Avaliação Do Brincar
Avaliação Do Brincar
Avaliação Do Brincar
Do Desenvolvimento à Avaliação
2021
Título: Brincar – do desenvolvimento à avaliação
Ano: 2021
Cidade: Beja
ISBN: 978-989-53410-0-9
Nota Introdutória
O documento que se apresenta pretende constituir um suporte adicional para alunos de 1º ciclo do Ensino
Superior, nomeadamente para os que frequentam o Curso de Licenciatura em Terapia Ocupacional. Insere-se
num conjunto de manuais desenvolvidos em contexto académico em que se apresenta, em língua portuguesa,
temas específicos no domínio da abordagem da terapêutica com os mais novos. O brincar é aqui perspetivado
como uma das principais áreas de ocupação da infância, pretendendo-se que seja fonte de estímulo e
essencialmente de prazer, auto diretividade e envolvimento.
Os conteúdos do presente manual refletem a experiência profissional e pessoal da autora, de forma articulada
com a bibliografia existente nesta temática. Neste sentido, inicialmente é revisto o desenvolvimento desta área
de ocupação e de seguida são apresentadas metodologias e instrumentos úteis na avaliação do brincar, na
perspetiva do terapeuta ocupacional.
O brincar pode ser analisado sob diferentes perspetivas, atendendo à sua riqueza e complexidade. É visto por uns como
veículo de prazer, por outros como forma de desenvolvimento e aprendizagem e no âmbito terapêutico é por vezes
encarado como meio de estimulação de competências ou aquisição de novas habilidades.
Reconhecendo que todas as perspetivas têm a sua validade, alerta-se para a importância do brincar ser fonte
de prazer e auto-determinação, devendo o adulto respeitar a iniciativa, vontades e preferências da criança. Mesmo
nas situações de alteração do desenvolvimento ou aprendizagem, com necessidade de intervenção terapêutica,
estes fatores devem ser levados em consideração. Pode dizer-se que quando a criança deixa de brincar por
prazer e passa a fazê-lo por imposição do adulto, então a essência desta ocupação está a ser desvirtuada.
O brincar surge muito cedo na vida do individuo de forma instintiva e desenvolve-se espontaneamente em
interações constante com o próprio corpo, o meio, as figuras de vinculação e mais tarde os pares.
Albert Einstein
A criança brinca de forma voluntária, criando as suas próprias regras e adaptando-as posteriormente aos
parceiros de brincadeira e ao ambiente. Retira prazer desta atividade e demonstra envolvimento ao longo da
mesma. Não raras vezes a criança permanece durante horas seguidas na mesma atividade, experimenta
espontaneamente diferentes alternativas e cria soluções lúdicas adequadas aos intervenientes e circunstâncias.
Nestas interações dinâmicas com ambiente, ferramentas e pares a criança desenvolve competências e alimenta o
sistema nervoso, favorecendo a sua maturação.
Atualmente diferentes áreas do conhecimento, como as ciências sociais e humanas, ou as ciências da saúde
estudam o brincar. Daqui resulta um conhecimento estruturado acerca do que permite construir o brincar
saudável, o que o influencia e como pode ser estimulado.
Também no âmbito da ciência ocupacional, disciplina que fundamenta a prática do Terapeuta Ocupacional, o
brincar tem merecido uma atenção crescente. Este facto é facilmente compreendido se levarmos em conta que
o brincar é a principal ocupação nos primeiros anos de vida, sendo através dele que a criança tem prazer,
aprende, dá significado às suas vivências e expressa emoções. Por esse motivo, nos últimos anos tem surgido
livros e artigos escritos por terapeutas ocupacionais que incidem não só sobre o desenvolvimento do brincar e
diferentes metodologias úteis para a abordagem terapêutica nesta área de ocupação. No final deste documento,
na secção “Para saber mais” encontram três livros que permitem aos mais curiosos aprofundar o conhecimento
nesta área.
Quando observamos a prática terapêutica em pediatria constatamos que o brincar está presente na maioria
das sessões. Em algumas situações é utilizado o brincar lúdico, livre e dirigido pela criança enquanto noutras
a brincadeira é liderada e estruturada pelo profissional, sendo, portanto, um brincar terapêutico. É importante
ter presente que esta abordagem embora necessária em determinadas situações não corresponde à total imersão
no brincar lúdico e espontâneo.
Figura 2 e 3 - Bebé a brincar com o próprio corpo e bebé em interação com o meio ambiente e em
exploração sensório motora
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● BRINCAR SIMBÓLICO, O BRINCAR CONSTRUTIVO E O BRINCAR FÍSICO
O desenvolvimento motor tem um aprimoramento significativo nesta fase, o que se reflete numa brincadeira
progressivamente mais elaborada em que o “brincar todo o terreno”, caracterizado por empurrar, saltar, o
“amassar” são muito desenvolvidos. Embora esta fase aconteça tanto em meninas como em meninos a verdade é
que estes últimos tendem a demonstrá-lo com maior exuberância.
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? … E o brincar ao ar livre?
Esta faixa etária possibilita (e dira quase exige!) que o brincar comece a acontecer também ao ar livre. Neste
contexto a criança tem oportunidade de explorar um sem número de estímulos, de refletir sobre o perigo e de
ajustar o seu estilo de brincadeira aos riscos
presentes. Na atualidade o brincar ao ar livre,
com a possibilidade da criança ser líder da
atividade lúdica é cada vez mais advogada. Em
Portugal, Carlos Neto tem sido um dos
profissionais quetem trabalhado nesse sentido.
Na sua última publicação em livro o Professor
defende a inversão da atual realidade para que
as crianças voltem a fazer atividades como
brincar na rua, ao ar livre ou simplesmente
poderem deslocar-se de casa para a escola a pé.
Preconiza que tal mudança é fundamental para
devolver a magia da infância às crianças 2.
Nos EUA Angela Anscom tem um vasto trabalho desenvolvido na área do brincar ao ar livre não só na
perspetiva terapêutica, mas essencialmente com uma perspetiva de promoção da saúde. A Terapeuta Ocupacional
defende que as crianças são naturalmente curiosas e procuram oportunidades para dar sentido ao mundo. Quando
as crianças são deixadas sozinhas, experimentam com o que as rodeia, correm risco, erram e aprendem com
esses mesmos erros. As crianças aprendem através da brincadeira espontânea e essencialmente o ar livre 3 .
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● BRINCAR NA IDADE ESCOLAR
Na idade escolar, entre os 6 e os 10 anos o brincar começa a ser cada vez mais estruturado e
organizado e nesse sentido o jogo passa a ser privilegiado pelas crianças. Na escola os jogos coletivos,
com caracter competitivo ganham adeptos entre as crianças. Em casa, os jogos de tabuleiro ou mais
recentemente os jogos eletrónicos, têm uma procura crescente. Assim também se desenvolvem
competências cognitivas como a atenção, memória, flexibilidade cognitiva de entre outras.
Figura 7 e 8 – Crianças a brincar na escola, em que o jogo com os pares e a atividade física se tornam preponderantes.
Apesar destas características nem sempre a criança compreende (ou aceita) que as regras do jogo são iguais
para todos e estão acima dos interesses pessoais de cada um.
Embora o brincar siga um desenvolvimento típico isso não significa que a criança passe de etapa em etapa! À
semelhança do que acontece no desenvolvimento global, é comum (e saudável!) que a criança esporadicamente
realize brincadeiras correspondentes a formas menos (ou mais) evoluídas, comparativamente à fase em que se
encontra.
Apesar do brincar ser associado à infância é cada vez mais reconhecida a importância desta área de ocupação
se prolongar para outras fases da vida, sendo saudável que tal possa acontecer.
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“Não paramos de brincar porque ficamos velhos.
Ficamos velhos porque paramos de brincar.”
George Shaw
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A avaliação do brincar…
Qualquer processo avaliativo está dependente da teoria que o conduz e a avaliação do brincar não é exceção.
Numerosas estratégias têm sido desenvolvidas para avaliar o brincar e o lazer em crianças e adolescentes. Os
instrumentos de avaliação do brincar podem ser utilizados na clínica e na investigação4.
Desempenho
Criança
● Preferências e objetivos na ocupação
● Estruturas e funções utilizadas
● Envolvimento demonstrado e
durante o brincar
prazer que evidencia
● Competências utilizadas durante
● Adequabilidade das experiências
o brincar
tendo em conta a faixa etária
●
Durante a infância muitas modificações acontecem ao nível do brincar que transita de um brincar auto-
centrado, exploratório e sensoriomotor para formas mais sociais e cooperativas de brincar 5.
Embora seja uma área de ocupação de capital importância na infância o mais comum é a sua avaliação ser parte
integrante de uma avaliação terapêutica mais ampla, sendo por conseguinte necessário ajustar objetivos e
procedimentos à realidade especifica. A seleção das metodologias e instrumentos para a avaliação do brincar está
intrinsecamente ligada ao propósito dessa mesma avaliação 5.
A partir daqui podemos avaliar o brincar através de metodologias mais livres, como a observação, ou através
de instrumentos específicos e padronizados, como o The Test of Playfulness ou o Test of Environmental Supportiveness.
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● OBSERVAÇÃO
Na utilização da observação, nomeadamente a direta provocada, é recomendada a utilização
de uma grelha e/ou pontos orientadores que guiem a recolha de informação. Este procedimento
contribui para a estruturação da observação permitindo recolher dados mais objetivos e garantindo
que os principais tópicos alvo da avaliação são contemplados. Apesar da utilidade da observação é
importante reconhecer que o resultado desta metodologia está também dependente dos “ângulos”
utilizados pelo Terapeuta Ocupacional. Apesar dessa eventual subjetividade, pode ser uma metodologia de
avaliação muito útil particularmente em crianças com alterações de desenvolvimento e que não colaborem em
processos de avaliação padronizados. Seguindo a mesma linha de raciocínio também a observação direta
espontânea, realizada “in loco” no contexto natural de vida da criança e sem a intervenção de nenhum profissional
é fundamental, correspondendo potencialmente a uma recolha de informação mais real e conectada com o efetivo
padrão de brincar diariamente vivido pela criança. Nas situações em que não é exequível o terapeuta deslocar-se
ao contexto natural é sempre possível pedir à família que partilhe pequenos vídeos, do dia-a-dia, em que a criança
esteja a brincar de forma livre e autodirigida.
A entrevista é uma metodologia muito utilizada ao nível terapêutico e pode também ser
utilizada para avaliação do brincar. Dependendo dos objetivos de cada profissional os dados
relativos ao brincar podem ser recolhidos através de questões específicas incluídas num guião de
entrevista generalista, ou pode ser construído um guião de entrevista dirigido para a caracterização
do brincar. Na maioria das situações a entrevista é realizada aos pais e cuidadores e
independentemente da opção é importante recolher informação sobre:
Como já referido as metodologias mais livres são de extrema utilidade no processo de avaliação. Contudo
sempre que possível, devem ser acompanhadas pela utilização de instrumentos mais estruturados e padronizados.
Para a avaliação do brincar existe uma panóplia diversificada de opções, sendo os instrumentos mais reconhecidos:
● Play history entreview: Inicialmente desenvolvida por Nancy Takata e mais tarde melhorada por
Kimberly Bryze permite a recolha da história do brincar, através de uma entrevista semiestruturada. Esta
tem como objetivo identificar as experiências de brincar, as interações, os ambientes, e as oportunidades
que ocorreram ao longo da vida da criança;
● The Knox Preschool Play Scale desenvolvida por Susan Knoox esta escala pode ser utilizada em
todos os bebés e crianças até aos 6 anos de idade. Avalia a criança e as suas competências ao nível do
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brincar. Inclui 4 dimensões (gestão do espaço, gestão de materiais, intenção simbólica e participação)
avaliadas numa perspetiva do desenvolvimento e que conjuntamente permitirão conhecer a maturidade
do brincar da criança. A observação é realizada em ambientes exteriores e interiores 5;
● The Test of Playfulness desenvolvido por Anita Bundy este instrumento permite “guiar” a observação
de crianças que estejam a brincar em ambientes naturais e familiares. Na impossibilidade do terapeuta se
deslocar para a observação pode solicitar a entrega de vídeos em que a criança brinque nos seus
ambientes naturais. O foco da avaliação é colocado na “ludicidade” e no prazer demonstrado pela criança
enquanto brinca e não tanto nas competências que evidência. Para tal são analisados quatro elementos:
motivação, controlo, suspensão da realidade e enquadramento 5;
● Test of Environmental Supportiveness desenvolvido por Skard e Anita Bundy incluí itens
relacionados com a segurança, acessibilidade, capacidade de seguir limites e regras, apoio às atividades
lúdicas dos outros e capacidade de resposta a sugestões. Avalia a origem das motivações das crianças
relacionando-as com o ambiente humano e físico;
● Assessment of ludic behaviours desenvolvida por Francine Ferland destina-se a crianças em idade
pré-escolar com incapacidade física e com (ou sem) alterações cognitivas. Permite examinar a atitude e
características lúdicas da criança, interesses no brincar, competências e dificuldades 5.
Em jeito de conclusão importa reforçar que a avaliação do brincar é complexa, sendo benéfico que se recorra
a metodologias livres e a instrumentos padronizados. Um outro aspeto relevante é incluir os múltiplos aspetos
que envolvem o brincar e não centrar a avaliação exclusivamente nas competências de desempenho. A par com
tudo isso é fundamental reconhecer que a relação terapêutica é fundamental, sendo, portanto, necessário dedicar
tempo e espaço para a sua construção para que a avaliação do brincar seja eficaz.
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NOTA
O presente manual é uma primeira abordagem ao complexo tema da avaliação do brincar. Por esse motivo
para quem quiser aprofundar os seus conhecimentos nesta área seguem-se três sugestões:
Para aprofundar:
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Referências Bibliográficas
1. Case-Simth J. Development of childhood occupations. In: Case-Smith J, O’Brien J, eds. Occupational
Therapy for Children and Adolescents. seventh edition. Elsevier; 2015:65-101.
2. Neto C. Libertem as Crianças - A Urgência de Brincar e Ser Ativo. Contraponto editores; 2020.
3. Hanscom A. Descalços e Felizes. Como a Brincadeira Ao Ar Livre Promove Crianças Fortes, Confiantes
e Capazes. Livros Horizonte; 2018.
4. Alexis H. Assessment of play and leisure in children and adolescents. In: Parham D, Fazio L, eds. Play in
Occupational Therapy for Children. Second edition. Elsevier; 2007:95-193.
5. Rigby P, Rodger S. Developing as a player. In: Rodger S, Ziviani J, eds. Occupational Therapy with Children.
Blackwell Publishing; 2006:177-199.
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