Pat Conroy - o Príncipe Das Marés
Pat Conroy - o Príncipe Das Marés
Pat Conroy - o Príncipe Das Marés
Sobre a obra:
Sobre nós:
Eram cinco horas da tarde quando o telefone tocou em minha casa na ilha
Sullivan, Carolina do Sul. Minha mulher, Sallie, e eu havíamos acabado de sentar
para tomar um drinque na varanda, de onde se avistava o porto de Charleston e o
Atlântico. Sallie foi atender ao telefone e eu gritei:
- Seja quem for, não estou em casa.
- É sua mãe - disse Sallie, voltando do telefone.
- Diga que eu morri - implorei. - Por favor, diga que morri na semana
passada e que você esteve muito ocupada para avisar.
- Fale com ela, por favor. Ela diz que é urgente.
- Ela sempre diz isso. Nunca é urgente quando ela diz que é.
- Desta vez deve ser. Ela está chorando.
- É normal minha mãe chorar. Não lembro um dia em que não tenha
chorado.
- Ela está esperando, Tom.
Enquanto me levantava para atender ao telefone, minha mulher disse:
- Seja gentil, Tom. Você nunca é muito gentil quando fala com sua mãe.
- Odeio minha mãe, Sallie. Por que você tenta acabar com os pequenos
prazeres que tenho na vida?
- Escute apenas a sua Sallie e seja bem gentil.
- Se ela disser que quer vir passar a noite aqui eu me divórcio. Não é nada
pessoal, mas é você que está me fazendo atender ao telefone.
- Alô, querida mamãe - eu disse alegremente, sabendo que minha bravata
insincera nunca a enganara.
- Tenho uma notícia ruim para você, Tom - disse ela.
- E desde quando nossa família produz alguma coisa além disso?
- São notícias bem ruins. Trágicas.
- Não posso esperar para ouvir.
- Não quero contar por telefone. Posso ir até aí?
- Se quiser.
- Só quero se você quiser que eu vá.
- Você disse que queria vir. Não falei que queria que viesse.
- Por que você quer me magoar numa hora dessas?
- Não sei que tipo de hora é esta. Você não me disse o que há de errado.
Não quero magoá-la. Venha para cá e poderemos mostrar nossas presas por
algum tempo. - Desliguei o telefone e gritei a plenos pulmões: - Divórcio!
Enquanto esperava por minha mãe, observei minhas três filhas juntarem
conchas em frente à casa. Tinham 10, 9 e 7 anos, duas meninas de cabelos
castanhos divididas por uma loira, cuja idade, altura e beleza sempre me
surpreenderam; eu podia tirar a medida de minha própria decadência por seu
alegre desenvolvimento. Podia-se acreditar no nascimento de deusas ao observar
o vento passando por seus cabelos e suas pequenas mãos fazendo delicados gestos
simultâneos para tirá-los dos olhos, enquanto suas risadas irrompiam com as
ondas. Jennifer chamou as outras duas ao levantar uma concha de formato
especial para vê-la melhor. Levantei-me e fui até a cerca na qual um vizinho
havia parado para conversar com elas.
- Sr. Brighton - chamei -, o senhor poderia se certificar de que as meninas
não fumem ervas na praia novamente?
As meninas olharam para mim, acenaram despedindo-se do sr. Brighton e
correram pelas dunas para voltar para casa. Depositaram suas coleções de
conchas sobre a mesa em que estava meu drinque.
- Pai - disse Jennifer, a mais velha -, você sempre nos deixa
envergonhadas na frente de estranhos.
- Achamos um caramujo - berrou Chandler, a mais nova. - Está vivo.
- Sim, está vivo - eu disse, revirando a concha em minhas mãos. -
Podemos comê-lo no jantar esta noite.
- Péssimo, pai - disse Lucy. - Grande refeição. Caramujo.
- Não - discordou a menor. - Vou levá-lo de volta para a praia e colocá-lo
na água. Imaginem o medo que ele deve estar sentindo ao ouvir que vocês
querem comê-lo.
- Oh, Chandler - disse Jennifer. - Isso é ridículo. Caramujos não falam
nossa língua.
- Como é que você sabe? - desafiou Lucy. - Você não sabe tudo. Não é a
rainha do mundo.
- Sim - concordei. - Você não é a rainha do mundo.
- Gostaria de ter dois irmãos - disse Jennifer.
- E nós gostaríamos de ter um irmão mais velho - respondeu Lucy,
naquela adorável raiva das loiras.
- Você vai matar esse caramujo feio, pai? - indagou Jennifer. - Chandler
ficaria louca.
- Não, vou levá-lo de volta para a praia. Não suportaria se Chandler me
chamasse de assassino. Todas para o colo do paizinho!
As três meninas ajeitaram com indiferença seus bumbuns perfeitos sobre
minhas pernas e beijei cada uma delas no pescoço e na nuca.
- Este é o último ano em que podemos fazer isso, meninas. Vocês estão
ficando imensas.
- Imensas? Eu certamente não estou ficando imensa, pai - corrigiu
Jennifer.
- Me chame de paizinho.
- Só nenês chamam os pais assim.
- Então eu também não vou chamar você de paizinho - disse Chandler.
- Eu gosto de ser chamado desse jeito. Faz com que me sinta adorado.
Meninas, vou lhes fazer uma pergunta e quero que respondam com sinceridade.
Não escondam seus sentimentos do paizinho, digam apenas o que sentem no
fundo do coração.
Jennifer girou os olhos e protestou:
- Não, pai, esse jogo outra vez!
- Quem é o maior ser humano que já encontramos neste mundo?
- Mamãe - respondeu rapidamente Lucy, sorrindo com malícia para o pai.
- Quase certo - repliquei. - Vamos tentar de novo. Pensem na pessoa mais
esplêndida, mais maravilhosa que conhecem. A resposta tem que brotar
espontaneamente em seus lábios.
- Você! - gritou Chandler.
- Um anjo. Um anjo puro e inteligente! O que você quer, Chandler?
Dinheiro? Jóias? Peles? Ações? Pode pedir o que quiser, querida, e seu adorável
paizinho conseguirá para você.
- Não quero que você mate o caramujo.
- Matar o caramujo! Vou mandá-lo para a faculdade e introduzi-lo nos
negócios.
- Pai - disse Jennifer -, estamos ficando muito velhas para brincar conosco
desse jeito. Você está começando a nos envergonhar na frente de nossos amigos.
- Quais amigos?
- Johnny.
- Aquele cretininho mascador de chicletes, cheio de espinhas e com a
boca aberta como um idiota?
- É meu namorado - disse Jennifer, com orgulho.
- Ele é um horror, Jennifer - completou Lucy.
- É bem melhor do que aquele anão que você chama de namorado -
Jennifer respondeu rapidamente.
- Eu lhes avisei sobre os meninos. São todos odiosos, têm a mente suja, são
pequenos depravados selvagens que fazem coisas desagradáveis como urinar nos
arbustos e meter o dedo no nariz.
- Você já foi menino um dia - disse Lucy. - Ah! Vocês imaginam papai
como um menino? Que piada!
- Eu era diferente. Um príncipe. Um raio de luar. Mas não vou interferir
em sua vida amorosa, Jennifer. Você me conhece, não vou ser um pai cansativo
que nunca está satisfeito com os rapazes que as filhas trazem para casa. Não
pretendo interferir. É sua escolha e sua vida. Podem se casar com quem
quiserem, meninas, assim que terminarem o curso de medicina.
- Não quero ir para a faculdade de medicina - disse Lucy. - Vocês sabiam
que a mamãe tem que pôr o dedo no traseiro das pessoas? Quero ser uma
poetisa, como Savannah.
- Então, casamento depois que seu primeiro livro de poesias seja
publicado. Eu me comprometo. Não sou um homem inflexível.
- Posso me casar na hora que quiser - disse Lucy, com teimosia. - Não vou
pedir sua permissão. Serei uma mulher adulta.
- Esse é o espírito da coisa, Lucy - aplaudi. - Não escutem nada que seus
pais disserem. Essa é a única regra de vida que eu quero que vocês tenham na
cabeça e sigam.
- Eu não quis dizer isso. Você só fala por falar, paizinho - disse Chandler
enquanto colocava a cabeça sob meu queixo. - Quer dizer, pai - corrigiu-se ela.
- Lembre-se do que eu lhes contei. Ninguém me disse esse tipo de coisa
quando eu era criança - falei com seriedade. - Os pais foram postos na terra com
o único propósito de desgraçar a vida dos filhos. Essa é uma das mais importantes
leis de Deus. Agora, escutem. O papel de vocês é fazer sua mãe e eu
acreditarmos que estão fazendo e pensando tudo o que queremos. Mas, na
verdade, não estarão. Estarão tendo seus próprios pensamentos e saindo em
aventuras secretas. Porque sua mãe e eu estaremos fodendo vocês.
- Como vocês fodem conosco? - perguntou Jennifer.
- Ele nos envergonha na frente de nossos amigos - sugeriu Lucy.
- Eu não faço isso. Mas sei que estamos fodendo com vocês um pouquinho
a cada dia. Se soubéssemos como fazemos isso, poderíamos parar. Não iríamos
fazer de novo porque adoramos vocês. Mas somos pais e não podemos evitar. E
nossa função foder com vocês. Entendem?
- Não - responderam as três em coro.
- Ótimo - eu disse, tomando um gole do meu drinque. - Não se espera que
nos entendam. Nós somos seus inimigos. Espera-se que vocês empreendam uma
guerrilha contra nós.
- Não somos gorilas - disse Lucy, afetadamente. - Somos garotinhas.
Sallie retornou à varanda, usando um vestido cor de creme e sandálias
combinando. Suas longas pernas estavam bronzeadas e eram muito bonitas.
- Interrompo alguma conferência do dr. Spock, o pediatra mais famoso do
mundo? - disse ela, sorrindo para as crianças.
- Papai nos disse que somos gorilas - explicou Chandler, saindo de meu
colo e indo sentar-se no da mãe.
- Coloquei um pouco de ordem na casa por causa de sua mãe - disse
Sallie, acendendo um cigarro.
- Você vai morrer de câncer se continuar fumando isso, mãe - disse
Jennifer. - Vai se engasgar com o próprio sangue. Aprendemos isso na escola.
- Chega de escola para vocês - disse Sallie, soltando a fumaça.
- Por que você arrumou a casa? - perguntei.
- Porque detesto a maneira como sua mãe olha para minha casa quando
vem aqui. Parece que tem vontade de vacinar as meninas contra tifo quando vê a
desordem na cozinha.
- É apenas inveja porque você é médica e ela parou os estudos depois de
vencer um jogo de soletrar na terceira série. De maneira que você não precisa
arrumar a casa a cada vez que ela vem espalhar a peste. Basta queimar a
mobília e vaporizar desinfetante quando ela vai embora.
- Você é um pouco duro com sua mãe, Tom. Ela está apenas tentando ser
novamente uma boa mãe, a seu modo - disse Sallie, examinando os cabelos de
Chandler.
- Por que você não gosta da vovó, pai? - perguntou Jennifer.
- Quem disse que eu não gosto da vovó?
Lucy continuou:
- Sim, pai, por que você sempre grita "Não estou em casa" quando ela
telefona?
- É por pura proteção, meu amor. Você sabe como um baiacu infla o
corpo quando está em perigo? Bem, é a mesma coisa quando a vovó telefona. Eu
inflo o corpo e grito que não estou em casa. Funcionaria perfeitamente, mas sua
mãe sempre me trai.
- Por que você não quer que ela saiba que está aqui, paizinho? - perguntou
Chandler.
- Porque, se ela souber, terei que falar com ela e, quando falo, lembro-me
da infância e eu odiava minha infância. Preferia ter sido um baiacu.
- Será que nós vamos gritar "Não estou em casa" quando formos adultas e
você nos telefonar?
- Claro - disse, com mais veemência do que pretendia. - Porque, nessa
época, estarei fazendo com que se sintam mal dizendo "Por que eu nunca te vejo,
querida?" ou "Fiz alguma coisa errada, querida?" ou "Meu aniversário foi na
quinta-feira passada" ou "Vou fazer um transplante de coração na próxima terça-
feira" ou "Você poderia ao menos vir tirar o pó do pulmão de aço?" Depois que
vocês crescerem e me deixarem, meu único dever neste mundo será o de fazer
vocês se sentirem culpadas. Tentarei arruinar suas vidas.
- Papai acha que sabe tudo - disse Lucy a Sallie, e as outras duas
acenaram, concordando.
- O que é isso? Críticas de minhas próprias crianças? Meu próprio sangue e
minha carne percebendo imperfeições em meu caráter? Eu tolero tudo, menos
críticas, Lucy.
- Todos os nossos amigos pensam que papai é louco, mãe - completou
Lucy. - Você age como se espera que uma mãe aja. Mas papai não age como os
outros pais.
- Então, finalmente, chegou aquele momento pavoroso em que minhas
filhas se voltam contra mim e acabam comigo! Se aqui fosse a Rússia, elas me
levariam às autoridades comunistas e eu estaria em uma mina de sal na Sibéria,
congelando meu rabo.
- Ele disse uma palavra feia, mãe - disse Lucy.
- Sim, querida, eu ouvi.
- Cabo - falei rapidamente. - O cabo do meu guarda-chuva está quebrado.
- O cabo do guarda-chuva está sempre quebrado quando ele diz aquela
palavra.
- Neste exato momento, minha mãe está atravessando a ponte Shem
Creek. Nenhum pássaro canta no planeta quando minha mãe está a caminho.
- Tente ser gentil, Tom - disse Sallie com voz enlouquecedoramente
profissional. - Não deixe que ela o tire do sério.
Resmunguei, bebendo com vontade.
- Meu Deus, gostaria de saber o que ela quer. Ela só vem aqui quando pode
arruinar minha vida de algum modo. Ela é perita em vidas arruinadas. Poderia
fazer conferências sobre o assunto. Disse que tem más notícias. Quando minha
família tem más notícias, é sempre algo terrível, bíblico, saído diretamente do
Livro de Jó.
- Pelo menos admita que sua mãe está tentando ser sua amiga novamente.
- Admito. Ela está tentando - disse, com cansaço. - Eu gostava mais dela
quando não tentava, quando era um monstro arrependido.
- O que há para o jantar hoje, Tom? - perguntou Sallie, mudando de
assunto. - Alguma coisa está cheirando maravilhosamente.
- Isso é pão fresco. Para o jantar, pesquei alguns linguados e os recheei
com carne de siri e camarões. Há também uma salada de espinafre fresco e
abobrinhas e cebolinhas passadas na manteiga.
- Maravilhoso - disse ela. - Eu não deveria estar bebendo isto. Vou ficar de
plantão esta noite.
- Eu preferiria frango frito - disse Lucy. - Vamos até a lanchonete?
- Por que você cozinha, pai? - perguntou Jennifer, subitamente. - O sr.
Brighton dá risada quando fala a respeito de você fazer o jantar para mamãe.
- Sim - completou Lucy -, ele diz que é porque a mamãe ganha duas vezes
mais dinheiro que você.
- Aquele filho-da-mãe - Sallie murmurou entre os dentes fortemente
cerrados.
- Isso não é verdade - disse eu. - Faço o jantar porque sua mãe ganha
cinco ou seis vezes mais que eu.
- Lembrem-se, meninas, foi seu pai quem me colocou na faculdade de
medicina. E não o magoe novamente, Lucy - advertiu Sallie. - Vocês não
precisam repetir tudo o que o sr. Brighton diz. Seu pai e eu tentamos partilhar as
tarefas domésticas.
- Todas as mães que eu conheço cozinham para suas famílias - disse Lucy
com atrevimento, considerando a amargura que se alojara nos olhos cinzentos de
Sallie. - Exceto você.
- Eu lhe disse, Sallie - falei, olhando os cabelos de Jennifer. - Se você criar
seus filhos no Sul, produzirá sulistas. E um sulista é um dos tolos que Deus pôs no
mundo.
- Nós somos sulistas e não somos tolos - retrucou Sallie.
- Aberrações, querida. Acontecem uma ou duas vezes por geração.
- Meninas, subam e vão se lavar. Lila deve chegar logo.
- Por que ela não gosta que nós a chamemos de vovó? - Lucy perguntou.
- Porque isso a faz se sentir velha. Agora, andem - respondeu Sallie,
forçando as meninas a entrar.
Ao voltar, Sallie inclinou-se e roçou levemente os lábios em minha testa.
- Sinto muito que Lucy tenha dito aquilo. Ela é tão convencional.
- Não me incomoda, querida. Juro que não. Você sabe que eu adoro o
papel de mártir, quanto vicejo em uma atmosfera de autopiedade. Pobrezinho do
Tom Wingo, limpando prataria enquanto sua mulher descobre uma cura para o
câncer. É triste ver Tom Wingo fazendo um suflê perfeito enquanto sua mulher
fatura 100 mil dólares por ano. Nós sabíamos que isso iria acontecer, Sallie.
Conversamos a esse respeito.
- Ainda assim não gosto nem um pouco disso. Não confio nesse ego de
macho pavoneando-se dentro de você. Sei que vai magoá-lo. Faz com que me
sinta culpada como o diabo, pois eu sei que as meninas não entendem por que
não estou em casa com biscoitos e leite quando chegam da escola.
- Mas elas têm orgulho porque a mãe é médica.
- Mas não parecem se orgulhar porque você é professor e técnico de
esportes, Tom.
- Era, Sallie. Passado. Fui despedido, lembra? Eu também não me orgulho
disso, de modo que não podemos realmente culpá-las. Oh! Deus, é o carro da
minha mãe que estou ouvindo parar lá na entrada? Posso tomar três Valium,
doutora?
- Preciso deles para mim, Tom. Lembre-se: terei que agüentar a inspeção
de sua mãe pela casa antes que ela parta para cima de você.
- A bebida não está ajudando - resmunguei. - Por que a bebida falha na
hora em que deveria entorpecer meus sentidos, quando eu mais preciso dela?
Devo convidar minha mãe para jantar?
- Claro, mas você sabe que ela não vai ficar.
- Ótimo, então vou convidá-la.
- Seja gentil com ela, Tom. Ela parece estar triste e desesperada para ser
sua amiga.
- Amizade e maternidade não são compatíveis.
- Você acha que suas filhas vão pensar assim?
- Não, nossas filhas vão apenas odiar o pai. Você já percebeu como elas
estão fartas do meu senso de humor? E a mais velha tem apenas 10 anos! Preciso
desenvolver alguns hábitos diferentes.
- Eu gosto de seus hábitos, Tom. Acho que são muito divertidos. Essa é
uma das razões por que me casei com você. Sabia que passaríamos boa parte do
tempo dando risada.
- Deus abençoe você, doutora. Está bem, eis aí minha mãe. Você poderia
atar um pouco de alho em volta de meu pescoço e trazer um crucifixo?
- Silêncio, Tom, ela pode ouvir.
Minha mãe apareceu à porta, imaculadamente vestida e penteada, e seu
perfume chegou à varanda vários segundos antes dela. Minha mãe sempre se
conduzia como se estivesse se aproximando dos aposentos de uma rainha. Era tão
bem-feita como um iate - linhas simples, eficiente, cara. Sempre foi bonita
demais para ser minha mãe, e houve uma época em minha vida em que as
pessoas pensavam que eu fosse seu marido. Não posso nem dizer quanto ela
adorava aquele tempo.
- Ah, então vocês estão aqui - disse minha mãe. - Como vão, meus
queridos?
Ela nos beijou. Estava alegre, mas as más notícias transpareciam em seus
olhos.
- Cada vez que a vejo, você está mais linda, Sallie. Concorda, Tom?
- Claro que sim, mãe. E você também - respondi, reprimindo um
resmungo. Minha mãe conseguia me fazer dizer futilidades que jorravam como
uma cascata incessante.
- Muito obrigada, Tom. Você é muito gentil em dizer isso à sua velha mãe.
- Minha velha mãe tem o mais belo corpo de toda a Carolina do Sul -
repliquei, contando minha segunda futilidade.
- Bem, posso lhe dizer que trabalho duro para isso. Os homens não sabem
como as mulheres sofrem para manter essa aparência jovem, não é mesmo,
Sallie?
- Realmente não sabem.
- Você engordou de novo, Tom - ela percebeu, alegremente.
- Vocês, mulheres, não sabem o que os homens têm de fazer para se
tornarem uns gordos de merda.
- Olhe, Tom, eu não disse isso com sentido de crítica - replicou minha
mãe, com voz magoada e santarrona. - Se você é tão sensível assim, não falarei
mais. Esse peso extra lhe fica bem. Você sempre parece mais bonito com o rosto
mais cheio. Mas eu não vim aqui hoje para discutir. Tenho algumas más notícias.
Posso me sentar?
- É claro, Lila. Vou lhe preparar um drinque - disse Sallie.
- Um gim-tônica, querida. Com algumas gotas de limão, se tiver.
- Onde estão as crianças, Tom? Não quero que elas ouçam.
- Estão lá em cima - disse, olhando para o pôr-do-sol, esperando.
- Savannah tentou se matar novamente.
- Oh, Deus! - disse Sallie, que entrava naquele momento. - Quando?
- Parece que foi na semana passada. Eles não têm certeza. Estava
desmaiada quando a encontraram. Ela saiu do estado de coma, mas...
- Mas o quê? - murmurei.
- Mas está naquele estado idiota em que fica toda vez que precisa de
atenção.
- Isso é chamado interlúdio psicótico, mãe.
- Savannah alega que é psicótica - ela respondeu, rispidamente. - Mas não
é uma verdadeira psicótica, tenho certeza.
Antes que eu pudesse responder, Sallie interrompeu com uma pergunta:
- Onde ela está, Lila?
- Em um hospital psiquiátrico de Nova York. Bellevue ou algum nome
assim. Está anotado em minha casa. Não posso imaginar. Uma médica me
telefonou. Uma doutora como você, Sallie, só que é psiquiatra. Tenho certeza de
que não conseguiu se virar em nenhum outro campo da medicina, mas, cada um
na sua, eu sempre digo.
- Eu quase segui carreira como psiquiatra - disse Sallie.
- Bem, certamente dá um grande prazer ver mocinhas se saindo tão bem
em suas profissões. Eu não tive esse tipo de oportunidade quando era jovem. Em
todo caso, essa mulher me telefonou para dar a trágica notícia.
- Como foi que ela tentou, mãe? - disse, procurando me conter. Sentia que
estava perdendo o controle.
- Cortou os pulsos novamente, Tom - minha mãe falou, começando a
chorar. - Por que ela gosta de fazer essas coisas comigo? Já não sofri o suficiente?
- Ela fez isso para si mesma, mãe.
- Vou buscar seu drinque, Lila - disse Sallie, ao entrar.
Minha mãe secou as lágrimas com um lenço que tirou da bolsa.
Em seguida, disse:
- Acho que a doutora é judia. Tem um daqueles nomes impossíveis de se
pronunciar. Talvez Aaron a conheça.
- Aaron é da Carolina do Sul, mãe. Só por ser judeu não significa que
conheça todos os judeus do país.
- Mas ele poderia descobrir alguma coisa a respeito dela. Para saber se é
boa. A família de Aaron é muito bem informada.
- Se ela for judia, é certo que a família de Aaron deve ter um arquivo a
seu respeito.
- Não precisa ser sarcástico comigo, Tom. Como acha que me sinto?
Como acha que me sinto quando meus filhos fazem essas coisas terríveis? Sinto-
me uma fracassada. Você não imagina como as boas pessoas da sociedade me
olham quando descobrem quem sou.
- Você vai para Nova York?
- Não, não posso ir, Tom. É uma época muito difícil para mim. Vamos dar
um jantar no sábado, que está planejado há meses. E a despesa então! Tenho
certeza de que Savannah está em boas mãos e não há nada que possamos fazer.
- Estar lá é algo que podemos fazer, mãe. Você nunca percebeu isso.
- Falei à psiquiatra que você poderia ir - minha mãe disse, esperançosa.
- Claro que eu vou.
- Você está sem emprego e será fácil para você ir.
- Meu emprego é procurar emprego.
- Você devia ter aceitado aquela vaga de corretor de seguros. Essa é
minha opinião, apesar de você não ter pedido meu conselho.
- Como é que você soube disso?
- Sallie me contou.
- Contou?
- Ela está preocupada com você. Todos estamos, Tom. Não se pode
esperar que ela o sustente para o resto da vida.
- Ela também lhe disse isso?
- Não. Só estou dizendo o que eu sei. Você precisa encarar os fatos. Nunca
mais vai conseguir ensinar ou treinar novamente na Carolina do Sul. Precisa
começar tudo de novo, abrir caminho desde o início, pôr à prova com algum
empregador interessado em lhe dar uma chance.
- Você fala como se eu nunca na vida tivesse trabalhado, mãe - disse,
cansado e precisando fugir dos olhos dela, querendo que o sol se pusesse com
mais rapidez, necessitando da escuridão.
- Faz um bocado de tempo que você não tem emprego - insistiu ela. - E
uma mulher não respeita um homem que não ajuda a trazer comida para casa,
isso eu lhe garanto. Sallie tem sido um anjo, mas não se pode esperar que ela
ganhe todo o dinheiro de que vocês precisam enquanto você fica aqui sentado,
meditando nessa varanda.
- Já pedi emprego mais de setenta vezes.
- Meu marido pode lhe arranjar um. Ele já se ofereceu para colocá-lo nos
negócios.
- Você sabe que não posso aceitar ajuda de seu marido. Você, pelo menos,
entende isso.
- Certamente não - minha mãe estava quase gritando. - Por que eu deveria
entender? Ele vê sua família sofrer porque você não pode tirar sua bunda gorda
dessa cadeira e sair para procurar um emprego. Meu marido quer fazer isso para
ajudar Sallie e as meninas, não por você. Não quer que elas sofram mais do que
já sofreram. Está disposto a ajudá-lo, mesmo sabendo quanto você o odeia.
- Estou contente por ele saber quanto o odeio!
Sallie voltou à varanda com o drinque de minha mãe e um novo para
mim. Tive vontade de jogar fora a bebida e comer o copo.
- Tom estava me dizendo quanto me odeia e a tudo o que eu defendo.
- Errado. Eu simplesmente disse, sob grande provocação, que odeio seu
marido. Você trouxe o assunto à baila.
- Eu trouxe à baila o assunto de seu desemprego. Já faz mais de um ano,
Tom, e isso é tempo suficiente para que um homem com sua capacidade arranje
alguma coisa, qualquer coisa. Você não acha embaraçoso para Sallie sustentar
um homem bem crescidinho com todos os membros perfeitos?
- Agora chega, Lila - disse Sallie, com raiva. - Você não tem o direito de
me usar para magoar Tom.
- Estou tentando ajudá-lo, você não vê?
- Não. Não desse modo, Lila.
- Preciso ir a Nova York amanhã, Sallie - disse eu.
- Claro que sim.
- Você vai dizer a Savannah quanto eu a amo, não é, Tom?
- Claro, mãe.
- Sei que ela está contra mim tanto quanto você - lamuriou-se ela.
- Nós não estamos contra você.
- Claro que estão. Pensa que não sinto seu desprezo por mim? Acha que
não sei quanto vocês odeiam o fato de que finalmente sou feliz? Vocês adoravam
quando eu era infeliz e vivia com seu pai.
- Nós não adorávamos aquilo, mãe. Tivemos uma infância terrível, que
nos jogou muito bem numa vida adulta terrível.
- Parem, por favor - implorou Sallie. - Parem de magoar um ao outro.
- Eu sei o que é ser casada com um macho Wingo, Sallie. Eu sei o que
você está passando.
- Mãe, você precisa vir me visitar com mais freqüência. Na verdade,
andei sentindo um minuto ou dois de felicidade antes de você chegar.
Sallie ordenou:
- Quero que isso termine, e já! Precisamos pensar em como ajudar
Savannah.
- Já fiz por ela tudo que podia - disse minha mãe. - O que quer que ela
faça, vai jogar a culpa em mim.
- Savannah é uma mulher doente - Sallie argumentou, suavemente. -Você
sabe disso, Lila.
Minha mãe se animou ao ouvir isso, passou o copo para a mão esquerda e
se inclinou para falar com Sallie.
- Você é uma profissional, Sallie. Sabe que tenho lido um bocado sobre
psicose ultimamente. Os maiores pesquisadores descobriram que é um
desequilíbrio químico que não tem nada a ver com hereditariedade ou ambiente.
- Tem havido um bocado de desequilíbrio químico em nossa família, mãe!
- disse, sem conseguir controlar a fúria.
- Alguns médicos afirmam que é falta de sal no organismo.
- Ouvi falar algo a esse respeito, Lila - Sallie concordou, gentilmente.
- Sal! - gritei. - Vou levar para Savannah um pacote de sal e fazer com que
ela o coma com uma colher. Se é apenas de sal que ela precisa, vou colocá-la
numa dieta que vai fazer com que se pareça com a mulher de Lot.
- Estou apenas citando o que os grandes pesquisadores dizem. Se você quer
se divertir à custa de sua mãe, esteja à vontade, Tom. Sei que sou um alvo fácil,
uma velha que sacrificou os melhores anos de sua vida pelos filhos.
- Mãe, por que você não se emprega como engarrafadora de culpa?
Poderíamos vendê-la a todos os pais americanos que ainda não dominam a fundo
a arte de fazer os filhos se sentirem uma merda o tempo todo. Você certamente
seria uma vencedora com essa patente nas mãos.
- E então talvez você tivesse afinal um emprego, filho - disse ela com
frieza, enquanto se levantava da cadeira. - Por favor, telefone depois que visitar
Savannah. Você pode inverter as acusações.
- Por que não fica para jantar, Lila? Você ainda nem viu as meninas -
disse Sallie.
- Virei quando Tom estiver em Nova York. Quero levar as meninas até a
ilha Pawley s para passarem umas semanas. Se você não se incomodar, é claro.
- Seria ótimo.
- Até logo, filho. Tome conta de sua irmã.
- Até logo, mãe - respondi e me levantei para beijá-la. - Sempre tomei.
Já fazia nove anos desde aquela primeira visita a Nova York para
testemunhar a leitura triunfante dos poemas de Savannah, no Greenwich Village.
Três anos haviam se passado desde que Savannah e eu, os gêmeos que no
passado eram inseparáveis, nos falamos pela última vez. Eu não podia pronunciar
seu nome sem que aquilo doesse. Quase não podia pensar nos últimos cinco anos
sem me sentir despedaçado. As lembranças me dominavam quando atravessei
novamente a ponte da rua 59 e voltei a Manhattan como um cavaleiro do rei,
chamado pelo hábito de cuidar de minha irmã.
Querido treinador,
Eu estava pensando sobre o que você pode ensinar a seus alunos, Tom.
Que linguagem você pode usar para que os meninos sejam impelidos por sua voz
a atravessar o gramado que você mesmo ceifou. Quando vi você e seu time
vencerem o primeiro jogo, toda a magia do esporte me atingiu, como o som de
um apito. Não há palavras para descrever como você estava maravilhoso
enviando mensagens urgentes para os jogadores, fazendo sinais para pedir
tempo, amado por sua irmã por seu inimaginável amor pelo esporte, por seu
imenso amor por todos os meninos e todos os jogos do mundo.
Mas há algumas coisas que somente as irmãs podem ensinar aos
treinadores em suas vidas. Ensine a eles, Tom, e ensine muito bem: ensine-lhes os
verbos da bondade. Estimule-os a darem o melhor de si, induza-os à suavidade,
conduza-os para a idade adulta, mas com muito carinho, como um anjo pondo
ordem nas nuvens do céu. Deixe seu espírito se dirigir a eles com suavidade,
como se dirige a mim.
Chorei na noite passada, ao ouvir sua voz acima da multidão. Mas, Tom,
meu irmão, ensine a eles aquilo que você mais sabe. Não há poema nem carta
que possa passar seu dom mais inefável. Quero que eles recebam de você a lição
de como ser o irmão mais delicado e mais perfeito que existe.
Savannah
Ao terminar de ler, fitei novamente a fotografia. Depois recoloquei
cuidadosamente a carta na carteira.
Fui para o quarto, troquei a lâmpada e limpei os cacos de vidro do vaso
quebrado. Tirei rapidamente a roupa e a joguei na cadeira ao lado da cama.
Deitei-me e fechei os olhos, abrindo-os em seguida.
Então, a dor tomou conta de mim. Chegou como uma língua de fogo
queimando a parte de trás de meus olhos.
No silêncio completo, fechei os olhos e fiquei deitado na escuridão, e fiz o
voto de mudar minha vida.
4
A LUA CHEIA brilhava sobre a Alemanha na noite em que meu pai saiu
da torre da igreja. A sensibilidade de seu braço esquerdo retornara aos poucos,
mas o rosto ainda estava parcialmente paralisado. O padre lhe trouxera roupas
para a viagem. Fizeram juntos uma última refeição. Meu pai, comovido e
agradecido, tentou encontrar as palavras para agradecer ao velho, mas elas lhe
faltaram e os dois comeram em completo silêncio.
Depois da refeição, meu pai estudou a rota de fuga planejada pelo padre,
prestando atenção aos lugares onde teria maior probabilidade de encontrar os
nazistas e o ponto exato onde poderia entrar na Suíça.
- Eu trazer uma enxada para você levar, Henry - disse o padre.
- Para quê?
- Se você for visto, vão pensar que é um fazendeiro. Pode dormir nos
celeiros quando estiver cansado. Esconda-se bem, Henry. Coloquei comida nesta
sacola, mas ela não vai durar muito. E melhor você ir agora.
- Você foi muito bom para mim - disse meu pai, dominado por um grande
carinho por aquele homem.
- Você precisava de ajuda, Henry.
- Mas você não tinha obrigação de me ajudar. Não sei como lhe
agradecer.
- Estou feliz por você ter vindo. Deu-me a oportunidade de ser um padre.
Na primeira vez em que Deus me testar, não agir como padre.
- Qual primeira vez?
- Muito antes de você chegar, veio uma família. Eram judeus. Eu
conhecer bem o pai. Era um homem bom, um comerciante da aldeia vizinha.
Tinha três filhas. Uma boa esposa, muito gorda. Ele chegar para mim uma noite
e dizer: "Padre, por favor, esconda-nos dos nazistas." Eu me recusar a esconder
os judeus. Isso já é bastante mau. Mas meu medo ser tão grande que eu os
entregar aos nazistas. Eles morreram em Dachau. Tento fazer penitência pela
família Fischer. Peço a Deus para tirar o sangue dos Fischer de minhas mãos.
Mas não, nem mesmo Deus é tão poderoso assim. Nem mesmo Ele poder
perdoar o que fiz. Não poder fugir dos olhos da família Fischer. Eles me olhar,
quando rezar a missa. Zombar de minha vocação. Saber toda a verdade sobre
Günter Kraus. Assim, se eu não tivesse feito isso aos Fischer, não teria deixado
você ficar, Henry. Não teria tolerado outro par de olhos me seguindo. Tenho
medo de tantas coisas. Tantas coisas!
- Sinto muito por causa dos Fischer, Günter. Isso significa que lhes devo
alguma coisa. Quando a guerra terminar, vou voltar para vê-lo. Iremos a
Munique tomar cerveja e perseguir mulheres.
- Eu sou padre. Eu não andar atrás de mulheres. Peço a Deus que o
entregue são e salvo à sua família, Henry. Rezo por você todos os dias. Estarei
com você sempre em meu coração. Vou sentir saudades, Henry Wingo. E
melhor você ir agora. Já é tarde.
- Antes de ir, gostaria de fazer uma coisa, padre.
- O quê, Henry ?
- Aquela parte depois do Agnus Dei, sabe qual é? Escuto você dizê-la todas
as manhãs para aquelas três mulheres que vêm à igreja. Depois que tocam os
sinos, você lhes dá algo para comer. Vi isso na primeira manhã.
- É a Eucaristia, Henry. Eu as alimento com o corpo e o sangue de Cristo.
- Quero que você me alimente antes de ir embora.
- Não, Henry, isso não é possível- disse o padre. - Você ter de ser católico
antes de receber a comunhão.
- Então quero me tornar católico - disse meu pai, inflexível. - Faça com
que eu seja um católico imediatamente. Talvez isso me traga sorte.
- Não é assim tão fácil, Henry. Você ter de estudar muito. Há muito que
aprender antes de se tornar um católico.
- Eu aprendo mais tarde, Günter. Prometo. Não há tempo agora. Estamos
em guerra. Olhe, você me batizou e me deu a extrema-unção. Droga, uma
comunhãozinha não vai fazer mal.
- Isso é irregular - disse o padre, esfregando distraidamente o queixo com
a mão. - Mas também nada é regular. Em primeiro lugar, precisar ouvir sua
confissão.
- Ótimo. O que é isso? - perguntou meu pai.
- Você ter que me contar todos os seus pecados. Tudo o que fazer de
errado desde que era criança.
- Isso eu não posso fazer, fiz muita coisa errada.
- Então diga que estar arrependido de seus pecados e será suficiente.
O padre Kraus começou a dizer as preces de confessor. Absolveu meu pai
de todos os pecados e a lua brilhou palidamente como uma alma limpa, com sua
luz envolvendo-se sob o sino que dominava Dissan.
Os dois desceram a escada que levava ao interior da igreja. O padre foi
para o altar, abriu o tabernáculo com uma pequena chave e retirou um cálice de
ouro. Em seguida, ajoelhou-se perante o crucifixo. A imagem brutalmente
crucificada de Cristo fitava meu pai, que se ajoelhou na escuridão fria da igreja
de pedra e rezou por sua libertação. O padre se voltou e o encarou.
- Henry, você é um católico agora - disse ele.
- Tentarei ser um bom católico, Günter.
- Terá que criar seus filhos como católicos.
- Será feito - disse meu pai. - Esse é o corpo e o sangue de Jesus?
- Tenho que abençoá-lo.
- Você tem de dizer o Agnus Dei para ele? - perguntou meu pai. O padre
abençoou a hóstia em uma língua morta e, então, voltou-se para o mais novo
católico no mundo e mudou a história de minha família para sempre. Ajoelhou-
se ao lado de meu pai e os dois rezaram juntos, padre e guerreiro transfigurados
pelo luar, pela guerra, pelo destino e pelos inefáveis gritos e segredos misteriosos
das almas que se voltam para si mesmas.
Quando se levantou, meu pai se voltou para Günter Kraus, abra- çou-o e o
manteve em seus braços.
- Obrigado, Günter - disse ele. - Muito obrigado.
- Gostaria que os Fischer pudessem dizer a mesma coisa, Henry. Agora
sou um padre novamente.
- Vamos nos encontrar depois da guerra.
- Eu gostar muito.
Meu pai hesitou e, então, pegou a enxada e a sacola. Abraçou o padre
mais uma vez.
Günter olhou nos olhos de meu pai e disse:
- Durante três semanas, Deus enviar um filho para se abrigar em minha
casa. Vou sentir sua falta, Henry Wingo. Vou sentir sua falta.
E Henry Wingo saiu pela porta lateral da igreja, em direção ao luar e à
zona rural alemã. Olhou para trás e acenou para o padre, que ainda o olhava da
porta. O padre o abençoava. Meu pai se voltou, sem pecado e consagrado, e deu
os primeiros passos em direção à Suíça.
Durante duas semanas, andou pelas colinas da Bavária, seguindo as águas
claras do rio Lech e guiando-se pelas estrelas, registrando seu progresso no mapa
que o padre Kraus lhe fornecera. Ficava maravilhado ao ver que as estrelas que
brilhavam sobre a Alemanha eram as mesmas que brilhavam no céu de
Colleton. Podia olhar para o céu durante a noite e sentir-se em casa. Sentia uma
ligação fraternal com a luz que via no céu.
Durante o dia, dormia nos palheiros dos celeiros ou nos bosques. Os cães
se tornaram seus grandes inimigos quando passava pelas casas das fazendas à
noite. Certa noite, matou dois deles com a enxada e lavou seu sangue nas águas
límpidas de um riacho da montanha. A altitude aumentava conforme progredia.
Uma vez, acordando durante o dia, viu claramente os Alpes à sua frente e pensou
como um estrangeiro poderia encontrar os vales certos e as passagens não
patrulhadas que o levariam para a segurança. Como sulista americano, não
estava acostumado à neve e, como habitante das terras baixas, não sabia nada
sobre os segredos das montanhas. Foi aprendendo à medida que avançava,
calculada e cuidadosamente.
Certo dia, a mulher de um fazendeiro o encontrou dormindo no celeiro.
Estava grávida, tinha os cabelos pretos e um rosto bonito que o fez se lembrar de
minha mãe. Ela gritou e correu à procura do marido. Meu pai correu pelos
campos de trigo e milho, escondendo-se pelo resto do dia em uma caverna ao
lado de um rio que descia a montanha. Passou a não confiar mais em fazendas
depois desse dia, a não confiar em nada que parecesse humano. Posteriormente,
começou a se aproximar das fazendas apenas para roubar comida. Tirava leite
das vacas na escuridão e tomava no próprio balde, roubava ovos e os comia crus;
saqueava pomares e hortas. Vivia para a escuridão e tornou-se impaciente com a
luz do sol. A caminhada o transformara em uma criatura da noite. Mas chegou
finalmente às montanhas, e andar à noite tornou-se uma coisa perigosa e
desorientadora.
Acidentalmente, descobriu que a enxada lhe dava proteção e identidade.
Um fazendeiro, arando um pasto montanhoso, avistou meu pai andando por um
atalho no campo, logo depois do nascer do sol, e acenou para ele. Meu pai
retribuiu ao aceno fraternalmente. Isso o tornou mais arrojado e ele começou a
andar pelos atalhos em plena luz do dia. Certa vez, foi surpreendido por um
grande comboio que levava centenas de soldados alemães em caminhões abertos
que passavam por ele em alta velocidade. Acenou entusiasticamente para os
soldados, dando-lhes um belo sorriso. Vários soldados, talvez com inveja dele,
acenaram de volta. A enxada lhe dava o direito de estar ali. Seu trabalho produzia
a comida que alimentava a máquina de guerra alemã. Ele mesmo quase
acreditou nisso. Depois de passar à margem da cidade alemã de
Oberammergau, cruzou sem ser visto a fronteira superpatrulhada da Áustria.
Ele se desesperou ao chegar às montanhas. Durante uma semana, subiu
cada vez mais alto. As fazendas desapareceram. Passou com dificuldade ao
longo de uma terra linda, repleta de gargantas e penhascos vertiginosos.
Percebeu que estava desorientado e completamente perdido. O mapa agora era
inútil e as estrelas tinham perdido seu significado. Descobriu a deslealdade das
montanhas, suas passagens falsas e seus trechos sem saída. Subiu uma montanha
apenas para perceber que não poderia descer pelo outro lado. Voltou pelo mesmo
caminho e subiu em direção a outro pico. Cada montanha era diferente, com
seus próprios desvios e surpresas. Via a neve pela primeira vez na vida e acabou
por comê-la. Comeu besouros e lagartas. À noite, cobria-se com os galhos dos
pinheiros para impedir o congelamento e a morte. Como pode um homem
congelar em pleno mês de outubro?, pensava consigo mesmo o nativo da
Carolina do Sul. Depois de dois dias andando pela Suíça, quase morto, chegou a
uma aldeia chamada Klosters. Pensou estar se rendendo aos austríacos. Desceu a
montanha e entrou na aldeia com as mãos para o alto, ouvindo os aldeões
confusos falarem alemão. Naquela noite, jantou na casa do prefeito de Klosters.
Três dias mais tarde, minha mãe recebeu um telegrama em que dizia
estar vivo e passando bem, e que se tornara católico romano.
Meu pai voltou ao esquadrão e, até o fim da guerra, fez vôos de
reconhecimento sobre o território alemão. Ao soltar suas bombas sobre as
cidades e vendo-as explodirem em chamas lá embaixo, murmurava "Fischer,
Fischer, Fischer", quando o barulho das bombas o alcançava. "Fischer" se tornou
o grito de guerra de meu pai, quando espalhava a morte e o fogo atrás de si, um
piloto de talento sobrenatural.
Depois da guerra, ao se juntar às forças de ocupação, voltou a Dissan para
agradecer a Günter Kraus e lhe dizer que não havia caubóis na Carolina do Sul.
Mas havia um novo padre, com cara de cavalo e inexperiente, que levou meu pai
à parte de trás da igreja para lhe mostrar o túmulo do padre Kraus. Dois meses
depois de meu pai ser derrubado, dois pilotos britânicos haviam saltado de pára-
quedas, buscando segurança em algum lugar perto de Dissan. Na busca que se
seguiu, os alemães encontraram o uniforme ensangüentado de meu pai, que o
padre guardara como lembrança muito querida de sua visita. Sob tortura, ele
admitiu ter escondido um piloto americano, ajudando-o mais tarde a fugir para a
Suíça. Eles o enforcaram na torre da igreja e seu corpo pendeu durante uma
semana como advertência aos aldeões. No testamento, o padre deixara todas as
suas posses, por mais escassas que fossem, para uma mulher que morava em
Hamburgo. Aquilo tudo era muito estranho e triste, disse o jovem padre. Além
disso, Günter Kraus nunca fora um padre muito bom e isso era sabido em toda a
aldeia.
Meu pai acendeu uma vela para a imagem do Menino Jesus de Praga, no
lugar exato em que seu sangue caíra sobre o padre que o salvaria. Rezou pelo
descanso da alma de Günter Kraus e pelas almas dos membros da família
Fischer. Em seguida, levantou-se, com lágrimas nos olhos, esbofeteou o novo
pároco e o advertiu a falar sempre com respeito sobre Günter Kraus. O jovem
padre saiu correndo da igreja. Meu pai pegou a imagem do Menino Jesus de
Praga e saiu, car- regando-a embaixo do braço. Era um católico agora e sabia
que os católicos preservavam as relíquias de seus santos.
A guerra de meu pai terminara.
Estou muito orgulhosa de você, Tom. Eu o amo muito e sinto muito a sua
falta.
Mamãe.
Apenas isso. Apenas isso me fez chorar nos braços da irmã. Então rezei
para que a Guerra da Coréia não terminasse jamais.
MEUS AVÓS eram como duas crianças que não combinavam muito bem,
e sua casa tinha para mim um sabor de santuário ou de jardim-de-infância.
Quando eles se falavam, era com a mais profunda cortesia. Não havia conversas
verdadeiras entre os dois nem gracejos, flertes ou troca de mexericos. Jamais
pareciam estar vivendo juntos, mesmo depois do retorno de minha avó. Nada
que fosse humano interferia na afeição mútua. Estudei aquele relacionamento
com algo que se aproximava da reverência, porque não conseguia descobrir o
que o fazia funcionar. Sentia amor entre aquelas duas pessoas, mas era um amor
sem ardor ou paixão. Tampouco havia rancores ou ressentimentos, elevações ou
declínios do ânimo que me permitissem traçar um gráfico - apenas um
casamento sem nenhum tipo de clima, imobilidade, resignação, somente dias de
calmaria na corrente do golfo de seu silêncio. A alegria descomplicada na
companhia um do outro fazia com que o casamento de meus pais parecesse
obsceno. Eles tinham esperado metade de uma vida para ficarem perfeitos um
para o outro.
Confiei em meus avós quando precisei de algumas explicações sobre meu
pai. Não consegui descobrir nada. Ele não estava presente nas preocupações dos
dois. A aliança entre eles produzira algo completamente novo e inobservado.
Nunca ouvi Tolitha ou Amos levantarem a voz. Jamais nos espancavam e quase
se desculpavam quando nos corrigiam nas menores coisas. Entretanto, haviam
criado o homem que me criava, que me batia, batia em minha mãe, batia em
meus irmãos, e foi impossível descobrir alguma explicação, uma pista, na casa
de meus avós. A decência e a calma inviolada de ambos me perturbava. Eu não
podia contar com eles para descobrir de onde viera: havia algo que faltava, que
estava quebrado ou não era respondido. De qualquer modo, duas almas delicadas
tinham gerado um filho violento que, por sua vez, gerara a mim. Eu vivia em
uma casa em que o pescador de camarões era temido. Isso nunca era expresso
com palavras. Minha mãe nos proibia de dizer a qualquer pessoa de fora da
família que ele nos batia. Dava a maior importância ao que chamava de
"lealdade familiar", e não toleraria nenhum comportamento que a atingisse como
uma traição. Não tínhamos permissão para criticar papai ou reclamar da
maneira como nos tratava. Ele nocauteou Luke, deixando-o inconsciente, três
vezes antes de meu irmão completar 10 anos. Luke era sempre seu primeiro
alvo, o primeiro rosto para o qual ele avançava. Geralmente, mamãe apanhava
quando tentava intervir a favor dele; Savannah e eu apanhávamos ao tentar tirá-
lo de cima de nossa mãe. Formou-se um círculo vicioso, acidental e mortífero.
Passei toda a minha infância achando que meu pai acabaria me matando
algum dia.
Mas eu vivia em um mundo em que nada era explicado às crianças,
exceto a supremacia do conceito de lealdade. Aprendi com minha mãe que a
lealdade é a máscara bonita que a pessoa usa quando baseia a vida inteira em
uma série de mentiras terríveis.
Dividíamos os anos pelo número de vezes que nosso pai nos batia. Apesar
das surras serem suficientemente ruins, era a irracionalidade da natureza de meu
pai que as piorava ainda mais. Nunca sabíamos o que o faria começar; nunca
conseguimos prever que mudanças em sua alma soltariam atrás de nós a fera
que existia dentro dele. Não havia um padrão no qual nos basearmos, uma
estratégia para improvisar ou um tribunal imparcial ao qual pudéssemos apelar
por uma anistia, exceto nossa avó. Passamos a infância esperando pelo próximo
ataque.
Em 1955, ele me jogou no chão três vezes. Em 1956, fui abatido cinco
vezes. Ele me amou ainda mais em 1957. Seu ardor aumentou em 1958. A cada
ano, ele me amava mais, enquanto eu me encaminhava para a idade adulta de
maneira servil.
Desde aquele ano que passamos em Atlanta, eu rezava para que Deus o
destruísse.
- Mate-o, por favor, Deus - eu murmurava, ajoelhado. Minhas preces o
enterravam até o pescoço no pântano, enquanto eu rezava para que a lua fizesse
o oceano se levantar sobre ele e observava os caranguejos se atropelarem em
seu rosto, procurando-lhe os olhos. Aprendi a matar com minhas orações e a
odiar quando deveria estar louvando a Deus. Eu não tinha controle sobre o modo
como rezava. Quando voltava minha alma para Deus, o veneno jorrava de mim.
Com as mãos entrelaçadas, cantava hinos de louvor à pilhagem e à matança, e
meu rosário se tornou um garrote. Aqueles anos foram perigosos e introspectivos
para mim. Sempre que matava um veado, via o rosto de meu pai entre os
chifres; era o coração de meu pai que eu cortava e jogava no alto das árvores;
era o corpo dele que eu abria e do qual retirava as vísceras. Tornei-me
extremamente mau, um crime contra a natureza.
Quando minha avó voltou, percebi lentamente que meu pai a temia e, por
isso, liguei-me ao destino daquela mulher que tivera coragem de abandonar a
família durante a Depressão e que nunca pedira desculpas a ninguém por fazer
isso. Aquela mulher delicada e meu delicado avô haviam criado um homem
perigoso para as crianças. Minha mãe nos ensinou que a mais elevada forma de
lealdade era cobrir nossas feridas e sorrir para o sangue que víamos no espelho.
Ensinou-me a odiar as palavras lealdade familiar mais que qualquer outro termo
de nossa língua.
Se os pais de uma pessoa a desaprovam, mesmo que ela seja habilidosa
para lidar com essa desaprovação, nada a convencerá de novo de seu próprio
valor. Não há como consertar os danos da infância. O melhor que se pode
esperar é que a criança continue a viver.
7
FAZIA UMA SEMANA que não visitava Savannah quando trouxe à tona
para a dra. Lowenstein o tema da revogação de meus privilégios de visita. Ela
havia marcado uma hora para mim no fim de uma terça-feira, mas parecia
distraída e irritadiça durante a sessão. Quase não pude conter meu aborrecimento
quando a vi olhar para o relógio três vezes nos últimos dez minutos da entrevista.
Eram quase sete da noite quando ela se levantou da cadeira, assinalando o
fim de mais uma sessão. Fez um sinal para que eu esperasse um momento e foi
até a mesa para usar o telefone.
- Alô, querido - disse, despreocupadamente. - Desculpe por não ter ligado
mais cedo. Estava muito ocupada. Você vai poder ir ao jantar?
O cansaço transformara seu rosto delicado. Era uma mulher que
amadurecia extraordinariamente bem. Exceto a marca delicada em torno dos
olhos e da boca - linhas que pareciam mais uma concordância que uma disputa
com o tempo ela poderia ser confundida com uma adolescente. Usava os cabelos
escuros escovados para o lado e desenvolvera um gesto nervoso, mas adorável,
de afastá-los da frente do olho enquanto falava.
- Pena seu ensaio ter sido tão ruim, querido - disse ela. - Sim, claro,
entendo. Bernard chegará para o jantar amanhã. Ele ficará desapontado se você
não estiver lá. Está bem. Falo com você mais tarde. Tchau.
Ao se virar, seu rosto tinha um ar magoado ou desapontado, porém ela
logo se recuperou, sorriu e folheou a agenda para ver quando poderia me
encaixar novamente em seus horários.
- Quando poderei ver minha irmã? - perguntei. - Vim a Nova York porque
pensei que seria bom para ela saber que a família estava por perto. Creio que
tenho o direito de ver Savannah.
Sem levantar os olhos, a dra. Lowenstein respondeu:
- Tenho um cancelamento amanhã às duas horas. Você pode vir, Tom?
- Você está ignorando minha pergunta, Lowenstein. Acredito que posso
fazer algum bem a Savannah. Ela precisa saber que ainda estou por aqui e que
estou tentando ajudá-la.
- Sinto muito, Tom. Já lhe disse que a equipe médica percebeu que essas
visitas perturbam enormemente sua irmã. E, como você sabe, Savannah mesma
pediu que fossem suspensas por algum tempo.
- Ela explicou o motivo?
- Sim. - A psiquiatra olhou-me nos olhos.
- Você se incomoda de me contar?
- Savannah é minha paciente. E o que ela me conta como paciente é
confidencial. Gostaria que você confiasse em mim e na equipe médica...
- Você poderia parar de chamar aqueles imbecis de "equipe médica"? Isso
soa um pouco como um time de futebol.
- Como você gostaria que eu os chamasse, Tom? Posso lhes dar o nome
que você quiser.
- Diga "aqueles imbecis do Bellevue". Equipe, o cacete. Tem o psiquiatra
que a vê uma vez por semana e que lhe dá drogas suficientes para anestesiar
uma baleia azul. Há aquele residente imprestável, de cabelos vermelhos, e a
linha de frente de enfermeiras encren- queiras, levantadoras de peso e sem um
pingo de senso de humor. Além do mais, encontrei também um risonho terapeuta
ocupacional que quer encorajar Savannah a fazer protetores para pegar panelas
no forno. A equipe! Equipe de merda! Quem mais está nessa equipe
maravilhosa? Ah, sim. Os assistentes de enfermagem. Aqueles trombadões com
QI de ameba. Criminosos em liberdade condicional, empregados em troca de
um prato de comida para dar surras nos loucos. Por que você não tira minha
irmã daquele lugar, Lowenstein, e a coloca em um clube de campo bacana, onde
os birutas da classe média vão para aperfeiçoar seu pingue-pongue?
- Porque Savannah ainda é um perigo para si mesma e para os outros -
disse a doutora, sentando-se. - Ela vai ficar em Bellevue até deixar de ser uma
ameaça a si mesma, até que tenha se estabilizado o suficiente...
- Você quer dizer até que esteja suficientemente drogada - interrompi,
com a voz mais alta do que pretendia. - Você quer dizer quando ela estiver tão
cheia de Thorazine ou Stelazine ou Artane ou Trifalon ou qualquer outra droga
que esteja na moda no momento. Estabilizada! Minha irmã não é um maldito
giroscópio, Lowenstein. É uma poetisa e não pode escrever poesias quando a
corrente sangüínea tem mais drogas que glóbulos brancos flutuando no cérebro.
- Quantos poemas você acha que Savannah vai escrever se conseguir se
matar? - A doutora estava furiosa.
- Pergunta injusta, Lowenstein - respondi, abaixando a cabeça.
- Errado, Tom. É uma pergunta justa e relevante. Entenda uma coisa: a
primeira vez que vi Savannah depois que ela cortou os pulsos, fiquei muito grata
aos "imbecis do Bellevue" porque qualquer terapia que eu tivesse usado com ela
não teria funcionado. Savannah tem os mesmos medo e desconfiança das drogas
que você, e não me permitiria receitar o remédio que talvez evitasse sua tentativa
de suicídio. Estou agradecida porque ela está agora em um hospital em que é
forçada a tomar as drogas quando se recusa a cooperar. Isso porque quero que
Savannah saia viva de tudo isso. Não me incomodo se ela é tratada com drogas,
vodu, extrema-unção ou com a leitura de cartas do tarô. Eu a quero viva.
- Você não tem o direito de me manter a distância de minha irmã,
Lowenstein.
- É claro que tenho.
- Então, por que diabos estou aqui? Com que finalidade? Por que é que eu
fico decodificando uma fita que você gravou quando minha irmã estava na fase
mais lunática, quando foi eleita comandante suprema do exército dos loucos? Eu
nem mesmo tenho certeza do que ela queria dizer quando gritou aquela
papagaiada. Sei o que algumas coisas me sugerem, mas não sei se têm o mesmo
significado para ela. Sinto como se fosse eu quem estivesse fazendo terapia.
Como é que a visão da minha terrível infância pode ajudar Savannah? Foi
horrível ser um menino naquela família. Ser menina é inimaginável. Deixe que
ela lhe conte todas aquelas histórias enquanto eu volto para o lugar ao qual
pertenço, para fritar meus peixes.
- Você não é meu paciente, Tom - disse Lowenstein, suavemente. - Estou
tentando de todas as formas ajudar sua irmã. Você me interessa por causa da luz
que pode lançar sobre o passado dela. A situação de Savannah ainda é
desesperadora. Nunca vi tanta angústia em nenhum paciente anteriormente.
Preciso que você continue a me ajudar com Savannah. Não temos de gostar um
do outro, Tom. Isso é o que menos importa. Nós queremos que sua irmã tenha
uma vida.
- Quanto você está recebendo para isso, doutora?
- O dinheiro é o de menos para mim. Estou fazendo isso por amor à arte.
- Oh, claro! - escarneci. - Uma psiquiatra que não pensa em dinheiro é
como um lutador de sumô que não pensa na gordura.
- Pode rir de mim, eu não ligo a mínima. Você pode até fazer suposições
muito superiores quanto aos meus motivos e pensar que é uma viagem interior
em que eu vá reconstruir a psique da poetisa e torná-la uma coisa só novamente.
Eu gostaria do fundo do coração de realizar esse serviço.
- E Savannah, curada por suas mãos mágicas, escreveria infinitos poemas
exaltando os poderes miraculosos da psiquiatra que exorcizou os demônios que
possuíam sua frágil alma.
- Você está certo, Tom, eu receberia um crédito que não é desprezível se
pudesse salvá-la, se pudesse lhe fornecer os meios para voltar a escrever. Mas
existe uma coisa que você não entende em mim. Amei a poesia de sua irmã
muito antes de saber que seria sua médica. Amei e ainda amo. Leia os poemas
dela, Tom...
- O quê? - gritei, levantando-me furioso da cadeira e indo na direção dela.
- Ler os poemas de minha irmã? Eu lhe disse que sou um treinador, doutora, não
um orangotango. E você deve ter esquecido um detalhezinho insignificante em
meu lamentável currículo: sou professor de inglês, um maravilhoso professor,
com talento surpreendente para fazer aqueles mentecaptos sulistas, que só sabem
ficar de boca aberta, se apaixonarem pela língua que nasceram para estragar. Eu
já lia a poesia de Savannah muito antes de você começar a ter diálogos com
neuróticos incorrigíveis, minha amiga.
- Desculpe, Tom. Peço que me perdoe. Não achei que você os lesse por
causa do assunto. Os poemas de sua irmã são escritos para e sobre as mulheres.
- Não são - suspirei cansadamente. - Droga, eles não são. Por que todo
mundo nesta cidade de merda é tão burro? Por que todos dizem exatamente a
mesma coisa sobre a poesia dela? Isso empobrece o trabalho de Savannah.
Empobrece o trabalho de qualquer escritor.
- Você não acha que ela escreve principalmente para as mulheres?
- Não, ela escreve para as pessoas. Homens e mulheres que sentem
apaixonadamente. E uma poesia destinada a ediflcar, até mesmo a maravilhar, e
não requer nenhuma opinião política para ser entendida ou apreciada. O mais
extraordinário na poesia dela não é a opinião política. Isso não passa de lugar-
comum, de coisa trivial, que enfraquece sua poesia e, às vezes, a torna previsível
e banal. Há um milhão de mulheres putas da vida nesta cidade que têm a mesma
opinião política. Mas apenas Savannah é capaz de pegar a linguagem e fazê-la
voar alto como um pássaro ou cantar como um anjo ferido e desfigurado.
- Seria difícil esperar que você entendesse um ponto de vista feminista -
comentou a dra. Lowenstein asperamente.
Olhei de repente para ela e alguma coisa em sua expressão me atingiu.
- Pergunte-me se sou feminista, doutora.
Ela deu uma risada sarcástica.
- Você é feminista, Tom?
- Sim.
- Sim? - Ela começou a rir, a primeira risada genuína que ouvi da firme e
decidida dra. Lowenstein.
- Por que está rindo?
- Porque essa é a última resposta que eu esperava que você me desse.
- Por causa daquela história do homem branco sulista, etcétera, etcétera?
- Sim - confirmou seriamente -, homem branco sulista, etcétera e tal.
- Por que você não lambe minhas botas? - retruquei com frieza.
- Eu sabia que você era chauvinista - respondeu ela.
- Foi Savannah quem me ensinou a dizer isso. Sua paciente feminista. Ela
me ensinou a não acreditar em nada que os feministas, racistas, terceiro-
mundistas, obscurantistas, domadores de leões ou malabaristas com um só braço
dissessem, se eu achasse que estavam errados. Ela me ensinou a confiar em
meus instintos e chamá-los da maneira que quisesse.
- Isso é maravilhoso, Tom. Muito avançado para um treinador.
- Qual é seu primeiro nome, doutora? Faz três semanas que venho aqui e
ainda não sei como se chama.
- Isso não tem importância. Meus pacientes não me chamam pelo
primeiro nome.
- Não sou seu maldito paciente. Minha irmã é que é. Por isso gostaria de
chamá-la pelo primeiro nome. Não conheço uma alma sequer nesta cidade além
de alguns amigos de Savannah. Estou me sentindo de repente muito solitário e sou
até mesmo proibido de visitar minha irmã quando sinto que ela precisa que eu
esteja perto mais do que qualquer coisa no mundo. Você me chama de Tom e eu
quero chamá-la pelo nome.
- Prefiro manter nosso relacionamento de maneira profissional - ela
respondeu, e me senti preso numa armadilha no vácuo esterilizado daquela sala
dominada por um excesso de tons pastel e discreto bom gosto. - Mesmo que você
não seja meu paciente, precisa vir aqui para tentar me ajudar com uma de
minhas pacientes. Gostaria que me chamasse de doutora porque me sinto mais à
vontade com essa forma de tratamento neste ambiente. E me assusta quando um
homem como você chega muito perto, Tom. Quero manter tudo no nível
profissional.
- Ótimo, doutora - respondi, exasperado e exausto. - Concordo
plenamente. Mas pare de me chamar de Tom. Quero que me trate por meu título
profissional.
- E qual é?
- Quero que me trate por treinador.
- O treinador feminista.
- Sim, o treinador feminista.
- Existe uma parte de você que odeia as mulheres, Tom? - Ela se inclinou
em minha direção. - Que realmente as odeia?
- Sim - disse, igualando a intensidade de seu olhar.
- Tem alguma idéia do motivo pelo qual odeia as mulheres? - perguntou,
novamente como a profissional calma, corajosa em seu papel.
- Sim, sei exatamente por que odeio as mulheres. Fui criado por uma
mulher. Agora faça a pergunta seguinte. A próxima pergunta lógica.
- Acho que não estou entendendo.
- Pergunte se eu odeio os homens, doutora feminista. Pergunte se eu odeio
os homens.
- Você odeia os homens?
- Sim. Odeio os homens porque fui criado por um.
Por um momento, nós nos apertamos no abraço elástico da hostilidade
mútua. Eu tremia dos pés à cabeça e uma enorme tristeza se alojava em meu
coração. Ardia com o desespero que domina os que não têm poder e os
deserdados. Alguma coisa em mim estava morrendo naquela sala, e não havia
nada que eu pudesse fazer contra isso.
- Meu nome é Susan - disse ela, tranqüilamente.
- Obrigado, doutora. - Quase engasguei com minha gratidão. - Não vou
usar seu nome. Só queria saber.
Vi que seus olhos se suavizavam quando começamos a retirada voluntária
do campo de batalha. Ela perdia a calma rapidamente, mas também era rápida
em sua disposição de recuar sem infligir nenhuma outra mágoa. Havia encanto e
uma integridade escrupulosa na maneira como salvara algo essencial de nossa
perigosa competição de vontades. Ela me permitira uma pequena e
inconseqüente vitória, e foi sua submissão voluntária que a tornou importante
para mim.
- Obrigado, Lowenstein. Você lidou maravilhosamente com a situação.
Não me importo de fazer o papel de bobo, mas detesto fazer papel de macho
bobo.
- Por que você continua morando no sul, Tom? - ela perguntou, depois de
alguns instantes.
- Eu deveria ter saído de lá, mas me faltou coragem. Pelo fato de não ter
tido uma infância adequada, pensei que, se permanecesse no sul, poderia
consertar o passado e tornar minha vida adulta maravilhosa. Viajei um pouco,
mas nada dava certo. Nunca confiei o suficiente em um lugar para me
estabelecer nele. Assim, como um imbecil, fiquei na Carolina do Sul. Não tanto
por falta de coragem, como por falta de imaginação.
- E?
- Bem, a cada ano, perco um pouco mais daquilo que me tornava especial
quando criança. Não penso muito nisso e nem questiono. Não ouso fazer nada.
Até minhas paixões agora são gastas e patéticas. Certa vez, sonhei que seria um
grande homem, Lowenstein. Agora, o melhor que eu espero é lutar para voltar a
ser um homem medíocre.
- Parece ser uma vida desesperada.
- Não. Parece uma vida comum. Olhe, fiz você ficar aqui até tarde.
Gostaria de jantar comigo para compensar meu comportamento indesculpável?
- Meu marido deveria me encontrar para jantar, mas seu ensaio não está
dando certo.
- Há um lugar onde levei Savannah e Luke quando o primeiro livro dela foi
lançado.
- Onde é?
- O Coach House.
Ela riu.
- O Coach House? Isso foi intencional?
- Não, não foi. Savannah pensou que fosse brincadeira e tive de explicar
que havia lido um artigo dizendo que era um dos melhores restaurantes de Nova
York.
- Eu deveria ir para casa... Meu filho chega da escola amanhã.
- Nunca recuse comida e bebida grátis, Lowenstein. É de mau gosto e dá
má sorte.
- Está bem. Para o diabo com tudo isso. Essa é a quarta vez em duas
semanas que meu marido me deixa plantada. Mas você tem de me prometer
uma coisa, Tom.
- O que quiser, Lowenstein.
- Você tem de me dizer novamente durante o jantar que me acha linda.
Você ficaria abismado se soubesse o número de vezes que pensei nisso desde que
você disse aquelas palavras no Plaza.
Eu lhe ofereci o braço.
- A linda Susan Lowenstein vai acompanhar o treinador Wingo a um dos
melhores restaurante de Nova York?
- Sim - disse ela -, a linda Susan Lowenstein ficará muito feliz em ir com
você.
Acreditarei para sempre que essa receita foi o primeiro poema autêntico
de Savannah. Em primeiro lugar, minha mãe nos repreendeu, gritou que estava
nos educando para sermos cidadãos decentes, obedientes às leis, e não
arrombadores de casas; ameaçou contar a Reese Newbury e receber a
recompensa de mil dólares. Disse que deveríamos nos entregar ao delegado, que
mais uma vez havíamos desgraçado a família e que a faríamos motivo de
zombaria em Colleton. Então, parou de nos repreender e leu novamente a
receita. Começou a rir como uma colegial e não conseguia mais parar. Agarrou-
nos e nos apertou num raro abraço. Murmurou com fúria e regozijo:
- Meus filhos são fogo. Lila Wingo pode não ser nada, mas, graças a Deus,
seus filhos são um inferno!
12
Cresci odiando as Sextas-feiras Santas. Era uma aversão sazonal, que tinha
pouco a ver com a teologia, mas que se relacionava com os ritos de adoração e a
maneira entusiástica como meu avô celebrava a Paixão de Cristo.
A Sexta-feira Santa era o dia em que Amos Wingo ia até o barracão atrás
de sua casa em Colleton e tirava o pó de uma cruz de madeira, pesando 35 quilos,
que fizera em meio a um violento ataque de religiosidade quando tinha 14 anos.
Todos os anos, naquela data, ele andava do meio-dia até as três da tarde, subindo
e descendo a rua das Marés, a cruz nas costas para recordar aos apóstatas e
pecadores da cidade o inimaginável sofrimento de Jesus na colina de Jerusalém
ocorrido tanto tempo atrás. Esse era o ponto mais alto, o Grand Guignol do ano
litúrgico de meu avô, e personificava as características dos santos e dos loucos.
Afinal, havia uma beleza lunática em sua caminhada...
De minha parte, preferiria vê-lo celebrar a Sexta-feira Santa de um modo
mais calmo e contemplativo. Eu ficava profundamente embaraçado ao ver
aquele corpo esquelético e angular, vergado sob o peso da cruz. Ele caminhava
com dificuldade pelo tráfego congestionado, parando nos cruzamentos, sem
perceber a mescla de escárnio e respeito de seus concidadãos, o suor
desbotando-lhe as roupas de trabalho, os lábios movendo-se continuamente numa
adoração inaudível ao Criador. Para alguns, era uma figura majestosa; para
outros, um perfeito imbecil. A cada ano, o delegado lhe passava uma multa por
obstruir o trânsito, enquanto os paroquianos da igreja batista faziam uma coleta
especial para pagar o tributo. Com o tempo, aquela viagem espiritual incomum
se tornou algo como um fenômeno, passando a atrair uma quantidade razoável
de peregrinos e turistas, que se reuniam ao longo da rua das Marés para rezar e
ler a Bíblia enquanto vovô Wingo resfolegava em sua representação solene do
episódio que mudara a história da alma ocidental. Todos os anos, a Gazeta de
Colleton publicava uma foto da caminhada na semana que se seguia ao domingo
de Páscoa.
Quando éramos crianças, Savannah e eu implorávamos para que ele
fizesse a caminhada em Charleston ou Columbia, cidades que considerávamos
mais pomposas e repreensíveis aos olhos do Senhor, como a pequena Colleton
jamais seria. Minha avó expressava sua mortificação retirando-se para o quarto
com uma garrafa de gim Beefeater e uma coleção de exemplares antigos da
Gazeta Policial, que pedia à barbearia Fender. Às três da tarde, quando a
caminhada terminava, a garrafa estava vazia e minha avó ficava em estado de
coma até a manhã seguinte. Quando acordava para sua enxaqueca
comemorativa, encontrava meu avô a seus pés, rezando por sua alma gentil e
bêbada.
Durante toda a vigília da Páscoa, Amos observava o corpo imóvel da
esposa, que elaborara seu próprio ritual como um ato de autodefesa para
protestar contra a cerimônia de penitência que ele insistia em realizar. No
domingo pela manhã, doente por causa dos excessos, mas tendo feito seu protesto
anual, minha avó "levantava-se dos mortos", como costumava dizer, a tempo de
acompanhar meu avô às cerimônias da Páscoa. Aquela era sua única aparição
anual na igreja, que, a seu modo, tornou-se tão tradicional na vida espiritual da
cidade quanto a caminhada de meu avô.
Quando estava no segundo ano colegial, fui com Savannah até a casa de
meu avô na quarta-feira anterior à Páscoa. Paramos na mercearia para comprar
uma Coca-Cola e sentamos na amurada à beira- mar, observando os
caranguejos que acenavam com as patas no lodo.
- Está chegando a Sexta-feira Santa - comentei. - Odeio esse dia.
Minha irmã sorriu zombeteira e me socou no braço.
- Ora, Tom, faz bem para a família enfrentar a humilhação uma vez por
ano. É bom para a personalidade ver a cidade rindo de seu avô e de você.
- Eú não me incomodaria se não tivesse que ficar lá - respondi, os olhos
presos ao movimento hipnótico dos caranguejos lá embaixo. Pareciam moedas
jogadas ao acaso no lodo. - Papai vai colocar você na barraca da limonada este
ano. Ele vai filmar novamente os pontos principais da caminhada.
- Que coisa grotesca. Faz cinco anos que ele filma. Tem cinco filmes para
provar a qualquer tribunal que vovô é louco.
- Papai diz que é para os arquivos da família, e que algum dia lhe
agradeceremos por fazer o registro de nossa infância.
- Ah, claro, é tudo o que eu quero! Uma história fotográfica de Auschwitz.
Na certa você acha essa família normal.
- Não sei se é normal ou não. E a única família em que vivi.
- É uma fábrica de loucos. Guarde bem minhas palavras.
A casa de meu avô era simples, térrea, pintada de branco com detalhes
em vermelho, construída num terreno de 24 mil metros à beira do rio Colleton.
Ao entrarmos lá, encontramos vovó na cozinha observando o trabalho do marido
com a cruz no quintal.
- Ali está ele - informou a velha, a voz cansada e exasperada, acenando
com a cabeça em direção ao quintal. - Seu avô. Meu marido. O idiota da cidade.
Passou o dia inteiro trabalhando naquilo.
- O que ele está fazendo na cruz, Tolitha? - perguntei, chamando-a pelo
nome, de acordo com seu desejo.
- Uma roda - Savannah riu ao chegar à janela.
- Ele acha que ninguém vai se incomodar se um homem de 64 anos puser
uma roda na cruz. Diz que Jesus tinha apenas 33 quando subiu a colina. Assim,
não se pode esperar que alguém tão velho faça melhor. A cada ano ele fica mais
pirado. Logo, logo vou precisar colocá-lo no asilo. Não há escapatória. A patrulha
rodoviária veio novamente esta semana, tentando convencê-lo a devolver a carta
de motorista. Disseram que ele é um perigo na estrada toda vez que pega o Ford
para dar uma volta.
- Por que você se casou com ele, Tolitha? - Savannah quis saber. - É
ridículo que duas pessoas tão diferentes, sob todos os pontos de vista, vivam
juntas.
Minha avó voltou-se outra vez em direção ao quintal. A janela refletia-se
em seus óculos e repetia nas lentes o que ela via lá fora. Ao notar sua surpresa,
percebi que Savannah fizera uma pergunta proibida, daquelas que tinham
implicações assustadoras, cujo mistério era anterior ao nosso nascimento.
- Vou pegar um pouco de chá gelado para vocês - disse por fim. - Ele vai
entrar daqui a pouquinho e não tenho chance de conversar muito com vocês
agora que estão grandes e passam o tempo todo namorando.
Encheu três copos grandes com chá e salpicou folhas de menta sobre o
gelo moído. Quando sentamos no banco, ajustou os óculos sobre o nariz.
- Eu sempre soube que seu avô era um homem religioso. Afinal de contas,
na época todos na cidade também viviam na igreja. Eu, por exemplo, era cristã,
e só tinha 14 anos quando nos casamos, jovem demais para entender as coisas.
Foi mais tarde que percebi que ele era um fanático. Ele escondia isso de mim
enquanto namorávamos porque estava apaixonado e louco para pôr as mãos em
mim.
- Tolitha - censurei, envergonhado.
- Às vezes você é um bocado criança, Tom - comentou Savannah. - Age
como se tivesse sido mordido por uma cobra cada vez que se fala em sexo.
Minha avó riu e continuou:
- Eu deixava ele louco quando era adolescente. Naquele tempo, nunca
ouvi muita coisa sobre Jesus quando estávamos sob os lençóis.
- Tolitha, pelo amor de Deus - implorei -, não queremos ouvir isso.
- Queremos, sim - interveio Savannah. - É fascinante.
- A não ser uma tarada como você, quem quer ouvir uma descrição
detalhada do sexo entre os avós?
- Então, à medida que os anos se passavam, ele se cansou de mim, como
sempre acontece com os homens, e começou a rezar praticamente 24 horas por
dia, até que enlouqueceu de vez. Nunca ganhou o suficiente para viver de
maneira decente. Cortava cabelos, vendia bíblias e falava sem parar sobre o céu
e o inferno, e o que havia entre os dois.
- Mas ele é um homem tão bom! - exclamei.
Ela se voltou e fitou meu avô através da janela. Não havia paixão em seu
olhar, mas suavidade e uma afeição tolerante. Ele continuava inclinado sobre a
cruz, fixando uma roda de triciclo em sua extremidade.
- As pessoas me perguntam como é ser casada com um santo. É chato, eu
respondo. Antes casar-se com o diabo. Já experimentei um pouco do céu em
minha vida e também um pouco do inferno, e prefiro o inferno. Mas o que você
diz é verdade, Tom. Ele é um homem excelente.
- Por que você o abandonou durante a Depressão? - perguntou Savannah,
encorajada pela franqueza da velha, pelo escoar sincero dos antigos segredos. -
Papai não quer nem ouvir falar nisso.
- Acho que vocês já têm idade suficiente para saber - replicou Tolitha,
com a voz subitamente desanimada, quase sonhadora. - No meio da Depressão,
ele largou o emprego, para pregar a palavra de
Deus na frente da mercearia. Isso rendia bem menos que a barbearia,
mas ele tinha metido na cabeça que a Depressão era o sinal de que o mundo ia
acabar. Era fácil pensar isso. Muita gente imaginou a mesma coisa. Nós
estávamos quase morrendo de fome. Nunca gostei de miséria e disse a Amos
que ia embora. Evidentemente ele não acreditou, porque ninguém se divorciava
naqueles dias. Eu lhe disse para tomar conta de Henry, do contrário eu voltaria
para matá-lo. Peguei várias caronas até chegar a Atlanta. Na mesma semana
arranjei um emprego na loja de departamentos Rich's. Depois de algum tempo,
conheci Papai John e casei-me com ele em seguida.
- Que horror, Tolitha! - exclamei. - A pior coisa que já ouvi.
- Aquele que está no quintal é o santo, Tom. - Ela estreitou os olhos por trás
dos óculos de modo que as sobrancelhas quase se tocaram. - A mulher está aqui
na cozinha. Não me orgulho de todas as coisas que fiz, mas posso contar tudo.
- Não admira que papai seja tão neurótico - repliquei, assobiando.
- Cale a boca, Tom. Você é muito tradicionalista - disse Savannah com
malícia. - Não entende nada de sobrevivência.
- Fiz o melhor que pude sob aquelas circunstâncias. Parecia que o mundo
inteiro tinha ficado louco e eu não escapei disso.
- Continue - pedi -, antes que vovô entre.
- Não se preocupem, ele vai se entreter com a cruz até a hora do jantar.
Bem, admito que a pior parte de tudo ficou com seu pai. Ele tinha apenas 11 anos
quando o levei para Atlanta, depois de passar cinco anos sem vê-lo. Sequer me
conhecia e tampouco entendia por que eu o deixara ou por que devia me chamar
Tolitha, e não mãe. Costumava gritar "Mamãe, Mamãe" enquanto dormia e
Papai John ficava com o coração partido. Ia até o quarto dele e cantava canções
gregas até que o menino voltasse a dormir. Seu pai não conhecia nenhuma
Tolitha, nem queria conhecer. Hoje em dia eu teria agido de maneira diferente.
Com toda a honestidade. Só que já não vivemos na mesma época e não há como
voltar no tempo.
- É difícil encarar papai como uma figura trágica - comentou Savannah. -
Principalmente como uma criança trágica. Nem consigo imaginá-lo como uma
criancinha.
- Você teve outros maridos, Tolitha? - perguntei.
Ela riu.
- Sua mãe andou falando novamente!
- Não. Eu só ouvi alguns boatos pela cidade.
- Depois que Papai John morreu, fiquei arrasada de tristeza. Peguei o
dinheiro que ele me deixou, aliás uma quantia razoável, e parti para uma série de
lugares que só conhecia de nome. Hong Kong, África, índia. Dei a volta ao
mundo, viajando de navio. Primeira classe, de porto em porto. E tive esse
problema. Todos sempre me amavam. Principalmente os homens. Sou desse tipo
de pessoa. Os homens adoram estar à minha volta como se houvesse algum
cheiro adocicado emanando de mim. Eu simplesmente me sentava enquanto eles
se enfileiravam à minha frente, tentando me fazer rir ou querendo me oferecer
algum drinque. Casei-me com dois desses rapazes. O casamento mais longo
durou cerca de seis meses, exatamente o tempo que levei para ir de Madagascar
a Cidade do Cabo. Ele queria que eu fizesse coisas nojentas que não posso contar.
- Que coisas são essas que você não pode contar, Tolitha? - perguntou
Savannah com ansiedade, aproximando-se de minha avó.
- Não. Não pergunte isso - implorei. - Pelo amor de Deus!
- Por que não?
- Porque ela vai contar, Savannah. E deve ser alguma coisa horrível e
embaraçosa.
- Ele queria que eu chupasse o lugar onde as pernas se encontram -
explicou minha avó, de maneira um pouco afetada, devo admitir. Ela sempre
contava mais do que queríamos ouvir.
- Ai que nojo! - exclamou Savannah.
- Ele tinha desejos animais - acrescentou Tolitha. - Era um pesadelo.
- Por que você voltou para o vovô? - perguntei, ansioso por desviar o
assunto.
Tolitha olhou para mim enquanto levava o copo de chá aos lábios. Por um
momento, pensei que não fosse responder.
- Fiquei cansada, Tom. Realmente cansada. Além do mais, começava a
envelhecer, a parecer velha e a me sentir velha. Amos sempre estaria aqui, à
beira do rio, e sempre esperaria por mim. Eu sabia que poderia voltar e ele
nunca tocaria no assunto. Simplesmente estaria agradecido pelo meu regresso.
Seu pai age do mesmo jeito com Lila. Sempre esteve interessado na mesma
mulher a vida inteira. Igualzinho ao pai. Isso é só para mostrar a vocês que é
mais fácil a transmissão da loucura por meio do sangue do que daquilo que fazia
com que todos me amassem.
- Mas todos amam vovô - declarei, subitamente triste pelo homem que
estava no quintal.
- Eles o amam porque é um fanático, Tom. Porque carrega aquela cruz
todos os anos. Mas eu pergunto, quem precisa de um santo? Prefiro mil vezes um
drinque e boas risadas.
- Você ama vovô, não ama, Tolitha? - insisti.
- Amor. - A palavra parecia uma pastilha sem gosto em sua boca. - É,
talvez você tenha razão. A gente ama aquilo para onde sempre volta, a pessoa
que está em casa esperando por nós. Outro dia, eu pensava no tempo. Não no
amor, mas no tempo. De certo modo, as duas coisas estão relacionadas, embora
eu não saiba exatamente como. Fiquei casada durante quase o mesmo tempo
com seu avô e com Papai John. Mas, quando olho para o passado, tenho a
impressão de que estive apenas por alguns dias com Papai John. Isso por causa
da felicidade que sentia. Parece que estou casada há centenas de anos com seu
avô.
- Isso é uma conversa de adulto - declarou Savannah com orgulho. -
Esperei muito tempo para ter uma conversa verdadeiramente de adulto.
- Seus pais tentam proteger vocês das coisas que acreditam que as
crianças não devem saber, Savannah. Eles não concordam com a vida que levei.
Mas, já que é uma conversa de adultos, eles não precisam saber nada sobre o
assunto.
- Eu nunca contaria. Mas Tom às vezes age como criança.
Ignorando o comentário, perguntei a Tolitha:
- Você acha que papai se recuperou do abandono que sofreu quando era
criança?
- Você quer saber se ele me perdoou? Creio que sim. Quando o assunto é
família, pode-se passar por cima de muitas coisas. Isso você vai aprender quando
for adulto, juntamente com algumas lições bem piores. Por exemplo, você nunca
vai pensar em perdoar um amigo pelas mesmas coisas que os pais fazem a você.
Com os amigos é diferente...
- Bem, vou ajudar vovô a consertar a cruz - anunciei.
- E eu preciso ir à loja de bebidas - retrucou Tolitha.
- Você vai se embriagar novamente na Sexta-feira Santa?
- Tom, não seja tão rude - censurou Savannah. Tolitha deu uma risada
enquanto dizia:
- Essa foi a única resposta civilizada que encontrei para a caminhada dele.
Serve também para lembrá-lo de que não me possui e nunca me possuirá. É
minha maneira de expressar o ridículo da situação. Na certa ele já conversou
com Deus sobre isso e conseguiu o "vá- em-frente". Assim, não há o que fazer
para demovê-lo.
- Ele simplesmente está sendo um bom cristão. Foi o que me falou -
comentei. - Disse também que, se o mundo estivesse agindo direito, toda a cidade
de Colleton estaria lá com cruzes, caminhando com ele.
- Então teriam de trancafiar toda a cidade. Não, Tom. Não tenho nada
contra ser um bom cristão. Pode acreditar. Quero que você também seja um
bom cristão. Só não concordo em que se leve o cristianismo tão a sério.
- Você é uma boa cristã, Tolitha? - perguntou Savannah. - Você acha que
vai para o céu?
- Não fiz nada para merecer o fogo do inferno por toda a eternidade.
Qualquer deus que me condenasse não mereceria o nome que tem. Levei uma
vida interessante sem causar dano a ninguém.
- Você acha que vovô também levou uma vida interessante? - perguntei.
- Tom, você diz cada coisa boba! - ralhou Savannah.
- Bem, sempre que você quiser saber o que torna uma vida interessante,
Tom, pense nisto: enquanto seu avô cortava cabelos e seus pais pegavam
caranguejos e tiravam a cabeça de camarões, eu atravessava o Khy ber Pass,
entrando no Afeganistão disfarçada de soldado. Provavelmente, serei a única
pessoa que você vai encontrar em toda a sua vida que já fez isso.
- Acontece que você voltou, Tolitha. Que vantagem teve tudo isso, para
você vir terminar sua vida aqui em Colleton, no lugar onde você começou?
- Significa apenas que o dinheiro acabou. Que eu fracassei naquilo que
iniciara.
- Você é o único sucesso que nossa família produziu, Tolitha - declarou
Savannah. - Você é a única razão pela qual eu sei que posso fugir daqui algum
dia.
- O nome Tolitha está escrito em seu corpo, Savannah. Desde que você era
menina. Tente ser mais esperta do que eu. Eu tinha o instinto, mas não a
esperteza. As coisas eram mais difíceis para as mulheres naquela época. Mas
procure sair daqui. Colleton é um veneno, doce, porém veneno. Uma vez que
penetra na alma, você não consegue mais eliminá-lo. É curioso, mas, todos os
lugares que vi na Europa, na África e na Ásia, alguns me faziam chorar de tão
lindos. Só que nenhum era mais bonito que Colleton. Essa é que é a verdade.
Nenhum pôde me fazer esquecer o pântano e o rio. O cheiro deste lugar
permanece em nossas entranhas em qualquer lugar que se vá. Só não sei se isso é
bom ou ruim.
Tolitha levantou-se para acender o fogo no fogão. A tarde estava tranqüila,
com o ar fresco e sedoso. Uma barcaça carregada subia o rio. Vimos vovô
acenar para os barqueiros, que responderam com uma buzinada. Quase que ao
mesmo tempo, a ponte sobre o rio começou a se abrir vagarosamente no meio.
- Vão lá fora conversar com seu avô, crianças - disse a velha. - Vou
preparar um jantar para nós, mas antes vocês podem ir até o rio pegar algumas
ostras. Cuidarei delas enquanto esperamos o frango assar.
Fomos para o quintal, o mundo diferente de vovô Wingo. Ele levantara a
cruz e a colocara sobre os ombros, testando a nova roda, que rangia de leve
enquanto girava pela grama.
- Olá, crianças. - Vovô sorriu ao nos ver. - Não consigo tirar o rangido
dessa roda.
- Olá, vovô! - Corremos para beijá-lo no rosto.
- Que tal está a cruz, crianças? Sejam sinceros. Não tenham medo de
magoar o vovô. Vocês acham que a roda está boa?
- Está ótima - disse Savannah. - Mas nunca vi uma cruz com roda.
- Depois da caminhada do ano passado, fiquei uma semana na cama.
Achei que a roda facilitaria as coisas, mas estou preocupado. Tenho medo de que
as pessoas não entendam bem.
- Eles vão entender, vovô - eu disse.
- A cruz tomou chuva no inverno e começou a apodrecer na trave central.
Talvez eu tenha de fazer uma nova para o ano que vem. Um modelo mais leve,
se eu encontrar o tipo certo de madeira.
- Por que você não se aposenta, vovô? - perguntou Savannah. - Deixe um
homem mais jovem assumir essa tarefa.
- Já pensei muito nisso, minha filha. Espero que Luke ou Tom assumam
essa responsabilidade depois que eu me vá. É para isso que eu rezo ao Senhor.
Seria ótimo manter a tradição na família, vocês não acham?
- Tenho certeza de que Tom adoraria tomar seu lugar. Na verdade, rezo
bastante ao bom Deus para que isso aconteça.
Belisquei minha irmã no braço antes de falar:
- Tolitha pediu que fôssemos ao rio para pegar algumas ostras. Quer ir
conosco, vovô?
- Ah, seria ótimo. Mas você não pode levar a cruz até a garagem? Preciso
descobrir de onde vem esse rangido.
- Ele vai adorar fazer isso - acrescentou Savannah. - Assim, vai adquirindo
prática para quando chegar sua vez.
Peguei a cruz, coloquei-a sobre o ombro direito e andei rapidamente pelo
quintal, enquanto ouvia minha avó vaiando na cozinha.
- Ei, espere um minuto - pediu vovô. - Já sei de onde vem o rangido. -
Inclinando-se, ele pôs óleo na roda, que tirou de uma lata enferrujada. - Isso
deve bastar. Experimente de novo.
Retomei a caminhada, ignorando o sorrisinho no rosto de Savannah e a
figura zombeteira de minha avó emoldurada pela janela da cozinha. Meu avô,
por sua vez, não percebia o que se passava.
- A cruz fica ótima nas mãos dele. Você não acha, Savannah? - perguntou
vovô.
- Claro que sim. Esse menino nasceu para carregar uma cruz.
- É pesada - reclamei eu, com raiva.
- Você devia carregá-la sem a roda. Isso sim é um trabalho de homem.
Quando penso no sofrimento do Senhor e em tudo o que ele fez por mim...
- É, Tom. Pare de reclamar. Pense no que o Senhor passou - completou
minha irmã.
- Venha outra vez pelo mesmo caminho, criança. Quero ter certeza de que
acabei com o rangido.
Depois de guardar a cruz na garagem, entramos os três no pequeno bote
verde de vovô. Com o motor em funcionamento, reunimos as cordas e nos
dirigimos ao outro lado do rio Colleton, rumo a um banco de ostras próximo aos
destroços do Hardeville, na ilha de Santo Estêvão. O Hardeville era uma velha
balsa que afundara durante o furacão ocorrido no dia em que Savannah e eu
nascemos. Sua grande roda de pá jazia no lodo e, a distância, parecia um relógio
inacabado. Milhares de ostras se apinhavam em torno da base do casco da balsa.
Com a maré alta, aquele era um dos lugares mais produtivos e abundantes para
se pescar no município. Uma família de lontras vivia no interior da balsa desde
épocas distantes. A tradição as tornara sagradas e invioláveis, de modo que
nenhum caçador tentara prendê-las em armadilha.
Quando meu avô desligou o motor, havia dois filhotes brincando de se
perseguir pelas vigas do casco. Então, deslizamos pelos bancos expostos pela
maré baixa.
- Jesus foi ótimo ao colocar essas ostras tão perto de nossa casa! Ele sabe
quanto gosto delas - declarou vovô enquanto Savannah e eu nos inclinávamos ao
lado do barco para desalojar as ostras do banco. Pegamos uma dúzia de ostras
grandes, do tamanho da mão de um homem, e, em seguida, cerca de dez
pequenas que quebramos com um martelo na frente do barco.
Entrei no lodo, afundando até os joelhos, e, com cuidado, passei a
selecionar as ostras maiores, jogando-as no barco.
- As ostras sempre parecem estar rezando - comentou meu avô. - Duas
mãos entrelaçadas, agradecendo...
Além disso, afiadas e ameaçadoras. Por isso eu andava sem firmeza,
devagar, como se estivesse dançando sobre um campo de lâminas.
Sentia as conchas cortando a borracha de meus tênis enquanto lidava com
as tenazes e trazia as ostras para a luz mortal.
Depois que juntamos cerca de quarenta, subi no barco e dei um impulso
para voltarmos ao rio. Vovô não conseguiu ligar o motor de imediato, razão por
que flutuamos pelas águas como uma folha de carvalho, vendo as lontras
passarem rapidamente em círculos brilhantes, seus movimentos ágeis agitando a
água. Vovô puxava repetidas vezes a corda de partida do motor, e o suor se
formava em sua testa. Nos destroços do naufrágio, uma lontra de cara prateada
subiu numa das vigas do barco, com uma truta ainda se agitando entre suas
mandíbulas. A lontra parou, apoiada nas patas traseiras, e logo pôs-se a devorar o
peixe como um homem que estivesse comendo milho. Savannah foi a primeira a
ver Snow.
- Snow! - gritou, levantando-se e quase virando o bote. Estabilizei-o com as
mãos, passando meu peso de um lado para o outro até que nos equilibramos
novamente. Vovô desistiu de dar a partida ao motor e olhou pelo rio na direção
apontada por Savannah. Então, vimos a 150 metros de distância a toninha branca
passando pelas ondas e dirigindo-se para nós.
Eu era um menino de 10 anos quando vi pela primeira vez a toninha
branca, conhecida como Carolina Snow, seguindo o barco de camarões quando
voltávamos para o porto depois de um dia inteiro de pesca nas praias ao longo de
Sapulding Point. Era a única toninha branca já avistada na costa atlântica pela
comunidade de pescadores de camarão. Tanto que alguns diziam ser a única
toninha branca existente sobre a Terra. Ao longo do município de Colleton, com
seus infinitos quilômetros de rios salgados e riachos que viviam das marés, a
aparição de Snow era sempre motivo de admiração. Por nunca aparecer com
outras de sua espécie, alguns pescadores, como meu pai, conjecturavam que as
toninhas, como os seres humanos, não eram gentis com as aberrações da raça, e
que Snow fora sentenciada, por sua notável brancura, a perambular pelas águas
verdes de Colleton, exilada e solitária. No primeiro dia, ela nos seguiu quase até a
ponte antes de retornar para o mar. Snow emprestava ao município um ar de
acontecimento especial - todos os que a viam lembravam-se disso pelo resto de
sua vida. Era como se, de repente, entendêssemos que o mar nunca perderia o
poder de criar e surpreender.
Com o passar do tempo, Snow transformou-se em símbolo de sorte na
cidade. Colleton iria prosperar enquanto suas águas fossem honradas por aquelas
visitas. Houve ocasiões em que a toninha desapareceu por longos períodos,
reaparecendo subitamente nas águas das ilhas da Carolina. Até o jornal noticiava
suas idas e vindas. A entrada no canal principal, sua passagem lenta e sensual
pela cidade, atraía os cidadãos às margens do rio. Os negócios cessavam e o
povo parava o que estivesse fazendo para presenciar seu retorno. Ela raramente
visitava o rio principal, razão pela qual sua aparição ali sempre fazia a cidade
parar. Chegando como um símbolo, um monarca e um presente, sozinha e
banida, as pessoas nas margens chamavam seu nome, gritavam cumprimentos,
presenciavam sua passagem alva e formavam a única família que ela
conheceria.
Ligando o motor, vovô embicou o pequeno bote em direção ao canal.
Então, Snow levantou-se à nossa frente, suas costas brilhando intensamente à luz
do crepúsculo.
- Ela está indo pelo nosso caminho - comentou o velho guiando o bote
àquela direção. - Se isso não for uma prova de que Deus existe, nada mais é. A
gente pode até pensar que Ele se satisfaria com uma simples toninha, tão bonita
quanto qualquer outra criatura na Terra. Mas não. Ele está lá em cima sonhando
com coisas ainda mais bonitas para agradar os olhos dos homens.
- Eu nunca a tinha visto tão perto. - Savannah estava entusiasmada. - Ela é
branca como uma toalha de mesa.
Não foi o branco puro, entretanto, que vimos quando a toninha voltou à
superfície a 20 metros de distância do barco. Pequenos pontos coloridos
tremulavam em suas costas enquanto ela passava rapidamente pela água, um
breve luzir de prata em suas nadadeiras, uma cor evanescente que não podia
durar. Ela jamais aparecia duas vezes seguidas com a mesma cor.
Observamos ela rodear o bote, vimos quando passou por baixo dele fluindo
como leite na água. A toninha se levantava, ficava suspensa no ar, mostrando
reflexos cor de pêssego, e caía outra vez na água, alva como leite... Esses são
momentos rápidos de minha infância que não consigo reviver por inteiro. Voltam
apenas em fragmentos, irresistíveis, emblemáticos, e em tremores do coração.
Há um rio, uma cidade, meu avô dirigindo o bote pelo canal, minha irmã presa
àquele arrebatamento que mais tarde traduziria em seus mais fortes poemas, o
perfume metálico das ostras recém-colhidas, as vozes das crianças na margem...
Quando a toninha branca vem, existe tudo isso e também uma transfiguração.
Em sonhos, a toninha reina nas águas da memória, uma divindade opaca que
alimenta o fogo e o frio mais profundo das águas de minha história. Entre as
muitas coisas erradas de minha infância, o rio era uma exceção - a riqueza
inestimável que ele concedia não pode ser negociada ou vendida.
Ao cruzarmos a ponte, olhei para trás e vi as sombras das pessoas que se
reuniam para assistir à passagem de Snow. Dezenas de cabeças juntas, acima da
balaustrada da ponte, a intervalos, lembravam as contas de um rosário
danificado. Uma menina implorava a Snow para passar outra vez sob a ponte.
Homens e mulheres juntavam-se no cais flutuante que se balançava com a água,
todos apontando para o último lugar onde a toninha aparecera.
Quando ela veio, foi como se meu avô tivesse visto o sorriso de Deus vindo
do fundo até ele.
- Obrigado, Deus - murmurou atrás de nós em uma daquelas preces não
ensaiadas que brotavam naturalmente de seus lábios quando estava muito
comovido com o mundo. - Muito obrigado por isso.
Mais tarde, muito depois de sua morte, eu iria lamentar por jamais ter sido
o tipo de homem que ele fora. Apesar de adorá-lo quando criança e de me sentir
atraído pela segurança de sua suave masculinidade, nunca o apreciei por inteiro;
pois não sabia como cuidar da santidade, não tinha uma maneira própria de
reverenciar, de dar voz ao louvor de uma inocência tão natural, de tanta
simplicidade generosa. Agora, sei que uma parte de mim gostaria de ter viajado
pelo mundo como ele viajara, um palhaço cheio de fé, um tolo e um príncipe da
floresta transbordando de amor a Deus. Gostaria de ter andado por seu mundo
sulista, agradecendo a Deus pelas ostras e pelas toninhas, louvando-o pelo canto
dos pássaros, pelo relâmpago, e vendo Deus refletido nas águas dos riachos e nos
olhos dos gatos. Gostaria de ter conversado com cachorros nos quintais e com
sanhaços, como se estes fossem amigos e companheiros de viagem ao longo das
rodovias torturadas pelo sol, intoxicado pelo amor a Deus e cheio de caridade
como um arco-íris, na mistura impensada de seus matizes, ligando dois campos
distantes em seu glorioso arco. Gostaria de ter visto o mundo com olhos incapazes
de qualquer outra coisa que não fosse admiração, e com a língua fluente apenas
no louvor.
Enquanto a toninha branca subia o rio em sua solidão de intrusa, associei-
me a seu isolamento. Mas meu avô - ah! eu sempre soube o que ele sentia ao ver
Snow subindo o rio. Ele via a toninha desaparecer seguindo as águas profundas
em torno de alguma curva do canal, aparecendo mais uma vez, antes de seguir
para trás de um istmo verde no lugar onde o rio segue para a direita.
Luke estava no cais, esperando por nós. Com o sol a oeste, nos fitava como
se não tivesse rosto, um remoto claro-escuro, um pilar de luz e sombra. Quando
vovô desligou o motor, Luke guiou o bote com o pé ao longo do cais e agarrou a
corda que lhe joguei.
- Vocês viram Snow? - perguntou.
- Ela estava traquinas como um cachorro - respondeu meu avô.
- Tolitha nos convidou para jantar.
- Trouxemos ostras suficientes para todos - eu disse.
- Papai trouxe 2 quilos de camarão. Tolitha vai fritá-los.
- Você parecia um gigante parado no cais quando estávamos no rio, Luke -
disse Savannah. - Acho que você ainda está crescendo.
- Estou, irmãzinha, e não quero anões subindo pelo meu pé de feijão.
Juntei as ostras e joguei-as sobre o cais, onde Luke as colocou numa bacia.
Amarramos o bote e subimos para a casa, passando sobre a relva.
Savannah, Luke e eu ficamos na varanda dos fundos, para cuidar das
ostras e pô-las na tigela que vovó nos deu pela porta da cozinha. Abrindo uma
ostra enorme, chupei-a de sua concha. Segurei-a por um momento na boca, senti
seu sabor sobre a língua, inalei seu perfume e a deixei deslizar pela garganta.
Nada é mais perfeito para mim que o frescor e o buquê de uma ostra crua. É o
sabor do oceano transformado em carne. De onde estávamos, ouvi a voz de
minha mãe e a de vovó conversando na cozinha, as vozes eternas de mulheres
que preparavam comida para suas famílias. Vênus era uma pepita de prata
subindo a leste. As cigarras iniciavam sua assembléia noturna nas árvores.
Alguém ligou a televisão dentro de casa.
- Hoje conversei com o treinador Sams - comentou Luke, abrindo uma
ostra com um movimento gracioso de pulso. - Ele me disse que um menino
negro vai realmente entrar em nossa escola.
- Quem é ele? - perguntou Savannah.
- Benji Washington. O menino do papa-defunto.
- Pois eu nunca o vi.
- Ele é negro - informei.
- Não diga essa palavra, Tom - censurou Savannah, olhando-me de modo
penetrante. - Não gosto dela. Nem um pouco.
- Posso falar o que quiser. Por que lhe pedir permissão para dizer alguma
coisa? Ele vai criar problemas e arruinar nosso último ano.
- É uma palavra nojenta, indecente. E faz com que você pareça malvado
quando a usa.
- Ele não quer dizer nada com isso, Savannah - interrompeu Luke
suavemente. - Tom sempre tenta parecer mais durão do que realmente é.
- O cara é um negrinho. Qual o problema de eu chamá-lo de negro? -
rebati, com mais ênfase ainda.
- As pessoas gentis não usam essa palavra, seu filho-da-puta - retrucou
minha irmã.
- Essa é boa! Pelo jeito, as pessoas realmente gentis usam "filho-da-puta"
como um termo carinhoso.
- É hora do jantar - lembrou Luke com tristeza. - Está na hora de outra
discussão. Meu Deus, vocês dois, parem. Sinto muito ter tocado nesse assunto.
- Não repita essa palavra, Tom. Estou avisando - ameaçou Savannah.
- Puxa, não percebi o momento exato em que você se tornou rainha da
beleza da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas Negras!
- Vamos comer ostras e escutar as rãs - propôs Luke. - Detesto quando
vocês discutem desse jeito.
- Não diga aquilo perto de mim, Tom. Está entendido? Detesto a palavra e
odeio as pessoas que a usam.
- Papai a usa o tempo todo.
- Ele tem uma desculpa. É um idiota. Você, não.
- Não tenho vergonha de ser sulista, Savannah. Como algumas pessoas que
conheço que lêem The New Yorker toda semana.
- Você devia ter vergonha de ser o tipo de sulista que é, escória barata.
- Desculpe, alteza.
- Silêncio, vocês dois - exigiu Luke, olhando para a janela da cozinha. O
aroma dos biscoitos de minha avó enchia o ar da noite. - Mamãe não nos permite
usar aquela palavra, Tom. E você sabe disso.
- Você não tem o direito de pensar como a pior parte do Sul pensa. Não
vou permitir esse tipo de atitude desagradável em você. Eu o faço desistir a tapa,
se for preciso - continuou Savannah.
- E eu posso dar uma bela surra em você - repliquei, olhando-a de
maneira desafiadora.
- Está certo, durão, você pode. Mas, se tocar um dedo em mim, o Grande
Luke aqui presente parte você ao meio. E você é fraco como um bebê
comparado a ele.
Olhei para meu irmão, que sorria para nós. Ele acenou com a cabeça.
- É isso aí, Tom. Não vou permitir que você machuque minha menina.
- Ei, espere um pouco. Foi ela quem começou a discussão ou não foi? Eu
só falei inocentemente alguma coisa sobre os negrinhos.
- Pois é, ela começou e está vencendo a discussão, irmãozinho. - Ele
sorriu.
- Você está cheio de preconceitos!
- Eu sou grande. Só isso.
- Um príncipe - disse Savannah, abraçando Luke e beijando-o nos lábios. -
Meu príncipe caipira.
- Sem entrar na parte física, Savannah. - Ele corou. - O corpo está além
dos limites.
- Vamos supor que eu batesse em Savannah. É só uma suposição. Que eu
batesse no rosto dela para me defender, Luke. Você faria alguma coisa? Você me
ama tanto quanto ama Savannah, não é verdade.
- Amo você tanto que até dói. Você está cansado de saber. Mas, se algum
dia você tocar em Savannah, quebrarei seu pescoço. Vai doer muito mais em
mim do que em você, mas não lhe deixarei um osso inteiro.
- Não tenho medo de você, Luke!
- Sim, você tem. E não é motivo para se envergonhar. Sou muito mais
forte que você.
- Você se lembra de quando mamãe leu para nós O diário de Anne Frank,
Tom? - perguntou Savannah.
- Claro que sim.
- Você chorou quando o livro terminou, não foi?
- Isso não tem nada a ver com o que estamos falando. Não havia um único
negrinho em Amsterdã, tenho certeza.
- Sim, mas havia nazistas que usavam a palavra judeu do mesmo modo
que você usa negro.
- Dá um tempo, Savannah.
- Bem, quando Benji Washington entrar na escola no primeiro dia de aula
do ano que vem, quero que você se lembre de Anne Frank.
- Pelo amor de Deus! Quero comer minhas ostras em paz.
- Savannah acaba de lhe dar umas palmadas na bunda, Tom. Adoro
escutar quando vocês discutem. Você começa como se fosse tomar conta do
mundo e, no fim da discussão, não consegue dizer uma palavra.
- Acontece que eu não gosto de discutir. É essa a grande diferença entre
Savannah e eu.
- Mas não é a principal diferença entre nós, Tom - declarou Savannah,
indo até a porta da cozinha.
- Então qual é? - perguntei, voltando-me para ela.
- Quer saber mesmo? Não se preocupa com seus sentimentos?
- Você não pode me magoar. De qualquer modo, sei tudo o que pensa.
Somos gêmeos, lembra-se?
- Disso você não sabe.
- Então, diga.
- Sou muito mais inteligente que você, Tom Wingo. - Dito isso, ela entrou
na cozinha, deixando-nos a comer as ostras restantes na escuridão. A risada de
meu irmão ecoou pela varanda.
- Ela lhe deu umas palmadas na bunda, maninho!
- Tive algumas interferências boas na discussão.
- Nem uma. Nem uma única.
- Anne Frank não tem picas a ver com isso.
- Ela mostrou que tinha.
"TORA SUBMERSA" era o código que meu pai combinara com o capitão
Blair e a tripulação do Amberjack. Ele concordara em pescar nas águas
limítrofes de Colleton até avistar a toninha branca entrando nas águas territoriais
do município de Gibbes. Era ele o cidadão anônimo que escrevera ao
Seaquarium de Miami informando sobre a presença da toninha albina em nossa
cidade. Duas semanas após o rapto de Snow e uma semana depois que sua foto
saiu na Gazeta de Colleton, sendo colocada no tanque de sua nova casa de Miami,
meu pai recebeu do capitão Blair uma carta de agradecimento e mil dólares a
título de recompensa por sua ajuda.
- Tenho vergonha pelo que você fez, Henry - disse minha mãe
esforçando-se para se controlar enquanto ele acenava com o cheque à nossa
frente.
- Ganhei mil dólares, Lila. Foi o dinheiro mais fácil que já faturei até hoje.
Gostaria que todas as toninhas que encontro fossem albinas. Eu passaria o resto
da vida comendo do bom e do melhor!
- Se alguém dessa cidade tivesse culhões, iria a Miami e libertaria aquele
animal. É melhor que ninguém saiba que você foi o responsável por isso, Henry.
O pessoal continua louco de raiva!
- Como é que você se atreveu a vender nossa toninha, pai? - perguntou
Savannah.
- Olhe, meu bem, ela vai ficar numa cidade ótima, comendo cavalas
como um gourmet e saltando no meio de arcos para a alegria das crianças. Snow
não precisará se preocupar com tubarões pelo resto da vida. Ela está aposentada
em Miami. Você tem de encarar isso de modo positivo.
- Acho que você cometeu um pecado que Deus não perdoa - declarou
Luke, com ar sombrio.
- Você acha, é? Pois eu nunca vi a frase "Propriedade de Colleton" tatuada
nas costas dela. Simplesmente escrevi para o Seaquarium, contando que aqui
existia um fenômeno natural que poderia atrair multidões. Eles apenas me
recompensaram pela informação.
- Eles não teriam encontrado Snow se você não os avisasse pelo rádio cada
vez que a avistava no rio - disse eu.
- Claro, eu era o oficial de ligação deles na área. Vejam bem, não está
nada boa a estação de pesca. Esses mil dólares vão garantir a comida na mesa e
roupas para cada um. Daria para pagar um ano inteiro de faculdade para um de
vocês.
- Eu não daria uma única garfada na comida comprada com esse
dinheiro. E não usaria uma só cueca comprada com ele - garantiu Luke.
- Fazia mais de cinco anos que eu observava Snow - acrescentou minha
mãe. - Uma vez, você castigou Tom por matar uma águia careca, Henry. Há
muito mais águias no mundo que toninhas brancas.
- Eu não matei a toninha, Lila. Apenas a enviei a um porto seguro onde ela
estará livre de qualquer temor. Eu me vejo como um herói neste caso.
- Você vendeu Snow para o cativeiro - retrucou ela.
- Eles vão transformá-la em toninha de circo - emendou Savannah.
- Você traiu a si mesmo e às suas origens - acusou Luke. - Se fosse um
negociante, um sujeitinho bem arrumado e de cabelo lustroso, eu entenderia.
Mas um camaroneiro! Um camaroneiro vendendo Snow por dinheiro?
- Eu vendo camarões por dinheiro, Luke - gritou meu pai.
- Não é a mesma coisa. Não se vende o que não se pode repor.
- Vi vinte toninhas no rio hoje.
- Sou capaz de apostar que nenhuma era branca. Nenhuma delas era tão
especial.
- Nossa família é a razão pela qual capturaram Snow - interveio Savannah.
- Sinto-me como se fosse filha de Judas Iscariotes. Aliás, eu teria preferido ser
filha dele.
- Você não devia ter feito o que fez, Henry - disse minha mãe. - Isso vai
lhe dar azar.
- Não posso ser mais azarado do que já sou. Em todo caso, o assunto
terminou. Não há nada que se possa fazer agora.
- Eu vou fazer alguma coisa - declarou Luke.
TRÊS SEMANAS MAIS TARDE, na escuridão da noite, quando ouvíamos
o ronco de meu pai, Luke sussurrou seu plano para nós. Era algo que não deveria
nos surpreender... No entanto, anos mais tarde, Savannah e eu conversamos,
tentando estabelecer a hora exata em que nosso irmão mais velho se
transformara de um menino idealista e impetuoso num homem de ação. Ficamos
amedrontados e, ao mesmo tempo, muito alegres com a audácia de sua proposta.
Só que nenhum de nós quis tomar parte nela. Luke continuou a argumentar, até
que nos descobrimos aprisionados pela originalidade magnética de sua
eloqüência. Ele já se decidira e passou metade da noite alistando-nos como
recrutas em sua primeira passagem pelo lado selvagem da vida. Desde a noite
em que o vimos enfrentando o tigre no celeiro, sabíamos que Luke era corajoso;
agora, encarávamos a probabilidade de que também fosse temerário.
Três manhãs mais tarde, depois de Luke fazer muitos preparativos,
estávamos na Auto-estrada 17, em direção ao sul, com meu irmão pisando firme
no acelerador e o rádio tocando a todo volume. Ray Charles cantava "Hit the
Road, Jack", e nós cantávamos com ele. Tomávamos cerveja gelada e o rádio
estava ligado na Big Ape de Jacksonville, enquanto disparávamos pela ponte
Eugene Talmadge Memorial, em Savannah. Diminuímos a velocidade ao passar
pelo pedágio. Luke entregou um dólar ao velho que distribuía os tíquetes.
- Vão fazer umas comprinhas em Savannah, crianças? - perguntou o
homem.
- Não, senhor - respondeu meu irmão. - Estamos indo até a Flórida para
roubar uma toninha.
Nos olhos de Oscar brilhava a expressão mais brutal e fria que se possa
imaginar. Ele estava rodeado por um grupo de filhos de camaroneiros, meninos
que eu conhecia há muito tempo, todos com as mangas arregaçadas no alto dos
braços e olhando para mim num círculo solidário, rostos sombrios e os lábios
apertados. Luke estava parado em frente a Oscar. Caminhei na direção dele, os
pompons se movendo comigo como um incansável mar de crisântemos. Eu
esperara ser massacrado diante de apenas alguns meninos do rio e não contara
com a atitude de minha irmã transformando meu assassinato numa concentração
esportiva.
- Ouvi dizer que você chamou minha irmã de puta, Woodland - questionou
Luke.
- Ela estava conversando com o negrinho - respondeu Oscar, olhando
sobre os ombros de meu irmão, em direção a mim.
- Ela não precisa de permissão para conversar com ninguém. Portanto,
peça desculpas a minha irmã.
- Eu sei qual é sua tática, Luke. - Oscar era cuidadoso e respeitoso com
ele. - Você quer puxar briga comigo para que a bicha do seu irmãozinho possa
fugir da parada.
- Não. Tom vai bater em você. E se, por algum motivo, você o machucar,
aí terá de lutar comigo e isso vai acabar com sua tarde. Quero que você peça
desculpas a minha irmã por chamá-la de puta.
- Desculpe tê-la chamado de puta que gosta de negrinhos, Savannah -
gritou Oscar para a multidão. Os pompons estacaram e os meninos do rio riram
nervosamente.
- Quero um bom pedido de desculpas, Woodland. Algo sincero. Se não for
assim, vou arrancar fora sua cabeça.
- Desculpe aquilo que eu disse, Savannah - emendou o menino com voz
humilde. - Sinto muito por ter dito aquilo.
- Não achei nada sincero, Luke - declarei, num tom que inspirava pena.
- Você simplesmente não quer lutar - desafiou Oscar.
- Quer que eu lute com ele, Tom? - perguntou Luke, fitando os olhos do
outro.
- Bem, posso esperar pela minha vez...
- A luta é sua, Wingo - lembrou Artie Florence, um dos filhos de
camaroneiros, olhando em minha direção.
- Vou conversar um minuto com Tom - anunciou Luke. - Depois, ele vai
arrebentar sua bunda, Oscar.
Luke levou-me para longe dos outros, com o braço passado em torno de
meu ombro direito. Savannah continuava com as amigas, dirigindo todos os seus
movimentos, animando a torcida.
- Tom - começou Luke -, você sabe quanto é rápido?
- Você quer que eu fuja? - perguntei, incrédulo.
- Não, estou falando de outra coisa. Você sabe quanto é rápido com as
mãos?
- O que você quer dizer com isso?
- Oscar só vai te atingir se você cometer algum erro. Ele é forte, mas é
lento. Mantenha-se longe, dance em torno dele. Divirta-se. Não se aproxime.
Bata quando vir uma abertura e afaste-se de novo. Quando puder, soque os
braços dele.
- Os braços?
- É. Quando os braços dele se cansam, eles caem. E vai ser difícil levantá-
los. Quando perceber isso, aproxime-se.
- Estou com medo, Luke.
- Todo mundo tem medo numa luta. Ele também está com medo.
- Ele não está nem com a metade do medo que eu estou sentindo. Cadê o
Earl Fodido Wren agora que preciso dele?
- Você é rápido demais para perder essa parada. Não se deixe agarrar e
procure não cair. Senão ele prende seus braços e mete a mão na sua cara.
- Meu Deus... Posso dar um soco em Savannah, só um, antes de começar
a luta? Foi ela que me meteu nisso. Por que diabos nasci na única família de
Colleton que adora negros?
- Pense nisso depois. Por enquanto, derrote Oscar Woodland. Mantenha-se
longe porque ele bate forte.
O público afastou-se e abriu espaço assim que pisei na grama para
enfrentar Oscar Woodland. Eu ia me arrebentar por causa da decisão da
Suprema Corte de 1954, por causa da integração racial, por causa de Benji
Washington e por causa da minha irmã tagarela. Sorrindo, Oscar levantou os
punhos e avançou para mim. O primeiro soco pegou-me com a guarda aberta.
Foi um direto que quase atingiu meu queixo e me fez cambalear. Ele chegou
mais perto, os punhos socando o ar, um uivo animal escapando de sua garganta
enquanto me perseguia na grama.
- Dance! - gritou Luke.
Fui para a esquerda, longe do alcance de sua terrível direita. Um soco
passou de raspão em minha cabeça. Bloqueei outro com o braço. Girei em
círculo, afastando-me, e durante três minutos saltei de um lado para o outro,
percebendo a frustração crescente de meu adversário. Então, inconscientemente,
passei a observá-lo. Seguindo com atenção seus movimentos, fitando seus olhos,
descobria o momento exato em que ele ia me golpear. Ao contrário de mim,
Oscar não fazia idéia de quando eu iria bater, já que até então eu sequer havia
tentado atingi-lo.
- Fique quieto e lute, seu titica de galinha - resmungou ele, ofegante.
Parei por um instante e esperei. Quando ele atacou, o esporte mudou e
entrei num campo que conhecia e no qual era muito melhor. Afinal de contas,
durante três anos, treinara contra quarterbacks de times adversários que
avançavam sobre mim em movimentos disciplinados. Desviei-me do caminho
de Oscar e, quando ele passou por mim, surpreendi-me dando-lhe um violento
soco na orelha. O ímpeto da corrida levou-o ao chão. A multidão aplaudiu,
enquanto as líderes de torcida, comandadas por Savannah, recomeçavam o hino
da vitória.
Mas, em um instante, Oscar levantou-se furioso, e veio ao meu encontro.
A respiração pesada demonstrava sua necessidade de terminar rapidamente
aquela luta. Escapei de outros seis socos, ou, para ser mais explícito,
simplesmente saí do caminho, dando voltas e saltando para trás. Então, passei a
atingi-lo nos braços, usando toda minha força contra seus pulsos e bíceps.
Avancei de repente e esse movimento o surpreendeu e o fez retroceder; livrando-
me de outra salva infrutífera contra meu rosto, procurei apoio no ruído da
multidão enquanto continuava golpeando-lhe os braços.
Oscar acalmou-se um pouco e tentou se posicionar para que eu ficasse de
costas para a parede. Selecionando os golpes com mais cuidado, atingiu- me com
um direto sob o olho que me amorteceu o lado direito do rosto.
- Dance! - Ao ouvir o grito de Luke, fingi que ia para a esquerda, mas fui
para a direita. Nesse instante, ergui a mão direita e dei-lhe um lateral no rosto.
Oscar cambaleou para trás e abaixou a guarda.
- Agora! - comandou Luke.
Avancei com firmeza e comecei a atingi-lo com golpes de esquerda.
Woodland tentou proteger o rosto, mas não conseguiu. Seus braços caíram ao
longo do corpo enquanto o sangue escorria de seus lábios e do nariz. Quem o
agredia era eu, embora essa atitude nada tivesse a ver comigo, por mais que eu
sentisse o movimento de minha mão esquerda, a firmeza ao machucar o corpo
do adversário. Então, Luke entrou em meu campo de visão e eu parei de lutar.
Caí de joelhos, chorando de alívio, de medo e por causa da dor que
amortecia meu olho esquerdo.
- Você se saiu muito bem, irmãozinho - murmurou Luke.
- Nunca mais vou fazer isso - garanti, as lágrimas inundando meus olhos. -
Odiei essa briga. Odiei por completo. Diga a Oscar que sinto muito.
- Mais tarde você diz. Agora precisamos ir para o treino. Não lhe disse que
você era rápido?
Savannah sacudiu um pompom franjado em meu rosto e perguntou:
- Pelo amor de Deus, o que aconteceu, Tom? Você venceu a luta.
- Conheço Oscar desde que era pequeno.
- Mesmo pequeno ele era idiota!
- Não gostei dessa briga. - De repente, fiquei envergonhado ao perceber
que sessenta pessoas me viam chorar.
- Jogadores de futebol não choram - interveio Luke. - Vamos lá,
precisamos ir para o treino.
19
Ao terminar a leitura, disse a mim mesmo que aquilo podia ser explicado,
que existia uma solução simples e que esta se apresentaria a mim no devido
tempo. Até onde eu sabia, minha irmã pouco conhecia sobre judeus e sobre
peleteiros. Entretanto, eu tinha certeza de que ela escrevera aquele poema. O
tigre denunciava seu segredo; sem falar do inimitável ritmo de sua poesia. Reabri
o livro de recordações de Renata e olhei novamente as primeiras páginas. Não
tardou que descobrisse. Ocupação da mãe: dona de casa. Ocupação do pai:
peleteiro.
Desconfiei de que tocava em algo essencial da vida de minha irmã, mas
não sabia exatamente o que aquilo significava. Tinha algo a ver com a feroz
rejeição que ela sentia pela Carolina do Sul. O peleteiro redirecionara a voz da
poetisa de volta à ilha e à infância, e suas imagens eram claras e emocionantes
para mim. Ela estava abordando a história que nenhum de nós podia contar.
Entretanto, a desonestidade enfraquecera sua arte, que não era fraudulenta, mas
abrangente e oblíqua. Sugeria um tema, porém sem desenvolvê-lo a fundo. Se
você vai escrever sobre um tigre, Savannah, então escreva sobre a merda do
tigre, pensei. E não se esconda por trás do ofício de peleteiro, Savannah. Recuse-
se a cobrir seus poemas com pelicas luxuriantes e peles de animais invernais
mortos pelas mandíbulas de cruéis armadilhas. Um peleteiro aquece; uma
poetisa ferve em seus próprios elixires delicados. Um peleteiro faz um casaco a
partir de pedaços combinados de pele de marta e de leopardo; uma poetisa
ressuscita a marta e coloca um peixe meneando-se em sua boca, devolve o
leopardo à estepe, enchendo suas narinas com o aroma dos babuínos no cio. Você
está se escondendo atrás de peles e casacos bem-feitos, Savannah. Está tornando
o terror uma coisa quente, linda ao envolvê-lo suavemente em arminho, merino
e chinchila, ao passo que ele deveria estar nu e inexperiente no frio. Mas você o
abordou, querida irmã. Está chegando lá e eu estou chegando com você.
Voltei ao post-scriptum do editor da Kenyon Review. Reli-o
cuidadosamente: "Mazeltov pela publicação de seu livro infantil." Estaria ele
falando sobre uma obra da verdadeira Renata Halpern ou teria minha irmã
escrito livros infantis sob o mesmo pseudônimo que usara para publicar seus
poemas? Durante uma hora, verifiquei atentamente as estantes do apartamento,
procurando um livro infantil de Renata Halpern. Ao não encontrar nenhum ali na
biblioteca, perguntei-me como Savannah poderia ter planejado escrever um livro
daquele tipo. Frustrado, eu estava para cessar a procura quando lembrei que a
Kenyon Review sempre publicava pequenos esboços biográficos de seus autores
no fim da revista. Virei as páginas rapidamente e, sob a letra "H", li a breve
descrição de Renata Halpern:
Renata Halpern vive em Brookly n, Nova York, e trabalha na biblioteca do
Brookly n College. O poema que aparece neste número é seu primeiro poema
publicado. Seu livro infantil O estilo sulista foi lançado pela editora Random
House no ano passado. Atualmente ela está preparando uma coletânea de
poemas.
O Estilo Sulista
Por R. Halpern
"Fomos criados pela música dos rios, simples e sincera, e passamos nossos
dias de infância ao lado daquelas águas, seduzidos pelos encantos da cidade mais
adorável das terras baixas da Carolina."
MAIS TARDE, nós nos deitamos sobre o cais flutuante enquanto o rio se
enchia com o esplendor da totalidade ao se aproximar do mar. A luz escassa da
lua nova, avistamos todas as estrelas que Deus quisera que o olho humano
pudesse ver naquela parte do mundo. A Via Láctea era como um rio claro de luz,
mas, simplesmente levantando a mão na frente do rosto, eu aniquilava metade
daquelas estrelas. A maré estava descendo e os caranguejos tinham saído das
tocas de lama. Os machos acenavam com as pinças em sincronismo com as
marés, as estrelas e os ventos. Comunicavam com seus braços de marfim que o
mundo estava como fora programado para ser. Milhares deles mostravam a
Deus, por meio de gestos, que a maré havia descido, que Pégasus brilhava com a
magnitude exata, que as doninhas cantavam nas águas velozes, que a lua fora fiel
a seu pacto. Aquele movimento era uma dança, um certificado de fé, uma
cerimônia de afirmação divina. Como um caranguejo, ergui o braço e acenei
para Órion, que passava sem pressa, em formação de batalha. A constelação
estava a milhões de quilômetros e, no entanto, parecia mais próxima que as luzes
de minha casa.
No dia 3 de agosto, dormi outra vez no desembarcadouro sob um ventó
que se elevava de sudeste. Ao meio-dia, a maré estava cheia e, quando se
inverteu, os ventos impediram que as águas vazassem. Uma luta titânica
aconteceu, com o vento espalhando devastação entre os pomares e as plantações
de feijão. Após o almoço, Luke convidou Savannah e a mim para acompanhá-lo
ao extremo sul da ilha, onde planejava passar a tarde adubando o bosque de
pecãs que não dera frutos durante dois anos. Descontraído, eu lhe disse que pouco
me importava se os pés de pecãs de Melrose não produzissem uma única noz nos
próximos cinqüenta anos, e que não pretendia andar pela ilha com um tempo tão
esquisito. Savannah e eu ficamos com mamãe enquanto ele saía de casa e
caminhava pela estrada que atravessava o pântano, com o vento às suas costas.
Sintonizamos uma estação de rádio da Geórgia e fizemos coro, na tentativa
de criar um ambiente agradável, a cada vez que tocavam uma música de que
gostávamos. Quando a canção favorita de minha mãe começou a tocar,
cantamos ruidosamente, cada um fazendo pose de crooner de orquestra, em
microfones invisíveis para o prazer das multidões extasiadas. No fim da música,
aplaudimos uns aos outros e nos revezamos em reverências, curvando o corpo,
jogando beijos para nossos fãs exaltados.
Estávamos conversando quando o noticiário interrompeu nosso recital. A
parte nacional do jornal falado logo deu lugar ao noticiário local: o governador da
Geórgia pedira ao governo federal fundos para evitar erosões posteriores em
Ty bee Beach; três homens haviam fugido da prisão Reidsville, na Geórgia
central; acreditava-se que estivessem armados e que se dirigissem para a Flórida;
tinham assassinado um guarda da prisão durante a fuga. A Sociedade Histórica de
Savannah emitira um protesto contra a concessão de licença para a construção
de um hotel no distrito histórico. Um homem fora preso por vender bebida
alcoólica a um menor num bar de River Street. A voz alegre de minha mãe e a
do locutor do rádio misturavam-se naquela hora.
A chuva caía quando o Homem do Tempo anunciou que havia 40% de
chance de que isso ocorresse naquela tarde. No fim do noticiário, o som do
conjunto Shirelles ecoou pela sala. Com um grito de alegria, minha mãe pôs-se a
dançar o shag da Carolina com Savannah. Como a maioria dos atletas da escola
secundária de minha geração, aprendi os passes de futebol antes de aprender a
dançar. Assim, observei seus movimentos sensuais com uma sensação de alegria
e ao mesmo tempo de vergonha. Uma timidez inata me impedira de pedir à
minha mãe ou à minha irmã para que me ensinassem. Eu me envergonhava só
em pensar em segurar-lhes as mãos. Enquanto isso, mamãe conduzia Savannah
pela sala com elegância e firmeza.
Sem saber que a casa estava sendo observada, mãe e filha dançavam
felizes enquanto eu cantava junto com os Shirelles e batia palmas ao ritmo da
música. Apesar dos trovões sobre o rio, nossa casa era um lugar de música,
dança e de tamborilar suave da chuva no telhado. Estávamos prestes a aprender
que o medo é uma arte tenebrosa que requer um professor perfeito. Estávamos
prestes a escrever com sangue nossos nomes nas páginas indiferentes do livro das
horas. Os professores perfeitos haviam chegado. E tudo começou com música...
Ao ouvirmos uma batida à porta, nós nos entreolhamos, porque não
havíamos escutado nenhum carro se aproximar da casa. Dando de ombros, fui
ver quem era. Assim que abri a porta, senti o aço frio da arma de encontro à
minha têmpora. Olhei para o homem. Mesmo sem barba eu conhecia muito bem
aquele rosto. Através da janela do lempo, recordei a crueldade e o magnetismo
de seus olhos pálidos.
- Callanwolde - disse eu, e ouvi minha mãe gritar às minhas costas. Nesse
instante, dois homens irrompiam pela porta dos fundos e, mais uma vez, a rádio
alertava que três homens armados haviam fugido da prisão Reidsville e se
dirigiam para a Flórida. Anunciaram seus nomes: Otis Miller, aquele que certa
vez chamamos de Callanwolde;
Floy d Merlin; Randy Thompson. Dominado pela impotência, pelo medo,
por uma covardia profunda, caí de joelhos e balbuciei palavras incoerentes.
- Nunca esqueci você, Lila - declarou o gigante. - Em tantos anos na
prisão, era de você que eu me lembrava. Guardei isto para me lembrar de você.
- E mostrou os fragmentos manchados da carta que minha mãe escrevera em
Atlanta para meu avô durante a Guerra da Coréia, aquela carta que jamais fora
entregue na ilha.
O homem gordo segurava Savannah pelo pescoço e a forçava em direção
à porta do quarto. Minha irmã lutava e gritava, mas o sujeito a agarrava
rudemente pelos cabelos e a obrigava a entrar.
- Está na hora de a gente se divertir - disse ele, piscando para os outros
antes de bater a porta.
- A mulher é minha! - Callanwolde fitava minha mãe com um olhar tão
libidinoso que parecia encher de veneno o ar da sala.
- Tom, ajude-me, por favor.
- Não posso, mamãe... - Entretanto, dei um salto repentino em direção ao
lugar onde se penduravam as armas na parede. Callanwolde interceptou-me e
me empurrou para o chão. Depois, aproximando-se de minha mãe, a arma
apontada para ela, disse algo que não entendi:
- O menino é seu, Randy. Me parece razoável.
- Carne fresca - disse Randy, olhando para mim. - Não há nada que eu
mais goste do que carne fresca.
- Tom - repetiu minha mãe -, você tem de me ajudar.
- Não posso... - Fechei os olhos enquanto Randy encostava a faca em
minha jugular e Callanwolde empurrava mamãe para o quarto e a jogava na
cama em que fui concebido.
Randy cortou-me a camisa nas costas, arrancou-a e me disse para soltar o
cinto. Obedeci, sem saber o que ele queria, e minha calça caiu ao chão. Natural
da zona rural da Carolina do Sul, eu não sabia que um menino poderia ser
estuprado. Mas meu professor viera até minha casa.
- Hum, muito bom. Qual é o seu nome, menino bonito? Diga a Randy seu
nome. - Randy pressionava a faca de encontro a meu pescoço, enquanto os gritos
de minha mãe e de minha irmã ecoavam pela casa. O hálito dele tinha um
cheiro acre e metálico. Seus lábios encostados em minha nuca sugavam minha
pele, e sua mão livre acariciava meus órgãos genitais. - Diga seu nome, menino
bonito, antes que eu corte sua garganta de merda - murmurou ele.
- Tom - respondi, numa voz irreconhecível.
- Você já teve homem antes, Tommy ? - Naquele instante Savannah
chorava no quarto. - Não, claro que não. Eu serei o primeiro, Tommy. Vou foder
você gentilmente, antes de cortar sua garganta. - Randy apertava meu pescoço
com a mão esquerda com tanta força que pensei que fosse perder a consciência.
A lâmina da faca roçou-me a cintura quando ele cortou minha roupa de baixo.
Então, fui agarrado pelos cabelos e forçado a ficar de joelhos. Eu não sabia o que
ele estava fazendo até que senti seu cacete em meu traseiro.
- Não - implorei.
Randy puxou-me os cabelos com força e me feriu com a faca enquanto
sussurrava:
- Vou te foder e você vai sangrar até a morte, Tommy. Não me importa.
Quando fui penetrado tentei gritar, mas não pude. Sentia-me incapaz de
expressar tanta degradação, tanta vergonha. O cacete enorme me machucava ao
forçar caminho para dentro. Senti um fluido correr pela coxa e pensei que ele
tivesse gozado. Mas era meu próprio sangue que corria. Randy continuava a
forçar mais fundo enquanto minha mãe e minha irmã gritavam meu nome,
implorando ajuda.
- Tom, Tom! - era Savannah, com voz exausta. - Ele está me machucando,
Tom.
Com os olhos cheios de lágrimas, eu mal sentia os movimentos de Randy,
que murmurava:
- Diga que está adorando, Tommy. Diga que está achando delicioso...
- Não - sussurrei.
- Então vou cortar sua garganta, Tommy. Vou gozar no seu rabo enquanto
você estiver sangrando até a morte. Diga que adora isso.
- Adoro isso.
- Diga bonitinho, Tommy.
- Adoro isso - repeti, agora com falsa doçura.
Humilhado e impotente, experimentei uma transformação silenciosa
dentro de mim enquanto o homem gemia e pressionava mais fundo. Randy não
percebeu o momento sutil em que uma fúria assassina tomou meu corpo.
Levantei o rosto e tentei afastar o terror de minha cabeça. Meus olhos
percorreram a sala e chegaram ao espelho biselado sobre a viga da lareira.
Emoldurado ali, vi o rosto de meu irmão, olhando pelas janelas da parte sul da
casa. Sacudi a cabeça de leve e fiz com os lábios a palavra '"não". Afinal todos os
rifles estavam dentro de casa e nossa melhor chance estava em que Luke
corresse para pedir ajuda. Quando olhei de novo, ele não estava mais lá.
- Converse comigo, Tommy - murmurou Randy. - Diga alguma coisa
doce, meu bem.
Então, escutei através do vento o som de algum lugar do passado, que não
pude identificar de imediato. Parecia o grito de um coelho sendo levantado do
campo, empalado pelas garras de um falcão. O vento soprava com força por
entre as árvores e os galhos batiam de encontro ao telhado da casa. Escutei o
ruído mais uma vez, sem conseguir localizá-lo nem saber de onde vinha. Será
que os homens ouviriam?, perguntei-me. E gemi alto encobrindo o som.
- Adoro quando você geme, Tommy - disse Randy Thompson. - Gosto
mesmo.
- Por favor, por favor - minha mãe gritava. Então ouvi de novo o som que
vinha do lado de fora e, desta vez, reconheci-o. Era o barulho de uma roda
girando em torno de um eixo não lubrificado; o som do verão anterior, dos
inebriantes dias de disputa em que Luke e eu iniciamos nossa preparação para a
última temporada de futebol. Era o som da vida metódica do início de agosto,
quando Luke e eu pusemos as ombreiras e sapatos especiais e inauguramos um
método pessoal de robustecer o corpo para os jogos de setembro. Ele e eu
tomávamos posição atrás da jaula do tigre e, juntos, a empurrávamos para cima
e para baixo na estrada até cairmos de exaustão. Naqueles exercícios de
condicionamento físico, forçávamos o corpo até os limites extremos da
resistência humana, para nos tornarmos mais fortes do que qualquer dos meninos
ferozes que se arremeteriam sobre nós em campo. Diariamente, nós nos
machucávamos no esforço inflexível para preparar o físico com uma disciplina
cruel inventada por nós mesmos. Empurrávamos a jaula pela estrada, indo e
voltando até que não nos agüentávamos de pé sem que os joelhos se dobrassem
sob nosso peso. Na primeira semana, deslocávamos a jaula apenas alguns metros
por vez; na época dos treinos, porém, já podíamos levá-la por 400 metros antes
de cairmos tontos com o calor de agosto.
Agora, eu imaginava a luta de meu irmão ao empurrar a jaula sozinho em
direção à casa, as rodas afundando-se na terra molhada, os movimentos dele
traídos pelo ranger do eixo da roda esquerda.
Gritei quando o homem gozou dentro de mim, seu sêmen misturando-se
com meu sangue. Quando ele se levantou, apertou a faca com mais força contra
meu pescoço.
- E agora, como é que você quer morrer, Tommy ? Do que você tem mais
medo? De faca ou de arma de fogo? - E Randy encostou-me na parede,
apontando a pistola para minha cabeça e a faca de encontro à minha virilha. - Da
faca, não é, Tommy ? Eu imaginei. Vou cortar suas bolas fora e entregá-las a
você. Está de acordo? Vou fatiar você, pedacinho por pedacinho. Acabo de te
foder no rabo, Tommy. Agora você me pertence. Vão te encontrar com minha
porra no rabo, Tommy.
Fechando os olhos, estendi imperceptivelmente os braços para os lados.
Quando Randy me beijou e eu senti sua língua dentro da minha boca, minha mão
direita pousou num pedaço de mármore. Os olhos dele permaneciam abertos
enquanto me beijava; mesmo assim, meus dedos envolveram lentamente o
pescoço da imagem do Menino Jesus de Praga que meu pai roubara da igreja do
padre Kraus, na Alemanha, depois da guerra. Savannah e minha mãe ainda
gritavam de seus quartos.
- Tom! - O desespero de suas vozes me partia o coração. Enquanto isso eu
escutava a roda mover-se, até que algo encostou na porta dos fundos. De repente,
houve uma batida forte ali, como se alguém estivesse chegando.
- Não se mexa, Tommy. Não diga uma palavra, do contrário eu te mato -
murmurou Randy Thompson.
Callanwolde saiu do quarto, ainda fechando o zíper da calça. Minha mãe
jazia nua sobre a cama, o braço cobrindo os olhos. Callanwolde juntou-se ao
estuprador de minha irmã, que veio do quarto apenas de cueca, mal disfarçando
a ereção de poucos instantes atrás. Ambos tomaram posição em volta da sala e
apontaram as armas para a porta.
- Corra, Luke, corra - gritou minha mãe, do quarto. Callanwolde abriu a
porta com um solavanco, quase no mesmo instante em que a jaula se abria ali.
Ele acabara de estuprar e sodomizar minha mãe e agora estava face a face com
um tigre de Bengala.
Randy Thompson ficou imóvel, os olhos fixos na porta da jaula, enquanto
César rugia e avançava para a luz da sala.
O tigre deu um salto, vindo das sombras. Um tiro ecoou no ar junto com o
grito de Callanwolde, que cambaleou para trás, o rosto preso entre os dentes do
animal. Quando Randy Thompson levantou sua arma eu peguei a imagem de
mármore entre as mãos, como se fosse um taco de beisebol. Enquanto César
destruía o rosto do sujeito que estuprara minha mãe, pedaços da cabeça de
Randy Thompson atingiam a parede do outro lado da sala. Quase o decapitei
com a fúria de meu impulso, sentindo o gosto de sua língua ainda fresco em
minha boca. Montando nele, alheio ao tigre, ao terceiro homem e aos gritos,
continuei a golpeá-lo com fria pontaria, enterrando fragmentos do seu crânio
para dentro de seu cérebro. Floy d Merlin gritava e atirava a esmo, mas uma bala
atingiu o flanco de César, fazendo o sangue fluir. Callanwolde gemia sob o peso
do tigre até que este brandiu a pata e rasgou-lhe a garganta, expondo a espinha.
Floy d Merlin retrocedeu, berrando desesperado. O pandemônio se instalara na
casa. O cheiro de morte, de sangue fresco e o rádio tocando uma canção de
Jerry Lee Lewis fizeram Floy d Merlin descobrir, antes de morrer, que haviam
cometido um erro ao escolherem a casa dos Wingo. Ainda recuando, ele deu o
último tiro em direção ao tigre e logo me viu levantar com a imagem nas mãos.
Corri para a esquerda e impedi sua retirada pela porta dos fundos. Savannah fora
até o armário, carregara sua espingarda com incrível concentração e saíra do
quarto rugindo, como a mulher mais perigosa do mundo. A garota que Floy d
Merlin estuprara encostou o cano da espingarda na virilha dele e puxou o gatilho.
O sangue e as vísceras do sujeito quase me cegaram. Então Luke passou
correndo por mim e agarrou uma cadeira da sala de jantar, com a qual
enfrentou o tigre.
- Parem todos - ordenou meu irmão. - Preciso colocar César de volta na
jaula.
- Se ele não voltar para a jaula, eu o mando para o outro mundo - declarou
Savannah, chorando. Sangrando, o animal cambaleava. Seus dentes respingavam
sangue e ele estava ferido e desorientado. Mas, com uma patada forte, quebrou
uma das pernas da cadeira que Luke segurava para dirigi-lo à porta dos fundos.
- Vamos lá, menino. Volte para a jaula. Você foi ótimo, César.
- Ele está morrendo, Luke - disse minha mãe.
- Não, não diga isso. Por favor, não diga isso, mãe. Ele nos salvou. Agora
precisamos salvá-lo.
Deixando para trás pegadas sangrentas no chão, como rosas grotescas
impressas na madeira de granulação fina, o tigre rumou para a porta. Ainda
girou a cabeça uma vez, e depois caminhou com esforço até a segurança da
jaula. Luke abaixou a porta e trancou-a.
Então, a família inteira se desmoronou, gritando como anjos feridos ao
som do vento que soprava forte de encontro à casa do rádio que continuava a
tocar. Choramos copiosamente, com o sangue dos atacantes em nossas mãos e
rosto, nos móveis e no chão. A imagem do Menino Jesus de Praga jazia a meu
lado, também ensangüentada. Em questão de minutos, havíamos matado os três
homens que tinham trazido a destruição e o massacre ao nosso lar e estabelecido
sua posse com o ritual negligente do pesadelo. Em nossos sonhos, eles se
ergueriam milhares de vezes da poeira do terror e do estupro. Num esplendor
imortal, reconstruiriam seus corpos desmantelados e entrariam com ímpeto em
nossos quartos como guerreiros da maldade, saqueadores e conquistadores; e nós,
mais uma vez, sentiríamos o hálito deles no nosso e as roupas sendo arrancadas
de nossos corpos. O estupro é um crime contra o sono e a memória; sua imagem
consecutiva se imprime num negativo irreversível na câmara escura dos sonhos.
Pelo resto de nossas vidas, aqueles três homens mortos e massacrados nos
ensinariam repetidamente a terrível constância que acompanha o ferimento do
espírito. Apesar de nossos corpos ficarem curados, nossas almas
experimentaram um dano além de qualquer compensação. A violência envia
raízes profundas para dentro do coração; essas raízes não têm estações, estão
sempre maduras, verdejantes.
Eu tremia por inteiro enquanto chorava. E, ao levantar as mãos para
esconder o rosto, sem perceber cobri-me com o sangue de Randy Thompson.
Seu esperma ainda escorria por minhas pernas. Ele me dissera uma verdade
antes de morrer; alguma coisa em mim sempre lhe pertenceria. Aquele homem
hipotecara uma porção de minha adolescência, roubara minha certeza de que o
mundo era ministrado por um Deus que me amava e que criara o céu e a terra
como um ato de divina alegria. Randy Thompson aviltara minha imagem do
universo e me instruíra extraordinariamente bem na futilidade de se manter uma
fé infinita no Éden.
Durante 15 minutos, ficamos prostrados no chão daquele matadouro que
fora nossa casa e esconderijo. Luke foi o primeiro a falar.
- Vamos chamar o delegado, mãe.
- Não ouse fazer isso - respondeu ela, furiosa. - Nós somos Wingo. Temos
orgulho demais para confessar o que aconteceu aqui hoje.
- Mas não há outra saída. Três homens estão mortos em nossa sala.
Precisamos explicar isso a alguém.
- Isso não são homens, Luke. São animais. São feras. - E ela cuspiu no
corpo do homem que estuprara Savannah.
- Temos de levar Tom ao médico - propôs meu irmão. - Ele está ferido.
- Onde é que você se feriu, Tom? - A voz minha de mãe era intangível,
metafórica, e ela falava num tom indiferente como se estivesse se dirigindo a
estranhos.
- O homem estuprou Tom. Ele está sangrando - informou Luke.
Ela deu uma risada fora de lugar, lunática, e então declarou:
- Um homem não pode ser estuprado por outro, Luke.
- Bom, ninguém disse isso para aquele cara. Eu o vi fazer algo com Tom...
- Quero esses corpos fora daqui. Vocês vão levá-los para as profundezas
do bosque e enterrá-los de modo que ninguém os encontre. Savannah e eu
lavaremos a casa com a mangueira. Não quero que haja aqui o menor sinal
desses animais quando seu pai voltar. Fique calma, Savannah. Tudo terminou.
Concentre-se em alguma coisa agradável, como comprar um vestido novo. E
ponha uma roupa. Você está nua na frente de seus irmãos. Tom, vista-se
também. Imediatamente. Depois, arrastem essas carcaças para fora daqui. Pare
de chorar, Savannah. Estou falando sério. Controle-se. Pense numa coisa bonita,
um passeio romântico pelo rio Mississippi. A música está tocando. Há bastante
vinho e a brisa sopra fresca de encontro ao seu rosto. Um milionário sai para o
luar e a convida para uma valsa. Você já viu o rosto dele nas colunas sociais e
sabe que ele pertence a uma das famílias mais ricas de Nova Orleans. Ele cria
cavalos puro-sangue, come ostras, bebe champanhe...
- Mãe, você está falando como uma louca - interrompeu Luke
suavemente. - Deixe-me ligar para o delegado e ele saberá o que fazer. Preciso
também falar com o veterinário e ver se ele pode ajudar César.
- Você não vai telefonar para ninguém - cortou ela, furiosa. - Não
aconteceu nada. Seu pai nunca mais me tocaria se soubesse que tive relações
sexuais com outra pessoa. Nenhum homem de bem se casaria com Savannah se
se espalhasse a notícia de que ela não é mais virgem.
- Oh, Deus - gemi, incrédulo, olhando para os corpos nus de minha mãe e
minha irmã gêmea. - Meu Deus, por favor, diga que isso é uma brincadeira.
- Vista-se, Tom. Já - ordenou minha mãe. - Temos muito trabalho a fazer.
- Devemos contar isso a alguém - insistiu Luke. - Vocês precisam ir a um
médico, e temos de ajudar César. Ele salvou nossas vidas, mãe. Esses homens
iam matar vocês.
- Estou pensando na posição de nossa família na cidade. Não podemos
expor Tolitha e Amos, nem ficar expostos aos comentários dos outros. Eu me
recuso a caminhar pela rua com todo mundo pensando que escrevi aquela carta
para esse monstro na prisão. Vão usar essa carta contra mim e dizer que recebi o
que merecia. Eu não vou passar por isso.
- Mãe - disse eu - meu rabo está arrebentado.
- Não permito que essa linguagem seja usada em minha casa.
Simplesmente não vou tolerar vulgaridades por parte de meus filhos. Criei vocês
para serem cidadãos decentes e refinados.
ENCONTREI MINHA MÃE no bar do hotel St. Regis. Quando ela pôs os
olhos na porta, virei-me para ver seu marido entrando no bar. Levantei-me para
cumprimentá-lo.
- Olá, Tom - disse ele. - Estou muito grato por você ter vindo.
- Tenho sido um perfeito imbecil. Desculpe-me. - E apertei a mão de meu
padrasto, Reese Newbury.
24
Querido Tom,
Você vai ser Phi Beta Kappa, vai pertencer ao "Quem é Quem" das
faculdades e universidades americanas, capitão do time de futebol e primeiro
aluno do departamento de inglês.
Com amor
Sallie
Querido Tom,
É a única fraternidade em que você pode entrar, menino do campo.
Agora, estude. Chega de bilhetes.
Com amor,
Sallie
EU VIVIA NUMA TERRA que não tinha neve nem azaléias. Passei meus
20 anos como treinador de meninos desajeitados e ágeis. Dividi as estações do
ano de acordo com a fluência dos esportes. Havia a música das bolas de futebol
que faziam espirais no céu, em direção às nuvens de outono; o guinchar da
borracha contra a madeira quando os meninos mais altos giravam em torno de si
mesmos em direção à cesta de basquete no inverno; e a pancada dos tacos
Hillerich and Bradsby de encontro às bolas de beisebol no fim da primavera. O
trabalho de treinador não era uma paixão fora de lugar, mas a arte de dar sentido
à infância de um menino. Não fui o melhor dos treinadores; tampouco fui
prejudicial. Não apareci com realce nos pesadelos de nenhum menino. Nunca
consegui derrotar os times de futebol extremamente disciplinados do grande John
McKissick, de Summerville. Ele era um criador de dinastias e eu, um treinador
limitado em competência e espaço. Não brigava com a vitória, mas também não
era viciado nela. Jogara em times que tinham feito as duas coisas, e, apesar de a
vitória ser melhor, faltara-lhe aquela frágil sublimidade, aquela ligeira sabedoria
que se adquiria em um jogo no qual se tivesse atuado com todo o coração, e em
que os esforços não tivessem tido êxito. Ensinei a meus meninos que saber perder
é um dom, mas saber ganhar é o que produz a masculinidade autêntica. Perder,
eu lhes disse, é bom para nosso senso de proporção.
Tentei viver bem naquela terra sem neve nem azaléias. Comecei a
observar os pássaros, tornei-me um colecionador de borboletas amador, coloquei
redes para pegar a passagem anual das savelhas e colecionei discos de Bach e de
músicas da Carolina do Sul. Tornei-me um daqueles americanos anônimos que
têm a mente aguçada e inquisitiva enquanto realizam todos os rituais humilhantes
da classe média. Fiz assinaturas de cinco revistas, usando a taxa de desconto para
professores: The New Yorker, Gourmet, Newsweek, The Atlantic e The New
Republic. Imaginava que minhas escolhas em matéria de revistas
demonstrassem um homem atento e liberal, com uma grande variedade de
interesses. Nem uma única vez me passou pela cabeça o fato irrefutável de que
eu era, ao mesmo tempo, uma piada e um clichê da época. Savannah me
enviava caixas de livros que comprava na livraria Barnes & Noble. Acreditava
que eu vendera minha alma ao decidir permanecer no Sul. Tinha uma grande fé
nos livros; afinal, podiam ser trocados como selos de desconto do supermercado
e constituíam excelentes presentes. Sei que ela se preocupava comigo e com a
fatal atração que eu tinha pelo convencional e o seguro. Mas estava errada a meu
respeito; minha doença era muito mais estranha. Eu trouxera para a vida adulta a
nostalgia por uma infância devastada. Desejava criar minhas filhas em um Sul
que me fora roubado por minha mãe e meu pai. O que eu mais queria era uma
vida excelente. Possuía algum conhecimento para passar para minhas filhas e
não tinha nada a ver com as grandes cidades. Savannah não entendia que eu tinha
uma necessidade ardente de ser apenas um homem decente, e nada mais.
Quando morresse, queria que Sallie dissesse ao me beijar pela última vez:
"Escolhi o homem certo." Era esse fogo que me sustentava, a idéia que eu
reservara como primeiro princípio de minha vida como homem. O fato de eu ter
fracassado, pensava, tinha menos a ver comigo do que com a crua obliqüidade
das circunstâncias. Quando escolhi retornar a Colleton, não fazia idéia - e teria
rido se isso tivesse sido sugerido - de que Colleton deixaria de ser um município
incorporado à Carolina do Sul. Eu estava para aprender muito a respeito de meu
século... Não iria gostar de nada do que iria saber.
HAVÍAMOS ESPERADO por uma noite calma e uma lua que nos
ajudassem a navegar. Na marina de Charleston, Sallie nos beijou e desejou boa
sorte quando embarcamos para Colleton.
- Tragam Luke de volta com segurança - pediu ela. - Digam-lhe que é
amado por um número enorme de pessoas e que as meninas precisam de um tio.
- Eu direi, Sallie - falei, abraçando-a. - Não sei quanto tempo vamos
demorar.
- Temos todo o verão. Minha mãe virá amanhã para me ajudar com as
meninas. Vai levá-las à ilha Pawley s no mês que vem. Estarei trabalhando feito
louca, salvando vidas e fazendo o bem para a humanidade.
- Reze por nós, Sallie - disse Savannah enquanto eu dava a partida no
motor e dirigia o barco para o rio Ashley. - E reze por Luke.
- Pensei que você não acreditasse em Deus - comentei com minha irmã
quando passávamos lentamente pela Guarda Costeira no fim da península de
Charleston.
- Não acredito. Mas creio em Luke e ele crê em Deus. Além disso,
sempre acredito em Deus quando estou necessitada dele.
- Fé circunstancial.
- É isso aí, cara - respondeu ela, alegre. - Não é maravilhoso, Tom?
Estamos juntos em outra aventura. É igualzinho a quando fomos a Miami para
salvar a toninha branca. Nós vamos encontrar Luke. Sinto isso, sinto em cada
parte do corpo. Olhe para cima, Tom.
Olhei na direção que ela apontava e disse:
- Órion, o caçador.
- Não. Preciso ensiná-lo a pensar como poeta. Aquele é o reflexo de Luke
escondendo-se nas terras baixas.
- Savannah, vou acabar vomitando se você continuar a se referir a Luke
como assunto de seus poemas futuros. Não estamos no meio de um poema. Isto é
uma expedição, a última chance para salvar nosso irmão.
- É uma odisséia - zombou ela.
- Há muita diferença entre a vida e a arte, Savannah - respondi, enquanto
entrávamos no porto de Charleston.
- Você está errado, Tom. Sempre esteve errado a respeito disso.