Lugar Errado, Hora Errada
Lugar Errado, Hora Errada
Lugar Errado, Hora Errada
CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
M113L
McAlister, Gillian
Lugar errado, hora errada [recurso eletrônico] / Gillian McAllister ;
tradução Juliana Romeiro. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Record, 2024.
recurso digital
Tradução de: Wrong place wrong time
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-85-0192-115-4 (recurso eletrônico)
1. Ficção inglesa. 2. Livros eletrônicos. I. Romeiro, Juliana. II. Título.
23-87484
CDD: 823
CDU: 82-3(410.1)
Título original:
Wrong Place Wrong Time
ISBN 978-65-5587-747-2
Jen está feliz que os relógios vão atrasar uma hora hoje. Ela vai ganhar
sessenta minutos, um tempinho extra para fingir que não está
esperando acordada pelo filho.
Agora que já passa da meia-noite, é oficialmente 30 de outubro.
Quase Dia das Bruxas. Jen diz para si mesma que Todd já tem 18
anos, seu bebê de setembro virou adulto. Pode fazer o que bem
entender.
Ela passou a maior parte da noite esculpindo, mal e porcamente,
uma abóbora. Agora coloca a abóbora no parapeito da janela que fica
no patamar entre dois lances de escada, uma janela que dá para a
calçada na frente da casa, e acende a vela dentro dela. Só fez isso pelo
mesmo motivo que faz a maioria das coisas — porque achou que
deveria —, mas até que ficou bonita, ainda que de um jeito meio mal-
ajambrado.
Ela ouve os passos do marido, Kelly, no andar de cima e se vira para
olhar. Não é comum ele estar acordado a essa hora; ele é a cotovia, e
ela, o rouxinol. Kelly sai do quarto dos dois. Seu cabelo está
bagunçado, e a escuridão imprime um tom de preto meio azulado nos
fios. Não está com uma peça de roupa sequer, munido apenas de um
sorrisinho de canto de boca.
Ele desce a escada indo até ela. A luz incide na tatuagem no pulso,
uma data inscrita, de quando, segundo ele, teve certeza de que a
amava: primavera de 2003. Jen fita o corpo do marido. Só alguns dos
cabelos no peito ficaram grisalhos no último ano, seu quadragésimo
terceiro.
— Estava com a mão na massa aí? — Ele aponta para a abóbora.
— Todo mundo já fez uma — explica Jen, meio sem jeito. — Todos
os vizinhos.
— E daí? — pergunta Kelly. É a cara dele perguntar isso.
— Todd ainda não chegou.
— Ainda está cedo para ele, a noite é uma criança — diz Kelly. O
sutil sotaque galês transparece, quase imperceptível, nas três sílabas de
cri-an-ça, como se sua dicção estivesse tropeçando numa cordilheira.
— O toque de recolher dele não é só à uma da manhã?
É um diálogo típico dos dois. Jen se preocupa demais, Kelly talvez de
menos. Assim que ela pensa isso, ele se vira, e lá está: aquela bunda
mais que perfeita, que ela ama há quase vinte anos. Jen olha de novo
para a rua, à procura de Todd, então de volta para Kelly.
— Agora os vizinhos vão ver sua bunda — comenta.
— Eles vão achar que é outra abóbora — devolve Kelly, rápido e
afiado como uma faca. Deboche. Essa sempre foi a moeda de troca
deles. — Você não vem dormir? Nem acredito que a obra na
Merrilocks acabou — acrescenta, se espreguiçando.
Kelly passou a semana toda restaurando um piso de azulejos
vitorianos numa casa na Merrilocks Road. Trabalhando sozinho, do
jeito que gosta. Ele ouve um podcast depois do outro, quase nunca
tem contato com ninguém. Complicado, ligeiramente insatisfeito, esse
é o Kelly.
— Já vou — responde ela. — Daqui a pouquinho. Só quero ver que
ele chegou bem.
— Já, já ele chega aí com um kebab na mão. — Kelly faz um gesto
de pouco-caso. — Vai ficar esperando acordada só para comer batata
frita?
— Para de bobeira — diz Jen com um sorriso.
Kelly dá uma piscadinha e volta para a cama.
Jen anda pela casa a esmo. Pensa num caso no qual vem trabalhando,
um casal em processo de divórcio que está disputando um conjunto
de pratos de porcelana, mas a briga é obviamente por causa de uma
traição. Não deveria ter aceitado esse caso, já cuida de mais de
trezentos. Mas a Sra. Vichare olhou para ela na primeira reunião e
disse: “Se eu tiver que dar aqueles pratos para ele, terei perdido todas
as coisas que amo, sem exceção”, e Jen não conseguiu declinar. Queria
não se importar tanto assim — com pessoas desconhecidas se
divorciando, com os vizinhos, com a porcaria de uma abóbora —, mas
se importa.
Ela faz um chá e sobe a escada com a caneca na mão até a janela da
frente, onde continua a vigília. Vai esperar o tempo que for preciso.
Esses dois períodos da maternidade — a fase do recém-nascido e a do
quase adulto — são marcados pela privação de sono, ainda que por
motivos diferentes.
Eles compraram a casa por causa dessa janela que fica bem no centro
do imóvel de três andares. “A gente vai parecer um rei e uma rainha
olhando por ela”, comentou Jen enquanto Kelly ria.
Ela fita a névoa de outubro, e lá vem Todd pela rua, finalmente. Jen
o vê assim que o horário de verão termina e a hora no celular muda de
01:59 para 01:00. Ela reprime um sorriso: graças à mudança de
horário, ele já não está mais atrasado. Esse é o Todd; acha o
malabarismo linguístico e semântico de discutir o horário do toque de
recolher mais importante do que a razão para a restrição em si.
Ele vem seguindo pela rua a passos largos. É só pele e osso, parece
que nunca ganha peso. Enquanto anda, seus joelhos marcam a calça
jeans. A névoa lá fora não tem cor, as árvores e a calçada estão pretas,
o ar é de um branco translúcido. Um mundo em tons de cinza.
A rua deles — numa periferia de Crosby, em Merseyside — é escura.
Kelly instalou uma luminária na frente da casa que parece saída de
Nárnia. Foi uma surpresa, ferro forjado, cara; ela não tem ideia de
como ele conseguiu pagar por aquilo. A lâmpada acende quando
detecta movimento.
Mas… só um segundo. Todd viu alguma coisa. Ele fica imóvel,
estreita os olhos. Jen segue seu olhar, então ela também vê: uma figura
vindo depressa da outra ponta da rua. É mais velho que Todd, bem
mais velho. Dá para ver pelo corpo, pelos movimentos. Jen repara em
coisas assim. Sempre reparou. É o que faz dela uma boa advogada.
Ela pousa a palma da mão quente no vidro frio da janela.
Tem alguma coisa errada. Algo está prestes a acontecer. Jen tem
certeza disso, embora não saiba dizer o quê; algum instinto que a
deixa alerta para o perigo, exatamente como se sente perto de fogos
de artifício, cruzamentos ferroviários e beiradas de precipícios. Os
pensamentos passam por sua mente como os cliques de uma máquina
fotográfica, um depois do outro, depois do outro.
Ela pousa a caneca no parapeito da janela, chama por Kelly e desce a
escada de dois em dois degraus, sentindo o tapete listrado áspero sob
os pés descalços. Calça os tênis e então faz uma pausa de um segundo
ao levar uma das mãos à maçaneta de metal da porta da frente.
Que… que sensação é essa? Não consegue explicar.
É um déjà-vu? Quase nunca sente isso. Ela pisca, e a sensação se
esvai, imaterial como fumaça. O que foi? A mão na maçaneta? A
lâmpada amarela lá fora? Não, não consegue lembrar. Agora passou.
— O que houve? — pergunta Kelly, aparecendo atrás dela,
amarrando a faixa do roupão cinza na cintura.
— É o Todd… ele… ele está lá fora… com alguém.
Os dois saem depressa. O frio do outono faz a pele dela se arrepiar
na mesma hora. Jen corre até Todd e o desconhecido. Mas, antes
mesmo de entender o que está acontecendo, Kelly grita:
— Para!
Todd está correndo agora, e em poucos segundos alcança o
desconhecido, segurando a frente de seu casaco com capuz. Ele o
encara de frente, os ombros encurvados, os corpos se tocando. O
desconhecido enfia a mão no bolso.
Em pânico, Kelly corre até eles, olhando de um lado para o outro da
rua.
— Todd, não! — exclama ele.
E é aí que Jen vê a faca.
Ela assiste a tudo, a adrenalina aguçando sua visão. Uma facada
rápida e cirúrgica. E então tudo desacelera: o movimento do braço
para trás, a roupa primeiro retendo e depois liberando a faca. Duas
penas brancas saem do casaco junto com a lâmina e pairam sem rumo
no ar frio, como flocos de neve.
Jen olha fixamente para o sangue que começa a jorrar, muito sangue.
Ela deve estar de joelhos agora, pois sente as pedrinhas no chão
furando a pele. Ela o está segurando, abrindo o casaco, sentindo o
sangue quente escorrer pelas mãos, por entre os dedos, pelos punhos.
Jen abre os botões da camisa dele. O tronco começa a inundar; três
feridas em formato de fenda aparecem e desaparecem de vista — é
como tentar ver o fundo de um lago vermelho. Seu corpo gela.
— Não — grita Jen, e sua voz soa pesada e carregada.
— Jen — exclama Kelly, a voz rouca.
Tem tanto sangue. Ela o deita na calçada de casa e se debruça sobre
ele, olhando com atenção. Espera estar errada, mas, por um segundo,
pode jurar que ele não está mais entre nós. O jeito como a luz
amarelada da luminária reflete nos olhos dele não parece normal.
O silêncio toma conta da noite, e, depois do que parecem vários
minutos, ela pisca em choque e então olha para o filho.
Kelly afastou Todd da vítima e o abraçou. Kelly está de costas para
ela, e Todd, de frente, olhando por cima do ombro do pai, uma
expressão neutra no rosto. Ele deixa a faca cair. O metal bate no chão
frio da calçada com um tilintar de sino de igreja. Ele passa a mão na
cara, deixando um rastro de sangue.
Jen observa a expressão em seu rosto. Talvez esteja arrependido,
talvez não. Ela não sabe dizer. Jen é capaz de interpretar a expressão
no rosto de quase todo mundo, mas nunca a de Todd.
Dia Zero,
logo após 01:00
— Eu encontrei isto aqui — diz Jen, e uma pequena parte dela fica
satisfeita por estar tendo uma conversa nova, e não uma que já teve
antes. Ela estende a faca para Todd. Ele não a pega.
Há um milhão de sinais: seu cenho se franze, ele lambe os lábios e
transfere o peso de uma perna para a outra. Não diz nada e diz tudo.
— É de um amigo — explica, por fim.
— Essa é a mentira mais antiga do mundo — devolve Jen. — Você
tem noção de quantas vezes um advogado ouve isso? — Ela engole o
suco gástrico. O ar de quem tem algo a esconder confirmou tudo para
ela. Vai acontecer. Vai acontecer amanhã.
— Por que que você tá engolindo desse jeito? — pergunta Todd,
com um dar de ombros indolente.
É assim que ele tem agido ultimamente, Jen se pega pensando
enquanto fita o chão e tenta não vomitar de novo. Um garoto cheio de
segredos. Hoje a presença dele lhe parece sinistra.
— Deixa que eu falo com ele — diz Kelly, do alto da escada.
Ela achava que eles tinham escapado disso, desses problemas de
adolescente. Todd foi um bebê tranquilo, uma criança feliz. O único
drama que tiveram foi no último verão, quando uma menina chamada
Gemma terminou com ele porque era muito esquisito. Ele voltou para
casa com o coração partido, passou um dia inteirinho sem dizer uma
palavra, deixando Jen e Kelly com suas conjecturas. Na noite seguinte,
ele se sentou na cama dela quando Kelly não estava em casa, cruzou as
pernas, contou o que tinha acontecido e perguntou se ela concordava
com aquilo. “Nem um pouco”, respondera ela enquanto pensava, meio
culpada, se tinha algum jeito de dizer para ele… Hum, talvez? Não
esquisito demais, mas sem dúvida um pouco nerd. Ele mostrou
algumas das mensagens que tinha mandado para a menina. Intenso era
a palavra para descrever aquilo. Textos compridos, memes de ciência,
poemas, uma mensagem depois da outra, depois da outra, todas sem
resposta. Gemma estava obviamente tentando manter distância —
valeu, amanhã a gente se fala, tô meio enrolada hoje —, e Jen se
condoera pelo filho.
Mas agora isso: faca, assassinato, prisão.
Kelly está avaliando o filho em silêncio, a cabeça ligeiramente
inclinada para trás. Jen queria vê-lo explodindo, intensificando a
conversa de alguma forma, mas ele obviamente resolveu não fazer
isso. Todd de repente parece irritado. Sua mandíbula está travada.
Ele ergue a mão espalmada, mas não fala nada.
— Então, se eu verificar o extrato da sua conta, você não vai ter
comprado isso? Eu não vou encontrar nada lá? — pergunta Kelly.
Todd aceita o desafio, sustentando o olhar do pai, ainda na escada.
Depois de alguns segundos, ele interrompe o contato visual e tira o
casaco. Em seguida tira os tênis, e seus pés descalços tocam as tábuas
do piso.
— É isso aí — devolve ele, de costas para Jen enquanto pendura o
casaco, algo que ele nunca faz.
— A gente entende, sabe… A vontade de se sentir… protegido —
diz Kelly. — Escuta, vem aqui. Vamos dar uma volta.
— Entende, é? — pergunta Jen. Ela o fita, surpresa.
Todd se afasta dela abruptamente e sobe correndo a escada,
passando por Kelly.
— O que você acha que eu vou fazer, te matar? — diz Todd tão
baixinho que ela fica na dúvida se ouviu direito. Todo o seu corpo se
contrai de náusea.
— Se você não me disser onde arrumou isso, e por quê, não vai mais
poder sair para lugar nenhum. Por vários dias. Não vai nem pra escola
— diz ela.
— Por mim, tudo bem! — grita ele.
Ele entra no quarto, batendo a porta com tanta força que a casa toda
estremece. Jen olha para Kelly, sentindo-se como se tivesse levado um
tapa.
Kelly passa a mão pelo cabelo.
— Puta merda — diz ele para ela. — Que confusão.
Ele passa a mão em cima do pequeno armário que fica no topo da
escada. Um papel cai no chão, e ele pega, esfregando a testa. Jen sabe
que o papel é a oferta de um trabalho grande, um trabalho que Kelly
recusou porque eles queriam contratá-lo como funcionário em vez de
deixá-lo continuar como autônomo, e ele falou que jamais faria aquilo.
— O que aconteceu com o Todd? — pergunta Jen.
— Não sei — responde ele, curto e grosso. — Vamos deixar essa
porra pra lá.
Jen sabe que essa raiva não é direcionada a ela. É que nas raras
ocasiões em que ele perde a cabeça, é sempre repentino e intenso.
Uma vez, ele explodiu num bar com um homem que tocou na bunda
dela. Disse que queria falar com ele lá fora, e Jen não acreditou no
que ouviu.
Ela assente agora, com um nó grande demais na garganta para falar
qualquer coisa, com medo demais do que vem pela frente.
— Amanhã a gente resolve isso tudo — continua Kelly, fazendo um
gesto com a mão.
Jen assente, satisfeita que alguém lhe diga o que fazer. Ela leva a faca
consigo até o andar de cima e a esconde debaixo da cama deles.
Ela e Todd se cruzam mais uma vez naquela noite, ele descendo para
beber alguma coisa, ela prestes a subir para dormir. Normalmente, Jen
estaria colocando uma pilha de roupa para lavar ou fazendo outras
tarefas banais, mas hoje não. Ela fica só observando Todd do outro
lado da cozinha, sem as movimentações rotineiras da vida
acontecendo ao redor.
Ele enche um copo com água da torneira, bebe tudo de uma vez só e
enche de novo. Então pega o celular e fica passando o dedo na tela
enquanto bebe, meio que sorri para alguma coisa e guarda o telefone
no bolso.
Ela finge se ocupar com alguma coisa. Todd passa por ela com o
copo de água na mão, mas, antes de subir, verifica se a porta da frente
está trancada. Ele sobe um degrau, então volta e confere a porta de
novo. Por garantia. Parece a atitude de alguém com medo. Ela sente
um frio na espinha ao observar o filho.
Enquanto pega no sono, Jen se vê pensando que Todd está ali, seguro
em casa, de castigo. E ela está com a faca. Talvez ela tenha evitado
aquilo. O que quer que seja. Talvez ela acorde e seja amanhã. O dia
seguinte. Tudo menos hoje de novo.
Dia Menos Dois,
08:30
Jen está deitada no banco com estofado azul na cozinha. Saiu mais
cedo do trabalho. Será que ter confiscado a faca não teria evitado o
assassinato e, portanto, interrompido o loop temporal?
Existe uma realidade alternativa em que isso ainda vai acontecer?
Outra Jen, que não voltou no tempo, que continua seguindo adiante?
Todd saiu. Com amigos, segundo ele, como da outra vez; mais
mensagens curtas, a distância entre eles cada vez maior.
Jen está pesquisando Andy Vettese no Google. Ele é de fato
professor do departamento de física da Universidade John Moores, de
Liverpool. É uma pessoa fácil de encontrar. Pelo LinkedIn, pela página
da universidade, pela conta dele no Twitter, @AndysWorld, que tem o
e-mail na bio. Ela poderia escrever para ele.
Ela ouve a porta de casa se abrindo e senta no banco.
— Não vou demorar — grita Todd, entrando na cozinha feito um
borrão de ar frio e movimentos adolescentes, perturbando a hesitação
de Jen diante de uma caixa de mensagem.
— Tá bem — responde ela. Normalmente teria perguntado se havia
algum motivo para ele nunca querer ficar em casa.
Fica surpresa ao notar que a abordagem mais pacífica funciona.
— Eu estava na casa do Connor, agora estou indo pra casa da Clio —
explica Todd, olhando para ela.
Ele transfere o peso de um pé para o outro enquanto mexe num
carregador de celular, cheio de energia, cheio do otimismo próprio de
alguém para quem a vida está de fato só começando. Não é o
comportamento de um assassino, Jen pensa com seus botões.
Connor. O filho mais velho de Pauline. Tem alguma coisa nele que
Jen não gosta muito. Uma malícia. Ele fuma e fala palavrão — coisas
que ela também faz, às vezes —, mas, ainda assim, hábitos repulsivos
quando vistos pelo prisma implacável da maternidade.
Ela se apoia no cotovelo e fica olhando para Todd. Não o viu
chegando em casa da outra vez. Estava no trabalho.
Nas últimas semanas, um caso vem tomando todo o seu tempo, o
que significa que Jen tem estado mais ausente da vida doméstica que o
normal. Isso acontece com frequência quando um divórcio importante
está prestes a ser julgado. A carência e a tristeza dos clientes acabam
ultrapassando os limites já não muito bem demarcados de Jen, e ela
fica atendendo o telefone o tempo todo e praticamente dorme no
escritório.
Gina Davis foi a cliente que manteve Jen ocupada durante o mês de
outubro, mas não pelos motivos de sempre. Ela aparecera no escritório
de Jen pela primeira vez no verão, com um pedido de divórcio
enviado pelo marido que a havia deixado na semana anterior.
— Não quero que ele veja as crianças nunca mais — dissera Gina.
Ela tinha feito cachinhos bem definidos no cabelo loiro e estava com
um tailleur impecável.
— Por quê? — perguntara Jen. — Você está com medo de alguma
coisa?
— Não. Ele é um ótimo pai.
— E…?
— É só como um castigo para ele.
Ela tinha 37 anos, um coração partido e muita raiva. Jen sentiu uma
conexão imediata com ela, o tipo de mulher que não esconde as
emoções. O tipo de mulher que fala o que é tabu.
— Eu só quero magoar ele — dissera ela a Jen.
— Não posso te cobrar por isso — retrucara Jen.
Não era a coisa certa a fazer, ela havia pensado, lucrar com uma
situação daquelas. Logo Gina voltaria a si e pararia.
— Então faz de graça — devolvera Gina, e foi o que Jen fez.
Não porque o escritório de advocacia do falecido pai não precisasse
de dinheiro, mas porque Jen sabia que Gina acabaria abandonando o
caso, aceitando a sentença de divórcio e a guarda compartilhada, e
seguindo em frente.
Mas isso ainda não tinha acontecido, nem depois que Jen falou para
Gina tirar umas férias e pensar melhor no assunto durante o verão,
nem depois que ela foi contra a ideia nas muitas reuniões que tiveram
durante o outono. Elas também conversaram sobre todo tipo de coisa:
filhos, notícias de jornal, até sobre o reality show Love Island.
“Repugnante, mas convincente”, comentou Gina enquanto Jen ria e
assentia.
Jen fita Todd agora e se pergunta, de repente, se ele está apaixonado
como Gina está. Ela se pergunta o que essa Clio é de fato para ele. O
que ela significa. A loucura do primeiro amor sem dúvida é algo que
não deve ser descartado, considerando o que ele faz dali a dois dias.
Jen ainda não conhece Clio. Depois que Gemma terminou com ele
no verão, Todd se tornou automaticamente mais resguardado quanto à
vida amorosa, com vergonha pelo namoro não ter dado certo, pensa
Jen. Com vergonha da noite em que lhe mostrou todas aquelas
mensagens sem resposta.
Enquanto se arruma para sair de novo, Todd olha de relance, apenas
uma vez, para a porta da frente. Não é uma conferida rápida e por
curiosidade. É outra coisa. Uma espécie de cautela, como se estivesse
esperando ver alguém ali, como se estivesse nervoso. Jen jamais teria
notado se não o estivesse observando. É tão rápido que sua expressão
volta ao normal quase que imediatamente.
— O que você tá fazendo aí? — pergunta Todd, voltando-se para ela
e apontando para o computador.
— Ah, estava só lendo uma coisa interessante. Sobre loop temporal,
sabe?
— Me amarro nisso — responde ele.
Todd passou gel no cabelo, numa espécie de topete para cima, e está
com uma camisa de malha retrô de sinuca. Tem pouco tempo que
passou a gostar do jogo, ele diz que acha legal a geometria necessária
para encaçapar as bolas. Jen o observa, seu filho lindo de morrer.
— O que você faria… se ficasse preso num loop temporal? —
pergunta ela.
— Ah, é quase sempre um detalhe mínimo — diz ele, como quem
não quer nada.
— Como assim?
— Que nem o efeito borboleta, sabe? Uma coisinha simples pode
mudar o futuro.
Todd se abaixa para acariciar o gato e, só por um segundo, parece
uma criança de novo. Seu filho, que acredita piamente em loops
temporais. Talvez ela devesse contar para ele. Ouvir o que tem a dizer.
Mas, por enquanto, não dá. Se isso está mesmo acontecendo, de
verdade, então é papel dela impedir o assassinato. Descobrir quais
eventos vão levar a ele e intervir. E então, um dia, quando ela
conseguir fazer isso, vai acordar, e não vai ser ontem.
E é por isso que ela não conta nada a Todd.
Ele sai, e Jen verifica que não há ninguém esperando por ele, nem o
seguindo. E então ela mesma o segue.
Dia Menos Dois,
19:00
Todd: Só mil?
Qualquer coisa. Jen não gosta dessa expressão. Por qualquer coisa se
subentende tudo. Crime, assassinato.
Quer continuar lendo, mas ouve passos e para. Coloca o celular de
volta em cima do videogame. Clio gosta mesmo dele. Pode ser que o
ame. Ela suspira e examina o cômodo outra vez, mas não há mais
nada.
Dá descarga, fecha a torneira e sai.
Atenciosamente,
Jen
De que adianta ir para o escritório se, quando ela acordar amanhã, vai
ser ontem? Pela primeira vez em sua vida adulta, de nada adianta
trabalhar. Ela reflete sobre isso enquanto alimenta Henrique VIII.
Tenta ligar para um número que encontrou registrado no nome de
Andy Vettese, mas ninguém atende. Pesquisa por ele no Google de
novo. Ele ganhou algum tipo de prêmio científico na véspera por um
artigo sobre buracos negros. Manda e-mails para outras duas pessoas
que escreveram teses sobre viagem no tempo.
Pensa em como convencer o marido do que está acontecendo.
Jen suspira e, por fim, encontra um bloco cheio de anotações sobre
um caso que não parece importar muito agora. Tudo o que ouve é o
zumbido baixo do aquecedor.
Escreve no bloco: Dia Menos Três.
Embaixo, escreve: O que eu sei.
O nome de Joseph Jones, o endereço dele
Clio pode estar envolvida
Entregas para Connor?
Não é muito.
A noite não está sendo fácil. Todd saiu assim que pisou em casa.
“Vou pra casa da Clio”, dissera ele. Todd tinha ficado irritado com a
aparição dela na escola e estava chateado com Kelly também. “Será
que vocês dois não podem arrumar o que fazer?”, perguntara ao se
deparar com o pai e a mãe em casa às quatro da tarde.
Depois que ele saiu, Jen procurou Clio no Facebook. Ela é uns dois
anos mais velha que Todd, mas ainda está estudando. Alguma
faculdade de artes da região. Seus posts são cuidadosamente
elaborados. Fotos dela como se fosse uma modelo, uma quantidade
estranhamente grande de memes políticos, muitos buquês de flores.
Coisas bem adolescentes e inofensivas. Jen decide que vai visitá-la em
breve. Conversar com ela.
Arruma a casa, pensando no que Pauline pode descobrir. Que perda
de tempo essa limpeza, ela reconhece enquanto esfrega a bancada da
cozinha e coloca a louça na máquina. Quando acordar ontem, nada
disso terá sido feito, mas não é exatamente essa a sensação que a gente
tem com o trabalho doméstico?
Vinte minutos depois, Pauline liga.
— Conversei com o Connor — diz ela. Pauline sempre fala sem
preâmbulos, indo direto ao ponto. — E também dei uma sondada.
— Conta tudo. — Ela fecha a cortina da porta que dá para o jardim,
sentindo os braços arrepiarem.
— Dei uma olhada no celular do Connor. Nada de suspeito. Só umas
fotos desagradáveis. Puxou ao pai.
— Caramba.
— O que está acontecendo com o Todd?
— Parece que ele conheceu uns homens mais velhos… um tio e um
amigo da namorada nova dele. A casa deles tem um clima
estranhíssimo. E eles têm uma empresa chamada Corte & Costura
Ltda. Acabaram de abrir, não tem prestação de contas, nada. Acho
que é só fachada. Bem estranho dois homens abrirem uma empresa de
costura, não acha?
— Verdade. E… é só isso?
Jen suspira. Óbvio que não, mas o restante não é crível. Um
submundo sombrio que termina num assassinato que ela tem que
desvendar. Ela se afasta da porta do jardim, assombrada.
E é então que se dá conta. De uma hora para outra. A reportagem
que viu no jornal ontem, o acidente de trânsito. Vai acontecer esta
noite, e vai estar no noticiário de amanhã. Isso ela pode usar. Pode usar
para convencer a pessoa com quem ela mais precisa se abrir. Se
conseguir convencer Kelly, talvez isso quebre o ciclo, quebre o loop
temporal, e ela acorde amanhã.
— Eu vou te atualizando — diz ela para Pauline. — Não precisa se
preocupar. Não… não deve ser nada — acrescenta ela, se perguntando
por que sempre tem a necessidade de fazer isso. De ser descontraída,
de não preocupar as pessoas, de ser boa.
— Espero que não — responde Pauline.
Kelly aparece na cozinha bem mais tarde, depois das dez da noite.
— O que foi? — pergunta ele, observando a expressão dela com
curiosidade. — O que está acontecendo?
— Você pode vir comigo a um lugar? — pergunta ela.
— Agora? — devolve ele. Ele a observa por um instante. — Você foi
pra malucolândia? — pergunta, com um sorrisinho irônico.
Depois que eles se conheceram e viajaram pelo Reino Unido de
motorhome, foram morar no interior do condado de Lancashire, só os
três, numa casinha branca com telhado de ardósia cinza, no sopé de
um vale que, no inverno, ficava encoberto pela neblina como se fosse
um chapéu de algodão-doce. Era a casa preferida de Jen. Kelly
inventou o termo naquela época, quando ela costumava entrar em
casa e descrever para ele o dia inteirinho dela no trabalho. Ela nunca
precisou de mais ninguém.
— Com certeza.
— Vamos, então. Vamos dar uma volta.
Seus olhos se encontram, e Jen se pergunta sobre o que ela está
prestes a desencadear, se o futuro vai ser diferente agora. Será que,
juntos, eles vão piorar as coisas, será que, enquanto está de pé aqui
nesta cozinha, completamente imóvel, existe algum futuro alternativo
em curso no qual é Todd que é assassinado, no qual ele foge, no qual
ataca mais de uma pessoa?
Jen abre a porta da casa. Está animada. Animada por poder
apresentar para ele provas reais e tangíveis.
A brisa noturna é fria e úmida, como na primeira noite. Tem o
cheiro do orvalho do outono.
— Eu tenho uma coisa pra te contar, e sei como você vai reagir,
porque já te contei antes — começa ela.
A mão de Kelly está quente junto da dela. A rua está molhada da
chuva. Jen está ficando melhor nessa explicação.
— É sobre trabalho?
Kelly está acostumado com Jen fazendo perguntas sobre o trabalho e
teorizando com ele, embora ele não faça mais do que ouvir. Na
semana passada ela perguntou para ele do Sr. Mahoney, que queria dar
a pensão inteira dele para a ex-mulher só para não ter que entrar na
briga. Kelly deu de ombros e disse que, para algumas pessoas, evitar
problemas é algo que não tem preço.
— Não.
E ali, na escuridão, ela conta tudo a ele, todos os detalhes. De novo.
Conta da primeira vez, e depois do dia anterior, e do dia anterior
àquele. Ele ouve tudo, os olhos fixos nela, do jeito que sempre faz.
Depois que ela termina, ele permanece sem falar nada por alguns
instantes. Fica só ali, recostado na placa de trânsito, perto de onde o
acidente está prestes a acontecer, parecendo perdido em pensamentos.
Por fim, Kelly parece chegar a uma conclusão e pergunta:
— Você acreditaria nisso se fosse eu?
— Não.
Ele deixa escapar uma gargalhada.
— Certo.
— Eu juro — diz ela —, por tudo que a gente mais preza, pela nossa
história, que eu estou falando a verdade. O Todd vai matar uma
pessoa no sábado, tarde da noite. E eu estou voltando no tempo para
evitar que isso aconteça.
Kelly fica em silêncio por um minuto. Começa a chuviscar de novo.
Ele afasta o cabelo da testa quando fica molhado.
— Por que a gente tá aqui?
— Para eu te dar uma prova disso. Daqui a pouco vai passar um
carro aqui — diz ela, apontando para a rua escura e vazia. — Ele vai
perder o controle e capotar de lado. Deu no jornal ontem à noite. O
seu amanhã. O motorista escapa sem nem um arranhão. É um Audi
preto. Ele capota ali. Não vai chegar perto da gente.
Kelly esfrega o queixo com a mão.
— Certo — repete com desdém, confuso.
Eles ficam recostados, lado a lado, na placa de trânsito.
Bem quando ela começa a achar que o carro não vem mais, ele
aparece. Jen ouve primeiro. Um ruído de aceleração bem ao longe.
— Tá chegando.
Kelly olha para ela. A chuva aumentou. O cabelo dele começa a
pingar.
O carro faz a curva. Um Audi preto, em alta velocidade, fora de
controle. Um motorista obviamente imprudente, ou bêbado, ou os
dois. Passa por eles com o motor estourando igual a um tiro de
revólver. Kelly observa, os olhos fixos no carro. Uma expressão
inescrutável no rosto.
Com uma das mãos, Kelly cobre a cabeça com o capuz do casaco
para se proteger da chuva, bem na hora que o carro capota. Um ruído
metálico e uma derrapagem. A buzina toca.
E então, nada. Um instante de silêncio enquanto a fumaça sobe do
carro, e de repente o motorista aparece, os olhos arregalados. Deve ter
uns 50 anos e vem caminhando lentamente na direção deles.
— Você teve sorte de escapar dessa — comenta Jen.
Kelly está olhando para ela de novo. Parece irradiar descrença, mas
também uma estranha sensação de pânico.
— Pois é — responde o homem. Ele apalpa a perna, como se mal
pudesse acreditar que está bem.
Kelly balança a cabeça.
— Não tô entendendo.
— Vai aparecer um vizinho oferecendo ajuda — narra Jen.
Kelly espera, em silêncio, um dos pés apoiado no poste da placa de
trânsito, os braços cruzados. Uma porta se abre de supetão.
— Já chamei uma ambulância — anuncia uma voz algumas casas
adiante.
— Agora você acredita em mim? — pergunta ela a Kelly.
— Não consigo pensar em nenhuma outra explicação — responde
ele depois de alguns segundos. — Mas isso é… isso é loucura.
— Eu sei disso. É claro que eu sei. — Ela se põe diante dele e o
encara. — Mas eu juro. Eu juro, eu juro, eu juro que é verdade.
Kelly faz um sinal, apontando para a rua, e eles começam a andar,
mas não na direção de casa. Os dois andam a esmo, juntos, na chuva.
Jen acha que ele talvez esteja acreditando nela. De verdade. E isso
com certeza vai mudar alguma coisa, não vai? Se o pai de Todd
acreditar nisso. Quem sabe Kelly não vai acordar com ela e vai ser o
dia de ontem para ele também? É um tiro no escuro, mas tem que
tentar.
— Isso não faz o menor sentido — diz ele. Kelly fita a luz da rua
enquanto andam. — Você não tinha como saber daquele carro. Tinha?
— Ele está tentando encontrar uma explicação.
— Não. Quer dizer… não tinha como mesmo.
— Eu não entendo… — Sua respiração se condensa numa névoa no
ar diante de si. — Não consigo imaginar…
— Eu sei.
Eles viram à esquerda, depois entram num beco, passam por seu
restaurante indiano preferido e então começam a fazer um contorno
lento de volta para casa.
Por fim, ele pega a mão dela.
— Se for verdade, isso deve ser horrível — diz.
Esse se. Que maravilha ouvir isso. É um pequeno passo, uma
pequena concessão de marido para mulher.
— É horrível — devolve ela, emocionada.
Ao pensar nos últimos dias de pânico e alienação, seus olhos ficam
marejados e uma lágrima desce por sua bochecha. Ela olha para os pés
deles enquanto caminham pelas ruas em perfeita sincronia. Kelly deve
estar observando Jen, porque ele para e enxuga a lágrima com o
polegar.
— Eu vou tentar — diz ele baixinho para ela. — Vou tentar
acreditar.
Andy disse que vai estar no centro de Liverpool dali a duas horas. Jen
— como a idiota que é — preenche o formulário de Rakesh para ele.
Jen e Andy combinaram de se encontrar num café do qual ela gosta.
É um lugar despretensioso, barato, e o café é bom e forte. Ela acha o
clima retrô bem interessante: o chá custa uns poucos centavos, e não
várias libras, há sanduíche de presunto no cardápio e bancos de vinil
rasgados.
No caminho até o café, desviando das pessoas que estão indo às
compras e dos artistas de rua desafinados, todas as suas falhas na
criação de Todd inundam a sua mente. O modo como dava leite
demais para ele dormir mais, virando a mamadeira enquanto via
televisão no meio do dia, entediada, sem fazer contato visual com o
filho. A vez em que gritou de frustração porque ele não dormia. A
rapidez com que voltou a trabalhar porque o pai dela a pressionara; e
o fato de ter colocado Todd tão novo na creche, novo demais. Foi ela
que plantou essa semente? Ela foi uma mãe de merda, ou só humana?
Não sabe dizer.
Andy já está no café, a uma mesa de fórmica: Jen o reconhece na
mesma hora pela foto do LinkedIn. Tem mais ou menos a mesma
idade que Rakesh e o cabelo grisalho e revolto. Está com uma camisa
de malha com os dizeres Franny & Zooey. É um livro do J. D. Salinger,
não é?
— Obrigada por encontrar comigo — diz Jen depressa, sentando-se
diante dele. Ele já pediu dois cafezinhos. Na mesa há uma jarrinha de
metal com leite, e ele aponta para ela, sem dizer uma palavra.
Nenhum dos dois bota leite no café.
— É um prazer — responde Andy, mas não é o que a sua voz
transmite.
Ele parece cansado, da mesma forma que ela se sente quando se vê
obrigada a oferecer consultoria jurídica de graça no meio de uma festa.
Dá para entender.
— Isso deve ser… bom, isso deve ser algo meio inusitado — diz ela,
colocando açúcar no café.
— Pois é — comenta ele, recostando-se na cadeira e dando de
ombros de leve. Ele tem um sotaque americano discreto. — É verdade.
— Ele entrelaça os dedos, apoia a cabeça e fica olhando para ela. —
Mas o Rakesh é um grande amigo.
— Não vou tomar muito do seu tempo — promete ela, embora não
seja verdade. Quer que ele fique ali com ela o dia inteiro: de
preferência, até ontem.
Andy levanta as sobrancelhas e fica em silêncio.
Ele dá um gole no café e o pousa de volta na mesa, fitando-a com os
calmos olhos castanho-claros. Então gesticula, o tipo de sinal que você
faria ao convidar alguém a entrar por uma porta.
— Pode falar — diz secamente.
Jen começa a se abrir. Ela conta tudo. Todos os pormenores. Fala
depressa, gesticulando, quantidades insanas de detalhes. Todas as
minúcias. A abóbora, o marido pelado, Corte & Costura Ltda., a faca,
como ela tentou ficar acordada, o carro capotando, Clio. Tudo.
Em silêncio, uma garçonete com um bule na mão serve mais café
para eles, e Andy agradece, mas só com os olhos e um pequeno sorriso.
Ele não interrompe Jen uma vez sequer.
— Acho que é isso — conclui ela.
O vapor sobe até as luzes fluorescentes no teto. O lugar está quase
completamente vazio hoje (seja lá que dia é esse), no meio da manhã,
num dia de semana. Jen sente-se tão cansada de repente que, com
outra pessoa temporariamente no controle da situação, acha que seria
capaz de dormir ali mesmo naquela mesa. Ela se pergunta o que
aconteceria se o fizesse.
— Não preciso perguntar se você acredita no que está me contando
— diz Andy depois do que parece ser um momento de reflexão.
O tom relativamente passivo-agressivo com o qual ele diz se você
acredita perturba Jen. É o linguajar de médicos, adversários no
tribunal, parentes hostis, consultores de perda de peso…
— Eu acredito — responde ela. — Se isso te serve de consolo.
Ela esfrega os olhos por um minuto, tentando pensar em alguma
coisa. Anda. Você é uma pessoa inteligente. Não é tão difícil assim. É
o mesmo tempo de sempre, só que andando para trás.
— Daqui a dois dias você vai ganhar um prêmio — diz ela, pensando
na notícia que leu sobre ele quando não obteve resposta ao e-mail que
enviou. — Por seu trabalho com buracos negros.
Quando ela abre os olhos, Andy está imóvel, com o café a meio
caminho da boca, o copo de isopor formando uma elipse por causa da
pressão de seus dedos. Ele está boquiaberto, os olhos fixos nela.
— O Prêmio Penny Jameson?
— Acho que é… Eu vi quando pesquisei você no Google.
— Eu vou ganhar?
Jen sente uma pontada de triunfo dentro de si. Pronto.
— Vai.
— Esse prêmio é sigiloso. Eu até sei que estou na lista de pré-
selecionados. Mas ninguém mais sabe. Isso não é… — Ele pega o
celular e digita em silêncio por um segundo, depois o pousa na mesa,
com a tela para baixo. — Essa não é uma informação aberta ao
público.
— Fico feliz que não seja.
— Certo, Jen — continua ele. — Você conseguiu a minha atenção.
— Ótimo.
— Que interessante. — Andy chupa o lábio inferior para dentro da
boca. Ele tamborila os dedos nas costas do celular.
— Então, isso é cientificamente possível? — pergunta ela.
Ele abre bem as mãos, então segura o copo novamente.
— Ninguém sabe — responde ele. — A ciência é muito mais uma
arte do que você poderia imaginar. O que você está descrevendo viola
a lei da relatividade geral de Einstein, mas quem é capaz de afirmar
que é o teorema que controla a nossa vida? Ninguém provou que é
impossível viajar no tempo — diz ele. — Se você conseguir ultrapassar
a velocidade da luz…
— Eu sei, eu sei, uma força gravitacional mil vezes o meu peso
corporal, né?
— Exatamente.
— Mas… eu não senti nada assim. Posso perguntar uma coisa? Você
acha que eu também andei para a frente no tempo? Então, em algum
lugar, estou vivendo uma vida em que o Todd foi preso?
— Você acha que pode ter mais de uma de você?
— Talvez.
— Espera um pouco. — Ele pega a faca da cesta de talheres ao lado
deles. — Você pode usar isso?
— Usar isso?
— Só um cortezinho mínimo. — Ele deixa o resto implícito.
Jen engole em seco.
— Ah. Certo. — Ela pega a faca e faz, com toda a sinceridade, o
corte superficial mais patético do mundo na lateral do dedo.
Praticamente um arranhão.
— Mais fundo — insiste ele.
Jen enfia a faca mais fundo na ferida. Uma gota de sangue escapa.
— Certo — diz ela, limpando com um guardanapo. — Certo? — Ela
fita o corte de um centímetro de comprimento.
— Se o corte não estiver aí amanhã… Eu diria que você está
acordando todos os dias no seu corpo de ontem. Você passa da
segunda-feira para o domingo, e então para o sábado.
— Em vez de viajando no tempo?
— É. Me diz uma coisa. — Ele se debruça para a frente. — Você
sentiu algum tipo de… compressão quando isso aconteceu? Ou só o
déjà-vu?
— Só o déjà-vu.
— Que curioso. O pânico que você sentiu pelo seu filho… você acha
que isso pode ter causado esse sentimento?
— Não sei — diz Jen baixinho, quase como se estivesse falando
consigo mesma. — É uma loucura. É tudo tão louco. Eu ainda não
telefonei para você. Eu vou ligar… mais para o fim da semana. Vou
deixar um monte de mensagens.
— Me parece — comenta Andy, terminando o café — que, na
verdade, você já entendeu as regras do universo no qual se encontra
sem querer.
— Não é essa a sensação que eu tenho — diz ela, e ele abre um
sorriso breve.
— Teoricamente, é possível que você tenha de alguma forma criado
uma força tal que ficou presa numa curva fechada do tipo tempo.
— Teoricamente. Certo. Então… como eu faço para… sair dessa
curva?
— Colocando a física de lado um pouco, a resposta óbvia seria que
você vai voltar ao começo de tudo, certo? Voltar ao que acabou
levando o Todd a cometer o crime?
— E aí, o quê? Se você tivesse que dar um chute? — Ela ergue a
mão num gesto pacífico. — Sem pressão. Pode só dar um palpite. O
que você acha que iria acontecer?
Andy morde o lábio inferior, fitando a mesa, então volta a olhar para
ela.
— Você impediria que o crime acontecesse.
— Nossa, tomara que sim — diz Jen, com os olhos marejados de
lágrimas.
— Você me permite fazer uma pergunta que pode soar meio
espirituosa? — diz Andy. O ar ao redor deles parece ficar mais
silencioso quando ele pousa os olhos nos dela. — Por que você acha
que isso está acontecendo com você?
Jen hesita, prestes a dizer — de um jeito espirituoso também — que
não sabe: e que foi por isso que o forçou a se encontrar com ela. Mas
algo a impede de dizer isso.
Pensa nos loops temporais, no efeito borboleta, num detalhe
mínimo.
— Eu fico me perguntando se tem alguma coisa que eu sei, e que só
eu sei, que é capaz de deter o assassinato — diz ela. — No fundo do
meu inconsciente.
— Conhecimento — concorda Andy. — Não é uma questão de
viagem no tempo, ciência nem matemática. Não seria esse
simplesmente um caso de… você ter o conhecimento, e o amor, para
impedir um crime?
Jen pensa na faca que encontrou na mochila de Todd, e na Eshe
Road North.
— Tipo, em todos os dias que vivi de novo até agora eu aprendi
alguma coisa agindo de forma diferente… seguindo alguém, ou
testemunhando uma coisa que eu não tinha visto da primeira vez. Só
de prestar mais atenção nas pequenas coisas.
Andy brinca com a xícara vazia na mesa, os lábios comprimidos,
ainda pensando, os olhos concentrados na janela atrás de Jen.
— Sendo assim, faria sentido dizer que todos os dias aos quais você
retorna são de alguma forma significativos para o crime?
— É, talvez.
— Então, à medida que você for voltando… pode ser que você pule
um dia. Pode ser que pule uma semana.
— Pode ser. Então eu deveria estar procurando pistas em cada um
desses dias?
— É, provavelmente — diz ele.
— Estava na esperança de que você talvez… sabe como é… me
desse uma solução. Um jeito de sair. Sei lá, duas dinamites e um
código, ou algo assim.
— Dinamite — repete Andy com uma gargalhada.
Ele fica de pé e oferece a mão para um aperto de despedida. Ela
fecha os olhos ao apertá-la, só por um segundo. É de verdade. A mão
dele é de verdade. Ela é de verdade.
— Até a próxima — diz ela, abrindo os olhos.
— Até — devolve ele.
Jen sai do café depois dele, perdida em pensamentos, tentando
entender o que tudo aquilo significa. Ela liga para Todd, para saber
onde ele está. Saber se está fazendo alguma coisa que ela perdeu da
primeira vez que viveu este dia, sentindo um vigor renovado por
tentar entender como mudar as coisas, como salvá-lo.
— Tudo bem? — diz ele ao atender.
Não há barulho nenhum onde ele está. Presa num corredor de vento
no centro de Liverpool, Jen protege o corpo do vendaval.
— Só queria saber onde você está — diz ela.
— Na internet — responde ele, e Jen sorri. Seu filho, tão querido.
— Na internet… em casa? — pergunta ela.
— Tenho um tempo livre agora na escola. Então vim pra casa, tô na
nossa rede privada, na minha cama, em Crosby, Merseyside, Reino
Unido — responde ele, o riso permeando a voz.
Ela fita o céu e pensa: Bom, veremos. Ela poderá até ver agosto antes
de novembro. Mas vai chegar à raiz do problema, seja ele qual for.
A lua está visível no céu, uma lua do meio-dia, pairando acima dos
dois, quaisquer que sejam as versões deles. Ela, no passado. E Todd,
passando por mudanças que o levarão a matar alguém dali a quatro
dias.
— Tô indo pra casa — diz ela.
— E onde você tá?
— No universo — responde ela, e Todd ri, um som tão perfeito para
ela que parece música.
Jen está de volta à Eshe Road North, torcendo para encontrar Clio.
Presume que ela não more com o tio, mas talvez ele possa dizer onde
ela mora.
Jen acha que Clio detém a chave do problema. Até onde sabe, faz
uns dois meses que Todd a conheceu, mas pode-se acrescentar
algumas semanas de segredo adolescente a isso. Não pode ser
coincidência o fato de ter sido aí que tudo começou, junto com a
amizade dele com Connor. Esse tudo sendo uma mudança amorfa e
difícil de descrever. O mau humor, os segredos, a estranha palidez que
ele exibe às vezes.
E aqui está ela, batendo à porta. Quase imediatamente, uma forma
feminina surge atrás do vidro fosco. O coração de Jen salta no peito.
A porta se abre, e Jen se pega admirando a beleza de Clio. Aquela
franja curta e chique, os olhos próximos um do outro. Está com o
cabelo embaraçado, despenteado, mas isso fica bem nela, e não como a
louca que Jen pareceria se tentasse adotar o mesmo visual.
— Oi — cumprimenta Jen.
Clio olha para trás, por cima do ombro, um gesto rápido e
automático, mas Jen repara e fica se perguntando o que aquilo
significa.
— Eu sou a mãe do Todd — explica ela, lembrando, após um
instante de hesitação, que embora já tenha conhecido Clio, Clio ainda
não a conheceu.
— Ah — diz Clio, o rosto bonito demonstrando surpresa.
— Eu queria saber… — começa Jen. Ela olha para baixo. Clio deu
um pequeno passo para trás. Não para convidar Jen a entrar, mas
como se estivesse prestes a fechar a porta. Jen lembra da expressão
franca e curiosa da primeira vez que a viu, quando estava com aquela
calça jeans rasgada, no fim do corredor. A expressão facial de Clio
agora, sem Todd por perto, é completamente diferente. — Eu queria
saber se a gente pode bater um papo? — Ela aponta para Clio. — Não
tem nada a ver com… nada a ver com você, sério. Eu estou tranquila
com você… com o namoro de vocês. Será que eu posso entrar… só
um pouquinho? Você mora aqui? — gagueja ela.
— Olha… Não dá… — diz Clio.
Jen avalia o hall à volta dela. O casaco de Clio está pendurado em
cima da porta do armário que Ezra fechou. Sobre o casaco há uma
bolsa da Chanel que Jen calcula ser verdadeira. Uma bolsa dessas custa
umas cinco mil libras, não custa? Como ela conseguiu pagar por isso?
A menos que seja falsa?
— Não é nada grave — insiste Jen, os olhos ainda fixos na bolsa.
Clio está franzindo a testa. Ela começa a mexer a boca numa espécie
de pedido delicado de desculpa.
— Eu não… — diz, torcendo as mãos unidas. Ela dá outro passo
atrás. — Foi mal, de verdade. Eu… eu realmente não posso…
— Não pode o quê? — pergunta Jen, totalmente confusa.
— Não posso falar disso com você.
— Falar de quê? — pergunta Jen, lembrando de repente que Kelly
achava que os dois tinham terminado. — Vocês não brigaram,
brigaram?
Há uma ligeira alteração nas feições de Clio, mas Jen não é capaz de
definir o quê. Alguma ficha parece ter caído para a menina, mas Jen
não faz ideia do que seja.
— Me explica, por favor — pede ela pateticamente.
— Nós terminamos, mas voltamos ontem. É… complicado.
— Complicado como?
Clio se esquiva de Jen, passando os braços por cima da barriga, se
curvando sobre si mesma, como alguém frágil ou que está passando
mal.
— Desculpa — diz ela, quase num sussurro, dando mais um passo
atrás. — Até mais… tá? — Ela fecha a porta, deixando Jen ali,
sozinha.
Ela ouve o clique baixo da tranca da porta e, pelo vidro fosco, vê
Clio se afastando.
Jen se vira para ir embora. Ao fazê-lo, uma viatura da polícia passa
na rua. Bem devagar, muito devagar. É a velocidade que faz Jen notar
o veículo. As janelas estão fechadas, o motorista está olhando para a
frente, o carona — que Jen sabe com toda certeza que é o policial
bonito que vai prender Todd — está olhando diretamente para ela.
Enquanto Jen anda até seu carro, derrotada pela reação de Clio,
desnorteada com o mistério que tem diante de si, a viatura faz a volta
e retorna no sentido contrário.
Jen dirige, pensando no que Andy falou. No inconsciente dela, no
que ela sabe, no que pode ter visto e descartado como insignificante, e
no que está aqui para fazer. Não tem mais alternativa, ela pensa
enquanto dirige. Tem que perguntar ao filho.
O e-mail não funcionou. O corte que ela fez com a faca sumiu.
E, pela primeira vez, Jen voltou mais de um dia. Ela voltou quatro
dias. Hoje é dia 21. Ela se senta na cama e pensa em Andy. Parece que
ele tinha razão.
Ou então o processo está acelerando e, daqui a pouco, ela vai voltar
vários anos de cada vez e deixar de existir completamente.
Não. Não pensa assim. Foco no Todd.
E, como se alguém tivesse lhe dado uma deixa, ela o ouve fechando
a porta do quarto.
— Aonde você vai? — grita para ele.
Ela o ouve subindo as escadas até o último andar, onde fica o quarto
de Jen e Kelly, e então aparece com um sorriso enorme no rosto. Ele
parece um emoji feliz, como ele mesmo diria.
— Meu pai tá me obrigando a correr com ele — diz. — Reza por
mim.
— Vou colocar você nas minhas orações — responde Jen e fica
ouvindo os dois saírem de casa. É bom vê-lo assim. De bochechas
coradas e feliz.
Em poucos minutos, ainda de roupão, ela está de volta ao quarto de
Todd. Revirando as gavetas da mesa dele de novo, e as da mesinha de
cabeceira, e debaixo do colchão. Debaixo da cama.
Enquanto vasculha o quarto, recita para si mesma o que sabe.
— Todd conhece Clio no fim do verão. Kelly falou: Ele ainda está
com a Clio? Achei que ele tinha dito que não estava mais, poucos dias
antes do crime. Todd confirmou um pouco antes disso que eles tinham
terminado, mas que depois voltaram.
Pratos, copos, resmas e resmas de material escolar on-line impresso
em casa. Atrás do armário, ela encontra uma folha de papel sobre
astrofísica.
— A Clio tem medo de falar comigo — acrescenta, achando que
pode ser um detalhe significativo. — E mais… aquela viatura esquisita
da polícia, rondando a casa.
Finalmente, finalmente, finalmente, depois de vinte minutos, ela
encontra algo que parece muito mais concreto do que ficar ouvindo as
próprias divagações.
Está em cima do armário, bem lá atrás, mas não coberto de poeira,
então não é velho.
A tal coisa é um pacote pequeno e cinzento atado com um elástico.
Jen desce da cadeira de escritório de Todd e segura o pacote nas mãos.
É droga, acha ela, deve ser droga. Com as mãos trêmulas, ela solta o
elástico e abre o plástico-bolha.
Não é droga.
O pacote contém três itens.
Um distintivo da Polícia de Merseyside. Não o documento de
identificação completo, só a carteira de couro com o escudo de
Merseyside. Na carteira está bordado um número e um nome: Ryan
Hiles, 2648.
Jen corre os dedos pelas letras. São frias contra a sua pele. Ela ergue
a carteira sob a luz. Como um adolescente foi arrumar um distintivo
policial? Ela não persegue esse pensamento pelo beco em que ele quer
se embrenhar, embora seja óbvio que não pode ser coisa boa.
Em seguida, um papel A4 dobrado em quatro partes iguais, com
orelhas nos cantos e uma foto impressa de um bebê de uns quatro
meses de idade. Acima dele, ou dela, em letras vermelhas grandes, as
palavras: CRIANÇA DESAPARECIDA. E um buraco de alfinete no
canto.
Jen pisca, assustada. Desaparecida. Uma criança desaparecida?
Distintivos policiais? Em que mundo sombrio Todd mergulhou?
O último item parece ser um celular pré-pago. Está desligado. Jen
aperta o botão de ligar com o dedo trêmulo e observa o aparelho
ganhar vida, a tela verde neon. Não tem senha. É um aparelho antigo,
com tampa flip, e não um smartphone. Está na cara que não era para
ter sido descoberto. Ela olha a lista de contatos. Tem três nomes:
Joseph Jones, Ezra Michaels e alguém de nome Nicola Williams.
Jen olha a lista de mensagens, atenta a qualquer barulho que possa
indicar que Todd e Kelly estão chegando.
Horários de encontros com Joseph e Ezra. Às onze da noite aqui, às
nove da manhã ali.
Mas com Nicola é diferente:
Celular pré-pago 15/10: Gostei da conversa.
Nicola W 17/10: Bom te ver. Fico feliz em ajudar, mas você precisa fazer alguma coisa.
Dado o que aconteceu.
Vinte e cinco minutos depois, Jen está numa sala de reuniões com um
policial. Um cara novo, os olhos azul-claros como os de um lobo. Toda
vez que ele a fita nos olhos, Jen fica impressionada com o diferencial
deles, uma borda azul-escura com uma piscina de um azul bem
clarinho no meio e uma pupila minúscula. A cor tem algo que faz seu
olhar parecer vago. O policial está recém-barbeado e com uma farda
um pouco grande demais para ele.
— Certo, me conta — pede ele. Há dois copos brancos de plástico
com água diante deles. A sala cheira a toner de impressora e a café
velho. Um cenário tão mundano para a reação que Jen espera
desencadear. — Vou tomar notas — acrescenta ele.
Não é o que ela queria. Um policial novo que anota tudo
meticulosamente e não responde às suas perguntas. Jen quer alguém
rebelde. Alguém que diga coisas em off, um viúvo com problema de
alcoolismo: alguém que possa ajudá-la.
— Eu tenho certeza de que meu filho está envolvido em alguma
coisa — diz ela apenas. Deixa de lado o pseudônimo que forneceu na
recepção, na esperança de que ele não toque no assunto, e vai direto
ao ponto. — O nome dele é Todd Brotherhood.
E é aí que acontece. Reconhecimento: Jen tem certeza absoluta. Um
reconhecimento passa pelas feições dele como um fantasma.
— Por que você acha que ele pode estar envolvido em alguma coisa?
Ela conta ao policial da empresa de corte e costura, dos encontros do
filho com Joseph Jones e da faca. Sua esperança é que, se Todd já tiver
se armado, eles vão encontrar a arma, prendê-lo e impedir o crime.
A caneta do policial para de se mover brevemente quando ela
menciona a faca. Ele ergue os olhos gelados para ela, da cor de uma
chama fraca de gás, então baixa o rosto novamente. Jen sente a
mudança no ar. Ela acendeu o rastilho. A borboleta bateu as asas.
— Certo… onde está a faca? Como você sabe que ele comprou?
— Eu não sei dizer agora, mas eu vi uma vez na mochila dele —
responde ela, sem mencionar que isso aconteceu no futuro.
— Ele já saiu de casa com ela?
— Imagino que sim.
— Então… — diz o policial, levantando a caneta. — Tá certo. Parece
que precisamos conversar com seu filho.
— Hoje? — pergunta Jen.
O policial termina de escrever e olha para ela. Ele então fita o
relógio na parede.
— Vamos fazer umas perguntas pro Todd.
Ali, na sala de reuniões quente da delegacia de polícia, ela
estremece. E se essa ação que acabou de realizar tiver alguma
consequência não intencional? Quem sabe o Joseph Jones devesse
mesmo morrer, se tiver alguma relação com algo terrível, e ela só
precisasse ajudar o Todd a se safar? Como ela vai saber a verdade?
— Certo… bom, eu posso buscar ele pra você — oferece ela,
imaginando o que ele deve estar achando disso. Como a sugestão deve
lhe parecer estranha. Mesmo agora, neste caos, Jen ainda tem medo de
ser julgada como mãe.
— Basta dar o seu endereço — responde o policial.
Ele se levanta e estende a mão na direção da porta. Uma dispensa
imediata. Prende ele, por favor, prende ele, pra ele não fazer mais nada,
pensa Jen.
— Não tem nada que você possa fazer hoje? — insiste ela. Precisa
que ele seja detido esta noite, antes que ela durma, para ter uma
chance de evitar o crime. Não existe amanhã, pelo menos não para
ela.
O policial faz uma pausa e fita os pés, mantendo a mão estendida.
— Vou ver o que eu posso fazer. Sabe… em geral, quando um garoto
novo anda com faca é coisa de gangue.
— Eu sei — sussurra Jen.
— Vamos conversar com seu filho, mas, para tirar um menino dessa,
você tem que descobrir a motivação dele.
— Estou tentando — diz ela. Então para ali, na porta da sala de
reuniões, e decide perguntar. — Sumiu algum bebê nesta região?
Recentemente?
— Hein? — pergunta o policial. — Se sumiu algum bebê?
— É. Há pouco tempo.
— Não posso discutir outros casos — responde ele, sem revelar nada.
Ela vai embora e, ao passar pela porta de vidro gravada com finas
linhas quadriculadas e pisar lá fora, sente o cheiro. Não era o que
estava esperando: cheiro de chuva. Chuva na calçada. O verão está
voltando. Aquele cheiro, aquele cheiro intangível — grama sendo
cortada, cerefólio, a terra quente e dura — sempre a faz lembrar da
casa deles no vale, a casinha branca de um andar só. Como foram
felizes lá, longe da cidade. Antes.
No caminho de casa, ela pensa em Ryan Hiles e no bebê
desaparecido. Ainda é capaz de visualizar a foto do cartaz. O bebê
tem alguma coisa que ela acha que reconhece. Uma familiaridade
instintiva, como se pudesse ser um parente distante, alguém que ela
conhece agora, já adulto… alguém que talvez já tenha encontrado,
mas não consegue pensar em quem. Jen nunca foi muito boa com
nenéns.
Ela ficou grávida de Todd por acidente, apenas oito meses depois de
ter conhecido Kelly. Foi um susto, mas ele costumava brincar que,
naquele ano, eles fizeram o equivalente a uma década de sexo, o que é
verdade. O motorhome pequeno e as roupas deles espalhadas pelo
chão são as únicas memórias que ela tem da época. O quadril dele
encostado no dela, a ironia com que ele falou, uma noite, que todo
mundo via o veículo balançando. O fato de que ela não estava nem aí.
Eles tinham vinte e poucos anos. Ela tomava pílula, e eles usavam
camisinha, na maioria das vezes. Foi algo na impossibilidade daquela
gravidez que a fez seguir adiante com ela. Isso, e uma única frase que
Kelly falou: “Tomara que tenha os seus olhos.” Na mesma hora, como
milhões de mulheres antes, Jen pensou: Tomara que tenha os seus. O
esperma encontrara o óvulo, e os pensamentos de um encontraram os
do outro, e ela se sentiu imediatamente pronta. Como se tivesse
amadurecido no intervalo de dois minutos de um teste de gravidez,
olhando para uma geração futura em vez de para si mesma.
Mas ela não estava pronta, nem um pouco.
Ninguém avisara para ela que parir era que nem ser atropelada por
um caminhão. Em determinado momento ela teve certeza de que ia
morrer, e aquela convicção meio que nunca a abandonou, mesmo
quando já estava bem. Não conseguia acreditar que as mulheres
passavam por aquilo. Que escolhiam fazer aquilo de novo e de novo.
Não podia crer que existisse dor como aquela.
Iniciara a sua jornada na maternidade a partir da dor, mas também
do medo: de ser julgada pelas enfermeiras que a visitaram em casa
depois do parto, pelos médicos e pelas outras mães.
Todd não foi o que alguém chamaria de bebê difícil. Sempre dormiu
bem. Mas até um bebê fácil é difícil, e Jen — já uma adepta da
autocensura — mergulhou em algo que, sob outras circunstâncias,
poderia ser descrito como tortura. E, no entanto, descrever daquele
jeito era tabu. Ela o fitou uma noite e pensou: Como posso saber se te
amo?
Jen entende que foi suscetível a querer tudo. Uma mulher com uma
carreira que suga tudo de você ao máximo. Com um pai reprimido.
Vulnerável ao julgamento dos outros, a inferir significados complexos
a partir de coisas simples que as pessoas dizem. Aquela veia de
inadequação dentro de si, que a fazia dizer sim para eventos banais de
networking e a aceitar mais casos do que poderia dar conta
realisticamente, a levou — na maternidade — ao sofrimento.
Queria dormir no mesmo quarto que Todd, para ele ouvir sua
respiração, queria amamentar, queria, queria, queria fazer tudo
perfeito, e talvez isso fosse uma compensação pelo que ela deveria ter
sentido mas não sentiu.
Tentou falar sobre isso com uma enfermeira que a visitou, mas ela
ficou meio desconfortável e perguntou se Jen queria se matar. “Não”,
respondeu Jen, apática. Não queria se matar. Queria não ter dito nada.
Tinha ido ao trabalho para ver o pai e ficou perambulando pelo
escritório feito um zumbi. Seu pai a abraçou bem apertado no saguão,
mas não falou nada. Não foi capaz de dizer nada: que ela estava
fazendo um bom trabalho, perguntar se ela precisava de ajuda. Um
homem típico da sua geração, mas doeu mesmo assim.
Como em todos os desastres, aquela sensação acabou esmorecendo, e
o amor floresceu, forte e bonito, quando Todd começou a fazer coisas:
a sentar, a falar, a esfregar biscoito recheado pela cara toda. E, até
recentemente, ele havia escapado do mau humor adolescente em que
seus amigos haviam afundado. Continuava cheio de trocadilhos, de
gargalhadas, de fatos interessantes, só para ela. No início, o amor que
ela sentia por ele fora eclipsado pela dificuldade dos primeiros dias, e
já não era mais tão difícil. Só isso. Uma explicação simples e ao
mesmo tempo tão complexa.
Jen, no entanto, ficara temerosa demais para ter mais filhos. Ela fita a
rua diante de si agora e pensa que acha que o bebê do cartaz é uma
menina. Sente uma pontinha de remorso por não ter tido outro filho.
Um irmão para Todd, alguém com quem ele pudesse se abrir, que
pudesse ajudá-lo agora, mais do que ela.
Não pode deixar isso acontecer. Não pode deixar o assassinato se
desenrolar. Não pode deixá-lo perder tudo. Seu bebê fácil que, sem
saber, testemunhou a mãe chorando tantas vezes; ela não pode
suportar que esse seja o fim dele. Não pode suportar que ele seja mau.
Por favor, por favor, por favor, faça com que ele — e ela — sejam bons.
Dia Menos Oito,
19:30
Mais tarde naquela noite, Jen volta a Eshe Road North, na esperança
de testemunhar alguma coisa. Crimes e coisas ruins só acontecem à
noite, então não custa nada vigiar a casa.
Ainda não teve notícias de Gina.
Às dez e quinze, Ezra sai de casa e entra no carro, usando alguma
espécie de uniforme — calça verde-escura, jaqueta verde, colete
fosforescente.
Jen o segue, mantendo uma boa distância, o farol aceso, uma
motorista como outra qualquer, uma simples coincidência. Eles
dirigem assim por um tempo, seguindo por uma rua de mão dupla e
atravessando um cruzamento escalonado.
Ela o segue até o porto de Birkenhead. Ezra salta do carro e pega
uma prancheta de outro homem, então bota um crachá no pescoço
com uma das mãos enquanto procura um cigarro com a outra. Ele
assume a posição de quem vai controlar a entrada e a saída de veículos
e fica ali, fumando.
Os ombros de Jen murcham de decepção. Então ele só trabalha ali.
Ela deixa o motor ligado e fica observando um Tesla se aproximar. O
vento está forte, carregando folhas pelo ar. E o porto está bem
movimentado, com carros entrando e saindo, mas o Tesla faz algo
diferente: pisca o farol, depois some lentamente por uma rua lateral.
Ezra o segue a pé. Ela engrena o carro e continua atrás deles. Então
estaciona na frente de uma casa qualquer, na esperança de passar por
moradora, e apaga o farol.
Um garoto — da idade de Todd, só que mais baixo e loiro — salta do
Tesla com um pacote comprido debaixo do braço. Ezra o
cumprimenta com um aperto de mão, e, juntos, eles se agacham na
frente do Tesla. Jen leva alguns minutos para entender o que estão
fazendo: estão trocando a placa do carro.
O garoto vai embora, e Ezra dirige o Tesla de volta pela entrada do
estacionamento e o deixa pronto para ser embarcado num navio.
Então Ezra é um funcionário corrupto do porto. Pega carros
roubados, troca a placa e manda para serem vendidos em algum lugar,
sem dúvida ganhando um dinheiro por fora. Ela presume que o
menino loiro seja um soldado raso na organização, que recebe uma
ninharia para roubar carros na porta da casa das pessoas com a
promessa de subir de posto na gangue. E se Todd também estiver
trabalhando para Ezra e Joseph? Alguma coisa dá errado, e Joseph
acaba morto. Jen não quer acreditar, mas não significa que não seja
verdade.
Jen espera um minuto antes de ir embora. Ela ultrapassa o menino,
que vai caminhando pela rua, e o observa cuidadosamente. Ele
mantém os olhos fixos à frente. Não deve ter mais que 16 anos, um
adolescente, um bebê, cheio de energia, sem ideia do dano que está
causando à mãe, esperando por ele na janela de casa.
Doze dias para trás, e Jen abre os olhos exatamente na data em que
Nicola Williams mandou uma mensagem no pré-pago de Todd,
dizendo: Já tá encaminhado, mas a gente se vê hoje à noite. Com isso,
Jen está decidida a seguir Todd hoje, a não o perder de vista. Que se
danem os detetives particulares. Esse é o melhor jeito. Não dá para
recomeçar tudo com Gina. É muito frustrante voltar à estaca zero
toda vez que dorme.
Ela o segue até a escola e pretende ficar esperando do lado de fora, o
dia inteiro, no estacionamento. O tempo que for preciso. Não tem
nada melhor para fazer. A única exigência do dia é que Todd não
tenha a menor chance de encontrar Nicola sozinho.
Enquanto espera, manda alguns e-mails de trabalho, os olhos
grudados no carro de Todd e no portão da escola. Ela pesquisa por
bebês desaparecidos na região e vasculha os registros de testamentos,
procurando por Ryan, mas não encontra nada.
Por volta das onze da manhã começa a chover, umas gotas enormes
que caem como moedas e escorrem pelo para-brisa. Ela observa o
estacionamento virar uma correnteza turbulenta. Tinha se esquecido
disso. Choveu muito em meados de outubro.
Jen fica olhando para a chuva no para-brisa e pensa no clima, em seu
filho e nos efeitos em cascata que uma única gota de chuva pode
produzir.
Pensa nas implicações das mudanças que fizer hoje. Gostaria de
entender.
Talvez consiga entender. Só precisa de uma explicação monótona
primeiro.
Liga para o trabalho de Andy e fica surpresa quando ele atende de
primeira.
— Você não me conhece — começa ela, hesitante.
— Não, está na cara que não — responde ele, impassível.
Ela explica a sua situação o mais resumidamente possível enquanto
ele mantém um silêncio confuso e crítico do outro lado.
— É mais ou menos isso — conclui ela.
Uma pausa.
— Certo — responde ele. — Eu recebo umas ligações assim às vezes,
então não posso dizer que estou surpreso.
— Não. Geralmente é trote, né? — comenta Jen.
Ela já se deparou com isso também. Hoje pela manhã, leu um post
no Reddit de alguém que afirmava ter voltado no tempo de 2031 para
2022. Não acreditou, apesar de ela mesma estar vivenciando isso. O
cara não conseguia nem provar. Segundo ele, em 2031 vai haver uma
guerra nuclear, o que não daria para refutar, no fim das contas.
— Pois é. Difícil saber em quem acreditar, não é? — concorda ele.
Ela não pode aceitar isso; não aceita que ninguém, nem um cara que
é praticamente um desconhecido, ache que ela é louca ou carente ou
mal-intencionada, alguém capaz de ligar para professores
universitários e mentir para eles.
— É. Escuta… no fim do mês você vai ser selecionado para um
prêmio e vai ganhar — afirma ela. — O Prêmio Penny Jameson. Isso
não me ajuda em muita coisa hoje, mas… que seja. É isso. Você vai
ganhar.
— Esse prêmio é…
— Sigiloso. Eu sei.
— Eu não fui informado ainda que fui selecionado. Só sei que tenho
chance. Mas você não tem como saber disso.
— Pois é — responde Jen. — É tudo que tenho de prova.
— Gostei dessa prova — diz ele, sucinto. — Ela me satisfaz. — A
clareza dos cientistas. — Acabei de pesquisar o prêmio no Google.
Não tem nada na internet sobre ele.
— É o que você vai falar da próxima vez que a gente se encontrar.
Outra pausa enquanto Andy considera o que ela acaba de dizer.
— Onde? Onde a gente vai se encontrar? — Seu tom é obviamente
mais caloroso.
— Num café no centro de Liverpool. Eu que sugeri o lugar. Você
estava com uma camisa de malha com os dizeres Franny & Zooey.
— A minha camisa do J. D. Salinger — comenta ele, surpreso. — Me
diz uma coisa, você está na frente da janela da minha sala?
— Não — responde Jen, com uma risada.
— Então deve ser muito irritante. Ter que passar por todas essas…
Hum… perguntas de segurança toda vez que fala comigo.
— É, é sim — responde Jen com sinceridade.
— Como posso ajudar?
— Quando nos encontrarmos em Liverpool, daqui a uma semana,
você vai falar do poder que meu inconsciente tem de me levar a dias
específicos.
— Certo… — diz Andy, e, ali, dentro do carro, debaixo de chuva,
Jen percebe que não é a expertise dele que importa, mas o fato de ter
alguém solidário ouvindo com atenção do outro lado. O fato de ter
um lugar seguro para expor seus pensamentos: não é disso que todo
mundo precisa, afinal? Gina, o próprio Todd?
— Bem, é isso que está acontecendo. Estou voltando vários dias de
uma vez agora. E acho que os dias em que acordo são importantes de
alguma forma.
— Que bom. Ainda bem que você está começando a entender o que
está acontecendo, dentro das limitações que tem — comenta ele. Jen
ouve um barulho, a mão dele coçando a barba. — E aí… você tem
mais alguma pergunta?
— Tenho. Eu queria perguntar… digamos que daqui a alguns dias,
daqui a algumas semanas, eu descubra o que está acontecendo.
— Sim.
— Eu só queria saber mesmo até que ponto as coisas que já fiz vão
“ficar”, por assim dizer? Por exemplo, eu falei pro Todd, um dia desses,
que ele vai matar uma pessoa no futuro. Mas agora voltei para antes
de essa conversa acontecer. E aí… ela vai acontecer?
Andy faz uma pausa, e Jen fica feliz com isso. Precisa de alguém que
pense as coisas. Alguém que não fale só para preencher silêncios, para
dar palpites. Por fim, ele fala:
— É o efeito borboleta, né? Digamos que você ganhe na loteria no
Dia Menos Dez, e continue a voltar no tempo, para o Dia Menos
Onze, Dia Menos Doze, e por aí vai. Se, em algum momento, você
resolver o crime e acordar no Dia Zero, você ainda vai ter ganhado na
loteria no Dia Menos Dez?
— Exatamente, é isso que eu quero saber.
— Eu acho que não. Eu não acho que as coisas que você está
fazendo vão ficar. Acho que você vai seguir adiante a partir do dia em
que resolver a questão, e só as mudanças que fizer naquele dia vão
permanecer. Elas vão apagar todo o resto. Mas isso é só o que eu acho.
Plim, plim, plim, faz a chuva. Jen fica olhando as gotas caindo e se
espalhando em pequenos riachos. Ela abre a janela e estica a mão para
fora do carro, só sentindo a chuva, chuva de verdade, a mesma que já
sentiu antes na própria pele.
— E… digamos que eu não consiga resolver.
— Eu acho que você vai conseguir. Tenha fé, Jen. Há uma ordem nas
coisas que às vezes a gente nem sabe.
Esse homem, esse homem gentil e inteligente do outro lado da linha,
torna-se um guru para Jen. Um professor velho e sábio, um Gandalf,
um Dumbledore.
— Mas… por exemplo… e se eu simplesmente voltar uns quarenta
anos, para a inexistência, e for só isso? — pergunta ela.
Esse é talvez seu maior medo no momento. Ela engole em seco
enquanto tem esse pensamento horrível e catastrófico. Ah, que
maravilha seria ter um cérebro que não se tortura.
— Não é isso que todos estamos fazendo, mas no sentido contrário?
— argumenta ele, o que não ajuda em nada na ansiedade de Jen.
— Você se importa se eu contar tudo que sei? Só pra… só pra ver se
você consegue perceber alguma coisa? — pergunta ela.
— Pode falar. Estou até com um bloco de anotações. E estou prestes
a ser premiado como uma das grandes mentes da física no Reino
Unido, se sua premonição estiver certa.
— Ah, está sim — diz ela. — Certo… então…
E ela conta tudo. Conta do cartaz do bebê desaparecido, do policial
morto, do celular pré-pago e das mensagens para Nicola Williams. Fala
do funcionário no porto, e de como suspeita que seja coisa de crime
organizado. Diz que Nicola Williams talvez tenha sido esfaqueada
também. Cita todas as datas, todos os horários que sabe. Enquanto
fala, ouve o som da tampa de uma caneta se abrindo. Provavelmente
uma caneta-tinteiro, pelo tipo de barulho.
— E foi isso — diz ela, sem fôlego, após ter revelado tudo que sabe.
— Então, colocando em ordem cronológica… — começa ele.
— Ah, sim. O Todd conhece a Clio em agosto. O tio dela está
tocando… sei lá… uma quadrilha.
— Certo, então… em outubro. — Ela o ouve passando as páginas do
bloco. — Você falou que Todd parece ter pedido ajuda a uma pessoa
chamada Nicola Williams. Talvez marcando um encontro que seria
uma emboscada para ela… e então ela foi ferida?
— É. E, a essa altura, no dia 17 de outubro, o bebê provavelmente já
está desaparecido, e o policial também já deve ter morrido, e já
pegaram o distintivo dele.
Jen recosta no banco. O que antes parecia um oceano tempestuoso
está agora tão claro que ela pode ver o leito rochoso lá no fundo.
— É isso.
— Então parece que Nicola é a peça que está faltando. Ela é a pessoa
sobre quem você menos sabe. E uma pessoa que parece ligada
diretamente ao Todd, e que também foi ferida duas noites antes do
crime.
— Sim. Preciso encontrar Nicola — concorda Jen.
Às três e meia da tarde, Jen segue Todd até em casa e chega à porta
dois minutos depois dele.
Ele se vira para ela, com o rosto talvez um tanto pálido, mas, tirando
isso, parece entusiasmado, e diz:
— Você sabia que uma pulga consegue acelerar mais rápido que um
foguete?
— Estou bem, obrigada, tive um dia mais ou menos — responde ela
com sarcasmo.
— Tá bem, então olha só isso, mãe. — Ele coloca a mochila no chão
e começa a revirar o conteúdo dela, com uma expressão tranquila e
animada no rosto. Nem sinal de crime organizado, quadrilhas,
violência, policiais mortos, nada. — Olha. — Ele entrega a ela um
trabalho escolar, nota A*, e seus dedos se tocam de leve, como o toque
de uma pena.
Jen fita o papel, um trabalho de biologia. Lembra vagamente disso.
Da outra vez, à noite, ela lhe ofereceu um sucinto muito bem. Todd
tirar A* é a regra, não a exceção. Desta vez, ela lê o trabalho direito.
— Que maravilha — diz, depois de alguns minutos. Todd pisca de
surpresa, e esse piscar parte o coração dela só um pouquinho. Ela se
esforçou tanto, mas olha só o espanto dele. — Quanto tempo você
levou pra fazer? — pergunta ela.
— Ah, não foi tanto assim.
— Eu não teria conseguido escrever isso. Não sei nem o que é
fotossíntese.
— É. — Uma risada descontraída. — É coisa de planta, mãe.
Ele está lendo o trabalho de novo, com um projeto de sorriso no
rosto. É um garoto tão seguro de si. Numa coisa ao menos ela acertou.
Com sorte, Todd nunca vai virar noites se questionando se é um bom
pai, questionando a própria inteligência, ou a si mesmo.
— O que você vai fazer hoje à noite para comemorar? — pergunta
ela.
Ele a fita.
— Nada.
— Você não tem planos? — pergunta ela de novo.
— Isso aqui é um tribunal? — devolve Todd, erguendo as mãos
espalmadas.
— Você não vai se encontrar com ninguém? Com a Clio? Com o
Connor?
— Ah, tá curiosa, é? Eu fiquei me perguntando quando você ia
começar a querer saber da Clio.
— Pois hoje é o dia — devolve Jen, meio sem jeito.
Todd desvia dela e caminha em direção à cozinha.
— Nhé.
— Nhé?
— Não sei se vai vingar.
— Como assim? Ela era… vocês estavam namorando pra valer.
— Acabou. — Todd diz isso com a mandíbula tensa, os olhos fixos
no celular.
Kelly aparece na cozinha. Ele acompanha Todd com o olhar. Parece
estar perdido em pensamentos e não diz muita coisa.
— Vou trabalhar — comenta ele. Está vestindo o casaco.
— Tá — responde Jen, sem prestar atenção. — O que aconteceu
com a Clio?
— Isso não é da sua conta — responde Todd, de maneira firme. Kelly
remexe umas latas no armário, então solta um palavrão. — Essas
Cocas são minhas — exclama Todd para ele.
— Até mais, então — devolve Kelly. — Vou comprar a minha
própria Coca.
— Adieu — diz Todd para Kelly, de forma um tanto rude. — Acho
que vou comemorar meu trabalho fritando o cérebro no Xbox — diz
ele para Jen.
Então pega uma laranja da fruteira e arremessa para ela com uma
gargalhada tão alta que ressoa em seu coração feito um bumbo de
bateria. “Eu te amo, eu te amo, eu te amo”, pensa ela ao pegar a
laranja.
— Isso aqui está fazendo fotossíntese agora? — pergunta ela,
mostrando a laranja para ele.
— Não use palavras que você não sabe o que significam — devolve
ele, se aproximando para bagunçar o cabelo dela.
Não importa o que você fez, pensa Jen, eu nunca vou deixar de te
amar.
Ele passa a noite inteira em casa. À meia-noite, Jen verifica o quarto
do filho e o encontra dormindo. Ela fica acordada até as quatro da
manhã, só para ter certeza, então vai dormir. Não existe possibilidade
de Todd ter encontrado Nicola Williams hoje. Absolutamente
nenhuma.
Ryan
Uma viatura da polícia seguiu Todd da escola até em casa hoje. Jen
está convencida disso. Ela pensa na viatura que passou duas vezes em
frente à casa da Clio.
Está de noite agora, e Todd e Kelly estão sentados de frente um para
o outro. A luz da bancada da cozinha está acesa, e o céu lá fora parece
iluminado com uma cor de estanho.
As árvores estão com mais folhas. O que há poucos dias era uma
pilha de folhas secas no jardim agora parece um punhado de bandeiras
vermelhas, de volta aos galhos das árvores.
— Boa noite, madame — Todd a cumprimenta. — Estamos falando
do gato de Schrödinger.
Jen passou o dia no trabalho, fingindo ser normal. Teve uma primeira
reunião com uma cliente nova que ela sabe que dali a algumas
reuniões vai dizer que, no fim das contas, não quer deixar o marido.
Jen anotou bem menos coisas dessa vez.
Todd está comendo comida chinesa para viagem direto da
embalagem, igual a um americano, só que, em vez de uma embalagem
cafona de papelão com palitinhos, é um pote de plástico. Seu filho
querido.
Kelly arregala os olhos para Jen do outro lado da bancada.
— Não estamos coisa nenhuma — diz ele com uma risada. — Você
estava falando. Eu estava comendo asinha de frango.
— Não sei se seu pai é o melhor público — comenta Jen e ouve a
risada perfeita do marido, que é meio que uma exalação engraçada.
— E o que aconteceu com o projeto de Vênus e Marte? — pergunta
Kelly.
Todd tira o celular do bolso e passa para Kelly. Da primeira vez que
Jen viveu este dia, estava no trabalho. Não sabia nada desse projeto.
Kelly olha para o celular de Todd por alguns segundos, então
exclama:
— Você tirou A! A de “ás da astrofísica”.
— A de Alexander Kuzemsky — devolve Todd.
— Dá pra falar inglês? — reclama Jen.
— É um físico importante — explica Todd. — O projeto foi esse. —
Ele passa o celular para ela.
— Parabéns — diz Jen com sinceridade.
Ela começa a ler o trabalho com interesse, em parte se perguntando
se pode conter alguma ciência que poderia ajudá-la, mas Todd pega o
celular de volta.
— Não precisa se dar o trabalho de ler, sério.
— Eu estou interessada!
— Você não se interessa normalmente — devolve ele.
Uma pedra de culpa pesa em seu estômago. Culpa materna, a coisa
contra a qual vem lutando durante grande parte da vida, mas que
nunca — nunca — vai embora. Você não se interessa normalmente.
— Tudo bem? — pergunta Kelly com uma risada. — Você está com
cara de quem viu um fantasma.
Todd ri baixinho com o pote de plástico perto da boca enquanto Jen
se serve de um pouco de comida.
Kelly se levanta da bancada, seu celular está tocando. Jen fica
olhando fixamente para o hall de entrada, pensando em Todd.
— Como assim? — pergunta Jen a ele.
— Como assim que você normalmente não presta atenção nas
minhas coisas.
— Nas suas coisas? — pergunta Jen, sentindo como se o mundo
estivesse parando de repente. Todd não responde, apenas pega um
frango empanado e enfia inteiro na boca. — Você acha que eu não
presto atenção em você? — pergunta ela.
Ela é tomada por uma espécie de percepção nebulosa, como se
estivesse encoberta por uma neblina: quando se está dentro dela, você
não pode vê-la, mas pode senti-la.
Todd parece ponderar a questão, fitando a própria comida, o cenho
franzido.
— Talvez — responde, por fim.
Todd a encara. Tem os olhos do pai, mas todo o resto é dela. O
cabelo escuro e rebelde, a pele pálida. Um apetite voraz. Foi ela que
fez. E olha só: ele acha que ela não presta atenção nele. Diz isso com a
maior facilidade, como se fosse um simples fato da vida.
— Essas coisas não te interessam — acrescenta ele.
— Ah — sussurra ela.
— Eu gosto de física — continua ele. — Então não é engraçado que
eu goste do Alexander Kuzemsky. Eu gosto dele de verdade.
Jen tem a estranha sensação de estar errada numa discussão. Tão
completamente errada. Sua mente faz malabarismos. Isso aqui não
tem nada a ver com planetas. Tem a ver com o relacionamento deles.
Todd, com seus fatos científicos divertidos e a cabeça nas nuvens.
Jen, com sua incapacidade de entender o que ele está falando e com
sua mania de reagir com sarcasmo. Ela sempre pensou neles assim. Ela
e Kelly não conseguiam acreditar que tinham produzido uma criança
tão cerebral, inteligente de um jeito completamente diferente deles, os
dois tão práticos, e Todd tão… não prático. Mas ele não é um produto.
Ele não é um objeto. Ele está aqui, bem na sua frente, dizendo a ela
quem ele é. Ela deixou a própria insegurança sobre ser burra
transformar a intelectualidade dele em algo trivial. Algo risível.
— Nossa. — Ela baixa a cabeça nas mãos. — Tá bem. Entendi.
Desculpa. Não é… Desculpa, de verdade — diz, sem jeito.
— Tudo bem — responde ele.
— Tudo que você faz é interessante pra mim — continua ela, as
lágrimas brotando com o fatalismo inconsequente de quem não vai
estar aqui amanhã; uma declaração de leito de morte, uma ligação de
um avião que está sendo sequestrado. Uma mulher que pode
estabelecer uma conexão com o filho de novo e de novo e de novo,
mas não importa, não vai durar. — Nunca amei ninguém tanto quanto
eu te amo. Nem nunca vou amar — diz ela simplesmente, com os
olhos cheios de lágrimas. — Eu fiz tudo errado se não demonstrei isso.
Porque é tão verdadeiro… é a coisa mais verdadeira do mundo.
Ele pisca. Suas feições ondulam para um ar triste, como uma pedra
arremessada num lago.
— Obrigado — diz ele. — É só… sabe como é…
— Eu sei — diz Jen. — Eu sei.
— Obrigado — repete ele.
— Não tem de quê — diz ela baixinho, assim que Kelly aparece.
— Comi todos os frangos, porque esse último também é meu — diz
Todd rindo.
A piada é uma fachada, uma armadura para impedir que o outro
integrante da família testemunhe o momento particular dos dois, mas
Jen ri com ele mesmo assim, embora sua vontade seja de chorar.
— Era um cliente — comenta Kelly, sem que ninguém tenha
perguntado.
Jen olha de novo para Todd. Ele coloca o último frango na boca e
sorri para ela com os olhos. Ela estende a mão para mexer no cabelo
dele, e ele se aproxima do seu toque feito um bichinho carente.
Todd joga o pote de plástico direto no lixo, sem lavar, algo de que
em geral ela reclamaria, mas, desta vez, resolve não dizer nada.
— Hoje você vai fazer o quê? — pergunta Jen a ele.
— Sinuca. — Ele manda um beijo estalado com a ponta dos dedos
para ela.
Jen assente depressa.
— Divirta-se. — Então acrescenta: — Vou sair também hoje. Vou a
um bar com a Pauline.
— Ah, é? — pergunta Kelly, surpreso.
— É, eu te avisei. — Mentira. — Aonde você vai exatamente? —
pergunta a Todd, torcendo para soar apenas curiosa.
— Crosby.
Ela sorri para ele. Porque a verdade é que, aonde quer que ele vá, ela
vai estar lá também.
Todd entra no carro, liga o motor e vai embora, deixando Jen sozinha
no banheiro escuro, com os joelhos molhados pela água empoçada na
bancada.
Te vejo em casa.
A pessoa do outro lado da linha é Kelly.
Pergunta pra Nicola.
É o Kelly que conhece a Nicola. E não o Todd. O Todd não estava
fingindo quando foi apresentado a ela.
Quase liguei pro seu celular secreto.
O celular pré-pago é do Kelly. Foi o Kelly que mandou a mensagem
para a Nicola.
Jen bebeu vinho demais para dirigir, então vai a pé para casa. São nove
e pouco da noite ainda. Ela caminha pela calçada, fitando a casa
iluminada mais adiante e pensando no marido, para quem falou que ia
ficar trabalhando até mais tarde.
Ela é uma advogada especializada em divórcio, pensa ela,
melancolicamente, e, no entanto, não percebeu que ela mesma estava
sendo traída. Não previu que isso pudesse acontecer. Nem de longe.
Tenta reorganizar os eventos, sabendo o que sabe agora. O vinho
ajudou a relaxar a cabeça um pouco. Na noite fria, seus pensamentos
parecem maleáveis e livres. Pela primeira vez, ela se sente uma pessoa
de cabeça aberta, e não neurótica e de mente fechada.
O celular pré-pago é de Kelly. Então o cartaz do bebê desaparecido e
o distintivo policial também devem ser dele. Mas por que estavam no
quarto do Todd?
Ao se aproximar de casa, ouve vozes. Estão vindo de fora, de algum
lugar ao ar livre. Estão altas demais para virem de dentro da casa. Ela
para junto do carro de Kelly. O carro está quente. Ela pousa a mão no
capô: acabou de ser desligado.
As vozes pertencem ao marido e ao filho dela, exatamente em quem
estava pensando, e eles estão gritando, nervosos.
Estão no jardim nos fundos da casa. Jen corre em silêncio até o
portão. Para ali, com o dedo no trinco gelado, totalmente sóbria de
repente.
— Por que você me contou isso? — pergunta Todd.
Jen fica perturbada ao perceber que a voz dele está permeada de
pânico e lágrimas.
— Porque eu tenho que te pedir uma coisa — responde Kelly. — Tá
legal? Eu não teria dito se não fosse por isso.
— O quê?
— Você tem que terminar com a Clio.
— O quê?
— Você precisa terminar com ela — continua Kelly. — Eu posso
pedir ajuda pra Nicola, mas você não pode continuar vendo a Clio.
Considerando isso tudo.
Jen sente o estômago revirar. De repente, fica enjoada, e não tem
nada a ver com a bebida.
— Isso vai despertar ainda mais suspeita — argumenta Todd. — Sem
falar que vai partir a merda do meu coração.
Jen sente as pernas falhando. A dor, a dor, a dor na voz do seu bebê.
— Me desculpa — diz Kelly. — É sério, eu… me desculpa, me
desculpa. Por favor, quantas vezes eu posso pedir perdão?
— É a coisa mais escrota que já me aconteceu na vida — diz Todd.
Só que ele não diz essa frase: ela sai num grito. Um grito angustiado.
Um barulho seco, talvez um murro, numa mesa.
— Eu tentei! — diz Kelly.
Foram poucas as vezes que Jen testemunhou esse lado dele. Uma vez
foi na delegacia, depois de Todd ser preso. Não é de admirar. Ele
estava tentando evitar que algo acontecesse. E, obviamente, não
conseguiu.
— Eu tentei tanto. Ou o Joseph já sabe ou está prestes a descobrir,
Todd, e a gente tem que se distanciar dele. Sem que ele saiba o
motivo.
— E que se foda quem é da sua família, né? — devolve Todd. — Eu.
— Jen pensa em como Clio não quis discutir o fim da relação com ela
e se pergunta se, de alguma forma, Todd contou para Clio algo dessa
conversa. Algo que não deveria ter contado.
— É — diz Kelly baixinho, e a vontade de Jen é sair de onde está,
sozinha e com frio naquele portão, e sacudir o marido. Foi uma
pergunta retórica, ela diria. Todd não estava esperando uma resposta,
seu idiota.
— Não existe nenhum indício de que ele sabe — argumenta Todd.
— No instante em que ele descobrir, ele vai vir aqui, e vai…
— Isso é só uma hipótese. Não acredito que você me envolveu nisso.
Mentiras? Bebês sequestrados?
Jen fica imóvel, o corpo inteiro arrepiado. O bebê.
— É isso, ou coisa muito, muito pior — diz Kelly com um tom
sombrio na voz.
— Isso, protege esse segredo a todo custo. Coloca seu filho e o
primeiro amor da vida dele na cadeia! — exclama Todd.
Jen ouve a porta dos fundos batendo. E pés subindo a escada dentro
de casa.
Ela permanece junto ao portão, tentando respirar.
De nada adianta perguntar a eles. Está na cara que vão mentir. E está
na cara também que há um segredo que os dois compartilham e que
vão fazer de tudo para preservar. Vão fazer qualquer coisa, menos
contar para ela.
No ar frio da noite, três semanas antes de seu filho se tornar um
assassino, Jen ouve o marido chorando no jardim de casa, seus soluços
ficando mais baixos, como um animal ferido morrendo lentamente.
Dia Menos Quarenta e Sete,
08:30
Muita coisa pode acontecer em três semanas. É o maior salto para trás
até agora.
São oito e meia da manhã do Dia Menos Quarenta e Sete. Quase
sete semanas no passado.
Ao descer a escada, Jen para na janela da frente. A rua está
completamente diferente. Aquele tom de sépia amarronzado do fim
do verão, a grama ressecada pela falta de chuva. A brisa em seus
braços é quente. Ela se pergunta o que Andy acharia disso.
Foi dormir na noite passada com Kelly. Ele fingiu muito bem que
estava tudo normal. Jamais saberia que alguma coisa tinha acontecido
se não tivesse entreouvido a conversa.
Kelly se deitou na cama deles, com as mãos atrás da cabeça, os
cotovelos apontados para fora. Uma caricatura do marido
descontraído.
— Tudo bem no trabalho? — perguntou.
— Um monte de documentos. O que você fez hoje?
— O de sempre — respondeu ele. — Tomei banho, jantei, uma noite
emocionante.
Ela lembra que ele deu a mesma resposta da outra vez. Tinha achado
que Kelly estava sendo sarcástico, mas havia uma espécie de fúria
trêmula em suas palavras. Um homem que havia perdido o controle
da situação.
Foi dormir ao seu lado, seu marido, o traidor, porque não sabia mais
o que fazer. Ele a abraçou, como sempre fazia, com o corpo quente.
Assim que ele pegou no sono, ela fitou a pele dos braços dele. A pele
dele — assim como a dela — não parecia diferente, mas ele era feito
de algo diferente do que ela havia imaginado.
E agora estava quarenta e sete dias no passado. Está se sentindo
totalmente perdida de novo, como nos primeiros dias. Está de esmalte
rosa nas unhas dos pés, o que lembra de ter feito em meados de agosto
para aproveitar os últimos dias quentes em que poderia usar chinelo.
Está em meados de setembro. E o que ela sabe? Kelly acha que
Joseph vai descobrir alguma coisa, então pediu para Todd parar de sair
com Clio. Ele para, mas então eles voltam a namorar. Kelly pede ajuda
a Nicola Williams. Nicola é ferida, então Joseph aparece, e Todd o
mata.
Jen sabe mais do que antes, mas, de muitas maneiras, parece que
sabe menos, de tão confusa que é a situação. A campainha toca,
interrompendo seus pensamentos.
Verifica o dia de novo. Certo — é o primeiro dia de aula, o primeiro
de Todd no último ano de escola. Ela tenta voltar à ação.
— Quem é? — pergunta ela.
— É a Clio! — responde Todd.
Jen se afasta da janela e volta para o quarto. Isso aconteceu da outra
vez? Às oito e meia da manhã… ela já tinha saído. Roupa de trabalho,
sapato, um típico dia de semana, café com leite na mão, os divórcios
esperando por ela. Mas ali, no âmago da sua vida familiar, há um
segredo. No instante em que ele descobrir, vai vir aqui. Foi o que Kelly
falou.
— Deixa que eu atendo! — exclama Jen.
Mesmo estando com um short de grávida velho e esfarrapado (puta
merda, não podia ter colocado nada melhorzinho pra dormir lá em
setembro?) e uma camisa de malha fina através da qual com certeza
deve dar para ver seus seios, ela vai atender àquela porta. Veste um
roupão e desce a escada de dois em dois degraus.
— Oi — diz Clio.
E aqui está ela. A mulher por quem seu filho se apaixonou, com
quem ele termina o namoro e com quem volta a namorar. A mulher
de quem o pai dele o obrigou a se afastar. A mulher que obviamente
está no centro de tudo.
Jen não sabe o que perguntar primeiro.
— Você é a Jen, não é? — diz Clio e estende a mão (muito educada)
para cumprimentá-la. Seus dedos são compridos e estão queimados de
sol, o aperto de mão é meio fraco, a pele seca, mas macia, ainda com
textura de criança. Tirando isso, continua igualzinha em outubro. A
franja, os olhos enormes, a parte branca do olho com um brilho
saudável.
— Sim, é um prazer te conhecer — diz Jen.
— Minhas aulas só começam amanhã, mas prometi ao Todd que ia
andar com ele — explica Clio.
— Isso é o bastante — diz Todd.
Está com a mochila nos ombros, exatamente como quando tinha 5,
8, 12 anos de idade. Também está queimado de sol. Parece muito mais
saudável do que em outubro. Menos sobrecarregado. Jen não consegue
parar de olhar para ele, pensando em suas lágrimas na noite anterior,
na sua fúria. Uma discussão explosiva, e agora isto: um imenso salto
para trás. O que significa isso?
Kelly aparece da cozinha, mas para ao ver Jen.
— Tá de folga no trabalho? — pergunta ele a ela. — Não quis te
acordar…
— Acho que peguei algum vírus — responde ela, de improviso. —
Desliguei o alarme. Minha garganta está me matando.
— Fica em casa. Fodam-se os advogados — diz Kelly.
— Um surpreendente exemplo de falta de ética profissional por
parte do papai aqui — diz Todd, narrando a cena.
Kelly se volta para Todd.
— Enfia a cara no trabalho e, um dia, você também vai poder tirar
uma folga — devolve ele.
Não é essa frase que faz Jen parar e desejar poder apertar um botão
de pausa para assimilar o momento. É o olhar que se passa entre Kelly
e Todd. Afeto puro. Não há nenhuma farpa ali. Seus olhos estão
brilhando.
Qual foi a última vez que viu os dois interagirem assim? Não se
lembra.
Todd estende a mão para empurrar o pai de lado, um empurrão de
brincadeira. Jen observa os dois.
Durante toda a sua carreira, ela sempre procurou tanto pela ausência
de coisas quanto pela presença delas. As provas muitas vezes estão no
que as pessoas não dizem. No que elas omitem. O homem que frauda
a própria contabilidade tentando esconder um lucro pessoal enorme
em vinte e cinco caixas de documentos que espera que os advogados
não se deem o trabalho de analisar.
Mas ela deixou de perceber algo em casa. A falta dessa interação
descontraída. Uma pista em si mesma.
Foi por isso que voltou a este dia, pensa. Para observar o contraste. A
discussão que ela ouviu do portão mudou algo para eles, criou uma
ruptura. E aqui está ela, antes disso. E as coisas não parecem
completamente diferentes?
— Enfim, prazer em te conhecer — diz Clio para Jen enquanto Todd
a arrasta para fora de casa. — Muito bom te ver de novo — acrescenta
ela, olhando para Kelly.
E é essa frase que faz Jen desviar os olhos de Clio para fitar Kelly.
Seus olhos encontram os do marido assim que Todd fecha a porta
atrás de si. Ela não ouve o barulho do carro dele: os dois devem ter ido
a pé para aproveitar o dia de sol.
— Muito bom te ver de novo? — pergunta ela.
— Hein?
Ele deu as costas para ela e está indo até a cozinha. Ela segura o
braço dele. É uma pergunta válida. É uma pergunta perfeitamente
válida, pensa consigo: por que Clio diria aquilo para ele? Mas por que
sente a necessidade de questioná-lo? Ela para. Porque seu marido pode
ser evasivo às vezes, vem a resposta de algum lugar em seu âmago.
— Você já conhecia a Clio?
— Já, ela veio almoçar com o Todd outro dia.
— Ah, é?
— Só interagi com ela por uns cinco minutos. Acho que fiz todo um
interrogatório — comenta ele, com um sorriso encantador. Dá para
ver que está pensando rápido.
— Você não falou nada. Não chegou a comentar que já conhecia ela.
Kelly dá de ombros num gesto lacônico.
— Não achei que fosse importante.
— Mas você sabia que seria importante pra mim — continua ela.
Raramente desafia o marido dessa forma. Ela sempre quis ser… sei lá.
Descontraída. Uma pessoa fácil de conviver. — Você sabe que eu
estava curiosa pra saber como ela é.
Quase acrescenta que sabe que ele conhece o amigo do tio dela. E
que depois ele vai pedir ao Todd para terminar com ela, mas acaba
guardando isso para si. Ele vai continuar mentindo.
— Ela é legal — diz ele.
Quanto mais ela o pressiona, mais ele se esquiva. Nunca tinha
notado isso antes, essa agilidade dele nas respostas. Respondendo a
uma pergunta diferente. Respondendo à pergunta original. Ele vai até
a cozinha e abre uma lata de Coca-Cola. O barulho parece um tiro, o
que a faz dar um pulo.
Duas horas depois, Jen está fazendo ioga pela primeira vez na vida,
uma versão grotesca da postura do cachorro olhando para baixo, no
carro de Kelly, a cabeça sob os bancos, a bunda apontando para a
janela do vizinho — pelo menos é a impressão que dá.
Ela precisa encontrar o celular pré-pago de novo, aquele que ela
agora acha que pertence a Kelly. Quer usar o telefone para ligar para
Nicola.
Então é isso que está fazendo enquanto ele não volta da corrida.
Mas não tem nada no carro dele. Alguns copos descartáveis de café
velhos, um macaco mecânico, uma garrafa fechada de Sprite.
Curiosamente, fica feliz que ele não tenha escondido o celular ali,
debaixo do banco ou com o estepe no porta-malas. Kelly não tem
nada de clichê, e ela gosta disso, de ele não estar se comportando
como todo homem desonesto que veio antes dele. É como se ela ainda
o conhecesse, em meio a toda aquela confusão.
Ela balança a cabeça e volta para casa, onde continua a busca. Bolsas
de ferramentas, o armário dos fundos, casacos velhos. Em todos os
cantos.
Quando ele chega, ela interrompe a busca abruptamente e tenta
arrumar um pouco da bagunça que fez. Enquanto ele toma banho, ela
pega o celular normal dele e habilita o recurso Buscar meu iPhone,
para poder acompanhar a localização dele. Vai ter de fazer isso todo
dia de manhã, porque está voltando no tempo, mas não importa. Vai
fazer o que for preciso.
Faltam cinco minutos para as oito da noite. Kelly e Jen ainda não
jantaram. Jen está tentando ganhar tempo, esperando para confrontar
Kelly sobre… bom, sobre tudo, na verdade. Está só pensando em
como começar.
Todd está lá em cima jogando Xbox. Jen ouve os barulhos do jogo
como se houvesse uma tempestade de relâmpagos e trovões na cabeça
deles.
— Você às vezes tem medo de que ele esteja ficando meio…
isolado? — pergunta ela. Está sentada numa das banquetas da cozinha,
e Kelly está com os cotovelos apoiados na bancada, olhando para ela.
— Não, de jeito nenhum — diz ele. — Eu era igualzinho nessa idade.
— Você jogava no computador?
— Bom… você sabe, né? Odeio ter que te contar isso, mas ele deve
estar num site pornô. — Kelly ergue as mãos espalmadas para ela.
É tão fácil. Como pode ser tão fácil interagir com ele assim, esse
bom humor que eles compartilham? No primeiro encontro oficial
deles, Kelly estava tão quieto, tão reservado, mas, no fim do dia, ele a
tinha feito rir tanto que acabaram juntos na cama.
— Como assim… enquanto a guerra come solta no Call of Duty?
— Lógico. O fone de ouvido é para o pornô. O Call of Duty é só
fachada. — Ele levanta e se vira para os armários da cozinha, abrindo e
fechando as portas com indiferença. — Acabou a comida.
— Perdi a fome.
— Ah, para com isso. É perfeitamente natural, Jennifer.
— O quê? Ficar vendo mulher com peito falso fingir orgasmo?
— Me ensinou muita coisa. — Kelly se vira para ela, levantando uma
das sobrancelhas, e, apesar de tudo, apesar de tudo, de absolutamente
tudo, Jen sente um frio na barriga. Aquele olhar provocante, só para
ela. Ele é um bom marido, ou assim ela achava. Não é exatamente
ambicioso, parece um pouco insatisfeito às vezes, mas é interessante,
complexo, sexy. Não foi isso que ela sempre quis? — Eu bem que
podia comer um curry indiano — continua ele, obviamente pensando
em comida enquanto ela está desconstruindo o casamento deles na
cabeça.
Ela ouve um celular vibrando. O tipo de barulho que normalmente
não notaria, de tão comum que é em sua casa. Kelly leva a mão
inconscientemente ao bolso da frente, mas, quando vira de costas para
ela, Jen vê o iPhone dele no bolso traseiro. Ela o observa com atenção.
Dois telefones. Os dois com ele. Ela jamais teria notado isso. Por que
notaria? O pré-pago é pequeno feito uma pedrinha. A calça jeans dele
é larga, de gancho baixo, sempre foi.
Jen ergue a cabeça para ele, analisando-o.
— Pode ser — diz.
O restaurante indiano onde eles costumam comprar comida para
viagem fica a umas três ruas da casa deles. Eles adoram o lugar,
embora seja caro (talvez por causa disso). É todo revestido de
madeira, como uma cabana na floresta, e tem uma iluminação linda.
Jen e Kelly dizem que nunca vão poder comer lá porque os garçons já
os viram várias vezes buscando o pedido com roupa de casa (ou seja,
de pijama).
— Eu compro — diz ele.
É, foi isso mesmo que aconteceu, não foi? Ele saiu e voltou cheio de
sacolas com um cheiro maravilhoso de comida indiana. Ele demorou
mais que o normal para voltar? Ela acha que não. Nossa, nem tudo é a
porra de uma pista, é?
— Eu vou com você.
— Não. Deixa comigo. Fica aí e descansa. Assiste a um pornô — diz
ele, por cima do ombro, saindo da cozinha.
Ela ouve a risada dele ao abrir a porta da frente. Como se nada de
mais estivesse acontecendo.
— Certo, Ryan — diz Leo uma hora depois. — Foi mal pela demora.
Estava pedindo autorização para mais trabalho infiltrado. — Ele dá um
gole no café.
Ryan queria muito um café. Está tão cansado. Tem a sensação de que
o fato de estar gostando tanto do café da delegacia vai fazer com que
comece a tomar café em copo de plástico em casa também.
— Pra onde eles vão levar a bebê? — pergunta Leo a Ryan. — Na
sua opinião.
— Pro lugar mais fácil. Não devem estar nem aí para o que vai
acontecer com ela. Com a bebê.
— Certo… então… para o porto?
— Eles vão terminar o trabalho, seja qual for. Essa é a prioridade
deles. Talvez abandonem a bebê em algum lugar no meio do caminho.
Eles não vão pegar estrada grande nem rodovia nenhuma por causa
das câmeras do sistema de reconhecimento de placas. Vão pegar
alguma estradinha rural. Pelo menos é o que o meu irmão faria — diz
Ryan, sentindo como se as palavras fossem uma traição. Seu irmão
mais velho. Ele sempre protegera Ryan, por assim dizer, mas olha só
para ele agora. — “A federal tá sempre de olho”, ele dizia.
— Você é um trunfo — comenta Leo. — Por causa do seu irmão.
Sabia?
Ryan dá de ombros, envergonhado.
— Quer dizer…
— Não precisa de modéstia — diz Leo. Ele se levanta da cadeira. —
Minha questão é a seguinte: você sabe dessas coisas e, no entanto, está
aqui. Você cresceu lá… — ele aponta para fora com a mão esquerda
— …e você chegou aqui.
— Obrigado — diz Ryan com a voz grave. — É só que… de certa
forma, Kelly me ensinou muita coisa. Acho que os melhores
criminosos sempre fazem isso.
Dia Menos Sessenta,
08:00
— Bom dia, linda — diz Kelly. Ele aparece no quarto só de cueca. Jen
leva um susto.
Seria capaz de gritar. Da última vez que esteve com ele, ela o deixou
no meio da rua. Uma discussão. Uma esquina escura e sombria,
traições, crimes. E aqui está ela — treze dias antes disso —, acordando
sonolenta com ele a cumprimentando com uma expressão tão calorosa
no rosto quanto o sol de agosto lá fora.
— Bom dia — murmura ela, porque não sabe o que fazer.
Carros roubados, bebês desaparecidos, policiais mortos, não vai atrás
do Joseph Jones, para de investigar esse bebê. Os gritos angustiados do
filho no jardim da casa deles.
E agora, isso. Kelly, aqui, sem camisa, sorrindo para ela.
Ele, que não deixa passar nada, para de se vestir, com a calça jeans
no meio das coxas, e pergunta para ela:
— O que foi?
— Não, nada. Preciso ir cedo pro trabalho. Hoje é dia do rodízio de
estagiários — diz ela, um fato do qual nem se lembrava até dizer em
voz alta.
O poder do inconsciente. Ela soube de cara, depois de vinte anos
trabalhando como advogada, no instante em que viu a data, que era o
dia do rodízio de estagiários.
E o que mais ela sabe?
Todd aparece no quarto deles também e… minha nossa. Os detalhes
que você nem percebe quando mora com uma pessoa em fase de
crescimento. Ele parece uns dois centímetros mais baixo do que em
outubro. Menos musculoso também, no tórax. Ele pega um vidro de
perfume da cômoda de Jen e cheira. Kelly veste uma camisa de malha.
— Você está com uma aparência de doida — comenta Todd,
impassível, para Jen. — Coitado do estagiário.
Jen dá um tapa nele, mas só de brincadeira. Poderia ficar ali para
sempre com ele. E com o marido também, admite, envergonhada. Por
ela, parava tudo naquele exato instante. Todd cheirando aquele vidro
de perfume. Kelly com a cabeça saindo pela gola da camisa de malha.
E andaria em volta deles como se fossem estátuas. Amando-os,
simplesmente amando-os, sem nunca avançar para a escuridão e para
as mentiras que os esperam, ficando ali, em sua feliz ignorância.
Enquanto toma o café da manhã, Jen verifica o celular de Kelly,
habilitando o recurso de rastreamento de novo, disfarçadamente,
quando ele sai de perto.
Assim que a vê, Joseph se vira para ela no carpete claro do saguão.
Atrás do balcão da recepção há um letreiro com a palavra EAGLES,
tudo em maiúsculas. As luzes — que têm temporizador — se
apagaram, exceto por uma única, que ilumina apenas ele.
— Tô procurando o Kelly — anuncia ele.
Jen faz uma pausa, diminuindo o passo enquanto anda até ele.
— Kelly Brotherhood? — pergunta ela.
Quando seus olhos encontram os dela, algo parece irromper em suas
feições, mas Jen não sabe definir bem o quê. Ele é mais velho do que
ela achou naquela primeira noite e na noite em que o viu na Eshe
Road North. Deve ter mais de cinquenta anos. Tem os dedos tatuados.
O olhar duro e determinado. Uma linguagem corporal de quem está
em alerta, como um gato prestes a atacar. Ágil.
— É. — Ele ergue ambas as mãos. — Sou um velho amigo dele.
A frase provoca em Jen uma sensação física de arrepio na espinha.
Joseph passou vinte anos preso. Então deve conhecer Kelly de antes
disso.
— Que tipo de amigo? — Jen não resiste e pergunta. Mas, por
dentro, está pensando que Joseph também a conhece. Ele sabia que
deveria procurar Kelly no escritório de advocacia dela.
Joseph sorri para ela, mas é um sorriso rápido demais para ser
genuíno.
— Um amigo importante.
— Estou surpresa por você ter vindo procurar o Kelly aqui —
comenta ela.
— Andei fora um tempo. Não importa. Queria recomeçar uma
coisa.
Ele se afasta dela. Está com uma camisa de malha branca de material
fino e barato, e, por baixo, Jen pode ver uma tatuagem cobrindo as
costas inteiras: as asas de um anjo ocupando as omoplatas.
— Recomeçar o quê? — pergunta ela, mas ele a ignora e vai embora,
deixando a porta se fechar lentamente atrás de si.
Jen pousa as mãos no balcão da recepção, tentando respirar, tentando
pensar. Joseph foi solto há pouquíssimos dias. E, olha só: ele foi até ali
quase que imediatamente. Neste dia isolado desta estranha segunda
chance na vida, fica óbvio para Jen que a saída de Joseph Jones da
prisão desencadeou alguma coisa. Em algum lugar no futuro, num
tempo que ela não pode alcançar agora, por mais que tente. Algo que
envolve quase todo mundo que ela conhece. Todd, Kelly e agora ela
também, claro: pois por que mais ele apareceria na Eagles? Um elenco
abominável de dramatis personae. Uma lista de traições.
Dia Menos Cento e Cinco,
08:55
Ryan está fazendo flexão de braço numa sala de estar com o chão sujo.
Chumaços de poeira ficam grudando na palma das suas mãos. Está
fazendo exercício por dois motivos: um, porque não pode mais ir à
academia, e dois, porque não consegue, não consegue, não consegue
de jeito nenhum tirar a bebê desaparecida da cabeça.
Além da academia, Ryan não pode fazer mais nada do que
costumava fazer. Não pode visitar a família. Não pode sair com os
amigos. Não pode nem voltar ao antigo domicílio…
Foi tudo tão rápido.
Ele se mudou para aquela quitinete em Wallasey na noite anterior.
Agora vai morar ali, comer ali, dormir ali. São dois cômodos: um
banheiro e todo o restante num espaço só. Bem econômico, pensa ele.
Um sofá que vira cama. Uma fileira de armários de cozinha na parede
do outro lado. Uma televisão, um telefone fixo. De que mais ele
poderia precisar? Não se importa. É emocionante. E, melhor ainda, é
provisório.
Chegou ali à uma da madrugada, tomando o cuidado de não ser
seguido, e entrou no apartamento com a chave que recebera na
delegacia. Ao tirar a mochila do ombro e pousá-la no carpete sujo, deu
um suspiro e pensou: Cheguei.
Leo finalmente disse com todas as letras, na salinha dele, outro dia:
“Queremos que você se infiltre nesse grupo, Ry, agora”, anunciou Leo.
“Hoje.” Ele manteve contato visual, sem desviar os olhos ou piscar por
nem um milésimo de segundo, nada. “A lenda que criamos é… bem. É
você.” Ryan concordou, engolindo em seco.
Ficou tudo às claras. Bem ali. O quadro de cortiça. O quadro de
cortiça foi sua porta de entrada. Todas as perguntas sobre sua história,
seu irmão, o que ele sabia…
Era o que queria, tentou dizer a si mesmo. Queria uma carreira
interessante. Mas — uau — agente infiltrado. Interceptar uma gangue.
De repente, ele queria detalhes sobre a taxa de mortalidade de
policiais infiltrados. As probabilidades. Que chances ele tinha.
“Sabe, você não fala que nem um policial”, disse Leo. E então
acrescentou: “Era isso que nós queríamos.”
Ryan assentiu, sem saber se deveria rir ou chorar.
Meu Deus, então era um candidato a agente infiltrado porque não
tinha nada de policial? Tinha até se enrolado com o alfabeto
internacional. Ryan mordeu o lábio. Uma tristeza se abateu sobre ele,
como se tivesse engolido uma bebida quente e melancólica.
“Quer dizer, um policial diria: Cavaleiro, onde posso obter cocaína de
qualidade, por obséquio? Enquanto você ia dizer: Tem coca da boa,
parceiro?” Ryan soltou uma gargalhada. “Você entendeu. Exagerei só
pra fazer graça. Mas você é muito bom em conseguir informações.
Aquele quadro de cortiça. Ficou demais”, acrescentou Leo, animado. E
Ryan agradeceu.
Agora Ryan vai ser apresentado ao GCO por uma colega que já está
infiltrada, o contato deles lá dentro.
O celular dele toca.
— Tudo certo? — pergunta Leo.
— É, acho que sim.
Ele fita o espaço frio lá fora. Já está no finzinho do inverno agora. As
árvores foram reduzidas a algo como bonecos feitos de palitinhos. Um
céu branco e desolador, sem o menor traço de cor. Um clima
medíocre, não dá vontade de fazer nada; sem sol, sem chuva, nada.
— Lembra, três conselhos pra você.
— Ahn? — Ryan volta-se para a sala de estar novamente.
— Um: nunca saia do personagem, mesmo se você achar que alguém
te descobriu. É melhor as pessoas suspeitarem que você é policial do
que você confirmar isso.
— Certo.
Ryan engole em seco. Está nervoso. Isso ele pode admitir. Ficar
infiltrado pode até ser uma tiração de onda e tal, mas… e se eles
descobrirem? E se eles se prepararem para a emboscada, e ele estragar
tudo?
— Dois: os bandidos sempre suspeitam do esquadrão antidrogas.
Você também deve suspeitar. Você tem que ficar muito ofendido se te
acusarem de ser da polícia, e tem que acusar os outros também.
— Pode deixar. Por mim, tá tranquilo — responde Ryan com
sinceridade.
Eles o estão mandando para os altos escalões, para tentar se infiltrar
com as pessoas que dão a dica para a gangue de que as casas vão estar
vazias. Não na rede das drogas, mas na rede de roubo.
— Três: nunca abra o bico pra ninguém.
— Entendido. Quer dizer, esse devia ser o número um — diz Ryan.
Leo dá uma gargalhada alta, que deixa Ryan feliz e animado.
Ryan está com o celular na mão, com uma mensagem de texto que ele
verifica várias vezes: Cross Street, no 2. Está todo de preto, como lhe foi
instruído.
A mensagem chegou bem na hora que o contato deles dentro da
gangue, Angela, disse que chegaria. De um número privado. E o que
eles estão tentando descobrir é quem arruma os endereços, e como.
Ryan não tinha visto Angela antes desse trabalho, como é o
protocolo da polícia: ninguém fica conhecendo nenhum agente
infiltrado na ativa. Angela está há quatro meses trabalhando para se
inteirar do braço da gangue envolvido nos roubos, e fez um bom
trabalho até agora. Já roubou quatro carros e foi apresentada a Ezra no
porto. Nesse meio-tempo, não colocou os pés na delegacia nem uma
vez, para que ninguém a visse.
Faz algumas noites que ele a conheceu, com a ajuda a distância de
Leo. Eles trocaram algumas palavras na porta de uma lojinha de
conveniência. Angela é organizada e séria, não acha graça das piadas
dele, como se elas a incomodassem. Apresentou Ryan, o “primo” dela
e um “ladrão experiente”, para a gangue ontem, para ganhar pontos
com eles, mas também para tentar colocar Ryan bem alto na
hierarquia da quadrilha. Para conhecer a pessoa por trás das
informações, em vez de só os soldados rasos.
E a primeira tarefa que Ryan tem de fazer para provar o seu valor é a
seguinte: ir até o endereço da mensagem e roubar o carro.
Tão fácil, mas ao mesmo tempo tão difícil.
Já passa das duas da manhã. A lua está cheia, uma bola luminosa
arremessada no céu, que fica lá em cima durante a noite antes de cair
de novo.
A casa diante dele está silenciosa. Os donos estão viajando, foram
para o Lake District. A luz do corredor é a única acesa; e obviamente
tem um temporizador. Se isso já não os denunciasse, o gramado da
frente está descuidado: um claro indício de que os moradores estão de
férias.
Ryan nem pensa no que está fazendo. Apenas segue em frente. Abre
a tampa do buraco de cartas na porta da frente. Está com sorte: este
vai ser fácil, as chaves foram deixadas bem ao alcance. Ele saca da
vareta preta comprida, pesca as chaves e guarda no bolso. Abre o carro
usando luvas, senta no banco do motorista e deixa o carro deslizar de
ré sem ligar o motor. Se a polícia achar o veículo e fizer uma perícia, a
equipe de agentes infiltrados vai revelar que se trata dele: esse é o
Ryan, na verdade. Um dos mocinhos; ele tem imunidade.
Numa rua escura próxima, ele dá início à tarefa seguinte. Está com
as mãos tremendo. Nunca trocou uma placa antes. A polícia presumiu
que ele saberia fazer isso, mas Ryan sempre foi péssimo em mecânica,
bricolagem, esse tipo de coisa. Não sabe o que encaixa onde. Deixa
dois parafusos minúsculos caírem, e eles rolam na rua, sumindo no
asfalto.
— Puta merda — exclama, ajoelhando-se para tentar encontrá-los
por tato.
Ele leva uns quarenta minutos para trocar a placa e corta a palma da
mão com a beirada da placa nova. Mas consegue terminar. Mais um
crime cometido.
Ryan dirige até o porto, onde fica esperando, como instruído, até que
Ezra esteja sozinho, então se aproxima dele, salta do carro e lhe
entrega as chaves.
— Maravilha — diz Ezra.
Bem ali, naquele porto frio, Ryan fraqueja por dentro. E se, e se, e se,
é tudo o que consegue pensar. E se Ezra se der conta de quem ele é.
Ryan pode não estar correndo o risco de ser preso, mas
definitivamente está correndo um puta risco de ser morto.
— Beleza — diz Ryan.
Sua mão está tremendo quando estica o braço para dar um tapinha
no ombro de Ezra. Disfarça, balança a mandíbula, um sintoma
comum de quem está sob efeito de cocaína. Deixa o Ezra pensar que
é isso, que ele está drogado, igual aos amigos do seu irmão.
Ryan olha para além de Ezra, para os navios de carga, os guindastes
coloridos em contraste com o céu noturno.
Ezra fita os seus olhos. Algo parece se passar entre os dois, mas Ryan
não sabe o quê. Seus joelhos começam a fraquejar, e ele disfarça
pulando de um pé para o outro.
— Primeira vez? — pergunta Ezra, com cuidado.
— É. Primeira de muitas.
Ryan balança nos calcanhares. Eles vão matá-lo. Não importa a
proteção policial, a casa segura onde vai se esconder se o disfarce for
descoberto: essa gente vai matar Ryan se o pegar. Para de pensar nisso.
Para.
— Fizemos quarenta esta semana — diz Ezra.
— Quarenta carros?
— Aham.
Uau. Ryan solta o ar pela boca. A coisa é maior do que ele
imaginava.
— Você machucou a mão? — pergunta Ezra.
— É, nada grave — diz Ryan. — Foi só a placa.
— Fiz a mesma coisa consertando uma coisa lá em casa! — comenta
Ezra, mostrando a própria mão.
— Rá — diz Ryan, com a mente girando.
— Passa um antisséptico — comenta Ezra casualmente, como se eles
fossem dois garotos, e não integrantes de uma quadrilha de crime
organizado.
Antisséptico é o caralho.
Dia Menos Quinhentos e Trinta e Um,
08:40
É maio, mas maio do ano anterior. Isso não está certo, a quantidade de
tempo que ela voltou. Tem que falar com Andy. Perguntar o que fazer.
Para parar. Para desacelerar.
Jen desce a escada e, só pela luz e pelo barulho da casa — Kelly
cozinhando, Todd tagarelando —, já sabe que é fim de semana. Ela
para no penúltimo degrau e fica ouvindo a conversa descontraída do
marido e do filho.
— Você quis dizer indiferente — diz Todd. — Desinteressado está
mais para imparcial.
— Ah, muito obrigado, Dicionário Oxford — exclama Kelly. — Mas
eu estava querendo dizer imparcial mesmo.
— Mentira! — devolve Todd, e os dois desatam a gargalhar.
Jen aparece na cozinha.
— Bom dia, linda — diz Kelly, descontraído.
Ele vira uma panqueca no ar. Parece uma cena tão normal. Mas…
aquela foto. Ele tem algum parente por aí, sobre o qual nunca falou
com ela.
Olhar para ele dói, é como olhar para um eclipse. Jen percebe que
está semicerrando os olhos.
— O que foi? — pergunta ele.
Seu olhar se volta para Todd. É uma criança, um garoto, um
adolescente. Os pés e as mãos enormes, as orelhas grandes, dentes
meio separados e que ainda não se assentaram direito. Quatro
espinhas. Nem um vestígio de pelo no rosto. Baixo.
Ela vai até onde Kelly está virando as panquecas.
— Então você estava dizendo que é imparcial ao meu jogo de
computador? — pergunta Todd a Kelly.
O cabelo preto de Kelly reflete a luz do sol enquanto ele coloca mais
massa de panqueca na frigideira.
— É, foi isso que eu quis dizer.
— Rá, duvido.
— Tá bem, tá bem — diz Kelly, levantando uma das mãos. —
Obrigado pela aula. Eu quis dizer indiferente. Seu merda.
Todd dá uma risadinha infantil para o pai.
— Pensa só… Você poderia ter dois de mim se tivesse tido outro
filho. Um duplo pé no saco — comenta Todd.
— É — responde Kelly, e algo antigo e sonhador perpassa por suas
feições só por um instante. Ele sempre quis ter outro filho.
— Você é mais que suficiente — diz Jen a Todd.
— Ei, somos todos filhos únicos — comenta Todd, pegando uma
banana e descascando. — Nunca tinha pensado nisso antes.
Jen observa Kelly com cuidado. É essa conversa? É para isso que ela
está aqui?
Ele não diz nada, ocupando-se na cozinha.
— Verdade — comenta ele, como quem não quer nada, depois de
um ou dois segundos.
Jen olha para o jardim. Maio. Maio de 2021. Não acredita. Os raios
do sol da manhã se afunilam, como uma luz divina. A velha casinha
que usam como depósito ainda está lá fora, a que tinham antes de
trocar pela menor e azul. Jen se pergunta se alguém mais poderia
distinguir entre dois maios só de olhar para como a luz ilumina a
grama.
— Certo, eu preciso de um banho — diz ela.
Jen sobe até o último andar, se senta bem no meio da cama de casal
e usa um telefone que teve há muito tempo para procurar pelo
número de Andy no Google e ligar para ele.
— Andy Vettese.
Jen explica a história de sempre um tanto apressada. As datas, as
conversas que eles já tiveram. Andy a acompanha do jeito dele, com
um silêncio um tanto misantrópico, mas que a Jen parece ávido. Ela
conta do Prêmio Penny Jameson no futuro dele. Ele diz que estava
sendo indicado.
Ele parece acreditar nela.
— Tá bem, Jen. Fala. O que você quer perguntar?
— É só que… eu voltei dezoito meses — diz ela, tentando trazer a
atenção dele de volta à questão.
— Os dias em que você acorda têm alguma coisa em comum?
— Às vezes… eu sempre aprendo alguma coisa. Mas… — Ela segura
o celular com o ombro e esfrega as mãos nas pernas. Está morrendo de
frio. Está com um esmalte bem velho, um tom de damasco que ela
adorava mas que não gosta mais. — Tem tantas coisas que já deveriam
ter funcionado para impedir o crime, mas não funcionaram.
— Talvez não seja uma questão de impedir o crime.
— Ahn?
— Você disse que ele é mau, não foi? Esse Joseph? Talvez não seja
uma questão de impedir que ele seja assassinado.
— Prossiga.
— Se você impede o crime, parece que tem um outro problema.
— Ahn?
— Talvez não seja uma questão de impedir, mas de entender. Aí
você pode defender seu filho. Compreende? Se você souber o porquê,
vai poder usar isso num tribunal.
As orelhas de Jen tremem quando ele termina de falar. Pode ser,
pode ser. Afinal de contas, ela é advogada.
— É. Por exemplo, se foi legítima defesa, ou provocação.
— Justamente.
Jen queria poder voltar ao Dia Zero, só uma vez, para ver tudo de
novo sabendo o que sabe agora.
— Não sei se te falei isso no futuro, mas eu sempre digo aos meus
aspirantes a viajantes no tempo a mesma coisa: se você procurar por
mim no passado, diz que sabe que o nome do meu amigo imaginário
na escola era George. Ninguém sabe disso. Quer dizer… tirando os
outros viajantes para quem já contei. Até agora ninguém voltou para
me dizer.
— Pode deixar — diz Jen, comovida pela revelação. Uma dica, um
atalho.
Ela agradece e se despede.
— Disponha — responde ele. — Até ontem.
Jen abre um sorriso fraco, desliga e fica pensando no dia de hoje. É
tudo o que tem, afinal.
Hoje. Maio de 2021.
Maio de 2021. Algo espreita em sua consciência, como uma névoa
fina no horizonte.
A lembrança a atinge como às vezes acontece com alguns
pensamentos. Sem aviso. Ela verifica o celular. É isso. É isso mesmo.
Hoje é dia 16 de maio.
É então que se dá conta.
Um golpe tão certeiro, tão violento que a faz perder
momentaneamente o equilíbrio: hoje é o dia que o pai dela vai morrer.
Jen finge resistir ao desejo de fazer isso. Não está voltando no tempo
para ver o pai, para corrigir um dos grandes erros da sua vida, diz a si
mesma enquanto escova o cabelo. Não está fazendo isso para se
despedir dele. Está aqui para salvar o filho.
Mas, durante a manhã inteira ela pensa naquela despedida no
necrotério, só ela e o corpo morto dele, a mão fria e seca junto à sua, a
alma dele em outro lugar.
Fica vendo Todd jogar Crash Team Races Nitro-Fueled — o jogo atual
deles —, mas não consegue parar de mexer com os dedos, e de cruzar
e descruzar as pernas. Por fim, Todd pergunta:
— O que foi?
E ela se afasta, deixando-o sozinho.
De pé no hall de entrada de casa, Jen pega o celular e dá uma busca
em Kelly no Google. Não encontra nada, nenhum rastro digital.
Coloca o sobrenome dele num site de árvores genealógicas, mas isso
gera centenas de resultados em todo o Reino Unido. Acha uma foto de
Kelly e faz uma busca reversa de imagens, mas nada aparece.
Sobe a escada. Kelly está fazendo as contas dele.
— A Microsoft está me maltratando — ele diz a ela.
Caneca de chá num porta-copos. Sorrisinho no rosto. Quando ela se
aproxima, ele gira o computador só o suficiente para ela não conseguir
ver. Mas, desta vez, ela vê. Não deve ter reparado da outra vez.
Talvez ele tenha outra fonte de renda em algum lugar. Drogas,
policiais mortos, crime. Ele tem mais dinheiro do que um
pintor/decorador deveria ter? Na verdade, não. Não muito, acha ela.
Nada que ela tenha reparado — e ela teria reparado, não? Uma
memória surge do nada. Kelly doando dinheiro para caridade há uns
dois anos. Uma quantia enorme, várias centenas de libras. Ele não
tinha contado para ela e, quando ela perguntou, ele explicou que era
uma doação anônima graças a um trabalho bom que tinha aparecido.
Jen ficou incomodada daquele jeito inexplicável que você fica quando
seu marido mente para você, mesmo sendo sobre uma coisa boa. Não
era uma mentira grande, mas, ainda assim, era uma mentira.
— Ei, uma pergunta estranha — diz ela, descontraída. — Mas você
tem algum parente vivo? Sei lá, um primo, de terceiro grau que seja…
Kelly franze a testa.
— Não. Meus pais eram filhos únicos — responde depressa.
— Nem um parente distante, de uma geração anterior, quem sabe?
— Não… Por quê?
— Eu me dei conta de que nunca tinha perguntado sobre a sua
família mais distante. E eu estou com uma… uma memória esquisita
de ter visto uma foto antiga sua. Você estava com um homem que
tinha os seus olhos. Ele era maior que você. Os mesmos olhos. Cabelo
mais claro.
Kelly parece ter uma reação de corpo inteiro à frase, e ele a disfarça
levantando-se abruptamente.
— Não faço ideia — diz. — Acho que não… e eu tenho alguma foto
antiga? Você sabe como eu sou. Insensível.
Jen assente, observando-o e pensando em como isso é mentira. Ele
não é nem um pouco insensível.
— Devo ter inventado — diz ela.
Eram só os olhos. Talvez seja um velho amigo no porta-retratos.
Jen fita aquelas íris azuis e, de repente, sente-se mais sozinha do que
nunca na vida. Ela deveria estar com 43 anos, mas, aqui, está com 42.
Deveria estar no outono, mas está numa primavera dezoito meses
antes disso. E o marido não é quem diz ser, não importa em que
tempo ela esteja.
E seu pai está vivo.
Seu pai, que a ama incondicionalmente, ainda que do jeito dele.
Embora Jen ache que precisa avaliar a forma como está criando o
próprio filho para conseguir salvá-lo, agora quer se voltar para a pessoa
que a criou.
— Vou visitar meu pai — diz.
A frase vem do nada. Não consegue resistir. Precisa sentir a mão
quente dele na sua. Precisa vê-lo servir a cerveja e os amendoins ao
lado dos quais vai morrer. Não vai demorar. Vai só… vai só dizer a ele
que o ama. E depois sair.
— Ah, legal — diz Kelly. — Divirta-se — diz ele enquanto ela desce
a escada depressa. — Fala pro seu pai que eu mandei um abraço.
Kelly e o pai dela sempre tiveram uma relação cordial, mas nunca
foram muito íntimos. Jen achou que talvez Kelly pudesse procurar
uma figura paterna, adotar o dela de bom grado, mas, na verdade, ele
fez o oposto e sempre manteve Ken a uma certa distância, do jeito
que faz com a maioria das pessoas.
Ela liga para o pai do carro, e parte de seu cérebro ainda acha que ele
não vai atender.
Mas ele atende, lógico. E é isso, acima de quase qualquer outra coisa,
que prova a Jen que tudo está mesmo acontecendo. De verdade.
— Que surpresa boa — diz ele.
E lá está o pai, do outro lado da linha. De volta do mundo dos
mortos. Aquela voz aristocrática, contida, mas suavizada pela idade.
Jen a recebe como um animal cativo que sente uma brisa depois de
muito, muito tempo.
— Tá ocupado hoje? Pensei em dar um pulo aí — diz Jen, a voz
embargada.
— Maravilha. Já estou botando a chaleira no fogo.
Ela fecha os olhos ao ouvir uma frase que já ouviu centenas de
milhares de vezes, mas não nos últimos dezoito longos meses.
— Certo — diz ela.
— Ótimo.
Ele parece feliz. Está sozinho, velho e morrendo também, embora
ainda não saiba disso.
Tudo que Jen sabe diz a ela que não deveria estar ali. Qualquer porra
de filme concordaria. Ela só deveria mudar coisas que podem evitar o
crime, não é isso? Não se empolgar demais, não ser tão egoísta a ponto
de tentar alterar outras coisas também. Brincar de Deus.
Mas não consegue resistir.
Seu pai mora numa casa vitoriana daquelas que exibem dois janelões
na frente, um de cada lado da porta, e que tem três andares, incluindo
o sótão revertido. Os janelões são de vidro duplo e a moldura é de
madeira escura. Uma casa antiquada, mas charmosa. Como o dono.
Ela o fita, maravilhada, enquanto ele dá um passo atrás, convidando-
a a entrar. Aquele braço. Encorpado, com sangue correndo nas veias,
conectado ao corpo vivo do pai.
— O que foi? — pergunta ele com uma expressão confusa no rosto.
— Ah, nada — diz ela. — É só… estou tendo um dia estranho, só
isso.
Depois que ficou viúvo, ele permaneceu na casa onde morava com a
mãe dela. Ele insistiu, e ela não tinha ninguém para ajudar a
convencê-lo a se mudar. A sina do filho único. Ele falou que não ia ter
problema com a escada, que ia continuar limpando a calha do telhado
ele mesmo. E, no fim das contas, não foi nem a calha nem a escada o
que o matou.
— Estranho como?
— Nada de mais — diz Jen, balançando a cabeça e seguindo-o por
um corredor que, agora que ela é adulta, parece menor.
Toda vez que volta ali, Jen tem uma sensação muito específica. Uma
espécie de nostalgia remota, coberta por uma fina película de poeira,
como se ela pudesse agarrar o passado caso se esforçasse o bastante. E
agora ali está ela, bem ali, na primavera do ano anterior ao que seu
filho se torna um assassino, no dia em que o pai morre, mas a sensação
não é essa.
— Tem certeza? — pergunta ele.
Ele olha para trás por um instante enquanto entram na antiga sala de
estar. Carpete verde-claro, muito bem aspirado, mas ainda assim
escurecido nas beiradas. Ela nunca tinha notado aquilo antes. Talvez
tenha herdado do pai seu desdém com o cuidado com a casa.
Um tapete cinza e redondo, com formas geométricas. Enfeites que
ele tem há décadas, em várias prateleiras de madeira escura acima de
lareiras e aquecedores.
Ele acende a luz da cozinha, embora ainda estejam na metade do
dia. Uma lâmpada tubular que emite um zumbido.
— Saiu o acordo de conciliação do caso Morris vs. Morris? —
pergunta ele, levantando as sobrancelhas.
— Hum… — hesita ela. É lógico que não lembra mais.
— Jen! Você falou que ia sair hoje!
Ela inclina a cabeça, olhando para ele. Isso. Tinha se esquecido disso.
No fim das contas, todas as irritações familiares não são engolidas pelo
luto? Naquela época, esse tipo de conversa a teria irritado, mas hoje
isso não acontece. Está só feliz de estar ali, em campo, e não banida
pela morte.
— Desculpa… estou cansada.
— Você tem quatro dias até eles mudarem de ideia — insiste ele.
De repente, em retrospecto, consegue ver exatamente de onde
vieram algumas inseguranças suas: dali. Em sua vida adulta, afastou-se
de pessoas como o seu pai, fez amizade com tipos misantropos, como
Rakesh e Pauline. Casou-se com Kelly. Com eles, ela pode ser quem é
de verdade.
— Eu sei… vai dar tudo certo. Vamos fechar o acordo na segunda —
diz ela.
— O que a cliente achou da proposta?
— Ah, não me lembro. — Ela faz um gesto displicente com a mão,
querendo encerrar a conversa.
Não era um mar de rosas, era, trabalhar com ele? Às vezes era difícil
assim. Seu pai, motivado, dedicado, atento aos detalhes. Jen, motivada
também, porém mais a ajudar as pessoas do que qualquer outra coisa.
Ela se lembra vividamente de participar de uma reunião importante
para um acordo de conciliação com o pai, que bufava alto toda vez
que ela não tinha um ou outro formulário. Ela ficou mandando um
monte de mensagens para Pauline com Meu pai é um babaca, e a
amiga respondia com emojis. Ela quase ri agora, de tão triste. Como
somos crianças diante de nossos pais.
— Desculpa… não estou dormindo bem ultimamente — diz ela,
fitando-o nos olhos. — Na segunda vou estar melhor. Prometo.
— Você parece… sei lá. Sim... está como estava quando o Todd era
bem pequeno, e você não conseguia descansar nunca.
Jen abre um meio sorriso.
— Eu me lembro daquele tempo.
— Quando a gente tem neném, dá pra dormir em qualquer canto, de
tão cansado que fica — comenta ele, saudoso. E, como se alguém
tivesse levantado um prisma diante de uma fonte de luz, ele exibe a
sua outra face. Seu pai sempre tinha sido competitivo, reprimido, mas,
no fim da vida, amolecera um pouco, passara a se permitir sentir, a
revelar uma versão mais afável de si mesmo; um avô melhor do que o
pai que foi. Eles tiveram tão pouco tempo juntos. — Quando você era
pequena, uma vez dormi esperando o sinal abrir.
— Não sabia disso — comenta ela.
Jen tem uma sensação estranha nas costas, como se alguém tivesse
aberto uma janela em algum lugar, deixando o ar frio entrar. O que ela
está fazendo ali? Não deveria estar fazendo isso. Descobrindo coisas
que nunca vai poder esquecer.
— Eu nunca te contei — explica ele. — A gente não quer que o filho
se sinta como um fardo. — Ele pronuncia a segunda frase com
evidente dificuldade, mordendo o lábio ao terminar de falar e olhando
para ela.
Eles estão de pé na sala de jantar, entre a sala de estar e a cozinha. A
luz lá fora está linda, iluminando um feixe de poeira diante da porta
do jardim.
— Não, eu sou igual com o Todd.
— Ter um bebê não é fácil. Ninguém te diz isso. — Seu pai dá de
ombros, aparentemente satisfeito por estar vivendo o que considera
ser um dia normal com a filha.
— Eu estava no carro com você?
— Não. Não! — exclama ele, com uma risada. — Eu estava indo pro
trabalho. Nossa, foi… foi uma loucura, aquele começo. Tinha dias em
que a minha vontade era ligar para as autoridades e dizer: Vocês têm
noção de como é difícil ter um recém-nascido?
— Eu achava que era a mamãe que fazia tudo.
Ele fica sério e faz que não com a cabeça.
— Sinto lhe informar, mas a pequena Jen dominava a casa inteira
com aqueles berros.
Ela pisca, observando-o andar até a cozinha, onde ele ferve no fogão
a água da chaleira, meticulosamente, como sempre fez. Cheia até a
borda — dane-se o planeta —, a tampa recolocada com cuidado pela
mão trêmula. Fazia muito tempo que não via aquela chaleira. Tem um
ano que eles venderam a casa. Ela não guardou quase nada.
A cozinha tem um cheiro de passado. De tanino e almíscar, um
cheiro de motorhome.
— Por que a falta de sono? — pergunta ele.
— Uma briga com o Kelly — responde ela, o que não deixa de ser
verdade. Jen faz um gesto com a mão, os olhos se enchendo de
lágrimas. Ainda está pensando no sinal de trânsito. Meu Deus, as
coisas que a gente faz pelos filhos.
Seu pai não diz nada, apenas permite que ela fale, ali, de pé no piso
velho de azulejo. Ela encontra os olhos dele, iguaizinhos aos dela.
Todd não tem nada desses olhos, esses olhos castanhos. Todd tem os
olhos do Kelly. É esse o tipo de coisa que você precisa aceitar quando
tem filhos com alguém.
— O que aconteceu? — pergunta ele. Não é algo que diria vinte
anos atrás.
A chaleira começa a borbulhar, tremendo de leve na boca do fogão.
Seu pai mantém os olhos fixos nela, ignorando a chaleira como se
fosse apenas um tremor distante.
— Ah, foi só uma briga normal de casal — responde ela, a voz
embargada.
O que mais iria dizer? Contar a história toda, do Dia Zero até aqui,
o Dia Menos Quinhentos… ou por aí?
Ele se recosta na bancada de frente para ela. É a mesma cozinha de
sempre. No estilo dos anos 1980, fórmica bege, carvalho falso. Tem
algo de reconfortante nas coisas antigas. Armários com taças de cristal
que ele não usa mais. Uma bandeja de plástico florido que, toda noite,
recebe uma refeição pronta para um.
— Kelly andou mentindo pra mim — diz ela.
— Sobre o quê?
— Ele está envolvido em algo escuso. Acho que sempre esteve.
Seu pai espera um pouco, então emite mais um barulho do que uma
palavra:
— Hum… — Ele leva a mão à boca. A pele tem sinais de velhice.
Jen fica aliviada de ver aquelas manchas, de ainda estarem ali, num
presente relativo. — Como assim?
— Não sei. Acho que ele está se encontrando com um criminoso —
diz ela.
Os olhos de seu pai se escurecem.
— O Kelly é uma pessoa boa — afirma ele com firmeza.
— Eu sei. Mas vocês nunca… sabe…
— O quê?
— Não sei… acho que vocês nunca… gostaram de verdade um do
outro?
— Ele é bom pra você — diz ele, se esquivando da pergunta.
Jen dá uma risada triste.
— Eu sei.
Ela pensa na casa e no porta-retratos de novo. Não consegue
descobrir o que significa, nem pensar em como poderia descobrir. É
um mistério indecifrável.
— Lembra do dia em que ele apareceu no escritório?
— Com certeza — responde Jen na mesma hora, mas aquilo é tudo
o que quer dizer sobre isso.
O mês de março pertence a ela e a Kelly, mesmo que agora a
memória tenha sido maculada. Significa tanto para os dois que ele o
tatuou na pele poucos meses depois. Ele não avisou para ela que ia
fazer a tatuagem. Desapareceu no meio do dia e chegou em casa sem
dizer nada. Foi só quando ela tirou a roupa dele que viu; o legado
deles.
— Lembra que a gente pegava qualquer trabalho que aparecesse
naquela época? — pergunta ela.
O pai tinha aberto o escritório havia pouco tempo quando aceitou
Jen como estagiária — uma receita para o desastre. Ele tinha
começado a carreira num dos grandes escritórios de advocacia de
Londres, mas queria tocar o próprio negócio, então voltou para
Liverpool com a cabeça cheia de ambição, fusões e aquisições. Depois
que a mãe dela morreu — de câncer, nos anos 1990 —, ele fundou a
Eagles. Jen nunca entendeu por que ele não chamou o escritório de
Legal Eagles.
Naquela época, eles aceitavam todo tipo de caso, se desdobrando até
os limites de sua expertise para não atrasar o aluguel. Faziam
procurações, compra e venda de imóveis e ação de indenização por
dano moral.
— Redigindo testamentos com o manual debaixo da mesa apoiado
nas coxas — comenta ele com uma risada.
Jen lhe oferece um sorriso triste.
— Lembra das escrituras de casas de férias compartilhadas que a
gente fazia? — acrescenta ela, feliz com a lembrança.
— Do quê? — devolve o pai, mas tem algo de estranho em seu tom
de voz. Algo de performático, como se houvesse alguém observando.
— É… lembra que a gente lidava com propriedade compartilhada e
tinha que manter uma lista maluca de quem estava na casa de férias e
quando?
— A gente fazia isso?
— Claro que fazia! — exclama Jen, confusa por um momento. Seu
pai tem uma capacidade fenomenal de lembrar o passado. Ela deve ter
se confundido, sua memória deve tê-la traído.
— Acho que não. Mas que época boa, né? — comenta ele. —
Comendo pizza no escritório…
Jen assente.
— Foi boa mesmo — concorda ela, embora seja mentira.
— E aí de repente as coisas começaram a dar certo, lembra?
— É.
Ela lembra da primavera em que conheceu Kelly. O escritório estava
finalmente ganhando algum dinheiro. Eles venceram alguns casos
importantes. Contrataram uma secretária, e Patricia, para a
contabilidade. E olha só o escritório agora. Cem funcionários.
— Você fica pro jantar? — pergunta ele, servindo duas canecas de
chá.
Ela hesita, olhando para ele. São quatro da tarde. Ele tem entre três
e nove horas de vida. Seus olhos se encontram.
Ela pega a caneca de chá quente sem dizer uma palavra e dá um
gole, para ganhar tempo. Sabe que não deveria fazer isso. Não deveria
mudar outras coisas. Deveria se ater ao que tinha de estar fazendo. E
não jogar na loteria. Não matar Hitler. Não desviar o foco.
Mas sua boca se abre para responder por conta própria.
— Seria ótimo — diz bem baixinho, na esperança de que o universo
talvez não a ouça se falar só para ele, sem testemunhas, uma conversa
particular de filha para pai. Não quer mais ficar sozinha, só por um
tempo, não quer mais ter que desvendar pistas incompreensíveis, sem
nunca andar para a frente, só para trás, para trás, para trás, um
tabuleiro do jogo de cobras e escadas, mas só com cobras. — O que a
gente vai comer? — acrescenta.
Seu pai dá de ombros, animado.
— Qualquer coisa — diz ele. — Ter outra pessoa faz as coisas
ficarem mais oficiais, né? Mesmo que seja só para comer pão com
manteiga.
Jen sabe exatamente o que ele quer dizer.
São sete horas e cinco minutos. Jen e o pai colocaram no forno uma
torta de peixe que ele congelou “só Deus sabe quando”. Ela tinha que
ir embora, tinha que ir embora, não para de pensar, a mente racional
implorando, em pânico, mas ele está de pantufas, com as pernas
cruzadas no tornozelo e ligou no programa de futebol de domingo, e
já está quase na hora dele, e ela não pode ir embora agora, não pode
deixá-lo sozinho.
— Acho que vou botar um pão de alho no forno também — diz o
pai dela. — Tô comendo pelo país inteiro ultimamente. Sabia que a
sua mãe odiava alho? Dizia que comeu demais quando estava grávida.
— Ah, é? — comenta Jen, ficando de pé. — Deixa que eu boto.
— Nossa, como eu odeio esse programa. Quanta futilidade. — Ele
começa a mudar de canal.
— Vamos ver Law & Order, pra poder criticar — sugere Jen,
olhando por cima do ombro.
— Aí eu gostei — responde o pai dela, entrando no menu da Sky. —
Pega uma cerveja pra mim também — pede ele. — E uns amendoins,
enquanto a gente espera a comida.
Jen sente os cabelos da nuca se arrepiarem, um por um, feito
pequenas sentinelas.
— Pode deixar — diz.
Ela entra na cozinha silenciosa. Coloca o pão de alho no forno. A
lâmpada do forno ilumina seus pés com meias.
A cerveja está na porta da geladeira.
— Pega alguma coisa pra você — diz ele.
Jen encontra o amendoim no armário, que parece ter de tudo —
suco de laranja, dois abacates, passas cobertas de chocolate, chá,
biscoito de chocolate com hortelã —, e leva para o pai.
— Não sabia que a mamãe comia alho quando estava grávida.
— Ah, é, aos montes. Comia até cru, às vezes. Ela enfiava dentes
inteiros no frango assado e depois comia um por um — comenta o pai.
Jen consegue imaginar. Uma mulher que ela também perdeu cedo
demais, comendo dentes de alho na bancada da cozinha, com os dedos
gordurosos, e Jen na barriga. E Todd dentro de Jen. Um projeto de
Todd, pelo menos.
— Ela dizia que exagerou. — Ele pega a cerveja e o amendoim da
mão dela com uma das mãos, num movimento hábil. Está tão
saudável… — A gente sempre falava que, se tivesse outro filho, ela
não ia comer os pratos preferidos na gravidez para não enjoar depois.
Ele se inclina para a frente e acende a lareira. Ele não foi encontrado
com a lareira acesa, e um pão de alho e uma torta de peixe no forno.
Isso tudo são mudanças que Jen fez. A lareira acende com facilidade, e
a chama bruxuleia da esquerda para a direita, como palavras surgindo
numa página datilografada. A sala é invadida na mesma hora pelo
cheiro suave e quente do gás.
Jen se senta junto do fogo num banquinho com o assento que a mãe
bordou e que o pai guardou, sem aperitivo nem bebida, apenas
observando-o. Esperando.
O que você diz para alguém quando sabe que serão suas últimas
palavras para essa pessoa? Você só… você não… você não vai embora,
vai? A ansiedade a envolve como o fogo que o pai acabou de acender,
aquecendo-a. Ela jamais iria embora. Como poderia deixar o pai
sozinho?
E se isso pudesse deter o crime? De alguma forma?
— Mas vocês não tiveram outro filho — comenta, em vez de
encerrar a conversa, em vez de ir embora, em vez de arrumar um jeito
de se despedir, agora e para sempre.
— Nunca era a hora certa, e aí ficou tarde demais — responde ele
simplesmente. Ele abre a garrafa de cerveja com um barulhinho. — O
mundo do direito… exige tanto da gente, né? Você dá um
pouquinho… Eu sempre achei que o Kelly tinha a cabeça no lugar, de
não deixar o trabalho interferir na vida pessoal.
— Quem sabe o que se passa na cabeça do Kelly — diz Jen,
contrariada, e o pai parece envergonhado.
— Ele tem a cabeça no lugar — insiste ele baixinho.
Jen é tomada por uma sensação estranha, uma espécie de presságio.
Quase como… tipo, se o pai soubesse que vai morrer, talvez lhe
contasse alguma coisa. Uma chave. Uma peça do quebra-cabeça. Uma
revelação de leito de morte que ela poderia usar. Uma face do prisma
que continua na escuridão.
Eles ficam em silêncio, o único som vem da lareira a gás, uma
espécie de rugido distante, como chuva lá fora. As chamas emitem
tanto calor que o ar acima delas brilha. Jen poderia ficar ali para
sempre, na pitoresca e antiga sala de estar do pai, com um pão de alho
no forno.
É aí que acontece. Jen observa as feições do pai se alterando como se
cobertas por uma nuvem de tempestade. Amendoim e cerveja ao lado,
do jeito que descreveram para ela. O suor é o primeiro sinal, gotas
leitosas pela testa, como se ele tivesse saído na garoa.
— Ai, uau — exclama ele, enchendo as bochechas de ar. — Jen?
Jen sente uma onda de pânico. Não achou que seria assim. Achou
que seria repentino.
Ele leva a mão à barriga com uma careta de dor, os olhos fixos nela.
— Jen… não estou me sentindo bem — diz com a voz ansiosa, igual
ao Todd quando era menino e caiu, e olhou para ela primeiro, para
saber como estava se sentindo; seu espelho materno. E agora aqui está
ela, no fim da vida do pai, numa inversão de papéis.
— Papai — exclama ela, uma palavra que não diz há décadas.
— Jen… por favor, liga para a emergência — pede ele.
Seus olhos castanhos, iguais aos dela, a fitam com uma súplica. Ela
pega o celular. Não tem dúvida. Não tem a menor dúvida. Ela tem só
a ilusão da escolha.
Dia Menos Setecentos e Oitenta e Três,
08:00
Tem uma voz lá embaixo. Jen está quase pegando no sono, mas —
obviamente — ainda não dormiu. Ela anda em silêncio até a janela da
frente e vai descendo a escada, descendo, descendo pela casa. Kelly
está no escritório, junto do hall de entrada, e Jen para e fica ouvindo.
Está falando ao telefone.
— É, tá bem — diz ele. — Assim que você conseguir falar com o
Joe, amanhã de manhã, diz que eu liguei, tá legal?
Joe.
Mas ele não pode estar falando com ninguém na prisão. Ele não
parece estar falando com nenhuma instituição. E está tarde demais.
Deve ser algum conhecido em comum.
— É, pois é — continua ele. — Não quero que ele fique pensando
que eu não me importo. — Ele diz isso com muito cuidado,
escolhendo lentamente as palavras, como um guitarrista amador
tocando as cordas. — Não quero arruinar uma parceria de negócios de
vinte anos.
Jen se senta no primeiro degrau da escada. Vinte anos.
As duas palavras são duplamente significativas. Uma traição, mas
também um prenúncio de quão longe ela pode ter que ir.
Dia Menos Mil e Noventa e Cinco,
06:55
Jen está numa cama diferente. Sabe disso do mesmo jeito que sabe
que são umas sete da manhã, do mesmo jeito que sabe que alguém
estava falando dela pouco antes de ela entrar num cômodo, ou que um
carro está prestes a mudar de faixa na frente dela. É isso que chamam
de microemoções? A habilidade dos seres humanos de detectar
pequenas mudanças. Não dá para explicar. Você simplesmente sabe.
Todd chamaria de viés de retrospectiva, pensa ela.
A luz está diferente. O primeiro sinal. A janela não tem blecaute. O
quarto está iluminado por uma luz cinza e difusa, filtrada pelas
cortinas.
Deve ser inverno. Tem um aquecedor ali perto; ela sente o cheiro de
metal quente dele e sente o calor artificial mesclando-se ao ar frio
sobre a cama.
O colchão também está diferente. Velho e cheio de calombos, de
quando eles tinham menos dinheiro. Engraçado como você se
acostuma a ter dinheiro. Parece fácil. Você acaba esquecendo como é
viver sem, como é dormir num colchão de merda e economizar para
poder pedir comida em casa.
Está sozinha. Deitada ali, na luz cinzenta, piscando e expirando
lentamente, com medo de olhar.
Passa a mão pela lateral do corpo, por baixo do edredom. Sim. Ossos
salientes no quadril. Está bem mais jovem.
Certo. Ela se prepara psicologicamente, e então sai da cama. O
carpete. Já sabe de cara. O carpete a situa de imediato. Está em sua
casa preferida. A casinha isolada no meio do vale. Sente um arrepio.
Sozinha com um homem que usa uma carteira falsa.
Procura por um celular e pelo menos fica feliz de encontrar um
esperando por ela. Inspira, olha a data. Quinze anos no passado. Está
em 2007. Dia 21 de dezembro. Parece que vai vomitar. Que loucura.
Que coisa mais absurda. Ela tem um filho de 3 anos. Está com 28. Um
salto gigante, dos 13 aos 3?
De repente, fica muito irritada que isso esteja acontecendo com ela.
Vai até a janela, com vontade de abrir e gritar para o ar do campo, de
fazer alguma coisa, qualquer coisa, e… ah. Olha só. A sua vista
preferida no mundo inteiro. Ainda na fase nômade, longe do mundo
com Kelly, quando Todd ainda não precisava ir para a escola. Na casa
no vale, uma casa que mais parece uma peça de hotel no Banco
Imobiliário, onde nunca viam ninguém.
Talvez tenha sido isso? Talvez essa vida tenha sido prejudicial a ele.
Muito isolamento. Ela encosta a cabeça na janela, em vez de gritar lá
para fora. Como diabos vai saber? Não tem merda de pista nenhuma.
Sua respiração irritada embaça o vidro. Me dá alguma coisa, pensa ela,
olhando a neblina, que se dispersa, e Jen olha lá para fora. A beleza da
paisagem austera, marrom-sépia no deserto do inverno. As colinas
parecem velhas, andrajosas. Uma região interiorana verdadeiramente
campestre e selvagem, com gramíneas longas, claras e praianas. Ela
adorava este lugar, e agora está de volta.
Veste um roupão por cima do pijama de flanela que nem se
lembrava que tinha. Dá para ouvir Todd e Kelly na sala de estar.
Conversando, animados. Ainda não está pronta para vê-los.
Seu corpo se lembra da planta baixa da casa. Antes de ir até eles, vai
primeiro ao banheiro. Precisa se ver primeiro. Saber o que esperar.
Ela olha para a pequena lâmpada horizontal acima do espelho. Pega
a cordinha e puxa com força instintivamente. Sabe que a corda vai
resistir, que está emperrada e que, um dia, vai arrebentar. Com um
plim, seu rosto se ilumina.
É a Jen das fotos. A Jen do dia do seu casamento. Jen olhou muitas
vezes para essa Jen, pensando com melancolia que não fazia ideia de
como era bonita. Ela se concentrava no nariz largo, no cabelo revolto,
mas, olha só: a pele limpa e viçosa. Maçãs do rosto. Juventude. Não dá
pra simular isso. Quando está em repouso, seu rosto não tem uma
única ruga. Ela toca a pele, que parece tão elástica quanto massa de
pão, cheia de colágeno, e não o papel crepom que a espera aos 40
anos.
Jen olha para a porta. Ainda pode ouvi-los. Sabe que vai encontrá-los
na sala, sob a meia-luz de dezembro.
— Jen? — chama Kelly.
— Oi — responde ela, e sua voz soa mais aguda e mais leve do que
em 2022.
— Ele tá querendo você! — diz Kelly, num tom de voz atormentado
do qual ela se lembra bem.
Eles ficaram tão arrebatados com a rotina de pais de criança
pequena. A Jen de hoje mal se lembra por que era tão difícil, não
consegue precisar os detalhes exatos. Só que foi difícil. A forma como
sua panturrilha doía na cama à noite. As evidências que se
acumulavam: o pão torrado ainda na torradeira, não comido,
esquecido em meio ao caos. A roupa que só era estendida à meia-
noite, já com um cheiro esquisito por ter passado muito tempo na
máquina de lavar. Os estranhos improvisos para facilitar a vida: uma
vez, eles colocaram a televisão dentro de um cercadinho para Todd
não ficar desligando o tempo todo… coisas que eles sabiam que eram
meio loucas, mas que faziam assim mesmo. Coisas que faziam só para
conseguir dar conta.
— Tô aqui — responde ela, desligando a luz do banheiro e pisando
no corredor.
Lá estão eles. Jen fita Todd, o Todd das suas lembranças. Seu filho,
com 3 anos de idade, que acabou de chegar a um metro de altura, a
cara de Jen, os olhos de Kelly, mãozinhas gordas esticadas na direção
dela.
— Toddinho — diz ela, o apelido soando natural em seus lábios —,
você já acordou!
— Ele tá acordado desde as cinco — diz Kelly, afastando o cabelo da
testa.
Ele ergue as sobrancelhas para ela. Jen fica chocada com como a
testa dele aumentou no presente. E chocada com outras coisas
também. Ele tem um rosto de menino. Fica surpresa ao descobrir que
o acha menos atraente aos 20 do que aos 40. Está mais gordo aqui.
Eles comiam muita comida pronta, não faziam exercícios. Todo tempo
livre que tinham era conquistado a duras penas, algo tão precioso que
passavam esse tempo sentados, num silêncio satisfeito.
— Pode ir dormir, se quiser — oferece ela.
Jen caminha até o hall de entrada, em direção à porta da frente. O
frio se infiltra por baixo dela, um vento gelado. Quer ver a vista
direito. Suas mãos (tão jovens, sem nenhuma ruga) se lembram do
macete de abrir o trinco e apertar a maçaneta ao mesmo tempo, ela
abre a porta e — ah! — encontra o seu vale.
— Mas hoje é o seu dia de dormir até mais tarde — responde Kelly
atrás dela. É isso mesmo. Eles alternavam religiosamente o dia de
quem podia dormir até mais tarde.
— Não tem problema — devolve ela, dispensando-o com um gesto
da mão, com a preocupação de quem só está ali por um dia; como
uma babá, que pode devolver a criança depois.
Está tudo coberto de geada. Ela toca, distraída, a guirlanda na porta.
Galochas do lado de fora, um pátio de pedra. Garrafas de leite — eles
compravam leite de um leiteiro tradicional. E, mais adiante: o vale.
Duas colinas se encontrando em um X. Polvilhado com a geada, como
açúcar de confeiteiro. O cheiro ali fora é delicioso. Fumaça, pinheiro,
geada, mentol, como se o próprio ar tivesse sido limpo.
Satisfeita, ela fecha a porta e se vira para Todd, que está andando em
sua direção. Quando ele a alcança, ela se abaixa, e ele encosta o rosto
em seu ombro num movimento tão perfeito quanto o de uma dança
há muito esquecida. O corpo dela se lembra dele, do seu bebê, com
todas as suas aparências. Aos 3, aos 15, aos 17 e como um criminoso.
Ela ama todos eles.
— Volta pra cama — diz ela, olhando para Kelly.
Ele lhe oferece um meio sorriso gentil.
— Parece que fui cuspido de um canhão, e não que acabei de
acordar — diz ele, bocejando e se espreguiçando.
Mas ele não vai embora. Como com quase tudo na paternidade, ele
queria apoio, ser compreendido, e não que ela assumisse o controle.
Ele se joga no sofá.
Jen olha para o filho. Para essa pessoa que, hoje, no dia mais curto do
ano em 2007, ela precisa consertar para que, quando os relógios
atrasarem uma hora em 2022, ele não mate ninguém.
A sala está repleta de brinquedos dos quais havia se esquecido. O
caminhãozinho de sorvete amarelo. A garagem da Fisher Price,
herdada dos pais dela. Uma árvore de Natal piscando no canto. Uma
árvore artificial e velha que ainda deve estar no sótão deles em Crosby
até hoje. A sala está escura, iluminada apenas pelas luzes de Natal.
— Então — diz Jen, afastando-se de Todd e olhando para ele, com
seu macacão minúsculo. Todd a fita, mudo, com aquele olhar intenso
que ele tinha. Olhos expressivos, nariz arrebitado, bochechas coradas,
uma expressão muito grave no rosto. Ela segura um bloco de madeira,
e, com muita seriedade, ele pega o bloco da mão dela, depois o deixa
cair no chão. — Vamos fazer uma torre? — pergunta ela.
Todd estica a mão muito, muito lentamente.
— Tão tenso quanto numa negociação por reféns — comenta Kelly.
— Como é que se diz… criança não brinca, trabalha?
— Rá, é.
— Eu era obcecada por blocos de empilhar quando era criança.
— Ahn? — Kelly se recosta no sofá, passando as pernas por cima de
um dos braços do sofá. Ele fecha os olhos. — Se tivesse que chutar, ia
dizer que você era obcecada por… sei lá. Flashcards. Sabe como é.
Sempre aprendendo.
— Na verdade, não — responde Jen. — Levei muito tempo para
aprender a ler.
— Não acredito. Vocês, advogados prolixos… vocês são todos iguais
— comenta ele com a voz arrastada, e Jen sorri, surpresa.
Kelly era mais azedo. Ele continua seco em 2022, mas este Kelly é o
pacote completo, com um rancor no coração. Ela tinha esquecido
completamente. O quanto ele costumava reclamar do trabalho, como
bolava várias ideias de negócios para depois abandonar. Ele parecia
querer ter sucesso, mas acabava amarelando.
— E o que eu tinha nos meus flashcards então? — pergunta ela.
— Definição de jurisprudência, para começar… com dois anos, você
já tem que saber isso.
— É lógico. E o que é jurisprudência, Kelly, com… — hesita Jen. —
Vinte e oito anos?
— Boa em inglês, nem tanto em matemática — devolve Kelly,
sempre rápido. — Vinte e nove. Já esqueceu quantos anos eu tenho?
— Você sabe como eu sou.
Todd ri de repente, do nada, e bate palmas para Kelly.
— Isso, isso — diz ele para o filho.
— E você? — pergunta Jen, pensando em como se sentiu no carro
com ele quando foram parados pela polícia, tentando alcançar aquela
parte dele que talvez ela nunca tenha tocado.
— O que tem eu?
— Qual era o seu brinquedo preferido?
— Não me lembro. — Kelly se ajeita no sofá, ainda de olhos
fechados.
— O que você queria ser quando crescesse?
Kelly se ergue num dos cotovelos e olha para ela com uma expressão
sarcástica, as feições tomadas por uma indisponibilidade emocional.
Como Jen não percebeu isso?
— Por quê?
— Só de curiosidade. Você nunca falou. E a gente está tão longe de
onde você morava… sabe, acho que não conheço ninguém que te
conhecia quando você era criança.
— Está todo mundo tão longe. Minha mãe sempre quis que eu fosse
gerente — diz ele, mudando de assunto. — Não é engraçado?
— Gerente de quê? — Jen está empilhando os blocos na frente de
Todd, que está com as mãos entrelaçadas de ansiedade, mas, na
verdade, ela está pensando em como Kelly pode ser evasivo.
— Literalmente qualquer coisa. É o que ela queria. Depois que o
nosso pai cagou… foi embora — ele se corrige, olhando para Todd —,
tudo que ela queria pra gente era estabilidade. Por ela, um
empreguinho sacal de escritório. Férias uma vez por ano. Um
financiamento numa casinha em algum canto.
— E você fez exatamente o contrário — comenta Jen, mas, no
fundo, está pensando: O nosso pai. O nosso pai. O homem da foto
com os mesmos olhos de Kelly. Ela sabia que não tinha imaginado a
semelhança. Ela pisca, chocada.
Ele evita o olhar dela.
— Pois é.
— Você falou o nosso pai?
— Não… meu pai.
— Você falou nosso.
— Falei não.
Jen suspira. Ele só vai ficar na defensiva se ela insistir. Vai ter que
tentar outra coisa.
— Queria que ele tivesse conhecido a sua mãe — diz baixinho. — E
a minha também.
— Ah, eu também.
— Quantos anos você tinha quando ela morreu mesmo? — arrisca-se
Jen, perguntando-se por que isso parece perigoso, hesitante. É a merda
do marido dela, pelo amor de Deus.
— Vinte.
— E a última vez que você viu o seu pai você tinha…
— Vai saber. Três? Cinco?
— Devia ser muito… ser filho único, e depois não ter mais os pais.
— É.
— Acha que ela teria gostado de mim… e do Todd?
— Lógico. Olha. Vou aceitar a sua oferta — diz ele. — A cama está
me chamando. — Ele se abaixa e a beija na boca, a única coisa que
não mudou de 2007 para cá, e vai para a cama, deixando Jen sozinha
com Todd.
Algo faz Jen deixar Todd na sala com os blocos e seguir Kelly pelo
corredor de carpete marrom descolorido.
Ela chega ao quarto deles, com o ouvido ainda atento ao Todd, e
para junto da porta.
Kelly não está no quarto. Pelo menos não até onde pode ver. Ela abre
a porta de leve à meia-luz e entra em silêncio. Nada.
Então aonde ele foi?
Ela atravessa o quarto. A lâmpada horizontal do banheiro está acesa.
Será que esqueceu de apagar? De pé ali, pensando no que fazer, ela
ouve uma coisa. Um som baixinho e angustiado, como alguém
tentando segurar algo dentro de si.
Ele está lá dentro. Ela se aproxima da porta do banheiro e dá uma
espiada. E lá está o marido de vinte anos dela, sentado na tampa da
privada, a cabeça nas mãos, chorando de soluçar. A única vez que o
viu chorando.
— Kelly? — pergunta ela.
Ele dá um pulo e limpa depressa os olhos com os punhos cerrados.
As costas de suas mãos saem molhadas. Kelly se parece tanto com
Todd quando chora. O lábio inferior tremendo e tudo. Jen sente o
corpo inteiro ficando pesado e triste enquanto o observa tentando
disfarçar.
— É um resfriado que está fazendo meus olhos lacrimejarem — diz
Kelly.
Que mentira deslavada. Jen se pergunta quantas dessas ele já contou.
E por quê.
Mas olha só para ele ali, pensa ela com tristeza. É a mesma cara. A
mesma expressão que vai fazer para ela dali a quinze anos, quando o
filho deles matar uma pessoa. O rosto de quem está com o coração
partido.
— O que aconteceu?
— Não, nada, é sério, é só essa merda de resfriado. Tomara que passe
antes do Natal.
— É por causa da sua mãe? — pergunta Jen baixinho.
— O Todd está bem… ele…
— Ele está na sala, está tudo bem. — Jen entra no banheiro apertado
com Kelly. Ele fica onde está, sentado na privada, mas Jen para ao seu
lado e pousa a mão em suas costas, trazendo-o para junto de si. Para
sua surpresa, ele deixa e passa o braço em volta das pernas dela,
encostando a cabeça em seu peito. — Não tem problema — diz ela
para ele, com carinho, do jeito que falaria com Todd. — Tudo bem
ficar triste.
— É só…
— Esse resfriado de Natal, eu sei — diz Jen, deixando que ele viva a
sua mentira, seja ela qual for. Deixando que ele acredite naquilo.
Ela se lembra de algo que ele disse em 2022 sobre um casal que
estava se separando. Evitar sentir dor é algo que não tem preço para
algumas pessoas.
Kelly a solta depois de alguns minutos. Ele olha para Jen enquanto
ela sai para verificar se Todd está bem e diz uma única frase para ela:
— Eu tenho saudade dela… da minha mãe. É só isso. — É como se
doesse muito admitir aquilo; seu corpo convulsiona ao dizer aquelas
palavras.
Jen assente depressa. E aí está. Algo que o marido — por algum
motivo — nunca conseguiu mostrar a ela.
— Eu sei — diz ela. E é verdade, ela mesma também já perdeu a
mãe. — Obrigada por me dizer.
Kelly lhe oferece um sorriso triste, o cabelo preto todo bagunçado.
Está com os olhos especialmente azuis. E ali, no passado, algo se dá
entre os dois. Algo mais substancial do que jamais compartilharam.
Algo que Jen nem consegue identificar, mas que de alguma forma
acende uma esperança dentro dela de que Kelly não seja o que parece
ser. Por favor, que isso seja verdade.
Jen volta para Todd, na sala. É uma sala antiquada. Carpete verde
desbotado, móveis de madeira escura. E tem um cheiro específico. Um
cheiro reconfortante e caseiro: açúcar e canela, biscoitos, uma vela
apagada. Jen imagina que, em algum lugar, uma versão alternativa dela
estava fazendo biscoitos na véspera. Engraçado como essas coisas
pareciam tão importantes na época. Ir ver as luzes de Natal, assar e
montar uma casinha de biscoito. E… puf. Tudo fica para trás na
história, causando só estresse, sem deixar nenhuma marca, como uma
pegada na areia que o mar apaga rápido demais. Passou a vida inteira
tão preocupada com como as coisas pareciam ser. Mantendo as
aparências. Tendo tudo, a casa com a abóbora esculpida para todo
mundo ver que eles tinham feito uma. E ainda assim. Para quê?
Todd brinca com os carrinhos por alguns minutos, depois vai para o
outro lado da sala.
— Não, Toddy, isso não — diz ela quando ele corre para a lata de
lixo.
Ele a ignora, pegando duas embalagens de papel-alumínio que
parecem ser de KitKat. Jen se decepciona ao ficar irritada tão
depressa, depois de passar só um dia com ele.
— Meu — exclama Todd. Ele a fita com os olhinhos magoados, do
outro lado da sala. — Mais — acrescenta. E se vira para a lixeira de
novo.
Está praticamente de cabeça para baixo, com a cabeça enfiada na
lixeira, os pés quase saindo do chão.
— Desculpa, Todd, vem aqui — diz ela. — Vem com a mamãe.
Todd se vira no instante em que ouve a primeira sílaba sair de seus
lábios, como uma flor que se volta para o sol, e olha para ela. E de
repente, de uma hora para a outra, como uma luz que se acende, ela
sabe. Sabe no fundo do seu coração, dentro de si.
Ela sabe pela forma como os olhos dele captam a luz azul do inverno
no início da manhã.
Não é culpa dela.
Não é culpa dele.
Ela sabe que foi uma boa mãe. Sabe por causa dos olhos dele. Estão
repletos de amor. Repletos de amor por ela. Ela murcha bem ali no
sofá.
Ela fez o melhor que pôde. E, mesmo quando não fez, a culpa é uma
evidência como qualquer outra: ela queria fazer o melhor por ele, por
seu bebê.
O viés de retrospectiva a respeito do qual essa mesma pessoa aqui
vai lhe ensinar dali a uma década: ela achava que sabia que aquilo ia
acontecer, sentindo-se culpada. Achava que ele tinha matado por
causa de um problema no relacionamento com ela. Mas não foi isso.
Isso foi uma ilusão. E então é este o momento, o momento em que Jen
percebe que isso não tem nada a ver. De alguma forma, não tem nada
a ver com a infância de Todd.
— Vem aqui, Toddy — chama ela.
Na mesma hora ele solta as embalagens na lixeira e vai até ela, a sua
mãe.
Ryan
Jen nem hesita em seguir Kelly. Estão bem perto do momento em que
ela vai descobrir tudo, sabe disso.
Aqui está ela, no banco traseiro de um táxi. Era muito mais difícil
chamar um táxi em um passado assim tão distante. Ela tem celular,
mas é um tijolo velho cujos números se acendem com uma luz verde
neon e que fazem um barulhinho quando ela os aperta. Mais parece
um brinquedo de criança fazendo as vezes de celular de verdade.
— A gente pode parar aqui? — pergunta Jen.
Kelly estacionou o carro em local proibido, bem no centro de
Liverpool. Pela placa, o carro é de 2001: Jen não tinha reparado no
quanto os carros mudaram. Ele é meio quadrado, parece grande
demais. Ela não consegue parar de olhar para o carro, nem para Kelly.
Se sente como uma alienígena.
Kelly olha para a esquerda e para a direita enquanto estica as pernas
compridas para fora do banco do motorista. Esse tipo de olhada
parece habitual, um cacoete. Seus olhos azuis sobem e descem a rua.
Ela continua no táxi. Está praticamente invisível para Kelly ali,
escondida no banco traseiro, atrás de uma janela suja.
— Daqui a pouco eu vou ter que sair daqui — diz o taxista.
— Só uns cinco minutinhos… cinco minutinhos, por favor, só
preciso ver uma coisa — pede ela.
O taxista não responde, em vez disso abre um livro num gesto
teatral. John Grisham, com orelhas nos cantos. Ele deixa o motor
ligado. Ah, a época em que as pessoas liam para passar o tempo.
— Desculpa, não vai demorar muito — acrescenta ela, pensando em
todas as coisas que poderia contar para esse homem sobre o futuro. O
Brexit. A pandemia. Ninguém ia acreditar nela. É muito louco. Duas
décadas inteiras espremidas entre eles, ali, num táxi.
Kelly vai até a traseira do carro. Ele examina o horizonte do mesmo
jeito que às vezes ainda faz. Nunca tinha pensado muito nisso até ser
obrigada a observar o marido assim. Ele passou gel no cabelo e
penteou na frente com muito cuidado.
Outro motorista buzina para eles, apontando para o táxi ao passar.
Ele abre a janela.
— Sai daí! — grita ele.
O taxista engata a primeira marcha.
— Só mais um segundo, por favor, por favor — pede ela.
Se saltar agora, Kelly vai vê-la, e vai tudo por água abaixo.
Kelly abre a mala com uma das mãos e tira alguma coisa. Algo
grande e cor de vinho, parece algum tecido dobrado — uma cortina
talvez? Jen encosta a testa na janela suja e semicerra os olhos. É uma
capa de terno. Jen a reconhece de muitos anos atrás. Ele só usava terno
muito raramente. Funerais e casamentos. Ficava pendurado num
cabide no canto do armário.
— Quando quiser, meu bem — diz o taxista, mas Jen apenas assente.
Kelly entra numa rua lateral, andando num passo descontraído que
Jen sabe ser falso. Ela vai perdê-lo de vista.
— Tenho que saltar — diz ela.
Ela começa a pegar a bolsa e a carteira, tentando não perder Kelly de
vista. Ao contar o dinheiro, que pegou numa gaveta da cozinha —
outra gaveta, outra cozinha, outras notas —, mais um carro buzina
para eles.
— Espera aí — diz o taxista.
— Eu tenho que ir, preciso saltar — diz Jen, quase gritando.
— A gente está fechando uma faixa de ônibus.
— Eu tenho que saltar! — exclama Jen.
Com os carros buzinando, ela mexe na maçaneta, tentando abrir a
porta do carro e se perguntando sobre o que aconteceria se ela
simplesmente saísse sem pagar. É só um táxi. Um crimezinho de nada.
Ela joga notas demais na bandeja prateada, que na verdade é um
cinzeiro — meu Deus, as pessoas fumavam em tudo que é canto! —, e
salta.
Jen corre para a rua lateral. Kelly está quase no fim dela. Ele se
destaca para ela na multidão da mesma forma que Todd, da mesma
forma que o nome dela parece se sobressair em uma lista.
Kelly vira de repente e entra num pub chamado The Sundance.
Continua carregando a capa com o terno por cima do braço, então ela
decide arriscar e fica esperando na calçada ali perto.
Está de pé na porta de uma loja da Woolworths, com o letreiro
vermelho e branco tão familiar para ela. A empresa vai falir dali a
cinco anos. O que na verdade é um passado recente, mas não é assim
que lhe parece. Lá dentro, o piso de vinil, o material de papelaria.
Seria capaz de ficar ali para sempre, só olhando a vitrine,
maravilhando-se com o passado, os Natais comprando jogos e balas, só
olhando as mudanças que tomaram conta do mundo nos últimos vinte
anos, as coisas perdidas e as ganhas. Ela leva a palma da mão até o
vidro da vitrine, do mesmo jeito que fez bem no começo de tudo isso,
e espera.
No reflexo atrás de si, ela vê Kelly saindo do pub. Está de terno
agora, com a capa pendurada por cima do braço. O cabelo cheio de
gel. Sapato preto brilhante.
Uma mulher parece surgir do nada, talvez de outro pub, talvez de
um beco. Jen a observa se aproximando de Kelly. Ela aperta os olhos.
É Nicola.
— Como é que foi? — pergunta Kelly a ela.
— É, tudo bem. Difícil… eles querem saber todos os métodos.
Kelly dá uma risada.
— A gente não pode falar disso.
— Eu sei. Foi o que eu falei. Mas o juiz não gostou muito. Olha…
boa sorte. E me liga, tá? Se… no futuro. Você quiser voltar.
Nicola deixa Kelly ali, na rua, sem dizer mais nem uma palavra.
Jen olha para ele, agora invisível na multidão, pensando nas
mensagens que ele vai mandar para Nicola dali a vinte anos, pedindo
ajuda. E no fato de que ela pede algo em troca.
Jen segue Kelly a distância, grata por estar em Liverpool, e não em
Crosby. Ela fica boba com a roupa das pessoas — calça jeans boca de
sino, blusa camponesa expondo a pele para o sol de setembro, no fim
do verão — e com os carros e as lojas antigas, o mundo sob um filtro
vintage. Kelly caminha decidido, mas também parece ansioso, pensa
Jen. Ele mantém a cabeça ereta, como um cervo sendo perseguido, ou
um leão em caça, ela não sabe bem ao certo qual.
Ele desce uma rua de paralelepípedos, passa por lojas que
sobreviveram aos últimos vinte anos, e outras que não — Debenhams,
Blockbusters. Atravessa uma galeria iluminada por lâmpadas tubulares
e várias joalherias, e sai do outro lado. Vira à esquerda, vira à direita.
Sobe uma rua lateral com lixeiras industriais enfileiradas. Jen se afasta
um pouco mais.
Quando chega a uma zona larga de pedestres com pavimentação
cinza, Kelly diminui o passo. Está cercado por prédios altos. Ele se vira
de frente para um deles, se aproxima, abre a porta e entra.
Jen não precisa de mapa, nem precisa ler as placas. Como advogada,
conhece aquele prédio muito bem. Como poderia não conhecer? É o
tribunal de Liverpool.
Está tarde. Jen está no banho. Mal pode esperar para dormir e acordar
em outro lugar amanhã.
Seu estômago abriga o que parece ser uma poça fervente de
confusão.
Um agente infiltrado. Um agente infiltrado. O termo, feio e grande,
pulsa sob o esterno de Jen feito um batimento cardíaco. Então é por
isso. Sem carteira assinada. Sem perfil nas redes sociais. Nada de festas.
Faz vinte anos que Kelly vive como outra pessoa.
Mas por que ele nunca contou para ela?
Ela acha que juntou as peças na ordem correta. Queria poder
consultar Andy, mas ele nem deve ter terminado a graduação ainda.
Nem ele pode ajudá-la agora.
Ela fita a janela de vidro fosco, recapitulando tudo.
Kelly se infiltrou na quadrilha. As provas que ele reuniu mandaram
Joseph para a cadeia. Vinte anos depois, Joseph é solto e procura Kelly
— no escritório de advocacia —, na tentativa de restabelecer a rede
criminosa com as mesmas pessoas de antes. Se Kelly se recusasse a
obedecer a Joseph, Joseph suspeitaria de que ele era o policial
infiltrado. Se obedecesse, viraria um criminoso de verdade. Kelly não
tinha saída. E, como Joseph cumpriu vinte anos de pena pelos crimes
que cometeu junto com muitos dos soldados rasos, tinha todos eles na
mão: poderia entregá-los caso não lhe obedecessem. Mas o domínio
que exercia sobre Kelly era ainda maior, tão poderoso que ele nem
imaginava: se denunciasse Kelly por seus crimes passados, a polícia
viria atrás dele e descobriria que Kelly ainda estava vivendo sob sua
identidade falsa. Na ilegalidade. Ou, pior, que agora estava cometendo
delitos sem autorização da polícia.
E assim o pacote foi entregue, com a chave do carro roubado. Kelly
se viu obrigado a colaborar. Todd estava lá quando eles se encontraram
de novo, e Clio também, e os dois se apaixonaram. Kelly mandou
Todd não contar para Jen sobre Joseph, e, um tempo depois, mandou
Todd terminar com Clio. Ele deve ter confessado tudo naquela noite
no jardim, contado para Todd quem ele realmente era. A coisa mais
escrota que já aconteceu na vida do Todd, de acordo com suas
próprias palavras. Ele deve ter mostrado ao Todd seu antigo distintivo,
o cartaz. Jen agora consegue imaginar a conversa acontecendo no
quarto de Todd. Todd escondendo dela o distintivo, o celular e o
cartaz.
Kelly começou a trabalhar para Joseph de novo, mas, no instante em
que achou que Joseph podia saber que ele era o policial que o tinha
colocado na cadeia, entrou em contato com Nicola, pedindo ajuda,
desesperadamente. No fim das contas, Nicola não era uma criminosa,
mas alguém que vinha trabalhando infiltrada naquela época. Uma
policial. Ele deve ter se sentido entre a cruz e a espada. Temendo pela
própria vida, abrir o jogo para Nicola deve ter sido a opção menos
pior.
Em troca do silêncio dela, e por causa do risco de Joseph descobrir
os dois, ela pediu um favor a Kelly. Ela deve ter pedido para ele passar
informações para a polícia a respeito dos crimes atuais de Joseph.
Talvez tenha negociado proteção para Kelly, e foi por isso que Jen viu
as viaturas da polícia circulando. Talvez tenha sido por isso que eles
chegaram tão depressa naquela noite, muito antes da ambulância. Eles
estavam esperando para intervir, mas chegaram tarde demais, tarde
demais.
Nicola deve ter sido ferida por Joseph duas noites antes de Todd
cometer o crime. A lesão corporal dolosa que Jen ouviu na delegacia.
Joseph deve ter descoberto que ela era policial. Desde que saiu da
prisão, devia estar observando todos os contatos dele em busca de
indícios de quem não era quem dizia ser. Deve ter sido mais fácil
deduzir que ela era policial, já que nunca foi embora. Foi por isso que
Nicola pareceu ser outra pessoa no restaurante: ela não estava
caracterizada para o seu papel de agente infiltrada.
E o desmascaramento de Nicola levaria Joseph a Kelly.
Então Joseph descobre tudo e vai atrás de Kelly no meio da noite no
fim de outubro. Ele estava armado, não estava? E tentou pegar a arma
no bolso, não tentou?
A polícia apareceu logo após o assassinato. Provavelmente já sabiam
que algo estava para acontecer.
E aí traíram Kelly: prenderam Todd. Mesmo com Kelly tendo pedido
ajuda a Nicola. Não é à toa que ele estava furioso na delegacia.
E o Todd? Bom, parece tão simples agora que Jen sabe. Ele quis
proteger o pai. Quando ficou sabendo de Nicola, comprou uma faca.
Na volta para casa, reconheceu Joseph, viu que ele estava armado e
entrou em pânico. Então fez a única coisa que podia: protegeu o pai, a
todo custo.
Ryan
Jen abre os olhos. Por favor, que seja 2022. Mas ela sabe que não é.
Ossos salientes no quadril. Um celular antigo. Uma cama muito, mas
muito velha, meu Deus, é aquela cama baixa com a lateral de
madeira. O ar foge de seus pulmões. Não acabou.
Ela se senta e esfrega os olhos. É. O apartamento dela, o primeiro
apartamento dela. O que comprou assim que começou a trabalhar.
Deu uma entrada de três mil libras no financiamento; um valor risível
em 2022.
É um quarto e sala. Ela se levanta da cama, segue pelo corredor com
carpete marrom desgastado e entra na sala. Ela fez uma decoração
acolhedora: uma cortina de chita separando a sala da cozinha,
almofadas roxas no parapeito largo da janela, para camuflar o mofo.
Ela olha para a sala, maravilhada. Tinha se esquecido de quase tudo
isso.
A luz da manhã entra pelas janelas sujas.
Verifica o celular, mas o aparelho não mostra a data. Liga a televisão,
coloca no jornal e ativa o teletexto. Cacete, era assim que as pessoas
faziam para descobrir a data? Hoje é dia 26 de março de 2003, e são
onze horas da manhã.
Seis meses antes, o dia seguinte ao da primeira vez que viu Kelly.
Hoje é o primeiro encontro oficial deles.
Ela olha para o celular, mas ele não serve para quase nada. Dá para
mandar mensagens de texto, telefonar e jogar o jogo da cobrinha.
Acessa o SMS. A última mensagem que Kelly mandou está bem ali,
numa troca com um homem identificado em seus contatos como
Pintor/Decorador Bonitão? O homem que ela não sabia que viraria
seu marido. Café Taco, 17:30? Depois do trabalho? Bj, digitou ele, a
caixa de texto quadrada e antiquada, a tela iluminada por uma luz
verde neon de calculadora.
A resposta dela deve estar em outra caixa, as mensagens não estão
encadeadas. Tempos arcaicos.
Ela vai até a caixa de enviados. Beleza, respondeu ela, uma tentativa
de linguagem informal. Ela não se lembra de ter ficado obcecada com
como responder, mas tem certeza de que ficou.
Está tarde. Ela costumava beber muito e dormir muito. Está de
ressaca. Não se lembra do que fez na noite do dia em que conheceu
Kelly, mas presume ter incluído álcool. Passa um dedo na bancada da
cozinha — mármore falso — e avalia as suas posses: livros didáticos de
direito, mas também muitos livros com mulheres de salto alto na capa.
Velas dentro de potes de vidro e no gargalo de garrafas de vinho. Duas
calças sociais emboladas no chão, calcinha e meias ainda dentro delas.
Toma um banho demorado, assombrada com a sujeira entre os
azulejos. Engraçado como a gente se acostuma com as coisas. Tem
certeza de que, quando morava ali, não ligava a mínima. Apenas
suportava o mofo no parapeito da janela, o barulho constante lá fora, e
o fato de seu dinheiro ser sempre contadinho.
Ao sair do banho, enrolada na toalha, vai até o computador de mesa.
No vapor quente e perfumado do banho, pensou em uma coisa que
quer verificar agora.
Ela aperta o botão redondinho na frente do computador e espera ele
ligar, sentada ali com a água do banho pingando da ponta do nariz
para o carpete.
Ela vê o monitor se acender e fica pensando. Na época em que era
estagiária, tinha uma amiga chamada Alison. Jen se pergunta se foi por
isso que o nome lhe veio à cabeça com tanta facilidade algumas
semanas atrás. Alison trabalhava em outro escritório de advocacia. Elas
costumavam se encontrar todo dia na hora do almoço e compravam
um sanduíche ou uma salada numa lanchonete. Alison sempre
reclamava do direito. Mais tarde, mudou de profissão e virou
secretária, e Jen ficou onde estava, trabalhando com divórcios, e elas
perderam o contato, como normalmente acontece com amizades que
nascem de apenas um interesse comum.
É tão estranho estar ali de novo. Saber que pode ligar para Alison
agora e retomar o contato. Como a vida é segmentada. Ela se divide
tão facilmente em amizades e endereços e fases da vida que parecem
intermináveis, mas que nunca, nunca duram. Vestir terninhos.
Carregar uma bolsa de fraldas para todo canto. Se apaixonar.
Ela pisca enquanto o Windows XP carrega na frente dela. Deus do
céu, parece uma coisa saída de um filme antigo de hacker. Ela demora
um pouco para achar o ícone do Internet Explorer. A internet é
discada, e ela ainda tem que se conectar. Por fim, entra no site do Ask
Jeeves e digita: Bebê desaparecido, Liverpool.
E lá está. Eve Green. Levada no banco traseiro de um carro roubado
há alguns meses. Foi por isso que a detetive particular não conseguiu
achar: ela sumiu há vinte anos. Kelly estava envolvido na investigação
da quadrilha que a sequestrou, mas eles nunca encontraram a bebê.
Kelly guardou o cartaz. Deve ter mostrado a Todd quando contou a
história para ele. O que confirma por que o celular pré-pago, o cartaz
e o distintivo estavam no quarto de Todd. E Kelly conversou sobre isso
com Nicola, sobre o fato de a bebê nunca ter sido encontrada.
Jen sente o estômago revirar. Uma bebê desaparecida, desaparecida
durante vinte anos.
Ela olha pela janela para Liverpool, nebulosa sob o sol baixo de
inverno, tentando entender. Seu pai está vivo. Sua melhor amiga é
Alison. No futuro, ela vai se casar com Kelly, o homem com quem vai
sair pela primeira vez hoje e ter um filho chamado Todd.
Ela pensa na bebê desaparecida, em Todd, em Kelly, uma quadrilha
composta de pessoas más e pessoas infiltradas que às vezes são as duas
coisas. E, mais do que isso: pensa em como parar tudo isso.
O quebra-cabeça ainda não está completo. Está na cara que ainda
não acabou. Ela continua ali, num passado longínquo, ainda com
coisas por fazer, resolver e entender.
Precisando de algum consolo, Jen vai até o espelho e deixa a toalha
cair, incapaz de resistir à tentação de admirar o corpo dos seus 24
anos. Caramba, pensa ela, duas décadas atrasada. Que mulherão! Mas,
como todo mundo, não sabia disso até ser tarde demais.
— Não é pra mim — diz Ryan, na sala de Leo. Ele só esteve ali poucas
vezes, ficava sempre na sua salinha. A sala de Leo é absurdamente
grande. Duas pessoas poderiam ter ocupado aquela sala, sem o menor
problema. — Sabe como é — continua ele —, as mentiras, a
enganação. A polícia, de uma forma geral. Detestei trabalhar
atendendo chamadas, e detestei isso também — diz ele.
Sua voz falha de leve na última palavra, porque não é verdade. É a
maior mentira que já contou para alguém desde que mentiu para Jen
sobre seu nome. Seu nome e sua carreira, tão novos, e já parecem
atados um ao outro. Seu eu original e verdadeiro, abandonado. Ele se
pergunta o que Leo diria se lhe contasse a verdade. Mas não pode
arriscar. Eles não iam deixá-lo viver como Kelly. Foram eles que
criaram aquela identidade, para inserir Ryan no mundo do crime.
Essas identidades falsas são destruídas assim que o propósito delas
termina. Manter aquilo tornaria a polícia passível de receber ações
judiciais, acusações criminais, de sofrer represálias dos próprios
criminosos.
Eles iriam obrigá-lo a contar tudo. Que se dane o risco que isso
representa para ele mesmo, e para Jen.
Ryan não tem escolha. Tem que sair da polícia. Tem que fazer isso
antes que ela descubra. Ela é mais importante que ele agora. Isso é
que é amor, presume Ryan. Sempre soube que um dia se apaixonaria
de verdade… afinal de contas, ele é assim, não é? Só não achava que
aconteceria desse jeito. E agora tem que continuar como Kelly.
Ele fita o mentor e amigo, e estremece com as mentiras que está
contando.
— Olha, eu tenho que dizer que fico muito triste — admite Leo,
com sinceridade.
— Eu sei. Obrigado — responde Ryan.
Ele hesita, só por um segundo, se perguntando se está fazendo a
coisa certa. Mas é a polícia… ou ela. Sua escolha se consolida feito
argila solidificada. Não há a menor dúvida.
— Certo, bom, sabe como é… — Leo faz uma pausa, e Ryan acha
que ele vai acrescentar alguma coisa, mas, então, ele parece mudar de
ideia, pois se limita a olhar para Ryan e diz: — É. Eu entendo.
Desligamento imediato… tem que ser assim, quando é com trabalho
infiltrado.
— Eu sei.
— Uma pena que não tenha dado certo, Ryan.
— Pois é.
— Tem alguma ideia do que você vai fazer agora?
Ryan fita a mesa imaculada de Leo. A pergunta o faz abrir um
sorriso irônico. Imagina que agora vai ter que virar pintor/decorador,
como disse que era.
— Ainda não. Eu vou arrumar alguma coisa.
— Você pode testemunhar no caso? Seu trabalho foi… inestimável.
Ryan olha para Leo de relance. Dá para sentir a frieza do seu olhar.
— Eu sei — continua Leo. — Eu sei que a gente não achou a Eve.
— É — devolve Ryan. Isso é o que mais o incomoda. Talvez, se não
tivesse conhecido Jen. Quem sabe as coisas não teriam evoluído de
outro jeito. Quem sabe não teria ficado mais tempo. Mas não pode
optar por isso. Não agora que a conheceu. Está perdidamente
apaixonado, para sempre. E feliz com isso. — A filha… no escritório
de advocacia — acrescenta ele depressa. — Eu tenho certeza de que
ela não sabe de nada. E o pai… sinceramente, ele é só um matuto de
cidade pequena.
— Ah, é?
— Se concentra no Joseph. Nem sei se o pai entendeu o que
implicava passar os endereços — mente Ryan.
— Seu depoimento vai ser muito útil…
— Eu posso testemunhar… se você não for atrás do pai. Só do
Joseph. E dos outros soldados rasos.
— Vou conversar com o pessoal no alto escalão — responde Leo
lentamente, como se tivesse entendido que Ryan está negociando,
embora não saiba por quê.
— Tá bem.
Um problema resolvido. Talvez consiga se safar dessa. Tudo o que
precisa fazer agora é virar outra pessoa.
— Mas, ei… a gente vai pegar o chefão, né? Ele vai levar uns vinte
anos nas costas.
— É. Bom — comenta Ryan, triste, de pé diante da mesa de Leo. —
Não parece o suficiente, sei lá. Não sem a bebê.
— Eu entendo — diz Leo, sendo gentil. Isso deve acontecer o tempo
todo, principalmente com trabalho infiltrado. Ele estende a mão, e
Ryan entrega a lenda criada por eles. O passaporte emitido pela
polícia e a carteira de motorista com o nome de Kelly. Foi-se tudo. —
Pois é. Sabe de uma coisa, Ry, eu acho que também não faria isso de
novo, se tivesse a oportunidade — comenta Leo, pegando os
documentos.
Isso espanta Ryan.
— Ah, não? — pergunta ele.
— É, quer dizer, não é jeito de viver. Qual é a diferença, na verdade,
entre ser um criminoso e fingir que é um?
Ryan não responde à pergunta retórica, fica só olhando para Leo,
que, depois de alguns segundos, o conduz até a porta.
— Adieu — diz Leo baixinho enquanto ele sai.
Ryan sempre quis mudar o mundo, mas isso não importa mais.
Talvez esteja amargurado, mas, de repente, sente-se massacrado por
um sistema a respeito do qual nem refletiu antes de se envolver. Dali
para a frente, Ryan jura a si mesmo que nunca mais vai dar a mínima
para o que as pessoas pensam dele: a sociedade, empregadores…
ninguém. Não vai deixar que ninguém o conheça de verdade. Só vai
deixar uma pessoa entrar: ela.
Ele vai até a sua salinha para se despedir. Deixa a maioria das coisas
lá, na delegacia. As únicas coisas que leva consigo são os talismãs dos
quais não consegue se separar. O distintivo da polícia e o cartaz com a
bebê desaparecida. São preciosos demais para abandonar.
Vai guardar aquilo para sempre. Qualquer que seja a sua identidade.
Ao sair, pensa no envelope escondido debaixo do banco do carona
do carro, com a carteira falsa nova, comprada de um criminoso na
noite anterior. Ele não tem escolha a não ser se tornar Kelly. Se fizer
qualquer outra coisa, vai alertar as pessoas. Joseph sabe que ele gosta
da Jen. Ele não pode ficar com ela e virar outra pessoa. Não tem mais
saída: ele mergulhou na identidade do Kelly, bandido pequeno, e agora
tem que viver isso.
Kelly Brotherhood: foi o sobrenome que escolheu quando decidiu se
infiltrar como Kelly, o criminoso.
Brotherhood. Irmandade. Uma homenagem ao verdadeiro Kelly.
Pensa no que Leo falou sobre os chefões do crime organizado. Como
eles se mantêm inalcançáveis. Não viajam, não pagam imposto.
Então ele não vai mais viajar para o exterior, não vai passar por
segurança de aeroporto, nunca vai ser parado pela polícia. Mas pode
viver. Amar. Se casar.
Ele conta para a mãe aos prantos. Então fala para alguns dos
comparsas de Joseph que, quando voltar à ativa, ele entra em contato,
mas que, por enquanto, vai dar um tempo, por causa da prisão de
Joseph. Depois disso, faz uma tatuagem. A pele arde e queima,
quente, à medida que a agulha o cicatriza para sempre. Ele marca no
pulso a sua decisão, tomada às pressas no meio da noite, no momento
em que os relógios adiantavam uma hora, mas ele sabe que nunca vai
se arrepender. A data em que se apaixonou por ela e a data em que se
tornou ele mesmo.
Dia Menos Sete Mil, Cento e Cinquenta e Oito,
12:00
— O que foi aquilo? — Jen tinha saído para levar uns documentos em
outro escritório, para esfriar a cabeça, pensar melhor. E agora está de
volta, pronta para interrogar o pai enquanto pode.
— Nada.
— Não… o que tinha no papel que vocês estavam olhando? Eram
endereços?
Seu pai evita olhar para ela.
— De casas vazias? — pergunta ela.
— É só um projeto paralelo, coisa pequena. — Ele desvia os olhos.
Mas não é burro. Sabe o que está por vir e caminha até a janela para
fechar a persiana, então passa por ela para fechar a porta.
— Fazendo o quê? Vendendo informações? Pra… bandido? Não
mente pra mim — diz ela. — Se você não me disser, eu vou perguntar
pro Kelly.
Seu pai desiste de fitar o armário de arquivos e se vira para ela.
— Eu… — começa ele. — Eu duvido que o Kelly te conte alguma
coisa — diz, por fim.
Jen se senta na cadeira no canto da sala.
— A gente não tinha dinheiro nem pra pagar o aluguel — seu pai
gagueja. — Eu achei que… que eram só informações. Como as pessoas
que vendem informações de acidentes para pedir reembolso do
seguro.
— Mas isso não é um reembolso de seguro.
— Não.
— Eu achava que você era o cúmulo da honestidade.
— Eu era.
— Mas… aí…
— Dinheiro, Jen. — A força da declaração chega a fazê-lo girar na
cadeira, ainda que bem de leve. — Foi uma decisão ruim. Mas, depois
que você começa a trabalhar com alguém assim… você não consegue
mais voltar atrás. Eu me arrependo todos os dias.
— Acho bom.
Seu pai volta os olhos na direção dela. A conversa está sendo
excruciante para ele. Talvez a coisa mais estranha de voltar no tempo
sejam as mudanças pelas quais as próprias pessoas passam. Kelly, indo
de sombrio, em 2022, a leve e ingênuo, em 2003. O pai dela, da
abertura à repressão.
— Você se lembra de antes de começar a trabalhar aqui, quando a
gente não conseguia pagar o aluguel? Nós mudamos o intervalo de
pagamento para um período mais longo. Você redigiu o contrato
quando ainda estava na faculdade.
Seu primeiro contrato. Claro que lembra.
— Lembro.
— Bom, depois daquilo, apareceu um antigo cliente aqui. E… Jen,
ele me fez uma proposta que não tinha como eu recusar. Repassar os
nomes e os endereços foi o que nos manteve de pé todos esses anos.
Foi o que pagou o seu curso de direito. É o que está pagando o seu
estágio.
— Com gente sendo roubada.
— Como você descobriu?
— Não importa — diz ela.
Quase queria não ter descoberto nada, pensa ela, fitando o pai,
pensando em como nunca vai poder “des-descobrir” aquilo. Mas saber
que Kelly desvendou o terrível segredo bem no coração da sua família
e nunca contou para ela… é uma bondade. Kelly escondeu dela a
identidade dele, a transformação pela qual passou.
Porque a ama. E porque, um dia, em 2003, ele entrou no escritório
de advocacia e se apaixonou perdidamente por ela e não quis mais
olhar para trás.
Dia Menos Sete Mil, Duzentos e Trinta, 08:00
Jen fica esperando na rua onde tudo acontece naquela noite. Está
sentada numa lata-velha que chamava de carro, se perguntando como
o seu pai teve a coragem de fazer aquilo: passar informações para
bandido, esconder isso dela…
Começa a chover, gotas enormes de primavera que batem de forma
irregular no teto do carro. Ela pensa, também, no que o pai falou na
noite em que morreu. Que Kelly era bom. Por que iria dizer aquilo se
não acreditasse que Kelly era bom? Talvez ele soubesse. Talvez Kelly
tenha falado para ele.
Algo lhe vem à cabeça, como que do nada. O letreiro que viu na
feira de ciências, mas que na hora não deu importância. Ecodoppler da
aorta abdominal. É possível detectar a doença que matou o pai dela.
Ela se pergunta se a tecnologia já existe. Se existir, ela poderia fazer
isso — ligar para ele agora, mandar fazer o exame. Salvar mais de uma
vida hoje.
Ela apoia o cotovelo na janela e o rosto na palma da mão. Sabe, em
algum lugar lá no fundo, que não é a coisa certa a fazer.
Pensa nele pedindo para fazer aquele pão de alho. Tão satisfeito.
Pensa também na mãe, que morreu antes dele. Talvez fosse a sua hora
de partir. Você não pode salvar todo mundo. Não pode.
Deve ter acordado no dia em que ele morreu para falar com ele e
descobrir alguma coisa sobre os contratos das casas de férias
compartilhadas. Deve ter sido para isso. E mais nada, mas algo ainda
lhe parece inacabado.
A polícia cercou o número 123 da Greenwood Avenue com carros à
paisana.
Por fim, lá pelas onze e meia da noite, eles aparecem. Dois
adolescentes, dois meninos, na verdade, praticamente da mesma idade
que Todd. Eles saem do carro, de preto, os corpos parecendo umas
aranhas, e ela os observa entrando.
Jen sabe o que vai acontecer, e mesmo assim fica impressionada
quando acontece. Que ela, Jen, aos 43 anos de idade, esteja ali ainda
no corpo de uma Jen muito mais jovem, observando coisas que ela
sabia que iam acontecer, coisas que ela descobriu, mesmo sem
acreditar que conseguiria, que seria capaz.
Ela os observa pescando a chave pelo buraco para cartas na porta.
Sabe que as coisas estão chegando ao fim. Sabe que é o último dia,
qualquer que seja o desfecho.
Como se estivesse programado, uma mulher de ares cansados sai da
casa vizinha ao número 125, carregando uma bebê no colo. Ela coloca
a bebê, chorando, na cadeirinha do carro, depois para e apalpa os
bolsos. Ela hesita e olha a rua tranquila. Não vê o carro mal
estacionado. Não vê o crime cuidadoso acontecendo na porta do
vizinho, os dois garotos vestidos de preto, camuflados na sombra da
casa.
Naquele momento: uma luz azul. Uma explosão de luz tão azul que
é como se alguém tivesse saturado a imagem.
Polícia para todos os lados, saltando dos carros e por trás de arbustos
e prédios, prendendo os adolescentes.
Ela ouve alguém lendo os direitos deles. Pensa em Kelly na delegacia.
Ele ainda não deve ter se tornado agente infiltrado. Não fez nada que
exija depoimento sob sigilo. Ainda não se tornou a Testemunha B e
tudo que se tornaria depois. Ainda não conheceu Jen como a conhece.
A mulher com a bebê não saiu da porta de casa, ficou só olhando
tudo se desenrolar, segurando Eve, sem a menor ideia do risco que
correu; por um triz… A gente só pensa nas coisas ruins que
aconteceram, e não nas coisas das quais, por sorte, nos esquivamos.
Jen fecha os olhos, encosta a cabeça no volante e quer dormir. Está
quase pronta. Ela tem uma noção profunda, enterrada embaixo de
tudo, exatamente como Andy falou que teria. Ela viveu a própria vida
uma vez, e deixou tudo isso passar, mas sua mente inteligente, seu
inconsciente, sabia algumas coisas.
Ela está quase pronta.
Jen acorda. É dia 30 de outubro e, por algum motivo que ela não sabe
qual, se sente como se tivesse a vida inteira pela frente.
— Tá tudo bem? — pergunta Todd da escada, no segundo andar,
enquanto ela veste um roupão. — Você tá legal?
— Tô… — responde Jen, na dúvida. Está com uma dor de cabeça,
mas é só isso. Sente cheiro de comida lá embaixo. Ryan deve ter
começado a preparar o café da manhã.
— Você falou um monte de merda ontem à noite. Achou que eu
tinha uma namorada chamada Clio?
— Quem é Clio? — pergunta Jen.
Epílogo
Dia Menos Um,
A consequência não intencional
Força histérica é uma demonstração de força extrema por parte de seres humanos, além
do que se acredita que seria normal, em geral em situações de risco de vida, sobretudo
envolvendo mães. Existem evidências de mulheres que levantam carros para resgatar bebês
recém-nascidos, criando às vezes um enorme campo de força de energia. Na verdade,
existem também relatos sobrenaturais, como loops temporais, embora até hoje nada
tenha sido provado. Os que os experimentam muitas vezes descrevem uma sensação de
déjà-vu associada ao episódio de força histérica.
Agradecimentos
Holly, 18:38: Como você vai fazer isso? A pessoa vai ficar sendo esfaqueada repetidas
vezes?
Eu, 18:38: É, acho que sim. E o cara tem que voltar mais e mais no tempo até o
momento em que entrou na gangue, talvez, ao ponto onde as coisas não começam. Ai,
meu Deus, então eu vou ter que escrever de trás pra frente?
Simples assim.
Eu tinha acabado de assistir a Bonecas russas e sentei para ver o
jornal, e aí começou uma reportagem sobre crimes com arma branca
que atraiu a minha atenção. Com autor é assim. Você nunca está na
sua mesa, nunca é na hora certa, mas sempre, inevitavelmente, as
ideias vêm, e acho que esta foi a minha melhor até agora. Foi uma
honra escrever este livro, passar o ano com a Jen e o Todd e me
apaixonar por eles, como espero que você também tenha se
apaixonado.
É lógico que a ideia mudou muito ao longo do planejamento e do
processo de escrita, mas o cerne continua aqui: um romance policial
em que você tem que impedir o desfecho, contado de trás para a
frente. Faz sentido para mim, de um jeito meio simplista — todo
crime não tem o seu início no passado, enterrado profundamente na
história?
Escrevi este livro entre julho de 2020 e maio de 2021, durante dois
lockdowns, um que durou quase cinco meses. Foi só o que fiz durante
a pandemia. Eu pensei que, se pudesse lançar um bom livro, então
pelo menos algo de bom viria daquele período obscuro. (Meu
namorado me pediu em casamento durante o lockdown de janeiro e
mesmo assim alcancei minha meta de palavras naquele dia.)
Dediquei este livro às minhas agentes, Felicity Blunt e Lucy Morris.
É difícil para um autor explicar a importância que é para a sua carreira
ter duas agentes fantásticas. Elas dão conselhos, editam, seguram a
minha mão, vendem o meu projeto e, acima de tudo, fazem de mim
uma autora melhor. Elas nunca ficaram preocupadas com a ideia,
nunca acharam que seria ambiciosa demais, e por isso lhes sou
eternamente grata.
Também não é exagero nenhum dizer que os meus editores Maxine
Hitchcock e Rebecca Hilsdon, na Penguin Michael Joseph, mudaram
completamente a minha vida. Afirmo isso em todos os meus
agradecimentos, mas é porque é verdade: já escrevi seis best-sellers, e
isso é por causa do time maravilhoso da PMJ: Max, Rebecca, Ellie
Hughes, Sriya Varadharajan, Jen Breslin (o gênio) e todo o pessoal da
equipe de vendas, além da minha copidesque Sarah Day. Seis best-
sellers no Sunday Times, uma indicação para o clube do livro de
Richard e Judy, um e-book no primeiro lugar na lista de mais
vendidos… quase meio milhão de livros vendidos: a lista das coisas
que eles conquistaram com os meus livros não tem fim.
Obrigada, também, à minha nova editora nos Estados Unidos, Lyssa
Keusch, e à equipe da William Morrow, HarperCollins. Mal posso
esperar para começar a trabalhar com vocês!
Enquanto escrevia este livro, consultei alguns especialistas. Richard
Price (que tem mesmo uma camisa de malha do J. D. Salinger), por
sua experiência em física e em curva fechada do tipo tempo. Neil
Greenough, pela ajuda com protocolos policiais. Nem sei como
explicar a importância de conhecer alguém capaz de ajudar com isso,
e o Neil é imensamente generoso com o tempo dele e com as minhas
perguntas estranhas (os erros são todos meus e, na verdade, são
deliberados: unidade nenhuma de polícia secreta trabalharia numa
delegacia, é claro).
Paul Wade, por conversar sobre multiversos comigo. Tyler Thomas,
por ser tão legal e tão parecido com Todd. Obrigada aos meus gurus
de Liverpool, John Gibbons e Neil Atkinson.
E ao meu pai, lógico, pelas muitas conversas, as sugestões
inestimáveis e por ser sempre o meu primeiro leitor.
Obrigada, também, a Jo Zamo, por dedicar seu nome, e a Kenneth
Eagles e Kacie, por me deixarem pegar emprestada a sua tradição
familiar.
Quanto mais perto do fim da casa dos 30 anos eu chego, mais
percebo que não seria muita coisa sem as minhas muitas e tão variadas
melhores amizades. A Lia Louis, Holly Seddon, Beth O’Leary, Lucy
Blackburn, Phil Rolls e os Wades: vocês são os meus terapeutas, os
meus comediantes e os confidentes de meus segredos mais íntimos.
E, por fim, obrigada, também, a David. Escrevo este agradecimento
a vinte horas de ele se tornar meu marido. (Ah, escritores que se
casam: quem mais escreveria o agradecimento do seu livro numa tarde
de domingo, quando vai se casar no dia seguinte?). Em qualquer
universo, qualquer que seja a linha do tempo, qualquer que seja o seu
nome, vou te amar até o Dia Menos Cinco Mil, Trezentos e Setenta e
Dois (e de volta).
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub
pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.
Lugar errado, hora errada
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