Mulheres Debatem Michel Foucault. Vol. II
Mulheres Debatem Michel Foucault. Vol. II
Mulheres Debatem Michel Foucault. Vol. II
Michel Foucault
Volume II
Mulheres debatem
Michel Foucault
Volume II
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Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras.
CDD –410
4
PREFÁCIO
5
política em relação à tarefa pedagógica de formar uma boa esposa,
realizando uma leitura dos jogos de saber-poder-verdade na Grécia
Clássica, por meio de uma abordagem arqueológica, explorando a
noção de alteridade como experiência histórica na obra Econômico de
Xenofonte. E encerrando a primeira parte do livro, Paloma Dallagnol
em “Subjetividade e gênero: o cruzamento entre violência e
normalização nos corpos abjetos” analisa como os conceitos de
subjetividade, gênero e abjeção se cruzam e são fundamentais para
entender como a norma atua na produção de sujeitos e nos
mecanismos de regulação das dissidências.
Na segunda parte contamos com as discussões dos artigos
relacionados ao tema da LOUCURA. A pesquisadora Flávia Almeida em
“Governo da loucura: da alienação do discurso do louco à noção de
transtorno mental” analisa o fenômeno da loucura traçando um breve
panorama histórico que se debruça em analisar as obras de Michel
Foucault que discutem a historicidade da loucura. Já Gabriela Trevisan
no capítulo intitulado “Loucura, mulheres e literatura brasileira na
modernidade” discute a histerização dos corpos femininos no
Ocidente buscando desnaturalizar as categorias de “histérica” e
“louca” a partir da leitura de escritoras brasileiras. Já Priscila Cupello
encerra este bloco com “A mulher (a)normal: análise da circulação do
discurso médico-mental e eugenista no Rio de Janeiro (1925-1933)”
investigando a penetração do discurso médico-mental na construção
da mulher normal/anormal em revistas leigas de grande circulação na
cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 1925 e 1933.
A terceira parte concede ao NEOLIBERALISMO, o lugar central de
investigação. O artigo de Cecília Teles “A competitividade como
modalidade neoliberal de controle docente: o caso do ensino médio
integral de Sergipe” trata de investigar a competitividade como
elemento guiado biopoliticamente pelo neoliberalismo, que se
apresenta como modalidade de controle docente, e traz para o
professor de inglês do Ensino Médio Integral (EMI) de Sergipe, novas
formas de existência. Já Luciana Azeredo, Lucimara Moreira, Ludmila
Guimarães e Ruth Garé no artigo “Reflexões sobre a forma(ta)ção das
subjetividades de trabalhadores/as no/pelo (neo)liberalismo”
examinam os impactos das mudanças econômicas e sociais para
compreender suas articulações com a forma(ta)ção da subjetividade
na sociedade pós-moderna. O texto tem como fio condutor a
6
problematização sobre como a lógica neoliberal, transforma a
sociedade e afeta as subjetividades, assim como suscita o debate
sobre como essa realidade apresenta desafios significativos para a
saúde mental do/a trabalhador(a).
Abrindo a quarta parte do livro que trata de RESISTÊNCIAS, o
artigo de Andrea Mello “A coragem para transvalorar” tem a
finalidade de mostrar a relevância da relação entre a recepção do
cinismo antigo feita por Michel Foucault no curso A Coragem da
Verdade e o projeto de transvaloração nietzschiano. Ambos mostram
a possível desconstrução de valores considerados absolutos, partindo
da premissa de que são invenções e que podem ser desconstruídas e
construídas de outra maneira. Carolina Leite em “A 'escrita de si' em
Glitterbug de Derek Jarman” analisa a última obra do cineasta inglês,
composta por uma série heterogênea de registros fílmicos feitos nas
décadas de 1970-80. Nesses registros, há uma retomada, ainda que não
explícita, de aspectos das ‘práticas de si’ e que parece atualizar, via
obra cinematográfica, alguns dos aspectos do que Michel Foucault, em
seus estudos sobre as “artes de si” da cultura greco-romana, vai
chamar de meditação sobre a morte. Julia Naidin em “Ecopolíticas e
Ecopoéticas peripatéticas” por meio de uma pesquisa transdisciplinar,
traz a complexidade da crise ambiental contemporânea a partir do
caso da praia de Atafona e analisa criticamente a cisão entre a luta
ambiental e a luta colonial. Encerrando a quarta e última parte do livro,
Rosimeri de Oliveira Dias e Heliana Conde escrevem o artigo-ensaio
“Recusando o momento cartesiano: como equipar-se em psicologia e
educação?” partindo do problema do sujeito e a relação com a verdade
conforme apontado por Michel Foucault no curso A Hermenêutica do
sujeito. As autoras trazem à cena inflexões tanto para o campo da
psicologia como para o da formação de professores, indagando como
a constituição de si por si mesmo pode se transformar em uma
metodologia ética de trabalho.
Priscila Cupello
Doutora em Filosofia pela UFRJ
e criadora do Canal do YouTube Parresiando
Andrea Mello
Doutora em Filosofia pela PUC-RJ
7
8
SUMÁRIO
PARTE I: GÊNERO
PARTE II – LOUCURA
9
Capítulo VIII: Reflexões sobre a forma(ta)ção das 155
subjetividades de trabalhadores/as no/pelo (neo)liberalismo
Luciana Aparecida Silva de Azeredo
Lucimara Moreira da Silva
Ludmila de Vasconcelos Machado Guimarães
Ruth Maria Rodrigues Garé
PARTE IV - RESISTÊNCIAS
Sobre as autoras
263
10
PARTE I: GÊNERO
11
12
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
13
A despeito da compatibilidade e para além das questões sobre as
eventuais contribuições e influências envolvidas, penso que algumas
formulações-chave são centrais e ocupam aí o lugar de intersecção.
Desempenham, assim, a função de designar o que sujeitos humanos –
inicialmente as mulheres e os sujeitos vinculados à materialidade do
feminino – vivenciam nos enfrentamentos políticos de sua
subjetividade. E uma dessas formulações-chave é precisamente o
corpo em sua materialidade – historicamente constituída. Parto aqui,
segundo um olhar feminista, do corpo como a instância primeira onde
uma subjetividade pode ser, onde uma história pode acontecer e
registrar-se, além de ser também o ponto de partida mesmo de
resistência coletiva.
Que o corpo é a instância mesma da subjetividade é, sabemos,
uma constatação foucaultiana. Vigiar e punir: nascimento da prisão
(FOUCAULT, 2014, p.29) aloca os sistemas punitivos para além de suas
exaltações jurídicas numa economia política moderna do corpo, afinal
“é sempre do corpo que se trata”. É o corpo o que se revela na
genealogia, no tratamento das relações entre discursos e instituição e,
no discurso, ele mesmo, como a instituição de uma materialidade
política, na dureza perigosa de suas escansões, de suas exclusões; de
sua vontade de verdade. De modo que o embaralhamento da
linguagem com o poder complexifica em seu pensamento a noção de
economia, abarcando as imposições naturalizadas, as normas
corporificadas e todos os cálculos estratégicos para a majoração das
forças produtivas nas mais sutis formas de governo das condutas.
Assim, a política da verdade foucaultiana reveste-se de um caráter
veementemente material: os discursos operam, atuando em espaços,
ferramentas, diagnósticos, paredes de concreto e corpos vivos,
matéria atravessada por relações de poder.
A dinamização do corpo como objeto privilegiado das análises
foucaultianas é expressa pelo biopoder, cingido em sua materialidade
natural e fisiológica, o que as análises de Nascimento da clínica já
prefiguravam - “depois da anatomopolítica do corpo humano” típica
do século XVIII, opera uma “biopolítica da espécie”, diz Foucault (2010,
p. 204) no curso Em defesa da sociedade. Guardam em comum, essas
duas instâncias de perquirição do corpo, a identificação dos padrões
de anormalidade relativamente ao “dever ser” antropológico do
homem moderno – aquele que se deve fazer viver, por oposição ao
14
que se deve deixar morrer. O corpo vivo, o corpo a ser majorado em
sua funcionalidade, disciplinado na medida da docilidade, aparece de
maneira dispersa, ainda que não menos material, no arranjo da
população, controlada em sua produção e reprodução, vigiada em sua
morbidade, em sua proliferação, na orientação de sua sexualidade;
matéria fluida, passível de governo e condução.
Nesses termos, o pensamento de Foucault vem, ao mesmo
tempo, encontrar o movimento feminista e experimentar seus limites
relativamente a ele. O corpo feminino é essa subjetividade
corporificada, escandida, violada, fetichizada, pauperizada, exposta e,
assim mesmo, resistente a processos de alijamento, exploração,
opressão e alienação. Coloco aqui lentes feministas sobre o olhar de
Foucault não para reclamar as – com efeito ausentes – menções ao
poder patriarcal e à diferenciação sexual. Mas, para testar a
particularidade da ação de uma biopolítica dos corpos femininos,
identificando aquilo que deles se faz, e observar se esse teste não nos
revelaria essa, sim, uma omissão fundamental, qual seja a ausência de
uma ênfase na questão da produção no interior da noção de
governamentalidade3, se, com isso, ela não se veria incompleta em sua
materialidade.
Em Nascimento da Biopolítica (FOUCAULT, 2022, p. 19), Foucault
faz a crítica histórica da economia política como a forma de
racionalidade instaurada no século XVIII, sendo instrumento
intelectual, mas também cálculo e forma de autolimitação da razão
governamental, desenvolvendo-se no interior mesmo da razão de
Estado, diferentemente do pensamento jurídico, que lhe é exterior. Ela
15
não se ocupa da legitimidade do direito ali envolvido, apenas observa
seus efeitos, e atribui uma certa “naturalidade” própria à ação
governamental, que se constitui como a forma de análise estrita e
limitada da produção e da circulação de riquezas.
Mas, como é possível que as análises sobre a biopolítica dos
corpos, suas estratégias, discursos e tecnologias tenham no
liberalismo seu princípio de inteligibilidade, e no neoliberalismo uma
forma de racionalidade que expande as regras do mercado para todas
as relações sociais e políticas, sem que a produção, ela mesma, seja
considerada como fator determinante no esquadrinhamento das
formas distintas e assimétricas pelas quais esses corpos se distribuem
sob a ação do biopoder? Passa ao largo dele a materialidade
descontínua das tecnologias e estratégias que atravessam os sujeitos
produtores dessas mesmas riquezas. Os corpos das mulheres em sua
materialidade histórica são indicadores dessas assimetrias.
Silvia Federici assinala o grande volume de trabalhos no campo do
feminismo desenvolvidos a partir da década de 1970 que destacam
essa centralidade do corpo, segundo ela, erroneamente atribuída a
Foucault (FEDERICI, 2017, p. 32). Ela empreende uma análise dos
efeitos da acumulação primitiva de trabalhadores e de capital que está
na base da formação das relações capitalistas do ponto de vista
específico das mulheres, da usurpação de seus corpos, de seu trabalho
reprodutivo, e do advento de uma nova forma de poder patriarcal.
Aponta como esse processo derivou da ruptura com todas as formas
de trabalho comunal, o que teria enfraquecido principalmente as
mulheres, promovendo uma nova divisão sexual do trabalho. Com
isso, as mulheres foram impelidas ao desempenho de tarefas
destituídas de valor monetário e expulsas de todas as atividades cuja
remuneração poderia representar para elas uma certa autonomia
como a fabricação de cerveja, a realização de partos, além dos
trabalhos manuais e artesanais (FEDERICI, 2017, p. 182). Com efeito, os
desdobramentos desses processos, assim como o fenômeno massivo
da “caça às bruxas”, não são apreensíveis pelas duas séries por meio
das quais Foucault (2016, p. 210), no curso Em defesa da sociedade,
enquadra os processos econômicos, político-militares, biológicos e
institucionais do exercício de poder sobre os corpos desde o século XVI
– a série “corpo-organismo-disciplina” ou a série “população –
processos biológicos – mecanismos regulamentadores”.
16
UMA BIOPOLÍTICA DOS CORPOS FEMININOS
17
do trabalho comunal que, apesar de sua precariedade, representava
ainda uma forma coletiva de resistência e enfrentamento. O trabalho
comunal evitava o isolamento no desempenho das tarefas de higiene
e cuidado das famílias – fundamental no controle das doenças quando
da formação dos burgos – ao mesmo tempo em que as mantinha mais
protegidas contra violências. Formou também todo o campo de uma
economia doméstica futuramente consolidado, no século XIX, no
desempenho da função de “dona de casa”, responsável pelo equilíbrio
do núcleo capitalista da reprodução da força de trabalho na medida
mesma em que se desmonetizava essa função:
18
uma tal comunhão entre afetividade e servilidade na intimidade da
casa grande como parte da violência exercida sobre mulheres
escravizadas, produzindo a naturalização da exploração sexual e uma
economia psíquica intimamente racista e negadora, característica das
relações de poder na neurose cultural brasileira4.
E essa constitui já a terceira frente por meio da qual a biopolítica
dos corpos femininos se exerce, revelando-se na de maneira singular
como estão distribuídos relativamente à produção e sendo agentes de
reprodução – qual seja a racialização. A constituição dos corpos
negros, pardos, indígenas pelo biopoder se revela na reprodução
social como precarização de suas vidas. Sustenta, dessa forma, o
núcleo familiar branco, revelando efeitos, no Brasil, de uma
colonialidade imperialista assentada na guerra de raças que faz morrer
corpos negros, promovendo a vida e as formas de existência branca.
Lélia Gonzalez destaca a singularidade da acumulação de capital na
América Latina: formando um mercado de trabalho hierarquizado e
marcado pela discriminação racial, alija a mulher negra do acesso aos
níveis mais altos da educação formal, força-a ao desempenho de
funções e tarefas constituídas social, econômica, ética e politicamente
como subalternas, no campo dos serviços pessoais de assistência e
cuidado5 - uma divisão concomitantemente racial e sexual do trabalho.
No “contínuo biológico” da espécie humana, diz Foucault
([1976], 2016, p. 214), o racismo é uma forma de “tratar uma população
como uma mistura de raças” e de fragmentar uns grupos
relativamente aos outros. Ora, essa fragmentação está diretamente
relacionada ao modo como o discurso sobre a guerra que instaura a
era da governamentalidade inscreve nos corpos racializados as marcas
da morte e da sujeição pela exploração, uma vez que a destituição do
valor de suas vidas é diretamente relacionada ao impedimento de que
acessem e se beneficiem da produção e da distribuição de riquezas.
19
A consideração desse aspecto fundamental da materialidade das
relações de poder no sentido da produção e da reprodução como
condição primeira do esquadrinhamento dos corpos, no caso, os
femininos, pontua a maneira mais radical de se situar historicamente a
opressão de mulheres, pois a insere no contexto mais amplo da
exploração capitalista. Desse modo, o exercício do poder patriarcal
encontra-se incrustado no desenvolvimento mesmo do modo de
produção capitalista, ainda que a opressão às mulheres anteceda
historicamente à sua formação. É preciso considerar que não é apenas
da vida de mulheres de que estamos falando. Abordar, de saída, os
corpos femininos por meio da produção e da reprodução social é situá-
los no campo histórico de sua constituição como feminino – ou seja,
sua subjetivação como corpo fisiologicamente destinado a reproduzir
e manter força de trabalho – como algo decisivo para a extensão da
lógica econômica a todas as formas de relações humanas – maneira
como Foucault entende a formação da racionalidade neoliberal:
Não é a sociedade mercantil que está em jogo nessa nova arte de governar. Não
é isso que se trata de reconstituir. A sociedade regulada com base no mercado
em que pensam os neoliberais é uma sociedade na qual o que deve constituir o
princípio regulador não é tanto a troca das mercadorias quanto os mecanismos
de concorrência [...] O homo economicus que se quer reconstituir não é o homem
da troca, não é o homem consumidor, é o homem da empresa e da produção”.
(FOUCAULT [1979], 2022, p. 197).
20
da produção e, portanto, da reprodução de corpos produtivos. São
corpos expressivos da pauperização do feminino como lugar
desmonetizado da produção pela importância mesma que essa função
assume no capitalismo – gerar e manter força de trabalho. Assimetrias
que compõem o capital “humano”, familiar, que se transmite entre
gerações, que se acumula menos como saber e valor do que como
“competência” e investimento das “empresárias de si”. Foucault
termina por reorientar a fala, ao explicar a importância da competência
na formação do capital humano neoliberal:
Sabe-se perfeitamente que o número de horas que uma mãe de família passa ao
lado do filho, quando ele ainda está no berço, vai ser importantíssimo para a
constituição de uma competência-máquina, ou se vocês quiserem para a
constituição de um capital humano, e que a criança será muito mais adaptável
se, efetivamente, seus pais ou sua mãe lhe consagraram tantas horas do que se
lhe consagraram muito menos horas (FOUCAULT [1979], 2022, p. 307-308).
21
de dominação e de exploração de classe, e caso a classe seja
compreendida em termos estritamente econômicos. Mas uma
separação estrita entre essas duas perspectivas tende a relegar para
segundo plano uma crítica contundente ao capitalismo. Isso se reforça
pela acusação de “economicismo” feita ao campo do pensamento
marxista ortodoxo. A análise do poder em termos de
governamentalidade permite, com efeito, constatar a formatação e
gestão dos corpos e subjetividades para o bom funcionamento da
economia capitalista.
É importante observar que, no campo dos estudos feministas, a
incompatibilidade entre a crítica histórica e o materialismo histórico é
evocada. Para feministas marxistas, teóricas críticas, e,
eventualmente, socialistas, o pensamento de Foucault recai no
conjunto argumentativo que se usou chamar “pós-estruturalismo” ou
“pós-modernismo”, o que representaria um entrave a formas de
resistência, agência e emancipação, rubricas efetivamente alheias ao
escopo do filósofo francês. Na recusa, por princípio de método
analítico da história, das grandes metanarrativas6 que instituíram no
pensamento do Ocidente o lugar central do sujeito, da história e da
identidade, a genealogia foucaultiana é encarada como empecilho ao
desenvolvimento de um pensamento articulado a um ativismo
efetivamente combativo relativamente à opressão das mulheres. Com
efeito, a genealogia do poder não se abre à articulação de uma práxis,
além de ignorar o recorte específico de gênero no campo das relações
de poder.
Por outro lado, ao explicitar os termos políticos da constituição
histórica da sexualidade, presente em muitos desdobramentos da
teoria queer e da filosofia de Judith Butler, por exemplo, a genealogia
de Foucault esmiúça as engrenagens complexas de operação do poder
no sistema capitalista. Ela detalha as tecnologias e estratégias que, no
interior de um sistema abrangente de exploração, enreda-se em
práticas discursivas e não discursivas, institucionais, governamentais,
22
que sustentam mecanismos específicos e funcionais de opressão.
Haveria algo nesses dois caminhos opostos que, numa biopolítica dos
corpos femininos, esteja para além de um marxismo reducionista e de
um “pós-modernismo” estanque?
23
complexidade e a capilaridade das relações de poder entre sujeitos e
instituições.
Sobretudo na década de 1970, o campo político progressista
incorporou formas de resistência ao capitalismo que envolviam o meio
ambiente e sua preservação, os esforços para a limitação da atuação
de corporações internacionais, a defesa e a promoção de dissidências
na vivência da sexualidade e da família, ampliando o campo de
reivindicações sobre o enfrentamento da violência contra as mulheres
e afirmando a necessidade de uma atuação pública e estatal nesses
termos. Como observou, no entanto, Nancy Fraser8, essas
modificações, apesar de essenciais à radicalização das lutas feministas
terminaram por ser incorporadas pelo capitalismo neoliberal,
“esfriando” seu potencial de resistência justamente na medida em que
se afastaram da crítica ao capitalismo.
Diante disso, o horizonte de uma imaginação política em formas
de existência públicas e de resistência coletiva é relegado ao devaneio
numa racionalidade que, a cada vez, contribui para o enfraquecimento
do campo social em favor de uma forma de existência neoliberal, como
observou Wendy Brown9. Escapam a isso justamente a experiência de
produção, de subsistência e de relações comerciais que permanecem
comunais: movimentos sociais, associações de bairro, assentamentos,
espaços nos quais o individualismo do capital-competência encontra
resistência. De toda forma, esses espaços seguem traçados
descontínuos na trama do capitalismo global.
Do ponto de vista do discurso filosófico, consolidou-se, em vista
dessa fragmentação, uma crescente desconfiança relativamente a
toda forma possível de reunião dessas lutas, vistas como excludentes
das formas singulares e extremas de vivência dos efeitos do poder
político. A importante demarcação da estratificação de formas
assimétricas de violência, opressão, alienação e exploração termina
por expor os efeitos da lógica do capital-competência na restrição das
lutas a mecanismos de afirmação identitária. Feminismos remoem-se
24
em meio a bolhas do empresariado de si que somos continuamente
incitadas a promover como forma de vida.
A multiplicação das formas que os feminismos assumiram ecoa
também a necessidade de uma ampliação do sentido comum de uma
luta feminista na qual corpos assujeitados são, eles mesmos, seu lugar
comum. Mencionei a condição da pobreza feminizada e racializada,
mas é preciso lembrar que somos um país que promove um genocídio
naturalizado e cotidiano de jovens negros periféricos, e o sistema
prisional é a continuação por outros meios dessa situação.. Promover,
hoje, um feminismo que envolva apenas mulheres, que desconsidere
as assimetrias patriarcais quando a raça está envolvida, que sustente a
pauta liberal branca, e ignore o peso que a exploração de classe exerce
sobre a violência doméstica é ignorar o potencial neoliberal de
fragmentação e isolamento dos sujeitos entre si de que o próprio
neoliberalismo se alimenta.
É aqui, penso, que as três frentes acima expostas sobre a
materialidade biopolítica dos corpos femininos se encontram,
apontando para o que foi feito dos corpos e sujeitos em geral.
Remetem ao fato de que, ao se demoverem as condições de
assujeitamento de maior vulnerabilidade, toda uma perspectiva de
transformação se abre. Essa perspectiva pode ser apreendida pela
elaboração de uma teoria unitária que, distanciando-se da
interseccionalidade e da consubstancialidade10 dos operadores de
raça, gênero e classe como categorias extrínsecas em relação ou
interseção, propõe uma abordagem integradora cujo foco
fundamental é a crítica ao capitalismo, opondo-se à visão meramente
economicista dessa recusa e complexificando o que os feminismos
têm entendido por “classe”11 ou redistribuição de riquezas.
10 Cinzia Arruzza (2015, p. 44) as nomeia como “teorias dos sistemas duplos ou
triplos”, que descrevem o modo como as relações se manifestam, mas não podem
fornecer a causa das intersecções; refletem o modo como a realidade se manifesta,
mas não o porquê disso: “O capitalismo não é um Moloch, um Deus escondido, um
marionetista ou uma máquina: é uma totalidade viva de relações sociais. Nela,
encontramos relações de poder conectadas a gênero, orientação sexual, raça,
nacionalidade, e religião, e todas estão a serviço da acumulação de capital e sua
reprodução, ainda que frequentemente de formas variadas, imprevisíveis e
contraditórias (ARRUZZA, 2015, p. 48).
11 “No geral, estas teses têm uma compreensão das relações de classe como definidas
25
Desde os anos 1970, as teóricas feministas socialistas apostam no
conceito de reprodução social como forma de conduzir questões
políticas de desigualdade de gênero para a materialidade de relações
de produção, que não poderiam se restringir a pensamentos, ideias e
comportamentos. É então que algo relativo a uma condição específica
de gênero se mostra como efeito da diferenciação sexual nas relações
capitalista neoliberais, a um tempo subjetivas e materiais:
26
Numa palavra, o assujeitamento do feminino está diretamente
atrelado à desvalorização e desmonetização não apenas de atividades
reprodutivas, mas de toda uma forma de existência associada à
reprodução, ao zelo, à assistência e ao cuidado13. Essa configuração se
revela na fetichização e apropriação dos corpos femininos, na
misoginia que se estende aos corpos trans, na submissão a padrões
estéticos até a naturalização de crimes de violação e exploração sexual
e de feminicídio. Não é difícil identificar como esse processo busca
subjetivar os corpos que produzem para naturalizar algo sem o que, no
entanto, nenhum mercado se sustentaria: a reprodução da força de
trabalho e a manutenção de tudo o que vive; gera e ampara as formas
germinais e também terminais da vida.
A alienação, que desde o início das relações capitalistas separa o
trabalho de sua produção, revela-se de forma acentuada no
capitalismo neoliberal como a fragmentação que inviabiliza formas
coletivas de resistência e imaginação política. Penso que as lutas
feministas podem representar um sentido de caminho contrário. A
filósofa italiana Cinzia Arruzza considera o conceito de reprodução
social para pensar as particularizações das diferentes formas como
sujeitos e corpos distintos sofrem opressão e alienação de maneira
diretamente intrincada à exploração capitalista, cuja recusa se mostra
como condição primeira e fundamental para qualquer projeto
emancipatório, utópico, de resistência e reversão de relações de
opressão. Tudo é uma questão de livrar-se de uma acepção redutora
da noção de classe e de complexificar a compreensão do modo como
opera o próprio sistema capitalista:
13“A divisão social, sexual e racial no trabalho do care aparece claramente a partir da
pesquisa comparativa. Assim, estão envolvidas majoritariamente mulheres, de
extratos sociais mais modestos, imigrantes internos (Brasil) ou externos (França). As
cuidadoras são em sua maioria as mais pobres, as menos qualificadas, de classes
subalternas, imigrantes”. (HIRATA, 2014, p. 67).
27
analisar esse processo e o papel crucial desempenhado pelo capital na opressão
de gênero em suas várias formas, atesta sua capacidade de cooptar nossas
ideias e influenciar nossas formas de pensar. (ARRUZZA, 2015, p. 57).
28
identificar como são instituídas opressões de gênero e de raça,
relegando à marginalidade corpos e subjetividades não brancas e não
cisgênero.
É digno de observação e alerta que as crescentes demandas
práticas e discursivas das pautas feministas são aquelas atravessadas
por uma política neoliberal em ascensão. O tempo e o espaço estão
diretamente implicados no campo do investimento que o sujeito
empresário de si mesmo aplica de maneira individual na formação,
como nos diz Foucault, do “conjunto dos investimentos que foram
feitos no nível do próprio homem” (FOUCAULT, 2022, p. 310-311). Uma
teoria feminista unitária é o lembrete de que esse capital é também
formado por aqueles investimentos que “não foram feitos”, ou feitos
de forma a precarizar, como no caso da “economia do terceiro
mundo”, dos países colonizados, ou dos que foram desfeitos pela
desfiguração necropolítica, misógina e material dos corpos
pauperizados. Ela contribui para a singularização das escansões no
interior do próprio modelo de normalização antropológica
característica do Ocidente moderno, tal como escrutinado pela
arqueogenealogia foucaultiana. Faz retornar para seu interior, no
entanto, a materialidade dos corpos governados nas formas
assimétricas de seus recortes e constituições.
REFERÊNCIAS
29
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SAFFIOTI, Heleieth. Gênero patriarcado violência. São Paulo: Expressão
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31
32
CAPÍTULO II
33
INTRODUCCIÓN
34
instancia, de proponer un abordaje arqueológico que permita recorrer
los distintos pliegues que han configurado un cierto conglomerado que
se inscribe en el marco de la Otredad como experiencia histórica. La
historia de las mujeres arrastra tras de sí una espesura que constituye
precisamente su prehistoria. Recorrer esa espesura es recorrer las capas
de su formación como tal. En ese sentido, la visión arqueológica de lo
femenino implica situarse en los pliegues de la historia como universo
simbólico de representaciones. El modo habitual de situarse en un
objeto-problema desde el horizonte arqueológico consiste en instalarse
en una cierta representación, que opera desde la superficie y desde allí,
desde una relativa “cuestión presente” remontarse a esas capas-
pliegues que marcan el conglomerado.
Fue precisamente el texto de Michel Foucault Los anormales el que
nos impulsó a trazar un arco de lectura entre esa “cuestión presente”, que
no denota una cuestión temporal, sino, más bien, una lectura de
sedimentación de representaciones culturales, y el universo clásico, con
el objeto de excavar las capas más profundas de un conglomerado que no
puede prescindir del discurso mítico para dar cuenta de su composición.
Es allí, revolviendo esos bajos fondos, donde se encuentran las
figuras femeninas que devuelve Teogonía como relato fundacional. El
tópos mítico devuelve esas figuras que parecen reunir las características
que las representaciones ulteriores han adscrito a la mujer como forma
de lo otro.
Recorriendo la espesura discursiva y excavando las capas que
sedimentan un cierto conglomerado de saberes, prácticas y discursos,
encontramos que la educación de las mujeres representa un hecho
capital a la hora de pensar en las ventajas de un buen matrimonio, en
un matrimonio oportuno, en la medida en que constituye aquel que
conviene por las cualidades de la esposa.
Cuestión de kairos y de conveniencia, el matrimonio se yergue
como un enclave sobre el cual se fija una mirada, una atención, un
núcleo de problematización intensa, tal como ocurriera con la
formación de los jóvenes3; representa un pro-blema, en tanto aquello
que, arrojado hacia adelante, constituye algo que da que pensar por su
complejidad. Siguiendo el campo lexical del término pro-blema el
asunto deviene un obstáculo, un promontorio, un escollo a resolver.
35
Educar a la buena esposa es un deber del marido y se inscribe en una
dimensión económica en tanto administración del hogar. Este primer
enclave asocia naturalmente a la mujer con el oikos. Si su educación es uno
de los pilares de la administración prudente de la casa, el destino de
fijación de la mujer a ese espacio político de transformación de las
identidades, queda sellado complementariamente.
Organizar y administrar la casa constituye un espacio de saber; no
se trata meramente de un principio voluntarista que retóricamente
proponga tal administración, sino que supone una organización
vertical que obedece a un principio de conocimiento racional que, por
ende, debe necesariamente estar en manos del varón, ya que se halla
mejor dotado por la gestión.
De eso se trata; exactamente de una gestión racional y prudente
que ubica al varón en un espacio privilegiado de la acción; acción
tendiente a formar subjetivamente una compañera, una synergos,
exactamente en su huella etimológica de una co-laboradora, de
alguien que labore a la par. Es este enclave lo que ratificará la posición
del marido y generará un triple rédito en términos foucaultianos4: un
rédito epistemológico, un rédito económico y un rédito político.
Si pensamos en el rédito epistemológico debemos comprender el
conocimiento que se obtiene a partir de la tarea pedagógica de formar
un cierto tipo de sujeto sometido a una gesta disciplinaria, de un sujeto
secuestrado a un aparato de saber. No hay modo de subjetivación sin
el consecuente conocimiento de aquello sobre lo que se está llevando
a cabo la tarea ortopédica. Si las disciplinas consisten en ordenar las
multiplicidades humanas5, a partir de las consecuencias
antieconómicas de las mezclas que los conglomerados humanos
suponen, entonces se obtiene un rédito epistemológico sobre aquello
que se está vigilando, controlando, examinando, educando.
El marido conoce a su esposa y por eso encuentra las
herramientas educativas para hacer de ella la mejor esposa, la esposa
de un kaloskagathos. Aquél que mejor conoce a los sujetos sobre los
4 Foucault, M. En su obra La verdad y las formas jurídicas, el autor describe los réditos
que supone el ejercicio de las disciplinas sobre los sujetos. Una especie de plusvalía
que cierto mecanismo de ejercicio de poder reditúa. Conferencias III y IV.
5 Foucault, M. En su texto Las redes del poder, el autor analiza el desplazamiento de un
tipo de ejercicio de poder que él denomina poder negativo, a otro tipo de ejercicio, el
poder positivo que es un poder productor de efectos y transformador de identidades.
Este poder actúa en red.
36
que recae una determinada empresa subjetivante, es quien mejores
resultados obtiene a partir de tal empresa subjetivante. No hay orden
ni disciplina sin conocimiento. El conocimiento es un principio de
inteligibilidad en materia de administración de cualquier institución,
entre ellas, el matrimonio.
El rédito económico consiste en el plus que se obtiene a partir de
la tarea formativa y transformadora. Este trabajo desplegará
precisamente cómo la formación de la esposa acarrea un rédito
económico en la medida en que la esposa se convierte en una buena
administradora de aquello que produce el marido; en tal sentido, se
convierte en un engranaje clave de la prosperidad del oikos, telos
último de la empresa económica.
Alejada de aquella mujer hesiódica que, pegada a la mesa,
insaciable e incapaz de acompañar al marido, lo consume como una
antorcha6, la mujer abeja, una mujer melissa, es capaz de conservar y
aún acrecentar la fortuna del marido con su acción modelada bajo el
amparo de la tecnología política.
El rédito político estriba en el orden de las relaciones de poder
que se juegan a la luz de ciertas empresas subjetivantes. Si bien la
mujer ocupará un rol privilegiado en el marco general de las relaciones
domésticas, sabemos perfectamente que el varón ha representado
ese principio de inteligibilidad y racionalidad por el cual el oikos marcha
como marcha. El hombre ha sido el verdadero artífice de esa synergos
que ahora ofrece ventajas económicas.
No debemos confundir los roles. Si Jenofonte otorga a la mujer
un lugar preponderante, lo hace en relación al aprendizaje de una
ecuación económica que ha diagramado el varón, verdadero tecknites,
artesano de la legalidad del oikos.
En toda empresa subjetivante hay una posición activa que modela
políticamente una cierta identidad funcional a un determinado sueño
histórico, en este caso, la consolidación de un modelo matrimonial que
hace de los esposos socios en el engrandecimiento de la hacienda. Esa
tarea de conducción ubica al esposo en los albores de una espesura
arqueológica que hace del varón el amo del discurso.
6 Hesíodo, Trabajos y Días. Las desgracias que el funesto genos de Pandora acarrean a
los varones mortales aparece tanto en esta obra mencionada como en Teogonía. Cf.
Colombani, M. C. Hesíodo. Una introducción crítica.
37
El matrimonio constituye una experiencia y tomamos el término
en sentido foucaultiano7. Una experiencia articula tres campos, un
dominio de saber, un dominio de poder y un campo de subjetividad. Si
lo pensamos desde la dinámica matrimonial se produce, en efecto, un
plexo de saberes que tienen que ver con las particularidades de la
institución, un cuerpo de poderes que regula la práctica, con reglas
específicas de convivencia y roles asignados a los miembros de la
pareja de estricta observancia y un cierto modelo de subjetividad que
se ficciona a partir de la pertenencia a dicha experiencia, esto es, un
“modelo esposo” y un “modelo esposa”, como resultantes de una
cierta institución subjetiva. A la luz de este marco teórico, nos
proponemos analizar algunos pasajes de la Económica a fin de ver
cómo juegan los distintos tópicos presentados.
Pero, en mi opinión, hay ciertas edades tanto en los caballos como en los
hombres en la que están inmediatamente disponibles y van mejorando
progresivamente. También te puedo mostrar que unos maridos tratan a sus
38
mujeres de modo que las tienen como colaboradoras para acrecentar la
hacienda, mientras que otros las tratan como más se perjudican9
39
materializar la utopía. El discurso es un territorio altamente defendido
de posibles intrusos y su malla no es enteramente permeable. Ahora
bien, ¿de qué y por qué hay que defenderlo?
En primer lugar, debemos pensar en la tradicional partición
binaria que el concepto de racionalidad inaugurado por la Grecia
Clásica. La disimetría de planos queda plasmada a partir de la
consideración de la menor racionalidad de la mujer, naturalmente
inferior y menos virtuosa. Calificación coherente si pensamos que la
arete, la excelencia, tiene que ver con la sabiduría, con el desarrollo
óptimo de la razón, facultad que hace que el hombre se construya
como tal, determinando su cualificación específica. A la juventud, la
mujer agrega esta natural menor racionalidad, con lo cual los
elementos quedan potenciados.
Si la solidaridad es racionalidad igual a excelencia, este maridaje
desterritorializa, de algún modo, a la mujer del centro de la ecuación,
la ubica en un segundo plano y le restringe el acceso a un doble campo:
el del discurso y el del poder que el mismo supone. Sólo accede a la
palabra quien racionalmente puede sostener la materialidad del
discurso. En esta línea, la mujer queda asimismo desterritorializada del
topos político, porque éste constituye una geografía de ejercicio de la
racionalidad y de la facultad deliberativa. Si tomar la palabra implica
cierta apropiación de un poder, naturalmente atribuido a un único
destinatario, entonces la producción histórica del discurso reconocerá
unilateralmente un agente privilegiado: el varón. Sólo él, por esa doble
convergencia que venimos tematizando, la racionalidad y el poder,
podrá sostener ese discurso didáctico-moralizador que funda
arquetipos y modelos de acción y conducta.
No obstante, la empresa subjetivante arroja un resultado
positivo: la mujer se convierte en una colaboradora y con ello otorga al
marido la independencia que plasma su acción política como buen
kaloskagathos.
La clave de tal independencia radica en no verse sometido a los
asuntos domésticos que, perfectamente, pueden quedar en manos de
la esposa si ésta ha sido convenientemente instruida. Se trata
entonces de una función social de alto impacto político. Ahora bien,
hay hombres capaces de sacar de sus esposas el máximo rendimiento
a partir de la excelencia del trato en la gesta pedagógica y otros que
40
no lo logran, exactamente en la misma línea del buen jinete que sabe
con su trato domar el potro para que éste resulte útil.
La clave de la función social es la utilidad, aquello que resulta
provechoso y puede incluirse entre los bienes de la hacienda para
mantenerla o, aún, engrandecerla, en la misma línea del progreso que
refiriéramos anteriormente.
41
su particular naturaleza está destinada a las tareas domésticas en el
interior del hogar. Su papel es, no obstante, nodular a la hora de
comprender la complementariedad de roles y funciones porque esa
tarea interna es la clave de la conservación de lo producido y de la
racionalidad en la distribución.
De todos modos, la disimetría estatutaria se deja ver en distintos
momentos de la obra. Basta pensar en la referencia a la docilidad de la
cita próxima para comprender la tarea pedagógica como un
dispositivo de docilización, disciplinamiento y transformación. “Pues
bien, Sócrates, cuando ya se había familiarizado conmigo y estaba lo
bastante dócil como para mantener una conversación, le hice las
siguientes preguntas”13
Recordemos que la recepción de la esposa a muy corta edad
supone la presencia de alguien con escasas posibilidades de
conversación. Es más, la educación recibida en la casa paterna se había
cuidado bien de que no viera ni preguntara; de allí que esa posibilidad
de tener un interlocutor supone por parte del marido un largo trabajo
de disciplinarización y enseñanza.
No obstante, el fondo de la discreción opera vigorosamente y
cierta percepción de una identidad degradada en relación a las
excelsas habilidades del marido se deja ver en el siguiente párrafo:“¿Y
en qué podría ayudarte? ¿Qué capacidad tengo yo? Porque todo
depende de ti. Mi obligación me dijo mi madre que era la de ser
discreta”14
Evidentemente la autopercepción es muy pobre y exige la palabra
del marido para corroborar alguna habilidad posible. El marido no sólo
se convierte en un maestro eficaz, sino también en el artífice de la
propia autopercepción.
Las citas nos han permitido vislumbrar el discurso dominante;
aquel que contribuye a fundar una pedagogía femenina, una verdadera
pastoral conyugal. Es necesario educar a las mujeres, esos seres que,
por su fragilidad y vulnerabilidad natural, exigen cierta construcción
discursiva. Efecto didáctico-pedagógico; intención subjetivante que
convierte al discurso en un espacio sobrecargado y saturado de
consejos, recomendaciones, amonestaciones, normas, órdenes. Todo
ello convierte al discurso en un vehículo transmisor de un corpus
42
teórico y práctico de creación masculina. Así se establece una línea de
cesura que opera particiones binarias: por un lado, un discurso
masculino, que se impone y se expone, y, por otro lado, un discurso
femenino, seguramente llamado a circular en el espacio doméstico,
como espacio territorializante de la mujer.
Una pastoral conyugal delinea topológicamente los espacios de
fijación femenina; aquella partición que Jenofonte delineara mantiene
intacta su vigencia; un afuera masculino y un adentro femenino,
representado por el oikos, como geografía de espacialización femenina.
Ha quedado clara la relación entre la arquitectura discursiva, de
matriz siempre política, y los modos de subjetivación, esto es, los
modos en que los sujetos se construyen históricamente, a la luz de
prácticas sociales, entre las cuales las prácticas discursivas operan
constituciones nodulares.
Como todo discurso didáctico, está destinado a encauzar
conductas, a modificar comportamientos, a transformar o fijar
identidades. Se trata de un hábeas disciplinario que trabaja sobre la
fragilidad femenina, su precariedad ontológica. Esos seres exigen
disciplina como medio de corrección, como técnica de encauzamiento.
15 Económico, IX, 1.
43
Iscómaco como aquel que guía la experiencia contrasta en un conjunto
de tópicos con la figura de quien actúa como interlocutor, en este caso
su mujer, generando un escenario interesante desde las relaciones de
poder que se juegan.
Finalmente aludiremos a la dimensión dramática del diálogo. En
efecto, el diálogo jenofonteo, en el marco de la interacción que
despliega, se juega en un escenario dramático en tanto despliegue de
una acción, drama, que busca cierta transformación del interlocutor.
¿A quiénes va dirigido el discurso de matriz educativa? Aludir al
genérico "mujeres", nos impide analizar algunos aspectos interesantes
a nuestro análisis. Si hay finalidad disciplinaria, las técnicas suelen ser
más sutiles, menos globales. Los sujetos a quiénes se dirige el discurso
hablan de la preocupación por la ordenación de las multiplicidades
humanas. Ordenar implica disciplinar lo heterogéneo, a fin de lograr un
conocimiento más fino de los elementos que integran la serie.16
Retornan entonces los pliegues que hemos excavado: el público a
disciplinar es el que potencialmente constituye el modelo de la buena
esposa, la esposa de un kaloskagathos, de un ciudadano libre portador
de derechos en el marco de las instituciones de la polis.
Voluntad ordenadora y clasificatoria que inaugura territorios de
pertenencia a través de una serie de categorías femeninas. Voluntad
disciplinaria que trata de abarcar y compensar las distintas e
innumerables condiciones individuales. Esta voluntad representa un
medio de fijación, una territorialización de las mujeres a un topos de
clasificación. No hay, pues, una percepción tosca y lagunar de las
mujeres, sino, más bien, una consideración que, en cierto sentido,
anticipa procedimientos futuros. Si bien hay criterio clasificador, no
obstante, ninguna queda excluida del aparato educativo; la
categorización vehiculizará contenidos y técnicas específicas, que
asegurarán el éxito del dispositivo.
Abordemos la dimensión discursiva. ¿Qué transmitir a las mujeres?
¿Cómo decirlo? En el corazón de esta experiencia, un paréntesis para
tratar la relación discurso-poder en el marco de la producción
discursiva que la ficción femenina como experiencia implica.
44
En este punto, evocamos la lección inaugural del 2 de diciembre
de 1970 en el Collège de France. Tal conferencia inaugural no es otra
que El Orden del Discurso, en la cual Foucault problematiza la alianza
entre poder y discurso y entre discurso y deseo.
En toda sociedad la producción histórica del discurso sufre procesos
de control, selección y redistribución, por lo cual se dan ciertos
procedimientos que tienden a pautar qué entra en el orden del discurso y
qué queda excluido. Tal como afirma Michel Foucault, "en toda sociedad
la producción del discurso está a la vez controlada, seleccionada y
redistribuida por un cierto número de procedimientos que tienen por
función conjurar los poderes y peligros, dominar el acontecimiento
aleatorio y esquivar su pesada y temible materialidad."17
Rápidamente se observa que tales procedimientos obedecen a la
estrecha vinculación entre discurso y poder y más aún, entre deseo y
discurso. El mismo Foucault sostiene la alianza y afirma: "el discurso, por
más que en apariencia sea poca cosa, las prohibiciones que recaen sobre
él, revelan muy pronto, rápidamente, su vinculación con el deseo y con el
poder [...] El discurso no es simplemente aquello que traduce las luchas o
los sistemas de dominación, sino aquello por lo que, y por medio de lo cual
se lucha, aquel poder del que quiere uno adueñarse"18.
Al mismo tiempo, ese dispositivo de control que recae sobre el
topos del discurso habla de la ritualización de tres dimensiones del
campo discursivo: el quién del discurso, el qué del mismo y el cómo de
su enunciación. Sujeto, objeto y circunstancia son los epicentros de
ciertos juegos de poder que plasman la producción y circulación del
discurso, ya que, no sólo se producen discursos, sino que su circulación
obedece a reglas de funcionamiento. En el corazón del dispositivo,
aparece el deseo de apropiarse del logos, como modo de apropiarse
del poder. Dice Foucault al respecto: "Se sabe que no se tiene derecho
a decirlo todo, que no se puede hablar de todo en cualquier
circunstancia, que cualquiera, en fin, no puede hablar de cualquier
cosa. Tabú del objeto, ritual de la circunstancia, derecho exclusivo o
privilegiado del sujeto que habla: he ahí el juego de tres tipos de
prohibiciones que se cruzan, se refuerzan o se compensan, formando
una compleja malla que no cesa de modificarse"19.
45
En el interior de toda sociedad se pone en marcha esa usina de
construcción de lo Mismo y de lo Otro, un otro intracultural. Las
prácticas discursivas se inscriben en ese horizonte estratégico de
matricería social que borda confines precisos, particiones sutiles,
sensibilidades sociales que delimitan identidades.
Estas tecnologías de poder obedecen a estrategias, surgen de la
aplicación precisa de un corpus de reflexiones que las sustentan,
emergen de un saber que se plasma en discurso y produce
transformaciones sobre los sujetos y la realidad en su conjunto.
Así, no hay ejercicio de poder si no existen discursos,
instituciones, espacios arquitectónicos, leyes, enunciados científicos y
filosóficos, pautas morales que constituyen el entramado que va
dando forma a esas tecnologías. Es el sueño de la Mismidad que
garantiza la consolidación de las semejanzas y neutraliza las
diferencias. La diferencia atenta contra el orden-progreso porque no
encaja en el imaginario que ese mismo orden dibujara para sostenerse.
Lo otro es una dificultad que reclama espacio, territorio. Las culturas
llegan a dibujar el escenario de la mismidad a partir de un juego político
que opera desde una tecnología también política que, en este caso, se
articula en un dispositivo educativo para lo cual se instala un discurso
que posibilita y avala tal juego.
La preocupación de Michel Foucault por el estatuto político del
discurso es de vieja data. Constituye un nudo de problematización
fuerte en su primer período de preocupación intelectual.
Una vez más, y siguiendo la huella foucaultiana, intentaremos
rastrear la prehistoria de la consolidación del ideal femenino desde el
topos del discurso. Esta prehistoria nos permitirá hacer pie en el discurso
que posibilita esa institución. Si toda ficción subjetivante como empresa
política significa un determinado dispositivo histórico, es necesario
indagar su articulación discursiva. Si toda construcción identitaria se
espacializa en un determinado topos político, entonces es menester
indagar el corpus discursivo que posibilita tal territorialización.
Si toda utopía histórica exige un juego de saber-poder que la
vehiculice, entonces es preciso entrar a las entrañas mismas de los juegos
de discurso para ver en qué medida allí se da el topos propicio para tal
vehiculización. La tarea es proponer una arqueología del discurso por
cuanto "hacer aparecer en su pureza el espacio en el que se despliegan
los acontecimientos discursivos no es tratar de restablecerlo en un
46
aislamiento que no se podría superar, no es encerrarlo en sí mismo; es
hacerse libre para describir en él y fuera de él juego de relaciones"20. Son
esas relaciones las que nos interesa problematizar.
Si todo ejercicio de poder se nutre de ciertas tekhnai disciplinares,
como modo de fijar conductas a un aparato disciplinar, entonces se nos
impone analizar en qué medida el espacio discursivo plasma la
arquitectura disciplinaria.
Preguntarse por la materialidad de los discursos, es dilucidar en qué
condiciones ese acontecimiento discursivo fue posible. Es "estar
dispuesto a acoger cada momento del discurso en su irrupción de
acontecimiento; en esa coyuntura en que aparece y en esa dispersión
temporal que le permita ser repetido, sabido, olvidado, transformado,
borrado hasta en su menor rastro, sepultado, muy lejos de toda mirada,
en el polvo de los libros. No hay que devolver el discurso a la lejana
presencia del origen; hay que tratarlo en el juego de su instancia"21.
Preguntarse por la historicidad del discurso significa descubrir
que existe un pasado vivo en los documentos, monumentos,
reglamentos.
El objeto de análisis es ver en qué medida el discurso contribuye
a la construcción de la identidad de la esposa melissa y del marco
disciplinar de su fijación.
Semejante identidad, que se juega en las fronteras de lo Mismo
y de lo Otro, constituyendo la mujer una de las figuras por excelencia
de la otredad, a partir del trazo mítico, no constituye un modelo
estático y a-histórico, sino, por el contrario, una construcción epocal
y dinámica que pone en juego una serie de dispositivos, entre ellos,
dispositivos discursivos, que refuerzan la frontera entre ambos topoi:
lo Mismo y lo Otro.
Resulta claro, pues, que la tarea que se nos impone es ver cómo
las operaciones discursivas y no discursivas en el seno mismo de las
instituciones, vehiculizan las representaciones sociales, que una época
determinada considera y legitima como verdaderas.
El análisis consiste en ver cuáles son los contenidos de esos
discursos de factura masculina para ver cómo una determinada
institución, el matrimonio, define la identidad de sus habitantes y el
47
marco de territorialización-sujeción impuesto, bajo la forma de un
corpus discursivo.
El análisis revela una fuerte discursividad disciplinar, lo cual nos sitúa
en el maridaje entre discurso y disciplina. En efecto, ambos constituyen
las tekhnai por excelencia de toda construcción social de una determinada
identidad, al tiempo que vehiculizan la divulgación y la fijación en la
conciencia de los sujetos de las ficciones socialmente construidas y
articuladas en representaciones sociales, tanto del estatuto de la buena
esposa, como de su registro de espacialización social.
Asimismo, podemos recorrer la construcción social de un
dispositivo disciplinar, que conocerá su definitiva plasmación histórica
en lo que Michel Foucault denominada la Edad de la Ortopedia Social.
No obstante, a través de estos discursos parece leerse lo que
podríamos llamar una genealogía de la disciplina. Como en toda
búsqueda genealógica, la dimensión discursiva es un anclaje de
insoslayable tratamiento. La disciplina es una creación social que se
consolida desde el discurso. Tal es su dimensión ficcional, en tanto
producto histórico-social, y su narrativa articulante.
Las categorías discursivas constituyen, pues, una urdimbre que
organiza la vida, tanto en el interior del topos institucional, el oikos,
como en el exterior, la ciudad, que debe permanecer atenta a las
particiones ficcionadas.
La elección del género discursivo está íntimamente relacionada
con el tema abordado y con el interés de formar a una esposa lo cual
implica necesariamente una forma dialogal que le permita comprender
qué espera el marido de ella; no se trata de un estilo ornamental, de
una elección aleatoria, sino, más bien, es necesario pensar en el
maridaje indisoluble entre forma y contenido. El cómo del discurso y el
quién del discurso son absolutamente solidarios al proyecto en
cuestión. La mujer aparece entonces como una discípula perfecta, en
la medida en que sabe captar con excelencia las enseñanzas de su
marido. La dirección de la casa puede con confianza recaer en la mujer;
no obstante, el proceso de aprendizaje ha supuesto un largo período
de atención, y ocupación, epimeleia.
En el oikos paterno, la joven permanece vigilada como modo de
custodiar su formación. Apenas un par de nociones y habilidades
conforman el bagaje con que la joven arriba al oikos conyugal pero la
complejidad estructural de lo que significa un oikos exige una vasta
48
formación en materia de administración del hogar en los marcos en
que dicha gestión puede recaer en una mujer. Tal como afirme Jaeger,
“Lo más importante de todo es, para él, la educación de la esposa del
agricultor, a la que pinta como el personaje principal, como la reina de
la colmena. Tratándose de una muchacha inexperta de quince años, a
la que su marido saca de la casa de su madre para convertirla en dueña
y señora de su hacienda, la pedagogía marital, de que Iscómaco se
siente no poco orgulloso, tiene una misión importante que cumplir”22
El telos último de lo que hemos denominado el diagrama pedagógico
consiste en transformarse en el ideal de esposa aceptado y valorado
socialmente y eso depende de seguir escrupulosamente las
instrucciones de su marido.
La necesidad de instruir a la mujer es funcional al deseo de
consolidación, conservación y engrandecimiento del oikos. Cuando la
mujer sea definitivamente instruida en el rol que le es propio, su
función será nodular en la co-gestión del hogar.
CONCLUSIONES
49
es la misma. Hay un efecto político, una práctica de lectura intersticial,
una experiencia de transformación de la propia instalación como
sujeto a partir de la desnaturalización de los procesos históricos.
Propusimos una lectura del Oikonomicos de Jenofonte para
delinear la cartografía de esa usina subjetivante que es el oikos y que
otorgó a la mujer la función esencial de esposa, de buena esposa. La
paideia femenina constituye una magnífica oportunidad para analizar
el rol del marido y de la mujer en el marco de la sociedad conyugal y en
el más amplio topos de la polis ateniense El texto resulta paradojal en
más de una oportunidad y es a ese juego de tensiones en el ejercicio
del poder al que queremos referirnos. En un punto el texto alude a la
igualdad al interior de la pareja conyugal pero ese estado ideal se da
luego de un inicio relacional de marcado registro disimétrico, que
territorializa al marido a un topos singular y a la mujer a otro, de
marcado estatuto disimétrico, que marca una matriz histórica en las
relaciones de género, al tiempo que visibiliza modos de subjetivación
en el marco de la filosofía clásica.
REFERÊNCIAS
50
CAPÍTULO III
INTRODUÇÃO
51
mas sofre transformações. A ideia de uma existência subjetiva surge
na modernidade para designar um campo de experiência do sujeito,
sendo aprimorada posteriormente com o surgimento da noção de
“psique”, ou seja, a percepção de si mesmo como “um ente subjetivo”
(FILHO; MARTINS, 2007, p. 14).
De acordo com Martins, a primeira problematização da
subjetividade inicia-se com Kant, que ao indagar-se sobre as
possibilidades de produção de uma verdade objetiva e universal, que
seria válida para todos, percebe que quem produz o conhecimento são
sujeitos singulares, históricos e passíveis de falha. Sendo assim, a
primeira noção de subjetividade surge em tom de negatividade, como
aquilo que precisava ser neutralizado e superado para que a verdade
objetiva fosse possível de ser alcançada. Algo que posteriormente será
questionado por autores como Michel Foucault e Donna Haraway2,
entre outros, que entendem que a subjetividade faz parte da produção
de conhecimento e não se opõe à objetividade (FILHO; MARTINS,
2007, p. 16), sendo essa a perspectiva adotada neste texto.
Posteriormente, tal conceito será apropriado pela psicologia, que
a partir de Freud, vai entender a subjetividade como parte da
interioridade, tornando-se objeto e campo de estudo da experiência
do sujeito:
Após mais de um século o termo migra para o campo dos conhecimentos “psi”
pelas mãos de Freud passando a designar uma instância de interioridade,
constituindo objeto de estudo científico e campo de experiências do sujeito. De
certa forma, a psicanálise freudiana naturaliza e essencializa a subjetividade ao
considerá-la inerente ao sujeito, reproduzindo a matriz cristã da interioridade e
fazendo dela um enunciado. Nasce agora, correlativamente ao discurso
psicanalítico, o sujeito – também universal – do inconsciente e do desejo,
remetido à sexualidade posta como invariante (FILHO; MARTINS, 2007, p.16)
52
O problema dessa percepção da subjetividade de Freud está no
fato de que ao percebê-la apenas como um processo de interiorização,
acaba por naturalizar tais processos e hierarquizar a relação entre
subjetividade e objetividade, ao passo que sabemos, apoiando-se em
estudos feministas e pós-estruturalistas que ambas são construídas a
partir de processos históricos, das relações saber/poder e do sujeito
consigo mesmo (FILHO; MARTINS, 2007, p. 17). Da mesma forma,
Souza e Torres argumentam que na psicologia há dois problemas com
relação à abordagem do conceito de subjetividade:
53
constituídos dentro dessas relações entre verdade e poder, pois o
saber é o responsável por legitimar tais verdades.
E ainda, para Foucault (1984, p. 11-14) além dos jogos de verdade
entre si (as ciências) e dos jogos de verdade em relação de poder com
as práticas punitivas, há outro elemento que se impõe: “os jogos de
verdade na relação de si e a constituição de si mesmo como sujeito - na
história do homem do desejo”. Foucault ao debruçar-se sobre o
“sujeito da moral” entende que este sujeito não se constitui apenas
dentro de uma regra, uma lei, de forma singular, mas sua inserção em
um conjunto de condutas, entende que a moral não é apenas um ato,
mas implica uma relação de si, uma consciência de si, ou seja, não há
constituição do sujeito moral sem os “modos de subjetivação”3 sem as
práticas de si (FOUCAULT, 1984, p. 28-29).
É importante destacar que não há uma relação simétrica entre
sujeito e subjetividade, pois: “Assim como subjetividade não é
sinônimo de interioridade, também não designa necessariamente um
conjunto de capacidades, qualidades, sensibilidades, atitudes, reações
inerentes a um sujeito tomado como unidade autocentrada, autônoma
e consciente”, e ainda:
3 Essa discussão pode ser ampliada em: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade,
vol. II: O uso dos prazeres. Tradução brasileira de Maria Tereza da Costa Albuquerque.
Revisão técnica de José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1984. E
ainda: FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France
(1981-1982). Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
54
um corpo múltiplo, infinito. A população emerge como um problema
político, científico, biológico e de poder, sendo assim, torna-se
necessário a criação de mecanismos para dar conta deste homem
espécie, não apenas através do poder disciplinar, mas do biopoder.
Um dos exemplos desses mecanismos é a medicina que emerge
como saber-poder e incidem ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre
a população, sobre o organismo e os processos biológicos tendo
efeitos disciplinadores e de regulamentação, e o elemento que circula
a disciplina e a regulamentação, que é aplicado no corpo e na
população é a norma (FOUCAULT, 1999, p. 302-303). Sendo assim, é no
encontro das práticas de objetivação pelo saber/poder com os modos
de subjetivação, de reconhecimento de si mesmo como sujeitos da
norma, que se dá a subjetividade. Ou seja: “não é suficiente a
objetivação pelo discurso psiquiátrico e pelo jogo da norma para
produzir, por exemplo, um louco” é necessário um reconhecimento de
si, que o sujeito vá ao encontro da marcação “que ele se reconheça no
diagnóstico como sujeito da loucura e o reproduza em si mesmo,
subjetivando-se como louco” (FILHO; MARTINS, 2007, p. 17).
Ainda segundo os autores, as multiplicidades de forma de
existência, as várias formas de subjetividade, tornam-se também
estéticas de existência, que podem ser fetichizadas, investidas de
valores e transformadas em mercadorias consumíveis, sendo assim,
são criadas etiquetas, bricolagens de subjetividades “ganham lógica no
nosso corpo e, por vezes, de maneira bastante incoerente, resultando
numa imprevisibilidade do sujeito” criando falsas unidades construídas
nos jogos de identidade universais.
O conceito de subjetividade, como construção histórico-política,
ganha espaço na psicologia no momento em que o conceito de
identidade começa a sofrer certo declínio, com o esgotamento da
noção de idêntico, da repetição, como movimento facilitador da
visibilidade social que permite a captura pelas redes de relações de
poder. Seguindo este pensamento, o social e o individual se
constituem mutuamente, não podendo desvincular a subjetividade do
indivíduo da subjetividade do espaço que este ocupa, sendo que a
produção da subjetividade está vinculada às condições de produção
dos sujeitos (SOUZA; TORRES, 2019, p. 36-37).
A subjetividade, nesse sentido, se constrói num movimento
interminável gerador de sentidos a partir das experiências, um
55
encontro do passado com o presente, destacando que essas
produções subjetivas não têm caráter universal, pois se formam nas
especificidades das configurações de cada sujeito. Mas essas
experiências não estão associadas a uma relação apenas consigo
mesmo, mas também com os outros e com o mundo, para Foucault
(1995, p. 255) a atualidade necessita de uma ética, mas não consegue
encontrar uma que não seja fundada no conhecimento científico do
que é o ‘eu’, o que é o desejo, do que é o inconsciente associando a
subjetividade a uma relação individual. No entanto, ao fazer uma
genealogia sobre o sujeito ético, Foucault entende que as mudanças
sociais provocam uma mudança na ética, uma reelaboração da relação
consigo mesmo, não que haja uma mudança na substância ética, mas
há uma alteração nos modos de sujeição (FOUCAULT, 1995, p. 271).
Várias dessas mudanças na forma da construção tanto do
conceito de subjetividade, quanto dos conceitos de sujeito, indivíduo,
fases de desenvolvimento sexual, entre tantos outros objetos de
análise da psicologia, se deu pelo incômodo trazido pelas discussões
em torno do dispositivo da sexualidade de Michel Foucault e as
performatividades de gênero de Judith Butler (ANJOS; LIMA, 2016, p.
49). Foucault, ao inverter a forma com que a sexualidade é formulada,
principalmente pela psicologia, que entendia a sexualidade como um
dado prévio e natural, e mostrando que sua construção se dá pelas
relações de poder e estratégias políticas, através de práticas que
produziram a sexualidade, inventando-a (Ibidem), acaba impactando
as novas correntes da psicologia que percebiam tais conceitos
clássicos de forma naturalizada e não construída em processos
socioculturais.
Para Foucault, é durante a modernidade que a sexualidade é
“inventada”, pois é justamente a sexualidade que se transformará no
ponto principal de articulação das relações de poder e da construção
de subjetividades, a verdade sobre o sexo, sobre como nos definimos
a partir dele e a relação entre nossa identidade com nossa sexualidade,
transformando-a, então, em um dispositivo:
56
Foucault questiona a naturalização da sexualidade como uma
verdade intrínseca, essencial, mas a enxerga como algo criado e
investido de significação e inteligibilidade (CÉSAR, 2017, 243). Mas é a
partir da definição desta que a “verdade” sobre o sexo passa a ser
buscada incansavelmente, sendo assim, a sexualidade passa a ser
entendida como o elemento organizador e definidor dos sujeitos, da
sua verdade mais íntima, sendo possível a separação entre o “normal”
e o patologizante (Foucault, 1982, p. 04). Sendo divididos
binariamente, ou seja, homem/mulher, qualquer elemento que
escapasse a esta regra deveria se ajustar à norma, um exemplo são os
intersexuais, era inconcebível a ideia de dois sexos justapostos, ou a
escolha de um dada pelo próprio indivíduo, era preciso decifrar o
verdadeiro (Foucault, 1982, p. 02).
Partindo desta visão de Foucault sobre a sexualidade como
dispositivo constituído discursivamente e politicamente, que Butler
entende a produção da verdade do sexo/sexualidade como tendo em
sua base a relação indissolúvel entre sexo-corpo-desejo. O saber
médico deveria decifrar e mapear o sexo verdadeiro em acordo com o
corpo e assim determinar o desejo, em alguns casos o sexo e corpo
deveriam ser alterado para corresponder ao desejo, determinando
como matriz de tal desejo a heterossexualidade normativa.
Butler (2002) insere-se no debate feminista e na crítica à
construção do sujeito sob o signo da representação, deste sujeito que
já nasce sobre a marca da divisão binária de gênero e das normas da
sexualidade. Butler apresenta o conceito de performatividade, no qual
o gênero não se entende como um conjunto de elementos ligados
essencialmente à natureza dos corpos, ao sexo biológico, mas a
características socialmente impostas no qual através da repetição de
uma performance estilizada de feminilidade ou masculinidade o
gênero é construído.
Nesse sentido, para a autora, estamos presos a uma norma
binária de gênero e a um mimetismo do sexo, que nos conduz a
diversos problemas na apreensão de subjetividades múltiplas, que
acaba por construir a representação de sujeitos hegemônicos, ou seja,
“não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero, essa
identidade é performativamente constituída” e ainda:
57
caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado
“sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo
sempre tenha sido gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero
revela-se absolutamente nenhuma (Butler, 2012, p. 25).
58
engendrando essas categorias em binarismos que hierarquizam a
relação natureza e cultura, razão/emoção, mente/corpo, caraterísticas
etnocêntricas. Para Haraway, ao colocar o gênero na categoria cultura,
movendo a mulher da relação com a natureza, o sexo passa a ser
“demonizado” (2004, p. 218), universalizando novamente tais
categorias.
Assim como Donna Haraway, durante os anos 1980 e 1990
teóricas feministas iniciam um processo de revisão da concepção
binária de dois sexos e dois gêneros, principalmente a partir de teorias
chamadas de pós-estruturalistas e pós-modernistas, que introduzem
na discussão a questão da linguagem. O gênero passa a ser entendido
como produção subjetiva, ou uma subjetivação discursiva, na qual há
espaço para a submissão, mas também reinvenção, resistência aos
discursos dominantes e normalizantes (URPIA, 2020, p. 387-388).
Neste sentido, é preciso cuidar para não reduzir o sujeito a um
reducionismo cultural, assim como a um reducionismo biológico, pois
“nossas práticas culturais ocorrem dentro de um mundo material e por
meio de uma experiência corporalizada cuja “visibilidade” tem
ressonância em nossas relações intersubjetivas, bem como em nossos
processos de subjetivação (URPIA, 2020, p. 389). O corpo se apresenta
na visão de Butler (2003), então, como mais que o meio pelo qual nossa
subjetividade se expressa, mas o meio pelo qual ela é produzida (MOI
apud URPIA, 2020, p. 389).
Aprofundando um pouco mais essas divergências, para Butler,
sexo é gênero: “se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu
gênero, não faz sentido definir o gênero como interpretação cultural
do sexo” (Butler, 2003, p. 25). Sendo assim, Butler define o gênero
como performance, como já havia sido citado, e essa performatividade
está ligada ao que “humaniza” os indivíduos, e aqueles que não
performam coerentemente seu gênero, precisam ser adequados. A
performatividade estaria ligada, nesse sentido, a uma congruência
entre sexo-gênero-desejo, podendo ser divididos em duas categorias
“inteligíveis” e “não-inteligíveis”, ou seja, “os primeiros são aqueles
que instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre
sexo, gênero, prática sexual e desejo” e os segundos são as abjeções
(BUTLER, 2003, p. 38).
O corpo se apresenta como pertencente a um campo discursivo-
regulatório, anterior a ele mesmo, como um meio através do qual a
59
própria subjetividade do gênero é produzida, o corpo torna-se um
dispositivo no qual o poder atua. O corpo, em Butler (2003), “não é um
‘ser’, mas uma fronteira variável, uma superfície cuja permeabilidade é
politicamente regulada, uma prática significante dentro de um campo
cultural” (p. 198).
Um autor que tece críticas, de certa forma, à teoria de
performatividade de gênero de Butler é Paul Preciado (2022, p. 97-99),
que problematiza o uso pela autora da figura das drags queen como
exemplos de tal performatividade, como enunciados dos efeitos
paródicos e teatralizados da feminilidade, que evidenciaria os
mecanismos culturais que produzem a coerência da identidade
heterossexual. Algo que posteriormente Butler redefinirá de
performance teatral para performance linguística, através do que
chamará de enunciados performativos.
É neste ponto que Preciado demonstra que a teoria se torna
problemática, reduzindo a identidade a um “efeito do discurso,
ignorando as formas de incorporação específicas que caracterizam
distintas inscrições performativas da identidade” (2022, p. 98). Sendo
assim, coloca em parênteses tanto a materialidade das práticas de
imitação, como os “efeitos que se inscrevem no corpo que
acompanha tal performance”. Preciado endurece suas críticas,
quando relembra que um dos exemplos citados por Butler em seu
livro (Venus Xtravaganza) além de já iniciar uma transexualidade
prostética, pois vive da prostituição, é uma travesti não branca e de
origem latina, que além de toda a violência vivida por sua
performatividade é assassinada por um cliente, o que torna crua a
realidade ignorada por Butler (2022, p. 98).
Sendo assim, segundo a crítica ao desfazer-se do corpo, Butler
inviabiliza a análise crítica das tecnologias que permitem que a
performance “passe” como natural, sendo a impossibilidade de tal
passagem, que leva travestis e transexuais a sofrerem violências, e a
morte como no caso de Xtravaganza. Dessa forma, é preciso entender
que tais transformações se dão no corpo, e não apenas em casos de
corpos transgêneros e transexuais, mas a partir de tecnologias de
estabilização do gênero e do sexo em corpos heterossexuais
(PRECIADO, 2022, p. 99).
Para Tereza de Lauretis, a relação entre as mulheres como
sujeitos históricos ou como construção pelo discurso não é nem uma
60
relação de identidade ou de correspondência ou de simples
implicação. Lauretis tenta formular uma concepção de subjetividade
que não se envolva nas armadilhas do discurso essencialista de gênero,
mas como uma relação arbitrária e simbólica elaborada pela cultura em
sua diversidade dinâmica: “um sistema de representação que produz
as diferenças sexuais” (Lauretis, 1994, p. 214). Esse sistema sexo-
gênero precisa de um sujeito, um indivíduo concreto sobre o qual agir,
“a representação social do gênero afeta a construção subjetiva e que
a representação subjetiva, a autorrepresentação do sujeito, afeta a sua
construção social, apontando, a um só tempo, para um agenciamento
ao nível da vida subjetiva e para os efeitos discursivos-produtivos de
gênero” (ibidem).
Essas discussões e instrumentalizações conceituais são
extremamente importantes para que o apelo a uma identidade
unificadora atrelada a uma obrigação da representatividade seja
desconstruído e problematizado, principalmente em debates que
envolvem o uso da violência. Ao transformar as vítimas da violência em
sujeitos unificados há um apagamento dos dissidentes, ampliando os
mecanismos de exclusão:
Desse modo, para que se possa ser representado, é necessário que se atenda
às exigências requeridas para ser reconhecido enquanto sujeito. [...] Ou seja,
a política representacional não traduziria em termos políticos sujeitos pré-
existentes, porém, ao delimitar as exigências de formação e reconhecimento
de sujeitos, ocorre que estes apenas podem existir em conformidade com
essas exigências. Portanto, os sujeitos são produto dessas regras (ANJOS;
LIMA, 2016, p. 51)
61
heterocisnormatividade a uma posição marginal e abjeta (ANJOS;
LIMA, 2016, p.54).
Em Freud, quando este se debruçava sobre a investigação
estética, que de acordo com Porto, geralmente é feita com intuito de
analisar o belo, o sublime se volta ao oposto, Freud busca analisar o
horror, a repulsa, aquilo que nos causa abjeção (2016, p. 158).
Interessante pensar que no português abjeção é um substantivo
feminino, que significa “ato, estado ou condição que revela alto grau
de baixeza, torpeza, degradação”4. Enquanto que nos estudos da ética
e da moral, a abjeção trata do homem degradado, de baixeza moral,
de desvalorização, na Sociologia, é abjeto quando a condição social do
“homem” carece de meios suficientes para uma vida digna. Enquanto
que para um, a abjeção está ligada à moralidade, para outro encontra-
se no social, no econômico, mas e quanto aos corpos abjetos, quem
são esses indivíduos?
De acordo com Porto, Julia Kristeva trata do abjeto como nem
sujeito nem objeto, mas como uma espécie de primeiro não EU: “uma
negação violenta que instaura o Eu, como se fosse uma fronteira.
Portanto, o abjeto é a manifestação dessa violenta cisão que delimita
a fronteira entre o eu e o outro, ocupando um espaço próprio”, a
abjeção seria a “trama torcida de afetos e pensamentos que não tem
objeto definido” (PORTO, 2016, p. 160).
Retornamos a Butler neste momento, pois esta vai articular essa
noção de abjeção apresentada pela psicologia e dar novos sentidos,
pensando a questão da normatização dos sujeitos. Ao partir das
concepções apresentadas por Foucault, de que o poder não é apenas
negativo, mas positivo e produtor de sujeitos e subjetividades, Butler
vai teorizar como os dispositivos de regulação, sejam legais,
institucionais, educacionais, entre outros, não podem ser entendidos
apenas como repressores dos sujeitos sexuados, transformando-os
em masculino e feminino. Mas, esse processo, que se dá de forma sutil,
não advém de uma regulação anterior ao gênero, mas no fato de que
só existe o sujeito gendrado devido a tais regulações (ARÁN; PEIXOTO,
2007, p.132).
A normatividade, nesse sentido, opera a partir das práticas,
produzindo efeitos duradouros, atuando como reguladores,
62
estabelecendo fronteiras que constituem o que é lícito inteligível e
reconhecido do que é ilícito, ininteligível e abjeto, ou seja, nas palavras
de Foucault, anormais. Arán e Peixoto (2007, p. 137) defendem que o
principal argumento apresentado para a base político-científica que
regia a oposição ao casamento homossexual não vinha da biologia ou
da psicologia, mas da necessidade de preservação simbólica da
sociedade e da cultura. Essa argumentação se pautava na noção de
que sem a concepção da diferença entre sexos haveria uma
“dessimbolização” cultural, e um apagamento da diferença sexual no
simbólico, era preciso preservar a tríade heterossexualidade-
casamento-filiação, para salvaguardar a sociabilidade, sendo o
casamento homossexual impensável e indesejável.
Ainda segundo estes autores, enquanto Freud tratava a
homossexualidade como narcisismo ou perversão, a psicanálise
Lacaniana acabou atribuindo essa concepção de sociabilidade como
estatuto de fundamento originário da linguagem e da subjetividade:
63
da condição de sujeitos, que são jogados em zonas inabitáveis do
social, como diz Butler, em condições abjetas.
O repúdio à abjeção e o que impulsiona o indivíduo a se submeter ao
caráter normativo do sexo, um sujeito que se constitui através da força de
exclusão e objeção: “[...] constitui o limite definidor do domínio do sujeito;
[...] aquele local de temida identificação contra o qual – e em virtude do
qual – o domínio do sujeito circunscreverá sua própria reivindicação de
direito à autonomia e à vida” (BUTLER, 2002, p. 155).
É a partir dessa noção de exclusão e abjeção que Butler vai
descrever como a norma delimita quais vidas são passíveis de serem
reconhecidas como vivíveis, as vidas que importam, o abjeto vai estar
situado, justamente, nas zonas inóspitas e inabitáveis da vida social,
segundo Porto:
[...] zonas densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de
sujeito, mas cujo habitar sob o signo do inabitável é necessário para que o
domínio do sujeito e de suas fronteiras seja circunscrito. Os corpos abjetos,
desse modo, ocupam a ordem do inóspito e do inabitável, enquanto os corpos
que importam em sua existência material ocupam os espaços legítimos dentro
de um enquadramento, os espaços que de fato importam (PORTO, 2016, p. 162).
64
desenvolvimento. Ao inserir-se fora da matriz heterossexual e cisgênero
normativa, esses desviantes/abjetos tornam-se alvo de violências
corretivas, que buscam deslegitimar suas existências e subjetividades,
destruindo-as, tendo como ferramenta e como arma o estupro.
Para Rita Segato, a sociedade tem produzido e conduzido uma
educação para a violência e a crueldade, que viola, rebaixa e depois mata.
Em Contra-pedagogias de la crueldade, Segato apresenta o que chama de
pedagogia da crueldade, baseada no machismo patriarcal, colonial que
massacra corpos vulneráveis e dissidentes, e todos aqueles que não se
encaixam dentro dos moldes normativos. Trata-se de: “todos os atos e
práticas que ensinam, habituam e programam os sujeitos a transmutar o
vivo e sua vitalidade em coisas” (SEGATO, 2018, p. 11).
Uma coisificação que permite a exploração do corpo deste outro,
um rebaixamento que permite que a crueldade social seja exercida
sobre estes (Ibidem, p.148). Essas pessoas são tratadas sobre baixa
simpatia, não apenas em violências estruturais, como violências
sistemáticas, desde a transformação desses corpos em abjetos, até
violências extremas como o estupro. Para Butler é preciso que haja
essa baixa simpatia, para que esses corpos se tornem matáveis, ou
violáveis, só desta forma, as violências sofridas serão entendidas como
sem importância, para que “sejam tidos como não humanos, causando
uma paisagem da crueldade sem importância, já que há ‘sujeitos’ que
não são exatamente reconhecidos como sujeitos e há ‘vidas’ que
dificilmente – ou, melhor dizendo, nunca – são reconhecidas como
vidas” (BUTLER, 2018, p. 17).
Segato afirma que é a partir da repetição da violência que é
produzida uma normalização da paisagem de crueldade:
65
Nesse sentido, para a autora o pensamento heteronormativo e a
masculinidade como hierarquia dominante justifica a submissão
feminina, assim como a violação de corpos não-masculinos,
feminizados possibilitando a manutenção deste sistema, dos corpos
desviantes, abjetos, coisificados, que não merecem luto ou empatia,
que são submetidos à violência sexual como mecanismo de morte da
subjetividade e da existência fora da normalidade.
A antropóloga Rita Segato traz considerações importantes para
pensar as estruturas da violência relacionada aos crimes sexuais. Para
a autora há uma contradição na compreensão da violência sexual
alimentada pela mídia e que ainda domina no sentido e no
entendimento tando do público comum como das autoridades. Ou
seja, o estupro pensado como uma forma de satisfação de uma
necessidade ou o roubo de um serviço sexual, sendo apenas um ato
libidinal (Segato, 2018, p. 39). E ainda que o crime não acontece em
uma relação apenas entre vítima e agressor, mas entre o agressor e
seus pares.
Essa relação entre agressor e seus pares é o que Segato chamou
de “mandato”, para ela a masculinidade exige comprovação, pois é um
status, uma hierarquia de prestígio, algo que se adquire como um
título, o qual deve ser comprovado e renovado o tempo todo (Segato,
2018, p. 40). Outra questão importante a ser destacada é a relação
entre o estupro e a correção de comportamento desviante:
6 Como argumento en aquel libro, los testimonios recogidos en la cárcel sugieren que
el violador es un sujeto moralista y puritano, que ve en su víctima el desvío moral que
lo convoca. De modo que su acto con relación a la víctima es una represalia. El hombre
que responde y obedece al mandato de masculinidad se instala en el pedestal de la ley
y se atribuye el derecho de punir a la mujer a quien atribuye desacato o desvío moral.
Por eso afirmo que el violador es un moralizador.
66
este agressor acredita que através da violência será “concertado” o
comportamento anormal e a sexualidade desviante da vítima. O
grande problema está no fato de que a violência sexual ainda
permanece fortemente ligada a questão da honra e do desejo, do
homem que encontra uma mulher “disponível” para satisfazer seu
impulsos. Ou seja, não apenas na cultura brasileira, mas em várias
culturas ainda é possível constatar o estigma da honra a vítima que
sofre o abuso é sempre questionada sobre o lugar em que estava, qual
roupa vestia, se deu a entender que queria algo com o agressor entre
tantos outros questionamentos feitos não apenas fora dos
julgamentos,, como dentro das instituições que deveriam proteger as
vítimas e punir os agressores.
No entanto, o estupro corretivo, que tem a intenção de corrigir
seja o comportamento, a sexualidade ou a identidade de gênero das
vítimas não é e nem deve ser percebido como um crime individual. É
um crime político, cultural e social que busca extinguir a existência de
indivíduos, mas que fazem parte de um grupo. As motivações da
correção podem vir de inúmeros locais, no entanto o fim é o mesmo,
adequar aqueles entendidos como desviantes, anormais a uma norma
padronizante.
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69
70
PARTE II: LOUCURA
71
72
CAPÍTULO IV
INTRODUÇÃO
triagem
cymbalta para suposta fibromialgia
aos 14 esporadicamente alprazolam
aos 16 nos dias de insônia clonazepam
depakote receitado devidamente aos 20
aos 21 a cama dobra de tamanho com lioram
para queda brusca de libido e apatia de sobra:
oxalato de escitalopram
73
o coringa do hospital psiquiátrico:
sertralina e quetiapona
não peça s.o.s na enfermaria
Bianca Monteiro Garcia, poeta
74
quer gerir as potencias do trabalho e mostraremos aqui alguns dos
pontos deste percurso que nos trouxe da loucura, às doenças mentais.
Antes de iniciar a discussão é necessário, ao menos indicar a
noção foucaultiana de governo e a que, em geral, se aplica. No que se
refere ao que abordaremos neste capítulo, isto é, a loucura,
trabalharemos a partir do que Foucault nos mostra a respeito do
controle, administração e mais especificamente, de certa contenção
da loucura. E, especificamente acerca do termo governo relacionado
ao tema da loucura, cabe mostrar algumas passagens do curso, Os
anormais, de 1975. Em suas palavras:
75
A LOUCURA TEM UMA HISTÓRIA E A DOENÇA MENTAL É O DESFECHO
76
não se comunica com o outro senão pelo intermediário de uma razão
igualmente abstrata, que é ordem, coação física e moral, pressão anônima do
grupo exigência de conformidade. Linguagem comum não há; ou melhor, não
há mais; a constituição da loucura como doença mental, no final do século XVIII,
estabelece a constatação de um diálogo rompido, dá a separação como já
adquirida e enterra no esquecimento todas essas palavras imperfeitas, sem
sintaxe fixa, um tanto balbuciantes, nas quais se fazia a troca entre a loucura e a
razão. A linguagem da psiquiatria, que é monólogo da razão sobre a loucura, só
pode estabelecer-se sobre um tal silêncio. Não quis fazer a história dessa
linguagem; antes, a arqueologia desse silêncio (FOUCAULT, 1961-2010, p. 153).
77
consequência, seu discurso, fossem deslegitimados. Para ilustrar esse
fato, cabem novamente as palavras de Foucault:
78
neste sentido que Foucault nos mostra o nascimento do homo
psychologicus. Foucault trata do aparecimento do homo psychologicus
em Doença mental e Psicologia, livro que muitas vezes é desprezado ou
até mesmo descartado pelos pesquisadores de Foucault. Contudo,
consideramos importante resgatar alguns dos pontos desse livro em
nossa discussão.
Para chegarmos na discussão sobre homo psychologicus será
necessário, antes, realizar um breve percurso sobre as diferentes
concepções de loucura. Com isso, queremos mostrar como a loucura
passa a ser governada.
Foucault nos mostra nesse livro que aquilo que convencionou-se
chamar doença mental (e atualmente transtorno mental) é a loucura
alienada. Um fenômeno que já foi considerado possessão,
excentricidade, genialidade, ganha o estatuto de doença muito
recentemente, de fim do século XVIII, mas principalmente no século
XIX. Como diz Foucault:
Foi numa época muito recente que o Ocidente concedeu a loucura o status de
doença mental [...]De fato, antes do século XIX, a experiência da loucura no
mundo ocidental era bastante polimorfa; e seu confisco na nossa época no
conceito de “doença” não deve iludir-nos a respeito de sua exuberância
originária. Sem dúvida, desde a medicina grega, uma certa parte no domínio da
loucura já estava ocupada pelas noções de patologia e as práticas que a ela se
relacionam. Sempre houve, no Ocidente, curas médicas da loucura e os hospitais
da Idade Média comportavam, na sua maior parte, como o Hôtel-Dieu de Paris,
leitos reservados aos loucos (frequentemene leitos fechados, espécies de jaulas
para manter os furiosos). Mas isto era somente um setor restrito,, limitado às
formas da loucura que se julgavam curáveis 9frenesis, episódios de violência, ou
acessos “melancólicos”). De todos os lados, a loucura tinha uma grande
extensão, mas sem suporte médico (FOUCAULT, 1954-1991, pp. 75-77).
79
com o contexto sociopolítico. Com o desenvolvimento do
capitalismo, um dos maiores vícios morais passa a ser a ociosidade.
Nesse sentido, não apenas os loucos, mas todos aqueles
considerados desviantes passam a ser excluídos do convívio social. A
internação dos ociosos comtempla loucos, mendigos, libertinos de
todas as espécies e etc. Tudo se passa, em meados do século XVII, no
que se constituiu uma brusca mudança de cenário. Neste contexto,
as casas de internação não têm ainda nenhum tipo de intervenção
médica. Trata-se de casas voltadas para certa correção da ociosidade,
para controle moral, para fazer os internos trabalharem: “É que, no
mundo burguês em processo de constituição, um vício maior, o
pecado por excelência no mundo do comercio, acaba por ser
definido[...]é a ociosidade” (Idem, 1954-1991, p. 78).
Em outras palavras, o internamento nesse cenário não tinha
nenhum parentesco com o tratamento, com a terapêutica, nem com o
saber médico, mas com a reorganização do espaço social, ou seja, com
a regulamentação do espaço social, numa palavra: com o governo da
ociosidade. Talvez essa seja uma das fases mais relevantes do que
chamamos aqui de governo da loucura. Conforme diz Foucault: “a
loucura, durante tanto tempo manifesta [...]Entra num tempo de
silêncio do qual não sairá durante um longo período; é despojada de
sua linguagem; e se se pôde continuar a falar dela, ser-lhe-á impossível
falar de si mesma (Idem, 1954-1991, p. 79, grifos nossos).
Além disso, Foucault mostra que já nessa época a loucura
desenvolve parentesco com outros fenômenos, como os crimes de
amor. A loucura acaba sendo relacionada com outras questões morais
por ter sido incluída no internamento com esses outros grupos de
transgressores sociais. Acaba se tornando herdeira de crimes que por
vezes relacionam a ela e por vezes atribuem a ela. Tudo isto, explica
Foucault, não constitui a descoberta progressiva daquilo que é a
loucura, não constitui sua explicação, não constitui sua etiologia
enquanto suposta patologia, mas o que “a história do Ocidente fez
dela em 300 anos. A loucura é muito mais histórica do que se acredita
geralmente, mas muito mais jovem também” (Idem, 1954-1991, p. 80
grifos do autor).
Posteriormente, o internamento correcional de todos esses
grupos passa a ser um problema político. Decidiu-se então libertar
todos os grupos para marcar mudanças sociais, mas um dos grupos
80
tinha questões preocupantes: os loucos. Os loucos tinham a
particularidade de serem considerados um perigo para suas famílias e
para a sociedade. Por conta disso, todos foram libertados, menos os
loucos. Com isso, o internamento ganha novo significado e passa a ser
gerido pelo saber-poder da medicina (Idem, 1954-1991, p. 81; Foucault,
1972-2019, pp., 475-477).
O tratamento direcionado ao louco nessa época nada tinha de
científico, mas era de caráter culpabilizante e moralizante.
Posteriormente, o tratamento direcionado ao louco tinha
características disciplinares (conforme Foucault mostra no curso de
1973-19742). Tratamentos nada ortodoxos como suor, banhos frios, e
outros dessa ordem eram comuns; os loucos eram submetidos a esse
tipo de tratamento especialmente com o objetivo de punição, de
moralização. E é aqui que inicia outro movimento importante: o da
loucura como sendo concernente à alma humana. Conforme Foucault:
81
conhecimento sobre a loucura, foi a crueldade que abriu caminho para
a psicologia (Idem, 1954-1991, p. 84).
Para Foucault o que se chama doença mental é a loucura alienada.
Foi o internamento que permitiu a observação da loucura e o
surgimento das ciências psi. O estudo e intervenção na loucura, só foi
possível com a exclusão e institucionalização do louco, e por sua vez,
a emergência dos saberes psi só foi possível a partir desse movimento,
ou seja: “o homem só se tornou uma ‘espécie psicologizável’ a partir
do momento em que sua relação com a loucura permitiu uma
psicologia” (Idem, 1954-1991, p. 84).
Com a leitura das análises de Foucault fica claro que foi a loucura
o que tornou possível a emergência dos saberes psi, não há como fugir
deste fato. E é nesse sentido que Foucault aborda o nascimento do
homo pschologicus, o homem que é possível psicologizar, examinar do
ponto de vista psíquico e, a partir disso, constituir um saber. Esse homo
psychologicus teve, como condições para seu aparecimento, desde a
dúvida cartesiana e a cisão entre razão e loucura, até a exclusão da
loucura, sua alienação, o silenciamento e deslegitimação do discurso
do louco, o qual, Foucault quis resgatar através da história, através da
arqueologia. É desse cenário que frequentemente se recorta uma
frase, que sem o contexto perde o sentido. Para fazer jus às afirmações
de Foucault, tomaremos emprestadas novamente as suas palavras:
82
produção a partir de um fenômeno que se desconhece a origem, mas
que não se tolera no espaço social. Como diz Foucault: “O que se
chama doença mental é apenas a loucura alienada, alienada nesta
psicologia que ela própria tornou possível” (Idem, 1954-1991, p. 87).
A psiquiatria até os dias de hoje é um saber epistemologicamente
pouco sólido. A psiquiatria é ainda hoje um saber descritivo, e não um
saber explicativo e não há consenso sobre a etiologia de diversos dos
transtornos mentais. Afirmar isso, não significa querer deslegitimar o
saber psiquiátrico, nem tampouco o saber psicológico. Significa ter
clareza da necessidade de conhecer a história dos diferentes saberes
incluindo a história de suas limitações, pois, sem conhecer a história e
o estatuto político dos saberes, não se pode transformá-los.
A loucura é algo que não se entende. Se observa, se psiquiatriza, se
moraliza, se patologiza etc. O discurso do louco foi cooptado pelo saber
e poder médico. O louco por ser aquele que não é dotado de razão, não
tem condições de responder por si. Portanto, seu discurso passou a
pertencer ao médico ou psi. O discurso do louco não tem validade em si.
Só tem validade quando é codificado e transformado em discurso
médico ou psi - assim é que se transformou o louco em doente mental.
Por este motivo entendemos que o discurso do louco, ou em termos
atuais, o discurso do doente mental só tem lugar em certos contextos e
para certas finalidades. Por este motivo, podemos entender que há
ainda hoje deslegitimação e silenciamento e o próprio Foucault parece
nos dar sustentação a esse argumento quando afirma, na aula de 1970,
que o discurso do doente mental tem possibilidade de ser enunciado em
um contexto circunscrito, o contexto médico3. O próprio Foucault
explica que não se pode dizer que deixamos de silenciar o louco, o
doente mental, pois: “Basta pensar em todo o aparato de saber
mediante o qual deciframos essa palavra, basta pensar em toda a rede
de instituições que permite a alguém – médico, psicanalista – escutar
essa palavra” (Foucault, 1970- 2014, p. 12). De acordo com Foucault, tudo
isso nos mostra que a separação, longe de ter desaparecido, passou a se
exercer de outros modos, com novas instituições, rituais e efeitos que
não são mais os mesmos, mas ainda assim de algum modo funcionam
83
como silenciamento do discurso do louco, ou ao menos, como exercício
de poder sobre o louco e seu discurso.
Do mesmo modo, podemos entender que para Foucault a doença
mental não é uma instância sólida epistemologicamente. É apenas o
resultado do que se fez arbitrariamente dos fenômenos contraditórios
da loucura. E de condições sociais que “espremeram” a loucura para o
que há de mais indesejável. Durante muito tempo na história do
Ocidente, se tolerou a loucura, mas, como mostra Foucault, cada
período e cada sociedade tem seus limiares de tolerância ao atípico,
mais ou menos definidos. A impressão que se tem olhando para a
história é a de que esses limiares de tolerância tem diminuído cada vez
mais e em 1954 Foucault já havia notado isto: “Cada cultura tem seu
limiar particular e ele evolui com a configuração desta cultura; a partir
de meados do século XIX, o limiar de sensibilidade à loucura baixou
consideravelmente” (Foucault, 1954-1991, p. 89).
84
disciplinar (tarefa que ele vai intensificar depois, em Vigiar e Punir).
Em suas palavras:
Com isso entendo nada mais que uma forma de certo modo terminal, capilar, do
poder, uma última intermediação, certa modalidade pela qual o poder político,
os poderes em geral vêm, no último nível, tocar os corpos, agir sobre eles, levar
em conta os gestos, os comportamentos, os hábitos, as palavras, a maneira
como todos esses poderes, concentrando-se para baixo até tocar os próprios
corpos individuais trabalham (FOUCAULT, 1973-2012, pp. 50-51).
85
e um peito que anunciam força e saúde, traços salientes, uma voz
forte e expressiva” (Idem, 1973-2012, p. 06) e a representação da cura
por meio de propostas de moralização. Havia intervenções morais no
próprio conteúdo delirante, ou seja, muitas vezes o louco era de
diversas formas convencido a reconhecer o erro de seus delírios, o
erro de suas crenças delirantes; muitas vezes com o uso da força e de
punições, castigos de toda ordem, o louco era obrigado a ceder e
reconhecer abertamente que estava delirando e isso era parte da
cura (Idem, 1973-2012, p. 15).
Os médicos tinham sobretudo o desafio de provar se certas
características realmente se constituíam em loucura ou não. Dito de
outro modo, a tarefa nessa época era sobretudo a de atestar a loucura.
E os métodos, como já dito, nada tinham de baseados em evidências
científicas. Com isso, explica Foucault, há principalmente três técnicas
no século XIX para “essa prova de realização da doença que entroniza
o psiquiatra como médico e faz funcionar a demanda como sintoma:
primeiro o interrogatório; segundo, a droga; terceiro, a hipnose”
(Idem, 1974-2012, p. 350).
Em certo momento, como a loucura não é localizável no corpo,
materializável, a solução encontrada pelos médicos para de certo
modo “dar corpo” à loucura foi o argumento da hereditariedade. No
processo de interrogatório os psiquiatras buscavam enconrar
possíveis antecedentes que dessem a prova de que em algum
momento, a loucura se manifestaria. Aqui as palavras de Foucault são
indispensáveis:
86
ordem discursiva da instituição. A operação do poder disciplinar é
indispensável para a legitimação do psiquiatra como um médico que
deteria um saber sobre a loucura. Só com a operação desse poder
sobre o louco e sobre seu discurso é que se pôde consolidar a operação
psiquiátrica. Neste sentido, Foucault explica que no ato da confissão
dos sintomas, dos delírios ao médico, a seguinte cena entra em ação:
“com o que você é, com a sua vida, com o que se queixa a seu respeito,
com o que você faz e o que você diz, forneça-me sintomas, não para
que eu saiba que doente você é, mas para que eu possa ser um médico
diante de você” (Idem, 1974-2012, p. 349).
Esse interrogatório, diz Foucault, com a confissão de que há
loucura no sujeito, serve sobretudo à finalidade de livrar o sujeito dela.
Há o seguinte pressuposto: “Dê-me os motivos pelos quais eu privo
você de sua liberdade e, nesse momento, liberarei você da sua
loucura” (Idem, 1974-2012, p. 357).
Foucault também procura demonstrar o que consolida o discurso
do psiquiatra como saber médico: o ritual de apresentação do doente
(louco) aos estudantes médicos: ”Para que que essa palavra realize
efetivamente as transmutações médicas [...] é necessário que
ritualmente ela seja marcada pelo rito de apresentação clínica do
doente aos estudantes” (Idem, 1974-2012, p. 359).
A leitura dos escritos de Foucault nos permite verificar que a
patologização da loucura que começa a ser realizada em um contexto
de poder e ferramentas disciplinares, se intensifica com o
desenvolvimento da regulamentação dos processos de vida, isto é,
coincide com o nascimento da biopolítica. A noção de biopolítica é
largamente estudada por pesquisadores de Foucault e atualmente é
uma noção bastante conhecida. Mas, para realizarmos a exposição que
pretendemos aqui cabe lembrar algumas de suas características
principais: a biopolítica é uma tecnologia de poder que se desenvolve
concomitantemente ao capitalismo, que na verdade, é o que abre
caminho para seu desenvolvimento. A biopolítica é a tecnologia de
poder focada na manutenção da vida da população com fins de
utilização de sua força de trabalho. Aliada aos dispositivos disciplinares
que administraram o corpo individual, docilizando os corpos, a
biopolítica regulamenta os processos da população como um todo.
Todos os processos de vida humana são tornados vigiados,
controlados e regulamentados com vistas a manter a saúde para
87
manter a produtividade. A partir do nascimento da biopolítica, como
mostra Foucault, a vida passa a ser não apenas um direito, mas um
dever, individual e coletivo (ALMEIDA, 2021, pp. 46-47; FOUCAULT,
1975-2010, pp.210-211).
A emergência das tecnologias biopolíticas acontece entre os
séculos XVIII e XIX, período no qual se desenvolvem as primeiras e
primordiais políticas públicas de saúde para controle de natalidade,
manutenção do imperativo da saúde e controle de mortalidade. Desse
modo, é na vigência da biopolítica, mostra Foucault, que a vida
humana, em todas as suas esferas passa a ser medicalizada, isto é,
regulamentada por normas médicas. Assim, a emergência da
biopolítica é o início de um processo histórico que cada vez mais vai
corroborar com um governo da vida humana em todas as instancias
por meio de regulamentações médicas. Desde os processos de família,
educação das crianças, até a educação, seus processos e suas
dificuldades, tudo estará norteado e poderá ser conduzido pelo saber
médico (ALMEIDA, 2021, p. 49)
O louco (ou doente mental) é o sujeito que escapa da
regulamentação. O louco escapa à moralização instituída. O louco
escapa do atravessamento que as técnicas de poder exercem na
subjetividade. O louco, em última instância, escapa ao poder. Portanto
é preciso intervir; medicalizar, psicologizar. Psicologizar e catalogar os
desajustados é a estratégia do poder para controlá-los (Idem, 2021, pp.
85-86).
Neste contexto fica fácil concluir que os fenômenos e
comportamentos à parte da norma instituída tendem a ser
considerados patológicos, porque, justamente, transformar, condutas
que não se explica ou que não se controla, em doenças é um dos meios
possíveis e legitimados para governá-los. Muitas vezes, aqueles que
não se dociliza com práticas disciplinares se pode controlar com
medicamentos, com instruções médicas e assim por diante.
O louco, sendo um sujeito quase sempre indisciplinarizável e, a
loucura, sendo um fenômeno que causa estranhamento e que desafia
até mesmo o saber médico, precisam ser controlados, isto é,
governados de algum modo. Então, como mostrou Foucault, alienar o
discurso do louco para posteriormente, codificá-lo, seguindo
parâmetros médicos e, deste modo, constituir um saber sobre a
loucura (os saberes psi), foi o meio encontrado para governar a
88
loucura, tentar minimizar seus efeitos e mostrar, ao mesmo tempo, a
validade do saber e do poder sobre ela. Alienar a loucura foi a condição
de possibilidade para patologizar a loucura, codificá-la e realizar a
catalogação dela, em um primeiro momento, em classificações de
doenças mentais e depois, em transtornos mentais (nomenclatura
atualmente vigente).
89
psiquiatria ser ainda hoje, mais descritiva do que explicativa. Afinal,
como já dissemos, a etiologia de muitos dos transtornos não é
claramente definida. Medicalizar e patologizar fenômenos que não
se explica ou não se controla é uma das mais antigas formas de
governo, como mostra Foucault.
O adoecimento psíquico atualmente transformado em doença,
deve ser preferencialmente controlado, silenciado e docilizado com a
articulação das ferramentas disciplinares e biopolíticas. Deve ser
administrado preferencialmente com técnicas que abafem possíveis
potencializadores socioeconômicos do sofrimento e do adoecimento,
ou seja, medicamentos e outras terapêuticas que são em geral,
vendidas como rápidas e milagrosas. Cabe, nesse ponto, resgatar as
palavras de Foucault:
90
neoliberal deve anular a dimensão da revolta que se exprime no
sofrimento psíquico”
Além disso, podemos entender que há, no neoliberalismo atual, a
produção de sofrimentos e o governo deles especialmente com
regimes discursivos de desempenho, produtividade e o incentivo à
busca por terapêuticas milagrosas e/ou de curto prazo.
Com esse contexto, é preciso pensar: “Quais os riscos desse
cenário?”. Os riscos de governar o sofrimento transformando-o em
patologias, em transtornos mentais (que só crescem a cada nova
edição do DSM – manual diagnóstico da psiquiatria) é justamente um
colapso do sujeito. Aparentemente, estamos caminhando, para um
contexto no qual, do ponto de vista mental, ou como preferimos
nomear, do ponto de vista psíquico, o colapso do sujeito será
inevitável. Se nos tornarmos incapazes de entender que a tristeza, por
exemplo, é um afeto humano que nos direciona sobretudo para a
crítica e se, com isso, quisermos medicalizar toda tristeza como forma
de governá-la e silenciá-la, estaremos formando, cada vez mais,
sujeitos incapazes de lidar com ela. O colapso e o desespero, nesse
cenário, parecem inevitáveis.
CONCLUSÃO
91
REFERÊNCIAS
92
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 4ª edição. Tradução de Raquel
Ramalhete. Petropólis, Vozes, 2017.
SAFATLE, Vladimir. A economia é a continuação da psicologia por
outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia
moral. In: Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico/ Vladimir
Safatle, Nelson da Silva Junior, Christian Dunker (orgs). Belo Horizonte:
Autêntica, 2021.
93
94
CAPÍTULO V
BARCOS E ILHAS
95
pelas águas e a postura de colocar a desrazão como algo externo, fora
do limite, no oceano imprevisível. De todo modo, a loucura começava
a ganhar a dimensão de uma problemática social:
96
tematizam a loucura de forma latente, especialmente a partir de
personagens femininas, o que não é nem de longe desproposital,
como veremos adiante (SHOWALTER, 1985). De todo modo, o barco e
a água, como aponta Foucault, são associados ao incontrolável e ao
desconhecido e, daí, para a ligação com a loucura, é apenas um passo:
97
libertinagem e luxúria e, assim “descobrir tornou-se sinônimo de uma
ação violenta sem limites. Quem seriam aqueles homens e mulheres?
Estranhamento” (COUTO, 2021, p. 212).
Nesse jogo, as águas e os barcos eram uma espécie de portal de
acesso a esse desconhecido. Eram mais do que nunca elementos
associados ao imprevisível e que acabavam por corroborar o estigma
eurocêntrico de selvageria e desrazão sobre os grupos originários, sobre
a fauna e a flora e sobre as práticas culturais presentes no continente
americano. Como afirma Ailton Krenak, “a civilização chamava aquela
gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o
objetivo de transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube
da humanidade” (KRENAK, 2019, p. 14).
A produção literária brasileira não deixou de explorar esse
imaginário marítimo que se fortaleceu com o olhar colonizador mesmo
depois da independência e que se manteve ligado, de alguma forma,
ao que fugia à explicação racional. Simbólico é, por exemplo, em 1781,
o poema épico Caramuru, que narra o icônico suicídio de Moema, claro,
nas águas do mar. Nadando desesperadamente atrás de um português
que casara com sua irmã e por quem se apaixonara, a indígena
tupinambá enlouquece de amor, sacrifica a própria vida por um branco
e é absorvida pela imprevisibilidade do mar, em uma metáfora de seu
próprio descontrole. No século XIX, vem à tona o romantismo
indigenista e é do mar que chega o português Martim, que se envolve
com a tabajara Iracema e, de sua relação amorosa, nasce o filho
Moacir, representação metafórica do Brasil idealizado de José de
Alencar, e que, por ironia ou não, deixa o Novo Mundo e atravessa o
mar em direção a Portugal, no fim da história. Em outra chave, também
é o mar que se encontra no olhar de Capitu, os famosos “olhos de
ressaca”. Aqui, Machado de Assis usa sabiamente das metáforas
aquosas na fala do protagonista de Dom Casmurro, de 1899, um
inveterado possessivo que compreende a esposa como volúvel e
traiçoeira. E, na história, nunca recebemos a certeza de traição ou
fidelidade, apenas a confirmação de um ciúme doentio que, inclusive,
também leva Capitu a atravessar o oceano para se afastar do marido.
Mas, talvez um dos romances brasileiros mais icônicos entre
aqueles que se utilizaram dos simbolismos da água, do mar e do
barco ligados de alguma forma ao misterioso e ao desconhecido não
seja ainda considerado um clássico entre os cânones masculinos. A
98
Rainha do Ignoto, romance publicado em 1899, pela cearense Emília
Freitas (1855-1908), é hoje visto como um marco na formação da
ficção científica brasileira. O enredo conta a história de uma
misteriosa protagonista, liderança de uma sociedade secreta da qual
fazem parte apenas mulheres, localizada na fictícia Ilha do Nevoeiro,
no litoral nordestino.
A história inicia com a mudança de um jovem chamado Edmundo
para as remotas paragens de Passagem das Pedras, no sertão do
Ceará. O rapaz, um “doutor” formado engenheiro, vinha de larga
experiência na Europa gastando o dinheiro da família e resolvera
conferir uma fazenda abandonada que herdou, viajando então para o
interior do Nordeste. Logo no primeiro capítulo, o personagem
ceticamente ouve as histórias sobre a encantada Serra do Areré e a
moça Funesta que aparecia no rio Jaguaribe, a qual possuía “pacto
com Satanás”, como diziam os locais (FREITAS, 2020, p. 39). Naquela
mesma noite, porém, o rapaz assiste pela sua janela a bela moça
passeando em uma jangada, cantando com sua harpa, vestida de
branco e ornada com flores, acompanhada por um símio e um
cachorro preto. Encantado, o personagem dedicará os próximos
meses de sua vida a tentar descobrir quem é aquela mulher e acaba
por se disfarçar para entrar em seu mundo.
Pode-se dizer que o romance é dividido em duas partes. Até o
capítulo XXV, a obra traz uma série de enredos que se cruzam com a
vida de Edmundo e da chamada Funesta, a misteriosa cantora do rio
Jaguaribe. Somos apresentados às indiscretas filhas de D. Matilde,
ricas jovens que buscam um bom partido para o casamento; a
Carlotinha, moça recatada que se apaixona por Edmundo; e ao
pescador Probo, que tem contato com a existência da Ilha do Nevoeiro
e convence o rapaz a se disfarçar de mulher para também conhecê-lo,
pois buscava apoio para destruir essa sociedade secreta. A partir do
capítulo XXVI, então, o jovem doutor embarca na aventura de
desvendar esse mundo utópico de mulheres liderado por Funesta,
aquela que passamos a conhecer também como Rainha do Ignoto,
Fada do Areré ou Diana, em momentos diversos da história.
Primeiramente, Edmundo se disfarça com as roupas e a máscara
de uma jovem muda que faleceu e, depois, embarca em um trem.
Chegando à escondida estação, toma uma barca que navega por
caminhos sinuosos e, enfim, atraca na ilha. Sua primeira parada foi o
99
palácio, onde via “centenas de mulheres, que, a avaliar pelas
aparências, as mais novas teriam vinte e quatro anos e as mais velhas
quarenta” (Idem, 2020, p. 177). Elas eram chamadas de paladinas. Uma
moça tocava uma música deslumbrante, enquanto a Rainha do Ignoto
sentava soberana em seu trono. Uma secretária, então, anuncia que
“dentro de três dias, partiremos para os assaltos do bem, vamos
guerrear a injustiça, proteger o fraco contra o forte, entrar nos
cárceres para curar os enfermos, lançar-nos às ondas para salvar os
náufragos e atirar-nos aos incêndios para lhes arrebatar as vítimas”
(Idem, 2020, pp. 177-178). Na cerimônia, também são apresentadas as
ordens sociais daquele mundo, como soldadas, trabalhadoras e
artistas. E, ao final, mostram-se as mais novas integrantes da
sociedade, que levavam consigo punhais e eram convidadas a
esfaquear os quadros pintados de seus algozes, homens que as
machucaram, traíram ou decepcionaram.
Abismado, Edmundo não parava de desacreditar a existência do
que via. No dia seguinte, à luz do sol, é que o jovem consegue observar
de fato a beleza e o funcionamento daquela ilha organizada, utópica e,
mais do que isso, feminina:
Aquele palácio era como o sol! Não se podia fitá-lo por muito tempo. Nele estava
o gosto artístico de um verdadeiro pintor, com os retoques de um ideal de poeta!
Os jardins eram uma surpreendente maravilha! Havia neles todas as flores de
cujo desabrochar Lineu compôs um relógio, de forma que eram as pétalas
recendentes desses mimos da natureza que ali marcavam as horas saindo do
cálice, onde estiveram em botão.
Tudo quanto a Botânica e a Zoologia possuem de belo, de raro e de precioso, os
jardins do Ignoto ostentavam bem ordenado, e classificado por mão de mestre!
As dependências do palácio eram uma cidade ativa pela fumaça das fábricas que
trabalhavam, pelo bater do ferro nas oficinas, e pela voz das crianças nas escolas
(Idem, 2020, p. 183).
100
influenciadas pelas teses espíritas de Kardec. Eram também
abolicionistas, pregando contra a escravidão e apoiando a fuga de
centenas de cativos. Mais notória ainda era a declarada posição
política daquela que, apesar de chamada de Rainha, era republicana
convicta e pregava contra os abusos de poder. A sociedade tinha
inclusive um asilo, onde se acolhiam especialmente mulheres que
perderam a razão em decorrência de situações de violência extrema.
Nesse mundo utópico, portanto, a loucura também encontrava seu
lugar de preocupação, mas não por olhares medicalizantes.
É claro que esse mundo incomodava profundamente aqueles
poucos que eram postos à margem: os homens. Probo, o mencionado
pescador, era o principal deles. Dizia nas conversas escondidas com
Edmundo que aquela era uma “sociedade de malucas”, cheia de
“enervadas”, uma verdadeira “maçonaria de mulheres”, claramente
loucas e subversivas (Idem, 2020, pp. 184-187). O personagem é quase
uma caricatura da misoginia, representando o que chamaríamos hoje de
“homem de bem”: não se conforma com a liderança feminina,
desaprova a falta do culto cristão naquela cultura, que não possuía uma
igreja sequer, e alega a impossibilidade da existência de um mundo sem
propriedade privada. Assim, tentava convencer Edmundo a denunciá-las
e a ajudá-lo na destruição da ilha, o que nunca conseguiu. Após meses,
o rapaz que se disfarçou de mulher volta transformado para Passagem
das Pedras e se casa com Carlotinha. Desse modo, também caminhamos
para o desfecho da Rainha do Ignoto, trágico tal qual a infelicidade de
sua vida, solitária e de perdas, a qual pouco a pouco conhecemos no
romance e que a levou à liderança de um mundo de mulheres, afastado
dos males patriarcais do “mundo real”.
Assim, a obra ganha contornos feministas e bastante críticos.
Trata-se de uma sociedade formada por mulheres e que luta por
justiça, atuando na sociedade brasileira de modo a acolher aqueles que
sofrem violência e opressão. Segundo Alcilene Cavalcante (2008), a
autora Emília Freitas se posicionou com afinco nos periódicos da
época: nascida em 1855, era abolicionista e republicana convicta e
ironizava a misoginia com que se tratavam as escritoras. Foi professora
e viajou por diversas cidades do Nordeste e do Norte, chegando a
residir em Manaus. Escreveu muitos poemas e publicou em vastos
periódicos, especialmente do Ceará. Já sobre A Rainha do Ignoto, a
pesquisadora afirma que
101
Em meio à trama, a autora refere-se ao espiritismo, à psicologia, à hipnose, ao
estoicismo, ao positivismo, às ciências naturais, à maçonaria, ao abolicionismo,
ao republicanismo, ao feminismo, ao amor, à solidão, à angústia, enfim, a uma
série de assuntos próprios de sua época. O enredo desvela a apropriação que a
escritora realizou de ideais que circulavam nas sociedades cearense e
amazonense dos Oitocentos. Incorpora aspectos da trajetória da própria
escritora ao espaço ficcional, além de construir aspectos relativos ao fantástico-
maravilhoso. Por meio desse romance, é possível perceber o quanto Emília
Freitas estava concatenada ao meio letrado, apesar da cultura misógina e de
residir em províncias consideradas periféricas (CAVALCANTE, 2008, pp. 101-102).
Esta conexão entre a ilha e o feminino na verdade não é à toa. Ambas – mulher
e ilha – são expressões misteriosas da Natureza. Os nomes pelos quais Funesta
também é chamada – Fada do Areré e Diana, este último uma alusão à deusa
grega cultuada nas florestas e protetora dos animais selvagens – reforçam essa
conexão.
O nome “Fada do Areré” atribuído a Funesta deixa entrever o fascínio e temor
que a natureza arcana do ser feminino, e seu vínculo com o mundo natural,
sempre exerceu sobre o imaginário dos homens (SILVA, 2020, p. 19).
102
na loucura que, na verdade, parece ser encontrada no “mundo real”,
nas violências e injustiças.
Se retornarmos a Foucault e ao modo como refletiu sobre a
relação entre a água e a loucura, encontramos no texto “A água e a
loucura”, de 1963, uma breve análise sobre como a associação do meio
aquoso com a desrazão foi um pilar da cultura ocidental,
especialmente quando ligada à figura infinita e imprevisível do oceano.
Assim, essa mesma água também foi usada na modernidade como
forma de ir contra a loucura, em uma espécie de jogo do elemento
contra si mesmo, a exemplo das hidroterapias e dos banhos quentes
do século XVII. No século XIX, porém, “a água não é mais o banho
apaziguador, a chuva fresca sobre uma terra calcinada: é a surpresa –
o que corta o fôlego e faz perder a compostura” (FOUCAULT, 2010a,
p. 206). A água, na esteira de grandes nomes da psiquiatria, como
Philippe Pinel2, passa a ser praticamente um instrumento de tortura e
confissão que força o alienado a se identificar como tal. Hoje,
argumenta Foucault, a loucura não é mais aquática como antes, o que
não significa o total desprendimento cultural entre ambos.
É interessante pensar que, mais fortemente no século XIX, a
loucura ganha cada vez mais um recorte de gênero. Na figura da
histérica, os médicos vão encontrar um reduto de estigmatização dos
corpos femininos que, nessa época, eram biologicamente
inferiorizados. Foucault destaca que, para os doutores de então, os
corpos femininos eram vistos como fluídos e facilmente penetráveis,
logo, mais instáveis. Assim, “a sensibilidade simpática de seu
organismo, que se irradia através de todo o corpo, condena a mulher
a essas doenças dos nervos chamada vapores” (FOUCAULT, 1978, p.
323). “As mulheres que têm ‘a fibra frágil’, que se empolgam
facilmente, em sua ociosidade, com movimentos vivos de sua
imaginação, são mais frequentemente atingidas pelos males dos
nervos do que o homem, ‘mais robusto, mais seco, mais consumido
pelo trabalho’” (Idem, 1978, p. 325), continua ele, citando
103
ironicamente as palavras de Tissot3, outro importante nome da
medicina moderna.
Assim, todos esses jogos de significação criam uma rede que
associa a água – e todos os seus elementos derivados, como ilhas, rios e
mares – à loucura e, por consequência, ao feminino. Trata-se do campo
semântico da desrazão na modernidade: abrange tudo aquilo que foge
ao controle, que é fluído e móvel, que é ligado demais à natureza, que é
demasiado emocional ou sensível. E esse caldo constrói como resultado
uma certa noção de inferioridade feminina inscrita em seus ossos, em
seus órgãos, em seu ser essencial. Noção esta que, ainda que aquosa,
não pode ser desassociada das sólidas paredes de hospitais
psiquiátricos e dos espaços de enclausuramento feminino.
HOSPITAIS E RACHADURAS
3Auguste Tissot (1728-1797) foi um neurologista francês que se debruçou, entre outras
coisas, sobre o estudo da masturbação e como sua prática seria supostamente
responsável por uma série de efeitos negativos no corpo humano. Foi autor de
L’Onanisme, publicado em 1760.
104
Jean-Martin Charcot4 fez jus à herança de Pinel no hospital
Salpetrière, em Paris, na segunda metade do século XIX, e aprofundou
essa associação entre o feminino e o desatino. Muito mais do que o
precursor, como aponta Foucault, sua associação das mulheres com a
loucura parte da ideia da própria natureza feminina inferior. Foi com
Charcot que todo o imaginário da histeria ganhou prestígio na Europa e,
depois, como um todo, no Ocidente: as fotografias das crises histéricas5,
as demonstrações ao público médico, a publicação dos estudos e o cada
vez mais lotado Selpetrière foram aspectos tão fundantes da cultura
moderna que não é difícil encontrar, até hoje, as palavras “louca” ou
“histérica” como formas pejorativas de se referir às mulheres.
No Brasil, as influências do pensamento médico científico
europeu foram muito presentes, ainda que claramente tenha ganhado
especificidades nacionais. Como aponta Margareth Rago, os doutores
brasileiros se debruçaram incessantemente sobre as mulheres da
segunda metade do século XIX até o início do século XX, quase sempre
em uma postura conservadora que visava provar a inferioridade física
e mental feminina (RAGO, 2008, p. 175). Inspiravam-se nos famosos
europeus, que citavam em abundância – Pinel, Esquirol6, Charcot,
Krafft-Ebbing7 ou Lombroso8 – e defendiam que as mulheres eram
biologicamente mais suscetíveis às desregulações por conta de sua
natural volatilidade. Assim, elas “escorregavam” para a prostituição
ou para a histeria com facilidade, caso não fossem guiadas pelo pulso
firme de um patriarca, especialmente um marido, que as levariam ao
seu destino da maternidade.
105
Toda essa trama de estigmatização e medicalização conviveu com o
constante questionamento. A literatura brasileira, especialmente a escrita
de autoria feminina, tematizou as amarras do poder, enclausurador da
desrazão. Essa arte possibilitou espaços de contestação diante dos
discursos de verdade e foram muitas vezes carregadas de um peso na
pena, mas também se mostraram irônicas e irreverentes, propondo
rachaduras e tecituras outras no imaginário social.
Em 1890, por exemplo, Délia (1853-1895) publicava o romance
Celeste, no auge da produção literária realista, no Rio de Janeiro.
Cronista de sucesso, a autora – cujo nome verdadeiro era Maria
Benedita Câmara Bormann – era natural do Rio Grande do Sul, ainda que
morasse desde jovem no Rio de Janeiro, e pertencia a uma família de
grande status social. Como aponta Norma Telles, estudiosa da escritora,
ainda assim a fama e o sobrenome de peso de Délia não a protegeram
de ser atacada, como quando é acusada pelo crítico literário Araripe
Júnior de não utilizar a naturalmente feminina “histeria tropical” em
suas obras, que, então, tornam-se “sem graça”, sem originalidade,
muito diferentes das assinadas por homens (TELLES, 2012, p. 366).
Alinhado com o pensamento patriarcal de sua época, em uma única fala,
o crítico não só naturaliza a relação entre feminino e desrazão, como
menospreza a produção artística da autora.
Talvez não à toa a ideia de uma histeria feminina também é
tomada ironicamente por Délia em sua obra Celeste, em que narra a
história da protagonista homônima ao título do livro desde o
casamento de seus pais, feito sem amor e atravessado pela violência
doméstica, até sua morte. Após passar toda a infância e a juventude
assistindo as agressões e injúrias recebidas pela figura materna,
Celeste passa a observar criticamente as incongruentes violências que
conformam o mundo ao seu redor: de seu avô contra sua avó, de seu
pai contra sua mãe, de sua mãe contra a Bá, a ama escravizada que era
constantemente fustigada e, finalmente, já mais velha, dentro de seu
próprio casamento, sofrendo ameaças de seu marido. A personagem
acredita que terá uma história diferente da trajetória familiar de
casamentos infelizes mas, desde a primeira cena do romance, sabemos
que seus caminhos a levaram a uma repetição do ciclo de traumas que
a cultura patriarcal infringia cotidianamente. Infeliz, reflete sobre
como “era muito nervosa, histérica mesmo” (DÉLIA, 1988, p. 93),
106
aspecto que considerava hereditário e que a fazia padecer
miseravelmente diante dos sofrimentos pelos quais passava.
Em um momento que parece sem perspectiva, porém, Celeste
resolve dar uma reviravolta em sua vida e rompe com o marido. Livre,
passa a ter vários amantes e a frequentar os mais diversos bailes,
tentando incessantemente ignorar o julgamento moral sobre seu
comportamento, inclusive vindo da própria mãe. “Por Deus, não serei
mais tola!”, afirma (Idem, 1988, p. 104), e passa a iludir os homens
como eles geralmente faziam com as mulheres, “considerando-os
meros passatempos ou instrumentos de prazer” (Idem, 1988, p. 119).
Ao redor dos trinta anos, Celeste, solitária, torna-se viúva, ou seja,
oficialmente livre dos laços matrimoniais, bem como perde a mãe, com
quem já não possuía contato depois de inúmeras brigas, e também
sofre a perda da Bá, sua antiga ama, por quem nutria profundo afeto e
com quem morava após sair da casa do cônjuge e da própria família.
Após tantos percalços, acaba, por fim, por achar que encontrou sua
felicidade tardia. Apaixona-se perdidamente pelo irmão do ex-marido,
um homem respeitoso e ponderado, que se entrega perdidamente à
protagonista. De casamento marcado, porém, o rapaz sofre um
acidente grave e falece. Depois de todos esses episódios de
infelicidade extrema, a ira contra a vida consome Celeste e seu
desfecho só poderia ser um: o enlouquecimento. É internada em um
hospício, onde é diagnosticada, de maneira profundamente ácida:
107
Telles, influenciada pelo clássico estudo de Gilbert e Gubar9. Ao rejeitar
valores sociais quando se tornavam criadoras, e não mais apenas
reprodutoras, as mulheres que escreviam, muitas vezes,
metaforizavam sua ansiedade de autoria na figura de personagens
loucas, incontroláveis e desobedientes. Nas palavras da historiadora,
“é como se o próprio ato de escrever fizesse surgia a figura da louca.
(…) A figura é evocada para que esta possa chegar a bons termos com
sua própria fragmentação, com a estranha sensação de não ser bem
aquilo que deveria ser” (TELLES, 1992, p. 56).
Se estamos argumentando que o século XIX foi o século que
consolidou a associação da loucura com o feminino, como também
aponta Elaine Showalter (SHOWALTER, 1985, p. 8), vale dizer que essa
relação se transformou desde o final do XVIII, quando as produções
imagéticas e literárias sobre a desrazão passaram a ser protagonizadas
não mais por homens insanos, mas por mulheres histéricas. Ainda que o
estudo da pesquisadora seja focado no recorte inglês, ela aponta como,
com o crescimento da feminização dos espaços da cidade e do trabalho,
“coincidentemente”, “as desordens nervosas femininas da anorexia
nervosa, histeria e neurastenia se tornaram epidêmicas; e os
‘especialistas em nervos” darwinianos passaram a ditar o
comportamento feminino adequado tanto dentro quanto fora do asilo”
(Idem, 1985, p. 18)10. Assim, a partir da perspectiva crítica feminista,
Showalter traz à luz o esforço contínuo da ciência moderna em
fundamentar uma bipolarização dos sexos como algo natural e, assim,
associar tudo aquilo que seria pensado como inferior ao lado feminino,
incluindo a desrazão. Se no século XIX, portanto, nascia a psiquiatria
como campo de conhecimento, ela definitivamente tem suas raízes
históricas na sociedade patriarcal na qual se inseria, e não na suposta
neutralidade que defendia ter ao olhar sobre a loucura. Pelo contrário,
esse olhar era profundamente atravessado pelo gênero.
É interessante pensar que, seguindo o raciocínio da generificação
da loucura, O alienista, de Machado de Assis, foi publicado no Brasil em
9 O livro The madwoman in the attic, publicado nos Estados Unidos em 1979 por Sandra
Gilber e Susan Gubar é um marco nos estudos feministas sobre a literatura de autoria
feminina.
10 Tradução minha do trecho original: “the female nervous disorders of anorexia
nervosa, hysteria, and neurasthenia became epidemic; and the Darwinian ‘nerve
specialist’ arose to dictate proper feminine behavior outside the asylum as well as in”.
108
1882, enquanto o conto O papel de parede amarelo, de Charlotte
Perkins Gilman, foi trazido ao público em 1892, nos Estados Unidos.
Ambos, portanto, com diferença de poucos anos da publicação de
Celeste por Délia, em 1890. Enquanto o primeiro narra comicamente a
empreitada de um médico em definir a loucura – processo no qual
aprisiona quase toda a cidade no hospício, até acabar ele mesmo se
autodiagnosticando louco –, o segundo é considerado uma narrativa
com tons autobiográficos da autora e conta em primeira pessoa as
percepções de uma mulher trancafiada em uma casa, isolada pelo
marido psiquiatra para tratar sua “histeria”.
Ainda que não seja nosso foco aqui pensar essas obras, vale
ressaltar como o tema da loucura, nesse final do século XIX, mostrou-
se um tema precioso não só no Brasil, como em outros lugares do
ocidente, em suas diversas nuances11. Também chama atenção a
escrita atravessada pelo gênero, já que, coincidentemente ou não,
tanto Délia como Gilman optaram por dar vozes às especificidades
femininas no trato moderno da desrazão, mesmo sendo de diferentes
localidades. Afinal, como aponta também Telles, a obra de uma
escritora não pode ser explicada apenas pela autoria, mas também não
está absolutamente separada do tecido social. Assim, sendo um
“fenômeno da cultura”, pode-se pensar que a escrita de autoria
feminina traz vozes dissonantes em relação ao imaginário
predominante, dominado pelo masculino. “Obras escritas por
mulheres podem ser uma provocação aos padrões estabelecidos”,
assim, “a paisagem se amplia e se torna mais rica quando escutamos
múltiplas vozes distintas”, diz ela (TELLES, 2012, p. 57). E, se até aqui já
encontramos essas outras vozes em Emília Freitas e Délia, vale dizer
que não estavam sozinhas.
109
FLORES E PAPÉIS
110
na cultura europeia, eram símbolo iconográfico da sexualidade
feminina (SHOWALTER, 1985, p. 11).
Assim, pouco a pouco, Chrysanthème parece brincar com a
simbologia da “histérica”. O “espírito livre” de sua protagonista,
aprisionado pela normatização dos corpos femininos, constantemente
se converte em fluído e escapa pelo riso, pela crítica e pela escrita. E
ela não deixa de expor suas afiadas reflexões, que desestabilizam a
autoridade médica de seu diagnóstico: “Ah! Dr. Maceu. Lindo médico
de senhoras, se o senhor soubesse a culpa que aos homens cabe a
encravação atual das mulheres, o senhor procuraria curar antes estes
como únicos responsáveis de todas as decadências femininas!”
(CHRYSANTHÈME, 2019, p. 74).
Chrysanthème era o pseudônimo de Maria Cecília Bandeira de
Melo Vasconcelos. Autora polêmica e de sucesso, era filha de outra
escritora igualmente feminista, Carmem Dolores. Carioca, publicou
mais de uma dezena de livros e colaborou em jornais de grande
circulação. Era provocativa, como aponta Beatriz Resende (2019), e
enfrentou críticas tanto dos conservadores quanto dos modernistas.
Era acusada de tentar acender “nas mulheres o ódio ao homem”,
como sugere o escritor Humberto de Campos (RESENDE, 2019, p. 157).
E reagia: criticava a cultura patriarcal em seus ensaios e romances,
como a Lúcia de Enervadas que, se parecia merecer a alcunha de tola,
fez da fruição e do chiste sua forma de sobreviver diante das tentativas
constantes de aprisionamento.
Pouco tempo depois da publicação de Enervadas, Júlia Lopes de
Almeida (1862-1934), autora de prestígio na Belle Époque carioca,
escrevia Funil do Diabo, obra que só foi publicada postumamente, em
2015, mas que provavelmente data do início da década de 1930,
pouco antes da morte da escritora (MUZART, 2015, p. 11). A obra foge
um pouco dos tipos de histórias mais conhecidas da autora: a
narrativa possui um ar de mistério e até um pouco de investigação,
lembrando os clássicos romances de crimes de língua inglesa.
O enredo gira em torno do desaparecimento de ouro do cofre de
uma família de boas posses, sob a guarda de Juliana, a personagem
central, casada com André. Na casa, viviam também a prima solteira
Ana-Rosa, a mãe e o padrasto da protagonista. Este último,
psicanalista, é sempre misterioso e arredio, gerando desconforto e
suspeita constante na protagonista. Tentando investigar o sumiço dos
111
metais preciosos sem despertar a ira do marido, muito atarefado na
nova fábrica em que investia, a jovem passa a desconfiar de todos,
incluindo seus próprios familiares e, por fim, também passa a suspeitar
de sua própria sanidade:
112
grande aceitação entre os críticos literários e a elite letrada de sua
época, talvez por usar de sua imagem maternal para adentrar os
espaços (TREVISAN, 2021). Publicou dezenas de obras ao longo da
carreira, dos mais diversos gêneros literários – de manual de
jardinagem a livros didáticos, passando pelos romances, contos e
crônicas – e manteve colaborações contínuas em periódicos como O
País, A Gazeta de Notícias ou o Jornal do Commercio. Em sua escrita
literária, o protagonismo era quase sempre feminino. Dava a suas
personagens a palavra crítica sobre o latente moralismo machista,
especialmente das elites urbanas. Muitas vezes, também criava
alternativas para as vidas dessas mulheres fictícias, passando pela via
da educação, do trabalho e da amizade com outras mulheres.
Produções como as de Chrysanthème e de Júlia utilizaram do
papel e da caneta como armas de crítica na desnaturalização de
estigmas sociais. Da elaboração criativa, surgiram personagens que
repensavam os pressupostos científicos que associavam os corpos
femininos à loucura. Em um mundo atravessado pela razão masculina,
a produção desse imaginário outro denota as constantes rachaduras
nesses discursos de verdade. E o imaginário, como aponta Tânia
Navarro Swain, “seria condição de possibilidade da realidade
instituída, solo sobre o qual se instaura e instrumento de sua
transformação” (SWAIN, 1994, s.n.). Assim, a criação literária como
parte constitutiva e constituinte do imaginário social mostra-se
política, engajada e, no caso das duas escritoras – bem como das já
citadas Délia e Emília Freiras – feministas.
E, se iniciamos com as fundamentais reflexões de Foucault sobre
a construção histórica da categoria de loucura, também só nos resta
encerrar com suas ideias sobre as próximas relações entre a desrazão
e a literatura. Não passou despercebido ao filósofo a potencialidade
crítica e transformadora da arte de um modo geral. Foucault apontou
como a prática da escrita literária, por exemplo, esbarra no risco da
loucura, no perder-se, no devaneio e, justamente aí, encontra sua
subversão. É a literatura que pode transgredir a linguagem normativa,
tão encaixada em regras gramaticais e ortográficas, tão presa na
formalidade, na chamada “realidade” do mundo, nessa tal razão tão
apreciada pelos homens:
113
Quer dizer que há uma curiosa afinidade entre a literatura e a loucura. A
linguagem literária não está obrigada às regras da linguagem cotidiana. Por
exemplo, ela não está submetida à severa regra de dizer constantemente a
verdade, não mais do que aquele que narra está sujeito à obrigação de
permanecer sempre sincero no que pensa e ressente. Em suma, à diferença das
palavras da política ou das ciências, as palavras da literatura ocupam uma
posição marginal em relação à linguagem cotidiana (FOUCAULT, 2010b, p. 263).
REFERÊNCIAS
114
FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo:
Perspectiva, 1978.
_______. “A água e a loucura”. In: Ditos e escritos I. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, [1963] 2010a, p. 205-209.
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KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo/Rio de
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Anah de Melo Franco.
MUZART, Zahidé. “Nota prévia”. In: ALMEIDA, Júlia Lopes de. O Funil
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RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da
sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). 2.ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2008.
RESENDE, Beatriz. “As malcomportadas moças dos anos 1920” In:
CHRYSANTHÈME [VASCONCELOS, Maria Cecília Bandeira de Melo].
Enervadas. São Paulo: Carambaia, [1922] 2019, p. 153-164.
SHOWALTER, Elaine. The female malady: women, madness and english
culture, 1830-1980. Nova York: Penguin Books, 1985.
SILVA, Alexander Meireles da. “O fantástico ignoto de uma rainha”. In:
FREITAS, Emília. A rainha do Ignoto: romance psicológico. São Caetano
do Sul: Wish, [1899] 2020.
SWAIN, Tânia Navarro. "Você disse imaginário?". In: SWAIN, Tânia
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Brasília, 1994, s. n. Disponível em http://www.tanianavarroswain
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ago. 2023.
TELLES, Norma. Encantações: escritoras e imaginação literária no
Brasil, século XIX. São Paulo: Intermeios, 2012.
_______. “Autor+a”. In: JOBIM, José Luiz (org.). Palavras da crítica. Rio
de Janeiro: IMAGO, 1992, p. 45-64.
115
TREVISAN, Gabriela Simonetti. A escrita feminista de Júlia Lopes de
Almeida. São Paulo: Intermeios, 2021.
116
CAPÍTULO VI
117
quanto é possível – apontar para um projeto de medicalização2 social
em ação no período. Escolhemos trabalhar com veículos de
comunicação por compreendermos que eles ajudaram a instituir e
divulgar o “papel modelar” de disciplinarização dos corpos femininos,
além de exercerem um tremendo impacto como formadores de
opiniões (DEL PRIORE, 2006, p. 283).
O filósofo francês Michel Foucault (1986; 2004) rejeitou em seus
escritos a noção de uma essência da loucura. Para o filósofo, cada
sociedade teria inventado a loucura a sua própria maneira, de modo
que o discurso do encarceramento terapêutico do indivíduo
considerado “louco” foi se desenvolvendo como uma estratégia
discursiva que somente conseguiu ganhar um solo de ação prática nas
sociedades modernas. A prisão, a escola e hospício tiveram sua origem
no mesmo momento histórico, tendo como sua forma de organização
social o modelo normalizador em que o dispositivo panóptico atuava
ora criando corpos dóceis, ora excluindo os ditos indesejáveis e/ou
anormais. Ou seja, o solo base da criação das sociedades modernas foi
realizado através de um projeto biopolítico que produz um corte no
social, em que para uns será efetuado a política do “fazer viver” e para
outros a do “deixar morrer” ou “fazer morrer” (FOUCAULT,2005).
O poder psiquiátrico consolidou-se no Brasil no início do século XX
através de instituições como o Hospício Nacional de Alienados (HNA)3,
amparado por leis, decretos, revistas científicas, além de verbas para a
implementação de políticas públicas. Neste período a figura do médico
psiquiatra tornava-se cada vez mais importante para fazer o corte
social entre os ditos normais e os anormais. Em decorrência deste
novo regime de verdade, podemos ver maridos internando suas
esposas de acordo com os preceitos médicos mentais, pais internando
mudado pela primeira vez após a Proclamação da República, quando passou a ser
chamado, em 1890, de Hospício Nacional de Alienados, mudando de nome em 1911
para Hospital Nacional de Alienados. Em 1927, passou a se chamar de Hospital Nacional
de Psicopatas” (CUPELLO, 2013, p. 12).
118
filhos, pessoas se internando por conta própria, e/ou sendo levadas
pela polícia quando eram encontradas nas ruas bebendo em horário
de trabalho e/ou praticando qualquer outra ação vista como
inadequada, como por exemplo, jogar capoeira.
Este trabalho focará no discurso médico destinado a criação do
perfil da mulher “(a)normal”, sendo os médicos psiquiatras e
eugenistas os grandes responsáveis por discutirem e criarem esta
categoria. A profa. Margareth Rago (1997), destacou em seus
trabalhos que introduzir as mulheres desviantes, como as loucas e as
prostitutas na história possibilita uma ressignificação do que
tradicionalmente se considera relevante para a historiografia e
provoca uma inflexão crítica sobre a complexidade dos fenômenos
sociais e históricos no Brasil.
Escolhemos trabalhar com conceito de gênero definido por Joan
Wallach Scott (1994), isto é, como um saber que estabelece
significados para as diferenças corporais percebidas, sendo, portanto,
uma categoria histórica que pode ser usada para analisar as relações
sociais. A eleição do gênero como categoria de análise histórica parte
da compreensão de que sexo e gêneros são construções históricas,
sociais e culturais e de que ele é um elemento fundamental para a
investigação histórica (SCOTT, 1994; RAGO, 1997). Para Scott (1994), as
representações de gênero têm uma historicidade na medida em que a
categoria “homem” e “mulher” não são categorias universais, mas
construções acontecimentais e interligadas às redes de saberes e
poderes contingentes.
4 A legislação de 1903
assinala que alienado é o “indivíduo que, por moléstia congênita
ou adquirida, compromete a ordem pública ou a segurança das pessoas” (apud Cunha,
1986, p. 46).
119
prevenção das doenças, os médicos passaram a não só atuarem para
curar os perfis patológicos que se encontravam dentro das instituições
asilares, mas também e, principalmente, na intervenção social em um
projeto de medicalização da população a fim de evitar que mais
pessoas fossem acometidas por doenças mentais e viessem a
aumentar o número de pessoas internadas nos hospícios.
O deslocamento da atuação médica-mental pode ser analisado na
proliferação de discursos sobre a importância da prevenção das
doenças mentais nas revistas médicas especializadas, como os
Arquivos Brasileiros de Higiene Mental e o Boletim de Eugenia. O primeiro
foi lançado em 1925, sendo instituído como o “órgão oficial da Liga
Brasileira de Higiene Mental”.5 Logo após seu lançamento, a Liga
passou por dificuldades financeiras, que ocasionou a interrupção das
publicações dos Arquivos por três anos consecutivos (1926, 1927, 1928).
Somente em outubro de 1929, com a Liga financeiramente
restabelecida é que a publicação do periódico foi retomada. Já o
Boletim de Eugenia foi fundado no ano de 1929 pelo mais conhecido
eugenista brasileiro, Renato Kehl (1889-1974). O Boletim foi edificado
com os recursos financeiros do próprio Kehl. De acordo com o
historiador Vanderlei Souza (2006), Kehl teria se inspirado em alguns
jornais alemães que divulgavam os preceitos da eugenia, com os quais
mantivera contato durante sua viagem à Europa.
Já para investigar em que medida os modelos de normalidade
feminina propostos pelos psiquiatras, higienistas mentais e eugenistas
brasileiros eram ou não apropriados como normas de gênero
analisaremos também duas revistas leigas de grande circulação na
cidade do Rio de Janeiro. A primeira é a Revista Feminina que foi escrita,
editada e dirigida por Virgilina de Souza Salles. Depois da morte da
criadora, seu marido e filhos ficaram encarregados de continuar com a
publicação mensal da revista. Já a A Maçã era uma revista quinzenal
cuja fundação ocorreu em 11 de fevereiro de 1922 pelo jornalista, crítico,
poeta, contista e memorialista Humberto de Campos (1886-1934).
120
Os periódicos científicos – Boletim de Eugenia e Arquivos
Brasileiros de Higiene Mental – tinham maior circulação no meio médico
de higienistas mentais e eugenistas brasileiros; já as duas revistas leigas
– A Maçã e Revista Feminina tinham maior quantidade de tiragens e
eram amplamente lidas por pessoas pertencentes, principalmente, as
camadas altas e médias da sociedade.
121
Tal como os médicos, nas revistas leigas seus escritores também
debatiam acerca dos novos padrões de sociabilidade encontrados nas
cidades brasileiras. A revista A Maçã valia-se das crônicas e caricaturas
para debater questões que espelhavam verossimilhanças com a vida
social do Brasil da década de 1920. As crônicas contidas na revista
retratavam homens e mulheres ambiciosos e interesseiros, como as
mulheres que se casavam por dinheiro; homens humilhados ou
rejeitados por suas mulheres; e sexo em troca de status social e favores
financeiros. Nesse contexto, a figura do homem desempregado
aparece repetidamente nas crônicas da revista ocupando o lugar do
fracasso, da impotência masculina e da vergonha social. Assim, o
homem normal é o homem de posses, enquanto que a inadequação
social se situa na falência financeira, que deve ser evitada a todo custo,
nem que para isso fosse necessária a traição e a venda de favores.
Podemos perceber como a sociedade capitalista patriarcal é violenta
com os homens que não conseguem o sucesso econômico para prover
as suas famílias.
A mulher casada com um homem desempregado estava disposta
a fazer qualquer coisa para a elevação do status social e econômico da
família, tal como a crônica da “tentadora” Mariazinha, que narra a
história da personagem que vai ao “Banco de Hypotecas e Contratos
Rurais” se encontrar com o banqueiro Bernardo Corrêa Lopes para
pedir-lhe uma vaga de emprego para seu marido que, segundo ela,
“não tinha coragem de pedir a ninguém uma colocação” (MORELLI, A
Maçã, 07/02/1925, III, 157, s/p). Nesta crônica de Giovanni Morelli
desenvolve com a conversa entre o “Capitalista” e Mariazinha:
– Capitalista: Poder, posso; mas não é tão fácil, como parece. Tenho
amigos na diretoria, há uma comissão fiscal, de modo que se torna, se
não impossível, pelo menos um pouco difícil.
– mas o senhor querendo... – aventurou Mariazinha.
Bernardo Corrêa fez um gesto de vaidade satisfeita, balançou-se
devagar na cadeira de mola, e prometeu, num sorriso de homem
poderoso:
– Capitalista: Bom, como a senhora confia tanto em mim, eu vou fazer
uma coisa: o seu marido será nomeado, no princípio do mês, ajudante
de tesoureiro. Está bem assim?
– Mariazinha: Oh, como o senhor é bom! – Exclamou a moça, pondo-se
de pé, e segurando com ambas as mãos a mão áspera, mas bem tratada,
do capitalista.
122
E apertou-lhe os dedos fortes, dando-lhe ao mesmo tempo, o número
do seu telefone, para a devida comunicação” (Morelli, A Maçã,
07/02/1925, III, 157, s/p).
123
De acordo com Laudares, (2010, s/p), "La garçonne" foi como
ficou conhecido o estilo de cabelo liso, curto e com franjinha surgido
depois da Primeira Guerra Mundial, quando as mulheres tiveram que
adotar um corte mais prático devido a falta de cosméticos. Segundo a
autora, o corte ganhou destaque, tornando-se um sinônimo de modelo
de mulher moderna, principalmente, depois do lançamento do livro La
garçonne, de Victor Margueritte, publicado em 1922, no qual a heroína
Monique Lerbier, além de cortar o cabelo curto como o dos homens,
também engravidou e teve um filho sem se casar. Na capa do livro,
Monique Lerbier foi ilustrada com cabelos curtos e usando roupas
tipicamente masculinas – camisa social e gravata.
Entretanto, a tenista Helen Wills se posiciona contra esse tipo de
feminismo, valorizando a manutenção de papéis sociais tipicamente
femininos, considerados por ela como os pilares da família e do
casamento, que, segundo ela, encontraria sua base no afeto humano.
Sobre isso, a tenista assevera ainda o seguinte:
“afeto humano (...) é essa a única causa pela qual tem podido resistir até
o presente a todas as instituições humanas (...) O casamento é o
resultado de um lento desenvolvimento, e a sua existência milenária
demonstra o seu valor (...) É inexato que o homem e a mulher modernos
não possam ser bons esposos. A história desmente essa tese. O
casamento desenvolve-se com a civilização. (…) A cultura e a civilização
encontram-se em plena harmonia com o casamento” (‘Entrevista com
Helen Wills’, Rev. Fem., 01/1930, s/pg).
124
contrário, uma mulher que trabalha para viver pode e deve
compreender o trabalho de seu marido e criar o seu filho de forma a
torná-lo também um bom trabalhador. As mulheres que trabalham
conhecem melhor a vida, e, portanto, podem ser sempre um auxílio de
sua família” (‘Entrevista com Helen Wills’, Rev. Fem., 01/1930, s/pg).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
125
frequentes da boa mulher na Revista Feminina era a mulher burguesa,
educada, mas também obediente à moral católica.
Já na revista A Maçã comparece com frequência a representação
de mulher pecadora por excelência, ardilosa e eminentemente não
civilizada nos termos da higiene mental, principalmente, quando se
encontra casada com um marido sem sucesso econômico. A Eva
moderna, tão frequente nas páginas da revista eram interesseiras,
aproveitadoras e fútil, além de só se interessarem por bens materiais.
Elas representariam o oposto do perfil de mulher normal que
desenvolve o médico psiquiatra Austregésilo (1938, p. 109). O médico
psiquiatra Henrique Roxo defendia que a mulher em um lar com
dificuldades econômicas poderia ser mais susceptível a desenvolver
uma doença mental (ROXO, Arquivos, 1925, I, 2, p.5). Ou seja, o
insucesso econômico do marido poderia ocasionar a psicopatia da
mulher.
Não encontramos evidências de que a linguagem propriamente
do discurso médico mental e eugenista tivesse uma penetração
relevante nas páginas das revistas leigas analisadas e no recorte de
pesquisa sugerido. No entanto, o projeto de medicalização da
população estava em curso no Brasil tendo por base o discurso
religioso, moralista, machista, misógino e patriarcal que coincidiam
com os saberes científicos da época divulgados por médicos
psiquiatras e eugenistas em suas revistas especializadas.
Os saberes médicos mentais, bem como a tradição e/ou o discurso
religioso vão constituindo o perfil modelar da mulher normal/anormal.
Os mais variados campos de saberes dispersos têm em comum a ideia
de uma natureza feminina direcionada aos cuidados e a educação da
prole. São esses saberes que encontramos quando analisamos as
revistas de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro. Podemos
perceber que os diversos campos de saberes colocam a mulher sempre
restritas aos papeis domésticos, naturalizando as tarefas dos cuidados
e da educação das proles, enquanto o espaço do trabalho é reservado
ao lugar do homem, que precisa ser economicamente bem sucedido
para ter uma família saudável.
126
REFERÊNCIAS
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Feminina. Revista Mensal, Janeiro de 1930, ano XVI, n. 188, s/pg.
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feminismo no Brasil. Ed. Guanabara, 2ª Edição, Rio de Janeiro, 1938.
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.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?
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04/10/2011.
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Francisco Alves, 1925.
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ano III, n.
157, s/p.
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Revista Feminina. A Luta Moderna. Revista Mensal, Janeiro de 1915, ano
II, n. 11, p. 4.
ROXO, Henrique. Higiene mental. Arquivos Brasileiros de higiene
Mental. 1925, ano I, n. 2, pp. 1-9.
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Gênero/ UNICAMP, 1994, v.3, pp.11-27.
SOUZA, Vanderlei Sebastião de. A Política Biológica Como Projeto: a
“Eugenia Negativa” e a construção da nacionalidade na Trajetória de
Renato Kehl (19171932). Dissertação (Mestrado em História das Ciências
e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2006.
129
130
PARTE III: NEOLIBERALISMO
131
132
CAPÍTULO VII
INTRODUÇÃO
133
objetiva investigar como a competitividade - elemento de contextos
guiados pelo neoliberalismo (LAVAL, 2019) - se apresenta como
modalidade de controle docente, trazendo para o professor de inglês
do Ensino Médio Integral (EMI) de Sergipe novas formas de existência.
O interesse pelo tema da pesquisa foi despertado a partir da minha
participação no EMI como docente de língua inglesa em um Centro de
Excelência de Sergipe. Por ter uma dinâmica diferente daquela do
Ensino Médio Regular – EMR, o EMI despertou a minha curiosidade
pelas demandas exigidas em seu Plano Político-Pedagógico (SERGIPE,
2016a) como a necessidade de assunção de componentes curriculares
que diferem da formação inicial dos professores em questão.
Entendo aqui que a discussão da educação não pode ser
dissociada de questões sócio-político-econômicas, uma vez que aquela
está situada em uma sociedade neoliberal, capitalista, conservadora e
competitiva. Desse modo, é importante delimitar sob qual prisma
compreendo o alcance da racionalidade neoliberal na educação.
Tomar essa racionalidade neoliberal sob os prismas dos modos de
subjetivação é entender “uma história das práticas nas quais o sujeito
aparece não como instância de fundação, mas como efeito de uma
constituição” (CASTRO, 2009, p. 408) a partir das práticas sociais que
fazem relacionar conhecimentos e poderes como um jogo de verdades
que hierarquiza saberes e sujeitos.
Desse modo, é interesse deste artigo levar em consideração a
agência de desses modelos econômicos no campo da educação que
vigia e cria sujeitos que precisam ser produtivos para a sociedade por
meio da internalização das normas (LAVAL, 2019) e não atua apenas no
campo socioeconômico, nem
134
na educação, a escola deva ser administrada como se fosse uma
empresa. (FÁVERO; TONIETO; CONSALTÉR, 2020). A implantação do
Ensino Médio Integral em Sergipe é justificada a partir da apresentação
de problemas que já existiam há anos baseados em índices como IDEB
(Índice de Desenvolvimento da Educação Básica2), como:
135
Tal projeto biopolítico4 que funciona sob a lógica empresarial de
mercado alcança espaço com o deslocamento de grandes grupos
econômicos para o âmbito educacional, mais especificamente, no caso
desta pesquisa, para a Educação Básica, em uma disputa que atinge a
legislação, contribuindo para implicações que se materializam em
ações no EMI de Sergipe. Daí a justificativa da ampliação da carga
horária dos estudantes na escola, porém este aumento de horas vem
acompanhado de uma reformulação do currículo do Ensino Médio.
Novos componentes são adicionados ao cronograma de aulas e essas
novas demandas são postas como responsabilidade dos professores
aprovados no processo seletivo do EMI.
A concepção do modelo pedagógico e de gestão do EMI em Sergipe
tem como base o Programa Escola da Escolha da rede pública de
Pernambuco. Além disso, o Governo de Sergipe se vale da parceria do
Instituto de Corresponsabilidade pela Educação – ICE – para que a
condução sergipana estivesse em consonância com o seguido
inicialmente no Ginásio Pernambucano, na cidade de Recife, desde 2003.
O ICE é uma instituição privada, sem fins lucrativos, que tem como parceiros o
Instituto Natura e o Instituto Sonho Grande e tem como investidores o Banco
Itaú, a Fiat/Chrysler, a Jeep e a maior farmacêutica do Brasil, a EMS, que atua na
elaboração de projetos educacionais, junto a governos estaduais, como
Pernambuco e Ceará, com o objetivo de levar a visão empresarial para as
políticas educacionais. O ICE foi constituído em fevereiro de 2002, tendo como
diretor-presidente o engenheiro Marcos Antônio Magalhães, presidente da
Phillips para a América Latina (LEITE, 2019, p. 63).
4 Para Foucault (1988, p. 134), “se pudéssemos chamar de ‘bio-história’ as pressões por
meio das quais os movimentos da vida e os processos da história interferem entre si,
deveríamos falar de ‘biopolítica’ para designar o que faz com que a vida e seus
mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um
agente de transformação da vida humana”.
136
somaram-se vinte e quatro escolas na lista de oferta do modelo Escola
Educa Mais. Até o momento, em Sergipe, há dezenove escolas de EMI
na capital Aracaju e cinquenta e três distribuídas entre os demais
municípios sergipanos, totalizando setenta e duas unidades de EMI, de
uma totalidade de cento e setenta e oito escolas que ofertam o Ensino
Médio entre regular e integral, o equivalente a uma porcentagem que
ultrapassa 40% das escolas de Ensino Médio da rede.
O ingresso na docência do EMI em Sergipe precisa obedecer
certos critérios como o fato de ocorrer por meio de seleção pública
entre professores que já participam do quadro efetivo da rede
estadual, composta por duas fases: análise de currículo e entrevista
presencial. Na última, espera-se que o candidato domine as leis e
diretrizes propostas para o EMI e se apresente como um profissional
capaz de “exercer uma influência construtiva, criativa e solidária na
vida do educando”, conforme o Plano Político-Pedagógico do modelo
de educação integral adotado pela SEDUC (SERGIPE, 2016a, p. 18).
Entretanto, para professores que possuem um vínculo na Rede
Pública Estadual e um vínculo na Rede Pública Municipal ou Rede
Privada a participação na seleção é condicionada à carga horária do
vínculo municipal e/ou privado ser em turno contrário ao EMI-SE, que
acontecia nos turnos matutino e vespertino – fato que limitava a
participação de muitos docentes e aumentava a competitividade entre
os pares. Visto que a aprovação de um docente que não faz parte do
quadro de funcionários daquela unidade de ensino condiciona a
diminuição de carga horária naquele posto para o docente que estava
lotado anteriormente à implantação do EMI, percebe-se que o modelo
pedagógico é organizado biopoliticamente de tal modo que, dentro do
mesmo espaço, professores do EMI e professores do Ensino Médio
Regular não comungam das mesmas necessidades e racionalidades,
como se tivesse instaurado um ambiente de competitividade entre os
professores mesmo que de forma velada.
Essa configuração passou a sugerir a compreensão de uma
regulação ‘espontânea’ de aspectos de subjetivação, promovida pelo
Programa Escola Educa Mais – programa do ensino médio integral em
Sergipe –, submetida ao corpo docente do EMI, cuja intensidade das
mudanças poderá ser identificada no decorrer deste artigo. Daí, surgiu
o interesse em investigar quais valores e atitudes eram compartilhados
por colegas docentes de outras unidades de ensino que ofertavam o
137
EMI, bem como em que medida os documentos oficiais do EMI
regulamentavam o que considero ser uma racionalidade neoliberal.
Entender a racionalidade neoliberal sob os prismas dos modos de
subjetivação é entender “uma história das práticas nas quais o sujeito
aparece não como instância de fundação, mas como efeito de uma
constituição” (CASTRO, 2009, p. 408) a partir das práticas sociais que
fazem relacionar conhecimentos e poderes como um jogo de verdades
que hierarquiza saberes e sujeitos.
Quando se fala em racionalidade, fala-se necessariamente em
ação orientada racionalmente para determinado fim em uma
adequação eficaz das práticas de governamentalidade. No entanto,
“nenhuma forma dada de racionalidade é a razão” (CASTRO, 2009, p.
197) porque outras formas de racionalidade poderiam ser possíveis por
serem acontecimentos discursivos (FOUCAULT, 2013a) que, tomados
em perspectiva genealógica, emergiram em um determinando tempo
e espaço produzindo um efeito de verdade que determina aquilo que
somos, fazemos e pensamos em nossa atualidade.
Daí, não é tarefa desta pesquisa questionar como foi possível a
sua aceitabilidade ou a busca de um caminho que aponte para a
verdade – num caráter binário e maniqueísta –, mas encarar o status
quo em uma postura que se distancia daquilo que o naturaliza para
compreender o agir do neoliberalismo na formação ontológica dos
seres. O meio pelo qual isso é possível é pelo fato de o neoliberalismo
possuir “uma notável capacidade de autofortalecimento” (DARDOT;
LAVAL, 2016).
Para este estudo foram necessários aportes teóricos que
excedem a Linguística Aplicada (ZACCHI, 2016) – campo em que estou
inserida – para fundamentar sociopoliticamente questões históricas
levantadas durante o texto, como o ensino integral e o neoliberalismo.
O estudo se dá por meio de uma pesquisa qualitativa, que utiliza os
documentos de implantação e manutenção do EMI em Sergipe
(SERGIPE, 2016a; SERGIPE, 2016b), questionário e entrevistas semi-
estruturadas com professores de inglês em exercício no modelo
pedagógico em questão reunidos em um grupo focal para análise de
narrativas e triangulação de dados5.
138
Assim, busquei reconhecer a competitividade como característica
da agenda neoliberal na legislação e no ato de narrar dos docentes
participantes. Tal ação resultou no reconhecimento de novos modos
de subjetivação pelas condições de possibilidade (FOUCAULT, 2013a)
não apenas do modus operandi, mas de resistência em uma Educação
Menor (GALLO, 2002) que abre espaço para intercâmbio entre
professores e pesquisadores, justificando a relevância desse estudo.
Para tanto, este artigo se organiza do seguinte modo: na seção a seguir
discuto por meio da triangulação dos dados e teorias as condições de
possibilidade (FOUCAULT, 2013a) para a competitividade no EMI como
modalidade neoliberal de controle docente ser posta em prática; a
seção 3 tem como foco a ilustração de agências resistentes por parte
dos professores de inglês do EMI; e a última seção traz as
considerações finais deste estudo.
All in all
It's just another brick in the wall
All in all
You're just another brick in the wall6
(Another brick in the wall (1979) – Roger Waters)
6“Em suma, é apenas mais um tijolo no muro. Em suma, você é apenas mais um tijolo
no muro” (Tradução minha).
139
seleção de professores dentre os que já tinham o sentimento de
segurança em um emprego que prometia estabilidade, fruto de
concurso público, a fim de atingir a qualidade na educação pública que
refletiria em um aumento dos índices de avaliação.
140
Não é incomum encontrar professores do EMI-SE compartilharem
que as experiências de chegada ao novo posto de trabalho
aconteceram sob disputa, visto que a nova configuração deslocaria a
ordem anterior de lotação docente – privilegiando aqueles que foram
aprovados na seleção do EMI. As falas a seguir surgiram durante a
discussão do grupo focal7 sobre a chegada dos professores em seus
postos de atuação no EMI-SE quando as unidades de ensino atuais não
eram suas lotações prévias.
Assim, só para ilustrar essa questão, para você ver o nível de conflito que estava
tendo na escola o professor de inglês que trabalhava lá, ele tinha feito o... tinha
participado do edital do integral, ele tinha sido aprovado, só que ele tinha sido
aprovado para outra escola. E quando convocaram tudo, ele descobriu, ele
percebeu que no edital tinha a escola que eu trabalho, que ele trabalhava. Aí ele
disse “não, se eu passei pro integral eu quero ficar na escola que eu trabalho e
vou trabalhar no integral”. Aí o Estado disse “não, porque a gente já convocou
outro professor e tudo mais, tal”. E eu cheguei exatamente no dia, na hora que
ele tava recebendo a notícia da diretora que também tava puta da vida! Porque
ela também ia sair, ia chegar um diretor novo. Então, tava todo mundo puto, e
eu dando bom dia, sorrindo. “ahh, porque você...”. “Não, eu não tenho culpa
nenhuma, me mandaram para cá, eu só quero assinar e conhecer a escola, de
boa”. “Ahh, mas...”. Aí eu disse “não, eu não tenho culpa nenhuma não, certo?
Não me bote nesse bolo não que eu vim aqui tranquilo”. E assim, foi muito,
muito tenso (PARTICIPANTE 1, 2022)8.
Mas foi muito louco isso que cês [vocês] tão falando porque comigo também foi
esse caso que vocês estão falando. Quando eu cheguei, tava tendo uma guerra
na escola por essas mesmas razões. E... é... quando eu cheguei era de um jeito
que os professores faziam a caveira da gente pros alunos, pros alunos ficarem
com raiva da gente (PARTICIPANTE 2, 2022).
7 O grupo focal foi composto por mim e outros sete professores de inglês lotados em
unidades de ensino distintas que ofertam o EMI. Por conta da ética em pesquisa, suas
identidades são preservadas de modo a atingir o objetivo deste artigo sem causar
danos aos envolvidos. Os encontros aconteceram em cinco momentos de maneira
remota durante o ano de 2022.
8 As transcrições das falas dos participantes são trazidas durante toda esta pesquisa
141
serem aceitos, característica do programa político neoliberal descrito
por Bourdieu (1998, p. 137) como programa de destruição metódica
dos coletivos.
Desse modo, a seleção de professores para participarem no EMI-SE
pôs a classe de docentes da rede pública estadual em uma espécie de
competição para definir quais receberiam o maior salário por aumentar
sua carga horária de trabalho, quais teriam sua lotação garantida em
uma única unidade de ensino – situação pouco comum para professores
de inglês por conta da baixa carga horária semanal nas turmas – e quais
seriam classificados hierarquicamente por seu desempenho na
entrevista e na prova de títulos feitas pela SEDUC. É importante salientar
que essa lógica é alimentada não apenas pelas instâncias superiores à
escola, mas também dentro dela, como em um grande projeto
biopolítico que segrega e precariza aqueles que não corroboram as
novas definições, vide situação vivida pela participante 3.
O diretor falou hooje, hoje [diz em tom de ênfase], cheguei, eu dei aula à
tarde hoje, que eu não dou aula no integral pela manhã hoje, é minha
“manhã de folga” [faz sinal de aspas com as mãos], mas à tarde eu dei. Aí o
diretor chegou na sala pra dizer “olha, a sala dos professores, dos
professores do integral, [diz com tom de ênfase] fica pronta essa semana”.
Aí eu já olho pra cara dos professores do regular, tipo “que é que eu tô
fazendo aqui? Onde é que eu amarrei meu jegue?” [diz com a mão na cabeça].
Meu Deus... (PARTICIPANTE 3, 2022).
142
Na minha escola também foi muito tenso, compartilhando do que [nome de
outro participante] falou. Na escola em que eu também faço parte, que é o
[nome de escola], lá também teve muita resistência e teve a negação da
implantação, e mesmo com a negação dos professores com a implantação,
houve a implantação. Então, é... teve envolvimento do Ministério Público, e foi
assim... eu não sabia o que tava rolando. E aí, quando eu cheguei foi muita briga,
muita confusão, eu via assim... era muito complicado mesmo. Os professores
que já estavam lá com muita resistência com quem chegou. E os professores que
já eram da casa que fizeram a seleção, por sobrevivência, né? Eles pensavam “se
eu não fizer a seleção, outra pessoa vai fazer e eu que vou voar e ter que
procurar outro lugar”. Então, tinha esse conflito. E pros que não fizeram a
seleção, eles são os traidores. “Poxa, como é que tava todo mundo lutando pra
não ter e agora vocês estão no negócio?” (PESQUISADORA, 2022).
143
Bom, na minha escola é completamente dividido, muito mesmo. E ao contrário
do que todos falam, do que todos falaram aí, é o pessoal do integral que se
recua, sabe? Eu não sei se é porque, apesar de nós termos alguns professores do
regular que continuaram na escola, são poucos, mas os que ficaram, assim, são
muito barulhentos, gostam de falar muito alto. Eu, inclusive, né? Então, assim, a
gente sempre tem lanche, uma professora combina, leva bolo. Toda semana a
gente faz um lanche, toda sexta-feira. Então, assim, nós somos um grupo bem
unido e amigos. E era um grupo maior, né? Hoje tá bem menor, mas ainda assim
é a maioria porque o regular tem muitos professores porque são muitas turmas.
Então, eu sinto que os professores do integral eles ficam meio tímidos, sabe?
Eles não vão pra sala dos professores no intervalo, ficam lá pelo laboratório de
informática, a professora de português fica pela biblioteca. Alguns não chegam
nem a ir pra sala dos professores, eu não sei se ficam na sala de aula ou se ficam
na coordenação. Mas, assim, são poucos os que ficam lá tendo conversa com os
professores do regular, o que eu acho bastante chato. Às vezes eu até perco
notícias do integral porque eles estão reunidos com a coordenadora na
biblioteca e eu tô na sala dos professores com os professores do regular, e aí eu
acho que eles esquecem que eu sou do integral e que tava rolando uma mini
reunião (PARTICIPANTE 4, 2022).
144
programa alimenta a ideia de divisão entre os pares. No excerto
abaixo, a participante lamenta o fato de não se sentir parte de nenhum
dos grupos de professores – 1. Grupo de professores que assim como
ela já compunham a escola (mas não aderiram ao EMI) e 2. Professores
do EMI (visto que ela não concorda completamente com o desenrolar
das situações, definições e interações).
Mas por exemplo, é... teve a culminância da eletiva9, né? E nós precisávamos de
alguns alunos que eram do regular, mas que a gente sabia, eu principalmente,
eu que dei a dica já que conheço os alunos quase todos. Aí eu falei “oh, tem
alguns alunos que são muito bons de fazer vídeo, então, eles podem auxiliar os
meninos da eletiva” porque a culminância era fazer um vídeo. O tema da nossa
eletiva era fato ou fake, notícias falsas e tal. Então, eu precisei de alguns alunos,
aí eu fui falar com o professor de uma hora regular porque o aluno era de uma
turma regular “professor, cê pode me ceder esse aluno?” “não, se ele não
assistir à minha aula, ele vai perder ponto”, eu acho que era dia de alguma
atividade valendo nota. Eu chega fiquei assim... eu parei, arregalei o olho e fiquei
tipo “não?”, aí ele “não”. E ele ainda falou assim “sua eletiva, você faz na sua
eletiva”. Eu falei “pow, beleza...”, chega fiquei sem graça porque eu não
esperava assim, tão na lata, tão gratuitamente, tão ofensivo... mas é isso assim.
Aí [...] eu fiquei tipo “pow, caraca, bom saber, bom saber”. Então, assim, são
nesses momentos que a gente vê que o pessoal do regular tá muito magoado,
eu acho, ferido com o integral. Porque até as brincadeirinhas “ah, você é
integral”, tipo, eu tô na sala dos professores e alguém conta uma piada, aí eu
começo a rir, aí um professor olha pra mim “você não pode rir não que você é
do integral”, aí eu rio, todo mundo ri, mas eu sinto que no fundo tem um fundo
de verdade (PARTICIPANTE 4, 2022).
145
demanda um uso intensivo dessas práticas que segregam e
hierarquizam os indivíduos.
Assim, os envolvidos usufruem da arquitetura da escola para
legitimar a divisão. Como reação ao desenvolvimento da ideia de que
o tempo dos professores do Ensino Fundamental e Ensino Médio
Regular é perecível no espaço do EMI, os docentes que não compõem
a equipe do integral são reativos a ações que possam simbolizar sua
perda de poder, conforme a narrativa da participante 4 sobre a
negação do professor do regular em permitir a ausência do aluno em
sua aula para atender a uma demanda do integral, seu algoz.
“O importante é garantir o meio no qual essa lógica formal se exerce,
e não mecanismos diretos de aliciamento subjetivo” (STIVAL, 2018, p.
163), logo, a construção da ideia do professor de inglês inseguro começa
com uma implantação do EMI com a hierarquização dos envolvidos entre
aqueles que continuarão lotados na escola, por isso, bem sucedidos, e
aqueles que precisarão procurar um novo posto de trabalho quando do
aumento de turmas do EMI-SE com o passar dos anos.
A entrada da participante 4 no EMI foi estabelecida sob um
sentimento de inquietude do desdobramento dessa modalidade em
sua escola e, consequentemente, em sua lotação de trabalho. Apesar
de ter havido outras oportunidades para a professora aderir ao EMI em
outras unidades de ensino, assim como seus colegas anteriores, ela
permaneceu no regular por motivos outros que faziam valer a pena
sua rotina anterior. Apenas quando o modelo é implantado em seu
espaço, ela movimenta razões para justificar sua adesão.
A fala da participante 4 condiz com as ideias de Marx e Engels
(1998, p. 43) de que “tudo o que é sólido desmancha no ar” por
descrever como a fluidez e a transitoriedade própria da modernidade,
sob o capitalismo, atingem suas relações. A ideia passada de relações
fixas e imobilizadas precisa dar lugar à mobilidade com a instauração
de uma nova realidade. No entanto, importa considerar que não sem
resistência. Assim, a educação pública, no mundo moderno, carrega a
repercussão conflitante da tradição – que é incorporada na disciplina e
na hierarquia (FOUCAULT, 2013b) –, mas também das transformações
do presente – como a agenda neoliberal que alcança uma
racionalidade pedagógica. A modernidade é caracterizada, então, pela
convivência e a exposição a essa repercussão, das quais os
participantes desta pesquisa não escapam.
146
AGÊNCIAS RESISTENTES NO EMI DE SERGIPE
147
sempre discutir a relação entre os envolvidos e o contexto em que eles
se inserem.
Ainda que regidos sob documentos construídos sem sua consulta
por aqueles que agem no campo da macropolítica, configurando,
assim, a Educação Maior – “aquela dos planos decenais e das políticas
públicas de educação, dos parâmetros e das diretrizes, aquela da
constituição e da LDB, pensada e produzida pelas cabeças bem-
pensantes a serviço do poder” (GALLO, 2002, p. 173) e, neste caso,
incluo os documentos que desenham o fazer pedagógico e da gestão
do EMI de Sergipe –, mesmo sendo acompanhados por parceiros
externos que não são geridos pelo poder público que investigam suas
práticas como se procurando falhas para penalizá-los – tal qual o
funcionamento de uma empresa –, os professores de inglês do
Programa Escola Educa Mais não podem ter suas formas de existência
definidas como fixas ou limitadas, nem podem dar como previsíveis
seus passos, como em um campo sem liberdade.
148
de Gallo (2002). A participante 5 luta contra as dinâmicas desigualitárias
que são impostas à escola pública em sua micropolítica, nas suas ações
cotidianas, sem necessariamente anunciar o futuro, mas possibilitando
o futuro a partir de suas escolhas políticas (NEGRI, 2001).
Assim, eu acho que essa parte realmente chata de você ter que cobrar professor
por demandas e convocar pra essas questões burocráticas assim de cobrança.
Eu começo o processo de cobrança, quando eu vejo que eu não consigo mais,
assim eu converso com ele [o coordenador pedagógico] e ele toma as rédeas, né?
A gente tá vendo muito essa questão do diário eletrônico, só para colocar como
exemplo. Então, ele coloca a cobrança lá “gente, nós estamos com 70% do diário
preenchido e a gente precisa chegar a 80”. Aí, eu vou lá, ele me passa quem são
os professores da minha área que estão com maior defasagem. Aí, eu converso
pessoalmente com cada professor, depois eu pego o feedback dele porque
quem tem o feedback do diário é ele. “Participante 6, Fulano foi para frente,
Ciclano não mudou em nada”. Aí, eu disse “Pronto, você sabe que esse que não
mudou em nada quem vai conversar é você”. Eu não converso. E, assim, eu me
coloco muito assim com os meus colegas de área, eu me coloco muito como
parceiro, né? Essa questão de “ah, porque você é coordenador de área”, e,
assim, a gente teve discussões com a primeira coordenadora pedagógica, a
gente teve discussões homéricas porque eu visualizo a coordenação de área
149
como um cargo a mais porque não tá recebendo nada a mais por isso. Então,
essas demandas burocráticas quem tem que assumir é o coordenador
pedagógico. Então, assim, eu brigava muito por isso (PARTICIPANTE 6, 2022).
150
luta, em uma ramificação política que estabelece cadeias e elos que
abrem espaço para questionamentos mesmo em espaços que
privilegiam a tradição, a narrativa do participante 6 é uma ilustração
deste conceito.
Uma das características da Educação Menor de Gallo (2002) é o
valor coletivo adquirido em todo ato do campo de atuação do
professor militante. Para este aspecto, não é possível haver atos
isolados que não impliquem no coletivo. As práticas dos professores
militantes interferem rizomaticamente nas práticas de todos os
envolvidos no fazer do EMI de Sergipe, sem a pretensão de atingir um
fim ou uma unidade, pois cria sempre novas ligações, novas formas de
pensar e agir na educação. A multiplicidade produzida pelos
participantes desta pesquisa foge da singularidade homogeneizante e
limitadora porque não impõe soluções para nenhum dos problemas
apresentados pela lógica neoliberal reconhecidos no Programa Escola
Educa Mais, mas, ao contrário, busca
concentrar-se naquilo que os homens fazem e na forma pela qual eles fazem é
observar a liberdade de movimento e crítica que permite modificar as regras do
jogo (FOUCAULT, 2010e, p. 1395 [2000, p. 349-50]). É isso o que o leva a se
perguntar como, nas lutas e movimentos que se opõem aos poderes, não há
apenas “resistência”, mas também invenção e, primeiramente, invenção de si
como outro, quer dizer, subjetivação (LAVAL, 2020, p. 148).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
151
Ainda que a competitividade enquanto modalidade de controle
docente exista por estarmos expostos a uma lógica biopolítica
neoliberal, tal relação não é dada sem enfrentamento. As ilustrações
e análises de falas de participantes apontam que por mais que as
subjetivações consonantes ao poder macropolítico sejam
privilegiadas na dinâmica do modelo pedagógico e de gestão, são as
agências de resistência que evidenciam a relatividade do sistema
dominante, pois as realidades narradas apresentaram as
convergências quanto às características do modelo do
neoliberalismo pedagógico, mas, em adição, apresentaram a
multiplicidade de subjetividades construídas e negociadas a partir
dos contextos micropolíticos de cada unidade de ensino.
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154
CAPÍTULO VIII
– lucmoreira@yahoo.com
3 Doutora em Administração, professora efetiva no Departamento de Ciências Sociais
155
descritos por Foucault, apresentam, por um lado, uma possibilidade de
desnaturalizar o status quo, de uma sociedade descuidante, e, ao mesmo
tempo, a esperança de se vislumbrar modos de vida outros.
Palavras-chave: Neoliberalismo; Subjetividades; adoecimento no/do trabalho.
INTRODUÇÃO
156
história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres
humanos tornaram-se sujeitos.” (FOUCAULT, 1995, p. 231).
Importante mencionar que as análises de Foucault sobre o
neoliberalismo têm suas limitações, em especial, porque tendo
falecido em 1984, o autor não vivenciou os desdobramentos e o
acirramento da racionalidade neoliberal, por isso, faz-se importante
recorrer a autores contemporâneos com Dardot, Laval e Han, que
partem das análises empreendidas por Foucault e procuram
diagnosticar o momento atual. A este respeito, Eduardo Jardim (2013,
p. 7), no prefácio à quarta edição de “A verdade e as formas jurídicas”,
conferências proferidas por Foucault no Brasil em 1973, ressalta que
Foucault não chegou a vivenciar a segunda onda de mudanças
políticas, iniciada aproximadamente no início dos anos 1990, na qual
houve a “incorporação pelo sistema político, da maior parte das
reivindicações das décadas anteriores que, com isso, perderam sua
força de contestação”, em outras palavras, foram cooptadas em prol
da condução das condutas.
Foucault ocupou-se do funcionamento do poder em
determinados momentos socio-históricos e em como o poder ou,
melhor dito, os micropoderes, as relações de saber-poder incidem nos
corpos e nas mentes dos sujeitos. Para o autor, as relações de poder,
imbricadas com o saber, são um conjunto de práticas que agem sobre
um campo de possibilidade de ações do sujeito, induzindo, separando,
facilitando, dificultando, impedindo, motivando determinadas
condutas, aquelas demandadas pelo contexto sócio-histórico. Além
disso, é importante salientar que, enquanto no Marxismo há um poder
dominante e uma classe dominada, Foucault, embora não descarte
situações de dominação, advoga a existência de micropoderes, que
todos exercem e que sobre todos são exercidos, em diversas
instâncias sociais, como a família, a escola, a religião entre outros e,
com isso, expandindo o conceito de política para além do estritamente
relativo ao Estado, ao governo.
E se há micropoderes, há também microrresistências, ou seja, as
estratégias de resistência são inerentes às relações de poder: “onde
há poder há resistência” (FOUCAULT, 1988, p. 91). Assim como o poder
está em toda parte, o mesmo ocorre com as resistências, logo, ambos
estão imbricados, pois, “tanto a resistência funda as relações de
poder, quanto ela é, às vezes, o resultado dessas relações” (REVEL,
157
2005, p. 74). Entende-se por estratégias de resistência “a possibilidade
de criar espaços de lutas e de agenciar possibilidades de
transformação” (REVEL, 2005, p. 74), de lutar contra as formas de
subjetivação às quais estamos sujeitos.
Ainda sobre as relações de poder, Foucault (1995, p. 235) propõe
a investigação das formas de resistência e, geralmente, pode-se dizer
que existem, isoladas ou misturadas, três tipos de lutas:
158
práticas” (FIMYAR, 2009, p. 38). Isso é: governamentalidade
“identifica a relação entre o governamento do Estado (política) e o
governamento do eu (moralidade), a construção do sujeito
(genealogia do sujeito) com a formação do estado (genealogia do
Estado)” (FIMYAR, 2009, p. 38). Ou ainda, “os estudos de
governamentalidade examinam também as relações entre as formas
e as racionalidades de poder e os processos de subjetivação –
formação de sujeitos/cidadãos governáveis – e a subjetificação –
formação da existência individual” (FIMYAR, 2009, p. 37).
Ampliando a discussão sobre poder, Han (2019, p. 16) apresenta a
eficiência do poder orgânico sobre o causal, aquele que não impele o
sujeito a escolher, mas que está introjetado em suas ações. Para o
autor, para chegar ao poder absoluto, alcançado quando liberdade e
coerção coincidirem, não se deve utilizar a violência, mas a liberdade
do outro. Trata-se do funcionamento da nova razão do mundo, como
Dardot e Laval (2016) denominam o neoliberalismo, que conduz as
condutas, ou seja, nos constituímos/somos constituídos onde, quando
e de formas que menos esperamos.
A “nova” racionalidade neoliberal, que surgiu a partir dos anos
1980 em resposta à crise econômica e social, influenciou as relações de
trabalho, sobre as quais falaremos na próxima seção. Conforme Han
(2018, p. 40), o corpo deixa de ser a figura central como força
produtiva, como preconizado na sociedade disciplinar biopolítica,
passando à otimização de processos psíquicos e mentais para o
aumento da produtividade, marcando a virada para a psicopolítica. “
“O corpo dócil” proposto por Foucault já não tem lugar no processo
de produção”, uma vez que o regime neoliberal de dominação
apropria-se das tecnologias do eu, que são formas muito mais
eficientes de dominação e exploração.
159
A racionalidade neoliberal utiliza as emoções como um dos
recursos para obter mais produtividade e desempenho,
diferentemente da racionalidade da sociedade disciplinar, atrelada ao
liberalismo clássico, que atinge seu limite a partir de um determinado
quantum de produção, já que atua de forma rígida e inflexível, sendo
sua racionalidade calcada na objetividade, na universalidade e na
estabilidade. Por outro lado, na racionalidade neoliberal, a emoção,
associada ao sentimento de liberdade, está atrelada ao livre
desdobramento individual, sendo subjetiva, situacional e volátil. “Ser
livre significa deixar as emoções correrem livres” e o capitalismo das
emoções faz uso dessa liberdade (HAN, 2018, p. 65).
Como a economia neoliberal reduz cada vez mais a
continuidade, fomentando a instabilidade, permite impulsionar a
transformação emotiva do processo de produção. “No lugar do
management racional, surge o management emotivo. O manager atual
se despede do princípio do agir racional e se parece cada vez mais com
um treinador motivacional, sendo que “a motivação está ligada à
emoção” (HAN, 2018, p. 67, grifos do autor). Daí, decorre, entre
outros, o surto de aconselhamento, hoje, chamado coaching, já
sinalizado no final da década de 1990 pelo sociólogo Bauman, surto
este destinado a “servir diretamente às escolhas dos consumidores,
supostamente experientes, tendo em vista, antes, o treinamento de
‘consumidores perfeitos’, o desenvolvimento até o auge das aptidões
exigidas pela vida do consumidor e selecionador” (BAUMAN, 1998, p.
225), ou seja, daqueles que procuram, a todo custo, ter experiências
sempre novas e acumular sensações diferentes.
Conforme Dardot e Laval (2016), para fortalecer ainda mais o
capitalismo, governo e empresas começaram a implementar duas
técnicas:
1) O governo trabalha com a suposta liberdade de escolha dos
indivíduos. A finalidade aqui é fazer com que cada indivíduo pense que
não há outra forma de realidade senão ganhar pela melhor escolha,
valorizando assim seu capital individual em um universo, no qual a
regra geral é a acumulação. Vale mencionar que esta lógica
empresarial, da competição, da meritocracia, da auditoria também nos
constitui enquanto pesquisadores, docentes e discentes.
2) A expansão da lógica de mercado e a decorrente implementação
da gestão neoliberal nas empresas, influenciam a organização e os/as
160
trabalhadores/as a buscarem resultados cada vez maiores. Sistemas de
estímulos e punições têm sido criados para fazer com que os/as
trabalhadores/as atinjam ou superem as metas de valor acionário da
empresa. Assim toda uma lógica voltada para o valor acionário tomou
forma em “técnicas contábeis e avaliativas da gestão da mão de obra
cujo princípio consiste em fazer de cada assalariado uma espécie de
‘centro de lucro individual’” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 226).
Este é o princípio da gestão que objetiva conduzir o/a
trabalhador(a) a interiorizar as coerções exercidas pela empresa em
prol da rentabilidade financeira e, ao mesmo tempo, introjetar
também nos/as colaboradores/as as novas normas de eficiência
produtiva e desempenho individual, fazendo com que sintam que
estão trabalhando por/para si mesmo, investindo em seu capital
humano, sempre visando um produzir mais, em busca de um suposto
gozo total, falta esta constitutiva, já apontada pelos estudos freudo-
lacanianos, de que a racionalidade se apropria para mobilizar “nossos”
interesses, a qual nunca pode de fato ser preenchida, pois há sempre
uma nova meta a alcançar, um novo produto a adquirir, outro curso de
aperfeiçoamento a fazer, entre outros.
As técnicas empregadas pela racionalidade neoliberal para
conduzir as condutas, de acordo com Dardot e Laval (2016), levam o
sujeito a pressupor que deve traduzir contabilmente suas ações,
monetizar suas escolhas e avaliá-las através de indicadores
comparativos (inseridos pelo governo e pela empresa), sendo o
próprio sujeito responsável por suas recompensas e punições, e
também pelas recompensas e punições do governo e da empresa.
Trata-se de autorresponsabilização do sujeito, o que desonera o
Estado de muitas de suas responsabilidades como, por exemplo, as
para com a saúde e a educação. Segundo os autores, tudo e todos têm
um valor intrínseco e cabe ao sujeito a gestão, cada vez mais lucrativa,
desses relacionamentos. O que era criticado no modo de produção
capitalista parece ter se tornado um modo de (re)produção social.
A este respeito, Bauman (1998) alerta para o fato de que o único
modelo que parece existir é o de “apoderar-se de mais, e não existem
normas, exceto o imperativo de saber aproveitar bem as cartas de que
se dispõe” (BAUMAN, 1998, p. 57). E os consumidores falhos?
“Aqueles cujos meios não estão à altura dos desejos, e aqueles que se
recusaram a oportunidade de vencer [...] são exatamente a
161
encarnação dos ‘demônios interiores’ peculiares à vida do
consumidor” (BAUMAN, 1998, p. 57). Em outras palavras, a tal radical
liberdade do mercado levou ao progressivo desmantelamento do
estado de bem-estar social.
Ademais, segundo Gaulejac (2007), no universo da competição
generalizada, não basta mais ser rentável, mas estar à frente de todas
as outras pessoas. Não se trata mais de ser produtivo, mas de eliminar
os concorrentes. Com a banalização da competição como modelo de
relações sociais, foi criada uma sociedade que simula um terreno de
jogo, naturalizando-se a ideia de guerra econômica. Nesse contexto, o
sujeito-trabalhador se entende e se gere como empresário de si,
aquele que investe em si mesmo, que acredita fazer escolhas por/para
si, que se autogoverna na busca pela satisfação e pelo sucesso
pessoais.
Na sequência, abordaremos a sutil conduta das condutas pela
mobilização dos desejos dos/nos sujeitos, pela atuação na falta que
nos constitui. Antes, vale destacar que a chamada terceira fase
foucaultiana tem pontos de convergência com a Psicanálise, em
especial, a de base freudo-lacaniana, embora o próprio Foucault nunca
o tenha explicitamente admitido (BIRMAN, 2000).
Importante mencionar que a interlocução na obra de Foucault,
que não se dá apenas com a Psicanálise, mas também com outros
saberes, outras formações discursivas, incluindo as não-científicas, às
vezes, de forma velada, outras, de forma escancarada, “transformou-
se em parte integrante da renovação do trabalho filosófico que
[Foucault] se propunha realizar” (BIRMAN, 2000, p. 27). Nessa esteira
interlocutiva, na seção seguinte, continuamos o diálogo com o filósofo
coreano Han e trazemos autores que discutem temas relativos ao
trabalho, às relações de trabalho, ao/à trabalhador(a), na interface
com questões relativas à Psicanálise.
162
introduzindo a era do esgotamento, por meio da exploração da psique.
Eis o que procuraremos discutir brevemente nesta seção, focando em
especial o mundo empresarial, sem perder de vista que: 1) a lógica
empresarial permeia a sociedade de modo geral, nosso cotidiano na
família, nas instituições de ensino etc.; 2) que as barreiras entre o
profissional e o pessoal são tênues e essas faces de nossas vidas,
juntamente a outras, como a familiar, estão imbricadas.
Atualmente, há a promessa de infinidade para os desejos5 e para as
conquistas e um repúdio, um medo dos fracassos. A crescente
individualização da sociedade fomenta a “autonomia”, incentivando os
indivíduos a priorizar seus “próprios” desejos, em especial os de carreira
e de ascensão nas organizações. Por outro lado, as empresas assistiram à
ampliação do seu poder “ancorada em uma dupla raiz: na dependência
econômica dos indivíduos e, mais revelador, em sua dependência psíquica
e social” (BENDASSOLINI, 2007, p. 11), sendo as empresas tidas como
lugares de pertencimento e espaços de convívio, nos quais os sujeitos são
colaboradores, não mais funcionários ou empregados.
Para Gaulejac (2007), o desejo é ressaltado a todo o momento,
seja pela busca do sucesso, pelo gosto do desafio ou por
reconhecimento e meritocracia. O desejo é exaltado por um ideal do
ego, tornando-se um lugar de realização de si mesmo. “Então, o
discurso gerencial é um discurso do princípio do prazer”
(BENDASSOLINI, 2007, p. 15). A organização sabe que em cada ser
humano existe uma angustia original derivada das primeiras interações
com os pais e que conduz à necessidade de ser protegido. Quando ela
se apresenta como mantenedora, fornece a cada sujeito os elementos
de segurança que podem saciar seu desejo de completude, exigindo
em troca seu dinamismo e sua submissão. Ao fazer isso, ela tende a
infantilizá-lo (ENRIQUEZ, 2002), ou em termos foucaultianos, a
conduzir sua conduta de forma subreptícia.
O modelo atual de organização funciona, conforme Enriquez
(2002), no interior de um campo passional e pulsional, que leva o
5 Desejo aqui entendido como “uma intenção de reencontrar os signos das primeiras
experiências de satisfação da infância, [que] reenvia a um passado e a uma história
individual. [...] Se inscreve em primeiro lugar no passado e naquilo que não é atual; em
segundo lugar no fictício, no ilusório e no fantasmático; em terceiro lugar no individual
e no subjetivo. [...] É evocado em outras formações além dos comportamentos. [...]
Ele está presente no fantasma, no sonho, nos sintomas psiconeuróticos [...]”
(DEJOURS; ABDOUCHELI, 2015, pp. 36-37).
163
sujeito a assumir o sucesso ou fracasso das empresas na busca de suas
metas idealizadas. Para evitar o fracasso, que geraria vergonha e culpa,
cria-se uma busca exacerbada e angustiante pelo resultado. Segundo
Dejours (1998), a exploração do sofrimento faz surgir uma
agressividade reativa que, quando canalizada para o trabalho, faz
aumentar a produtividade. Porém, dependendo do nível de
agressividade, das características ambientais e do desenvolvimento da
estrutura psíquica de cada um, as pessoas podem reagir de forma
adversa, voltando a agressividade contra si mesmas.
O indivíduo sente-se preso a um ciclo de dependência psíquica
característica de laços amorosos: projeção, introjeção, idealização,
prazer e angústia. Os conflitos advindos desse ciclo podem desdobrar-
se em insegurança, depressões nervosas, esgotamento profissional e
perturbações psicossomáticas. Trata-se de uma forma poder difícil de
ser contestada, uma vez que opera na interioridade (GAULEJAC, 2007)
e da qual nem sempre se está “consciente”.
A satisfação e o sofrimento pertinentes à busca incessante de alto
desempenho imposto pelas empresas foram expressos por Gaulejac
(2007, p. 192) através da comparação da cultura do alto desempenho
a Janus6, com “uma face brilhante do lado da eficácia e outra sombria
do lado das consequências para aqueles que tiverem dificuldade para
a ele se adaptar, ou que dele são excluídos”.
Verifica-se que o sofrimento, pertinente ao ambiente competitivo e
ao fomento constante ao alto desempenho podem culminar no
adoecimento psíquico do sujeito. Gaulejac (2007, p. 218) descreve em sua
obra, de forma sucinta, três sintomas: 1) a depressão, que se tenta
disfarçar para não macular a imagem da boa forma, o que não deixa de
levar o sujeito a um mal-estar difuso, um sentimento de lassidão, seguido
da impressão de não aguentar a rotina; 2) o esgotamento profissional, que
apresenta sintomas parecidos aos da depressão, vindos do esforço
demasiado para atingir um fim irrealizável, e que caminha junto com o
superinvestimento no trabalho. “Psiquiatras recebem cada vez mais
pacientes “drogados por sua atividade profissional”, desenvolvendo uma
6 Nas mitologias romana e etrusca, Jano (do latim Janus ou Ianus), deus da
transformação, era uma divindade com duas cabeças, uma voltada para o futuro e outra
para o passado. Era uma espécie de porteiro celestial, de mediador das preces humanas
aos deuses. O primeiro mês do ano, janeiro, é inspirado nessa divindade, por ser
considerado o deus dos princípios.
164
relação de dependência com o trabalho com as mesmas características da
dependência química; 3) o hiperativismo, que tem, primeiramente, efeitos
psicoestimulantes, seguidos pela “impossibilidade de descontrair, a
necessidade incoercível da atividade, a dor de cabeça dos fins de semana,
a angústia das férias, o enfraquecimento das capacidades criativas”
(GHIHO-BAILLY; GUILLET, 1996 apud GAULEJAC, 2007, p. 219). Tais
sintomas são naturalizados, passam a fazer parte da rotina do/a
trabalhador(a), sem que este/a (se)questione se haveria outra forma de
se trabalhar, de viver. Daí decorre a importância de desnaturalizar, de
problematizar a racionalidade neoliberal e suas formas de conduzir as
condutas, de produzir os sujeitos dos quais precisa, no caso deste ensaio,
no âmbito empresarial.
No capitalismo financeiro atual, no qual os valores são
radicalmente eliminados, explora-se a psique de variadas formas. Para
Han (2018, p. 46), até mesmo a autoajuda, denominada na literatura
americana como healing (curativa, em português), “designa a
otimização pessoal, curando terapeuticamente qualquer fraqueza
funcional ou bloqueio mental em nome da eficiência e do
desempenho”. Portanto, a otimização pessoal permanente, que vai de
encontro com a otimização do sistema, é destrutiva e pode conduzir a
um colapso mental, revelando-se como uma autoexploração.
Essa otimização pessoal disseminada pela racionalidade
neoliberal, por vezes, desenvolve características religiosas e até
fanáticas, representando uma nova forma de subjetivação. O trabalho
interminável no eu assemelha-se ao exame de si protestante, porém
“em vez do pecado, procura-se por pensamentos negativos. O eu luta
uma vez mais contra si mesmo como se lutasse contra um inimigo”
(HAN, 2018, p. 46). Contudo, o sujeito não se submete por inteiro aos
ditames da positividade. Sem a negatividade, a vida se esvai até a
morte, é ela que mantém viva a vida. Ademais, a dor contribui na
construção da experiência.
Ainda conforme Han (2018, p. 48), a psicopolítica neoliberal e sua
indústria da consciência destroem a alma humana, já que não é uma
máquina positiva. O sujeito do regime neoliberal perece com o
imperativo da otimização de si, ou seja, ele morre da obrigação de
produzir cada vez mais desempenho. “A cura se torna assassinato”. A
sociedade do cansaço desdobra-se numa sociedade do dopping,
reduzindo a vitalidade de um fenômeno complexo a uma função vital e
165
um desempenho vital. Em contrapartida, a sociedade do desempenho
gera cansaço e esgotamento excessivos. Esses estados psíquicos são
causados pelo excesso de positividade, e “o excesso da elevação do
desempenho leva a um infarto da alma” (HAN, 2015, p. 70).
O advento e desenvolvimento do capitalismo fez surgir uma nova
racionalidade, liberal, que posteriormente passou por transformações
- a neoliberal, em resposta ao ambiente no qual as pessoas estavam
inseridas, fazendo emergir um novo sujeito com características
peculiares. A seguir, abordaremos a experiência, o cuidado de si, este
como uma possibilidade de resistência frente a essa racionalidade
neoliberal descuidante.
166
Portanto, se a psicopolítica neoliberal é a “técnica de dominação
que estabiliza e mantém o sistema dominante através da programação
e do controle psicológicos”, a arte de viver, com a prática de liberdade,
deve se pautar na despsicologização, para desmantelar a psicopolítica
como meio de submissão. “O sujeito é despsicologizado, esvaziado,
para que se torne livre para aquela forma de vida que ainda não tem
nome” (HAN, 2018, 107).
Já Foucault (2010) sinaliza o cuidado de si, indissociável do
cuidado com o outro, como possível brecha para resistência. Para o
autor, o cuidado de si envolve: 1) uma atitude para consigo mesmo,
para com os outros ao seu redor e para com o mundo no qual se está
inserido; 2) uma conversão do olhar, do exterior, dos outros e do
mundo para o interior, para si mesmo, o que requer exercício e
meditação; 3) ações exercidas de si para consigo, nas quais “nos
assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e
nos transfiguramos” (FOUCAULT, 2010, p. 12). Trata-se de uma prática
a ser realizada ao longo de toda a vida, entre cujas funções se
destacam: 1) crítica: desaprender (de-discere) os maus hábitos e falsas
opiniões recebidos etc.; 2) de luta: combater durante toda a vida, luta
para o qual se deve equipar o indivíduo com armas e coragem; 3)
curativa e terapêutica: curar as doenças (pathos) da alma.
Nessa direção, Ball (2016) menciona que a luta começa pela
relação consigo mesmo, no pensar(-se) diferente, uma forma socrática
de autoexame, uma atividade de (re)fazer artesanalmente a relação
consigo mesmo e com os outros dentro das restrições que nos são
impostas, um trabalho tanto crítico, pois envolve desestabilizar formas
habituais de fazer e de ser; quanto positivo, abrindo espaços nos quais
é possível ser diferente. Ball (2016) salienta que não se trata de
meramente negar ou resistir à verdade, ao poder, à riqueza, mas, sim,
de tentar articulá-los e/ou de dispor deles de outra forma, ou seja, o
processo de autotransformação exige engajamento na busca pela
formação de uma arte de trabalhar, foco deste ensaio, e de viver.
Ball (2016) define tal atitude como espiritualidade política, uma
vontade de descobrir uma nova forma de governar a si próprio por
meio de uma forma diferente de separar verdadeiro e falso, o que
implica entender o presente como um projeto com fim aberto e a
liberdade como um processo de luta. Trata-se de pensar em como
resistir ao poder e também em como se conduzir sob tais regras, ou,
167
ainda, onde estamos e o que fazemos hoje, neste momento, enfim, ter
a ética como prática. Porém, esse processo envolve riscos, o de
tensões e contradições que constituem a subjetividade, o que pode,
conforme o autor, tornar-nos até irreconhecíveis para nós mesmos e
para os demais, pode levar-nos a um outro, o da censura, pelo receio
do ridículo ou da marginalização. A questão seria, então, a de gerir o
mal-estar provocado não só pelos ismos (neoliberalismo, capitalismo),
mas também aquele gerado por esse processo de autotransformação
constante, contínuo e necessário, no qual o sujeito nunca é o mesmo;
é, sobretudo, sempre um incessante vir a ser.
A este respeito, Ortega (1999, p. 24), em consonância com Ball
(2016), fala de uma política espiritual, ou seja,
168
Para encerrar, sem pretensão alguma dar esta reflexão por
concluída, salientamos que nosso intuito neste ensaio foi
problematizar as condições de trabalho no contexto contemporâneo:
contexto este repleto de mal-estares e de indagações sobre como
cuidar de si, como cuidar do outro sem descuidar-se; um mundo de
apatia e hiperatividade, de excessos e frustração, como aponta Matos
(2008); tempo de exaustão que, ao contrário do simples cansaço, não
possibilita o exercício do pensamento e da imaginação, apenas uma
hiperatividade vazia e destrutiva; tempo patológico, cujo “vazio de
significado tem o stress como ideal” (MATOS, 2008, p. 462), no qual há
“um encolhimento do “espaço para experiências” na vida social e de
liberdade” (MATOS, 2008, p. 456).
Portanto, faz-se necessário “produzir e mediar certas formas de
subjetivação nas quais se estabeleceria e se modificaria a
“experiência” que a pessoa tem de si mesma” (LARROSSA, 2011, p. 51),
experiências de si das quais o sujeito sai transformado, nas quais possa
haver um despreendimento de si.
REFERÊNCIAS
169
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REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. Trad. Carlos Piovezani
Filho; Nilton Milanez. São Carlos: Claraluz, 2005.
170
PARTE IV: RESISTÊNCIAS
171
172
CAPÍTULO IX
INTRODUÇÃO
Quanto à ética grega da dominação ativa de si e dos outros, por sua vez, Foucault
está longe de maravilhar-se com ela. Ela se assenta nos critérios da superioridade
social, do desprezo pelo outro, da não –reciprocidade, da dissimetria [...].
Podemos, pelo menos, encontrar aí uma indicação para compreender também
por que Foucault logo se empenhara no estudo do pensamento cínico. [...].
Recurso último aos cínicos? É como se, diante das aporias de uma ética da
excelência ou de uma moral obrigatória para todos, Foucault acabasse por
pensar que, no fundo, só pode haver ética legítima se for a da provocação e do
escândalo político: ela se torna então, como o recurso dissonante dos cínicos, o
princípio de inquietação da moral, aquilo que a perturba (retorno à lição
socrática. (GROS, 2004, p. 645)
173
platônico da linhagem de Jamblico. No curso de 1984, intitulado A
Coragem da Verdade, curso tal em que Foucault detém-se sobre o
cinismo primevo, o filósofo francês ainda não tinha tantos
instrumentos de trabalho e o acesso às fontes antigas continuou difícil.
As obras disponíveis, já estavam em parte defasadas. Foucault teve
acesso às obras de Dudley (1937) e Sayre (1938) e à tradução dos
fragmentos e testemunhos dos cínicos feita por Léonce Paquet em
1975. Contudo, Foucault não teve acesso ao compêndio de G.
Giannantoni Socratis et Socraticorum Reliquiae.
Mas Foucault fez mais do que oferecer uma leitura justa do cinismo em seus
fundamentos; ele fez uma recepção brilhante, na minha opinião tão brilhante no
modo filosófico quanto a que foi feita no modo literário por Diderot no Sobrinho
de Rameau. Na verdade, em vez de abordar o cinismo como uma filosofia do
passado cuja mensagem deveríamos tentar encontrar reconstruindo
pacientemente um quebra-cabeça de fragmentos, ele se apropriou do combate
dos Cínicos e o trouxe para o presente, porque a vida de luta travada por esses
“entusiastas da virtude” como lhes chamou Diderot por esses “tônicos do
helenismo” como lhes chamou o P. Festugière, aderiu à ideia que lhe era cara,
de uma militância filosófica. Como o exemplo dos Cínicos transformaria o
indivíduo hoje e também mudaria o mundo, cumprindo o que Foucault chamou
de “a grande tarefa da universalidade ética”? Não se trata de fazer como os
Cínicos, mas de ouvir a inquietude que eles queriam gerar nos seus
interlocutores apoiados sobre falsas evidências. Certamente, como Foucault
notou, a filosofia tornou-se, desde o início do século XIX, um “trabalho de
174
professor”, o que significa o desaparecimento da “vida filosófica”. Ele estava,
no entanto, convencido de que ela ainda é capaz, ao se inscrever no que ele
chamou de “modernidade” do pensamento, de mostrar o caminho da
“verdadeira vida”, de uma vida que seja “vida outra”, num “mundo outro”, que
cabe a nós inventar. A abordagem parece mais relevante para mim do que nunca
(GOULET-CAZÉ, M.O., 2017, p. 544).
A teoria queer começou a ser desenvolvida a partir do final dos anos 80 por uma
série de pesquisadores e ativistas bastante diversificados, especialmente nos
Estados Unidos. Um dos primeiros problemas é como traduzir o termo queer
para a Língua Portuguesa. ‘Queer pode ser traduzido por estranho, talvez
ridículo, excêntrico, raro, extraordinário’ (LOURO,2004, p. 38). A ideia dos
teóricos foi a de positivar esta conhecida forma pejorativa de insultar os
homossexuais. Segundo Butler, apontada como uma das precursoras de teoria
queer, o termo tem operado uma prática lingüística com o propósito de
degradar os sujeitos aos quais se refere. ‘Queer adquire todo o seu poder
precisamente através da invocação reiterada que o relaciona com acusações,
patologias e insultos’ (BUTLER, 2002, p. 58). Por isso, a proposta é dar um novo
significado ao termo, passando a entender queer como uma prática de vida que
se coloca contra as normas socialmente aceitas”. (COLLING, 2015, pp. 22 – 25).
175
contemporâneos dos cínicos seguissem como exemplo. A maioria
parecia nunca estar satisfeita com as próprias aquisições, o que foi
caracterizado como pleonexia4
Cães com seus espíritos dinâmicos (subsistindo com apenas o
necessário) foram, na concepção cínica criaturas satisfeitas. Por que os
seres humanos, com recursos muito mais abundantes, não o são? A
resposta, em parte, era evidente - uma lição dada pelos cães e outros
animais é a simplicidade de sua existência. Eles confiam na natureza
para fornecer os elementos essenciais da vida. Confiar na natureza,
como os cínicos entendiam, implicava viver quase inteiramente ao ar
livre (recolher-se em uma ânfora talvez se qualifique como uma
exceção), vestindo um manto, portando um cajado, sem sapatos,
vivendo de tremoços, leguminosas e outros cereais silvestres, para
descansar e relaxar refestelar-se com um banho de sol.
Para nos liberarmos de hábitos saturados de pleonexia faz-se
necessário um treinamento (áskesis). O cínico propôs um modo de vida
baseado na redução das necessidades materiais favorecida em parte
pela áskesis que é o caminho para “viver de acordo com a natureza" e
dessa maneira renunciar à busca de posses, fama e poder como bens
ilusórios que não tinham valor real.
Todos os sistemas éticos antigos identificaram um telos, um fim a
ser alcançado. O cinismo, no que lhe diz respeito, era acusado de
ausência de telos. Embora exaltasse a virtude em todas as
oportunidades, o cínico não analisava a virtude a partir de questões
como: se a posse de coragem, por exemplo, implicaria a posse de
outras virtudes. Os cínicos adotaram como fundamento a
correspondência entre virtude e o desapego, alinhados pelo
treinamento (áskesis) destinado a fomentar a resistência moral.
Apesar da vida cínica mostrar-se afrontosa às virtudes tradicionais, o
cínico defendia as qualidades das virtudes de uma forma avessa às
tradições. A pobreza, o despudor e o discurso feroz podem ser vistas
como características que destituíam valores arraigados na cultura
176
helênica, porém, na prática, foram "um atalho para a virtude” (na
medida em que pressupunha autocontrole adquirido a partir do
treinamento, a áskesis era o próprio caminho para a virtude).
O cinismo percorre não apenas a civilização grega, mas também a
romana. Ao contrário de outras filosofias antigas, eles não tinham
escola no sentido estrito. Não havia lugar reconhecido onde se
encontrassem e discursassem, contudo, temos testemunhos que o
encontro e as lições que Diógenes recebeu de Antístenes se deu no
Cinosarges, um ginásio em Atenas que se destinava aos nóthoi, i.e.,
àqueles que nasceram da “mistura” entre atenienses e estrangeiros
que era o caso de Antístenes. O Cinosarges era em nada comparável
ao Jardim de Epicuro, ao Liceu de Aristóteles ou à Academia de Platão.
De acordo com os princípios cínicos, não havia um lugar “apropriado
para o exercício da filosofia”, eram as ruas, as praças, os banhos
públicos, a ágora que forneciam o local tanto para o ensino quanto
para o treinamento (áskesis). Além disso, o cínico rejeitava a filosofia
especulativa, o pensamento dogmático e a metafísica no sentido de
substâncias abstratas ou imateriais - uma área em que parecia
adequado sujeitar Platão e suas 'formas' à ridicularização. Os escritos
dos cínicos considerados os primevos (Antístenes, Diógenes de
Sínope, Crates e Hiparquia) desapareceram quase por completo. A
fonte principal dos fragmentos é a obra de Diógenes Laércio (que
escreveu sobre as vidas e doutrinas dos filósofos antigos em dez livros,
cobrindo a maior parte dos principais filósofos e suas escolas), e um
extenso compêndio de fontes da antiguidade de G. Giannantoni
(1990). Dado que Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres de Diógenes
Laércio foi composto no início do século III d.c., isso representa uma
lacuna de mais de cinco séculos entre o primeiro cínico e as vidas e
obras que ele descreve. Contudo, os comentários sobre as suas vidas
sobreviveram.
A exposição que Diógenes Laércio fez sobre o seu homônimo
cínico consiste em grande parte de chreiai. Transmitidas sob o nome
de Diógenes e sob os nomes de outros membros da matilha de cães.
As chreiai são mais do que farpas sardônicas, são anedotas que tinham
por substrato uma observação irônica que servia para exibir uma
atitude em relação ao incidente que estivesse em questão e os valores
das pessoas envolvidas. Dessas estórias acumuladas ao longo dos
séculos nem todas podem ser consideradas genuínas, e a verdade
177
sobre o cinismo primitivo tornou-se um misto de ficção, lenda e fato
histórico. O mais importante que parece ter ficado para a história é a
atitude do cínico perante as vicissitudes, e o seu modo de vida. As
chreiai e os detalhes biográficos predominam no capítulo VI de
Diógenes Laércio. As chreiai combinam os elementos de humor e
mensagem ética séria – o registro sério-cômico do cínico favoreceu as
condições para desenhar as características mordentes da
personalidade dos cínicos - e também a capacidade de síntese das
chreiai provou ser eficaz como ferramenta educacional.
OS PRIMEVOS
178
cínicas, não pode estar completa sem Antístenes. Diógenes, portanto,
parece colocar os ensinamentos de Antístenes em prática, mas talvez
os leve a extremos tais que o próprio Antístenes teria recuado. A
proximidade de Antístenes com Sócrates é relatada tanto na obra de
Diógenes Laércio quanto por Xenofonte e sua figura é mencionada por
Platão no Fédon.
Mais tarde, entrou em contato com Sócrates e colheu tantos benefícios junto ao
mesmo que costumava sugerir a seus discípulos que se tornassem condiscípulos
de Sócrates. Morando no Peiraineus, Antístenes andava diariamente quarenta
estádios para ouvir Sócrates. De Sócrates ele aprendeu a resistência e emulou-
lhe a impassibilidade, dando início assim à filosofia cínica. (PLATÃO, Fédon, 59b)
S: E tu, Antístenes, és o único que não estás apaixonado por ninguém? A: Ora,
pelos deuses, estou perdidamente apaixonado por ti! Sócrates respondeu-lhe,
entre brincalhão e vaidoso: Ah! Não te ponhas agora com isso, bem vês que
estou ocupado com outro assunto. Antístenes replicou: Vê-se bem, meu
alcoviteiro de ti próprio, estás sempre a fazer-me a mesma coisa! Umas vezes
não falas comigo porque a tua divindade não te deixa. Pelos deuses, Antístenes!
Respondeu-lhe Sócrates - só não me batas! De resto, eu suporto o teu feitio
violento e hei-de continuar a suportá-lo amigavelmente. Mas vamos esquecer
esse teu amor, porque não se dirige à minha alma mas apenas ao meu corpo.
(XENOFONTE, Banquete 8. 4.)
179
convergência entre Antístenes e Diógenes está na força moral de
Sócrates, que residia em seu caráter e era manifestada por sua firmeza.
O ischus (força, vigor, firmeza) seria a principal ligação entre os dois. A
força (ischus) empregada no trabalho moral deveria ser igual para agir
tanto no plano físico, como no plano intelectual.
180
paixões são tão fortes que a virtude não pode deixar de estar
associada ao ischus. A virtude só tem consequência prática aliada ao
ischus. A partir desse ponto, acreditamos que chegamos até Diógenes
de Sínope que intensifica o ischus e a “teoria da linguagem” de
Antístenes.
DIÓGENES DE SÍNOPE
181
(NAVIA, 2009, pp. 41-42). Consideramos o estandarte cínico,
denominado “desfigurar/alterar/mudar a moeda como a mudança do
valor de uma convenção que envolve tanto o dinheiro quanto os
costumes e as instituições. A vida kata physin (de acordo com a
natureza) é superior à vida civilizada, não porque permite todos os
descabidos, porque vive-se do indispensável.
CRATES
182
despojamento, a simplicidade, o desprezo pelos desejos pleonexos de
fama, dinheiro, honra e reputação, a poesia que escrevia e a vida que
levava estavam em profundo acordo com a força crítica dessa poesia,
que residia em afirmar que a vida feliz não pode ser baseada na
preponderância exclusiva dos prazeres, isso não quer dizer que há uma
exaltação do sofrimento, mas como foi dito antes, trata-se de uma
exaltação da simplicidade, nesse caso, da simplicidade dos desejos. Ao
tornar o cinismo público, através dos versos satíricos, Crates, além de
disseminar os princípios éticos do cinismo e torná-lo conhecido por um
público mais amplo, ele tentou provar que muitos valores
convencionais arraigados na concepção de “felicidade” não resistiam
à paródia crítica das poesias que escrevia, podemos tomar como
exemplo a paródia feita por Crates ao famoso hino às Musas, do
estadista ateniense Sólon, que havia orado para que pudesse desfrutar
de prosperidade e de uma boa reputação entre todos os homens.
Crates por sua vez, orou pelo desejo de “forragem constante para a
minha barriga”. Quando Sólon desejou que fosse “doce para os meus
amigos e amargo para os meus inimigos”, Crates desejou: “solícito,
não doce, para os meus amigos”. Em vez de desejar, como fizera
Sólon, “posses adquiridas com justiça”, Crates pediu simplesmente
“uma parte de justiça e de riqueza que seja inofensiva, fácil de
transportar, fácil de adquirir e valiosa para a virtude” (fr. 1 Diehl;
GIANNANTONI. Soc. Rel., V H 84, v. 2).
O poema mais famoso de Crates é Pera (fr.6 Diehl;
GIANNANTONI, Socr. Rel. v.2, V H 70; LAÉRCIO, 2008, p.174 [VI, 85]),
composto em versos jocosos, que parodiam a descrição homérica de
Creta (Od. 19.172-73). Pretendendo descrever uma ilha, Crates na
realidade, descreve as condições típicas da vida cínica.
Há uma cidade, Pera [jogo com a palavra para a carteira do mendigo] no meio
da neblina [jogo com a palavra temática cínica typhos, que significa o caráter
ilusório dos valores convencionais] cor de vinho, bela e fértil, inteiramente
esquálida, onde não há nada, para onde nenhum tolo navega, nenhum parasita
ou devasso que se delicie com o traseiro de uma prostituta; mas que tem tomilho
e alho, figos e pães, que não são causa para seus habitantes guerrearem entre
si, nem pegam ele em armas por lucro ou por fama ( LONG, 2007, p.140).
183
do cinismo, entre eles o viver do indispensável (grãos, produtos da
terra, pão), a libertação das paixões, dos apetites que são tipicamente
caracterizadas pelos tolos, devassos e pelo parasitas. Viver nessa polis
é viver sem guerras e preocupações, devido ao estado de satisfação.
HIPARQUIA
184
CONSIDERAÇÕES FINAIS
185
qual seja, o prefixo “um”, que indica grosso modo, uma radical mudança na
natureza de um objeto, de uma coisa ou ainda de um valor. Vemos como o jogo
gramatical, transposto para a dimensão filosófica, indica que a verdade
implicaria, tanto para o cinismo antigo quanto para Nietzsche, um processo
necessário de falsificar, subverter o que já está concebido como verdade. Assim
cria-se, entre verdade e erro, verdade e ilusão, um liame indissociável e não uma
oposição e separação radicais. (CHAVES, 2013, p.54, nota 37).
186
de suportar o sofrimento, de se livrar do fluxo incessante do vir-a-ser.
O “outro mundo”, a “outra vida” são escapismos. De maneira oposta,
a versão nobre aceita, acolhe e afirma o que é o mundo, a saber, uma
estrutura instável, em pleno devir, em constante movimento. A esse
propósito Nietzsche escreve: “o caráter geral do mundo, no entanto,
é caos por toda a eternidade, não no sentido de ausência de
necessidade, mas de ausência de ordem”. (NIETZSCHE, 2001, § 109)
Mudar os valores consiste necessariamente em transformar a
postura que o homem tem em relação à existência, tomar a vida como
base, descartar a hipótese de qualquer princípio transcendente a partir
do qual os valores seriam engendrados. Transvalorar consiste em
desconstruir a sustentação de tais valores em si e absolutos e as velhas
interpretações do mundo baseadas nesses valores; transvalorar
significa mudar o sentido dos valores sustentados pela metafísica e
significa a criação de novas referências valorativas.
É importante considerar a proximidade gramatical entre
falsificar/falsificação e transvalorar /transvaloração na língua alemã:
que ambos os termos indicam (devido à igualdade do prefixo), a
mudança radical de um “objeto, coisa ou de um valor”, e que isto
indicaria, quando transposto para a dimensão filosófica (tanto para o
cinismo antigo quanto para Nietzsche), a necessidade de alterar,
falsificar, subverter tudo aquilo que já está configurado como verdade.
O que chamaremos “ascese”, no caso nietzscheano, refere-se à
modificação de existência operada no espírito que podemos constatar
na seção “Das três metamorfoses (NIETZSCHE, 2006, pp.51-53).
A primeira mutação do espírito consiste na superação da falta de
autonomia através da coragem para libertar-se da opressão metafísica,
conquistar sua independência. Ao conquistar essa independência, o
espírito ainda não opera a criação de novos valores, mas inverte os
valores metafísicos em valores humanos. Contudo, ainda pode se ver
preso ao ressentimento da perda dos ideais e perder-se no vazio
existencial. A terceira superação consiste em ultrapassar tanto os
ideais metafísicos quanto o vazio existencial e criar valores afirmativos
da vida, ou seja, valorizar a vida pela vida e não como ponte para outra
vida, nem como um vazio sem sentido é um dizer “sim” ao vir-a-ser
incessante e à total falta de “ordem”.
Em todo esse movimento, o filósofo alemão não indica nenhuma
espécie de exercício ou prática para a superação de cada estágio, nem
187
afirma que essa superação é garantida. No caso do cínico, a ascese é
composta basicamente através de dois exercícios: o da animalidade e
do desaprender, que servem de suporte para a falsificação ou
alteração da moeda, que inclui alterar tanto os valores quanto os
costumes e os hábitos. A vida verdadeira cínica, baseada na prática da
animalidade, estabelece uma verdade completamente visível, sem
dissimulação, reta e conforme a natureza. Com o exercício do
desaprender, ele vive sem mistura com as evidências, opiniões e
saberes instituídos. E é também incorruptível, pois os valores
“humanos”, como riqueza, honra, fama ou glória, são justamente os
mais desprezados pelo cínico. As duas “asceses”, apesar das
diferenças, mostram a possível desconstrução de valores
considerados absolutos, partindo da premissa de que são invenções e
podem ser desconstruídas e construídas de outra forma.
REFERÊNCIAS
188
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de Janeiro: UFRJ-IFCS, 2007.
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XENOFONTE. Banquete. Tradução, Introdução e Notas de Ana Elias
Pinheiro. Coimbra: ECH, 2008.
189
190
CAPÍTULO X
INTRODUÇÃO
Our life will pass like the traces of cloud/ and be scattered like /
mist that is chased by the / rays of the sun / for our time is the
passing of shawdow (Choma: a Book of Color - Derek Jarman)
191
Nascido Michael Derek Elworthy Jarman, em 31 de janeiro de
1942, em Northwood, Middlesex, Grã Bretanha, e morto em 19 de
fevereiro de 1994, em Londres, cineasta independente e ativista gay
na era de Margaret Thatcher, Derek Jarman, enquanto artista
plástico e diretor de cinema, foi fundamental na afirmação de um
cinema alternativo na cena artística britânica dos anos 1980, e,
unindo artes visuais e cinematográficas – contribuiria igualmente na
disseminação de uma ‘estética queer’ e na constituição de um modo
de produção autônomo que influenciaria decisivamente a geração
que se seguiria à sua, e na qual se incluem nomes como os de Damien
Hirst, Tracey Emin e Sarah Kane .
Filho de um piloto neozelandês, engajado na Royal Air Force
inglesa, a infância de Jarman foi marcada por uma sucessão de
deslocamentos espaciais, tendo vivido em diversas bases militares, de
Somerset, na Inglaterra, à Itália, incluindo um período na Índia, iniciado
dois anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Formado em
História, Inglês e Arte no King's College da Universidade de Londres, o
cineasta estudaria ainda pintura na Slade School nos anos 1960. Depois
de uma exposição na Tate Gallery em 1967, Jarman ganharia o Prêmio
Peter Stuyvesant e, em 1968, teria a sua primeira exposição individual
na Lisson Gallery. Pouco tempo depois, se dedicaria a produzir
figurinos e cenários para o Royal Ballet. E, em seguida, começaria os
anos 1970 já em trânsito para a área cinematográfica, elaborando o
projeto cenográfico para um filme de Ken Russell, The Devils (1970).
Ao longo da década de 1970, Jarman teria a companhia constante
de uma câmera de 8mm com a qual filmava tudo o que podia, seu
cotidiano, seus amigos, o estúdio em que trabalhava, produzindo um
material que, mais tarde, daria origem ao filme Glitterbug e que
funcionaria como uma espécie de experimentação individual antes de
sua entrada no universo do cinema de longa metragem. O que
aconteceria de fato apenas em 1976, com Sebastiane, fita co-dirigida e
co-roteirizada por ele e por Paul Humfress, com a colaboração, ainda,
de James Whaley. A este filme se seguiriam Jubilee, em 1977, e The
Tempest, que seria premiado no festival de Berlim dois anos depois.
Durante os anos 1980, ao lado de forte ativismo em prol de causas
homossexuais, o diretor retomaria o trabalho com os curtas, como
“Imagining October”, sobre as transformações políticas na União
Soviética, trabalho experimental agora acrescido da realização de
192
videoclipes musicais, como os de Marianne Faithful, dos Pet Shop
Boys, dos Smiths, dos Sex Pistols e de Marc Almond. Em 1984, seu
trabalho como pintor seria objeto de uma grande retrospectiva na
Inglaterra e Jarman publicaria ainda o seu primeiro livro
autobiográfico, Dancing Ledge. O filme The Angelic Conversation, uma
apropriação cinematográfica dos sonetos shakespearianos realizada,
por ele, em colaboração com o coletivo artístico The Grey Organisation,
é de 1985. Em 1986, lançaria Caravaggio e, no final do mesmo ano, seria
diagnosticado HIV positivo, condição que tornaria pública e que
tematizaria abertamente ao longo dos anos seguintes, durante os
quais se manteria extremamente ativo, como escritor e cineasta. E
produziria os filmes The Last of England (1987), reinvenção fílmica das
pinturas de Ford Madox Brown que tematizavam populações
migrantes, War Requiem (1988), The Garden (1990), Edward II (1991),
Wittgenstein, que seria exibido em 1993. Blue e Glitterbug seriam,
ambos, finalizados neste mesmo ano. Mas este último, uma
compilação dos curtas em 8mm do diretor, só seria exibido no ano
seguinte, depois da morte de Jarman, como já assinalei, em 19 de
fevereiro de 1994.
Glitterbug é um filme composto por imagens diversas do
cotidiano do diretor, registradas por ele nas décadas de 1970-1980, e
foi finalizado, enquanto obra única, somente em 1993, um ano antes
da sua morte . Ao conceber Glitterbug, o cineasta retomou essas
imagens de seu passado, e deu a elas uma sequência, não, no
entanto, de caráter cronológico. Ele parece ter optado por mostrá-
las tais como foram concebidas, quer dizer, sem torná-las um
conjunto coeso que expusesse cronologicamente alguns fatos
importantes de sua vida. As imagens de Glitterbug não parecem
imbuídas de carga ficcional, e não encontramos aí uma narrativa que
sustente a passagem de uma imagem à outra. Nelas não
encontramos aspectos hierarquizados, focos explícitos, ou qualquer
elemento que conduza e oriente o nosso olhar.
O filme Glitterbug é, de certo modo, um diário visual de Jarman,
pois se trata de obra composta por registros fílmicos de momentos
variados da vida do diretor. Ele pode ser pensado, portanto, quase
como uma forma fílmica de álbum, já que nos apresenta imagens
diversas que não mantêm entre si uma relação de causalidade. Ao
193
mesmo tempo, há um eixo comum a esses registros e, à primeira vista,
ele pode verdadeiramente ser compreendido como biográfico.
Seja como aquele que filma (e que é também filmado), seja por
meio dos comentários veiculados por ele (no próprio filme) enquanto
observa esse álbum de registros em super 8, a presença de Jarman
pode ser pensada como aquilo que sustenta a passagem de uma
imagem a outra, como o ponto de fuga dessas imagens. Estamos
diante de registros caseiros do seu cotidiano, de aspectos particulares
do seu percurso. É com essas imagens extraídas de seu dia-dia que
Jarman constrói Glitterbug, a sua experiência de vida é, assim, a
matéria mesma trabalhada nessa obra. Há portanto aí uma tentativa
de dar forma ao próprio percurso a partir de registros fílmicos de um
passado vivido, há um ensaio de uma ‘escrita de si’ e é sobre como ela
se realiza em Glitterbug que eu gostaria de pensar.
194
A biografia tomaria a vida, desse modo, como “uma história”,
como “uma narrativa coerente de uma seqüência de
acontecimentos”, identificando essa história narrada a um sujeito
específico, ou, ainda segundo Bourdieu, a um nome próprio (Idem,
1994, p.71). Sob o nome próprio “se encontra instituída uma identidade
social constante e durável que garante a identidade do indivíduo
biológico em todos os campos possíveis onde ele intervém como
agente, quer dizer, em todas as histórias de vida possíveis” (Idem,
1994, p.71) . E, enquanto instituição, “o nome próprio é retirado do
tempo e do espaço, e das variações segundo os lugares e os
momentos: ele garante aos indivíduos designados, para além das
mudanças e oscilações biológicas e sociais, a constância nominal, a
identidade no sentido de idêntico a si mesmo" (Idem, 1994, p.71).
Como se pode perceber, a biografia toma o conjunto de fatores da vida
de um sujeito como um corpus coerente que nos remete à identidade
desse mesmo sujeito. É como se cada ato, cada escolha, cada vivência
fosse ao mesmo tempo fundante e fundado pelo biografado.
O diário parece se contrapor, a princípio, à biografia, por ser uma
escrita fragmentária, gradual, realizada por um sujeito sobre a sua
própria vida. Mas talvez se possa dizer que esse tipo de produção
também se pauta, como a biografia, na ideia de uma identidade coesa.
Segundo Maurice Blanchot, o diário íntimo está ligado “à estranha
convicção de que podemos nos observar e que devemos nos
conhecer” (BLANCHOT, 2005, p.275). A escrita seria assim um meio
pelo qual nos explicitamos, organizamos e por meio do qual dizemos
o sentido, a verdade constitutiva das nossas experiências. Enunciando
em palavras os pormenores, as nuances, as banalidades do dia a dia
poder-se-iam vislumbrar a ordem, os fundamentos do que
aparentemente, à primeira vista, não passaria de uma série de
movimentos inertes, de acasos sem princípios próprios.
A escrita do diário é assim entendida como uma investigação
gradual, nas ações ordinárias e nos pensamentos casuais, das bases
que constituem a subjetividade de cada indivíduo; como a busca de
algo anterior, de uma identidade, que ficaria aparente, ainda que de
modo débil, nas escolhas realizadas pelo sujeito no seu dia a dia.
Quando pensamos na dimensão biográfica que trabalha o filme
de Jarman, escrever não é simplesmente narrar de forma coerente um
percurso de vida, assim como também não é tentar totalizar os
195
inúmeros acontecimentos dispersos de uma vida a partir do emprego
do nome próprio como laço identitário inquebrantável. Trata-se de
mostrar um percurso de vida a partir de uma constante reflexão sobre
ele, buscando assim criar uma ‘escrita’ que, de algum modo, se
relacione ao modo de vida retratado.
Jarman parte de ‘fontes’ variadas (imagens, escritos), ele parte,
aí, de registros caseiros, feitos sem maior intenção de
autopreservação, notas imagéticas inventadas por ele ao longo de
décadas, sem a intenção de qualquer organicidade fílmica futura. É
como se, em certa medida, para pensar o que foi a sua própria vida
Jarman partisse, exatamente por conta dessa casualidade, dessa não
intencionalidade, dos registros fílmicos, quase aleatórios, de
momentos vividos por ele. A retomada dessas imagens não se define
como uma maneira de assegurar a narrativa de uma vida. Quer dizer,
as imagens não são aí meras ilustrações do que se viveu, como
também não são provas objetivas de acontecimentos passados. O
papel que elas ocupam nesse filme é muito mais complexo.
Nesse sentido, podemos talvez dizer que, se Glitterbug se
constitui, em parte, como uma autobiografia, dando a esse termo no
entanto um sentido bastante particular, o filme, por outro lado, se
constitui também como um diário. Se levarmos em conta o modo
como as imagens fílmicas foram criadas aí, isto é, não foram feitas no
momento em que o filme foi concebido por Jarman, mas, sim, nas
décadas anteriores, podemos dizer que esse filme se define, em parte,
a partir de uma escrita diária. É a partir desses registros fílmicos do
passado que a escrita autobiográfica se constitui.
Mas se, em parte, o filme se constitui como um diário do diretor,
devemos ressaltar que ele não se aproxima da definição dada por
Blanchot aos diários íntimos. Escrever diariamente aquilo que se viveu,
o que se pensou, o que se sentiu, seria um modo de se conhecer a si
mesmo, de revelar para si mesmo aquilo que se é, e que, de algum
modo, se encontra disperso em instâncias ou acontecimentos diversos.
Observar para conhecer, extrair daquilo que vemos, pensamos,
sentimos, vivemos, de forma geral, um fundo comum, a nossa própria
subjetividade. Poderíamos talvez dizer que a discussão sobre as
biografias, levantada por Bourdieu, também concerne aos diários
íntimos. Pois ainda que aí a escrita se dê não de forma retrospectiva, mas
de forma simultânea àquilo que se vive, ainda que ela seja fragmentária
196
e não tome a totalidade da vida como objeto central, ela, em parte,
também se sustenta pelo uso do nome próprio. É, de certo modo, uma
identidade, uma coerência entre os atos e pensamentos dispersos que
se busca pela escrita diária daquilo que se vive.
Em Glitterbug a escrita diária não se define nos mesmos termos
que nos diários íntimos. Não se trata aí de se observar para se
conhecer, de fazer emergir dos acontecimentos dispersos, que são
vividos, uma constância, uma identidade. Em primeiro lugar, porque
essas imagens, ainda que caseiras, ainda que registro do cotidiano do
diretor, possuem caráter bastante objetivo. Entendendo objetivo, aí,
não como uma representação fiel ao acontecimento representado,
mas como uma representação que se dá via filmadora, quer dizer, por
meio de um aparelho mecânico que cria uma representação da
realidade sem a necessidade de uma intervenção mais direta do sujeito
que a manipula. Em segundo lugar, essas imagens parecem registrar o
cotidiano em sua dispersão, quer dizer, sem centralizar o olhar do
espectador sobre um aspecto da imagem, sem focalizar em algo
preciso. E os comentários de Jarman sobre essas imagens poderiam
ser, aí, aquilo que acentuasse um ou outro aspecto da imagem, que
explicasse um pouco alguns dos sentidos dessas imagens ou que nos
informasse um pouco mais sobre aquilo que elas nos mostram. Mas,
em sentido inverso, esses comentários só acentuam o caráter
fragmentário e dispersivo dessas imagens, e, ao invés de coincidirem
com aquilo que as imagens nos mostram, ele se diferencia delas.
Se aquilo que, em parte, rege os diários íntimos é um movimento
de identificação, de conhecimento de si, que toma o disperso, os
acontecimentos diferentes entre si, como desdobramentos do
mesmo, quer dizer, como expressões de uma identidade, no filme de
Jarman, por sua vez, a escrita diária serve não para que se encontre,
em meio aos movimentos inertes e dispersos da vida a constância de
uma identidade, mas como um meio de o sujeito se diferenciar, se
pensar em meio a uma dispersão que não lhe é externa, mas que, ao
contrário, o constitui.
A ESCRITA DE SI E O HUPOMNÊMATA
197
do diário íntimo. Agora gostaria, no entanto, de tentar pensar em
outra forma de escrita de si que, em certa medida, se distancia dos dois
modelos que foram analisados anteriormente. E para isso, vou recorrer
a um pequeno texto escrito por Michel Foucault em 1983.
O texto L`écriture de soi faz parte de uma série de estudos do
filósofo francês sobre as ‘artes de si’, “sobre a estética de existência e
o governo de si e dos outros na cultura greco-romana, nos dois
primeiros séculos do império" (FOUCAULT, 2001, p.1234). Segundo
Foucault, a escrita exerce um papel fundamental na ‘arte de si mesmo’:
Nenhuma técnica, nenhuma habilidade profissional não pode ser adquirida sem
exercício, não se pode aprender a arte de viver, a tchnê tout biou, sem askêsis
que é necessário compreender como uma ocupação de si com si mesmo [...] a
escrita consiste numa etapa essencial no processo da askêsis: a saber, a
elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em
princípios racionais de ação (Idem, 2001, p.1236).
198
“Tão pessoais que eles sejam, os hupomnêmata não devem, no entanto, serem
entendidos como diários íntimos, ou como narrativas de experiências espirituais
(tentações, lutas, quedas e vitórias) que podemos encontrar na literatura cristã
ulterior. Eles não constituem uma ‘narrativa de si mesmo’ [...] Não se trata de
seguir o indizível, de revelar o escondido, de dizer o não dito, mas de capturar
ao contrário o já dito; recolher o que se pôde ouvir ou ler, tendo por objetivo
nada menos que a constituição de si” (Idem, 2001, p.1238).
199
leituras se aproprie delas, “e faça delas verdades suas” (Idem, 2001,
p.1240). A prática dos hupomnêmata consiste assim em uma maneira
de “constituir-se a si mesmo como sujeito de ação racional pela
apropriação, unificação e subjetivação, do já-dito, fragmentário,
selecionado” (Idem, 2001, p.1240).
Chamo a atenção para esse texto de Foucault, e mais
precisamente para os comentários do filósofo sobre a prática dos
hupomnêmata, pois, a meu ver, aí Foucault nos oferece, assim, outro
modelo histórico de escrita de si que se diferencia daqueles que, de
certo modo, são os mais recorrentes entre nós, ou seja, a autobiografia
e o diário íntimo e, desse modo, nos possibilita pensar outros modos
de essas escritas do eu se manifestarem no filme de Jarman.
Um primeiro ponto que eu gostaria de pensar, a partir do texto
de Foucault, é sobre como a escrita de si pode ser, ao mesmo tempo,
uma escrita que se constitui por uma pluralidade de vozes. Quer dizer,
como a escrita de si pode ser não um conjunto de reflexões e
observações de um sujeito sobre as próprias experiências, mas um
exercício de recolhimento de discursos alheios que, no entanto,
podem ajudar ao sujeito que os recolheu a refletir sobre aspectos que
concernem particularmente às suas experiências.
A escrita de si deixa de ser, desse modo, um exercício de
observação e conhecimento de si, para se transformar num trabalho
de constituição de si a partir de uma apropriação de escritos de outros.
Ela seria, em certa medida, não um meio de nos identificarmos
conosco mesmos, de extrairmos de um conjunto tão diverso de
experiências, uma constância, uma identidade fixa, mas de nos
diferenciarmos de nós mesmos, de nos transformarmos, constituindo
nossa subjetividade numa abertura ao outro.
Em parte, a escrita de si, em Glitterbug, se aproxima das práticas
dos hupomnêmata. Pois nela encontramos alguns dos movimentos
que caracterizam também essa forma particular de apontamento
comentada por Foucault. Em primeiro lugar, a escrita de si, no filme,
também pode ser pensada como uma prática regrada e voluntária do
díspar, do desigual, pois uma escrita de si emerge, de fato, de um
conjunto de fragmentos diversos. No caso do filme, de imagens feitas
de um passado vivido e relativamente recente. Em segundo lugar,
porque a escrita de si, no filme, comporta também duas práticas
distintas, a do recolhimento de fragmentos daquilo que se viveu e a do
200
retorno meditativo a esses fragmentos, um exercício reflexivo sobre
aquilo que se registrou.
Quer dizer que Jarman volta a essas imagens não para
simplesmente, por meio delas, lembrar-se daquilo que viveu. Não se
trata disso. Assim como ele não as emprega no filme como meras
imagens ilustrativas, como provas objetivas dos momentos vividos. As
imagens são, aí, ao mesmo tempo, uma forma de se pensar sobre o
próprio percurso, sobre aquilo que foi o seu passado, e de, em certa
medida, registrar a proximidade da morte, intensificar essa percepção.
201
Em segundo lugar, meditação consiste, na filosofia antiga, em “fazer
uma espécie de experiência”, tratando-se “não tanto de pensar na
própria coisa, mas de exercitar-se na coisa em que se pensa” (Idem,
2004, p.429).
Sobre esse segundo aspecto da meditação, Foucault, dá o
exemplo da meditação sobre a morte, que não seria “convencer-se de
que se vai efetivamente morrer”, nem pensar que se vai morrer, mas
pôr-se “a si mesmo, pelo pensamento, na situação de alguém que está
morrendo, que vai morrer, ou que está vivendo seus últimos dias”
(Idem, 2004, p.429). Quer dizer, meditar, na Antiguidade clássica e
romana, seria tanto a apropriação de um pensamento, para tê-lo à
mão, quando necessário, e para se fazer dele um princípio de ação,
quanto um exercício que consiste em colocar-se a si mesmo, pelo
pensamento, em uma determinada situação.
Em outro momento de sua reflexão, se voltamos ao texto escrito
por Foucault em resposta às críticas feitas por Derrida à História da
loucura, podemos observar como ele se preocupa em assinalar alguns
significados para a meditação ao tecer considerações acerca das
Meditações de Descartes. Ele diz aí que, na meditação,
202
digamos como sujeito ético da verdade” (Idem, 2004, p.559). E, por
último, a terceira forma de reflexão, própria ao pensamento sobre si
próprio, seria a do método, que é uma forma “capaz de servir de
critério a toda verdade possível e que, a partir daí, deste ponto fixo,
caminhará de verdade em verdade até a organização e a
sistematização de um conhecimento objetivo” (Idem, 2004, p.559).
Feitos esses breves esclarecimentos sobre os significados do exercício
meditativo, observemos agora em que consistia, segundo Foucault, a
meditação sobre a morte.
Na mesma aula, de 24 de março de 1982, de A hermenêutica do
sujeito, Foucault destaca brevemente, então, a importância da
meditação sobre a morte na Antiguidade Clássica e tardia. Enquanto
componente das práticas de si helenísticas e romanas, a meditação
sobre a morte pode ser entendida, diz ele, como um exercício que
permite “ao indivíduo que se perceba a si mesmo, e se perceba de duas
maneiras” (Idem, 2004, p.581).
Em primeiro lugar, ainda segundo a reflexão foucaultiana, esse
exercício permite “adotar uma espécie de visão do alto, e instantânea,
sobre o presente, operar um corte na duração da vida, no fluxo das
atividades, na corrente das representações” (Idem, 2004, p.581).
Pensar que a morte pode nos alcançar a qualquer momento é também
se ater à realidade, ao valor daquilo que estamos vivendo, é avaliar se
aquilo com o que nos ocupamos é de fato a melhor ocupação. Quer
dizer, pensar o momento que vivemos como o último é se inquietar
com relação ao nosso presente, é pôr em dúvida se aquilo que fazemos
é de fato o que pode ser avaliado como o melhor a ser feito, e, se não
for, se (e como) devemos transformar o nosso presente, se (e como)
devemos produzir, para nós, uma situação melhor.
A segunda forma de olhar e de observação sobre si que a
meditação sobre a morte permite, ainda de acordo com a apreciação
de Foucault, se acha marcada pela retrospecção. Ou, em suas palavras:
203
o conhecimento do valor da vida que levamos, um conhecimento de si
a partir do modo de vida adotado por cada um. Meditar sobre a morte
seria, então, tanto avaliar o presente que se vive, quanto conhecer o
valor daquilo que se viveu.
Em seu estudo sobre Goethe e a filosofia antiga, Pierre Hadot
também destaca a relação entre meditação sobre morte e a
concentração sobre o momento presente nas reflexões estóicas e
epicuristas. Segundo Hadot, a consciência da morte, de tomar o
momento que se está vivendo como o último, seria uma maneira de ao
mesmo tempo concentrar-se naquilo que se está vivendo, algo que
Goethe iria retomar em suas reflexões. Hadot destaca, por exemplo,
que o “segredo da alegria epicurista, da serenidade epicurista, é de
viver cada instante como se ele fosse o último, mas também como se
ele fosse o primeiro” (HADOT, 2008, p.48). A consciência da morte,
ocupando, nessa concentração sobre o presente, um papel
fundamental, ou segundo as palavras de Hadot:
Dizer cada noite: ‘eu vivi’, quer dizer: minha vida terminou, é praticar o mesmo
exercício que consiste em dizer: hoje, será o último dia da minha vida. Mais
precisamente é esse exercício de tomada de consciência da finitude da vida que
revela o valor infinito do prazer de existir no instante (Idem, 2008, p.49).
204
Acredito que seja também por meio de ecos e não propriamente por
meio de citações diretas que se estabelece uma relação entre certos
aspectos da filosofia antiga e o filme de Jarman. Nesse sentido, podemos
dizer que o filme Glitterbug, de Jarman, talvez seja uma espécie de
meditação sobre a morte. Em primeiro lugar, o exercício do pensamento
que, a meu ver, se aproxima mais da reflexão proposta nesse filme é de
fato a meditação. Um exercício meditativo, tal como Foucault o define,
quer dizer, um exercício no qual o sujeito que medita coloca à prova tanto
aquilo que pensa, como também, a si mesmo enquanto sujeito que pensa
efetivamente o que pensa e age como pensa. Além disso, o sujeito que
medita desloca-se, modifica-se, assume riscos.
Se, em parte, esse filme de Jarman parece operar por um exercício
de memória, por um ato mnemônico, essa retomada de certo passado
vivido não se dá via reconhecimento. A retomada de um passado vivido
se dá via registros fílmicos feitos desse passado. São essas imagens que
‘precipitam’ um ato mnemônico. Mas, ao vê-las, Jarman não se reconhece
naquelas imagens. Como já foi dito aqui, os comentários do cineasta sobre
as imagens, não as afirmam ou complementam, eles se diferenciam delas.
Algumas das imagens de Glitterbug são em preto e branco, outras
coloridas, algumas são expostas em câmera lenta, outras estão
nitidamente aceleradas. Os ritmos e modos de aparecimento de cada uma
delas são muito distintos. E entre elas não há uma relação causal, uma
linearidade, como não há também uma narrativa que organize a
passagem de uma à outra. E é na não reciprocidade entre elas e os
comentários de Jarman, é entre essas duas instâncias, entre voz grafada
e imagem, que o passado de Jarman se dá a ver, é assim que ele se
apresenta, que ele se manifesta.
O filme não torna o passado de Jarman ‘presente’, ele não é
lembrado, ele não é descrito, mas exposto. Ele mostra-se visível onde
mesmo sua visibilidade é quase impossível, uma visibilidade débil, sem
forma clara, sem ‘rosto’, lá onde ocorre a cisão entre registro e
lembrança, entre passado vivido e passado rememorado, entre
imagem cinematográfica e escrita. Seu passado não se manifesta nem
nas imagens nem nos comentários que estão sobrepostos a elas, mas
entre os dois, no hiato, no exterior.
Em Glitterbug, o sujeito que rememora, que lança um olhar
retrospectivo sobre a própria vida, não cessa de se deslocar. Jarman
está, de certo modo, enquanto sujeito que rememora, ‘presente’ tanto
205
nos registros de seu passado, quanto nos comentários feitos sobre
esses registros, ou melhor, ele está entre os dois, ele está no próprio
deslocamento que os comentários promovem nos registros, nos
choques entre as suas lembranças do passado e os registros de seu
cotidiano. Ele expõe a si mesmo, expõe as suas lembranças e as
imagens que ele um dia criou de seu cotidiano a essa reflexão
mnemônica, correndo o risco de, no hiato entre as imagens e os
comentários grafados, desaparecer ele mesmo, ver desaparecer o seu
próprio passado, e apagar, assim, as próprias lembranças. Glitterbug
parece ser constituído, assim, por uma experiência radical, a de uma
experiência mnemônica que acarreta, ao mesmo tempo, o
desfazimento das lembranças, a reelaboração do passado, mas a partir
da confrontação que se faz com as suas ruínas, com os vestígios de um
passado que não cessa de desaparecer.
É possível, a meu ver, pensar esse filme não só como um exercício
meditativo, mas como uma meditação sobre a morte, tal como
Foucault a define em A hermenêutica do sujeito. E podemos talvez
acrescentar que aos dois aspectos desse exercício talvez possam
corresponder os dois momentos de produção desse filme.
Podemos talvez dizer que a prática de registrar aquilo que se vive
está ligada a uma espécie de consciência da iminência da morte e,
consequentemente, de valorização do momento presente. Pois filmar
aquilo que se vive é, antes de tudo, concentrar-se sobre o presente,
observá-lo, escolher dentre os muitos aspectos do presente aqueles
que devem ser registrados ou não. A prática de filmar opera, desse
modo, um corte no fluxo das representações e na duração da vida, e
realiza uma concentração sobre o presente. E ela inclui, é claro, uma
percepção da iminência da morte, já que só tentamos registrar aquilo
que se viveu porque tomamos aquilo que estamos vivendo como
único, insubstituível, e algo do qual se quer arrancar uma imagem.
Como disse acima, os registros fílmicos feitos por Jarman não
servem somente como uma espécie de ‘reserva’ de memória, um
suporte material que guardaria, que conservaria certas lembranças do
passado, protegendo-as assim de eventuais esquecimentos. Elas
constituem um material ao qual Jarman volta não exatamente para
lembrar daquilo que viveu, mas para avaliar e ao mesmo tempo tentar
escrever aquele que foi o seu percurso. Desse modo, podemos
compreender a prática de filmar, tal como é operada no primeiro
206
momento de produção desse filme, como uma prática que não tem por
finalidade simplesmente conservar uma imagem do presente, mas sim
observá- lo, avaliá-lo e, ao mesmo tempo, constituir um material ao
qual Jarman voltará para pensar o seu percurso. E será nesse segundo
momento, o de volta aos registros feitos anteriormente de um
passado vivido, de organização desses registros, que se dará o
segundo passo meditativo. Quer dizer, é na montagem do filme e na
produção de um texto reflexivo sobre os registros caseiros do diretor,
que podemos encontrar uma espécie de meditação retrospectiva
daquilo que se viveu, uma avaliação sobre o valor da vida levada.
Avaliação dupla, ética e estética, pois, nesse filme, a escrita da vida
ganha forma a partir da avaliação de um modo de vida.
Em Glitterbug, Jarman medita sobre a morte, e, ao mesmo tempo,
sobre o que foi a sua vida e sobre o que ela é em seu presente atual, a
partir da memória material que ele constituiu ao longo de sua vida,
pelo tesouro fraseológico, imagético, exemplar que foi acumulado por
ele (citações aos escritos e obras pictóricas de outros, inseridas em
várias de suas obras; escritas da vida de outros, como em seus filmes
biográficos; registros fílmicos ou literários de seu cotidiano; escritos
autobiográficos, etc.). Ele não revela, por meio desse trabalho, algo de
si ou de seu passado que, até então, permanecesse oculto, mas faz de
seu percurso um conjunto heterogêneo de elementos acumulados, de
experiências diversas, com os quais ele se defronta e se confronta no
momento em que vai conceber Glitterbug, no momento que ele tenta
‘costurar’ esses restos, esses fragmentos, esses ‘retalhos’ de seu
passado para dar forma, cinematograficamente, ao que foi a sua vida.
E essa ‘costura’ não ameniza as diferenças entre esses fragmentos, ela
os mantém em choque, de tal forma que a ‘costura’ passa a ser,
também, apagamento das lembranças, reinvenção do passado,
reinvenção de si e de seu presente.
Como se pode perceber, as duas dimensões meditativas, a partir
das quais Foucault define a meditação sobre a morte, se fazem
presentes no filme de Jarman. Por um lado, o corte no fluxo da vida
e das representações, e a concentração sobre o presente se fazem
notar no processo de feitura dessas imagens. Filmar diariamente
aquilo que se vive, é, em certa medida, se ater àquilo que se está
vivendo. Como já foi dito nesse trabalho, a prática de filmar requer
uma prática de observação, de atenção concentrada sobre aquilo que
207
se está vivendo, requer a escolha, dentre muitos aspectos do
presente, daqueles que devem ou não ser filmados, etc. Podemos
dizer, pois, que se trata de uma prática de corte e recolhimento, de
ruptura temporal para com os acontecimentos e de registro de
fragmentos daquilo que se está vivendo.
Por outro lado, há também um olhar do alto, um olhar de
conjunto sobre aquilo que se viveu. Esse olhar de conjunto se
estabelece a partir dos registros fragmentários do cotidiano. É por
essas imagens que Jarman tenta pensar aquilo que foi a sua vida, é no
emprego dessas imagens que ele tenta dar forma, para si mesmo,
àquilo que viveu.
Como disse acima, acredito que ainda que Jarman não faça
referências mais diretas às práticas de si greco-romanas, podemos
encontrar em seu filme uma espécie de eco dessas reflexões. É como
se, de algum modo, Jarman retomasse, ainda que indiretamente, em
Glitterbug, aspectos do que tanto Foucault quanto Hadot observam
como constituintes das práticas de si da antiguidade clássica e tardia.
Eu recorri aos escritos de Foucault e Hadot sobre ‘os exercícios de
si’ para tentar dimensionar a auto-reflexividade que existe no filme de
Jarman. Como se pode perceber, esta dimensão no cinema jarmanino
se constitui, de certa forma, de maneira muita mais próxima das
práticas dos Hupomnemata ou da meditação sobre a morte, do que das
autobiografias ou diários íntimos, tal como Bourdieu e Blanchot os
definem. Pois pensar sobre si ou sobre aquilo que se viveu, se constitui,
em Glitterbug, mais como uma prática de modificação e como uma
avaliação do vivido e de certa herança cultural, do que propriamente
como uma tentava de descobrir, (em meio aos inúmeros
acontecimentos que constituem o percurso de um sujeito, ou em meio
aos seus escritos e obras) uma constância, uma identidade fixa.
Em conversa com Werner Schroeter, em 1982, Foucault fez o
seguinte comentário:
Nós aprendemos desde o século XX que não podemos fazer nada de nós mesmo
se não nos conhecemos a nós mesmo. A verdade sobre si mesmo é uma
condição de existência, enquanto que existiriam sociedades onde podemos
imaginar que não se tentava de forma nenhuma de se colocar a questão daquilo
que se é, que isso não tinha sentido, enquanto que o importante era: qual é a
arte de colocar em obra para fazer o que se faz, para ser o que se é? uma arte de
si mesmo que seria o contrario de si mesmo. Fazer de si mesmo um objeto de
arte, é isso que vale a pena (FOUCAULT, 2001, p.309).
208
Pensar outras formas de relação conosco mesmos, que não se
dêem com base na premissa do conhecer-se a si mesmo, é o que, em
parte, justifica a retomada, tardia, das práticas de si greco-romanas,
operada por Foucault. A retomada das reflexões produzidas na
antiguidade seria assim uma tentativa de buscar outras ‘práticas de si’
que se diferenciassem das ‘práticas de si’ modernas. Pois, como
observa Deleuze, em estudo sobre Foucault:
E, portanto, não se trata de um retorno aos gregos, porque não existe retorno.
A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência contra as duas
formas atuais de assujeitamento, uma que consiste a nos individualizar a partir
das exigências de um poder, a outra que consiste a atribuir a cada individuo uma
identidade sabida e conhecida, bem determinada uma vez por todas. A luta pela
subjetividade se apresenta então como a diferença, e direito a variação, a
metamorfose (Idem, 2004, p.113).
209
Seguindo o comentário de Deleuze, poderíamos dizer, então, que
não se trata absolutamente de dizer aqui que o filme de Jarman opera um
retorno à antiguidade clássica e tardia, mas que a dimensão reflexiva de
seu filme está muito mais distante dos modelos de escrita de si que nos
são mais usuais, do que de aspectos das práticas de si greco-romanas, tal
como Foucault as compreende. E que, em parte, tal como Deleuze vê na
retomada de Foucault da filosofia antiga uma tentativa de pensar práticas
de subjetivação para além das dominantes na nossa contemporaneidade,
podemos encontrar no filme do diretor inglês uma retomada, ainda que
não explícita, de aspectos das ‘práticas de si’ para se conceber uma escrita
de si que não tenha como alicerce a fixidez identitária, a ênfase no nome
próprio, e pela qual, ao contrário, o sujeito possa efetivamente se
transformar. Uma escrita que é assim muito menos um modo de se
assegurar de uma identidade do que um meio de se modificar, de se
metamorfosear, de se diferenciar. É nesse sentido que podemos dizer que
o filme de Jarman se constitui ao mesmo tempo como exercício ético e
estético, como tentativa de dar formar a um percurso a partir da avaliação
daquilo que se viveu.
REFERÊNCIAS
210
CAPÍTULO XI
Julia Naidin1
211
ambiental seguindo uma pesquisa-criação geo situada com um
trabalho que cruza ideias da arte contextual e da museologia social.
Apresentaremos a proposta em três etapas principais: 1) uma breve
contextualização do território, 2) os problemas filosóficos que a
situação de Atafona nos apresenta e 3) alguns conceitos envolvidos no
processo criativo de um trabalho específico.
Seguindo uma perspectiva foucaultiana que direciona a escrita,
trazemos a complexidade da crise ambiental contemporânea a partir
do caso da praia de Atafona, com um referencial teórico que foca e
atualiza essa questão específica. Partimos de um pensamento que tem
como pressuposto a crítica à cisão entre a luta ambiental e a luta
colonial, a crítica à história da Razão da Modernidade atrelada ao
colonialismo.
Trabalhamos com uma perspectiva teórica que amplia a noção de
governamentalidade também a territórios, ecossistemas e
imaginários. Neste caso, a abordagem da questão ambiental não será
feita exclusivamente trabalhando no campo teórico do
desenvolvimento destes conceitos. Ela será permeada pela
apresentação de práticas de uma pesquisa-criação2 que desenvolvo na
cidade de São João da Barra, no estado do Rio de Janeiro, na praia de
Atafona, em uma residência artística concebida em torno da ideia de
arte contextual disposta a mobilizar a questão ambiental local
propondo diferentes práticas artísticas e culturais. Este território é o
campo de uma proposta que visa acompanhar e entender como
convive, há mais de seis décadas, esta comunidade, em relação com
um intenso e crescente avanço do mar sobre suas as regiões
habitadas? Além disso, pretendemos pensar nossa atividade em uma
perspectiva ecopoética, buscando pistas dos agenciamentos que
produzem e são produzidos pela erosão na comunidade e em nosso
processo de trabalho que faz, também, uma alusão a uma filosofia
prática, a peripatética.
Nosso modo de entrada na questão da erosão em Atafona foi via
habitação e desenvolvimento de uma proposta de ação coletiva.
Desde 2017 iniciamos esse projeto que partiria por diferentes linhas de
ação se intercruzando: residência artística, criação de acervo históricos
212
das regiões levadas pelo mar, grupo de teatro e performance, o Grupo
Erosão3, pesquisa acadêmica, bibliográfica e etnográfica, curadoria e
produção de exposições e de audiovisual, entres outras.
Apresentamos aqui um trabalho que passa por um exercício
epistemológico transdisciplinar a partir de parâmetros outros para a
reflexão sobre a atual crise ambiental e as implicações políticas de tais
variações. Isso será feito com a apresentação da atividade do Museu
Ambulante, trabalho que idealizei e participo com o grupo de teatro na
perspectiva de análise da museologia social, em uma articulação com
a escola filosófica dos peripatéticos. O caso que acontece na praia de
Atafona espanta, entre tantas outras coisas, pelo pouco que se fala de
uma situação de tamanha dramaticidade. É importante falar sobre
esse assunto para que saibamos, para que não nos esqueçamos e para
que pensemos sobre as origens e consequências de nossa história
colonial, em uma perspectiva na qual a dimensão existencial é
inseparável da dimensão ambiental.
Apresentar uma crítica à ecologia contemporânea não deve
significar uma renúncia às preocupações ecológicas que emergem na
atualidade, mas sim uma outra forma de compreender este campo,
ampliando suas articulações, bem como a própria matriz epistêmica
moderna fundadora das práticas científicas que balizam as ciências da
natureza e seus modos de produção. Entendemos que a “crise
ecológica” tem como condição de existência a constituição colonial do
mundo em práticas exploratórias e destrutivas. Tais procedimentos
partem de uma fissura ontológica que se estabelece entre os humanos
e outras espécies, com a Terra, com outros humanos, em seu modo de
habitar, em diferenciações excludentes de modos de “fazer-mundo”4.
Seguindo uma bibliografia de análise que tem como base alguns
conceitos da filosofia política foucaultiana, partimos de uma
perspectiva crítica da governamentalidade neoliberal, que, como
sabemos, impõe a lógica do lucro privatizado com o risco socializado.
E esse risco não é colocado para uma divisão igualitária de seus
prejuízos nem de seus benefícios. Os efeitos mais graves dos desastres
e impactos ambientais, na maior parte das vezes, são sentidos nas
3 Grupo Erosão: Lucia Talabi, Jailza Motta, Rachel Rosa, Mariana Moraes, Paul Macalli,
Guilherme Matos, Fernando Codeço e eu.
4 Neste sentido, retomamos a distinção entre Terra e Mundo, elaborada por Hannah
213
áreas mais pobres das periferias dos centros urbanos, onde moram as
comunidades mais vulneráveis, normalmente os grupos mais
estigmatizados e violentados pelo sistema colonial desde as invasões
das américas. Populações com vivências mais permeadas pelas
dinâmicas ambientais, como podemos perceber ainda hoje nas
resistências de comunidades ribeirinhas, caiçaras e indígenas,
quilombolas. Nesse contexto, em uma praia do litoral norte
fluminense, identificamos de modo exemplar da atual racionalidade
ecológica de governo.
O Paraíba do Sul, que nasce em São Paulo, onde já tem um
enorme desvio, até chegar em Atafona, sua foz, perde 70% de seu fluxo
para abastecer o Guandu e suprir a capital do estado. Os percentuais
ficam a cargo das demandas industriais, deixando, assim, aquela
comunidade que ainda vive prioritariamente da pesca, à míngua e com
o ritmo da erosão cada vez mais intenso. Isso é resultado de um
processo político violento que causa ciclos migratórios insustentáveis
e traumáticos. Fato é que, a decisão de levar um rio até sua destruição,
desmantelando junto toda uma rede socioeconômica que vive em
torno dele, é uma escolha política. Nesse ponto a famosa inversão
foucaultiana da máxima do “deixar viver, fazer morrer”, característica
da lógica da soberania, para a máxima do “fazer viver, deixar morrer”,
própria da governamenentalidade moderna, se torna palpável.
Percebemos assim a necessidade de ampliar o conceito de
biopoder pois ao matarmos rios, fragilizamos sequenciais
ecossistemas, que incluem o humano, ultrapassando-o. Neste ponto,
mobilizaremos o conceito de Foucault de biopolitica, tendo como novo
horizonte a ideia de uma “ecopolítica decolonial”. Isto é, tentando
refletir sobre propostas e práticas políticas que compreendam as
dimensões dos vínculos ambientais, que são também fundamentais à
própria existência humana e comunitária. Ecologia e ecopolítica são
noções que hoje, cada vez mais, se contagiam devido ao crescente
grau de interferência humana no planeta, conforme vemos nos atuais
debates em torno de temas como o Antropoceno5, Capitaloceno6,
Platnationceno7, Chthuluceno8, entre outros.
214
BIOPOLÍTICA EM HORIZONTE AMPLIADO OU SOLO ERODIDO.
215
regulação sobre a vida coletiva, produzindo desejo por um
determinado tipo de sujeição que envolve determinados tipos e
valorações nos modos de vida na matriz capitalista colonial. O biopoder
opera como um mecanismo que se dissemina em diferentes estruturas
e garante o controle dos corpos no aparelho produtivo, conduzindo os
fenômenos das populações.
Outro ponto fundamental vemos em Em defesa da sociedade
quando Foucault demonstra como o racismo está diretamente ligado
à formação dos estados a partir do século XIX. O discurso biologizante
das raças e de um ideal de pureza confere ao Estado a função de
protetor “da integridade”, “da superioridade” e da “pureza da raça”.
A soberania do Estado apoia-se em uma espécie de “defesa da raça” e
passa a operar o que Foucault chama de “racismo de Estado”. Saúde
pública, saneamento básico, redes de transporte, abastecimento,
segurança pública, gestão hídrica, etc., são exemplos do modo de
afetar as condições de manutenção da vida - e de produção da morte.
Em São João da Barra, infelizmente, vivemos um exemplo deste caso
na atualidade, como mais um impacto direto da erosão. Além da
destruição das casas, que atinge principalmente a comunidade da
pesca artesanal, em função do avanço do mar - associado ao
enfraquecimento do rio por onde as embarcações costumavam entrar
na costa - eles têm seu ofício cada dia mais dificultado, tendo que
entrar em outros lugares mais distantes (e rarefeitos), sendo levados,
gradualmente, a mudar de trabalho, deixando a atividade cada vez
mais insustentável e a comunidade empobrecida.
Em um sentido amplo, comumente compreende-se a ecopolítica
como o conjunto de políticas orientadas para o controle da vida no
ambiente, com a perspectiva focada no nível planetário. A palavra
pode ter um sentido positivo: proposição de normas e leis em favor do
meio ambiente. Também podemos usar a noção como adjetivo ligado
a ideia de autoidentificação dos movimentos ecológicos enquanto
saberes e práticas de caráter eminentemente político. Ainda, podemos
entender a ecopolítica como um campo relativamente recente das
Ciências Políticas, como um instrumento de luta social que abre
caminho para novos conceitos e estratégias de transformação política.
No entanto, o que muitas vezes percebemos nas práticas que recebem
o “label” de “ecológicas” nas grandes empresas de exploração de
recursos (sic) naturais, é que elas se abstêm de questionar
216
profundamente sobre a necessária implementação de rupturas
práticas e epistêmicas no que entendem por “consciência ambiental”
ou “responsabilidade ecológica”. Questões como “a preservação do
planeta”, muitas vezes são entendidas sem respeito às diferenças
etnoculturais e atenção às necessidades das comunidades locais.
Enquanto criam ações de sustentabilidade que constam nas agendas
da ecopolítica, se distanciam da história social do território, dos grupos
que ali vivem, de seus ecossistemas e seus específicos modos de
cuidado e de saber. “Desenvolvimento sustentável”,
“responsabilidade social”, “empresa cidadã”, “fortalecimento da
economia do país” muitas vezes são slogans em uma lógica que não
discute à sério as mudanças climáticas e tampouco a própria lógica do
trabalho, apresentando as situações de um modo que não possibilita
alternativa a sua própria autorreprodução - como se elas não
existissem ou devessem ser criadas.
No caso, partimos da importância de uma ecologia que seja, ao
mesmo tempo, decolonial e feminista como uma crítica ao acento
ético (ou sua ausência) em grande parte dos discursos ecopolíticos
contemporâneos, de modo a submeter os interesses econômicos (do
capitalismo) às demandas sociais e ambientais.
Nessas ampliações conceituais, alguns autores vêm falando
também em ecogovernamentalidade. Achille Mbembe opera um salto
teórico na noção de biopolítica foucaultiana com a ideia de
necropolítica. Ele relaciona aquela noção com as práticas e bases
ideológicas do estado de exceção como prerrogativa para o direito de
matar e retoma Aimé Césaire, com a ideia de que a experiência do
“Estado suicidário” nazifascista teve na experiência colonial sua
gênese”9. Almeida sintetiza Mbembe: “as colônias são o local por
excelência em que os controles e as garantias de ordem judicial podem
ser suspensos - a zona em que a violência do estado de exceção
supostamente opera a serviço da “civilização”” (ALMEIDA, p.121,
2021). E, seguindo a linha do sociólogo peruano Aníbal Quijano, elucida
como a imposição da concepção de poder da colonização tem a noção
de raça como base e categoria central.
Atualmente, vemos que existem movimentos ecológicos
totalmente inseridos em uma lógica extrativista e colonial,
reproduzindo os mesmos mecanismos de precarização, exploração e
217
alienação da relação das comunidades com os territórios. É contra esse
ecologismo que nos fala o filósofo martinicano Malcom Ferdinand,
articulando as noções de “fratura colonial” e a “fratura ambiental”.
Deste modo, ele alinha-se aos movimentos em defesa do meio
ambiente que exigem um questionamento interno da própria ideia de
desenvolvimento, indo além da atividade econômica e focando nos
outros aspectos da existência humana ligados à ideia de criação de
mundo. Um modo de pensar as questões ambientais da ecologia política
que não seja alienado da história dos povos e das terras, distanciando-
nos de uma concepção ‘progressista’ e evolucionista para uma
concepção crítica e ambivalente do progresso e visando a ação direta
que busca a união da luta ambiental com a luta decolonial em todas as
formas de racismo, sexismo e exploração da vida, ou, nas palavras de
Ferdinand, “A ecologia decolonial é um grito multissecular de justiça e
de apelo por um mundo” (FERDINAND, 2023, p.37). Entendemos que a
erosão de Atafona não é um caso isolado, ela é resultado de um
processo de decisões políticas e as consequentes respostas ambientais
a um modo de ocupação e consumação ambiental erguido na fratura
entre a vida humana e território que ela ocupa.
Na mesma cidade temos outro caso exemplar da associação entre
destruição e alienação da comunidade em seus ecossistemas e os
discursos ambientalistas. Ocorrem também processos de remoções
em zonas rurais implementados por megaempreendimentos típicos
do capitalismo globalizado neo extrativista, como o Complexo
Logístico e Industrial do Porto do Açu (CLIPA) um dos maiores
complexos portuários da América Latina, construído entre outras
coisas, para receber um gigantesco mineroduto que atravessa 32
municípios, iniciando-se em Conceição do Mato Dentro (MG). A
implementação do complexo foi marcada por inúmeras violações dos
direitos humanos com a expropriação violenta de aproximadamente
1.500 famílias, salinização do solo do plantio, processos erosivos na
costa, impactos em áreas de pesca e poluição de lagoas. O caso do
Porto do Açu faz parte do mesmo modelo de desenvolvimento que
vem agredindo ecossistemas brasileiros, e que é mais um
empreendimento que atinge diretamente a comunidade de
pescadores de Atafona. Nos últimos anos, uma das empresas do Porto
abriu uma reserva ambiental dedicada à preservação da restinga local.
Uma das atitudes da empresa foi fechar a principal entrada que
218
possibilitava o acesso da comunidade ao rio, fazendo necessário ser
realizado, para acessar o local, um caminho de mais de 40 km,
inviabilizando, na prática, a ida dos moradores, em sua maioria
pequenos agricultores. Vemos que essas ações de “sustentabilidade”
ecológica partem de uma intervenção no ambiente que o separa das
pessoas que nele vivem, privando, das comunidades originárias, as
possibilidades de existência em seus próprios territórios.
219
Percebemos que na prática performática existe um compromisso
com uma ideia de público, com o que está sendo dito e praticado que
é de importância central quando optamos por levar um trabalho de
arte e memória para a rua. Todas as palavras contam e todos os
silêncios contam. Quando vamos para as ruas, a arte vai para o mundo,
não só criamos imagens, como também interferimos e nos
apropriamos de um mundo nas ruas, produzindo novas relações e
imaginários. Ao trabalharmos com uma matéria viva devemos levar em
conta também todo um campo de pesquisa dedicado à ética da
investigação das pesquisas sociais de modo que não restrinja pessoas
ou situações a fatalismos. Ao invés, que se preocupe em absorver
informações que se apresentam na própria realidade e perceber as
reais demandas de suporte e fortalecimento que podem ser apoiados.
Efetivar, muitas vezes, contra epistemologias ensaiadas
coletivamente, apresentando outros modos de des/re/organizar o
conhecimento e a relação com o ambiente, em um esforço para
reposicionar nossos procedimentos de escuta.
A ideia de arte contextual nos interessa. Contexto “designa o
conjunto de circunstâncias que são em situação de interação. O
“contexto”, etimologicamente, é oriundo da base latina contextus de
contextere, tecer com” (ARDENNE, 2002, p.17). Ou seja, não estamos
no terreno do idealismo ou da representação individual, e sim na
tentativa de infiltração na ordem das coisas concretas e dos
acontecimentos possíveis. A atenção se volta para o mundo tal qual ele
se apresenta buscando criar a emergência de práticas artísticas que
questionem um habitual, alterando significados e imaginários.
Entendemos que uma ação de memória no território de Atafona
em sua instabilidade associada com o trabalho contextual e
performático que criamos com o Grupo Erosão, demanda uma
proposta de relação com essa realidade (vulnerável em seu próprio
campo), fora de qualquer zona de conforto. O instrumento escolhido
foi o dispositivo de museologia social que podemos, na presente
reflexão, analisar à luz do movimento filosófico peripatético: criamos
uma proposta cênica e decidimos levar nosso acervo para a rua.
“Peripatético” vem do grego PERIPATETIKÓS, aproximadamente, quer
dizer “aquele que anda ao redor”, PERI, “ao redor”, acrescido de
PATEIN, “caminhar, andar”.
220
Um movimento filosófico que envolve uma prática performática
de movimentar-se dentro de um território, fomentando processos de
discurso e de imaginação. No nosso caso, pela mediação das imagens,
promovendo novos vínculos no campo do espaço público e de um
imaginário comum. Este instrumento, leva exposições itinerantes com
imagens antigas do território para a comunidade que viveu nesses
lugares que não existem mais.
O M.A. consiste em uma bicicleta construída de sucata preparada
para carregar 35 caixotes de feira transformados em suportes que
recebem impressões de imagens históricas em placas de PVC,
retratando áreas levadas pelo mar desde a década de 1940.
Escolhemos áreas específicas da cidade, onde concentra-se a maior
parte dos antigos moradores.
221
Essa associação entre a escola filosófica peripatética e a atividade
do M.A. veio posteriormente. Na realidade, o gesto de levar o acervo
para a rua se deu por outras razões: o desejo de levar um museu a
lugares e comunidades que não possuem familiaridade com esse tipo
de atividade; abrir nosso acervo para parte das pessoas que viveram
naqueles territórios que já foram levados pelo mar e que nunca tinham
visto aquelas imagens; ouvir as histórias, registrá-las e caminhar com
essas falar, pensando, coletivamente, experiências e metodologias de
museologia social, redirecionar planos e possibilidades em meio ao
distanciamento social causado pela pandemia... Fato é que,
pesquisando posteriormente sobre experiências ambulatórias,
elaborando sobre as diferenças ao longo das apresentações realizadas
nos últimos anos, reencontrei essa referência ao filósofo grego que me
chamou a atenção pela centralidade que a atividade do percurso
possui nas performances do M.A e no pressuposto que a performance
está como base no debate ao caminhar em diferentes ambientes.
O movimento peripatético reaparece, posteriormente na Grécia,
em outro movimento filosófico que também envolve práticas nas ruas.
O cinismo, outra corrente grega que, desta vez, representada por
Diógenes de Sinope, possui uma influência direta na proposta inicial do
M.A. Os cínicos trabalhavam na perspectiva do mínimo necessário,
para que possibilite maior mobilidade e independência, favorecendo,
assim, as condições para uma fala franca. Uma fala que não mascara,
que não esconde, que subverte sinais e valores, hierarquias e
autarquias. Um pensamento que também se faz em diálogo, nas ruas.
Mas este, em oposição ao anterior, fora das escolas e fora das escritas.
Uma filosofia que vai para o campo da prática gestual, performativa,
cênica. Como vemos com Goulet-Cazé e Branham: “De fato, a
expressão mais poderosa da vitalidade do cinismo no início e no
apogeu do mundo moderno provavelmente não está no domínio da
filosofia per se, mas numa tradição literária de fantasia e diálogos
satíricos” (GOULET-CAZE, BRANHAM, 2007).
A partir da CasaDuna como dispositivo de pesquisa-criação,
apresentamos perguntas importantes para o Brasil atual e para o
mundo da arte. Nos colocamos em um lugar em destruição - ecológica,
epistêmica, simbólica e material, para falarmos sobre criação - intra-
ativa, mecânica, inventiva e efêmera. Entendemos que se cria um
gesto que também opera em um regime fora da fixação das formas, e
222
a partir das intensidades e possibilidades das relações, sendo,
portanto, também performativo e político. Diógenes de Sinope, na
Grécia de 3 A.C., falava do gesto filosófico e de uma filosofia
performática. Hoje estas categorias de gesto e de performance se
encontram principalmente no campo da arte. Mas neste caso, o gesto
do M.A., acredito eu, também apresenta um sentido filosófico.
Apresenta uma outra face de um modelo civilizatório: uma ferida do
projeto de desenvolvimento colonial brasileiro, mas também a
questão da catástrofe ambiental, as mudanças climáticas e todos os
desdobramentos desta era que alguns cientistas chamam de
Antropoceno - conceito que designa a era geológica marcada pelos
efeitos do “homem”, (entendendo, neste conceito, o homem branco
europeu industrial com seus níveis de consumo. Certamente, nele não
se incluem outras variações do sentido de “homem”, outros modos de
vida, como os ribeirinhos, por exemplo).
Na imagem abaixo, uma foto da estrutura do M.A., com detalhe
do nosso cachorro (clássico símbolo da escola cínica devido a sua
conhecida honestidade), à esquerda, que nos acompanhava durante o
percurso.
223
prazer de ver amplos horizontes, de estar numa praia, numa praça e
no encontro surpreendente com as imagens, que podem nos
transportar para outras dimensões de espaço-tempo. São múltiplas as
possibilidades e os sentidos que cada percurso/ambiente apresenta e
diversos fatores entram em conta nessa escolha: clima, solo,
segurança, acesso etc.
Com o passar do tempo, e depois de termos realizado a
performance em outros municípios, recebido colaborações de novos
acervos, trabalhado com diversos grupos e elaborado críticas e
percepções de nossas fragilidades e belezas, entendemos que o
dispositivo e a performance vão muito além da atividade localizada em
Atafona. Pudemos perceber o quanto a questão da perda do território
pela erosão em Atafona, aliada à simplicidade e sensibilidade da
proposta do trabalho em sua estrutura rudimentar, possibilita que haja
uma comunicação mesmo em situações previamente divergentes do
caso da praia de São João da Barra, ao delta do rio Paraíba do Sul. As
pessoas se conectam pela dimensão da perda, pela disponibilidade da
escuta, pelo impacto das imagens e pela troca na performance.
Este tipo de trabalho de museologia, por guardar elementos da
performance e da pesquisa-ação de modo central em sua metodologia,
não tem seu plano previamente fechado uma vez que a cada atividade,
uma nova exposição é criada em função das histórias que se
apresentam em cada contexto em que o museu é montado. Além da
instabilidade inerente a arte da performance já mencionada, existe,
nesse caso específico, também um impasse ético ao trabalhar com a
erosão, um aparente paradoxo: não propor uma apresentação
sensacionalista da espetacularização da tragédia. Mas, tendo em conta
não poder acreditar no oposto, isso é, que não seja espetacular. Não
há como tratar como se não fosse dramático, pois isto seria não fazer
jus à materialidade da história do lugar e das pessoas que nele vivem e
nos narram. Ainda que, para nós, habitantes, seja também, não só
espetacular, mas corriqueiro e cotidiano. É o espetacular e o dramático
em meio ao cotidiano - justamente uma clássica definição da
experiência estética12. Este não é o único paradoxo: realizamos uma
produção de memória em um território que está em destruição; nos
inserimos em linhas de pesquisa dedicadas à questão do patrimônio
em um território sistemática e intensamente transformado e levado
12 SCHOPENHAUER, 2005.
224
pelo mar, em contínuo desaparecimento; projetamos o futuro
coletando histórias de passado; realizamos, por iniciativa individual e
independente, um trabalho com memória que, na realidade, é pública
e coletiva. A lista poderia continuar.
Talvez parte destes paradoxos seja apenas aparente, e não
precisemos nos restringir à lógica (também ela, disciplina herdada da
filosofia de Aristóteles) para criarmos possibilidades de engajamento
poético coletivo. Talvez possamos, com as histórias ouvidas sempre
reimaginadas a cada ação, questionar a história da historiografia
brasileira e seu cânone, ou também como Foucault, da história das
formas de produção da verdade histórica. Com as múltiplas vozes,
desconfiar da suposta linearidade que faz com que nos esqueçamos da
importância de também dispor-se na caminhada peripatética em meio
às encruzilhadas da cidade ou perante um mar que avança ao
continente, e que um projeto que pretenda promover descolonização
ecológica deve envolver desorganização, inadequação, errância e
contradição.
Na década de 1970, Foucault nos apresenta a ideia de heterotopia
referindo-se a tipos de lugares, infinitamente variáveis, que têm por
característica comum operar uma contestação tanto na mitologia
quanto na realidade dos diferentes tipos de espaços que
frequentamos. Em 1966, o filósofo abre As Palavras e as coisas com um
prefácio, no qual vemos, nossa incapacidade em pensar fora das
relações de espaço pré-estabelecidas e do problema que isso nos
causa com a própria linguagem.
225
cultural, ambiental. Pois bem, o que se apresenta é a impossibilidade
de uma perspectiva de futuro histórico, no avanço linear do tempo e
na concretude material do espaço. As construções humanas são
projetos de futuro no tempo e no espaço. Aqui, o tempo, a cada dia,
avança sobre um espaço que, a cada dia, se desfaz. Neste sentido,
Atafona é um lugar mesmo que o lugar não exista mais, na medida em
que a própria dinâmica da erosão mantém um agenciamento simbólico
local, para além das memórias. Cria-se um imaginário territorial e um
mapeamento georreferenciado a lugares que não existem mais, há
décadas. O quão heterotópico este lugar pode ser?
Não pretendemos com esta breve apresentação propor
respostas, absolutizar, ou resolver o problema da erosão em Atafona.
Complexificar a leitura do fenômeno e engajar a reflexão ambiental na
perspectiva política decolonial já traz novos meios para problematizar
a questão do modo de vida em uma perspectiva ecopolítica.
REFERÊNCIAS
226
HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the
Chthulucene, New York, USA: Duke University Press, 2016.
HARVEY, David. "A arte da renda: a globalização e a transformação da
cultura em commodities". In: A produção capitalista do espaço. São
Paulo: Annablume, 2005,
LAERCE, Diogène. Vies et doctrines des philosophes illustres. Varese: Les
livres de poche, 2009.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.
MOORE, Jason. Antropoceno ou Capitaloceno? Natureza, história e a
crise do capitalismo. São Paulo: Elefante, 2022.
QUIJUANO, Anibal. Colonilaidade do poder, eurocentrismo e América
Latina, Disponível em : < http://biblioteca. clacso.edu.ar/clacso/sur-
sur/20100624103322/12_Quijuano.pdf>. Acesso em: 9 abr.2019.
SHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação.
Jair Barbosa. São Paulo: UNESP, 2005.
227
228
CAPÍTULO XII
1Este artigo foi anteriormente publicado em: Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 36, n.
78, pp. 1683-1713, set./dez. 2022. ISSN Eletrônico 1982-596X.
2 Professora associada e procientista do Departamento de Educação e do Programa
229
O SUJEITO E A VERDADE
O problema a respeito do que se passa com o ser do sujeito (do que deve ser
o ser do sujeito para que ele tenha acesso à verdade) e a consequente questão
acerca do que pode ser transformado no sujeito pelo fato de ter acesso à
verdade, estas duas questões repito, absolutamente características da
espiritualidade, serão por nós reencontradas no cerne mesmo destes saberes
ou, em todo caso, de ponta a ponta em ambos. De modo algum afirmo que
são formas de espiritualidade. O que quero dizer é que nestas formas de saber
reencontramos as questões, as interrogações, as exigências que, a meu ver
[...], são as muito velhas e fundamentais questões da epiméleia heautoû e,
portanto, da espiritualidade como condição de acesso à verdade. (FOUCAULT,
2004, pp. 39-40)
[...] nem uma nem outra destas duas formas de saber levou muito
explicitamente em consideração, de maneira clara e corajosa, este ponto de
vista. Tentou-se mascarar estas condições de espiritualidade próprias a tais
formas de saber no interior de certas formas sociais. A ideia de uma posição de
classe, de efeito de partido, o pertencimento a um grupo, a uma escola, a
230
iniciação, a formação do analista, etc., tudo nos remete às questões da condição
de formação do sujeito para o acesso à verdade, pensadas porém em termos
sociais, em termos de organização. Não são pensadas no recorte histórico da
existência da espiritualidade e de suas exigências. (idem, p. 40)
231
Essa pergunta será por nós reativada ao longo do artigo, embora
dirigida não à psicanálise e/ou ao marxismo, ao menos em suas
especificidades teórico-institucionais, mas aos campos da psicologia e
da formação de professores.
Antes disso, no entanto, cumpre acompanhar Foucault ao longo
da exposição realizada na primeira hora da aula de 6/01/1982, quando
o filósofo ressalta que a noção de cuidado de si, epiméleia heautoû,
constitui um fenômeno de conjunto na cultura helenística e romana –
um “acontecimento no pensamento” (idem, p. 13), em suma. A
epiméleia heautoû é uma atitude geral (um modo de estar no mundo,
de se relacionar com o outro), uma forma de atenção, de olhar (que é
conduzido do exterior, dos outros, do mundo, a si, sem que isso
implique necessariamente um “interior”) e, talvez principalmente, um
conjunto de ações “exercidas de si para consigo”, pelas quais “nos
assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e
nos transfiguramos” (idem, p. 15). Essas ações ocorrem por meio de
exercícios, as práticas de si, cujo destino na espiritualidade ocidental,
segundo Foucault, será bem longo: técnicas de meditação, de
memorização do passado, de exame de consciência, de verificação das
representações na medida em que se apresentam ao espírito, etc. Com
a noção de epiméleia heautoû, portanto, temos:
[...] todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de
reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente
importante, não somente na história das representações, nem somente na
história das noções ou das teorias, mas na própria história da subjetividade ou,
se quisermos, na história das práticas da subjetividade” (idem, p. 15).
232
desconsiderados, nunca efetivamente lidos, que, acoplados ao “saber
das pessoas”, igualmente incapaz de unanimidade, constituiriam a
genealogia conforme ele a concebe e pratica. Com efeito, no caso do
cuidado de si, não é que inexistam menções à prática e a seus saberes.
Trata-se, isso sim, de um privilegiamento quase exclusivo, por parte dos
historiadores da filosofia, do gnôthi seautón, do conhece-te a ti mesmo.
As razões pelas quais o cuidado de si foi sendo progressivamente
desconsiderado e lançado a uma espécie de penumbra são pouco a
pouco trazidas à cena por Foucault. Em primeiro lugar, ele começou a
ser visto como uma forma de egoísmo – concepção marcada pelo
cristianismo e bem distinta do modo como era compreendido na
Antiguidade. Nesse mesmo diapasão, ao reaparecer, tanto na moral
cristã como na moderna, o cuidado de si emerge como uma forma de
renúncia a si, novamente em evidente contraste com a visão antiga.
Porém a principal razão para seu quase desaparecimento nas histórias
da filosofia mais difundidas, que, por sinal, configuram o modo como
se costuma entender o desenvolvimento histórico do pensamento,
remete ao que Foucault denomina, com muitas aspas e cuidados,
“momento cartesiano”.
A despeito de aspas e ressalvas, o momento cartesiano
requalificou filosoficamente o gnôthi seautón, ao passo que, em
contrapartida, desqualificou a epiméleia heautoû. A requalificação,
como se vê nitidamente nas Meditações de Descartes, ocorre porque a
evidência – “tal como aparece, [,,,] tal como efetivamente se dá à
consciência, sem qualquer dúvida possível” (FOUCAULT, 2004, p. 18) –
é instaurada no ponto de partida do procedimento filosófico, o que
remete ao conhecimento de si como forma de consciência. A isso se
soma a evidência da existência do sujeito no princípio do acesso ao ser;
melhor dizendo, postula-se a indubitabilidade dessa existência como
sujeito (Cogito), ou o “conhece-te a ti mesmo” como acesso
fundamental à verdade.
Mais importante para Foucault do que essa requalificação, por
Descartes, do gnôthi seautón socrático, em que pesem as diferenças
entre os dois filósofos, é a correlata desqualificação do princípio do
cuidado de si, a ponto de que este se veja praticamente excluído do
pensamento moderno. Nesse momento do curso, Foucault decide
“tomar alguma distância” do que é chamado de filosofia a fim de
diferenciá-la da “espiritualidade”. Por filosofia, designa a forma de
233
pensamento que procura determinar “o que permite ao sujeito ter
acesso à verdade”, ou seja, “as condições e os limites” desse acesso
(idem, p. 19). Sendo assim, convida-nos a denominar espiritualidade “o
conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purificações,
as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de
existência etc” que constituem, para o ser mesmo do sujeito (e não
para o conhecimento), “o preço a pagar para ter acesso à verdade”
(idem, p. 19).
Ao menos na forma como aparece no Ocidente, a espiritualidade,
para Foucault, tem três características. Em primeiro lugar, ela postula
que a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito, ou melhor,
insiste que a verdade não é dada ao sujeito por um simples ato de
conhecimento: ao contrário, não pode haver verdade sem uma
conversão ou uma transformação do sujeito. Em segundo lugar, essa
conversão ou transformação pode se dar sob diferentes formas: em
uma abordagem que Foucault reconhece como esquemática, pode
assumir a forma de um movimento que arranca o sujeito de seu status
e de sua situação atual (éros), ou ocorrer mediante um trabalho de si
para consigo, em que “se é o próprio responsável por um longo labor
que é o da ascese (áskesis)” (idem, p. 20). Finalmente, a espiritualidade
supõe que o acesso à verdade, quando aberto – via éros ou áskesis –,
produz efeitos que, além de decorrerem do procedimento efetuado
para atingi-la, são também efeitos “de retorno” sobre o sujeito. Não
como recompensa atribuída a um ato de conhecimento, mas
iluminando o sujeito, dando-lhe beatitude, conferindo-lhe
tranquilidade de alma, completando o ser do sujeito. Vale frisar que
não se trata de uma simples transformação do indivíduo, mas “do
próprio sujeito no seu ser de sujeito” (idem, p. 21).
Após essa breve exploração do tema da espiritualidade,
regressemos ao momento cartesiano, armadas com um novo olhar.
Sem a necessidade de ver em Descartes o inventor da concepção de
que aquilo que dá acesso à verdade é tão somente o conhecimento –
muitos outros o disseram antes dele e/ou próximos a ele –, podemos
seguir Foucault na caracterização da idade moderna da história da
verdade: ela começa no momento em que aquele que busca a verdade
– filósofo, sábio, simples pensador –, “sem que mais nada lhe seja
solicitado, sem que seu ser de sujeito deva ser modificado ou alterado,
234
é capaz [...] unicamente por seus atos de conhecimento, de
reconhecer a verdade e a ela ter acesso” (idem, p. 22).
Isso não exclui, evidentemente, toda e qualquer condição para o
acesso à verdade; mas as que permanecem vigentes não concernem à
espiritualidade, pois provêm do interior do próprio conhecimento. Há,
nesse caso, as condições internas do ato de conhecimento e as regras
a serem seguidas nesse ato; melhor dizendo, respectivamente, as
regras formais do método e a estrutura do objeto a conhecer. Há ainda
as condições extrínsecas, entre as quais, retomando um tema
importante de História da Loucura, a de que “não se pode conhecer a
verdade quando se é louco” (idem, p. 23). Somam-se condições
culturais: para ter acesso à verdade é preciso ter certa formação,
realizar determinados estudos, partilhar um consenso científico. E,
ainda, condições morais: conhecer a verdade demanda esforço, não
tentar enganar os pares, ajustar de forma aceitável os interesses
(financeiros ou de carreira) às normas da pesquisa dita desinteressada.
Todas essas condições, extrínsecas ao ser sujeito (logo,
individuais), mas intrínsecas ao conhecimento, mostram que, como
anteriormente aludido, o momento cartesiano marca o início de uma
outra era da história das relações entre verdade e subjetividade. Nas
palavras de Foucault:
235
sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é,
não é capaz de salvar o sujeito (idem, p.24).
OS SABERES DA ESPIRITUALIDADE
236
No período helenístico-romano, o cuidado de si deixa de ser
simplesmente um preceito complementar (ou substitutivo) da
pedagogia preexistente, imposto somente no momento em que o
jovem vai entrar na vida adulta e restrito àqueles que, por seu estatuto,
têm a possibilidade de governar os demais, para tornar-se uma
injunção válida para todos e para todo o desenrolar da existência.
Agora coextensivo à vida, esse cuidado de si que se desvinculou da
pedagogia se expressa, ademais, em um entrelaçamento com uma
rede de relações sociais diversas – organizações escolares, ação de
conselheiros privados, relações de proteção, amizade etc.
A desvinculação da atividade política, por sua vez, pode ser
apreendida no afastamento do cuidado de si do caráter instrumental
que, até certo momento – figurado pelo diálogo platônico Alcibíades –
, o cercara. Estar atento a si tinha como objetivo, anteriormente, o
ocupar-se bem da cidade; agora, no entanto, é preciso ocupar-se
consigo “de maneira que a relação com os outros seja deduzida,
implicada na relação que se estabelece de si para consigo”
(FOUCAULT, 2004, p.254).
Caso correlacionemos as duas desvinculações, emerge a seguinte
imagem: “[...] é preciso, durante toda a vida, voltar a atenção, os olhos,
o espírito, o ser por inteiro enfim, na direção de nós mesmos” (idem,
p.254). Trata-se, portanto, de uma conversão a si. Mais do que uma
noção estrita, precisa, bem definida, a conversão constitui uma
espécie de “esquema prático” que, entre as “tecnologias do eu”
(idem, p. 256) conhecidas pelo Ocidente, foi (e é) uma das mais
importantes.
Neste ponto, a aula convida a que nos voltemos para o presente.
Porque, sem deixar de mencionar a importância religiosa da
conversão, Foucault nos adverte de seu relevo filosófico, moral e
político:
Parece-me [...] que não se pode compreender o que foi, ao longo do século XIX,
a prática revolucionária, o que foi o indivíduo revolucionário e o que foi para ele
a experiência da revolução, se não se levar em conta a noção, o esquema
fundamental da conversão à revolução (idem, p. 256).
237
e com frequência inesperado, das transformações nos modos de
subjetivação. Mas Foucault também se aproxima, conquanto de forma
matizada, de nossos receios atuais, ao acrescentar:
Seria preciso examinar também de que modo esta noção de conversão foi pouco
a pouco sendo validada – depois absorvida, depois enxugada e enfim anulada –
pela própria existência de um partido revolucionário. E de que modo passamos
do pertencimento à revolução pelo esquema de conversão ao pertencimento à
revolução pela adesão a um partido (idem, p. 257).
238
cultura monástica dos séculos III e IV d.c.. No primeiro caso, a conversão
não implica ruptura, ao passo que, na cultura cristã, “o eu que se
converte é um eu que renunciou a si mesmo” (idem, p. 260). Se
pudermos falar de alguma ruptura no caso da conversão helenístico-
romana, será quanto a tudo aquilo que cerca o eu, pois, como afirma
Foucault (idem, p. 261), citando Sêneca, “a filosofia faz com que o sujeito
gire em torno de si mesmo, isto é, faz com que ele execute o gesto pelo
qual, tradicional e juridicamente, o mestre liberta seu escravo” .
Como se percebe, começa a ter lugar de destaque, no curso de
1982, não somente a comparação entre a conversão
helenística/romana (sécs. I e II) e a conversão platônica – epistrophê –
como também o contraste e/ou eventual aproximação entre cada uma
delas e a conversão/metanóia cristã. Nessa linha argumentativa,
estratégia comum em Foucault e mediante a qual são estabelecidas
finas distinções entre formas de experiência, a conversão
característica da epistrophê plantônica “implica um retorno da alma
em direção à sua fonte, movimento pelo qual ela retorna à perfeição
do ser” (idem, p. 265), tendo o despertar como modelo e a
anamnenesis como modo fundamental desse despertar. Na conversão
cristã, por sua parte, trata-se de “uma reversão do espírito, de uma
renovação radical e de uma espécie de re-procriação do sujeito por ele
mesmo, tendo ao centro a morte e a ressurreição como experiência de
si mesmo e de renúncia a si” (idem, pp. 261-262).
Já no epicurismo, no cinismo e no estoicismo dos séculos I e II,
nenhum dos dois modelos ou esquemas parece adequado, o que leva
Foucault a dar início ao detalhamento do que apelidará, ao longo do
curso, “caminho do meio” – via divergente quanto à polaridade
epistrophé/metánoia. Foucault a caracteriza inicialmente por meio da
conversão do olhar. Mas embora a expressão “volver o olhar para si
mesmo” possa imediatamente sugerir, a um desavisado, o imperativo
“conhece-te a ti mesmo”, não é esse tipo de apelo socrático-platônico
que está em pauta em Plutarco, Sêneca, Epicteto ou Marco Aurélio.
Tampouco se trata de uma vigilância conforme a preconizada pela
literatura monástica, que recomenda examinar todas as imagens e
representações, a fim de decifrar eventuais vestígios de
concupiscência, inclusive nas ideias aparentemente mais puras. No
“caminho do meio”, em suma, o eu a que se deve voltar o olhar nem é
objeto de conhecimento (de estirpe platônica) nem foco de decifração
239
de segredos da consciência (de tonalidade monástico-cristã).
Consequentemente, Foucault busca a pergunta pertinente: “de que
deve o olhar desviar-se quando recebe a recomendação de volver-se
para si?” E assim responde: “Volver o olhar para si, antes do mais,
significa: desviá-lo dos outros. E, em seguida, desviá-lo das coisas do
mundo” (idem, p. 268).
Segue-se detalhada exposição que apela primordialmente a
Plutarco para mostrar que o deslocamento do olhar dos outros para si
jamais consiste em uma mudança de objeto de conhecimento, e sim
em um “deslocamento da curiosidade”, que se afasta dos males e
infortúnios dos outros e se aproxima dos segredos da natureza, dos
relatos dos historiadores e do otium – termo latino para o espetáculo
tranquilo e reconfortante experimentado na vida campestre (idem, p.
270). Esta não será a última vez em que Foucault, ao longo do curso,
procurará fazer com que nos afastemos de ideias preconcebidas sobre
a espiritualidade helenístico-romana, ideias essas produzidas
exatamente pela hegemonia filosófica dos caminhos platônico e
cristão. Não nos estenderemos mais sobre o problema no momento,
pois a ele retornaremos em breve. Mas sumariamos as conclusões
parciais de Foucault recorrendo a suas palavras sobre os exercícios
indispensáveis ao deslocamento do olhar e seus eventuais efeitos de
subjetivação:
240
acuidade no livro de Eugen Herrigel (1983), A arte cavalheiresca do
arqueiro zen.
Ainda em 10/02/1982, a segunda hora da aula dá seguimento ao
debate sobre o tema da conversão por meio de novas indagações:
“como se estabelece, como se fixa e se define a relação entre o dizer-
verdadeiro (a veridição) e a prática do sujeito? [...] Como o dizer
verdadeiro e o governar (a si mesmo e aos outros) se vinculam e se
articulam um ao outro?” (idem, p. 281). São questões – o próprio
Foucault o diz – que ele procurara abordar em suas genealogias da
loucura (e da doença mental), da delinquência (e das prisões), e mais
recentemente da sexualidade. Porém, agora, o ponto de vista adotado
é ligeiramente distinto dos anteriores, além de convocar períodos
historicamente mais antigos. Foucault assim sumariza sua atual
problematização:
É a questão do vínculo entre o saber das coisas e o retorno a si que vemos aparecer
em certos textos da época helenística e romana dos quais gostaria de tratar,
questão em torno daquele antigo tema que Sócrates já evocava no Fedro, ao
perguntar se devemos escolher o conhecimento das árvores ou o conhecimento
dos homens. E ele escolhia o conhecimento dos homens. (idem, p. 282)
241
exterior, [...] e conhecimentos úteis, que tangenciam diretamente a
existência humana” (idem, p.284).
Apreciemos mais de perto, contudo, o texto de Demetrius. Ele é
composto por duas listas que remetem, respectivamente, ao que é inútil
e ao que é útil conhecer. No primeiro caso, “temos a causa dos
maremotos, a causa do ritmo dos sete anos que cadenciariam a vida
humana, a causa das ilusões de ótica, o motivo de haver gêmeos e o
paradoxo de duas existências diferentes e nascidas sob o mesmo signo,
etc.” (idem, p. 285). Foucault não percebe os conhecimentos incluídos
nessa lista como relativos a coisas afastadas da existência humana.
Modifica, então, sua hipótese inicial quanto ao que constituiria o caráter
comum dos conhecimentos ditos inúteis por Demetrius:
O traço comum e que as tornará inúteis é que se trata [...] de conhecimentos pelas
causas. [...]. Estão ocultas porque é inútil conhecê-las [...] não porque proibido,
mas porque [...], ao conhecê-las não obteremos mais do que algo suplementar,
[...], a título de distração e para sentir um prazer que reside, precisa e unicamente,
na própria descoberta [...]. Prazer de cultura, por consequência, prazer
suplementar, prazer inútil e ornamental [...] (idem, pp. 286-287).
242
que “a maneira como se há de conhecer é tal que o que é dado como
verdade seja lido, de saída e imediatamente, como preceito” (idem,
pp.288-289).
A hipótese inicial de que o conteúdo – saberes sobre o mundo ou
saberes sobre o homem – seria o elemento definidor da
inutilidade/utilidade dos conhecimentos é, assim, inteiramente
descartada.
243
a equipagem, a preparação do sujeito e da alma pela qual o sujeito e a alma
estarão armados como convém, de maneira necessária e suficiente, para todas
as circunstâncias possíveis da vida com que viermos a nos deparar, [...] o que
permitirá resistir a todos os movimentos que poderão advir do mundo exterior.
(idem, p.293)
utilizar como convém, nas coisas verdadeiras que ele conhece, o que é útil, o que
é eficaz para o trabalho de transformação de seu discípulo. [...] É aquela
liberdade de jogo, se quisermos, que faz com que, no campo dos conhecimentos
verdadeiros, possamos utilizar aquele que é pertinente para a transformação, a
modificação, a melhora do sujeito”. (FOUCAULT, 2004, p. 295)
244
a teorização acerca do mundo da existência ética. As análises de
Foucault nos mostram que os objetivos dessas filosofias não
consistiam em forjar uma pedagogização ideal, e sim em procurar
dotar a alma de um equipamento de combate, de um equipamento
crítico no que tange a si mesma e ao mundo. E é justamente essa
paraskeué – equipagem ou equipamento – que produz sujeitos altivos
e livres, difíceis de dominar, quiçá ingovernáveis, dotados de coragem
para, insubmissos, enfrentar as crenças, os perigos da vida e as
autoridades. Nessa direção, ressaltamos o que Foucault nos diz ao final
da aula de 10/02/1982:
245
a partir desse acontecimento decisivo, o sujeito pode conhecer sem
que, para tanto, seu próprio ser de sujeito precise ser transformado,
visto que bastam, para atingir o conhecimento, as regras formais do
método e determinadas qualificações pedagógico-culturais. “Tal como
é, o sujeito é capaz de verdade” (idem, pp. 22-23) – máxima a arrancar
de nossas entranhas, avaliamos, se aspiramos a modos de vida outros.
Quanto ao problema contemporâneo da formação, em que nós,
que subscrevemos estas linhas, estamos há muito envolvidas – no
campo da psicologia e da pedagogia –, quer os modelos hegemônicos
de conversão a si (platônico e/ou cristão), quer a ausência de aspiração
ética associada ao momento cartesiano veiculam unicamente
impasses. Não é difícil perceber que os dois esquemas que foram
privilegiados ao longo da história das relações entre sujeito e verdade
apontam a transcendências, correlacionáveis a guias, leis, mentores.
Por outro lado, prescindir do cuidado de si implica, sem dúvida,
aguardar pelo tecnocrata do momento, pronto a tudo solucionar à
base das técnicas mais modernas ou de algum grau suplementar de
“certificação” na hierarquia formativa.
Já aquele esquema que, como vimos, Foucault (idem, p.314)
apelida “modelo do meio”, ou melhor, o cuidado de si helenístico-
romano, poderia associar-se a modos de formação que gostamos de
dizer “inventiva” (DIAS, 2012; DIAS & RODRIGUES, 2020). Esses modos
de formar apostam na construção de um equipamento (paraskeué)
que, nas palavras do filósofo, nos faculte seja retornar a nós mesmos
como porto seguro, seja – o que soa mais interessante – construir a
nós mesmos durante toda a vida. A respeito dessa alternância entre
retorno e construção, vale reler Foucault, que, sabiamente, prefere
preservar o paradoxo a solucioná-lo: “O que significa retornar a si? Que
círculo é esse, que circuito, que dobra é esta que devemos operar
relativamente a algo que, contudo, não nos é dado, senão apenas
prometido ao termo de nossa vida?” (FOUCAULT, 2004, p.302).
Em meio às práticas e exercícios que compõem o “modelo do
meio”, desaparecem os lamentos: há sempre algo a fazer, algo alegre,
facultativo, porém sempre voltado a engendrar um modo de vida
libertário. E o que seria esse modo de vida? Arriscamo-nos a dizer que
seria aquele modo que vê, na artesania de constituir, hoje, uma ética
do eu, “uma tarefa urgente, fundamental, politicamente
indispensável, se for verdade que, afinal, não há outro ponto [...] de
246
resistência ao poder político senão na relação de si para consigo”
(idem, p.306).
Diferentemente da formação psi e da formação de professores
que começamos a inventar no parágrafo anterior – via um programa
vazio, como deveriam ser todos os programas –, é frequente que se
tente solucionar impasses formativos por guinadas conteudísticas. De
acordo com Fréderic Gros (2004), o segundo e terceiro volumes da
série História da sexualidade teriam tardado oito anos após a
publicação do primeiro não exatamente, como tanto se alega, por uma
“crise” de Foucault, cuja criação estaria bloqueada, e sim pela
descoberta, na antiguidade, da experiência do cuidado de si – nova
problematização que mobiliza o filósofo e à qual ele não pode se
dedicar com total liberdade em função de obrigações contratuais que
o ligam à Gallimard e à série sobre sexualidade. Por esse motivo, os
cursos dos anos 1980 são imprescindíveis para acompanhar as
inflexões do pensamento foucaultiano; muito antes de seu
aparecimento em livros, a genealogia da ética e a relevância
contemporânea das práticas de si para a resistência ao poder obtêm,
nesses cursos, lugar de realce.
Por que motivo a relação de si para consigo teria ganho, no
pensamento foucaultiano, esse privilégio? A resposta a tal indagação
pode ser encontrada, ao menos em parte, em um curso ministrado no
Darmouth College, nos Estados Unidos, em 1980. Na primeira aula,
Foucault reconstitui sua trajetória intelectual desde o pós-guerra,
momento em que predominava, na Europa continental, a filosofia do
sujeito. Depois de breve fascinação, devida sobretudo ao magistério
de Merleau-Ponty, Foucault passa a atribuir a essa forma de filosofia
duas insuficiências: a incapacidade para fundar uma filosofia relativa
ao saber, sobretudo o científico; e a dificuldade em dar conta dos
mecanismos formadores de significação. Tampouco o marxismo, outra
tendência dominante na França do pós-guerra, teria alcançado sucesso
nessas duas empreitadas e, entre as outras saídas possíveis –
positivismo lógico, estruturalismo linguístico, antropológico e/ou
psicanalítico –, Foucault renuncia a fazer uma escolha, digamos, pelo
menos ruim. Tenta, outrossim, escapar à filosofia do sujeito por meio
do estudo histórico da constituição do próprio sujeito. Nesse intuito,
utiliza materiais idênticos aos dos historiadores (das ciências, das
ideias, do pensamento), além de reconhecer sua dívida com Nietzsche,
247
que, ao contrário da maioria dos filósofos – adeptos de um sujeito em
recuo, de um sujeito sem história –, pôs em cena modos históricos de
subjetivação.
Embora inegavelmente acurado, todo esse trabalho está exposto
a riscos de incompreensão e/ou de apropriação, entre os quais o
próprio Foucault acentua aqueles devidos à ênfase excessiva por ele
colocada nas ações de alguns sobre os outros – as chamadas relações
de poder –, pois estas seriam apenas um dos aspectos das artes de
governar em nossas sociedades. O outro aspecto, também
imprescindível, concerne às ações de si sobre si – as ditas relações éticas
ou modos de subjetivação –, sempre correlacionadas às anteriores.
Para apreendê-las, enfatiza Foucault, devemos nos livrar do referencial
freudiano “de interiorização da lei pelo sujeito”, porque: “Felizmente,
de um ponto de vista teórico, e talvez infelizmente de um ponto de
vista prático, as coisas são muito mais complicadas do que isso”.
Consequentemente, ele assim conclui: “Nos próximos anos eu
gostaria de estudar o governo [...] a partir das técnicas de si”
(FOUCAULT, 2011, p. 156).
Essas considerações foucaultianas nos encaminham a memórias
relativas aos debates com os/as alunos/as da UERJ, universidade
pública em que atuamos. Muitas vezes eles/as nos disseram, em aulas
de Psicologia Social ou de disciplinas voltadas às ciências sociais, que o
lado exageradamente tolerante ou “bem comportado” das pessoas se
deveria à “interiorização das normas pelos sujeitos”. Embora sem
agressividade, por vezes perdemos a paciência e retrucamos que,
sendo esse invariavelmente o caso, tornava-se inútil dedicar-se ao
estudo dos modos (históricos) de subjetivação. Hoje, contando com as
contribuições do chamado “último Foucault”, avaliamos que talvez
não tenhamos sabido, à época desses desentendimentos amistosos,
mobilizar o problema das relações a si e de sua necessária imbricação
com certas tecnologias.
Inabilidade análoga talvez tenha ocorrido em situações outras,
quando os/as alunos/as se queixavam das insuficiências da formação
universitária, atribuindo-as a um corpus doutrinal frágil ou restrito e,
portanto, passíveis de ser sanadas por intermédio de conteúdos e/ou
teorias outros. Atualmente, presumimos que a apresentação de
Foucault, no curso A hermenêutica do sujeito, relativa à utilidade dos
saberes, com apoio em cínicos e epicuristas, poderia ter constituído
248
um importante auxílio nesse momento. As considerações de
Demetrius e Epicuro, que trouxemos à cena no presente artigo,
favorecem descartar certos contrastes valorativos, bastante comuns
nos cursos de Psicologia e de Pedagogia, entre ciências da natureza e
do espírito (Dilthey), ciências explicativas e compreensivas (Droysen),
ciências naturais e culturais (Rickert), ciências nomológicas e
idiográficas (Windelbandt) etc. Para os filósofos do período
helenístico-romano, como vimos, um conhecimento é útil menos por
seu conteúdo – objeto a que ele se volta, seja o mundo, seja a natureza,
seja o homem – do que por sua possibilidade, ou não, de transformar-
se em prescrição; melhor dizendo, por sua possibilidade, ou não, de
produzir um equipamento (paraskeué) para enfrentar as provas da
existência; de dotar-nos, ou não, da coragem que permite afrontar as
crenças, os perigos da vida e as autoridades com independência,
exercendo domínio sobre o que depende de nós.
É a ética da verdade que se destaca nesses momentos do curso
de 1982, levando a que os saberes sejam avaliados não como
ornamentos cognitivos ou certificações pedagógico-culturais, mas na
qualidade de armaduras, quiçá “metodológicas”, se entendermos
método não como “conduta conduzida”, mas como possibilidade de
insurgência, de desobediência, de enfrentamento – como
anarqueologia, em suma, para usar o termo cunhado por Foucault
(2014b) ao longo do curso Do governo dos vivos, em 1980. Como
vimos, paraskeuázein significa “preparar para”, portanto “formar”, e
pode sempre distanciar-se de nihilismos, crenças obedientes e
tecnocracias, integrando-se, alternativamente, às artes libertárias de
viver, pensar, agir e ser...neste mundo.
Adotando tal perspectiva, estamos propondo uma ética
metodológica (ou seria uma metodologia ética?) para as práticas de
formação – em nosso caso, de psicólogos e professores. Debater, no
contemporâneo, governo e resistência, conduta e contraconduta,
obediência e insurgência implica que formemos e nos formemos
menos via um corpo doutrinal específico do que por meio daquele(s)
saberes que se mostre(m) capaz(es) de nos equipar com a coragem da
verdade (parresía); menos pela adesão a um modo de vida saudável e
tranquilo, despreocupadamente imerso nos dispositivos
hegemônicos, do que pela invenção coletiva de tecnologias de si aptas
– por mais que sem garantias – a nos libertar – ao menos em parte – do
249
que tem sido feito de nós por tantas e tantas paideías,
empreendedoristicamente instaladas em um mercado neoliberal de
bens de salvação.
DECEPÇÕES HIPERATIVAS
250
genealogia da ética e extremamente próximo do estoicismo – Sêneca,
principalmente, ocupa muitas páginas de seus livros e cursos –,
deparamo-nos com um paradoxo. Em um pequeno artigo, Potte-
Bonneville (2017, p.388) assim o formula:
Essa súbita paixão do filósofo do poder pela herança romana do Pórtico poderia
surpreender; lembremo-nos que, na aula inaugural no Collège de France,
Foucault se propusera a introduzir ‘na raiz mesma do pensamento, o acaso, a
descontinuidade e a materialidade’, nas antípodas, portanto, da universalidade
que os estoicos conferiam ao reino da razão. Arrependimento tardio de um
irracionalista?.
251
(2017), Calçando os tamancos de Paul-Michel: um estudo sobre a
Psicologia na problematização filosófica de Michel Foucault com base nos
manuscritos inéditos dos anos 1950. O trabalho segue fielmente o
roteiro definido pelo título, porém, ao final, salta produtivamente para
a passagem dos anos 1970 aos anos 1980. Enfatiza então o nexo
possível entre “calçar tamancos” para refazer percursos, caminhar e
“fabricar tamancos” (sabots) para sabotar, criando, desse modo, um
saboroso “duplo” foucaultiano. Trata-se, nesse momento, de
singularizar o antipsicologismo de Foucault, que Francisco (2017)
condensa em três aspectos principais: (1) a crítica da Filosofia como
Filosofia do Conhecimento, sintetizável por intermédio do “momento
cartesiano”. Isso não conduz a substituir a Filosofia pela Psicologia
(tentação foucaultiana dos anos 1950), mas a uma nova indagação:
que efeitos tem sobre o sujeito a existência de um discurso que diz a
verdade sobre ele?; (2) a psicologia concebida como forma cultural,
como descriptografia, exigindo hermenêutica ou exegese,
características das ciências do espírito; (3) a crítica da subjetividade
entendida como sujeito do conhecimento, como sujeito “em recuo”
quanto ao mundo, como sujeito transcendental. O que
inevitavelmente nos perpassa é a história e, como Foucault afirmou em
um debate com historiadores ao final dos anos 1970, sempre que
alguma constante parece estabelecer-se, é preciso
“acontecimentalizar” (FOUCAULT, 2003), ou seja, mostrar que não era
assim tão necessário – o que, por sinal, confere um sentido
extremamente preciso à frase “O homem é uma invenção recente”,
contida em As palavras e as coisas.
Ao término do percurso, Francisco (2017) afirma: um pensamento
não melhora, ele se diferencia; na antiguidade não há propriamente
sujeito, nem relação sujeito-objeto; o germe das ciências do espírito
não está no período helenístico, pois, nesse momento, há psykhagogía
– condução das almas –, e não hermenêutica, a despeito da armadilha
presente no título do curso de 1982. Finalmente, parafraseando
Foucault, apela aos “direitos lúdicos da etimologia” para propor, em
lugar de personalidade (personalité), o termo pessoidade (personité) –
de personare, ressoar, resistir à identidade.
Há, portanto, que deixar de ser egoísta... e cuidar de si – sem
saudosismos e com os recursos do presente. A esse respeito, vale
finalizar com o Foucault estoico de Potte-Bonneville:
252
O estoicismo é, diz Foucault, uma “visão do alto de si sobre si, que engloba o
mundo do qual se faz parte e que assegura assim a liberdade do sujeito nesse
próprio mundo”. Mas o que é a arqueologia da loucura ou da prisão, senão uma
tentativa de esclarecer as dificuldades experimentadas o mais próximo possível
de si revertendo-as no discurso histórico mais impessoal, numa espécie de
história natural onde não somos mais que um ponto [...]? E o que é a
“subjetivação” [...], senão uma estranha tentativa de tornar-se quem se é,
desprendendo-se, simultaneamente, de si mesmo e ousando “pensar de outro
modo”? Quando Foucault define seus livros, não obstante voltados ao
anonimato do saber, como “fragmentos de autobiografia”; ou quando
confessa, em sua última obra, encontrar-se “na vertical de si”, é para si mesmo
que reivindica a visão do alto, o olhar sagital do estoico. (POTTE-BONNEVILLE,
2017, p. 391).
REFERÊNCIAS
253
FRANCISCO, Alessandro de Lima. Relação com o outro e cuidado de si:
um estudo sobre a noção de mestria no curso L’hermeneutique du
sujet, de Michel Foucault. Dissertação de mestrado em Filosofia. PUC-
SP, 2010.
FRANCISCO, Alessandro de Lima. Calçando os tamancos de Paul-Michel:
um estudo sobre a Psicologia na problematização filosófica de Michel
Foucault com base nos manuscritos inéditos dos anos 1950. Tese de
Doutorado em Filosofia. PUC-SP e Universidade de Paris VIII, 2017.
GROS, Frédéric. “À propos de l’hermeneutique du sujet”. In: Le Blanc,
Guillaume e Terrel, Jean (orgs.) Foucault au Collège de France: un
itinéraire. Bordeaux: Presses Universitaires de Bordeaux, 2003, pp.
149-163
GROS, Frédéric. “Situação do curso”. In: Foucault, Michel. A
hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 613-661
HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. São Paulo: É
realizações, 2014.
HERRIGEL, Eugen. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. São Paulo:
Pensamento, 1983
JAEGER, Werner. Paideia – a formação do homem grego. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
MUCHAIL, Salma Tannus. Foucault, mestre do cuidado: textos sobre A
Hermenêutica do sujeito. São Paulo: Loyola, 2011.
NEALON, Jeffrey T. Foucault beyond Foucault: power and its
intensification since 1984. Stanford, California: Stanford University
Press, 2008.
POTTE-BONNEVILLE, Mathieu. Michel Foucault estoico? Mnemosine,
Vol.13, nr.2, pp. 388-391 , 2017.
254
ENTREVISTA COM A PROFA. DRA. MARGARETH RAGO
(UNICAMP)
MARGARETH RAGO
Historiadora e professora titular do Departamento de História do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Aposentou-se
em 2015, tornando-se colaboradora do mesmo Programa. Graduou-se
em História na Universidade de São Paulo, em 1970, onde também
cursou Filosofia entre 1976-1979. Doutorou-se em 1990, no
Departamento de História da UNICAMP, onde se tornou professora
em 1985. Defendeu a livre-docência em 2000 e tornou-se professora
titular em 2003. Foi professora-visitante pela Comissão Fulbright no
Connecticut College, nos Estados Unidos, entre 1995 e 1996 e na
Universidade de Colúmbia, em Nova York, entre 2010 e 2011, onde
ministrou cursos sobre a História do Brasil. Foi diretora do Arquivo
Edgard Leuenroth da UNICAMP, em 2000.
255
violentos, dolorosos... Alguns anos depois, em meio a uma profunda
crise, entrei na graduação em Filosofia nessa mesma universidade, e aí
encontrei não apenas Foucault, mas também Gilles Deleuze, Jacques
Derrida, entre outros “filósofos da diferença”, estudados pelos
professores Renato Janine Ribeiro, Leon Kossovitch, Marilena Chauí,
Sergio Cardoso, Milton Meira, Maria Sylvia de Carvalho Franco, entre
outros/as, que admiro até hoje.
Aos poucos, no momento de fazer pós-graduação no Programa
de Pós-graduação em História do IFCH da UNICAMP, que iniciei em
1980, fui-me dando conta de como Foucault me ajudava, por exemplo,
a ler os anarquistas que eu começava a conhecer pela imprensa
operária reunida no recém-criado Arquivo Edgard Leuenroth dessa
mesma Universidade. Progressivamente, fui encontrando neste
filósofo problematizações e operadores conceituais fundamentais
para ler as práticas de resistência dos libertários e das mulheres
anarquistas, profundamente críticos dos micropoderes, mesmo que
não tivessem esse conceito às mãos. Os anarquistas denunciavam as
formas de controle dos corpos, de domesticação não apenas dos
próprios operários, mas das mulheres e crianças; defendiam o amor
livre, criticando o casamento monogâmico indissolúvel; propunham a
autogestão da produção nas cidades e nos campos; questionavam a
necessidade do Estado e denunciavam a opressão exercida pela Igreja.
Foi um impacto enorme conhecê-los, nesse momento de intensa busca
de saídas. Foi, então, que tive contato os textos da anarquista mineira
Maria Lacerda de Moura, como A mulher é uma degenerada? (1924),
Amai e não vos multipliqueis...(1932), cuja biografia seria publicada, em
seguida, pela pesquisadora Miriam Moreira Leite, vinculada à USP.
Décadas depois, encontrei seus artigos na Revista espanhola Estudios,
numa pesquisa que realizava em Barcelona, sobre as Mujeres Libres da
Revolução Espanhola...
Além disso, as instigantes reflexões de Foucault em relação às
tecnologias do poder e ao panoptismo, (lembrando que Vigiar e Punir
foi publicado em 1975, e História da Sexualidade, vol I – A vontade de
saber, em 1976), me fizeram perceber como o processo de
industrialização, de modernização e de urbanização que o Brasil
passava a viver desde o final do século XIX, significava também a
emergência da “sociedade disciplinar”, panóptica, que segrega e
hierarquiza os indivíduos e pretende vigiá-los ininterruptamente,
256
visando a produção dos “corpos dóceis”, economicamente produtivos
mas politicamente submissos, como alertava Foucault.
Aos poucos, me dei conta de que a resistência anarquista não se
dava apenas no interior das fábricas, mas atingia todas as dimensões
da vida social, cultural, subjetiva. Assim, o modelo de família nuclear,
os modelos de feminilidade e de masculinidade e a ideia de infância
que as elites procuravam impor a todos, nesse momento, eram
altamente criticados pelos anarquistas. Para além da difusão do
taylorismo na organização do trabalho nas fábricas, nascia a “rainha
do lar”, assexuada e higiênica, acompanhada do “reizinho da família”,
assim como a educação autoritária contra a qual se opunham os
libertários, criadores das “escolas modernas ou racionalistas”, escolas
mistas, que foram destruídas em 1919, pelas forças policiais, em vários
Estados brasileiros.
Defendida em 1984, essa dissertação de mestrado foi publicada
como livro pela Editora Paz e Terra, em 1985, com o título de Do Cabaré
ao Lar. A utopia da cidade disciplinar; em 2014, na 4ª. edição, completei
o título com Do Cabaré ao Lar. A utopia da cidade disciplinar e a
resistência anarquista.
257
modalidades do poder: as “disciplinas”, o “biopoder”, a “biopolítica”
em que o Estado tem como alvo a vida da população, o que implica a
“tanatopolítica”, ou, em suas palavras, o direito de “fazer viver e deixar
morrer”, desde o século XVIII.
Mostrou-nos também a importância de estudar os “modos de
subjetivação”, isto é, a maneira pela qual o sujeito se constitui na
relação consigo mesmo, e não é apenas constituído como “efeito do
poder”. As “estéticas da existência” dos antigos gregos foram
apresentadas por Foucault em O uso dos prazeres e O cuidado de si,
volumes II e III da História da Sexualidade, como “práticas da
liberdade” destinadas a formar o indivíduo livre e temperante, capaz
de gerir a cidade, pois capaz de autogerir-se. Foucault deu destaque à
ideia de que, para os antigos gregos, o homem temperante, livre,
equilibrado também não poderia ser escravo de si mesmo, ou seja, ser
dominado pelas paixões, como os alcóolatras, por exemplo. Sem saber
cuidar de si, o indivíduo não teria como cuidar do outro ou da cidade,
ao contrário do que se acredita em nossos dias...
Finalmente, a crítica foucaultiana do cristianismo em As confissões
da Carne, vol. IV da História da Sexualidade, nos traz a invenção do
pecado original por Tertuliano e Agostinho, que “libidiniza o sexo”. A
cisão produzida no indivíduo pelo cristianismo é imensa, mostra
Foucault, já que ele deixa de saber de si, de ter a verdade em si mesmo,
como acreditavam os antigos gregos, os estoicos e os epicuristas e
passa a punir-se na busca de purificação e salvação pelo pastor, que
lhe dirá “quem de fato ele é”...estamos falando do “poder pastoral”,
diz Foucault, que nasce nesse momento e logo sai dos muros da igreja
e se expande pelo mundo, assim como a confissão.
Além de nos apresentar essas inúmeras tecnologias do poder –
disciplinas, biopoder, biopolítica, - que, vale lembrar, são históricas -,
quando se deslocou para pensar o “governo das condutas”, Foucault
elaborou o conceito de “governamentalidade”. Já as “práticas da
liberdade” aparecem não apenas nas insurreições, mas nas
“contracondutas”, na “escrita de si”, que contrasta com a confissão,
vista como modo de sujeição, já que implica a relação com uma
autoridade – padre, médico, pai, etc - que diz quem você é, como você
deve se ver, como deve se conduzir, a partir de determinados
parâmetros e referências morais. Ou seja, para Foucault, a confissão
visa a purificação do indivíduo pela inspeção ininterrupta de si mesmo,
258
a condenação dos seus desejos, talvez incentivados por Satanás, que
aliás habita nosso corpo desde o início do cristianismo, e que promove
a renúncia de si. Para os antigos, mostra o filósofo, tratava-se de
“cuidar de si” para construir-se como sujeito ético neste mundo, e não
para anular-se tendo em vista alcançar a salvação no outro mundo,
algum dia, quem sabe...Cito Foucault, em O que é a crítica? - Qu´est-ce
que la critique? (Vrin, 2013, p. 177):
na Grécia antiga, “não se pode ser impuro, imoral e conhecer a verdade. Com
Descartes, é suficiente ver a evidência. E, nesse momento, tem-se um sujeito de
conhecimento não ascético, que vai permitir a institucionalização da ciência e
permitir a pessoas completamente imorais tornarem-se chairman de um
departamento científico, o que nunca seria possível outrora. Platão não poderia
ser imoral.”
259
Priscila Cupello: O sociólogo italiano Maurizio Lazzarato no livro
intitulado “Fascismo ou Revolução?” destaca que: “a tradição iniciada
por Michel Foucault de analisar o neoliberalismo ignorando
completamente sua genealogia turva, escabrosa e violenta, em que se
cruzam torturadores militares e criminosos da teoria econômica, foi
catastrófica sob diversos pontos de vista. O problema não é ‘moral’ (a
indignação com o esmagamento armado dos processos revolucionários
na América Latina), mas antes de tudo teórico e político” (p.21). Como a
senhora enxerga esta crítica realizada por Lazzarato?
Margareth Rago: Embora considere Mauricio Lazzarato um autor
importante, a meu ver, essa crítica a Foucault é muito pobre e revela
que ele não o leu suficientemente e que quer enquadrar suas análises
nas chaves interpretativas que possui e que impedem essa
compreensão. Foucault faz claramente uma genealogia do
neoliberalismo, como mostram outros marxistas conhecidos
atualmente como Christian Laval e Pierre Dardot, em A nova razão do
mundo (Boitempo), livro totalmente referenciado pelo Nascimento da
Biopolítica. Nestas aulas de 1979, que formam esse livro, publicado
apenas em 2004 na França e 2008 no Brasil, Foucault traça a
genealogia do neoliberalismo, diferenciando o ordoliberalismo alemão
e o neoliberalismo norte-americano, além de trazer os principais
nomes dos seus criadores. As páginas destinadas a analisar a teoria do
capital humano de Gary Becker, aliás, são hilárias, especialmente
quando Becker trata do casal hetero e homossexual e da mãe com seu
nenê... Mas Foucault trabalha com a questão do “governo das
condutas”, o que define como “governamentalidade neoliberal”, que
é uma questão essencialmente política, assim como a produção da
subjetividade neoliberal - o “empresário de si mesmo”, que se pensa
como empresa, como bem desenvolvem Wendy Brown e Johanna
Oksala, na esteira do filósofo.
Lazzarato tem muitas reservas para ler e entender um intelectual
que questiona seus pressupostos e análises, ao contrário de Laval e
Dardot. Entendo que ninguém gosta de ser contestado nem de ter
seus regimes de verdade questionados. A proposta foucaultiana de
“sacudir as evidências” sai caro...simples assim. É preciso boa vontade
para ler um autor que coloca um espelho à frente dos nossos olhos e
obriga-nos a nos pensarmos, que nos incita a rever nossas práticas, a
entender de onde viemos, a examinar nossa maneira de ser e que nos
260
força a perceber os jogos de poder envolvidos também em nossas
práticas. Para Foucault, ao contrário dos marxistas, a filosofia não
revela o que está oculto pelo véu da ideologia, nem acredita em
“realidade objetiva”; para ele, a filosofia deve “tornar visível o que é
visível”....precisamos ter olhos para enxergar o que está à nossa
frente. Enfim, é uma outra leitura, muito diferente da filosofia do
sujeito ou da representação. Em geral, os marxistas não são - ou não
eram, a depender da geração, já que também se renovou - muito
favoráveis à psicanálise, à psiquiatria, o que é uma pena. Acreditar-se
revolucionário, do mesmo modo que acreditar-se feminista,
anarquista, socialista não é suficiente para transformar-se a si mesmo.
É preciso um “cuidado de si”, uma elaboração da própria
subjetividade, como ensinam os antigos gregos e nos apresenta
Foucault, em seus estudos sobre a Antiguidade clássica. Tudo dá
trabalho, não?
261
como “Sujeito e Poder” e “Sexualidade e Solidão”, que se encontram
facilmente na internet, ao lado de “O que são as Luzes?”, de 1984.
Sugiro, ainda, a Revista VERVE do NU-SOL, Núcleo da Sociabilidade
Libertária da PUC-SP, de fácil acesso, que traz textos excelentes de e
sobre Foucault.
262
SOBRE AS AUTORAS
263
e Filosofia. Autora do livro Suicídio e Medicalização da vida – reflexões
a partir de Foucault (CRV, 2021).
264
Educação Básica na Irlanda com Bolsa Capes no edital 2023/2024.
Compõe o grupo “Letramentos em Inglês: língua, literatura e cultura”
e tem interesse pelos seguintes temas de pesquisa: letramentos
críticos, neoliberalismo pedagógico, formação de professores e
decolonialidade. E-mail: gcecilianeri@hotmail.com.
JULIA NAIDIN
Pesquisadora com Pós-doutorado PDJ FAPERJ/CNPQ - UENF 2023. Pós-
Doutorado em Políticas Sociais na UENF- Campos dos Goytacazes -
Edital Agenda 2030 Eventos Climáticos Extremos (2021-2022), Pós-
Doutorado em Políticas Sociais na UENF (2018-2020). Curadora e co-
fundadora e produtora da residencia artística "CasaDuna - centro de
arte, pesquisa e memória de Atafona" (2017-2023).
Produtora cultural, curadora, atriz e diretora da CasaDuna – centro de
arte, pesquisa e memória de Atafona desde 2017. Participa do grupo
de pesquisa cênica Grupo Erosão (2017-2023). Editou o número
"Marcações e Mobilizações em tempos de Biopoder", da revista do
Collège International de Philosophie. Doutora em Filosofia pela UFRJ
(2012-2016) com bolsa PDSE na École des Hautes Études en Sciences
Sociales - (Orientador: Philippe Artières) Paris (2013-2014), e Mestra
pelo mesmo programa (2010-2012), apresentando pesquisas sobre a
filosofia ética, estética e política na obra de Michel Foucault. Atuou
como professora de filosofia no coletivo LGBT PreparaNem (2015-
2017). "Vida outra: personagens infames da obra de Foucault", (2021)
é seu livro publicado pela Apek'u editora, a partir de sua tese de
Doutorado defendida em 2016. Realizou o curta documental Mar
265
concreto (2021), que teve estreia nacional na mostra competitiva do
Cineceará, e internacional no CINEAMBIENTE em Torino, Itália (2021),
participou de vários festivais ganhando dois prêmios internacionais.
Suas pesquisas se dão em torno dos temas da arte contextual,
pensamento ambiental decolonial e feminista, e metodologias de
trabalho com arquivo e museologia social. Foi uma das idealizadoras
do projeto “Museu Ambulante” realizado em Atafona em 2020, que
teve forte impacto na região. É autora do livro “Vida-outra,
personagens infames na obra de Michel Foucault” e de diversos
artigos sobre filosofia contemporânea, arte e crítica.
www.casaduna.org.
266
LUDMILA DE VASCONCELOS MACHADO GUIMARÃES
Doutora em Administração, na linha de pesquisa de Recursos
Humanos e Relações de Trabalho pelo CEPEAD/UFMG, com período
sanduíche na Université du Quebec em Montréal. Graduada e mestre
em Administração também pelo CEPEAD/UFMG. Completou o ciclo de
formação teórica em psicanálise no Círculo Psicanalítico de Minas
Gerais. Foi Diretora adjunta de Graduação (2016-2019). É professora do
Programa de Pós Graduação em Administração (PPGA) do CEFET-MG.
Coordena o Núcleo de Estudos Organizacionais Sociedade e
Subjetividade - NOSS, é tutora do Programa de Educação Tutorial (PET)
de Administração do CEFET-MG. Tem como interesse de pesquisa e
ensino as áreas de relacionadas às Clinicas do Trabalho,
Psicossociologia, Psicanálise e suas interfaces com os Estudos
Organizacionais.
267
na História”, com foco na pesquisa de crimes sexuais, especificamente
o crime de estupro corretivo, a relação entre História e Direito, a
violência sexual e as práticas jurídicas. Email:
palomaheller@gmail.com.
268
RUTH MARIA RODRIGUES GARÉ
Pós-doutoramento pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade São Francisco (USF). Doutora e Mestre em Educação, na
linha de Discursos, linguagens e práticas da Universidade São
Francisco. Foi professora pesquisadora durante doutorado na
Universidade do Minho, Braga - Portugal, na faculdade de Educação
em investigação sobre de educação de surdos no país. Atuou como
docente de Libras e disciplinas correlatas, com ênfase no ensino de
português ao surdo até junho de 2021, atualmente é membro de
grupos de pesquisa contribuindo com as leituras sobre as obras de
Foucault.
269