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Corpo e modernidade1

Paulo Evaldo Fensterseifer*

Resumo: O presente texto busca situar o debate em Abstract: This text aims to locate the debate over the
torno do tema do corpo a partir da compreensão body theme within its understanding by western
desenvolvida na modernidade ocidental, a qual pauta-se modernity, which is based on a rationalization effort
por um esforço de racionalização capaz de esgotar o capable of depleting the sense of the real, and which
sentido do real, tendo sua expressão máxima na finds in scientific rationale its greatest expression. This
racionalidade científica. Este movimento reforça a movement strengthens the dualistic tradition of Western
tradição dualista do pensamento ocidental, thought but presents new shades that we discuss here so
apresentando, porém, novas nuances, as quais são aqui as to find out how this discourse crosses our body
tematizadas com o intuito de identificar os imagery, as well as to identify the deadlocks it causes.
atravessamentos deste discurso na constituição do nosso
imaginário em torno do corpo, bem como os impasses
que promove. Key words: Body. Modernity. Scientific rationality.

Palavras-chave: Corpo. Modernidade. Racionalidade


científica.

[...] a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e, inclusive, é mais fácil de conhecer
do que ele, e, ainda que o corpo nada fosse, a alma não deixaria de ser tudo o que é.2

Podemos começar por nos perguntar: o que seu imaginário em torno do corpo.
falamos quando falamos corpo? Qual o imaginário que o Começamos por destacar que o pensamento de
atravessa em nossas percepções? Essas questões René Descartes (1596-1650) ocupa um lugar central para
assumem relevância ao entendermos que não há um a modernidade, centralidade que reside, no entender de
único sentido a respeito do corpo, e que o sentido que Heidegger, no fato de ter sido ele o responsável pela
lhe damos emerge de nossa inserção no mundo social, construção de uma metafísica na qual
histórico, cultural, enfim dos muitos sentidos que
constituem o mundo que habitamos e do qual estamos são tomados como efetivamente sendo apenas os
“encharcados”. entes que se oferecem como objetos de uma
Nas palavras de Santin: representação exata: são verdadeiramente apenas os
entes representáveis com certeza e que podem ser
submetidos ao cálculo e ao domínio técnico por um
O corpo faz parte de um sistema simbólico que
sujeito que assume desde então a condição de
sustenta toda ordem social. É exatamente essa
fundamento epistemológico, ético e ontológico.4
construção corporal simbólica que emerge das
relações sociais. Assim sua construção não pode ser
vista apenas como corpo individual que eu construo, O que confirma, ainda segundo Heidegger, a
mas se trata de um corpo que eu construo sob o olhar tese de Max Planck sobre o Ser: “real é aquilo que é
do outro e para que ele possa ser olhado pelo outro.3 mensurável.5 O sentido do Ser é a mensurabilidade”.
Para viabilizar esse projeto é preciso “sepultar
Essa afirmação nos faz pensar que nossa epistemologicamente o 'mundo exterior' em um nada
experiência de corpo é mediada por uma determinada negativo para então permitir que ele ressucite mediante
concepção de corpo que é histórico-cultural. Em outras provas”.6
palavras: entre eu e a imagem do espelho que percebo, Neste pensamento o sujeito torna-se
tem o mundo. O mundo que aqui nos interessa fundamento epistemológico posto que as certezas
problematizar é o mundo moderno, ou a modernidade e subjetivas substituem as autoridades e a tradição na
1
Esse texto foi apresentado como conferência durante o IV Ciclo de Conferências e Interferências do CEPEDAL – Núcleo de Pesquisa e Documentação sobre o Oeste do
Paraná, realizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Campus de Mal. Cândido Rondon, em agosto de 2008.
*
Paulo Evaldo Fensterseifer é professor do Departamento de Pedagogia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Ijuí – RS. E-mail:
fenster@unijui.edu.br
2
DESCARTES, René. O discurso do método. Brasília: Ed. da UnB, 1985. p. 56.
3
SANTIN, S. Educação física: ética, estética, saúde. Porto Alegre: Edições Est, 1995. p. 41.
4
Apud FIGUEIREDO, Luís Cláudio. Modos de subjetivação no Brasil e outros escritos. São Paulo: Escu-ta/Educ, 1995. p. 31.
5
Apud BARTHOLO Jr., Roberto S. À sombra dos Minaretes: o (des)encontro moderno entre homem e natureza. In: Revista Tempo Brasileiro, jan.-jun. 1987, v. 88, n. 89,
pp. 27-49. p. 30.
6
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988. p. 273.

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Corpo e modernidade

legitimação do conhecimento. Torna-se fundamento expresso, segundo Marx, na tese marxista de que “a raiz
ético ao definirem as suas regras de ação do Homem é o próprio Homem”.11 Logo tudo lhe é
independentemente dos padrões tradicionais e “disponível”, “requisitável”, basta para isso “arrancar da
coletivos. Por fim, torna-se fundamento ontológico ao natureza seus segredos” (Bacon), ou segundo o Gênesis,
condicionar a existência da realidade das coisas à sua obedecer à ordem divina: “enchei a terra e submetei-
capacidade de representá-las de forma clara e distinta. a”.12 Para essa tarefa de conquista racional, faz-se
Tamanha tarefa só pode ser assumida por um sujeito necessária a dessacralização da natureza, (logo do
completamente autônomo, autotransparente e corpo), tornando-a objeto manipulável pelo homem e
autodeterminado, senhor absoluto da própria vontade. sua técnica.
Este projeto epistemológico e ético da modernidade Dois procedimentos levam o sujeito a colocar-
preconiza obviamente, o silêncio do corpo (projeto se, ou pleitear colocar-se neste lugar de centralidade,
nunca efetivado, mas constantemente buscado), onde a como este novo fundamento. Primeiro, liberta-se a
subjetividade reduzir-se-ia à consciência, dever e natureza do poder teológico, e aqui Bacon é
vontade, e a vida tornar-se-ia um mero exercício de fundamental, segundo, liberta-se o homem da natureza,
geometria.7 e aqui aparece Descartes.13 É ele que estabelece o “bom
Norbert Elias, em sua obra O processo senso” como sendo o bem melhor distribuído entre os
civilizador, defende a tese que isso que denominamos homens, democratizando com isso a razão, fonte da
civilidade, e que em grande parte coincide com o projeto autoridade do sujeito. É preciso, no entanto, expurgar
da modernidade ocidental, construiu-se não só sobre o essa nova subjetividade dos vícios herdados da tradição,
silenciamento do corpo, mas também sobre o para o que se faz necessário o método.
silenciamento a respeito das funções corporais. Segundo Para Bachelard é o “método de medir”, mais do
ele, que o objeto de mensuração, que o cientista descreve. O
objeto medido nada mais é, segundo ele, que um grau
[...] um dos sintomas do processo civilizador é ser particular da aproximação do método de mensuração.
embaraçoso para nós falar ou mesmo ouvir muito do “O cientista crê no realismo da medida mais do que na
que Erasmo diz.8 O maior ou menor desconforto que realidade do objeto. [...] É preciso refletir para medir, em
sentimos com pessoas que discutem ou mencionam
vez de medir para refletir”.14
suas funções corporais mais abertamente, que
ocultam ou restringem essas funções menos que nós,
Este lugar de destaque que o método ocupa no
é um dos sentimentos dominantes do juízo de valor pensamento moderno evidencia-se no fato de ter sido
“bárbaro” ou “incivilizado”.9 ele o tema da obra de Descartes que pode ser
considerada o “catecismo” da modernidade: O discurso
Esta subjetividade assim forjada só pode ser do método. O método terá para Descartes a função de
construída a partir de um processo de desnaturalização estabelecer a certeza subjetiva como critério de verdade
do homem, o que, na medida em que o corpo é tomado e garantia de conhecimento. Figueiredo lembra-nos que
como parte da natureza, vai significar um processo de a “certeza” deixa de ser desde então, apenas critério
“desencarnação” ou “desincorporação”. O homem epistemológico, constituindo-se em critério ontológico, o
moderno coloca-se, assim, acima da natureza, livre dos que significa dizer que algo “é” à medida que possa ser
seus desígnios, como livre está dos desígnios de Deus. É representado objetivamente, ou seja,
ele agora o ser onipotente, fundamento de toda verdade
e valor, bem como do próprio mundo, tendo pela frente ser é ser representável, é ser objetivável numa
representação e tudo aquilo que escape ou se furte a
uma liberdade infinita.
uma representação clara e distinta estaria assim
O homem moderno, tal como preconizava
destituída de estatuto ontológico ou, pelo menos,
Protágoras, é “à medida de todas as coisas”,10 produtor de teria sua realidade posta em suspeição.15
toda realidade, de si e da sociedade, o que se encontra

7
FIGUEIREDO, Luís Cláudio. Op. cit., 1995, p. 30-32. O autor encontra este projeto caricaturizado no personagem criado por Italo Calvino em sua novela O cavaleiro
inexistente, o qual é só a armadura, não possuindo nem rosto, nem expressão, nem sentimentos.
8
ELIAS, Norbert. Uma história dos costumes. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. v. I O autor refere-se aqui ao Tratado de Erasmo de
Rotterdam intitulado De civilitate morum puerilium.
9
Id., ibid., p. 72.
10
HEIDEGGER, Martin. O pensamento na época da imagem do mundo. 200? p. 222-225. Segundo o autor, para Protágoras, o homem é a possibilidade singular (não
existe “o Homem”) do ser se dar (presentificação) a cada vez, o que não permite a objetificação do ser. Já para Descartes o ego cogito torna-se essência universal (razão),
retirando a historicidade intrínseca a sua condição.
11
Apud BARTHOLO Jr., Roberto S. Op. cit., 1987, p. 27.
12
BÍBLIA SAGRADA. Lívro do Gênesis, capítulo I, versículo 28.
13
Apud LUZ, Madel. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Campus, 1988. p. 18. Segundo o autor, o
antropocentrismo renascentista realizou esta dupla tarefa ao cindir “ordem divina” e “ordem humana” e esta da “ordem natural”. Dessa separação – Deus, homem,
natureza – o homem herda o espólio do “reino natural”, apossando-se desse legado da Idade Média. “Prometeu libertou-se, afinal”.
14
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhe-cimento. Rio de Janeiro: Contra-Ponto, 1996. p. 261-262.
15
FIGUEIREDO, Luís Cláudio. Op. cit., 1995, p. 138.

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Ignora-se assim, que esta forma de existência, Anterior a esta cisão, como condição a priori de
representável, passível de cálculo, só coloca-se como sua própria realização, encontra-se um ser dotado prévia
fundamental para um determinado sujeito, o sujeito e incondicionalmente de uma vontade livre, bem como
epistêmico e seu método. Esse sujeito e seus “óculos” de uma razão. Ser que para agir livremente necessita de
(método) só enxergam os fenômenos que se curvam aos plena autonomia, a qual só é possível inteiramente para
seus procedimentos, o restante da realidade perde seu um ser que é fundamento de si mesmo, atributo que
estatuto ontológico no momento em que deixa de ser deixa agora de ser exclusividade de Deus, para ser
objeto de conhecimento. 16 Compreende-se assim, também, e para muitos exclusivamente do homem.19
porque os diversos campos do saber buscarão na Figueiredo lembra que esta cisão, ao excluir,
incorporação do método sua dignidade. Dignidade que institui uma outra realidade, subterrânea, que buscará
se traduzirá em seu reconhecimento enquanto “ciência”. seu espaço entre as rachaduras do mundo das
Nesse processo seletivo, a primeira providência representações claras e distintas, é o retorno do
do “Método” é separar, no campo das experiências reprimido sob a forma do sintoma. Fazendo um
subjetivas, “o terreno cognitivamente confiável”, ou seja, parêntese, lembro que essa leitura de Figueiredo pode
a razão e os sentidos purificados, na sua universalidade e nos ajudar a entender, ao menos em parte, o lugar que o
regularidade, do “terreno suspeito”, entenda-se das corpo tem assumido nos debates contemporâneos, junto
paixões, desejos, emoções, fantasias, preconceitos, a valorização do particular, do contingente, da
vieses, partidarismos, dialetos, etc., em sua variabilidade sensualidade, do lúdico, da diferença, enfim daquilo que
e particularidade. O primeiro “terreno” possibilitaria o o discurso hegemônico na modernidade “varreu para
acesso à “conhecimentos imediatos”, não sujeito à baixo do tapete”.20
mediação das tradições, às autoridades e condições e Voltando ao ponto, para este ser cindido em
vicissitudes físicas do sujeito, responsáveis pela corpo e espírito, o corpo, além de entrave ao
introdução da contingência e da arbitrariedade. É deste conhecimento,21 passa a ser suspeito em sua própria
terreno que deverá emergir a nova subjetividade, realidade, tendo em vista a dificuldade em objetivá-lo,
purificada, transparente para si mesma, sem a espessura critério de existência.22 Isto vale, logicamente, para o
e sem as rachaduras do sujeito empiricamente dado. Tal corpo próprio, pois o corpo alheio tornou-se alvo de
como o “cavaleiro inexistente”, da novela de Calvino, objetivação, como bem mostram os sistemas de
“sem histórias, sem músculos, sem ossos e sem nervos”. representação científicos, embasado nas filosofias
Estaríamos, assim, livres de toda particularidade e mecanicista, tais como a anatomia, fisiologia e medicina.
contingência, pairando acima de qualquer contexto, ou Por sua vez, as tentativas de representação, científicas ou
seja, estaríamos diante de uma subjetividade artísticas, do corpo próprio, ocuparão cada vez mais um
transcendental.17 lugar marginal entre os saberes, tendo em vista sua “falta
Subjacente a este projeto está de objetividade”, oriunda das dificuldades na aplicação
do método.
a crença na necessidade e na possibilidade de uma Neste contexto de uso das tecnologias
nítida separação entre ilusão e conhecimento, entre desenvolvidas com o auxílio da ciência, Silva destaca que
argumentos retóricos e apaixonados e demonstrações a fotografia, juntamente com a autópsia, transformaram-
matemáticas, entre conhecimentos imediatos – e,
se em ferramentas importantes na identificação de
assim, inquestionáveis e indiscutíveis – entre
subjetividade empírica (variável e inconstante,
criminosos. A colaboração da medicina, através do
contextualizada e particular) e subjetividade trabalho de Alphonse Bertillon, foi amplamente utilizada
transcendental (universal, regular) e, finalmente e para, através de medidas antropométricas, marcar o
como que num resumo, entre corpo (campo da indivíduo.23
passividade, objeto dos padecimentos e dos Silva destaca ainda as contribuições de Paul
condicionamentos) e espírito (puro sujeito, exercício Broca, para o qual a antropologia só teria valor se
da atividade livre).18 utilizasse medidas, em particular do crânio
(craniometria), e Francis Galton, pioneiro da moderna
16
Algo semelhante à anedota do bêbado que perdeu suas chaves em algum lugar, mas as procura sob a luz de um poste, pois só ali está claro. Lembra ainda o Leito de
Procusto.
17
FIGUEIREDO, Luís Cláudio. Op. cit., 1995, p. 138-139.
18
Id., ibid., p. 139.
19
Espécie de “franquia da mente divina” que conspira para desalojar a titularidade da “matriz”.
20
FIGUEIREDO. Luís Cláudio. Op. cit., 1995, p. 141.
21
O corpo, por ser elemento passageiro do homem – sujeito a carências, afecções e achaques – afasta-nos, segundo a tradição socrática, do conhecimento “puro”,
produto da contemplação das coisas pela alma. Coerente com esta tradição só resta a esperança do saber pós-morte, quando então a alma estará livre dos limites
impostos pelo corpo. Limites que tornam os conhecimentos em vida sempre limitados (TÜRCKE, Christoph. O louco: Nietzsche e a mania da razão. São Paulo: Vozes,
1993. p. 86).
22
Descartes afirma em seu Discurso do método, que “podia supor não possuir corpo algum [...] que nem por isso podia supor que não existia”, ou seja, “a essência ou
natureza consiste apenas no pensar”, não necessitando de suporte material, daí a identidade “eu/alma”, e a cisão “alma/corpo” (DESCARTES, 1985, p. 56).
23
SILVA, Ana Márcia. Elementos para compreender a modernidade do corpo numa sociedade racional. In: Cadernos Cedes, ago. 1999, ano XIX, n. 48, pp. 7-29. p. 19.

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Corpo e modernidade

estatística, que moveu-se pela crença “que qualquer da alma nos animais, o que a retira do âmbito da
coisa poderia ser medida”. natureza, tornando-a atributo exclusivo dos homens. Daí
Também no campo da antropologia destacou-se a possibilidade da modernidade dispensar o adjetivo
o trabalho de Cesare Lombrozzo, o qual buscou explicar “humano” quando se refere ao corpo, pois, afinal este
o social pelos dados biológicos, acreditando que os adjetivo não significa nada para a mecânica.
denominados comportamentos “anormais” (loucos, Não é difícil perceber a influência desta analogia
agitadores políticos e criminosos) residiam em caracteres corpo-máquina, em situações como as do processo
orgânicos, que uma vez identificados permitiriam produtivo, onde o ideal passa a ser o trabalhador que
identificar um “delinqüente nato”.24 mais se assemelha à máquina, a qual executa seu
Voltemos aos desdobramentos do pensamento movimento repetidamente, sem esboçar qualquer
cartesiano, particularmente ao denominado reação, muito menos oferecer resistência, paradoxo que
“mecanicismo”, visão de mundo do século XVII, que tem seu desenlace na figura do robô.
atingiu seu apogeu no século XIX com a Revolução Este modelo funda- se nos seguintes
Industrial, para o qual não só os eventos naturais podem pressupostos:
ser descritos com os conceitos da mecânica, mas os – não há interdependência das partes;
próprios engenhos produzidos pelo homem podem – mecanismos não possuem história;
servir de modelo para a compreensão da natureza.25 Em – cada parte atua de forma isolada.
torno disso escreve Rossi: Posição que conflita com os filósofos antigos,
para os quais “era impossível compreender a estrutura
A máquina, real ou apenas pensada como possível, diferencial dos entes sem reconduzi-los à physis, pois era
funciona como modelo explicativo da natureza, nela que o sentido mesmo da diferenciação encontrava a
torna-se a imagem de uma realidade constituída de sua unidade, a sua verdade”.30
dados quantitativamente mensuráveis, na qual cada Isto produzirá uma mudança substancial no
elemento (como cada peça da máquina) cumpre a sua
entendimento da técnica tal como os gregos a
função como base numa determinada forma, em
determinados movimentos e velocidade de compreendiam e o fazer técnico-científico moderno. Os
movimentos. Conhecer a natureza significa perceber primeiros concebiam seus “artifícios” em uma solução de
o modo como funciona a máquina do mundo.26 continuidade entre estes e a ordem originária e
limitadora da physis. Os outros, ao contrário, partem de
Conclui ainda que “Nos limites em que a uma predominância do sujeito, o qual impõe à natureza
natureza foge ao modelo da máquina, ela é uma objetual sua vontade unilateral.
realidade não cognoscível”.27 É da máquina que deriva, segundo Guiddens, o
É nesta mesma perspectiva que a anatomia industralismo, o qual torna-se o eixo principal da
desmembra o corpo humano, tomando-o como um interação dos seres humanos com a natureza na
conjunto de peças (órgãos), para estudá-las melhor e modernidade. Se nas culturas pré-modernas a vida dos
explicar o todo como a soma destas partes. Nas palavras seres humanos estava vinculada aos movimentos e
de Hobbes, “o que é o coração senão uma mola, os disposições da natureza, a indústria moderna, fruto da
nervos senão muitas cordas, e as articulações senão aliança da ciência com a técnica, produz uma ruptura em
muitas rodas?”28 relação às formas de vida tradicionais, gerando o
Cabe lembrar que tratar o corpo (humano ou “ambiente criado” que, embora físico, não é mais
animal) como autómato remonta a Platão e Aristóteles, apenas natural e não se limita às áreas urbanas.31
para os quais o corpo era um instrumento da alma, Este modo de percepção do mundo é, sem
cabendo a esta movê-lo. Sem o corpo, porém, a alma dúvida, devedor do pensamento cartesiano para o qual
perdia seu sentido próprio. Descartes dispensa essa toda a realidade está composta por duas substâncias, a
função motriz da alma, tornando o corpo objeto da res cogitans, o espírito, e a res extensa, a matéria. A
mecânica. Dessa forma, torna-se dispensável a existência primeira, como sabemos, caracteriza-se pelo

24
Id., ibid., p. 20-21.
25
SACARRÃO, Germano Fonseca. Biologia e sociedade I. Crítica da razão dogmática. Portugal: Publica-ções Europa-América, 1989. p. 44. Segundo o autor, é com a
emergência da burguesia que surge o relógio mecânico, considerado por Marx a primeira máquina automática aplicada a fins práticos, possibilitando a teoria da
produção e da regularidade do movimento. Ele passa a ser o modelo de todas as máquinas e automatismos sociais, ultrapassando o âmbito da fábrica. Para a ideologia
burguesa o mundo é movimento, é uma máquina, e, como elas formado por um conjunto de peças. Para compreender o mundo faz-se o mesmo que a máquina –
desmonta-se, desunem-se as peças e estudam-se separadamente.
26
ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos: aspectos da revolução científica. Rio Claro: Ed. Unesp, 1992. p. 135.
27
Id., ibid., p. 137. Em crítica posterior Nietzsche vai afirmar: “um mundo essencialmente mecânico seria mundo totalmente desprovido de sentido!” (NIETZSCHE,
Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Hemus, 1981. p. 271).
28
Apud ROSSI, Paolo. Op. cit., 1992, p. 135.
29
BARBOSA, Wilmar do Vale. Considerações em torno da ciência, da técnica e da natureza. In: Revista Tempo Brasileiro, jan.-jun. 1987, v. 88, n. 89, pp. 51-65. p. 63, nota
15.
30
Id., ibid., p. 53-55.
31
GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. Rio Claro: Ed. da UNESP, 1991. p. 66.

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pensamento e é desprovida de qualquer característica composta de partes igualmente simples e quantificáveis,


material; a segunda, pela extensão espacial desprovida desprovidas de singularidades, sugere um universo
de qualquer atividade interna, portanto, inerte. A científico neutro, poeticamente estável e eternamente
movimentação da matéria e a ação por contato entre sem perigos. Um espelho, enfim, para este narciso
partes extensas da matéria, são para Descartes a origem chamado sujeito.38 Que só pode chegar, como já
das substâncias e fenômenos físicos, sendo também a destacamos, à plena condição de sujeito pelo
única forma de mudança na natureza (o que legitima a silenciamento do corpo, uma vez que constituir-se-ia em
intervenção humana). Concepção de natureza essa que uma espécie de microcosmo desse mecanismo do
se opõe à física aristotélica e à tradição da magia natural mundo.
renascentista, segundo as quais, a matéria era permeada Esta visão de mundo moderna carrega junto as
de poderes ativos.32 suas inegáveis conquistas, pontos de estrangulamentos
Uma vez posta esta realidade dual, estabelece- que se revelam também nos modos contemporâneos de
se uma nova base para as explicações físicas da realidade, pensar e viver o corpo. Paradoxo traduzido por Silva na
esta tomada como puramente mecânica, livre dos seguinte passagem:
arbítrios do espírito, verdadeira encarnação da ordem33
e, enquanto tal, objetivável pela mensuração. O eixo civilizatório eleito no ocidente gerou a
Este determinismo mecanicista, aplicado tanto à construção de uma expectativa de corpo
compreensão da matéria bruta quanto da matéria fundamentada no reforço de um sentimento
contraditório que se vê explodir na atualidade:
animada, é a encarnação do ideal de regularidade,
dominar o corpo e, ao mesmo tempo, libertá-lo;
condição para o estabelecimento de “leis”.34 Estas subjugá-lo e depender dele para sua “felicidade”;
servem, não tanto para compreender o real em sua acreditar na superioridade e na independência da
complexidade, mas para dominá-lo e transformá-lo. mente, mas se submeter aos rituais necessários ao
Esse modelo de inteligibilidade servirá, no plano “corpo em forma”.39
social, para legitimar a sociedade burguesa ascendente, a
qual acreditava-se ser conduzida pela força de “leis Problemática que deriva, em boa medida, do
sociais” ao estágio final do processo de evolução da esforço da racionalidade moderna, expressa no ideal
humanidade, fosse ele o estado positivo de Comte, a científico, em separar epistemologia e história,
sociedade industrial de Spencer, ou a solidariedade concebendo o conhecimento como destituído de
orgânica de Durkheim.35 historicidade. A pretensão de pensadores como Bacon e
Esta visão mecanicista do mundo, sinonímia da Descartes funda-se no desejo de verem-se liberados de
natureza com a matéria, bem como a concepção da uma tradição que, segundo eles, é fonte de enganos e
matéria como composto de elementos irredutíveis, ilusões, bem como empecilho ao livre desenvolvimento
analiticamente dedutíveis e empiricamente da razão.
comprováveis, permanece ainda hoje hegemônica nas O fato de a filosofia de Descartes não colocar-se
chamadas ciências naturais,36 constituindo-se em modelo diretamente à problemática da história e do social não
teórico para áreas como medicina e fisiologia, as quais significa que sua filosofia não tenha desdobramentos
exerceram grande influência sobre áreas como educação importantíssimos para a História, maiores inclusive do
física, fisioterapia etc. Sua extensão às ciências humanas que a contribuição de muitos que fizeram dela seu objeto
tem sido o esforço do positivismo para o qual a “máquina de reflexão.40
do mundo”, inclusive a sociedade, é ontologicamente
ordenada, o que possibilita a previsão de seus O que há de fundamental e de básico em Descartes é
movimentos a partir do conhecimento do movimento de a constituição reflexiva do poder da razão de
suas partes.37 Mecanismo que se supõe imune à representar, na instância da subjetividade, a realidade
degradação, ao desgaste, à irreversibilidade, à naquilo que ela tem de objetivo. E com isto se
fundamenta metafisicamente a apreensão lógico-
complexidade ou ao aleatório. Enquanto entidade
matemática do real e se consolidam as bases da
simples, quantificável, esta magnífica máquina, civilização científica e tecnológica.41
32
HARMAN, P. M. A revolução científica. São Paulo: Ática, 1995. p. 41-44.
33
BARBOSA, Wilmar do Vale. Op. cit., 1987, p. 52. Segundo o autor, a questão da ordem pode ser considerada o epicentro da racionalidade moderna, pois é ela que
possibilita a noção de “leis” nas relações causais, bem como o abandono da noção de totalidade orgânica como condição explicativa.
34
RODRIGUES, José Carlos. Op. cit,. 2001, p. 50. O autor, apoiado em Febvre (1947), lembra que “Os sábios medievais ainda não consideravam que lhes pertencesse a
tarefa de descobrir 'leis', ou de, mergulhados em uma enorme massa de dados aparentemente desconexos, descobrir-lhes com exatidão uma ordem subjacente, uma
classificação ou hierarquia”.
35
SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Revista Estudos Avançados. São Paulo: USP, 1988. p. 51-52.
36
LUZ, Madel. Op. cit., 1988. p. 34-35.
37
O que nos permitiria estabelecer algo como “leis da história” ou do comportamento humano.
38
BARBOSA, Wilmar do Vale. Op. cit., 1987. p. 52.
39
SILVA, Ana Márcia. Op. cit., 1999. p. 25.
40
SILVA, Franklin L. e. A função social do filósofo. In: MUCHAIL, Salma T. (Org.). A filosofia e seu ensino. São Paulo: EDUC, 1993.
41
Id., ibid., p. 16.

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Corpo e modernidade

Desta forma, apesar de seu “desinteresse” pela composta a partir de elementos simples, irredutíveis, os
História, o significado de sua obra e de sua atitude quais se combinam de acordo com regras limitadas a
filosófica tornaram-se fundamento da civilização priori, e subordinadas a leis específicas de atração e
moderna, pois é desta atitude que derivam a ciência e repulsão exprimíveis formalmente. Os elementos simples
seu produto imediato, a tecnologia. são para Descartes as idéias, os conceitos e o mecanismo
O ideal de racionalidade da modernidade, que os combina, a razão. Assim, desconhecendo as bases
baseado na prevalência do Sujeito e na extensão do materiais, ligadas à criação de máquinas e autômatos, a
poder da razão a todas as realidades suscetíveis de “razão moderna clássica se pensa construída à imagem e
apreensão objetiva é, sem dúvida, cartesiano, assim semelhança das máquinas que inventou e concebe a
como o estatuto de sujeito que será o suporte da natureza reproduzindo o mesmo modelo mecânico”.45
posterior complementação kantiana.42 O modelo explicativo mecanicista, o método
O “eu pensante” cartesiano (sujeito epistêmico) experimentalista-dedutivista e a linguagem
transforma o objeto de seu conhecimento (mundo matematizante constituíram-se nos elementos da síntese
exterior) à sua imagem e semelhança, ou seja, epistemológica que caracterizou e, em boa medida,
“desqualifica” a natureza, transformando-a em “idéia”, ainda caracteriza a racionalidade moderna.
condição de sua “quantificação” (matematização), o que, Para esta racionalidade precisão e exatidão são
nos termos da velha problemática metafísica significa a sinônimos de mensurabilidade. Isso posto, a questão que
separação entre essência e aparência, sendo que aqui se coloca é: como equacionar, nos termos da linguagem
aparência é identificada com as qualidades e a essência físico-matemática, esta qualidade substancial da matéria
com a quantidade. que é o “movimento”? É esta a tarefa levada a efeito por
Sujeito e objeto são então “des-qualificados”, Newton e que está na origem da própria mecânica. O
tornados pura abstração, sujeito livre dos sentidos e das primeiro passo foi: “a partir de uma concepção mecânica
paixões, objeto destituído de cultura e história, do tempo, reduzi-lo a momentos sucessivos e
consideradas fontes de engano e ilusões. O que os liga é a ordenáveis, a posições atomizadas no espaço e
racionalidade comum a ambos, fonte da objetividade do numeráveis do segundo ao ano-luz, progressivamente
conhecimento. O método de acesso a esse mensuráveis por aparelhos de precisão crescente”.46
conhecimento objetivo só pode ser geométrico- Utilizando-se deste artifício, a obra de Newton
algébrico, pois, como lembra Galileu, possibilitou a análise do movimento de todos os corpos
como um tipo específico de mecanismo natural, cujas leis
A filosofia está escrita neste grandíssimo livro, que nos são objeto de disciplinas específicas e podem ser
está continuamente aberto diante dos olhos (quero traduzidas em caracteres matemáticos, levando-se em
dizer universo), mas não se pode entender sem antes consideração sua localização no espaço e variação no
aprender a entender a língua e entender os caracteres
tempo. Assim, na Física, por exemplo,
em que está escrito. Ele é escrito em língua
matemática, e os caracteres são triângulos, círculos e
se expressa a verdade como objetivação da
outras figuras geométricas [...]43
experiência através da mensuração experimental,
sendo esta a forma característica do desvelamento da
O processo de des-qualificação do indivíduo, tal verdade do Ser na Modernidade. Sendo o ente da
como dos demais objetos, atende à necessidade de Física o movimento da matéria, não emergem a priori
construção de uma igualdade abstrata, a qual nega aquilo limites para uma extensão da unidade da Física para
que o torna único e, portanto, incomparável, ou seja, além do campo anorgânico, de modo que toda e
seus dados qualitativos. Estes, no entanto, dificultam o qualquer realização de todo e qualquer ente seja
tratamento mercantil do indivíduo. Daí a necessidade de passível de uma objetivação “fisicista”.47
um denominador comum quantitativo, condição para
seu tratamento “científico”.44 Objetivação da qual as demais ciências são
A razão moderna, como já vimos, imagina a si e herdeiras, pois, afinal, o método racionalista, com sua
ao mundo como máquina, como engenho. Imaginar o linguagem quantitativista, forneceu o modelo
mundo mecanicamente é condição da razão epistemológico não só para a física, mas para todas as
mecanicista para poder controlá-lo. O que exige que a disciplinas que se constituíram sob a égide da
própria razão seja concebida mecanicamente, ou seja, racionalidade moderna.

42
A hegemonia da racionalidade cartesiana não irá se impor sem críticas, pois, já Pascal aponta para a arbitrariedade dos princípios da ciência e constata a impossibilidade
de fundamentar racionalmente a relação do Homem com a transcendência. (Cf. SILVA, 1993, p. 17 e ss).
43
Apud ROSSI, Paolo. Op. cit., 1992. p. 203-204.
44
Este é o dilema da Psicologia na sua busca de reconhecimento enquanto ciência positiva, pois, ao reconhecer o indivíduo singular, legitima o objeto que a justifica;
porém ao buscar tratá-lo nos moldes da ciência positiva, o nega enquanto individualidade, perdendo assim seu objeto e com isso sua legitimidade “científica”.
45
LUZ, Madel. Op. cit., 1988. p. 34.
46
Id., ibid., p. 43.
47
BARTHOLO Jr., Roberto S. Op. cit., 1987, p. 29.

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Paulo Evaldo Fensterseifer Seção Artigos

A ambição desta racionalidade, expressa na na literatura, no teatro, na música, são gradativamente


ciência moderna, é tornar a natureza transparente aos superados pela modernidade científica. Esta relegará ao
olhos da razão, ou seja, “dizer de modo definitivo o que a plano das artes tudo aquilo que diga respeito aos
natureza 'é'”.48 É essa a novidade que a revolução sentidos, paixões... . A razão torna-se des-subjetivada.
copernicana traz em seu bojo ao propor um Objeto (natureza, mundo, coisas) e sujeito (homem) são
conhecimento não iniciático, um conhecimento que submetidos a uma espécie de “pan-racionalismo”, o que
prescinde, para ser inteligível, de qualquer esforço de ocasionará, do lado do sujeito, a compartimentação em
reinterpretação espiritual da relação Homem/Universo, razão, paixões, sentidos e vontade.
pois afinal o heliocentrismo já fora proposto por escolas Ruptura que não é apenas epistemológica, mas
gregas, egípcias e islâmicas. Agora, a verdade de uma social e psicológica, na medida em que institui instâncias
teoria não é mais uma questão de fé, mas produto de um socialmente exclusivas para o exercício de cada um
conhecimento que pretende sobrepor-se aos demais: o desses compartimentos: a produção de verdades para a
conhecimento “científico”.49 “Arrogância” que gerou razão (ciência); as paixões para a política e para a moral
obviamente a ira dos demais saberes, em particular (ética); os sentimentos e os sentidos para as artes
daquele que possuía a hegemonia, o saber religioso, já (estética).53 Esta compartimentação terá o efeito de
que essa pretensão exclusiva de legitimidade, aliada ao “negar” socialmente o sujeito humano e “neutralizá-lo”
conteúdo da nova astronomia galileana, feria a noção, epistemologicamente, criando condições históricas para
cara à Igreja, de verticalidade e horizontalidade, torná-lo como a Natureza, objeto de ciência, isto é, para
expressas no simbolismo da cruz. Noção que naturalizá-lo, torná-lo coisa passível de intervenção, de
possibilitava o estabelecimento de uma hierarquia que transformação, de modelação, de produção.54
vai do nível mais baixo, o homem, até o mais alto, Deus.50 Para encerrar recorro, negando a exclusividade
Esta ambição que se, por um lado, aumentou o do discurso científico,55 a uma imagem da literatura que
poder das sociedades modernas, por outro, seu sucesso, expressa como poucos “estudos científicos” o dilema
assentado no processo de simplificação, originou uma humano em torno do corpo. Ítalo Calvino,56 em seu
das mais discutíveis instâncias da modernidade: a romance O cavaleiro inexistente, configura três
manipulação dos sistemas naturais, inclusive o corpo possibilidades de sujeitos encarnados em três
humano, relegados, desde Descartes, ao reino do personagens distintos. Um deles, Agilulfo, é pura
puramente objetual, do mecanismo sem sentido próprio, consciência, dever e vontade (“tem consciência de existir
“ao reino que não é”.51 mas de fato não existe”);57 o outro é Gordulu, é pura
A ruptura natureza/homem, ao mesmo tempo imanência com a natureza, sensibilidade corpórea
em que cria um objeto privilegiado da razão, atribui (“existe mas não tem consciência disso”);58 o terceiro é
estatuto de realidade às dualidades matéria/espírito e Rambaldo, espécie de consciência encarnada que
objeto/sujeito. A estas dualidades somam-se outras: buscava um frágil ponto de equilíbrio entre os dois
qualidade/quantidade; corpo/alma; sentidos/razão; primeiros (“A ansiedade contraditória que a visão do
organismo/ mente; paixões/vontade. Estas dualidades guerreiro de couraça branca – Agilulfo – sempre lhe
marcarão as disciplinas científicas, as quais transitarão de comunicava agora contrabalançava a nova angústia
um pólo ao outro da dicotomia, presas a monismos de provocada por Gordulu: e deste modo conseguiu salvar
ordem epistemológica, teórica ou metodológica, seu equilíbrio e ficar calmo de novo”).59 Os três, após uma
incapazes de sínteses.52 sangrenta batalha, têm a tarefa de enterrar os mortos
As características da época renascentista, tais (“cada um escolhe um morto, agarra-o pelos pés e o
como: o sensualismo presente na plasticidade da pintura, arrasta pela colina até um lugar adequado para cavar-lhe
da escultura, da arquitetura; a busca da beleza como fim a cova”).60
da existência; a valorização do “homem” como portador Descrevemos a seguir o que se passa com cada
de verdades universais e amigo da verdade; o hedonismo um deles nesta triste tarefa, tal como a escreve Ítalo
Calvino:
48
BARBOSA, Wilmar do Vale. Op. cit., 1987, p. 52.
49
BARTHOLO Jr., Roberto S. Op. cit., 1987, p. 36.
50
Id., ibid., p. 37.
51
BARBOSA, Wilmar do Vale. Op. cit., 1987, p. 53.
52
LUZ, Madel. Op. cit., 1988, p. 25.
53
Os sentimentos e os sentidos - a sensualidade - são declarados inimigos tanto da razão científica natural e da razão da moralidade cristã, religiosa ou laica, o que a levará
possivelmente a refugiar-se no sensualismo estético do barroco. Desta forma, a arte, separada do conhecimento e da moral, constituir-se-á no espaço privilegiado da
expressão dos sentidos e sentimentos (LUZ, Madel. Op. cit., 1988, p. 65).
54
LUZ, Madel. Op. cit., 1988. p. 26.
55
Na contramão do estilo científico opto por, após estas passagens, não “explicar” o que o autor “realmente quis dizer”, deixando esta tarefa interpretativa infinita, aos
leitores.
56
CALVINO, Ítalo. O cavaleiro inexistente. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
57
Id., ibid., p. 29.
58
Id., ibid., p. 29.
59
Id., ibid., p. 54.
60
Id., ibid., p. 55.

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Corpo e modernidade

Agilulfo arrasta um morto e pensa: “Ó morto, você


tem aquilo que jamais tive nem terei: esta carcaça. Ou
seja, você não tem: você é esta carcaça, isto é, aquilo
que às vezes, nos momentos de melancolia, me
surpreendo a invejar nos homens existentes. Grande
coisa! Posso bem considerar-me privilegiado, eu que
posso passar sem ela e fazer de tudo. Tudo – se
entende – aquilo que me parece mais importante; e
muitas coisas consigo fazer melhor do que aqueles
que existem, sem os seus habituais defeitos de
grosseria, aproximação, incoerência, fedor. É verdade
que quem existe põe sempre alguma coisa de seu no
que faz, um sinal particular, que não conseguirei
jamais imprimir. Mas, se o segredo deles está aqui,
neste saco de tripas, muito obrigado, não me faz falta.
Este vale de corpos nus que se desagregam não me
provoca mais arrepios que o açougue do gênero
humano vivo”.

Gordulu arrasta um morto e pensa: “Você dá certos


peidos mais fedidos que os meus, cadáver. Não sei por
que todos se compadecem de você. O que lhe falta?
Antes, se movia, agora seu movimento passa para os
vermes que você nutre. Fazia crescer unhas e cabelos:
agora vai produzir líquidos que farão crescer mais
altas sob o sol as ervas dos campos. Vai se tornar
capim, depois leite das vacas que comerão capim,
sangue de criança que bebeu o leite, e assim por
diante. Ó cadáver, você é mais capaz do que eu para
viver?”.

Rambaldo arrasta um morto e pensa: “Ó morto,


corro, corro para chegar até aqui como você, a me
fazer puxar pelos calcanhares. O que é esta fúria que
me empurra, esta mania de batalhas e amores, vista
do ponto onde observamos seus olhos arregalados,
sua cabeça virada que bate nas pedras? Penso, ó
morto, você me obriga a pensar; mas o que muda?
Nada. Não existem outros dias senão estes nossos dias
antes do túmulo, para nós, vivos, e também para
vocês, mortos. Que me seja concedido não
desperdiçá-los, não perder nada daquilo que sou e
daquilo que poderia ser. Praticar ações insignes para o
exército franco. Abraçar, abraçado, a orgulhosa
Bradamante. Espero que você não tenha gasto seus
dias da modo pior, ó morto. De qualquer maneira,
para você os dados já decidiram seus números. Para
mim ainda se agitam no copo dos azares. E eu amo, ó
morto, minha ansiedade, não a sua paz”.61

Artigo recebido em: 25/02/09


Aprovado em: 03/07/09.

61
CALVINO, Ítalo. Op. cit., 1997. p. 55-56.

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