Leitura Literaria Escola Universidade CAPES-4-82-1-51

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 51

Geam Karlo-Gomes

Rildo Cosson
(organizadores)

A leitura literária
na escola e na
universidade
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
A leitura literária na escola e na universidade / organização
Geam Karlo-Gomes , Rildo Cosson. – 1. ed. – Campinas, SP :
Mercado de Letras, 2021. -- (Série Escola e Universidade, v. 3)

ISBN 978-65-86089-85-1

1. Educação 2. Leitores – Formação 3. Leitura – Estudo e


ensino 4. Literatura I. Karlo-Gomes, Geam. II. Cosson, Rildo.
III. Série.

21-77341 CDD-418.407
Índices para catálogo sistemático:
1. Leitura : Estudo e ensino : Linguística 418.407

capa e gerência editorial: Vande Rotta Gomide


preparação dos originais: Mercado de Letras
revisão final dos autores
bibliotecária: Aline Graziele Benitez – CRB-1/3129

DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA:


© MERCADO DE LETRAS®
VR GOMIDE ME
Rua João da Cruz e Souza, 53
Telefax: (19) 3241-7514 – CEP 13070-116
Campinas SP Brasil
www.mercado-de-letras.com.br
livros@mercado-de-letras.com.br

1a edição
2021
IMPRESSÃO DIGITAL
IMPRESSO NO BRASIL

Esta obra está protegida pela Lei 9610/98.


É proibida sua reprodução parcial ou total
sem a autorização prévia do Editor. O infrator
estará sujeito às penalidades previstas na Lei.
SUMÁRIO

PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Renata Junqueira de Souza

O ENSINO DA LITERATURA COMO LEITURA LITERÁRIA . . . . . . . . . 15

PARTE I – A LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA

1. A LITERATURA NA ESCOLA: POR QUÊ? PARA QUÊ? . . . . . . . . . . . . . 33


José Augusto Cardoso Bernardes

2. A FANTASIA E A BRINCADEIRA NA CONSTRUÇÃO


DO ESPAÇO FICCIONAL NA VIDA DOS BEBÊS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
Celia Abicalil Belmiro e Cristiene Leite Galvão

3. CONVERSAS LITERÁRIAS COM CRIANÇAS


SOBRE DIFERENÇAS E TEMAS POLÊMICOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
Rosa M. Hessel Silveira, Edgar Roberto Kirchof e
Iara Tatiana Bonin

4. NÃO É QUASE A MESMA COISA: UM OLHAR


SOBRE EXPERIÊNCIAS DE LEITURA DE ADAPTAÇÕES
NO ENSINO FUNDAMENTAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
Andréa Antolini Grijó
5. O MEU PÉ DE LARANJA LIMA: LETRAMENTO
LITERÁRIO NO 6º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL . . . . . . . . . . . . 95
Alessandra Barbosa e Elisa Maria Dalla-Bona

6. A LEITURA DE POESIA NO ENSINO


MÉDIO: ALGUMAS EXPERIÊNCIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
Maria do Socorro Pinheiro

PARTE II – A LEITURA LITERÁRIA NA UNIVERSIDADE

7. EDUCAÇÃO LITERÁRIA COMO EXPERIÊNCIA DIDÁTICA


NA AULA DE INGLÊS COMO L2: UM ESTUDO DE CASO
COM ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS DE EDUCAÇÃO
PRIMÁRIA ESPANHOLA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
Agustín Reyes-Torres e Ana García-Arroyo

8. O LETRAMENTO LITERÁRIO EM GRUPO


DE ESTUDO: EXPERIÊNCIAS E POSSIBILIDADES . . . . . . . . . . . . . . . 137
Geam Karlo-Gomes, João de Sá Araújo Trapiá Filho e
Andrea Maria da Silva

9. LITERATURA NO CURSO DE LETRAS: É PRECISO


FORMAR PROFESSORES LEITORES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
Daniela Segabinazi

PARTE III – A LEITURA LITERÁRIA DEPOIS


DA ESCOLA E DA UNIVERSIDADE

10. O UNIVERSO LITERÁRIO E OS LEITORES


CORPORIFICADOS: REVISITANDO AS PALESTRAS
RADIOFÔNICAS DE NORTHROP FRYE DE 1962
Deanne Bogdan e Sean Foley. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171

OS AUTORES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Prefácio

Quando Rildo Cosson e Geam Karlo-Gomes me convidaram


para prefaciar o livro: A leitura literária na escola e na universidade
fiquei muito contente, disse que teria o maior prazer em escrever
para um “velho” amigo e um “novo”, afinal eu e Rildo nos
conhecemos há muitos anos e comungamos das mesmas ideias
sobre educação literária e, Geam o conheci recentemente, em um
grupo de professores universitários que trabalha com práticas de
leitura literária e a empatia foi imediata.
Depois do aceite tive contato com o sumário do livro, e fiquei
ainda mais feliz, pois vários dos autores são colegas. Pensando
dessa maneira, talvez essa não seja uma tarefa tão fácil, abrir um
livro sobre leitura literária na escola e na universidade, cujos
artigos, foram escritos por pessoas que admiro muito e considero
“bam-bam-bam” nas temáticas que estudam, será um desafio. Mas,
adoro desafios...
Acredito que um prefácio é bastante diferente de uma
apresentação, pois no prefácio evidenciamos a temática do livro e
dialogamos com ela a partir também dos nossos conhecimentos,
enquanto que a apresentação é de fato o espaço para apresentar o
livro, seus autores e seus capítulos. Os colegas autores dessa obra
exploram em seus artigos a leitura do texto literário e expõem
experiências importantes e possíveis para o letramento literário na

A leitura literária na escola e na universidade 7


escola, possíveis porque aconteceram e motivaram para a leitura e
para novas práticas educativas.
Os capítulos corroboram acontecimentos que cada vez mais
aparecem em sala de aula e aos poucos estão fazendo o ensino da
literatura chegar ao enfoque apontado por Cosson (2020): “trata-se
de um processo simultaneamente social e individual, que nos insere
em uma comunidade de leitores à medida que progressivamente
nos constituímos como leitores” (p. 172)
Pois bem, os dez artigos do livro A leitura literária na escola
e na universidade coadunam com o modelo do literary literacy e
aliam teoria e prática em vários segmentos da educação. O leitor
vai perceber que assim como Cosson (2020) e Verboord (2003) as
experiências dos autores são visíveis em sala de aula e conseguem
ampliar o conhecimento cultural do sujeito, leitor literário, bem
como respeitar o desenvolvimento pessoal do aluno. Havendo,
portanto, um grande diferencial nos ensaios/capítulos, um
professor que leva em consideração o conhecimento prévio dos
estudantes e, acima de tudo, que procura os interesses pessoais
da sala para o preparo e execução de sua aula. Por conseguinte,
a leitura do texto literário ganha força e os alunos conseguem
relacioná-lo com questões sociais.
Falo aqui daquela literatura capaz de “sacudir” o leitor,
de mobilizá-lo, de humanizá-lo. A literatura que atua como uma
forma de expressão, que espelha a sociedade e permitem-nos
compreender melhor o mundo em que vivemos. Nessa perspectiva,
Junqueira (2021) cita Vigotski, que defende: a criança ou o sujeito
leitor, “ao se apropriar da literatura ingressa no mundo real,
através das palavras que materializam o pensamento”. Dessa
maneira, o texto literário, além de produto cultural, “consegue
ampliar e sensibilizar o entendimento do leitor sobre as coisas,
deixa vestígios de emoções que podem ser revividas (Silva e Urt
2016, p. 228), possibilitando a compreensão da realidade e do
movimento do processo social” (Junqueira 2021).
Ao falar de literatura e de um dos principais argumentos
para utilizá-la, gostaria de ressaltar ainda mais a sua leitura (os

8 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


autores desse livro já o fazem com muita propriedade) mas há
mais de 35 anos convivo com professores, bibliotecários, bebês,
crianças e pais e, durante todo esse tempo, “guardei” experiências
significativas que valorizam o texto literário em todos os
seguimentos educacionais.
Início com os bebês, é incrível como eles se relacionam com
livros de literatura infantil, colocando-os na boca, cheirando-os,
apontando ilustrações, seguindo as letras com seus dedinhos tão
pequeninos – tudo isso são gestos e atos embrionários de leitura
que Cyntia Girotto e eu (2015) definimos há algum tempo, ações
da criança quando ainda não lê convencionalmente. São gestos
realizados durante a experimentação prática com o objeto livro
em situações dialógicas, cujas referências infantis advém de um
leitor mais experiente em seus comportamentos, procedimentos e
atitudes, concretizando assim os gestos e ações embrionários do
ato de ler.
Um exemplo muito vivo que tenho no coração é meu
sobrinho com três meses tentando virar as páginas de um livro
cartonado, enquanto minha filha lia a história para ele. Outro
foi um menino de 8 meses, da creche em que uma aluna fez sua
pesquisa de doutorado, quando ela ao ler o livro apontou uma
ilustração e disse “gostoso”, a criança imediatamente abaixou-se
provando e lambendo o livro. Ou, poderia dizer, ativando todos os
conhecimentos anteriores que ela possuía da palavra “gostoso” e
da bolacha ilustrada no livro.
O caminho com o uso e a disseminação do texto literário
continua, quando na pré-escola nos deparamos com atividades
como o proferir um texto em voz alta e contações de histórias.
Muitas vezes estamos falando em textos com alto valor estético em
que a criança, através da mediação do professor e atividades de
inferências e conexões, percebe o movimento das personagens, o
clímax e discutem com domínio se gostaram ou não do texto.
Uma vivência interessante foi quando eu fiz um trabalho com
Cachinhos de Ouro (Machado 2004) na pré-escola da Universidade.
Em uma atividade após a leitura, tracei junto as crianças de 5

A leitura literária na escola e na universidade 9


anos de idade o boletim literário da protagonista. Me surpreendi
positivamente como elas já faziam ideia de que teriam que
selecionar “critérios” para avaliarem Cachinhos. Critérios em aspas
porque uma aluninha utilizou essa palavra e a sala elaborou vários
critérios: curiosa, educada, enxerida, mexeriqueira, entre outros.
Um professor com conhecimento sobre literatura infantil pode
imediatamente perceber como o aluno que citou mexeriqueira já
conhecia esse adjetivo dos livros de Lobato e da maneira como
as personagens do sítio se referem à boneca Emília; isso o ajuda
a verificar não só o acesso anterior a Lobato, mas também como
o aluno, em idade pré escolar, utilizou-se de uma estratégia de
leitura estabelecendo relações entre Cachinhos de Ouro e Reinações
de Narizinho (Lobato 2005), dois textos infantis que agradam os
pequenos leitores.
Nos segmentos subsequentes, podemos dizer que há a
leitura de textos literários e algumas experiências já divulgadas
em diferentes regiões do Brasil; mostram escolas que se preparam
para trocar livros o ano todo, clubes de leitura que nascem na
biblioteca escolar, professores empenhados em comprar, mesmo
com recursos próprios, livros infantis para compor o baú de leitura
da sala. Eu mesma, já presenciei docentes comprando livros para
todos os seus alunos e essa é uma memória que esse leitor em
formação não esquecerá.
Quero relatar aqui a dedicação dessa professora que a
partir das dificuldades impostas pela gestão escolar ao acesso da
biblioteca da escola, resolveu com recursos próprios montar uma
biblioteca de sala com cerca de 180 livros infantis, que ela chamou
de baú de leitura. Na sua classe de quarto ano, havia regras feitas
pelos próprios alunos, sobre o uso e empréstimo dos livros do baú.
Regras democráticas que, inicialmente, limitavam a retirada de um
livro por semana para ser levado para casa. As crianças, movidas
pelo prazer da leitura, solicitaram à docente que elas pudessem
ter dois dias semanais para pegaram os livros. Quando o ano letivo
terminou, e como na sala do quinto ano, não havia o baú, os alunos
pediram uma reunião com a professora, pois queriam continuar

10 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


retirando e lendo os livros do baú. A professora, então, vinha para
a escola fora de seu horário de trabalho, uma vez por semana para
atender e conversar sobre os textos literários lidos pelos alunos.
O que eu ressalto como elemento crucial para essa experiência
ter dado certo – alguns fatores: a livre escolha do livro e gênero
literário; a escuta feita pela professora do coletivo, as adequações
para privilegiar a leitura e, principalmente, a crença da professora
em formar leitores literários, investindo parte de seu salário na
compra desses livros durante todo ano.
No ensino médio, professores tem resgatado a leitura dos
clássicos através de comparações vindas da mídia ou do dia a dia dos
adolescentes. Eu tenho a impressão que esses alunos, que muitas
vezes tiveram que decorar características literárias, atualmente
são ouvidos por seus pares e pelos docentes, que se organizam com
projetos interdisciplinares e conseguem coletivamente despertar
a vontade para a leitura literária. Muitas vezes, a dificuldade está
em compreender um texto literário. Isso me faz recordar de minha
filha caçula, atualmente fazendo cursinho em São Paulo, que ao
entender o poema Explicação, de Carlos Drummond de Andrade,
em uma aula de literatura, imediatamente me enviou um whatsapp
perguntando se eu tinha o livro Alguma poesia (Andrade 2013), e,
enquanto eu não despachei o livro para sua casa, não sossegou.
No ensino superior, muitas práticas são capazes de fazer
o aluno refletir e compreender o porque ensinar literatura é
importante. Quando os meus alunos chegam para as aulas de
Literatura Infantil (pois é, no curso de Pedagogia que sou professora
a disciplina é obrigatória) não conhecem muita coisa, sempre
menciono A galinha Ruiva (Lobato 1994), dizendo que essa fábula é
o meu termômetro sobre a bagagem literária do aluno, mas poucos
se recordam da galinha que acha um grão de trigo e sem ajuda
trabalha sozinha e divide o pão apenas com seus pintinhos. Se no
começo da disciplina eles não conhecem quase nada ao final, estão
com o cartão da biblioteca lotado de empréstimos da Biblioteca
Infantil do CELLIJ e muitos me procurando para conversarem sobre
livros, indicações de textos literários adultos. Vários seguem lendo

A leitura literária na escola e na universidade 11


e alguns até chegam ao mestrado, doutorado, imagino eu, pelo fato
de que uma boa mediação entre o livro e o leitor, ser a chave para
fazê-los abrir o livro e querer ampliar um repertório que utilizarão
como professores.
Em síntese, essas discussões e exemplos sobre o ensino de
literatura em todos os segmentos educacionais me faz concordar
com Lukács (2010, p. 13) quando afirma que a essência e o valor
estético das obras literárias e sua influência (no outro e em si
mesmo) constituem parte de um processo social geral e unitário
através do qual o homem se apropria do mundo por meio de sua
consciência.
E sobre essa literatura que deve nos constituir Ricardo
Azevedo em recente entrevista, declara:

Do meu ponto de vista, a literatura lembra uma frondosa


árvore cheia de galhos e esses galhos representam
diferentes literaturas, todas legítimas e todas irmãs, pois
são fruto de um mesmo tronco. As chamadas literaturas
para crianças e jovens são galhos dessa mesma e única
árvore onde florescem as outras literaturas. As formas
literárias populares, contos, quadras etc. também. Qual
o ponto comum entre esses galhos? O caráter estético da
obra literária e na verdade de toda obra de arte. (Azevedo
2020, p. 23)

Encaremos esses segmentos como os galhos da fala de


Ricardo Azevedo e juntemos a ele minha querida Louise Rosenblatt
(1983), vigorosa pesquisadora que afirmou que os alunos diferem
uns dos outros e que os professores devem ter isso em mente
ao ensinar literatura. Por exemplo, adotar um cânone literário
nas aulas não seria adequado para todos os alunos. A teoria de
Rosenblatt (1983) se tornou mais importante recentemente,
quando pesquisadores (como os autores desse livro) e professores
sugerem e fazem um ensino de literatura centrado no aluno. O
ensino da literatura mostra-se através dessa discussão bastante
versátil e com vários tipos de leitores com desenvolvimento
literário também distintos.

12 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


Desse modo, o livro que temos em mãos, cuidadosamente
organizado por Rildo Cosson e Geam Karlo-Gomes – A leitura
literária na escola e na universidade – considera que experiências
literárias devem dialogar com o texto, com o mundo, mas,
principalmente, com o leitor que deve assumir um protagonismo
enquanto leitor literário.
Boa leitura!!!

Renata Junqueira de Souza


CELLIJ1

Referências

ANDRADE, C. D. de (2013). Alguma poesia. São Paulo: Companhia


das Letras.
AZEVEDO, R. (2020). “Entre contos e recontos nos recantos da
arte literária.” Literartes, [S. l.], vol. 1, nº 13, pp. 14-30.
Entrevista concedida a A. L. M. Garcia e M. N. T. Vilela.
DOI: 10.11606/issn.2316-9826.literartes.2020.178550.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/literartes/
article/view/178550. Acesso em: 14/03/2021.
COSSON, R. (2020). Paradigmas do ensino da literatura. São Paulo:
Contexto.
GIROTTO, C. G. G. S. e SOUZA, R. J. (2015). Primeira infância e
educação literária: atos embrionários de leitura e estratégias
para a formação do bebê leitor. Projeto de pesquisa (FAPESP)
– Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e
Juvenil, CELLIJ; Centro de Estudos e Pesquisas em Leitura e

1. CELLIJ – Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil –


“Maria Betty Coelho Silva” – Faculdade de Ciência e Tecnologia – Unesp,
Presidente Prudente.

A leitura literária na escola e na universidade 13


Escrita, CEPLE, Universidade Estadual Paulista, Presidente
Prudente; Marília.
JUNQUEIRA. C. C. (2021). Literatura infantil: o papel do livro como
objeto estético no desenvolvimento do psiquismo infantil.
Trabalho acadêmico apresentado na disciplina Leitura,
literatura e interpretação de texto. Presidente Prudente:
Unesp.
LOBATO, M. (1994). “A Galinha Ruiva”, in: LOBATO, Monteiro
Fábulas. 51ª ed. São Paulo: Brasiliense.
LOBATO, M. (2005). Reinações de Narizinho. 16ª reimpressão da
48ª edição de 1995. São Paulo: Brasiliense.
LUKÁCS, G. (2010). “Introdução aos escritos estéticos de Marx e
Engels”, in: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Cultura, arte e
literatura: textos escolhidos. São Paulo: Expressão Popular.
MACHADO, A. M. (2004) Cachinhos de ouro. São Paulo: FTD.
ROSENBLATT, L. M. (1983). Literature as exploration. London:
Heinemann Educational Books Ltd.
SILVA, J. P. e URT, S. da C. (2016). “O valor da arte literária na
construção do sentido estético da criança.” Nuances:
estudos sobre Educação, [S.L.], vol. 27, nº 1, pp. 225-246,
12 maio. Nuances Estudos Sobre Educação. http://dx.doi.
org/10.14572/nuances.v27i1.3692.
VERBOORD, M. (2003). Moet de meester dalen of de leerling
klimmen? De invloed van literatuuronderwijs en ouders op
het lezen van boeken tussen 1975 en 2000. Utrecht: ICS-
Dissertation.

14 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


O ENSINO DA LITERATURA
COMO LEITURA LITERÁRIA

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

(Tabacaria, Fernando Pessoa)

A matéria do ensino da literatura

O que ensinamos quando ensinamos literatura? Qual a


matéria do ensino da literatura? A pergunta, em tempos de bases
curriculares draconiamente detalhadas e testes padronizadores de
competências que atravessam países, pode parecer ociosa porque
bastaria consultar esses documentos para se obter uma resposta
satisfatória. Também considerando que a literatura sempre foi
matéria de ensino, antes mesmo da escrita, a resposta poderia
ser buscada em um percurso histórico, o qual se iniciaria com os
gregos e o valor pedagógico dos poemas épicos de Homero, das
tragédias e dos ditirambos, que vão constituir o que conhecemos
como tradição clássica, passando pelo cânone nacional até chegar

A leitura literária na escola e na universidade 15


às obras representativas de minorias sociais cujas vozes eram
silenciadas ou estereotipadas. Para além das obras socialmente
identificadas como literárias, a matéria do ensino da literatura
poderia também ser encontrada naquilo que essas obras informam
em termos morais, idiomáticos e identitários em combinações
diversas entre forma e conteúdo, segundo a velha e persistente
fórmula horaciana de unir o útil ao agradável. O que se ensina como
literatura poderia ser ainda buscado nas reflexões sistemáticas de
ordem histórica, estilística, crítica e teórica sobre o funcionamento
e a estrutura do literário, escritores e obras específicas, isto é, no
conhecimento sobre a literatura em seus vários aspectos, como
se verifica nos conceitos operacionais de análise textual, estilos
de época, correntes crítico-teóricas e recortes disciplinares que
fornecem conteúdos para o ensino da literatura nas escolas e nas
universidades.
Mais recentemente, a partir da segunda metade do século
XX, com a emergência do ensino da literatura como um campo de
saber entre as Letras e a Educação, a pergunta sobre o que se ensina
quando se ensina literatura, a matéria do ensino da literatura,
ganhou uma outra resposta que se soma às obras, ao conteúdo
e ao conhecimento: a leitura literária em si mesma, a prática da
leitura literária. Não que a leitura literária fosse desconhecida ou
excluída das respostas anteriores. Na verdade, em todas elas, a
leitura dos textos literários era um pressuposto que acompanhava
de maneira implícita o ensino da literatura. Não se concebia, por
exemplo, outra maneira de acesso às obras, aos conteúdos e aos
conhecimentos literários que não pela leitura literária, ainda que
a ênfase do ensino propriamente dito estivesse em outro lugar.
Atualmente, porém, esse acordo tácito é desfeito e a leitura literária
se torna – ela mesma – a matéria principal do ensino da literatura.
Essa resposta não seria possível sem um conjunto de
mudanças conceituais, metodológicas e pragmáticas ocorridas
dentro e fora dos campos das Letras e da Educação. Acompanhadas
de outras tantas transformações socioculturais, elas determinaram

16 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


novos caminhos para a formação escolar na área e afetaram
profundamente o ensino de literatura na contemporaneidade.
Uma dessas mudanças foi o reposicionamento do lugar do
aluno no processo pedagógico, sustentado tanto por abordagens
cognitivistas quanto construtivistas na Educação, com destaque
para os famosos conceitos de Andaime e Zona de Desenvolvimento
Proximal, de Jerome Bruner (2001, 2006) e Lev Vygotsky (1993,
1998), que defendem o papel ativo do aluno no processo de
aprendizagem e do adulto como um mediador. O ensino orientado
para o aluno não apenas o toma como protagonista – afirmação que
já se tornou um lugar comum observado até em peças promocionais
de escolas privadas –, mas também desloca a ênfase do ensino para
a aprendizagem e coloca a presença do professor em segundo
plano.
Outra transformação é a expansão dos estudos sobre a
leitura, que se torna uma espécie de campo de saber atravessado
por várias disciplinas, dentre as quais a História ocupa um lugar
proeminente com a obra de Roger Chartier (1998, 2003), entre
outros estudiosos do impresso e das práticas sociais em torno dos
livros e da leitura. Nesse caso, a leitura deixa de ser a mera decifração
e compreensão do texto escrito para ser vista essencialmente como
uma prática culturalmente localizada, implicando usos e sentidos
tão diversos quanto os leitores, conforme a influência que sofrem
dos suportes e dos modos de circulação dos textos.
Não menos relevante é a emergência do letramento como
parte do reconhecimento de que a sociedade contemporânea é
essencialmente grafocêntrica, logo demanda uma aprendizagem
mais ampla da escrita. Nessa aprendizagem, são consideradas, como
apontam os novos estudos de letramento, defendidos por Brian
Street (2003), e os multiletramentos, de Paul Gee (1996) e outros
estudiosos (The New London Group 1996), as práticas sociais que
envolvem a escrita. É assim que o conceito de letramento focaliza
a escrita menos como uma tecnologia que precisa ser dominada
sob o risco de marginalização ou exclusão social, perspectiva que
sempre esteve presente no horizonte de funções da escola, e mais

A leitura literária na escola e na universidade 17


como um processo de significação que é apropriado de diferentes
maneiras em diferentes contextos.
Uma última mudança diz respeito a todo um conjunto
de reflexões sobre o leitor e sua posição no campo literário, que
assume nova identidade e função nos estudos de Louise Rosenblatt
(2002), Wolfgang Iser (1978), Umberto Eco (2002), Stanley Fish
(1995) e vários outros pesquisadores que são recobertos pela
corrente teórica do reader response criticism. Nessa reconfiguração,
o leitor, quer como leitor modelo ou leitor implícito, quer como um
indivíduo real e concreto de uma transação com o texto ou membro
de uma comunidade de leitores, é posicionado como o elemento
principal ou pelo menos determinante na construção da literatura,
colocando em segundo plano a obra e o autor que ocupavam
anteriormente o centro da reflexões teórico-críticas.
Todas essas mudanças, ao lado de outras tantas que não
elencamos aqui, favorecem o surgimento de novas metodologias
que recusam o papel tradicional de auxiliar no ensino da escrita e
de sustentáculo da identidade nacional dado à literatura, propondo,
em seu lugar, a leitura literária como matéria básica do ensino da
literatura. É o que se observa, por exemplo, em duas obras de grande
influência em países bem distantes e distintos como a Austrália e o
Brasil, que se ocuparam em indicar pioneiramente novos caminhos
para o ensino da literatura na escola.
Publicado em 1984, o livro de The Making of Literature:
Texts, contexts and classroom practices, do professor australiano
Ian Reid (1988), distingue dois modelos no estudo da literatura:
galeria de arte e oficina literária. O modelo da galeria de arte, que
reflete as propostas oficiais e tradicionais da área, toma a literatura
como um discurso superior e autoevidente em suas qualidades que
deve ser preservado, exibido e transmitido pela escola tal como
em uma galeria de arte onde tudo está organizado, legitimado e
etiquetado segundo uma ordem de valores pré-existente para o
visitante. O modelo da oficina literária, por sua vez, apresenta-se
como uma proposta aberta às inovações e às transformações do
campo da literatura, tendo como diretriz a integração “do mundo

18 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


do prazer com o mundo do trabalho, do uso literário com o uso
comum da linguagem, da comunicação verbal com outros meios de
expressão cultural, do ler com o escrever; e dos produtos culturais
com outros meios de produção” (Reid 1988, p. 13, tradução nossa),
ou seja, funcionando como uma oficina em que o exercício efetivo
da leitura literária é fundamental.
Desenvolvido a partir das pesquisas do Centro de Pesquisas
Literárias da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(CPL/PUCRS), o livro Literatura: a formação do leitor – alternativas
metodológicas, das professoras brasileiras Vera Teixeira Aguiar
e Maria da Glória Bordini (1988), traz não apenas propostas
metodológicas didaticamente estruturadas para aplicação em
sala de aula, com destaque para o que denominam de método
recepcional baseado na estética da recepção de Hans Robert Jauss,
como também uma análise incisiva da situação de ensino do ensino
da literatura no país e os passos que deveriam ser percorridos
para a mudança, com orientações concretas para a seleção de
textos ao lado das propostas metodológicas de abordagem textual
para um ensino sistemático e teoricamente fundamentado. Entre
outros aspectos, as autoras defendem que o ensino da literatura
deve respeitar os interesses do aluno na escolha do texto literário,
ampliar esses interesses primeiros para desenvolver o senso
crítico e preservar nas atividades de sala de aula o caráter estético
e lúdico do texto literário. Em síntese, nas suas próprias palavras,
“toda atividade de literatura” deve, em última instância, “resultar
um fazer transformador, uma leitura em que o aluno descobre
sentidos e reelabora aquilo que ele é e o que pode ser” (Aguiar e
Bordini 1988, p. 43).

A leitura literária como matéria do ensino da literatura

Se um conjunto de novas concepções que tratam do


protagonismo do aluno no processo de aprendizagem, as condições

A leitura literária na escola e na universidade 19


histórico-culturais da leitura, os usos sociais da escrita e o lugar
do leitor como agente principal da construção do literário são
determinantes – ao lado de outros fatores que não foram tratados
aqui – para fazer da leitura literária o centro do ensino da literatura,
o que vem a ser essa leitura literária como matéria do ensino da
literatura?
As respostas podem variar tanto quanto as práticas
assumidas como leitura literária dentro e fora da escola. A primeira
– e certamente a mais frágil delas – é aquela que toma a leitura
literária como uma forma de diversão e entretenimento. Trata-
se de uma visão redutora do lugar da literatura na formação do
aluno que, além de minimizar a força da experiência literária,
implica em um apagamento da escola como espaço pedagógico.
Mesmo assim, ela se faz presente em muitas propostas de leituras
extensivas e atividades de animação da leitura na escola, além de
orientar levantamentos de perfil de leitor e projetos de formação
do leitor em outros espaços educacionais. Nessa perspectiva, a
leitura literária tende a ser vista pela ótica da criação do hábito e
do prazer de ler, tendo como referência o livro impresso e, como
modelo, um leitor supostamente adulto e maduro, ou seja, aquele
que toma o texto literário como parte de seu lazer. Tal imagem de
leitor, entretanto, marcada por um recorte excludente de gênero e
classe social, corresponde mais às práticas valorizadas de leitura
do início do século XX do que as deste início do século XXI, quando
as opções de lazer se multiplicam nas telas e nos gadgets da cultura
digital.
Uma outra resposta se preocupa com o desenvolvimento
pessoal do aluno, com o seu crescimento como indivíduo e leitor.
Aqui a leitura literária é um instrumento pedagógico valioso na
escola porque permite que o aluno expresse sua individualidade
ao mesmo tempo que desenvolve suas habilidades linguísticas.
Dessa forma, os exercícios escolares tradicionais em torno do
texto literários são substituídos por outras práticas que abrem
espaço e enfatizam o protagonismo do aluno. Assim, em lugar do
questionário, o debate sobre o texto; em lugar da escrita a partir

20 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


de exemplos a serem imitados, a escrita livre e pessoal como
descoberta; em lugar da cultura como algo dado, a cultura que o
aluno traz consigo e efetivamente usa para se localizar no mundo;
em lugar do conhecimento a ser transmitido, a experiência do aluno
e seu crescimento pessoal através da literatura e da linguagem
(Goodwin 2016). No entanto, a despeito de seu caráter inovador
e libertário, essa forma de conceber a leitura literária enfrenta
grandes dificuldades em atender ao caráter institucional da escola
enquanto espaço socialmente designado para a transmissão da
herança cultural, assim como à necessidade de inserção do leitor
literário em um contexto social mais complexo do que aquele dado
pela medida da individualidade do aluno.
Um terceiro modo de compreender a leitura literária na
escola é tomá-la como um meio eficiente para gerar a empatia
do aluno com o outro, explorando questões sociais, compromisso
político e ideais democráticos. Aqui a leitura literária é
compreendida como uma forma de acessar a experiência do outro,
de vivenciar a vida do outro e com isso criar laços de identidade, ou
seja, em última instância, um processo profundo de humanização
por reconhecer na vida do outro a possibilidade da própria vida,
por aprofundar o conhecimento do outro ser humano (teoria da
mente) e desenvolver a compaixão (teoria da empatia). A leitura
literária seria, assim, uma forma de sensibilizar e preparar o
aluno para viver mais plenamente em uma sociedade democrática
(Nussbaum 1995). Nesse processo de humanização, que se move
entre a catarse e a empatia identitária, a leitura literária ganha, por
um lado, importância no ambiente escolar, deixando de ser matéria
secundária no ensino da escrita e apêndice artístico da histórica
cultural. Também ganha, por outro lado, a suspeita de politização
excessiva, quando não a acusação de doutrinação, e a tarefa
permanente de construir uma especificidade para a literatura que
a sua própria forma de promoção da leitura tende a minimizar.
Por fim, a leitura literária pode, sem esgotar obviamente
as possibilidades, ser considerada como uma experiência única
e irrepetível que o leitor realiza como uma transação com a obra

A leitura literária na escola e na universidade 21


(Rosenblatt 2002) a partir de um repertório que precisa ser
aprendido e cuja aprendizagem se faz pelo manuseio da linguagem
literária no que chamamos de letramento literário (Cosson 2020).
Nesse caso, a leitura literária consiste em um duplo percurso que
acontece simultaneamente e em direções contrárias. Um deles é
o percurso que vai do leitor para si mesmo, em que ele busca os
recursos para transacionar com o texto, para reconstruir o texto a
partir das referências de sua própria vida, o leitor consigo mesmo,
a viagem do intertexto. Outro percurso é o que leva o leitor para
o mundo anunciado no texto, para se apropriar da experiência do
outro que é encenada no texto, o leitor com o mundo, a viagem
do contexto. Na escola, esse duplo percurso da leitura literária
se efetiva por meio de três movimentos. O primeiro, que exige o
contato individual do aluno com o texto, porque somente ele pode
ter essa experiência literária – é o encontro pessoal do leitor com
o texto. O segundo é quando ele registra esse encontro para poder
compartilhá-lo com outros leitores – é a leitura responsiva. O
terceiro é quando lhe é oferecido uma espiral de compartilhamentos
com seus colegas; com seus colegas e seu professor; com seus
colegas, seu professor e outros leitores do presente e do passado,
que registraram suas respostas na leitura daquele texto – são as
práticas interpretativas que ampliam e fortalecem a competência
literária, a competência de ler literariamente.

A leitura literária na escola, na universidade e além delas

Nos textos que compõem este livro, há uma série de


posicionamento quanto à leitura literária como matéria do ensino da
literatura. Com atenção para as adaptações literárias para crianças
e jovens leitores, campo fecundo em que circulam os cânones –
as obras preciosas à academia –, Andréa Antolini Grijó investiga,
em Não é quase a mesma coisa: um olhar sobre experiências de
leitura de adaptações no Ensino Fundamental, o acervo destinado
às escolas públicas pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola –

22 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


PNBE. A partir de 57 adaptações repetidas no período de 2001 e
2013, a autora faz uma análise comparativa de Raptado, de Robert
Louis Stevenson (2002); e a adaptação dessa obra destinada aos
estudantes dos Anos Finais do Ensino Fundamental, de Lígia
Aparecida Ricetto (2003). Para além da análise dos mecanismos
de transposição do texto integral ao adaptado, Grijó mergulha no
campo da narrativa literária e analisa as experiências de leituras
dessas obras por um grupo de 10 estudantes do 9º ano do Ensino
Fundamental, evidenciando as impressões pessoais de leitores de
14 e 15 anos de idade.
Já o campo da poesia é abordado por Maria do Socorro
Pinheiro em A leitura de poesia no Ensino Médio: algumas
experiências. Neste capítulo, a pesquisadora apresenta indagações
pessoais sobre o ensino do texto poético que fizeram/fazem parte de
sua trajetória como educadora para discutir o lugar da experiência
de leitura literária na escola e o papel do professor como mediador.
Percebendo a ausência de vivências da leitura literária pelo leitor
no contexto escolar, Socorro Pinheiro questiona a falta de uma
pedagogia poética e apresenta algumas possibilidades concretas de
trabalho com a poesia em sala de aula.
José Augusto Cardoso Bernardes, em A literatura na escola:
Por quê? Para quê?, parte desses dois questionamentos para
construção de um argumentário sobre a regulação curricular
do ensino de literatura. Neste capítulo, o autor discute as
potencialidades que a literatura apresenta para a educação da
sensibilidade, para o amadurecimento do espírito crítico, para o
acesso a outros tipos de conhecimento e para o desenvolvimento
da competência leitora em meio a uma retórica permeada por
ilustrações de grandes obras da literatura portuguesa, brasileira
e universal. Os argumentos servem de base para os professores
de literatura em escolas de ensino médio (contexto brasileiro) ou
secundário (realidade de Portugal).
Em O Meu Pé De Laranja Lima: Letramento Literário no
6º ano do Ensino Fundamental, Alessandra Barbosa e Elisa Maria

A leitura literária na escola e na universidade 23


Dalla-Bona apresentam uma pesquisa de campo sobre a formação
do leitor literário, realizada em escola municipal de Curitiba Paraná
– Brasil. Com o intuito de tornar as leituras mais proficientes,
com vistas à compreensão dos textos literários, à fruição estética,
à criticidade, a primeira autora desenvolveu um projeto de
intervenção trimestral com uma turma de 29 estudantes do 6º ano,
com idade entre 10 e 11 anos a partir da obra de José Mauro de
Vasconcelos (1968[2017]). Neste capítulo, as autoras apresentam
as estratégias pedagógicas (como jogos didáticos) utilizadas
para promover a formação do leitor literário, as intervenções da
professora/pesquisadora e as práticas de leitura desenvolvidas em
sintonia com as diversas teorias acerca da mediação leitora.
Já Rosa M. Hessel Silveira, Edgar Roberto Kirchof e Iara
Tatiana Bonin, em Conversas literárias com crianças sobre diferenças
e temas polêmicos¸ discutem a ação mediadora da leitura literária
na escola na vida das crianças a partir de três projetos de pesquisa,
que visaram contribuir com as práticas docentes. Os projetos
consistiram na ambientação de sessões de leitura e discussão de
obras literárias (gêneros e temas diversos) em sala de aula com
turmas de crianças de 2º a 5º ano do Ensino Fundamental. Adotando
a estratégia da conversa literária e outras estratégias viabilizadoras
de conexões entre os elementos das obras e as experiências das
crianças, o autores discutem como se tornou possível abordar
um conjunto variado de representações das diferenças (étnicas,
etárias, raciais, de gênero, de orientação sexual, de conformação
corporal, etc.) e a potencialização do discurso da aceitação e do
respeito pelo diferente a partir da leitura individualizada ou em
pequenos grupos de diversos livros infantis.
Preocupada com a formação docente, o ensino da
leitura e da literatura e a formação de leitores, a pesquisadora
Daniela Segabinazi discute o importante papel de formação
do professor leitor. Intitulado Literatura no curso de letras: é
preciso formar professores leitores, esse capítulo apresenta uma
discussão consistente e relevante sobre a formação inicial do
docente no Brasil (Licenciatura em Letras), argumentando em

24 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


favor de uma formação que precisa estar: sintonizada com os
paradigmas contemporâneos do ensino de literatura; integrada
aos conhecimentos práticos e aos saberes advindos da experiência
pessoal; e enveredada por uma postura investigativa e reflexiva.
Em especial, a pesquisadora discute uma proposta de formação
docente em que os conhecimentos didáticos, metodológicos e
teórico-práticos da educação literária e do letramento literário
possam favorecer um ensino de literatura em que o diálogo com
adolescentes e jovens seja viável e promissor.
Em sintonia com essa discussão, Agustín Reyes-Torres e Ana
García-Arroyo apresentam uma abordagem didática com vistas ao
desenvolvimento da competência literária de estudantes do 1º ano
da formação inicial para professores da Universidade de Valência
(Espanha), sob o título Educação literária como experiência didática
na aula de inglês como L2: um estudo de caso com estudantes
universitários de educação primária espanhola. Nele, os autores
tecem discussões sobre letramento, pensamento crítico, descoberta
da literatura como beleza estética e apresentam um arcabouço
didático para o desenvolvimento da competência literária em três
dimensões fundamentais do letramento – dimensão pessoal e
cognitiva; dimensão conceitual; e dimensão ética e sociocultural –,
vivenciadas com um grupo de 45 alunos da Facultat de Magisteri,
da Universidade de Valência.
A discussão sobre a formação inicial de professores e
pesquisadores da literatura, do letramento literário e do leitor
literário também faz parte do capítulo O letramento literário em
grupo de estudo: experiências e possibilidades, de Geam Karlo-
Gomes, João de Sá Araújo Trapiá Filho e Andrea Maria da Silva.
Nele, os autores discutem o papel da universidade, dos centros de
pesquisa e, especialmente, dos grupos de pesquisa quanto ao campo
do letramento literário na formação de professores dos cursos de
Letras e de Pedagogia. Para isso, realizam uma autoavaliação
de suas experiências no Grupo de Estudo “Ensino da leitura,
letramento literário e imaginário – EL3i” (vinculado ao grupo de
Pesquisa “ITESI – Itinerários Interdisciplinares sobre os Estudos

A leitura literária na escola e na universidade 25


do Imaginário” e ao Projeto de Extensão “PROFIC_Letras – Projeto
Formação Inicial e Continuada de Professores da área de Letras”,
ambos da Universidade de Pernambuco). O texto contempla
as experiências com o letramento literário em pesquisas, em
aprofundamentos teóricos, na docência e as experiências estético-
literárias vivenciadas por graduandos, mestrandos e professores
da educação básica (integrantes do referido grupo de estudo) em 4
Ateliês de formação para o pesquisador – Letramento Acadêmico,
Letramento Literário, Elaboração de Projetos e Desenvolvimento de
Pesquisas –, promovidos de modo remoto em função do isolamento
social provocado pela COVID-19.
Da formação do professor na universidade se volta para o
início da formação escolar. No capítulo, A fantasia e a brincadeira
na construção do espaço ficcional na vida dos bebês, Celia Abicalil
Belmiro e Cristiene Leite Galvão discutem como os bebês se
relacionam com o mundo no ínterim do real e do ficcional; e, mesmo
não desenvolvendo estratégias leitoras capazes de compreender o
universo das narrativas literárias, manifestam outras linguagens
– balbucios, gestos, choro e outros sistemas simbólicos – para
construção de seus enunciados, ou seja, as tentativas de narrar
episódios vivenciados (protonarrativas). É a partir dessa premissa
que as autoras investem no projeto de pesquisa sobre a construção
do território do imaginário em bebês de 6 a 18 meses. Neste texto,
são analisadas as construções elaboradas por 12 crianças de 1 ano
de idade e, de igual modo, o estudo contempla um olhar sobre o
papel dos adultos em uma escola municipal de Educação Infantil de
Belo Horizonte (Brasil).
A obra também contém um capítulo que apresenta a
experiência de letramento literário para além dos muros da escola
básica e da universidade. O capítulo O universo literário e os leitores
corporificados: revisitando as palestras radiofônicas de Northrop Frye
de 1962, de Deanne Bogdan e Sean Foley, surge a partir do programa
de rádio “Ideias”, da Canadian Broadcasting Corporation (CBC), que
apresentou duas transmissões dedicadas às Palestras Massey, de
1962 (a mesma em que o célebre teórico literário Northrop Frye

26 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


proferiu “Seis Conversas para o Rádio”, constituindo mais tarde a
obra The educated imagination (1963 [1988])). Nessas transmissões,
a estudiosa da obra de Frye, Deanne Bogdan, e o produtor da CBC,
Sean Foley, conversaram sobre como a teoria do letramento literário
de Frye ainda mantém influência na imaginação literária dos leitores
contemporâneos. Como uma jornada de redescoberta e revelação,
Bogdan e Foley se sentem entusiasmados em compartilhar neste
capítulo a experiência literária que advém das teorias de Frye,
discutem suas fundamentações, apresentam exemplos, analisam
trechos de sua obra e enxergam o programa “Ideias” como sementes
para o benefício de leitores, escritores e educadores.
Assim, na contramão de uma tradição escolar da
historicização da literatura e de seu uso pedagógico unilateral
de acesso ao universo da escrita, os textos apresentados nesta
coletânea são frutos de experiências de leitura literária, em que a
literatura é vista como uma necessidade humana universal diante
de seu imprescindível papel na formação do leitor literário, na
escola, na universidade e além delas.
Em seu processo de produção e leitura do texto literário, o
homem dá sentido ao mundo. Esse processo é social, pois permite
experiências de vida por meio da materialidade expressa nas
palavras do outro ou sobre o outro. Assim, é por meio da experiência
de construção literária de sentidos, seja por meio da leitura, escuta,
contação e produção de textos que o letramento literário se efetiva
nas práticas sociais.

Organizadores

Referências

AGUIAR, V. T. e BORDINI, M. G. (1993). Literatura: a formação do


leitor – alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado
Aberto.

A leitura literária na escola e na universidade 27


BRUNER, J. S. (2001). A Cultura da Educação. Porto Alegre: Artes
Médicas.
________. (2006). Sobre a Teoria da Instrução. São Paulo: Ph Editora.
CHARTIER, R. (1998). A aventura do livro: do leitor ao navegador.
São Paulo: Unesp e Imprensa Oficial São Paulo.
________. (2003). Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São
Paulo: Unesp.
COSSON, R. (2020). Paradigmas do ensino da literatura. São Paulo:
Contexto.
ECO, U. (2002). Lector in fabula: a cooperação interpretativa no
texto narrativo. São Paulo: Perspectiva.
FISH, S. (1995). Is there a text in this class?: the authority of
interpretive communities. Cambridge, Mass.: Harvard
University Press.
FRYE, N. (1963[1988]). The educated imagination, The 1962 Massey
Lectures. Second Series. Toronto, ON: CBC Enterprises/les
Enterprises Radio-Canada, a Division of the Canadian Broa
dcasting Corporation.  
GEE, J. P. (1996). Social linguistics and literacies: ideology in
discourses. 2ª ed. Londres: Taylor & Francis.
GOODWYN, A. (2016). “Still growing after all these years? The
resilience of the ‘Personal Growth model of English’ in
England and also internationally.” English Teaching: Practice
& Critique, vol. 15, nº 1, pp. 7-21. https://doi.org/10.1108/
ETPC-12-2015-0111.
ISER, W. (1978). The act of reading: a theory of aesthetic response.
Londres: Routledge & Kegan Paul.
NUSSBAUM, M. (1995). Poetic justice: the literary imagination and
public life. Boston: Breacon Press.
REID, I. (1984 [1988]). The Making of Literature: Texts, contexts and
classroom practices. Norwood, SA: Australian Association
for the Teaching of English.

28 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


ROSENBLATT, L. (1938 [2002]). La literatura como exploración.
México, DF: Fondo de Cultura Económica.
STEVENSON, Robert Louis (2002). Raptado. Tradução de Agripino
Grieco. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
________. (2003). Raptado. Tradução de Agripino Grieco e adaptação
de Lígia Ricetto. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
STREET, B. (2003). “What’s ‘new’ in New Literacy Studies?
Critical approaches to literacy in theory and practice.”
Current issues in Comparative Education, vol. 5, nº 2, p.
77-91. Disponível em: http://www.tc.columbia.edu/cice/
Archives/5.2/52street.pdf. Acesso em: 28/06/2007.
THE NEW LONDON GROUP. (1996). “A pedagogy of multiliteracies:
designing social futures.” Harvard educational review, vol. 66,
nº 1, Spring. Disponível em: http://hepg.org/her-home/issues/
harvard-educational-review-volume-66-issue-1/herarticle/
designing-social-futures_290. Acesso em: 10/03/2007.
VASCONCELOS, J. M. (2017). O meu pé de laranja lima. São Paulo:
Melhoramentos.
VYGOTSKY, L. S. (1993). Pensamento e linguagem. São Paulo:
Martins Fontes.
________. (1998). A formação social da mente. 6º ed. São Paulo:
Martins Fontes.

A leitura literária na escola e na universidade 29


PARTE I
A LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA
1
A LITERATURA NA ESCOLA:
PORQUÊ? PARA QUÊ?

José Augusto Cardoso Bernardes

O texto literário – mais propriamente, o texto poético –


desempenhou, ao longo de toda a história do Ocidente,
um papel preeminente na formação escolar, educativa e
cultural dos jovens e não existem razões substantivas para
que se altere significativamente, e muito menos para que se
abandone, essa herança multissecular.

(V. Aguiar e Silva,


Teses sobre o ensino do texto literário... , p. 207)

Há 50 anos, dois professores de Literatura Portuguesa


conversavam, em Coimbra, sobre matérias do seu interesse:
um era jovem e recém-doutorado e o outro, embora perto da
jubilação, conservava ainda bastante atividade e influência. Vivia-
se o tempo áureo dos estudos literários nas Faculdades de Letras
europeias. O prestígio da disciplina, que durante décadas tinha
estado centrado na história e na edição de textos, iniciava a sua
fase teórica, envolvendo entusiasmos mas também desconfianças.
Com ela chegavam, por exemplo, as primeiras dúvidas e sinais de
transformação no plano institucional.

A leitura literária na escola e na universidade 33


Era justamente sobre essas mudanças que falavam. Num
quadro de demarcação e autonomia, a Teoria da Literatura
reclamava espaço nas secções e no currículo, em detrimento da
Filologia mais tradicional.
Referindo-se a esses sinais, o jovem professor antecipava
consequências tanto para o ensino como para a agenda da
investigação universitária.
Seguramente menos informado do que se passava fora da
sua universidade, o interlocutor desvalorizava essas consequências,
em tom sentencioso: “Ora, ora! A literatura sempre se ensinou e
sempre se há de ensinar! Tanto no Liceu como na Universidade!”
A uma distância tão grande, parece que a razão estava
sobretudo do lado do professor mais jovem e também, por via disso,
mais inquieto. Situada naquele tempo e naquelas circunstâncias,
porém, a resposta não era desprovida de fundamento. Afinal, com
avanços e retrocessos, a literatura (ou o que hoje designamos por
esse nome) vem estando presente nas escolas do mundo desde há
muitos séculos: primeiro fazendo parte do currículo secundário e
depois, a partir de meados do século XIX, integrando os saberes
universitários, em regime de paridade com todos os outros.1
O problema reside sobretudo no vaticínio. Confrontado
com uma asserção tão categórica, o destinatário pode desde logo
ter pensado para si mesmo: “Como é possível garantir que o ensino
da literatura nunca vai desaparecer?”

1. Em estudo que ficou justificadamente célebre (datado de 1987 e reedi-


tado em 2007, com estudo adicional do autor), Gerald Graff faz remontar
a 1828 o processo de institucionalização do ensino da literatura, com
sinalização de cinco etapas: “Literature in the Old College:1828-1876;
The Early Professional Era: 1875-1915; Scholars Versus Critics: 1915-
1950; Problems of Theory: 1965- ’’. Em obra mais recente, Rens Bod,
Professor na Universidade de Amsterdão, amplia o arco geográfico e
cronológico, identificando sinais de ensino regular da Poética na Anti-
guidade helénica e indiana (cf. Bod, pp. 65-73).

34 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


Esse assomo de dúvida que pode ter acudido à mente do
nosso colega tem hoje ainda mais razão de ser. Perguntemos
pois, de novo: que fundamentos podem sustentar uma convicção
tão firme? Não estaremos face de uma profecia corporativa? Com
maior ou menor consciência desse facto, não estaremos perante um
desejo suspeito, que apenas existe no íntimo daqueles que fazem
do ensino da literatura o seu modo de vida, tanto na universidade
como no ensino secundário?
A circunstância de a literatura se ter mantido na Escola ao
longo de tantos séculos pode ser uma ilusão de conforto mas não
constitui garantia de perenidade. No passado como no presente,
essa permanência resulta sobretudo de uma decisão política. E
todos sabemos como esse tipo de escolhas se encontra dependente
da sensibilidade social de cada momento.
Em virtude do processo de fragmentação de saberes que
se acentuou nas últimas décadas, o currículo é cada vez mais um
espaço de conflito político.2 E nessa disputa conta sobretudo a força
localizada de quem nela intervém. É por essa via e não por outra
que o peso específico dos conteúdos programáticos se reforça ou
sai diminuído em cada revisão curricular. E se é verdade que, nos
nossos dias, nenhuma matéria consegue escapar a esse tipo de
debate, ele ocorre com particular intensidade quando se trata de
conteúdos humanísticos. Vem acontecendo assim com a História e
a Filosofia, desde logo.
A lógica do confronto fica sobretudo à vista sempre que, por
iniciativa dos governos, se verifica uma alteração dos programas
escolares. Quando se anuncia essa ocasião, logo se manifestam

2. O mesmo Gerald Graff, em estudo posterior àquele que antes citei


(1993), procede a uma análise do currículo enquanto espaço de con-
flito. Embora a sua atenção recaia sobre a realidade norte-americana, o
estudo detém plena aplicação à realidade de outros países.

A leitura literária na escola e na universidade 35


posições que, em outros momentos, se manteriam reduzidas ao
silêncio ou limitadas ao murmúrio.3
Quando se trata da literatura, as discussões incidem
principalmente sobre as obras de leitura obrigatória: quantas e
quais devem ser efetivamente estudadas?
A simples presença de muitos textos literários nos
programas não garante, contudo, que estes sejam considerados na
sua especificidade.
Vejamos um exemplo bem revelador: durante algum tempo
(entre 1998 e 2014), a lírica de Camões constou expressamente
do programa do ensino secundário em Portugal. Eram indicados
alguns sonetos, e tanto os programas como os manuais continham
linhas de análise. As ditas linhas, porém, destinavam-se apenas
a uma leitura de superfície. Em nenhum momento se aludia, por
exemplo, aos códigos retóricos e estéticos que andam associados à
poesia camoniana (petrarquismo, neoplatonismo etc.). Os textos em
causa serviam apenas para exemplificar o discurso autobiográfico,
e o que mais interessava era identificar as marcas linguísticas desse
registo de comunicação.4
Face às suspeitas que hoje recaem sobre a utilidade
formativa da literatura e dos saberes humanísticos em geral, torna-
se necessário proceder a uma revisão dos fundamentos que podem
legitimar a sua manutenção no currículo.

3. Em Portugal, o exemplo de polémica mais recente no âmbito dos con-


teúdos literários ocorreu por meados de 2019. Perante o anúncio de
uma iniciativa ministerial, discutiu-se então nos jornais (de forma bem
acesa) a possibilidade de Os Maias, de Eça de Queirós, deixarem de ser
leitura obrigatória para os alunos do 11º ano de escolaridade. A ideia,
que acabaria por não ir por diante, seria recomendar, em alternativa,
um romance (semipóstumo) do mesmo autor: A Ilustre Casa de Ramires.

4. Sobre a presença “desfigurada” da Lírica de Camões nos programas de


Português que vigoraram entre 1998 e 2014, tive já ocasião de me pro-
nunciar (Bernardes 2012, em particular, pp. 41-43).

36 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


Durante muitos anos, a presença da literatura na escola
dispensava justificações demoradas. O motivo era implícito
mas consensual: tratava-se de acolher e valorizar a vertente
mais nobre da cultura e da língua. E eram muitos os textos
e autores que povoavam as antologias antigas. Havia alguns
obrigatórios, sim; mas, para além deles, os professores e também
os alunos curiosos dispunham de vasta margem para fazer leituras
descomprometidas.
A situação alterou-se entretanto, de forma significativa.
Aos saberes literários, como aos restantes saberes humanísticos,
começou a ser pedida uma prova continuada de utilidade.5
Tratando-se de uma situação inevitável, coloca-se o
problema de saber quem deve ser chamado a depor perante o
“tribunal” que decide a regulação do currículo. É necessário contar
com a opinião dos professores, certamente. Afinal também eles
foram alunos. Depois, supõe-se que, por escolha e gosto, continuam
a ser leitores e apreciadores de literatura. E, sobretudo, só eles
testam, em cada dia, o impacto dos textos que dão a ler aos seus
alunos.
Para além de fundamentos empíricos, a construção de um
argumentário requer uma componente reflexiva ou teorética. De
facto, de forma direta ou indireta, os pensadores da literatura
(nos quais se incluem alguns escritores) não deixaram de dar
testemunho das potencialidades formativas da escrita literária.
Tomando assim por base, por um lado, a perspetiva dos
professores e, por outro, as reflexões teóricas, impõe-se recuperar
e selecionar os argumentos mais sólidos e mais adequados às
circunstâncias que vivemos.
“Por quê a literatura?” “Para quê a literatura?” As perguntas
parecem vir do fundo dos séculos. Em boa verdade, porém, a

5. Os desafios que as Humanidades enfrentam na Escola e na Sociedade


dos nossos dias têm originado uma bibliografia caudalosa. Em estudo
recente, tentei ocupar-me do mesmo assunto, em registo de síntese
(Bernardes 2018).

A leitura literária na escola e na universidade 37


insistência com que têm vindo a ser formuladas nos últimos tempos
justifica respostas incisivas e atualizadas.
Refiro, em concreto, os anos mais recentes porque foram
aqueles em que a literatura se viu mais ameaçada no espaço
académico. Essa ameaça resulta, em primeiro lugar, do movimento
geral que vem ditando a redução do conhecimento humanístico nos
programas;6 mas deriva também, em grande parte, do que podemos
designar por dissídios de contiguidade.
O exemplo mais conhecido desse tipo de dissídios é a querela
entre o cânone antigo e o cânone contemporâneo, colocando em
posições antagónicas os que defendem a primazia dos textos
antigos e aqueles que, invocando desajustamento à sensibilidade
dos alunos, preferem os autores modernos e contemporâneos. A
par deste, porém, importa referir um outro divórcio que se verificou
e continua a verificar na área disciplinar do Português. Falo, desta
vez, da disputa entre linguistas e estudiosos da literatura. Esse
afastamento é mais recente e dividiu ao meio a área matricial da
filologia: de um lado ficaram os que viam na literatura uma forma
de texto equiparável a tantas outras; no outro quadrante, situam-se
aqueles que encaram o fenómeno literário como uma modalidade de
expressão especialmente rica e complexa do ponto de vista cultural e
comunicacional; e, por isso, irredutível à sua estrutura de superfície.

Porquê a literatura?

Em Lição proferida a 30 de novembro de 2006, no Collège


de France, Antoine Compagnon faz uma apologia modelar da
literatura enquanto saber que requer uma aproximação conjugada
de gosto e de inteligência.7 Os motivos que invoca são sobretudo

6. Embora com intuitos essencialmente metodológicos, o conjunto de ar-


gumentos mais completo e sistematizado que conheço foi definido por
Vítor Aguiar e Silva na forma clássica e incisiva de “Teses”.

7. Entre outras condicionantes, essa apologia deve ser compreendida à luz


do trajeto do autor. De facto, Compagnon obteve a sua formação inicial

38 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


fundados na justificação clássica, que vem de Aristóteles a Horácio:
a literatura ensina, gratifica e congrega seres humanos.
Qualquer um desses fundamentos possui força própria.
E qualquer um deles deve estar presente na consciência e no
saber do professor. Até porque, mais do que sucede com outros
saberes, o conhecimento da literatura requer uma motivação
sólida e renovada no íntimo de quem a ensina. Quem lida com
textos literários na sala de aula ganha muito em consciencializar os
motivos que justificam o seu esforço. Sem uma visão sistematizada
desses motivos, o professor corre o risco de se tornar vítima de
um processo de desgaste que pode tornar-se devastador. Por
esse motivo, de ordem emocional, os defensores da presença da
literatura na Escola sublinham a necessidade de os professores
se ocuparem dos textos em registo de verdadeira “paixão”. Se não
se afirmar como modelo de leitor que sente e conhece de forma
especial, o contágio de conhecimento e de entusiasmo torna-se
bem mais difícil senão impossível.
Os argumentos que vou enumerar destinam-se aos
professores de literatura que desenvolvem a sua ação nas escolas do
ensino médio ou secundário. São eles quem mais necessita de estar
apetrechado interiormente para o desafio que é ensinar algo que
não é fácil, não desfruta de cotação mediática nem garante ganhos
rápidos, em termos de vantagem social ou de empregabilidade.
Ainda que indiretamente, admito e desejo que os alunos
possam beneficiar desse processo de consciencialização. Na medida
em que identificam, com radar certeiro, o saber e a convicção do
professor são eles os destinatários de um mecanismo de contágio
que pode deixar rasto perdurável.

em Engenharia, tendo chegado às Letras de forma que pode considerar-


se tardia. Assim explica ele (de forma excessivamente modesta) o facto
de não possuir a cultura literária de outros. Mas assim se entende, por
outro lado, a auto-justificação da sua escolha e a forte convicção que a
ditou.

A leitura literária na escola e na universidade 39


A literatura influencia a vida coletiva

Como sucede com todos os argumentos que derivam de


evidências, também este pode ser menosprezado. E, no entanto,
estamos perante um motivo de inegável importância. De facto,
com este ou com outro nome, o que hoje chamamos literatura
acompanhou a evolução da humanidade. E não falamos apenas
de textos escritos. O facto de a literatura ter precedido a escrita
significa que ela própria é construtora de memória. A esse respeito,
basta lembrar o rasto de textos como os da Bíblia ou os poemas
homéricos, que passaram até hoje pela fase da transmissão oral,
manuscrita, impressa e electrónica.
No âmbito da cultura portuguesa, o exemplo mais impressivo
é sem dúvida, o de Os Lusíadas. Concebido por um poeta e soldado
da Índia (ausente do Reino durante mais de década e meia) e saído
dos prelos de um obscuro tipógrafo lisboeta em 1572, o poema de
Camões acompanhou e moldou a vida dos portugueses nos domínios
cívico e cultural até aos nossos dias. Basta lembrar o contínuo fluxo
editorial do poema, quer em versões de aparato quer em versões
populares, para concluir que os portugueses (e também outros
povos que se exprimem em português) nunca puderam passar sem
Os Lusíadas. Isto para não falar da presença nunca interrompida
de Camões na Escola, ligando gerações sucessivas através de um
imaginário muito próprio.8

A literatura revela uma outra realidade

O segundo argumento está relacionado com a capacidade


evocativa dos textos literários. É bom lembrar que a literatura não

8. Para um conspecto da presença de Camões nos programas de Portu-


guês, veja-se Bernardes, 2012.

40 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


se limita a incorporar a realidade pré-existente; para além disso,
reinventa e cria realidades novas: existe um nordeste peninsular
que foi criado e representado pelos trovadores, uma Lisboa de
Eça de Queirós, uma outra de Cesário Verde e ainda outra criada
por Fernando Pessoa/Bernardo Soares; como existe um Minho
de Camilo Castelo Branco, um sertão de Guimarães Rosa, uma
Beira de Aquilino Ribeiro, um Trás-os-Montes de Miguel Torga,
um Rio de Janeiro de Machado, uma Londres criada por Charles
Dickens ou uma Dublin de James Joyce. E nenhum desses lugares
reinventados pelos escritores vem suficientemente descrito nos
verbetes de enciclopédia ou nos guias turísticos. O que se oferece
ao leitor de textos literários são ângulos imprevistos que permitem
reinterpretar realidades empíricas.
Mas a realidade que a literatura deixa entrever não se
circunscreve a coordenadas de tempo e de lugar. Para além disso,
os textos literários veiculam um conhecimento relacionado com
emoções e sentimentos, tanto no plano pessoal como no plano
coletivo. Nos grandes romances há personagens densas que criam
memória duradoura no leitor. Através dessa memória, podemos
aproximar-nos um pouco mais dos mistérios da espécie humana;
atualizando e aprofundando essa reminiscência (por vezes mesmo
sem reler os livros) podemos até ficar a conhecer-nos um pouco
melhor.

Para quê a literatura?

O estímulo de descoberta

Talvez nenhum outro tipo de discurso possa ser hoje tão


estranho para um jovem como o discurso literário, tomado na
sua acepção mais comum, que pode ir de uma cantiga de amigo
a um poema de Carlos Drummond de Andrade ou a um romance
de José Saramago. De facto, a literatura requer um tempo lento

A leitura literária na escola e na universidade 41


que desapareceu do quotidiano dos adolescentes (e também dos
adultos).
O que a literatura reclama contraria os hábitos de
comunicação que hoje prevalecem: o sentido de um soneto de
Camões é apenas indiciado quando o jovem está habituado a tweets
claros e incisivos. Outro fator surpresa é que no dito soneto a
forma (o estilo e a disposição retórica) são as chaves do conteúdo.
Na maioria dos casos, o mais provável é que o leitor necessite
de conhecer alguns códigos estéticos. Pode achá-los bizarros e
sobretudo trabalhosos em termos de compreensão.
O mesmo sucede se for confrontado com a necessidade de
compreender o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. Como pode
entender (e aceitar) que o Judeu seja condenado por professar uma
religião diferente? Como reagirá quando depois de ter assistido à
condenação de uma alcoviteira e de um sapateiro, verifica que os
quatro cavaleiros de Cristo são diretamente acolhidos na Barca do
Anjo por terem morrido em martírio de fé?
E, no entanto, subsiste esta verdade: um simples poema
de 14 versos pode falar da condição humana naquilo que ela tem
de mais perene e misteriosa. Se for devidamente explicado, o
soneto pode ainda interpelar-nos em termos de uma profundidade
que nunca alcançaremos através dos referidos tweets. O mesmo
sucede com a peça de Gil Vicente: remete-nos para valores
que já não professamos, mas mantém uma enorme capacidade
interpelativa sobre a justiça e a tolerância, incluindo a forma
como se inscreveram na história e como têm vindo a evoluir até
aos nossos dias. Temos assim um problema, com dois vértices em
aparente oposição: o texto literário pode ser de difícil compreensão
e pode conter ensinamentos preciosos. Confrontado com esse
paradoxo, o professor só tem um caminho: descobrir uma forma
de o apresentar ao aluno, com sentido de eficácia e com habilidade
pedagógica. Só assim poderá preservar a potencialidade formativa
dos textos, evitando, ao mesmo tempo, que se crie uma atitude de
rejeição porventura irreversível.

42 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


O desfasamento entre os procedimentos comuns e aqueles
que são requeridos pela leitura literária, vem suscitando posições
desencontradas. Há quem defenda que, por estar tão afastada dos
hábitos dos alunos, a literatura deixou de ser bem vinda à escola.
Segundo esta lógica, existe vantagem em que o aluno reencontre
na sala de aula o tipo de comunicação a que já está habituado no
ambiente familiar ou nas redes sociais.
Mas há também quem argumente em sentido oposto.
Segundo esses, é justamente por ter caído em desuso que a literatura
deve manter-se no currículo. A ideia de que deve proporcionar-
se aos alunos apenas aquilo com que eles já estão familiarizados
colide com a missão da Escola, fazendo dela uma oportunidade de
recreio, mas não um lugar e um tempo de formação.

A literatura educa a sensibilidade e o espírito crítico

A par de outras formas de expressão artística (mas


tendo sobre elas a vantagem de assentar numa base verbal) os
textos literários prestam-se à educação da sensibilidade e ao
amadurecimento do espírito crítico. Sendo fruto de ambos, a leitura
literária requer uma aproximação de base emocional e inteligente.
Sabemos que, na sala de aula, nem sempre é possível aproveitar as
duas vertentes de forma equilibrada e eficaz.
Muitas vezes, o contacto com os textos literários efetua-se
com recurso exclusivo ao espírito de análise descritiva, descurando
a interpretação. Embora reconhecendo o valor do procedimento
analítico, é na interpretação e em tudo o que ela envolve, que o
ensino da literatura se revela mais fecundo.
Através do exercício de leitura lenta e aprofundada, o aluno
adquire inclusivamente capacidades para lidar com outro tipo de
realidades cifradas ou não imediatas. O importante é persuadir
o jovem de que vale a pena não desistir dos textos difíceis. Pelo
contrário: mais do que quaisquer outros, eles constituem o acicate
perfeito para exercitar, pelo menos, três faculdades humanas
necessárias ao exercício da liberdade: o espírito crítico, a atenção
e a sensibilidade.

A leitura literária na escola e na universidade 43


A literatura tem um efeito agregador

Ao mesmo tempo que a sensibilidade e o espírito crítico


permitem o encontro pessoal do aluno com o texto literário,
existe uma outra vertente de percepção que se revela importante.
Podemos ler de forma diferenciada O Auto da Barca do Inferno,
Os Lusíadas, Os Maias ou Dom Casmurro. Mas isso não anula a
existência de um patamar de entendimento coletivo. O efeito
agregador que daí resulta faz-se sentir em diferentes gerações:
a possibilidade de pôr a falar entre si pessoas com idades muito
diferentes sobre o Parvo vicentino (ou a Inês de Castro de Camões,
a Maria Eduarda de Os Maias ou a Capitu de Dom Casmurro) resulta
da existência de referentes culturais comuns. O mesmo sucede
com alunos e professores de diferentes escolas e regiões de um
país. Em meu juízo, é essa a principal vantagem da existência de
um programa nacional que, embora com margens de flexibilidade,
aponte determinados textos como sendo de leitura obrigatória.9
Também a esse propósito, a Escola se confronta com
a necessidade de contrariar tendências instaladas. Sabemos
nomeadamente que todos os inquéritos internacionais assinalam
o decréscimo da competência leitora dos alunos; sabemos ainda
que o adolescente de hoje consome sobretudo textos produzidos
por emissores da sua idade e já não escritos por adultos, sobretudo
aqueles que viveram há muito tempo. Compete à Escola valorizar
esta vertente, que é realmente mais difícil de manter. Se assim
não for, nada se fará para equilibrar a vertigem da comunicação
imediata e logo esquecida. A disponibilidade para escutar outras

9. Por via da existência de um currículo nacional uniforme, este mesmo


efeito agregador faz-se sentir comparativamente mais em Portugal do
que no Brasil, onde as escolas e os professores dispõem de mais autono-
mia para a escolha de livros e autores. No caso de Portugal, esse efeito
estende-se inclusivamente a lugares remotos, onde vigoram os progra-
mas aprovados pelo Ministério da Educação. Refiro-me, concretamente
às escolas portuguesas de Moçambique, Angola, São Tomé, Timor, Cabo
Verde, Guiné-Bissau e Macau.

44 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


vozes é um traço essencial da leitura literária e repercute-se, de
forma particularmente benéfica, em dois aspetos: na regulação da
memória coletiva e no espírito de alteridade, que se revelam tão
necessários à vida pessoal sadia e íntegra e tão úteis ao triunfo da
justiça e dos direitos humanos.
Num plano diferente, a literatura pode ainda servir para
aproximar povos que, em aparência, podem estar muito afastados
em termos de cultura. Quem trabalha com alunos estrangeiros está
em posição privilegiada para confirmar isso mesmo. Basta, por
exemplo, que um aluno chinês se aproxime de uma cantiga de amigo
para nela reconhecer um fundo temático da sua própria cultura.
Daí resulta não tanto um efeito de surpresa, mas um sentimento de
pertença solidária a uma mesma espécie.10

A literatura desenvolve a capacidade verbal

Como é sabido, não existe uma predisposição para a leitura.


E se a criança necessita de aprender a juntar letras para conseguir
entender palavras simples e depois frases elementares, é ainda
mais necessário ensinar a ler textos complexos, os mesmos que
vão além dos vocábulos já conhecidos e requerem associações
imprevistas ou não programadas.

10. Referindo-se a este mesmo fundamento e sublinhando o potencial de


conhecimento tolerante que lhe anda associado, Compagnon afirma,
com ênfase: “A literatura deve por isso ser lida e estudada porque ofe-
rece um certo meio – alguns dirão mesmo, o único meio – de preservar
e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão afastados de
nós no espaço e no tempo ou que diferem de nós pelas circunstâncias
da sua vida. A literatura torna-nos sensíveis ao facto de os outros serem
muito diferentes e ao facto de os seus valores se afastarem dos nossos
valores”. (Cf. parágrafo 72). (Tradução Minha).

A leitura literária na escola e na universidade 45


Essa aprendizagem deve iniciar-se tão cedo quanto possível
(em regra, a criança reage a uma história bem contada) e deve
prosseguir depois, de forma gradual e ponderada.11
O contacto com o texto literário permite justamente o
incremento dessa competência leitora. É difícil conseguir que o
aluno leia devagar e com atenção, uma vez que são outros os ritmos
e os níveis de concentração a que está habituado. Mas vale bem a
pena travar essa batalha.
A capacidade de ler textos complexos revela-se de tal forma
importante que nunca poderemos dá-la como suficientemente
cuidada.12 A ela, porém, junta-se ainda uma outra, relacionada com
a natureza verbal da literatura. Refiro-me ao desenvolvimento das
capacidades de expressão. De facto, oferecendo-se como desafio
à compreensão do leitor, o texto literário requer a mobilização
de recursos expressivos inusuais. Para se referir a textos dessa
natureza, o aluno necessita de recorrer a um vocabulário alargado
e a estruturas de comunicação que não fazem parte do uso
corrente. Trata-se de referir emoções, sentimentos, pensamentos
tensionais e isso não se consegue com o vocabulário reduzido
ou a elementaridade apressada que caracteriza a linguagem do
adolescente.

11. Chamando a atenção para a natureza dialética da leitura, Luri aponta


para o reforço dessa mesma natureza sempre que lidamos com textos
literários e com a interminável dinâmica de relações que eles pressu-
põem: “Estritamente falando, a leitura é uma dialéctica, quer dizer, uma
relação linguística entre as partes e o todo: entre letras e palavras, pala-
vras e orações, orações e parágrafos, parágrafos e texto, texto e contex-
to” (cf. p. 41, tradução minha).

12. Luri, que venho seguindo de perto, sublinha a sua dimensão de base:
“A leitura é o único lugar no qual a expressão ‘aprender a aprender’ ad-
quire pleno sentido. Porque para apender enquanto se lê é necessário
antes aprender a ler e, ao mesmo tempo, à medida que se vão adqui-
rindo conhecimentos graças à leitura, vai-se também desenvolvendo a
competência leitora” (cf. p. 65).

46 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


Também por essa via, o contacto com a literatura se converte
num catalisador de possibilidades. Embora possa considerar-
se que, de um modo geral, esta virtualidade é comum a outras
disciplinas humanísticas (História e Filosofia), ela é requerida em
grau ainda mais apurado quando se trata de falar do texto poético.
A ponto de poder dizer-se que, quando se pronuncia sobre um texto
literário com disciplina e liberdade, o aluno pode efetivamente falar
e escrever sobre assuntos que na vida corrente e na vida escolar
são sistematicamente votados ao silêncio.

A literatura facilita o acesso a outros tipos


de conhecimento (artístico, filosófico, histórico etc.)

É conhecido o lamento de professores dos primeiros anos do


ensino básico, segundo o qual os alunos não aprendem matemática
ou ciências naturais porque revelam dificuldade em interpretar
os textos que formulam os problemas. Na maior parte dos casos,
essa dificuldade fica a dever-se ao facto de as crianças terem pouca
familiaridade com as estruturas profundas do texto: relacionam
palavras mas não as ideias que requerem procedimentos de
inferência.
Em geral, contudo, os benefícios do contacto com o
texto literário são mais apontados quando se trata de aceder ao
conhecimento humanístico no seu todo. A ideia de que a literatura
pode ser ensinada num plano de contiguidade em relação ao
fenómeno artístico é seguramente muito fecunda. O recurso
à tecnologia digital para convocar no próprio espaço letivo a
visualização de um quadro ou a audição de um trecho musical pode
servir para explicar ao aluno que a literatura faz ainda mais sentido
quando a relacionamos com outras formas de expressão artística.
A simples demonstração de contiguidades é, por isso,
positiva. Mas torna-se igualmente promissor fazer da literatura
uma porta de entrada para o conhecimento de outros subdomínios
da arte e da cultura: o fenómeno artístico no seu todo, realidades
históricas ou a ordenação do pensamento filosófico. Assumir

A leitura literária na escola e na universidade 47


a Lírica de Camões como forma de compreender o retrato
renascentista ou fazer de um soneto uma abertura para a ideação
neoplatónica representa um acréscimo específico que a literatura
pode proporcionar no contexto educativo13.

Conclusão

No termo deste inventário de motivos, apetece perguntar:


conseguiremos alguma vez provar que e ensino da literatura é útil?
Tanto como da justeza dos próprios argumentos, o êxito da missão
depende da receptividade de quem ouve. Ora, os professores sabem
bem que, em se tratando de matérias conflituais, é raro encontrar
destinatários e decisores abertos e neutros. Como reconhecer que
outras áreas são merecedoras de mais atenção do que aquela em
que nos preparámos? Perante um cenário de evidente exigência e
desconfiança, o que podemos (e devemos) fazer é aduzir razões e
esperar que elas possam ser confirmadas ou rebatidas numa base
racional.14
Vale a pena, com efeito, discutir se estes princípios se
ajustam à Escola e aos alunos que temos. Por estranho que
possa parecer, está por fazer um diagnóstico da realidade escolar
existente (tanto em Portugal como no Brasil). Tudo aquilo a que
podemos recorrer são indicadores parcelares. Sabemos o que os
programas preceituam e conhecemos os manuais mais utilizados,

13. Sobre as possibilidades de exploração do texto literário em contigui-


dade com o fenómeno artístico veja-se o último capítulo do livro que
escrevi em colaboração com Rui Afonso Mateus.

14. Um inventário de razões, que é ao mesmo tempo um grito de alarme


e um diagnóstico sombrio sobre a situação do ensino da literatura, é o
livro proclamatório publicado por Tzvetan Todorov em 2007 e várias
vezes reeditado. Os erros aí denunciados assentam sobretudo na subs-
tituição do texto literário pela glosa crítica e teórica que dele derivou.

48 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


refletindo orientações que são provavelmente seguidas pela
maioria dos professores. Mas faltam-nos inquéritos devidamente
aferidos.15
O que pode dizer-se, com ênfase, é que a presença da
literatura na Escola configura uma necessidade democrática.
Tratando-se de um dos mais nobres produtos do espírito humano,
é dever do Estado proporcionar a todos os cidadãos um contacto
introdutório e motivador com os grandes textos da humanidade.16
Longe de ser dissuasora, a estranheza com que possa ser recebida
por boa parte dos alunos do nosso tempo deverá ser aproveitada
como estímulo para descobrir aquilo que, sendo diferente, tem,
também por isso mesmo, potencialidades formativas preciosas.
Em última análise, a presença da literatura na escola
justifica-se pelo conhecimento que ela veicula e pelos objetivos de
cidadania que permite alcançar. Independentemente da questão
do gosto, que cada aluno há de cultivar como puder e entender,
a Escola não pode demitir-se de alertar para a existência de
realidades complexas, as mesmas que não se deixam compreender
de forma apressada.
Não se trata de um desafio fácil. Ensinar a partir do estranho
é bem mais difícil do que assumir como base o que está próximo
do aluno.
Na conversa de há 50 anos ocorrida entre os professores
de Coimbra, falava-se do futuro do ensino da literatura. Os sinais
de inquietude que então se podem identificar na dita conversa não

15. Apesar de alguns trabalhos que vêm surgindo, é preciso reconhecer que
há ainda muito por fazer no domínio da didática da literatura que, de
resto, em algumas universidades, tarda em ver reconhecido um estatu-
to condizente com a sua importância.

16. Eirick Prairat, em livro recente, que impressiona pela abrangência, pe-
los fundamentos e pela sua aplicação às políticas educativas do nosso
tempo destaca os três grandes desafios que, no seu entendimento, se
colocam à Escola dos nossos dias: justiça, eficácia e hospitalidade (Cf.
pp. 45-47).

A leitura literária na escola e na universidade 49


podem comparar-se com aqueles que entretanto sobrevieram.
O sobressalto já existia, mas não era generalizado nem tinha os
fundamentos que entretanto adquiriu. Não se colocou a questão dos
métodos pedagógicos, por exemplo. Nessa altura, ensinar literatura
correspondia ao cumprimento de um itinerário padronizado: podia
ser apenas ensinar a ler de forma expressiva, identificar os recursos
retórico-estilísticos e proceder à integração num determinado
quadro periodológico.
Mas o futuro de há 50 anos converteu-se no nosso presente.
Outras questões ganharam entretanto uma importância que não se
podia prever. É importante repensar a formação dos professores,
desde logo, tanto em termos de conhecimento como em termos
de motivação. Para além dos fundamentos e dos objetivos, é
sobretudo hoje muito necessário discutir a forma como se pode
ou deve ensinar. Face à necessidade de convencer os alunos da
utilidade da literatura e das Humanidades em geral, a forma de
ensinar transformou-se em urgência.
À luz desse novo quadro, é pois necessário que a conversa
de há cinco décadas seja agora retomada, ampliada e atualizada.

Referências

BERNARDES, J. A. C. (2018). “El oficio del humanista. Retrocesos y


progresos”, in: Limite, vol. 12.1, pp. 189-211.
________. (2012). “O Ensino de Camões. Aproximações a um problema
maior”, in: Camões e os contemporâneos. Organização de
Maria do Céu Fraga, José Cândido de Oliveira Martins, João
Amadeu Carvalho da Silva Maria Madalena Teixeira da Silva
e Manuel Ferro. Braga: Centro Interuniversitário de Estudos
Camonianos, Universidade dos Açores e Universidade
Católica Portuguesa, pp. 35-50.

50 Série Escola e Universidade – Editora Mercado de Letras


BERNARDES, J. A. C. e MATEUS, R. A. (2013). A Literatura e o ensino
do Português. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos
Santos.
BOD, R. (2013). A New History of the Humanities. The Search for
Principles and Patterns from Antiquity to the Present. Oxford:
Oxford University Press.
COMPAGNON, A. (2007). La littérature. Pour quoi faire? Paris:
Collège de France. Edição electrónica em livre acesso. (col.
Leçons inaugurales du Collège de France)
GRAFF, G. (1987). Professing Literature.; An Institutional History.
Chicago and London: The University of Chicago Press.
________. (1993). Beyond the Culture Wars. How Teaching Conflicts
Can Revitalize American Education. Nova York/Londres: W.
W. Norton And & Company.
LURI, G. (2020). Sobre el arte de ler. 10 tesis sobre la educación y la
lectura. Barcelona: Plataforma Editorial.
PRAIRAT, E. (2019). Propos sur l’enseignement. Paris: PUF.
SILVA, V. M. A. (2010). “Teses sobre o ensino do texto literário
na aula de Português”, in: Humanidades, Estudos Culturais,
Ensino da Literatura e Política de Língua. Coimbra: Livraria
Almedina, pp. 207-216.
TODOROV, T. (2007). La littérature en péril. Paris: Flammarion
(Café Voltaire).

A leitura literária na escola e na universidade 51


2
A FANTASIA E A BRINCADEIRA NA CONSTRUÇÃO
DO ESPAÇO FICCIONAL NA VIDA DOS BEBÊS

Celia Abicalil Belmiro


Cristiene Leite Galvão

Este capítulo discute os modos como os bebês se relacionam


com o mundo, destacando a capacidade imaginativa desses seres
no trânsito entre a dimensão do real e do ficcional. A fantasia
e a brincadeira são pensadas como pilares para a construção
do espaço ficcional na vida dos bebês. Um caos indiferenciado
pode ser uma expressão adequada para descrever as primeiras
impressões e sensações das crianças ao nascerem. Tão logo chegam
ao mundo, elas são introduzidas em uma rede de significações
que vão tentando desvendar à medida que se relacionam com os
instrumentos da cultura.
As crianças, mesmo antes da aquisição da fala, significam
suas relações com o mundo e as expressam por outros meios
semióticos, como indicam estudos de Winnicott (1971[1995]),
Stern (1985[1992]), Golse (1999[2002], 2006[2007]). Tais
capacidades nos permitem afirmar que há uma inteligência pré-
verbal que nos constitui como humanos e que é a responsável pelos
modos e pelos meios de ver e apreender aquilo que interrogamos,
investigamos, criamos, descobrimos e manifestamos, mediante
uma diversidade de formas expressivas.

A leitura literária na escola e na universidade 53

Você também pode gostar