Gramatica em Mudanca Evidencias Da Interface Lingu

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 21

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/346792694

GRAMÁTICA E(M) MUDANÇA: EVIDÊNCIAS DA INTERFACE LINGUÍSTICA


HISTÓRICA/FUNCIONALISMO

Article in Macabéa - Revista Eletrônica do Netlli · June 2019


DOI: 10.47295/mren.v8i2.1940

CITATION READS

1 7

1 author:

Fabricio Amorim
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA)
14 PUBLICATIONS 13 CITATIONS

SEE PROFILE

All content following this page was uploaded by Fabricio Amorim on 06 September 2022.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


GRAMÁTICA E(M) MUDANÇA: EVIDÊNCIAS DA
INTERFACE LINGUÍSTICA
HISTÓRICA/FUNCIONALISMO

GRAMMAR IN CHANGE: EVIDENCES OF HISTORICAL


LINGUISTICS/FUNCTIONALISM INTERFACE

FABRÍCÍO DA SÍLVA AMORÍM


ÍNSTÍTUTO FEDERAL DA BAHÍA, Brasil

RESUMO | INDEXAÇÃO | TEXTO | REFERÊNCIAS | CITAR ESTE ARTIGO | O AUTOR


RECEBIDO EM 01/05/2019● APROVADO EM 27/05/2019

Abstract

This paper aims to show that the study on grammatical shift, which is very relevant to different
functionalist approaches, represents a point from which the interface Functionalism/Historical
Linguistics arises in an evident way. For doing so, the main theoretical and methodological
bases of each approach is discussed and, based on Amorim (2016)’s work, the historical-
functional change is here presented as the study object of the interface in question.
Resumo

Este artigo objetiva mostrar que o estudo da mudança gramatical, tão caro às diferentes
vertentes funcionalistas, representa o ponto do qual emerge, de maneira mais evidente, a
interface Funcionalismo/Linguística Histórica. Para tanto, cotejam-se as principais bases
teórico-metodológicas de cada abordagem e descreve-se, com base no trabalho de Amorim
(2016), a mudança histórico-funcional, aqui apresentada como o objeto de investigação da
interface em análise.

Entradas para indexação

KEYWORDS: Historical Linguistics. Functionalism. Grammar. Historical-Functional


Change.
PALAVRAS CHAVE: Linguística Histórica. Funcionalismo. Gramática. Mudança Histórico-
Funcional.

Texto integral

INTRODUÇÃO

De modo geral, marcam as ciências contemporâneas discussões


epistemológicas que buscam demarcar seus limites e suas expansões teórico-
metodológicas, bem como caracterizar o(s) seu(s) objeto(s) de estudo. Entre as
Ciências da Linguagem, discussões dessa natureza têm sido empreendidas desde
que vieram à tona os postulados de Saussure, considerados precursores para o
estabelecimento da Linguística como uma disciplina científica. Hoje consolidada, a
Linguística agrega diferentes vertentes, que, em virtude de práticas
interdisciplinares, cada vez mais comuns às ciências modernas, têm se mostrado
complementares.
A classificação epistemológica mais basilar dos estudos linguísticos refere-se
ao reconhecimento de dois grandes paradigmas1 – o Formalismo e o
Funcionalismo –, cuja distinção se deve à concepção de língua adotada por cada
um: no primeiro, a língua é concebida como um sistema abstrato, no qual se
estabelecem relações estruturantes que independem de fatores externos (p.ex.,
contexto sociocultural); no segundo, a língua representa um sistema relativamente
instável devido à sua natureza funcional, ou seja, atrelada às intenções dos
falantes.
Dada a diversidade de teorias e métodos que constituem a Linguística
moderna, dentro de cada paradigma geral, desenvolvem-se muitas vertentes. No
paradigma formal, estão, por exemplo, o Estruturalismo e o Gerativismo; no
Funcionalismo, localizam-se o Funcionalismo Clássico, a Linguística Funcional
Centrada no Uso, a Gramática Discursivo-Funcional, etc.

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


O presente artigo volta-se para o paradigma funcional, nomeadamente o
Funcionalismo Clássico e a Linguística Funcional Centrada no Uso, abordando-o
sob o escopo da Linguística Histórica, que, sendo bastante versátil e atrelada à
gênese da própria Linguística, representa um paradigma capaz de abarcar os mais
diversos formalismos e funcionalismos, concepção que se baseia, essencialmente,
em Mattos e Silva (1988; 1991; 2008). Segundo a autora, esse paradigma da
investigação linguística pode ser definido em sentido estrito, referindo-se ao
estudo da constituição da língua através do tempo, ou, em sentido lato, aludindo a
qualquer estudo que se baseia em dados historicamente circunscritos, isto é,
datados e localizados.
O Funcionalismo, em suas diferentes vertentes, desenvolve-se, portanto, no
âmbito da Linguística Histórica, ora em sentido lato, ora em sentido estrito: além
de se debruçarem sobre dados linguísticos datados e localizados, muitos estudos
funcionalistas se ocupam dos fenômenos de mudança nas línguas. Assim, o
objetivo geral deste trabalho é mostrar que o estudo da mudança gramatical, tão
caro aos funcionalismos, representa o ponto do qual emerge, de maneira mais
evidente, a interface Funcionalismo/Linguística Histórica.
Em sentido amplo, a mudança linguística constitui qualquer alteração na
forma ou na função dos elementos da língua, o que, sob um viés funcionalista, não
acontece de maneira abrupta e discreta. Entre os vários fenômenos de mudança,
destacam-se os que se manifestam na gramática, entendida, assim, como uma
estrutura relativamente instável, emergente (HOPPER, 1991; BYBEE, 2010). Para
estudá-los, os funcionalistas se valem da (teoria da) Gramaticalização, que se
refere a mudanças verificadas em itens ou construções que se afastam de um polo
de lexicalidade para tornarem-se (mais)gramaticais. Desse modo, a
Gramaticalização, abordagem eminentemente diacrônica (HOPPER, TRAUGOTT,
1993), constitui o objeto essencial da interface Funcionalismo/Linguística
histórica.
Neste texto, a discussão apresentada desenvolve-se em quatro seções. A
primeira aborda a Linguística Histórica, destacando, além de aspectos teóricos e
metodológicos, o seu papel na historiografia linguística. Na segunda seção,
apresentam-se os principais postulados comuns às diferentes vertentes do
Funcionalismo. Na terceira, discute-se como a gramática em mudança –
Gramaticalização – configura uma instância da qual emerge, mais explicitamente, a
interface Funcionalismo/Linguística Histórica. Para ilustrar a discussão, a quarta
seção é dedicada à análise de mudanças verificadas no paradigma dos conectores
causais do português a partir do trabalho de Amorim (2016). Há, por fim, as
considerações finais.

A LINGUÍSTICA HISTÓRICA

Costuma-se localizar, na década de 1970, um marco de grande importância


para a história da Linguística: assiste-se, naquele período, à retomada da
Linguística Histórica (doravante LH), que se encontrava silenciada pelos ecos

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


estridentes do paradigma sincrônico-formal dos estudos da linguagem. O
surgimento da LH, com feições científicas, é, porém, mais antigo, data do século
XIX, confundindo-se com o nascimento da própria Linguística como disciplina
científica – A LH representou o primeiro empreendimento para o estabelecimento
de uma ciência das línguas, uma vez que, com o seu advento, rompeu-se com uma
tradição de estudos linguísticos bastante influenciada por questões meramente
normativas ou filosóficas.
Contudo, conforme aponta Maia (2012, p. 533), durante grande parte do
século XX, a LH foi marginalizada no rol dos estudos linguísticos, ficando alheia a
muitos progressos experimentados pela Linguística Geral. Prevaleciam, portanto,
até os anos 1970, os estudos linguísticos pautados pela abordagem sincrônica,
consequência da hegemonia do Estruturalismo inaugurado, no início do século XX,
por Saussure, que, ao eleger a langue, e não parole, como objeto de estudo da
Linguística, incitou a valorização da sincronia em detrimento da diacronia, já que a
essa vertente interessava apenas a estabilidade do sistema. Outro aspecto
apontado por Maia (2012) para o isolamento da LH, no âmbito da Linguística
Geral, refere-se à autonomia atribuída aos vários níveis linguísticos, princípio
também estruturalista. Assim,

Ao valorizar a sincronia, a Linguística pós-saussureana


caracteriza-se pelo predomínio de um sincronicismo descritivista
que se contrapõe à Linguística Histórica “tradicional”, histórico-
comparativa ou de feição neogramática. Ao concentrar-se sobre o
sistema funcional da língua correspondente à dimensão da
homogeneidade, deixa de lado outras importantes dimensões do
fenómeno linguístico, nomeadamente a sua dimensão histórica e o
seu carácter social. (MAIA, 2012, p. 534)

O processo de revalorização da LH tem sua origem na aceitação da premissa


de que a mudança linguística é operada na fala (parole); dessa forma, o estudo
restrito ao sistema (langue) não seria capaz, entre outros aspectos, de estabelecer
a distinção entre a origem e a difusão da mudança, fenômenos que requereriam
uma dimensão sócio-histórica de análise.
Essa nova perspectiva acerca da mudança linguística ganha fôlego, a partir da
década de 1970, com a diversificação de orientações teóricas empreendida no
âmbito da Linguística Geral, nomeadamente a Sociolinguística, o Funcionalismo
Clássico, a Análise do Discurso, a Pragmática e a Linguística Textual. Com esses
estudos, a análise diacrônica passou a incorporar a variação linguística e a
interação entre língua e contexto pragmático (MAIA, 2012, p. 534). Rompe-se, com
isso, a dicotomia saussureana “sincronia/dicotomia”, na medida em que o princípio
da variação linguística sincrônica passou a ser observado também em perspectiva
diacrônica, levando ao reconhecimento das dinâmicas sociais e pragmáticas da
mudança linguística. Dessa maneira, o lugar de proeminência reassumido pela LH
resultou de novos olhares que lhe foram lançados, advindos do desenvolvimento
da Linguística Geral (MAIA, 2012, p. 535).

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


Assim, à análise da sucessão de sincronias pretéritas, uma prática já antiga,
acrescentaram-se novos métodos. A publicação da obra de Weinreich, Labov e
Herzog (1968), por exemplo, representou um trabalho pioneiro na utilização de
argumentos diacrônicos para explicar fenômenos sincrônicos, rompendo “as
amarras metodológicas criadas e vividas pelas análises estruturalistas” (MATTOS e
SILVA, 1988, p. 91). Nesse sentido, Mattos e Silva (1988, p. 108) destaca o papel
fundamental da Sociolinguística no resgaste dos estudos sobre a mudança
linguística: “Reentravam assim os estudos diacrônicos na Linguística
contemporânea pelas portas da Sociolinguística sincrônica”.
Um trabalho de grande relevância para um detalhamento da LH é o de
Coseriu (1979), que levanta questionamentos acerca do que é e de como ocorre a
mudança linguística. Assumida uma perspectiva funcionalista, o autor advoga que
a língua é um objeto essencialmente histórico. Assim, opondo-se ao principal
postulado estruturalista, questiona a concepção de língua como um sistema cuja
descrição só seria possível pela observação sincrônica – reconhecendo a inerência
histórica desse sistema, o autor defende que as línguas se constituem,
simultaneamente, de sistematicidade e de historicidade.
Sendo a língua, nessa perspectiva, um sistema histórico, torna-se necessário
que os seus métodos de descrição viabilizem a percepção de suas facetas
sistemática e histórica. Dessa maneira, Coseriu estabelece uma relação
complementar – e não excludente – entre sincronia e diacronia. Cabe ressaltar que
o autor é enfático ao definir sincronia e diacronia como métodos da investigação
linguística, assinalando que não se trata de atributos da língua: uma língua não é
sincrônica tampouco diacrônica; os seus métodos de investigação que podem sê-lo.
Com base em Coseriu, Mattos e Silva (1988; 1999; 2008) propõe uma
definição bifurcada para a LH, reconhecendo a existência da Linguística Histórica
stricto sensu e da Linguística Histórica lato sensu: a primeira refere-se à definição
clássica de LH, isto é, trata-se do estudo da constituição das línguas através do
tempo; a segunda diz respeito a “todo estudo linguístico que se funde em base de
dados necessariamente datados e localizados” (MATTOS e SÍLVA, 1999, p. 149).
Observa-se que a concepção de Linguística Histórica lato sensu defendida por
Mattos e Silva pauta-se pela consideração de que uma análise sincrônica, ao se
basear em dados datados e localizados, adquire uma feição historicamente
contextualizada. Nessa perspectiva, descrições estritamente funcionalistas ou
dialetológicas, por exemplo, inserem-se na Linguística Histórica em sentido lato:
como modelos de análise fundados em amostras da língua em uso, nas suas mais
diversas modalidades e gêneros, Funcionalismo e Dialetologia executam suas
análises sob um viés historicamente contextualizado. Não se inserem na
Linguística Histórica lato sensu, portanto, as teorias formalistas que dispensam,
para as suas análises, dados linguísticos reais.
No bojo epistemológico da LH, é necessário observar a distinção entre os
qualificadores diacrônico e histórico, assumidos, muitas vezes, como
intercambiáveis. Entretanto, segundo defende Mattos e Silva (1999), o estudo da
sucessão de sincronias não é, necessariamente, histórico. É o que se constata, por
exemplo, no Estruturalismo e no Gerativismo diacrônicos, em que se investiga a

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


mudança linguística em termos estritamente formais; excluem-se, portanto, fatores
socioculturais. Assim, é diacrônico o estudo da mudança sob um viés a-histórico,
enquanto histórico é o estudo da mudança que considera fatores de natureza
social, política, cultural, ou seja, históricos (MATTOS e SILVA, 1999, p.150). Com
base nessa distinção, Mattos e Silva (2008, p. 9) reconhece duas orientações com
que se podem desenvolver as investigações da LH stricto sensu, a saber: a
linguística histórica sócio-histórica e a linguística diacrônica associal.
Na esteira da LH, seja em sentido estrito ou lato, estão pesquisas
pertencentes a diversas vertentes teóricas (cf. MATTOS e SILVA, 2008); daí não ser
possível apresentar uma definição unívoca do objeto-língua da Linguística
Histórica. Tal definição depende, portanto, do quadro teórico no qual o estudo
histórico/diacrônico se baseia. O rol de estudos sobre a mudança linguística
apresenta-se como propício para interfaces teórico-metodológicas: “para a
construção da história de uma língua, e para a compreensão e explicitação do
multifacetado problema da mudança linguística, a possibilidade de múltiplas
abordagens precisa ser mobilizada.” (MATTOS e SÍLVA, 1999, p. 163).
Dessa forma, as seções a seguir destinam-se a discutir a abordagem da
mudança gramatical como um ponto em que o Funcionalismo e a LH convergem,
evidenciando uma interface possível para cotejar o “multifacetado problema da
mudança linguística”.

O(S) FUNCIONALISMO(S)

Na Linguística moderna, conforme assinalado, há uma diversidade de


práticas teórico-metodológicas empreendidas sob o rótulo de Funcionalismo, uma
vez que, como explica Castilho (2012):

O funcionalismo não é uma abordagem monolítica; ao contrário,


ele reúne um conjunto de subteorias que coincidem na postulação
de que a língua tem funções cognitivas e sociais que
desempenham um papel central na determinação das estruturas e
dos sistemas que organizam a gramática de uma língua
(CASTILHO, 2012, p. 21)

As subteorias incluídas no âmbito do Funcionalismo são tradicionalmente


organizadas em dois grupos, quais sejam, o Funcionalismo Norte-Americano e o
Funcionalismo Holandês. O primeiro grupo estabelece relações com o
cognitivismo, sendo denominado, mais recentemente, de Linguística Funcional
Centrada no Uso. Seus últimos desdobramentos têm conduzido à consolidação da
Gramática das Construções, subteoria que toma como unidade de análise a
construção linguística: os itens e expressões lexicais ou gramaticais são descritos
como construções a partir de critérios semântico-cognitivos e morfossintáticos. O
segundo grupo, nos últimos anos, tem constituído um modelo de análise conhecido
como Gramática Discursivo-Funcional (Hengeveld, Mackenzie, 2008), pautado pela

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


premissa de que o processamento linguístico acontece de maneira descendente
(top-down), ou seja, da intenção do falante à articulação da expressão linguística
em níveis gramaticais.
Outra subteoria funcionalista, com desenvolvimento expressivo no Brasil, é o
Sociofuncionalismo (GÖRSKI; TAVARES, 2015), caracterizado como um modelo de
interface, pois se ocupa da análise de fenômenos morfossintáticos, em perspectiva
funcionalista, acrescentando-lhe métodos da Sociolinguística Variacionista.
Entre os princípios que constituem a base epistemológica desses diferentes
funcionalismos, podem-se destacar: i) a concepção de língua como um sistema
fluido e ii) a categorização dos elementos linguísticos a partir da teoria dos
protótipos. O primeiro, de natureza teórica, implica o segundo, de caráter
metodológico. Desse modo, conceber a língua como um sistema variável e mutável
requer um método de análise que contemple a fluidez dos usos linguísticos, o que
se faz pela proposição de categorias não estanques, para a apreensão de relações
híbridas entre os elementos constitutivos desses usos, visto que “o princípio da
multifuncionalidade constitui a chave para uma interpretação funcional da
linguagem” (NEVES, 2000, p. 15).
Outros princípios da teoria funcionalista podem ser apontados como gerais2,
os quais, segundo Neves (2012, p. 51), são relativos à relevância atribuída pela
teoria às motivações pragmáticas da língua e às necessidades comunicativas dos
seus falantes. São eles: i) o caráter instrumental da linguagem, que serve a uma
variedade de propósitos comunicativos; os usos linguísticos, portanto, são
motivados por forças externas (cognitivas e socioculturais) e internas à língua,
garantindo um equilíbrio da gramática através de um ciclo que envolve
informatividade e economia3; ii) a língua (e sua gramática) não representa um
sistema autônomo isento de fatores externos e iii) os fenômenos linguísticos, como
os de variação e mudança, são mecanismos para um fim, não um fim si em mesmos.
Assim, ainda segundo Neves (2012, p. 53), tornam-se objetos de análise da teoria
funcionalista: i) a motivação icônica e a competição de motivações; ii) a
gramaticalização e suas bases cognitivas e iii) a fluidez de categorias e a prototipia.
A noção de discurso e gramática são bastante caras à tradição funcionalista.
Ambas as noções dizem respeito a dimensões da língua, sendo o discurso
estruturado pelas estratégias criativas dos usuários, em que se localizam os modos
individuais dos usos linguísticos, e a gramática, pelas estratégias sistemáticas
desses usos, resultado da regularização das estratégias discursivas (ROSÁRIO,
2015, p. 36). Identifica-se, assim, uma relação de imbricamento entre discurso e
gramática, de modo que, conforme explicam Oliveira e Votre (2009, p. 105):

[...] ganha relevo a vinculação entre discurso e gramática, na


defesa de que fatores de natureza pragmático-comunicativa não
só podem ser responsáveis pela regularização gramatical, como
também atuam na seleção e na organização daquilo que a própria
gramática atualiza. Em outros termos, uma vez sistematizados, os
constituintes gramaticais são usados conforme as condições
interacionais, são dependentes dos fatores que marcam as

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


práticas envolvidas no uso. E esses fatores, linguísticos e
extralinguísticos, compõem um espectro bem mais amplo do que
as variáveis sociolinguísticas adotadas na fase inicial. (OLIVEIRA;
VOTRE, 2009, p. 105)

Portanto, subjazem às diversas análises funcionalistas as relações entre


discurso e gramática, uma vez que “o discurso conforma a gramática, mas
principalmente porque ele não é encontrável despido da gramática” (NEVES, 2012,
p. 51).
Quando considerada a sua relação com a Linguística Histórica – lato ou stricto
sensu –, observa-se que, sob o seu escopo, o Funcionalismo é praticado em suas
diferentes versões: na medida em que se volta para a variação e a mudança, em
seus aspectos (sócio)funcionais, as diferentes vertentes funcionalistas esbarram
em construtos teóricos e metodológicos da LH. Assim, sobretudo em suas
investigações histórico-diacrônicas, os funcionalistas buscam desvelar as
dinâmicas funcionais da mudança, o que se discute na seção a seguir.

A MUDANÇA HISTÓRICO-FUNCIONAL

De modo geral, na tradição funcionalista, considera-se que a mudança


linguística resulta de fatores internos e externos à língua. Entre os funcionalismos,
notam-se divergências quanto à natureza dos elementos que podem caracterizar
cada grupo de fatores. Contudo, os fatores internos costumam ser referidos como
elementos gramaticais (fonético-fonológicos, morfossintáticos, semânticos, etc.)
que participam da constituição do sistema linguístico, enquanto os fatores
externos dizem respeito a aspectos sociais, como faixa etária e gênero. É possível,
ainda, considerar como fatores externos elementos discursivo-pragmáticos e
cognitivos, já que estariam mais atrelados ao universo exterior da língua, como o
seu contexto de uso (gênero textual, estratégias discursivas motivadas pelo perfil
dos interlocutores, p. ex.) e a mente dos seus usuários (capacidade analógica,
metafórica e metonímica, p. ex.). Análises empíricas realizadas por diferentes
subteorias funcionalistas, a partir da consideração desses fatores, sustentam a
conclusão de que

A mudança linguística é, portanto, fruto da interação permanente


e intensa de fatores socioculturais, sociocognitivos e tecnológicos.
Sua gênese, sua difusão e sua implementação estão estreitamente
vinculados à história social dos falantes de uma língua e da
sociedade que eles integram” (BAGNO; CASSEB-GALVÃO, 2017, p.
32 – destaque dos autores).

Embora exista uma imensa diversidade sociocultural no mundo, alguns


fenômenos de variação e mudança linguística traçam caminhos bastante

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


assemelhados ou idênticos, mesmo em línguas tipologicamente distintas. Isso se
explica pela existência de tendências universais de mudança, que, diferentemente
do que preconiza o Gerativismo, não têm natureza genética, inata: trata-se de
tendências sociocognitivas universais, que estão sempre em interação com os
fatores ecossocioculturais de uma comunidade (BAGNO; CASSEB-GALVÃO, 2017, p.
27).
Essa interação de fatores gramaticais e sociocognitivos, responsável por
motivar a variação e a mudança linguística, configura, por conseguinte, uma
premissa essencial para a defesa da instabilidade do sistema linguístico. Nesse
sentido, a organização e a operacionalização dos elementos estruturantes desse
sistema constituem uma gramática emergente, que se (re)estrutura pelas
“continuadas gramaticalizações das necessidades sociais de expressão e de
intercomunicação” (CASTÍLHO, 2012, p. 21).
É necessário ressaltar, contudo, que, na concepção funcionalista de
gramática, nem tudo é instável, emergente. Assim, a gramática de uma língua
apresenta, simultaneamente, parâmetros rígidos e fluidos: aspectos estáticos
coexistem com aspectos dinâmicos na estrutura das línguas (ROSÁRIO, 2015, p.
36). Tais propriedades da gramática (funcional) são assim explicadas por Görski e
Tavares (2017):
[...] a gramática é, portanto, ao mesmo tempo, relativamente rígida
– parcialmente automática, convencionalizada pela recorrência de
usos; e flexível – sujeita a inovações, de modo que traços mais
ricos e sutis do contexto podem ser examinados, conscientemente
avaliados e usados de maneira expressiva (GÖRSKI; TAVARES,
2017, p. 46).
Essa perspectiva remete a uma das principais premissas de Coseriu (1979),
segundo a qual a sistematicidade (aspectos estáticos) e a historicidade (aspectos
dinâmicos) constituem facetas concomitantes da estrutura linguística.
No paradigma funcionalista, a variação e a mudança verificadas no âmbito da
gramática, sobretudo em seus aspectos morfossintáticos, é especialmente estudada
pela (teoria da)Gramaticalização. Na Linguística moderna, o termo
gramaticalização pode se referir a uma subteoria – notadamente funcionalista – ou
a um processo específico de mudança linguística (nessa acepção, a
gramaticalização figura também no paradigma formal). Em sua versão clássica,
programaticamente apresentada em Hopper e Traugott (1993), a Gramaticalização
é definida como um processo pelo qual itens lexicais adquirem funções gramaticais
ou, quando já gramaticalizados, tornam-se mais gramaticais. Como subteoria
funcionalista, trata-se de um conjunto de princípios e mecanismos
operacionalizado, metodologicamente, para o estudo de processos de
gramaticalização. Em estudos mais recentes, observa-se um alargamento do objeto
sobre o qual a Gramaticalização se debruça, seja como teoria, seja como fenômeno,
“deslocando o foco do item linguístico para a construção que o instancia.”
(ROSÁRIO, 2015, p. 38).
Tradicionalmente, a Gramaticalização atrela-se ao método diacrônico, sendo
considerada como um dos mecanismos de evolução e reconstrução histórica de

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


uma língua, o que se deve à sua acepção clássica, segundo a qual a mudança de
natureza gramatical segue um continuum – diacrônico e unidirecional – em que
formas lexicais ou menos gramaticais tornam-se (mais)gramaticais. Há, entretanto,
a abordagem sincrônica da Gramaticalização (HOPPER, 1991), pela qual se pode
descrever, em uma mesma sincronia, o comportamento morfossintático e
discursivo de formas gramaticais, remetendo ao continuum diacrônico, isto é, do
menos para o mais gramatical. Nesse caso, a gramaticalização é vista como um
fenômeno discursivo-pragmático. Ainda assim, dado o caráter essencialmente
histórico-diacrônico dos trânsitos de gramaticalização, a diacronia representa uma
propriedade metodológica preponderante para o estudo desse fenômeno,
conforme preconizam Hopper e Traugott4.
A preponderância da abordagem diacrônica, nos estudos de
Gramaticalização, justifica-se até mesmo pela sua abordagem sincrônica, que, ao
buscar descrever a fluidez de padrões discursivo-pragmáticos de uma forma
gramatical, delineia um continuum de mudanças que pode ser verificado
diacronicamente. Com isso, permeia a concepção de Gramaticalização sincrônica
um dos métodos inerentes à Linguística Histórica, qual seja, analisar o presente
para entrever o passado. Essa via metodológica, conforme aponta Faraco (2007, p.
122), baseia-se no princípio do uniformitarismo, que estabelece que fenômenos
verificados em uma dada sincronia estão sob efeito dos mesmos condicionantes
que estiveram presentes em sincronias pretéritas, o que significa dizer que

O estudo sistemático da variação sincrônica, incluído aí o estudo


das chamadas mudanças em progresso, ao elucidar as formas
como está condicionada a heterogeneidade atual, nos dá recursos
metodológicos para melhor analisar o passado, que foi também
uma realidade heterogênea condicionada, basicamente, por
fatores semelhantes aos que operam no presente. (FARACO, 2007,
p.123).

No entanto, nem sempre o continuum sincrônico corresponde a estágios


diacrônicos, constatação que motivou a crescente adoção de outro método da LH
para explicar usos sincrônicos atribuídos a processos de gramaticalização. Assim,
partiu-se dos resultados empíricos de investigações diacrônicas de
gramaticalização, para testar hipóteses relacionadas aos casos de variação
sincrônica advindos desse tipo de mudança. Busca-se, então, no passado,
explicação para fenômenos observados no presente (cf. FARACO, 2007).
Dessa forma, evidencia-se que o estudo da mudança linguística, na
perspectiva funcionalista, ao considerá-la como um fenômeno essencialmente
histórico, insere-se no âmbito da LH. Ainda que, no bojo da investigação, não se
considerem aspectos claramente sociais como motivadores da mudança, o estudo
mantém-se com o pressuposto histórico, já que, conforme assinalado, a gênese,
difusão e implementação da mudança “estão estreitamente vinculados à história
social dos falantes de uma língua e da sociedade que eles integram” (BAGNO;
CASSEB-GALVÃO, 2017, p. 32). Com isso, as investigações funcionalistas,

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


especialmente as que abordam a Gramaticalização, lidam com a mudança histórico-
funcional, explicando-lhe a partir de um viés ora híbrido – social, funcional,
cognitivo –, ora focado em um desses aspectos. A fim de ilustrar empiricamente
essa conclusão, a seção a seguir apresenta resultados do estudo diacrônico
desenvolvido por Amorim (2016), que atesta mudanças histórico-funcionais no
paradigma dos conectores causais do português.

O PARADIGMA DOS CONECTORES CAUSAIS: UMA INSTÂNCIA DA MUNDANÇA


HISTÓRICO-FUNCIONAL

De acordo com Coseriu (1979, p. 23), como já apresentado, a língua é um objeto


histórico, pois a sua realidade perceptível, isto é, sincrônica, constitui o resultado de
estágios anteriores. Com base nessa constatação, entende-se que sincronia e diacronia
são métodos complementares para a investigação da língua, que possui, portanto, duas
faces indissociáveis: a sistêmica e a histórica. Assumindo o ponto de vista coseriano e
considerando a conexão de orações causais como um domínio funcional da gramática,
Amorim (2016) caracteriza-se como um estudo que aborda a língua nas suas dimensões
sistêmico-sincrônica e histórico-diacrônica.
A partir de um corpus constituído de textos que datam do século XIII ao XX,
além de amostras de fala deste século, o autor descreve, sintática e semântico-
pragmaticamente, um total de 843 conectores causais, explorando os resultados dessas
descrições pelo viés sincrônico, através do qual se observam relações de variação e de
especialização entre os conectores em cada sincronia, e pelo viés diacrônico, por meio
do qual se evidenciam rearranjos, no paradigma desses conectores, resultantes de
processos de gramaticalização.
O corpus5 investigado por Amorim (2016) exibe a seguinte configuração
sincrônica no paradigma dos conectores causais do português:

QUADRO 1: Conectores causais em sincronia


Português Arcaico (XIII-XV): Ca, porque, que, como, pois, pois que, porquanto
Porque, que, como, pois, pois que, porquanto, já
Português Moderno (XVI e XVII):
que, posto que
Porque, que, como, pois, porquanto, já que, visto
Português Contemporâneo I (XVIII-XX):
que
Português Contemporâneo II (XXI – amostras
Porque, que, como, já que, por causa que
de fala):
Fonte: Amorim (2016)

Para a análise desse quadro sincrônico, é necessário considerar dois dos


princípios de Gramaticalização definidos por Hopper (1991): a estratificação e a
especialização. O primeiro preconiza que a emergência de novas formas, via
gramaticalização, gera a coexistência de formas distintas em um mesmo domínio

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


funcional da gramática, o que representa, em termos sociolinguísticos, uma
variação estável. O segundo princípio prevê que uma forma em gramaticalização
pode se especializar na codificação de uma das nuanças funcionais do domínio
funcional a que pertence. Com isso, a especialização pode alterar o cenário da
estratificação, já que, segundo Hopper (1991, p. 26), a forma especializada pode
generalizar-se, firmando-se como a única representante do domínio funcional em
que figura.
Desse modo, assumindo a junção causal como um domínio funcional, verifica-
se que tanto a estratificação quanto a especialização são princípios presentes no
paradigma dos conectores causais do português, em diferentes sincronias. Para
compreender as relações descritas por tais princípios, deve-se considerar que,
dentro do domínio da junção de orações causais, existem subdomínios, definidos a
partir das diferentes nuanças de causalidade. Dessa forma, seguindo proposta de
Lopes (2012), Amorim reconhece dois tipos de relação causal, a do enunciado
(referencial) e da enunciação (epistêmica e conversacional), distinguindo, por
conseguinte, dois subdomínios da junção de orações causais, rotulados como
relação causal objetiva e relação causal subjetiva6. Os exemplos abaixo ilustram a
expressão linguística desses subdomínios:

(1) A gente teve que ficá(r) esperando lá a gente tava cansado porque nós
ficamo(s) o dia inte(i)ro no parque.. (Amostra de língua falada, séc. XXI)
(2) Nõ me detenhades, ca Deus mi enderençou mha carreyra... (Flos
Sanctorum, séc. XIV)
Em (1), porque explicita uma relação causal objetiva, na medida em que
“estar cansado” e “ficar o dia inteiro no parque” são estados de coisas relacionados
como causa-efeito, ao contrário de (2), em que ca introduz uma justificativa para
um ato de fala injuntivo (“Nõ me detenhades”), configurando uma relação causal
subjetiva.
A tabela a seguir evidencia que, no português arcaico, a estratificação não se
mostra como um princípio forte, conforme sugere a frequência de cada conector
nos subdomínios:
TABELA 1. Distribuição dos conectores nos subdomínios, no Português Arcaico
Total
Relação causal Relação causal
Conector
objetiva subjetiva

ca 24/20% 102/80% 126

porque 66/70% 28/30% 94

pois 7/50% 7/50% 14

pois que 4/40% 6/60% 10

porquanto 7/78% 2/22% 9

que 1/100% – 1

como 1/100% – 1

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


Total 110/43% 145/57% 255

Fonte: Amorim (2016)

Visto que a estratificação se refere a “formas alternantes de realização das


categorias existentes dentro de um determinado domínio funcional na mesma
etapa histórica de uma língua” (NARO; BRAGA, 2000; 129), não se verifica, por
exemplo, a sua manifestação entre ca e porque, pois suas maiores frequências estão
em subdomínios distintos. Portanto, dentro de cada subdomínio, a concorrência
entre os conectores parece nula, dado o emprego preferencial de porque na
indicação de relações causais objetivas, e de ca, na expressão de relações
subjetivas, o que, por outro lado, aponta para a especialização como um princípio
bastante notável na sincronia em análise. Nesse caso, contudo, a especialização não
acontece por generalização, conforme define Hopper (1991), mas por especificação
(TAVARES, 2003), uma vez que cada conector atua em um subdomínio particular,
cooperando na divisão das tarefas previstas para o domínio. Nessa mesma
sincronia, observa-se, ainda, um uso especializado de porquanto, cuja frequência
concentra-se no subdomínio da causalidade objetiva, estando, assim, em
estratificação em relação a porque.
No português moderno, como se pode ver na tabela a seguir, porque e,
principalmente, como têm frequências significativas no subdomínio da causalidade
objetiva, podendo ser caracterizados como variantes. Essa estratificação parece se
implementar também, no outro subdomínio, entre as formas porque e pois:

TABELA 2. Distribuição dos conectores nos subdomínios, no Português Moderno


Total
Relação causal Relação causal
Conector
objetiva subjetiva

porque 36/40% 53/60% 89

pois 2/8% 23/92% 25

como 25/100% – 25

que 2/22% 7/78% 9

porquanto 1/17% 5/83% 6

pois que 1/33% 2/67% 3

já que – 3/100% 3

posto que – 2/100% 2

Total 67/41% 95/59% 162/100%

Fonte: Amorim (2016)

Quanto à especialização, como aparece como um conector plenamente


especializado na expressão de relações causais objetivas, enquanto pois
especializa-se na indicação de relações subjetivas. O conector porque, ao contrário

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


do que se verifica no português arcaico, perde o estatuto de conector especializado,
tendo a sua frequência distribuída em ambos os subdomínios. Porquanto também
apresenta comportamento divergente do que se observa na sincronia anterior,
sendo preferencialmente empregado na expressão de relações causais subjetivas.
Ademais, registram-se, nessa sincronia, o desaparecimento de ca e o surgimento
dos conectores já que e posto que.
A próxima tabela mostra que, no português contemporâneo escrito, a
estratificação é verificada apenas no subdomínio das relações causais subjetivas,
em que porque e pois se destacam como variantes. A especialização, por sua vez,
implementa-se, nessa sincronia, entre os conectores como, que se mantém
especializado na expressão da causalidade objetiva, e pois, que também segue
indicando, preferencialmente, relações causais subjetivas. O conector porque
consolida-se como um conector notadamente ambíguo quanto à expressão da
causalidade.

TABELA 3. Distribuição dos conectores nos subdomínios, no Português Contemporâneo Escrito


Total
Relação causal Relação causal
Conector
objetiva subjetiva

porque 38/47% 42/53% 80

pois 19/24% 59/76% 78

como 28/100% – 28

porquanto 3/75% 1/25% 4

visto que 2/67% 1/33% 3

já que 1/50% 1/50% 2

que – 2/100% 2

Total 91/46% 106/54% 197/100%


Fonte: Amorim (2016)

Nas amostras de fala, representativas da sincronia contemporânea,


registram-se, conforme exibe a tabela a seguir, a especialização dos conectores
porque e que, mormente utilizados no subdomínio da relação causal subjetiva e a
emergência do conector por causa que7. Além disso, como nos períodos anteriores,
a estratificação não tem manifestação marcante, dada a inexistência de conectores
com frequências equivalentes no mesmo subdomínio, de modo que pudessem se
caracterizar como variantes.

TABELA 4. Distribuição dos conectores nos subdomínios, no Português Contemporâneo Falado


Total
Relação causal Relação causal
Conector
objetiva subjetiva

porque 45/27% 119/73% 164

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


que 12/27% 32/73% 44

por causa que 2/11% 16/89% 18

como 2/100% – 2

já que – 1/100% 1

Total 61/27% 168/73% 229/100%

Fonte: Amorim (2016)

Sob o escopo da diacronia, Amorim (2016) descreve importantes rearranjos


no paradigma dos conectores causais do português. Trata-se, portanto, de ganhos e
perdas, observados no domínio da junção causal, que ilustram a dinâmica de
mudanças funcionais responsáveis pelo “equilíbrio do sistema linguístico, pois a
competição entre forças externas, sociais, e restrições impostas pelo sistema,
forças internas, dá à língua uma organização estável, mas dinâmica, passível de
mudanças.” (BAGNO, CASSEB-GALVÃO, 2017, p.17). Assim, diacronicamente,
operam, no paradigma dos conectores causais do português, as seguintes
permanências/mudanças:
i) ca – o conector causal mais frequente do português arcaico
(50%[126/255]) –desaparece completamente a partir do português moderno;
ii) com o desaparecimento de ca, o conector pois passa a ser mais recrutado
para a expressão de causalidade, o que resulta na perda dos seus usos temporais:
no português arcaico, persistia nesse conector a noção de tempo oriunda da sua
base latina (post);
iii) o desaparecimento de ca dispara também a subjetivização de porque, que,
diferentemente do que se verifica no português arcaico, começa a ser mais
empregado em contextos subjetivos, onde anteriormente predominava o conector
extinto;
iv) porque desponta como o conector causal prototípico do português,
apresentando frequência bastante estável na sucessão de sincronias: português
arcaico: 37% (94/255); português moderno: 55% (89/162); português
contemporâneo escrito: 41% (80/197); português contemporâneo falado: 72%
(164/229);
v) o conector pois, embora tenha experimento um aumento de frequência a
partir do português moderno (15%[25/162]), chegando a representar 40%
(78/197) dos conectores usados no português contemporâneo escrito, está em
desuso no atual português brasileiro falado;
vi) o desaparecimento de pois, preferencialmente empregado, tanto no
português moderno quanto no português contemporâneo escrito, para indicar
relações causais subjetivas, acentua a subjetivização de porque, que, na sincronia
constituída de amostras de fala do português brasileiro, tem mais da metade de
suas ocorrências (53%[119/229]) localizadas no subdomínio da causalidade
subjetiva;

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


vii) como, embora com baixa frequência, mantém-se estável em duas
sincronias, a saber, português moderno (15% [25/162]) e português
contemporâneo escrito (13% [28/197]); caracteriza-se como um conector
altamente especializado, sendo utilizado apenas na expressão de relações causais
objetivas;
viii) que apresenta frequência irrisória, ao longo das sincronias investigadas,
com exceção das amostras de fala – 19% (44/229) –, sincronia em que, entre
outras propriedades, esse conector é semântica e pragmaticamente equivalente a
porque, fato que suscita a hipótese de que esses dois conectores sejam variantes
formais (que seria a variante reduzida de porque);
ix) o paradigma dos conectores causais do português é constituído de formas
cuja gramaticalização se implementa no decorrer da evolução da língua – porque,
pois que, porquanto, posto que, já que, visto que e por causa que – ou, em momento
anterior, ainda no latim – ca, que, como e pois;
x) por causa que representa o conector de gramaticalização mais recente,
sendo identificado apenas nas amostras de fala e com baixa frequência
(8%[18/229]).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O interesse pela mudança linguística está presente na agenda de diferentes


vertentes da Linguística moderna, vinculadas tanto ao Formalismo quanto ao
Funcionalismo. Entre os funcionalistas, esse interesse torna-se preponderante por
ser imprescindível a uma abordagem que apregoa a heterogeneidade e a
instabilidade sistêmicas. Na Linguística Histórica stricto sensu, a mudança
linguística é condição sine qua non para a sua existência como paradigma de
análise linguística. A mudança, portanto, é um objeto de investigação em torno do
qual podem convergir vertentes e paradigmas distintos.
Ratificando a investigação da mudança linguística como uma atividade
propícia ao estabelecimento de interfaces teórico-metodológicas, Mattos e Silva
(1999, p. 163) assinala que, “para a construção da história de uma língua, e para a
compreensão e explicitação do multifacetado problema da mudança linguística, a
possibilidade de múltiplas abordagens precisa ser mobilizada.”
Essas constatações conduzem à conclusão de que o lugar de encontro entre
o Funcionalismo e a Linguística Histórica é o estudo da mudança linguística. Como,
na perspectiva funcionalista, mudanças na gramática têm papel nuclear, é por meio
da Gramaticalização que tal encontro se demonstra mais intenso e produtivo.
Reconhecidos os diversos fatores responsáveis por acionar e difundir a
mudança linguística, cabe afirmar que, como objeto de investigação da interface
Linguística Histórica/ Funcionalismo, esse fenômeno caracteriza-se como histórico
e funcional.

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


Assim, o paradigma dos conectores causais, conforme descrito por Amorim
(2016), revela-se como uma instância da gramática na qual se verificam mudanças
histórico-funcionais. O caráter histórico advém da concepção de que, sendo a
língua um objeto histórico (COSERIU, 1979), as mudanças que nela se
implementam têm a sua gênese nas relações socioculturais estabelecidas pelos
seus usuários: as dinâmicas socioculturais requerem usos linguísticos também
dinâmicos, suscitando mudanças na (gramática da)língua. Ainda que descrição
linguística não se paute, explicitamente, por fatores socioculturais, como é o caso
de Amorim (2016), o estatuto histórico da mudança se mantém, desde que a sua
base epistemológica corrobore a essência histórica inerente às línguas.
A faceta funcional da mudança diz respeito aos fatores pragmáticos e
cognitivos que a motivam. Trata-se de dinâmicas funcionais, que, caracterizadas
pelo elo entre gramática e uso, concretizam-se na relação entre falante e ouvinte,
“que negociam sentido de maneira interativa, tanto respondendo ao contexto
quanto criando contexto” (MARTELOTTA; ALONSO, 2012, p.92).
Dessa forma, os rearranjos observados, diacronicamente, no paradigma dos
conectores causais do português, refletem essas dinâmicas. O desaparecimento de
ca, por exemplo, forma altamente utilizada pelos falantes/escreventes para indicar
relações causais subjetivas, no português arcaico, desestabilizou o sistema,
disparando, para o seu reequilíbrio, uma série de outras mudanças. Assim, na
interação entre os usuários da língua, operaram-se inferências cognitivo-
pragmáticas, como a metonímia, que permitiram mobilizar os usos de pois e porque
em contextos antes ocupados por ca, acrescentando novos sentidos a esses
conectores ou alterando os já codificados.
Por meio dessas dinâmicas, mantêm-se, então, inerentes à língua, a
sistematicidade e a historicidade (COSERIU, 1979).

Notas
1Neste texto, o termo paradigma refere-se a uma categoria teórica mais ampla, dentro da
qual se localizam subcategorias, aqui nomeadas vertentes. Assim, utiliza-se vertente como
hipônimo de paradigma (hiperônimo).
2 Assim como Neves (2012), Castilho (2012) apresenta princípios basilares comuns às
vertentes identificadas como funcionalistas. Além dos princípios citados por Neves, o
autor reconhece, como um dos postulados coincidentes entre os funcionalismos, a
perspectiva pancrônica para a explicação linguística.
3 Segundo a proposta de Neves (2012, p. 55), a informatividade caracteriza-se pelo
aumento da forma fônica, da complexidade semântica e do dispêndio de tempo no
enunciado, bem como por uma relação mais direta entre forma linguística e estrutura da
experiência (maior iconicidade/transparência), enquanto a economia se dá pela redução
tanto da forma fônica quanto da complexidade, pela rapidez do enunciado e por uma
relação mais frouxa entre forma linguística e estrutura da experiência (menor
iconicidade/maior opacidade).

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


4“the chief perspective [of grammaticalization] is historical, investigating the sources of
grammatical forms and the typical steps of change they undergo…” (HOPPER;TRAUGOTT,
1993).
5 Amorim (2016) analisa apenas os conectores causais que participam de construções do
tipo p porque q e porque q, p, sendo p e q segmentos oracionais.
6A dicotomização das relações causais não deixa de reconhecer a fluidez da causalidade.
Trata-se de uma estratégia expositiva pela qual se reúnem relações próximas sob dois
rótulos que remetem à questão da evidenciação ou exploração do elo causal (cf. PAIVA,
1991).
7 Amorim (2016) não reconhece por causa que como uma forma especializada, uma vez
que, no corpus investigado, os usos subjetivos desse conector parecem ser circunstanciais,
resultando de uma assimilação da subjetividade presente no gênero textual relato de
opinião, de onde foram obtidas mais de 70% de suas ocorrências.

Referências

AMORIM, F. S. Gramaticalização de conectores causais na história do


português. 2016. 212 f. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos), Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, São José do Rio Preto, 2016.
BAGNO, M. ; GALVÃO, V. C. C. Mudança linguística: fenômeno sociocognitivo de
base funcional. In: BAGNO, M. et al. Dinâmicas funcionais da mudança
linguística. São Paulo: Editora Parábola, 2017, p. 9-33.
BYBEE, J. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University
Press, 2010.
CAMACHO, R. G. A interface sintaxe e discurso na gramática funcional. In: Os fatos
da linguagem, esse conjunto heteróclito. Araraquara: FCL-UNESP Laboratório
Editorial: São Paulo: Cultura Acadêmica, 2006. p. 39-79.
CASTILHO, A. T. Funcionalismo e gramáticas do português brasileiro. In: SOUZA, E.
R. Funcionalismo Linguístico: novas tendências teóricas. São Paulo: Contexto,
2012, p. 17-42.
COSERIU, E. Sincronia, diacronia e história: o problema da mudança linguística.
Trad. De Carlos Alberto da Fonseca e Mário Ferreira. Rio de Janeiro: Presença,
1979.
FARACO, C. A. Linguística Histórica: uma introdução ao estudo da história das
línguas. 2ª ed. São Paulo: Parábola, 2007.
GÖRSKI, E. M.; TAVARES, M.A. O objeto de estudo na interface variação-
gramaticalização. In: BAGNO, M. et al. Dinâmicas funcionais da mudança
linguística. São Paulo: Editora Parábola, 2017, p. 35-63.
HENGEVELD, K; MACKENZIE, J.L. Functional Discourse Grammar: a
Typologically-based Theory of Language Structure. Oxford: Oxford University
Press, 2008.

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


HOPPER, P. On some principles of grammaticization. In: TRAUGOTT, E.; HEINE, B.
Approaches to Grammaticalization. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins,
1991. p. 17-35.
______. TRAUGOTT, E. C. Gramaticalization. Cambridge: Cambridge University,
1993.
LOPES, A. C. M. Contributos para uma análise semântico-pragmática das causais de
enunciação no português europeu contemporâneo. Alfa, São Paulo, 56 (2), 2012.
MAIA, C. Linguística Histórica e Filologia. In: LOBO, T. et al. Rosae: linguística
histórica, história das línguas e outras histórias. Salvador: EDUFBA, 2012. p. 533-
542.
MARTELOTTA. M. E. ; ALONSO, K. S. B. Funcionalismo, Cognitivismo e a
dinamicidade da língua. In: SOUZA, E. R. Funcionalismo Linguístico: novas
tendências teóricas. São Paulo: Contexto, 2012, p. 87-106.
MATTOS E SILVA, R. V. Fluxo e refluxo: uma retrospectiva da lingüística histórica
no Brasil. DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada,
São Paulo, n.4, p. 85-114, 1988.
______. Caminhos da Linguística Histórica: ouvir o inaudível. São Paulo: Parábola,
2008.
______. Orientações atuais da lingüística histórica no Brasil. Revista Lingüística,
São Paulo, v. 1, n.11, p. 155-174, 1999.
NARO. A.; BRAGA, M. L. A interface sociolingüística/gramaticalização. Gragoatá,
n.9, Niterói. p.125-134, 2000.
NEVES, M. H. M. Gramática de usos do português. São Paulo: Unesp, 2000.
NEVES, M. H. M.. A gramática passada a limpo. São Paulo: Parábola, 2012. 280p
OLIVEIRA, M. R.; VOTRE, S. J. A trajetória das concepções de discurso e de
gramática na perspectiva funcionalista. Matraga (Rio de Janeiro), v. 24, p. 97-114,
2009.
PAIVA, M. C. Ordenação de cláusulas causais: forma e função. 1991. 232 f. Tese
(Doutorado em Linguística). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 1991.
ROSÁRIO, I. C. Gramática, gramaticalização, construções e integração oracional:
algumas reflexões. In: OLIVEIRA, M. R.; ROSÁRIO, I. C. Linguística centrada no
uso. Rio de Janeiro: Lamparina/FAPERJ, 2015, p. 36-50.
TAVARES, M. A.; GÖRSKI, E. M. Variação e sociofuncionalismo. In: MARTINS, M. A.;
ABRAÇADO, J. Mapeamento sociolinguístico do português brasileiro. 1ed.São
Paulo: Contexto, 2015, p. 249-270.

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.


Para citar este artigo

AMORIM, F. da S. Gramática e(m) mudança: evidências da interface linguística


histórica/funcionalismo. Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 8., n. 2., 2019, p. 67-
86.

O Autor

Fabrício da Silva Amorim tem Licenciatura em Letras (Português/Inglês) pela


Universidade do Estado da Bahia (2007), Mestrado em Língua e Cultura pela Universidade
Federal da Bahia (2012) e Doutorado em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (2016). Realizou, pelo PDSE/CAPES, estágio de pesquisa na
Université Catholique de Louvain (Bélgica). É Professor do Instituto Federal da
Bahia/Câmpus Valença.Tem experiência na área de Linguística, atuando principalmente
nos seguintes temas: funcionalismo(s); gramaticalização; orações/conectores causais e
sociolinguística educacional.

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V.1., N.2., DEZ. 2019, p. 67-86.

View publication stats

Você também pode gostar