TESE (Estado Plurinacional e Comunitario) VF
TESE (Estado Plurinacional e Comunitario) VF
TESE (Estado Plurinacional e Comunitario) VF
NITERÓI,
2019
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MARIANA BRUCE GANEM BAPTISTA
NITERÓI,
2019
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MARIANA BRUCE GANEM BAPTISTA
BANCA EXAMINADORA
Niterói,
2019
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“A banda destaca a fluência da escrita, a pesquisa bibliográfica e de campo, a
relevância do tema, assim como a contribuição para a historiografia brasileira.
A banca recomenda a publicação da tese desde que incorporadas as sugestões
realizadas”
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Dedico este trabalho a todas aquelas e todos aqueles que
insistem em sonhar com outros mundos possíveis
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AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, à família que construí e cujo amor infinito atua como uma
força pulsante que me faz caminhar e me tornar um ser humano cada vez melhor. Hugo
Silva, Maria Eduarda e, agora a mais nova integrante, Maria Flor, que ainda se encontra
no quentinho do meu ventre (além dos nossos mascotes caninos e felinos que também
são parte dessa família, Rosa, Frida, Dedé e Penélope), minha mais profunda gratidão
por existirem e me permitirem ser tão feliz e realizada. Jamais esquecerei os dias
intensos de trabalho de campo na Bolívia, com minha primogênita com pouco mais de
um aninho, meu querido companheiro firme e presente e, depois também, minha
querida irmã que logo se constituíram numa verdadeira tribo para garantir todas as
condições materiais e subjetivas necessárias para que eu conseguisse realizar aquele
objetivo. Foi um trabalho de campo feito em meio a mamadas sem fim, suor, leite,
cansaço extremo, subidas e descidas daquelas ladeiras inacreditáveis de San Pedro/La
Paz, muitas caminhadas por El Alto com sua vista incrível para La Paz, entrevistas e
mais entrevistas, além de colo, saudades, rituais, suco de laranja e tudo o mais que está
registrado nos anais da nossa memória afetiva. Todos esses foram ingredientes que
definiram o teor dessa tese, em que pese a forte presença da maternidade que, em minha
trajetória, esteve ali atuando desde o meu ingresso no Doutorado, quando ainda
carregava a Duda no ventre, e segue até hoje, quando me despeço do Programa, com
minha pequena já com quase 4 anos e uma caçulinha a caminho. Preciso dizer que ter
uma tese de doutorado concluída por uma mãe-pesquisadora é uma vitória indescritível.
Foram muitos os desafios superados. Agradeço demais às minhas filhas por terem
provocado uma reviravolta em mim que renovou minha percepção sobre o mundo e
determinou os rumos dessa escrita e ao meu companheiro que nunca deixou eu me
esquecer que por mais maravilhosa que eu pudesse ser como mãe, jamais deveria
abandonar minha existência para além da maternidade. Sem sua dedicação constante e
participação ativa teria sido muito mais difícil conciliar o estudo, a pesquisa, o
magistério, a maternidade, o ativismo, além, é claro, o trabalho doméstico que
compartilhamos.
Agradeço também à família que me trouxe ao mundo, responsável por lançar as bases
sobre as quais me formei enquanto mulher, dona do meu destino e soberana sobre as
minhas escolhas. Minha querida mãe, Regina, meu pai, Felipe, e minha irmã mais velha
e comadre da minha primogênita, Marcela, obrigada por tudo. Obrigada pelo apoio
quando precisei, pelos empurrões, pela segurança emocional que vocês me
proporcionam para enfrentar os desafios da vida. Saber que eu tenho um porto seguro
com o qual contar faz toda a diferença para que eu tenha a coragem de arriscar quando
necessário, ousar e alçar meus vôos. Saber que minhas filhas também poderão contar
com esse ninho é outro alento na minha alma. Minha querida mãe, um agradecimento
especial a você cujo otimismo para com a vida transborda e invade os corações de quem
a rodeia. Com você por perto, dificilmente perdemos a esperança de que as coisas
seguirão seu fluxo, seu rumo e que, de um jeito ou de outro, tudo vai dar certo no final.
Gratidão por ter lido essa tese com tanto cuidado e afinco. Gratidão pelas revisões,
comentários e elogios mais que generosos sobre esse trabalho. Gratidão, família, pela
dedicação à minha pequena e por todo o suporte oferecido para que eu pudesse me
afirmar como pesquisadora e professora, sem naufragar nos imperativos que a
maternidade impôs e segue impondo sobre mim. Estendo esse agradecimento a minha
tia e dinda, Angela Ganem, a quem nutro uma profunda admiração tanto pelo ser
humano que é, comprometida com o combate às desigualdades, violências e opressões,
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quanto por sua dedicação à carreira acadêmica e ao magistério no ensino superior.
Gratidão por todo o apoio de sempre e por ser uma das maiores entusiastas da minha
trajetória. Espelho-me muito em você!
Agradeço também a todos os amigos e as amigas trazidos pela maternidade, aos de mais
longa data, às minhas queridas amiga de infância e adolescência, aos de trabalho e
pesquisa, a todas e todos que ainda que não tenham colaborado mais diretamente com o
conteúdo dessa tese são parte integrante da minha vida, da minha formação enquanto ser
humano e, portanto, enriqueceram esse trabalho dando o suporte em outras dimensões
da minha vida.
Já que estamos falando de bases, gostaria de agradecer ao meu grande mestre, Daniel
Aarão Reis. Apesar de nosso reencontro se dar basicamente na banca de defesa, não
posso deixar de mencionar a importância de ter tido você como orientador durante a
Graduação e Mestrado, quando me constitui como pesquisadora no campo de América
Latina e de História do Tempo Presente. Obrigada pela parceria de sempre. Muito do
que veio depois do Mestrado é resultado dos vários anos de trabalho ao seu lado,
quando ganhei autoconfiança na minha capacidade de interpretar o mundo, ainda que
seguindo por caminhos e sustentando ideias não tão comuns dentro do nosso campo.
Agradeço também ao Carlos Walter Porto-Gonçalves, por ter me aberto as portas para a
América Latina e para a mirada decolonial do pensamento crítico desse continente.
Obrigada pelos contatos na Bolívia e pela pronta-acolhida logo nos primeiros passos de
elaboração dessa tese. Seus questionamentos e provocações reverberam até hoje e
também foram de fundamental importância para as escolhas e os caminhos que se
seguiram para que esse trabalho se realizasse dessa forma.
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estatísticas que recaem sobre nós, mães-pesquisadoras, no momento em que tropecei,
fui imediatamente acolhida pelo colegiado que permitiu que eu concluísse essa etapa
com louvor. Reconhecer as mães-pesquisadoras e garantir condições para que elas
sigam acreditando em si e não abandonem suas carreiras deveria ser uma causa de todos
os programas desse país. Não podemos esquecer que o Brasil é um país no qual, pelo
menos, 60% das mulheres que se tornam mães têm sua carreira afetada pelo nascimento
de suas crias. Aliás, agradeço às redes de mulheres e de mulheres-mães as quais faço
parte que me empoderaram durante esse período e me auxiliaram para que eu não
abrisse mão dos meus direitos e lutasse por esse reconhecimento.
Por último, mas não menos importante, agradeço aos queridos amigos e queridas
amigas feitos na Bolívia, em especial a Efrain Oruños, Irene Mamani, Fanny Nina e
Gonzalo Choquehuanca Quispe por terem compartilhado comigo suas percepções de
mundo, sobre seu país, de maneira íntima e aprofundada, tendo se destacado como
incríveis interlocutores, o que me permitiu alcançar dimensões intrigantes dessa cidade
insurgente. Agradeço também a Carlos Revilla, antropólogo com um denso trabalho
sobre as lideranças de El Alto e que compartilhou comigo uma lista considerável de
contatos que foram fundamentais para a realização desse trabalho. A todas as minhas
entrevistadas e meus entrevistados que de forma muito solícita não hesitaram em
compartilhar suas percepções de mundo, trajetórias, histórias com uma desconhecida
pesquisadora brasileira. A Silvia Rivera Cusicanqui por ter me recebido em seu Taller
de Verano do Colectivo Ch'ixi, Sociologia de la Imagene, o que foi de fundamental
importância para o aprofundamento do processo de descolonização do olhar sobre a
Bolívia e para ampliar meus horizontes para toda a potência existente na “política bajo
el radar”.
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EPÍGRAFE
10
RESUMO
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ABSTRACT
The election of the first indigenous president of Latin America and the signing of a new
constitution that made Bolivia a Plurinational and Community State brought to the fore a new
ideological and epistemic arsenal. At the intersection between Western modernity and the
millennial cultures that originated in our continent, there is a fertile way to glimpse antisystemic
alternatives having as its starting point the indigenous protagonism.
The proposal of this research is to analyze the political culture that triggered this process
of transformation of the State from a double movement: from above, that is, to understand the
conditions that propitiated the election of Evo Morales and how the government appropriates
and makes use of the original traditions, especially with regard to the theme of Well-Living as a
proposal for radical transformation of reality (also defined as "Process of Change" or "Cultural
and Democratic Revolution"); and from below, from the point of view of social bases, that is,
how the people, and especially the indigenous and popular classes, behave in their everyday life
in the face of the contradictions and conflicts that permeate the normative principle announced
by the government and its social practice.
Regarding the last aspect, we will use as a case study the experience of the city of El
Alto. Located about 10km from La Paz, also considered an insurgent city, it has a history of
fighting that goes back to resistance to the Spanish Empire. Nowadays, he played a leading role
in the 2003 Gas War and was instrumental in overthrowing two presidents before contributing to
Evo Morales' 2005 election. Under the current administration he is the subject of major disputes
as he is a key city to maintain political stability in the country. The neighborhood councils
consist of one of the main forms of collective and popular organization and combine modern
elements (because they resemble residents' associations) and traditional elements (because they
bring constitutive aspects of the power of the indigenous community originated by the ayllus).
I believe that a more in-depth analysis of El Alto's experience, based on the perspective of
some of its local leaders, will also allow a more substantial reflection on the dilemmas and
possibilities that arise with the presentation of Bem Viver (Buen Vivir, Vivir Bien , Suma
Kamaña, Suma Kawsay, TeKo Kevi, Ñandareko etc.) as a post-capitalist alternative, as well as
the developments regarding the reflection of the possible articulation between State, Democracy
and Community.
Keywords: Bolivia, Well Living, indigenous movement, juntas vecinales
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SUMÁRIO
2. El Alto de Pié, Nunca de Rodillas: História das Lutas Populares de uma Cidade
Insurgente.................................................................................................................. p. 56
2.1. Uma cidade insurgente........................................................................................ p. 56
2.2. As organizações populares de El Alto: as juntas vecinales ................................ p. 66
2.3. A Guerra do Gás de 2003.................................................................................... p. 82
2.4. Governo Evo Morales: uma cidade em disputa................................................... p. 88
2.5. O Gasolinazo de 2010........................................................................................ p. 108
2.6. Governo indígena?............................................................................................. p. 116
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Fontes....................................................................................................................... p. 182
Desde Abajo.............................................................................................................. p. 182
Desde Arriba……………………………………………......................................... p. 184
Periódicos................................................................................................................. p. 190
Bibliografia.............................................................................................................. p. 192
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
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LISTA DE SIGLAS
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Em 2008, no Encontro Internacional “Povos Indígenas, Constituições e Estado Plurinacionais”,
realizado pela Coordendora Andina de Organizações Indígenas/CAOI, ocorrido em La Paz, os povos
indígenas do continente reconheceram a Bolívia como um exemplo e lançaram um manifesto em defesa
dos Estados Plurinacionais e das Sociedades Interculturais (Igor Ojeda, 2008).
2
2
As primeiras décadas do século XX, no Peru, são conhecidas como da República Aristocrática, dado seu
caráter elitista e excludente. Foi, por isso, um contexto marcado também por várias insurreições
populares, com destaque para o movimento estudantil nos anos 1918 e 1919 e a Greve Geral de 1919,
ápice das tensões com o governo, quando os trabalhadores lutaram pela regulamentação da jornada de
trabalho em 08h e o barateamento do preço dos alimentos.
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3
Para a III Internacional Comunista, a América Latina vivia ainda em condições de feudalidade, o que
colocava como imperativa a necessidade de apostar em uma etapa democrático-burguesa, baseada em
uma aliança com as burguesias nacionais para que fossem criadas as condições materiais que
viabilizariam a revolução socialista.
9
***
A minha relação com este estudo vem de uma primeira viagem à Bolívia que
realizei em 2012. Terra da inesquecível e inspiradora Domitila Barrios de Chungara, ex
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Conforme vimos, a escolha de Alvaro García Linera se deu por sua relevância como intelectual orgânico
do MAS e pela larga bibliografia produzida pelo mesmo, na qual analisa com maiores detalhes o processo
histórico-social da Bolívia em suas mais diversas dimensões, ressaltando-se sempre o protagonismo
indígena. Porém, é preciso ressaltar que Linera é um homem branco, vice de um presidente indígena que
fala, que discursa, que é protagonista em si na produção de conteúdo e na determinação dos rumos da
história. Por essa razão, houve um trabalho de trazer esta voz também para a pesquisa ainda que não tenha
encontrado referências bibliográficas com um conteúdo mais sistemático de suas contribuições. Deste
modo, utilizei-me de alguns dos discursos disponíveis online, conferindo ênfase principalmente nas
discussões a respeito do Bem Viver, tal como exposto no capítulo 3.
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6
Na ocasião da viagem de campo, aproveitei para fazer o Taller de Verano da Colectiva Ch’eje,
Sociologia de la Imagen, com Silvia Rivera Cusicanqui para aproximar-me da mirada decolonial e de um
outro olhar sobre os indígenas na Bolivia, além, é claro, de ter o privilégio de um contato mais sistemático
com uma das mais importantes sociólogas aymaras do continente.
7
Tratarei de toda essa complexidade que diz respeito ao Bem Viver como um horizonte de sentido (ou
não) no Capítulo 3 da tese.
14
pelas transformações sociais. Também tratei dos sentidos das mudanças propostas
durante o Governo Evo, já que o Estado Plurinacional e Comunitário nasceu da crítica
ao Estado Colonial, consequente de um gradativo movimento de etnização da política
no qual, a partir das tradições originárias, seu usos e costumes, foi possível construir um
bloco histórico popular e indígena que redefiniu as bases do Estado Bolivino. Por
último, também considero como que a eleição de um presidente indígena não encerra as
contradições inerentes à estrutura colonial que perdura e o demonstro a partir do embate
ocorrido com as terras baixas e o povo guarani por ocasião da proposta do governo de
construir uma estrada sobre o Territorio Indígena y Parque Nacional Isiboro
Sécure/TIPNIS.
O capítulo 2, El Alto de Pié, Nunca de Rodillas: História das Lutas Populares
de uma Cidade Insurgente, contextualiza em um aspecto local o protagonismo
indígena em seu processo de desenvolvimento das lutas sociais e da organização
popular na cidade de El Alto. Tais elementos foram centrais para que se gerassem as
condições para que esta cidade se tornasse chave para a manutenção da estabilidade
política no país. Conferi ênfase na análise das juntas vecinales e da FEJUVE pelos seus
lugares de relevância nos processsos insurrecionais desencadeados na cidade, a partir
dos relatos de história oral de lideranças históricas, atuais e moradores ativistas
coletados em viagem de campo realizada em janeiro de 2017
O capítulo 3, Rumo ao Bem Viver?, analisa o que seria essa proposta de futuro
pós-extrativista, quiçá pós capitalista, compreendendo as tradições milenares sobre as
quais se apoia, o poder da comunidade, bem como os usos e apropriações feitos pelo
governo e as contradições que engendra. No final, faço um balanço dos 11 anos do
Proceso de Cambio e lanço algumas hipóteses interpretativas que buscam responder a
algumas das perguntas levantadas nesta tese, retomando as potencialidades abertas por
essa experiência e levantando alguns dos principais dilemas e desafios para o futuro.
No Capítulo 4, Estado, Democracia e Comunidade em Multisociedades: Uma
Combinação Possível? à guisa de uma conclusão, analiso a possibilidade de combinar
Estado, Democracia e Comunidade no âmbito de uma realidade multisocietal. Para
tanto, reflito mais uma vez sobre os desafios a serem superados nessa caminhada
retomando muitos dos aspectos levantados durante a tese e chamo atenção para outras
questões referentes mais especificamente à vida cotidiana, na qual constato a potência
transformadora existente no âmbito do que seria uma política “bajo el radar”.
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9
O Império Inca também pode ser denominado como Tawantisuyu, o Império dos Quatro Quadrantes do
Sol. Um império composto por mais de 10 milhões de habitantes e que se estendia de Cali, na Colômbia,
até Valdívia, no sul do Chile, e que abrangia desde o Oceano Pacífico à selva amazônica.
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Falarei com maior profundidade sobre a comunidade indígena, seus sentidos e significados, na seção O
Poder da Comunidade, no capítulo 3 desta tese.
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A luta simbólica e a violência brutal com a qual o Estado responde aos intentos
dos movimentos populares e indígenas de lutarem por seus direitos, demonstra como de
fato a Bolívia se divide em dois mundos que, ao fim e ao cabo, literalmente não falam a
mesma língua. Vale notar que mesmo nas metrópoles, é alto o índice daqueles que falam
as línguas nativas. No último censo realizado, em 2012, dos aproximadamente 850 mil
habitantes de El Alto identificados, 80% consideravam-se indígenas e 74%
autodenominam-se aymara (INE, 2012). Como em El Alto, as regiões mais pobres do
país, são as que mais falam as línguas nativas – o que é mais uma evidência de como a
conformação das classes sociais se relaciona diretamente com o fator raça, para resgatar
Mariátegui.
Durante décadas, a ambição do Estado criollo boliviano foi castelhanizar a
população de forma geral e extinguir a herança indígena. Álvaro García Linera define
como “cidadania de casta”, o período inicial da República Boliviana, marcado
justamente por essa negação radical da condição indígena. Segundo Linera (2010, p.
102), no âmbito do Estado, seja sob orientação liberal ou conservadora, os indígenas
constituíam sua externalidade. Inclusive, o ódio em relação aos indígenas e suas
tradições comunitárias foi muitas vezes o que unificou as frações das classes
dominantes em vários momentos de crise. O Estado republicano é um Estado de
exclusão, no qual o indígena não é considerado um cidadão, a despeito daquele ter se
edificado sobre os ombros desse indígena, de sua “extorsão histórica”, de sua “alienação
fundadora”, convertendo suas “potências vitais” em “forças separadas e depois alheias
que se voltam contra ele para domesticá-lo e submetê-lo” (LINERA, 2010, p. 151).
Desde fins do século XIX, quando a Bolívia consolidou sua economia extrativista,
houve uma ofensiva feroz contra a comunidade indígena em particular. Com o Decreto
20 de Marzo de 1866, o então ditador conservador Mariano Melgarejo (1864-1871)
levou as terras das comunidades e ayllus a leilão público, o que gerou também massiva
resistência. Mesmo com sua queda, os esforços em extinguir a comunidade indígena
continuaram sob um discurso liberal e modernizante através da defesa do parcelamento
individualizado da terra transformando os indígenas em pequenos proprietários. A Ley
de Exvinculación de 1874, já no Governo de Tomás Frias Amettler (1872-1873 e
1874-1876), declarou a extinção da comunidade – ao menos do ponto de vista jurídico.
Na Guerra Civil de 1899 que opôs conservadores do sul e os liberais do norte,
Zárate Wilka, o malku11 aymara do altiplano, também participou da guerra expressando
em grande medida as tensões vividas principalmente no campo diante do avanço da
economia extrativista e latifundiária e sua política de extinguir a comunidade. Segundo
Rivera Cusicanqui (2010, p. 85), “los territorios comunales de los ayllus veían
progresivamente constreñido su espacio de reproducción y desmantelado su universo
ideologico”. O monopólio da terra, do mercado e do poder político pelas elites deixou
os indígenas encurralados. O projeto liberal modernizador não os contemplava, pois
partia de uma natureza excludente e colonial. Wilka colocou essas contradições em
11
Malkus são as autoridades comunais.
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evidência e, apesar de ter iniciado a guerra ao lado dos liberais, depois desenvolveu
objetivos autônomos, tais como: a restituição das terras comunais usurpadas; a luta
contra a ofensiva latifundista; a defesa de um governo índio; o não reconhecimento das
autoridades liberais e conservadoras (Idem, p. 85-86).
Ainda segundo Rivera Cusicanqui, “la rebelion de Wilka fue quizás la ultima
rebelion india autonoma del periodo republicano” (Idem, p. 86). Ao fim, os indígenas
foram derrotados e dizimados demarcando o fim de uma época. A nova República que
se instaurou com a vitória liberal assentou-se sobre uma Bolívia mineradora e imbuída
pelo darwinismo social. Os indígenas tornaram-se alvos de nova missão civilizatória,
fadados a desaparecer. O progresso criollo representava o seu extermínio. Para tanto,
não por acaso, nesse período, houve significativos investimentos na centralização e
profissionalização do Exército Nacional, implementou-se o serviço militar obrigatório;
foi criada a polícia rural (que acabou subordinada ao coronelismo local); e
incrementou-se as expropriações de terras comunais tendo por base a Ley de
Exvinculación de 1874 que citei anteriormente e que aboliu a comunidade indígena. No
esteio dessas ações, a classe latifundiária pôde se apropriar de tais terras e os indígenas
tiveram que ou migrar para as cidades ou se submeter às péssimas condições de trabalho
no campo. Quando migravam para as cidades, eram proibidos de expressar sua
identidade cultural ou reproduzir seus costumes e valores. A eles era negada a condição
mais elementar de cidadania, pois sequer eram reconhecidos como sujeitos.
Entre os anos 1910 e 1930 ocorreram várias rebeliões no altiplano em resposta ao
governo liberal. Rivera Cusicanqui as denomina como o movimento dos
“caciques-apoderados” (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 95). Depois de um período
de silenciamento e atomização da resistência indígena por conta do massacre operado
para destruir a rebelião de Wilka no final do século XIX, a partir dos anos 1910, pode-se
observar um lento processo de reestruturação das lutas indígenas com a explosão de
algumas rebeliões, ainda que parcamente documentadas. As tentativas de abolir a
comunidade indígena acabou gerando, como mecanismo de defesa, a “revitalización de
los sistemas de autoridad comunal tradicional” que tem como base estrutural o ayllu
andino (Idem, p. 94-950). Os “caciques-apoderados” eram os malkus e jilaqatas12 dos
ayllus do Altiplano que passaram a assumir funções não mais restritas aos aspectos
comunais, mas atuavam como intermediários entre a comunidade e o Estado, resgatando
um lugar assumido por seus antepassados no período colonial. Como mencionei, uma
12
Assim como os malkus, os jilaqatas também são autoridades comunais.
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das estratégias assumidas pelo Império Espanhol à época da colonização foi justamente
o reconhecimento da comunidade indígena, optando por uma forma de domínio que se
dava através da tributação sobre a mesma e não em sua eliminação. Na época foram
concedidos inclusive títulos de propriedade às propriedades comunais e que deram base
para as batalhas vividas no início do século.
comuneiros foram hábeis na apropriação das estruturas de poder e nas suas traduções
possíveis. Sob cada explosão comunitária reverberava-se formulações, reflexões e
demandas por direitos. O programa de reformas cacical pode ser sintetizado da seguinte
maneira: restituição das terras comunais, abolição do serviço militar obrigatório,
supressão dos tributos coloniais ainda existentes, representação indígena no Congresso e
em instâncias de poder local, estabelecimento de escolas comunitárias e acesso livre ao
mercado.
Durante décadas, a Bolívia foi conduzida por uma elite oligárquica interessada
basicamente no extrativismo mineral (estanho) e na exploração do campo, entregue aos
latifundiários que, por sua vez, estabeleciam relações servis de produção com os
camponeses14. Desta forma, havia uma profunda dependência em relação ao mercado
internacional, particularmente, com os EUA. O projeto dependentista das elites se
consolidou numa lógica extremamente onerosa para o Estado, pois toda a extração
estava delegada às empresas estrangeiras e o país era extremamente vulnerável à
cotação dos preços no mercado internacional.
Segundo Everaldo de Oliveira Andrade (2007, p. 27), o Estado nacional era um
mero instrumento nas mãos das três famílias que estavam por trás da exploração do
estanho: “Simon I. Patiño, em 1931, detinha 62% do volume de exportações do estanho;
Mauricio Hothschild, 26% do controle das exportações em 1938 e Carlos Aramayo,
10% em 1934”. Consequentemente, eram essas mesmas famílias que também
controlavam a exploração do petróleo e as ferrovias, além de outros serviços de
significativa importância.
Para Andrade, a Guerra do Chaco que estourou entre 1932 e 1935 é central para
compreender as raízes da Revolução de 1952, pois alçou o movimento operário como
uma resposta ao recrudescimento das contradições raciais, sociais e econômicas
existentes no país nos tempos difíceis da Segunda Guerra Mundial (1939-1945)15. O fim
da Guerra do Chaco se caracteriza como um período de profunda crise econômica e
crescente mobilização popular, tendo como destaque a organização sindical.
14
O imposto ponguaje, por exemplo, funcionava como uma escravidão por dívida.
15
A Guerra do Chaco ocorreu entre a Bolívia e o Paraguai, entre 1932 e 1935, como consequência da
disputa territorial do Chaco Boreal, devido à descorberta de petróleo naquela região do sopé dos Andes. O
que era para ser uma guerra rápida acabou se tornando uma das maiores guerras da América do Sul no
século XX, com 60 mil bolivianos mortos de um lado, e 30 mil paraguaios do outro. A Bolívia acabou
perdendo o território que foi anexado pelo Paraguai. Para Zavatela (apud RIVERA CUSICANQUI, 2010,
p. 111), a guerra teve um efeito nacionalizador, com o fomento de uma consciência “boliviana” devido à
necessidade de convocar toda a população – indígenas e mestiços - para o esforço de guerra. Muitos
indígenas que foram para a guerra devido ao recrutamento obrigatório, acabaram utilizando o argumento
de participação na guerra “em nome da Bolívia” para obter direitos.
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No campo, houve uma rearticulação das lutas com a tática da “huelga de brazos
caídos” nas haciendas elaborada a partir de uma articulação entre colonos e setores
urbanos radicalizados. O governo de Gualberto Villarroel López (1943-1946) foi o
clímax do movimento popular grevista e foi quando ocorreu também o Primer
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Foi com esse arcabouço teórico e epistêmico que, em meio a uma conjuntura que
beirava a guerra civil, que Victor Paz Estenssoro, líder do Movimiento Nacionalista
Revolucionario/MNR, chegou ao poder, em 1952, visando um governo de coalisão entre
setores reformistas e as classes populares organizadas. Na ocasião, havia-se formado a
Central Obrera de Bolívia/COB com ampla representatividade e houve esforços no
sentido de se criar um co-governo entre movimentos sociais e o Estado recém
conquistado.
Porém, nessa dimensão de participação cidadã via sindicatos, não havia ainda uma
demanda consolidada pela democratização do executivo propriamente dito. Ao
contrario, a compreensão do poder político estatal como atribuição personalizada de
uma liderança reafirmava ainda a estrutura política nacional-colonialista. Nos anos
1950, as classes populares e indígenas não se veem governando de fato: “a
democratização do espaço político é meramente interpeladora, não executiva; isto é, a
plebe se sente com o novo direito de falar, de resistir, de aceitar, de pressionar, de exigir,
de impor um rosário de demandas aos governantes, mas jamais poderá ver a si mesma
no ato de governar” (LINERA, 2010, p. 106).
Domitila Barrios de Chungara16 corrobora tal hipótese ao afirmar em seu
depoimento autobiográfico à Moema Viezzer nos anos 1970 que o ano de 1952 havia
sido realmente uma “conquista popular”, mas que, no entanto, “nós, o povo, a classe
operária, os camponeses, não estávamos preparados para tomar o poder”. Segundo a ex
liderança do Comitê de Donas de Casa, na época, “como não entendíamos nada de leis,
16
Domitila foi líder do Comitê de Donas de Casa, do centro mineiro Siglo XX, que atuava de maneira
complementar ao sindicalismo mineiro de um dos maiores centros de exploração de estanho da Bolívia.
Ao falar sobre sua vida, suas lutas, suas conquistas e suas dores, Domitila Barrios de Chungara também
expressa uma boa parte da história de seu país a partir de uma perspectiva dos “de abajo”.
32
17
Um asedio ou sitio é uma tática militar secular dos indígenas na qual se realiza um bloqueio prolongado
de uma dada região, acompanhado de expropriações de vários tipos.
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18
Prebendalismo é expressão do patrimonialismo, no qual os bens públicos são utilizados como moeda de
troca para o atendimento a interesses privados.
35
19
Sanjinés participou do movimento do Tercer Cine que era uma proposta de cinema de liberación,
subversivo, militante, revolucionário. Dentre suas principais características, destacam-se: a recusa do
cinema comercial e custoso; a valorização da perspectiva autoral (cinema de autores, porém autores
coletivos); a denúncia dos monópolios das grandes empresas cinematográficas e distribuidoras; a busca
dos temas nacionais, regionais, autênticos e politicamente eficazes; o desenvolvimento de uma estética
própria; um explícito caráter de denúncia; a filiação política de boa parte dos cineastas; o aproveitamento
de circuitos alternativos para difusão; a proposta de unir teoria e prática em prol da transformação da
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foi denunciado tanto massacres anteriores, quanto a forma através da qual os mineiros
foram pegos de surpresa, retirados de suas casas pelas tropas do exército e massacrados.
A morte prematura do General Barrientos em 1969 permitiu que o cenário se
radicalizasse ainda mais: de um lado, a COB começou a se reestruturar e recuperou
força e popularidade entre os movimentos sociais; de outro, a posição das direitas se
endurecia com seus objetivos de retornar à ordem pré-52. A situação ficou bastante
tensa. Os enfrentamentos tornaram-se cada vez mais frequentes. A COB convocou uma
greve geral e a ditadura foi obrigada a convocar eleições.
Com o General Juan José Torres do MNR no poder foi proposto novamente um
co-governo com os operários. Porém, a postura do novo governo era ambígua, pois
ainda que se tratasse de um governo disposto a compor uma frente antifascista contra o
eixo empresarial e da agroindustria apoiado por parte do aparato militar e das classes
médias altas, o nacionalismo de Torres também era uma forma de frear os movimentos
sociais impedindo uma possível radicalização socialista.
Não à toa, muitas polêmicas se seguiram aos esforços de compor esse co-governo,
já que para amplos setores da COB era fundamental não cometer os mesmos erros do
passado e, se, por um lado, acabaram aceitando alguns ministérios oferecidos pelo
governo, por outro, tentaram se afastar de um lugar de linha auxiliar articulando um
poder paralelo que deveria responder pela condução das políticas nacionais: a formação
de um “parlamento operário-popular”, a Assembléia do Povo, espaço deliberativo e
executivo através do qual se exerceria a democracia direta e o poder popular.
As tentativas do governo de trazer o movimento independente da COB para
dentro do Estado foram infrutíferas. Ainda que o nacionalismo de Torres incorporasse
muitas pautas importantes das classes populares e indígenas, tais como a estatização dos
ramos principais da economia, o enfrentamento ao imperialismo e o compromisso com
políticas sociais, a idéia da Assembléia do Povo se tornou cada vez mais forte a ponto
em que, em maio de 1971, foi realizada a Assembleia Nacional do Povo em uma
realidade na qual estava colocada uma dualidade de poderes. A experiência da Comuna
de La Paz, como assim também foi chamada, foi objeto da tese de Everaldo Andrade
que foi publicada com o título Bolívia: Democracia e Revolução: A Comuna de 1971,
realidade (VILLAÇA, Mariana. Cinema Cubano: Revolução e Política Cultural. São Paulo, Alameda,
2010, p. 166). No âmbito da Bolívia, mais particularmente, Sanjinés protagonizou uma proposta de um
cine junto al pueblo, no qual o objetivo era evidenciar, desmascarar os verdadeiros culpados das
tragédias dos povos e fazer cinema para o povo índio que teia uma outra forma de pensar e captar as
mensagens, o que impunha a necessidade de mergulhar nessa realidade e compreender como se forja esse
pensamento e cosmovisão para que o filme pudesse chegar e fazer sentido a esses povos.
37
no qual o autor analisa com maior profundidade o que muitos chamaram de o “primeiro
soviete da América Latina” (COGGIOLA in ANDRADE, 2011, p. 10). Andrade chama
atenção para um aspecto que também é evidente na análise das juntas vecinales de El
Alto que é a convergência de dois mundos da resistência, de um lado, o indígena com
suas raízes milenares de luta contra o colonialismo, e o operário que esteve no âmago
dos enfrentamentos de classe no século XX. Em outras palavras, o autor considera a
Assembleia de 1971 como uma “síntese das tradições internacionais da democracia, dos
Conselhos Operários com as práticas e tradições locais de democracia direta e formas de
autogoverno” (ANDRADE, 2011, p. 12). Conforme mencionei, o movimento operário
da Bolívia, especialmente o mineiro, vinha de uma trajetória de organização popular
bastante significativa desde os anos 1940 que reunia um referencial teórico
marxista-trotskista, mas o combinava também com práticas herdeiras do comunitarismo
indígena-originário.
Nesse contexto, houve algumas tentativas de golpe por parte das direitas,
insatisfeitas com o Governo Torres e temerosas das movimentações populares para a
constituição de um novo poder. Foram impedidas por ampla mobilização popular que,
por sinal, acabou servindo para impulsionar de fato a constituição da Assembleia. Nas
ruas, nas manifestações, era possível observar referências ao “socialismo”, à
necessidade de se distribuir “armas para o povo”, à necessidade de “nacionalização de
minas”, ao enfrentamento ao “imperialismo estadunidense” e ao “fascismo”, entre
outros (Idem, p. 85-86). Tais premissas, na sequência, seriam incorporadas e
regulamentadas pela Assembleia Popular.
Torres tentou contrapor a esse processo que corria paralelamente ao Estado com
uma proposta de Assembleia Constituinte que fracassou. No projeto da Assembleia
havia “uma tentativa consciente de impulsionar a auto-organização e a constituição de
um poder operário e popular a partir das mobilizações antigolpistas” (Idem, p. 91).
Havia critérios muito bem definidos apara a eleição das representações políticas e
sindicais que poderiam participar com vistas a ampliar a soberania popular em uma
escala nacional20.
20
“Entre as exigências para a eleição dos delegados estava o reconhecimento dos documentos básicos da
Assembleia: a tese política do 4º Congresso da COB e as Bases Constitutivas da Assembleia de Fevereiro
de 1971. [...] o direito de voto não era universal [...] as classes proprietárias não tinham direitos políticos.
[...] a classe operária deveria ter obrigatoriamente pelo menos 60% dos delegados presentes em todas as
reuniões e em todos os níveis [...] Os delegados deveriam ser sustentados pelas suas entidades e manter
absoluta independência financeira em relação ao governo” (ANDRADE, 2011, p. 126-131). Além disso,
os mandatos deveriam ser imperativos e revogáveis, o que colocava o representante eleito como
38
“porta-voz de políticas previamente discutidas, não podendo se posicionar sobre novas questões sem
antes consultar suas bases (Idem, p. 151).
39
21
A Assembleia Nacional teve o seu ato inaugural no dia 1o de maio de 1971 com o desfile de delegações
vindas de várias partes do país (eram 221 delegados) e estabelecendo como sede o parlamento boliviano.
Os trabalhos foram iniciados efetivamente em junho e foram encerrados em julho. Entre julho e agosto
deveriam ocorrer as Assembleias Regionais para, em seguida, reabrir a segunda sessão da Assembleia
Nacional, no dia 7 de setembro daquele mesmo ano. Porém, o golpe foi deflagrado em agosto impedindo
que esse objetivo fosse alcançado.
40
Por isso, eu penso que, se nós vamos fazer uma revolução no futuro,
nosso governo terá que ser de nossa origem, terá que ser operário, terá
que ser camponês. Só assim teremos a garantia de que nós estaremos
no poder. Porque só aqueles que sabem perfurar uma rocha, só aqueles
que sabem o que é trabalhar e ganhar o pão de cada dia com o suor de
seu rosto, é que poderão fazer leis para controlar e proteger a
felicidade da grande maioria que é explorada (CHUNGARA in
VIEZZER, 1982, p. 45).
22
No século XVIII, junto a uma grande quantidade de comunidades e ayllus, Bartolina Sisa e Tupac
Katari lideraram uma insurgência contra a administração colonial espanhola. A revolta articulou-se com
outros movimentos no país vizinho, o Peru, e tinha como projeto construir um governo indígena com base
nos ayllus. Apesar de derrotados militarmente, Sisa e Katari tornaram-se referência histórica para as lutas
populares.
41
‘Un pueblo que oprime a otro pueblo no puede ser libre’ dijo el Inca
Yupanqui a los españoles. Nosotros, los campesinos quechuas y
aymaras lo mismo que los de otras culturas autóctonas del país,
decimos lo mismo. Nos sentimos económicamente explotados y
cultural y políticamente oprimidos. En Bolivia no ha habido una
integración de culturas sino una superposición y dominación habiendo
permanecido nosotros, en el estrato más bajo y explotado de esa
pirámide [...] Los campesinos queremos el desarrollo económico pero
partiendo de nuestros propios valores [...] Somos extranjeros en
nuestro propio país. No se han respetado nuestras virtudes ni nuestra
visión propia del mundo y de la vida [...] Para que exista un equilibrio
de intereses y de representación los campesinos deben tener su propio
partido que represente sus intereses sociales, culturales y económicos.
Este será el único medio para que pueda existir una participación
política real y positiva, y la única manera de hacer posible un
desarrollo autentico e integral (PRIMER MANIFESTO..., 1973)
23
A civilização Tiahuanaco é uma das principais precursoras do Império Inca, constituiu-se como um
poder regional no território que hoje corresponde à Bolívia por mais de cinco séculos e cujo apogeu se
deu entre os anos 300 e 1000. Seu principal sítio arqueológico localiza-se próximo a cidade de La Paz
onde até hoje se realizam cerimonias religiosas e políticas.
42
mais uma vez, reduzir a maioria da população em uma minoria estereotipada que não
corresponde à realidade.
Em 1979, foi fundado o Movimiento Indio Tupaj Katari (MITK), partido político
que buscava condensar as ideias indigenistas em uma plataforma eleitoral, através do
qual foi possível eleger alguns representantes para o Parlamento, o que provocou
reações da direita e da esquerda tradicional. No mesmo ano, foi fundada também a
Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia/CSUTCB como
parte dos esforços da reminiscente COB de se somar junto aos karatistas em um
objetivo comum pela descolonização da Bolívia e em favor dos povos indígenas. A
partir dos povos amazônicos do Oriente, foi formada a Confederación de Pueblos
Indígenas de Bolívia/CIDOB em 1982. Várias outras pequenas organizações de
conteúdo indigenista também começaram a surgir24 e, já nos anos 1990, muitas destas,
sobretudo as andinas, desembocaram no Ejército Guerrillero Tupac Katari/EGTK com
o objetivo de, através da luta armada, implementar na Bolívia um socialismo baseado
nos ayllus. Diferentemente do foquismo clássico, o EGTK chegou a distribuir armas
para as comunidades indígenas conferindo-lhes um papel revolucionário, porém, não
lograram alcançar seus objetivos e foram desarticulados pela repressão.
Como parte desse contexto e, mais particularmente, como reflexo da política de
repressão do Estado à produção da coca25 surgiu também o movimento cocaleiro de El
Chapare, no Departamento de Cochabamba. Defendida como planta sagrada e milenar,
a coca tornou-se símbolo da resistência indígena diante dos interesses imperialistas e
dos governos neoliberais. A luta em defesa da coca se converteu em luta em favor da
soberania nacional, estruturada a partir de uma forma de sindicalismo que miscigenava
tradições mineiras e indígenas (dos ayllus).
24
Partido Indio de Bolivia/PIB; MINKA/Movimiento Indio Katari; KIPUS/Kollasuyo Indio Poder Único
Socialista; MRTK/Movimiento Revolucionario Túpac Katari; Federación de Mujeres Campesinas
Bartolina Sisa; Federación Sindical de Trabajadores Campesinos de La Paz Túpac Katari; Federación de
Estudiantes Secundarios de la ciudad de La Paz; Federación de Estudiantes de la Universidad Popular
Túpac Katari, entre outros.
25
A coca é uma planta sagrada milenar utilizada por povos indígenas nos Andes. Estudos comprovaram
que sua utilização data de 3.000 a.C. Durante o período Inca, nos séculos XV e XVI, a folha era adorada
como filha da Pachamama, através da qual os povos indígenas entravam em contato com os deuses.
Ainda no Império, e mesmo antes dos Incas, as propriedades da planta foram descobertas e era utilizada
como analgésicos para fazer cirurgias de grande agressão. Com a chegada dos espanhóis, o uso da folha
era tão disseminado, que foi impossível proibi-la, apesar dos esforços de certos setores da Igreja.
Sobretudo depois com a exploração das minas de prata e de ouro, a coca se tornou ainda mais
fundamental para a sobrevivência dos indígenas naquelas condições totalmente inóspitas de trabalho e
exploração. A coca é, deste modo, um elemento cultural que media as relações sociais. Foi somente em
1858 que o alemão Albert Neimann, produziu pela primeira vez a cocaína, a partir da folha de coca.
44
Também nos Andes, a partir de 1993, autoridades originarias de vários ayllus das
“terras altas” iniciaram a formação de um Conselho que se consolidou como Consejo
Nacional de Ayllus y Markas del Qullasuyu/CONAMQ em 1997, a partir da defesa de
um Estado Plurinacional regido por valores e princípios ancestrais.
Enquanto isso, desde as “terras baixas” amazônicas, ainda em 1990, ocorreu a I
Marcha Por La Vida Dignidad y Territorio protagonizada por guaranis de diferentes
grupos em repúdio às ações de madeireiras e de pecuaristas em suas terras de origem,
exigindo a demarcação das mesmas, a soberania sobre o território e o autogoverno
segundo princípios e normas tradicionais. Partindo de Trindad, no Beni, rumo à La Paz,
a marcha reuniu milhares de pessoas em luta não apenas pela terra, mas pelo território,
o que pressupõe toda uma concepção do espaço visando uma “reapropriação social da
natureza” (PORTO-GONÇALVES, 2011).
Como consequência da ascensão desses movimentos e também de uma política
global que caminhava no sentido de reconhecer as “minorias” excluídas de
representação liberal, houve na Bolívia alguns avanços significativos referentes à
questão indígena do ponto de vista do reconhecimento de direitos fundamentais. Em
1989, por exemplo, a Organização Internacional do Trabalho/OIT assinou a Convenção
169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Estados Independentes que se tornou
importante ferramenta de pressão sobre os governos locais. A Bolívia ratificou a
convenção em 1991, teve seu primeiro vice-presidente aymara, Victor Hugo Cárdenas,
durante o primeiro mandato de Gonzalo “Goni” Sánchez de Losada (1993-1997),
promoveu uma reforma constitucional em 1994 que acabou por reconhecer, pela
primeira vez, o caráter multiétnico e pluricultural da Nação, bem como o direito à posse
da terra aos territórios ocupados pelas comunidades originárias – até então, os indígenas
só tinham o direito ao usufruto do território- e promulgou a Lei de Participação Popular
que abriu espaço para a municipalização do poder, favorecendo às organizações
indígenas.
Contudo, apesar de avanços significativos na legislação, houve um esforço por
parte dos governos instituídos em esvaziar o conteúdo revolucionário de algumas
organizações indígenas em favor de uma concepção que assimilasse esse componente
multicultural, sem, contudo, alterar de fato as estruturas que contribuíam para
reproduzir o colonialismo interno. Nesse sentido, o Governo Goni foi simbólico de uma
agenda neoliberal acomodada em setores mais conservadores do indigenismo e que
resultou em um processo de desresponsabilização do Estado da resolução das
45
problemáticas sociais. Nos anos 1990 e 2000 ocorre o auge das reformas desse tipo e
que resultou em um recrudescimento das desigualdades sociais, afetando diretamente as
classes populares e indígenas.
Os limites evidentes desses governos no sentido de atender às demandas
crescentes, somado ao impacto econômico-social do neoliberalismo, levaram a um
período de levantamientos populares, no qual as classes populares e indígenas foram às
ruas reivindicar suas bandeiras, constituindo-se enquanto poderes paralelos que não
mais respondiam ao Estado. Os dois principais episódios foram a Guerra da Água, em
2000, em Cochabamba, em resposta à tentativa do governo de privatizar a água, e a
Guerra do Gás, em 2003, em La Paz/El Alto em resposta ao aumento dos impostos e ao
projeto do governo de exportar o gás e outras fontes naturais através do Chile –
inimigos eternos dos bolivianos por ter-lhes anexado sua única saída para o mar. Ambas
as insurreições foram vitoriosas politicamente, porém, deram-se às custas de muitas
vidas devido à repressão do Estado.
Na esteira dessa efervescência social, coube ao Movimiento al Socialismo/MAS,
que havia sido criado em 1995 como Instrumento Político para Soberania dos Povos,
sob o protagonismo dos cocaleiros de El Chapare, o papel de constituir um bloco
histórico capaz de agregar diversos setores populares e indígenas descontentes em prol
de uma candidatura comum que representasse o protagonismo indígena na tomada de
decisões, explicitando a necessidade de modificar as estruturas que regiam o país, a
começar pela própria Constituição. Evo Morales Ayma que já havia se destacado como
sindicalista, presidente de seis federações cocaleiras desde 1996, eleito senador pelo
MAS em 1997, que participou ativamente das manifestações de rua durante os anos
1990 e 2000, foi escolhido como candidato à presidência. Perdeu por 1,6% as eleições
de 2002 e, em 2005, foi eleito com 53,74% dos votos (ELECTORAL GEOGRAPHY,
2002 e 2005).
Hoy día empieza un nuevo año para los pueblos originarios del mundo,
una nueva vida en que buscamos igualdad y justicia,
una nueva era, un nuevo milênio para todos los pueblos del mundo,
desde acá Tiahuanacu, desde acá La Paz, Bolivia.
Evo Morales Ayma, 2006
46
Com a eleição de Evo Morales, o MAS já reunia um conjunto muito mais amplo
de movimentos sociais que os que deram impulso a sua formação, incorporando as
classes médias urbanas e até mesmo o pequeno e médio empresariado. A fórmula do
poncho e da gravata representado pelo presidente indígena e o vice-presidente, Álvaro
García Linera, respectivamente, expressa um esforço em agregar diferentes setores da
sociedade boliviana em prol de um projeto comum de transformações orientado a
favorecer as classes populares e indígenas. Na prática, essa premissa tendeu a uma
postura mais moderada e conciliatória do MAS, afastando-se em certa medida do
radicalismo indígena que lhe deu origem. Havia, nesse sentido, um duplo papel a ser
cumprido por este Instrumento Político: o de mobilizar e, ao mesmo tempo, moderar os
movimentos sociais.
Tal como defendido na campanha, uma das primeiras medidas do governo foi
convocar uma Assembleia Nacional Constituinte/ANC para que os povos originários,
finalmente, pudessem participar de sua idealização. Segundo Evo Morales (2006a),
26
A Bolívia possui duas capitais: Sucre e La Paz. Isso se deve à Guerra Federal (1898-1901), uma guerra
civil que opôs os liberais de La Paz (norte) contra os conservadores de Sucre (sul) em disputa pela
liderança da Bolívia. Resultou na derrota do sul e, com isso, na mudança da capital do país, ou pelo
menos dos Poderes Executivos e Legislativos, para La Paz. Sucre permaneceria apenas como sede do
Poder Judicial.
47
27
É um espaço local, transcomunitário, que abarca vários ayllus.
49
Já desgastado inclusive com suas bases sociais, Evo Morales e o MAS decidiram
propor um referendo revogatório presidencial e do governo dos departamentos. Ao
mesmo tempo, a oposição puxou um “referendo autonômico” para aprovar o Estatuto da
Autonomia sobre as regiões da Meia Lua. Era uma demonstração de força. Tanto de um
lado, quanto de outro. Com isso, esperava-se superar o imbróglio.
Realizados em 2008, no referendo revogatório presidencial, Morales saiu
vitorioso com 67,43%, porcentagem maior da que tinha recebido quando eleito em 2005
(ELECTORAL GEOGRAPHY, 2008). A maior parte dos prefectos (representantes dos
departamentos) também foi ratificada, inclusive os da oposição. Já em relação ao
referendo autonômico na Meia Lua, apesar dos resultados favoráveis ao Estatuto, houve
altos índices de abstenção (em Santa Cruz e Beni, 35%, em Pando, 46%) que, quando
somados aos votantes que não apoiaram o estatuto, resultava em uma vitória para
oposição muito frágil (CHAVES; SÁ; ARAUJO, 2009, p. 153-154).
Sem apoio internacional para levar adiante o projeto de se tornar independente do
território nacional boliviano28 e com os resultados dos referendos, oposição e governo
tiveram de voltar ao diálogo. Foi decidido que os assuntos mais polêmicos, como o das
autonomias e do latifúndio, seriam, de fato, relegados para um segundo momento.
A Nova Constituição Política do Estado/NCPE foi, finalmente, encaminhada a
referendo no dia 25 de janeiro de 2009. Foi aprovada com 61,43% dos votos, com uma
participação de mais de 90% dos habilitados a votar (ELECTORAL GEOGRAPHY,
2009a). Porém, perdeu em todos os departamentos da Meia Lua, o que gerou mais uma
situação de tensão na região, pois a oposição, se valendo dos princípios de autonomia,
passou a reivindicar um estatuto diferenciado para aquela região uma vez que a
Constituição não havia sido aprovada em seus Estados. Mais uma vez, estes setores não
tiveram força para levar a cabo as ameaças e acabaram submetendo-se ao novo Pacto
Social.
Em seu Preambulo, a NCPE ratificou a derrubada do Estado Colonial e a ascensão
do Estado Plurinacional nos seguintes termos:
Figura 1
29
Trata-se de uma lógica submetida à produtividade biológica dos bosques tropicais que propicia a pesca,
a caça, a coleta e uma agricultura itinerante.
54
primeiras máquinas, foi organizada a VIII Marcha por la Vida Dignidad y Territorio
rumo a La Paz com apoio de organizações importantes, como a CIDOB, a COB e a
CONAMAQ, com ampla repercussão e apoio de setores urbanos do altiplano. O
momento de maior tensão foi quando já nos arredores do Departamento de La Paz, em
Yucumu, a polícia reprimiu 1.500 marchistas para impedir sua chegada à capital,
argumentando que havia ameaça de confrontos com setores indígenas cocaleiros
favoráveis à construção da estrada. Vídeos foram divulgados demonstrando a violência
com a qual foram tratados os indígenas de TIPNIS e estima-se que até 600 pessoas
foram detidas, ainda que liberadas depois (BREDA, 2011).
Diante do episódio, que remontava aos tempos sombrios das ditaduras e dos
governos oligárquicos anteriores, foi convocada uma greve geral e o presidente se viu
obrigado a dar explicações. Evo Morales alegou não ter dado a ordem para reprimir com
violência os manifestantes, porém, três ministros pediram demissão e, em cadeia
nacional, o presidente se comprometeu em suspender as obras. Com o Pacto de Unidade
fragilizado, a chegada a La Paz de milhares de manifestantes e simpatizantes
reivindicando o cumprimento dos princípios constitucionais do Estado Plurinacional e
Comunitário constrangeu profundamente o governo que havia se tornado símbolo
internacional do compromisso com a descolonização do Estado e o respeito à
Pachamama e aos povos indígenas.
Em meio a interesses tão díspares, como articular demandas tão divergentes sob o
signo da plurinacionalidade inscrita na Constituição? Diante da VIII Marcha, o governo
recuou, mas o apoio que recebe, sobretudo dos cocaleiros que vivem ao sul do TIPNIS
provoca oscilações na condução do caso que está longe de ser encerrado.
TIPNIS, portanto, não se deve ser resumido a um conflito local, mas é
paradigmático dos rumos assumidos pelo governo e dos percalços da construção de um
Estado Plurinacional e Comunitário na América Latina.
55
2. ¡El Alto de Pié, Nunca de Rodillas!: História das Lutas Populares de uma Cidade
Insurgente
“El Alto de Pie” é o título da obra do jornalista Luis A. Gómez que, como muitas
outras, conta a história da insurreição aymara nesta cidade na ocasião da Guerra do Gás
(2003), durante o governo de Gonzalez Sanches de Losada (2002-2003). “El Alto de
Pie, Nunca de Rodillas” expressa o simbolismo de uma cidade que é reconhecida pela
histórica resistência aymara que remonta aos tempos do colonialismo espanhol e se
desdobra até os dias atuais.
Das lutas que remetem a um passado mais distante, vale retomar a insurreição
liderada por Bartolina Sisa e seu companheiro, Tupaj Katari, no século XVIII, que já
havia me referido no capítulo anterior. Porém, um dado bastante significativo por ora é
que, além do fato de ter reunido milhares de indígenas na luta contra o Império
Espanhol, naquela ocasião, Sisa e Katari organizaram um sítio a La Paz desde a região
de El Alto que durou de maio até junho de 1781 e que levou ao desespero seus
residentes. O sítio ou o cerco a La Paz contribuiu para criar um perfil daquela região
que seria sempre lembrada como um território caracterizado pela forte presença de
ayllus indígenas (e tradições comunitaristas) e uma significativa resistência rebelde que
perdura nos anos seguintes. A cena do cerco foi imortalizada no quadro de Florentino
Olivares que está exposto hoje no Museu Casa Murillo, sob o resguardo da alcaldía de
La Paz. Nele podemos observar como toda a região que vai de São Pedro e Sopocachi
subindo as ladeiras sem fim até El Alto eram, de fato, ayllus indígenas (comunidades).
La Paz correspondia à área que vem depois da Avenida 16 de Julio, que naquela época
era um rio sobre o qual foram construídas algumas pontes de acesso. No quadro, os
indígenas dominam toda a região das ladeiras (onde estavam localizados os ayllus) com
alguns pontos de enfrentamento. O Estado Maior katarista reside soberano no topo da
montanha, onde hoje é El Alto, enquanto a cidade de La Paz, esganada, padecia com a
falta de acesso a alimentos.
57
Figura 2
Florentino Olivares, El cerco de La Paz 1781. Elaborado en 1888. Óleo sobre tela, 142 x 186
cm, Museo Casa de Murillo de La Paz, Bolivia
Fonte: JUÁREZ, Ivone. “El cuadro que revela cómo fue el cerco a La Paz en 1781. In: Pagina Siete,
28/07/2016 [ http://paginasiete.bo/gente/2016/7/28/cuadro-revela-como-cerco-1781-104242.html -
consulta em 20/11/2017]
Quando Katari finalmente foi preso, amarraram seus quatro membros a quatro
cavalos e o esquartejaram enviando cada parte de seu corpo para uma parte da Bolívia
com o propósito de desarticular as resistências. Antes de morrer, Katari teria falado uma
frase épica que ecoaria na memória popular até os dias de hoje: “Morro, mas voltarei
como centenas de milhares de índios”. O sindicalismo katarista dos anos 1980
reivindica a memoria dessa rebelião e resistência indígena apontando para outros
caminhos possíveis para a história da Bolívia rompendo com uma pretensa linearidade
58
que coloca Katari como precursor da Independência. Vale dizer que movimento de
Independência criolla não tem nada que ver com a revolta indígena. Inclusive, o próprio
Murillo, cuja casa se tornou o museu que habita hoje o quadro de Olivares, e que
também acabou enforcado por lutar pela independência, foi um dos algozes de Katari.
Como afirmei, a memória do cerco de La Paz continua viva na memória popular
até hoje. Em outubro de 2003, quando houve a Guerra do Gás e a cidade de El Alto se
insurgiu mantendo a capital boliviana sitiada durante uma semana, foi muito comum
referências à “invasão indígena” e coisas desse gênero que apavoravam a população que
residia abaixo das ladeiras. Com a população faminta, sem combustível, a cidade de La
Paz agonizou diante da fúria popular alteña que terminou derrubando não apenas um
presidente, mas dois.
Assim, a região de El Alto sempre teve uma marca de ingovernável e rebelde.
Ainda em referencia à revolta liderada por Sisa e Katari, o sociólogo Pablo Mamani
Ramirez ratifica: “la actual de ciudad de El Alto, los valles y el altiplano de La Paz,
había se convertido en territórios ingobernables. El Alto es un lugar estratégico, centro
organizativo político-militar de aquela insurrección indígena” (RAMIREZ, 2005, p. 25).
Em 1899, na também já mencionada Guerra Civil, El Alto, mais uma vez,
converteu-se em um bastião de resistência. Desta vez, Zárate Willka foi quem liderou a
insurreição. Os revoltosos derrotaram em várias oportunidades as forças do presidente
Fernandez Alonso e chegaram a proclamar governos indígenas na região. El Alto
mantinha-se como um lugar estratégico para o controle de La Paz e graças a Willka e
aos revoltosos, foi possível vencer aquela guerra.
Na Revolução Nacionalista de 1952, a região se converteu em um “referente del
triunfo legitimador de La Revolución Nacional” (RAMIREZ, 2005¸ p. 27). Para
Ramirez, gradativamente El Alto foi se definindo a partir dessas insurreições e lutas,
tornando-se “uno de los lugares en que mejor resume este largo recorrido de la lucha en
la colonia y la república” (Idem, p. 27).
Além da forte presença indígena e comunitária, toda essa experiência rebelde de
El Alto está relacionada fundamentalmente a sua situação geográfica estratégica.
Posição esta que é transitória, mas que conjugada com o perfil de sua população, que
por diversos fatores estruturou-se a partir de uma expressiva coesão social, resulta nessa
capacidade peculiar de se insurgir de maneira coordenada e, com isso, afetando
profundamente um dos principais centros de poder do país. Tais elementos que levaram
a dita coesão social, veremos mais adiante.
59
Em relação a essa posição estratégica, trata-se do fato de, do ponto de vista militar
e geopolítico, El Alto localiza-se, literalmente, no alto de La Paz, isto é, sendo a capital
um vale, El Alto é sua prinicpal porta de entrada, vindo do alto deste vale. Pela cidade,
passam também as principais estradas que ligam a capital ao restante do país, além de
abrigar o aeroporto internacional de La Paz. Por essa razão, a tática de obstrução de
vias, conforme veremos mais adiante, é reiteradamente utilizada em momentos de crise
uma vez que disso resulta o “estrangulamento de La Paz” (MACCHIAVELLO, 2008, p.
87).
El Alto conquistou sua autonomia de La Paz e recebeu o estatuto de cidade
somente em 1988. A alta concentração populacional e a sistemática ausência do Estado
no sentido de oferecer políticas públicas resultaram em profundos problemas sociais de
infraestrutura que não acompanharam o seu crescimento: “es una ciudad con profundos
problemas sociales. Las calles son polvorientas, existe pobreza, a los sectores
marginales no llega luz, no hay fuentes de trabajo” (RAMIREZ, 2005: 29). É, portanto,
uma cidade pobre, com uma infraestrutura precária e cujos habitantes sobrevivem com
cerca de U$2 por dia. Contudo, como afirma a antropóloga Sian Lazar (2013, p. 43), “la
ciudad es más que la suma de sus problemas sociales”.
Da primeira grande onda migratória que ocorreu para a cidade nos idos de 1950,
como resultado da Reforma Agrária de 195230 até a mais recente, nos anos 1980, devido
às reformas neoliberais que levaram ao fechamento de várias minas e a “relocalização”31
dos mineiros na região, El Alto saltou de uma região periférica de La Paz para uma
cidade autônoma com centenas de milhares de habitantes. Por tornar-se destino de
muitos migrantes, é considerada por alguns autores como a “babel das migrações”
(GARCÍA apud CAMARA, 2011, p. 64). Porém, no último censo realizado, em 2012,
dos aproximadamente 850 mil habitantes (INE, 2012) identificados, 80%
consideravam-se indígenas e 74% autodenominam-se aymara. Para Raul Zibechi (2006
apud MACHIAVELLO, 2008: 95), El Alto é a “primeira grande cidade índia do
continente”. É a quarta mais habitada da Bolívia.
Deste modo, El Alto em seu processo de formação, foi se tornando uma região
com vida própria e autônoma, estruturando-se muito mais como reflexo das relações
30
A Reforma Agrária não favoreceu aos camponeses de tradição comunitária, pois o parcelamento em
cotas individuais inviabilizou as condições de produção da vida. Além disso, intempéries climáticas
também criaram um período de profunda escassez e de fome no campo.
31
A relocalização foi o reassentamento, com apoio do Estado, dos mineiros em função do fechamento de
várias minas no contexto do neoliberalismo.
60
Figuras 3 e 4
Feira 16 de Julio
[arquivo pessoal da pesquisadora]
exceção da presença das cholas, poderíamos dizer que é uma feira como outra qualquer,
ou até mesmo uma feira em que predomina uma problemática social, em um claro
exemplo de desigualdade e limites estruturais de uma sociedade pobre e com extremas
vulnerabilidades. Porém, subjacente a tais aspectos residem valores e práticas que
transcendem a lógica puramente ocidental-capitalista-mercadologica. Por exemplo, há
dois preços nos produtos, para os aymaras e para os gringos (mas só quem fala aymara
alcança essa sutileza), há muitas relações de reciprocidade, ajuda mútua (ayni), trocas e
associativismo, há as festas que são espaços de reafirmação de identidades e que servem
para equilibrar entre aqueles que ganharam mais e os que ganharam menos (geralmente,
os comerciantes mais bem sucedidos são responsáveis por financiar os festejos
devolvendo um pouco de seus lucros para a “comunidade”), redistribuições, trabalho
coletivo para montar, desmontar e organizar a feira (mink’a - trabalho em favor da
comunidade). Quanto mais distante da estação do teleférico, mais simples vai ficando a
feira. Aquele vuco-vuco de gente que você mal consegue andar diminui e vemos mais
sucatas, revendas, brechós, produtos artesanais sendo vendidos em condições mais
precárias. Uma tenda na região mais central pode custar até 10 mil dólares. Muitos
vendedores que atuam na 16 de Julio são itinerantes, quer dizer, rodam pelo país
vendendo suas mercadorias. É toda essa dinâmica que reforça, portanto, a existência de
uma lógica comunitária que coexiste ao modelo hegemônico e que, ao mesmo tempo,
pode apontar para uma outra forma de estar no mundo.
Também podemos observar a influência dessas referências indígeno-comunitárias
e sindicalista-mineiras na própria conformação da cidade. El Alto possui 14 distritos.
No Norte estão os distritos 4, 5, 6 e 7 e 14 e observa-se uma maior concentração de uma
população aymara-camponesa proveniente das províncias do Altiplano Norte. Os
distritos 9, 10, 11 e 13 são seus vizinhos geograficamente, mas são classificados como
distritos rurais. Já os distritos 1, 2, 3, 8 e 12, correspondem ao Sul e são constituídos a
partir de uma origem migratória mais diversa, mas com destaque para aqueles que
vieram das regiões mineiras, como Oruro, no Altiplano Sul. Os distritos do Norte e do
Sul são representatos pela Federación de Juntas Vecinales/FEJUVE de El Alto, já os
distritos rurais organizam-se através da Federación Sindical Única de Comunidades
Agrarias de la Radio Urbana o Suburbana de El Alto/FESUCARUSO.
63
Figura 5
32
Em 1996, registra-se a primeira proposta de distritação municipal de El Alto conformado então por 7
distritos: dos quais 6 eram considerados urbanos (1, 2, 3, 4, 5, e 6) e um rural (7). Nessa primeira divisão,
o aeroporto internacional de El Alto não correspondia a nenhum distrito. Em 2002, o distrito 6 unificou o
espaço do aeroporto; os distritos 3 e 4 se estenderam até os limites do município (a oeste) e sobre o
espaço do distrito 7. Na ocasião também foram criados dois novos distritos: 8 (urbano), ao sul do
município limitando com os distritos 2 e 3, e o 9 (rural) ao norte que resultou da divisão do distrito 7 em
duas frações. Em 2005, foi criado o distrito 10 com o objetivo de anexar as comunidades de Villa
Exaltación de Amachuma, Parcopata e Chañuachua. Em 2007, foi criado o distrito 11 (rural), da divisão
do Distrito 7. Em 2008, foi criado o distrito 12 (urbano), da divisão do distrito 3, e o distrito 13 (rural), da
divisão do distrito 9 em duas frações. Em 2010, foi criado o distrito 14 (urbano), como produto da divisão
do distrito 7 em duas partes.. Em 2012, o distrito 7 amplia até a costa do distrito 9. E, por fim, em 2013,
se efetua nova modificação no distrito 7, diminuindo sua superfície e o distrito 13 teve um incremento.
(Cf. Distritos Municipales – Município El Alto. In: :
http://www.educa.com.bo/geografia-municipios/distritos-municipales-municipio-de-el-alto - consulta em
20/11/2017).
64
El Alto es como Sao Paulo, donde, por ejemplo, Sao Paulo tiene
boliviano, peruano, brasileiro, chino, japonés, tanta cultura, ¿no? Aquí
en El Alto tiene… hay provincianos, de todas las provincias. En la Paz
son 20 provincias. Todos tienen sus provincias. Otros vienen de los
centros mineros como yo, Colquiri, Catavi, Siglo XX, Matilde. […]
cada quien vive con lo que es y su costumbre. Los mineros son
ordenados y revolucionarios; los de provincia, son pacíficos, pero
rebeldes; los extranjeros también tienen otra cultura. […] Y así se va
construyendo la ciudad. Predomina, pero, esa cultura de las provincias
y de los centros mineros. […] El minero es más franco, le habla. Los
de provincia, tienen miedo. No te confían fácilmente. Esa es la
diferencia. Pero, las identidades se complementan. (OJEDA,
Entrevista, 2017)
El sindicato llega de otro país, llega con los grandes barones del
estaño. Y por la pauperización, salario, vivienda… los mineros
aprenden a organizarse. Pero nosotros como bolivianos, como
65
substituindo o Estado, nos casos em que este não se faz presente. As juntas existem
praticamente desde o início dos assentamentos e articulam-se em um nível regional,
através do ampliado distrital, no qual reúnem-se os presidentes de cada zona de um
determinado distrito para tratar de temas de maior abrangência territorial. Articulam-se
também a nível municipal, através da Federación de Juntas Vecinales/FEJUVE que se
constitui a partir de um congresso bianual que reúne dirigentes dos dez distritos urbanos
da cidade. E a nível nacional com a Confederación de Juntas Vecinales/CONALJUVE,
fundada em 1984, considerada máxima instância de organização vecinal, cujo comitê
executivo é eleito a cada quatro anos em congresso correspondente.
Segundo Fanny Nina, ex dirigente e primeira e única mulher presidenta da
FEJUVE, este modo de organicidade representa um poder territorial baseado em uma
capilaridade potente que viabiliza que decisões tomadas em instâncias maiores cheguem
rapidamente a todas as zonas e, da mesma forma, que demandas mais específicas de
uma determinada localidade, possam chegar com força em uma instância
representantiva mais ampla. No contexto de grandes mobilizações, como foi o caso da
Guerra do Gás de 2003, essa estrutura política demonstrou-se muito eficaz.
Desde las bases tenemos las asambleas zonales, luego viene los
ampliados distritales y luego viene los ampliados de la FEJUVE de El
Alto. En este ú ltimo es donde se sacan las decisiones mayores, por
ejemplo, para una movilización. Decidimos arriba y luego bajan para
los ampliados distritales y para las asambleas zonales donde está la
máxima autoridad de los vecinos, después vuelve a subir a la
Federación. Este es nuestro modo de organización. Es por eso que en
las grandes movilizaciones que hemos hecho teníamos fuerza. Porque
las decisiones llegan hasta los últimos rincones de El Alto. Por eso
representa un poder territorial (NINA, Entrevista, 2017).
Deste modo, se, em tese, as juntas poderiam ser consideradas como o equivalente
às associações de moradores, na prática, acabam atuando de maneira bem diferente, pois
incorporam um conjunto de valores e princípios herdeiro das tradições comunitárias do
campo que transcende o escopo mais pragmático que muitas vezes domina a prática das
primeiras. Portanto, atua menos como associação e mais como um microgoverno local
estruturado, por sua vez, por essas tradições e articulado em múltiplas escalas
representativas e de poder. É uma outra lógica organizativa mais complexa que expressa
maior coesão social.
67
costuma ser necessário o consenso; nos demais, pode haver regime de votação
(MACCHIAVELLO, 2008, p. 141).
Para eleger um diretório da junta vecinal é necessário realizar uma assembleia
para que se componha um comitê eleitoral (formado por un/a presidente/a, un/a
secretario/a e três suplentes) que será o responsável por convocar, organizar e realizar as
eleições correspondentes (ESTATUTO ORGÁNICO FEJUVE EL ALTO, Titulo III, art.
73). O estatuto prevê a realização de eleições por intermédio do sufrágio e do voto
secreto (Idem, art. 75), porém, em muitos casos, é possível ocorrer a eleição direta de
um diretório por aclamação (Idem, art. 76). Todos aqueles que vivem na circunscrição
zonal da junta e são maiores de 18 de anos têm o direito de participar (Idem, art. 66, a.),
mas só pode se postular a um cargo se residir na região há pelo menos cinco anos (Idem,
art. 77, c.). Todo o processo deve ser acompanhado e validado pela FEJUVE, única
instituição que confere legitimidade e que oficializa a existência de uma junta (Idem, p.
79).
Como governos locais, as juntas são as porta-vozes de sua comunidade (Idem, art.
69), mas devem respeitar as resoluções do Congresso Ordinario da FEJUVE (Idem, art.
70). Para tanto, são elaborados Planos de Desenvolvimento ou Planos Operativos
Anuais/POA (de ordem local e distrital) que estabelecem as diretrizes de ação sobre os
temas que possuem competências para atuar: infraestrutura, educação, saúde, economia
popular, cultura, gênero, esportes e juventude. São constituídas no âmbito das juntas
vecinales secretarias próprias para promover projetos e realizar ações em cada zona,
tendo como base princípios de solidariedade, respeito e cooperação (art. 70, d). As
juntas são obrigadas a participar dos ampliados distritais e da FEJUVE e, mensalmente,
devem contribuir financeiramente com a Federação (Idem, art. 88).
A FEJUVE também é regulamentada por estatuto definida como uma “instituição
cívica, corporativa, democrática, participativa y apartidista” e que atua segundo o
princípio do “centralismo democrático” (Idem, art. 1), o que significa que as resoluções
tiradas no Congresso Ordinario que ocorre a cada dois anos devem ser cumpridas pelo
comitê executivo eleito na mesma ocasião.
Como instituição cívica, o estatuto é categórico ao afirmar que a entidade não
pode possuir nenhum tipo de patrocínio político partidário em sua condução,
lineamentos e ações, apesar de respeitar o pluralismo ideológico e democrático de seus
afiliados (Idem, art. 5). Carlos Revilla (2007, p. 19), em trabalho antropológico sobre as
organizações vecinais de El Alto, destaca como a revindicação de uma postura cívica
69
não apenas da FEJUVE, mas das juntas de forma geral é central para conferir
legitimidade à dirigência. O cívico seria aquilo que está associado aos interesses das
bases, dos vizinhos; já o político, representaria o interesse de outros agentes, sejam eles
partidos políticos, empresas, governo. Se, por um lado, é evidente que o contato com
políticos pode ser o diferencial para um dirigente no sentido de conseguir algum
benefício para sua zona, por outro lado, se tais ações de diálogo não estão bem
amarradas e respaldadas por suas bases, o efeito pode ser o inverso, gerando
descrebidilidade e descontentamento, pois o dirigente pode ser desmoralizado por
supostamente atuar visando expecativas pessoais, tendo abandonado o horizonte de bem
comum.
O contato com os políticos ou com os partidos políticos sempre pressupõe uma
troca de favores. Os termos das concessões entre aquilo que se pleiteia e aquilo que
deve ser dado em troca são arenas de difícil circulação e, na maior parte das vezes, é
necessária uma exímia habilidade do dirigente para sair ileso, com resultados concretos
para a zona e sem se ver desmoralizado por uma associação com o partido.
Não é sempre, contudo, que essas articulações são explícitas e muitas manobras
podem ser feitas por dirigentes para viabilizar benefícios para a zona por intermédio
dessas relações sem que a base tome conhecimento. Ainda assim, o fundamental aqui é
chamar a atenção para a expectativa que se constrói em relação a uma dirigência vecinal
como um todo que tem a ver com um “sentido práctico filosófico popular” (ARTEAGA
apud REVILLA, 2007, p. 19), de conferir prioridade ao atendimento das demandas
específicas dos territórios em um viés mais pragmático, deixando, em segundo plano,
implicações ideológicas mais complexas.
Outro aspecto central que gira em torno das expectativas de gestão de uma
dirigência é a realização de obras. A ideia de executar obras como sinônimo de boa
70
gestão apareceu em várias entrevistas realizadas por mim. Se, por um lado, isso decorre
do fato de El Alto ser uma cidade que realmente demanda muitas obras de
infraestrutura, por outro, há um viés autogestionário na expectativa de realização das
mesmas que traz outras implicações. Como historicamente o Estado não se fez presente
na região, a cidade praticamente foi edificada por seus moradores. Deste modo,
banaliza-se uma compreensão de que realizar obras não é necessariamente uma
responsabilidade do Estado e que o próprio cidadão é responsável por resolver as
mazelas que lhe acometem. Nesse sentido, cada comunidade, cada zona, cada distrito,
fica a cargo de seu “desenvolvimento” e, para tanto, buscam recursos tanto na esfera
privada (com ONGs, empresas, créditos) como na pública. Porém, quando é o Estado
quem realiza as obras, na maior parte das vezes, estas são apresentadas à população
como dádivas que merecem um agradecimento e não como direitos conquistados ou
mesmo mera obrigação do Estado33. Não por acaso, eventos de “entregas de obras” são
superestimados e a participação nos mesmos constitui como uma das obrigações dos
vizinhos de base de uma junta vecinal e, é claro, das instituições representativas
respectivas.
Para Sian Lazar (2003, p. 78-79), esta perspectiva traz uma dimensão de cidadania
com forte senso de autonomia em relação ao Estado, porém, essa suposta autonomia
pode ser considerada como uma premissa neoliberal na medida em que não reconhece
nesse Estado um agente que tem a responsabilidade de redistribuir as riquezas que, ao
fim e ao cabo, são oriundas da própria população e que acaba por transferir
competências que supostamente são dele para o mercado, para ONGs, para empresas
privadas, igrejas e outras instituições para as quais as juntas e FEJUVE precisam
recorrer em busca de recursos e apoio para realizar projetos. Com isso, as comunidades
ficam reféns da disponibilidade da esfera privada de investir e oferecer serviços,
deixando-as mais vulneráveis na medida em que os mecanismos de controle e
fiscalização para cumprimento de contratos e acordos são bem mais fluidos. Desabonar
o Estado desta responsabilidade pode ser perigoso, mas atende às determinações do
Banco Mundial e FMI, quando incentivam a partipação democrática no âmbito de tais
transferências de competências com intuito de reduzir o papel do Estado perante a
sociedade.
33
O caso do alcalde José Luis Paredes em El Alto é emblemático desse aspecto, assunto que
aprofundarei mais adiante.
71
34
Na América Latina, o legado das ditaduras civis-militares e das experiências do socialismo do século
XX contribuiu também para que houvesse uma preocupação maior em garantir espaços de participação
que fortalecessem o protagonismo cidadão contra regimes estadolátricos, autoritários e burocratizados.
(Cf. BRUCE, 2016).
73
35
Felipe Addor em seu livro Teoria Democrática e Poder Popular na América Latina (2016) trata das
reformas democráticas ocorridas no Equador e na Venezuela em anos recentes, no contexto do
Movimento Político-Eleitoral Pachakutik e do Governo de Hugo Chávez respectivamente, no âmbito de
uma reflexão teórico-prática sobre os rumos da democracia em nosso continente. Para tanto, além de um
relato minucioso de como essas experiências se deram na prática nos municípios de Cotocachi e Torres,
realiza uma revisão bibliográfica da teoria democrática aplicada às perspectivas que se apresentam no
horizonte das reformas voltadas para a ampliação da participação política observando suas
potencialidades emancipatórias de um lado, e as estratégias de esvaziamento e domesticação por parte das
elites hegemônicas, por outro.
36
Dentre as condições ideais, poderíamos citar a consolidação dos direitos civis, políticos e sociais, a
viabilização de uma formação técnica e um supervisionamento técnico eficazes e condições materiais de
existência que garantam a dignidade humana. Addor cita Boaventura de Souza Santos para tratar dessas
“pré-condições indispensáveis”, as quais são resumidas a uma “supervivencia garantizada, porque si estás
muriendo de hambre no vas a participar; tienes que tener un minimo de libertad para que no haya
amenaza cuando vas a votar; y finalmente tienes que tener acesso a la información” (SANTOS apud
ADDOR, 2016, p. 89).
74
conformidade com os “homens”, seguindo seus ritmos, para não ser tratada como uma
“mulher delicada, uma flor delicada”37 e fosse, por fim, respeitada.
Vale registrar que a despeito dos inúmeros desafíos que ainda perduram no sentido
de se alcançar a equidade de gênero nos espaços de poder (e nas demais dimensões da
vida), a Bolívia sob o Governo de Evo Morales tem se destacado de forma significativa
na promulgação de leis que contribuam para esse avanço. No ranking da
Inter-Parliamentary Union, com referencia ao ano de 2018, a Bolívia, não por acaso,
consta entre os 10 países do mundo que mais avançaram no âmbito da
representatividade política com uma taxa de 53.1%, perdendo apenas para Ruanda
(61.3%) e Cuba (53.2%). O Brasil, por exemplo, consta na 134ª posição com apenas
10.7% de representatividade de mulheres no parlamento, num total de 193 países.
Figura 6
Os dados na tabela foram compilados pela Inter-Parliamentary Union com base nas informações
fornecidas pelos Parlamentos Nacionais até 1 de janeiro de 2019. 193 países são classificados por ordem
decrescente da percentagem de mulheres na Câmara inferior ou única. (In:
http://archive.ipu.org/wmn-e/classif.htm - consulta em 22/04/2019)
No que se refere à participação das bases nas juntas, nem sempre esta se dá de
maneira espontânea, movida exclusivamente pelo caráter cívico. Em seu relato como
dirigente, Fanny Nina fez questão de se diferenciar de outros dirigentes que tinham o
costume de aplicar multas aos vizinhos que não participavam das assembleias, dos
eventos comemorativos que mobilizam toda a zona (como os festejos de aniversário),
que não iam às manifestações, às entregas de obras, entre outros. Em muitos casos, em
79
represália aos que não compareciam, não se instalava o gás domiciliar, não eram
concedidos ou eram confiscados documentos importantes ou, como disse, aplicavam-se
multas. “Yo nunca ha sacado un centavo de mis vecinos. Nunca expedí multas, cotas,
absolutamente, nunca, nada. Yo convocaba la asamblea e venían a los que se interesan
por la zona. Con los que venían planificábamos, hacíamos el consenso y nos poníamos a
trabajar” (NINA, Entrevista, 2017). Portanto, apesar de ser notória uma tradição de
organização territorial com a conformação de instituições representativas e de base por
toda a cidade de El Alto, é importante considerar que o processo envolve uma dimensão
voluntária e espontânea, mas também é combinado com ações de constrangimento e
compulsoriedade.
Outro aspecto importante também que influencia na participação dessas
instituições, que atua como um agente mobilizador e que se relaciona com o que
refletimos anteriormente sobre as expectativas mais pragmáticas de resultados é o
assistencialismo. Irene Mamani Ojeda cita, por exemplo, o caso do “Compadre Carlos”.
Carlos Palenque, também conhecido como “El Compadre”, uma liderança carismática
local que exerceu grande influência sobre os alteños, especialmente sobre o aspecto da
participação cívica popular. Músico charanguista e empresário, atuou também como
comunicador social em uma rádio e, depois, com uma emissora de televisão, o canal 4,
RTP.
No começo dos anos 1980, Palenque começou um programa de rádio chamado La
Tribuna Libre del Pueblo, no qual as pessoas comuns poderiam usar o microfone para
pedir ajuda, publicar eventos, denunciar crimes. Em 1985, o programa começou a ser
transmitido também pela televisão, pois Palenque havia comprado uma emissora.
Devido a sua popularidade, fundou em 1988 o partido Conciencia de Patria/CONDEPA
e foi candidato à presidência da Bolívia, mas não conseguiu se eleger apesar de se
consolidar como liderança política de referência no Departamento de La Paz e,
particularmente, em El Alto.
Na televisão, Palenque, através de uma retórica paternalista, convocava o povo a
se organizar e atrelava assistencialismo social ao engajamento político. Segundo Ojeda,
38
Pacha Mama (do quíchua Pacha, "universo", "mundo", "tempo", "lugar", e Mama, "mãe", "Mãe Terra")
é a deidade máxima dos Andes peruanos, bolivianos, do noroeste argentino e do extremo norte do Chile.
39
Dentro do conceito dos seres sobrenaturais, os achachilas formam, junto com a Pachamama, a categoria
mais importante dos deuses revernciados pelos indígenas. São os grandes protetores da natureza.
82
Cerca de dez mil indígenas das vinte províncias do Altiplano se dirigiram para El
Alto para somar-se aos demais movimentos e dar início a uma marcha até La Paz. No
auditório da emissora de Rádio San Gabriel, em El Alto, dirigentes aymaras – dentre
eles, Felipe Quispe40 -, tentaram uma negociação com dois viceministros que não foi
bem sucedida. Diante da irredutibilidade do governo em liberar Huampu, o diálogo foi
suspenso e os dirigentes entraram greve de fome por tempo indefinido atrelando ao
movimento todas as demais insatisfações que vinham se acumulando. Também foi
decidido em assembleias o bloqueio de avenidas por toda El Alto.
40
Felipe Quispe é executivo da Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesino (CSUTCB) e
considerado um Mallku, isto é, uma autoridade originária aymara. Militou em vários movimentos sociais
e organizações, tais como o Movimiento Indígena Túpac Katari (anos 1970); no Ejercito
GuerrilleroTúpac Katari/EGTK (anos 1990), no qual também participou o atual vice-presidente, Álvaro
García Linera; foi secretário executivo da Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de
Bolivia/CSUTCB; e candidato à presidência em 2002 pelo Movimiento Indígena Pachakutic/MIP, ficando
atrás de Goni e Evo Morales, este último eleito presidente em 2005..
85
[...] Todos los cruces, todas las avenidas y los puntos de encuentro
estaban tomados con precisión; desdoblándose con el mismo sistema
que las comunidades campesinas, los aymaras urbanos habían creado
cuarteles generales en distintos barrios de El Alto, en puntos clave de
la ciudad, desde donde era posible organizar las acciones. Pero los
militares tenían orden de avanzar a cualquier costo, cubiertas las
espaldas por la ley de “resarcimiento de daños”, dictada secretamente
por el gobierno (GÓMEZ, 2013, p. 95).
86
Tal perspectiva é corroborada por Fanny Nina ao afirmar que, em nome desse
Proceso de Cambio, foi derramado muito sangue em El Alto. Por conseguinte, este não
poderia ser apropriado por um partido ou um governo. O Proceso de Cambio é do povo.
“Detrás de esos muertos, detrás de esos heridos, hay ese llamado Proceso de Cambio
que no es de ninguno partido político, eso es del pueblo” (NINA, Entrevista, 2017).
Nas ruas de El Alto, o cenário era de guerra. O Exército respondeu ao aumento
das tensões reprimindo duramente as manifestações. A população respondeu, por sua
vez, montando barricadas e incentivando ainda mais marchas e greves. Contudo, há de
se notar a assimetria entre ambos os lados, pois, enquanto o governo dispunha de um
aparato militar, a população se utilizava dos recursos que tinham à mão.
87
nosotros solo nos defendíamos con palos y piedras, las botellas de pet
cola, unas botellitas pequeñitas, sabíamos hacer bombas molotov, con
arena y gasolina, una mecha más, y lo tapábamos con poxipol, los
secábamos. Y cuando teníamos que ir a una marcha, agarrábamos,
prendíamos y empezábamos a jugar y “bum”. Uno aprende la
necesidad que lo empuja, a crear sus propias armas. Pero a nosotros el
gobierno nos ha enfrentado como unos asesinos sanguinarios, no nos
han dando opción a nada. Han venido gente que no era de La Paz, eran
cruceños o eran extranjeros francotiradores. Porque mataban a quema
ropa, sin mirar si era niño, gente, mujer (OJEDA, Entrevista, 2017).
Para Ojeda, o apoio dos mineiros foi determinante para que o governo começasse
a ceder, quase um mês depois do início dos conflitos. “Y ahí nos viene apoyar los
mineros de Huanuni, Colquiri, luego llegan de Catavi, Siglo XX. Mueren también los
compañeros mineros […]. Entonces los mineros están agarrados de sus dinamitas y eso
hace con que el gobierno retroceda y se escape” (OJEDA, Entrevista, 2017). O governo
assina então o Decreto Supremo 27210 que estabelecia que não se exportaria mais o gás
pelo Chile, a menos que se realizassem consultas e debates públicos sobre o assunto.
Porém, era tarde demais. A população não deixou as ruas até que Goni renunciasse, o
que acabou ocorrendo, depois de cerca de 70 pessoas perecerem somente na cidade de
El Alto.
No lugar do ex-presidente, assumiu seu vice, Carlos Mesa, que tampouco
conseguiu atender às demandas populares e também foi obrigado a renunciar em 09 de
junho de 2005. O presidente da Corte Suprema assumiu até eleições seguintes, quando
Evo Morales tornou-se o primeiro Presidente indígena da história. Era o início de um
novo momento de lutas na Bolívia, no qual, pela primeira vez, depois de mais de 500
anos, os indígenas chegaram ao poder com um novo projeto de Estado
El Alto foi epicentro dos conflitos da Guerra do Gás de 2003, o que resultou não
apenas em um derramamento de sangue como anteriormente mencionado, mas também
em um alto custo social difícil de ser mensurado. Segundo Fanny Nina, muitas fábricas,
por exemplo, fecharam após o evento, gerando mais desemprego na cidade (NINA,
Entrevista, 2017).
Nas bases, a despeito da vitória política nacional, muitos dos dirigentes da
FEJUVE que atuaram nas manifestações tornaram-se alvos de duras críticas e de
perseguições. Após a queda de Goni, Pepelucho seguiu como alcalde de El Alto e havia
88
o risco real de muitos serem processados e presos por conta das agitações políticas que
protagonizaram no episódio. Para Irene Mamani Ojeda faltou apoio e suporte por parte
de muitos vizinhos que os acusaram de serem responsáveis pelas mortes durante o
conflito. Ojeda acabou fugindo para o Brasil, enquanto outros foram para províncias
como Los Yungas e outras regiões.
A reeleição de Pepelucho, mesmo após ter sido um dos responsáveis pelo
desencadeamento da Guerra do Gás, merece uma reflexão mais aprofundada. O mesmo
municipio que reelegeu o autor dos Formularios Maya e Paya com 53% dos votos,
concedeu uma votação histórica de 77% ao MAS de Evo Morales no ano seguinte nas
as eleições gerais (REVILLA, 2007, p. 5). Para Carlos Revilla, antropólogo que atuou
através da Red Unitas41 durante muitos anos na cidade de El Alto, a política de
“visibilidade” e “obrismo” realizada pelo MIR-Plan Progreso de Pepelucho foi central
para o sucesso de sua candidatura. Isso se relaciona com algo que tratei anteriormente e
que vou retomar agora que diz respeito a uma cultura política presente na cidade de El
Alto de legitimação de autoridades pela via da realização de obras.
Desde que começou a construir sua trajetória na cidade, em 1997, como deputado,
José Luis Paredes tratou de se vincular através de relações clientelistas ou de
compradazgo aos vários setores que apresentavam demandas: apadrinhava promoções
em colégios, patrocinava eventos culturais, realizava obras e benfeitorias, fazia uso
intenso de rádio e televisão para divulgar constantemente sua imagem vinculada ao
cumprimento dessas demandas. Depois que foi eleito alcalde pela primeira vez apostou
principalmente na execução de obras, associando às mesmas, elementos simbólicos que
fizessem referência a sua autoria e disposição de levar o “progresso” à cidade de El
Alto: pintava os equipamentos públicos com as cores de seu partido, procurava sempre
indicar que a obra realizada era de sua gestão, apropriava-se muitas vezes de outras
obras para chancelá-las com seu nome, colocava painéis, faixas e placas de
agradecimento ao governo pelas obras realizadas. Tais estratégias de propaganda
41
A Red Unitas, uma ONG fundada em 1976, no contexto da ditadura de Hugo Banzer, com o objetivo de
lutar pela democracia e pelos direitos humanos. Atualmente, é uma rede nacional que conta com mais de
22 instituições afiliadas. Seus projetos visam, por intermédio da educação popular, capacitar os setores
mais pobres, para que a partir de seu próprio protagonismo possam desenvolver projetos que lhes
garantam acesso à direitos fundamentais e avancem para uma sociedade mais justa e igualitária. A ONG
acompanha esses projetos depois prestando assessoria necessária. Em períodos mais críticos, eles
recebem mais recursos de outras organizações estrangeiras. Um dos principais parceiros deles por um
tempo foi o governo holandês, por exemplo. Uma das áreas de atuação dessa ONG é a cidade de El Alto e
Revilla, por muitro tempo, atuou nessa frente com o Programa Poder Local, do que resultou sua
dissertação de Mestrado em antropologia sobre a atuação das lideranças e autoridades nas Juntas
Vecinales e sua tese de doutorado. Ele mesmo é alteño e trabalhou principalmente no Distrito 4.
89
reforçam a persperctiva da gestão pública e da execução das obras como dádivas que
merecem uma recompensa. Não são apresentadas como direitos conquistados, mas
gestos de “boa vontade” que devem ser reconhecidos.
tradições indígeno-comunitárias e que pode apontar para uma ruptura sistêmica com o
capitalismo42? Haveria base social em El Alto para dar sustentação a esse conceito ou a
essa hipótese de transformação social?
Em relação à defesa ou sustentação do conceito em si, há poucas evidências nas
fontes levantadas por mim, o que me levou até mesmo a questionar a validade de se
refletir sobre o Bem Viver enquanto tal a luz da experiência de El Alto.
Espontaneamente, foram poucos os entrevistados que fizeram referência ao conceito e,
quando perguntados, a relação que se fazia geralmente era como se fosse algo
relacionado ao governo, ou algo externo, ainda que bebesse de tradições populares e
indígenas. A exceção de todos com quem trabalhei foi a ONG Wayna Tambo, vinculada
a Red de la Diversidad, que atua no Distrito 1 de El Alto (Villa Dolores). A proposta da
ONG é fortalecer o tecido comunitário em territórios de grande vulnerabilidade com
intuito de se impulsionar a capacidade de gestão do público, dos bens comuns e os
acordos de convivência equitativa em pluralidade, de forma corresponsável com o
Estado e suas instituições, tendo como horizonte as possibilidades de transformação
social orientadas ao Bem Viver (In: http://reddeladiversidad.org/quienes-somos/ -
consulta em 20/11/2017).
O Wayna Tambo funciona como um centro cultural e é o local onde se maneja
uma das principais rádios comunitárias de El Alto que, inclusive, cumpriu um papel
fundamental de comunicação e resistência no contexto da Guerra do Gás de 2003 e em
vários outros conflitos. Por intermédio de uma de suas principais lideranças, Mário
Ibañez, o Wayna Tambo e a Red de la Diversid têm pautado a disputa semântica do Bem
Viver, em tempos nos quais o conceito foi apropriado pelo governo masista. Segundo
Ibañez (2016), o Bem Viver vai muito além de um conceito bem definido, mas está
relacionado a um modo de ser que há 500 anos “co-existe” com a civilização
moderno-ocidental colonialista.
Muitos dos aspectos que citei aqui de como as organizações populares se
redefinem a partir da influência de várias tradições, sejam elas de matriz europeia, seja
de matriz comunitária, relacionam-se com o Bem Viver. Muitos elementos da vida
cotidiana, da economia popular, dos sistemas de ayni/ajuda mútua, dos mandatos
imperativos, da ocupação das praças, das insurreições populares, das formas de se
praticar o comércio que testemunhamos no dia a dia dizem respeito aos valores e
princípios existente em uma outra filosofia, em uma outra episteme, que sobrevive no
42
Aprofundo a reflexão e o debate sobre o conceito do Bem Viver no capítulo 3 desta tese.
91
43
José Rafael Vilar em seu estudo sobre “encuestas” e “eleições” na Bolívia no ano de 2009, apoiando-se
em vários estudos, inclusive nas pesquisas feitas pela empresa IPSOS APOYO (empresa de pesquisa
eleitoral com sede em vários países da América Latina, parte do grupo francês IPSOS) que realizou vários
estudos eleitorais e pré-eleitorais em El Alto, afirma que, considerando todos os resultados, a cidade,
junto com La Paz, podem ser consideradas como “bationes de Morales”, com índices de intenção de votos
e de votos, que, em vários momentos, superavam os 80%. (VILAR, 2009/2010, p. 27)
44
A primeira Guerra da Água ocorreu em 2000, em Cochabamba, em reação à política de privatização da
água.
45
Trata-se de uma tradição da cidade de La Paz que já vem desde o século XVIII. O dia das Alasitas
demarca o início da época de semear e que vai do dia 24 de janeiro e dura mais umas três semanas.
Acredita-se que este seja um período no qual os canais com a Pacha estão abertos para que a abundância
possa se abater sobre todos. São vendidas milhares de minitaturas de tudo o que se possa imagina. Às
12h, cumpre-se um ritual de oferecer tais miniaturas para a deidade aymara Ekeko, junto com alcool,
vinho, flores, adornos e orações. Desta maneira, você tem grandes chances de que essas coisas se
convertam em realidade. Nesse dia, as principais ruas e avenidas são fechadas e espalham-se milhares de
tendas com as pessoas vendendo e comprando miniaturas.
93
46
Entre os acionistas da empresa constam também a BICSA (22%), grupo financeiro do Banco Mercantil
da familía do ex presidente Jorge “Tuto” Quiroga”; o Banco Mundial através de seus grupo financeiro
IFC (8%); CONNAL (5%); Inversora de Servicios (9%); e os trabalhadores da empresa (1%) (FLORES,
2005).
47
A privatização ocorreu durante o primeiro mandato de Gonzalo Sanches de Lozada (1993-1997) como
condição para que o Banco Mundial, o BID e o FEMI renegociassem a dívida externa em 1996, com uma
promessa de modernização do serviço de água e o aumento de sua abrangência.
94
48
Houve casos nos quais a empresa implementou políticas pro-poor nas quais se engenda um sistema
dual: os ricos, localizados em áreas privilegiadas, acabam se beneficiando das instalações públicas, e os
pobres, são instigados a trabalhar de forma “comunal” por intermédio de suas juntas vecinales, para
construir instalações mais baratas e para responsabilizarem-se pela manutenção da rede. No caso, o
modelo consiste em um sistema de água e esgoto que não se utiliza das matrizes tradicionais no meio das
ruas secundárias; os tubos, no caso, que passam pela casa das pessoas ou na calçada, possuem um menor
diâmetro e vão diretamente para o tubo principal na rua principal. Os vizinhos se encarrregam de manter
o sistema e o custo é 30% menor do que custo de instalação normal. Evidentemente, tal modelo é repleto
de problemas. Pompeau em entrevista conta que como El Alto é relativamente plano e a profundidade das
escavações onde foram colocadas as tubulações são superficiais e com pouca inclinação, somando isso ao
baixo consumo de água da população alteña resulta no fato de ser comum o esgoto acabar voltando para a
casa das pessoas. Vale notar que este é mais um exemplo daquilo que já falei anteriormente a respeito da
prática comum de transferência de competências do Estado para as organizações civis, apropriando-se de
um ideário comunitário e, ao mesmo tempo, esvaziando seu conteúdo para atender às diretrizes
neoliberais.
95
uma participação da população na gestão da água e que reconhecesse esta última desde
uma perspectiva de “valor de uso” e não tanto de “valor de troca”, já que se subentende
a água como um “regalo de la Pachamama” ou mesmo de “Dios” que deve ser garantida
a todos por intermédio de mecanismo que garantam a “deliberación, regulación y
transparência colectiva” (RAMÍREZ, LINERA, STEFANONI, 2006, p. 313). Por fim,
acabou sendo criada a Empresa Pública Social de Agua e Abastecimiento/EPSA,
tornando-se responsável por fazer a coleta, represamento e distribuição de água potável
nas cidades de El Alto e La Paz49.
A Guerra da Água de El Alto teve um papel muito importante para pautar a
questão da água na agenda nacional, com projeção, inclusive, na Assembleia
Constituinte convocada em 2005, já no contexto do Governo Evo Morales.
A eleição de Morales, por sua vez, junto com a Constituinte, a reivindicação de
um Proceso de Cambio e a construção de um Estado Plurinacional e Comunitário trouxe
um horizonte de grandes transformações para a cidade considerada estratégica para a
manutenção da estabilidade política do país. Porém, para muitos dirigentes
entrevistados, tais expectativas de mudanças não se concretizaram de maneira
satisfatória. Se é certo que foram construídas importantes brechas para que os
movimentos indígenas pudessem encontrar maiores espaços para expor suas demandas
e praticar o poder comunal, em muitos casos, houve também um processo de
silenciamento, instrumentalização de entidades representativas e esvaziamento das lutas.
Ojeda, por exemplo, que chegou a atuar no MAS, rompeu com o governo porque não se
sentia contemplada com os rumos que as coisas haviam tomado.
Nas entrevistas realizadas por mim em 2017, muitos ex dirigentes reclamaram que
na cidade de El Alto continuam muitas carências e a necessidade de uma maior atenção
do Estado para a resolução das problemáticas urbanas e sociais. Ojeda falou sobre os
investimentos em obras faraônicas em detrimento de um compromisso real com a
Agenda de Outubro que significa nacionalização, industrialização e geração de
empregos.
49
Após 10 anos de gestão do MAS, a EPSA se tornou um “loteamento político”, pois foram nomeadas
para a sua condução pessoas que não tinham condições ou disposição técnica para conduzir a gestão da
água. Em 2016, desencadeou-se uma crise hídrica com desabastecimento em várias regiões de El Alto e
La Paz, resultado da má gestão, alterações climáticas e uma “tardia reação governamental”. Assim como
ocorreu com os hidrocarbonetos onde houve a nacionalização, ainda é necessário um investimento mais
sério na gestão dos recursos, na transparência e nos mecanismos de participação real da população no
âmbito dessas empresas (BENARIO, 2016).
96
instituição auxiliar do governo, retomando seu caráter cívico. Para este ano, Nina sequer
estava entre os candidatos para o pleito principal, concorria apenas a um cargo de
secretaria. Participou do congresso como dirigente de sua zona, já em sua segunda
gestão, junto a outros 2.500 delegados. O Congresso ocorreu no auditório da Radio San
Gabriel, no Distrito 3, depois de uma marcha de 6,5km que saiu do Distrito 1, onde está
localizada a sede oficial da FEJUVE. Os Congressos da FEJUVE são sempre compostos
por quatro congressistas por zona, sendo dois dirigentes da junta vecinal local e dois
vizinhos de base. Segundo Nina, havia um movimento anterior para garantir que o
sucessor da Presidência da FEJUVE continuasse alinhado ao MAS e ao Governo,
assegurando assim o apoio de El Alto ao Proceso de Cambio representado por Evo
Morales e Álvaro García Linera. Conforme a rotação de cargos, desta vez, deveria ser
eleito um representante do norte e havia um consenso construído em boa parte do
Congresso em torno do nome de Mario Siñani do Distrito 7: consenso este construído
por convencimento, por compra de votos, por negociações paralelas, entre outras
estratégias.
Porém, uma vez instalado o Congresso que duraria três dias, havia um clima de
muitas insatisfações. Na noite de abertura houve muita bebida e festa entre os principais
dirigentes. No dia seguinte, no sábado, quando se reuniram as mesas de trabalho,
responsáveis por definir as diretrizes de ação da FEJUVE e de suas secretarias para o
próximo biênio, o vicepresidente do Presidium, comissão criada para gerir o Congresso
e autoridade máxima naquele momento, denunciou que haviam oferecido 50 mil
bolivianos para garantir a eleição de Siñani, aumentando ainda mais o clima de tensões.
No último dia, quando ocorreria a votação para a nova dirigência da FEJUVE, com o
auditório lotado, começaram alguns protestos exigindo que as autoridades fossem
independentes dos partidos políticos, que El Alto estava abandonada, sem obras, sem
projetos e que eram necessárias mudanças.
51
Assinado em 29 de agosto de 1985 por Paz Estenssoro, o decreto contem um conjunto de medidas
econômicas que instaura o neoliberalismo no país: “1. Congelamiento de salarios, aumento del precio de
la gasolina, reducción de gastos del Estado; 2. Cambio real y flexible de la moneda; 3. Libre contratación,
racionalización de la democracia; 4. Liberalización total del mercado, libertad de precios, libre oferta y
demanda, arancel único de importaciones; 5. Fomento de las exportaciones; 6. Reforma tributaria” (Cf.
PALACIOS, Gabriela Weiss. Neoliberalismo y el Decreto Supremo 21060. In:
https://prezi.com/jemuktrwx4ep/neoliberlaismo-y-decreto-supremo-21060/ - consulta em 10/01/2017).
100
O resultado das urnas havia dado a vitória para Mário Siñani. Contudo, a maioria
dos delegados do Congresso persistiu em gritar o nome de Nina, a imprensa começou a
divulgar que era ela quem havia vencido e, por fim, o presidium voltou atrás e a
declarou presidenta da FEJUVE para a gestão 2010-2012 (NINA, Entrevista, 2017).
Nina em nenhum momento sustentou uma predisposição revolucionária explícita.
Porém, sua atuação cívica mais pragmática, porém comprometida com uma Agenda
construída em um contexto conflitual de dispustas (como, por exemplo, a Agenda de
Ouubro sempre reivindicada) reafirma os meandros do protagonismo das bases sociais
no interior do Governo indígena. Processos revolucionários não se dão a priori e
tampouco necessariamente este seria o caminho proposto por Nina, mas o que busco
sempre chamar atenção é que a gradativa reivindicação por direitos sociais das classes
mais vulneráveis e o comprometimento com os setores em luta pode se desdobrar em
potencialidades imprevistas.
Apesar de ter derrotado o candidato do MAS ao cargo executivo, todos os demais
membros do diretório que se constituiu nessa ocasião permaneciam sendo do campo do
governo, o que deixou a nova presidenta isolada politicamente em um cenário difícil de
atuar. No dia seguinte, por exemplo, quando foi ao escritório da FEJUVE, em La Ceja,
Nina relata que haviam saqueado todo o edifício: “El dia lunes, yo fui a la FEJUVE para
que me entreguen las llaves de la oficina. Una semana antes había computadoras novas,
escritorios, todo nuevo. Pero para el dia lunes, se habian llevado todo: computadoras,
sillas, todo habían saqueado” (NINA, Entrevista, 2017). Além disso, no mesmo dia, na
rua, nos arredores da FEJUVE, foi enquadrada por dois homens que lhe ameaçaram
dizendo que se não saísse do cargo, seria derrubada.
Esses e outros constrangimentos e assédios (físicos e psicológicos) tornaram-se
constantes no dia a dia de gestão da nova Presidenta, mas Nina estava decidida a
resgatar o caráter cívico da instituição e executar as resoluções tiradas no congresso. Em
reportagem do dia 24 de agosto de 2010, o jornal El Alteño registra a agressão sofrida
por Nina na ocasião de um ampliado distrital que lhe resultou um violento golpe no
estômago, lesões no braço e nas extremidades inferiores (EL ALTEÑO, 24/08/2010, p.
1 e p. 3).
Além da Comissão Política que já detalhei, haviam encaminhamentos também
tirados pelas comissões econômica, de gás, de desenvolvimento humano (saúde,
educação, esportes), de gênero, de infraestrutura e serviços básicos, de defesa do
101
Figura 7
EL ALTEÑO, “En Pié de Guerra: Alteños Exigen Audiencia con Evo” [capa], 30/09/2010.
[arquivo pessoal da pesquisadora]
Primeira audiência marcada. Nina se retirou com seus dirigentes aos gritos de “¡El
Alto de Pié... Nunca de Rodillas!” porque não foram recebidos pelas máximas
autoridades do país. Na segunda vez, ao impedirem que os dirigentes que a
acompanhavam entrassem para audiência conforme combinado previamente, retirou-se
mais uma vez, pois não entraria sem eles. A cada ação, aumentavam os desgastes com o
governo e ampliava a repercussão midiática. No dia 16 de outubro de 2010, o periódico
Jornada registra o incidente anterior afirmando que a audiência com o Presidente foi
adiada devido a “intransigência de la FEJUVE-El Alto” ao exigir que todos os
dirigentes participassem da audiência e não apenas três delegados por setor, mas que,
por fim, haveria um novo encontro no sábado para que finalmente pudessem ser ouvidas
as demandas (JORNADA, 16/10/2010. In:
104
Por fin, él dijo que ya iban hacer 6 meses de trabajo, cada mes para un
punto del pliego. En 15 días iban reunirse para ver en detalle los
proyectos. Yo, mismo con todos los golpeos, me quedé feliz. Estaba
satisfecha con eso. Hay otros detalles, pero no voy decirte más. Solo
uno te le voy a decir: han borrado todo lo que fue grabado allá dentro
de los celulares (NINA, Entrevista, 2017).
Figura 8
Para Nina, sua suspensão era de fato um golpe que fora orquestrado pelos
masistas em represália a sua insubordinação ao governo e ao desgaste que provocou em
sua imagem com toda a repercussão midiática gerada pelas audiências, pelo Pliego de
Peticiones, pela recusa em participar como FEJUVE do Estado Mayor Del Pueblo52,
entre outros. A ex presidenta relata que foi surpreendida com uma tropa de choque que a
impediu de entrar no edifício da FEJUVE, chegando a ser golpeada na ocasião. Houve
conflitos entre apoiadores de ambos os lados (NINA, Entrevista, 2017).
Mesmo suspensa, Nina continuou atuando em El Alto pressionando para que se
desse prosseguimento ao atendimento das demandas do Pliego Petitorio. Em 09 de
52
O Estado Mayor Del Pueblo foi criado pelo MAS-IPSP no contexto da Guerra do Gás de 2003 com o
propósito de aglutinar a maior quantidade de organizações populares, movimentos sociais, sindicatos e
federações para articular a resistência popular à conjuntura que se apresentava. Com a eleição de Evo
Morales, o governo deu continuidade aos esforços de manter esta instância em funcionamento como
mecanismo de comunicação direta com as suas bases sociais.
107
Final do ano. Dia 26 de Dezembro. O presidente Evo Morales estava fora do país
em visita à Venezuela. Coube ao Presidente interino, Álvaro García Linera, a tarefa de
assinar o Decreto 748/2010 que, na prática, aumentou de forma significativa, da noite
para o dia, o preço dos combustíveis: o litro da gasolina teve um aumento de 73% (de
3,74Bs para 6,47Bs) e o do diesel, de 82% (de 3,72Bs para 6,80Bs). O argumento do
governo era o de que era necessário nivelar o preço dos combustíveis aos praticados
internacionalmente para impedir o contrabando, pois da maneira como estava, o
governo praticamente subsidiava o roubo de combustíveis, o que tornava a situação
108
b) Resoluciones de la Comisión:
1. Rechazo total y definitivo del incremento de las tarifas de pasajes,
por se atentatório a la magra economia alteña que provocará el efecto
multiplicador de subida del costo de vida con desmesurada elevación
de la canasta familiar, declarando estado de emergencia y
movilización (RESOLUCIONES DEL XVI CONGRESO
ORDINARIO DE LA FEJUVE – EL ALTO, 2010, p. 41).
109
Do outro lado, Claudio Luna, presidente interino que nesse momento respondia
oficialmente pela instituição, convocou uma outra marcha para o mesmo dia e horário
do cabildo. O resultado final, segundo noticiado pelo periódico Jornada, foi um
fracasso, pois houve uma divisão de forças, uma parte das organizações atendeu à
convocação da “Fejuve presidida por Fanny Nina” e outra parte à “paralela, dirigida por
Claudio Luna”, além de ter ocorrido um confronto entre os próprios vizinhos, deixando
um ferido. Nesta reportagem, publicada no dia 30 de dezembro, o jornal retrata ainda
que “a la protesta convocada por Nina, en la Avenida Naciones Unidas, solo asistieron
algo más de un centenar de personas; otro tanto se reunió en la Ceja de El Alto, a donda
había llamado Luna” (JORNADA, 30/12/2010).
Para Nina, contudo, em entrevista realizada em 2017, a experiência do cabildo foi
um sucesso, pois várias entidades representativas de El Alto e de fora aceitaram ao seu
chamado (professores, organizações de mulheres, grupos deportivos, mineiros de Oruro)
e participaram da assembleia, rejeitando a convocatória de Luna, considerado como
representante do governo. Do cabildo foi decidida a manutenção da greve e uma grande
marcha em direção a La Paz para ser realizada em dois dias.
De fato, nos autos do processo julgado pelo Tribunal consta que não houve
nenhuma formalização das denúncias feitas pelas 42 pessoas que assinaram a resolução
que levou a suspensão do cargo da ex presidenta. No dia 25 de novembro de 2010, o
periódico El Alteño noticiava que a presidenta do Tribunal de Honra, Francisca Cocca,
reclamava que a letargia para emitir uma resolução definitiva sobre o caso derivava da
falta de documentos que, no caso, os dirigentes denuciantes não haviam entregado (EL
ALTEÑO, 25/11/2010, p. 4). Por fim, o Tribunal concluiu que não foi constatado
qualquer prejuízo que a então Presidenta poderia ter causado aos distritos que a
acusaram de improbidade administrativa. No documento, chega-se a afirmar que a
Resolução 007/2010 que levou a suspensão do mandato era uma “aberración jurídica
carente de fundamentación jurídica” e, que inclusive, os dirigentes das juntas vecinales
que a assinaram não tinham sequer atribuição jurídica para tal ato, sendo este exclusivo
do próprio Tribunal de Honra conforme previsto no Estatuto Orgánico da instituição.
Para o Tribunal, tais atos contituem-se como um “delito grave” e recomendam que
Fanny Nina, tão logo reassuma seu cargo, que encaminhe para o Tribunal a denúncia de
tais ações para que se possa abrir o processo correspondente e que sejam tomadas
medidas cabíveis em relação aos envolvidos. Deste modo, o Tribunal de Honra
rechaçou a resolução 007/2010, recomendando a “restitucion inmediata em cargo de
Presidenta de la Federación de Juntas Vecinales de la Ciudad de El Alto a la Sra Fanny
Nina Colque, en estricto cumplimiento a la resolución emitida por el 16º Congreso
Ordinario de la FEJUVE” (Cf. RESOLUCIÓN 001/2010 del TRIBUNAL DE
HONOR/FEJUVE EL ALTO).
Como vimos, a FEJUVE não cumpriu com as determinações do Tribunal de
Honra e, para completar, no dia 06 de janeiro de 2011, Fanny Nina sofreu um grave
acidente. Foi atropelada por um microônibus e arremessada cerca de 15 metros a frente.
Tal fato também foi repercurtido no jornal El Alteño, no dia seguinte (EL ALTEÑO,
07/01/2011, p. 6). Na reportagem e em entrevista, a ex presidenta denuncia que, apesar
de não ter provas, acreditava que este teria sido um atentado contra sua vida haja vista
que vinha recebendo varias ameaças, sobretudo após que o Tribunal de Honra deferiu o
processo a seu favor. Em função do acidente, Nina ficou duramente debilitada no
hospital, sem poder andar ou mesmo se mexer, de sorte que não tinha condições físicas,
emocionais e psicológicas para reivindicar a restituição de seu cargo e desistiu da
presidência da FEJUVE.
114
Para piorar o quadro, Nina soube ainda pelos meios de comunicação que estava
sendo processada por sedição devido as suas ações durante o gasolinazo, mais
especificamente sendo acusada de ser responsável por atos de vandalismo que
resultaram na destruição de alguns patrimônios, como a sede da FEJVUE e da COR
(PAGINA SIETE, 04/01/2011, p. 1). Após tais episódios, não recuperou seu cargo de
Presidenta, mas seguiu posicionando-se sobre temas polêmicos, como uma possível alta
de preços das passagens anunciada pelo setor de transportes e questionando a eleição de
Rubén Paz, também considerada ilegal (EL ALTEÑO, 08/01/2011, p. 3).
Figura 9
O SOL.Bo foi criado em 2014, sob a influencia Luis Revilla, para dar
continuidade ao legado político deixado por Juan del Granado, advogado, duas vezes
alcalde de La Paz e fundador do Movimiento Sin Miedo/MSM, partido de centro
esquerda que atuou em aliança com o MAS até 2009, quando rompeu com este campo
político. O MSM perdeu sua personalidade jurídica nas eleições gerais de 2014 porque
não alcançou o mínimo de 3% dos votos e, assim, Revilla iniciou uma campanha
nacional para fundar um novo partido e poder se candidatar à reeleição da alcaldia de
La Paz que ocorreria no ano seguinte junto a um corpo de candidatos que tivessem
como características uma militância mais pragmática, de base e comprometida com o
atendimento das demandas populares. Por toda sua trajetória a frente da FEJUVE,
apesar de não ser consenso dentro do SOL.Bo, Fanny Nina acabou sendo cotada como
117
53
Em entrevista, Nina relata que Patzi e Revilla não endossavam sua candidatura de maneira satisfatória.
Tiveram situações, inclusive, nas quais ela foi empurrada e separada do candidato ao governo de La Paz
por pessoas de sua equipe. Para a ex presidenta da FEJUVE, passavam-se os anos e ela seguia sofrendo
com a violência política (NINA, Entrevista, 2017).
54
A Constituição só permite uma reeleição e a proposta do referendo era permitir a reeleição indefinida.
55
Um dos que estourou às vésperas do referendo envolveu uma ex-namorada do presidente e ficou
conhecido como zapatazo. Gabriela Zapata, representante da empresa chinesa CAMC, foi acusada de
tráfico de influências por ter intercedido diante de entidades públicas em favor da empresa privadas como
lobista. Supostamente ela teria enviado cartas com propostas de negócios em nome governo sem ter
autorização para fazê-lo. Zapata negou as acusações e Morales afirmou que ela atuou sem o seu
consentimento (OPERA MUNDI [REDAÇÃO], 26/02/2016).
56
Em 2017, quando estive em meu trabalho de campo, os muros de El Alto ainda expressavam essa
polarização com muitas inscrições tanto pelo “SI” quanto pelo “NO”.
118
57
“Artículo 5. FEJUVE en su calidad de organización cívico vecinal, no admite bajo ninguna
circunstancia patrocinio político partidista en su conducción, sus lineamientos y acciones, empero respeta
el pluralismo ideologico y democrático de sus afiliados” (ESTATUTO ORGANICO DE LA FEJUVE, p.
16)
119
próximo do campo político da Unidad Nacional, e Machaca que foi reconhecido pelo
governo central, estando mais próximo do campo político masista. O prédio oficial da
FEJUVE, na Avenida 6 de Marzo em La Ceja, acabou sendo ocupado por esse último.
Dessa divisão, seguiram-se dois congressos simultâneos (correspondente ao XIX
Congreso Ordinario de la FEJUVE El Alto) que elegeram outros dois presidentes para
assumirem a gestão de 2016 a 2018: Benigno Siñañi sucedeu Huanca e Sandro Ramirez
sucedeu Machaca.
El Alto segue, portanto, dividida e submetida a pressões de vários lados: obras
inacabadas, ameaça de alta de preços do pão e outros produtos da cesta básica, das
passagens de ônibus, desemprego e, a cada crise, os conflitos político-partidários que
opõem a UN, de um lado, e o MAS, de outro, tendem a levar tais demandas mais
objetivas da cidade para outro plano de disputas que dizem mais respeito às questões de
caráter nacional, como se haverá continuidade ou não do Proceso de Cambio liderado
por Evo Morales.
Os movimentos sociais se mantêm atentos para futuros desdobramentos e essas
complexas relações com o Estado e ao atendimento ou não de demandas, apontam para
um porvir ainda incerto. Para Irene Ojeda, velha dirigente de Outubro de 2003,
prevalece uma visão cética dos rumos assumidos pelo governo. Aquele ideal de um
governo indígena que mobilizou tantos setores para as eleições de 2005, não parece
mais encontrar a mesma sustentação nos dias atuais. Ojeda chama atenção para o fato de
haver hoje uma população mais consumista, dependente das bolsas sociais, que aposta
nas grandes obras realizadas pelo governo, mais resignada a uma globalização que não
respeita os direitos da natureza e o Bem Viver e, portanto, cada vez mais distante do
ideal anunciado em outubro.
Tal perspectiva foi ratificada por outros dirigentes que entrevistei. Nina, como já
vimos, liderou a campanha do referendo pelo NO em 2016. Outros, como Luis Flores
Mendonza, também ex dirigente da FEJUVE da Guerra do Gás de 2003, questionam até
mesmo a identidade aymara do presidente.
Vivemos uma crise sistêmica que tem levado ao colapso ambiental e civilizatório.
Cada vez mais se torna evidente que “el capitalismo es el suicídio lento de la
humanidade” (LINERA, 2010b, p. 9). Ao contrário das crises anteriores, vivemos uma
conjuntura na qual se apresenta uma profunda perda de sentido, algo que repercute em
todas as dimensões da vida humana, com grandes dificuldades de se encontrar uma
solução dentro do capitalismo. De acordo com Fernando Huanacuni Mamani, os “sábios
dicen que estamos en el décimo Pachakuti y que todo va a cambiar” (MAMANI, 2010,
p. 7).
Nessa conjuntura, o Presidente Evo Morales assumiu o papel de fazer a denúncia
de que a origem dessa crise está no sistema capitalista e que é necessário postularmos,
dentro de uma perspectiva global (e não isolacionista), alternativas antissistêmicas que
apontem para uma repactuação da relação dos seres humanos entre si e com a natureza.
Com isso, contribui para manter vivo um horizonte pós-capitalista para a humanidade.
Na ONU, em 2009, Morales (2009B, p. 2) afirmou:
E assim tem sido nos anos seguintes em várias outras ocasiões (MORALES
AYMA, 2011; 2014A; 2015; 2017A; 2017D; 2017G; 2018A; 2018B; 2018C; 2018D).
Ainda neste capítulo, discutiremos todas as contradições subjacentes entre o discurso e a
prática de governo do Presidente Morales em seu país. Porém, a despeito disso, tais
intervenções demarcam esse importante lugar de crítica estrutural ao capitalismo diante
de um cenário global cético a possibilidades transformadoras, no qual o discurso do
“fim da história” de, certo modo, ainda se faz hegemônico58. Na América Latina, em
especial, nos últimos anos, testemunhamos o fim de um ciclo nacionalista e popular
que, em vários casos, havia contado com governos que reacenderam a esperança em
transformações mais ou menos radicais ao promoverem avanços significativos em
processos de democratização da democracia, de redução da miséria, de uma distribuição
mais equitativa da renda, da ampliação de direitos e de uma maior cooperação Sul-Sul
entre os países59. Com o retorno das direitas em vários desses países, ter um Presidente
indígena pautando essas questões não é nem um pouco desprezível.
Por outro lado, vale notar que mesmo nos casos em que as mudanças se deram de
maneira mais profunda, tais transformações se deram ainda dependentes de um modelo
comprometido “com a promessa falida do desenvolvimento”, entendido aqui como "um
processo linear, ininterrupto, associado à 'dominação da Natureza', reduzido ao acúmulo
incessante de mercadorias" (DILGER & FILHO, 2016). Isto é, mesmo nos casos em
58
O fim da história foi uma teoria elaborada por Francis Kukuyama, inspirada no evolucionismo
hegeliano. Segundo Hegel, a história teria um ápice de desenvolvimetno, uma culminância, quando a
humanidade tivesse atingindo o equilíbrio. Primeiramente com um artigo em 1989 e, na sequência, com
seu livro “o Fim da História e o Último Homem”, de 1992, Fukyama retoma essa ideia compreendendo
que a vitória do capitalismo na Guerra Fria expressava essa condição de que havíamos alcançado o
apogeu do desenvolvimento e que não haveria nada além do capitalismo (FUKUYAMA, 1992).
59
Dos casos mais radicais, aos mais moderados, podemos citar: Venezuela, com Hugo Chávez
(1999-2013; Bolívia, com Evo Morales (2006-hoje); Equador, com Rafael Correa (2007-2017); Brasil,
com Lula e Dilma Roussef (2003-2016); Chile, com Michelle Bachelet (2006-2010 e 2014-2018);
Argentina, com Nestor e Cristina Kirchner (2003-2015); no Peru, com Ollanta Humala (2011-2016); no
Uruguai, com Pepe Mujica (2011-2016) e Tabaré Vazquez (2005-2010 e 2015-hoje); no Paraguai, com
Fernando Lugo (2008-2012); na Nicarágua, com Daniel Ortega (2007-hoje); em El Salvador, com
Mauricio Funez (2009-2014) e Sanchez Cerén (2007-hoje), em Honduras, com Manuel Zelaya
(2006-2009), entre outros.
123
que houve uma maior redistribuição das riquezas, ainda insistia-se num modelo
predatório, escravo da primarização da economia, vulnerável às oscilações dos preços
das commodities no mercado internacional e que contribui para a espoliação cultural e
territorial dos povos e comunidades tradicionais, bem como de todos aqueles que
postulam um horizonte pós-extrativista.
Ainda assim, mesmo sem ter afetado as estruturas econômicas, somente o
deslocamento dos recursos para políticas sociais, já foi o suficiente para que as
oligarquias regionais respondessem até mesmo através de golpes contra esses
governos60. Desse modo, a (re)ascensão de governos de direita no continente ocorre com
uma agenda que aprofunda ainda mais esse modelo predatório, excluindo-se as
contrapartidas sociais. Do ponto de vista dos governos remanescentes do ciclo
nacionalista e popular anterior, como Bolívia, Equador e Venezuela, para ficarmos nos
exemplos mais emblemáticos da América do Sul, prevê-se maiores dificuldades de
articulação regional, crise econômica, crises internas provocadas por escândalos de
corrupção e do crescimento das direitas, além de um contexto ostensivo de
estrangulamento dessas experiências por parte das nações imperialistas61. Estas últimas,
em particular os EUA, agora têm o apoio decisivo de países como o Brasil que desde o
Golpe Parlamentar de 2016 que derrubou a ex-Presidenta Dilma Roussef e, agora,
principalmente, com a eleição de Jair Bolsonaro (PSL), conta com um aliado que
expressa o campo mais reacionário e de direita do país, subserviente aos interesses do
Norte, tal como anunciado inúmeras vezes em seus discursos de campanha e de posse62.
60
O caso recente mais emblemático foi o golpe parlamentar sofrido por Dilma Rousseff, no Brasil, em
2016, em um contexto de crise, pós-boom dos valores das commodities no mercado internacional. Porém,
podemos citar também os golpes ocorridos em Honduras, contra o Presidente Manuel Zelaya em 2009, e
no Paraguai, contra o Presidente Fernando Lugo em 2012. Em todos os casos, observa-se, em seguida, a
ascensão de coalisões neoliberais. Pela via eleitoral, vale destacar também o retorno das direitas
conservadoras na Argentina, com Maurício Macri (2015-hoje) e no Peru, com Pedro Pablo Kuczynski
(2016-hoje).
61
Na Bolívia, apesar de Evo Morales ter perdido o referendo que consultava a população sobre a
possibilidade de se candidatar a um quarto mandato, algumas manobras burocrático-judiciais permitiram
que o presidente se inscresseve como candidato para as próximas eleições que ocorrerão em 2019, sob um
clima de muitas tensões com a oposição. No Equador, Lenín Moreno que sucedeu Rafael Correa vive
também uma situação muito difícil no país, na qual procura se distanciar do legado de seu antecessor e
enfrenta uma dura crise econômica, política e moral no país com vários escândalos de corrupção
envolvendo altos quadros do antigo governo. Na Venezuela, Nicolás Maduro, sucessor de Hugo Chávez
após este perecer antes de assumir o mandato em 2013, foi reeleito para mais 6 anos de mandato,
enfrentando uma dura crise econômica motivada, entre outros fatores, por um bloqueio econômico
promovido pelos EUA, que resulta em apagões, falta de alimentos, remédios, hiperinflação e várias ondas
de protestos violentos.
62
O desprezo de Bolsonaro pelos indígenas fez-se manifesto em muitas ocasiões quando afirma que “não
vai demarcar nenhum centímetro de terra aos indígenas” em seu governo (In:
https://www.brasildefato.com.br/2018/10/16/posicao-de-bolsonaro-sobre-demarcacao-de-terra-gera-10-as
sassinatos-de-indios-por-mes/ - consulta em 19/01/2019); e, no que diz respeito à relação com os EUA,
124
quando faz referência a uma época anteior de inimizade com o país do Norte e como, nesse momento,
ambos os países, assim como Israel, estariam mais próximos do que nunca (In:
https://veja.abril.com.br/mundo/brasil-e-eua-deixaram-de-ser-inimigos-diz-bolsonaro/ - consulta em
19/01/2019). Vale citar que, a despeito das diferenças ideológicas, Evo Morales compareceu na posse de
Jair Bolsonaro em janeiro de 2019, o que levantou muitas polêmicas devido à postura ofensiva assumida
pelo novo presidente brasileiro contra vários países aliados da Bolívia, como Venezuela e Cuba, além da
própria questão com os indígenas acima referida. Nota-se um esforço da diplomacia boliviana de manter
as relações comerciais abertas com o Brasil na medida em que este ocupa um papel estratégico em sua
frágil economia. Dez dias depois da posse de Bolsonaro, Morales também esteve presente na posse de
Nicolas Maduro da Venezuela, cuja eleição não é reconhecida por muitos países, inclusive o Brasil.
125
Anibal Quijano endossa essa perspectiva ao tratar do Bem viver como a semente
de um novo horizonte histórico que sobreviveu às imposições da globalização do
capitalismo colonial.
Proposta esta que, segundo o autor, não por acaso é oriunda dos movimentos
indígenas haja vista que são os primeiros afetados pela crise climática e que, tendo
resistido aos esforços espistemicidas e genocidas impetrados contra os mesmos no
momento de estabelecimento desse sistema mundo moderno-colonial, hoje atuam de
forma protagonica no sentido de demarcar esse horizonte como uma saída
emancipatória que aponta para a igualdade, a solidariedade, a democracia plena e uma
relação de co-responsabilidade com todas as formas de vida do planeta. Em outras
palavras, o autor fala de uma “existência social alternativa” (Idem, p. 848).
Se o desafio de romper com as estruturas capitalistas permanece, essa construção
de alternativas antissistêmicas que não sejam cooptáveis pelo modelo vigente e que
apontem caminhos possíveis através dos quais a existência humana possa ser
ressignificada não será monolítica. Por isso falamos em “caminhos”, no plural. Evo
Morales não tem a pretensão de oferecer “a” saída para crise global. Afinal, as
alternativas já existem, mesmo com todo o contexto apresentado: sobrevivem ou
“re-existem”, para usar a expressão de Carlos Walter Porto-Gonçalves63, nas margens do
sistema, nas diversas lutas de resistência travadas nos quatro cantos do mundo, cada
63
Com este conceito, o autor busca enfatizar que a resistência promovida pelas classes populares e
indígenas ao longo dos séculos – desde a Conquista até os dias atuais - representa também uma
ressignificação ou reinvenção de sua própria existência – de suas condições de vida e de luta - em
conjunturas que se alteram ao longo do tempo, porém, sem perder de vista um elemento original: o
colonialismo interno (PORTO-GONÇALVES, 2002).
126
64
“São justamente muitos destes inúmeros movimentos, dos pingüinos chilenos ou dos secundaristas
paulistanos, passando por comunidades indígenas, quilombolas ou camponesas, até as cooperativas da
economia solidária, que vêm resistindo há tempos a esse projeto neocolonial e construindo alternativas ao
capitalismo e ao colonialismo do século XXI” (DILGER & FILHO, 2016).
127
fronteiras do próprio continente americano. Ainda que não tenha me dedicado a analisar
com maior profundidade seus correlatos em outros países, é importante não perder de
vista que este estudo de caso se insere em um contexto mais amplo.
Uma das virtudes do estudo mais aprofundado do mundo andino e amazônico e
que, através deles, estão colocadas possibilidades de se pensar essas alternativas para
além da lente eurocentrada ocidental. Dessas tradições, é possível inferir uma potência
intrínseca que pode transcender a própria realidade indígena. Afinal, “os indígenas não
são pré-modernos nem atrasados. Seus valores, experiência e práticas sintetizam uma
civilização viva, que demonstrou capacidade para enfrentar a Modernidade colonial”
(ACOSTA, 2016, p. 24). Como afirmava anteriormente, longe de ser um retrato do
passado, seus modos de viver e as propostas daí oriundas alimentam os debates globais
a partir de um lugar anticapitalista que visa o futuro. É isso que temos observado nas
intervenções de Evo Morales nas relações internacionais e o conceito do Bem Viver
vem amadurecendo nesse contexto, podendo ser considerado esse horizonte político que
agrega, a partir de diferentes experiências, algumas diretrizes de práticas e costumes
servem de referência para se pensar um outro tipo de civilização, um outro modelo, um
outro mundo possível ou outros mundos possíveis.
Portanto, o que se propõe são saídas emancipatórias tendo como base aquilo que
já é vivenciado no âmbito das re-existências dos oprimidos. Segundo Acosta (2016, p.
33), “sem esquecer e menos ainda manipular suas origens ancestrais, [o Bem Viver
serve como] plataforma para discutir, consensualizar e aplicar respostas aos
devastadores efeitos das mudanças climáticas e crescentes marginalizações das
128
65
Em aymara, respectivamente: Lunthathajja: hywat-hywatápan (“quien robe, muera”, isto é, “no seas
um ladron”, “não roube”); Karijja: hywat-hywatápan (“quien mienta, muera”, isto é, “no seas um
mentiroso”, “não minta”); Ahyrajja: hywat-hywatapan (“quien vueltea, muera”, isto é, “no seas flojo”, a
ambiguidade, a oscilação não é produtiva, seja firme, não seja preguiçoso). Estes e outros aforismos que
conformam a “Mano de Leyes” do Suma Qamaña podem ser consultados em “‘Manos de Leyes" del
Suma Qamaña”, de Javier Medina (2010). No original, podemos observar como tais princípios podem ser
rigorosos e, por vezes, autoritários. Se é certo que o poder da comunidade e os valores andinos carregam
uma potência que pode apontar para uma transformação social, por outro lado, não podemos ser
condescendentes com vários limites estruturais que também são oriundos dessas mesmas tradições. Este
tema, em particular, será objeto de uma reflexão mais profunda em trabalhos futuros. Mais adiante falarei
brevemente sobre alguns desses limites a titulo apenas de referência haja vista que nesta tese predomina
uma visão que enfatiza mais os aspectos positivos e potencialmente transformadores dessas tradições.
129
66
Suma Qamaña, vem da tradição aymara; Suma Kawsay, da tradição quéchua; Teko Kavi e Ñandereko,
dos guaranis; Shiir Waras, dos shuar; Kume Mangen, dos mapuches, entre outros. No Brasil, a expressão
Bem Viver é a que mais tem sido utilizada por movimentos sociais nos últimos anos, enquanto na Bolívia,
nas versões oficiais de Estado, fala-se em Buen Vivir e, no Equador, em Vivir Bien. Poderíamos considerar
também o ubuntu, da África do Sul, ou o svadeshi, swaraj e apargrama, da Índia, como correlatos.
Afinal, mais do que sinônimos, são equivalências de visões de mundo sustentadas na relacionalidade
como princípio, na complementaridade, na reciprocidade, na interculturalidade, na correspondência, no
comunitarismo, entre outras características que irei abordar adiante.
130
Assim, de um lado, havia setores das esquerdas buscando outras saídas para o caos da
modernidade e voltando seus olhos e ouvidos para sujeitos até então não considerados
no rol da luta de classes - mas que tem nas suas teorias e práxis uma tradição
comunitária que pode lhes servir de inspiração. De outro, o gradativo protagonismo dos
povos originários que se impunha e se apresentava para as lutas desde um lugar de
resistência ao colonialismo interno e em favor de uma nova agenda política de caráter
supra-comunitário que alcançasse o Estado Nacional com vistas a transformação de toda
a realidade.
Somados ambos os movimentos, em um contexto conflitual de disputas pelo
destino do continente, vimos a ascensão de governos comprometidos com a redefinição
dos pactos sociais de seus respectivos Estados-Nação a partir da incorporação desse
conceito e tudo o que este implica. Bolívia, com o Estado Plurinacional e Comunitário,
e Equador, com a Revolução Cidadã, como afirmei, institucionalizaram o Bem Viver,
inscreveram-no nas novas Constituições referendadas pelo povo, e o utilizaram como
peça central do discurso oficial. Porém, como aponta Alberto Acosta (2016, p. 26),
“colocar o Bem Viver na Constituição não será suficiente para superar um sistema que
é, em essência, a civilização da desigualdade e da devastação”. Ainda assim, a despeito
dos limites intrínsecos às operações formais e aos intentos das forças conservadoras de
impedirem os desdobramentos do reconhecimento do Bem Viver como um valor que
orienta as ações do Estado, considero que pode ser um ponto de partida para repensar o
nosso mundo e vislumbrar saídas emancipatórias.
Deste modo, as questões mais específicas que se seguem são: quais as origens do
Bem Viver? Qual o significado traduzido nas Constituições? É possível ou como levá-lo
à prática de fato? Reconhecê-lo e incorporá-lo leva necessariamente ao rompimento
com o modelo desenvolvimentista e extrativista? Quais contradições emergem? Como
são ou podem ser superadas?
Para Solón, há uma versão “oficial” e várias outras “rebeldes” para o conceito de
Bem Viver. A oficial ou desde arriba diz respeito aos usos feitos por Evo Morales e
Rafael Correa que sustentam seus programas de governo neste princípio. Porém,
enfrentam duras contradições, levando inclusive a uma crise de credibilidade perante às
131
67
Isto é, o indígena aymara e quéchua. Runa é a palavra quéchua para “ser humano” e é utilizada pelos
mesmos para se referir aos povos originários pré-hispânicos. Jaqi é o equivalente aymará para o mesmo
significado (ESTERMAN, 2006, p. 65).
132
Não há, portanto, separação entre o homem e a natureza. Ao contrário, esta última
se converte em uma extensão do homem, indissociável e complementar. O ser humano
é, assim, parte de uma complexa totalidade que está toda interrelacionada a partir de
laços de reciprocidade, complementaridade e correspondência. Não há hierarquias, pois
133
todos os polos e elementos que constituem o universo estão ligados por estes laços. O
ser humano, assim, não pode intervir sobre a natureza de forma colonialista,
dominadora ou conquistadora, pois, deste modo, desequilibra a ordem cósmica.
Não há dicotomias ou fragmentações de tipo cartesiano. Homem e mulher, sol e
lua, céu e terra, mente e corpo, espírito e matéria, essas polarizações só se constituem
enquanto relação. A base da cosmovisão andina é a relacionalidade, isto é, os
elementos, as coisas não existem por si só de forma absoluta. A pedra não existe
enquanto pedra, enquanto substância, mas enquanto relação, enquanto parte de um todo
integrado. Não existe enquanto ente separado. A realidade é holística.
Outro elemento que gostaríamos destacar da racionalidade andina é a da própria
concepção do runa/jaqi como um sujeito coletivo. Como a relacionalidade está na base
deste pensamento, o ser humano, da mesma forma, não pode ser concebido de forma
isolada, enquanto indivíduo. O ser é coletivo e se constitui a partir das relações que
estabelece com o universo e entre seus pares. É, por isso, uma chakana, uma ponte
através da qual se dão múltiplas relações.
O ayllu é a célula da vida, expressão básica desse “eu coletivo”. Trata-se da
comunidade aldeã, reunindo várias famílias vinculadas por algum grau de parentesco.
Da época incaica até os dias atuais, houve muitas transformações, mas o ayllu,
sobretudo no campo, permanece como unidade básica de organização socioeconômica,
estabelecimento de laços de reciprocidade e de construção de identidade.
Se nas cidades, esses elementos são mais dispersos e diluídos, isso não significa
que não estejam presentes de alguma forma. Como observamos no caso de El Alto, uma
das principais cidades do país, foram elementos como estes que analisamos até aqui,
que estavam na base da estruturação dos movimentos sociais que ora desembocaram na
redefinição dos rumos daquele Estado-Nação para um Estado Plurinacional e
Comunitário.
Repito mais uma vez que não sou um crítico imparcial e objetivo.
Meus juízos se nutrem dos meus ideais, dos meus sentimentos,
de minhas paixões. Tenho ambição enérgica e declarada:
a de contribuir para a criação do socialismo peruano.
José Carlos Mariátegui (1928)
134
A terra é sagrada para o índio. Não por seu valor enquanto propriedade individual,
mas por ser o espaço de encontro com as forças da natureza que geram a vida e onde,
por conseguinte, se realiza a comunidade indígena. “A terra sempre foi toda a alegria do
índio. O índio desposou a terra. Sente que a ‘vida vem da terra’ e volta à terra.
Finalmente, o índio pode ser indiferente à tudo, menos à posse da terra que suas mãos e
seu alento lavraram e fecundaram religiosamente” (Idem, p. 63).
A solução liberal para o latifúndio, isto é, o fracionamento da terra em pequenas
propriedades individuais não resolve a problemática indígena porque ignora toda a
dimensão subjetiva e existencial que está subjacente ao sentido da terra que é,
fundamentalmente, o poder da comunidade. “Deixando de lado razões doutrinárias
considero fundamentalmente esse fator incontestável e concreto que dá um caráter
peculiar ao nosso problema agrário: a sobrevivência da comunidade e de elementos de
socialismo prático na agricultura e vidas indígenas”(Idem, p. 69).
A base para essa comunidade indígena são os ayllus, uma “instituição social que
defende a tradição indígena, que conserva a função da família camponesa e que traduz
um sentimento jurídico popular” pautado no trato sagrado com a terra, na solidariedade
e no cooperativismo (Idem, p. 98-99). Tal como Estermann, Mariátegui sustenta os
ayllus como “célula da vida” para os povos indígenas, expressão básica desse “eu
coletivo” constituinte. É regido por alguns princípios básicos: as assembleias são a base
fundamental para a tomada de decisões coletivas; a representatividade é rotatória e
obrigatória (como um serviço prestado à comunidade); é responsável por fiscalizar as
atividades que são desenvolvidas no território; além de funcionar como unidade básica
de organização socioeconômica, estabelecimento de laços de reciprocidade e de
construção de identidade (ESTERMAN, 2008, p. 142-143). O Império Inca, apesar de
ser uma autocracia, se ergueu sobre uma federação de ayllus através da qual foi possível
articular 10 milhões de indígenas. Em suas bases, portanto, havia um fértil “comunismo
agrário” em função das várias formas de cooperação ou associação e solidariedade que
são intrínsecas a essas organizações:
136
Portanto, a comunidade representa uma outra lógica civilizatória. Por outro lado,
também carrega limites estruturais que podem ser observados em diversas experiências
seja reflexo do fato de estar inscrita em uma totalidade capitalista e colonial, seja pelos
aspectos renovados de suas próprias tradições. Assim, por exemplo, um dos pilares da
cosmovisão andina, especialmente das culturas aymara e quéchua, é o princípio da
dualidade e da complementaridade que se expressa, entre outros casos, na fórmula do
chacha-warmi (homem-mulher) e que, em tese, apontaria para uma equidade de gênero.
O Governo de Evo Morales inclusive se utiliza desse princípio para sustentar suas
políticas de descolonização e despatriarcalização do país que envolve um conjunto de
leis e mecanismos que promovem a alternância e a paridade na representação política,
monumentos em prol da visibilização das mulheres na história, leis em defesa das
mulheres contra a violência e o feminicídio, normativas que lhes garantam o direito à
propriedade da terra etc. Porém, na prática, o cenário que coloca a Bolívia como um dos
países que possui altas taxas de violência contra a mulher e feminicídio no mundo68
68
De acordo com estudo levantado pela ONG Small Arms Survey (utilizado como referência pela ONU
Mujeres), dos 25 países do mundo com maiores taxas de feminicídio, 14 são da América Latina e Caribe.
Para o período 2004-2009, El Salvador liderava a lista com uma taxa de 12 homicídios para cada 100 mil
137
mulheres, seguido de Jamaica, Guatemala, Guiana, Honduras, Antilhas, Colômbia, Bolívia, Bahamas,
Venezuela, Belize, Brasil, Equador e República Dominicana (In:
http://www.smallarmssurvey.org/publications/by-type/yearbook/small-arms-survey-2012.html - consulta
em 23/04/2019).
138
Tampouco esse ideário foi capaz de tornar o índio individualista. O índio é sujeito
coletivo. Como a relacionalidade está na base do seu pensamento, o ser humano não
pode ser concebido de forma isolada, enquanto indivíduo. O ser é coletivo e se constitui
a partir das relações que estabelece com o universo e entre seus pares.
Deste modo, a “comunidade” não é apenas uma instituição econômica que diz
respeito ao regime de propriedade, mas envolve todo um sistema de produção que
conserva as tradições indígenas com seus estímulos morais específicos e seu trato
sagrado, solidário e cooperativo com a terra e entre os seres. Castro Pozo, autor que
Mariátegui se apoia para refletir sobre a comunidade indígena destaca que os
“elementos espirituais” da economia comunitária contribui em grande medida para o
estabelecimento de um “contrato múltiplo de trabalho” cuja realização se dá com o
“menor desgaste fisiológico” e em “um ambiente agradável, de emulação e
companheirismo” (Idem, p. 99). Não se trata aqui de atribuir uma visão romântica em
relação ao trabalho (no sentido de que não haja cansaço ou exploração, por exemplo),
mas há uma diferença abissal quando o trabalhador se reconhece no produto do seu
trabalho ou quando “a parte espiritual do meio econômico”, para utilizar os termos de
Sorel, é de alguma forma saciada69.
Conforme mencionei, a história retratada por Mariátegui, apesar de se referir mais
especificamente ao caso peruano, pode também ser aplicada à Bolívia andina, de onde
parte muitas das reflexões de García Linera, a quem também me referi. As fronteiras
nacionais forjadas pelo colonizador europeu não correspondem necessariamente às
fronteiras étnicas que une muitos dos povos que habitam os Andes, entre os quais
destacamos os quéchuas e os aymaras. Deste modo, como uma tradição que sempre se
refaz, os ayllus estão vivos até hoje, não apenas no campo, mas inspiram muitos dos
princípios que regem a ocupação das cidades. O caso da cidade de El Alto na Bolívia é
bem emblemático nesse aspecto e revela toda a potência inscrita nessas organizações.
69
Conforme o próprio Mariátegui destaca, segundo Sorel, “o trabalho depende, numa medida muito
grande, dos sentimentos que os operários têm diante de sua tarefa” (Idem, p. 99).
139
Voltando à reflexão sobre o Bem Viver propriamente dito, podemos afirmar que se
trata de um conceito complexo, amplo, dinâmico e que envolve uma concepção
filosófica de tempo e espaço, bem como toda uma cosmovisão sobre a relação entre os
homens e mulheres entre si e com a natureza. É um conceito em disputa, apropriado por
diferentes movimentos com os mais variados vieses. Assim, nesse momento, vou
privilegiar a interpretação reivindicada por um grupo de intelectuais latinoamericanos
articulados com as reflexões da “colonialidade do saber”70, que se associam ao
pensamento decolonial - alguns dos quais têm inclusive uma postura crítica em relação
ao Governo Evo Morales – e também considerarei alguns apontamentos do Presidente
boliviano. Nas seções seguintes, tratarei da perspectiva do governo (desde arriba) mais
especificamente, a partir das contribuições do próprio Morales e de seu Vicepresidente,
Álvaro García Linera, considerado um dos principais ideólogos do regime. Por fim,
farei um balanço das possibilidades vislumbradas.
Na tradição do pensamento crítico latinoamericano, o Bem Viver não é tratado
como uma solução “multiculturalista” inserida nos marcos do pós-modernismo que não
compromete as estruturas de reprodução do capitalismo, mas uma alternativa
civilizacional diferente das tradições eurocentradas, que se firma no reconhecimento da
diferença (e não na presunção da igualdade) e da interculturalidade que se realizam, por
sua vez, na plurinacionalidade, no coletivismo, no comunitarismo e no entendimento da
natureza como sujeito. Segundo Páblo Dávalos (2011, p. 12),
Fernando Mamani considera que este “nuevo paradigma” traz uma discussão
sobre a vida, no sentido de reconhecer que tudo é vida e tudo precisa ser respeitado.
Para o teórico da Coordinadora Andina de Organizaciones Indigenas/CAOI, o Bem
70
A “colonialidade do saber” é um campo epistemológico que apresenta perspectivas críticas
latino-americanas sobre as Ciências Sociais e a história do nosso continente. (Cf. LANDER, 2005).
140
71
“Direitos da natureza” é diferente de “direitos ambientais” uma vez que este último ainda é herdeiro de
uma matriz antropocêntrica que prevê condições ambientais dignas às demandas dos seres humanos –
sobretudo as classes mais pobres. Nesse caso, fala-se, portanto, em condições de vida humana e não da
natureza em si, desprovida de uma funcionalidade que atenda às necessidades do homem (ACOSTA,
2016, p. 129).
141
(“no seas flojo”, “no oscila”), a mais conhecida das leis relacionados ao Bem Viver para
exortar as Nações Unidas para que ouvissem as tradições dos seus ancestrais indígenas
que relegaram esses aforismos como referência para construirmos uma sociedade mais
justa capaz de superar os desafíos lançados pelas mudanças climáticas.
Voltando ao Mamani, para o autor, o Bem Viver nos leva também a considerar
aspectos de um “multiverso”, isto é, um contexto onde existem muitas verdades, muitos
sujeitos, “donde todo esta conectado, interrelacionado, nada está fuera, sino por el
contrario, ‘todo es parte de’; la harmonia y el equilíbrio de uno y del todo es importante
para la comunidade” (MAMANI, 2010, p. 27). Por considerar a vida em sua totalidade,
escapa do viés antropocêntrico moderno, assumindo uma postura que Acosta define
como “biocêntrica” ou “sociobiocêntrica” (Mariátegui fala de “agrocêntrica”) que “se
baseia em uma perspectiva ética alternativa, ao aceitar que a natureza – todos os
ecossistemas e seres vivos – possui um valor intrínseco, ontológico, inclusive quando
não tem qualquer utilidade para os humanos (ACOSTA, 2016, p. 28).
A “igualdade biocêntrica” é um dos aspectos centrais do Bem Viver, pois
representa a condição de superação da compreensão da natureza enquanto objeto em
prol de seu reconhecimento enquanto sujeito de direitos. Desse modo, Gudynas fala
sobre “meta-cidadanias ecológicas”, isto é, ao reconhecer os Direitos da Natureza, a
definição de cidadania também passa por algumas adaptações no sentido de reconhecer
que esta se “constrói no âmbito social, mas também no ambiental” (apud ACOSTA,
2016, p. 132).
142
excessivas emissões e, por fim, que compreendam que essas dívidas são parte de uma
dívida maior com a Mãe Terra a qual depende o cumprimento de todos os princípios
estabelecidos na Declaração (ACUERDO DE LOS PUEBLOS, 2010).
Além dos princípios anteriores, o Acuerdo de los Pueblos prevê também o
estabelecimento de uma justiça restaurativa que se coloque para além de uma
compensação econômica, tendo como enfoque a restituição da integridade das pessoas e
membros que formam a comunidade da vida na Terra (Idem, 2010) e a construção de
um Tribunal Internacional de Justiça Climnática e Ambiental, com capacidade jurídica
vinculante, que garanta o cumprimento de todos os compromissos e obrigações
estabelecidos nesse pacto (seja em relação aos Estados, às empresas ou às pessoas que
por ação ou omissão sejam responsáveis pela contaminação ou contribuam para as
mudanças climáticas). O Tribunal também se consolidaria como uma instância que iria
previnir e sancionar delitos e crimes climáticos e ambientais que atentassem contra os
Direitos da Mãe Terra e da humanidade (Idem, 2010).
Qualquer ideal de sustentabilidade só faz sentido se levar em consideração a
capacidade de uso e de resiliência da natureza, sua agrobiodiversidade e o
reconhecimento do imprescindível papel do homem na garantia dessas condições. Em
relação a este último aspecto, significa afastar-se de um ideal falacioso de “santuário
verde” de preservação ambiental que não considera os aspectos sociais, mas, sim,
incorporar o homem e suas práticas no âmbito dessa preservação. Como já demonstrou
Chico Mendes, a luta em defesa da floresta só faz sentido se garantir a permanência dos
povos da floresta em suas relações harmônicas e respeitosas com a mesma. Enrique
Leff, citado por Alberto Acosta, também estabelece como um princípio fundamental a
noção de que “a construção de uma racionalidade ambiental capaz de descontruir a
racionalidade econômica implica processos de reapropriação da natureza e
reterritorialização das culturas” [grifo nosso] (LEFF apud ACOSTA, 2016, p. 116). É
preciso uma reeducação da comunidade humana no sentido de reconhecer a natureza
como parte constituinte de suas vidas, como sujeito ativo e não como mero objeto para
atender as suas necessidades. Afinal, são os seres humanos os mais capazes de reverter
o quadro crítico no qual estamos inserindo ao reestruturar a forma como a vida em
sociedade deveria entrar em equilíbrio e harmonia com a natureza.
O reconhecimento de Estados Plurinacionais nos últimos anos, como os do
Equador e da Bolívia, apesar de todas as suas contradições internas, é símbolo de um
importante passo no sentido de todos esses reconhecimentos, após décadas de luta por
145
E reconhecer também tudo o que essas diferenças trazem consigo, como as várias
concepções relacionadas aos modos de viver, aos valores, ao poder e à participação
popular, aos credos, entre tantas outras coisas. O comunitarismo, como já mencionei,
que é estruturante e define os seres sociais e suas relações, estabelece um outro tipo de
relação com a vida. Mamani refere-se a um “paradigma da vida” baseado na
complementaridade e no equilíbrio através dos quais se insere a individualidade em um
contexto mais amplo onde tudo está integrado e existe uma interdependência entre todas
as partes (MAMANI, 2010, p. 33-34). Com isso, somos levados a um outro sentido de
democracia, de autonomia, de autodeterminação, de território, de justiça. Na Bolívia,
não por acaso, como resultado da Constituinte de 2009, o Estado passou a ser definido
não somente como Plurinacional, mas Comunitário também.
Como Mamani, Pablo Sólon sintetiza o Bem Viver em torno de cinco eixos bem
semelhantes ao que o autor aymara já sinalizava: a) a visão da pacha, da mãe terra como
a síntese e uma totalidade que abarca a tudo e a todos; b) o princípio de convívio na
multipolaridade; c) a busca pelo equilíbrio; d) a noção de complementaridade da
diferença; e e) o compromisso com a descolonização (SÓLON, 2016, p. 17-18).
A pacha, também chamada de Pachamama, é a compreensão do todo. Não se
trata apenas da terra ou da “mãe terra”, mas envolve movimento, um devir constante,
146
72
Tempo linear é o tempo do Capital, é o que possibilita vislumbrar a acumulação e destruição predatória
da natureza sem se preocupar com as consequências. Acompanham a racionalização e disciplinarização
das sociedades humanas, a partir do tempo: o império do relógio, da hora, da agenda. O Suma Kawsay
rompe com esse paradigma em prol de um tempo social, histórico, que abrange a totalidade. Vale conferir
também Walter Benjamin, um autor ocidental que dialoga com o pensamento descolonial (BENJAMIN,
1987, p. 222-232).
73
Alberto Acosta (2016, p. 48-49) demonstra como em todas as versões do desenvolvimento, seja
“desenvolvimento econômico”, “desenvolvimento social”, “desenvolvimento local”, “desenvolvimento
global”, “desenvolvimento rural”, “desenvolvimento sustentável”, “etnodesenvolvimento”,
“desenvolvimento humano”, “desenvolvimento endógeno”, seja outra qualquer, predomina essa
abordagem antropocêntrica que coloca em risco nossa existência no planeta.
147
Por outro lado, o que sobra à humanidade ao romper com tais paradigmas? O Bem
Viver aponta para um horizonte pós extrativista e de não crescimento ou há margens
para se pensar um outro tipo de extrativismo? Romper com o padrão de crescimento
hegemônico é o mesmo que romper com o paradigma do crescimento? Se for o caso de
romper com o crescimento, como garantir direitos fundamentais, infraestrutura,
condições de vida à população de um dado território em um cenário de não
crescimento? É simbólico refletir o tema a luz, por exemplo, das reivindicações
constantes da população de El Alto por obras, emprego, indústria, produção. Como
prover isso sem extrativismo, sem crescimento? Se é certo que tais demandas são
reflexos também dos dispositivos ideológicos presentes em nossa sociedade que
promovem estas saídas como as únicas para o caminho da reformas sociais e
econômicas, não podemos deixar de reconhecer que estas estão assentados em bases
muito concretas e reais que afetam diretamente a vida das pessoas.
Eric Foner, em seu livro “Nada Além da Liberdade: A Emancipação e o seu
Legado” (1988) explora os múltiplos significados atribuídos à liberdade no sentido de
refleti-la a luz de políticas concretas de integração ou não dos negros à economia após a
emancipação. De maneira análoga, podemos refletir de que maneira esse ideal de
emancipação que acompanha a defesa do Bem Viver como novo horizonte de sentido
para a humanidade, pode resolver a problemática concreta de prover as condições
materiais essenciais para que seja garantida a dignidade humana (e de todos os seres
vivos)? Tais dilemas serão analisados com um pouco mais de profundidade mais a
frente, pois aparecem de maneira substancial quando analiso o Bem Viver
contextualizado sob o Governo Evo Morales.
Por ora, é certo que o Bem Viver aponta para um caminho que compreende
natureza como mãe produtora da vida e que precisa ser cuidada. Mas como cuidar da
natureza e das necessidadas materiais e concretas dos seres humanos ao mesmo tempo?
Um princípio a ser considerado é o fato de que “la gente pertenece a la tierra y no la
tierra a las personas” (MAMANI, 2010, p. 71). Nesse sentido, por exemplo,
questiona-se o princípio da propriedade da terra haja vista que ninguém poderia ser
dono dela, pois a terra é relação, é o espaço natural onde vida se realiza e sobre o qual
se constrói toda a estrutura organizativa de uma civilização.
Se há um sujeito, este é coletivo, pois o individualismo moderno está atrelado ao
estabelecimento da opressão de uns sobre outros (em especial, através da afirmação da
148
77
Segundo Linera, o capitalismo é um regime totalizante que absorve tudo e todos em um mesmo
sistema-mundo baseado em um tipo de produção exploratória que só visa o lucro. Por essa razão, se
pretendemos imaginar uma sociedade do futuro constituída a partir do socialismo comunitário, essa deve
também ser planetária, pois não é possível superar o capitalismo em uma ilha (LINERA, 2010, p. 10-11).
154
O Estado, portanto, deve encontrar uma solução que impeça essa desarticulação e,
ao contrário, potencialize a crescente comunitarização da gestão da vida, dos recursos e
dos produtos no que pode ser definido como um “modo de produção comunitário”
(LINERA, 2010a, p. 37).
Segundo Morales, o aprendizado da comunidade vem da própria natureza haja
vista que esta existe em si e, ao mesmo tempo, beneficia a todos e a todas. Não por
acaso, foi com ela que os povos originários aprenderam a conviver entre si e com tudo a
sua volta. A comunidade é a força da vida pulsante, é a síntese da harmonia e o maior
desafio é nos colocarmos novamente nesse lugar de aprendizado, de escuta, de
humildade, com o intuito de redefinir nosso modo de vida na Terra. Assim, o viver em
comunidade depende fundamentalmente de como se reestruturam os laços com a
natureza que, por sua vez, transbordam para as relações sociais e que não passam
necessariamente pelo Estado. Trata-se de algo mais complexo e que extravasa o escopo
desse último.
156
Outra grande tensão que surge no processo é como ampliar a base social do
processo revolucionário sem perder a hegemonia ou o protagonismo
indígena-camponês-operário-popular. O “liderazgo plebeyo” é o que garante que os
caminhos do Proceso de Cambio não se desvirtuem, mas, a despeito disso, são
bem-vindos a somar todos aqueles que se comprometam com a descolonização, com o
Estado Plurinacional e Comunitário, com a igualdade entre os povos, com a autonomia
democrática, com a economia plural, em suma, com o Bem Viver (LINERA, 2010A, p.
39).
Essa ampliação se dá também na afirmação dos interesses gerais sobre os
interesses particulares ou individuais. Em momentos de crise como a Guerra da Água de
2000 e 2005 ou a Guerra do Gás de 2003 predomina uma visão coletiva através da qual
as pessoas se articulam e vão à luta. Porém, a partir daí, com o declive das
manifestações, voltam a ressaltar demandas particulares e setoriais que pode culminar,
muitas vezes, na fragmentação do bloco histórico como expressa, atualmente, o conflito
entre as terras altas e as terras baixas79. Ou então, a própria democratização do acesso ao
Estado também cria o fenômeno do patrimonialismo popular que é a reprodução por
parte dos setores populares das tentativas de apropriação dos excedentes do Estado
segundo interesses particulares. É um grande desafio construir uma consciência coletiva
apoiada em interesses gerais. Exige uma mudança cultural de longo prazo.
79
Ver capítulo 1, seção “E as terras baixas?”, na qual trato das manifestações contra a construção de uma
estrada que atravessaria o Território Indigena y Parque Nacional Isiboro Secure/TIPNIS, localizado entre
os departamentos de Cochabamba (ao sul) e Beni (ao norte).
157
Para Morales, a nacionalização dos recursos naturais era uma precondição para a
libertação econômica da Bolívia e para garantir as condições para que o Estado possa
atender às necessidades urgentes da população, mas esta deve vir acompanhada de um
projeto de industrialização mirando um horizonte pós-extrativista.
Figura 10
80
Feito de lã de lhama, alpaca ou vicunha, consiste basicamente em um tecido de aproximadamente 3,5 x
2,5 metros com uma abertura no centro, para ser passada pela cabeça e apoiado nos ombros.
81
Pequenos chapéus de formato arredondado que ficam equilibrados nas cabeças das cholas (mulheres
que usam as vestimentas tradicionais)
82
Também utilizadas pelas cholas, são bordadas e servem para carregar mercadorias, crianças e objetos
dos mais variados nas costas.
83
Saias com pregas coloridas característica também das cholas.
84
Toda chola usa tranças de uma forma bem peculiar: são duas tranças paralelas amarradas por uma
ramada (prolongamento)
160
Gráfico 1
85
Além do setor de hidrocarbonetos, está em curso a nacionalização dos setores de exploração da água,
telecomunicações, mineração, eletricidade, aeronáutica e produção de cimento. A soma de todos esses
setores levou ao Estado boliviano e controlar 35% da atividade econômica do país (EL TIEMPO,
22/01/2016).
161
86
Trata-se de um método que atende aos fundamentos e às necessidades práticas de se efetivar o projeto
porque é simples, flexível e de resultados em curto prazo. Mediados por um “facilitador” que é um
voluntário geralmente da própria comunidade, o aluno tem acesso a um material didático que, além das
cartilhas do educador e educando, é baseado em vídeo-aulas. A televisão é o instrumento essencial no
processo. O facilitador tem o papel de contextualizar e atender às necessidades especiais de cada aluno.
162
Gráfico 2
.
Orçamento do Setor de Saúde
Fonte: MORALES, Evo. Informe Anual de Gestion del Presidente a la Asamblea 2016 [22 de enero de
2017], p. 111.
Apesar de todos esses números, no que diz respeito ao Bem Viver propriamente
dito, há um risco de todo o ideal subjacente, com seu conteúdo antissistêmico, ser
esvaziado de sua radicalidade em favor de uma abordagem mais pragmática na qual se
estabelecem como prioridades a redução da desigualdade estrutural e o atendimento de
demandas urgentes de educação, saúde e infraestrutura. Assim, a proposta em si de uma
ruptura mais profunda, de constituição de outros valores, de uma outra relação com a
natureza, de uma outra civilização pode ser lançada para um futuro incerto e indefinido.
No âmbito das relações internacionais, a Bolívia segue cumprindo um papel
relevante no sentido de avançar no debate internacional sobre os direitos da Mãe Terra.
87
O método, como o próprio nome já sugere, acompanha a lógica do Yo Si Puedo, ou seja, conta com
ampla utilização de mecanismos audiovisuais através dos quais as turmas têm aulas de matemática,
geografia, história, gramática, ciências naturais, inglês e informática.
163
Bolívia (9); e, por ultimo, a construção de um mundo com uma democracia real e
participativa na qual aqueles que governem, saibam mandar obedecendo ao seu povo,
um mundo sem oligarquias, sem hierarquias, sem monarquias e anarquias financeiras,
um mundo em que toda a ação política esteja à serviço da vida, comprometida com o
humano, o ético e a moral de nossos povos, sem jamais perder de vista as necessidades
daqueles que estão mais vulneráveis (10).
Contudo, ainda assim, apesar de todos esses avanços, sobretudo no âmbito das
disputas de narrativas globais ou dos avanços mais objetivos na diminuição da miséria e
da pobreza com a ampliação dos investimentos sociais, o governo não rompeu ao cabo
com o desenvolvimento extrativista, com o produtivismo e o consumismo que, por fim,
continuam sendo a base para a produção de excedentes do Estado, fonte de onde se
originam os investimentos do governo.
Não à toa, no mesmo informe anual de gestão e em várias ocasiões (Cf.
MORALES, 2017A; 2017C; 2017D; 2018D), o Presidente reafirma como uma
conquista do governo o fato da Bolívia seguir com um padrão expressivo de
crescimento econômico, um dos maiores do continente88. Mas o que significa
exatamente esse “crescimento”? Entra de fato em contradição com o Bem Viver? Para
alguns autores como Acosta (2016, p. 93), sim: “é inegável que há uma apropriação,
sequestro e domesticação do termo pelos governos de Equador e Bolívia”. Para o autor,
busca pelo Bem Viver, na Bolívia, pode ser reduzida a políticas assistencialistas de
transferência de recursos e programas sociais para os mais pobres e que tem como base
uma economia ainda pautada na exportação de matérias-primas. No caso, o aumento do
preço desses produtos no mercado internacional, somado a algumas renegociações
contratuais com empresas transnacionais foi o que permitiu ao governo implementar
uma série de medidas distributivas que lhe conferiu apoio popular, sem, contudo,
romper com a histórica dependência que o país possui com esse modelo predatório.
É notório assinalar que a diversificação da economia acontece a um ritmo bem
lento. A essência da acumulação capitalista ainda não foi alterada, as oligarquias que
controlam os setores extrativista e agroexportador não foram desarticuladas
completamente e o governo assinou as diretrizes estabelecidas pela Integração da
88
A Bolívia tem crescido a uma média anual de 5%, índice que supera os EUA e a maioria dos países da
América Latina. Segundo reportagem da BBC, “o país tem crescido muito graças às exportações de gás
natural que vende ao Brasil e à Argentina, o que gera o risco de ancorar seu crescimento a esse recurso. E,
embora tenha feito esforços para diversificar a economia (com a venda de diesel, estanho e soja),
permanece a pergunta de quanto tempo vai conseguir sustentar seu modelo de desenvolvimento” (BBC,
29/10/2017).
165
90
Como destacado no capítulo anterior, considero o governo do Partido dos Trabalhadores/PT, no Brasil,
representado na figura do ex-Presidente Lula e da ex-Presidenta Dilma Roussef (2003-2016) parte de um
contexto continental de ascensão de governos nacionalistas e populares, mais ou menos radicais, mas com
propostas de extensão dos direitos sociais e de distribuição de renda.
91
Também do capítulo anterior, cito alguns exemplos desse retorno da direita neoliberal ao poder
conferindo ênfase aos casos do Paraguai e Honduras onde, tal como no Brasil, ocorreram golpes
parlamentares. Cito também as vitórias pela via eleitoral, como foram na Argentina e no Peru.
92
No exato momento em que escrevo essas linhas, estamos todos fortemente abalados com a morte do
jovem Marcus Vinicius, de apenas 14 anos, vítima de uma operação militar no Complexo da Maré,
quando esava a caminho da escola. O uniforme da prefeitura manchado de sangue é simbólico sobre o
que representa o Estado para determinados setores de nossa sociedade. (Cf.
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-06/familia-acusa-policia-pela-morte-de-marcos-viniciu
s-na-mare - consulta em 22/06/2018.)
93
Para muitos, a Zona Oeste do Rio de Janeiro representa o “outro lado da cidade”, a zona rural, o “sertão
carioca”, distante do centro, dos poderes constituídos formais, dos equipamentos culturais, localiza-se na
margem, na periferia, onde o Estado é muitas vezes substituído por poderes paramilitares (milícias),
sobretudo nas áreas mais pobres. Trata-se da região que conta com o maior colégio eleitoral da cidade e,
no entanto, onde se carece de maior infraestrutura urbana.
168
dimensão e nem tampouco nutro ilusões de que somente uma mudança no campo
democrático seria suficiente para avançar no processo de tranformação social. Porém,
considerava que a “democratização da democracia” poderia, sim, contribuir para esse
objetivo na medida em que poderiam ser criadas condições para que as maiorias e, em
particular, para que as classes populares pudessem de fato exercer sua soberania na
determinação do que se faz com a “coisa pública” e, com isso, viabilizar as condições
materiais e subjetivas necessárias para promover a sua emancipação social.
Foi movida por essas angustias que enveredei no estudo da Venezuela, onde se
dava a construção de um Estado Comunal no âmbito de uma Democracia Participativa
y Protagónica, baseada nos Consejos Comunales e na Comuna e que, para mim, parecia
ser uma das experiências mais radicais do continente no sentido de “democratizar a
democracia”. Apesar de reconhecer o avanço que representou o governo popular do PT
no Brasil, sobretudo do ponto de vista da valorização das Conferências Nacionais como
espaços mais democráticos de definição de políticas públicas94, não houve mudanças
significativas no nosso sistema político de maneira que se pudesse vislumbrar alguma
ruptura com a falácia liberal representativa de eleições financiadas por interesses
privados, coligações fisiológicas (como a que o próprio PT fez com o PMDB e, que por
conseguinte, resultou no Golpe Parlamentar sofrido pela ex-Presidenta Dilma Rousseff
em 2016) e com vários desdobramentos na corrupção estrutural que nos assola. Não que
a Venezuela tivesse resolvido todos os problemas. Ao contrário, talvez ainda pior do que
aqui, a corrupção estrutural alimentada por uma economia rentista segue sendo um dos
maiores desafios a serem superados.
Ainda assim, o que me chamou atenção no processo do país vizinho, e que não
ocorreu por aqui, foi o protagonismo popular na redação de uma nova Constituição que,
entre vários aspectos, referendou um novo pacto social, no qual a premissa da
participação popular e protagônica, mediante transferência de poderes executivos e
deliberativos para as organizações populares, era central. O artigo 70 da Constituição
venezuelana de 1999, por exemplo, regulamenta diversos mecanismos de participação
política, para além do voto em eleições regulares, destacando-se a “assembleia de
94
Para ficarmos somente no Governo Lula (2003-2011), das 115 Conferências Nacionais realizadas na
história do país desde Vargas nos idos dos anos 1940, 74 ocorreram durante o seu governo, envolvendo
cerca de 10 milhões de pessoas (6,5% da população brasileira). Segundo Leonardo Avritzer (2012, p. 21),
“as conferências nacionais representam um fortalecimento do marco participartivo presente na
Constituição de 1988”. Organizadas a partir de eixos temáticos – como saúde, educação, assistência
social, comunicação, segurança, entre outros -, as Conferências Nacionais são responsáveis por
estabelecer as diretrizes que deveriam orientar as políticas públicas. Não possuem, contudo, poderes
executivos, constituindo-se como órgãos assessores ao Congresso Nacional e ao Palácio do Planalto.
169
95
A República é destacada para o caso dos EUA porque aqui não se contava com a presença de um Rei e
tampouco havia legitimidade para se “fazer um Rei”, o que tornou imperativa uma adaptação.
170
Yo en general tiendo a pensar, como varios otros, que lo que hay del
lado dominante es el Estado, una forma de concentración de poder
político, y lo que ha habido históricamente son democratizaciones, es
decir, procesos de lucha que le han recortado un poco a lo Estado y
han introducido algún espacio, alguna forma de participación política
y han conquistado algunos derechos. Se han introducido algunas
rasgas de igualdad, pero parcial. En términos modernos,
democratización como un proceso de reformas estatal que le va
reduciendo el poder y ampliando las esferas de participación política,
ciudadanía y derecho. (TAPIAS, entrevista, 2017)
Vale notar que, no caso da realidade indígena na Bolívia, não existe a palavra
“democracia” em aymara, quéchua ou guarani, mas quando refletimos sobre a estrutura
do ayllu andino para citar um exemplo é perfeitamente possível fazer uma analogia e
estabelecer correlações. “Es decir la estructura política de un ayllu por ejemplo se le
está llamando de democracia y se está haciendo equivaler a lo que en los tiempos
modernos en particular se llaman democracia, incluso se lo presentan como algo mejor,
más democrático por ser más igualitario. Entonces, es bien común se hablar de una
democracia comunitaria.” (TAPIAS, entrevista, 2017).
Portanto, mais do que um modo de governar estatal, a democracia é compreendida
aqui como um processo que se dá a partir de múltiplas tradições e que, no âmbito da
modernidade ocidental, relaciona-se com um processo que envolve o movimento
permanente de luta por parte daqueles que estão “fora” do escopo de representatividade
do Estado Liberal, de ampliar suas margens de participação. Nesse sentido, vão
acumulando conquistas, concessões e avanços e, a depender das correlações de forças
que se estabelecem em uma dada realidade, também podem haver retrocessos,
esvaziamentos e burocratizações que anulam seu sentido original. Deste modo, após
muitas lutas no âmbito da ampliação da representação política no interior do Estado, nas
últimas décadas, o que tem predominado entre os movimentos de vieses
democratizantes é a premissa de que é necessário ampliar os espaços de participação
popular. É nesse contexto que a experiência venezuelana se insere.
Havia, contudo, uma crítica ao processo venezuelano que à época do Mestrado
não havia dado a devida atenção e que partia de grupos de minorias, dos povos
originários daquele país, que reclamavam principalmente da excessiva burocratização
171
96
O que, aliás, poderíamos considerar com um traço cultural constitutivo do bolivianidade, haja vista que
o poder da comunidade se faz presente em diferentes dimensões da vida, em vários territórios desse país e
não apenas em El Alto.
173
É desta forma que toda a potência que existe nessa condição “bajo el radar” se
perde ou, no mínimo, não se alcança. Mas ainda que não a alcancemos, ela está lá,
presente, alimentando os movimentos de resistência e servindo de base para apontar
caminhos para a emancipação social.
Outro exemplo dessa dimensão da vida que re-existe "bajo el radar político" e que
é potente é o próprio uso da língua aymara. A língua reúne toda uma forma de
entendimento do mundo que também escapa a qualquer tradução. Além disso, expressa
algo que une as pessoas nas trincheiras da luta cotidiana. Nas entrevistas que realizei,
99
Nesse ultimo caso, a despeito da noção de “complementaridade” do chacha-warmi herdeira das
tradições andinas, o machismo e o patriarcado seguem fortes matando, violentando e silenciando
mulheres.
177
100
Repito: é uma noção de que esses mundos, o indígena e o moderno-ocidental, co-existem dentro das
pessoas sem que haja uma síntese deles, sem formar uma terceira coisa ‘misturada’; é bem mais
complexo.
178
4 foi muito emblemática para se perceber o contraste desta cidade com uma cidade
como La Paz, por exemplo. Ainda que tão próximas, são muito diferentes. Em La Paz
há um maior controle social, uma maior castelhanização. Longe das ladeiras de São
Pedro, Tembladerani e Sopocachi, mal se vê essa cultura de rua indígena – quando
existe, está presente em espaços contidos, controlados, burocratizados, supervisionados.
Em El Alto, há um clima de maior liberdade, de maior domínio sobre a cidade, no qual
essa cultura de rua marcadamente indígena simplesmente se dá. O comércio espalhado
pelas calçadas, o aymara como língua de fundo, as cholas marcando sua presença, assim
como os motoristas das vans e microonibus. Tudo se apresenta de forma mais categórica
e influente.
A Feira 16 de Julio a que ja me referi é outro exemplo. Junto às demais feiras que
existem pela cidade, expressa uma escolha deliberada de vender alimentos dentro de
uma lógica de “interacción con la naturaleza” e de “contato personal”. Os preços são
sempre fruto de uma negociação e “as relações sociais dos participantes continuam
sendo as principais dinamizadoras” daquele espaço (MACHIAVELLO, 2008, p. 105). O
mercado torna-se, assim, um espaço vivo de re-existencias.
Desse modo, a despeito das tentativas de controle, normatização e da pressão da
“comunidade do capital” que a tudo destrói, até hoje, em pleno século XXI, persistem
práticas e valores não capitalistas e coetâneos. Por isso, é outro universo profícuo para
observar de que maneira essas raízes indígenas se mantêm vivas nos espaços urbanos
moderno-ocidentais, carregando consigo uma potência revolucionária.
Esses são apenas alguns exemplos da potência latente desse campo ainda pouco
explorado das experiências que re-existem “bajo el radar político”. Um dos maiores
desafios é o de conceber como essas múltiplas experiências podem saltar para uma
alternativa antissistêmica que de fato altere as estruturas de forma mais geral. Não tenho
pretensão alguma de responder a esta questão, porém, se voltarmos nossa análise para o
Governo de Evo Morales, apesar das críticas que podem ser feitas aos limites do
processo atual, o fundamental aqui é admitir que ao longo desses 518 anos de
re-existência, o protagonismo indígena segue como uma ferramenta atual para refletir
sobre os grandes desafios do mundo em que vivemos, apontando para esses possíveis
caminhos que venham a impedir o colapso ambiental e civilizacional que se vislumbra
em um futuro não muito distante. Mesmo com todos os esforços de domesticação e de
controle, seja no passado, seja sob o governo de Morales, o protagonismo indígena
escapa como uma água que escorre por entre os dedos ao tentar segurá-la.
179
No âmbito de tais depurações, deixei muitas lacunas nessa tese. Sem dúvida, neste
trabalho o poder da comunidade foi ressaltado em toda a sua potência, considerado
como eixo estruturante para se refletir sobre uma nova condição humana que provoca
importantes mudanças nas tradições de matrizes européias e ocidentais. Porém, ainda
que não tenha aprofundado, é preciso reconhecer tambem os limites estruturais
subjacentes a essa estrutura e que merecem uma problematização mais ampla
(machismo estrutural, o corporativismo e o clientelismo que muitas vezes estruturaram
a relação com o Estado, o rigor e o autoritarismo presentes em seus valores, a
invisibilização do indivíduo, entre outros). Além disso, o legado da modernidade
europeia, ainda que nesse estudo tenha predominado uma abordagem crítica de sua
matriz colonial e antropocêntrica, também trouxe importantes avanços para a história da
humanidade, sobretudo no âmbito da compreensão dos direitos individuais. Esse tema
também mereceria uma maior atenção e, junto com as demais dimensões citadas,
mereceriam um aprofundamento para alcançar de fato esse lugar de depuração, de
síntese dialética entre essas e outras tradições.
O que poderia concluir de maneira parcial é que mais do que uma solução,
devemos caminhar no sentido de reconhecer várias soluções concomitantes, em que
não há lugar aqui para ditar um caminho possível, mas sim o de buscar ouvir
180
FONTES
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ANEXO 1
Preámbulo
Nosotros, los pueblos de la Tierra:
Considerando que todos somos parte de la Madre Tierra, una comunidad indivisible
vital de seres interdependientes e interrelacionados con un destino común;
Reconociendo con gratitud que la Madre Tierra es fuente de vida, alimento, enseñanza,
y provee todo lo que necesitamos para vivir bien;
Reconociendo que el sistema capitalista y todas las formas de depredación, explotación,
abuso y contaminación han causado gran destrucción, degradación y alteración a la
Madre Tierra, colocando en riesgo la vida como hoy la conocemos, producto de
fenómenos como el cambio climático;
Convencidos de que en una comunidad de vida interdependiente no es posible
reconocer derechos solamente a los seres humanos, sin provocar un desequilibrio en la
Madre Tierra;
Afirmando que para garantizar los derechos humanos es necesario reconocer y defender
los derechos de la Madre Tierra y de todos los seres que la componen, y que existen
culturas, prácticas y leyes que lo hacen;
Conscientes de la urgencia de tomar acciones colectivas decisivas para transformar las
estructuras y sistemas que causan el cambio climático y otras amenazas a la Madre
Tierra;
Proclamamos esta Declaración Universal de Derechos de la Madre Tierra, y hacemos un
llamado a la Asamblea General de las Naciones Unidas para adoptarla, como propósito
común para todos los pueblos y naciones del mundo, a fin de que tanto los individuos
como las instituciones, se responsabilicen por promover mediante la enseñanza, la
educación, y la concientización, el respeto a estos derechos reconocidos en esta
Declaración, y asegurar a través de medidas y mecanismos prontos y progresivos de
carácter nacional e internacional, su reconocimiento y aplicación universal y efectivos,
entre todos los pueblos y los Estados del Mundo.
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1.10. Derecho a una restauración plena y pronta por las violaciones a los derechos
reconocidos en esta Declaración causados por las actividades humanas.
2. Cada ser tiene el derecho a un lugar y a desempeñar su papel en la Madre Tierra para
su funcionamiento armónico.
3. Todos los seres tienen el derecho al bienestar y a vivir libres de tortura o trato cruel
por los seres humanos.
12. promover sistemas económicos en armonía con la Madre Tierra y acordes a los
derechos reconocidos en esta Declaración.
Artículo 4: Definiciones
1. El término “ser” incluye los ecosistemas, comunidades naturales, especies y todas las
otras entidades naturales que existen como parte de la Madre Tierra.
Nada en esta Declaración podrá restringir el reconocimiento de otros derechos
inherentes de todos los seres o de cualquier ser en particular.