Aprender Bion Com A Experiência Emocional - Final

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Aprender Bion com a Experiência Emocional:


Entender não é conhecer
Clarissa Silbiger Ollitta1 – Instituto Sedes Sapientiae
Daniela C. B. Landim Pinheiro2 – SBPMG

a) Bion em Experiência
Esse trabalho tem como proposta uma reflexão de nosso percurso com a Psicanálise.
Desafiadas por um projeto que conjumine nossas experiências clínicas, formações
psicanalíticas, as próprias análises, nos debruçamos nessa criação compartilhada.
Fomos atravessadas por determinações singulares, expressões vivas do nosso ser, que
nos demandaram um constante trabalho de criação e persistência. Com o desafio de
elaborar, pensar e publicar, nos surpreendemos em cada um dos nossos encontros
semanais; o que cada uma preparava sofria transformações que alteravam a formulação
de nossas ideias. Nos acompanhou a confluência do interesse e estudo permanente das
contribuições de W. R. Bion.
Nosso entremear revelou como tínhamos encarnado Bion em nosso percurso
psicanalítico, suportando impasses, frustrações e encontros que possibilitaram sonhar
novos pensamentos.
O que se sente, intui, pensa foi estimulado. Reconhecemos os nossos alicerces
fundamentais nessa trajetória de aprender com a experiência. Partimos de ideias
sombreadas, rascunhos do livre pensar, vivendo novas experiências sem aplacar o que
inquieta e perturba (Ogden, 2020).
Quando nos propusemos escrever, o primeiro movimento foi localizar o escopo de
nossas inquietações. Nossa formação analítica, realizada em distintos Institutos, nos fez
pensar em como experienciamos o “aprender Psicanálise” e que variáveis
considerávamos facilitadoras ou obstaculizadoras nessa trajetória. Reconhecemos um
caminho tortuoso sem visualizar um ponto de chegada (idealizado?!).
A intenção desse curso é promover uma abertura para experiências novas e não,
“exclusivamente”, a transmissão de conceitos estabelecidos. Buscamos aproximações
com a clínica que favoreçam mudanças psíquicas verdadeiras.
Na nossa perspectiva, o estudo da Psicanálise, a formação do analista, a própria análise,
só têm sentido se puder expandir a função psicanalítica da personalidade. Como afirma
Civitarese (2015, p.130) “O inconsciente como função da personalidade exprime a
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Psicóloga e Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (ISS).
Coordenadora de grupos de estudos, supervisora clínica/institucional. Professora desde 2007 no Instituto
Sedes Sapientiae (ISS).
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Psicóloga e Psicanalista. Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Minas Gerais (SBPMG).
Docente do Instituto de Psicanálise da SBPMG. Mestre em Psicologia, pela Universidade Federal de
Uberlândia (UFU). Professora de Pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da
Universidade FUMEC.
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capacidade psicológica mais profunda de que são dotados os seres humanos para darem
sentido à experiência; para compor a “poesia” da realidade... Sonhar, uma das formas da
função alfa, é seu componente central.” Assim, dar sentido à experiencia nos permite
expandir nossa função psicanalítica da personalidade.
Uma primeira indagação que nos fizemos foi: Por que a escolha de Bion? Como
despertou nosso interesse por suas ideias? Entendemos que nossas escolhas atendem
demandas conscientes e inconscientes. Reconhecemos que o encontro com Bion refletiu
uma busca íntima e singular. Apesar de ser considerado um autor hermético, de difícil
alcance, notamos que não é exatamente o entendimento de suas ideias, como
convencionalmente chamamos, que move nosso interesse. Observamos que nossas
mentes foram/são estimuladas. A busca de cada uma, as trocas com os pares, a
nomeação abstrata da experiência vivida, apareceram como relevantes. Em outras
palavras, a função psicanalítica da personalidade em plena expansão.
Exploramos o contato com essas ideias: É possível identificar que aspectos de nossa
mente são mobilizados? Como reconhecemos seus efeitos? Percebemos a construção de
nossos referenciais de maneira inédita. Notamos estar defronte a uma determinada
concepção de mente com possiblidades de elaboração psíquica original. Nos referimos a
maneira como processamos nossas experiências com a realidade interna e externa. Bion
(1962) nos aponta que algo vivido é possível de ser simbolizado, nomeado,
transcendendo a experiência sensorial. O trabalho com nossas emoções ganham novas
configurações mentais. Fomos permeadas pela curiosidade de saber mais, reconhecendo
ser um campo de incerteza (Bion, 1959, p. 271), terreno fértil para a criação.
A implicação da teoria com a experiência clínica também despertou nosso interesse.
Reconhecemos a presença da teoria no cotidiano da clínica? Observamos que a teoria
precisa ser processada na experiência emocional, para ganhar novos contornos no
sonhar. Para Bion (1959, p. 57), “no domínio do sonho fluem impressões sensoriais
associadas com o advento do princípio da realidade e as impressões pré-verbais
associadas com o princípio do prazer-dor [...] o sonho parece desempenhar um papel na
vida mental análogo aos processos digestivos na vida alimentar do indivíduo”.
Nesse sentido, o sonhar difere do sonho como convencionalmente conhecemos no ato
de dormir. Entendemos como um trabalho onírico, da dupla, de elaboração da
experiência em curso até então desconhecida para ambos.
Saberes estigmatizados, compreensões intelectualizadas nos parecem ir em direção
contrária. Mas como realizar tal façanha no percurso do aprendiz? Sentimos a árdua
tarefa de encarnar um determinado corpo de saberes como uma atividade solitária
passível de ser compartilhada. Afinal somos só e dependentes.
Então, como operar nossa formação de modo que ela não se cristalize em saberes
instituídos? Acreditamos que, na nossa trajetória, é indelével uma adesão ao
estabelecido como um recurso de apreensão de modelos. Apesar de legítimas as
inquietações de pertencimento institucional e grupal, nos atentamos para o risco de
arranho ao que é mais íntimo e verdadeiro em cada uma de nós.
Bion (1950), numa descrição de caso clínico, afirmou que sentia-se mal equipado para
explorar tensões intrapsíquicas, na mesma medida em que se sentia mal equipado para
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contatar a realidade. Notamos que o vértice da mobilidade das condições psíquicas já


tinha relevância em sua concepção da mente. É a nossa capacidade de se surpreender e
suportar o desconhecido – efeito da turbulência emocional – que sustenta o que está em
transformação.
Num desafio constante de enfrentamento da angústia pelo desconhecido, na intimidade
do contato entre duas mentes, na perspectiva de alcançar algo não sabido, nos
indagamos: como estimular essa capacidade interna no analista de experienciar, sentir
e conhecer? Como humanos reconhecemos oscilações em nossa capacidade analítica, a
cada dia, com cada paciente, em diversos momentos. A possibilidade de conexão não
está garantida, nem o envolvimento profundo. Em momentos fugidios, experimentamos
sem aplacar o que se sente, o que sofre e o que ilumina. Buscamos um percurso que
nutra essa possibilidade de criação e elaboração, experiência de expansão da nossa
consciência e alimentação inconsciente.
Por fim, notamos que as perguntas iniciais ganharam novos contornos. Observamos que
as inquietações se expandiram e pudemos reconhecer como cada uma encarnava essa
experiência de conexão consigo mesma, com seus pacientes, em seu cotidiano clínico
sustentado pelo vínculo com Bion. O Aprender com a Experiência Emocional ganhou
novos contornos oferecendo possibilidades singulares de contato com o novo, tanto na
aproximação com a teoria, como no mundo interno via a Experiência Emocional (Bion,
1962). Nesse sentido, viver a Psicanálise expande o conhecer pois inclui as qualidades
psíquicas do aprendizado.

b) Bion em Ideias
A compreensão de Bion sobre as experiências emocionais vivenciadas entre analista-
analisando na sessão, o foco nas transformações T(K) T(O), o valor dado à intuição e,
a recomendação clínica de um estado de abertura e de disponibilidade emocional por
parte do analista foram grandes contribuições à teoria e à técnica da Psicanálise
(Vermote, 2013).
Suas ideias valorizam e estimulam: intuição, conjectura e pensamento, ressaltando a
importância da subjetividade, da singularidade no trabalho analítico – condição
psicanalítica da personalidade – em construção constante.
Bion privilegia a identificação de processos psíquicos e estados emocionais intuídos
pelo analista, elementos que podemos identificar como envolvendo as mentes e
personalidades da dupla analitica e a interconexão entre elas. O ineditismo de Bion está
justamente em convocar a mente do analista para o árduo trabalho de processamento da
sua mente e do analisando, a fim de alcançar outros patamares do funcionamento
mental.
Nessa perspectiva, qualquer manifestação psíquica em uma sessão de análise deve ser
vista como uma transformação da experiência psicanalítica em curso (da dupla). A
teoria das transformações de Bion é uma teoria de relações entre objetos, ela não trata
com os objetos. A dupla possibilita o movimento capaz de produzir algo novo. O
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vínculo e as experiências compartilhadas possibilitam identificações e permitem


transformações e expansões.
Para Bion (1978), se o analista estiver tentando retratar a mente com a qual ele está em
contato, é útil que ele “tenha à sua disposição sua própria estrutura particular, sua
própria arquitetura psicológica” (p. 222). Essa afirmação evidencia a relevância do
analista poder contar com seus próprios recursos internos para o desenvolvimento do
trabalho analítico. A curiosidade, a intuição, os sentimentos e pensamentos são
ferramentas importantes para a compreensão do que se passa no aqui e agora da sessão.
O trabalho analítico se baseia na experiência vivenciada na sessão; nas impressões
intuídas por parte do analista e suas experiências interiores, processando o que se está
experimentando com outras observações clínicas e manifestações do paciente. Intuição
enquanto instrumento de aproximação ao conhecimento de algo que nos é desconhecido
e que pertence ao sistema inconsciente; capacidade psíquica de apreender uma realidade
sem nenhuma interferência do pensamento lógico, do sistema consciente (Sandler,
2021).
Para possibilitar o contato com a Experiência Emocional em curso, é necessário que o
analista se coloque em um estado de abertura ao desconhecido, com opacidade de
memória e desejo, sem ânsia de compreensão. Em um ‘Ato de Fé’ (Bion, 1970),
tolerando a escuridão, nos colocamos em disponibilidade interna para estar com –
consigo mesmo e com o outro.
Estar junto... do outro, da dor humana, da impotência, do desamparo, da presença no
silêncio, no vazio, na escassez, ser companhia viva... da vida!
Estamos dispostos e preparados para os encontros? E para os desencontros? Há
disposição para o assombro? Para se abrir, para acolher a turbulência que o contato
entre as duas mentes desperta?
Esse estado de abertura, em que é preciso tolerar dúvida, vazio e mistério até que algo
surja, cria possibilidade de contato com o que ainda não aconteceu. Essa área de não
representação, misteriosa e, por vezes, temida, pode ser um mundo poderoso de vida.
Em seus últimos anos, 1976 a 1979, Bion se interessou pelo que acontece nesse nível do
indiferenciado, de não representação – manifestações da mente que não podem ser
conhecidas, mas podem ser intuídas e experienciadas –, e de que modo aproximações a
esse nível podem se iniciar ou ao menos podem não ser inibidas pelo analista.
Bion (1967) afirma:
um psicanalista, à medida que amplia sua sensibilidade e sua experiência,
experimentará de modo proporcionalmente ampliado fenômenos não
sensorialmente apreensíveis manifestando-se diante de si. Esse psicanalista
estará, consequentemente, capacitado a comunicar algo que se apresenta como
inefável (p.188).

Assim, Bion expande do pensar – nível das representações – à mudança psíquica, nível
de experiências do não representado.
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Concluindo, Aprender Bion com a Experiência Emocional envolve esse estado de


abertura e receptividade para o novo, o desconhecido, o inquietante no contato com o
outro, no contato consigo próprio. Nos aproxima do que é mais profundo, mais
verdadeiro no humano – analista e analisando –, possibilitando transformação,
expansão.

Referências Bibliográficas:
BION, Wilfred R. (1959/2000). Cogitações. Rio de Janeiro: Imago, 2000. (Trabalho
originalmente publicado em 1959).
BION, Wilfred R. (1962/2021). Aprender da experiência. São Paulo: Editora Edgar
Blücher Ltda, 2021. (Trabalho originalmente publicado em 1962).
BION, Wilfred R. (1967/2022). No entanto...pensando melhor. São Paulo: Editora
Edgar Blücher Ltda, 2022. (Trabalho originalmente publicado em 1967).
BION, Wilfred R. (1970/2006). Atenção e Interpretação. 2.ed. Rio de Janeiro: Imago,
2006. (Trabalho originalmente publicado em 1970).
BION, Wilfred R. (1978/2020). Bion em Nova York e em São Paulo. São Paulo: Editora
Edgar Blücher Ltda, 2020. (Trabalho originalmente publicado em 1978).
CIVITARESE, Giuseppe. O inconsciente como função psicanalítica da personalidade.
Caliban, Vol. 13, No 2, 2015. p.129-131.
OGDEN, Thomas. Psicanálise ontológica ou “O que você quer ser quando crescer?”.
Revista Brasileira de Psicanálise. Vol. 54, n. 1, p. 23-45, 2020.
SANDLER, Paulo César. A linguagem de Bion: um dicionário enciclopédico de
conceitos. São Paulo: Blucher, 2021. p.456-473.
VERMOTE, Rudi. Sobre o valor das últimas contribuições de Bion para a teoria e a
prática analíticas. Livro Anual de Psicanálise. Vol. XXVII. n.1, p.37-46, 2013.

Clarissa Silbiger Ollitta


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Daniela de Castro Brito Landim Pinheiro


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