Eu Me Lembro - Selton Mello
Eu Me Lembro - Selton Mello
Eu Me Lembro - Selton Mello
Sobre a obra:
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E U M E L E M B R O
Este livro possui fotografias do acervo pessoal de Selton Mello, cujos fotógrafos são desconhecidos. A editora agradece
quaisquer informações relativas à autoria dessas fotos, e se compromete a incluí-las em futuras reimpressões.
SUMÁRIO
Fernanda Montenegro
Matheus Nachtergaele
Paulo José
Marjorie Estiano
Rodrigo Santoro
Alice Wegmann
Lázaro Ramos
Moacyr Franco
Oberdan Júnior
Leticia Sabatella
Fábio Assunção
Zezé Motta
Jeferson Tenório
Johnny Massaro
Pedro Paulo Rangel
Larissa Manoela
Lívia Silva
Wagner Moura
Guel Arraes
Patricia Pillar
Pedro Bial
Simone Spoladore
Raí
Nathalia Timberg
Leticia Colin
Rolando Boldrin
Aracy Balabanian
Christian Malheiros
Jackson Antunes
Fernanda Torres
Luana Xavier
Débora Falabella
Tonico Pereira
Ana Paula Maia
Camila Pitanga
Zuenir Ventura
Emilio Orciollo Netto
Arthur Dapieve
Dira Paes
Danton Mello
Q
uarenta anos separam o homem que escreve estas linhas do
menino que empunha aquele microfone em um programa
de calouros na TV.
Ele está imutavelmente concentrado, vulnerável e firme. Sua jornada
vai começar, com a plateia como aliada. O garoto sobe pela primeira
vez em um palco e sabe que ali é seu lugar.
Minha missão começava ali.
Um livro impregnado de recordações, lacunas, dores, memórias,
realizações, vazios, sonhos, temores, conquistas. Bons elementos para
se fazer uma poesia.
Os grandes artistas que cruzaram meu caminho com olhos cheios de
paixão, meus dedos vacilantes ainda hoje atrás de respostas para
tantas perguntas, poderiam me ajudar a tecer uma poesia.
Minha mãe, força da natureza, que se chama não por acaso Selva, foi
talhada para virar poesia.
Meu pai, Dalton, com sua história gigante no corpo de um homem
simples, nasceu para virar poesia.
No entanto, não sou poeta e poesia este livro não é.
Um desejo clandestino, que começou na pandemia, me impulsionou a
comemorar essa volta ao mundo em 40 anos.
Mundo arte, mundo família, mundo circular.
Convidei quarenta pessoas que me inspiraram na vida para me enviar
perguntas.
Elas me ajudaram nessa abertura de caixas.
Eu precisava me lembrar. Era uma necessidade.
Daqui, do lado de dentro, sinto que sempre procurei preservar meu
espírito livre, a alma transbordante, a curiosidade sem fim, o
encantamento da primeira vez.
O leitor tem agora em suas mãos a minha estrada.
Intuitivamente sabia que a arte seria meu norte.
O desejo de construir coisas elevadas, espiritualmente falando.
Esculpindo o tempo, delicadamente.
A infância me levando pelas mãos.
Cuidando das asas que meus pais me ajudaram a construir.
A imaginação como minha ferramenta mais preciosa.
Com sonhos maiores que o céu.
E sigo escrevendo minha história.
Obrigado a vocês, por tudo e por tanto,
SELTON MELLO
Selton, querido.
Sempre vi você em cena com muita atenção. No cinema, na TV e
nos palcos também.
Mãe da gente, você me viu. Me viu com atenção, me sinto
abençoado.
Dona Fernanda, nosso farol maior, você me ouviu e me guiou
mais do que pode supor. Sabe, só de ouvir que, quando teve a chance,
você me viu em ação, já me preenche. Já me dá força, me energiza, me
dá vontade de seguir adiante, mesmo que muitas vezes de uma forma
titubeante. Você fala sempre sobre vocação e eu, muitas vezes,
duvidei da minha, inclusive neste momento.
Eu duvido sempre da minha capacidade e sobretudo da minha
vocação. Um dia, com tudo isso mais acentuado aqui dentro, eu te
enviei um longo áudio, e você me devolveu outro, generosamente,
com palavras tão certeiras, tão encorajadoras. Combustível de
primeira, seus pensamentos e acolhimento.
Aproveito para agradecer publicamente por tudo que você fez por
este país. Tudo que você fez por cada artista desta terra. Obrigado por
ter iluminado o caminho de todos nós todo esse tempo.
Fernanda, mãe natureza, nossa maior representante das artes
cênicas, viver no mesmo tempo que o seu é um privilégio. Abrir este
livro com sua representatividade é mais que uma honra — é um
banho maternal, uterino, feminino. Eu acho cada vez mais que este
livro é sobre isso.
Você é um dos atores mais geniais que temos no Brasil. Acha que a
melhor parte de você está no seu trabalho?
Não sei. Testei tudo basicamente ali. Eu coloco tudo no meu
trabalho.
Não é bom, não aconselho, não repitam isso em casa. O fato é que
não constituí uma família, não tenho filho. Mas também não me
animei muito com essa ideia ainda, ha ha ha ha. O trabalho é o lugar
onde eu coloco tudo. As minhas dores, o meu amor, a minha força
criativa, o meu tesão, a minha fragilidade, os meus medos, é tudo ali.
É um depósito de tudo que tenho pra oferecer.
Na terapia já vi que essa balança tá muito desequilibrada. Que,
como coloco tudo ali, o outro lado fica muito defasado. Eu tinha que
melhorar isso. Mas veja bem, 50 anos, 40 de carreira. Será que vou
equilibrar essa balança? Será que vai dar tempo? Será que eu quero?
Será que a economia que fizemos para os dias piores já podemos
começar a gastar?
Será que você poderia voltar a ter WhatsApp? Era mais legal
quando você tinha WhatsApp!
Se a criança que você foi fosse levada pelo seu pai ou mãe ao
lançamento deste livro, o que ela falaria pra você?
Ela pararia de longe, me olhando longamente, me observando.
Porque sempre fui muito analítico. Aí eu ia perceber a presença dela e
ia gostar. Porque, afinal, é o meu anjo da guarda.
Em algum momento ela se aproximaria e diria assim: “Boa, você
sobreviveu! Você sobreviveu a não ser mais o escolhido na
adolescência, sobreviveu ao fracasso e ao sucesso. Você sobreviveu
porque teve medo, mas não desistiu, você sobreviveu a coisas tristes
da sua vida, você sobreviveu se reinventando. Você sobreviveu me
ouvindo, você sobreviveu porque nunca soltou a minha mão”.
Se eu ligasse pro seu Dalton agora e perguntasse em que o Selton
poderia melhorar, o que seria?
Meu querido amigo-hermano Santoro, meu pai é capricorniano
como eu, muita coisa bem parecida. Então eu acho que ele ia falar
assim: “Tá ótimoooo, deixa ele assim que tá indo bem, em time que tá
ganhando não se mexe”.
Quais são três coisas que você gosta e que você não gosta na
profissão?
Irmão, primeiro quero deixar registrado neste livro para sempre
que a gente se conheceu fazendo uma novela chamada Olho no Olho,
em 1993. Essa novela deveria ser redescoberta como uma pérola
trash-vanguardista-subversiva. Os protagonistas possuíam
superpoderes e soltavam raios pelos olhos. Não, nós não éramos os
protagonistas. Eu fazia o amigo do protagonista. Você fazia meu
amigo, ou seja, você era o amigo do amigo do protagonista. Ha ha ha,
vencemos na vida. Desde ali a gente torcia um pelo outro. De
verdade. A gente vibrava com nossas conquistas. Fizemos juntos Os
Desafinados, do Walter Lima Jr., grande onda sempre reencontrar.
Mais recentemente pude dirigir você na quinta temporada de Sessão
de Terapia. O que vivemos ali, nessa configuração nova pra nós, foi
grandioso, pra você e pra mim. Eu tenho orgulho de dizer que te
ofereci ali uma chance de testar uma nova forma de trabalhar. Uma
forma mais leve. Eu vi na minha frente a mágica acontecer. Não falo
apenas do grande trabalho que você apresentou, mais uma vez, falo
da felicidade de ver meu amigo se divertindo e atuando com
suavidade. Isso eu vou levar pra sempre com carinho. Voltando ao
livro, porque tem gente que resolveu ler isso aqui então preciso
responder às questões antes que desistam. Três coisas que gosto na
profissão: poder sublimar as dores, transformar dor em arte. Os
encontros com pessoas muito diferentes e incríveis, que fazem a
gente crescer não só como artistas, mas como pessoas. O prazer
estético, o prazer de colocar em cena algo que você está sentindo. O
prazer de transformar o invisível em visível.
Três coisas que não gosto na profissão: a superexposição que se
tornou mais acentuada com a internet. Nós dois somos da
mesmíssima geração e vivemos essa transição. Mesmo com
dificuldades de se virar nesse mundo virtual, estamos seguindo
nossos caminhos sem perder a essência. A segunda coisa que não
gosto: filmagens noturnas. Não tenho mais saúde e paciência, ha ha
ha! Cada vez mais dif ícil. Outro dia vi o Brad Pitt dando uma
entrevista e dizendo que noturna pra ele já deu. Fechado com Brad.
Ha ha ha! Pra quem não sabe, quando filmamos cenas noturnas,
trabalhamos virados, em turnos de morcego, tipo das cinco da tarde
às cinco da manhã. Eu fico o bagaço da laranja. Atrapalha tudo, fuso
horário, de dia dorme mal porque tem obra no vizinho, enfim, não é
exatamente divertido. Ha ha ha. Eu amava a madrugada, mas há um
bom tempo inverti e agora amo dormir cedo. O organismo fica todo
zoado quando você trabalha de noite e dorme de dia. Se eu puder
escolher, só farei trabalhos sem noturna, eu e Brad, ha ha ha ha! Por
fim, outra coisa que não gosto na profissão é a expectativa de, por
sermos figuras públicas, darmos nossa opinião sobre todo e qualquer
tipo de assunto. Eu não sou aquariano, que nasce sabendo tudo sobre
tudo. Eu não sei de muita coisa — e que bom, porque daí sigo
tentando aprender e não sairei dando depoimento sobre temas que
não domino.
O que eu pensava tempos atrás já perdeu a validade. Estou em
constante movimento e sempre crescendo. Se alguém me conheceu
cinco anos atrás vai ter que me conhecer de novo, porque eu já mudei
um bocado. E minha meta é lançar uma nova edição desse livro ano
que vem respondendo tudo ao contrário.
Para quê?
Para ser útil, através de algo subjetivo. Para escapar da burocracia.
Para lembrar quem eu sou diariamente. Para conservar meus devaneios.
Para rir e fazer rir, chorar e fazer chorar. Para brincar. Para cair e
levantar. Para enfeitiçar e ser enfeitiçado. Para não perder o prazo de
validade. Para falar ao motorista somente o indispensável. Para fazer
alguma diferença. Para seguir agindo mais e falando menos. Para
mandar se foder as almas sebosas, os parasitas, os invejosos.
Para me alimentar, alimentando outras pessoas. Para espalhar afeto.
Para incomodar os medíocres. Para espalhar boa onda. Para enaltecer a
maior de nossas faculdades: a imaginação. Para seguir assombrado e
maravilhado com o mundo.
Para fugir de mim. Para me encontrar sendo tantos. Para ser.
Para lembrar.
Para quem?
Para os meus pais. Sempre. Tudo.
Que bom que meus pais se casaram.
Que bom que ele estava feliz e ela estava sonhando.
Mini eu.
Querendo levantar logo porque tinha muita coisa pra fazer.
Me vi no espelho nos braços deles. Entendi foi nada.
Varanda do interior, cadeira da avó, em Passos, Minas Gerais. Minha pressa e o sorriso da minha
mãe.
Em Corpo a Corpo,
de Gilberto Braga, primeira novela na TV Globo, em 1984, ao lado da musa amada Malu Mader.
Crachá da Herbert Richers.
Em uma praça mineira com minha mãe e irmão, avaliando suas reações ao livro que você tem
agora nas mãos.
Selton, lembro da gente no início dos anos 90 projetando nossa
carreira futura, no Jardim Botânico, na sala dos atores. Ficávamos em
rotações por minuto inimagináveis, entre dúvidas e prospecções sobre os
próximos passos. Como pude esquecer de citar esse livro comemorativo?
Ainda bem que lembrou! Lembra daquela dupla de outrora, não de agora?
Quanta memória!
Meu irmão, Fábio… Cara, você ocupa um lugar muito especial na
minha vida. Lembro sim daquela dupla, que não é mais do que essa
outra de agora. Os mesmos sonhadores, mais calejados, igualmente
comovidos, inconformados, instigados, querendo sempre algo que faça
os olhos brilharem. Por isso sempre nos encontramos para renovar os
votos, reorganizar rotas, planejar novos horizontes e sobretudo
comemorar nossas vitórias.
Nos últimos três anos migramos para outro tipo de diálogo. Apesar
de tantos trabalhos e momentos juntos, nunca havíamos estado nesse
lugar de profundidade e de papos tão sinceros sobre nossas vidas. Nos
transformamos durante a pandemia, sabemos. Nesse período virei muitas
páginas por força das novas estruturas da existência, tanto no âmbito
privado como no público. Com esse livro, está virando páginas ou
editando uma futura leitura sobre si mesmo?
Na pandemia, a gente se aproximou mais do que nunca. Que coisa,
né? Acho que, como muita gente, eu não aguentei… em uma altura ali
do campeonato, eu joguei a toalha. Eu estava triste de um jeito
diferente… Estava… Não sei… não via uma luz naquele túnel sem fim.
Você enxergou o que eu estava sentindo, me estendeu a mão e me
ajudou, um processo de cura. Eu sou eternamente grato.
Você é um cara diferente, Fabinho. Você é um cara muito, muito
forte. Você é um cara que eu amo. E, sim, a gente aprofundou. Se a gente
já era irmão, depois melhores amigos da vida, colegas que se admiram,
aí a gente foi parar em um lugar transcendental, espiritual, de
intimidade absoluta. Falamos de tudo: dores, desejos, medos, traumas.
Ao falar, a gente se ampara, né?
Então, cara, eu estou fazendo tudo isso que você falou. Sim, estou
virando páginas e, sim, estou editando uma futura leitura sobre mim.
Em breve farei uma peça com meu filho. É uma adaptação para teatro
de um livro de memórias do Karl Ovë, autor norueguês. Nele, Karl
coloca no centro do debate a paternidade. Em A Morte do Pai, o autor
lembra do pai que teve, do filho que foi e do pai que é hoje. Você ainda
não é, e nem precisa ser, pai biológico, mas é paternal com todos a sua
volta, mantendo na tua frequência esse semblante de menino. Você é o
menino pai. É o sábio cheio de dúvidas que sorri largo e leve, um tipo
próprio que te faz ser assim, contagiante. Quando conversamos sinto que
alternamos constantemente os papéis de pai e filho. O que te mantém
assim encantado?
Fabinho, que depoimento lindo. Eu sou um menino pai mesmo. Um
menino pai. Teria sido outro bom título para este livro. Eu já falei
brincando disso, do menino que pegou o bastão da família e disse:
“Sigam-me!”, como pai da própria família. Acabei sendo uma figura
paterna para outras pessoas especiais no caminho.
E há a coisa também do menino sábio, um menino de alma velha. E
depois começa a inverter: o corpo velho com a alma de um menino,
sabe? É interessante.
Eu sigo tentando, meu amigo. É dif ícil, mas com pessoas como você
pelo caminho, a vida fica boa. E eu sou paternal mesmo — com quem
merece o meu lado paternal, né? Me preocupo com os outros. Aprendi
até a dosar isso, porque tem gente que abusa quando descobre que sou
assim. Saber dizer “não” é libertador.
Você me conhece muito bem, né, cara? Você deu o segundo título do
livro, simples assim. Na edição do ano que vem, que eu vou responder
tudo diferente, eu relanço o livro com este nome: O Menino Pai. É mais
adequado, ha ha ha.
Então isso já foi uma lição. Claro que na época foi muito doloroso,
mas agora olhando em perspectiva foi muito importante — como tudo
que faz parte de algo maior. Já aprendi logo o outro lado da moeda. Será
que é por isso que eu também dirijo, escrevo e faço outras atividades,
como forma de não faltar? Se eu não atuo, eu dirijo. Se não dirijo, eu
escrevo. E com isso eu ampliei as minhas possibilidades. Pode ser uma
forma inconsciente de me defender, de proteger meu espaço. Vou levar
isso pra terapia, ha ha ha ha.
Vamos levar sua vida para a ilha de edição: qual instante vale a pena
ver de novo? Adicionaria trilha sonora?
Rapaz, levaria muita coisa da infância. Seria praticamente um filme
da minha infância. Que foi uma mistura de dois lugares.
A gente morava em São Paulo, porque meu pai tinha um emprego
de bancário. Mas criança tem férias longas e a gente vivia muito em
Minas Gerais, na terra da família. Então vivi entre esses dois mundos.
O que foi muito importante, me deu a dimensão do asfalto, da selva de
pedra, da coisa cosmopolita. Mas também me deu a base fundamental
pra qualquer pessoa: terra vermelha, bicho solto, colher fruta do pé,
andar a cavalo. A família da minha mãe é de Nepomuceno. Um tio
tinha uma roça, era uma fazenda simples e bonita, a gente vivia lá. O
meu tio Luís plantava café. E tinha um terreiro gigante, gigante, pra
secar o café. Eu lembro até hoje do cheiro do café secando ao sol.
Depois pegavam o café, ensacavam, jogavam no caminhão e levavam
pra vender. Foi nesse terreiro que aprendi a andar de bicicleta sozinho.
Porque meu pai viajava a trabalho, então nesse período eu via ele
pouco.
Olha onde fui parar: na cena do nosso O Filme da Minha Vida,
quando o Cassel ensina o menino a andar de bicicleta. Aquilo nada
mais é do que uma projeção do que eu gostaria que tivesse acontecido.
Porque na verdade eu aprendi sozinho. Então, quando meu pai voltou
de viagem, eu mostrei pra ele: “Olha pai, eu sei andar sem rodinha!”.
Mas ele não me ensinou e acho que todo menino tem o sonho de o pai
estar nesse momento. Então eu lembro que, quando consegui ganhar
impulso naquele terreiro enorme e vi que eu estava andando sem
rodinha, foi uma sensação de: “Caramba, eu tô conseguindoooooo!”.
A beleza de ser artista? Está no gozo estético. Décadas depois
coloquei esse momento lá, no seu personagem quando pequeno,
aprendendo com o pai ajudando. E o garoto que fez a cena de fato
aprendeu naquele momento. Era eu ali! Consegui filmar algo íntimo,
subjetivo, e transformei em algo palpável… Lindo o que fazemos!
E naquela roça de terra vermelha de Minas eu andava a cavalo pra
lá e pra cá, em toda a região, destemidamente. Até hoje eu penso em
quão destemido eu era. Um garotinho de 6, 7 anos, a cavalo, e tinha
uns barrancos de terra perigosos. E eu ia, ia, e passava por umas casas
humildes, batia papo, tomava água, levava recado. Menino de recado:
“Ah, se passar pela casa de fulano diz pra ele que já tem a laranja que
ele estava querendo e que ele já pode passar aqui pra pegar!”.
E ao mesmo tempo era o início da minha história como artista.
Porque eu olhei pra televisão e falei: “Mãe, eu quero ir ali dentro”.
“Ir ali dentro” significava cantar num programa de TV. Uma
espécie de The Voice Kids da época, que é a primeira foto deste livro.
Eu acho ela muito simbólica, porque parece que estou ali vulnerável
diante de um público enorme, mas também muito seguro de que
aquele era o meu lugar. Eu cantei Roberto Carlos.
Então olha: trilha sonora seria Roberto Carlos e muita música
sertaneja raiz dessa época — Tonico e Tinoco, Fuscão Preto, que meus
tios ouviam e eu também, de tabela. E meu pai ouvia uns cantores tipo
Vicente Celestino, Ataulfo Alves, Nelson Gonçalves, que construíram
minha memória emocional e afetiva.
Ou seja, a infância é tudo. A infância é a base. Tudo que você vive
hoje, sua fortaleza, seus medos, traumas, suas forças, seus desejos, o
que você sabe, o que você aprendeu, basicamente é tudo o que você
viveu, ouviu e sentiu na infância.
O que é silêncio?
Cara, silêncio é fundamental, é uma das coisas mais importantes.
Que fase barulhenta essa que a gente tá vivendo! Falatório, opinião pra
tudo sobre tudo, uma barulheira azucrinante. Acho que a gente vive
uma época muito ruidosa, em todos os níveis. As redes sociais
colaboram pra essa cacofonia.
O silêncio é uma forma de oração. O silêncio é uma prece. O
silêncio acalma.
Eu faria um filme sobre o silêncio. Eu sou um amante do silêncio,
um fã do silêncio. Sempre fui. Desde a infância. Olha aí! Tem a ver
com a resposta anterior. Sempre fui mais silencioso. Sempre fui mais
observador. Gosto dos momentos em que não tem intervenção do
mundo externo, do barulho. Dos momentos em que não tem
informação demais também — não quero muita informação, tá
excessivo. Quero ver menos, ouvir menos. O silêncio pra mim é uma
coisa muito cara, muito rica, muito importante. Eu amo o silêncio.
Se o silêncio fosse uma pessoa e eu encontrasse ele na rua, pediria
pra tirar uma selfie. Mas pediria com gestos, porque provavelmente o
silêncio não gosta muito de falação.
Como você definiria a arte de interpretar?
Pepê, querido amigo… ator que me inspirou tanto…
A arte de interpretar, rapaz… Até hoje tô tentando descobrir. Mas
tudo está na infância. A menina, quando brinca com a boneca,
realmente acredita que é a filha dela. O garoto que brinca de polícia e
bandido acredita estar vivendo seu personagem. Então atuar é
brincar. Simples assim.
Eu nunca fui um ator tomado pelo personagem, que acredita que
é o personagem, que pede “Me chamem pelo nome do personagem
quando eu estiver no set”. Eu entendo os processos distintos, cada um
é diferente — e que bom, né? Mas eu acho que interpretar tem a ver
com sonhar, com fábula. Somos contadores de histórias. A
capacidade de fabulação é rara. Algo sensível e fundamental. E
também não existe uma fórmula, né? Cada trabalho é um trabalho,
cada diretor é um diretor. É um processo coletivo. Então tem um
trabalho pessoal, interno, de imaginação. E depois vem o momento de
transformar a impressão em expressão. É muito bonito o que a gente
faz. Somos mensageiros das subjetividades do mundo.
Geralmente, interpretamos palavras escritas por alguém. Muito
doido pensar isso, mas já interpretei coisas que escrevi: O Palhaço e O
Filme da Minha Vida. É muito diferente, porque é um depoimento
pessoal, é algo que eu queria falar. Então também não tinha nenhum
esforço na hora de botar pra fora, porque eu sabia qual era o
sentimento por trás daquelas palavras. Quando você vai interpretar as
coisas dos outros, que é o normal, é uma interpretação, é a sua
leitura. Elis cantando Belchior, por exemplo. É o jeito dela. Né?
E o seu Padre Vieira, por exemplo, que você fez no teatro por
muito tempo. Um trabalho que eu sei que é muito marcante na sua
vida, sua interpretação dos sermões do Padre Vieira. E a sua
interpretação dos pensamentos dele era muito poderosa. Você é um
dos maiores intérpretes que o Brasil já viu e, pra quem teve a sorte,
um dos parceiros mais adoráveis nos bastidores.
Faça um top 5 dos seus filmes favoritos em que você atuou, dirigiu
ou roteirizou. Não vale se O Palhaço não estiver dentro, ha ha ha ha!
Tranquilo, Lari, ha ha ha ha!
O Palhaço sempre vai estar nos meus cinco preferidos, porque é
um depoimento muito pessoal. É um filme que vem do coração.
Porque ali eu tô falando de mim mesmo. Na época eu desconversei,
pra não alimentar abutres, matérias sensacionalistas, mas sim, ali sou
eu falando. Eu pensei em desistir muito. Inclusive este ano, inclusive
fazendo este livro. Não é sempre, mas muitas vezes eu penso em
desistir. E num momento mais doloroso veio O Palhaço.
Através de um artista pude levantar essas questões íntimas: “Por
que ele faz isso? Será que ele faz isso porque o pai faz? Ele faz isso
porque é um dom, porque é algo bom? Ou isso é um fardo que ele
carrega? Ou uma missão nobre que ele deve levar adiante?”. O
Palhaço tá no top 5 dos meus filmes importantes.
Sem dúvida O Auto da Compadecida está nesse pódio, por tudo
que representa, pelo encontro com Ariano Suassuna, com Guel
Arraes, pelo meu encontro com Matheus, pela beleza de fazer aquela
obra tão mágica. O Auto da Compadecida é sofisticado na sua
simplicidade. É um presente divino ter feito o Chicó.
Lavoura Arcaica, com todas as dores, com todos os arranhões,
com tanta coisa dura, foi um trabalho importantíssimo, fundamental
pro meu crescimento e pro artista que me tornei.
Meu Nome Não É Johnny é também um filme muito importante,
que se comunicou com muita gente, baseado em uma história real.
Um encontro muito feliz com Mariza Leão e Mauro Lima, produtora
e diretor. Um personagem que tive uma grande alegria em fazer e
encontrou um público apaixonado. Essa lista é dif ícil porque, se você
me perguntasse semana que vem, talvez fosse outra. Mas como você
tá me perguntando hoje, acho que o outro é Lisbela e o Prisioneiro. É
um filme muito requintado, muito bonito, engraçado, emocionante.
Então esses são os meus cinco filmes preferidos hoje. Se você me
perguntasse semana que vem, a resposta seria diferente. Sou mutante.
Quando sair este livro eu pretendo me processar porque eu não
concordo com nada do que eu disse. Sou contraditório. Minha rotina
consiste em me contradizer três vezes ao dia, sempre após as
refeições. Faz bem ao aparelho digestivo, recomendo vivamente.
Dirigir outras pessoas com certeza não deve ser uma tarefa fácil. Você
tem alguma dica para mim, que quero trilhar passos como os seus? Que,
além de atuar, também quero dirigir?
Olha, adorei que você já pensa em dirigir. Isso aí, Lívia, manda ver!
Você tem sensibilidade e inteligência pra tudo isso.
Que dicas eu daria? Quando estiver num set como atriz, nas horas
vagas de uma filmagem, em vez de ir pro camarim mexer em rede social,
cola mais no fotógrafo. Pergunta como ele usa a lente, como iluminou
aquilo ali? E o pessoal do som? Como eles estão captando e como vão
fazer depois? Mas e depois na mixagem? Qual o resultado daquele
microfone de lapela? E o assistente de direção? Ele tá fazendo qual
função exatamente? Procure entender as funções num set de filmagem,
Lívia. O figurino, a direção de arte, o contrarregra. Vai acabar te dando
uma noção do que você fará num futuro próximo.
E leia, leia muito, veja filme, veja filme novo, veja filme antigo,
procure saber quem são os grandes diretores. Você deve conhecer
Kubrick, Júlio Bressane, Coppola, Rogério Sganzerla, Antonioni,
Truffaut, Glauber Rocha, Walter Salles, Leon Hirszman, Scorsese,
Kurosawa, Bergman… Então vai atrás, vai estudar. Isso vai te alimentar
naturalmente. Quando você piscar, será uma diretora tão sensível e
criativa quanto a atriz que você já é.
Qual a margem de improvisação que você deixa pro set como diretor
e como ator?
Eu deixo uma margem grande, Guel. Porque eu acho que tem uma
coisa do calor, do agora, que eu acho muito importante. Às vezes o texto
tá escrito de uma forma, mas o ator quer falar de outro jeito — e muitas
vezes fica melhor mesmo. Porque tá mais de verdade, entende? Não
necessariamente é o que foi ensaiado, escrito. Então sim, eu deixo uma
margem pro inesperado.
Claro que isso combina com as coisas que busco dirigir, então faz
sentido. Em outros casos talvez não funcionasse. Dentro da minha
busca como realizador, ando cada vez mais interessado em preparar
pouco. Falando dos atores, claro. Isso pode parecer uma coisa muito
louca, mas eu venho testando essa abordagem e vi acontecer, na minha
frente, verdadeiros milagres. A gente tá todo dia se preparando.
“Ah, mas amanhã eu vou fazer um médico.” Verdade, então tem que
aprender a mexer num bisturi, coisas técnicas, sim. Agora, e o lado
humano desse personagem médico? O médico tem medo, a gente
também. O médico caiu de bicicleta, a gente também. O médico errou, a
gente também. O médico teve grandes alegrias na vida, a gente também.
O médico teve grandes decepções na vida, a gente também. Eu tô em
busca disso, eu tô com essa ideia na mente de não preparar meus atores.
Ou pelo menos não preparar algumas pessoas do elenco. Eu sei que
aquela pessoa é adequada pra fazer esse papel, tenho ali um encontro,
uma conversa, e falo: “Até lá! Nos vemos no set!”. Tudo bem, vamos nos
encontrar pra uma leitura, coisas básicas, mas ficar ensaiando, como vai
falar, como vai andar? Não. Eu quero que a gente se surpreenda, que o
ator surpreenda, quero me surpreender.
Eu ando muito interessado nisso. Quase um método que eu tô
querendo desenvolver. Não ter preparação. E ver o que acontece. E,
olha… acontece! Acontece de uma forma muito espontânea. E a
espontaneidade me interessa de uma forma gigantesca. Eu tô
desenvolvendo esse método, Guel. Vou testar e, se der certo, eu te aviso!
Ha ha ha ha ha!
Neste momento que escrevo essa resposta estamos começando os
ensaios para O Auto da Compadecida 2. Um movimento audacioso e
lindo de nossa parte. Dá medo e fé na vida. Que seja divertido! Que seja
luminoso! Que seja mais um presente nosso para os brasileiros!
Fazer o Chicó de novo vai ser muito emocionante. Na verdade, será
um grande ato de bravura ser frouxo de novo, ha ha ha ha. Não sou mais
aquele menino, mas ele vive intacto aqui dentro, garoto palhaço
sonhador. Tenho a impressão de que ele existe sem mim ou, melhor
dizendo, sou apenas um veículo para ele sair existindo. Minha meta vai
ser decorar o texto, chegar no horário e não esbarrar no cenário, ha ha
ha. Sei que o restante é com o Chicó, que anda com suas próprias
pernas, possui sua própria nomenclatura, suas leis. Serei leve e preciso,
como ele merece, com graça e sem esforço aparente.
Guel, eu te amo. Você é o diretor mais importante da minha vida.
Obrigado por tudo que fizemos juntos e que ainda faremos.
Qual foi a primeira fagulha que fez você ter o desejo de dirigir seu
primeiro filme? O que te causou esse despertar?
Pati, minha querida! Como fomos felizes em Ligações Perigosas! Que
alegria nosso encontro! E a troca se estendeu para a vida. Você é
diferenciada, te admiro demais. Tenho um prazer enorme em ter você
como amiga, uma pessoa com quem posso contar. Ligações Perigosas foi
um dos trabalhos mais lindos que tive a chance de fazer na TV. Nossa
versão ficou muito poderosa! Dar vida ao Valmont, personagem clássico
da literatura, ao seu lado, ao lado de Marjorie, Wegmann, Aracy, eu levo
pra sempre no coração.
Eu não sei exatamente qual foi a primeira fagulha para começar a
dirigir. É dif ícil identificar. Mas acho que é a vontade de criar um
mundo. Sabe, a vontade de expandir minha consciência e inventar um
universo próprio. Como ator, a gente tem a nossa função. Quando você
dirige, você cuida da criação completa. É uma criação mais ampla. Acho
que é isso. Eu tive vontade de experimentar o que seria ir além do que
eu já fazia.
Lembro a época da adolescência, que era uma época em que eu não
podia me expressar. Eu recebia muita informação. E hoje eu vejo que
aquele período foi nada mais, nada menos que meu maior período de
abastecimento, porque a dublagem era uma sucessão de imagens, filmes,
séries… Filme antigo, filme novo… Era muita informação, a língua
inglesa, aqueles atores. E eu vivia na videolocadora de Copacabana
perto da minha casa. Eu morava ali. Eu me lembro do encantamento
causado pelo David Lynch. Eu dublei Twin Peaks, fazia o James. O
mundo do David Lynch se abriu pra mim. Aí, locadora: Veludo Azul,
Coração Selvagem, que é um filmaço, amo Coração Selvagem, acho que
os atores estão fantásticos. Os atores estão maravilhosos! Então aquele
mundo do David Lynch, estranho, hilário, comovente, surrealista… Era
assim: “Uau! Olha como esse cara se expressa!”.
Aí veio o Kubrick. Laranja Mecânica foi assim: “O que eu tô
assistindo!?”. O trabalho daquele ator, Malcolm McDowell, que também
fez If, que é um outro grande filme, e Calígula… “Caraca, quem é esse
ator!?” Você abre abas, né, você fala: “Quem é esse ator?”. E você segue a
trilha do ator. E a vida é curiosa, né? Coração Selvagem. Quem tá lá?
Willem Dafoe, que é outro ator dessa época, Mississippi em Chamas, A
Última Tentação de Cristo… Corta para 30 anos depois: eu trabalhando
com o Willem Dafoe no filme do Babenco. Aliás, o Willem é um cara
adorável. Eventualmente a gente troca uma ideia. Mando coisa pra ele
ler e ele responde, super gentil. Um cara maravilhoso, casado com a
Giada [Colagrande], que é uma grande artista, cineasta, enfim, um casal
maravilhoso.
Eu cresci vendo Peter Sellers. Um Convidado Bem Trapalhão e
Muito Além do Jardim. Peter Sellers pra mim é um dos maiores atores
do mundo. Eu amo Peter Sellers. Aquele cara é muito genial, muito
genial. Muito Além do Jardim é um dos filmes mais lindos já feitos. O
diretor é o Hal Ashby. Fui parar na adolescência porque era uma época
de abastecimento.
Eu lembro que o Lirinha, que é um cara que eu adoro, um artista
fabuloso, cantor e compositor do Cordel do Fogo Encantado e tem seu
trabalho solo também, um cara que eu respeito muito, que eu
acompanho sempre… Ele me ajudou no Lisbela e o Prisioneiro, eu fiz
uma entrevista com ele. Eu estava estudando a forma de me expressar, o
sotaque, o jeito que ele falava. Era uma coisa que eu estava atrás pro
Leléu. Enfim, a gente teve conversas maravilhosas e ele me falou uma
coisa que eu nunca esqueço. Aliás, falando em memória… tem coisas
que não saem da cabeça. Eu lembro de uma coisa que o Lirinha me falou
e lembro de uma coisa que o Marcos Palmeira me falou, olha só que
coisa. Olha as abas que foram abrindo nessa resposta, Patricia! Acho que
é nossa intimidade que faz isso.
O Lirinha me disse o seguinte… Ele é de Arcoverde, que é sertão de
Pernambuco. Que aliás eu falei nesse livro que eu conheci quando fiz
Árido Movie, filme doidão, fabuloso, livre, louco e lindo do Lírio
Ferreira. O Lirinha na adolescência morava no sertão. O Lirinha, no
sertão, ouvia o quê? Nirvana. E aquilo revolucionou a vida dele. Aquilo
mudou a vida dele. Ele ficou louco com aquele negócio e falou: “Meu
Deus! Quanta informação eu tô recebendo! Eu quero agora botar isso
pra fora! Eu quero agora traduzir o que o Nirvana causou em mim aqui
no sertão e devolver como minha forma de expressão!”.
É o que ele faz até hoje.
A analogia é: eu tô até hoje devolvendo a quantidade de coisa que eu
vi na época da dublagem e aquela quantidade de coisa que eu via na
época em que eu morava na locadora de Copacabana.
E eu fui parar no Marcos Palmeira porque lembrei que ele me falou
uma coisa que eu também nunca esqueço. Porque o Marquinhos planta,
tem a fazenda dele, ele é um cara muito ligado à terra. E ele falou uma
coisa que eu nunca vou esquecer, numa entrevista pro Tarja Preta, que
era um programa que eu dirigia, o início do meu negócio com a direção.
Ele falou assim: “A diferença entre o Ocidente e o Oriente é que aqui, no
Ocidente, se uma árvore tá cheia de formiga, você entope de remédio e
mata os bichos. E fica aquele troço doente que vai indo. Lá no Oriente,
onde as pessoas pensam de forma mais sutil, olham a mesma árvore
cheia de formiga e falam: ‘Vamos curar o solo’. Nutrindo a terra, as
formigas vão dispersar, porque são as raízes que estão precisando de
nutrientes”.
Eu viajo nessas paradas. Eu sou muito ligado nesse mundo que não é
palpável. Olha a quantidade de farmácia que tem no Brasil! Isso é
normal? As pessoas próximas chegam e sussurram: “Como está sua
mãe?”. Essa é uma pergunta clássica ocidental. Alzheimer, então está
mal. Se olhar com os olhos que hoje eu vejo, ela está melhor que nós, em
um mundo sem dor, em paz. A pergunta correta seria: “Como está seu
pai?”. Sacou? Ele, inteiro, vendo a mulher da vida dele daquele jeito. O
lance é querer saber sobre ele, o que vai dentro daquele coração e
mente. Precisamos melhorar, enxergar além de telas.
Com qual tipo de processo você acha que conseguiu seus melhores
resultados como ator e com qual tipo de abordagem você acaba sendo
mais feliz em cena?
Tem a ver com o que eu disse anteriormente. Todas as abordagens
são interessantes, e elas vão me alimentando também como diretor.
Júlio Bressane, que é um artista gigantesco, que não tem o devido
reconhecimento do público e da crítica no Brasil, faz um produto
manufaturado, com zelo, com pouco dinheiro, mas com muito preparo
intelectual por trás. Eu amo o Bressane, assim como amo o Sganzerla.
Eles foram eclipsados pelo Cinema Novo. Deliberadamente. A cultura
no país deve reparar historicamente a dívida com Bressane e Sganzerla.
A história não consagrou devidamente a grandeza desses dois cineastas.
Eles não eram do Cinema Novo, portanto foram escanteados das
experiências em grandes festivais, entre outras coisas. Pouco se fala
sobre isso, o apagamento de grandes, aproveito este espaço para
levantar essa questão. Domingos Oliveira, com seu extraordinário Todas
as Mulheres do Mundo, era considerado menor. Ele estava fazendo o
dele, lindamente, mas não era permitido brilhar. Anselmo Duarte, ator,
diretor, cometeu a audácia de ganhar a Palma de Ouro de Melhor Filme
em Cannes, não sendo do grupo dominante cultural. Foi o maior feito
da vida dele e um inferno pessoal, porque as portas fecharam aqui e
tudo que puderam fazer para enterrá-lo em vida foi feito. Se você não é
parte do grupo que dá as cartas, você não é legitimado a ser grande, ser
foda. Até hoje é assim.
Siga a cartilha, ande com as pessoas certas, você ganhará a carteira
do clube. Sinto que sou um forasteiro que é bem recebido, me admiram,
me respeitam, mas eu vim de longe no meu cavalo. Eu abri meu próprio
espaço. Meu pacto é com o público. Desde a primeira foto deste livro.
Ali, é fechamento. Eu gosto da minha história. Me agrada ser o
forasteiro que rompe as normas e constrói a própria história. Não sei se
eu expliquei bem. Mas sinto uma identificação, uma ternura muito
grande por Júlio Bressane, Domingos Oliveira, Rogério Sganzerla e
Anselmo Duarte.
Profissão doida. É preciso ter bons cavalos.
Então assim… Não sei te dizer com qual deles tive o melhor
resultado. Fui feliz com muitos! Não me dei bem com muitos!
Lembro de Paulo Ubiratan, um baita anjo na minha vida, o cara que
enxergou meu potencial e me bancou na Globo, me colocando nos
primeiros grandes papéis em novelas. Sem ele, eu não seria. Baita
diretor, baita cara, papo reto, sinto a falta dele.
Lembro de uma figura rara, Gonzaga Blota, que me dirigiu bastante
em televisão. Esse camarada era realmente muito hilário e era o gatilho
mais rápido do oeste. Em dia de jogo de Palmeiras — ele era
palmeirense doente — se o estúdio começava às 13h, ele fazia trinta
cenas em duas horas, ha ha ha! Normalmente a gente faz isso em oito,
nove horas. Ele fazia em duas horas. Tipo assim: “Ah, o ator não chegou?
Não tem problema, alguém bota a blusa dele, a câmera não mostra o
rosto e depois eu gravo um off e coloco a voz dele falando com você”.
Cara, era um negócio insano! Ha ha ha ha! E uma aula também!
O auge dele foi uma cena de um dilúvio e faltou uma fala do Lima
Duarte. Num dia de sol de 50 graus em Jacarepaguá, ele vai até o Lima e
fala: “Vamos fazer aquela fala que faltou”. E a equipe: “Mas não tem o
dilúvio hoje, seu Blota!”. “Não tem problema, me traz o regador!” O que
estou falando é sério, minha gente! Ele fechou um close no Lima Duarte,
só no olho e na boca, e: “Grava aí!”. Pegou o regador e ficou jogando água
perto da cabeça do Lima, batendo uma aguinha na cabeça e na cara! O
Lima falou umas coisas do tipo “Vamos, homens! Não desistam!”. Botou
editado na cena do dilúvio, ficou ótimo, ha ha ha ha ha!
É isso, Patricia. O negócio da vida é se divertir muito. Porque a vida,
ó… a vida é ligeira. Beijão!
Selva, o nome da minha mãe é Selva.
Aleatoriedades familiares satisfatórias.
Adolescente, começando a sentir algo parecido com melancolia, que me acompanharia por toda
a vida.
O teatro me desabrochando, começando a gostar de mim, redescobrindo que eu poderia ser.
Lamarca, um de meus primeiros filmes. Eu morria no começo, demorei pra ter papel que
durasse até o fim.
Ao lado do meu irmão, em Romeu e Julieta, no Teatro Tablado.
Tocando guitarra
na banda Vendetta.
Emanoel, de A Indomada, o maior sucesso que já fiz em uma novela.
A dupla que o Brasil deixou morar dentro de seus corações.
O Auto da Compadecida
Lavoura Arcaica
Dois filmes que mudaram meu destino.
Minha mãe e meu pai.
Ela, de Escorpião, do dia 17 de novembro.
Ele, capricorniano do dia 25 de dezembro.
Felizes pela primeira viagem fora
do país, em um metrô de Paris.
Se eu soubesse que um dia ela teria Alzheimer, teria levado minha mãe para uma volta ao
mundo.
Por que você nunca se casou? Você tem uma relação conjugal com
alguma coisa?
Olha, Bial, eu nunca planejei isso. Foi assim a minha vida. E pode
ser que esta resposta fique datada em breve. Porque tudo pode
acontecer. O fato é que eu sempre privilegiei muito o meu trabalho,
sobrando pouco espaço pra amores. Vivi pouquíssimos amores na
minha vida. Mas não falo isso com pesar. Eu jorrei esse amor
represado no meu trabalho. E tudo bem! Foi assim. Essa foi a minha
história. Sou um capricorniano clássico, de almanaque.
Capricorniano é trabalho, trabalho, trabalho. Então é uma relação
conjugal mesmo. Sou casado com minha Arte. É bonito também.
Como diretor:
Quando está dirigindo um trabalho para as telas (TV/cinema), as cenas
selecionadas por você e pela produção para o dia de filmagem (ou
gravação) são as mesmas previamente estudadas e elaboradas em termos
de marcação dos atores etc.? Ou as marcações vão saindo na base da
inspiração do momento, da direção de cada uma delas?
Por exemplo, em O Filme da Minha Vida, em que tive a honra de ser
dirigido e também de contracenar com você.
Bom, existe um planejamento prévio enorme do que vai acontecer.
Agora, a vida está acontecendo. Aí a gente chega lá e tá chovendo. E aí?
Cancela ou assume aquela chuva? Eu tendo a achar que se choveu é
porque era pra filmar chovendo. Mas nem sempre é possível por causa
de continuidade, equipamento, por causa de segurança, por um monte
de coisas. Acho até que teve algum caso seu em O Filme da Minha Vida
nesse sentido. Choveu um pouco e não podia estar chovendo porque eu
já tinha feito a parte do Johnny no sol, e a gente fez mesmo assim. Existe
roteiro, que em espanhol se diz guión e eu acho que é a melhor definição
do que é um roteiro. Guia, é estar aberto pra vida! E adaptar, e mexer.
A gente foi filmando as nossas cenas, demos uma volta de trem,
fizemos várias sequências soltas, livres, você conduzindo o trem,
conduzindo o filme. Giuseppe, o Maquinista, foi um personagem que foi
inventado. Não existia no livro. Foi criado pra você, Boldrin. Eu sonhava
em te ver na tela novamente, em um papel fundamental que costurava
toda nossa trama. O seu personagem não existe na obra original do
Antonio Skármeta, escritor chileno fabuloso que, aliás, escreveu
também o livro que inspirou O Carteiro e o Poeta. Eu fiz a adaptação
com Marcelo Vindicatto e, quando você topou a aventura, nossa… você
encheu a tela. Você confiou em mim, me deu segurança para criar não
apenas o condutor do trem, mas o condutor da história, da vida, o
homem que tudo viu, o homem que tudo sabe. Ele viu toda aquela
história que o espectador descobre junto com o protagonista, Tony
Terranova. Ele sabe tudo! Ele sabe tudo que aconteceu. Mas, como ele
mesmo diz, tudo tem a sua hora pra acontecer. Se a gente botar o carro
na frente dos bois a gente acaba atropelando os acontecimentos. É linda
a sua participação em O Filme da Minha Vida. Luminosa. Uma honra
gigante. Aliás eu citei os seus programas celebrando a cultura brasileira,
mas eu vi muito você como ator! Vi você na Bandeirantes, na novela Os
Imigrantes, você é um ator especialíssimo! Então ter você ali comigo era
realizar um sonho de infância.
Então, Boldrin, existe o preparo, mas é fundamental manter os poros
abertos. Te dou outro exemplo de O Filme da Minha Vida sobre o meu
personagem, Paco. Quando a gente foi visitar a locação que seria a casa
dele, eu andei pelo terreno, fui andando pelo quintal, curral, e lá em
cima eu dei de cara com uns porcos gigantescos. Fiquei muito
impressionado com aqueles porcos. Pareciam irreais de tão grandes, ha
ha ha ha. Não tinha isso no roteiro. Não tem isso no livro. Eu fiquei tão
impressionado com aqueles porcos que botei isso no filme! E isso virou a
coisa principal do meu personagem. Brincando com a máxima “eu sou
um homem ou um rato?”. Aí eu trouxe isso pro dilema do meu
personagem. Eu sou um homem ou sou um porco? Por causa do que
acontece com ele no filme que eu não vou contar pra quem não viu. E aí
virou toda essa história de: eu sou um homem ou sou um porco? Aí ele
chega num outro lugar e pergunta: “Você acha que eu sou um porco?”.
Ele fica griladíssimo com essa coisa do porco, ha ha ha. Aí ele fala pro
Tony Terranova: “A diferença entre o homem e o porco é que o homem
sabe que é um homem, o porco não sabe que é um porco, ele é só um
porco, é completamente porco”. Ha ha ha ha ha! Tudo isso, que é tão
rico, só aconteceu porque eu fui naquele quintal com os poros abertos e
vi aqueles porcos maravilhosos naquele quintal, gostei da cara deles, eles
foram com a minha cara e eu botei isso pra dentro.
Para mim, essa é a beleza da construção artística. É como você se
preparar para uma viagem. Você se prepara, organiza a mala, bota
gasolina, mas e aí se furar um pneu? Você vai ter que lidar com isso.
Então dirigir um filme, contar uma história, é muito parecido. Se
preparar e estar pronto para o inesperado.
Boldrin, você disse que teve a honra de ser dirigido e de contracenar
comigo. Meu Deus, eu assistia você quando era menino e, anos depois,
eu estava ali na sua frente, trabalhando em parceria, é um misto de
obstinação com a realização plena de estar diante de uma pessoa que eu
respeito tanto.
Eu queria ter tido isso com muito mais gente. Paulo Gracindo foi um
dos maiores atores do Brasil. Que grandeza. Que ator. No cinema, ele e
Fernanda Montenegro em Tudo Bem, do Arnaldo Jabor. Ele com
Glauber em Terra em Transe. Odorico Paraguassu na TV… Paulo
Gracindo, realmente… Este é um livro sobre memórias em um país sem
memória.
Enquanto eu escrevo esse livro, estou sacando que estou
aproveitando a chance pra homenagear pessoas que não podem ser
esquecidas. Você é uma dessas pessoas, Boldrin. Sua passagem por aqui
foi fundamental.
Outro ator que eu amava ver na televisão era o Milton Moraes. Eu
não conheci o Milton, mas eu adorava vê-lo em cena. Ele tinha algo que
me cativava. Acho que ser ator é isso, né? O ator cativa. O público quer
vê-lo em ação. Eu gostava de vê-lo. Ele era muito crível nos personagens.
Eu acreditava em tudo que ele fazia. Ele tinha uma tranquilidade em
cena, tinha uma presença muito poderosa. Milton Moraes foi um ator
extraordinário. Não pude conhecer, mas deixo registrado aqui minha
admiração.
Um outro que lembrei agora e me emociona muito — e que tive o
prazer de conhecer — foi o Armando Bógus. Que ator maravilhoso. Que
pessoa maravilhosa. Eu fiz a última novela do Bógus, Pedra sobre Pedra,
aquela novela do Jorge Tadeu, com Fábio Jr., que aliás é um baita de um
ator. Sempre falo isso pra ele. Ele tinha que atuar mais. Ele abandonou
demais esse lado dele. Sempre foi um ator maravilhoso em tudo que ele
fez.
O Bógus, nessa novela, fazia um vilão, senhor Cândido Alegria, que
era um mineirinho. Ele falava de um jeito muito delicadinho e
absurdamente assustador. Ele falava umas coisas assim: “A senhora quer
um cafezinho? Ah, então daqui a pouco eu trago pra senhora porque
agora eu tenho que ir ali matar uma pessoa”. Ha ha ha ha.
E ele tava debilitado de saúde nessa novela. Foi uma despedida. Eu
convivia com ele. Eu fazia um personagem coadjuvante, um ajudante no
hotel do qual ele era dono. Eu vivia ali com ele, era o menino de recados,
o faz-tudo dele. Eu vivia colado no Bógus. Foi uma aula, colado no
Bógus, aprendendo, absorvendo, olhando, viajando…
Eu nunca vou esquecer de uma coisa. Eu vi acontecer. O diretor de
novela vai pra um lugar chamado switcher, onde ele já fica cortando de
uma câmera pra outra. Então ele fala com a gente por um microfone
bem alto pelo estúdio. E era uma cena trivial. Ele colocou um figurante
para servir um refrigerante para um cliente na mesa. Quando o cara foi
servir, ele bateu a garrafa no copo… tava nervoso. Tava em cena o
Armando Bógus, o genial Lima Duarte, Renata Sorrah, outra atriz
maravilhosa e pessoa extraordinária! Renata, te amo!… O figurante ficou
nervoso. O diretor lá de cima, só aquela voz de estúdio, disse: “Ô, meu
filho, não sabe botar um refrigerante no copo, não?”. Absolutamente
desnecessário.
Óbvio que o camarada ficou mais nervoso ainda. Derrubou o
refrigerante de novo. Aí o cara lá de cima: “Ô, meu filho, já tomou um
guaraná na vida?”, ou alguma coisa bizarra desse nível. O figurante
começou a suar, passar mal, de tão nervoso que ele estava. Aí na terceira
vez que o diretor falou algo assim, o Bógus entrou e falou, como se
falasse com Deus lá em cima: “Só um instantinho. Me dá só um
instantinho”. O estúdio parou.
O Bógus foi até o cara conversar, calmíssimo. “Tudo bem? Como
você se chama?”. O cara respondeu: “Cláudio”. “Ô, Cláudio, é tranquilo,
deixa eu te contar. Você pega a garrafa aqui e põe no copo. Igual a gente
faz na vida. Se o cara está gritando, está nervoso, o problema é dele.
Pega aqui tranquilo, não tenha pressa, e coloca. Faz aí pra eu ver.”
Aí o cara foi lá e fez. Aí o Bógus falou: “Tá vendo? É isso. É simples”.
O cara olhou pro Bógus com uma cara de “Obrigado, alguém humano
veio falar comigo”. E a cena foi feita, sem sobressaltos.
É um pequeno gesto, mas é algo grandioso. Armando Bógus é um
camarada extraordinário, e um dos maiores atores que eu vi de perto.
Então, Boldrin, eu acho que é isso. A honra desses encontros. E a
reverência aos grandes que eu não encontrei.
Então, este livro é também pra dizer quem me inspirou, quem me
fez ver o mundo de forma diferente, e seguir contando a minha história
— porque talvez eu possa ser essa pessoa também para os outros.
Obrigado por tudo, Boldrin.
Você é múltiplo profissionalmente: atua, dirige, canta, escreve…
Mas sempre coisas muito específicas, escolhas requintadas. Em qual
desses caminhos você fica mais à vontade?
Aracy, amada, você é uma luz, uma pessoa muito maravilhosa de
se ter por perto! Que alegria que nosso caminho se cruzou! Eu me
lembrei agora e vou contar uma passagem linda em Ligações
Perigosas. Um dia a gente estava fazendo uma cena juntos — que dia
bonito! E subitamente eu fiquei tão emocionado de estar em cena
com você que, quando terminou, eu chamei todo mundo do estúdio
pra te fazer uma homenagem espontânea. Você lembra disso, Aracy?
Eu falei algo assim: “Amigos, olha aqui, quero falar da grandeza da
Aracy, da história dela, da importância que ela tem na nossa cultura.
Quero que todo mundo saiba que estamos diante de uma pessoa
maravilhosa, de uma atriz espetacular e vamos agradecer pela chance
de estar com ela e aplaudi-la fortemente!”. A gente aplaudiu
longamente, toda a equipe. Foi tão bonito aquilo! Eu guardo você com
muito amor.
Na Argentina, durante as filmagens de Ligações Perigosas, você
contou pra gente a história fabulosa dos seus pais. Vieram da
Armênia refugiados, escapando do genocídio turco, em famílias
separadas. Seus pais se conheceram naquele navio em fuga rumo ao
Brasil. Que história! Seu pai era de uma família e sua mãe de outra, se
conheceram naquela circunstância. Se estabeleceram no Brasil e
viraram um casal, entre os filhos, nossa Aracy veio ao mundo. Que
coisa de filme!
Sua primeira pergunta: eu fico mais à vontade quando eu tô
criando. Quando eu tô criativo, eu tô feliz. Quando eu tô burocrático,
eu tô apagado, sem brilho. Sou movido a criatividade. Quando eu tô
assim, tô vibrante por dentro e, quando eu tô vibrante por dentro, eu
tô vibrante por fora também. O principal é estar vivo, com tesão.
Um estado amoroso de encantamento criativo. Quando estou
nesse estado, estou feliz. Eu tenho prazer em viver a aventura poética
do nosso of ício. Descobertas diárias que vão enriquecendo nossa
existência e ampliando os horizontes de quem assiste o que fazemos.
Cuido para que minha imaginação não seja asfixiada. Trabalho,
zelosamente, para que meu impulso criador seja livre, espontâneo.
Circulando entre o presente, a memória e a fantasia. Passeando
diariamente entre a realidade f ísica e a metaf ísica. O lar do artista
fica atrás daquele morro, entre o mundo do visível e o mundo do
sensível. Ali, me sinto muito bem. Prezo muito minha liberdade de
impressão.
Como era formada sua família? Nuclear, apenas mãe, pai e irmão?
Ou era familião? Do tipo muitos primos, quintal de vó…?
Olha, isso teve a ver com as fases da vida. Na infância era familião:
muita gente, muito tempo em Minas, aí depois ficou mais dif ícil
viajar. Ficou mais dif ícil também ter dinheiro pra viajar. De São Paulo
a Minas a gente pegava um ônibus, às vezes não tinha ônibus direto e
a gente pegava para algum lugar e depois trocava de ônibus.
Tem até uma história que meu pai e minha mãe lembravam
muito: era uma parada dessas de ônibus com um desses restaurantões
de beira de estrada, em que o pessoal desce pra comer um pão de
queijo. E eu sumi no meio da multidão. É uma multidão mesmo, uns
quarenta ônibus encostados com um monte de gente andando para lá
e para cá. Eu sumi e os meus pais ficaram desesperados, naquele
desespero: “Ai, meu Deus do céu, meu filho sumiu! Levaram ele!”.
Aquele pânico, procuraram, pediram ajuda… Aí o motorista diz:
“Gente, achei! Está aqui no lugarzinho dele”. Simplesmente, eu fui no
restaurante, comi meu negócio, voltei sozinho. Eu tinha uns três ou
quatro anos, mas sabia voltar. Decorei o estacionamento, memorizei a
placa do ônibus, sei lá! Mas eu sabia voltar, entrei no ônibus e sentei
quietinho. Tipo, assobiando calmamente, quieto no meu canto,
esperando todo mundo voltar e lá fora estava um pânico atrás de
mim! Engraçado lembrar isso assim do nada.
Na infância tinha muita roça, muitos tios e primos. Acho que a
gente vai ficando adulto e vai tendo mais obrigações, mais
compromissos, vai se desgarrando mais também. Então na fase Rio já
começamos a ir menos a Minas. Muito trabalho sempre. Aí, quando
dava uma pausa, era mais para descansar por aqui mesmo. E foi
afunilando, o núcleo familiar foi ficando cada vez menor. Hoje em dia
eu tenho algum contato com uns poucos primos e fui focando meu
afeto no que eu entendo como família. Pai, mãe e irmão.
Acho que faz parte da vida e da distância também. Se eu morasse
lá seria outra situação. E eles vêm muito pouco, sempre vieram muito
pouco. A gente ia lá, mas eles sempre vieram muito pouco. Não sei se
é porque tinham medo do Rio, medo de assalto. Povo do interior tem
uns medos assim. Também iam pouco a São Paulo. Então eles vinham
pouco e a gente passou a ir pouco e terminou ficando só a gente.
Muito boas lembranças!
Aliás, quintal de vó! Até agora não falamos dela e chegou o
momento Chica Xavier! A sua avó, porque eu sei que você tem
familião.
É, Luana, tivemos aquele encontro ali no Sessão de Terapia e você
estava brilhante, num momento em que acho que você também
estava duvidando um pouco de si. Não chegavam muitos convites de
atriz e eu estendi minha mão para você e disse: “Vem que você vai
brilhar”. E a dona Chica ainda estava ali, no finalzinho da vida dela,
com certeza ela abençoou esse movimento. E a gente falou disso, não
é? Mas é legal deixar aqui no livro para a eternidade. A beleza que foi
sua chegada no set, e eu enxerguei isso como uma passagem de bastão
para você.
E preciso falar da importância da Chica Xavier para a cultura
brasileira. Quem teve a sorte de se encontrar com ela, como eu tive
na novela Força de um Desejo, via que realmente era uma pessoa
muito espiritualizada, com uma presença muito doce. Uma Rainha.
Como explicar a Chica para quem não a conheceu? Era uma figura
imponente, porém muito suave. Sábia sem ser professoral, dava
vontade de levar ela para casa, vontade de ser neto dela também.
Realmente a Chica era uma mulher muito linda, uma atriz especial,
dona de uma sabedoria ancestral. Era emocionante estar perto dela;
olhar para ela emocionava. Então te olhar ali, da cadeira de diretor,
me emocionava também, porque eu estava vendo você, a Chica, a
ancestralidade, a continuação.
Muito lindo, Luana, você é maravilhosa. É uma alegria muito
grande ter você na minha vida. E você ainda viajou com meu pai,
fazendo uma peça anos atrás, também tem ali um afeto do meu pai
por esse tempo. Bonito também deixar aqui neste livro a alegria que
eu tenho de ter você e Chica na minha vida. Eu me sinto abençoado
pela família Xavier.
Você foi educado com alguma crença religiosa? Seguindo algum tipo
de doutrina? Que memórias religiosas tem da infância?
Eu fui educado na religião católica. Minas, catolicismo.
Catolicismo beeem rígido, bem missa do domingo. Sei lá que horas
era a missa, sete da manhã, dez da manhã? Mas todos se aprontavam
e todos os compromissos eram depois da missa. “Ah, então depois da
missa é o churrasco” e “Então na missa a gente se encontra e combina
a segunda-feira”. A missa na pracinha de Passos é a lembrança da
infância, depois aqui em São Paulo esse hábito se estendeu um pouco.
Era muito mais algo da minha mãe, que tinha uma coisa religiosa, de
fé.
Não sei se sou religioso, mas sou absolutamente espiritualizado.
Me sinto conectado com o Alto. Minha mãe sempre foi assim
também. Sempre foi a pessoa que acende vela e prepara um banho
pra te proteger. A pessoa que cuida. A pessoa que, se receber algo que
dá sorte, usa e também vai à igreja. Eu herdei muito isso dela, essa
curiosidade espiritual. Então as primeiras lembranças da infância
sobre a maneira como eu fui criado, são basicamente da fé católica.
Católica tradicional.
Com o tempo, eu fiz tudo: batismo, primeira comunhão, toda essa
parada. Mas parece que não era eu. Eu ia porque era da família. Mas
parecia que não era a minha expressão, não me emocionava. Eu fazia
como um hábito. Só que eu sempre gostei de acender velinha. Sei lá,
fazia um teste, aí minha mãe acendia uma velinha e eu gostava de
acender com ela. Gostava de rezar, pedir “Se for pra ser meu que seja,
se não for, que saia do meu caminho”. Aí, se eu não passava, acendia
outra vela agradecendo — porque, se fechou uma porta era para abrir
outra. Tinha o lado de acreditar em algo maior. Algo que não é
pedestre, que não é daqui, algo que não se pode tocar.
E ao longo do tempo eu fui descobrindo outras coisas. Por
exemplo, anos atrás, em Salvador, fui à casa da Mãe Menininha do
Gantois, queria ir lá ver essa coisa cultural tão forte de raízes
africanas. E a primeira vez que eu fui ao candomblé foi um negócio
assim: “Uau!”. Os tambores, o ritual, aquela ancestralidade, aquela
vitalidade, aquela coisa pulsante, sanguínea, de vida… Aquilo me
emocionou. O tambor batendo, um banho de ervas, isso mexeu
comigo. Isso me arrepia, me emociona.
Lembro também de uma imagem da infância muito curiosa. Você
vê, criado como católico, mas olha o episódio da infância, que
interessante! Com cinco ou seis anos de idade eu andava muito de
chapéu. Era roça, tinha cavalo lá, eu botava chapéu para fingir que era
caubói, brincadeira de criança. E o chapéu ficava em cima do muro,
no quintal. E teve uma ocasião que eu peguei o chapéu, pus na cabeça
e fui lá brincar. Então no dia seguinte acordei com o corpo tomado de
bolhas de sangue. No meu rosto, em todo meu peito, nas pernas, nos
braços! Bolhas com crostas grossas de sangue. O que era isso? Isso se
chama cobreiro, é uma doença que vem da urina do sapo. Algum sapo
passou pelo chapéu, urinou nele e eu botei na cabeça. Isso vai pro
corpo e forma bolhas. E eu já tinha tomado antibiótico, já tinha
passado no hospital, tinham tentado a coisa tradicional, mas não
revolveu. E aí veio o pânico: “Ele vai ficar assim pra sempre? Com essa
cara e esse corpo cheio de bolhas de sangue?”.
Para você ver como minha mãe é católica, pero no mucho, ela me
levou onde? Numa benzedeira. Num quintal de alguém em
Nepomuceno. Era aquele mistério: “Vamos lá na benzedeira!”. Eu não
me esqueço dessa imagem. Veio aquela senhora, pegou umas ervas,
me ungiu, depois jogou umas águas, rezou, passou umas folhas no
meu corpo. Ela passou as ervas, fez umas rezas, eu não entendia as
palavras que estavam sendo ditas. No dia seguinte, acordei sem
nenhum vestígio. Não havia nada em meu corpo. Miraculosamente
sumiu tudo. É muito impressionante.
A ancestralidade, a força e a beleza dos orixás, tudo isso me
fascina, como foi com aquela senhora benzedeira em Minas. Não
acredito em um Deus punitivo, de barba branca, esperando que a
gente cometa algum erro para nos castigar. Não. Deus é tudo, é a
natureza. Deus é a árvore, é a água, a cachoeira, é o vento. Deus está
em você.
Então eu sou bem minha mãe. Se precisar, eu estou rezando um
Pai Nosso, mas também bato um tambor. Se me levarem pro budismo
eu vou com prazer, pra entender como é. Eu tenho curiosidade pelo
que não está aqui na terra.
E cada vez estou ficando mais, Luana. Isso me preenche, me dá a
sensação de que estou em conexão com algo maior, sabe? A gente é
mais que essa carcaça. Isso é matéria. A gente é espírito. Eu não ando
só.
Eu acho inaceitável e muito louco existir briga religiosa no Brasil.
Nós somos miscigenados! Somos uma mistura gigantesca, de várias
culturas. Todo mundo deveria ser o que quisesse e ser respeitado por
isso. O que interessa é todo mundo ficar bem. Intolerância religiosa
no Brasil é algo que não entra na minha cabeça, não combina com
quem somos. De minha parte, eu quero é tudo. Me dá uma figa que
eu uso, me dá uma pedra, um cristal… gosto de tudo que me eleve,
me tire do cotidiano.
Sou muito ligado nas minhas proteções, no meu anjo da guarda,
nos meus orixás, em quem me protege. Sou muito ligado à natureza.
Tudo que é transcendental me comove.
Ouço com muita atenção, tudo, absolutamente tudo que vem do
Aílton Krenak. Leiam Aílton Krenak, ouçam o que ele tem a dizer.
Um dos maiores filósofos do Brasil. Encerro essa entrevista com um
de seus pensamentos fascinantes.
“Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é
comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso
horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É
enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo
que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a
natureza, existe também uma por consumir subjetividades — as
nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que
formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a
natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável,
vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades,
nossas visões, nossas poéticas sobre a existência.”
Querido Selton, trabalhei com você como atriz e pude ser dirigida
por você em alguns episódios da série A Mulher Invisível. Fiquei muito
impressionada pela sua delicadeza com os atores e com a equipe.
Sempre sensível e amoroso. Como consegue manter essa calma em um
set?
Débora, querida, antes de tudo preciso falar da nossa parceria em
Lisbela e o Prisioneiro.
Que encontro mágico! Recentemente esse filme passou de novo
na TV, eu assisti e fiquei tão comovido! Fiquei comovido com a gente,
com a nossa cultura, com o Brasil. Guel Arraes fez algo
extraordinário. Fizemos algo tão raro, tão profundo, tão popular, tão
refinado, tão lindo… E a gente nem se conhecia. Que filmaço! É tanta
coisa: o filme dentro do filme, amoroso, requintado e muito gracioso.
Lisbela e o Prisioneiro está no topo das coisas mais importantes que
fiz e foi ao seu lado. Parceira absurda, doce, forte, sagaz, apaixonante.
Era a Lisbela perfeita! Eu tive que ralar pra virar o Leléu. Você já tava
voando. Tudo no filme é deslumbrante. Todos os nossos parceiros:
Virgínia, Nanini, Dedé, Lívia, Bruno, Tadeuzinho Mello, todos
arrebentam fortemente! Tenho um orgulho gigantesco de Lisbela e o
Prisioneiro. Acho que é um filme que representa lindamente o Brasil.
Eu tenho você comigo pra sempre por isso. Se a gente não fizer mais
nada na vida, já fizemos Lisbela e o Prisioneiro e eu já estou satisfeito.
Mas espero que façamos muito mais!
Agora vou pra sua pergunta sobre minha direção na série.
Obrigado pelas suas palavras, obrigado por estar ali atenta, curiosa,
vendo como eu trabalho. A Mulher Invisível, série do gênio amado
Cláudio Torres, contou com a direção de três pessoas: o próprio
Cláudio, Carol Jabor e eu. Cada um fez três ou quatro episódios.
Começou com o Cláudio, dando o tom, passou pela Carol, baita
diretora, e depois chegou minha vez. Você deve ter pensado: “E agora
acontece o quê?”. Ha ha ha ha ha! Né? “Esse cara que tá atuando
comigo agora também dirige… Vai dar certo isso?” Ha ha ha ha ha!
Eu ficava olhando pra sua carinha e acho que você se divertiu
muito vendo a insanidade que era eu estar dentro, com um olhar de
fora, atuando, mas de olho no restante, tudo ao mesmo tempo. Visão
periférica. E ainda por cima tinha uma mulher invisível pra eu lidar!
Ha ha ha ha ha! Então era a esquizofrenia plena, toda ali ao seu
dispor. Um ambiente incrível, a equipe fabulosa, a parceria com a
Luana [Piovani] divertidíssima, reencontrando depois do sucesso do
filme.
Você e Luana já grudadas no celular, eu naquela época usava um
jurássico que só mandava mensagem, vocês me aplicaram na nova
era. Luana já me deu muitas letras na vida, a terapia foi uma das mais
importantes. Ela é muito danada, maior carinho por ela! Uma vez, a
produção pediu pra gente levar a carteira de trabalho. Levei minhas
duas. Luana olhou e mandou na lata: “Duas carteiras de trabalho? E
passaporte você tem quantos?”. Pow! Luana, personal hedonista
sinistra. Bingo! Eu só tinha um passaporte. Algo errado não estava
certo, ha ha ha. Era hilário e gostoso de fazer, uma série muito bem-
sucedida e uma alegria te reencontrar. Dirigindo e atuando. Eu me
deleitava vendo você se divertindo ao me ver dividido nas duas
funções loucamente. Ha ha ha ha ha! Sou seu fã eterno, Débora!
Conta pra gente umas coisas loucas que já aconteceram na sua vida.
Curiosidades, segredos, o que passar pela sua cabeça.
Rapaz… Ha ha ha! Sem pensar muito, vamos lá. Aleatoriedades é
comigo mesmo.
Eu não sei nadar. Eu entro em piscina tipo um velhinho descendo
pela escadinha. Ha ha ha ha! Fazer um surfista seria meu maior
desafio como ator, ha ha ha!
Eu fiz teste pro Balão Mágico. Manja o Tob? Pois é, eu fui pra final
com outras crianças e o Vimerson [Cavanilas], que acabou ficando
com a vaga. Imagina se eu fosse do Balão Mágico, que coisa bem
louca? Mas perdi o teste pra ser o Tob. Sabe outro teste que perdi?
Pra ser do Dominó, ha ha ha ha! Imagina se eu fosse do Balão Mágico
e do Dominó?!
Meu nome é uma mistura de Selva e Dalton, nomes dos meus
pais. Meu sobrenome é Melo com um L. Na primeira novela que fiz,
Dona Santa, na TV Bandeirantes, escrita por Marcos Caruso, dirigida
por Geraldo Vietri, quando vi a abertura meu nome saiu Selton
Mello. Eu me lembro de olhar aquilo e pensar: “Hmm, bem melhor,
mais artístico” e passei a usar a vida inteira o Mello com dois L
porque, quando eu era criança, erraram a grafia e eu enxerguei ali
esteticamente um upgrade, ha ha ha! Falando em nome…
Algumas coisas bem loucas são as variantes do meu nome que já
pintaram no meu caminho. Uma vez estava num mercado de
Petrolina, filmando Guerra de Canudos, uma moça virou pra mim e
falou: “É Chet Melli, é?”. Selton Mello. Chet Melli. Cara. Isso é genial.
Ha ha ha ha ha! Tipo Chet Baker, demais! Eu pensei em mudar meu
nome para Chet Melli, mais curto, mais sonoro, melhor que o
original, ha ha ha ha ha. Em Cabaceiras, onde filmamos O Auto da
Compadecida, as crianças passavam e perguntavam: “O Seu Tomé tá
aí?”. Ha ha ha ha, Selton Mello/Seu Tomé. Sensacional. E a mais fora
da casinha foi na saída de um teatro em São Paulo. Um cara virou e
disse: “Essa peça aí é com aquele ator famoso, o Zé Trombella?”.
Mano! Ha ha ha ha ha! Selton Mello/Zé Trombella.
Chet Melli é imbatível! Ha ha ha ha. Eu tô pensando em mudar
oficialmente para a nova fase da minha vida e passar a assinar Chet
Melli em breve. Tenho certeza que com esse nome, minha vida vai
deslanchar.
O extraordinário filme O Cheiro do Ralo se presta a inúmeras
interpretações. Qual a sua?
Salve, Arthur! Prazer ter você aqui nesta comemoração. Que legal
sua pergunta, porque não falamos desse filme tão emblemático. Se
tivesse que resumir O Cheiro do Ralo seria: um retrato da mesquinhez
humana, que pode ser mais fedida que o ralo. Esse filme, baseado no
livro fabuloso do Lourenço Mutarelli, apresenta um protagonista abjeto,
que se aproveita da fraqueza de pessoas que precisam de dinheiro para
tentar tapar algum buraco sinistro da sua vida. Um personagem
múltiplo, cheio de camadas. Fizemos esse filme em cooperativa, todos
sendo sócios. Foi rodado na Mooca, SP, basicamente dentro de um
galpão. Cada personagem que entra naquela sala precisa vender algo
que não gostaria de vender se não fosse a necessidade. Lourenço sabe o
valor das coisas e não tem nenhuma empatia pelo valor das pessoas.
Objetos e pessoas possuem o mesmo peso para o protagonista. O ralo é
o inferno? O filme todo se passa dentro do ralo? Talvez. Sarcasmo,
vulnerabilidade, perversidade, capitalismo, misoginia, poder. Maior
viagem esse trabalho.
Eu li esse livro durante um voo. Quando desembarquei, pasmo com
o que tinha acabado de ler, procurei o diretor do filme, Heitor Dhalia,
para dizer a ele que eu era a escolha certa para o papel. Ele demorou um
tempo até gostar de fato da ideia, mas sacou a jogada. O fato é que eu
vinha de trabalhos com personagens absolutamente adoráveis, então ter
a minha presença ali seria uma subversão muito atraente para o filme e
também para o que eu estava construindo. Foi um período muito fértil
para todos os envolvidos. Toda a equipe, o elenco numeroso e
fantástico, vivemos dias muito criativos. Foi um mergulho intenso,
doido, fora da casinha, vivendo um personagem fantástico,
desagradável, hilário e esburacado existencialmente. Poder diariamente
conviver com Lourenço Mutarelli, o autor do livro, que para quem não
sabe vive o segurança do meu personagem, foi muito gratificante. Muito
louco eu dizer pra ele todo o raciocínio sobre a grandeza do homem
perante Deus. Para ele! Que foi quem escreveu aquilo tudo. Um
personagem muito marcante na minha trajetória, eu amei fazer esse
dodói. Era repugnante e fascinante a jornada diária de filmagem.
O filme foi para Sundance, abrindo uma porta internacional para
mim. Fez um sucesso grande no Brasil, ganhou a Mostra de São Paulo,
fui premiado em muitos festivais pelo mundo, foi uma trajetória bem
rica para todos nós da equipe. Exatamente por ser um filme tão
estranho e pop e bizarro e cruel e ousado e engraçado e doloroso, até
hoje encontro pessoas que amam esse trabalho. Isso é muito
interessante: quando o fã chega e fala de um trabalho, eu imediatamente
o conheço também, porque seu gosto diz muito sobre sua
personalidade.
Voltando ao Cheiro do Ralo, que personagem extraordinário, de
viajar longe, num humor muito cruel. Uma viagem passar aquele tempo
ali na Mooca. A gente pegou um galpão, um grande galpão abandonado
e foi nosso estúdio. A gente montou onde ele trabalhava, o canto, o
banheiro cenografado pra poder ter a coisa do ralo. No andar de baixo, a
gente fez o apartamento dele. A gente ficou trabalhando ali. Era perto do
clube do Juventus. Foi um período grande em São Paulo — o que é
sempre muito gostoso pra mim, quando eu passo temporadas grandes
em São Paulo, porque lembra da minha infância, onde tudo começou.
Foi um encontro maravilhoso com o Heitor Dhalia, o diretor desse
filme. A gente tava muito afinado na leitura que queríamos fazer.
Misturas muito legais de referência. Sei lá, Sam Peckinpah, Boca do
Lixo/pornochanchada, um filme doido. Filme doido bom. Filme doido
arrojado. Filme doido bem mandado. Filme doido impressionante.
Lourenço Mutarelli é um gênio e sua obra nos inspirou muito.
O Lourenço me disse uma vez o seguinte: “Tem pessoas que eu amo,
que às vezes eu só quero ligar e dizer ‘boa noite’” — como quem diz
muitas outras coisas, como forma de agradecimento, de afeto. E vez ou
outra me chega uma mensagem do Lourenço assim: “Boa noite”.
Lourenço, aproveito pra te mandar um boa noite aqui neste livro.
Falando no Lourenço, eu tenho uma cena com o próprio, em que eu
defendo a ideia de que Deus é bom, mas não é tanto assim, não, ha ha
ha. Quem é foda mesmo é o homem. Ele diz assim:
“Vou te falar uma coisa… O homem é o Deus do conforto.
Entendeu? Deus, ok. Mas quem criou o conforto e portanto está no
mesmo nível de Deus — olha o papo! — foi o homem. Então o homem é
foda. Nenhum animal seria capaz disso. Você acha que a baleia faria
isso? Inclusive ia molhar tudo. A girafa faria isso, pescoçuda do caralho?
Pois é… O único ser capaz de criar, por exemplo, este casaco. Olha o
meu casaco!” Aí eu mostro o casaco pra ele. “Um casaco felpudo, isso
aqui foi o homem que criou, não foi Deus!” A teoria do cara é muito
louca! Ha ha ha! Então assim: “Olha essa poltrona. Experimenta a
poltrona”. Aí ele deita na poltrona e mostra como a poltrona é
confortável. “O homem é o Deus do conforto.”
E eu falei isso pro Lourenço — que escreveu isso! Que coisa
fantástica… Essa profissão tem realmente uns negócios muito loucos!
Vou abrir uma aba aqui, vou sair de O Cheiro do Ralo um pouco, eu
vou pro Jean Charles.
Jean Charles foi um trabalho dif ícil, eu já falei neste livro algumas
vezes. Porque tinha toda a coisa do remédio, de um peso absurdo que eu
nunca tive na minha vida, tomando moderador de apetite. Eu tava
muito deprimido… eu não tava ali! E Londres, dif ícil… Bom, no meio de
tudo isso, essa parte eu já contei, mas o que eu não contei, que é louco, é
o seguinte: eu comecei a sentir muita dor na nuca. Muita dor na nuca.
Um desespero. Dormia mal, ia filmar com dor, torcicolo. Não conseguia
me entender. Daí comecei a trocar de travesseiro, ia lá no hotel, pedia:
“Tem um mais gordinho? Tem um menorzinho?”. Testei o menorzinho,
testei o gordinho, testei dormir com dois, testei dormir de tudo que é
jeito. Não me entendia naquele travesseiro, naquela cama, não
conseguia dormir. Dor na nuca, mas muita dor na nuca. O filme foi
indo, foi indo, foi indo, eu com essa sensação de dor, dor, dor, dor na
nuca!
E aí a gente foi fazer a cena em que o Jean Charles é assassinado, no
metrô de Londres. Bom, como ele é assassinado? Nove tiros na nuca.
Essa é a profissão da gente. Óbvio que eu tava com dor na nuca. Eu
estava fazendo um personagem que foi morto com nove tiros na nuca.
Óbvio que minha tensão estava ali.
Que doido, né? E não acabou a loucura, não.
Aí veio o ator, do elenco de apoio, com a arma pra fazer o policial à
paisana que mata o Jean Charles. Fizemos a cena, ele veio com a arma…
Aliás, é uma coisa que eu sou griladíssimo por causa do Brandon Lee.
Complexo de Brandon Lee. Pra quem não sabe, Brandon Lee, filho do
Bruce Lee, fazendo O Corvo, que é um trabalho extraordinário, numa
hora ele sobe em uma mesa e fala: “Atirem!”, e um monte de gente atira
nele. Simplesmente tinha bala de verdade num dos revólveres. Aí tem
duzentas mil teorias da conspiração sobre isso, mas enfim. O fato é que
toda vez que tem arma em cena, eu falo: “Só um instantinho!”. Pego a
arma, olho o tambor, vejo que não tem nada, devolvo pro ator… Na hora
de filmar eu pego de novo. Tipo assim: TOC. Tá maluco? Arma em
cena? Não, tem que tomar muito cuidado.
Então, o ator veio e deu os tiros na minha nuca. Cortou e ficamos ali
fora, batendo um papo, com uns atores ingleses que estavam fazendo a
cena comigo. Aí um assistente de direção chega pra mim e diz: “Você
sabia que esse cara que deu os tiros é ator e mercenário?”. Eu fiquei:
“Hã?”. “Sim, ele é mercenário. Já trabalhou em guerras, tá vindo da
guerra X agora”. Ator e mercenário. Como assim? Ha ha ha!
Olha, essa profissão da gente é extraordinária…
E no Cheiro do Ralo houve também os encontros. O Chico Accioly,
queridaço, fez a produção de elenco e achou uma galeria de atores
extraordinários, vindos de várias escolas diferentes, vertentes diferentes.
De São Paulo, do teatro… Eu conheci tanta gente maravilhosa ali. É
aquele trabalho que eu saio falando: “Meu Deus, eu queria poder dirigir
alguma coisa e botar toda essa gente em cena”. Todos eles, maravilhosos.
Tantos encontros… Eu lembro do seu Abrahão Farc. É um ator da
velha guarda, já nos deixou, mas também deixo aqui na memória. Muito
comovente. A gente fez uma cena bonita, uma cena maluca, em que o
Lourenço sai jogando dinheiro pro povo, porque ele acha que esse
senhor lembra o pai que ele não tem. Então é por isso que ele compra
uma perna e um olho pra começar a construir o pai que não existe.
Enfim, esse filme dá muita margem psicanalítica.
Mas o seu Abrahão Farc chegou pro ensaio no primeiro dia, fizemos
a cena. Um cara tão frágil e doce. Foi bonito ensaiar com ele. Naquele
dia teve o dinheirinho pra ensaiar, alguma ajuda da produção pra pegar
condução, uma coisa simbólica, e ele falou alguma coisa do tipo: “Ah,
que bom, porque na vinda de ônibus foi dif ícil”. Isso ele já com 70, 80
anos, doente, com alguma coisa f ísica. E aí ele foi devagarinho pra pegar
um táxi pra voltar pra casa. E eu tive uma catarse, uma crise de choro.
Foi um choro pela profissão. Pela dureza da profissão, pela injustiça
da profissão. Fico emocionado até agora aqui em falar disso. Como é que
pode um homem como aquele, uma vida dedicada à arte, com tantas
passagens importantes na televisão, no teatro, no cinema, prêmio… Ele
estava feliz porque tinha um dinheirinho pra ir pra casa. Ou então ia
voltar de ônibus porque ia precisar comprar algum remédio, sabe?
Que dureza… É uma profissão dura. As pessoas às vezes olham de
fora e acham… sei lá o que acham. E ainda existe uma vertente que acha
que ator é vagabundo ou que faz algo supérfluo. O ator é fundamental.
O ator espelha você — nada mais do que isso. Ele tá espelhando uma
população. A gente fala português. Então quando você vai ao cinema ver
um filme que eu faço, você tá se vendo. Você está vendo sua cultura,
suas falhas. E às vezes não é confortável ver suas falhas. É um espelho.
O Cheiro do Ralo está ali pra mostrar um espelho também, de um
mundo doente. De um mundo torpe. E é bom a gente se ver na tela. Seu
Abrahão Farc aquele dia me fez chorar pela impotência de não poder
ajudar os milhares de Abrahão Farc que existem no Brasil. Os grandes
artistas que terminam sem nada, que não conseguiram nem ter uma
casa, uma vida decente, vivendo da profissão. Por isso é fundamental a
distribuição de renda cultural pros grupos de teatro, pros movimentos
de expressão no Brasil inteiro, porque a maioria é Abrahão Farc. A
maioria não sabe se vai conseguir fazer a compra de supermercado do
mês, não sabe se vai conseguir pagar o aluguel.
Se fosse o Lourenço do Cheiro do Ralo ouvindo isso, diria, sem
nenhuma alma: “É, a vida é dura”. Mas o Selton tá de olho em tudo e
sente tudo muito. A Clarice Lispector fala coisas do tipo: “Eu queria
sentir menos”. Ela fala alguma coisa disso — do quanto é penoso pra ela
essa porosidade, essa capacidade de sentir as dores do mundo. Nossa, se
você me perguntasse se eu gostaria de voltar no tempo e conhecer
alguém, bater um papo com alguém, eu diria: Clarice Lispector. Se eu
pudesse voltar no tempo e conhecer alguém, seria a Clarice.
E veja a beleza da arte, da literatura, da educação, né? Ela não está
mais aqui, e eu não tenho como conversar com a Clarice. Mas eu
converso com a Clarice, quando eu leio as coisas dela. Ela ilumina meu
pensamento, ela me faz enxergar coisas, ela faz com que eu me enxergue
melhor. E isso é uma coisa muito poderosa.
Então como ator, como diretor, eu tento fazer com que o público
sinta alguma coisa, mais do que veja. Eu quero que ele sinta alguma
coisa. E essa é uma das coisas mais bonitas que eu venho fazendo nesses
quarenta anos.
Selton querido,
Temos duas coisas em comum: começamos cedo na carreira e temos
o nome inventado, o que nos une tremendamente, ha ha ha! Quem é o
Selton, filho da Selva e do Dalton, irmão do Danton, do mato, da música,
amigo dos amigos e dos melhores réveillons?
Dira, queridona. Você é uma pessoa maravilhosa. Eu te amo. Minha
mãe te ama. Você formou uma família linda com o Pablo Baião, grande
fotógrafo, um cara com quem trabalhei também e amo. Ver seus filhos
crescendo é uma coisa linda. E agora você tá dirigindo e eu fiquei muito
contente com isso! Nosso cinema vai ganhar muito com seu olhar!
Você é uma das maiores atrizes do cinema brasileiro. Você já fez de
tudo, mas é uma mulher do cinema. Antes de eu pensar em fazer
cinema, você já estava mandando ver. Você faz cinema desde que nem
tinha isso direito no Brasil. É muito impressionante a sua trajetória na
tela grande. Te admiro demais. Tenho vontade de estar mais perto, de
trabalhar juntos. Mas tudo bem, essa é uma profissão generosa, então
nunca será tarde pra gente juntar forças.
E “quem eu sou”? Eu sou essa mistura que o leitor está lendo neste
livro até agora — se é que já não desistiu. Ha ha ha! Sou um sonhador
vocacional, inadequado nato e tentando fazer parte, meio provisório,
meio definitivo, meio errado, meio acertando, meio bossa nova e rock n’
roll. Não sou especialista em nada, nem de mim mesmo. Sou de exatas e
de humanas. E de boas.
Ninguém sabe o que vai aqui dentro. Aqui, no Engenho de Dentro…
Sou muito introvertido, putz… Meu sonho é vir extrovertido na
próxima encarnação. Sou do mato, do asfalto, da música. Nossa, muito
da música! Muita música na minha vida. Muito rock, Gil, Gal, Bethânia,
Chico Buarque… Na adolescência: Ira!, Titãs, Legião Urbana, The
Doors… E não só a música, mas a viagem, a poesia do Jim Morrison.
E amigos são aquelas pessoas que você vai encontrando, e alguns vão
ficando pelo caminho — faz parte também. As pessoas mudam, cada
um vai pro seu lado e pode se reencontrar mais adiante, ou não.
E que engraçado você falar que eu sou o cara dos melhores
réveillons. E realmente, porque eu morei em uma casa durante boa
parte da minha vida. E era uma casa grande e gostosa, boa de receber os
amigos, e eu fazia festas de réveillon muito generosas mesmo. Um
convidado levava seis amigos e o outro dizia: “Ah, mas eu trouxe dez
parentes meus de Vitória”. E eu falava: “Chega aí com os dez!”, ha ha ha.
Às vezes alguém comenta do nada: “Amei o réveillon na sua casa em
2006”, ha ha ha. E eu falo: “Ah é?”, e a pessoa: “É, foi ótimo, eu fui com a
minha prima, que é casada com seu amigo…”. Enfim, era uma casa muito
feliz e você estava lá, muitas dessas vezes!
Selton, o que a vida ainda não te trouxe nesses quarenta anos e o que
ainda faz parte dos seus sonhos? Do que você abriu mão no caminho?
Acho que abri mão de muita coisa pessoal e é isso que eu penso
quando digo que, nesses cinquenta anos de vida, eu penso em mudar,
virar alguma chave… Estou elaborando ainda o que será isso, mas talvez
dar um espaço maior entre os trabalhos, sem ocupar esse espaço com
mais trabalhos, sabe? Porque foi isso que fiz a vida inteira. Isso é a
pessoa fugir dela mesma, e eu não quero fugir de mim. Eu quero olhar
atentamente, com tempo, para minhas capacidades e falhas.
Não quero fugir do que eu sinto, de coisas ruins ou maravilhosas que
eu possa sentir. Eu quero abrir esse espaço sagrado pra mim. A vida
inteira eu abri espaços sagrados pro artista. Agora eu estou abrindo esse
matagal, no facão, pro homem. Pra ele ter o seu tempo. E acho que o
artista vai se beneficiar disso também. Esse cara precisa descansar mais.
Precisa baixar a poeira. São quarenta anos levantando poeira. Preciso
olhar com olhos livres tudo: pra dentro, pra fora, pros lados, pra frente.