cos da suppressio veri e da suggestio falsi, os predadores da sociedade surgem
com o suas vítim as, e a com p aixão pelo crim in oso torna-se, na orlo
doxia da elite, o critério de um coração terno. N ão pode haver dúvida,
contudo, da culpa da grande m aioria dos p rision eiros, e a polícia tem
sido fundam ental para levá-los à justiça.
Vista, todavia, da outra ponta do telescópio, do m undo fora da pri
são, as coisas parecem bastante diferentes. Aí não são os erroneamente
aprisionados ou erroneam ente libertados que dão ensejo a preocupações,
Para cada pessoa presa por engano, há, na prática, centenas que dedarada
mente m erecem perder a liberdade. Não só isso tam bém é um a injustiça
(nunca entendi a hipótese esquerdista de que se existisse justiça no m undo
teríamos de ter m enos, e não m ais, prisioneiros), com o torna a vida um
torm ento para m ilhões de pessoas.
Para os que vivem no m undo da im punidade - ou seja, a parcela mais
pobre da população - os policiais não são apenas impotentes, mas são p< >
sitivamente incapazes de fazer o que quer que seja para consertar a situa
ção. Errar é hum ano; perdoar, divino: <■ a polícia, hoje, assumiu o papel das

1111 \ \ H I n 1111 S m j r i n
divindades, la. cndu i oiu essões aos iransgu ssoii , i-mii ve/ «li* prende los
A polícia perdoa llics, pois não sabem o que fazem.
Por trabalhar em um hospital de um a área onde a polícia tem m iu
visão puram ente abstrata e sociológica do crim e — consequência naUir.tl
da privação e, portanto, não censurável nem redutível à aplicação da lei
muitas vezes vislu m bro a relutância policial para lidar com as ofensas
crim inais, m esm o quando com etidas na presença de várias testemunhas
críveis. As concessões que fazem aos ofensores (teve m á educação, cer
ta vez fo i ao psiquiatra e, portanto, deve estar psicologicam ente per­
turbado, está desem pregado, é um viciado) reforçam a relutância em
encarregarem -se da papelada que resulta, hoje, de qualquer prisão - uma
papelada im posta, é claro, na tentativa de responder às críticas contínuas
dos defensores das liberdades civis. O efeito verificável disso é o apri
sionam ento dos pobres e dos m ais velhos nos lares à noite e, por vezes,
antes disso tam bém .
Por exem plo, certo dia, um hom em de vinte e tantos anos foi ad­
m itido em nossa enferm aria por ter tom ado um a overdose de um a droga
ilicitamente obtida. Também era um inalador frequente de gás butano. Eu
o conhecia há m uito tem po e suspeitei que roubara um a peça do equipa­
m ento de m eu escritório. Tinha um a ficha crim inal considerável —arrom ­
bamentos e assaltos - e tam bém o conhecia da prisão.
Pedira a um dos m édicos sênior um a prescrição para drogas que que­
ria usar sim plesm ente por prazer. O m édico, m uito apropriadamente, re­
cusou, e em seguida o paciente ficou irritado e violento. Recusava-se a
ficar calm o e, quando im prensou o m édico contra a parede, as enfermeiras
cham aram a polícia.
Após livrar o m édico daquela situação imediata, a polícia deu poi
acabada a missão. N ão havia, segundo eles, m otivo para prender um ho
m em que estava tão claramente fora de si com o o paciente - um homem
que não sabia o que fizera e que, portanto, não poderia responder por seu
crim e. Que com paixão admirável e que econom ia de tem po na papelada1
Assim, poderiam espalhar sua com paixão por outros lugares!
Quatro semanas depois, esse m esm o jovem invadiu a casa de um patlre
idoso à noite e, ao ser interrom pido pelo padre, espancou-o brutalmente

Irnrm \nnln Mm "in ln m l'u|u im , no 1'ní, i Ijih Murm illim i


, ilr .1 lilorte. Nessa ocasião, i ’ 1 'l.iiu , ii i ,i | i.i loi preso, co m b iila n o ou
soin gás biitano.
Soi do muitas outras instâncias m enores em que a polícia recusa a
lazer algum a coisa em manifestas infrações à lei, em casos em que a pn>va ó
indubitável e em que a infração é um sinal claro das coisas que estão por vii
U m a prostituta era paciente em nossa ala, e seu cafetão chegou p aia
visitá-la. Era um hom em de aparência e com portam ento m aléficos: os
dentes da frente de ouro brilhavam ameaçadoram ente em sua boca; a o.i
beça raspada trazia m ais de um a marca de ataque (ou defesa) de macheio
N o passado, quebrara o m axilar e as costelas de sua prostituta; tinha uma
longa ficha crim inal. Exigia da enferm eira que soubesse o diagnóstico,
o tratamento e o provável período de internação da paciente. Quando a
enferm eira recusou-se a dizer baseada no fato de que a inform ação ora
confidencial, ele im prensou-a em um canto (na presença de outra en lol­
m eira) e am eaçou segui-la até onde m orava e pôr fogo em sua casa, com
ela, o m arido e os filhos dentro.
A polícia veio e escoltou o cafetão para fora, mas, por outro lado, nã< >
tom ou nenhum a outra providência, em bora o que ele dissera e com o se
com portara fossem claras transgressões crim inais. A enferm eira não vol l o u
ao trabalho e desde então não foi vista em nossa enferm aria.
Para dar m ais um exem plo: um rapaz chegou em nossa emergência
com um a pequena overdose. Com o norm alm ente é o caso em tais incidentes,
ele acabara de ter um a briga violenta com a nam orada. (O propósito da
overdose subsequente é triplo: prim eiro, induzir a nam orada a cham ar uma
ambulância em vez da polícia; segundo, adverti-la de que não o deixe, pois
ele poderá suicidar-se, “ e depois você se arrependerá, vadia” ; e terceiro,
apresentar-se com o um a vítim a do próprio com portam ento - portanto,
não responsável —e necessitado de tratamento.) A nam orada chegou logo
após com as coisas de que necessitaria para ficar no hospital. Imediata
mente, ele reatou a briga e com eçou a espancá-la novamente, dessa vez,
diante das enfermeiras. Elas cham aram a polícia, que alegou que, por soi
uma agressão tão pequena - a nam orada ainda não estava gravemente
ferida —, eles nada poderiam fazer, sobretudo porque estavam ocupados
noutro local. A polícia, evidentemente, não se preocupou em especulai

\ V h I A iI I I N l l l 1« III
o que esse homem seria capa/ de fazer em privado, já que se com portou
dessa m aneira em um local público, perante várias testemunhas confiáveis
O efeito desse exem plo naqueles que viram o acontecido —particularmen
te os rapazes —deve ter sido profundo.
U m rapaz foi ao m édico de fam ília local e exigiu drogas que cau
sam dependência, para as quais não possuía nenhum a indicação médica.
O m édico - de m odo um tanto in com um nessas circunstâncias - negou
-se, e o paciente ficou violen to e ameaçador. A recepcionista do m édico
cham ou a polícia, que levou o jovem em custódia. N o entanto, em vez de
levá-lo para o distrito policial e autuá-lo, levaram -no para a em ergência
de nosso hospital, onde o deixaram , com o se fossem m eram ente um
serviço de entrega.
Mais um a vez, exigiu as drogas, e m ais um a vez, diante da recusa,
tornou-se violento e ameaçador. As enferm eiras cham aram a equipe de
segurança do hospital, mas quando, em vez de deixar o hospital conform e
fora solicitado, o rapaz socou um deles, a polícia foi novam ente chamada.
Dessa vez, levaram -no e o largaram na rua seguinte, ao dobrar a esquina.
Eu m esm o fui vítim a de um a tentativa m enor de agressão, sigim
ficativa porque, m uito provavelm ente, era o prenúncio de um futuro
assassinato. Aconteceu na prisão em que trabalho. U m jovem prision eiro
pergun tou-m e quando receberia sua porção de tabaco, ao que respondi,
sinceram ente, que não sabia. Ele, então, estendeu a m ão para fora do
postigo da porta da cela e tentou m e agredir e, no processo, arranhou
levem ente m eu rosto e p egou m eus óculos, que quebrou em pedaços c
jogo u pela janela.
Ele fora preso por agredir a polícia, que tinha sido chamada após ele
ter agredido a nam orada. Desde que chegara à prisão, agredira quase to
dos com quem mantivera contato. Atacou um guarda da prisão tão vio
lentamente que ele não pôde ir ao trabalho nas seis semanas posteriores.
O agente penitenciário inform ou à polícia dessa agressão, mas disseram
a ele que agressões de prisioneiros em agentes penitenciários eram de se
esperar e, portanto, nada poderiam - ou melhor, nada iriam - fazer. Na
turalmente, agressões aos próprios policiais, ainda que m enores, são uni
assunto totalmente diferente.

I rol til \ll HIII Mfll "iMlhl I i h.llilillM HO 1'jlÍH<|||H Mllim llllll
Miiih.is tentativas de autuai 1 1 prlsim iH m 11.10 «leram cm nada
Realm ente não estava m achucado, c nao sofri danos psicológicos poi i .1
agressão. M eu m otivo ao tentar autuar e, posteriorm ente, prendei ei.se pri
sioneiro era proteger o público, ainda que por um período insulicienic, de
um hom em m uito perigoso. A polícia disse-m e que eles não consideravam
ser do interesse público levá-lo à acusação, pois o agressor, claramente, ei .1
psicologicam ente perturbado. Em vão, tentei argum entar que por isso era
m uito m ais im perativo que fosse aceita a queixa. Com o poderia ser do
interesse público que tal hom em estivesse andando pelas ruas? E quem
sofreria? O pobre, é claro, dentre os quais caminhava.
Esse jovem , agora, está em liberdade, mas não é de todo improvável
que sua liberdade seja o aprisionam ento de outra pessoa por terror.
Só posso esperar que seja preso novam ente antes que mate alguém ,
mas não apostaria nisso.
Sem dúvida, alguém poderia objetar que estas são apenas anedotas:
mas dezenas de anedotas do m esm o tipo se tornam um padrão. Além diss<),
m inha experiência é exatamente essa em todos os m eus pacientes, m uitos
m ilhares deles. U m a delas contou-m e, por exem plo, que seu ex-namoradt 1
invadiu sua casa nada m enos que dez vezes, bêbado, com intenção, poi
vezes levada a cabo, de agredi-la, e em todas as ocasiões ela cham ou a
polícia. Em cada um a das ocorrências sim plesm ente deram ao rapaz uma
carona até sua casa, agindo com o se fossem um serviço gratuito de táxi
Parece epie a m oral da história é: caso você se encontre sem dinheiro em
um a cidade britânica e precise de um a carona para casa, agrida alguém
E mais rápido do que caminhar.
Mas só se você já tiver um a ficha crim inal, for um viciado em drogas,
alcoólatra ou for de algum a m aneira desonroso ou repreensível. A poli
cia, tão lenta em lidar com os verdadeiros m alfeitores, é com o um anjo
vingador quando se trata de um m ero vestígio de suspeita de que pessoas
respeitáveis possam não ter sido boas. Persegue as questões até os últimos
confins da Terra, com o aqueles cães perdigueiros que, um a vez com os
dentes na presa, nunca largam . Dessa m aneira, a polícia espera mostrar
aos esquerdistas que não é preconceituosa com relação aos pobres, com o
muitas vezes é acusada.

’ ri \ ViUn 1in S iirjrlii


Recente 11 x 1111 , por exem plo, um homem deu nitrada em nosso liospl
tal por ter ingerido uma overdose de analgésicos quando estava m uito ali <x >
lizado. A equipe do hospital conhecia bem o paciente: fora violento com
a m aioria deles num a determ inada época de sua carreira com o paciente
reincidente. Tinha um a ficha crim inal m uito longa. Durante um a recenie
admissão no hospital, as enferm eiras cham aram a polícia porque ele agre
dira o paciente da cama ao lado. Com o sem pre, a polícia nada fez porque,
afinal, ele era um paciente e, portanto, um ser hum ano em sofrim ento e
nenhum a pessoa decente poderia prender, ou m esm o responsabilizar, um
sofredor. (A polícia, é claro, não perm itiu que a fonte de seu sofrim enlo
influenciasse sua com paixão indiscrim inada.)
Durante sua últim a entrada em m inha enferm aria, esse hom em en­
trou no banheiro para fum ar e, depois, recusou-se a sair. já que precisava
de um antídoto às pílulas que tomara e, de outro m odo, poderia morrer,
as enferm eiras tentaram persuadi-lo a voltar para a cama. Recusou-se, em
term os inequívocos, e as enferm eiras cham aram a equipe de segurança.
Arrastaram-no, debatendo-se, de volta para a cama, onde recebeu o trata
m ento e sua vida foi devidam ente salva.
Duas semanas m ais tarde, esse m esm o hom em dirigiu-se à delegacia
de polícia local para acusar a equipe de segurança de agressão. A polícia, e
claro, sabia que ele era um crim inoso reincidente, um alcoólatra, um men
tiroso, um total estorvo e que era inclinado à violência nos seus negócios:
mas levaram sua denúncia a sério. Tendo se recusado a agir quando ele
agrediu o paciente da cama ao lado da sua, agora os policiais entrevistavam
os seguranças, não um a vez, mas repetidamente, sob a advertência de q ue
aquilo que dissessem poderia ser usado contra eles. Tomaram o depoi
m ento de outros funcionários do hospital para desentocar qualquer prov.i
que pudesse levá-los a iniciar um processo contra os seguranças. Nesse
m om ento, as investigações continuam , m uito em bora a única prova seja .1
palavra desse hom em , que nesse m eio tem po com eteu suicídio enquanto
estava bêbado, de m odo que não pode m ais ser cham ado a testemunli.ii
A polícia deu a entender que ainda podia prender a equipe de segurança
A polícia disse às autoridades hospitalares que tinha o dever de levar
todas as queixas a sério e investigá-las com pletam ente, mas eles devem

In m ui Au MIn Mui Mi!u i M tu h i l i r i j i i 11 H i Mhíh dfiH M iirm 1II1111


s a b e r«nu■ Issi) r uiii.i mentira m iii vi i p mli.i r rslúplda, pois nos <Ir/ ,nin-,
r m iju r trabalho no hospital, os pi >lu i.ii'. n u m a levaram a sério n e n h u m a
rei l.uuavão de nenhum m em bro de nossa equipe. Ao contrário, tomaram
pari ido de um psicopata bêbado e ignoraram a segurança dos (uni ion.u ii
do hospital - para dem onstrar que não tinham preconceitos sociais qtir
pudessem ofender a opinião dos esquerdistas. Com o resultado, a equipe
de segurança está, agora, com preensivelm ente relutante em pôr as mãos
em um paciente turbulento ou violento, deixando com pletam ente d c,
protegido todo o restante da equipe do hospital, em um a época em que .r.
investidas contra eles aumentam.
Esse não é um caso isolado em que a polícia persegue os obviam ente
inocentes e respeitáveis. Contarei apenas m ais um , dentre os muitos. I )iu
paciente, filho de im igrantes indianos, voltou da universidade onde rsiu
dava Física, para casa, e com eçou a ajudar os pais no negócio de família,
uma pequena loja de conveniência. U m rapaz sem m ácula no caráter e d<-
personalidade agradável. Era am bicioso e tinha um excelente futuro.
Três jovens brancos entraram na loja enquanto ele estava no balcão e
pediram para com prar cerveja. Pareceram-lhe m enores de idade, e pediu
que m ostrassem um docum ento de identidade. Os rapazes começaram a
agredi-lo com todos os insultos que os com erciantes indianos sofrem , em
determ inado m om ento, na m oderna Grã-Bretanha de novas legiões de j<>
vens m al-educados, brutos e depravados. Então, um deles tirou algumas
cervejas do refrigerador e os três saíram da loja, rindo.
Talvez de m odo insensato, m eu paciente os seguiu e exigiu que devol
vessem a cerveja. Os três caíram em cima dele, contundindo-o gravemen
te; mas, durante esse processo, um deles errou o soco que daria no rapa/,
r seu braço atravessou a vitrine da loja. (U m a proporção surpreendente
dr crim inosos britânicos têm os tendões dos antebraços e pulsos cortados
por lesões com vidraças: um “ risco ocupacional” , com o os crim inosos
cham am tais lesões.) O jovem ficou tão gravemente ferido que precisou de
uma cirurgia de seis horas para restaurar o braço. Assim que aconteceu o
lérim ento, a briga parou e - com considerável indulgência - m eu paciente
convidou o jovem ferido para ir à loja, de onde cham ou a ambulância r
alou, da m elhor m aneira possível, o machucado.

\ \ II III I I I I T O I I | M J|
N atm alm rnlr, .i polícia logo se envolveu no caso, e um a semana de­
pois, m eu paciente espantou-se ao ser preso e acusado de lesão corporal
grave, um crim e sério e que, potencialmente, acarretava um lon go período
ua prisão. Os três jovens, todos com extensas fichas crim inais por trans­
gressões sérias, alegaram que, sem nenhum m otivo, esse cidadão, até en­
tão cum pridor da lei e um tanto tím ido, de repente, seguiu-os ao sair da
loja e atacou os três, o que fez com que, durante o processo, m achucasse
gravem ente um deles. A polícia tratou essa história ridícula com toda a
seriedade, com o se fosse verdadeira. N enhum a pessoa com um m ínim o
de inteligência teria dado algum crédito a essa história, no entanto, m eu
paciente foi levado aos tribunais com todo o rigo r possível. Nesse m eio
tempo, sua vida foi destruída: era um a som bra do que fora, tentou duas
vezes o suicídio, e o atraso do judiciário é tam anho que ele poderá tentar
novam ente (e obter sucesso) antes de o caso terminar, provavelmente por
um juiz que irá descartá-lo com o algo totalmente indigno de ser apreciado
por seu tribunal.
N ão é o racism o que explica esse ep isód io extraordin ário m as, ao
contrário, um a outra in trom issão da id eo lo g ia progressista na polícia.
Os três jovens, p or serem corru p tos, desonestos, na m elhor das h ip ó ­
teses, sem ianalfabetos e, provavelm ente, incapacitados para qualquer
em prego, precisavam ser protegid os da m á vontade e do precon ceito
dos respeitáveis, que são os responsáveis p or sua privação, p or conta da
estrutura injusta da socied ade da qual eles, os respeitáveis, tão injusta­
m ente tiram proveito. Ao levar a sério as acusações ob viam ente falsas
e conspiratórias desses três jovens, a p o lícia estava dem onstrando para
um eleitorado de esquerda que não fica autom aticam ente ao lado dos
respeitáveis contra aqueles que os m andachuvas do Partido Trabalhista,
ao se in clin arem para pegar a p ró xim a garrafa de cham panhe, cham am
de socialm ente excluídos.
As prioridades nacionais da polícia podem ser vistas em dois fatos
reveladores. O prim eiro é a polícia estar estudando utilizar um sistema de
tecnologia de ponta para rastrear por satélite os m otoristas que andam em
alta velocidade. O segundo é a sina do chefe de polícia da cidade nortista
de M iddlesborongh.

14* o i ui A l t i i I n M m • I t l l mi i i l ' " l n im*, n u 1'iiíh i I j i h M i i r n v í l l n h <


N ão elogio à loa meus romp.Mi li >t.r., m.is Iiá um asperlo dr in
conduta que é notadamente supei ioi ao de outras nações: os h ib ilos dr
direção. D irigem , em geral, com razoável consideração pelo próxiim >. I’<n
que m otivo as boas m aneiras devem lim itar-se às estradas, não sei, m.is r
a realidade. Por anos, as taxas de acidentes rodoviários têm sido, de lonj;< ,
as m ais baixas entre os países com níveis de tráfego com paráveis aos nos
sos; o índice de fatalidades nas estradas é m ais baixo que os da França, d.i
Alem anha ou da Itália.
Devem os supor que os policiais possam se considerar afortunados
p or estar em um a nação de pessoas relativam ente respeitadoras da lei, n< i
que diz respeito às norm as de trânsito, o que perm ite que se concentrem
em assuntos m ais im portantes; m as, de m odo nenhum . Com intromiss.n >
crescente, colocam câm eras nas ruas e concentram todos os esforços ,i
m ín im a m anifestação de aum ento de velocidade ou de outras infrações
m enores das leis de trânsito. O custoso sistem a de satélite é a próxim a
etapa nessa campanha.
Ao m esm o tem po, o chefe de polícia de M iddlesborough, um hom em
cham ado Ray M allon, foi suspenso de suas funções nos últim os 26 me
ses. Prim eiram ente, os superiores alegaram que apresentara um a conta dr
despesas falsas, mas descobriu-se que, se algo havia sido orçado por baixo,
o reem bolso era devido. Seus in im igos na hierarquia da polícia institu í
ram um a busca desesperada por provas de outras infrações que ele tivesse
com etido, sem qualquer sucesso. Com o ele m esm o disse, foi tratado de
m aneira pior do que qualquer outro crim inoso.
Por que essa perseguição? Simples: M allon é um policial carismático,
dedicado à m áxim a de que a força policial pode reduzir o nível do crim e,
m esm o com todas as obstruções daqueles que im aginam , de boa intençâ«>,
estar nesse cam inho. Ao obter um a redução surpreendente do crim e na
cidade de Hartlepool - proeza que fez dele um herói local - foi prom ovi
do para um a cidade maior, M iddlesborough. Aí, disse que entregaria seu
cargo se não reduzisse a taxa de crim es em 20% em um prazo de dez< >iio
meses. Conseguiu em nove meses.
M allon tornou-se o policial m ais fam oso do país. Estava claro que era
o tipo de líder que não pediria a seus homens aquilo que ele m esm o não

IH \ V m In n u ^ iil jrlii
estivesse prc| i.ii .ti li >|i.ii.i là/.er. Seu ím peto ora li irmld.ivel e tal voz (até nirs
mo para alguém com o eu) um pouco assustador, Ele trouxera, no entanto,
uma m elhoria na qualidade de vida de m uitas pessoas, e ninguém nunca
lôi capaz de dem onstrar que o fizera por m eios ilícitos ou por alguma iu
fração. Sim plesm ente aplicava a lei.
Sua suspensão foi fruto do terror que despertou, não no público, mas
nos outros oficiais graduados. Se M allon podia fazer aquilo em um setor
tão difícil com o M iddlesborough - o próp rio m odelo da destruição urban.i
m oderna - , por que os outros chefes de polícia não podiam fazer a mesma
coisa? Ele estava dando um exem plo m au e perigoso. Se perm itissem que
Ray M allon continuasse em seu posto, a população em geral iria perceber
que um a taxa de crim inalidade alta não era um aspecto inevitável da vida
m oderna ou um ato de Deus. Portanto, ele deveria sair, sob qualquer pre ­
texto que aparecesse: e, quando ele se foi, cerca de 1 7 % da população de
M iddlesborough fez um abaixo-assinado para sua reintegração imediata.
Olhando de um a ponta do telescópio, vem os a polícia cum prindo seu
dever com o sem pre o fez. Ao olhar pela outra extrem idade, no entanto,
vem os a polícia subvertendo o propósito pelo qual foi criada, em grande
parte por m edo da crítica dos progressistas que, com o os leitores norte-
-am ericanos sabem m uito bem , é insensível aos fatos. Esses progressistas
orgulham -se da própria ternura, mas o brilho cálido que ela lhes traz apa
rece á custa dos pobres, que, com o consequência prática, vivem em um
torm ento de desordem pública e privada que, todos os dias, sofro contem
piar durante os últim os dez anos de vida profissional.

200(1

I n ti u i \iiiiln M m ! .......... I il l . i 1 ' i i l n m u i u i i 1’n l H i l i r i M l i n i v i l l l i l "


Iiilolcr&ncia Zero

h I— J ntre os pobres, a polícia nunca foi m uito popular. O interessante


r=y hoje, no entanto, é que o ponto de vista deles de que “ todo poli-
i-l '— H ciai é safado” espalhou-se para grande parte da classe intelectual
burguesa. N ão faz m uito tempo, por exem plo, um jornalista disse-m e,
en passant, que odiava a polícia. Perguntei-lhe o porquê: será que eles o
aprisionaram falsamente, m altrataram -no injustificadam ente ou interroga­
ram -no brutalm ente? Não, respondeu, não tinha nenhum m otivo pessoal;
apenas odiava os policiais pelo que eram.
Bem , com o disse o rei Lear, nada vem do nada: era im provável que o
ódio de policiais do jornalista tivesse surgido com pletamente por acaso e
se form ado totalmente em sua consciência. Suspeitei, com o tantas vezes é
o caso das opiniões adotadas levianamente, mas defendidas com firm eza,
de que essa fora forjada na com binação de ignorância, desonestidade e
m odism o. Ao expressar que não gostava da polícia, o intelectual burguês
estava, portanto, estabelecendo um a relação de solidariedade com o pobre.
Em um a era de empatias, não podem os afirm ar que desejamos o bem de
alguém a m enos que partilhem os de seus sentimentos.
O intelectual burguês, contudo, precisa encontrar razões para suas
opiniões: a racionalização é, afinal, seu métier, e não é difícil para ele ar­
quitetar tais razões com relação à polícia. A função dela é, no fim das
contas, defender a ordem social e, já que a ordem social é em grande parte
respimsabili/.ada pela pobrc/a iln pulm i mu luiinos que os pollt lar. ,m,
cMii parte, responsáveis pela pobre/.i N.m s.lo parle do sistema de )ii'.lli,.i
crim inal, mas do sistema de injustiça social.
O intelectual nunca reconhece quanto da própria liberdade drvr .1
existência da polícia —um pensam ento hum ilhante, daí preferir .1 idu.i di
que a paz relativa e a tranquilidade em que vive, e que torna possível sm
trabalho, em erge espontaneam ente da boa vontade de seus semelhante;,,
não sendo necessária nenhum a coerção externa para mantê-la. Uma vr.
que — na opinião do intelectual - o pobre detesta a polícia e, além dissi»,
as vítim as não podem pensar nada de errado, logo, um a polícia fraca br
neficiaria o pobre.
Por acaso, algo p róxim o ao experim ento natural de policiam enlo liae< >
está em curso no m eu distrito da cidade, onde a polícia tem um a presença
m ínim a e intervém som ente nas situações m ais graves. Longe de ter ado
tado um a política de tolerância zero, com o em Nova York, adotaram a da
intolerância zero; e a abordagem que fazem do crim e é quase tão abstrata
e etérea - quanto a dos crim inologistas progressistas. Por isso, é de certo
interesse, tanto prático com o teórico, analisar se a qualidade de vida do
pobre aum entou ou deteriorou sob esse regim e policial lasso.
A política, de intolerância zero parece ter surgido da cabeça dos poli
ciais m ais antigos da cidade, que estão cada vez m ais parecidos, nos pro
nunciam entos públicos, com os assistentes sociais seniores. A clientela não
são as pessoas da cidade, mas a intelligentzia progressista. O policial de ronda
que esteve, há pouco, de visita em m inha enferm aria, disse-m e que ele e
os colegas tinham ordens de não prender ou autuar ninguém que fosse
desconhecido da polícia por crim es até tentativa de hom icídio, inclusive.
Com o funcionário experiente, que se aproxim ava da aposentadoria ansio­
samente esperada daquele em prego que outrora amara, achou essa ordem
profundam ente desm oralizadora. Era, sabia, um incentivo ao crime.
A política de intolerância zero não é sim ples aberração local. O chefe
de polícia de outra força explicou, recentemente, em um ensaio, por que
era necessário manter as prisões em um nível m ínim o. Para processar cada
uma delas gasta-se quatro horas, escreveu, e por isso, tais prisões alas
lam a polícia de outros deveres. Nunca explicou quais deveres policiais

A Vit fyi 1m i S m j r l i i
p od e i i.iiii \i i 1 1 i . i i 1 1 1 í p o r t a n t f s q u e a a|>i■t-fiis.u > <l< I nl i .ili >res, m i n p c d h i .1
racionali/.ação do processo de prisão (que requer, em média, 4 3 fornitilá
rios). Além disso, acrescentou, a mera repressão da crim inalidade, sempre
que a polícia tem a oportunidade de pegar o crim inoso, nunca, por si s<’>,
poria fim ao crim e. M uito melhor, parecia querer sugerir, seria deixar os
crim inosos seguirem assim.
N ão é de surpreender que assim o tenham feito. Encontro exem plos
da inação policial em face do crim e todos os dias. Por exem plo, um lio
m em de trinta e tantos anos chegou na em ergência do m eu hospital, re
centemente, por ter tom ado um a overdose deliberada de com prim idos, mas
não a ponto de pôr a vida em risco. Sua m ulher chegou enquanto ele
aguardava m ais cuidados m édicos. O casal retom ou a briga que tivera na
ocasião da overdose, e em pouco tem po ele em pregou o argum ento final,
irrefutável: os punhos. O som dos golpes que desferia na cabeça da mulher
alertou as enferm eiras da situação. N o m om ento em que chegaram para
resgatar a mulher, ela estava no chão, tentando, em vão, evitar os pontapés
no rosto e no estômago.
As enferm eiras cham aram a polícia, e dois policiais chegaram pron­
tamente (um a eventualidade, o que não é garantido). Logo partiram , sem
nem m esm o pedir ao m arido que não se com portasse daquela maneira
novamente. Disseram às enferm eiras que era um a briga dom éstica, e que,
portanto, não tinham poder para interferir. A sala da em ergência de um
inglês, aparentemente, é seu castelo - e a mulher, sua propriedade.
Ser um crim e dom éstico - ou, nas palavras daqueles que com etem tais
infrações, ser “ só” um crim e dom éstico - tem sido um a das desculpas mais
citadas por policiais para cruzar os braços e nada fazer. A relutância habl
tual para intervir naquilo que consideram com o contendas essencialmente
privadas é o resultado, sem dúvida, de várias considerações: dentre elas, o
desejo louvável, ainda que mal pensado, de separar a esfera da moralida
de pessoal da esfera da lei. Deve haver um lim ite para a supervisão estatal
nas relações interpessoais, e não é todo ato m oralm ente repreensível qne
deve atrair a sanção legal. A intervenção policial em questões domésticas
(m uito além da inutilidade prática, pois as vítim as muitas vezes se recn
sam a depor no tribunal) é quase um a extensão totalitária de seus poderes.

|| mitl \ lllllil Mm ............ M III Illlo lcrA lIC IJI /< l<
No enl.mlo, m esm o n,i inlei ptel.n.iii m.ih v’i nt ios.i ilo .unhllo do qut é
privado um policial mg lês sênior olv,ervou certa ve/, meritória ou <lt
m eritoriam ente, que um determ inado assassinato não era grave era .ipeu.r
um m arido que m atou a m u lh e r -, o que aconteceu na sala de emergem U
não foi em nenhum dom icílio, ou m esm o um crim e doméstico. N.m l<<i
sim plesm ente um a agressão contra a vítim a, mas contra a ordem púMlt .1
M esm o assim, a polícia deixou de agir.
Em um aspecto a polícia estava correta no m odo com o enieiideu 1
situação: a esposa do sujeito perdoou-o no m om ento em que foi levant.u l.i
do chão, e teria recusado testemunhar contra ele no tribunal. Ela igu.il
m ente recusou todas as ofertas de auxílio para conseguir acomodações
longe dele (ele iria encontrá-la de qualquer maneira, disse), e não quis ulu
advogado. Sua única preocupação agora era levar para ele as coisas de qu<
disse que precisaria durante a estadia no hospital.
A polícia, no entanto, não precisava do testem unho da m ulher para
instaurar, com êxito, um processo. As enferm eiras ouviram e viram o
suficiente para prendê-lo um as vinte vezes. Nas últim as palavras de .111
tojustificação dos policiais, ao deixar a cena, disseram estar m uito ocu
pados para lidar com um assunto tão trivial. N ão disseram com o que
estavam ocupados.
O efeito dessa abstenção do dever nas enferm eiras - ao m enos por um
tempo, até que m ais em ergências tomassem suas atenções —foi profundo
e desmoralizante. N ão só sentiram, com razão, que a polícia considerou
sem valor as provas que tão facilm ente poderiam ter fornecido, com o se
elas não fossem testemunhas críveis, mas sentiram que a posição dei,r.
com o cidadãs cum pridoras da lei, ansiosas por cum prir o dever, também
foi desvalorizada.
A lém disso, m uitas das en ferm eiras habitam em um m un do não
m uito distante, física e m oralm ente, do m un d o da m ulher agredida 11,1
sala de em ergência. M uitas delas consultam -se co m ig o a respeito de
seus problem as: um a das en ferm eiras na em ergência naquele dia tiuh.i
um a filh a viciada em drogas com vário s nam orados que foram viole 11
los; outra m e perguntara m ais cedo o que fazer com seu com panheiro
violento. A ssim , quando elas viram um h om em espancar um a mulliei

\ \ 11 I n 1 111 «1 1 j r l n
c m u m i",p.ii,ii p u b l i c o c o m t o t a l i m p u u l d a d r , n.i v e r d a d e , c o m o q u e

i p i a s e e q u i v a l i a a p r o t e ç ã o p o l i c i a l , t i v e r a m u m v i s l u m b r e t e r r í v e l da

p ró p ria v u ln era b ilid a d e.

Por fim , o incidente aconteceu na sala de em ergência de um grande


hospital da periferia, em que um a considerável proporção de pacientes
presentes era, quase por definição, da m esm a tendência do m arido vio
lento. Devem ter notado a im potência da polícia diante daquela conduta
e tirado as conclusões devidas: de que dá para se livrar de qualquer coisa,
menos assassinato.
Além disso, o próprio culpado em breve, sem dúvida, estaria espa­
lhando as boas novas nos bares que frequentava, em belezando a história
para m ostrar-se aos ouvintes ainda m ais heroico ao vencer a polícia com o
uunca acreditou que faria. Quando falei com ele após os policiais saírem
da sala de em ergência, ele disse que estava adm irado, pois nunca tinha
sido cham ado a prestar contas à lei por suas inúm eras agressões, não
só as contra mulher, mas muitas outras. (Sua prim eira agressão à m u­
lher foi na festa do casamento, diante dos convidados.) U m critério para
diagnosticar a psicopatia é a incapacidade individual de aprender com a
experiência, mas até agora, esse hom em não tinha tido a experiência que
poderia tê-lo feito aprender.
A polícia dem onstra um a engenhosidade perversa ao apresentar ra­
zões para não intervir na violência doméstica. U m a paciente recente final­
mente separou-se do pai ciumento, alcoólatra e violento de seus três filhos
ilegítim os. Encontrou um apartamento para si e lá viveu serenamente, até
que fez um a festa de aniversário para um a das crianças. De algum m odo,
seu ex-nam orado descobriu onde ela vivia e, naquela m esm a tarde, tocou
a campainha. Ela respondeu; ele entrou sem pedir licença. Arrastou-a pelos
cabelos no côm odo em que ocorria a festinha, esm urrou-a até cair n o chão
e chutou-a perante as crianças horrorizadas. Depois partiu.
Ela cham ou a polícia. Fora golpeada e ferida, e as crianças que viram a
agressão ainda estavam lá. A polícia disse que não poderia fazer nada por
que ela abrira a porta para o agressor. E foram embora.
A opinião policial nesse caso parece ser: um a vez que você deixou um
hom em entrar na sua casa, consequentem ente, ele está livre para agir com o

IniMu AiiiiIn Mm ••minui InlulciAnrin Xrri»


(|iils<T, M c.m o .11 ><>s s i m ret 111 >i11 .1«, it I Ihii I, 1111111i.i pai ionte ii.ui eslava m i
pi isir.K I tic e< inteslar ossa exlrai >r<11 n.i ii.i <It nilrina policial, lila peri n u i.i ,i
imi.i grande classe de pessoas que nunca aprendeu apropriadamente .i In
ou rsiTcvcr, Incapaz de redigir um a carta — não sabia nem m esm o que o
pronom e da prim eira pessoa do singular é grafado em m aiúscula (li/ o
teste) - era obrigada a acreditar no que a polícia dizia, m esm o que nào
losse verdade.
Quando expus esse caso ao segundo em com ando da força policial,
ele expressou surpresa. A única explicação que poderia im aginar para o
com portam ento dos policiais era a de que a m ulher retirara o pedido de
ordem de restrição contra o nam orado e, na realidade, anulara a ordem ai >
abrir a porta para ele. Foi essa anulação, conjecturou, que tirou a possibi
Iidade da polícia de agir. Que um policial tão graduado (evidentemente,
um a pessoa decente) possa ser tão falho em sua com preensão deve aterro
rizar quem obedece à lei e confortar o malfeitor.
Na luta para perm anecer inativa, a polícia sem pre apresenta um argu
mento que ouço com algum a simpatia: processar não vale o esforço por
conta das sentenças inadequadas após a prisão. Por exem plo, um prisio
neiro que conheço, que por muitas vezes espancou e quase estrangulou a
namorada —que por três vezes am eaçou matá-la e, certa vez, a sequestrou
recebeu um a sentença que dizia que deveria ficar som ente quinze meses
na prisão (nove dos quais já cum prira enquanto esperava julgam ento),
em vez dos dez anos previstos por lei. D eixou bem claro que continuaria
perseguindo a nam orada, qualquer que fosse sua condenação; e sua ficha
anterior - tinha queim ado o carro de outra nam orada que, na ocasião, es
tava grávida e tentara deixá-lo - sugeriam para qualquer um , exceto para <>
juiz, que ele representaria um a ameaça à ex-nam orada e a qualquer outra
m ulher que viesse a encontrar no futuro.
A leniência do juiz foi, portanto, extrem am ente insensível para com
o bem -estar da sociedade; mas agravaria o dano argum entar que, por
quinze m eses serem inadequados, teria sido m elhor não ter sido dada
qualquer sentença. N ão obstante, isso é exatam ente o que a polícia im
plicitamente argum enta, e perm anece com o um a das pedras angulares do
edifício da passividade.

\ \ ii In im H m j c III
IJm bcbado deliberadam ente apagou um cigarro no rosto de uma eu
ferm eira sênior de nossa em ergência, queim ando sua bochecha. A polícia
veio, m as, ao inspecionar a ferida, declarou não ser grave o bastante para
valer a pena a autuação. Talvez tenham raciocinado que o bêbado, depois
que ficasse sóbrio, não recordaria o que fizera e, portanto, não aprenderia
a lição. Os agentes do Estado, no entanto, deixaram claro o valor que o
Estado conferia à segurança da enferm eira: zero.
Outra desculpa padrão para a inação da polícia é a de que o ofensor
é louco ou, ao m enos, é um paciente p siqu iátrico (o que não é bem a
m esm a coisa, é c la ro ). A m era insinuação de um histórico psiqu iátrico -
um a única consulta com um psiquiatra cinco anos antes já basta -
explicará e desculpará quase tudo, aos olhos da polícia, e justificará a
incapacidade de processar.
N ão faz m uito tempo, fui cham ado à delegacia para exam inar um
hom em preso por tentar matar seu advogado. Tinha um longo histórico
de psicose - causada pelo uso exacerbado de drogas - e de infrações. Tinha
ido ao advogado com um martelo com um a das extrem idades afiada com o
uma picareta, gritado “ Você tem de m orrer!” e tentado golpear a cabeça
do advogado. Felizmente, o advogado viu se aproxim ar o golpe, saiu da
direção e sofreu apenas um ferim ento menor. O cliente violento tentou,
novamente, acertá-lo, mas ao errar, fugiu do escritório e depois disso o
advogado cham ou a polícia.
Estava claro que o hom em era louco; mas sabia por experiência que,
se recomendasse sua admissão direta no hospital, a polícia esqueceria todo
o caso da tentativa de assassinato. Insisti que fosse feita a autuação, mas <>
policial recusou-se dizendo - mentirosamente, é claro - que não tinham
perm issão de autuar lunáticos. Disse que se ele não fosse hospitalizado,
teriam de liberá-lo - o que fizeram: prim eiro, devolveram o martelo, pois
não tinham o direito de privá-lo de sua propriedade. Assim, um a tenta
tiva de hom icídio não chegou às estatísticas crim inais, e a polícia pôde
felicitar-se pela manutenção da ordem pública.
N ão é preciso dizer que o louco com preendeu bem a im punidade d.i
loucura. Por duas vezes já ouvi esquizofrênicos falarem para os policiais:
“ Você não pode tocar em m im , sou esquizofrênico!” . N o m esm o dia em

li tiiui \iii<In Mm "IhI ihm tiiInlnMiK ifi Zrm


<1 1ic escrevo esle lexlo, en l revistei u m |>.u h u i r Uin ak o ó l.il r.i i|iie li.i .il
gum tem po, extrem am ente b ê b a d o , l e n i o u estrangular a n a m o r a d a Ti n ha
amassado seu carro, destruído seu apartamento e ameaçado matai a lilba
dela. Na hora em que a polícia chegou, tinha com eçado a atacar a n a m o
rada do vizinho, que viera ajudar. A polícia concluiu que nenhum h<>mem
são teria se com portado daquela m aneira, levou-o para o hospital, e la o
deixou. N o que lhes dizia respeito, o incidente estava acabado. Esses cri
m es tam bém não chegam às estatísticas crim inais. Eis com o controla nu r.
crim inalidade na Inglaterra.
Crim es dom ésticos não são os únicos a receber esse tratamento de
sinteressado. Nas últimas duas semanas, os três casos a seguir chegaram .1
m eu conhecimento. U m a conhecida, vendedora de joias antigas, expunha
em um a feira de antiguidades. Durante a noite, um assaltante entrou no
salão de exposição e roubou suas joias, no valor de 3 2 m il dólares, bem
com o as de outros expositores, no valor de m ais uns 12 0 m il dólares.
Nesse caso, a polícia pegou o ladrão no dia seguinte; estava sob fiança por
arrom bam ento a oito casas de cam po, o que por si só já é um sinal da
leviandade da polícia, pois se objetassem tenazmente à concessão da fia 11
ça, ele ainda estaria sob custódia. Apesar da rápida captura do culpado, .1
polícia, no entanto, não recuperara um a única joia (algo que um detetive
particular, certamente, teria sido capaz de fazer); de fato, alegam estar mui
to ocupados para tal. N ão é de admirar que o preço dos prêm ios de segui <1
para joias antigas seja dem asiado caro para pequenos comerciantes. Assim,
a m inha conhecida teve de suportar a perda - para ela, uma catástrofe.
U m a paciente veio até m im , seriam ente deprim ida, após alguns jo
vens bandidos, bem conhecidos na área, arrom barem o galpão em seu
quintal e roubarem as bicicletas novas dos filhos. Aconteceu de os vizinln >s
film arem os ladrões enquanto roubavam, mas — duas semanas depois ,1
polícia ainda não tinha respondido o pedido de auxílio de m inha paciente
011 o dos seus vizinhos. Roubo de bicicletas, afinal, não é um crim e grave.
Um prisioneiro com um longo histórico de crim es violentos, bem
com o furtos e arrom bam entos, estava chegando ao fim de sua sentença
de prisão m ais recente. Admitia francamente que era m uito mais feliz 11.1
prisão do que em liberdade: a disciplina forçada da prisão perm itia que

'M l \ V i i ln im H m jr ln
vivesse em pa/ Velo até mim em desespero; sei.i «|iie eu podcna fa/ei .il
gum a coisa para evitar que ele fosse solto, pois sabia que com eteria uma
infração grave novamente, talvez até um assassinato? Fora ao diretor da
prisão, pedindo para não ser solto. O diretor lhe disse que não havia m eio
legal para fazer aquilo. Na tentativa de ficar na prisão, confessou, então, vá
rios crim es graves, dos quais nunca fora acusado. Seria possível corroborar
sua confissão, e o diretor cham ou a polícia, mas negaram -se a levar o caso
adiante, dizendo que não era do interesse público fazê-lo. O prisioneiro,
então, assaltou e feriu gravemente outro preso para ganhar m ais tempo na
prisão. Novamente a polícia veio e se n egou a levar o assunto adiante, d i­
zendo que não era do interesse público que isso fosse feito. O prisioneiro
foi solto no dia 1 1 de junho.
O m edo ou a falta de vontade por parte da polícia aconteceu exata
mente na m esm a época do enfraquecim ento, quase ao ponto de extinção,
dos freios inform ais, mas socialmente fortes, nos com portam entos pes­
soais que outrora fizeram a Inglaterra um país tão civilizado — freios tais
com o o m edo do que os vizinhos irão dizer. A falta de constrangimentos
internos ou externos perm itiu o surgim ento do hom em “ natural” que,
longe de ser um encanto, é um psicopata sem atrativos. O hom em é o lobo
do hom em , e especialm ente da mulher.
Naturalmente, as tendências sociais não afetarão todos os setores da
sociedade de m odo igual. O policiam ento fraco afeta, principalm ente, o
pobre — as próprias pessoas cujo bem -estar a intelligentzia afirm a que um
policiam ento fraco beneficiaria. E verdade que a classe m édia não saiu
ilesa: pagam um preço ainda m ais alto pelos prêm ios dos seguros por suas
casas e carros e preocupam -se, com o nunca se preocuparam antes, com
arrom bam entos. N ão há quase ninguém no país - m esm o entre os ban
didos - cujo prim eiro pensamento ao voltar para casa não seja: “ Será que
entraram na m inha casa?” .
Essas preocupações banais, no entanto, estão ao lado do senso perva
sivo e perm anente de insegurança pessoal onde quer que estejam. Temem
os infratores porque sabem que a polícia não oferece proteção. O grau em
que o m edo rege as vidas das pessoas nas áreas pobres é algo que meus
am igos de classe m édia acham difícil de acreditar, para não dizer, entender.

li ui Hl \|| ||III Mill mMIÍmI'1 lllloh miih l/l Z itu


Incontáveis p.ii lentes disseram nu ipir ■I«'i\.11n suas casas Ião raiam eiile
1111.1 nI(> lhes é possível por medo de sciem atacados 011 de ler as casas 111
vadidas.Toda semana encontro pacientes que foram assaltados 011 tivctam
as casas arrom badas três vezes ou mais em um ano. Semana passada l i v<

uma paciente a quem as crianças da vizinhança apedrejavam - literalmente


lançavam um a chuva de pedras - sempre que ela saía de casa. Quebraram
suas janelas em inúm eras ocasiões e espalharam fezes nas paredes de sua
i asa enquanto ela estava fora. N inguém nunca foi preso por tais ofensas, e
ela desistiu de inform ar a polícia.
A pretensão dos intelectuais - que, infelizm ente, não tem deixado
de surtir efeitos práticos no m undo real - de que a polícia não seja nada
além de um braço executivo de um a burguesia hipócrita determinada a
preservar seus ganhos ilícitos à custa do pobre é terrivelm ente superfi
ciai quando testada pela experiência do povo que sofre pelo policiam ento
deficiente. A ideia de um a ordem social mais justa que tornaria a polícia
supérflua é um absurdo utópico. Um a polícia confiável e honesta não é
a negação da liberdade, mas a precondição de seu exercício. Para os que
duvidam disso, só posso recom endar os últim os versos do poem a de Pablo
N eruda sobre a Guerra Civil Espanhola:

Venham ver o sangue pelas ruas,


venham ver
o sangue pelas ruas,
venham ver o sangue
pelas ruas!

1 9 9 8
Ver Não E Crer

prim eiro dever do intelectual m oderno, escreveu George

O O rwell, é afirm ar o óbvio, invalidar ponto a ponto “ as pequenas


ortodoxias duvidosas... que agora brigam por nossas alm as” .'
Orwell entendia por doutrinas totalitárias aquelas que hipnotizavam os
intelectuais de seu tem po e im pediam -lhes aceitar as verdades m ais óbvias
e evidentes a respeito de si próprios e de outras sociedades; entretanto, a
advertência ainda é verdadeira, m esm o quando o fascismo e o com unism o
estão m ortos. O fim do totalitarismo não levou a um a avaliação mais fran­
ca e honesta da realidade, mas sim plesm ente a um a proliferação das lentes
de distorção através das quais as pessoas escolhem olhar para o mundo. Se
a humanidade, com o expôs T. S. Eliot, não pode tolerar m uita realidade,
parece que pode suportar qualquer quantidade de irrealidade.
A luta do intelectual para negar o óbvio sempre é mais desesperada
quando a realidade é desagradável, está em desacordo com suas precon
cepções e quando o pleno reconhecim ento dela destruiria os fundamentos
de sua visão de m undo intelectual. Dada a história social da Inglaterra nos
últimos quarenta anos, pouco surpreende que a negação coletiva seja uma
das características m ais proem inentes da vida intelectual nacional.

1 G eorge O rw ell, “Charles D ickens” (1 9 3 9 ). In: Inside theWhale and Other Essays.
L on d o n , G ollancz, 1 9 4 0 , p. 9 - 8 5 .
listou cm iiin.i posição 111« ( iiiiiiiii « uimanto passo ,i ui.uiii |).i111 ■11■
minha vida profissional trabalhando com o médico nos rincões mais po
bres da sociedade, tenho, por conta de meus escritos, entrada na sociedade
literária. O desprezo com placente destes pela catástrofe social cuidado
samente forjada para aqueles m e assusta tanto quanto a própria catástn >
fe. N unca tanta indiferença foi mascarada com o com paixão; nunca houve
tanta cegueira propositada. Os outrora pragmáticos ingleses tornaram se
um a nação de sonâmbulos.
Recentemente, por exem plo, fui convidado para um almoço na sede de
uma famosa e venerável publicação progressista para a qual, às vezes, cont ri
buo com artigos que vão de encontro à sua posição ideológica. O atual dono
da publicação é um bon vivant e excelente anfitrião que fez várias dezenas de
milhões em circunstâncias que ainda atraem considerável curiosidade públi
ca. Ao redor da mesa do almoço (da qual, fico feliz em dizer, a comida prole
tária inglesa estava terminantemente proibida) estavam reunidas pessoas de
impecáveis credenciais esquerdistas: e eu era a única exceção.
A m inha direita sentou-se um hom em de uns sessenta e tantos anos,
inteligente e culto, que trabalhara com o um correspondente estrangeiro
importante para a BBC e que passara grande parte de sua carreira nos Esta
dos Unidos. Disse que ao longo dos últim os dez anos lera, com interesse,
minhas m issivas semanais —publicadas em um a publicação rival e conser
vadora - retratando o caos espiritual, cultural, em ocional e m oral da vida
urbana, e que sempre quis conhecer-m e para fazer um a simples pergunta:
teria eu inventado tudo aquilo?
Se inventara tudo aquilo? Eis a pergunta que muitas vezes me fora
feita por intelectuais progressistas da classe m édia, que esperam que a
violência, o descaso e a crueldade, o raciocínio deform ado, a desesperança
total e o puro niilism o que descrevo semana sim , semana não, sejam tão
somente invencionices de um a im aginação febril. De certa maneira fico
lisonjeado que as pessoas que fazem tais perguntas creiam -m e capa/ de
inventar as elocuções absurdas, em bora estranhamente poéticas, de meus
pacientes - que sou capaz, por exem plo, de inventar o hom em que disse
sentir-se com o o m enininho que pôs o dedo no dique, dando alarme fals< >,
Ao mesmo tempo, no entanto, a pergunta alarma e recorda-m e daquilo

\ \ « I n i iyi S iiijr h i
que That keray certa vez disse a respeito dos escritos de I lenry Muyliew, o
cronista da Londres dos pobres: tínhamos de sair, uma centena de melros,
e ver por conta própria, mas nunca o fizemos.
Ao ser perguntado se inventara tudo aquilo, respondi que, longe de
fazê-lo, m inim izei o horror da situação e om iti os piores casos que chega
ram a m eu conhecim ento para não afligir indevidamente o leitor. A rea Ii
dade da vida da subclasse inglesa é m uito m ais terrível do que aquilo que
consigo, com propriedade, descrever. Meus interlocutores, educadamente,
fazem um aceno com a cabeça e passam para o próxim o assunto.
É costume nos alm oços dessa famosa e respeitável publicação, uma
vez que os pratos tenham sido recolhidos, que um dos convidados faça um
breve discurso sobre um assunto que lhe esteja preocupando no momento.
Nessa ocasião foi o ex-correspondente da BBC que morara nos Estados Uni
dos quem falou: de m odo eloquente e m uito bem, com o era de se esperar.
E qual foi o assunto que desenvolveu com tamanha eloquência? A ini­
quidade da pena de m orte nos Estados Unidos.
Não é fácil transmitir o clima de satisfação que se estabeleceu ao redor
da mesa enquanto ele falava, um m isto de possante superioridade moral
(uma das em oções mais aprazíveis de todas) e de justa indignação (outra
em oção m uito agradável). O consenso era de que as pessoas de lá eram uns
selvagens ignorantes, ao passo que nós, aqui, guardiões, com o sempre, da
própria civilização, não recorríam os a tais m étodos prim itivos e bárbaros
por séculos - isso quer dizer, por 3 5 anos.
Todos concordaram com o senhor da BBC, e foi m inha vez de di/ei
algo. Confesso não ser um entusiasta da pena de morte, parece-m e que a
possibilidade de erro, e o fato histórico de tais erros terem acontecido (ná< >
só nos Estados U nidos, mas na Grã-Bretanha e, possivelmente, em todas as
outras jurisdições em que reina o verdadeiro e o devido processo legal) c
um argum ento convincente, para não dizer absolutamente decisivo, contra
a pena de morte, qualquer que possa ser seu efeito impediente. E, por lei
visto fotografias das câmaras de execução onde as injeções fatais são ad
ministradas, enfeitadas com o se fossem salas de cirurgia de hospitais, não
posso deixar de achar que está a ocorrer algo sinistro: a simulação de que
a execução é um procedim ento terapêutico. Começam os a ver a força do

14*<M III A li M In Mm 'iiiu ilu iM Yri Nlii» I < H ‘ i i


a r g u m e n t o d o Dr. J o h n s o n d e que .c. ••***« u e o r s d e v e m s e r p u b li c a s , ,i i **11
aberto, ou não devem ocorrer de mod< >algum ; ao menos não há <> pei igi >
de as execuções serem tomadas por aquilo que não são.
Entretanto, estava angustiado para dissipar a atmosfera conlõrlávcl de
retidão, de santidade, tão facilmente obtida sem custo ou esforço. Disse
que deveríamos olhar m ais detidamente para o nosso país, para o lato di­
que, sem a única (reconhecidamente importante) exceção do hom icídio,
as taxas de crim e na Grã-Bretanha atualmente eram maiores, e em alguns
casos m uito maiores, que nos Estados U nidos, e que a principal falha dc
nosso sistema de justiça crim inal não era o rigo r excessivo ou a tendência
a prisões equivocadas, mas a falha patente de fazer cum prir a lei ou de pro
teger os cidadãos das violações a lei mais flagrantes. O resultado era, para
um incontável núm ero de compatriotas, um verdadeiro inferno em vida.
Esbocei brevemente minhas razões para dizer aquilo: um grande nú­
m ero de pessoas — m ilhares e possivelm ente dezenas de m ilhares — con­
taram-m e sobre suas vidas dom inadas pela possibilidade, ou melhor, pela
grande probabilidade, de sofrer violência e outros atos crim inosos, e que,
com razão, se sentem totalmente sem proteção da polícia ou dos tribunais.
A m inha frente estava um famoso pacifista, um hom em de elevados
princípios, que não era de m odo algum um puritano, ao m enos não o era
com relação à com ida e aos vinhos. Suas bochechas rosadas irradiavam,
ao m esm o tempo, bonom ia e autossatisfação, e naqueles tons profundos,
refinados e um tanto arrastados da classe m édia alta inglesa, falou:
- Você conhece umas pessoas engraçadas - disse, inclinando-se ligei
ramente em m inha direção do outro lado da mesa.

Conheço pessoas engraçadas: lembrei de um am igo da faculdade de


medicina cuja mãe, quando apresentada à sua namorada, sussurrou no ou­
vido dele: “ NMNCSQ” , o acrônimo de “ Não muito de nossa classe social,
querido” . Aquelas pessoas que conheci poderiam ser “ engraçadas” , respon­
di ao pacifista, mas havia muitas delas e, além disso, viviam em nosso país,
muitas vezes a curta distância - à distância de um assalto - de nossas portas.
A complacência do hom em não era, de m odo algum, incom um . Pou
cos dias antes encontrara meu editor para um almoço, e o assunto do nível

\ \ iilit i ui S n r jr l n
gorai da niltura c da educação na Inglaterra veio a lona. Meu cdilor é um
hom em culto, com muita leitura e profundamente afeiçoado à literatura,
mas tive dificuldade em convencê-lo de que havia m otivos para preocu
pação. O analfabetismo e o desconhecimento do m ínim o em matemática
estarem disseminados não o preocupava porque —afirmava — sempre esl i
veram disseminados. (O fato de que agora gastamos quatro vezes mais per
capita com educação do que há cinquenta anos e teríamos direito a esperar,
no m ínim o, um aumento dos níveis de alfabetização e de familiaridade
com a matemática não o convenceu absolutamente.) Simplesmente não
acreditou em m im quando disse a ele que nove entre dez alunos entre as
idades de dezesseis e vinte anos são incapazes de multiplicar 6 x 9, ou que
das várias centenas a quem perguntei quando aconteceu a Segunda Guer
ra Mundial somente três sabiam a resposta. Respondeu-me suavemente -
quase sem precisar pensar, com o se tivesse ensaiado o argumento muitas
vezes - que seu próprio filho, de sete anos, já sabia as datas da guerra.
— O problem a é —disse com toda a seriedade —que a sua amostragem
é tendenciosa.

Isso é bastante verdadeiro: a experiência de todos nós está fundanien


tada em amostras tendenciosas; mas nunca lhe ocorreu duvidar se urna
amostragem — a do seu filho, que vive em um a vizinhança onde as casas
custam mais de um m ilhão e m eio de dólares - realmente constitui uma
refutação de m inha experiência de centenas de casos; experiência surgida
de um a pesquisa séria do assunto. Acusou-m e de pânico moral, com o se,
para ele, a única alternativa à sua com placência im perturbável (ele estava
tão sereno que poderíam os crer que fosse um m onge de ordem comem
plativa) fosse um alarm ism o irracional e agitado.
- Y o c ê realmente já encontrou algum a pessoa do tipo a que me reli
ro? - perguntei-lhe. Respondeu-m e que não tinha, mas que supunha já lei
encontrado.
Complacência e negação dom inam o discurso público e privado, e
quando perm item que um pouco do lado desagradável da realidade ingle
sa contem porânea venha à tona, é rapidamente seguida por um exercício
de controle de danos.

li'« iiiii A i i h Ii i Mm .... IM ui Vn Nfln K (Irri


I liii jornal rei'ciiicinnilr pediu im qu< lôsse .i Blackpool, uma c hl,uh
de veraneio, no nordeste, no M,ir da Irlanda, para descrever a m ndiiia d.r,
pessoas que para lá se dirigem aos fins de semana. Blackpool nunca lôi um
ltnal muito refinado e há muito tempo atrai pessoas que não têm condiçi >es
linanceiras para frequentar locais mais cobiçados nas férias. As pensões,
<• não os hotéis, predom inam , gerenciados por form idáveis proprietárias
Blackpool, todavia, era na m em ória recente um a cidade de veraneio de
diversão inocente, com passeios de burrinho, teatrinho de marionetes na
praia e de grande venda de cartões postais com cartuns levemente malicio
s( >s, sobre os quais George Orwell certa vez escreveu, com grande aprovaçã< >
e visão, que, neles, hom ens magros são dom inados por mulheres grau
des, gordas, em trajes de banho; as sogras estão sempre com machados de
guerra; hom ens solteiros sempre tentam escapar das garras do m atrim ônio
arranjado com raparigas jovens, cujas falas sempre possuem um descarado
duplo sentido. Por exemplo, um juiz em um tribunal de divórcio pergunta
para o demandado: “ Estás tergiversando, senhor. Dormiste ou não com esta
mulher?” , e o sujeito responde: “ N em um a pestana, Excelência!” .
Essa inocência sofisticada é coisa do passado. Sem a instituição do
casamento, piadas de sogra e divórcios não fazem sentido e são passé. D i­
versão agora é bebedeira pública em grande escala, é fazer gritaria nas
ruas e frequentem ente expor as nádegas aos transeuntes. Nos prim eiros
instantes em que cheguei à rua ao longo da praia, repleta até os tornozelos
de em brulhos de fast-food (o cheiro de gordura rançosa suprim e totalmen­
te o odor salgado do m ar), vi um a mulher que tirara as calças e amarrara
um par de peitos de plástico às nádegas desnudas, enquanto um homem
arrastava-se atrás dela na calçada, lam bendo-os. A m eia-noite, ao longo
dessa rua - com batidas de rock saindo, insistentemente, pelas portas de
cada boate, e cada um a das portas presididas por um par de leões de chá­
cara inflados de esteroides, entre hom ens vom itando nas sarjetas e um
incontável núm ero de pacotes de m aconha vazios na calçada —vi crianças
novas, de uns seis anos, sem a supervisão de nenhum adulto, esperando
pelos pais em ergirem de suas diversões noturnas.
No dia seguinte à publicação de meu artigo, apareci brevemente no
principal programa de rádio da IW( na liora do desjejum , que leni uma

\ \ li In i u i | r lii
audiência <lt muitos m ilhões. A entrevistadora, uma m ulher inteligente e
culta, brevemente resum iu, com precisão, aos ouvintes o relato daquilo
que vi em Blackpool, e logo m e perguntou: “ Você não está sendo um p ou ­
co m etido a besta?” - ou seja, um esnobe social e cultural.
A pergunta era, é claro, capciosa, com muitas camadas de significa­
do profundam ente depreciativas. Eu, de m inha parte, perguntei-lhe se ela
desnudava as nádegas aos transeuntes desconhecidos e, caso não o fizesse,
por que não? Ela recusou responder à pergunta, com o se não fosse séria
- assim com o um a futura m inistra do governo com quem certa vez de­
bati no rádio, após afirm ar que um a das tragédias de alguns dos recentes
tumultos urbanos era terem ocorrido nas vizinhanças pobres dos próprios
arruaceiros, recusou-se a responder quando lhe perguntei se ela preferiria
que os tumultos tivessem acontecido no bairro chique em que morava.
Não m uito depois da entrevista sobre m inhas experiências em Black­
pool, a BBC leu as cartas de uns poucos ouvintes que m e acusaram de não
ter com preendido a natureza da cultura da classe trabalhadora. Usaram a
palavra “ cultura” no sentido antropológico de soma total de m odos de
vida, mas também estavam tirando um a vantagem astuciosa e desonesta
das conotações da palavra de Bach e Shakespeare para insinuar que o uso
de seios de plástico no passeio público de Blackpool é tão valioso quanto
a Missa em Si M enor ou os sonetos.
O pressuposto progressista, nessa e na m aioria das coisas, é o de en­
tender com o aprovar (ou, ao m enos, perdoar) e, por isso, m inha desapro
vação indicava um a falta de compreensão. M uito estranhamente, as cartas
que a BBC e o jornal que publicou o artigo original rem eteram-me -
aquelas que não leram no ar ou publicaram - endossavam totalmente
m eus com entários. Eram de m oradores de Blackpool e de pessoas da classe
trabalhadora de várias localidades que negavam ardorosamente aquela cul
tura da classe trabalhadora, que nada era senão obscenidades sem sentido.
Vários correspondentes falaram de m odo tocante de terem passado, na
infância, um a pobreza real, enquanto m antinham o autorrespeito e lula
vam pela excelência intelectual. A exclusão deliberada da expressão pública
dessas vozes oferece um belo exem plo de com o a intelligenzia britânica eslá
ocupada com a tarefa autoim posta de destruição cultural.

li iiiiM SlH'!" M«u ••«uimui Vt*r Nilo I' ( im


Vl<ileni i.i, vuly.ii ii I,i( I< e 11 .ti ,i .M i i ili ii ,u li iii.il Ires aspedos d.l mu
1 11*ri i.i vic I.i inglesa que são ião óbvios e evidentes que requerem pou< ,i
capacidade de observação para discerni los. De fato, requer nniilo m a i s
rslorço mental e presteza não os identificar, para rem ovê-los da própri.i
consciência: as cenas de Blackwood, por exem plo, eram somente pouca
coisa piores e mais extremadas do que as vistas no centro de qualquer vil.i
ou cidade inglesa todos os sábados à noite do ano.
Vale a pena analisar os m ecanism os mentais que os intelectuais cie
esquerda usam para disfarçar a verdade para si m esm os e para os outros, e
perguntar por que assim o fazem.
Prim eiro, há a negação absoluta. O aumento do crime, por exem
pio, há m uito foi descartado com o um sim ples artefato estatístico, m esm o
diante de o enorm e peso das provas cobrir com pletam ente a possibilidade
de negação. Não é tanto o crim e que aumenta, dizem -nos, mas a dispo
sição ou capacidade das pessoas em relatá-lo - por m eio da am pliação do
telefone. Quanto ao fracasso educacional, este há m uito foi negado pela
expansão das estatísticas dem onstrando que cada vez m ais crianças passam
nos exam es públicos, um a m eia verdade clássica que deixa de dizer que
lais exam es foram deliberadam ente facilitados para que seja im possível a
reprovação (o conceito de fracasso foi banido), salvo por não se revelar
para eles. N o entanto, até os professores universitários m ais progressistas,
agora, notaram que os alunos não sabem ortografia ou pontuação.
Segundo, liá a comparação histórica tendenciosa ou precedente. Sim,
admitim os, violência e vulgaridade são um a grande parcela da vida ingle
sa m oderna, mas sempre foram. Quando os fas de futebol enlouquecem
na França durante as finais da copa europeia (o tipo de com portam ento
que agora é esperado que dem onstrem ), até o conservador Daily Telegraph
apresenta um artigo para mostrar que sempre foi assim, e que a Inglaterra
dos Hanovers foi um a era turbulenta e de bêbados —sugerindo, portanlo,
que não há nada alarmante. Por algum m otivo não totalmente explicado,
supostamente, é confortante - e m esm o um a justificação - que o com por
lamento antissocial tenha persistido, sem diminuir, por centenas de anos.
Da mesma maneira, os intelectuais dem onstram que a preocupação com
relação ao aumento do crim e é ir razoável (e aqueles que expressam isso

,!< i l l \ \ iiI m iú i S n r jH ii
o lá/,«mii I» ir lalta de conhecim ento histórico), |m»i*. 11,10 «• 1 1ili« il «Muoiiii.ir
períodos históricos em que o crim e foi p ior do que é agora. Já vi até ,i
preocupação com o crescim ento dos assassinatos ser tratada com deboche,
pois na Inglaterra m edieval esse núm ero era m uito m aior do que é agora.
Assim, a com paração histórica com períodos que ocorreram há centenas
de anos é tida com o m ais relevante que a com paração com trinta ou vinte
anos atrás, na m edida em que a com paração prom ove um com portam ento
de com placência para com um fenôm eno social indesejável.
Terceiro, um a vez que os fatos sejam admitidos coativamente pelo
acúm ulo de provas, o significado m oral é negado ou pervertido. Será que
as crianças saem das escolas tão ignorantes a respeito dos fatos quanto no
m om ento em que ingressam ? Bem, certamente, isso ocorre porque não
são mais ensinadas por “ decoreba” , mas, ao contrário, são ensinadas a
encontrar as inform ações por si mesmas. A incapacidade para escrever de
form a legível de m odo algum dim inui a capacidade de se expressarem,
mas a acentua. Ao m enos não foram submetidas ao aprendizado de regras
arbitrárias. Vulgaridade, agora, é liberdade de inibições pouco saudáveis
e psicologicam ente deform antes; é sim plesm ente o restabelecimento da
indecência popular, e aqueles que se opuserem a isso são os desmancha-
p raz eres da elite. Quanto à violência, qualquer quantidade pode ser expli­
cada pela referência à “ violência estrutural” da sociedade capitalista.
U m produtor de televisão da BBC delineou, para m im , as fases da ne
gação esquerdista. Seus colegas, disse-m e, viam -no com o um dissidente,
com o um a pessoa que lutava com m oinhos de vento, quase um lunático, li
qual era sua loucura? Q ueria que a BBC fizesse docum entários sem enfeites
sobre a vida da porção m ais pobre da sociedade: sobre o analfabetismo em
massa (crescente), os filhos ilegítim os e de pais solteiros, o vandalismo em
massa (crescente), a violência, a ilegalidade, o uso de drogas, a dependeu
cia dos program as de Bem-Estar Social e a falta de esperança, de m odo que
o restante da população pudesse fazer um balanço do que estava aconte
cendo diante das próprias portas. Ele queria concentrar-se, em particular,
nos efeitos devastadores da fragmentação - não da atomização - da família
que a legislação progressista, a engenharia social e as posturas culturais,
desde o final dos anos 19 5 0 , prom overam com tamanho vigor.

Iro riii Aiiulti Mm "M ihini Ver INfio I ( Irri


Ni ii Mipei ii ui", i l.i MM ..mi l.ii ,ti 11 i |ii >>| ><>.l .1 i i ii ii (()|1 ( Icm rt li Ir Mi l.i
l’i iiiirirn, negar,mi <>s latos. Quando < l< pm du/iu provas u refutável1, il.i
existência d rslrs, acusaram -no de pânico moral. Quando provou que o
Iciiôinciu) para o qual os fatos apontavam era sério e espalhava se i.iplda
mente na escala social, disseram que nada poderia ser feito a esse respeito,
pois era parte inevitável da vida m oderna. Quando disse que tais fatos ri am
o resultado deliberado de políticas, perguntaram -lhe se queria voltar aos
velhos tem pos em que cônjuges que se detestavam eram obrigados a vivei
juntos. Quando disse que o que fora feito poderia ser desfeito, ao menos
em parte, tiraram o ás da m anga: o assunto não interessava, de m odo que
não havia m otivo para fazer program as a esse respeito. O público britânici >
(oi tratado qual sonâm bulo ao encontrar o cam inho, sem ser perturbado,
para o desastre social, do qual a frágil prosperidade econôm ica certamente
não o protegerá.
Mas por que essa negação tão insistente do óbvio por parte da mesma
classe de pessoas cuja função prim ária, poderíam os supor, era ser aquilo
que os russos chamavam de “ os portadores da verdade” ?
A resposta deve ser buscada no relacionam ento causal entre as ideias
que os intelectuais de esquerda advogaram e puseram em prática e toda a
desastrosa evolução social das últim as quatro décadas. Viram a sociedade
com o algo tão injusto que nada era digno de ser preservado, e pensa
ram que toda a infelicidade hum ana advinha dos grilhões arbitrários e
artificiais que a sociedade colocou na satisfação dos apetites. Estavam tão
cegos pela própria visão de perfeição que não puderam ver a possibili
dade de deterioração.
E assim, se a vida familiar não era feliz, com todas as inevitáveis proi ­
bições, frustrações e hipocrisias comezinhas, apregoaram a destruição da
família com o instituição. A desestigmatização da ilegitim idade caminhou
de mãos dadas com a facilitação do divórcio, a extensão dos direitos ma
ritais para outras formas de associação entre adultos e a rem oção de todas
as vantagens fiscais do casamento. O casamento derreteu com o a neve ao
sol. A destruição da família era, por certo, um com ponente importante e
uma consequência da liberação sexual, cujo program a utópico era aumen
tar a quantidade de prazer sensual sem culpa, ao m enos entre os próprios

\ Vli In tiki m i |**lII


libertadores. Isso resultou, ao contrário, em violência generalizada em con
sequência da insegurança sexual e da negligência em massa dos filhos, ao
passo que as pessoas ficaram mais egoístas na busca do prazer momentânec).
Se os intelectuais progressistas lem bravam das próprias experiências
educacionais da infância com o algo diferente de pura alegria, a educa
ção tinha de se tornar um a form a de entretenimento infantil: pois quem
éramos nós, m eros adultos, para im por nossas ideias àqueles seres igual
m ente sentientes, as crianças? N ão seriam a Gramática e a Aritm ética - e
certamente todas as disciplinas - meras ferramentas burguesas (ou nos
Estados U nidos, racistas) com as quais deveria ser m antida a hegem onia
social? Sendo o autorrespeito radicalmente incom patível com o fracasso, a
própria ideia de fracasso tinha de desaparecer. A única m aneira de chegar a
isso era acabar totalmente com a educação - um experim ento que poderia
ser plenam ente levado a cabo somente naquela parcela da população que,
prim eiram ente, m enos se preocupava com educação, criando, assim, uma
nova casta hereditária de não educáveis.
Se o crim e era um problem a, isso era só porque um a sociedade inj usta
forçava as pessoas à atividade crim inal, portanto, a punição se constituía
num a dupla injustiça, vitim izando a verdadeira vítima. Com que direito
um a sociedade injusta reivindica im por sua própria versão de justiça? Em
patia e com preensão eram o necessário, desde que isentassem o crim inoso
de sua responsabilidade. A criação da disposição universal para o bem, e
não para a criação do m edo das consequências de fazer o mal, foi o neces
sário para extirpar o crime. Não é de surpreender que essas tenham sido
notícias alvissareiras para aqueles que eram tentados a levar um a vida de
crim es e m uito desm oralizadoras para os que apoiavam a lei.
Cada um a das prescrições progressistas piorou o problem a que osten
sivamente se propunha a resolver, m as cada intelectual de esquerda teve de­
negar essa consequência óbvia ou perder seu Weltanschauung: de que valeria
ao intelectual reconhecer um a simples verdade e perder seuWeltansdKiimiifi ’
D eixem os m ilhões sofrerem contanto que esse intelectual possa manter o
senso de integridade e superioridade moral. De fato, se m ilhões sofrem,
tornam-se alim ento com passivo adicional para o intelectual; mais genero
samente sentirá a dor deles.

I < i i i i n A i i m Ii ! M m " i h I m iii Y W ÍNÍU» I ( !rrr


Desse modo, a prescrição «'■ mais do i i i c m i i o . O progressista Partido
Democrata, o terceiro partido britânico, que é dom inado pel.i iniclli||('iilzi(i
esquerdista de classe m édia e ganha im pensável popularidade nascida da
desilusão com o governo e da patente incom petência da oposição oficial,
recentemente realizou sua conferência. E quais foram as propostas mais
im portantes apresentadas? O reconhecim ento legal do casamento hom os
sexual e a dim inuição das sentenças de prisão para os crim inosos.
Com parado a isso, N ero era um dedicado bombeiro.

2000
Indice

A Bem-Estar Social, Estado de, 46, 100,


Ablett-Kerr, Judith, 2 18 143, 155, 163-64, 180-81, iHH.
Abusos satanistas, 222 1 9 1 , 2 1 3 , 269
Abusos sexuais, 43 Benn.Tony, 109
Ação, 28, 44, 7 1, 200 ver tambémAnthony WedgwockI Bcii ii
África, 16, 46, 1 1 5 , 16 3, 188, 190- Bentham, Jeremy, 1 1 3
9 2 ,2 2 6 Bergman, Ingmar, 219
Alcoolismo, 17 4 Bingo, 39, 125-28
ver tambémVício Blackpool (Inglaterra), 266-67
Anne, princesa, 22 Blair, Tony, 104-05
Anorexia, 85 Blake, William, 155
Arquitetura, 16 5-74 Brown, Norman Q , 63
comunidade e, 16 9 -71
modernista, 166-70 C

vitoriana, 166-67 Cassinos, 125, 1 3 1 - 3 3


Assassinato Parker-Hulme, 2 14 -18 , 222 Chesterton, G. K., 13 2
Autoengano, 17 , 33, 203, 209, 2 1 1 Christchurch (Nova Zelândia), ) I I
ver também Negação 15,222,224
Classe média, 1 0 1 - 1 0
B ideologia progressista, 25 I 60
Bach, Johann Sebastian, 267 políticas da polícia e, 259
Bacon, Francis, 27, 28n, 96 Climbie, Anna, 187-96
Bain, David, 2 21 Clubes, 83-90
Bairros pobres, 22, 3 1 , 103, 122, 1 4 1 , Conrad, Joseph, 109
16 8 , 1 7 6 - 7 8 , 182, 1 8 6 , 1 9 7 , 2 0 6 Criação de filhos, 143-44, 208-09
ver também Gueto laissez-faire, 95
Bakunin, Mikhail, 167 repressora, 63
<‘rime I lieu, I \<i, 2 (/
i .uisas do, 2 I 3 24 vct itmilirm Obesidade
como .(Ij^o normal, 228-3 I Direção, hábitos de, 248, 25/
criminologistas e, 225-37 Doentes mentais, 146 47
criminosos existencialistas, 226-27 Dostoiévski, Fiódor, 13 2
disfunção cerebral, 232-33 O Jogador, 13 2-3 3
estatísticas, 257 Drogas, 22, 3 1 -3 2 , 81, 100, I 19 20.
genética e, 232 130, 136, 139-40, 159, 174, 201,
políticas da polícia e, 239-49 209
Criminologistas, 225-37 ver tambémVício
Cromwell, Oliver, 167 Dumas, Alexandre, 66
Cultura Durkheim, Émile, 44, 274
alta, 2 1 , 104, 106, 109 0 Suicídio, 44
assimilação de, 13 6
britânica, 109 E
da classe trabalhadora, 104, 267 Educação, 91 - 10 0 , 175-76
de periferia ou dos bairros pobres, como entretenimento, 96
177-78, 182 compulsória, 9 1, 93
do bingo, 126 de gueto, 177-79
fenômeno de, 103, 136 tédio e, 177-78
igualdade de, 12 3 trabalho corretivo, 94
local, 142, 162 Eliot,T. S., 261
ocidental, 143 Ellis, Peter, 222
popular, 102, 140-41, 143, 224 Enfermeiras, 23, 60-62, 82-83, 1 16,
ver também Multiculturalismo 147, 1 5 7 , 1 8 9 , 2 4 1 - 4 3 , 2 4 5 , 2 5 3 - 5 4
Entretenimento, 46, 8 1, 83, 96, 107,
D 120,130,157,202,271
Dante Alighieri, 1 1 0 Eysenck, H. J., 232
Darwin, Charles, 109, 167
Delinquência, 1 19, 168, 227-28 F
Democracia liberal, 57, 1 1 0 Família nuclear, 63
Departamento Fanon, Frantz, 236
de Habitação, 1 1 8, 201 Folie a deux, 188-89, 196
de Saúde, 77 Freud, Sigmund, 69
de Segurança, 203 Furto, 30, 1 18, 136, 1 5 1 , 229
IX-semprego, 44, 99, 1 1 4 , 1 2 1 , 146, ver também Roubo; Invasão de do­
224 micílio
Dickens, Charles, 109, 1 13, 155, 18-1 l utebol, 45, 85, 102, 1 06 08, 130, 2<>H

\ Vlilli mu SiiijrlM
G Hume, I).ivl<l, 109
Galileu Galilei, 20 Huntingdon (Inglaterra), 167
Gallagher, Liam (irmãos Gallagher), Hussein, Saddam, 1 1 3
105
Gallagher, Noel (irmãos Gallagher), I
105 Igrejas
Garden, Doug, 21 8-20 anglicana, 275
Genética, 17 , 232 pentecostal, 1 1 7 , 1 1 9
Gerenciamento de raiva, 234 Ilegitimidade, 1 53, 182, 200, 226,
Glamuzina, Julie, 2 15 270
Gombrich, Ernst, 109 ver também Progressivismo
Goodman, Paul, 63 Imigração, 50, 1 1 4
Göring, Hermann, 166 ver também Multiculturalismo
Guerra da Crimeia, 23 Imigrantes
Gueto, 1 75-76 educação e, 9 7
crianças inteligentes no, 178-82 fracasso e, 1 35-44
pessoas vulneráveis no, 178-86 médicos, 157-64
mobilidade social e, 135
Indianos, 54-56, 98, 135-44
Habitação, 160, 165-74, 1 8 1, 185 hábitos alimentares dos, 162
alocação do sistema de, 173 lojistas, 246-47
comunidade e, 168-71 médicos imigrantes, 159-60
conjunto habitacional, 39, 93, 1 18, prisioneiros, 136
173,185 e subclasse, 135-43, 162
departamento de, 1 1 8 , 201 Intelectualismo, 23, 153, 225, 230,
serviço de, 147, 159 261
Händel, Georg Friedrich, 109 Intolerância zero, 22, 251- 60
Hartlepool (Inglaterra), 248 Invasão de dom icílio, ver Furto;
Heroína (droga), 17 , 22, 100, 136, Roubo
139, 140-42, 157, 1 8 1 , 2 3 0
“ Heroin chic” (moda), 22 J
Herschel, William, 109 Jackson, Peter, 21 4, 21 6
Hillary, Edmund, 142 Jamaicanos, 1 1 5 , 193
Hindus, 55, 13 3, 143 Jesus Cristo, 1 1 1 - 1 2 , 120
ver também indianos Judas Iscariotes, 12 1
Hitler, Adolf, 63, 170 Juízo de valor, 201
Hulme, Juliet, 2 1 4 - 1 8 Junkfood, 83, 16 1- 62
ver Anne Perry Justiça, 236

Im in I-
K I I n 1,1 Anlimlcta, ralnlia d.i hança, I [)
k.tum, Joe, 22 I M.iiimiil, I'lllppo lommaso, I 66
Khrushchev, Nikita, I 26 Marx, Karl, 49, I I 8
Kinsey, Alfred, 63, 68 Marxismo, 44, 104
Kouao, Marie Therese, 187-93 Mayhew, Henry, 155-56, 262
Menninger, Karl, 226-27
L Mies van der Rohe, Ludwig, I 7 I
Laing, R. D., 63, 146 Mill, James, 1 1 3
l.ainb, William, 2° visconde Melbour­ Morris, Parker, 168-69, 172 73
ne, 127 Mozart, Wolfang Amadeus, 1 06
Laurie, Alison, 2 1 S Muçulmanos, 55, 133, 143
Le Corbusier [Charles-Edouard Jean- Multiculturalismo, 46-57, 190
neret-Gris], 160, 168-69, 1 7 1 indianos, 54-56
Leach, Edmund, 63 jamaicanos, 55
Lenin, Vladimir, 122 muçulmanos, 50-51
Li herdade de escolha sikhs, 56
doentes mentais, 145-53 tolerância religiosa, 55-56
moradores de rua, 145-53 Música, 2 1 , 23, 84, 86, 105-06
Linguagem
da BBC, 86, 104, 262-63, 266-69 N
dicção, 103, 104 Negação, 1 7 - 18 , 33, 260, 261, 265,
dos detentos, 2 7 , 28 268-70
e Linguística, 20, 23, 176 ver também Autoengano
erros de grafia, 20 Neruda, Pablo, 260
impessoal, 103 Newton, Isaac, 109
passiva, 27, 28 Nietzsche, Friedrich, 33
Lorde Melbourne, yer Lamb, William Nightingale, Florence, 23
Loteria Nacional, 123-25
Lutero, Martinho, 44 0
Lynskey, Melanie, 2 14 Oakes, Gay, 2 1 8 - 1 9
Oasis (banda), 105-06
M Obesidade, 83, 126-27
Mailer, Norman, 63, 68, 226 Ortega y Gasset, José, 186
Maimônides, Moisés, 202 Orwell, George, 261, 266
Mallon, Ray, 248-49
Manning, Carl, 187-96 P
Maoris, 223 Pais
Marcuse, Herbert, 63 ver Criação de filhos

\ \ II In III! S l|| |rln


Parassi Iicídio, 43 Igreja d,! Inglaterra (Anglli.uu),
Parker, Pauline, 2 1 4 - 1 8 111-12
Pasteur, Louis, 61 Igreja Pentecostal, 1 1 7 , 1 1 9
Perry, Anne Revivais, 1 1 2
yer Juliet Hulme Teologia da Libertação, 1 1 1
Phillips, Mark, capitão, 22 Responsabilidade, 27-36, 209
Phillips, Zara, princesa, 22 síndrome da mulher espancada,
Pinker, Steven, 20, 176 218-20
Pobreza, 155-64 Revolução sexual, 63-64, 69
determinismo econômico, 16 Roubo, 29, 36, 230, 258
genética, 2 1 ver também Furto; Invasão de do
polícia e, 259 m icílio
versus miséria, 160-64
Politicamente correto, 60, 126, 19 1, S
222 Sábado à noite, 83-90
Pope, Alexander, 20 Sartre, Jean-Paul, 32, 226
Popper, Karl, 109 Saúde, hábitos dos ingleses, 12 3
Primeira Guerra Mundial, 93, 175 Schubert, Franz, 106
Progressismo, 240 Segunda Guerra Mundial, 59, 75, 93,
Psicopatia, 1 1 9 , 255 265
Puff Daddy, 21 Shakespeare, William, 1 1, 33, 43, 65,
93, 10 9 ,2 67
Shrewsbury (Inglaterra), 167
Raça, 191-96 Smith, Adam, 109
Racismo, 1 1 7 , 140- 41, 1 9 1 - 9 6 , 2 4 7 Sobrevivência, 163, 196
Raine, Adrian, 233 Stalin, Josef, 63, 74, 93
Rap, 2 1 , 106 Stanko, Elizabetli, 236
Ray, Isaac, 227 Subclasse, 15
Reich, Wilhelm, 63 comportamento destrutivo, 16
Relacionamentos educação e, 9 1 - 1 0 2
pessoais, 46, 47 influência na classe média, 102-0 i
sexuais, 18- 19, 67-68, 158 sina da, 21 -22
Relativismo, 20, 22, 108, 1 1 0 , 122 tédio e, 177, 182-83
Religião Suicídio, 37-47, 156, 196-97
Eterna Ordem Sagrada dos Queru­ Durkheim sobre o, 44
bins e Serafins, 1 1 3 tédio e, 45
Exército de Jesus (Jesus Army), 120- tentativa de, 43, 1 1 9 , 120, 158
22 violência doméstica e, 61
Swift, Jonathan, 94 ili inundo (Wdiiim<limiiiii||), I/,
Szasz, Thomas, 146 205 , 261 , 27 I
Vlthuização, 204
T prisioneiro, 225-26
Tatuagem, 71-74, 76-80, 103, 136 Vulgaridade, 85, 106, 109 10
acrósticos, 79-80
como emblema de grupos, 74 W
de aspiração romântica, 7 3 Webb, Beatrice, 233
suástica, 75 Webb, Sidney, 233
teia de aranha, 74-75 Wedgwood-Benn Anthony, segundo
temas contra a polícia, 72-73 visconde de Stansgate, 109
Televisão, 7, 45-46, 66, 81-82, 85, Weltanschauung (visão de mundo), 17,
93, 96, 1 12, 120, 155, 159, 1 6 1 , 9 9 , 2 0 5 , 2 6 1 , 271
184, 205-06, 232, 269 Winslet, Kate, 214
Tennant, Stella, 103
Thackeray, William Makepeace, 263 Y
Thatcher, Margaret, 104, 17 4 Young, Jock, 23 0- 3 1, 235-37
The Beatles (banda), 106
Tolerância religiosa, 55
Tolerância zero, 22, 2 3 5 - 3 6 , 2 5 1 -
60
Tolstói, Leon, 37, 148
Totalitarismo, 261
Tse-Tung, Mao, 12 2

V
Yaizey, John, 229
Van Dyck, Anthony, 109
Vício, 30, 100, 120, 132, 136, 209,
233-34
crime e, 233-34
drogas, 22, 3 1 - 3 2 , 81, 100, 1 19-
20, 130, 136, 139-40, 159,
174, 201, 209
fúria como, 31
furto como, 30
Violência doméstica, 6 1, 64, 11 9,
17 8 , 2 0 9 , 255

27« A \I*lit mi Hmji lii


C ip -B r a s il . C atalo gação na Pu b lic a r ã o
S in d ica to N a c io n a i . d o s E d it o r es d e L iv r o s , KJ

D 138v

D alry m p le, T h e o d o re , 1 9 4 9 -
A vid a na sarjeta : o círcu lo v icio so da m iséria m oral /
T h e o d o re D alrym p le ; tra d u çã o M á rc ia X a v ie r de B rito . - 1. ed.
São P aulo : É R ealizaçõ es E d ., 2 0 1 4 .
2 8 0 p . : i l . ; 2 3 cm . (A b ertu ra C u ltu ral)

T ra d u çã o de: Life a t the b o tto m : the w orld v iew th a t m ak es the


und erclass.
Inclui índice
ISBN 9 7 8 - 8 5 - 8 0 3 3 - 1 6 8 - 4

1. P ob reza - A sp ecto s sociais. 2 . R en d a - D istrib u ição .


3 . Igualdade. 4 . H istó ria eco n ô m ica . 5 . C iên cias sociais.
I. T ítu lo . II. Série.

1 4 -1 6 0 5 2 CDD: 330
C D U : 3 3 8 .1

0 5 /0 9 /2 0 1 4 0 8 /0 9 / 2 0 1 4

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