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Espiritualidade e
conhecimento
IMAGEM: KIPPER
Falar de espiritualidade implica en- uma paixão partilhada, não mística, de da palavra “espírito” para os filósofos
frentar a grande pergunta que a hu- pertencer a algo muito maior do que gregos; em um segundo, analiso,
manidade faz para si mesma sobre o nosso próprio ego individual. ainda entre os gregos, a experiência
“espírito” e que a incomoda em todos Neste artigo pretendemos exa- filosófica como experiência espiritual.
os ramos do saber. Segundo Robert C. minar mais especificamente a espi- Em um terceiro momento retomo
Solomon, no livro Espiritualidade para ritualidade como uma experiência o pensamento do filósofo Friedrich
céticos, a palavra “espírito” evoca uma de conhecimento. Em um primeiro Nietzsche, no século XIX, para o qual
disposição de ânimo. Evoca também momento, apresento o significado a experiência filosófica exige algumas
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a primeira etapa da ascensão consiste muito reais, a propósito das quais jovem Nietzsche defendeu um lema
em despojar-se das falsas concepções. preferimos não nos interrogar porque durante toda a vida: “Torne-se o que
Afirmando sua ignorância, Sócrates o caminho da indução, da intuição, você é” – e estava tão apegado à idéia
pede que seus interlocutores definam da descoberta tem algo de desestabi- da realização individual que descon-
um conceito que parece tão evidente lizador no nosso universo mental de fiava de tudo que impedisse o pleno
que, rapidamente, se estilhaça! Posto análise e de dedução. desabrochar da pessoa.
em contradição consigo mesmo, quem O reconhecimento do intelecto Ora, para Nietzsche, tornar-se si
acreditava saber – o que, aliás, todo implica o domínio do corpo: deixar-se mesmo e viver em estado contemplati-
mundo acredita – se dá conta de que dominar pelos impulsos e pelos apeti- vo significam a mesma coisa. A inten-
sua resposta era só ilusão! A verdade tes físicos significa abafar a aspiração a ção do filósofo era criar uma ciência
só pode jorrar do interior, no fim de realidades intangíveis. Para os gregos, que não fosse distante da experiência
um itinerário cujo ponto de partida foi portanto, o ser humano possui uma existencial de quem pensa. Assim,
a palavra socrática. Ela é uma intuição faculdade “divina”, o intelecto, que, ele prescreve a vida contemplativa,
inexprimível, depois de um longo e bem trabalhada, lhe permitirá con- principalmente para aqueles que se
difícil trabalho que nasceu na discus- templar o ser real cuja beleza eclipsa interessam pelos grandes problemas
são dialética. A palavra se transmite, tudo que a Terra propõe aos nossos e não se contentam com a superficia-
mas a visão só pode ser vista! sentidos. lidade do “homem ordinário”.
Temos dificuldade em entender Nietzsche considera a “inquietude
isso porque privilegiamos o pensa- A virada de Nietzsche. Vinte e moderna” uma doença. A desvalo-
mento dedutivo. Platão, ao contrário, quatro séculos mais tarde, Nietzsche, rização do ócio, própria da época
liga o pensamento a seu contexto fascinado pelos gregos e... irritado moderna, atinge os cientistas que se
emocional: nasce num estado de por Sócrates, propõe uma experiência entregam à escravidão dos pequenos
consciência e dá conta de experiências filosófica espiritual e contemplativa. O fatos. Essa escravidão e essa agitação
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sistemas. Para ele, o homem “teórico” no seu mistério mais profundo, e a das solicitações intelectualmente
é decadente porque acredita nos con- empresa pode transformar-se num confusas e eticamente contraditórias
ceitos de sua ciência; ele não percebe ambiente povoado de fantasmas, que povoam seu dia-a-dia. Buscar
que são simplesmente instrumentos pouco propício ao desenvolvimento reconhecer os fatos, discernir as in-
que podem virar caricaturas das de verdadeiros talentos. tenções e procurar a integridade pode
coisas, mas nunca expressar integral- A espiritualidade é um caminho representar uma verdadeira provação.
mente sua substância. para quem não pára no mundo das Esse é o desafio espiritual e “contem-
Uma pessoa é forte na medida em aparências e não se contenta com plativo” descrito e experimentado por
que se arrisca a conhecer e suporta devaneios místicos, cuja proveniência Nietzsche!
o conhecimento. Sustentar a verdade patológica ou manipuladora pode O ativismo pode ser indolência
era, para Nietzsche, o critério por manifestar-se com uma certa obvie- intelectual. Antes de Nietzsche, filó-
excelência que distinguia os verda- dade! Daí a afinidade da experiência sofos como Pascal e outros já tinham
deiros filósofos. Diz ele: “Qual dose espiritual com a reflexão filosófica: os desmascarado a auto-ilusão repre-
de verdade um espírito é capaz de grandes espíritos nunca abrem mão do sentada pela fuga na bulimia ativista.
suportar; qual dose de verdade ele uso crítico da inteligência. Afinal, do que estamos fugindo? De
pode arriscar? Eis o que se tornou Os tomadores de decisão estão, nós mesmos? Dos outros? Talvez, um
para mim o verdadeiro critério de hoje mais do que nunca, solicitados pouco de cada! Por meio da busca
valores. O erro é uma covardia...Toda a um discernimento criterioso. Nem da integridade e da dureza de um
aquisição do conhecimento é conse- sempre o que é apresentado como conhecimento mais exigente – já que
qüência da coragem, da dureza e da evidente é verdadeiro ou real. A mais enraizado na realidade do que
probidade em relação a si mesmo”. ditadura das pesquisas de opinião e vivemos –, talvez possamos cons-
dos formadores de opinião requer truir uma verdadeira serenidade que
Trilhas de reflexão. A partir muito sangue-frio e sabedoria para prescinda de acrobacias “esotéricas” e
das experiências que acabamos de quem quiser distinguir o que tem “místicas” vendidas como sucedâneos
descrever, algumas trilhas se abrem fundamento do que é grito da mul- de uma experiência espiritual autên-
para nossa reflexão. Os gregos apon- tidão; aliás, cada vez mais estridente tica e exigente.
tam para a unidade da pessoa: nada e cada vez mais vazio de conteúdo Gostaria de concluir este trabalho
de espiritualismo desencarnado, mas substancial! com uma citação de Marie Balmary,
também nada de materialismo. A A espiritualidade não é um cami- citação essa que abriu para mim
pessoa humana é um mix de chão e nho de facilidade porque a maturidade algumas perspectivas: “O que é pró-
de mistério! Essa ambigüidade está na e o uso da liberdade não prescindem, prio do espiritual é misterioso: uma
base de toda reflexão antropológica, habitualmente, do sofrimento e do energia ao mesmo tempo recebida
psicológica e religiosa, e constitui um conflito. Não cabe explicação, é um de fora e do íntimo, do outro e de si
desafio contínuo. dado observado por todas as grandes mesmo; ao mesmo tempo da alma e
Todos os sistemas que propõem tradições espirituais dignas desse do corpo, esta separação não existindo
uma interpretação fechada são fa- nome, expresso pela alegoria dos no espírito.” Não precisa comentar:
dados ao fracasso. Quando aceitam dois caminhos, na qual o caminho da só meditar.
dialogar, podem derrotar o reducio- felicidade é sempre apresentado como
nismo das definições superficiais e semeado de obstáculos.
tornar-se servidores da sabedoria. Os tomadores de decisão sentem
Num ambiente povoado de perfis na pele esse ambiente de conflitos e
Jean Bartoli
altamente definidos e rotulados, as de tensões, não por sobrecarga de tra- Professor da FGV-EAESP
pessoas penam para ser reconhecidas balho (isto é, cansaço), mas por causa E-mail: jeanbartoli@uol.com.br