Ebook Narrativa Oral Indigena
Ebook Narrativa Oral Indigena
Ebook Narrativa Oral Indigena
Narrativa Oral
Indígena
registro na Terra Indígena São Marcos
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Copyright © Devair Antônio Fiorotti, 2019.
Panton pia’: Registro na Terra Indígena São Marcos © Devair Antônio
Fiorotti
343p.
ISBN 978-85-61924-09-6
CDU 398
Boa Vista
UERR Edições
Wei Editora
2019
SUMÁRIO
Créditos, 9
Apresentação, 13
ENTREVISTAS
Clemente Flores e Manoel Bento Flores, 25
Manoel Bento Flores, 71
Armando Magalhães, 115
Valdélio Perez Ribeiro, 157
Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães, 183
Lucinézio Peres Ribeiro, 223
Sebastiana Peres dos Santos, 239
José Vitor da Silva, 253
Aprígio Ramos, 287
Áurea da Silva Galvão e Seu Genário, 299
Seu Oliveira, 309
Domício Pereira da Silva e Regina Santos da Silva, 319
A todos os entrevistados,
Principalmente a Clemente Flores e
Eduardo Magalhães
(in memoriam).
Agradecimentos
Agradeço primeiramente a todas as comunidades
indíge- nas do Alto São Marcos que permitiram a minha
presença em seu âmbito. Vocês são partes efetivas de
minha vida, de minha memória.
Aos alunos de Iniciação Científica, sem eles esse
trabalho não estaria pronto: Ana Maria Alves de Souza,
Eliana Almeida, Keyty Almeida de Oliveira, Leonor Cravo,
Michele Rubistein, Robson Félix de Souza, meus
agradecimentos.
Agradeço ao apoio do Paulino Batista, Airton Vieira,
Lucimar Sales, Rosiclei Liberal, Carmen Vera Nunes Spotti,
Huarley Mateus do Vale Monteiro, Karlyson Roberto Veras
Rodrigues.
Agradeço à Universidade Estadual de Roraima pelo
apoio e confiança no trabalho a ser desenvolvido, bem
como ao CNPQ pelo seu financiamento.
À Carla Monteiro de Souza, por ter me apresentado a
metodologia da História Oral.
Ao Rivelino Pereira de Souza e Zacarias Fernando de
Sou- za Loiola, meus agradecimentos pelas traduções de
Macuxi e Taurepang, respectivamente.
A todos que direta e indiretamente contribuíram para
realização do projeto.
9
CRÉDITOS
Dentro da primeira fase do projeto Panton pia’:
Narrativa Oral Indígena, registro e análise, seguem-se as
atividades desenvolvidas por cada membro, quanto à
coleta e proces- samento dos dados coletados. As
atividades dividiram-se nas seguintes funções:
entrevistador, assistente de entrevista, transcritor,
conferência de entrevista e copidesque. Algumas
atividades foram exercidas por mais de um componente
do grupo. A seguir estão os responsáveis, a atividade
exercida e as entrevistas trabalhadas. Algumas entrevistas
tiveram participação de mais de um informante.
AIRTON VIEIRA
Conferência de fidelidade: Armando Magalhães; Áurea
da Silva Galvão e seu Genario; José Vitor da Silva; Manoel
Bento Flores; Sebastiana Peres dos Santos; seu Avelino;
Valdélio Perez Ribeiro.
Copidesque: Sebastiana Peres dos Santos.
1
ANA MARIA ALVES DE SOUZA
Transcritora: Aprígio Ramos; Clemente Flores e Manoel
Flores; Domício Pereira da Silva e Regina Santos; José Vitor
da Silva; Manoel Bento Flores; Sebastiana Peres dos
Santos.
LUCIMAR SALES
Assistente de entrevista: Clemente Flores e Manoel
Flores; Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães;
Lucinete Peres Ribeiro; Manoel Bento Flores; Sebastiana
Peres dos Santos; Valdélio Perez Ribeiro.
MICHELE RUBISTEIN
Transcritora: Armando Magalhães; Letícia Barbosa e
Eduardo Alexandre Magalhães.
ROSICLEI LIBERAL
Entrevistadora: dona Rosa, Filha Antonina, Filha Neli;
dona Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua João.
Apresentação
Panton pia’ é um livro de histórias. “Panton” significa
história em macuxi e “pia’ ”, junto, perto: junto, perto
da história. Isso a princípio já seria muito, principalmente
quando diz respeito a histórias indígenas, a suas narrativas.
Mas tornou-se muito mais para mim, quase uma questão
1 de honra, pois é uma tentativa de contribuir no processo
Minha orientadora de
Mestrado e Doutorado, de valorização dos indígenas do Alto São Marcos,
pela Universidade de Bra-
localizado no município de Pacaraima, em Roraima, de três
sília.
etnias: os indígenas macuxi, taurepang e wapixana.
Cheguei em Boa Vista há doze anos e ainda ressonam
até hoje as palavras de Ana Vicentini de Azevedo: 1 “Já
pensou o que você pode estudar lá?” Estávamos
conversando sobre os estudos dos aspectos mitológicos
indígenas, quando ela pronunciou essas palavras.
Contudo, quando iniciei as entrevistas, veio o primeiro
susto: onde estaria o que bus- cava? Onde estariam as
histórias mitológicas desses povos, as grandes narrativas
que buscava? Simplesmente, da forma como imaginava,
elas não surgiram e nem mais existiam na boca da grande
maioria dos entrevistados. Todavia algo novo surgia nessas
entrevistas: a história de vida desses in-
1
divíduos, tão parecidas a da grande maioria dos brasileiros:
explorados, escravizados algumas vezes, passando por um
processo de angústia diante do contato com a
modernidade e seu mercado cultural.
O presente material é parte do resultado do projeto de
pesquisa intitulado Panton pia’: Narrativa oral indígena,
registro e análise, que até o momento se focou nas terras
indígenas do Alto São Marcos e Raposa Serra do Sol, está
também localizada nos municípios de Normandia, Pacarai-
ma e Uiramutã, em Roraima. Esse projeto é financiado
pelo CNPQ desde 2007.
Até 2014, foram visitadas 23 comunidades e realizadas
39 entrevistas (27 homens e 12 mulheres), distribuídas as-
sim por etnia: 24 macuxis; 6 taurepangues; 6 wapixanas; 1
indeterminada. Entre esses, merece menção uma etnia
cuja tribo enquanto tal não mais existe: uma sapará-
macuxi; e outro que menciona wapixana e sua relação com
o nome karapiwa, sinônimo de wapixana ou mesmo da
mistura de wapixana com macuxi. Vinte dos entrevistados
residem no lavrado roraimense e 19 na região das serras,
ao redor da cidade de Pacaraima, sendo que as
comunidades das serras são em quase totalidade muito
novas. Essas comunidades foram criadas e têm-se
desenvolvido muito na região por causa da proximidade
com o município de Pacaraima. Com exceção das
comunidades taurepangues da serra, principal- mente
Sorocaima I e Boca da Mata, e algumas macuxis, como
Aleluia e Sol Nascente, as outras comunidades apresentam
acentuada presença de indivíduos de etnias mistas, bem
como é muito comum encontrar indivíduos de pais cujas
etnias são diferentes, principalmente com casamentos
entre macuxi, taurepang e wapixana.
Até o momento, há quatro volumes prontos: três de
narrativas e um de cantos (eremukon) tradicionais. Este
volume é o primeiro a ser publicado. Neste material,
alguns relatos chamaram muita atenção. Por exemplo, a
paixão de um fazendeiro por uma jovem indígena. Ao ser
desprezado, ele simplesmente expulsou toda comunidade
1 das terras
1
dos próprios indígenas, que fazendeiro considerava suas.
Noutro momento, encontramos histórias de pessoas que
eram dadas para serem criadas pelos fazendeiros. Esses
indígenas eram simplesmente escravizados, trabalhando
de graça nas fazendas, apanhando muitas vezes, sendo
tratados como animais. Ainda, a resistência dos indígenas
é algo a ser ressaltado. Quando da demarcação, muitos
indígenas foram literalmente guerreiros ao lutar por suas
terras.
Longe de um imaginário nacional que associa o
indígena a uma visão romântica e idealizada, um índio com
belos co- cares, nu ou seminu, grandes e fortes, os
entrevistados do Alto São Marcos são indivíduos marcados
por um processo de desvalorização da própria cultura.
Com a chegada dos brancos, principalmente da igreja, sua
língua foi chamada de “gíria”, com toda carga pejorativa
2
possível. Das comu- nidades, com a chegada dos
Devair Antônio Fiorotti.
“Narrativa oral em ques-
fazendeiros, eles foram para fazenda ser empregados ou
tão: cultura em contato na cozinha ou como boiadeiros. Muitos também foram
e imaterialidade na TI São
Marcos-RR”. In Allison trabalhar no garimpo, principalmente na Venezuela.
Leão (Org.). Amazônia: Li-
teratura e cultura. Em relação à história de seu povo, panton, a igreja foi
Manaus: UEA, 2012.
nefasta. Ela está presente na vida desses povos há pratica-
mente dois séculos. A partir dos relatos, não houve
3
Devair Antônio Fiorotti . nenhum tipo de tentativa de conciliação entre o mundo
“Para pensar a realidade cristão e a realidade indígena. Como algumas entrevistas
indígena atual: diversida-
de cultural e identidade denunciam, simplesmente seria pecado recontar essas
indígena na TI São
narrativas.2 Com isso, em algumas comunidades, há
Marcos. In Carla Monteiro
de Souza [et all]. Boa pessoas que não sabem essas histórias, a não ser alguns
Vista:EDUFRR, 2013.
resquícios. Por outro lado, quando há ainda anciões que
sabem essas narrativas em al- gumas comunidades, faltam
pessoas para ouvi-las. A maioria, pelo contato com o
mundo não índio, não se identifica com essas narrativas.3
Esse trabalho propõe-se a colaborar no entendimento
do que seria o indígena da Região do Alto São Marcos, a
partir do contato direto e contínuo com o mundo do outro,
do nosso mundo não índio. Ainda, buscar contribuir no
processo de valorização identitária desses povos, já que
muitos já não se identificam como indígenas, por causa do
1 preconceito e da
1
falta de informação dos não indígenas e mesmo dos en- trevistas, algumas vezes,
próprios indígenas. Digo dos próprios indígenas, porque também fizeram perguntas.
muitos não entendem o processo de contato com o não Ainda,
índio e simples- mente o vivem sem nenhuma reflexão.
Metodologia de trabalho
As narrativas aqui apresentadas seguiram a
metodologia da História Oral, traduzida nos seguintes
passos: Entrevista; Transcrição; Conferência de
Fidelidade.4
Entrevista
Foi elaborado um roteiro para entrevista, contudo ele
não era rígido, podendo ser modificado no decorrer da
entrevis- ta. Essa flexibilidade objetivava não engessar a
entrevista, já que qualquer entrevista está sujeita ao
desconhecido, que é o outro, o entrevistado. Em
praticamente todas as entrevistas o caminho era guiado
por certas “deixas” do entrevistado, somente depois
retomava-se o roteiro. Por questões técnicas, o roteiro
somente não foi adotado na comunidade Boa Esperança.
O conteúdo do roteiro tratava desde a identificação do
entrevistado, passando pela realidade da comunidade
onde ele mora, até perguntas relacionadas às histórias de
seu povo, como pantonkon.
A maioria das entrevistas foram satisfatórias, em que o
entrevistado conseguia desenvolver o raciocínio, interagir
e até caçoar do entrevistador, como no caso da dona
Letícia, da comunidade Santa Rosa. Em outras, as
respostas eram monossilábicas. Contudo, optou-se em
também incluir todas as entrevistas transcritas aqui, pois é
difícil definir o que é efetivamente irrelevante dentro dos
Estudos Culturais, locus em que esse trabalho propõe a se
inserir.
Com exceção da comunidade Nova Esperança, todas
as outras entrevistas foram realizadas por Devair Antônio
Fiorotti. Além disso, vale destacar que os assistentes de
2
4
O trabalho guiou-se prin- cipalmente pelas orien- tações de Verena
Alberti: Manual de História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
5
Apesar de um uso cor- rente da palavra “caboco” para se referir
a indígenas: entre brancos e indígenas; entre indígenas e indíge-
nas, índios mais informa- dos têm marcado posição em não usá-la,
exigindo que sejam chamados de índios, reafirmando sua
indianidade em oposição à origem e significado tra- dicional da
palavra “ca- boclo”
2
modernas, como coordenador deste projeto, custou-me
mui- to essas adequações, sabendo da importância de
valorizar a diversidade linguística brasileira. Contudo, com
as adequa- ções, buscou-se que os entrevistados não
sofressem em suas comunidades preconceito linguístico, já
que todo material voltou para as comunidades de origem.
Essa preocupação justifica-se pois, querendo ou não, ao ler
essas narrativas, o leitor está diante da escrita. Ainda, a
maioria dos entrevista- dos são semianalfabetos, já
sofrendo em demasiado pressão social. Assim, buscou-se
não expô-los a mais uma situação de pressão social.
Contudo, na tentativa de preservar alguns aspectos da
oralidade e o estilo dos entrevistados, algumas atitudes
foram tomadas por mim, enquanto responsável direto por
todo copidesque:
1) O verbo “estar”, conjugado na terceira pessoa do
singular, foi adotado como “tá” no lugar de “está”,
assim como “tava” no lugar de “estava”. Ao ouvir as
narrativas, constatei que todos informantes usavam
o verbo nesta forma reduzida. Inclusive eu, a
princípio numa situação linguística privilegiada,
também o usava assim. Quando eu adequava o
verbo para “está”, a narrativa soava artificial. Em
alguns casos, também, optei em deixar a forma
“tão” no lugar de “estão e, mais raramente, “tô” no
lugar de “estou”.
2) A preposição “para” foi adotada como “pra”, nada
mais distante da oralidade brasileira desses
informan- tes do que um “para”. Muitos deles
usavam inclusive uma forma mais reduzida: “pa”,
que foi adequada para “pra”.
3) Ainda, quando a preposição “pra” estava diante de
um artigo, foi aceita a contração, como presente na
orali- dade: pra + a = pra (ex.: para a gente = pra
gente); pra
+ o = pro (ex.: para o homem = pro homem). O
mesmo foi feito com o plural: pra + as = pras e pra +
os = pros. Observem que, se não houvesse a
2 contração, em “pra a gente”, por exemplo, para
“pra gente”, haveria um
2
distanciamento grande da oralidade.
4) A colocação pronominal foi deixada praticamente
em todos os casos como no original: “me fala” e não
“fala-me”, por exemplo. Em alguns casos, também
foi incluído o pronome ou mesmo retirado.
5) A pontuação buscou seguir aspectos sintáticos, a
partir da ideia geradora da frase. Essa foi uma das
grandes dificuldades deste trabalho pois, ao
transcrever, não se ouve a pontuação,
diferentemente da palavra. Ela é colocada a partir da
sintaxe frasal, seguindo os concei- tos de ordem
direta da língua portuguesa, inversões,
deslocamentos sintáticos, ao mesmo tempo em que
se busca preservar a ideia geradora da frase.
6) Ainda foi preservado aquilo que, para alguns, seria
arcaísmo. Por exemplo, a palavra “entonces”, já pra-
ticamente em desuso, vive na boca de vários
falantes de Roraima. Não se sabe ao certo se pela
presença da fronteira ou pela própria história da
Língua Portugue- sa, que registra essa palavra como
pertencente a ela.
7) Outro aspecto que foi preservado é uso da segunda
pessoa do singular com o verbo na terceira do singu-
lar. Frases como “se tu andou no lavrado, tu deve
ter visto.” Foram mantidas. Caso fosse adequada
ficaria assim: “se tu andaste no lavrado, tu deves ter
visto.” Essa mudança seria, no mínimo, uma
agressão às ca- racterísticas da oralidade desses
falantes bem como da quase totalidade dos
brasileiros, que descartaram essa conjugação de
suas falas.
8) A palavra mais complicada de se trabalhar foi o
nosso tão conhecido “né”. O que fazer com ele?
Simplesmen- te retirá-lo, como sugere muitos
manuais? Voltá-lo para sua forma desenvolvida: “não
é?” Outra questão: ele sempre é seguido de uma
interrogação? Essas dúvidas permearam todo o
trabalho de copidesque. Muitos “nes” foram
2 retirados, principalmente quando eram excessivos e
estavam no meio do período, sem uma função clara.
Também muitos foram preservados,
2
principalmente quando o entrevistado testava o
canal de interlocução com o entrevistador. Nesses
casos, foi colocado o sinal de interrogação. Noutros
momentos, foi deixado sem sinal de interrogação,
quando o en- trevistado o utilizava como uma
característica de sua fala. Vale ressaltar que o “né”
não esteve presente somente na fala dos
entrevistados, mas também na fala do entrevistador.
9) Muitas falas do entrevistador foram retiradas para
dar sequência à fala do entrevistado. Isso ocorreu
quando o entrevistado testava o canal com um
“né?”, por exemplo, e o entrevistador respondia
“sei” ou “aham”. Essas confirmações foram
retiradas bem como algumas falas que excediam ao
papel de en- trevistador e eram mais comentários
pessoais sobre aspectos cotidianos.
10) Optou-se em escrever a palavra “viche”, com “ch”,
pois não foi encontrado registro em dicionários de
sua escrita.
11) Em frases como “nós fundamos ela.”, em que “ela”
ocupa a função de objeto, em nenhum momento
foi feita a adequação para “nós a fundamos”, como
propõem gramáticas e manuais de língua
portuguesa. Tal opção buscou preservar o aspecto
da oralidade do informante, tendo em vista que, em
nenhuma en- trevista, apareceram estruturas como
sugeridas pela gramática normativa ou manuais, em
relação a esse uso pronominal.
12) Também foram conservados alguns usos não
diciona- rizados, como “rancar”, para “arrancar”.
13) As falas entre aspas não sofreram todas as
alterações acima, principalmente quando elas
indicavam falas de animais, de matutos, de
personagens da cosmovisão indígenas. Nessas falas
é possível perceber a escrita mais próxima da fala
dos indígenas.
Ainda, os cantos e pajelanças, quando em língua nativa,
foram trazidos no original. Depois de transcritos, foi efetu-
3 ada uma tradução literal desses textos. Em geral, o próprio
3
Projeto: Panton 2
4
“Destar” de “deixa es- tar”.
Projeto: Panton 2
Coitados! Olharam, “Isso daqui é cabelo de porco, não!
não! não é nosso caminho não! Umbora por aqui!” Aí
pegaram o caminho do inimigo. Andaram um bom pedaço.
No caminho, no lavrado, têm muitas qualidades de
pássaros, que ninguém pode chamar qual é o nome do
pássaro. Aí estavam querendo flechar ele pra comer,
porque nós, nós gostamos de comer pássaro pequeno,
flechado com a zarabatana. Eu gostava. Agora não, agora
eu estou comendo peixe, agora peixe que vem no gelo,
qualificado, mal, comida mal. Aí foram embora, e a mãe na
5
Nesses pontos, há contí-
frente. Quando logo na frente chegou na casa de um
nua mudança de cidadão lá, era dona Sapa, é Sapo5: “Que foi? Que foi se-
entonação de voz,
dependendo do tipo de
nhora? Pra onde a senhora vai?” “Não, eu tô indo pra cá,
personagem. atrás do meu marido que saiu.” “Ah não! Por onde ele
O narrador usa de forma saiu?” “Ele saiu lá pelo pena de pássaro.” “Não, esse aí é
irregular em português as
terminações de gênero.
meu caminho.” Maldito Sapo! Mentiu! O marido tava
Sua língua primeira é o caçando que era onça, inimigo do pai do Macunaima. A
taurepang.
onça tava caçando no mato. Aí ficou lá, ficaram lá. De
repente, este pássaro que estavam perseguindo pra
flechar avisou, ele canta. ([pergunta pro en- trevistador]
Você não viu? Se tu andou no lavrado, tu deve ter visto).
Pássaro que avoa longe e abre a asa, ele canta. E logo
quando sobe de novo ele abre asa, ele canta de novo.
Bonito o passarinho! Aí esse pássaro conta história que
aconteceu com a mãe dele, a mãe desse Macunaima. Aí
disse: [cantan- do] “Meu filho, mãe de vocês tá
envenenada...” Cantou. “Tu viu? Tá cantando! Vamos
espantar de novo!” Aí foram lá. Quando abre o bico:
[cantando] “Meu filho, mãe de vocês foi envenenada...”
“Que foi?” “Mamãe foi envenenada! Umbora lá!” Aí
subiram, deixaram este passarinho, deixaram o pobre do
passarinho. Logo que chegaram, não tinha ninguém, só a
mulher, mulher Sapo. Aí quando olhou: “Coitado, meu
filho, pra onde vocês vão?” “Nós tamo procurando
mamãe, não passou por aqui não?” “Não, não passou
não...” Mas esse esperto, Xicö, tava olhando, assim no
geral, ele olhou pra mãe dele, tava guardada no jamaxim lá
pendurado. Aí deixaram o machado pra cá, e o outro pra
cá [faz movimentos pros lados], zarabatana, cada um
deixou suas coisas. Aí ficaram tristes, sabe que a morte da
2 Projeto: Panton
mãe, do pai é triste,
dá tristeza! Aí eles
diziam: “Agora, o
que nós vamos
fazer? O que é que
nós vamos fazer?”
“Não sei...” Aí
menor, mais
esperto, disse:
Projeto: Panton 2
“Eu vou entrar no ventre da mãe, eu vou entrar no ventre dentro da casa procurando
da mamãe agora!” “Será?” “Sim, umbora entrar!” pra comer coisa crua.6 Aí ela
Deixaram o machado, deixaram tudo que carregavam. Aí falou: “Olha, meu
se tornaram, se converteram [em] besouro. Entraram no
ventre da mãe, ficaram lá dentro. Cinco horas da tarde
chega o inimigo, a onça, não tinha achado nada, [de] caça.
Disse: “Mamãe”, não, mãe não, é o esposa, “Mulher, o
que é que tu achou?” “Não achei nada não!” O que é que a
velha vai achar? “Aqui ninguém achou nada.” Quando
olhou assim viu essa mulher lá dentro do jamaxim. Aí
puxou e derrubou no chão. Tirou bucho. Aí começaram a
cozinhar, coitado. Aí acharam dois ovos dentro, tiraram
eles, tinha se convertido assim como ovo, mas era duro. Aí
disse: “Achei comida pra mim agora.” Quando colocou na
boca não podia mastigar, tava duro. Borracha nunca se
mastiga, né? Assim que tinha convertido ele, aí procurou
comer, não podia: “Vamos deixar então.” Aí querendo
cozinhar, não podia cozinhar porque este ovo, tu sabe que
quando o fogo arde, a água ferve, mas estes, estes
bichinhos, Macunaima tava lá dentro d’água, a dona tava
querendo cozinhar, mas não ferveu. O bichinho cantou
pedindo ajuda pra esfriar essa água, pra não ferver. Isso
era pedindo mar, mar nunca se seca. Esta história é muito
impres- sionante, meu irmão! Sabe por quê? Porque
também isso aí presta pra curar a gente também, é o
remédio, é a oração dos indígenas. Aí dizendo: “Não tá
cozinhando não. Vamos deixar num...”, aí colocaram na
cesta. O senhor conhece essa cesta, né? Cesta de colocar
água, qualquer coisa. Aí colocaram lá. Aí comeram lá na
casa da mãe deles, passaram lá. Aí tava lá dentro da cesta
o que conseguia; o que a onça conseguia, colocavam lá na
cesta; eles comiam de lá mesmo da cesta. Colocavam
banana, comia. Qualquer coisa que essa dona colocava na
cesta não aparecia. Aí ficaram pensando: “Por que é que
desaparece as coisas que eu coloco aqui? Minha [pecinha]
eu coloco aí; o banana eu coloco aí; o batata assada eu
coloco aí. Não aparece por quê?” Aí a velha falou assim.
Enquanto este marido dela tá pro mato, porque a onça
nunca para de caçar, né! Todo dia tá caçando. O que é que
ele vai fazer? Ele não vai brocar roça. E tá sempre só
3 Projeto: Panton
6
No original ele usa a va- riante “cruda”.
Projeto: Panton 3
filho, será que vocês tão comendo o que eu tô colocando
aqui? Se convertam de novo pra, pra vocês me ajudarem a
derrubar roça pra mim, pra mim plantar banana, pra mim
plantar batata.” Falou tudo, e eles escutando dentro dessa
cesta aí [aponta com dedo]. Um dia apareceram, se
tornaram homem de novo. “Olha vovó, eu quero que
vocês nos leve pra roça...” “Eu não vou andando não, de
jeito nenhum!” Aí ela pegou, ela colocou na cesta, levou
pra roça. Aí ela levou dentro do mato. O que é que eles
fazem? Pega o terçado, “Tchan!” “Tchan!” “Tchan!”
“Tchan!”, dez hectares de terra, só até meio-dia. De meio-
dia pra tarde, tudo terminado. Eles tinham machado.
Quando chegavam: “Quem foi que derru- bou roça lá no
caminho?” “Não sei não, fui eu mesma que fez”, dizia a
dona. “Tá bom, tá bom, tá bom, tem problema não!”
Passou uma, duas semanas, três semanas. Chega a hora de
queimar, tocar fogo. Aí convidaram essa dona. Aí vai
começar a vingar. Os Macunaima já vão, já vão começar a
vingar a morte da mãe. “Vovó, você nos leva de novo pra
roça pra nós tocar fogo?” “Nós vamos conseguir um
pedaço de pau aceso [...], pra tu acender fogo no meio?”
“Tá bom!” Coitado do Sapo que não sabia. Aí pegaram um
pedaço de fogo. Aí mandaram ela tocar fogo lá no meio:
“Vamos tocar assim na beira!” Aí ela ficou lá no meio. Os
Macunaima rodea- ram de fogo. Ela (sopra), não acende.
Quando o pau de lenha tá meio cru assim não, não, não
acende, não pega fogo não! Agora quando ele tá bem
seco, qualquer coisa ele acende. Aí quando ela olhou,
quando viu, tudo tava infestado de fuma- ça. Quando ela
levantou a vista não tinha mais o Sapo pra ela. Aí
amaldiçoou, esse Sapo amaldiçoou esses rapazes: “Vocês
não vão ficar dentro d’água. Vocês não vão ficar na barriga
de jacaré não. Vocês não vão ficar na barriga de sucuriju.
Não vão ficar em nenhum lugar, em nenhum desses
animais, vocês não vão ficar. Vocês vão morrer!” Mas essa
dona Sapa nomeou barranco, nomeou barranco. Ainda
mais tem aquele (não sei como se chama a seiva, a seiva
3 Projeto: Panton
aqui na Venezuela, porque eu falo mais espanhol do que
português, porque já
Projeto: Panton 3
aprendi falar espanhol, né!?) E da seiva que ele “Tchan!”, empurraram,
(chamamos, aquele mato, aquele que solta algodão, “Tchan!”, ficou enfiada a
samaúma, sim.) Não chamou também não. Duas coisas Onça. Até aí acaba a história
que ela não chama. Agora que ela chamasse: “Vocês não da Onça que já
vão ficar debaixo de samaú- ma? Vocês não vão ficar nem
embaixo do barranco, já tinha morrido.” Mas não chamou
samaúma no barranco. O que é que eles fazem? Se
esconderam lá debaixo do barranco, samaúma tava lá em
cima. Aí quando olhou, chegou fogo, aí pluft! Explodiu.
Logo quando ela explodiu, dessa Sapa queimando
apareceu esse Jaspe.7 (Você conhece ele, né? Assim Jaspe).
Aí sapa queimada. Assim essa daí é a história que
Macunaima tá começando a fazer. Quando ela explodiu
virou pedra, esse Jaspe. Aqui no Mapauri, na Venezuela,
tem muito lugar. Tu já andou por aí?
DF: Não, mas eu já conheço, já vi a pedra...
CF: Tu viu encarnada assim? Aí foram embora.
Vingaram a morte da mãe e foram embora. Pegaram o
machado e foram embora. Cinco horas da tarde chega o
inimigo, Onça, marido da finada Sapa. “Cadê? Cadê?
Cadê?” Aí, tu sabe que onça sente o rastro da gente. Aí
seguiram o rastro dele. Destar que eles estavam lá
brincando. Quando ele vinha negaceando assim [balança o
corpo, como um felino], aí eles sentiram, aí eles viraram,
falando pra cá e vai pra lá e sentiram de novo virando pra
cá. Tu sabe o que é pulga Xicö, Xicö? Nós cha- mamos Xicö,
pulga. Daqui “tchan” ele pula pra lá, pula pra cá, assim ele
fazia [balança as mão em sinal de movimento]. Esse irmão
dele menor era mais valente e ágil. O que é que ele fazia?
Xicö faz um buraquinho. Coloca uma vara bem
apontadinha, tava pulando por cima. Aí agora, quando ele
chegou lá perto dele, disse: “Agora peguei vocês!” “Não,
vamo umbora brincar com nós?” “Então umbora!” Então,
escuta bem porque ele vai vingar agora, vão vingar a
morte da mãe ainda. Aí porque comeram, comeram então.
Tem que vingar, aí : “Vamo brincar aqui com nós?”
“Como?” Também Onça é besta, né! “Como?” “Vamo pular
assim, como nós tava pulando!” Tava bem apontado, bem
amoladinho e apontado. Aí mandaram pular ele. Aí
3 Projeto: Panton
7
Pedra, da família Calcedô- nias, principalmente em sua variação
vermelha, muito comum na região da Gran Sabana na Venezuela,
aos redores do Monte Roraima. Inclusive há uma cachoeira com
esse nome na região, muito visitada por turistas, Cachoeira de
Jaspe.
Projeto: Panton 3
vingaram. Aí continuaram viajando. Aí apareceu Cutia,
acom- panhando, acompanhante deles. Apareceu Cutia,
quando se completa três: Macunaima, Xicö, Cutia. Viajaram
dentro da mata, viajaram, viajaram, viajaram. Chegaram
numa casa, numa casa velha, uma mulher lá, porque [eles]
não tinham fogo, não tinham fósforo, não tinha nada. A
mulher fazendo beiju com o fogo embaixo do forno. “O
que é que nós vamos construir agora? O que é que nós
vamos fazer?” Eles pega- vam peixe, comiam cru, [assado]
no sol, seco, eles comiam sem fogo. O que é que eles têm?
“Eu vou pegar fogo. Tu fica aqui.” Irmão maior que tá
cuidando do irmão dele, porque ele parece que tava um
pouco assim, ele tava muito atrevido com irmão dele. Aí
irmão dele foi, aí se converteu [em] grilo. Tu sabe aquele
bichinho, grilo?
DF: Conheço.
CF: Sim. Se converteu. Aí essa mulher que tava fazendo
beiju, ele mordeu na coxa dela. Aí a mulher olhou, era grilo.
Pegou porque ele faz um talinho de fogo aceso. Colocou
na bunda dele e saiu. Levou fogo. Aí o outro lá esperando,
pre- parado. Aí acenderam fogo, continuaram viajando.
Chegaram na beira do rio, tava o Senhor Garça pescando.
Coitado, tava pescando. Como ele pegava peixe? Não
pegava peixe, não! só de noite assim. (Não sei como eles
pegavam também? Isso aí não tá bem esclarecido também,
porque o que eu estou contando é o que eles me falaram,
me contaram. Não sei como eles pegavam peixe e comiam
cru.) Agora, depois que pegaram esse fogo não deixaram
apagar. Aí chegaram lá. Senhor Garça tá pescando,
pegando aimara, aimara, trai- rão. Nós chamamos aimara,
na minha língua, aimara, trairão grande. Aí foram lá.
“Agora vamos.” Aí ela torou o anzol dele pra não pescar. O
irmão dele maior: “Vou tirar. Espera aqui!” “Cuidado!”
Quando ele saiu, foi lá. Garça jogando “Tan!”, ele pegou,
tirou, quando ele bateu no pescoço, disseram: “Ei
companheiro, me dê esse peixe, rapaz!, pra mim!” “Que
peixe? Eu peguei um bocado!” “Então me dá!” Ele deu um
pequeno assim, “Não, não, quero esse aqui mais maior.”
Ele colocou no ombro e foi embora. “Quase me mata,
3 Projeto: Panton
rapaz bateu aqui no meu pescoço.” “Olha aí, eu sabia, eu
vou tirar
Projeto: Panton 3
o anzol dele.” Caiu dentro d’água. O que é que ele faz? Se ALGUÉM: Pupu.
mexeu no anzol do Senhor Garça, enrolou no toco de pau
lá dentro d’água. Aí tocou assim como se fosse peixe no
anzol. “Pan”, torou o anzol dele. Agora sim, nós temos
anzol. Aí continuaram viajando, viajando por aí dentro do
mato. Não era no campo, não. Era dentro do mato. Aí
acabou rancho, não tinha mais rancho, não tinha rio, não
tinha nada onde pegar peixe. O senhor Cutia, o que é que
ele faz? Tu sabe que cutia anda por aí na roça, [pra]
conseguir batata, conseguir jerimum, conseguir melancia.
Ele consegue, né. Então, esse aí, esse aí era o pensamento
do Cutia. Quando chegaram no meio da mata, não tinha
nada pra comer. “Vamo passar mais dois, três ou quatro
dia, vamo passar aqui pra vê se nós conseguimo
alimentação.” Aí Cutia, o que é que ele faz? Ele andava por
aqui, andava por aqui [aponta com as mãos pros lados],
até que chegou nessa fruta. (Ai, ai, ai, essa fru- ta não sei
como nome dessa fruta pupu,8 tem aquela fruta
redondinha...)
8
Fruta parecida com toma- te, comestível, um pé com espinho.
Praticamente não existe mais na região, ne- nhum informante soube
o nome em português.
Projeto: Panton 3
CF: Pupu na minha língua, taurepang. Aí ele achou essa
fruta. Ele comeu e não trouxe nada. “Shiiiiiiii”, o ar saiu. O
Cutia comeu. Também parece que tava com muito sono.
Ele tava dormindo. Aí abriram boca, tiraram carocinho
dessa pupu que eu estou falando. Tiraram, provaram. “Ai
coisa doce! Vamos descobrir ele!” Mas também era gente,
era mal, era ruim esse Xicö, que é mais ruim. Mais esperto,
mais inteligente ainda. Aí disse, o Macunaima disse pro
irmão dele: “Vamos descobrir devagar.” O que é que eles
fazem? Apareceu aquele Quatipuru. Tu conhece aquele
quatipuru? Aquele que sobe ligeiro no pau?
DF: Ah! O quati?
CF: Quati, quatipuru, pequenininho assim...
DF: An...sei.
CF: Entrou no meio, aí entrou no meio.
DF: Já são quatro.
CF: Já são quatro, já. Aí disse “Olha, tu vai seguir esse
Cutia até ele chegar no pé de pupu. Aí ele voltou. Aí:
“Amanhã tu vai descobrir.” Aí esse Quati foi mais por cima
da vara, do galho. Lá em cima tem outro galho [vai
apontando com o dedo, como se ali estivessem os galhos].
Ele foi, Cutia que- rendo olhar, não tinha ninguém. Chegou
até no pé de pupu. Quando chegou, era pupu no chão,
todo maduro. Pegou, apanhou lá e voltou. O quati foi e
voltou. Chegou lá, “Achei, eu vi onde tá.” “Amanhã vamos
derrubar.” “Olha aí, tão querendo estragar, tão querendo
estragar.” Aí a história de Xicö, mais valente do que o
irmão dele. Aí voltou e “Ai, não tô conseguindo nada
aqui.” Trouxe outra fruta que não era de comer muito, né.
Aí “Não, tu achou pupu, né?” “Não, olha aqui, cê trouxe,
olha aqui. Sim achei, umbora amanhã, umbo- ra comer.” Aí
convidaram. Aí convidaram, se mudaram de um
acampamento pra outro, lá no pé de pupu. Chegaram lá.
Tava no chão, tudo maduro, em vez de comer, em vez de
encher barriga, esse Xicö disse: “Eu vou derrubar!” “Não
senhor, tu vai estragar essa fruta.” Era longe a história, né!
História que nós estamos falando. Aí ele disse: “Não, eu
4 Projeto: Panton
quero comer
Projeto: Panton 4
lá de cima.” “Não irmão, deixa, não derruba, se não tu vai
estragar fruta. Quem é que vai colher tudo?” “Não, nós
vamo comer só um, depois nós guarda.” Rapaz, ele pegou
macha- do e “pan”, derrubou! Estragou tudo. Agora
passaram um monte de dias comendo. E foi, quando
passaram os tempos. Passaram dois, três semanas. Aí
acaba, apodrece também. Aí começaram a viajar de novo.
Andaram, andaram, comendo fruto que não é bom. Aí
chegaram num lugar, “Vamos passar dois dias aqui pra ver
se nós conseguimos comida enquanto Cutia acha outra.”
Já tão sabendo que ele consegue. Aí pa- raram dois dias lá.
Cutia vai pra lá, vem pra cá. Achou pé de banana. (Rapaz,
falando nisso lá no pé do Monte Roraima, já ouvi dizer que
tem a terra boa, fecunda, ela dá banana assim [sinal de
tamanho grande com as mãos], estavam me falando. E pé
de ubim que por aqui, nessa mata, é assim [faz gesto de
tamanho pequeno]. Lá não, lá é assim [de tamanho maior].
Lá no pé do Monte Roraima, segundo me falaram.) Tão
vindo de lá pra cá, saindo de Monte Roraima, eles tão
saindo. Aí Cutia, porque já tava acostumado a conseguir.
Um dia, achou essa fruta de banana, pé de banana, e
comendo não trouxe nada...
DF: De novo...
CF: De novo, porque ele tá sabendo que outro compa-
nheiro é muito valente pra derribar. Em vez de comer o
que tá no chão, ele fez foi derrubar o pé dele. “Agora eu
não vou contá pra ninguém mais não. Chegou”, “Olha
aqui, umbora comer.” AÍ trouxe fruta que não era boa. Aí
[sopro de peido]. “Ah! De novo, ele tá peidando banana...”
“Será que ele achou pé de... Será que ele achou banana? O
que é que ele comeu? Abre a boca dele!” Era migalha,
resto de banana.” É banana! Amanhã que eu vou
descobrir”, o Quati falou. “Tá bom!” Aí sim, tava já
sabendo que ele é muito esperto também, o akuri, nós
chamamos akuri, a cutia.
DF: A cutia.
CF: Akuri. Na minha língua eu falo akuri. Ele tá sabendo
que eu estou falando do animalzinho. Ele foi atrás. Chegou
4 Projeto: Panton
no pé de banana, lá por cima. E Cutia, coitado, querendo
olhar,
Projeto: Panton 4
nada, não via nada. Chegou lá e ajuntou a fruta que não era
bom de comer e apanhou, apanhou. “Ah, não tem nada
não, rapaz, pra comer! Umbora comer essa fruta, fruta que
não é bom pra comer.” “Olha, tu achou banana, né?”
“Não.” “Sim, tu achou! Descobriu.” “Não, não achei não.”
“Olha, ele trou- xe...” “Sim, eu sei. Amanhã nós vamo
comer lá.” Aí foram. Aí foram embora. Chegaram lá no pé
de banana. Banana naja, baié, banana comprida. De tudo
pé de banana. Tudo, tudo, tudo, tudo, de tudo. As bananas
que existem aqui no mundo agora foram espalhadas a
partir daquele momento. Chegaram lá, banana no chão,
tudo apodrecendo, caindo, madurinha. “Umbora comer!”
Aí olhou, Xicö tava olhando por cima: “Lá tem, de novo,
amadurecendo. Vou derrubar.” “Não senhor!” “Sim, vou
derribar!” Aí começaram. Pegou o machado. “Pan.” Rapaz,
esse menino foi muito ruim. Em vez de embaixo, estando
lá embaixo, ele derriba. Aí o que é que ele faz? Aí tava
derrubando já. Nesse momento, Cutia, coitado do Cutia,
era assim, pode ser que ele tinha couro branco ou couro
preto, assim, uma coisa assim, do Cutia, né! Então, cada
vez que dormiam por aí, nas matas, tiravam mel, nós
chamamo wuan.
DF: Wuan.
CF: Mel. Wuan é nome da gente também. Juan é João.
Mas na minha língua é wuan, não é Juan. Sim wuan. É
abelha.
9
MF: Mel de abelha.
Há certa incoerência no
uso do feminino ou plural,
CF: Mel de abelha. Aí, ele amontoava cera, cera de mel.
entre “esse Cutia” e “essa
Cutia”. Como não foi pos- Como essa9 Cutia fez? Conseguiu um pau cheio de oco por
sível rever o informante,
pois ele faleceu, optamos
dentro. Tu sabe que ele tampou todos os buracos que
em deixar como está, já apareceram com essa cera viva que ele ajuntou da abelha.
que Cutia, nesse caso, é
uma personificação Fechou, amontoou lenha, amontoou banana que tava
mitológica. recém-
-caída, verde, tudo amontoou dentro do oco de pau. E
ficou lá, enterrado. Ele se preparou, esse Cutia se
preparou. Os outros Macunaima, Xicö não, não se
prepararam não, não se preveniram. O que é que eles
fazem? Aí começou cair pé de banana. Tu sabe que tem
4 Projeto: Panton
muitas árvores,
também grande
igual a ele.
Engatou. O cipó
aguentou na ponta.
Aí obrigam coitado
do Quati: “Vai torar
aquele cipó, senão
não cai.” Ele,
Projeto: Panton 4
tu sabe que ele roi também ligeiro.
D F: Ele é um roedor.
CF: “Tchan.” Torou. Caiu. Saiu muita água do pé de
bana- na. Tu sabe que banana tem muita água. Sim. Aí
tinha muita água. Tinha dois pés de palmeiras, um de najá,
um de... Deixa me lembrar: outra palmeira, tem de várias
qualidades de palmeiras. Aquele tal de pé de bacaba, mas
não é bacaba desse o’ nörö alhö ytesek mörö ko ke? Anek,
mayi.[Como é o nome dessa palmeira? É aquele?] Patauá,
pé de patauá, tinha pé de patauá e pé de inajá bem perto
assim como tá aqui [aponta com o dedo pra um lado], e
outro também aí [aponta com dedo pro outro lado]! Pé de
najá, pé de patauá. O que é que Macunaima faz? Vão subir
lá. Volta a subir no pé de najá. Ficaram lá. Encheu d’água.
Cutia lá dentro d’água. Tudo tampado nesse buraco. Ficou
lá. Passa ano, passa mês. Essa fruta que tava junto com ela
lá desses Macunaima e Xicö tava ainda verde, né! Passaram
meses. Aí ficou de vez. Estavam comendo dessa fruta.
Patauá e inajá. “Irmão!”, tava escuro. Escureceu. Não sei
porque escureceu. (Esse também não tem como entender,
detalhadamente não posso dizer, porque não sei por que
tava escuro assim). Ficaram lá, tem- po. Aí já tava
madurando. “Irmão, joga da tua fruta pra mim provar.”
Xicö fazia o quê? Xicö era ruim, eu não estou dizendo que
ele era ruim. Aí pegava a fruta e descascava, passa no
bicho dele [pênis] e “tchan.” pra ele: “Tá gostoooso?” “Tá
bom, tá gostoso.” E ele achando graça do irmão dele mas
não descobriu o que ele tinha feito pro irmão dele. Não
descobriu o que é que tava fazendo pro irmão provar essa
fruta. É por isso que a partir desse momento essa fruta é
assim, liguenta, não é solta assim como bacaba, ela é
liguenta assim, cheiro de graxa, cheio de graxa assim. Aí,
tempo depois, secou. Aí provaram como este caroço que
estavam comendo, “tibum.” lá em baixo. “Já tá ficando
irmão, umbora descer.” Depois, parece de 150 dias, secou.
Aí desceram. A Cutia abriu esse oco de pau que tava
dentro. Abriu, saiu. Essa aqui traseira [passa a mão nas
nádegas] ficou encarnadinha por fumaça, por causa da
fumaça. Essa é a história de Macunaima. Essa é que é a
4 Projeto: Panton
história de Macunaima. Cutia não era assim não. Era
Projeto: Panton 4
branco... parece que era ou preto, não sei. Agora, quando...
10
com essa fumaça, ficou tudo amarelinho assim. 10
Referência ao motivo
pelo qual a cutia
(mamífero da família
DF: Fumaçado...
Dasyproctidae, com sete
especies no Brasil) pas- CF: Fumaçado, amarelo a partir daquele momento. Aí
sou a ter listras nas costas.
foram embora. Chegaram. Este toco aparece aqui no
Monte Roraima, até agora aparece. Nós chamamos, na
nossa lín- gua, wadakapiapö, wadakapiapö [...]. Esse pé de
banana se chamava wadaka.11 Tu sabe que é enorme, é
11
Árvore mítica, da qual,
com sua queda, teriam-se grande esse pé de banana que chamavam wadaka, piapö é
originado o Monte Rorai- toco. Aqui, por aí, ficou essa história porque pra lá, mais
ma, bem como os
principais rios da região. pra trás, não estou sabendo, não sei como continuar.
Depois passaram por aqui, por outras coisas por aqui;
vieram por aqui, chegaram aqui, por aqui. Olha aqui, aqui
tem a história também, continuando por aqui na beira da
Pedra Pintada, aqui no Parimé, na beira do Parimé, tem
12
uma pedra. Ele escreveu. Isso aí tudo escrito com meu
O filho de Clemente
Flores filho, tudo desenhado.12 Ele não tá vindo lá não. Ele foi
tornou-se artista plástico
indígena reconhecido em
passar a noite aqui, lá caçando pra ver se ele vai voltar
Roraima, seu nome é amanhã. É por isso, é por isso que a lenda disse que pra cá
Mário Flores.
caiu mais fecundo o galho de banana, pra cá mais fecunda.
É por isso que aqui dá banana, dá de tudo, porque caiu pra
cá, porque o galho que é mais fecundo caiu pra esse lado
13
Hoje um dos principais
do Brasil. Aí chegou na Pedra Pintada,13 chegou lá e pintou.
sítios arqueológicos de Tá ali a letra do Macunaima. Até eu mesmo vou lá e estou
Roraima, principalmente
iconográfico, localizado na olhando lá. Assim foi essa história de Macunaima, porque
Terra Indígena São Marcos.
já estou me esquecendo porque não estou; eu não estou
repetindo pra você, estudando na Bíblia, então vai
acabando.
14
Observe que “ninguém.” funciona como negativa. Quando
tenho que ade- quar, sou obrigado a co- locar um “não”, pois não
basta colocar um “nós”, não é isso que está na es- trutura da
linguagem do informante. Opto em deixar no original, pra
conservar a beleza do estilo do seu Clemente Flores.
5 Projeto: Panton
CF: Isso aí, puseram pra ser o título do livro, mas podia
ser assim. Mas agora o nome próprio é Makunaimö.
DF: Ele fez de propósito. A pessoa que escreveu esse
livro foi em 1927. Não do século agora, mas faz noventa
anos já. Foi Mário de Andrade, ele já sabia essa história.
CF: Agora, outra coisa que eu estou... que tem outro
tipo de historiadores, ele conta diferente. Aí tu vai falar
com ele, tu vai anunciar, tu vai perguntar dele, ele vai
contar em outra forma. Assim, porque a história que sai
mais correto é dos taurepang. Agora, arecuna errou,
arecuna errou, porque eu vi na escritura de... não sei de
quem foi... quem foi que escre- veu? Foi Parimé, Parimé
Brasil, que ele deu um livrinho pro meu filho, mas não fala
correto como você, ele fala errado.
DF: Eu sei, entendo... Deixa eu anotar aqui. O nome
com- pleto do senhor é...
CF: Clemente Flores.
DF: Clemente Flores. Seu Clemente, o senhor sabe a
idade do senhor?
CF: Sessen... agora assim idade, por cálculo, eu estou
com sessenta e oito. Porque naquela época, também, meu
pai, coitado, não sabia dizer que hora, em que mês, em
que ano, em que dia...
DF: Eu sei, eu entendo.
CF: É por isso que quando o filho do índio tá assim [faz
sinal com a mão, em relação ao tamanho], tá como dois
anos, não, dois anos não, até ano pode ser. Eu tinha sete
anos, me colocaram pouco... Sim, calculando assim, agora
eu estou com sessenta e oito anos.
DF: Ah! Entendi.
CF: Sessenta e oito... Naquela época ninguém sabia,
nin- guém se dava conta, se, por exemplo, tu, se alguém
vier me perguntar: “Que dia nasceu teu filho?” “Meu
senhor, a lua tava bem por aí quando nasceu meu filho.”
DF: Ah é!
CF: Mas qual era, qual era a lua? Janeiro? Fevereiro? Ou
Projeto: Panton 5
Março? Abril? Ou Dezembro?
DF: Eu sei, porque são doze por ano.
CF: É isso aí. Assim foi naquela época, meu pai não
sabia. Depois de velho, depois de me gerar, meu pai
aprendeu a ler, depois de velho, assim como idade dele.
Depois de velho ele aprendeu...
DF: O senhor é casado?
CF: Eu sou casado.
DF: Casado. Quantos filhos?
CF: Tenho sete filhos.
DF: Ah! Sete filhos.
CF: Tenho sete. Quatro homens e três mulheres.
DF: Bem dividido, né?
CF: Hum? Agora, os netos, tenho vinte e seis netos; do
Florentino, do Pedro, do Glorentina, da Fidelina, e hum...
Mário, Aurimelia, vinte e seis netos. Netos e netas.
16
Muito forte na comunida- de a relação entre saber a língua
materna indígena e ser índio.
5 Projeto: Panton
chama, morreu muita gente aqui. Nosso costume é assim,
costume indígena dos taurepang: se passa uma doença
por esse lado, então desse lado não passa. Então, meu pai
me levou fugindo pra Venezuela, por isso foi que aprendi
falar mais espanhol do que português. Agora, eu estou
apren- dendo falar português, depois de velho, assim
como meu pai aprendeu a ler depois de velho. É por isso.
Isto aqui foi fundado em 1915; 1915, sim senhor. 1915,
segundo como vos falo, porque meu pai que pode explicar
tudo, mas ele tá sur- do, não ouve, não fala, não tem a
vontade de falar, porque tá todo cansado, desmaiado, tá
velhinho.17 Ele parece, ser capaz de ter noventa, cento e dez
17
Pouco tempo da morte
de Clemente, seu pai, o
patriarca da comunidade, anos, já tá velhinho, meu pai.
também faleceu.
DF: Cento e dez?
CF: Cento e dez. Pode ser que ele tenha cento e dez ano,
porque tá muito velho demais. Tá cambaleando...
DF: Eu vi ele forte esses dias ali, comendo, sentado, to-
mando uma Coca-Cola. Ele gosta, não é?
CF: Sim. Agora. [risos]
LS: Comendo pimenta com a colher, ele pegava com a
co- lher de comida, botava na boca. Aí pegava outra de
pimenta e botava em seguida.
DF: É assim mesmo? Eu tava vendo ele comer faz
poucos dias.
CF: Parece que pimenta é remédio pra ele, porque, se
eu como assim tanto pimenta, não fico alegre não, fico
triste. Se não tem pimenta, fico triste. Mas não é tanto
também, só pra condimentar comida, é bom assim, agora
se tu coloca demais, aí...
DF: Perde o gosto.
CF: Faz mal pra tu. Esta história foi, esta região de Soro-
caima I tava cheio de gente, mas quando passou essa
doença muita gente morreu. Hoje três, quatro pessoas
pegavam febre, amanhã estavam na tumba.
DF: Isso foi quando mais ou menos?
CF: Isso foi antes de 1915. [...] Então, meu pai me levou
Projeto: Panton 5
fugindo pra Venezuela, né? Me criei lá. Aí nós tornamos a
vir pra cá, aí isso aqui ficou tudo abandonado. Morreu
muita gente, e os outros foram embora, fugiram pra outro
país, pra Venezuela, outros pra Guiana. Eu tenho família na
Guiana por- que, como se diz, jamais saí pra lá. Aí vim com
treze anos pra cá, ajudar meu pai. Isso aqui [aponta pro
irmão mais novo] tava pequenininho ainda. Estavam com
sete ano, outro oito, outro dez [faz referência a outros
irmãos]. Eu vim aqui, nós fizemos roça aqui.. aí aqui não
havia nem estrada. Aqui era caça: paca, veado, catitu,
porco do mato, onça, jacu, nambu, mutum. Aqui a gente
vivia tranquilo. A gente vivia tranquilo. A gente fazia
plantações de macaxeira. Conhece macaxeira?
DF: Conheço.
MF: Não!
24
Destaque do copidesque.
Projeto: Panton 7
MF: Tem terra e não tem terra.
DF: Não é isso?
MF: Eh.
DF: Né. É como se, eu estou pensando essas coisas
agora, como se o indígena, ele fizesse parte da natureza,
como todo mundo, mas como se fosse uma árvore, como
alguém que não pudesse interferir diretamente, pensar e
agir sobre ela com consciência.
MF: Eh. Eu tava conversando com alguém sobre a
destrui- ção do meio ambiente, sobre desrespeito das
comunidades indígenas, porque, assim como nós estamos
falando, cha- maram os indígenas preservadores da
floresta, ao mesmo tempo eles chamam os indígenas
destruidores da floresta. Pra onde que nós vamos
caminhar. Pra esquerda ou pra direita. E depois eles dizem
que os indígenas, eles matam algum animal só pra se
alimentar, depois eles dizem que os indígenas matam além
de usar e deixam estragar. Então, com isso, com essa
mentalidade que vem da parte dos brancos, da
Constituição, os indígenas ficaram cercados por todo lado.
Ficaram ilhados, não sabendo pra onde vão andar, nem pra
direita e nem pra esquerda.
DF: É por isso que eu te perguntei sobre...
MF: Então, essa lei tá pressionando a gente. Tiraram di-
reito nosso, ninguém tem mais direito. O que é que eu
posso fazer? Eles não tratam. Não olham o indígena como
gente.
DF: A palavra talvez seja indivíduo, com direitos e
deveres, obrigações, como qualquer outro.
MF: Tá proibido.
25
Pai de Clemente e Manoel Flores.
Projeto: Panton 7
tinha ninguém aqui no Sorocaima. Só tinha nosso parente
indígena, aqui. Ele morava bem aqui na margem do rio
Soro- caima, por nome Otávio, ele morava lá. Só era ele.
Aqui era mata geral. Então, nós passamos a morar aqui.
Desde aquele tempo, desde de sessenta e sete nós
estamos morando aqui.
DF: E aí não mudaram mais?
MF: Não. É, em noventa e quatro, no ano [de] noventa
e quatro, meu pai Mário Roberto Flores, e uns três pais de
família foram morar lá pro Amajari, aonde nasceu, lá no
meio dos parentes, no Amajari. Mas como, como de
costume teve confusão, eh, sovinaram mata, sovinaram
caça, sovinaram a pescaria, tudo. Então, criaram um
tumulto. Esse pessoal veio de outra comunidade: “Nós
somos daqui.”, mas ele sabia. Mário Roberto flores é
descendente de lá, ele tem família, sobrinhos, netos e
netas, só que não quiseram aceitar ele. Depois de cinco
anos, ele foi daqui, em noventa e quatro. Foi ele, finada
minha mãe, o outro pai de família, mais outros, uns cinco
pais de família foram pra lá. Só passaram cinco anos. Aí o
pessoal, moradores botaram eles pra correr. Aí eu sei que
voltaram pra cá. Hoje, a gente vive aqui. Não assim muito
bem, mas a gente tá vivendo né, levando a vida. E lá nós
perdemos o nosso parente. Não sei o que é que
aconteceu. Ninguém sabe, nem diz de que é que ele
morreu, emagre- ceu. Era um homem gordo, se tornou
dessa grossura assim, emagreceu, emagreceu, que ele
morreu seco. E a mulher dele também morreu. Vieram de
lá, já pegaram doença e vieram morrer aqui. Eles foram
enterrados aqui. Não deu pra gente, não deu pra eles
morar. Papai foi pra lá, Mário Roberto foi pra lá, mas eu
fiquei, ficou outro também. Uns cinco pais de família foram
pra lá, mas não deu certo. Aí voltaram. Tinha igreja,
construímos, ajudamos [a] construir igreja Adventista, mas
com esse problema todo aí, tivemos que abandonar. Aí
voltaram pra cá. Hoje nós estamos aqui.
DF: Eu lembrei de uma coisa. O senhor já concluiu ou não?
8 Projeto: Panton
MF: Não, a gente, eu estou, eu estou só recapitulando
o que nós estamos vivendo aqui no Sorocaima. Assim a
história de Sorocaima. Da Venezuela viemos uns sete
filhos, oito,
Projeto: Panton 8
nove, dez, onze, doze pessoas vieram do Maurak, da mas o homem veio da pedra,
comu- nidade do Maurak. Hoje já têm mais de cento e da caverna, não sei o quê. O
cinquenta pessoas. Vieram doze pessoas, já tem cento e
sessenta e quatro pessoas. Temos a igreja, temos agente
de saúde, temos motorista, temos um mecânico (não
entende bem, mas dá pra resolver os problemas). Então,
acredito que nós estamos quase completos: tem agente
de saúde, tem pastor, tem mecânico, tem motorista.
Então, só esse grupo tá com- pleto. Mas pra nós, pra mim,
como pros demais, tá faltando uma coisa: construção de
uma escola pra que as crianças aprendam mais, pegar a
Constituição Brasileira e pra eles, mais tarde, pra eles
saber se defender, porque assim como nós estamos
falando: a lei tá pressionando a gente. Ninguém foi atrás
da lei, mas a lei tá passando até as comunidades.
DF: Vocês não conseguem viver sem ela também,
porque o indígena tá subordinado a ela.
MF: Sim. Tem a lei que ajuda, tem a lei que protege,
tem a lei que ampara, mas tem a lei que oprime, oprime.
Então, nós estamos vivendo assim. Ninguém deve pro
governo, ninguém deve pra ninguém. Ninguém deve pra
prefeitura, ninguém deve pra ninguém, ninguém, ninguém.
Nós estamos vivendo por nossa conta. As casas Bem
Morar26, o prefeito tentou construir, mas o próprio Órgão
Federal saiu contra esse Bem Morar. Ele veio fazer reunião
aqui por causa des- se Bem Morar. Aí ele fala assim:
“tuxaua, é vocês que tão pedindo casa ou eles tão
obrigando vocês?” Aí respondi pra ele: “Olha, doutor, essa
casa popular, essa casa aqui foi pe- dido das comunidades,
fizemos documento, passamos pro prefeito e agora
prefeito já tá fazendo as casas populares pra comunidade.
Aí ele diz assim: “não é, não é bem assim, tuxaua, não é
bem assim, não, não pode. Isso tira vocês do índio pro
branco. Isso daqui é usado, isso daqui foi feito pro branco,
não é pro índio. O índio, ele tem costume de morar
debaixo de uma palha, de um barraquinho de palha, é
muito bonito. Mas assim, isso daqui é dos brancos.”
DF: Por que o senhor não perguntou pra ele assim: “É,
8 Projeto: Panton
26
Projeto de construção de casas populares do Gover- no de
Roraima.
Projeto: Panton 8
senhor tá morando em uma caverna até hoje? Aí veio de
carro, chegou aqui bonitinho pra conversar conosco, não
é?”
MF: Aí eu disse pra ele, ele falou: “Olha, se fosse por
mim...” ele falou assim, falou bonito, “Eu não vou
embargar, mas quem embarga é o Ministério Público. Eu
passo o rela- tório dizendo que a prefeitura tá obrigando a
comunidade de Sorocaima I pra aceitar casa, eu passo.
Então, não é eu, é Ministério Público.” Aí nós falamos pra
ele: “Olha, não é Ministério Público, você vai querer
embargar”, eu falei pra ele: “É você, porque Ministério
Público não vem atrás da casa Bem Morar, quem vem atrás
27
da casa Bem Morar é você, o senhor tá falando.” Aí outro
Aliança de Integração
e Desenvolvimento das representante, o presidente da ALIDCIR27 que eu tava
Comunidades Indígenas de
Roraima, criada na região
mostrando o...
de Pacaraima, já que
muitos indígenas não se DF: Eu sei...
sentiam representados por
associa- ções como CIR. MF: Ele era presidente. Ele veio na hora da reunião. Aí
começaram a conversar, nós conversamos. Ele disse assim:
“Oh meu chefe, com todo respeito, o senhor tá falando
que o índio, ele não pode morar numa casa de telha... por
28
Telha de amianto, que foi
quê?” Aí ele respondeu assim: “Não, essa telha produz
comprovada causar danos muita doença.” Ele diz assim, “Ela produz muita doença
à saúde. Tem o uso
proibido ultimamente. com a quentura, a telha,28 ela cai o pó aí ataca os
indígenas...” E o presidente da Associação Anísio Pedrosa
Lima respondeu assim: “meu chefe, com todo respeito lhe
pergunto, eu fui lá pra maloca dos índios Yanomami, lá não
tem casa popular, lá não tem nada. Já andei por lá,
conversei com eles, mas, assim, se [o problema] é casa
popular, eles estão morrendo de doença, por quê? Ferida,
a doença. Aí ele respondeu assim: “Não, não me preocupo
com isso.”, ele falou isso: “Não, não me preocupo. A vida
dos indígenas sempre foi assim. Então, não cabe a mim,
não cabe à Funai. Eles brigam, eles se matam, pegam
ferida, pegam doença, morrem. A Funai encontrou eles por
aí, se eles morrer. Hoje é o jeito, é o jeito dos indí- genas.
Se afinal eles viviam assim, morrendo e a Funai vai se
esforçar pra querer ajudar? Não. A Funai tá aí somente pra
olhar se os garimpeiros vão chegar lá e matar eles, aí
8 Projeto: Panton
assim. Mas, esse
negócio de doença,
ah, isso aí a Funai
não se pre- ocupa
com isso, não se
preocupa com
isso.” O senhor viu,
Projeto: Panton 8
coisa boa que é o Órgão Federal, que tá passando isso pra presentes pra ouvir o que é
gente. O presidente da associação conversando com ele, que Eletronorte vai dizer,
ele respondeu dessa palavra, quando terminei de falar porque
com o presidente, olhou pra mim assim: “Tuxaua, o senhor
vai permitir eu passar pro Ministério Público pra parar essa
casa ou não?” Aí a comunidade gritou: “Não! Ministério
Público não tem nada a ver com isso. A casa é das
comunidades.” Aí outro respondeu: “Se o senhor
persegue os índios, nós vamos lhe processar!” “Não rapaz!
Negócio de processo deixa pra lá. Eu tô perguntando,
apenas perguntando.” “Tá bom, tá bom, deixa que o
prefeito faça a casa pra vocês.” A Funai se afastou. Então,
assim a gente tava, eu fiz uma pergunta. Como é, verdade
os índios daqui, os índios tendo estatuto dos índios [lá]
diz: a lei ampara se o índio precisar de se integrar na
comunhão nacional é, não é proibido. A lei ampara, mas
[pra] Funai é proibido. Isso ele falou pra nós, sempre falo
com eles. Essa pressão é grande, essa pressão é grande. É
bom, eu quero complementar a minha palavra dizendo
assim: então, é bom que o senhor traga professor pra dar
um curso sobre direitos e obrigações. Os índios, as
lideranças não sabem o direito deles, até direito deles não
sabem. Ele tem direito, mas ele não sabe. Se tem lei pra
dar direito a eles, ele vai pra cadeia, ele apanha, tendo
direito deles, tendo razão. [...] Então, essa pressão é
grande pra cima da gente. Tudo isso eu esclareci pro
senhor, que pren- deram a nossa caçamba29 que nós íamos
levando, leva, isso, isso, isso tudo. Então, é melhor nós
chegarmos mais perto, pra ver de perto, também pra ver a
lei, pra que alerte as lideranças indígenas como eles
podem buscar a sua defesa. Senão vão cortar nossos
braços, mais tarde vão tirar nossa língua. Pronto. Aí não
fala mais. Ninguém fala mais. Então, a minha preocupação
é essa. Grande preocupação. Eletronorte usou nossa área,
eu não vejo resultado até agora, agora nós vamos sair pra
avaliar linha de transmissão, Linha de Guri. O que é que ele
tá trazendo pra comunidade? Que tipo de benefício tá
trazendo pra [a] área São Marcos? Nós vamos avaliar
nesse ano ou em janeiro. É bom que vocês estejam
8 Projeto: Panton
29
Não é permitido aos in- dígenas comercializar, por exemplo,
cascalho extraído das terras demarcadas.
Projeto: Panton 8
as comunidades dali não são afetadas por esse Linhão de
Guri, eu e ele, os demais que estamos aqui não receberam
nenhum centavo. Problema é grave. Então, a minha
palavra são essas, como fundamos Sorocaima, como
andamos pra lá. Agora tem outras histórias, quando o
senhor voltar, vamos falar sobre a igreja. Meu pai, ele é de
cem anos, de cento e cinco anos, ele foi um grande
pregador aqui na área. Desde 1958 ele trabalhou muito. Se
o senhor se interessar, gravar, a gente vai falar, né, na
próxima. Ele andou muito, andou por aqui. Antigamente a
gente chamava Puxa-faca porque eles brigavam muito,
puxar faca. Andou no Caraparu, andou aqui no Contão, lá
pro Amajari. Em 1958 ele foi pra lá, cons- truiu a igreja.
Depois veio aqui a Igreja Assembleia de Deus, fecharam a
porta da igreja Adventista. Escreveram na porta da Igreja
Adventista: essa é a Igreja Assembleia de Deus. Por último,
veio a Igreja Católica, tirou a placa da Igreja Assem- bleia
de Deus, passou pra Igreja Católica. Tudo isso meu pai
Mário Roberto Flores enfrentou. Então, na próxima,
quando tiver oportunidade o senhor vem aqui com a
gente, estamos aqui de braços abertos pra gente
discutir.Tá certo. Tem outro problema que nós discutimos
com o pessoal da FUNASA, eles disseram assim, porque
aqui a gente não recebe vacina. Aí olharam pra mim assim:
“Mas tu, tuxaua, porque tu não aceita vacina?” Aí eu entrei
assim: “Olha rapaz, vocês bran- cos, vocês usam muita
vacina, aí o filho de vocês fica cego, aí vacina esculhamba o
sangue, sangue é puro. Toma vacina, sobe pra cabeça o
sangue, aí é por isso que o filho de vocês com idade de
dois anos usa óculos. Vê o nosso filho, ninguém usa óculos.
A gente usa óculos quando completa cinquenta anos pra
cima. Agora, filho de vocês não, o meninozinho de oito
anos com óculos na cara, dez anos, vinte anos. Então, é
por isso, a gente pesquisou, então ninguém aceita vacina.”
DF: Me diga uma coisa, inclusive a pergunta tá ali, mas
eu não fiz ainda. O senhor comente isso. Eu tava vendo
uma entrevista nesses dias, até fiquei meio chocado. [...]
os rapazes estavam narrando a história do eclipse. Quando
a lua encontra com o sol, né, aí é como se a comunidade
8 Projeto: Panton
inteira ficasse suja, como se a comunidade inteira ficasse
Projeto: Panton 8
menstruada. Aí a comunidade inteira tem que passar pelo
processo de purificação. Eles tomam inclusive uma bebida,
uma espécie de sopa, um caldo quente. A pessoa toma, ela
é tóxica, e na hora que ele toma joga tudo pra fora pra
limpar. Ele toma e vomita na mesma hora pra poder fazer
a limpeza do corpo [...].Tem todo um ritual, quando vai
virar rapaz. O que é que acontece? As comunidades tinham
isso, né, eles pegam os rapazes. Eles pegam um
instrumento feito com dente da piranha, aí ele vem no
corpo dele assim [sinal de ficar raspando]...
MF: Aí fica raspando, né.
DF: Raspa o corpo todo, aí vem depois com uma água
ou com uma... não é nem sal, é um cipó que vai ajudar no
processo e passa no corpo do menino todinho, e é uma
for- ma deles virarem homem. E assim tem pra menina
também. Por exemplo, hoje tem isso aqui? Teve algum dia?
Não existe mais? Já existiu esse tipo de iniciação?
CF: Isso aí, isso aí é verdade. Isso que tu tá perguntan-
do, isso aí é verdade. Na época passada, os antepassados
faziam isso. Sabe pra quê? Pra se curar, pra ser caçador,
pra ser pescador. Eles tomavam água misturada com
puçanga que chamam vocês puçanga, mas nós chamamos,
na minha língua, muran.
DF: Muran.
CF: Muran. Eles colocavam e tem muran oloroso que
nem canela. O senhor conhece canela?
DF: Claro, conheço.
CF: O senhor conhece canela. Eles colocam pra ser ca-
çador de veado, pra ser caçador de mutum, nambu, jacu,
veado campeiro, veado capoeiro. Ele mistura nessa água,
então rapaz novo tomava até encher barriga.
DF: É isso, é isso mesmo.
CF: É verdade, é pra limpar a sujeira que tem aqui na
barriga da gente, no estômago da gente. Aí vomitava,
pedia pra ser caçador de veado, pra ser caçador de anta,
pra ser
9 Projeto: Panton
caçador de mutum, pra ser... Eles falam com essa puçanga
que eles colocavam dentro d’água pra tomar, pra purificar
a barriga, eles falavam. Duas, três vezes, ou seja, quando a
lua tá bem por aqui assim [aponta pro céu], eles curavam,
né. Esse que eu estou entendendo o que tu queria saber. É
isso aí. Pra esse, pra purificação do estômago, pra ser
caçador.
DF: Forte, resistente, não é?
CF: Sim senhor. Aí, daqui até quando a lua ficar bem por
aqui assim, aí pra... Se for de manhã também. Se for de
manhã também, porque já tava lá no ralo, que nós
chamamos, na minha língua chamo sumari, feito de
madeira, com a ponti- nha, [com] ralo, que chama.
DF: Madeira com?
CF: Madeira com um pedaço de ferro com assim, pra
ralar mandioca. Isso aí. Eles fazem pequeno e fazem gran-
de, eles fazem mais grande assim. Então, ralavam, jogavam
dentro d’água, bebiam pra purificar, pra ser, como assim
disse, caçador. Se tu vai pro mato, em seguida tu consegue
caça. Se tu não faz assim, se tu não purifica barriga com
essa puçanga, não consegue nenhum, nenhuma caça.
Estando com essa [peste(?)] tu não consegue porque não
tá curado. Outra coisa, esse dente de piranha não é. Pra
nós indígena, ele tem filho novo, desde pequeno assim, aí
tira pedaço de gilete tiam, tiam, tiam [imita som de corte].
Aí coloca, ele vai passar esse muran pra ser caçador de
peixe, pra ser pescador.
LS: Ainda faz isso?
CF: Ainda não. Não! Agora não existe mais não. Assim
como nós estamos falando, assim porque nós estamos
falan- do a palavra de Deus. Nós estamos colocando a
palavra de Deus no meio, porque a palavra de Deus é certa.
30
Mais uma vez, optou-se
A palavra de Deus diz: “Não raspe! Não cortem vossa
em não mudar este tipo de carne!”, porque é proibido derramar sangue. Porque Jesus
expressão: “ninguém
somos”. derramou muito sangue e não podemos imitar, porque
ninguém somos30 Jesus, nós somos humanos. Ah sim, sim
senhor, agora outra coisa: se tu quer ser avistador de coisa
Projeto: Panton 9
longe, tu tem que
colocar pimenta na
vista. E tem outra
coisa, tem puçanga
9 Projeto: Panton
que chama, não sei como nome dessa puçanga, nós cha-
mamos paricö, nós chamamos, é um raizinho, ele é ardoso
como pimenta.
MF: Queima muito.
CF: Então, tu rala nesse ralo, pega o sucuzinho, coloca
nos olhos, coloca nos olhos. Aí quando tu vai sair pra caçar
no campo, vê de longe, lá vai veado. Tu tá olhando porque
tua vista tá bem limpa com essa puçanga. Assim usavam
nossos pais. Agora se tu tá doente, com dor de cabeça,
tem que tirar folha de tiririca, aquele que corta tem folha
aqui, é tiririca. Tu sabe o que é tiririca?
DF: Tiririca?
CF: Sim, tem olho dele assim, duro afiada, amoladinha,
amarra três folhas duras, que acaba de sair assim.
DF: Aquele meio mais duro.
CF: Sim, como se diz, é... olho dele que sai, primeiro
olho dele que sai. Então, amarra três assim, são
pequenininhos, né, são pequenos, são vários tipos de
tiririca.
DF: Eu sei, tem as pequenininhas...
CF: Sim, então amarra com a... Se tu tá com dor de
cabeça, então o velho abençoa essa tiririca amarrado pra
ser curado dessa dor que tu tá sentindo na cabeça. Então,
coloca no nariz “tcham”, aí sai muito sangue “tcham”, aí tu
derrama esse sangue. Então, pimenta também abençoada,
ele coloca no nariz, tu não aguenta não, aí amanhã tu não
sente a dor. Sabe por quê? Porque muito sangue na
cabeça. Esse aí que tá dando dor na tua cabeça. Isso é
remédio. Não é remédio pra ser caçador não, esse é
remédio pra dor de cabeça.
DF: Pra dor de cabeça.
CF: Sim senhor. Outra coisa que tu tá perguntando, isso
nós vamos repetir outro. Essa água misturada com
puçanga, ou seja, com a folha cozida, isso aí pra dor de
barriga, não é pra ser caçador não. Isso aí pra cura, isso aí
pra cura. Tá sentindo dor às vezes e tá evacuando [a] cada
Projeto: Panton 9
momento. Então, pra evitar essa, tu tem que tomar água
até encher
9 Projeto: Panton
barriga, sem querer tu tem que tomar pra ser remédio. Aí
tu vai vomitar, jogar toda essa sujeira que tá na tua barriga,
aí tá, não sente mais dor, não solta muito vento, isso aí,
esse remédio. Pimenta colocado no nariz depois de
derramar, tirar sangue, isso aí remédio. Agora puçanga,
muran e orocan, isso é remédio pra ser curado, pra ser
caçador. Sim senhor, assim é. Agora não existe mais. Não é
preciso cortar.
DF: Os meninos então não tem essa iniciação?
CF: Não. Agora não, agora não, agora acabou.
31
Maurak localiza-se na
Venezuela, região do Par- MF: Antes da gente vir daqui do Maurak,31 meu pai falou
que Canaima. Interessante
observar como se
pra mim assim: “Meu filho”, o mais velho, talvez irmão, o
configura a avô dele falou pra ele: “Olha, não usa muran pra ser
territorialidade nessa
região entre os indígenas. caçador, não usa, mas usa água.”, ele falou pra ele, pro
meu pai, aí chamou nós: “Olha, meu filho, vocês têm que
se curar, não vão usar essa puçanga. O meu tio falou pra
mim falar pra vocês, pra vocês não ver essa puçanga, mas
vamos conseguir outro meio aí pra você se curar, pra vocês
ser caçador, pra quando você casar a mulher de você não
passar fome, vocês não se curaram, vocês não têm
dinheiro, então pega flecha, assim, pega arma, vão pra
mata pegar uma caça, é assim.” Ele dizia assim: “Vocês vão
na beira do igarapé, vê aquela, aquela moita, né, quando
enchente, no tempo da enchente não pega aqueles galhos
32
Optou-se em deixar essa muito balseiro, né, folha.”
concordância para
observar como a língua CF: Folha pequeno, comprido, grosso, grosso.32
portuguesa se distingue
da língua deles. Esses MF: “Aí encosta na beira do igarapé.” Aí papai, ele falou
entrevistados, no ge- ral,
tiveram como primeira pro papai, papai passou pra gente: “Olha, meu filho, vão
língua o taurepang, depois curar. Cinco horas da manhã vocês têm que pegar copo,
é que vieram o português
e o espanhol. Eles falam, vocês têm que ir pro igarapé, tomar água, aonde tem
pelo menos, essas três
línguas.
aque- le galho, um monte de galho, é considerado como
caça, aí tem veado, aí tem catitu, aí tem todo bicho, todo
pássaro. Bebe água até vomitar. Encheu a barriga, tem que
vomitar em cima dessa folha, durante noventa dias,
sessenta dias. Depois disso vocês vão sair, matar veado.”
Aí eu, meu irmão que mora ali naquela casa, aí decidimos:
“Rapaz, umbora fazer?” Éramos curumim, né, “Umbora
Projeto: Panton 9
fazer!” Nós fomos
na beira do igarapé.
Aí tomamos água.
Rapaz, pra tomar
água de manhã
cedo: “Quem que
vai tomar?” [risos]
Nós fizemos
9 Projeto: Panton
isso só uma semana, aí eu não aguentei. Depois de beliscando aí.
vomitar...
CF: A garganta da gente fica toda irritada.
MF: É, meter banho cedo lá, é água fria, aí tá gelada
mesmo pra pessoa banhar, hunn! Aí aguentamos. Foi só
uma semana. Aí paramos. E depois eu conversei com outro
velho, não da igreja, aí ele falou pra mim: “Olha, rapaz,
aqui tem puçanga.” Ele me amostrou: “Pra quê?” “Pra
veado mateiro, veado campeiro.” “Como é que a gente
faz?” “A gente bota no olho da gente, passa num ralinho,
aí passa no olho, só um mês.” “E bom pra ser caçador?”
“Eh, eu já experimentei, olha, aqui tem couro de veado,
tem chifre de veado campeiro. Eu mato bem aqui mesmo.”
“Rapaz, o senhor não tá inventan- do não?” Aí eu disse:
“Eu vou experimentar.” Eu fui mais esperto, né. Aí eu fui
usar esse remédio. Só que queima os olhos da gente igual
pimenta, só por uns cinco minutos, aí fica ardendo. Usei
durante sessenta dias, contados, sessenta dias. Doutor,
parece mentira, tu não sente mais o sono, tu fica assim,
animado, querendo caçar, tu fica, tu fica esperto mesmo.
Eu pegava espingarda, eu saía pra experimentar. “Rapaz,
agora eu vou experimentar.” Eu saía, encontrava caça.
Isso existiu, mas parei, tava bom pra conseguir alguma
coisa, pra quem tem família. Quem não usa esse muran,
ele não consegue não. Ele não consegue. Já morei aqui
com um velho, como é que chama um homem que não
caça, que não consegue nada? É como é que chama? É...33
LS: Azarado.
33
A palavra é panema: im- prestável, sem sorte na caça e na pesca.
9 Projeto: Panton
“Rapaz, não pegou.” Aí eu fui pegando. Peguei um, dois,
três, eu peguei até sete. O senhor sabe quanto ele pegou?
Só pegou cinco caranguejos.
DF: Caranguejo, é!
MF: Então, tem isso. Puçanga que o Clemente tá
falando é muran. É usado pra caça. Quando eu tava
usando, eu matava dois, três. Última, última caça que eu
matei, só cutia eu matei duas, aí parei. Então, tem pra
beber água e vomitar sobre a folha pra fazer a tradição.
DF: Tornar o menino forte, não é isso? Resistente.
MF: Eh.
37
Espécie de sopa, em ge-
DF: E é engraçado. Eu achava que a damorida37 só era
ral temperada com muita com peixe. E aí me explicaram que não, com a caça que
pimenta, podendo ser feita
com caça ou peixe. A base tiver.
da comida indígena tradi-
cional é a damorida com MF: Eh. Damorida é alimento normal da comida dos
beiju seco.
índios.
ALGUÉM: Carne de veado, de paca, vai tudo.
ALGUÉM: Tem uns que colocam pimenta e aí elas se conforto hoje, com a
tor- nam muito quentes. Agora a gente aqui come um comunidade mudando menos
pouco de pimenta, não, lá aquelas coisas, muito fortes. 38 hoje em dia. Antiga- mente
andava mais, ia pra ali, ia pra
MF: Então, a nossa comida é essa, damorida. Até no
lá. Como hoje ela muda
ano 90 a gente comia. Agora, doutor, mudou muito; pra cá
mu- dou muito. Ninguém come mais a caça. O pessoal só
compra carne de gado aí no BV-8, todo dia. E galeto!39
Ninguém sabia o que é galeto, agora os índios daqui já
sabem o que é galeto.
DF: Tem caça ainda?
38
Era comum, durante a entrevista, chegar outros indígenas. Alguns
faziam comentários.
39
Palavra pra frango, muito utilizada na fronteira com a Venezuela
entre brasileiros.
9 Projeto: Panton
menos, não tem pesca; aí fica mais difícil, não?
MF: Fica mais difícil.
DF: Andar um dia, dois dias pra encontrar uma caça.
MF: Agora mesmo a gente tá planejando de sair uns
dois dias daqui, pra 25 de dezembro, pra que os caçadores
che- guem com a caça, pra comemorar dia 25. É assim.
DF: Assim, a gente sabe que o senhor tem a religião
agora, mas quanto aos rituais antigos vocês ainda fazem
ou não?
MF: Não. Isso não existe.
DF: Não existe mais.
MF: Não. Só igreja mesmo. Eu tenho 53 anos. Ainda eu
não vi o que os nossos pais faziam. O meu pai nunca
pensou em fazer isso. Então, eu não sei como era. Até
agora eu não conheço aquele que chamam, falam de
parixara, tukui, mari-
-mari, aquela dança e outra cultura indígena, isso não existe.
DF: Ah! Entendi.
MF: Eh, aqui mesmo não.
DF: Na comunidade do senhor não.
MF: É o general.
43
Referência ao fato de os indígenas possuírem usu- fruto da terra, e
por isso restrições no seu uso.
44
O coordenador regional da Funai à época em Roraima, Gonçalo
Teixeira.
1 Projeto: Panton
combater a mentira do Governo Federal.
DF: E isso é complicado, porque tá previsto na Constitui-
ção. Modificar a Constituição é possível, mas é difícil.
MF: É difícil. [risos] Doutor, e as lideranças indígenas
nunca pegaram na Constituição brasileira. Ninguém! É por
isso, sem saber. “Nós queremos tirar os fazendeiros,
tudo.” Tiraram, e depois vem ordem pra ninguém mexer
com a pedra; pra ninguém mexer a areia; pra ninguém
mexer com isso: terra da União. Não pertence aos índios.
DF: Não pode comercializar.
MF: Eh, não pode.
DF: Vamos ver se o senhor tem uma memória boa. E
como é que era feita a construção das casas na
comunidade?
MF: Construção da...
DF: Ela é feita pelo próprio. Antigamente era uma coisa
mais comunitária, não era isso?
MF: Eh.
DF: Continua sendo assim? Como é que é?
MF: Entre as comunidades?
DF: Não, por exemplo, tem que construir uma casa ali
pra alguém que tá precisando ou alguma coisa assim, ou
um rapaz que tá casando novo...
MF: Eh.
DF: Ele mesmo que é responsável? A comunidade se
une? Como é que era antigamente, o senhor lembra? Se
hoje mudou...
MF: Não. Nessa parte não mudou nada. Continua no
mesmo. A nossa tradição nessa parte continua.
DF: E como era?
MF: Quem tem que fazer, o rapaz quando completa sua
idade de 18 anos, 20 anos, ele já vai começar a fazer a
casinha pra ele, ele mesmo.
Projeto: Panton 1
DF: Ah! Ele mesmo.
MF: Não.
DF: Foi?
DF: Não.
45
MF: Eh. Canaimé existe. Eu fui pro km 88 45 agora no ano
Referência a um local na
Venezuela, que localiza-se passado, no dia 7 de setembro, quando o Exército tava
no km 88, sentido Santa
des- filando. Eu passei pra lá, lá eu vi muita coisa, história
Ele- na de Uairén Puerto
Ordaz. desse Canaimé. É muito perigoso. Ele mata. Até eles
amostravam um Canaimé: um gordo, um homem forte.
Isso daqui, aque- le aí, você não pode nem zombar dele
assim: “Não mata ninguém!” Pode se aprontar que ele te
mata. Acostumado matar. Só que eles não matam:
“Matou? Não, fulano matou.” Quando ele toma uma
cervejinha: “Ah! Eu matei.” Pronto.
DF: Ah! Ela me contou também que era engraçado pra
descobrir se a pessoa foi atacada ou não, porque pode
atacar e não matar, não é isso? E a pessoa passa uma
semana; fica triste; fica não sei o quê; fica amuada. Como é
que faz pra saber se a pessoa foi ou não atacada pelo
Canaimé? Porque às vezes ele nem sabe se foi atacado.
Não é isso?
MF: Eh. A pessoa não conta não. Não conta.
DF: Ela não consegue contar, não é?
MF: Não consegue contar.
ALGUÉM: Aí, na última hora eles contam.
MF: Dizem os mais velhos, (como é que chama?),
negócio de pilão, é mão de pilão, que soca assim: “tá, tá,
tá, tá.” Aí lava, dá um pouco de água pra ele, aí passa a
contar.
DF: Ah! Sim. Pega a água do pilão.
MF: O meu tio, irmão do meu pai ali, morreu de Canaimé.
Projeto: Panton 1
DF: Sim?
MF: Colocar.
48
Paulo César Quartieiro foi prefeito da cidade de Paca- raima, além
de fazendeiro produzindo arroz na região da Raposa Serra do Sol,
de onde foi desintrusido. É o principal defensor das fa- zendas em
terras indígenas em Roraima.
1 Projeto: Panton
qualquer país do mundo, ele tem. Porque ele tá
produzindo. Tem arroz aí bastante. É todo dia caminhão tá
dissolvendo arroz aí, tá disparando arroz. Então, a gente
vê que essa au- tossustentação (que sempre eles vêm
trazendo de Brasília, lá dos órgãos lá de fora, que acontece
pela região da Serra, da Raposa Serra do Sol, aí pro Jaci,
esse pessoal que mora aí dentro) eles sempre falaram nas
reuniões: “Olha, tuxaua, vocês têm que ter
autossustentação, porque senão nós vamos morrer de
fome.”, mas nunca apareciam eles como chefe. O que que
eles fazem né? Vão pro exterior, eles só trazem dinheiro
pra eles, pra eles. E toda vez que eles viajam trocam de
mulher. Trocam por uma loura mais bonita e tal, com um
carrão importado, carrão de cento e sessenta mil, são
aqueles carros com cabina dupla. Só andam trocando de
veículo. E os outros, e os outros coitados, dizem assim:
“Você não pode nem trabalhar com branco, cuidado, não
vamos trabalhar com branco.” A roupa dos pobres, tudo
rasgado meu Deus! Mas que coisa, o cara com relojão, com
uma mulher bonita na frente e com um carrão do lado,
com uma casa melhor e quer que a gente vá viver nessas
condições. Não têm condições pra nós.
DF: Entendo.
AM: Não tem condições. A gente sofre muito, porque
o nosso chefe come dinheiro sozinho e não dá um real pra
ninguém, como nós estamos vendo. Nós estamos vendo
isso. Então, quer dizer que agora a gente não pode ficar
mais assim.
DF: Eu sei. E qual a coisa mais feliz que aconteceu com
o senhor que o senhor lembra?
AM: Bom...
DF: Quer dizer alguma, que sempre a gente tem.
AM: Sempre a gente tem. Quer dizer, feliz como eu
acabei de dizer, professor, é quando a gente tá de bucho
cheio, nós temos a vida feliz. Quando se tá com fome,
rapaz, fica agoniado, fica triste: “Rapaz, como é que é?”
Não sei; o cara fica quase doido, né? Mas, se tá de barriga
Projeto: Panton 1
cheia, as crianças
1 Projeto: Panton
estão alegres, a esposa tá satisfeita. A gente como esposo
tá satisfeito, vê toda família com o buchinho cheio, que
coisa, né! É uma coisa boa, quer dizer que é uma vida de
alegria, que eu acho. Dali vem alegria; dali o cara vai pra
um lugar com o buchinho cheio, satisfeito; vai sorrindo das
coisas. Mas, quando tá com fome, coitado, só anda
enrolado. Só anda enrolado, porque não tem jeito de ter
alegria. Ele fica triste cada vez mais: “Puxa vida onde que...
será que alguém vai me dar alguma coisa pra comer hoje?
Puxa vida, colega, eu estou sem dinheiro!” Mas é ruim, já
passei nessa. Quando a gente tá sem dinheiro, rapaz, já
tenho me virado aqui na cidade um pouquinho. Ainda bem
que eu tenho uns créditos por aí nos comércios: “Me dá,
patrão, eu estou devendo, mas eu quero mais aí, rapaz, fim
do mês eu lhe pago.” “Nada, pode pegar aí, não se
preocupe não, pega aí.” Compro alguma coisa, pego como
eu falei. Então, naquele dia nós estamos alegres, com
barriguinha cheia...
DF: Tá certo.
AM: Pra que mais que isso? Com saúde, né?, saúde é
me- lhor alegria das pessoas. Com fome a gente não tem
alegria.
DF: E o senhor nasceu onde?
AM: Nasci na maloca do Taxi. Lá pra dentro.[...] Fica na
Ra- posa Serra do Sol.[...] Sim senhor. Foi lá que a gente
nasceu.
DF: O senhor poderia falar um pouquinho da
comunidade onde o senhor nasceu? Depois o senhor pode
falar daquela que o senhor viveu e aquela que o senhor tá
agora. Se o se- nhor puder falar como era lá onde o senhor
nasceu, alguma lembrança de lá.
AM: Bom, era assim. Antigamente a gente morava na
maloca do Taxi. A gente lembra do primeiro tuxaua, seu
Luís. Chamavam, chamavam não sei se era o apelido dele,
não sei se era apelido dele que a gente era criança, quando
começou a entender. Aí chamavam Luís Cabeçudo,
chamavam pra ele, um tuxaua antigo, dessa comunidade
Projeto: Panton 1
Taxi. Aí depois entrou seu Joaquim Máfora, o tuxaua daqui
que morreu tempo desse também. Morreu com mais de
vinte anos de
1 Projeto: Panton
tuxaua, vinte e cinco anos, parece, de tuxaua. Foi um
tuxaua que durou mais tempo, com liderança, na maloca
do Taxi, na qual depois de lá ele fundou essa maloca
Cumaná aqui pra nós, que era pra gente estar subindo
junto com ele. Nunca, ninguém nunca deixamos ele. 49 Que
era um tuxaua bom, que gritava todo dia de madrugada
pro povo. Então, todo mundo já sabia, quando ele gritava,
49
Apesar de não adequada era algum serviço que a gente ia fazer, era algum recado
à concordância formal,
optou- que ele ia comentar pra comunidade e assim por diante.
-se em preservar a ideia e o Então, nós moramos lá e depois nós partimos já pra essa
estilo do entrevistado.
comunidade que hoje tá ainda sendo fundada por esse
tuxaua Joaquim, o Cumaná. Depois do Cumaná, nós
passamos mais ou menos oito anos mais ou menos. Eh,
mais ou menos isso, oito anos. Aí depois nós deslocamos
de lá, formamos outra comunidade, na qual nós tínhamos
a nossa comunidade. Nesse tempo eu já comecei a
trabalhar como segundo tuxaua. Então, nela morava o
meu compadre Garnete, que hoje, hoje ele tá por aqui
também, junto com a gente. Nunca deixou a gente,
sempre teve um parceiro bom. Ele morava sozinho aí,
encostamos lá com ele, formamos essa comunidade. Aí o
Ubaru, uma comunidade nova também, já tá com quantos
dias, mas já tá com um pouco de dias que já tá fundada
essa comunidade. E de lá nós, minha filha terminou a 5ª
série dela, nessa comunidade do Ubaru. Aí ela procurou
que a gente viesse pra cá, pra cidade, na qual já tava
fundada essa ALIDICIR. Já tava com mais ou menos seis
meses que ela já tava, que essa associação já tava
funcionando. Não tinha caseiro, né? Eu digo: “Não, já que
minha filha tá procurando de ir pra cidade terminar o
estudo dela, o segundo grau dela, nós vamos encostar pra
ALIDICIR.” Aí me deixaram aqui como caseiro. Me
apoiaram. Fiquei aqui um ano e três meses aqui como
caseiro, aí na qual eu invadi esse terreninho aí. Não sabia
de quem era. Isso foi uma confusão grande. Mas aí falando
que nós temos direito também. Aí nós ficamos aí, na qual
50
tem uns terreninhos aí. Aí, depois foi indo, foi indo, foi.
Primeiro prefeito da cida-
de de Pacaraima, Hipérion Comecei a trabalhar como empregado na prefeitura;
de Oliveira Silva.
comecei a trabalhar, tempo do Hipérion. 50 Passei dois anos
Projeto: Panton 1
como funcionário;
passei um ano
como monitor de
ônibus e passei
mais um ano traba-
1 Projeto: Panton
lhando fora assim na, como empregado aí da prefeitura.
Depois entrou esse outro, seu Chico Roberto, fiquei como
funcionário. Depois já entrou outro, na qual seu Paulo tava
na administração, passei pra ele de novo. E aí como te
disse, de noite não tem nada a ver. De noite você faz seus
bicos por aí, né? É um bico que a gente pode dizer. É um
bico que a gente faz. Mas, mas estamos lá dentro, a gente
como representante. A gente lutou e aí fomos na Funai pra
ver se nós tínhamos, ele queria um documento, com o
papel de tuxaua. Foi difícil, eles não queriam dar, a Funai
não queria dar: “Não, é porque a gente tá dando muito
esse papel pro pessoal, pros tuxauas.” Às vezes tem
tuxaua que só diz que é tuxaua, mas não tem documento.
“Então precisa delega- do!” Na qual eu tirei, ele assinou e
hoje eu estou, eu tenho meus documentos de tuxaua. Meu
segundo tuxaua também tem o documentozinho de
tuxaua também, como segundo. Então, aí professor, nós
estamos aí nessa comunidade. Nós fundamos ela, aí
registramos como Nova Morada.
DF: Quando ela foi fundada?
AM: Foi fundada já faz o quê? Dois anos.
DF: Dois anos.
AM: Eh, dois anos tem que tá fundada essa
comunidade. Então, aí professor, tudo é novo, tudo é
novo. Tudo, as plan- tas, tá novo. Nada é antigo, mas tá
crescendo, tá crescendo. Daqui mais três anos cupuaçu
com certeza vai chegar fruta, né? Cupuaçu é três anos. É
um projeto de três anos, né? Agora macaxeira, banana,
cana, essas outras frutas que a gente vê que ela é de ano,
isso aí com um ano já tem fruta. [...]
DF: E como o senhor escolheu o lugar? O senhor
escolheu ou já tinha assim?
AM: Não senhor, nós pesquisamos duas semanas. Foi
uma pesquisa de duas semanas com meu genro; andamos
por lá. Primeiro dia, não achamos; segundo dia; terceiro
dia; aí nós paramos. Deixamos dois dias. Quando foi
sábado, fomos de novo, não conseguimos. Aí deixamos
Projeto: Panton 1
pra segunda-feira, na outra semana. Quando foi na terça-
feira, nós conseguimos
1 Projeto: Panton
encontrar esse igarapezinho por causa da cachoeira. Nós
paramos em cima de um [...], aí escutamos aquela zoada
de água caindo: “Rapaz, aqui tem uma água boa.” Era mês
de março, verão. Aí fomos pra lá devagarzinho, fomos
fazendo uma picadinha. Chegamos lá, disse: “Ah tio, é
aqui.” Eu digo: “Rapaz, é aqui mesmo. Ninguém vai
escolher não, nós vamos empurrar à força.” Tinha uma
área, mais ou menos uma linha e meia, aí nós brocamos.
Deixa pra nós virmos no outro dia. Vamos sair. Já era
quatro horas da tarde. Aí de quatro horas nós tiramos aqui
pra cidade, pra casa. Viemos pra cá, aí nós chegamos por
aqui, aí falei pra mulher: “Olha, mulher, nós encontramos
já um lugar bom pra gente morar. É ali e é ali mesmo.”
“Ah, tá, tá bom. Eu vou com vocês.” “Tá bom, se quiser ir,
vamos.” Aí fomos lá e abrimos já uma estradinha, aí
conseguimos abrir essa clareira lá dentro e encontrei um
rapaz que tinha uma motosserrazinha por aí. Aí digo assim:
“Rapaz, me dê uma mãozinha pra ir mais rápido porque tá
chegando o inverno.” Isso foi no mês de março. Aí passou
só uns quinze dias, o mato secando, arrochei! Não
queimou quase nada não, só fez só brocar. Aí foi verão e
começamos a plantar né? Então, tá aí, professor, minha
história é essa. Eu acho que já disse o que pude dizer, né?
Então, a história é isso daí que nós fundamos essa
comunidade, é nova. É bonita. Ver o lugarzinho lá é bonito,
não é acidentado, não tem aquela buraqueira, dá pra fazer
umas vicinalzinhas até lá dentro, tranquilo. Dá pra gente
trabalhar um bocado de tempo lá dentro.
DF: O senhor pra ir pra lá e voltar, o senhor vai como?
AM: Volto de pés professor.
DF: Dá o que?
AM: Dá uma hora e vinte. É pertinho.
DF: Então, deve ser uns cinco quilômetros.
AM: É mais ou menos isso, cinco ou seis quilômetros,
mais ou menos. Eu calculei seis quilômetros.
DF: Como que era a alimentação antiga e como que é
Projeto: Panton 1
agora, a parte da comida de vocês?
AM: Bom, a nossa, lá na minha comunidade, nós
fazemos damorida. A gente coloca um peixe, coloca uma
pimentinha dentro. A minha esposa é muito fabricadora de
fazer a cer- vejinha, que é o caxiri, né? Ela faz o caxiri
cozido. Ela coa. Aí depois no outro dia a gente tá tomando,
tá doce que é uma maravilha. Aí você toma, enche a
barriga. E ela tá por ali plantando uma coisa, eu estou do
outro lado coivarando. Aí todas crianças que vão lá em
casa, eles estão lá alegres tomando caxirizinho, vão lá
molhar o beijuzinho, comem. Eles são acostumados. Aí
quando a gente vem pra cidade já muda. Aí nós
compramos verdura pra temperar um peixe, pra temperar
um galeto, uma carne. A gente vai lá na rua, compra,
porque os dois lados são bons, nada não é ruim pra nós.
Porque na comunidade é damorida, e aqui na cidade a
gente já é, comida já é diferente. A gente pode até
comprar uma marmitex pras crianças comerem e eles
acham bom. Quer dizer que eles não estranham...
DF: A alimentação.
AM: A alimentação. Eles acham bons os dois lados. Tan-
to como o deles como o da cidade. Da cidade já muda por
causa do tempero. Lá dentro o tempero é a pimenta, mas
só que eles não comem assim a pimenta bem não. Aí tem o
pimentão que eles colocam dentro da pimenta, dentro da
panelinha deles. Aí corta uma carnezinha dentro, aquilo
tipo uma pimenta. Eles acham bom, mas só que pimentão
não arde. Molha o pirãozinho e tal, aí vai lá no bujão de
caxiri, mistura com açúcar. E a banana tá pendurada; eles
vão lá, descascam e comem a hora que eles querem. Suou,
já vão pro igarapé. Bem estão aí gritando: “Ei, ei, ei.”
[risos] A avó deles: “Cuidado, cuidado, cuidado com a
água!” Que lá eu acho que sucuriju não tem, cobra. E lá
eles estão vendo tudinho. É praia, né? É um lugar de pé
[...]. Então, estão lá olhando tudinho. Se tiver algum bicho,
já gritam logo. Aí eles estão lá, graças a Deus!, nunca
adoeceu ninguém. Dessa forma que a gente tá debatendo,
né?
1 Projeto: Panton
DF: Que bom.
Projeto: Panton 1
AM: É um lugar muito bom. Frio. Essa hora tá gelado. Já
o indígena, eles são acostumados. Como não tem coberta,
professor, eles acendem fogo. Quando é de madrugada
estão lá se esquentando lá. O fogo aqui aceso, e eles estão
lá no calor do fogo, né? Tá lá o frio, tá fazendo frio, mas
eles são acostumados. Quando vem pra cá, pro interior,
pra ci- dade, eles têm a camazinha deles, que a cama [...]
esquenta, embaixo não é como uma rede, que esfria
quando o vento bate. Aí a casa com sofá já não tem como
entrar a frieza por baixo. Já lá na rede, corre lá pra beira do
fogo. Aí acende o fogo e eles estão lá se esquentando. Aí,
daqui um pouco eles vão, esquentam a coberta e vão pra
rede, se embrulham. Amanhece dormindo. Então, isso é, é
o costume. É o costume da tradição indígena. Isso aí nunca
eles vão esquecer. Isso aí já é história deles, é das crianças.
Nós como tuxauas, nós apoiamos muito esse lado. Nunca
ninguém vai esquecer. Isso aí é, nós vamos preservar até
onde Deus permitir que a gente viva assim, né? Aí os
senhores têm a parte do senhor como, como professores,
não vão fazer isso. Quando vocês forem dormir lá dentro,
vocês vão estranhar, porque as crianças estão tudo na
beira do fogo. “Oh meu Deus! Isso vai...” “Vai, vai
pegar...”, como é que chama? “Uma doença.”
DF: Uma friagem.
AM: Pegar uma quentura com frio. Dá uma doença aí
que pode matar. Mas são acostumados já àquilo. [...]
DF: E os indígenas antigos, eles tinham muitos rituais. É
claro, a Igreja Católica tem o ritual dela...
AM: Isso.
DF: Esses rituais ainda existem na comunidade do
senhor ou não existem mais? O senhor preserva? [...]
AM: Eu pelo menos como mais idoso, que a gente
sempre canta um parixarazinho. Às vezes, quando eu
quero cantar, minhas crianças zombam de mim: “Ah, vovô
tá cantando sem ninguém nem saber o que é isso!” “Ah,
meus filhos, isso aqui é de vocês mesmo.”
Projeto: Panton 1
DF: Justamente.
AM: Isso aqui veio do meu pai, veio dos meus avôs. Eles
deixaram pra nós hoje. Nós temos esse, esse, esse cântico
de parixara, de (como se diz?), de tempo de Natal, tem o
areruia, tem o parixara. E também nós preservamos muitas
orações que hoje também fazem parte da saúde, das
crianças que estão com diarreia ou que estão assustados, a
gente vai. A gente, como mais velho, a gente reza em cima
duma criança e aí fica bom, né? Então, essa preservação
professor, a gente tem sempre em dia, em forma mesmo
assim de, de estar com ela, né?, E que mais?
DF: Isso.
51
Secretário Estadual da Secretaria do Índio de Ro- raima, Adriano
Nascimento, à época.
Projeto: Panton 1
AM: Ah sim, tá certo. Vamos criar, professor, com
certeza. Isso aí ninguém vai deixar de ter uma
criaçãozinha. Na verda- de, o que estamos falando é de
melhoria. A melhoria não é só pra gente ficar dentro de um
lugar, às vezes ter bastante sítio e não ter criação ao lado.
Hoje estamos pensando de ter criação de galinha; estamos
pensando de ter um viveiro de peixe, porque eu vou ficar
velho, não vou poder pegar meu canicinho pra pescar lá no
Parimé. Então, lá no Uraricoera, é longe. Pode jacaré-açu
vai lá, pegar uma pessoa né? [...] Então, estando lá
pertinho, uma lagoazinha, próximo, aí já posso ir lá. De
manhãzinha, já estou com um peixinho; as crianças estão
fritando. Quanto mais próximo, é melhor. Aí a gente se
sente que tá seguro, porque ninguém pode facilitar hoje,
nós estamos pensando de ir viver numa, de melhor, de
melhor vida. Então, a gente tem que procurar criando,
crian- do galinha. Criando, já os outros criam confusão.
Ninguém quer confusão.
DF: Justamente.
53
Fátima Gouveia, profes- sora do ex-território, muito respeitada na
cidade de Pacaraima.
1 Projeto: Panton
[...]), de dizer que o senhor não tem direito, né? Vamos
dizer assim. Todos nós temos direito. Assim como o senhor
tem direito, o indígena também tem sua parte de direito
também. Só, vamos dizer assim, nós usamos a igualdade
igual. Cada um de nós, indígenas, temos direito como os
outros têm também, o próprio branco. Preconceito não
tem assim de dizer que a gente é...
DF: Diferente.
AM: Diferente. Desclassificar ninguém: “Ah, porque fu-
lano é preto, fulano é branco.” Não. Preconceito então,
pra mim, eu acho dentro de mim que somos, todo mundo
somos iguais. [...] O que pode existir, porque um pensa
dum jeito, como o branco, e nós também pensamos
diferente deles também. Mas quase o mesmo caminho que
o outro vem pen- sando, a gente vem pensando junto,
porque até, porque nós estamos tendo, e vendo, nós
estamos dentro da sociedade, civilização. Hoje não tem
mais quase índio que anda naqueles tempos como andava
tempos passados. Hoje nós estamos cada vez mais se
desenvolvendo, vendo a parceria dos outros brancos. E pra
mim, ninguém tem preconceito de...
DF: Outra coisa, como é que o senhor vê a questão: se,
por um lado, o índio é dono da terra; por outro ele não é.
Porque a terra pertence, na realidade, à União.
AM: À União.
DF: O índio só é um beneficiário.
AM: Sim.
DF: Como é que o senhor vê isso, esse negócio de, de
repente a gente luta por uma coisa, pra estar na terra, mas
ao mesmo tempo você não pode usufruir a terra direito,
porque ela é da União?
AM: Isso.
DF: Como é que o senhor vê essa questão?
AM: Bom, essa questão a gente tá vendo, que... Eu
estive conversando, eu lancei uma pergunta pro delegado
Projeto: Panton 1
da Polícia
1 Projeto: Panton
Federal, eu disse assim: “Delegado, o senhor, uma
pergunta pro senhor, que dizem que a terra é da União.
Mas essa União é do povo brasileiro ou do povo
estrangeiro? Porque, do que eu estou entendendo um
pouquinho que tá dizendo, a terra é da União. Então, a
terra é do povo brasileiro. É isso delegado?” Eu falei pra
ele. “É rapaz, é da União, de todos, né?”, e não quis me
explicar direito, mas disse que a terra é da União. Tornei
perguntar dele de novo o que era União, que ninguém
tava sabendo o que é essa União. A União que nós
sabemos dentro da comunidade é que estamos unidos,
todo mundo trabalhando de união, só em um objetivo só.
É o que eu entendo de união. Aí ele diz União é, não sei
como, não sei nem como dizer, professor, pro senhor que
até agora eu estou confuso.
DF: Não tá entendendo né?
AM: Não estou entendendo que é essa União. Eu acho
que...
DF: União é do governo, é do Brasil?
AM: Do Brasil sim, do Governo Federal.
DF: Eh, mas é assim, uma terra que pertence a todos os
brasileiros.
AM: Todos brasileiros. Tá certo. Eh.
DF: A palavra significa isso, entendeu?
AM: Tá certo. Agora eu entendi como é que é.
DF: Não pertence só ao Devair, pertence a todos.
AM: Todo mundo, né?
DF: Isso. E é gerenciado pelo governo. É o governo que
gerencia. Como se fosse um parque, né?
AM: Isso.
DF: O que é muito complicado pro indígena.
AM: Não, pra mim, quer dizer, não é complicado. Isso
que eles estão fazendo, não acho que é complicado,
porque tem que ser assim, né? A gente tem que trabalhar
Projeto: Panton 1
conforme
1 Projeto: Panton
eles estão pensando.
DF: A legislação.
continuidade ao projeto.
DF: Sim. Então, a base hoje lá é a pecuária?
VR: É a pecuária. E também a agricultura...
DF: Mas é mais de família, não?
VR: Isso!
DF: Individual, não é?
VR: Individual.
VR: O forte mesmo é a pecuária. [...]
DF: Qual o nome dos pais do senhor?
VR: É Liberalino e Neuza.
DF: Os dois eram macuxis?
VR: Os dois são macuxis. Só que não são falantes.
DF: Eu estou perguntando isso porque têm muitos que
o pai é macuxi, outros é taurepang, pra saber mais ou
menos.
VR: Eh.
DF: Hoje na comunidade tem alguma religião predomi-
nante?
VR: É a católica. E têm alguns que são evangélicos tam-
bém, da parte, eu não sei a religião, é Batista; Batista mais
ou menos, Batista missionário, mas são poucas pessoas,
quatro pessoas mais ou menos?
Projeto: Panton 1
DF: Mas a maioria, então, é católica?
VR: É católica.
DF: O senhor também é católico?
VR: Também.
DF: O senhor é casado?
VR: Não, sou junto, não sou casado no papel. [...]
DF: Casado. Inclusive essa é uma questão interessante:
esses conflitos que os indígenas vivem: ao mesmo tempo
em que têm as comunidades que têm suas regras antigas,
por exemplo, antigamente ninguém casava no papel, não
é?
VR: Não.
DF: O casamento é um ritual dentro da comunidade,
mas hoje em dia tem que ter esse ritual e ainda tem que ter
o outro.
VR: Pois é. Isso aí que muitas pessoas perguntam,
assim: “Mas você é casado?”; “Não. Eu sou não sei o quê,
junto não sei o quê...”; essa coisa que também tá entrando
nas comunidades indígenas, que tem que ter o casamento
no papel, não é?
DF: Isso já tá forte, também?
VR: Já. Não lá dentro, mas assim, eu acho que pelos
pro- fessores que têm assim, por exemplo: é que ele é
funcionário, o marido não é ou a mulher é, eles querem
casar pra garantir
o sustento de seus filhos, é mais ou menos assim.
DF: E o que o senhor pensa a respeito dessa questão,
assim, dessa legislação dos não índios que acaba entrando
tão forte na comunidade? Você acha que o índio tem que
se- guir essa lei, não tem, o que é que o senhor pensa a
respeito disso? Ou o senhor nunca pensou a respeito? [...]
VR: Pois é, eu acho que hoje a gente tá num país demo-
crático, um país hoje que vive o capitalismo realmente, já é
um país capitalista. Então, hoje a gente não tem pra onde
1 Projeto: Panton
fugir, não é? A gente tem mais que abraçar essa causa, mas
Projeto: Panton 1
respeitando, tanto faz, a parte do não índio e respeitando
a nossa parte, dos nossos rituais, nossas histórias, todas
essas coisas assim.
DF: A tradição...
VR: A tradição. Mais ou menos assim, né? Mas eu acho
que a nossa parte, vamos dizer assim, dos brancos se
envolver dentro da comunidade, acho que hoje todo
mundo precisa disso. Por exemplo, hoje ninguém pode
viver só naquilo. Mas só que, hoje, o país hoje é um país
globalizado, onde os alunos precisam estudar, se formar,
ser médico, pra voltar pras comunidades, ser advogado
pra ajudar as comunidades. Essas coisas assim. Então, pra
isso, como é que pode dizer, es- sas coisas dos brancos,
acho que tem tudo a ver com a gente, hoje em dia. Por
exemplo [apontando pra um computador], um
computador desse aqui, então, a gente tem que estar por
dentro das coisas, tem que estar acessando a internet pra
ver como é que tá o país lá fora, aqui dentro mesmo.
DF: Não tem como fugir.
VR: Não tem como fugir, tem que estar nisso, tem que
aproveitar disso, se aprofundar, dizer assim, né?
DF: A sua esposa também é macuxi ou não?
VR: Macuxi mesmo.
DF: Quantos filhos o senhor tem?
VR: Três.
DF: E qual foi a coisa mais triste que o senhor viu até
hoje e qual a mais feliz?
VR: Mais triste: durante agora esses tempos, foi a
perda de uma aluna da comunidade. Ela se suicidou,
ninguém sabe por quê? E ela, assim, é parenta nossa,
então é uma coisa triste, né?
DF: Não se consegue explicar direito.
VR: Ninguém sabe por quê, então, ninguém sabe. Nin-
guém sabe por que ela se matou, então...
1 Projeto: Panton
DF: Ela não disse nada a ninguém? Não deixou uma carta?
VR: Deixou uma carta pra mãe dela, dizendo que se a
mãe dela não chegasse aquele dia, ela ia se, ela ia, como é
que pode dizer, assim, se arrepender, né? Se a mãe dela
não chegasse aquele dia, ela ia se arrepender. Então, foi,
meteu a corda no pescoço e pulou da casa. Se suicidou e
morreu. [...] Pois é, e o próprio irmão dela que morava
junto com ela, chegou na casa de noite, porque ela dormia
assim no sofá e numa rede. Aí ele chegou na rede dele e
dormiu a noite todinha, pensando que a irmã tava bem. A
irmã dele tava lá no quarto pendurada, ele não via ela
mexer, só quando ela dormia. Aí, de manhã, ele foi ver ela
no sofá, ela não tava. Aí entrou no quarto e ela tava
pendurada desde as oito da noite.
DF: Aí é triste mesmo.
VR: Eh.
DF: E feliz?
VR: Eh, feliz, hoje, porque tenho uma família, têm meus
pais que moram perto da gente. Acho que a maior
felicidade é ter a família unida. Acho que é uma das
felicidades [...] e saúde principalmente.
DF: O senhor nasceu onde, aqui no Alto mesmo?
VR: Aqui no Alto mesmo. No Alto São Marcos.
DF: Certo. E agora vou fazer algumas perguntas mais
sobre a comunidade. Qual a história da fundação da comu-
nidade, o senhor sabe?
VR: Eh, como eu tava contando naquela hora, dentro
da comunidade hoje, são as histórias que a gente já sabe,
que a comunidade veio desse processo de 1900 pra cá, foi
um livro que, que o meu professor também lá da
55
Theodor Koch-Grünberg, comunidade tem achado por internet e achou, foi de um
etnólogo alemão, visitou
Roraima entre 1911-13, fi- alemão, parece, Koch-Grünberg. 55
cando também na região
do Surumu. DF: Ah, sei.
VR: Não sei se você já teve acesso a esse livro…
DF: Eu já vi um vídeo dele.
Projeto: Panton 1
VR: É, né? Já ouvi falar que na Serra do Mel, você sabe
onde é no Surumu ali.
DF: Sim.
VR: Lá é uma comunidade muito grande, aí tivemos
que passar, que eles passam não sei quantos dias de festa
na comunidade, aí dizia que chegava gente e alugava, por
exemplo, lá, o Mairari, que é hoje a Serra do Mairari, que
é uma comunidade, que chamam de Mairari. Então, vinha
também do Amajari e a gente falava também do Orocaima,
que é Santa Rosa hoje, porque na verdade o nome de lá é
Orocaima.
DF: Orocaima?
VR: Orocaima. Então, ele falava assim, que chegava
muita gente, como é que se fala? Oracaima. Então, por isso
que talvez seja Sorocaima, né?
DF: Sei.
VR: Até porque era escrito, em quê? Em espanhol. [...]
Eh, então foi, então, esse é o processo que vem vindo, a
gente diz que, segundo as histórias, lá era uma
comunidade muito grande mesmo, a gente sabe onde tem
um, várias é… assim, onde já morou gente, a gente sabe.
Tem aquelas, como nós indígenas sempre [usávamos],
hoje quase ninguém usa mais aquelas pedrinhas de botar
as panelas assim. A gente encon- tra por aí, monte de
pedra, panela, panela velha, assim, então é sinal que ali foi
um território indígena desde antigamente.
DF: Sim.
VR: Então, de lá pra cá diz que o pessoal, morava muita
gente lá mesmo, e segundo o pessoal me conta que eu sou
o, vamos dizer assim, descendente dessa família de lá,
ainda. Porque diz que o primeiro tuxaua, quando o antigo
meu avó, que hoje tá vivo, ele tá bem velhinho hoje, não
dá nem mais pra conversar com ele, porque tá assim bem
velhinho mes- mo. E fé em Deus, que o homem que
morava com ele, um tal de João Sales. Então, esse João
Sales era pai do Lobato, esse Lobato foi um tuxaua
1 Projeto: Panton
também, esse João Sales foi o
Projeto: Panton 1
primeiro tuxaua, depois esse Lobato, que era o filho dele.
E, segundo o pessoal, esse Lobato, que é o avó do meu pai,
assim, é assim que conheço a história. Então, de lá pra cá, a
comunidade, ela tem se chocado muito atrás desse tipo de
doença, morreu muito, era catapora, sarampo, essas
coisas assim que, essas coisas que, segundo o pessoal, que
são os brancos que trazem, não é? [...]
DF: E quando eles vieram, as pessoas que tinham aqui
não tinham resistência.
VR: Então, essa doença chegou e pegou e foi extermi-
nando um bocado, então o pessoal que não morreu, saiu,
foram-se embora. [...] Pois é, então, de lá pra cá, diz que o
pessoal foi-se embora, né? Aí passaram uns tempos fora da
comunidade lá do Orocaima. E nisso chegou o pessoal
bran- co, os maranhenses, o pessoal daí de fora. Então,
chegaram lá, passaram um bocado de tempo por lá, tal. Aí
esse, esse velhinho que eu disse pro senhor, que tá pra
Boa Vista, esse velhinho que foi tuxaua vinte anos? Então,
ele chegou lá e viu, viu que os brancos estavam tomando
conta mesmo da comunidade. Então, ele chegou lá e
conversou com eles e tal, aí, que não podia ficar só os
brancos e tal. Aí sei que empossaram ele como tuxaua de
lá. Não tinha ninguém na época, não tinha mais tuxaua lá,
já tinha morrido o Lobato, tinha morrido o João Sales, já
tinha morrido já. Empossaram ele como tuxaua lá, então,
de lá pra cá os brancos foram-se embora, casaram, acho
que cansaram de ficar por lá também e foram-se embora.
Então, de lá começou de novo a comuni- dade, daí ele
brigou muito pelas fazendas hoje, pelas, vamos dizer
assim, é por causa dos invasores lá, dos fazendeiros. É
56
A entrevista foi realizada porque lá na comunidade (daqui a pouquinho eu vou
na sede da Universidade
Estadual de Roraima, em
mostrar pro senhor qual era nossa área de comunidade), 56
Pacaraima. porque a comunidade era só naquele campo ali mesmo,
ninguém entrava no mato porque era do branco.
DF: Entendi.
VR: E quem entrasse naquela mata ali, a gente era ame-
açado de morte pelos brancos. Sim, ele falava [que] era
dele, então a gente não tinha toda essa liberdade pra estar
1 Projeto: Panton
caçando e pescando não. Então, ele teve essa briga com
ele e foi muito perseguido lá, foi esse processo todo. E
conse- guiu também a demarcação junto com o pessoal
daqui da reserva São Marcos, hoje. Então, ele lutou
também. E tem que conseguiu também um projeto de
gado que hoje nós temos lá também. Então, ele passou,
segundo assim, passou vinte anos, quem sabe foi até mais,
ninguém sabe, né, porque muitos deles eram analfabetos,
não sabiam nem contar. Aí ele calculou que eram vinte
anos, assim.
DF: Tá certo, o meio de transporte ali é aquele que a
gente viu mesmo?
VR: Eh.
DF: Quando precisa vem de bicicleta.
VR: Eh, vem de bicicleta, uns dois tratorzinhos lá, cavalo,
é assim mesmo.
LB: Não.
LB: Macunaima?
DF: Eh.
EM: Não.
LB: Tem gente que sabe. Já ouvi contar, mas não aprendi.
EM: Poraquê.
LB: Poraquê levantou e se agarrou com o pai dela. Se
agarrou com o Trovão, botou o Trovão no chão, porque ele
dá choque. Aí o Poraquê ganhou a filha do Trovão.
DF: Foi é? [Risos]
LB: Eh, assim é a história.[...]
DF: É o peixe elétrico, né?
LB: Ele que casou com a filha do Trovão. É a história.
DF: O que significa Orocaima, a senhora sabe?
Projeto: Panton 2
LB: Orocaima é donde existe muito papagaio.[...]
LB: É Orocaima.
DF: Aqui então tem história que era muita, que tinha
muito papagaio aqui?
LB: Tinha. [...]
LB: A gente chama o espírito. Vem cá; vem com teu pes-
soal, com teus irmãos; vem comer sua comida junto com
a sua família. É assim que a gente cantava, né. Hoje já não
existe mais.
DF: É tão bonita a música, não é?
LS: É bonita.
LB: É assim[...]
DF: Aí fica cantando e dançando?
LB: É todo mundo fica dançando pra lá e pra cá.
LS: Já tem outra. Tem outra música?
LB: Tem.
LS: A senhora lembrou agora?
LB: Estou lembrando devagar.
DF: É. A gente não tem pressa não.
LB:
Shiso, Shiso ya purîu ya sîrîrî pe penane (3 vezes)
Shiso, Shiso morî antî kî sîrîrî pe penane
Shiso, Shiso u’pî katî kî sîrîrî pe penane (bis)
Oi, oi, oi…
(Tawon senî’ kraiwa, eserenka’to)
[...]
LB: É, é...
LS: Em português.
Música.
LB: Iwareka piipî uri tumai, Iwareka piipî uri tumai é da-
morida. Usan purari é tambor. Uri tumai é damorida. “Coro
de guariba é meu tambor”, né? “Coro de guariba é minha
damorida.” São só essas duas palavra, são quatro aliás, né.
[...]
LB: De Natal.
DF: É aí.
LB: Eh.
DF: Eh.
DF: Um ritual?
EM: Eh.
DF: Depois daquilo, era quase como que ele fosse
aceito na comunidade como homem, como guerreiro, não
é isso?
EM: É.
DF: A senhora lembra o que faziam com eles, alguma
coisa?
LB: Bom, o rapaz, quando ele tá ficando rapaz, os
velhos curavam, com a pimenta, cortavam tudo, botavam
pra caçar. “Eu vou botar seu Eduardo pra ir pescar.”
Primeira vez que ele vai pescar, né. Já fizeram trabalho
com ele.
DF: E como que era o trabalho?
LB: Pimenta ou tajá, tem o tajá que eles fazem. Lava o
braço, ferra com a lacraia, como ele tava falando. Tanto
fazia mulher como homem também fazia, dava uma
ferradinha de lacraia. Às vezes ferrava com aquele
tucandeiro que cha- mam. Já hoje não existe, existia
Projeto: Panton 2
muito. Aí vai o rapaz. Vai seu Eduardo, vai, vai caçar, leva a
espingarda, leva seu caniço e vai pescar. Aí ele vai pescar,
ou traz veado ou peixe mesmo,
2 Projeto: Panton
ele chega com a caça dele. Ele não vai ter direito de comer
a caça que ele matou.
DF: Não?
LB: Não. Senão ele fica panema. Não mata mais caça.
DF: O que é panema?
LB: Panema é, como é que, não mata mais. Nem peixe
se ele pegar ele não come.
DF: A primeira vez.
LB: A primeira vez. Se ele pegar não tem o direito de
comer a caça dele. Assim, assim mesmo menina. Menina,
quando ela se forma primeira vez, ela não tem direito
assim de conversar com rapaz; não olha pra gente; tem
que armar rede dela bem alto, que pra quando chegar
homem ou rapaz não ver. É proibido ela olhar pras
pessoas. Aí ela, por exem- plo, ela menstruou hoje: “Ela tá
menstruada.” “Então você vai ser guardada.” Aí guarda.
Isso era antigamente.
DF: Guardava como?
LB: Guardada é deixar lá dentro pra ninguém mexer
com ela, não conversar com ela. Arma redinha dela, bota
bem em cima, dessa altura assim, ela fica deitada.
DF: Quanto tempo a pessoa ficava?
LB: Uns três dias, quando ela termina menstruação.
Passa três dias, aí o avô ou pai trança olho de buriti assim
pra ela sentar em cima. Quando é de madrugada, cinco
horas, ela já tá melhor, né, senta ela naquele trançado,
como um tapete. Ela senta ali, ela vai fiar algodão, aí ela, já
é cinco e meia, ela trança de novo olho de buriti bem
comprido. “Embora, você vai tomar banho agora.” Chega
lá na beira do rio, ela vai levar três tacadas de olho de
buriti.
DF: Olho de buriti é o que? É uma...
LB: É trança.
EM: Cipó.
Projeto: Panton 2
LB: Como é, modo dum cipó. Palha de buriti, eu chamo
2 Projeto: Panton
de olho.[...] Trança, aí o pai dá três tacadas na menina, aí
ela cai na água, toma banho e vai embora pra casa. Aí
quando ela vai ralar mandioca, é benzido, o pai benze pra
poder ralar mandioca. Aí manda ela cantar.
DF: Cantar o quê?
LB: Cantar, quando ela vai cantar, ralar a mandioca ela
tem que cantar.
DF: A senhora não lembra a música não?
EM: A música da mandioca, ela sabe.
LB: Sei, sei.
DF: Então, é isso, a senhora poderia cantar pra gente?
LB: Canto sim. Aí ela vai ralar a mandioca. Aí a
mandioca tá benzida. Não acontece não. Se a gente pegar
trabalho assim, às vezes: “Ai, meu braço tá doendo!” “Ai
aqui tá me doendo!” “Minha mão tá doendo!” Pra não
acontecer isso, tem oração pra isso, que benze. Aí ela vai.
Taí a mandioca. Tá benzido vai ralar essa mandioca. Tá
bom. Aí ela pega ralo e vai ralar. Ela começa a cantar assim.
Ariike’ kai’ma sane (bis)
A’piya uyawi’shi rumpa’ pî
Ariike’ kai’ma sane (bis)
A’pi ya uyawi’shi rumpa’ pî
Mîrîrî warantî e’seren ka’ pîtîpî
DF: Ah pote!
LB: Não. Não faço, porque meu marido não quer mais
que eu trabalhe assim, por causa das mãos, que eu estou
cheia de reumatismo. Aí ele me ajudava, tirava barro né,
batia barro
Projeto: Panton 2
aí pra mim. Teve o começo de trabalho dos alunos aqui. Foi
bonito, mas acabou em nada.[...]
DF: Então, qual outro trabalho que a senhora fazia?
LB: Tî wa’.
LB: Trempi.
DF: Ah, sei o quê que é. [...] Tem nome indígena também
Projeto: Panton 2
ou não?
LB: Já, já existia. O meu pai conta que, que ele, primeiro
padre que andou por aqui, padre alemão, ele fala assim
nome dele é Dom Preau, né Eduardo?
EM: É.
DF: Então.
DF: Em macuxi.
63
Aponta para a mata ao seu redor.
do Surumu lá era a FAB. Não existia nem carona porque não
existia nem carro.
DF: Qual era o transporte?
JV: Avião, aqueles aviões da FAB.
DF: Ah! Da FAB, Força Aérea Brasileira.
JV: Eh. Força Aérea Brasileira. Daqui pegava gente,
todo tempo pousava aqui. Aí nós fomos pra pegar, os
outros [ga- rimpeiros] que iam pra Boa Vista, foram pra
pegar avião. Aí, daí, fui embora pra casa, fiquei não,
morava já aí.
DF: Chegou a garimpar no Tepequém?
JV: Não, nunca cheguei a conhecer não, até hoje não
che- guei a conhecer. Mas no Maú eu trabalhei muito. Eu
peguei muito dinheiro e não tenho nada na vida até hoje.
Eu digo, todo mundo sabe já que eu peguei muito dinheiro.
Eu era, sempre sabia o que era dinheiro; assim, mesmo os
meus pais de criação, que eram diamantários, roubaram
muito dinheiro, não davam nem metade do dinheiro,
compravam as fazendas, tudo. Aí eles também morreram
sem nada também, acabaram tudo. Aí, até hoje arranjei
mulher e estou com ela aí. É minha vaca que eu comprei
com o dinheiro de diamante né? [risos]
DF: [risos]
JV: E quando tá com dez anos, já tá tarada, já tá ficando
buchuda, isso que tá acontecendo hoje. Tudo eu digo
assim, né, que tá acontecendo isso. Pois é, antigamente
eles dan- çavam assim. Aí passavam dois, três dias ficavam
bêbados, e ninguém não abusava, eles não brigavam não.
Aí ia acabar a festa, ia embora. Aí outro tempo, já outra
comunidade ia fazer outra festa, já a tal de parixara, né?
Agora, o negócio de aleluia era pra ser visto no Natal, dia
24, 25, eles dançavam muito esses daí também, eles
Projeto: Panton 2
dançavam muito.
2 Projeto: Panton
DF: Sim.
JV: E acabou. Hoje acabou.
DF: E, por exemplo, história de macaco, de alguma
coisa, o senhor sabe?
JV: Não... História de macaco, tem muita história de
macaco, né...
DF: Assim, alguma lenda. O senhor sabe alguma, já
ouviu falar?
JV: Tem. Nunca ouvi falar dessa de macaco. Tem essas
de macaco, muito, mas eu não sei contar bem não. Tem a
do jabuti também, né...
DF: Então!
JV: Tem o Jabuti, diz que enganava onça, né?
DF: Como?
JV: Só tinha um bebedor. Aí história começa com a do
macaco. Só tinha um bebedor. Aí, jabuti tava lá, destar que
tinha uma onça no bebedor. Demorou, Jabuti não aguen-
tou mais de sede, né, aí apareceu lá. Aí a Onça velha “tan”,
pegou. Aí: “Ah! compadre Onça, o que tem de comida pra
gente comer, tô com uma fome” “Ah! Compadre, não vai
me comer não, rapaz. Não vai me comer, não.” “Tô com
fome. Tava só esperando boia pra chegar aqui pra mim
pegar; tu apareceu, vou te comer agora.” Aí tinha um pé
de buriti, assim: “Então pra mim não escutar teu dente
dentro do meu casco, quebrando, tu me leva lá no pé de
buriti, aí me quebra todo e tu me come; aí não escuto
zoada do teu dente valente.” Aí, Onça velha foi lá no buriti,
aí “pá”, escapuliu, não quebrou não, aí mergulhou dentro
d’água. Aí onça tava lá esperando jabuti boiar, Jabuti
nunca boiou, foi pra outro canto. Lá aparece o Macaco de
novo com sede, aí pega o Macaco de novo. Aí Jabuti fala:
“Olha, compadre Macaco, tem uma Onça aí que tá só
esperando pra comer a gente. Eu enganei ela dizendo que
ia quebrar casco no pé de buriti, mas não quebrou não. Eu
caí e mergulhei, aí eu vim boiar
Projeto: Panton 2
aqui.” “Eu vou enganar ela lá.” Aí ele foi. Aí tava bebendo
água, aí pegou ele: “Ah! Macaco, eu vou te comer. Jabuti
me enganou, agora eu vou te comer.” “Não rapaz, como é
que tu vai fazer? Me pega pelo rabo assim, me roda assim e
me joga lá, pra mim bater no pau, pra não escutar teu
dente na minha cabeça.” “Tá bom.” Aí ele pegou assim,
jogou no pau, pegou no pau lá dentro. Aí Macaco foi
embora. Só tinha um bebedor. “Agora, dois me
enganaram. Agora, como que eu vou beber água agora?”
Aí ele entrou, achou um abelheiro, né, se melou de mel
todinho, se melou lá. “Eu vou beber água agora.” Aí se
melou de mel, chegou lá se encheu de folha, o Macaco. Ele
já tinha ido duas vezes. Aí chegou lá. “Ah! Compadre
Folharal, agora eu vou te comer. Macaco me enganou, eu
vou te comer.” E o [Macaco Folharal falou]: “Eu não sou
Macaco não. Aqui não tem nada pra tu comer não, eu sou
magro.” “Não, eu te como assim mesmo, eu tô com
fome.” Aí pegou de novo. “Agora eu vou fazer assim o
mesmo que tu fez com o Macaco. Tu me leva...” Lá ele joga
de novo; escapuliu e foi embora. Lá, ele correu atrás dele
lá, aí entrou no buraco do tatu assim. Entrou no chão. Aí tá
lá, no buraco, pelejando pra tirar. Peleja pra tirar e nada. Aí
chamou urubu: “Ei compadre Urubu, tu fica aqui vigiando
esse buraco aqui que o Macaco Folharal tá aí dentro; que
eu vou buscar ferramentas pra mim cavar.” “Tá bom,
então pode ir.” Aí foi embora atrás de coisas dele pra
cavar. Aí ele chegou, não, aí ele apareceu, aí Urubu tava lá.
Aí o Macaco: “E aí compadre Urubu, o que é que tu tá
fazendo aí?” “Rapaz, eu tô vigiando aqui que o compadre
Onça deu ordem aqui, ele foi buscar as coisas dele pra tirar
o Folharal que tá aí dentro.” “Sou eu que estou aqui
rapaz.” “É tu é?” “É, mas tu arregala bem os teus olhos
assim, porque se tu não arregalar bem teu olho, assim, eu
vou sair e tu não vai nem me ver. Tu arregala teus olhos
bem assim e fica bem perto do buraco com os olhos
arregalados, aí tu vai me enxergar quando eu sair.” Aí ele
pegou um pouco de barro lá, aí quando ele arregalou os
olhos dele, aí “tá”, ele jogou areia nos olhos dele, barro
nos olhos dele. Aí ele saiu e foi embora. Olha aí a história
2 Projeto: Panton
do compadre Folharal. Aí a Onça chegou: “Cadê, ele tá aí.”
“Rapaz, ele tá
Projeto: Panton 2
aí.” Aí cavou o buraco, o lugar mais limpo. Folharal já tinha espantou, a
ido embora. Mas era mesmo ele, o Macaco, só que ele se
melou com o mel, né, aí se enrolou na folha e ficou cheio
de folha. Acabou já a história do Macaco. Uma história que
eu estou concluindo até hoje...
DF: [risos] Dá saudade?
JV: [risos] Matando a saudade. Pois é, professor, é
assim a história...
DF: E história do Macunaima, o que é que o senhor
sabe a respeito, que o senhor ouviu contar?
JV: A história do Macunaima com aquele irmão dele. O
irmão dele era o Anaipê,64 do Macunaima, do Insikiran,né?
Do Insikiran, eles andavam muito por aí. Aí irmão dele,
esse Anaipê era danado, era danado, ele andava em todo
coisa que não prestava, né? Aí o irmão desse, o Insikiran
dizia pra ele: “Meu irmão, deixa de estar fazendo danação
rapaz, tu morre!” “É nada. Não vai acontecer nada
comigo, não. Eu sei o que eu tô fazendo.” Aí acharam um
buraco onde morava um camaleão muito grande. Aí: “Eu
vou cavar esse camaleão, mano, pra mim, pra nós comer,
pra...” “Não rapaz, deixa ele, ele é brabo...” “Não, eu vou
cavar ele!” Aí foi cavar ele. Aí lá esse camaleão comeu ele,
engoliu ele. Agora o que esse Insikiran faz? “Agora comeu
meu irmão, eu fiquei sozi- nho.” Aí cava o buraco, até que
achou camaleão lá dentro, camaleão grande que tinha
engolido o irmão dele. Aí lá ele matou o camaleão, partiu o
camaleão, e o irmão dele tava lá dentro inteiro, tinha
engolido inteiro, já tava morto já, né? Lá ele trabalhou,
rezou, aí lá levanta de novo esse irmão dele: “Rapaz, mas
tu é muito teimoso. Eu não disse que ia te engolir. Você é
muito teimoso...” “Não, eu só queria malinar de ti fazendo
isso.” “Mas não faça mais uma coisa dessa não, meu
irmão, porque tu só fica me dando trabalho.” Lá foram de
novo. Aí tinha esse tal de Mapinguari, aí tava lá. “Mano,
umbora empurrar uma pedra.” “Rapaz, deixa aí, o Sol vai
escurecer, vai escurecer aqui pra nós.” “Não, eu vou
arrumar uma pedra.” Aí tinha uma pedra em falso assim
em cima dele, aí empurrou a pedra. Quando ele se
2 Projeto: Panton
64
Anaipê é conhecido em geral por Aninkê.
Projeto: Panton 2
pedra veio “pá”, aí matou o Curupira. Lá escureceu, aí eles
estavam no escuro. “Rapaz, você é muito danado.” Aí lá
fez trabalho de novo pra clarear. “Mas, você é danado!”
Então, assim a história desse Macunaima né, que eles
chamavam Insikiran e o irmão dele era Anaipê né, história
deles. E fize- ram tanto aquelas serras, serra do... Aquelas
pedras por aí que tem, aquelas pedras de carapanã foi eles
que fizeram; aí aonde mexe com essas pedras, aí dá
carapanã. Aí tem pedra de pium, aonde fizeram, pedra de
pium mesmo, fica ali, aí quando mexe com ele, com pedra
de pium, aí dá muito pium. Foi eles que fizeram isso. Esse
era armação do irmão dele, desse Anaipê que fez.
DF: Taitei.
JV: Pois então.
DF: E ele faz o quê?
JV: Ele mesmo, ele uma pessoa, mas só que ele é um
bicho encantado.
DF: É um bicho encantado.
JV: Bicho encantado que vive na mata também.
HM: O senhor pode descrever ele pra gente, como é
que ele é?
JV: Não, ele é gente mesmo, ele é gente, completamente
gente, mas só que ele cabeludo.
DF: Ele faz maldade, alguma coisa?
JV: Ele não faz não, ele não faz maldade não. Ele mora
mesmo por aí, pra espantar os outros, por aí.
DF: E sobre o Canaimé, o que é que o senhor sabe?
JV: Canaimé, é gente mesmo, rabudo, né? É como tem
bandido na cidade, então esses daí são Canaimé, chama
Kanaimî.
DF: Kanaimî?
JV: Kanaimî, que nós chamamos Kanaimî, em macuxi.
Kanaimî anda de muito, não andam de pouco não, anda de
2 Projeto: Panton
quarenta, anda de trinta, anda até menina, mulher deles,
anda com eles pra pegar homem, assim. A gente, eu estou
trabalhando ali, aí eles estão aqui, aí estamos trabalhando,
fazendo a roça. Aí o que é que ele faz? “Aí tu se apresenta
lá pra ele.” [Diz] pra menina né: “Enquanto tu se
apresenta pra ele lá, aí tu convida ele pra fazer relação
contigo. Aí então tu faz, tu segura ele com força que nós
vamos pegar ele lá!” Aí apresenta menina lá. Ele anda com
menina. Aí enquanto a gente fala pra ele lá, aí ela encontra
o homem, que homem [não tá] cismado, aí pega ele, se ela
agarrar aí já vem e encosta, o rabudo velho. Aí pegam ele,
aí quebra ele todinho. Eles tiram bumbum da gente
enfiando a faca, eles tiram bumbum, assim. Aí costuram lá
dentro aquela tripa da gente, lá o resto do bumbum, fica a
costura. Aí eles cortam a piroca da gente, corta, corta
língua. Às vezes eles furam, pinicam todinha a língua,
todinha com espinho. Aí passam cuspe na boca da gente
assim, aí a gente olha, vai bonzinho daqui, não vai sentindo
nada, quando chega na tua casa, aí já vai logo, dá febre em
você lá na casa.
DF: Dizem que a pessoa não lembra.
JV: Não lembra não. Aí chegando você não diz nada,
você sabe, lembra, mas só que não conta pra sua família.
Lá doente, morre.
DF: Pra poder contar tem que fazer o quê?
JV: Tem que lavar água de pilão.
DF: Ouvi falar.
JV: Eh, água de pilão, lava água de pilão. Bota água,
lava pilão, aí dá pra pessoa. “Ah! Mas se tiver vivo, conta”,
mas tem gente que morre na hora, mas sempre conta
também. Assim, tem é muito desse que vem da Guiana.
DF: Vem da Guiana?
JV: Vem da Guiana.
DF: Já me falaram isso também.
JV: Vem da Guiana, vem daquelas serras, pro lado do
Bonfim. Ali só tem parente rabudo pra lá. Aqui nessa faixa
2 Projeto: Panton
da Venezuela tem; pra Guiana tem; tudo vem de lá.
DF: E eles fazem por fazer, não tem motivo nenhum.
JV: Sem motivo nenhum. Às vezes é assim, eles trazem
trança de peneira, jamaxim, abano, essas coisas assim, al-
gumas coisas que eles trazem, panela, lá vindo da Guiana,
eles trazem. Aí eles vêm vender a troco de uma rês. Vamos
dizer: eles tem uma rede, e querem uma rês, aí: “Ah! não,
tal dia nós vamos pegar, a gente deixa tudo fiado. Tá bom
nós vamos voltar.” E com poucos dias eles já vêm fazer
isso já, aí não tá nem esperando, tá devendo, quebram
dois, três por aí, aí vem embora, aí eles viram lobisomem
(nós chamamos oilubut, que vira bicho, aí vira tamanduá,
se transforma em tamanduá; transforma até na galinha, no
cachorro; até em mambira, tatu, tudo ele se transforma,
tudo bicho. Aí fica gritando assim, como imitando grito de
macaco, imitando pássaro, imita assim quando tá virando
lobisomem, nós chamamos assim no macuxi oilubut, que é
lobisomem no macuxi, oilubut.
DF: E iniciação de menino ou menina, como é que era
antigamente? Menina quando tá na puberdade, virando
mocinha, o que é que fazia antigamente?
JV: Antigamente, quando a menina se formava, era
mui- to difícil andar como hoje, não tem mais a lei, né? Hoje
já a menina se forma, como tava dizendo agora, a menina
hoje nasceu, com meia hora tá de calcinha, mas naquele
tempo a mãe da menina, e os curumim mesmo, não
usavam roupa primeiro, não usavam roupa não. A mulher
nascia, até mu- lher mesmo, até quando arranjava marido,
e naquele tempo [quando ia] arranjar marido, ela era
moça, não era como hoje que menina de dez anos não é
mais nada. Antigamente tinha, existia menina moça,
porque... não usava calcinha, mas tinha respeito, tinha lei
pra não coisar isso. Naquele tempo, era muito cuidado que
eles tinham quando a menina se formava. Aí diziam assim:
“Mamãe, já sangrei agora...” Aí cortavam o cabelo bem
curtinho assim, cortezinho assim, aí escondiam lá dentro,
aí só saía de lá depois de um mês. Aí guardado lá,
pendurado lá em cima, lá que a mãe dava [tudo]. Só tirava
escondido ela pra fazer xixi, levavam ela bem escondido
dos
2 Projeto: Panton
outros pra ela fazer cocô. Pra ela urinar era bem mistura com pimenta. Aí
escondido, ninguém não via não. Quando depois de um mandava pela venta, aí já
mês, quando ti- ravam de lá, que faziam... Aí tem esse pegava tudo assim, essas
urucum né, chama hoje de urucum que faz de coisa, pimentas,
colorau, esse daí. Apanhavam um bocado aí, misturavam,
fazia e dava pro velho rezar, pra poder levantar da rede,
levantar pra poder olhar os outros, pra poder andar com
os outros. E o velho rezava, aí tirava da rede, aí fazia, fazia
um cinturão de miolo de buriti, tinha mais isso ainda! Ele
botava, tirava esse daí, trançava um cordão assim: “Agora
cunhantã vai sair hoje.” E lavava ela por aqui tudo, nas
pernas dela, por aqui tudo. Aí tinha mais outro ainda,
molho de pimenta que passava por aqui pelos pés dela,
por aqui pelos olhos, tudo.65 Aí depois que passava esse
urucum, pintava ela tudo bem vermelho por aqui na
cabeça dela, por aqui no pé, tudo, pelos tudo pintado, pra
poder sair, né? [...] Hoje ninguém não faz mais: a menina
se formou, aí fica por aí mesmo, não tem mais respeito. Aí,
até antigamente... Por isso não adoeciam primeiro, não
adoe- ciam não, todo pessoal era sadio. Hoje a menina de
10, 12, tá adoecendo, tá desmaiando, porque não aguardou
a lei que o vovô, antigamente, eles guardavam, não existe
mais hoje, tá na civilização, não deixa né? Aí não tem
como.
DF: Sim.
JV: Né?
DF: E os meninos, tinha alguma coisa?
JV: Os meninos... Os meninos ficam rapazes, mas era
assim mesmo. Antigamente, os velhos criavam filho assim:
eles usavam muito, tal de puçanga. Usavam puçanga de
veado; usavam puçanga de jabuti; usavam puçanga de
capoeiro; usavam oração de tatu; de paca. Tudo tinha uma
parte, uma plantazinha como diz daí, eles usavam. O que é
que eles faziam? Os velhos, que eram pais deles, tratavam
as crianças, esses meninos, pra ser caçador, pra ser
pescador. Aí tem aquele, nesse mato por aí tem um
[jericazinho], ele corta que só. Aí tem aquele tal de, como
que chama?, um mato que tem por aí, aí corta tudo,
Projeto: Panton 2
65
Essas foram ditas e acom- panhadas por uma gesti- culação
indicando onde eram passadas a pimenta, o urucum..
2 Projeto: Panton
tudo eles passavam. Aí metia assim corda pela venta, aí
tirava, cortava tudo, tá tratando. Aí passava um mês, aí
levavam ele pra caçar, pra pescar, aí tá pegando peixe.
Pegando peixe aí. Por quê? Porque foi tratado, aqueles que
não eram tratados não pegavam nada.
DF: Pegavam não?
JV: Não pegavam, não. Aquele que não era tratado não
caçava, não enxergava veado, porque botava [pimenta],
planta nos olhos. Aí quando vai andando, tá olhando
veado: “Tem um veado ali.” “Mata!” Também eles não
comiam aquela caça que ele matou.
DF: A primeira.
JV: A primeira. Só comia já a terceira caça que ele
matava, que ele já podia comer; mas a segunda, primeira e
segunda ele não comia.
DF: O senhor sabe por quê? Tem alguma explicação?
JV: É porque, se ele comesse logo caça dele, que ele
matou, ele não matava mais, não matava mais, não
acertava mais tiro na caça. É por isso que era assim. Então,
esses meni- nos também, também tinham tratamento
também, pra fazer caxiri. Por que é que hoje caxiri não é
mais gostoso? Hoje se chama caxiri, chibé. Antigamente,
quando as mocinhas iam fi- cando grande, a mãe delas, avó
pegava aquele mel de abelha, aí queimava bosta de
cachorro, secava bosta de cachorro por aí, aí misturava, aí
pegava folhinha, corta né, aquelas folhas amoladas, aí
cortava a língua delas assim, mandava botar a língua pra
fora, aí cortava, tudo cortava, botava sangue pra fora, aí
deixava o sangue sair. Aí quando o sangue saía, parava, aí
mandava lavar com água, aí já queimava com esses
negócios. Já tinha pimenta malagueta por cima, aí
queimava tudo. Aí quando fazia caxiri, aí fazia um caxiri!:
“Agora mas- tiga beiju!” Então, é assim a história do
parente. Aí molhava um bocado daquele beiju assim, aí
molhava de molho, botava de molho assim, mastiga aquilo
tudinho. Aí como tinha o do finado velho Cícero que
morreu, o gaúcho, caxiri de boca, aí mastigava caxiri, aí
Projeto: Panton 2
botava na vasilha. Aí, massa tá cozinhan-
2 Projeto: Panton
do lá na panela, né?, tá no fogo lá a massa que faz caxiri. Aí
pegava essa outra coisa mastigada e misturava lá todinha.
Aí quando cozinhava tudo, tirava, peneirava. Quando dava
três horas, o caxiri tava bom de beber, já tava azedo já. Era
assim que se tratavam. É o trabalho de mulher fazer caxiri
ficar forte, azedo. Ficar apurando assim, tipo como estar
fermentando, né? Fermentando, é.
DF: Me contaram que é assim mesmo.
JV: Pois é assim mesmo. Hoje não usa mais, não tem
mais, não tem mais não.
DF: Hoje é diferente?
JV: É diferente, muito diferente. Antigamente tinha
uma cantiga da mulher, que o finado vovô cantava. Nesse
tempo não tinha motor, era ralo. Estão ralando mandioca
aqui no ralo, mandioca, aí estão ralando, e tinha a cantiga.
DF: E como é que era?
JV: Era assim, finado vovô cantava assim, diz assim:
Pîkakî sumari, pîkakî sumari, pîkakî
Wirisi yenpî’kakî, wirisi yenpî’kakî, wirisi
Sau, sal ta to’ pe sumari ya, pî’kaki wirisi
Sau, sau, sau, só.
68
Aqui refere-se ao líder da Pipoquinha de Normandia, banda de
forró originária deste município.
2 Projeto: Panton
veado, peixe, jabuti, tatu, fazia logo. Todo mundo comia,
né? Aí nunca acontecia de maltratar com nós. Por que é
que tá acontecendo hoje? Padre Jorge chegou aqui em
1970, 69...
DF: Quem?
JV: Padre Jorge. Padre Jorge, que chegou aqui pra
fazer essa guerra aqui. Foi padre Jorge que trouxe essa
guerra. Antigamente os padres pegavam tudo. O padre
chegava na comunidade fazia batismo, fazia casamento,
era um padre mesmo que fazia casamento, não tinha
guerra não. Agora, em 69 o padre chega aqui em Roraima,
aí ele trouxe guerra. Foi o primeiro guerreiro, foi esse
padre Jorge, que chegou aqui em Roraima. Não tem outro
padre que trouxe guerra, não, foi padre Jorge que trouxe
essa guerra aqui em Roraima.
DF: Isso foi na década de 70.
JV: Foi na década de 69 que ele chegou aqui. Aí o que é
que ele fez? Esse padre Jorge andava nas fazendas dos fa-
zendeiros. Andava, passava semana na fazenda e tratavam
ele muito bem, porque ele era padre. Destar que ele tava
prestando atenção como ele vivia. Aí passava semana nas
co- munidades vendo a situação também dos parentes
também. Aí quando foi na de 70, 71, ele disse assim, ele
falou, eu sei bem lembrando dessa história do padre Jorge.
Ele fazia reu- nião nas comunidades, ele fazia assim: “Olha,
vocês botam os brancos pra fora, esses brancos não são
daqui não, esses brancos vem aqui, tá na custa de vocês
aqui, usando terra de vocês, criando gado pra eles com
vocês passando fome aqui”. Ele dizia né, padre Jorge:
“Quando vocês acabarem de matar gado dele aí, aí vocês
não vão precisar não, porque é de vocês, o gado é de
vocês.” Aí o pessoal tinha medo de matar gado. O finado
velho Jair tinha muito desse aí, eram quarenta e cinco mil
reses, era o maior fazendeiro que tinha em Roraima, que
tinha placa nº 01, maior fazendeiro aqui em Roraima. Aí
acabaram com medo. Começaram a come- çar. Aí tem
aquele motorista da FUNASA, meu primo Lauro, foi criado
com Jair, e ele apanhava muito quando ele era curumim. Aí
Projeto: Panton 2
então ele serviu o quartel, aí deu baixa e ficou,
2 Projeto: Panton
voltou pra lá; foi ele que começou a matar gado. Aí
chegava gado assim no terreiro, muito boi, vaca gorda, boi
gordo, aí falava pro irmão dele, pro Pereira que mora lá:
“Mano, me dá uma espingarda que tem um veado bem ali
assim.” “Tu não tá mentindo não, Lauro?” “Não, não estou
mentido que eu vou lá matar ele.” “Já foi embora.” “Não,
não foi não!” Aí pegou espingarda dele, aí foi lá [...]
pertinho assim, boi tava comendo no terreiro. Aí “pow”,
matou né. “Mas rapaz, tu matou!” “Não, rapaz, tá com
medo é? Umbora comer gado. Eu já apanhei tanto, por que
é que vou apanhar? Não vou apanhar mais não.” Aí, por aí
começou. Filho do velho Jair Alves tinha quarenta e cinco
mil reses, eles comeram dez mil reses do Jair. Aí Jair: “Já
que não estão nem mais tratando carne certo, estavam só
tirando carne numa boa e deixando o resto, aí quase todo
mundo entrou!”, ordem do padre Jorge. Aí, finado velho
Jair trazendo polícia, levando polícia, levando exército,
fazendo medo. Aí: “tá bom de vocês começarem fazer o
retiro ali, o gado vem pra vocês.” Aí quebraram forças dos
fazendeiros, aí já coligaram com Funai também. Aí Funai já
foi botando Polícia Federal em cima, aí retiraram
fazendeiro tudo. Até hoje estão tirando. Estão tirando até
hoje. Quem fez isso foi padre Jorge; mas antigamente
ninguém não vivia assim não. Porque quando fazendeiro
tinha um serviço, convidava: “Compadre, tem um serviço
pra fazer, um cercado, limpar terreiro...”. Eles não levavam
de graça, eles pagavam. Aí eles [os índios] falavam: “O
senhor me vende uma rês?” “Vendo, tanto. Então, tu faz
esse trabalho.” Aí vendia uma rês, aí pra trocar com sal,
pra trocar com roupa, tudo ele fazia. Naquele tempo era
difícil, não tinha roda de carro, hoje tem muita roda de
carro e estão querendo acabar? Então, era difícil. Nós
enchemos tanto de vasilha olha, o telefone bem aí,
qualquer coisa a gente corre aí. Aí não existia isso, chave
na porta, mas naquele tempo... Então, tudo existiu isso,
não maltratavam não, mas hoje eles dizem: “Não, porque
fazendeiro maltratava, batia muito nos índios.” Índio
nunca foi maltratado não, nunca foram mal- tratados não,
contrário, os brancos que ajudavam a gente. Agora, hoje é
Projeto: Panton 2
que nós vamos sofrer. Tem um senhor ali em
2 Projeto: Panton
casa, lá do Mutum. Por que tá saindo do Mutum? Porque
lá tá no sofrimento. Tiraram a vila lá do Mutum, não tem
mais branco, só tem dois lá, vão tirar energia de lá. Vão
tirar telefone de lá. Eles estão vindo pra cá, eles vêm falar
com o pessoal pra vir aqui na maloca, pra arranjar
transporte pra buscar, pra fazer mudança dele pra cá. Tem
muito deles que estão por aqui na beira da estrada aqui,
que estão morando. Tudo vem da região da serra, aí pro
lavrado, pra serra do Pium tem muito parente, estão
fugindo tudo pra cá. Por que é que estão fugindo? Por que
é que não ficam pra lá? Agora que eles vão sofrer. Lá tem
muita gente aposentada. Aqueles que não são
aposentados não têm sabão, não têm sal, não têm roupa.
Não tem mais branco! Estão pra retirar todo mundo daqui.
Pra onde nós vamos agora? Nós já esta- mos acostumados,
comunidade que hoje tá na civilização, nós comemos sal,
nós comemos tudo que o branco usa, que nós não temos a
fábrica de nada. Nós sabemos fábrica de farinha, de beiju,
pajuaru, e de rede de fio, mas de roupa, ainda não tem
fábrica de fazer roupa não, nem sal, não tem fábrica aqui,
não tem. Aqui andaram os técnicos de [...], pro pessoal
fazer, plantar cana, fazer açúcar, aquele pessoal que fez
curso aí pra fazer açúcar, fazer rapadura, tudo, mas não
estão fazendo, ninguém não tá plantando não. Por que
ninguém não planta, né? É que aqui não vem pra gente
como vem professor pra ensinar no colégio. Também a
gente pre- cisa pra ensinar a gente também, mas ninguém
não faz, por quê? Aí, da outra vez que nós fizemos, nós
trouxemos ele pra fazer, pra ensinar a fazer tudo isso.
Então, é assim que a gente vivia primeiro. Não tinha
maldade do branco não, a gente vivia tudo junto. Eu
participei da assembleia lá em Boa Vista, essa da ALIDCIR,
essa que o pessoal de Brasília veio. Uma mulher e três
homens, uma pequena gente aqui de Roraima, vieram ver
a situação desse pessoal que é a favor do branco, a
SODIUR. Aí falaram muito, aí você vê o documento que
nós falamos, esse documento aqui então, leva esse
documento aqui de volta. Agora, tudo nós temos
documento, porque disseram, Funai chegou aqui dizendo
2 Projeto: Panton
que nós somos os primeiros índios brasileiros daqui da
terra. Agora, por que é que nós não somos agora? “Terra
não é de vocês não, porque vocês são ocupantes de terra.
Índio não é dono de terra, ele é ocupante. Essa terra é de
União, não é de vocês não!”
DF: O que é que o senhor pensa a respeito disso?
DF: Nem pra um nem pra outro, né? Vou repetir uma
pergunta que já fiz e o senhor não falou: o senhor já
passou por alguma forma de preconceito por ser índio?
JV: Não.
DF: Nunca?
JV: Não, nunca.
PV: Sempre normal.
JV: Eh, sempre normal.
DF: Tá certo. Acho que tá bom, senhor Vitor.
JV: Eh, acho que é só isso mesmo que eu sei...
DF: Alguma coisa que o senhor lembrou?
HM: O senhor não falou sobre um momento feliz da sua
vida.
JV: Como?
HM: Um momento feliz na sua vida?
JV: Não, eu até agora eu vivo feliz na minha vida,
porque eu vejo assim sem perturbação de ninguém, que
eu vivo feliz, trabalhando.
DF: E um momento triste, uma coisa que marcou o
senhor muito, que o senhor viu acontecer e que nunca
Projeto: Panton 2
esqueceu,
2 Projeto: Panton
no garimpo?
JV: Eh, no garimpo eu vi. Eu fiquei muito triste, porque
eu vi duas mortes de faca no garimpo, quando trabalhava
no garimpo. Os parentes mesmo se esfaquearam, que eu
vi, foi muito triste. Eu vi o pessoal morto na beira do rio
assim, esfaqueado, foi muito triste. Conhecido, era meu
amigo que morreu. Eu fiquei muito triste no garimpo.
Agora, depois nunca mais, depois teve muita alegria no
garimpo porque pegava muito dinheiro, mas hoje não tem
nada. Como eu disse né, não tem nada.
DF: Entendo.
JV: Peguei muito dinheiro.
DF: Muito diamante?
JV: Muito diamante, naquela época era diamante, não
era ouro não.
DF: Sei.
JV: Peguei muito dinheiro. Se eu tivesse aproveitado
bem esse dinheiro eu seria milionário até hoje.
DF: Qual foi o maior diamante que o senhor pegou até
hoje?
JV: Sim eu peguei muito dinheiro, muito diamante.
DF: Mas o senhor pegou algum grande?
JV: Não, nunca peguei não, só mesmo os medianos, de
180, 170 pontos, 80 pontos, assim.
DF: Sim.
JV: De quilate.
DF: O senhor tinha muito parente no garimpo?
JV: Era mais indígena que trabalhava, era mais indígena.
Depois chegou muito pessoal de fora.
DF: Que veio de fora?
JV: Assim, cearense, maranhense. Mas o que mais tem
Projeto: Panton 2
é cearense, né?
DF: Sei.
JV: Amazonense é muito difícil no garimpo. Chegou
mais cearense, paulista também.
DF: E me diga uma coisa, o senhor sabe alguma história
do timbó, a história dele?
JV: Timbó?
DF: Eh, timbó, pescar né?
JV: É, tem timbó aí.
DF: Mas o senhor sabe alguma história, algum mito
atrás dele, narrativa, alguma coisa?
JV: Esse timbó, são três qualidades de timbó: tem
timbó “folha”, tem folha que é uma, uma folhinha mesmo
assim, uma folhinha redonda. Esse daí mata peixe
também, mas ele é zangado. Ele tem que pegar dois sacos
daquele, aí ma- chuca ele todinho, calado, né? Tem um
pocinho assim cheio de peixe, aí machuca ele todinho, aí
ele, porque tem gente como o senhor ali. Aí ele manda:
“Vocês calem a boca aí, va- mos botar calado, sem gritar,
sem bater água.” Aí machuca todinho, aí bota, aí vai
botando no saco aquela golda dele todo, aí quando os
peixes estiverem boiando já começando a virar, deixa eles
morrerem né, não deixa ninguém pegar não, deixa ele
morrer primeiro. Quando estiver tudo ruim, morrendo
mesmo, aí eles começam a pegar. Quando gór- dio, que
eles começam a pegar, aí pega todinho. Mas antes,
quando ninguém obedecia ao chefe que tá mandando não
mexer, se mexer, os peixes ficavam todinhos, aí esse
timbó, essa folha, elas ficavam, a água ficava roxa todinha.
DF: Roxa?
DF: Eu o vi.
AR: É esse aí. Eles são os moradores daí.
DF: O senhor chegou aqui quando?
AR: Eu cheguei aqui não sei que ano não, não sei que
ano não. O professor sabe, esse professor sabe. Esse
tuxaua que passou pelo senhor, ele sabe de que ano
chegamos aqui. Eu não sei que ano que eu cheguei aqui
não. Aí foi indo assim. Aí formamos comunidade. Precisei
da escola. Aí esse meu genro, professor João (a casa dele é
ali), ele era professor, veio de lá do Contão, aí casou com
minha filha. Aí caminhava daqui lá na entrada; tinha escola
lá na entrada, nessa BR, sei lá. Aí vivia assim, vivia
encrencando lá, o pessoal de lá ficava encrencando com
ele. Aí procuramos levantar uma escola aqui. Quando eu
fui procurar, nós fomos procurar, preci- sava tuxaua, aqui
não existia ainda tuxaua não. Só era um pouquinho, só um
pouquinho, só nós mesmos: uns quatro ou cinco, tinha uns
dez alunos ainda. Aí nós fomos procurar na Funai, aí
disseram que só com o tuxaua. Atrás de tuxaua, levantava
Projeto: Panton 2
a escola. Aí fomos procurar de novo, procurar de
2 Projeto: Panton
novo, foi indo assim. Aí tinha doze alunos quando
levantamos escola, bem ali assim onde tão estudando; aí
era, não era essa aí não, era outra casa. Aí começou aí, nós
começamos aí, começou, professor começou, foi
trabalhando aí, até que melhorou. Essa escola aí foi do
tempo do governador Neudo Campos, onde saiu no tempo
dele. Assim foi senhor, começando assim.
DF: Qual o nome dos pais do senhor?
AR: Meus pais?
DF: Eh.
AR: Era, meu pai é Afonso, Afonso; minha mãe Carolina;
meu avô é Moisés; minha avó era Alda.
DF: E todos eram macuxi?
AR: Tudo macuxi. Misturou com Monaicó; misturou
com eliang, porque meu avô é eliang, do pai do meu pai
né, eliang. Agora minha mãe é monaicó, pai dela, mãe dela,
é tudo mo- naicó. Aí misturou com eliang com monaicó. É
assim.
DF: A sua esposa, ela é macuxi também?
AR: Minha esposa é macuxi.
DF: Quantos filhos o senhor tem?
AR: Tem, tem onze. Era doze, morreu um, uma filha,
aqui mesmo. Era quinze, morreram três, quatro. Aí ficou
esses filhos aí. Essa é só minha família daqui, não tem outra
não. É só mesmo esses. Agora aqueles ali são outros, lá da
Pedra Branca, esse acolá, aonde o senhor chegou lá na
casa deles, são da Pedra Branca. Chegaram por aí...
DF: Qual foi a coisa mais triste que o senhor viu nesse
tempo todo que o senhor viveu? Tem alguma coisa triste
que o senhor queira contar pra gente, que tenha vivido ou
visto?
AR: Não senhor, tem não. Parece que não tem não.
DF: E alegre?
AR: É sempre alegre, somos crentes, evangélicos. Toda
2 Projeto: Panton
semana a gente entra aqui na igreja; faz a pregação. Tem
nosso pastor, lá adiante, lá do fim das casas. Esse pastor é
parente mesmo meu, parente dos índios. Ele estudou pra
ser pastor, aí faz trazer a palavra de Deus pra gente.
Explicar, ensinar, ensinar as crianças andar, viver, assim na
paz.
DF: Foi o senhor que fundou a comunidade?
AR: Foi. Fui eu que fundei. Os primeiros que chegamos
aqui era eu e ele, esse tuxaua, esse tuxaua mais velho,
mais velho da turma é esse aí.
DF: Ele é filho do senhor?
AR: Eh. Meu filho. Só nós dois que fundamos aqui.
DF: Que veio lá do Contão não é isso?
AR: Eh, do Contão.
DF: Como é que era a alimentação quando o senhor
morava lá no Contão, quando o senhor era menino? E hoje,
mudou alguma coisa?
AR: Era um pouco melhor né? Lá, lá tem muita gente
que diz que lá no mesmo lugar lá no Contão, lá no lavrado,
dá, plantando, trabalhando. Eles dizem né, tem muita
gente que diz isso aí. Aí quando eu vim pra cá, eu achei
melhor do que lá, porque lá dá no inverno, que planta
mandioca, planta tudo, o que planta lá só dá no inverno,
mas quando chega o verão brabo mata tudo, morre, seca,
na beira do rio ali, igapó, seca, seco, seco, seco mesmo ali.
DF: Aí não produz mais nada?
AR: Não, não nasce mais nada. No verão não, com dois,
três meses de verão, não nasce mais nada. Quente. Muito
seco. Aqui não, todo tempo, porque aqui é cabeceira do
rio, dos igarapés. Aí todo tempo é úmida a terra: aí não
morre não; não morre plantação; não morre não. Dá
abacaxi, dá o que a gente plantar, cana, não morre não. No
tempo da banana, banana comprida. Lá não existe, no
Contão não existe, não dá lá, terra não dá. Dá e, quando
chega verão, cai, desce antes de dar frutos. Aqui não, todo
Projeto: Panton 2
tempo dá banana,
2 Projeto: Panton
dessas bananas dá miúdo ali, de prata, banana prata, todo
tempo dá. Aí eu achei melhor aqui.
DF: Eh. Se se produz o ano inteiro é muito melhor, não?
AR: Eh.
DF: Vocês fazem algum ritual antigo ainda, alguma
coisa da época dos pais do senhor, o senhor lembra?
AR: Como?
DF: Por exemplo, os rituais antigos, fazem ou não ainda
na comunidade? Vocês dançam ainda o parixara ou não?
Acabou tudo...
AR: Não senhor. Dançava lá no Contão, eu cheguei ver
dançar quando tinha doze anos, antes de ir pra escola.
Depois mesmo da escola, tá com quinze anos, existia esse
parixara, existia. Meu pai dançava o negócio de aleluia,
chamam outro tipo de cântico que eles chamam sem ser
parixara, né? Nunca vi papai dançar parixara, mas tem
outro tipo de dança dele e que dançava assim rodeando;
assim, rodeando, tomando pajuaru, bebo, só tinha essa aí.
Aí quando acabou esse aí, parou tudo, quando nós
aceitamos religião, crente né, aí acabou tudo, parou tudo.
Aí ninguém, não existe mais essas coisas aqui no nosso
meio não.
AR: Ele diz que andava, andava mesmo, abria escola né,
aí foi embora pra aí. Aí quando na beira do rio não fez nada
não, só tinha, só tinha casa dele; e, do outro lado do rio, é,
casa do Raposa, esse cachorro dele, Raposa, e [olhar] dele
né, assim, Raposa. Aí agourava ele, cavava toda noite lá, aí
que é onde inimigo perseguiu ele. Ele entrou na terra e
saiu lá no Santa Maria, Raposa que agourava ele, cachorro
dele. Tem duas pedras lá, laje grande, é dele. E assim
acabou pra lá, a história do Macunaima.
DF: E a história do Canaimé, o senhor sabe pra contar
pra gente?
AR: Canaimé?
DF: Eh.
DF: Qual é?
AG: Assembleia.
AG: Ahã.
SG: Sou.
SG: Genário.
DF: Nove filhos. Agora uma coisa bem pessoal: qual foi
a coisa mais triste que a senhora já viu na vida? O que a
senhora menos gostou, ficou mais chateada?
AG: Como assim?
AG: Moro. Teve uma vez que eu passei dois anos fora
daqui.
DF: A senhora já morou em outro local também? Outra
cidade?
AG: Boa Vista.
SO: Macuxi.
DF: Qual a coisa mais triste que o senhor viu até hoje?
Que o senhor tem recordação?
SO: A coisa mais triste que acho que [...] comunidades,
porque a gente não [...].
DF: E a coisa mais alegre, o senhor lembra?
70
Há nesse ponto um peque- no trecho incompreensível.
Projeto: Panton 3
voltando mais.
DF: Por isso que é bom fazer a escola na própria
comuni- dade. E dificuldade hoje, quais as principais
dificuldades das comunidades hoje?
DP: Como assim dificuldade?
DF: O que mais atrapalha a comunidade a crescer, o
desenvolvimento da comunidade, o que é que é difícil
hoje?
DP: O que atrapalha muito assim na comunidade é a
bebida alcoólica. Bebida alcoólica atrapalha a vida da co-
munidade, que às vezes você tá bem, trabalhando, e aí de
repente toma, aí começa, atrapalha a comunidade. Hoje a
gente vê através da bebida. Até o caxiri forte, ele também
atrapalha. E quando é só caxiri que você faz, levanta ele
hoje pra tomar amanhã, todos ele toma, é criança, todos
tomam, porque é um caxiri doce, né, ele não prejudica
nada. Mas se você deixar ele fermentar, ele vai prejudicar,
porque um bebe mais, aí vai ficar bêbado, vai discutir com
outro, aí começa a atrapalhar a vida da comunidade.
DF: O alcoolismo.
DP: O alcoolismo.
DF: O senhor conhece a história de algum, alguma coisa
assim relacionada a algum animal? Alguma história falando
de peixe, de alguma coisa ou não?
DP: De peixe...
DF: É. Alguma coisa assim de algum animal, alguma his-
tória aí. Conhece alguma?
DP: Não.
DF: Não, né. Tem algum amuleto, alguma coisa pra
trazer sorte assim ou não? Que o senhor já ouviu falar
alguma vez.
DP: Não.
DF: Amuleto, alguma pedra, alguma coisa que possa ter.
DP: Não. Tem não.
3 Projeto: Panton
DF: E os meninos assim, por exemplo, tem algum tipo de
Projeto: Panton 3
iniciação pros meninos e pras meninas? Quando elas estão
virando moças, fazem alguma coisa ou não fazem mais?
Ou nunca fizeram?
DP: Não. Isso aí só com a mulher que pode contar alguma
coisa.
DF: E pros meninos então, pros rapazes? É porque tinha
uma cultura que cortava assim...
DP: É. Mas hoje não faz mais isso.
DF: Não faz não.
DP: Não. Já esquecemos muita coisa disso aí que o se-
nhor falou.
DF: E o senhor lembra mais de alguma coisa?
DP: Não.
DF: Então, tá certo seu Domício. [...]Tem alguma
história que o senhor queira contar, alguma coisa?
Qualquer coisa que o senhor lembre que o senhor queira
falar.
DP: Por enquanto não.
DF: Não. Então, manda um recado pra alguém que vai
ver essa fita do senhor daqui a duzentos anos. [Risos]
Manda um recado. Pense que daqui a duzentos anos um
neto, um bisneto, um tataraneto do senhor vai pegar esse
material todo e vai ler o recado que o senhor deixou pra
ele. O que é que o senhor falaria pra ele?
DP: Só deixar um recado de lembrança pros netos, pros
filhos, é o recado que eu deixo pra eles.
DF: Que manda lembrança pra eles. Tá certo. Obrigado.
3 Projeto: Panton
O filho do lnsikiran fez ele levantar, filho de Anikê fez ele levantar.
Com puçanga fiz ele ficar esperto, com Makunaima, com puçanga,
Fiz ele levantar pra ele nunca mais ficar doente,fiz ele levantar.