02-Lentes Literárias Sobre A Amazônia - Estudos Literários-1
02-Lentes Literárias Sobre A Amazônia - Estudos Literários-1
02-Lentes Literárias Sobre A Amazônia - Estudos Literários-1
Editora Filiada
Porto Velho - RO
© 2022 by Maria de Fátima Castro de Oliveira Molina, Iza Reis Gomes,
Mara Genecy Centeno Nogueira, (Organizadoras)
Esta obra é publicada sob a Licença Creative Commons Atribuição-Não
Comercial 4.0 Internacional.
Capa:
Rosivan Diagramação & Artes Gráficas
Revisão:
Marília Lima Pimentel Cotinguiba
Projeto gráfico:
Edufro - Editora da Universidade Federal de Rondônia
Diagramação:
Rosivan Diagramação & Artes Gráficas
1. Literatura Amazônica. 2. Textos literários 3. Diálogos. I. Molina, Maria de Fátima Castro de Oliveira, Iza Reis
Gomes, Mara Genecy Centeno Nogueira. II. Título. III Série.
CDU 82.0
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Bibliotecária Ozelina do Carmo de Carvalho Saldanha CRB 11/486
Sumário
7 APRESENTAÇÃO
7
saberes e afinamento das emoções (CANDIDO, 2011). Maria, personagem
cega de Burburinho nos leva às emoções de tocar a palavra-mundo com as
mãos e com a potência da arte plástica; A história das crianças que plantaram um
rio nos envolve em suas ilustrações colaborativas, na complexidade de refletir
sobre uma imagem que envolve um mundo local e um mundo global; Dinaura,
personagem de Órfãos do Eldorado, nos envolve em sua configuração narrati-
va e fílmica, dois suportes complexos que envolvem os problemas da vida na
Amazônia; o maravilhoso está nos encantos do rio que fala com um menino e
uma vó contadora de histórias; junto com o maravilhoso, o caráter imaginoso
constitui a composição de personagens e espaços ribeirinhos; Mad Maria é
uma odisseia que nos conduz em um diálogo com as fotografias de Dana Mer-
ril. Registros de momentos ímpares sobre uma construção de uma locomotiva
em plena floresta amazônica, uma imagem complexa que se constitui em um
afinamento de emoções e representações.
A segunda intitula-se Lentes analíticas em narrativas da/na Amazônia.
Essa abordagem se configura em senso crítico e percepções complexas sobre
textos literários. Re-inventar a linguagem faz parte da vida do escritor. E Thiago
de Mello faz isso pela perspectiva do conceito litera-rios, uma unidade vocal da
poesia da água; trouxemos o humano em sua totalidade universal e o horizonte
poético nas águas de Dalcídio Jurandir; uma prática de letramento experiencia a
estética da obra Seringal com leitores em formação; em A noite da espera, temos
o diálogo da história e da literatura; a poética e o imaginário amazônico são
apresentados por um menino em sua relação com a Ferrovia do Diabo; e a per-
sonagem Yara nos faz refletir sobre a colonização em Botas do diabo.
A Literatura possui uma potência que nos permite conhecer dife-
rentes mundos, sujeitos, espaços e tempos. As palavras, as imagens, as cores,
os sons, os aromas, as texturas, todas as formas de linguagem contribuem
para que a Literatura tenha essa força e função: humanizar o homem. Os
capítulos aqui publicados buscam destruir os muros e construir pontes en-
tre a Literatura produzida na/da Amazônia e os leitores que aceitarem o
desafio de mergulhar nesses rios, seja pela lente da escrita, da fotografia, da
ilustração ou da plasticidade poética.
8
PLASTICIDADES POÉTICAS NA COMPOSIÇÃO DA
ESPACIALIDADE DO TEXTO EM BURBURINHO, DE
DANIEL DA ROCHA LEITE
Introdução
9
A composição da espacialidade do texto em Burburinho
10
livro infantil ilustrado contemporâneo. Na investigação sobre esses elementos,
Megnegazzi e Debus (2020) relacionam a materialidade, a diagramação, a ti-
pografia, as qualidades estilísticas do texto e das ilustrações, os acabamentos
gráficos e os elementos paratextuais e peritextuais como os fundamentais que,
em suas intersecções, demonstram “características do projeto gráfico como ele-
mento literário” (2020, p. 16). Todavia, neste estudo, a análise direcionada está
ancorada nos elementos relacionados à disposição do texto e das ilustrações no
espaço da narrativa, especialmente, no que diz respeito às qualidades estilísti-
cas do texto, que se resvalam na diagramação.
Segundo Megnegazzi e Debus (2020), as qualidades estilísticas do texto
estão relacionadas à ideia de enunciação gráfica, ou seja, “ao modo como o tex-
to é materializado” (2020, p.38). Esse modo envolve, portanto, a comunicação
por imagem que se instaura por meio da forma do texto, ou a forma como o
projeto gráfico “pode tornar mais ou menos legível e visível o texto” (RAMOS,
2011, p. 145). Materializados no espaço da narrativa, esses modos de enuncia-
ção convergem para o diálogo entre os textos verbal e visual. Logo, atuam no
preenchimento de lacunas, em consonância com o mundo ficcional convocado
pela obra. Segundo a formulação teórica de Camargo (2006), a enunciação
gráfica compreende tanto aspectos linguísticos quanto gráficos, bem como é
indissociável da percepção visual do texto, na medida em que se revela sensível
aos sentidos (2006, p. 118).
Todo texto nasce como uma espécie de fala interior, mas só se torna efe-
tivamente texto quando é enunciado, ou seja, quando ganha uma forma
sensível, que pode ser percebida por um ou mais sentidos: audição, visão,
tato. A enunciação gráfica designa uma dessas formas sensíveis, a visual, do
texto escrito – manuscrito, impresso, digital etc.
11
to dos espaços lacunares do texto, no contorno de um sentido de alteridade.
Assim, por meio desse modo enunciativo, a materialização do texto em braile
possibilita que os leitores tenham diferentes vias de acessos à história narrada.
Sobre a importância do projeto gráfico do livro, Megnegazzi e Debus partem
do princípio de que “é uma das principais formas pelas quais o leitor terá con-
tato com a narrativa e, a partir das condições gráficas, ter maior proximidade e
interação com a história” (2020, p.23). Revestidos dessa configuração, imagens,
textos e textura cumprem o propósito artístico de promover a interação entre o
leitor e a história da menina que lê o mundo com a ponta dos dedos:
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Auxilia na identificação desse ponto de vista, a distribuição e a posição
ocupada pela imagem e pelo texto na página dupla do livro. De acordo com
Linden: “[...] o livro ilustrado mantém estreita relação com a página dupla. As-
sim, é determinante a forma como textos e imagens se inscrevem nesse espaço”
(2018, p. 65). A diagramação, portanto, interfere no processo de percepção,
interação e leitura da história narrada.
Quanto à organização do conteúdo no espaço que irá ocupar na página,
Megnegazzi e Debus destacam duas conjunturas de diagramação nos livros
infantis ilustrados: entre texto e imagem e a que diz respeito à legibilidade.
Sobre a diagramação entre texto e imagens, os autores afirmam que “implica
diretamente nas relações de leitura de acordo com a distribuição gráfico-espa-
cial no formato da página dupla” (2020, p. 30). Essa distribuição em Burburi-
nho volta-se, entre outros aspectos, para a percepção do rinoceronte como um
animal grande, que ultrapassa o limite da dobra entre as páginas:
13
Ela era ele?” (LEITE, 2018, p. 41). No reconhecimento da identidade pela
alteridade, o rinoceronte deixa de ser apenas uma palavra aprendida para uma
palavra sentida no reconhecimento do “eu” de Maria no “outro” do rinoceronte.
Na espacialidade do texto em Burburinho, a palavra ganha movimento,
assume a representação do visual, o caráter pictórico alia-se aos sentidos do
verbal e do visual que se entrelaçam na tessitura narrativa. Segundo Salisbury e
Styles, “O texto como um elemento pictórico [...] é formatado para se parecer
visualmente com seu tema” (2013, p. 100). Essa é a ligação proposta pela dis-
posição visual das palavras no espaço da narrativa:
Figura 3 – O rinoceronte
14
Maria sorriu. Lembrou-se do beliche da amiga. Parecia uma casa. Na pele
das suas mãos, no dia do aniversário de Joana, esse mundo veio escrito na
memória da ponta dos dedos de Maria. No toque das mãos,,, sentida a pa-
lavra beliche. Havia uma escadinha, elas subiam rapidamente.
nos livros ilustrados o texto e a imagem dizem e mostram algo. É sua fun-
ção linguística e icônica, respectivamente. Mas, para atender um propósito
artístico, a atenção se encontra direcionada em como o dizem e como o
representam, ou seja, no plano da expressão literária e plástica. Como o dizem
e como o representam, ou seja, no plano da expressão literária e plástica. As
letras do texto podem invadir o campo icônico e ter uma função plástica que
se joga com a forma das letras ou se distribuem perseguindo um desenho
determinado.
15
Um burburinho de palavras, imagens e textura
16
espacialidade do texto, são elementos articuladores na construção dos sentidos
entrelaçados na tessitura narrativa. Já na capa, o leitor é motivado a experien-
ciar sensações táteis por meio do relevo da grafia em braile, um elemento vi-
sível que, ao ocupar o espaço privilegiado da capa, simbolicamente, antecipa a
atmosfera do texto. Segundo Megnegazzi e Debus, “os elementos paratextuais
podem ser minuciosamente planejados em função de contextualizar e reforçar
assuntos da história” (2020, p. 46). Nesse sentido, o diálogo instaurado cumpre
o papel de criar expectativas e suscitar o imaginário do leitor.
A tipografia impressa no título traz a representação de uma grafia in-
fantil, recurso que se repete na quarta capa e na transcrição das palavras beli-
che, redemoinho e prodigiosos empregadas no interior da narrativa. A grafia
diferenciada aponta para a percepção de Maria sobre palavras que lhe instigam
a imaginação, tanto pelo significado e pela pronúncia, quanto pela forma como
são escritas. Assim, o estilo caligráfico do título alude à relação de proximidade
da personagem com o universo das palavras. É, portanto, um recurso emprega-
do “para aproximar o conteúdo literário do modo de escrita da criança, o que
também proporciona espontaneidade e qualidades emocionais ao texto, como
se o escritor/artista tivesse agido diretamente na obra” (2020, p. 36). Sob essa
configuração, a espacialidade do texto em Burburinho é marcada pela interli-
gação dos recursos composicionais empregados no texto verbal e no imagético.
Na quarta capa, o enunciado verbal “um é o outro e o outro é o um”
condensa o sentido que dá contorno ao enredo, a partir do olhar de identifi-
cação que Maria projeta para o rinoceronte, animal portador de baixa visão,
característica comum que os aproxima: “Uma baixa visão, Maria pensou no
rinoceronte-branco. Ele era ela? Ela era ele? (LEITE, 2018, p. 40-41). Na
representação simbólica desse sentido de identidade e alteridade, a ilustração
dialoga com a narrativa mesclando texto e imagem:
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Figura 5 – Ele era ela? Ela era ele?
18
Figura 6 – Um burburinho
19
Figura 7 – O livro
20
lido, a palavra rinoceronte acende o mundo imaginário de Maria, fagulha acesa
pela amiga que compara o rinoceronte com o seu beliche, o beliche-montanha,
o espaço alto das brincadeiras descrito na passagem (LEITE, 2018, p. 14):
21
Figura 8 – A palavra tocada
22
Implicitamente, as ilustrações em Burburinho são poeticamente
enviesadas pela temática da narrativa que suscita um outro olhar sobre uma
forma diferente de apreender e ler o mundo. Na imagem, o toque da mão
sobre o tracejado também indica um caminho de descobertas a ser seguido
pelos dedos que leem, sentem e tocam as palavras, descortinam o mundo na
imaginação de Maria. Assim entrelaçadas, imagem e palavras, reciprocamente,
atuam na construção dos sentidos da narrativa.
Considerações
23
Referências
FERES, Beatriz dos Santos. O que pode a imagem na literatura infantil? As-
pectos semiodiscursivos da relação verbo-visual em livros destinados à infân-
cia. In: MICHELI, Regina; LIMA, Elen Pereira; GARCIA, Flávio (Org.). A
literatura infantil/juvenil entre textos e leitores: reflexões críticas e práticas leito-
ras. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2020.
LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. Trad. Dorothée de Bru-
chard. São Paulo: SESI-SP, 2018.
24
RAMOS, Graça. A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
SILVA, Yara Dos Santos Augusto. Plasticidades poéticas, escrituras picturais: jo-
gos do texto e da imagem na arte de poetas e pintores das vanguardas latino-
-americana. Belo Horizonte, MG. Tese (doutorado) Universidade Federal de
Minas Gerais, 2016.
25
UM PASSEIO PELAS LENTES DAS ILUSTRAÇÕES NA
NARRATIVA A HISTÓRIA DAS CRIANÇAS QUE PLAN-
TARAM UM RIO: UM DIÁLOGO ENTRE O TEXTO VER-
BAL E O VISUAL
Introdução
26
Alguns apontamentos teóricos e analíticos sobre ilustração no livro A histó-
ria das crianças que plantaram um rio
27
Consideramos a obra de Daniel da Rocha Leite um sistema complexo
que demanda várias habilidades de um leitor para uma leitura crítica e analí-
tica. Nossa leitura abarca as relações textuais que não foram ditas e não foram
ilustradas, mas que foram sugeridas na relação das duas linguagens.
Na tentativa de delimitar alguns conceitos, recorremos aos tipos de li-
vros descritos por Linden (2018, pp. 24 e 25).:
28
Figura 1 – Meninos e meninas correndo pelo trapiche inundado
Essa ilustração não repete o que o texto verbal diz. Na linguagem ver-
bal há uma pergunta do menino narrador: “será que o rio sonha comigo?”. E
29
a ilustração leva o leitor a um mundo aquático, ao fundo de um rio em que
visualizamos um menino dormindo. Todo o ambiente que cerca esse menino
dormindo resgata a fantasia, o sonho e, dessa forma, a narrativa se faz de ma-
neira articulada entre texto e imagens. Por isso, afirmamos que a narrativa A
história das crianças que plantaram um rio é uma narrativa híbrida entre “livro
ilustrado” e “livro com ilustração”.
Linden também define diferentes status da imagem (2018, p. 44):
30
Imagens associadas – entre a isolada e a sequencial, a do livro ilustra-
do não raro se afirma num meio caminho entre esses dois polos (isolada
e sequencial). Não sendo nem totalmente independentes nem solidárias
por completo, tais imagens poderiam ser qualificadas como associadas.
Desse modo, as associadas são ligadas, no mínimo, por uma continuida-
de plástica ou semântica. Elas podem apresentar uma coerência interna
(composição plástica, unidade narrativa) que as torna independentes das
imagens que as cercam.
31
Linden (2018) nos enumera esses elementos: os formatos dos livros, as capas,
as guardas, as folhas de rosto e as páginas do miolo.
A capa de um livro ilustrado é um convite à leitura, recebe os primeiros
olhares, as primeiras interpretações, indagações e juízos de valores. Para Lin-
den (2018, p. 57), a capa é o
32
No enquadramento da primeira capa, o leitor infere que temos um foco
direcionado ao espaço da narrativa em que supomos existir uma casa, um rio
e a natureza. No entanto, quando visualizamos o conjunto das capas, o enqua-
dramento se mostra numa dupla interpretação: a primeira é o ponto de vista
do menino narrador ou o menino faz parte da ilustração e o ponto de vista é
do leitor. São possíveis leituras que as capas nos proporcionam.
Após a capa, partiremos para o título do livro ilustrado. Esse elemento
está ligado intrinsicamente com a capa. Segundo Linden (2018), o título pode
ser humorístico, enigmático, antecipar o conteúdo, desarmar um efeito-surpre-
sa ou uma queda final, e ainda pode ser uma chave de interpretação narrativa.
“O título se relaciona sobretudo com a representação figurada da capa. Dessa
forma, ele obedece a qualquer tipo de vínculo texto-imagem, com suas relações
de redundância, complementariedade ou contradição” (LINDEN, 2018, p. 58).
Em relação à narrativa analisada, o título traz o imaginário por termos crianças
plantando um rio, temos o termo “A história” que convoca algum contador e
leva o leitor a embarcar nessa chave interpretativa.
Temos as guardas dos livros, a parte posterior e anterior à capa que ser-
vem para ligar o miolo do livro. Linden (2018) conceitua algumas funções das
guardas dos livros infantis: trazem motivos que se repetem, frequentemente se
relacionam com o conteúdo do livro, a primeira guarda pode antecipar a his-
tória, a última guarda pode remeter à volta da história, pode conduzir o leitor
a um jogo lúdico. Dessa forma, as guardas trazem informações que podem
interferir na leitura e interpretação da obra.
Em relação aos aspectos narrativos de textos e imagens, pontuamos
algumas relações, funções e suas características citadas por Linden (2018, p.
121):
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Quadro 1 – Características essenciais das relações entre texto e imagem
FUNÇÕES CARACTERÍSTICAS
A mensagem veiculadas pela instância secundária pode
apenas repetir, em outra linguagem, a mensagem veicula-
da pela instância prioritária.
1. Função de repetição
A leitura da segunda mensagem não traz então nenhuma
informação suplementar, e o leitor tema sensação de ler a
mesma mensagem de outra maneira.
O texto pode selecionar uma parte da mensagem da
imagem.
Um texto pode, por exemplo, mencionar apenas alguns
2. Função de seleção elementos específicos de uma imagem. Da mesma for-
ma, uma imagem pode se concentrar em um aspecto, um
ponto de vista preciso da narrativa, ou eleger um sentido
da polissemia do texto.
O aporte do texto ou da imagem pode revelar-se indis-
3. Função de revelação pensável para a compreensão um do outro que, sem sua
contraparte, permaneceria obscuro.
Quando a segunda expressão intervém sobre a prioritária,
pode dar ensejo ao entendimento de um sentido global.
4. Função completiva Uma completa a outra, fornece informações que lhe faltam,
preenche suas lacunas ou ‘brancos’, constituindo um aporte
indispensável para a compreensão do conjunto.
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Uma das expressões pode se caracterizar como contra-
ponto da outra, particularmente por uma quebra das ex-
5. Função de contra-
pectativas geradas pela instância da primeira, não men-
ponto
cionando, por exemplo, um elemento que, no entanto, é
central.
Um pode dizer mais que o outro sem contradizê-lo ou
6. Função de amplifi-
repeti-lo. Estende seu alcance de sua fala trazendo um
cação
discurso suplementar ou sugerindo uma interpretação.
Fonte: Adaptado do livro de LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado.
2018, pp. 122 a 126.
35
Podemos encontrar, após a leitura do texto, outras funções não identifi-
cadas na primeira leitura. Não é algo engessado, podendo ocorrer variações de
acordo com cada livro ilustrado, ou seja, podemos encontrar várias funções em
um mesmo texto.
O último elemento a ser abordado aqui é o ponto de vista teorizado por
Linden, (2018, p. 130).
36
costas para o leitor e de frente para a narrativa, como se estivéssemos em uma
sala de cinema assistindo à narrativa.
Pensando na possibilidade de associarmos a página dupla a uma pos-
sível moldura, trazemos a distinção realizada por André Bazin. Este teórico
pontua sobre a diferença entre tela e moldura, (BAZIN, 1985, p. 22):
Os limites da tela não são, como o vocabulário técnico pode às vezes sugerir,
a moldura da imagem, e sim um esconderijo que pode revelar apenas parte
da realidade. A moldura polariza o espaço para dentro; e, ao contrário, tudo
o que é mostrado na tela supostamente deve se estender indefinidamente no
universo. A moldura é centrípeta, a tela é centrífuga.
37
Figura 6 – Visão Plongée (vista de cima)
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deixando ao leitor a liberdade imaginativa do que possa o narrador-persona-
gem estar enxergando por aquela brecha.
Para uma maior exemplificação da focalização do narrador-personagem
dentro da narrativa de Leite (2013), apresentaremos algumas folhas duplas em
que a posição dos personagens nos leva a visualizar o foco do narrador.
39
personagem olhando realmente em direção ao leitor é a Figura 8, letra E, na
sequência apresentada. Temos um menino montado em um pirarucu seguran-
do em suas barbatanas como se fosse um cavalo. E temos o texto verbal: “Há
mundos que os olhos é que ouvem, dizia a minha avó” (2013, p. 25).
Os narradores de A história das crianças que plantaram um rio se posi-
cionam como contadores de histórias, estão inseridos na narrativa contando
as histórias de acordo com as suas perspectivas. Essas posições influenciam
na narração da história porque esses narradores convidam os leitores a ca-
minharem junto com eles. Assim, temos um enquadramento na perspectiva
de uma criança, de um adulto e de uma avó. São visões que contribuem
para contar a narrativa. O jogo de enquadramento, demonstrado na figura
8, por meio dos quadrados vermelhos, nos leva a ouvir esses narradores e
suas histórias. Maciste Costa, em um diálogo com o texto verbal do escritor
Daniel da Rocha Leite, joga com a focalização da narrativa. Esse olhar para
dentro da narrativa nos leva ao passado, é o narrador pegando em nossas
mãos e nos conduzindo em uma viagem à história de seu passado. Quando
o ilustrador escolhe não mostrar o rosto dos personagens, possibilita a prá-
tica da imaginação, da criação imaginária pelo leitor.
A análise não objetiva de forma alguma enquadrar o livro de Daniel
em uma caixa com regras estipuladas e de encaixe. Cada livro possui a sua
organicidade, o seu funcionamento, as suas ferramentas que farão o texto
(verbal e visual) criarem vida. O texto é orgânico, está em movimento e as
relações propostas por ele podem mudar a qualquer momento, basta uma
nova leitura extra e identificá-la em sua intertextualidade, por exemplo.
Assim, em A história das crianças que plantaram um rio, vemos um texto que
pode ser mobilizado de acordo com a experiência estética literária de cada
leitor, seja infantil, juvenil ou adulta.
Considerações
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serem explorados. Temos uma narrativa formada por uma construção de vozes:
o rio fala à avó, a avó fala ao menino, o menino rememora e fala ao leitor, como
menino e como adulto. Além de termos as ilustrações que nos direcionam os
olhares de acordo com as posições que ocupam nas páginas.
O processo de criação e construção dos narradores ganha visibilidade por
meio das ilustrações. Este elemento é utilizado na obra como recurso narrativo,
dando voz aos narradores e acompanhando-os no texto verbal. Assim como os
narradores nos contam as histórias por seus pontos de vistas, as ilustrações tam-
bém narram histórias. As cores, o enquadramento, a disposição nas páginas do
livro funcionam como foco e guiam o leitor nas leituras das imagens.
Presenciamos a colaboração entre o narrador do texto verbal e o do tex-
to imagético na contação da história: uma relação entre a linguagem verbal e a
imagética, crucial para a criação de sentido da narração. As ilustrações na obra
A história das crianças que plantaram um rio perfazem uma função, às vezes, de
repetição, e outras vezes, de colaboração. As duas funções contribuem no diá-
logo entre as linguagens na perspectiva apresentada aos leitores. As ilustrações
estabelecem uma relação entre si numa trilha analítica em que a estrutura dos
narradores é construída pelas posições que esses narradores se colocam verbal-
mente e imageticamente. São pontes que nos guiam a caminho da literatura,
da imaginação e das histórias contadas.
REFERÊNCIAS
BAZIN, André. Peinture et cinema. In: LINDEN, Sophie Van der. Para ler o
livro ilustrado. Tradução: Dorothée de Bruchard. São Paulo: SESI-SP, 2018.
41
LEITE, Daniel da Rocha. A história das crianças que plantaram um rio. Ilustra-
ções de Maciste Costa. Belém: Ponto Press, 2013.
LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. Tradução: Dorothée de
Bruchard. São Paulo: SESI-SP, 2018.
42
ÓRFÃOS DO ELDORADO: DO ROMANCE ÀS TELAS
Introdução
43
para eles. Daí ter o cinema passado por diversas transformações ao longo de
todo o século XX. Pode-se dizer que foi por meio da (SEABRA, 2014, p. 20).
44
do narrador-personagem criado por Machado de Assis. Além disso, traba-
lhou com a perspectiva de que a obra fílmica é um novo texto, cuja concepção
se dá por intermédio da intertextualidade.
Já Valquíria Elias Ferreira Rezende (2010), em seu estudo Um olhar
sobre as relações entre literatura e cinema: a adaptação de Lisbela e o prisioneiro,
fez um estudo comparativo entre a arte literária e a cinematográfica buscan-
do refletir acerca do processo de transposição entre essas duas linguagens por
meio da análise das transformações a que um texto é submetido no processo
de adaptação para um outro meio de produção. Ou seja, Rezende procurou
desvendar de que forma a peça teatral de Osman Lins foi adaptada para o texto
fílmico de Guel Arraes, abordando, dentre os elementos formais da narrativa,
com maior ênfase, a construção dos personagens. Analisar um filme requer um
olhar diferenciado, pois a construção de uma película é diferente de uma his-
tória escrita. Contar uma história de 200 páginas em duas horas exige algumas
escolhas que influenciarão na produção do filme.
O diretor, roteirista e documentarista Guilherme Fernandes Cezar Coelho
nasceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 24 de maio de 1979. Bacharelou-se em
economia na Califórnia pela Universidade Stanford, local onde também estudou
jornalismo, teatro e documentário. Guilherme foi coprodutor e codiretor dos ví-
deos Se Tu Fores, que fala acerca dos compositores da escola de samba Portela, e
Dorotéia Masquerade, uma adaptação em inglês da peça Dorotéia, de Nelson Ro-
drigues, em 2001. Foi diretor e roteirista do filme Órfãos do Eldorado lançado em
2015, filme baseado na obra homônima de Milton Hatoum, corpus deste estudo.
Adaptar, traduzir ou transcriar as obras de Milton Hatoum não é tarefa
fácil, pois a escrita deste escritor amazonense é poética e traz consigo todas
as nuances da região amazônica, sem que com isso trabalhe com o exotismo
presente na região.
A sinopse do filme Órfãos do Eldorado (2015), de Guilherme Coelho
nos traz que:
45
ta para casa depois de muitos anos ausente. Surpreendido pela inesperada
morte de seu pai, Arminto se vê obrigado a assumir os negócios da família,
que no passado fez fortuna com o transporte de mercadorias pelo rio Ama-
zonas. Aos poucos, no entanto, ele é consumido pelos fantasmas do passado
e por suas grandes paixões: Florita, a mulher que o criou, e Dinaura, uma
misteriosa cantora, cuja aparição na cidade fulmina sua vida.
46
algo intransponível. Os jogos com a língua portuguesa, o ritmo das frases, a
arrumação do texto, isso não se transpõe”.
Esta questão foi resolvida a partir do momento em que o diretor definiu
o perfil do personagem principal: “Arminto é o anti-herói buckeriano, pois
não apresenta uma motivação clara de suas intenções. Assim, escolhi fazer
um cinema mais sugestivo, a fim de fazer o espectador imaginar o que está
acontecendo”.
Falar sobre a narrativa fílmica de Coelho requer, primeiramente, apre-
sentar a obra fonte de sua criação, o romance Órfãos do Eldorado. Porém, nos-
sa intenção não é mostrar as semelhanças e/ou diferenças entre as duas obras,
mas, pontuar o ponto de partida para a criação fílmica de Coelho. Sendo um
filme inspirado na obra de Milton Hatoum, sentimos a necessidade de fazer
pontuações acerca das características estéticas de sua escritura, bem como as
suas temáticas recorrentes a elas e de que forma alguns teóricos e estudiosos de
sua obra as analisaram.
47
críticos. Como exemplo podemos citar as obras Relato de um certo Oriente,
Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado. Como a fortuna crítica a
respeito das obras de Hatoum é vasta, nesta pesquisa apresentaremos apenas
alguns comentários de alguns pesquisadores sobre esses quatro romances do
autor. Escolhemos apontar as ideias de pesquisadores que analisaram as obras
de Hatoum sob o viés da memória, seja a memória individual ou a memória
coletiva, porque o objetivo desta pesquisa é analisar de que maneira o cineasta
Guilherme Coelho criou a memória em seu filme Órfãos do Eldorado, inspi-
rado na obra homônima de Milton Hatoum.
Tânia Pellegrini (2006, s/p.) apresenta duas obras de Hatoum: Relato de
um certo Oriente e Dois Irmãos. Para ela,
48
isto é, a narradora do romance narra sua trajetória a partir da morte de Emi-
lie. Assim, ela refaz a história da família, que se desfaz aos poucos, buscan-
do, na memória, revisitar seu percurso familiar e seu próprio percurso de vida
(CHIARELLI, 2007, p. 40).
49
de, é uma realidade sempre em mudança onde as relações de poder, relações
sociais, existência cultural, atividades econômicas e acadêmicas, lugares co-
letivos, modificam-se de forma ininterrupta. A memória também se confi-
gura dessa forma, com sua temporalidade que, do mesmo modo, sempre se
encontra em movimento. Assim sendo, a memória dialoga com as vivências
e as cenas da cidade, com suas múltiplas faces, tanto espaciais quanto tem-
porais, reencontrando nela os lugares do passado.
1
Entrevista concedida a Luiz Henrique Gurgel em 2008. Na ponta do lápis. Ano IV, nº 8,
AGWM editora e produções editoriais, p. 4, junho de 2008.
50
por um mosaico de vozes: ora a da narradora sem nome, ora de outros per-
sonagens com os quais ela dialoga e reproduz na carta enviada a seu irmão;
em Dois Irmãos, é Nael quem busca reconstruir o passado da família da qual
faz parte como agregado; em Cinzas do Norte, é Lavos quem reconstrói a vida
da família Trajano e do amigo Mundo. Todas essas narrativas perpassam a
temática memorialística.
E o romance Órfãos do Eldorado não foge à regra. Sua construção
é permeada pela memória. A obra narra à vida de Arminto Cordovil, filho
de Amando Cordovil. Um rapaz que cresceu atormentado pela ideia incutida
pelo pai de ter matado sua mãe ao nascer. Cresceu em meio às lendas locais,
traduzidas por Florita, que incorporaram em seu cotidiano e que o perseguiram
por toda a vida: a lenda da cidade encantada; da piroca grande; da mulher que
se apaixonou por uma Anta, do Uirapuru, da mulher sem cabeça, dentre ou-
tras. Conheceu o amor com Florita, uma indígena que cuidara dele desde sua
infância, e por isso foi enviado a Manaus para reparar o “erro” cometido com a
empregada da casa. Retorna a Vila Bela e vê o pai morrer à sua frente. Apaixo-
na-se por Dinaura, uma moça que vivia no orfanato da cidade, mas cuja vida
era uma incógnita. Não cuida da herança deixada por seu pai, a empresa de
navegação Cordovil, acaba falindo quando o barco Eldorado afunda. Gasta o
resto de sua herança buscando por Dinaura, que o abandonou após uma tarde
de amor. Arminto, já velho e desvalido, conta a sua história a uma pessoa que
havia parado para descansar perto de sua casa.
O romancista amazonense afirma que em seus romances, “se há um
centro, um eixo mais ou menos secreto que se desvela para o leitor em algum
momento, é a memória. Esse movimento da memória, e daquilo que não foi
possível dizer”, pois “a memória inventa suas versões a partir de um fato pas-
sado”, e esse passado, continua agindo em nós infinitamente. Porém, “com o
passar do tempo, os fios da memória são rompidos ou borram, e a imaginação
assume um papel decisivo na figuração do passado2.”
2
Entrevista concedida a Scheneider Carpeggiani. Suplemento Cultural do Diário Oficial do
Estado de Pernambuco, nº 104, outubro de 2014, p. 11.
51
Podemos afirmar que o que vemos/lemos nas obras de Hatoum é uma
memória revisitada, fragmentada, lacunar. Seja a memória da narradora ino-
minada de Relatos de um certo Oriente, seja Nael, narrador de Dois Irmãos, seja
a memória de Lavos, narrador de Cinzas do Norte ou a memória de Arminto
Cordovil, de Órfãos do Eldorado.
Outra característica evidente nas obras de Hatoum é a presença do es-
paço amazônico. Sobre essa questão, Estela Vieira (2007, p. 172) afirma que,
52
Não ia cair na armadilha de representar “os valores” e a cor local de uma
região que, por si só, já emite traços fortes de exotismo. Percebi que podia
abordar questões a partir da minha própria experiência e das leituras. E
fiz isso sem censura, sem condescendência, usando recursos técnicos que
aprendi com algumas obras.
3
Entrevista concedida à Globo News. Literatura: “Órfãos do Eldorado”, romance de Milton
Hatoum, chega às telas. Disponível em: g1.globo.com/globo-new/literatura/videos/v/litera-
tura-orfaos-do-eldorado-romance-de-milton-hatoum-chega-as-telas.
53
Foi o que o cineasta procurou fazer, ao buscar transpor para o cinema
a narrativa subjetiva da obra-fonte na qual se inspirou, transformando o texto
“introspectivo, carregado de imagens, lendas e sons” (BRASIL, 2015) do ro-
mance Órfãos do Eldorado em um filme denso e pesado e, ao mesmo tempo,
poético e visual, uma vez que, na narrativa fílmica, percebe-se que a trama sen-
sorial sobrepõe-se à narrativa, e o filme traz para a tela a umidade amazônica
com suas paisagens, que permeiam toda a história. Portanto, pode-se dizer que
Guilherme construiu a narrativa da película por meio do tempo da memória,
que na obra, foi marcada por sutis elipses.
Ademais, o cineasta realiza a “interligação entre o imaginário e a me-
mória através da construção de espaços e de proposição de experiências dife-
renciais de tempos” (MENEZES, 1996, p. 89) retratadas pelas vivências do
personagem Arminto Cordovil. Essa subjetividade do personagem aliada aos
recursos cinematográficos nos traz um clima fabular. A constante presença
da natureza, mais especificamente do rio, as lendas rememoradas sempre, os
flashbacks, a montagem das cenas, a iluminação, tudo contribui para a constru-
ção do estranhamento presente na película.
Milton Hatoum, em entrevista ao Correio Braziliense, em 2012, co-
menta sobre a adaptação de duas obras suas para o cinema: Relato de um certo
Oriente e Órfãos do Eldorado. Para o escritor, embora os dois romances sejam
a fonte do roteiro dos filmes, ele não crê na transposição literal de seus textos
para o cinema, por tratar-se de uma linguagem diferente. Assim, para ele, o
que importa é que os cineastas “captem com imagens a essência dos romances,
em um processo de transcriação. O manauense afirma ainda entender “a in-
cursão no cinema como estranha, por ser uma arte ‘feita por uma multidão’ e a
literatura um ofício recluso” (PINHEIRO, 2012).” O que corrobora a ideia de
Cristiane Nova (1996, p. 3), para quem
54
nam a presença do caráter individual e artístico de cada obra, cuja análise
é, por vezes, dificultada pelo fato da arte nem sempre seguir modelos lógi-
cos e coerentes e possuir um grau elevado de subjetividade.
[...] o processo de adaptação não foi fácil. Acho que mais importante que
entender qual história contar, os realizadores de cinema devem hoje pensar
como contar qualquer história. Em ÓRFÃOS, o “como” para influenciou
muito o “o que”. Descobri cedo no processo que o caminho para trazer às
telas o lindo livro do Milton seria ter liberdade para criar uma narrativa su-
gestiva, que nos permitisse filmar, atuar e assistir ao filme com subjetivação.
Essa ideia de Coelho reforça o que nos aponta Christian Metz sobre a
diferença entre o romance e o filme: “o romance é verbal por inteiro, a matéria
do filme é amplamente extralinguísticas” (VANOYE, GOLIOT-LÉTÉ apud
Metz, 2002, p. 44).
Um filme diz tanto quanto for interpelado, uma vez que as possibili-
dades de sua leitura são infindáveis. Dessa forma, cada analista pode ter uma
visão específica, diferente de outro pesquisador. Por isso, examinar tecnica-
55
mente um filme nem sempre é fácil, pois sua descrição e análise passam por
um processo de compreensão e interpretação do produto fílmico acabado, isto
é, o produto disponibilizado para o público.
A imagem cinematográfica possui seus próprios códigos, diferentes dos
da palavra escrita. Por isso, é preciso observar a transposição de uma linguagem
a outra. Ao diretor cabe criar seu produto, a película, e, para isso, ele deve tecer
as ideias e colocar em prática o que está escrito no roteiro. Essa tessitura agrega
as etapas da filmagem, da decupagem, da mixagem e da montagem, que são as
estruturas responsáveis pela organização fílmica, pelo resultado que vemos e
assistimos nas telas de cinema.
Portanto, cabe ao analista realizar a inter-relação entre a linguagem ver-
bal e a linguagem não verbal, uma vez que, na atualidade, o convívio com a
diversidade de linguagens é inevitável, visto que “quando se trata de cinema é
a interação entre essas duas linguagens que está em questão, é o domínio e in-
terpretação de dois discursos que se apresentam ao leitor”, segundo nos afirma
Palma (2004, p.11).
Para Vanoye, Goliot-Lété (2002, p.12), “analisar um filme não é mais
vê-lo, é revê-lo, mais ainda, examiná-lo tecnicamente”. Por isso, analisar um fil-
me procurando detectar se ele foi fiel ou não à obra-fonte não seria correto,
uma vez que estamos lidando com outra fonte que não a da palavra escrita: a
audiovisual. E a análise interpretativa deve analisar os meios em que a obra
fílmica se expressa. Sobre este assunto, Jorge Seabra (2014, p. 18) afirma que
56
das por Xavier (2003, p. 62) quando diz “ao cineasta o que é do cineasta, ao
escritor, o que é do escritor, valendo as comparações entre livro e filmes mais
como esforço para tornar claras as escolhas de quem leu o texto e o assume
como ponto de partida, não de chegada”. Assim, não há como analisar o texto
fílmico com as mesmas ferramentas que analisamos uma obra literária, seja ela
uma poesia, um conto, uma peça teatral ou um romance, pois são dois textos
distintos. Mesmo que tenham um tema em comum, expressam-se por meios e
formas diferentes, como é o caso de Órfão do Eldorado.
A literatura e o cinema são duas artes de naturezas diferentes, e, por isso
mesmo, possuem desenvolvimento e discursos próprios. Embora apresentem dife-
rentes processos de criação e dimensões, têm uma característica em comum: a arte
de contar histórias, pois ambas operam num mesmo espaço, o da narratividade.
A sequência narrativa no cinema se dá por meio das imagens e na litera-
tura elas são realizadas por palavras. Neste caso, quem cria as imagens é o leitor
da obra. Para Pellegrini (2003, p. 34),
tinha muito medo de fazer um filme de época e que isso resultasse num
57
filme modorrento, então uma das primeiras decisões foi trazê-lo para um
tempo contemporâneo. No entanto, eu não queria cravar uma data certa.
Queria deixá-lo suspenso no tempo, podendo acontecer em qualquer mo-
mento nestes últimos 25 anos. Achei, e acho, que isso ajudaria a deixar o
filme mais aberto a múltiplas leituras – que é o meu principal objetivo hoje
no cinema: fazer filmes cujas narrativas se completem na espectadora, fil-
mes que se construam na alteridade, um cinema que reforce e revele nossas
subjetividades, nossas diferenças4.
4
Entrevista concedida sobre o filme a Caio Pimenta, em 18 de maio de 2016, no site do
Cineset. Disponível em: www.cineset.com.br/entrevista-guilherme=cezar-coelho-dire-
tor-de-orfaos-do-eldorado.
58
Fotografia 1 - Arminto procura a casa de Florita. Tempo: 1h28min28s.
59
Fotografia 3 - Arminto olha o colar da menina. Tempo: 1h29min42s.
60
Para Randal Jonshon (2003, p. 44), “uma obra artística, seja ela ro-
mance, conto, poema, filme, escultura ou pintura, tem de ser julgada em re-
lação aos valores do campo no qual se insere, e não em relação aos valores de
outro campo”, pois possuem características distintas uma das outras. Daí não
poderem passar pelo mesmo tipo de análise, sob o risco de serem mal inter-
pretadas. Além disso, ressalta que a diferença entre a Literatura e o Cinema
não está restrita à diferença entre a linguagem escrita e a imagem visual
( JOHNSON, 2003, p. 42):
61
do cenário, realizou ensaios com os atores para que eles pudessem criar uma
relação de cumplicidade entre eles por meio de exercícios.
Os ensaios foram realizados em diversos espaços: na natureza, no rio,
dentro da casa em que convivem Florita e Arminto e na cidade de Belém, com o
intuito de trazer para a vivência dos atores o sentimento pretendido pelo diretor.
Esta preparação dos atores, afirma o cineasta5, iniciou três meses antes
do início das filmagens. Ele destacou que o ator com quem mais trabalhou
nesta preparação foi Daniel de Oliveira, pois seu personagem aparece em todas
as cenas. Além desta preparação, uma semana antes de iniciarem as filmagens,
a equipe foi para Belém (Pará) e lá tiveram uma preparação com a técnica do
Butô com os atores e toda a equipe de filmagem. Essa técnica é oriunda do
teatro japonês e foi criada para trabalhar os sintomas da guerra.
O cineasta optou por essa técnica porque ela busca a sombra dentro do
ator. Essa forma de atuação ajudaria na construção dos personagens e, conse-
quentemente, na subjetivação e na interioridade dos personagens e espaços que
percebemos no texto fílmico e que trouxeram o aspecto intimista à película.
Considerações
5
Entrevista concedida à Rádio Roquete Pinto, no programa Cinema em Sintonia, em 18 de
dezembro de 2015. Disponível em https://soundcloud.com/pedro-sales-300914350/entre-
vista-guilherme-coelho-a-radio-roquete-pinto.
62
seu texto fílmico observando as possibilidades de transposição entre essas lin-
guagens – literária e a cinematográfica, tendo em vista o sentido que pretendeu
imprimir à sua película: uma história narrada de forma subjetiva pelo persona-
gem Arminto Cordovil.
REFERÊNCIAS
CRISTO, Maria da Luz. Pinheiro de. Introdução. In: Maria da Luz Pinheiro
de Cristo. (Org.). Arquitetura da memória - Ensaios sobre os romances Relato
de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinza do norte de Milton Hatoum. 1ª ed.,
Manaus: EDUA, UNINORTE, 2007.
HATOUM, Milton. Relato de um certo oriente. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1989.
HATOUM, Milton. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
63
HATOUM, Milton. A cidade ilhada. 1 ed. São Paulo: Companhia de Bol-
so, 2014.
64
PELLEGRINI, Tânia. Milton Hatoum e o regionalismo revisitado. Disponível
em: http://cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=1766. 21/09/2006. Acessado
em 15 de dezembro de 2014.
65
A PRESENÇA DA INTERTEXTUALIDADE EM MAD MA-
RIA E OS SUPORTES HISTÓRICOS
Introdução
66
referências aos momentos de embriaguez dos personagens, como na passagem
que envolve o inglês Collier (engenheiro) e o americano Finnegan (médico),
que se embriagaram no melhor e único bordel de Santo Antônio onde havia
índias para servi-los: “As duas mulheres, Finnegan sabe, são índias e prostitu-
tas. Ainda conservam no rosto algumas pinturas [...]” (SOUZA, 2005, p. 351).
Eles haviam aproveitado uma oportunidade para fugir do hospital onde esta-
vam quase de alta e foram se aventurar. Ficaram também dois dias longe do
local de trabalho e deixaram todos preocupados, conforme descreve o excerto
(SOUZA, 2005, p. 362-363):
Pela manhã, uma luz forte entrava pela casa e brilhava nas garrafas de uís-
que. As garrafas estavam completamente vazias. Os homens ainda dor-
miam, estirados no assoalho. Sob o banco está Finnegan, a boca aberta e a
cabeça acomodada sobre os braços que ele colocou em forma de travesseiro.
No canto da sala, Collier ressona em posição quase fetal, encolhido como
uma bola. As índias desapareceram. [...] Finnegan arrasta-se por sobre os
outros homens que dormem e vai colocar-se ao lado de Collier. — Acorda,
Collier! — grita Finnegan, sacudindo o engenheiro. — Já é dia, Collier!
[...] Finnegan sente pontadas em torno dos olhos e um vazio dilacerante
no estômago. — Temos de ir embora, Collier. — Para onde? Estou bem
aqui. — Se sairmos agora, ainda chegaremos no hospital antes do almoço.
— Não me fale de comida. — Temos de voltar ao hospital, Collier. — Para
o inferno com o hospital — gritou o engenheiro finalmente despertando.
— Nós ainda não recebemos alta.
67
Se uma imagem vale por mil palavras, as fotografias de Dana Merril va-
lem muito para a obra de Ferreira, A Ferrovia do Diabo (1981, p. 12). O próprio
autor relata da importância dessas fotografias:
68
Figura 1 – Inauguração de trecho da ferrovia Madeira-Mamoré. Vagão de 1ª. Classe
com bandeira brasileira e norte-americana. Cerca de 1909-1910. Negativo flexível tipo
film-pack, gelatina. 12,40x17,40cm. IC 20193
69
lembrado, e mesmo reproduzido. Não pode, por definição, conter grande
quantidade de informação pormenorizada.
70
(para estruturas de prédios e pontes), fábricas, motores a vapor que iriam,
como as locomotivas, ser movimentados com hulha.
71
esses convidados que estão nos visitando? — Políticos bolivianos — gri-
ta Collier. — Políticos bolivianos — repete “King” John. — Bolivianos!
— Farquhar mal se contém. — Quero dizer, políticos brasileiros. — Exa-
tamente, John, brasileiros. — É a mesma merda — grita Collier. [...] —
Farquhar respirava com dificuldade porque ainda estava muito tenso. Dois
burocratas saíram correndo do prédio da administração e “King” John viu
que eles traziam um embrulho verde. A bandeira norte-americana foi des-
cida e o próprio “King” John içou a bandeira brasileira o mais rapidamente
possível. — Agora está tudo bem-disse triunfante “King” John. Farquhar
olhou para cima e ficou vermelho. — Onde conseguiram esta bandeira?
— Mandamos fazer. — Onde mandaram fazer? — Aqui mesmo, por uma
senhora que costura. . . — Uma senhora americana, estou certo? — Certo!
[...] — É a bandeira brasileira, John. Mas está içada de cabeça para baixo.
E mais, naquela faixa branca, não é “Order and Progress” que deveria estar
escrito. Deveria estar escrito “Ordem e Progresso”.
72
Além de capturar a imagem tal qual é na realidade, a fotografia causou
impacto na vida das pessoas e continuará causando (DONDIS, 2003, p.12-13):
73
p. 362), “Com esta proliferação de imagens, entramos na era da produção do
real. Aquilo que era pressuposto do olhar é agora o seu resultado. Não há mais
distinção entre realidade e artifício, entre experiência e ficção, entre história
e estórias.” A partir das fotografias, Ferreira descobriria um mundo real que
parecia não existir de verdade, já que elas haviam aguçado seu espírito de pes-
quisador. A sigla EFMM vista ao fundo de uma foto pode ser comparada à
situação do pássaro relatada por Dondis (2003, p. 86-87):
74
teve seu conhecimento ampliado por Ferreira e muito da história da estrada
áurea, o autor conseguiu resgatar e publicá-la no livro A Ferrovia do diabo. De
uma sigla, situada no fundo da imagem (figura 2) chegou-se a um livro, ou seja,
informação visual foi além do nível primário.
75
zam. Na figura 3, por exemplo, veremos como Souza acrescentou suspenses a
fatos relacionados aos profissionais da saúde que desempenhavam suas funções
no hospital da Candelária. De acordo com Eco (2002, p. 56), “Em toda obra de
ficção, o texto emite sinais de suspense, quase como se o discurso se tornasse
mais lento ou até parasse [...].” Souza nos faz criar infinitas expectativas, pre-
visíveis e não previsíveis ao recriar um contexto para a fotografia da figura 3,
extrapolando o conteúdo apresentado pelo enunciado visual.
76
imediatamente os que estão de pé. O alfabetismo visual esclarece esse fenôme-
no (DONDIS, 2003, p. 25): “Vemos através de um movimento de cima para
baixo e da esquerda para a direita.” Então, no movimento vertical, o que estiver
situado na parte ínfima será o último a ser visualizado. O indígena caripuna é
o único sentado (ao solo) e encontra-se em posição inferior aos demais, está
descontraído e à vontade (pernas abertas) e com trajes simples e desalinhados.
O indígena é posicionado à parte dos “graduados”. Esse posicionamento pode
ter sido natural ou intencional, porém nos dois casos é possível ver e compre-
ender que o indígena é posto à margem dos demais.
O estudo do alfabetismo visual é importante para enxergarmos os pro-
blemas, às vezes ocultos, nas imagens. Sobre essa relação de ocultar e expor,
Dondis afirma: “A visão é natural, criar e compreender mensagens visuais é
natural até certo ponto, mas a eficácia, em ambos os níveis, só pode ser alcan-
çada através do estudo. Na busca do alfabetismo visual, um problema deve ser
claramente identificado [...]” (DONDIS, 2003, p. 16). É nítido identificar o
problema da repulsão do indígena em relação ao grupo. Márcio Souza fez
referência a esse problema na narrativa de Mad Maria. Na referida imagem,
o indígena está dividindo o espaço com a equipe médica. O que um indígena
estaria fazendo junto aos médicos e enfermeiras aguçou a imaginação de Sou-
za que formulou a explicação ficcional para esse fato extraordinário. É possível
afirmar que esta fotografia serviu de hipotexto para o escritor (GENETTE,
2010, p. 53): “[...] o hipotexto não passa de um pretexto: o ponto de partida
de uma extrapolação disfarçada de interpolação.” Souza extrapolou ao contar
o porquê do indígena está pousando com médicos e enfermeiras na fotografia.
Reconstruiu a realidade ultrapassando as fronteiras da utopia.
Em Mad Maria, após ser pego em flagrante, ao praticar pequenos
furtos, o índio caripuna teve suas mãos amputadas pelos trabalhadores, os
quais estavam com o objetivo de espancar-lhe até a morte. O índio foi salvo
pelo engenheiro-chefe Collier e sua guarda. O médico Finnegan tratou de
seus ferimentos e o batizou de Joe, o caripuna. Após se recuperar e sem ter
para onde ir, já que sua família fora toda exterminada, Joe ficou prestando
serviços à enfermaria onde ganhou a confiança de todos, principalmente de
77
Consuelo, boliviana que havia sido resgatada de um naufrágio e que, por
coincidência, não tinha para onde ir, pois perdera seu noivo em uma das
cachoeiras. Ela também ficou prestando serviços à enfermaria e cultivou
grande estima por Joe. Os sentimentos eram recíprocos, conforme descreve
a passagem (SOUZA, 2005, p. 174):
Na ficção, o índio ganhara uma protetora. Através dela, incluía-se cada vez
mais entre a equipe médica. Para fazer parte da equipe médica, o indígena deveria
ter um diferencial. Souza (2005, p. 213-214) acrescentou-lhe o diferencial:
78
Devido à sua capacidade de aprender, o indígena, de paciente, passa
a assistente da enfermaria. Na fotografia, ele diverge dos demais por estar à
vontade e descontraído. Na ficção, também apresenta atitude contrária ao am-
biente que é sombrio. Ele chama a atenção por seu espírito de entretenimento
(SOUZA, 2005, p. 348):
79
do indígena na narrativa é quando ele se torna celebridade, pois aprendera a
tocar piano com Consuelo, que foi sua professora. Como não tinha as mãos,
tocava com os pés. Indígena tocar piano é por si só um fato inédito, quanto
mais com os pés. Souza envolveu o indígena no mundo da ficção. Sobre ficção,
afirma Candido (2010, p. 187):
80
Souza consegue retratar, inversamente, a situação de rejeição, conforme
análise a partir da teoria do alfabetismo visual, estampada na fotografia (figura
3). Diferente da impressão passada na fotografia, o indígena, na ficção, ganha
adeptos e defensores, inclusive entre os graduados. Como não pretendia arcar
com prejuízos e contrariando a igreja positivista, Farquar não desistiu do show
inusitado de Joe que foi atração no exterior, foi aplaudido, até o dia de sua
morte (SOUZA, 2005, p. 454-455):
81
As aventuras e desventuras vividas por Joe na narrativa são frutos da
transcendência textual definida por Genette (2010). O enredo envolvendo o
índio caripuna mantém relação com a imagem da figura 3, relacionam-se entre
si, porém o indígena não é excluído do grupo de graduados. Souza o faz convi-
ver entre os brancos e diplomados e cria uma situação para que o indígena seja
idolatrado, venerado por muitos. Segundo Samoyault (2008, p. 19), “O texto
aparece então como o lugar de uma troca entre pedaços de enunciados que
ele redistribui ou permuta, construindo um texto novo a partir de textos ante-
riores”. Souza reconstruiu a situação do indígena e graduados (figura 3), per-
mutando o foco de atenção. Na imagem, a equipe médica está posicionada ao
centro, enquanto o indígena encontra-se ao solo, à parte do grupo. Na ficção,
este torna-se o centro das atenções, chegando a ser idolatrado. Ainda segundo
Samoyault (2008, p. 67), “A intertextualidade permite uma reflexão sobre o
texto, colocado assim numa dupla perspectiva: relacional (intercâmbios entre
textos) e transformacional (modificação recíproca dos textos que se encontram
nesta relação de troca).” A partir da modificação de foco do indígena entre a
fotografia de Merrill e a narrativa ficcional, Souza nos leva a refletir sobre o
status do indígena na sociedade.
82
A urbanização que se acelera nos séculos XIX e XX impõe o tema da cidade.
Este vai ser trabalhado em diferentes níveis no romance. Substitui lugares
tradicionais (castelo, cortes, caminhos...) por um lugar que concentra tra-
jetos espaciais e sociais antes divididos (dos bairros elegantes aos bairros
pobres), simboliza de fato a mobilidade social e a aventura individual. [...]
Os progressos técnicos impõem-se progressivamente nos transportes. Deste
ponto de vista, é toda uma visão do espaço e do tempo que se modifica. O
encurtamento dos deslocamentos significa uma redução do tempo das via-
gens (e de certas separações ou fugas) e um aumento do espaço disponível
conhecido.
Todo o pessoal da construção sofria mais ou menos dos ataques das do-
enças, que se apresentavam com os mais diversos sintomas. Muitos apre-
sentavam sinais de alienação mental. A doença do irlandês Manning, por
exemplo, foi assim descrita por um engenheiro: “Durante o dia ele passava
muito bem, mas, logo que a noite caía, seu estado agravava. Imaginava, en-
tão, que toda a expedição tinha abandonado Santo Antônio de regresso aos
Estados Unidos. Certa vez, passou a mão numa espingarda e fez menção
de dispará-la a esmo pelo acampamento, repetindo sempre: ‘Os demônios
estão me perseguindo. Já os expulsei uma vez, mas eles vêm de novo, em
83
bando, me lamber’. Depois disso tinha-se o cuidado de não deixar nenhuma
arma de fogo ao seu alcance; contudo, no dia seguinte, pedíamos a todos da
turma que não lhe revelassem as alucinações.
84
armas de fogo; na ficção, prendem-se os doentes às redes. Souza deu sequência
ao problema causado pelos transtornos mentais. Segundo Genette (2010, p.
58), “A sequência difere da continuação, pois não continua uma obra visando
levá-la a termo, mas ao contrário, para lançá-la além do que inicialmente era
considerado seu fim.” Essa sequência alterou a gravidade da situação. O ní-
vel de tensão para o problema da insanidade é amenizado na ficção, já que as
armas de fogo foram substituídas por redes e a causa da insanidade de alguns
trabalhadores é atribuída à malária. Farquar também fora tachado insano na
ficção (SOUZA, 2005, p. 93-94):
— Pois é, antes de nós já estiveram outros malucos tentando abrir uma fer-
rovia por aqui. — Ingleses? — Americanos. O Coronel Church andou por
aqui por volta de 1870. Você ainda nem tinha nascido, rapaz, e ele já estava
85
aqui com os homens dele e com a ideia maluca de fazer uma ferrovia. —
Ideia maluca? — Maluca, é claro! Collier baixou a lanterna e não disse mais
nada. Largou os galhos e folhas, escondendo novamente a locomotiva em
seu túmulo de lama e capim. Caminhou até a beira do barranco, balançando
a lanterna e abandonando Finnegan na escuridão. Pensava em certa noite e
este pensamento lhe reafirmava que tudo aquilo não passava de maluquice.
Era inverno em Richmond, Virginia, no ano de 1909, ele julgava-se apo-
sentado e perguntava a Farquhar porque diabo tinham resolvido construir
uma estrada de ferro que saía do nada e levava a parte alguma [grifo nosso].
86
Figura 4 – Vista parcial da varanda de residência em Porto Velho (Rondônia). Cerca
de 1909-1910. Negativo flexível tipo film-pack, gelatina. 12,50x17,30cm. IC 20260
Porém, o que para uns pode parecer disparidade, para outros pode ser
o início do progresso, mesmo sendo imposto. Na ficção, o piano é responsável,
principalmente, pelo desencadeamento de ações entre Joe e Consuelo. O piano
une cada vez mais esses dois personagens no desenrolar do enredo. Vejamos a
passagem desse instrumento musical também em A Ferrovia do Diabo (FER-
REIRA, 1981, p. 115):
87
grande importância para o país. Na ficção, Souza relata uma importância para
a cidade: “Sucre tinha sido declarada capital e o povo lutava para fazer valer
este direito” (SOUZA, 2005, p. 81). Na narrativa, o piano deveria desembarcar
em Guajará-Mirim, porém fora despedaçado durante o naufrágio. Vejamos a
passagem em que Consuelo se apresentava em Sucre (SOUZA, 2005, p. 80):
A literatura se escreve com a lembrança daquilo que é, daquilo que foi. Ela
a exprime, movimentando sua memória e inscrevendo nos textos por meio
de um certo número de procedimentos de retomadas, de lembranças e de
reescrituras, cujo trabalho faz aparecer o intertexto.
88
O conhecimento do mundo real serviu como pano de fundo para que
Souza fizesse a releitura e a reescrita do piano transportando-o assim para a
ficção. Quanto ao mundo da ficção, afirma Eco (2002, p. 91): “[...] na medida
em que acrescenta indivíduos, atributos e acontecimentos ao conjunto do uni-
verso real (que lhe serve de pano de fundo), podemos considerá-lo maior que
o mundo de nossa experiência.” Souza explorou o caso do piano, tornando-o
presente no decorrer da narrativa, sendo despedaçado no naufrágio, depois há
lembranças de Consuelo se apresentando em um concerto na Bolívia. Em se-
guida o cenário muda para o interior da Amazônia brasileira onde a jovem
aproveita a destreza e habilidade do indígena caripuna para ensinar-lhe a tocar
piano. Juntos, os dois fazem apresentações nacional e internacional. Esses são
os “panos de fundo” acrescidos ao piano na ficção.
Na história da ferrovia, os índios exerciam o papel de guias dos navega-
dores já que conheciam muito bem os trechos encachoeirados. Vejamos o que
relata Ferreira (1981, p. 20-21):
89
auxiliando-os inclusive nas penosas travessias. Eram frequentes os nau-
frágios, com perdas de vidas e de cargas [grifo nosso].
90
para entender o segundo, haja vista que o segundo é uma ficção e independe
do mundo exterior. Para reconhecer a alusão é necessário que o leitor tenha
memória para recuperar o texto aludido.
Em Mad Maria, o indígena Joe praticava pequenos furtos. Entrava nas
tendas dos trabalhadores enquanto estes estavam ausentes. Como tinha a des-
treza de aparecer sem ser visto, os alemães culpavam os barbadianos pelos su-
miços de pequenos objetos, fato que acarretou uma rixa entre esses dois grupos
(SOUZA, 2005, p. 35-37):
91
tombando na lama esguichando um jato de sangue vermelho-escuro. [...]
Alguns homens arrastam o corpo decapitado e procuram pela cabeça que
desapareceu na lama. Outros partiram para os barbadianos e engalfinha-
ram-se, gerando um tumulto.
92
Estão imundos, enlameados, alguns com cortes e feridas sangrando. — Re-
colham os mortos — ordena Collier aos guardas.
93
minados como roupas e lençóis. Os índios levaram consigo a doença que foi
motivo de muitas mortes.
Em Mad Maria, os alemães e barbadianos (negros e brancos) viram-se
encurralados pelas armas de fogos da guarda de Collier. Em A Ferrovia do
Diabo, os indígenas sofreram com a contaminação da doença pelos brancos.
O alvoroço dos trabalhadores por serem vítimas de furtos/roubos e as conse-
quências desastrosas estão presentes nas duas obras. Conforme pontua Sa-
moyault (2008, p. 9-10), “A retomada de um texto existente pode ser aleatória
ou consentida, vaga lembrança, homenagem explícita ou ainda submissão a um
modelo, subversão do cânon ou inspiração voluntária”. A relação entre índios
e trabalhadores na ficção submeteu-se à estrutura/modelo do relato histórico:
delito + revolta + punição. Tal estrutura pode ser considerada uma pastiche.
Segundo Samoyault (2008, p. 57) “O autor de pastiche interpreta como uma
estrutura fatos redundantes do modelo e [...] graças ao artifício de um novo
referente, reconstrói esta estrutura mais ou menos fielmente, segundo o efeito
que quer produzir para o leitor.” Na ficção, Joe não faz uso de arco e flecha e
nem de nenhum tipo de armamento, reproduzindo ao leitor a imagem menos
selvagem do indígena.
Dessa forma, a intertextualidade entre as duas obras remete à ideia de
que “[...] um texto não existe sozinho, é carregado de palavras e pensamen-
tos mais ou menos conscientemente roubados, sentem-se as influências que
o subtendem, parece sempre possível nele descobrir-se um subtexto” (SA-
MOYAULT, 2008, p. 42). Diante disso, tornam-se evidentes os pontos de
identificação entre A Ferrovia do Diabo e Mad Maria, por meio de elementos
que estabelecem esse diálogo intertextual entre as duas obras.
Considerações
94
cenação desse evento. Considerando tal premissa, a análise do romance Mad
Maria, realizada por este estudo, buscou destacar possíveis pontos de inter-
textualidade entre a narrativa ficcional, os registros históricos de Ferreira em
A ferrovia do diabo e os registros fotográficos de Dana Merrill, como uma
singularidade da sua composição.
O breve trajeto da retomada histórica desse acontecimento na região
Norte do Brasil abriu caminhos para a compreensão do que representou em
termos econômicos e sociais a ideia visionária de um megaempreendimento
em meio à densa floresta amazônica. A presença de elementos históricos no
romance ganha visibilidade por meio do aporte teórico elaborado por Genette
na perspectiva da intertextualidade. O princípio da presença efetiva de um tex-
to em outro instaura-se a partir dos pontos de contato entre elementos consti-
tutivos das duas narrativas e as imagens, concebidas como registros históricos
captadas pela câmera fotográfica de Dana Merrill. Observou-se que a história
iconográfica, em alguns pontos, é mais amena ao sofrimento dos trabalhadores.
Um exemplo é a fotografia da enfermaria, onde quase não havia doentes. Sou-
za, como escritor e romancista, desenvolveu o romance histórico incrementan-
do fatos novos ou invertendo fatos históricos. Ele ultrapassa as barreiras histó-
ricas e faz deslumbrarmos o mundo ficcional envolvendo a estrada de ferro. É
mais nítida essa criação literária ora comparando o romance com as fotografias
de Merrill, ora comparando-o com o livro A ferrovia do diabo.
Se não fossem as pesquisas históricas realizadas por Ferreira, muito so-
bre a construção da estrada de ferro teria se perdido no tempo e não passaria de
lendas. Tudo estaria propício a cair no esquecimento e o estado de Rondônia
também correria o risco de ficar sem a sua história de origem. Dana Merrill
também contribuiu com a iconografia da construção. Somente após o contato
com os negativos de Dana Merrill, Ferreira reconstruiu o cenário estampado
nas imagens. Sua obra A ferrovia do diabo foi e ainda é motivo de inspiração
para que outros pesquisadores também ingressassem neste universo inimagi-
nável, ora como passageiro, atento a cada passagem histórica, ora como cien-
tista, com o olhar ofuscante à procura de uma lacuna a ser preenchida. Souza,
a partir da obra Mad Maria, despertou em seus leitores e até telespectadores
95
(em relação à Minissérie Mad Maria) o olhar curioso e investigativo sobre a
Amazônia, principalmente para a real história da Estrada de Ferro Madeira
Mamoré (EFMM).
Com a construção da ferrovia, foi possível dar início a colonização e
exploração da inabitada floresta amazônica. A estrada de ferro Madeira Ma-
moré pode ser considerada o marco inicial de integração da região norte ao
restante do país. Ela pode ser considerada o início do transporte ferroviário. E
seu fim, não significou o fim de meio de transporte e integração da Amazônia
ao restante do Brasil, pelo contrário, seu fim deu início a um novo projeto:
revitalização da estrada transamazônica que interligaria essa região às demais
regiões, bem como deu origem às primeiras cidades de Rondônia, constituindo
em uma região que foi explorada e que continua em fase de desenvolvimento.
A Amazônia existe, tem história e faz história. Livros, fotografias, reportagens,
romances, em todo o tipo de mídia ela está presente, resgatando as suas origens.
A composição estética da configuração espacial criada pelo romance
dialoga com as imagens que atraem o olhar para as catástrofes provocadas pe-
las forças da natureza e para presença de personagens comuns aos dois supor-
tes. Tais elementos configuram-se em conexões intertextuais entre o romance,
os registros históricos e as fotografias, revelando, assim, os diferentes olhares
que Márcio Souza, Ferreira e Dana Merrill projetaram para o mesmo evento
histórico. Dessa forma, a opção por essa via não se esgotou nesta abordagem,
pelo contrário, pode suscitar outras possibilidades de leitura e investigação.
REFERÊNCIAS
96
CATÁLOGO da exposição Ferrovia Madeira-Mamoré: trilhos e sonhos –
Fotografias BNDES E Museu Paulista da USP. Cortesia: Carlos E. Campanhã.
Disponível em <http://vfco.brazilia.jor.br/ferrovias/efmm/Dana-Merrill-Mu-
seu-USP-foto-051.shtml> Acesso em 21.03.2018
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução: Hildegard Feist.
6. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens: Uma história de amor e ódio. São Pau-
lo: Companhia das Letras, 2001.
97
MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política. Livro I: o processo de
produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
98
SOUZA, Márcio. Mad Maria. 4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.
99
O CARÁTER IMAGINOSO COMO ELEMENTO COMPO-
SICIONAL DA OBRA A HISTÓRIA DAS CRIANÇAS QUE
PLANTARAM UM RIO
Introdução
1
Monteiro Lobato; Ziraldo Alves Pinto; Maurício de Souza entre outros.
2
O termo imaginoso utilizado neste trabalho advém dos estudos de Jesualdo (1993).
100
empregam artifícios da narrativa imaginosa para introduzirem seres encanta-
dos e sobrenaturais, tal como acontece em nosso objeto de análise.
Para subsidiar a pesquisa, usamos teóricos de diferentes linhas de estudos,
mas que convergem e contribuem significativamente para a pesquisa, tendo em
vista que trazem conceitos que auxiliam a atingir o objetivo proposto. Como
aporte teórico para elaboração desta pesquisa utilizamos as contribuições dos se-
guintes teóricos: Jesualdo (1993); Tocantins (1973); Loureiro (2015). A pesquisa
é de cunho bibliográfico, baseado na técnica de análise crítica.
A obra A história das crianças que plantaram um rio, objeto de nossa aná-
lise, foi escrita por Daniel da Rocha Leite, considerado um dos autores con-
temporâneos do Pará que mais tem acumulado premiações em concursos lite-
rários. Com seus livros de literatura infantojuvenil, crônicas, contos e romance,
o escritor conquista muitos jovens leitores.
Leite nasceu no Rio de Janeiro, mas ainda criança se mudou para Be-
lém, onde cresceu e escreveu suas obras. Daniel é graduado em letras/Alemão,
e pós-graduado em Análise Literária. É formado também em direito, e escritor
de livros de múltiplos gêneros, como poesias, crônicas, contos e romance.
Suas principais obras são: Casa de farinha e outros mundos (2007); Pro-
cura-se um inventor (2010); Menino astronauta (2011); A história das crian-
ças que plantaram um rio (2013); Natais de um norte (2013); A menina árvore
(2014); Vindos do mar (2015); Burburinho (2018), Esparadrapo (2020), Águas
Imaginárias (2004); Invisibilidades (2007); Girândolas (2009); Ave Eva (2011);
Elas (2010) e a Coletânea do Prêmio SESC-DF (2007).
Daniel da Rocha Leite possuí um número significativo de produções
(cerca de 17 obras publicadas), e, em curto período, alcançou consideráveis
premiações nacionais, tais como: Prêmio IAP nos anos de 2004, 2007 e 2014;
Prêmio Sesc-DF Carlos Drummond de Andrade em 2007; Prêmio Mac-
-Dowell da Academia Paraense de Letras em 2007 e 2010, e o prêmio Dalcí-
dio Jurandir, em 2010.
101
O contexto amazônico é um traço recorrente que marca boa parte das
obras literárias produzidas pelo autor, principalmente as águas dos rios e seus
elementos míticos. Daniel da Rocha Leite tem uma escrita marcada por uma
linguagem poética que encanta e desperta a imaginação, a partir de elementos
que expressam poeticamente a intensa relação do homem da Amazônia com
os rios. Sobre a escrita de Daniel Leite, Martins (2016, p. 79) afirma:
102
lirismo, que complementam de forma única a história e seus encantos. Há uma
interação sinergética entre Daniel e Maciste, tal como afirma Leite (2017):
Costumo dizer que ele pinta poemas e escreve aquarelas [...] Penso que as
ilustrações são, também, partes vitais de um livro para criança. Ilustrador
iluminado é o Maciste. Ele conta a história junto comigo, há uma poética
nas aquarelas que ele sonha.
103
o estranhamento causado pela ação de plantar um rio, levando o leitor a um
imaginário poético, repleto de suposições e imaginação.
A obra de Leite é uma prosa leve que mais parece um poema. É uma
história que tem sua nascente na imaginação do personagem menino, e seus
afluentes conduzem seus navegadores a um universo imaginado e imaginário,
no qual é possível desbravar novos rios, e conhecer suas correntezas de encan-
tos e desencantos.
Nessa obra, Leite traz uma linguagem acessível a todos os tipos de lei-
tores, capaz de alimentar sonhos e instigar a imaginação, sem se preocupar em
trazer um cunho moral, pedagógico ou didático. Ele simplesmente trata o tema
com leveza, poesia e alma, levando seus leitores a expandirem seus horizontes.
A obra é narrada em primeira pessoa, por um personagem que na fase
adulta, resgata e relata fatos de sua infância. Ao fazer isso, retrata, com precisão,
momentos cotidianos de sua meninice, vividos às margens do rio. Na retomada
ao passado, o narrador relembra a história contada por sua avó, que lhe trans-
mitiu, através de palavras, uma imensidão de sentimentos e conhecimentos.
Por meio de uma linguagem poética, o narrador apresenta ao leitor me-
mórias, cultura, sonhos e sensações do espaço amazônico, em especial o rio. Ele
utiliza-se também de metáforas, para que o teor ecológico se dilua em meio à
poeticidade, haja visto que manter o rio vivo é manter a cultura, as histórias, os
saberes. É manter a vida.
O enredo da obra é constituído por dois planos narrativos: O primeiro
é composto por digressões e memórias que conduzem o leitor à história tema.
Esse plano revela fluxos de pensamentos e desenha o pano de fundo da segun-
da planificação, ou seja, é o plano responsável por contar a história das crianças
que plantaram um rio.
Mateus Maia (2013) traz na última página do livro A história das crianças
que plantaram um rio, um comentário que elucida bem a proposta enunciativa da
obra “Um livro para se ler como quem ouve uma história, daquelas encantadas
que só as avós sabem contar. Um livro para acender a imaginação. Uma narrativa
candeeiro para iluminar gente de todas as idades” (MAIA, 2013, p. apud LEITE,
2013, p.). As histórias que compõem a tessitura narrativa deixam suas marcas na
104
estrutura espacial da obra, por meio de aspectos que dão singularidade à infância
em meio às águas.
Nessa obra, assim como em outras de suas literaturas infantojuvenis,
Leite trabalha de forma muito assertiva a questão da linguagem. Ele brinca
com as palavras e as dá vida, elas se instauram na narrativa e se completam no
imaginário do leitor. Ao longo de toda a narrativa, a linguagem poética se faz
presente e, junto às imagens simbólicas, criam o efeito estético da obra. No
enredo, as palavras são representativas e possuem o poder mágico de criar, até
mesmo os espaços da narrativa e da narração.
A intencionalidade poética da obra se apresenta nos jogos de lingua-
gens, na estrutura do texto e nas ilustrações. Todos os elementos contribuem
para criar sua linguagem poética, porém a água se destaca sobre as demais, ela
é a responsável por tornar essa obra tão lírica. A água é o fio que conduz toda
a narrativa, uma vez que os recursos poéticos se interligam a ela.
A poeticidade da água permite que os leitores divaguem com o narra-
dor, que desenvolvam sua imaginação e sonhem sem limites, afinal, longe de
restringir, a poesia abre caminhos e permite devaneios. Nessa obra é construída
ainda uma tessitura cujos fios se entrelaçam perfeitamente e dão forma a um
enredo compacto, repleto de “nuances” e simbologias provenientes dessa inte-
ração híbrida entre as categorias narrativas.
Na obra analisada, as ilustrações dão ao leitor elementos que aguçam
sua imaginação, pois sugerem interpretações que enriquecem o enunciado ver-
bal. Em sua completude, são as imagens que em alguns momentos nos contam
outras histórias e nos levam a outros espaços e tempos. O dinamismo visual
contribui grandemente para ambientar o leitor, pois auxilia na condução do
leitor pela narrativa, trazendo assim ainda mais lirismo à obra.
Esclarecemos que as ilustrações contidas na obra assumem funções distin-
tas. Sendo assim, em alguns momentos elas complementam o texto escrito, em
outras, ampliam a narrativa e permitem que os leitores visualizem além do que está
escrito. Também há imagens que se diferem do texto apresentado em conjunto,
sugerindo ao leitor outras possibilidades de leituras. A ilustração em alguns mo-
105
mentos da obra se impõe e age de forma independente do texto escrito, sendo este
um fator que dinamiza à obra e redimensiona a experiência de leitura.
Houve uma noite, meu filho, que levaram o rio embora. Ficou só a cama dele
aqui, no meio do mundo da nossa terra. Um lugar vazio. Abandono que se
ouvia longe, eco solidão. Vento que tinha arame farpado por dentro. Do rio
daqui da nossa terra só deixaram a sobra dele. A sombra do rio ficou lá, dentro
do fundo da terra, esquecida e seca sombra, chão rachado de uma vida.
É possível ver nesse trecho o quão triste foi o sumiço do rio, levado
sem permissão ou consideração com os que dele dependiam. O rio significa
muito para o ribeirinho, há entre eles uma relação de cumplicidade e respeito,
por isso, o desaparecimento inexplicado e inusitado do rio traz muita dor e
sofrimento aos ribeirinhos. Não há na história uma explicação racional que
106
faça o leitor entender como um rio tão caudaloso e imponente pode ser levado
embora, quem o levou? De que maneira?
Há na obra a transmissão da tradição oral, a personagem avó era quem
contava as histórias, ela por meio dessas narrativas imaginosas estimulava a
imaginação de seu neto que, ao ouvir as histórias, se inseria em outro universo
cheio de vida e sonhos. De acordo com Barbosa (1999, p. 22):
Na tarde de uma noite, nas margens do vazio do rio, não se sabe de onde,
apareceram umas crianças. A noite já ia alta, toda gente já estava dormindo.
Era criança de todo o lugar da terra. Elas vieram. Olharam para o céu e
cantaram uma canção.
107
lugares da terra, e reunidas, começam a cantar como num ritual, semelhante à
dança da chuva, realizada pelos nativos. Esse acontecimento dá origem a outro
fato imaginoso, que também é narrado naturalmente, como veremos a seguir
(LEITE, 2013, p. 59):
Lá, bem longe, um trovão tremeu o telhado do céu. Das nuvens noturnas,
daquelas que a gente pouco vê, começou a cair uma chuva bem fraquinha,
uma chuva fininha, chuva magrela, que parecia não ter força bastante para
cair aqui, na nossa terra. Relâmpagos em silêncio acenderam a escuridão da
noite. As crianças, todas juntas, abriram as mãos. A chuva, enfim, veio viva.
Chuva caindo, chuva prateada de estrelas, caindo dentro da palma da mão
daqueles meninos e meninas de todo o mundo.
Dia ainda noite quando as crianças guardaram a chuva dentro das suas mãos.
O sol estava nascendo quando elas foram até o lugar onde ficava a sobra do
rio. Chegando lá meu filho, as crianças que tinham a chuva em suas mãos
fizeram dela semente e lançaram as suas águas no chão da sobra do rio.
Aqueles meninos e meninas, meu filho, plantaram um novo rio, sonharam um
novo mundo, semearam uma nova história. Chuva semente, meu filho. Mãos
de todas as crianças do mundo. Um rio que foi plantado sonho de vida.
Quando o dia nasceu, meu filho, o rio estava aqui de volta, vizinho da gente,
respirando lá fora, perto da nossa casa, junto da gente. O nosso velho rio
novo. Vivo correndo as suas palavras e silêncios. O nosso rio, meu filho, as
nossas histórias.
Esse trecho demonstra que esses seres não são crianças comuns,
e sim, criaturas mágicas e encantadas. Elas assumem a posição de he-
108
róis, e possuem a missão de devolver os sonhos de vida. Essas crianças
reconhecem a importância do rio para os ribeirinhos, ao trazer o rio
novamente. Deste modo eles devolvem aos ribeirinhos seu mundo, suas
histórias e sua vida.
Um fator que auxilia na aceitação dos acontecimentos imaginosos sem
espanto, e com total naturalidade pelos personagens é o imaginário amazônico,
que possibilita a criação de um ambiente propício à crença nos milagres. Os
personagens compartilham de um “imaginário comunitário que nunca deixou
de criar suas próprias explicações do mundo” (RODRIGUES, 1988, p. 32).
O ribeirinho vê a Amazônia como um espaço possível para o sobre-
natural, permitindo que os acontecimentos imaginosos tenham adesão. Esse
ambiente possibilita a formulação de narrativas que evocam manifestações
sobrenaturais, que transcendam os limites entre o real e o imaginário. Fares
(2013), diz que a água influencia o imaginário do nativo amazônico, e revela o
caráter imaginoso da cultura ribeirinha.
Em nenhum momento o personagem que ouve a história, duvida que
ela tenha de fato ocorrido, ou presuma ter sido algum delírio, ou fantasia de sua
avó. Não há medo, estranhamento, hesitação ou dúvida quanto à veracidade da
aparição dos fenômenos sobrenaturais, ao contrário disso, ele não duvida e não se
desconcerta diante dos acontecimentos imaginosos, não vacila diante da história
contada por sua avó, e não busca explicações racionais. Isso se deve ao contexto
vivenciado pelo personagem, pois de acordo com Zilberman (1994, p. 22):
A literatura sintetiza, por meio dos recursos da ficção, uma realidade, que
tem amplos pontos de contato com o que o leitor vive cotidianamente. As-
sim, por mais exacerbada que seja a fantasia do escritor ou mais distanciadas
e diferentes as circunstâncias de espaço e tempo dentro das quais uma obra
é concebida, o sintoma de sua sobrevivência é o fato de que ela continua a se
comunicar com o destinatário atual, porque ainda fala de seu mundo, com
suas dificuldades e soluções, ajudando- o, pois, a conhecê-lo melhor.
109
leitor a um mundo em que as coisas extraordinárias são possíveis, de maneira
que até o evento mais imaginoso se torna verossímil.
O imaginoso da obra é retratado principalmente sob a perspectiva do
menino e da avó, isso possivelmente se dá, pois é nessas fases da vida que o
devaneio e a imaginação são mais frequentes. Ao usar esses personagens, o
narrador tem mais possibilidades de explorar o imaginoso, e principalmente de
conferir ao rio essa poeticidade. Segundo Frantz (2011, p.122):
110
estatizantes com o real da Amazônia que há um maravilhamento do homem,
o que é próprio de quem está diante de algo que é imenso e diante do qual a
pequenez do homem se evidencia”.
Compartilhando dessa ideia, Costa afirma que, “diante dessa grandeza,
beleza e imponência das águas amazônicas que todos, de crianças a velhos, es-
tabelecem sua identidade com aquele mundo, e fazem dele parte de si” (COS-
TA, 2017, p. 11). Ocorre, então, um processo de apropriação influenciada pelo
espaço amazônico.
Loureiro complementa esse princípio ressaltando que, “A identificação
com a paisagem propicia uma natural aderência física e moral à terra. Conse-
quentemente, a paisagem complementa a personalidade atendendo às íntimas
necessidades do indivíduo” (LOUREIRO, 2015, p. 148).
A água leva o personagem menino a sonhar, pois ela é poética e permite
que o menino tenha devaneios. Ela suscita no narrador-personagem inquieta-
ções e reflexões, com seu silêncio torna-se misteriosa, esse desconhecido per-
mite que seja criado a seu respeito suposições. O personagem encontra em si
referências para a água, comparando-a a um menino cheio de sonhos, criando
nas águas a imagem de si.
A água ganha vida no menino, ele a molda conforme sua percepção de
mundo. A água reflete sua figura, assim como o menino também reflete o rio,
“Aprendi que quando alguém aprende a ouvir o rio, passa a ser um rio também.
Uma outra gente, pessoa de rio, vida viva, indo e vindo, pedras e portos, ma-
rés, vazantes e enchentes, correntes de águas e sonhos mundo afora” (LEITE,
2013, p. 57). Ocorre um hibridismo entre menino e rio, de modo que, o per-
sonagem dá vida ao rio, e o rio dá vida ao personagem.
O rio na obra é um lugar simbólico, catalisador de novos significados.
É possível perceber que todos os acontecimentos são relacionados a ele, o rio
influencia e sofre a influência dos personagens. Sobre essa relação intrínseca do
homem com o rio Leandro Tocantins (2001, p. 278) afirma que:
111
amazônicos, onde a vida chega a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio, e
a água uma espécie de fiador dos destinos humanos. Veias do sangue da
planície, caminho natural dos descobridores, farnel do pobre e do rico, de-
terminante das temperaturas e dos fenômenos atmosféricos, amados, odia-
dos, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do progresso, pois
sem ele o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis
fabulosos tornaram possível a conquista da terra e asseguraram a presença
humana, embelezaram a paisagem, fazem girar a civilização — comandam
a vida no anfiteatro amazônico.
A água não pode ser dissociada de tudo que a compõe, pois junto a ela
há muitos outros elementos que a cercam, tais como as casas, o barco, a paisa-
gem e principalmente o homem. Por isso, o rio, assim como os outros elemen-
tos, só ganha plena significação quando associados, pois eles se complementam
e juntos formam esse cenário poético.
O homem ribeirinho e o espaço dialogam, há uma constante troca de
saberes, isso é evidenciado em vários momentos da obra. Porém esse diálogo
não acontece por meio das palavras, mas sim por meio do silêncio, assim como
no trecho a seguir (LEITE, 2013, p. 40):
No final de uma tarde, a minha avó quis me ensinar a conversar com o rio.
Estávamos ali, sentados lado a lado, na beira do trapiche, vendo o rio passar.
Bem baixinho, com aqueles seus olhos de vó, ela me disse, quase em um
sussurro, que o rio queria conversar com a gente. Consegues ouvir o rio meu
filho? Eu olhei nos olhos dela. A minha avó, bem velhinha, pequenininha e
magra, parecia um peixe saído do rio quando ela passava me contar as suas
histórias. A minha avó e os seus olhinhos miúdos. As marcas da vida em
seu rosto eram escamas do tempo que tentavam esconder a luz dos seus
olhos negros. Quando ela começava a me contar uma história, muitas vezes
eu nem sabia que era uma história. Era uma pergunta, era um silêncio, era
uma palavra, era um olhar de vó, a luz do mundo de uma das suas histórias.
Sem eu nem saber, sequer desconfiar, a história já estava acontecendo. —
Consegues ouvir o rio meu filho? — a vó queria saber. E ela olhava em
meus olhos. E sorria aquele sorriso em silêncio. Eu, ali, menino, começava a
112
perceber que já estava dentro de mais uma história. E no olhar da minha avó
estava lá aquela luz. O rio, meu filho. Consegues ouvir a voz dele? Eu olhava
para o rio passando, ali, na nossa frente. Ouve, meu filho. Ouve o silêncio do
rio, a voz dele. Ouvir o rio, os seus silêncios, as suas palavras. Assim a minha
avó me ensinou a viver uma história. Tudo do rio é silêncio, meu filho. O rio
conta as histórias dele pra gente, por onde ele andou, as suas lutas e esperan-
ças, os seus encontros, as suas tristezas e felicidades, o seu mundo — mundo
de rio. A minha avó. Os seus olhos acesos em suas palavras. As histórias de
nós dois e um rio. Uma história da gente.
Considerações
113
das transmitem ao leitor elementos simbólicos de um espaço marcado pela
predominância das águas, uma singularidade que possibilita a apreensão da
poética existente na Amazônia.
Os episódios imaginosos que ocorrem na narrativa dão à citada obra de
Leite a possibilidade de uma leitura dentro do caráter imaginoso. Isto ocorre
pois há na narrativa um encantamento aplicável a uma realidade própria, de
modo que os acontecimentos que inicialmente pareciam irreais naturalizam-se
no texto, legitimando o imaginoso como parte integrante de uma realidade.
A narrativa, embora apresente acontecimentos imaginosos integrados
à realidade em um tom poético e instalem um sentido de verossímil ao in-
verossímil, não deixa de inquietar o leitor e gerar reflexões profundas sobre
a valorização do meio ambiente e dos recursos naturais presentes na floresta.
Mediante a análise da obra, constatamos também ser possível abordar
diferentes temáticas, conduzindo o leitor a inúmeras reflexões. Por esse moti-
vo, reafirmamos a pluralidade de saberes que constituem esse enredo, há nos
elementos que compõem a estrutura narrativa (tempo, espaço, personagem,
narrador) inúmeras possibilidades de estudos, tais como: o imaginário; a orali-
dade; a cultura; a memória; a imageticidade; os sujeitos amazônicos; o contexto
amazônico, entre muitos outros fatores que envolvem a literatura infantojuve-
nil e suas múltiplas vertentes analíticas.
REFERÊNCIAS
FARES, Josebel Akel. Imagens poéticas das águas amazônicas. IN: FARES,
Josebel Akel; CAMELO; Marco Antônio da Costa; SILVA, Maria das Gra-
ças; AMARAL, Paulo Murilo Guerreiro (Orgs). Sociedade e saberes na Amazô-
nia. Belém, Eduepa, 2013.
114
JESUALDO. A Literatura infantil. São Paulo: Cultrix, 1993.
LEITE, Daniel da Rocha. A história das crianças que plantaram um rio. Ilustra-
ções de Marciste Costa. Belém: Ponto Press, 2013.
115
NARRATIVA DE EXPRESSÃO AMAZÔNICA: UMA BRE-
VE ANÁLISE DO MARAVILHOSO NA OBRA A HISTÓRIA
DAS CRIANÇAS QUE PLANTARAM UM RIO, DE DANIEL
DA ROCHA LEITE
Introdução
116
Dessa forma, seguindo a metodologia de natureza bibliográfica, será
possível discorrer sobre a incidência do Realismo Maravilhoso presente na
obra selecionada tendo como base os estudos de Irlemar Chiampi (2015), sob
o diálogo com as outras formas de insólito, como o Fantástico, o Realismo
Mágico e o Real Maravilhoso do artigo Expressões conceituais do insólito no
espaço literário sul-americano de Luciana Mazzutti e André Mitidieri (2015),
tendo em vista uma discussão com base na configuração e representação por
meio dos elementos da narrativa de Yves Reuter (2002) e da forma de insólito
em questão. Além disso, soma-se à análise os estudos de Paes Loureiro (2015).
Nesse sentido, apresentar essa categoria do Realismo Maravilhoso em uma
obra com o espaço ribeirinho da Amazônia representa uma característica me-
nos eurocêntrica de análise dessa produção de expressão amazônida.
117
[…] de 1870 a 1890 serão essas as teses esposadas pela inteligência na-
cional, cada vez mais permeável ao pensamento europeu que na época se
considerava em torno da filosofia positivista e do evolucionismo. Comte,
Taine, Spencer, Darwin e Haeckel [...].
118
parte da população, mas é também marginalizada, na medida em que é re-
jeitada ou não reconhecida pelos poderes instituídos e geralmente ignorada
pelas políticas públicas.
119
de outra série cultural e acoplá-lo a realismo implicaria ora uma teorização de
ordem fenomenológica (“a atuação do narrador”), ora de ordem conteudística
(a magia como tema)” (CHIAMPI, 2015, p. 43). Por conta desse antagonismo,
é uma forma teórica descartada pela autora e como esta foi uma tentativa de
caracterizar muitas das produções literárias sul-americanas deve ser encarada
com desconfiança, com base nessa abrangência classificatória.
Por outro lado, o Real Maravilhoso está associado à cultura. Mazzutti e
Mitidieri (2015, p. 24) relatam que Alejo Carpentier usa inicialmente o termo
no prólogo de sua obra literária El reino de este mundo:
120
o maravilhoso coabitam, o insólito se faz reconhecido no contexto sociocul-
tural ao qual o sujeito pertence; as explicações para os eventos representados
na obra literária encontram-se no universo real e maravilhoso do leitor.
O texto literário de Daniel Rocha Leite, A história das crianças que plan-
taram um rio (2013), apresenta uma das possíveis temáticas da relação entre o
homem e o rio por meio de inúmeros implícitos na tessitura da narrativa, dire-
cionando o leitor a refletir sobre as relações entre os personagens ribeirinhos e
o espaço fluvial, fornecendo, assim, instrumentos que possibilitam a articulação
proficiente na linguagem literária. Nessa perspectiva, Chiampi já nos orienta
sobre a importância de versar sobre o real e o irreal relacionado ao Realismo
Maravilhoso, segundo a autora: “[…] o efeito de encantamento do leitor é pro-
vocado pela percepção da contiguidade entre as esferas do real e do irreal pela
revelação de uma causalidade onipresente, por mais velada e difusa que esteja”
(CHIAMPI, 2015, p. 60). A tradição oral presente no universo amazônico é a
forma comum de propagação do conhecimento de um povo, as histórias trans-
mitidas revelam a sabedoria da preservação desse ambiente, sob esse prisma,
para essa preservação de sapiência por vezes enquadra-se as narrativas com a
presença do insólito.
A captação desse espaço real e sobrenatural encontra-se naturalizada
na diegese. Ampliando essa percepção, João de Jesus de Paes Loureiro (2015)
destaca como se vive nesse cenário: “[…] na Amazônia as pessoas ainda vivem
seus deuses, convivem com seus mitos, personificam suas ideias e as coisas
121
que admiram” (LOUREIRO, 2015, p. 121). Em destaque na narrativa, encon-
tram-se as águas como o espaço onde se desenvolve e ganha vida com o rio
personificado: “[…] o rio sonhando acordado, embaixo do chão da nossa casa.”
(LEITE, 2013, p. 27). O narrador afirma com propriedade que o rio, ser não
vivo que compõe a natureza, sonha, característica humana, em diálogo com a
descrição de Loureiro. Somando-se a isso, há a concepção do personagem com
relação ao rio em seu relato de memória: “[…] para mim o rio sonhava acorda-
do, indo e vindo, vida sempre.” (LEITE, 2013, p. 36).
Sob esse viés, Chiampi (2015) afirma a situação presente na com-
posição dos personagens no Realismo Maravilhoso coadunados a essa
ligação em comum entre o insólito e sua vivência: “Os personagens do
realismo maravilhoso não se desconcertam jamais diante do aconteci-
mento insólito” (CHIAMPI, 2015, p. 60). A familiaridade proveniente
da vivência com o elemento das águas ao contrário de fazê-lo temer, cria
respostas e solidifica essa relação com o meio, característica marcante no
povo ribeirinho. Nessa perspectiva, Loureiro (2015, p. 48 - 49) esclarece:
122
(REUTER, 2002, p. 51), e como propulsor para que a composição poética se
torne mais circunscrita na verossimilhança.
Sobretudo, a identificação desse lugar consiste como destaque da rela-
ção do menino com a avó. Esta, por sua vez, repassa o ensinamento de ouvir
o rio: “Ouve meu filho. Ouve o silêncio do rio, a voz dele” (LEITE, 2013,
p.51). O envolvimento é apresentado como se o menino carregasse dentro de
si o próprio rio: “Sou menino crescendo nas palavras do rio” (LEITE, 2013,
p.19). O personagem incorpora o rio, apropria-se desse elemento de tal forma,
como se o seu crescimento dependesse diretamente dele. Dada a relevância dos
personagens, Reuter denomina “[…] toda história é história das personagens”
(REUTER, 2002, p. 41).
Em diálogo com a realidade da importância do rio para as comunidades
ribeirinhas, Loureiro (2005, p. 137) aponta que:
123
temporalidade vivenciada pelos ribeirinhos, não é a demarcação de datas do
calendário, mas sim a fluência do rio. Chiampi (2015, p. 69) sinaliza essa expe-
riência estética que o Realismo Maravilhoso suscita ao afirmar que:
124
2015, p. 95). Nesse panorama, o evento insólito, em especial vislumbrado na
tessitura da narrativa, consiste quando a avó conta a história das crianças que
plantaram um rio para o menino (LEITE, 2013, p. 67; 69-70; 75):
Houve uma noite, meu filho, que levaram o rio embora [...]. Na tarde de
uma noite, nas margens do vazio do rio, não se sabe de onde, apareceram
umas crianças. A noite já ia alta, toda a gente já estava dormindo. Era crian-
ça de todo o lugar da Terra. Elas vieram. Olharam para o céu e cantaram
uma canção [...]. Relâmpagos em silêncio acenderam a escuridão da noite.
As crianças, todas juntas abriram as mãos. A chuva enfim, veio viva [...].
Chegando lá meu filho as crianças que tinham a chuva em suas mãos fi-
zeram dela semente e lançaram as suas águas no chão da sombra do rio.
Aqueles meninos e meninas, meu filho, plantaram um novo rio, sonharam
um novo mundo, semearam uma nova história. [...] Quando o dia nasceu,
meu filho, o rio estava aqui, de volta, vizinho da gente, respirando lá fora,
perto da nossa casa [...], o nosso rio meu filho, as nossas histórias […].
Nesse excerto, percebemos que não houve hesitação como deve ocorrer
no Fantástico. Ainda sobre essa modalidade, Chiampi (2015, p. 53) declara:
[…] o ponto chave para a definição de fantástico é dado pelo princípio psi-
cológico que lhe garante a percepção do estético: a fantasticidade é, funda-
mentalmente, um modo de produzir no leitor uma inquietação física (medo
e variantes).
125
O Realismo Maravilhoso, assim, alude ao verossímil, o natural unindo-se
ao evento insólito, sendo esta realidade parte do cotidiano ribeirinho, uma re-
presentação desse povo por vezes subjugado, à margem da visibilidade canônica
dos polos de produção no centro do poder econômico do Brasil. Dessa forma,
devido ao frequente problema de circulação dessas obras, circunscritos, primor-
dialmente, na falta de patrocínio, pouco são apreciadas e analisadas pelo círculo
de críticos literários. Acrescenta-se as considerações acerca do destaque no Re-
alismo Maravilhoso para esta análise, nas quais os teóricos aludem: “[...] o mais
importante a ser destacado nessa modalidade é a diversidade cultural fundida na
nossa vida e literatura” (MAZZUTTI; MITIDIERI, 2015, p. 25).
Considerações
126
Entretanto, por meio dessa análise foi possível estabelecer um olhar sobre o
discurso literário estético da obra A história das crianças que plantaram um rio
(2013). Além disso, realizou-se um diálogo direto com a caracterização do
Realismo Maravilhoso, essa categoria do insólito que valoriza as culturas, in-
clusive a cultura Amazônica. Já que de forma tão particular concebeu em sua
ficção imagens do espaço ribeirinho, com o rio em foco, capaz de figurar a
temporalização de seu povo.
A história das crianças que plantaram um rio (2013) representa a diversi-
dade cultural de seu povo. Os mitos e histórias presentes na realidade local são
circunscritas em universo de histórias extraordinárias que se harmonizam com
o meio em que vivem respeitando-o, ressignificando-o, pois o sobrenatural é
naturalizado por essa harmonia proveniente do homem e da natureza, do in-
sólito que revela o Realismo Maravilhoso.
REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
LEITE, Daniel da Rocha. A história das crianças que plantaram um rio. Ilustra-
ções de Maciste Costa. Belém: Ponto Press, 2013.
LOPES, Tania Mara Antonietti. O realismo mágico em José Saramago. São Pau-
lo. p. 379-386, 2008.
127
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: uma poética do imagi-
nário. Manaus: Valer. 2015.
128
PRÁTICAS DO LETRAMENTO LITERÁRIO: UMA EXPERI-
ÊNCIA ESTÉTICA EM SERINGAL, DE MIGUEL FERRANTE
Introdução
129
obras com temáticas da Amazônia, uma vez que os leitores mais atuantes, es-
colhiam os best sellers relacionados a filmes ou séries estrangeiras.
Nessa perspectiva, buscamos nos orientar pela fundamentação teórica
de Rildo Cosson (2019a) ao explicitar acerca da metodologia da sequência
expandida como um processo para a efetivação do letramento literário, que vai
além de uma atribuição de notas ou deleite. Mediante ao estudo investigativo,
visamos depreender de que modo as impressões de leitura se tornam elementos
geradores de sentido e ressignificação de saberes para os estudantes.
O fomento à leitura de uma obra de expressão amazônica viabiliza aos
receptores saberes outrora desconhecidos, mas que fazem parte da história de
seus antepassados. Sob esse prisma, proporcionar aos estudantes do 1º ano
do Ensino Médio a interação e a apropriação da cultura amazônica a fim de
vivenciarem uma experiência estética-poetizante a partir da leitura da obra
Seringal (2007), de Miguel Jeronymo Ferrante foi o nosso escopo principal.
É mediante à inserção do leitor no discurso poético do imaginário ama-
zônico que ocorre a transformação do real, uma vez que há a contemplação
nas descrições de um ambiente circunscrito de significações intrínsecas à ex-
periência literária. Esse reconhecimento permeia-se pelas reflexões acerca das
diversidades culturais, dos sentimentos de pertencimento, mas, sobretudo, por
meio dos discursos literários que abordam as injustiças ocorridas no período
dos seringais e perduram até a contemporaneidade.
Dessarte, depreendemos que o foco na concepção do letramento literá-
rio denota sua relevância no ambiente escolar e nas pesquisas acadêmicas de-
vido a sua peculiaridade na construção de um leitor proficiente. Nesse prisma,
o trajeto investigativo direcionou-se para a aplicação de estratégias de leituras
diferenciadas, a partir das impressões proporcionadas pelo contato com os ele-
mentos constitutivos da obra que visam ampliação dos saberes diversos.
130
de sentidos produzidos mediante os percursos delineados pelo discurso literá-
rio em meio a um espaço de múltiplas possibilidades de impressões de leitu-
ra. A ressignificação extraída dos conteúdos apresentados no texto é capaz de
possibilitar a autonomia, a autocrítica e a formação de conceitos importantes
para a tomada de decisões, pois serve como uma ligação entre os saberes e a
liberdade de expressão do eu com o mundo.
O ato de ler é “um processo de compartilhamento, uma competência
social” (COSSON, 2019b, p. 36), uma vez que favorece a ligação entre passado
e presente com os indivíduos de uma sociedade representados em cada mo-
mento. São experiências significativas construídas por intermédio do contato
com as palavras.
A escola é o lugar onde os estudantes têm a oportunidade de, não so-
mente, aprender a decodificar os símbolos linguísticos, mas também gerar sen-
tidos em cada leitura e escrita realizadas. Um dos primordiais objetivos da
leitura de textos literários em sala de aula é possibilitar o contato do estudante
com a obra de ficção mediante à imersão dos saberes apresentados a fim de
relacioná-los à realidade.
As diversas leituras propiciam a construção ou reconstrução de concei-
tos sob novas perspectivas acerca dos relacionamentos que se tornam eviden-
tes nos sentidos apresentados em cada obra de ficção, uma vez que, segundo
Oberg (2014, 204):
131
de reconhecimento do eu e do mundo. São discursos que não surgem no va-
zio, mas representam a constituição de características peculiares e significativas
para a construção de cidadãos mais críticos, autônomos e participativos.
Infelizmente, em muitos casos, devido a diversos fatores “a literatura
não está sendo ensinada para garantir a função essencial de construir e recons-
truir a palavra que nos humaniza” (COSSON, 2019a, p. 23). Os estudos literá-
rios têm sofrido transformações e um apagamento gradativo ao ser suprimido
o letramento literário no ambiente escolar. Em vista disso, o lugar da literatura
nos currículos precisa ser revisto e considerado igualmente aos múltiplos textos
que fazem parte das áreas de conhecimento.
É preciso compreender que a literatura não tem função utilitária,
pois vai muito além de apresentar informações relacionadas a uma data
comemorativa ou a uma mensagem moral, ela tem “o exercício da função
formativa que permite ao homem o conhecimento do mundo e dos seres ou
da função psicológica que pode prover a necessidade de fantasia universal do
homem” (ZAPPONE, 2021, p. 607).
A experiência literária, lograda pelo contato com as palavras que expressam
um mundo a ser explorado e vivenciado, ultrapassa barreiras impostas por espaços
e tempos atuais. É o encontro entre o passado e o presente propiciadores para o
alargamento e o entendimento das diversidades do ser humano e do mundo. A
finalidade desses textos é “identificar conteúdos expressos de maneira indireta ou
oblíqua; trazer as informações (estéticas, culturais, históricas) que permitem de-
volver a uma metáfora morta o poder de uma metáfora viva.” ( JOUVE, 2012, p.
132). É a imersão na palavra que o texto literário se configura em suas múltiplas
faces e complexidade sendo desvendadas aos poucos mediante as relações entre
compreender o discurso literário e o viver, pois, segundo Zulberman (2009, p.33)
[...] a obra de ficção avulta como o modelo por excelência da leitura. Sendo
uma imagem simbólica do mundo que se deseja conhecer, ela nunca se dá
de maneira completa e fechada; ao contrário, sua estrutura, marcada pelos
vazios e pelo inacabamento das situações e das figuras propostas, reclama a
intervenção de um leitor.
132
É no momento dessa conversa contextual que são adquiridos os
sentidos, consequentemente o aprimoramento de saberes condizentes
à solidez de uma formação que requer não somente prazer, mas esforços
imprescindíveis para o desenvolvimento de habilidades e competências em
suas variadas facetas. Conforme afirma Cosson (2021, p. 45), a apresentação
da literatura na escola ainda é
133
Assim, as etapas da sequência expandida são uma possibilidade de pro-
piciar aos estudantes um trajeto mais significativo para a compreensão da li-
terariedade e, de preferência, realizado no ambiente escolar, onde a literatura
deveria ter o seu lugar como objeto de conhecimento.
Abordaremos o passo a passo da sequência expandida que foi utilizada
na aplicação de nossa pesquisa com alunos do 1º ano do ensino médio. Como
afirma Cosson (2019a) “a sequência expandida vem deixar mais evidente as ar-
ticulações que propomos entre experiência, saber e educação literários inscritos
no horizonte desse letramento na escola” (COSSON, 2019a, p. 76).
Na motivação, a primeira etapa, o professor preparará uma atividade
para inserir os estudantes na obra que será lida e em seus diversos contex-
tos, de maneira a conduzi-los a “refletir sobre as relações que se estabelecem
nesses ambientes e as transformações que trazem para a vida social e pessoal”
(COSSON, 2019a, p. 78). Sempre destacando a importância de atividades que
valorizem muito mais a obra para não ocorrer o afastamento do texto literário.
A segunda estratégia é denominada introdução que consiste em apre-
sentar o autor e a obra de maneira sucinta, pois não há necessidade de dispen-
sar muito tempo para esses aspectos. Dessa forma, Cosson (2019a) sugere três
momentos distintos para realizar a motivação: a entrada temática – compreen-
de o acesso à obra por meio de um tema relacionado à realidade do estudante;
o aproveitamento do acervo da biblioteca – desperta a atenção para os aspectos
da obra: conteúdo, imagem de outros leitores e situações de divulgação; leitura
das primeiras páginas na sala de aula – perpassa pelos prefácios, orelhas, dedi-
catórias, apresentação das personagens que aparecem no início do texto.
O terceiro passo é a leitura propriamente dita que, se possível, deve ser
realizada fora da sala de aula, por isso o planejamento do docente é muito im-
portante nesse momento, ao estabelecer períodos com términos estabelecidos
em conjunto com a turma. No decorrer da leitura, o autor sugere a organização
de intervalos para o engrandecimento dos aspectos significativos da obra. Es-
ses intervalos podem acontecer mediante a leitura de uma música, de um conto
ou de uma pintura com o escopo de estabelecerem diálogos entre a obra e os
textos com temáticas semelhantes.
134
Na sequência, ocorrerá a primeira interpretação - o registro das impres-
sões da leitura que está sendo realizada. Esse momento remete ao entendi-
mento geral da obra a fim de conduzir o estudante à reflexão sobre o título, os
efeitos de sentido depreendidos no primeiro contato com a linguagem literá-
ria. É o momento de compartilhar os pensamentos acerca das personagens, do
espaço, da linguagem, mas sem limitações, mesmo que, em alguns momentos
haja a interferência do docente para direcionar o estudante em um enten-
dimento com menos incoerências, a impressão de leitura de cada estudante
deve ser considerada em seus aspectos relevantes. Assim, o autor destaca que a
primeira interpretação “busca entrever na apreciação feita pelo aluno, ou seja,
o valor do texto do aluno está na capacidade de compreender a obra e não em
julgá-la de modo crítico” (COSSON, 2019a, p. 85). Uma das formas de re-
gistrar essa primeira interpretação pode ser por meio de entrevistas informais
ou formais realizadas em duplas e, posteriormente, redigidas em forma de um
texto, podendo ser um ensaio.
O quinto momento de apreensão da obra consiste na contextualização
com o objetivo de conhecer alguns aspectos significativos para a construção
de um texto literário. Nesse sentido, Cosson (2019a) sugere sete contextuali-
zações que podem auxiliar a compreensão da obra, são elas: Contextualização
Teórica, Contextualização Histórica, Contextualização Estilística, Contextu-
alização Poética, Contextualização Crítica, Contextualização Presentificadora,
Contextualização Temática.
Todas essas contextualizações foram indicadas pelo autor para pro-
piciar o aprofundamento da compreensão da obra literária, mas que podem
ser modificadas, acrescentadas conforme os objetivos do docente. No entanto,
nesse percurso, é imprescindível que se observem algumas diretrizes para a efe-
tivação do letramento literário, dentre elas, o autor enfatiza que “não pode con-
siderar a contextualização algo externo ao texto, pois é uma maneira de ir mais
longe na leitura do texto, de ampliar horizonte de leitura de forma consciente
e consistente com os objetivos do letramento literário na escola” (COSSON,
2019a, p. 90). Dessa forma, para registrar a ampliação dos horizontes de leitu-
135
ra, a produção de texto se torna fundamental para confrontar com a segunda
interpretação, que deve ser obrigatória nesse processo.
O penúltimo passo é intitulado como segunda interpretação e consiste
em aprofundar um elemento ou aspecto específico da obra. Nesse momento, se
estabelece um vínculo entre a contextualização e a segunda interpretação e pode
ser realizada de forma direta ou indireta, mas sempre em busca de aprimorar os
horizontes de leitura e compartilhá-los a partir de um texto oral ou escrito.
Vale salientar a diferença entre a primeira e a segunda interpretação,
sendo que uma busca propiciar o encontro do leitor com o texto literário, en-
quanto a outra consiste na partilha das impressões de leitura, momento cru-
cial para a efetivação do letramento literário. É mediante o compartilhamento
das interpretações acerca da obra que são revelados aspectos importantes, tais
como, a abrangência do texto literário, pois não se exaure devido a sua renova-
ção a cada leitura.
Por fim, o sétimo passo é conceituado como expansão e visa evidenciar as
intertextualidades articuladas pelo autor no momento da escrita, que perpassam
pelos contextos atuais ou anteriores à sua publicação. Entretanto, esse momento
somente ocorrerá de forma significativa se o estudante apresentar um repertó-
rio contextualizado, pois se deve estabelecer relações entre distintos textos. Vale
salientar que o registro não pode ser esquecido no processo de expansão. E esta
pode ser um passo para o recomeço da aplicação da sequência expandida.
Diante dessa descrição da sequência expandida, preconizada pelo autor
Rildo Cosson, na sua obra Letramento literário: teoria e prática (2019a), ressal-
tamos que o intento não fora engessar o processo de apreensão de um texto
literário, mas apresentar possibilidades para a construção de sentidos por meio
das sete sugestões apontadas que permitem criações e adaptações necessárias em
cada contexto escolar. São percursos exequíveis para a consumação do letramen-
to literário com significância tanto para os estudantes quanto para o docente.
Dessa forma, Cosson (2019a) enfatiza que “é preciso confiar na força
do texto literário e na capacidade da leitura de nossos alunos. É na experiên-
cia da leitura, e não nas informações dos manuais, que reside o saber e o sabor
da literatura” (COSSON, 2019a, p. 107). Por isso, não se pode negligenciar
136
a importância do texto literário no ambiente escolar, sendo o dever da escola
propiciar a aprendizagem da literariedade e a ampliação das impressões de
leitura mediante métodos e estratégias significativas. E, sempre agregar a
leitura do texto literário com a escrita – que consiste em apresentar o ama-
durecimento do leitor a cada obra lida.
137
denominada sequência expandida, a fim de propiciar um novo olhar acerca
da literatura, uma vez que havia na sala de aula uma rejeição de boa parte dos
alunos, por não apreciarem a leitura de obras ficcionais devido às experiências
frustrantes do preenchimento de questionários que não contribuíam para a
compreensão da obra.
O local da pesquisa foi em uma escola da rede estadual na cidade de
Porto Velho – RO. O acesso aos participantes deu-se pelo consentimento e
ciência do projeto da Direção e Coordenação da Escola, bem como a ciência
e o consentimento dos participantes. Os sujeitos da pesquisa foram alunos do
1º ano, num total de 40 alunos, com coleta totalizando 10 alunos, que apresen-
tavam maior idade. A escolha por esse grupo deu-se pela aproximação com a
turma e por atuar como professora.
A obra escolhida para aplicar o letramento literário dialoga com as
reflexões, os espaços e a convivência dos estudantes em sua comunidade.
Os instrumentos de coleta de dados foram mediante às rodas de conversa,
os questionários e a solicitação de produção de texto analítico; com liber-
dade da participação e contribuição com a pesquisa. A coleta de dados foi
realizada por meio de produções individuais e coletivas dialogadas com o
romance Seringal (2007).
Por fim, a análise do material coletado foi realizada com leitura, in-
terpretação, comparações e reflexões por meio de estratégias da sequência
expandida e da teoria do letramento literário, preconizados por Rildo Cos-
son (2019a). Assim, no decorrer de quinze dias, elaboramos práticas de
leitura e escrita condizentes com os processos da sequência expandida a
fim de proporcionar uma experiência estética-literária por meio da leitura
da obra Seringal (2007).
No primeiro dia, realizamos a motivação que consistiu em um diálo-
go sobre a temática da obra. Questionamos se os estudantes tinham paren-
tes que haviam trabalhado em seringais na Amazônia; se já haviam ouvido
histórias sobre esse período e solicitamos uma pesquisa para preencher um
questionário acerca das movimentações, culturas e desafios de um seringal,
conforme descrito abaixo:
138
1º QUESTIONÁRIO: (Motivação para a leitura do livro)
PESQUISA SOBRE O SERINGAL
139
a) Raimundão: b) Toinho: c) Coronel Fábio:
4) Qual a sua opinião acerca do Capítulo III denominado “As lamparinas
estão acesas”? Você achou estranha ou normal aquela atitude? Por quê?
140
do período do I e II Ciclo da Borracha na Amazônia. Os estudantes realizaram
diálogos significativos entre a história e a ficção, uma vez que havia relatos e
descrições representados na obra de forma análoga às explanações do docente.
Nos encontros seguintes, demos continuidade à leitura da obra, sepa-
rando um tempo, no decorrer das aulas, para realizar a leitura e, em outros
momentos, em casa. Assim, após um tempo da leitura solitária, novamente nos
reportamos ao segundo intervalo que tinha como escopo responder à questão
acerca do itinerário de construção da personagem Toinho – apresentado no
4º Questionário: (Segundo intervalo da leitura do livro) - Expectativas sobre
a personagem Toinho: “Após a leitura dos capítulos IV ao IX, descreva em
um parágrafo, quais são as expectativas para a personagem Toinho diante das
dificuldades apresentadas.”
Em continuidade, na próxima atividade solicitamos a escrita de um pa-
rágrafo para apresentar as expectativas sobre Toinho diante das dificuldades
sofridas pela personagem. Nesse momento, os estudantes já tinham realizado
a leitura dos capítulos IV ao IX. Muitos estudantes acreditavam em um futuro
promissor para Toinho, uma vez que “algumas obras apontam, com efeito, para
dimensões fundamentais do ser humano, às quais, por definição, somos sempre
sensíveis.” ( JOUVE, 2012, p.123). A sensibilidade e esperança de dias melho-
res, mesmo diante de uma realidade hostil e repleta de injustiças foram des-
taque nas produções dos estudantes, dentre elas destacou-se o seguinte texto:
141
A análise do Estudante E reverbera como a obra literária pode envolver
o leitor num mundo ficcional que propicia a avaliação, criticidade de aspectos
consideráveis para uma vida promissora, pois na arte da palavra “o leitor é sem-
pre levado a um trabalho intelectual para chegar à ideia, que nunca é óbvia: ela
só pode ser inferida daquilo que se lê.” ( JOUVE, 2012, p.164) Nesse sentido,
o estudante ao participar ativamente da leitura se vê impelido a buscar novas
alternativas de construção do protagonista de maneira que o final feliz seja a
melhor solução tanto no meio ficcional quanto na realidade.
Para finalizar a aplicação do projeto, foram realizadas leituras coletivas e
individuais durante as aulas de língua portuguesa. Com o intuito de trazer para
o debate situações do cotidiano representadas em Seringal (2007), trabalhamos
com a contextualização presentificadora, buscando questionar “o que é que a
obra exprime sobre o humano, assinalando o que era esperado na época, iné-
dito à época e novo ainda hoje.” ( JOUVE, 2012, p.137) Assim, os estudantes
expuseram oralmente, como também por escrito suas inferências acerca do
passado representado que repercutiu no presente.
Os confrontos, a ativação de sentimentos diversos, a frustração, a supe-
ração e os sonhos rememorados foram retratados no decorrer da última ati-
vidade realizada com os dez estudantes do primeiro ano do ensino médio.
Nesse momento, eles tiveram a oportunidade de relacionar a atualidade com o
passado que, infelizmente, ainda reverbera situações vividas na sociedade con-
temporânea. Temáticas como injustiças, traições, preconceitos, explorações são
retratados com angústia e pesar pelos estudantes ao revelarem suas impressões
de leitura na obra Seringal (2007).
As experiências vivenciadas alinham-se às construções das personagens,
dos espaços resultando em uma nova forma de olhar o ser humano e o mundo
que o cerca. Uma vez que, de acordo com Rosing (2014, p. 210):
142
A obra Seringal (2007) apresenta um enredo de uma época desconheci-
da por boa parte dos estudantes em razão de não ser abordada em sala de aula.
Geralmente eles têm contato com esse período somente no terceiro ano do
ensino médio ao estudarem as disciplinas História e Geografia de Rondônia
ou por meio dos relatos de seus parentes que trabalharam no período do Ciclo
da Borracha. No entanto, não são os dados históricos que farão a diferença e
trarão uma nova realidade aos leitores. Conhecer o contexto é importante para
situar o leitor no espaço e no tempo descrito na narrativa, mas o que realmente
toca são as ações e reações de cada personagem ao vivenciar momentos de
dificuldades e superações.
A história da personagem protagonista se destacou em meio a várias
outras, devido os estudantes se identificarem com o menino sonhador, cheio
de esperança para um futuro promissor, pois “os grandes textos são aqueles que
nos apresentam uma metáfora de nossa própria vida, permitindo-nos nos re-
conhecer em alguns componentes – gerais e transculturais – da representação.”
( JOUVE, 2012, p. 124). Nesse sentido, cada estudante destacou sua experi-
ência literária. Alguns associaram a vida de Toinho com suas próprias vidas,
outros reivindicaram um final cheio de esperança. Sendo então, socializadas as
múltiplas provocações ativadas pelo texto.
Na atividade de intervalo, antes de encerrar a leitura da história, so-
licitamos aos estudantes que comentassem sobre as primeiras impressões da
personagem Toinho e quais seriam as expectativas para o final do protagonis-
ta. Enquanto alguns estudantes acreditavam que o conformismo é a realidade
mais propensa aos seringueiros, outros destacaram as dificuldades de Toinho e
almejavam um futuro diferenciado, com menos sofrimento.
Seringal retrata questões conflituosas e desafiadoras que geraram inú-
meros embates entre leitor e personagens. São essas adversidades que contri-
buem para despertar o interesse de continuar com a leitura para confirmar suas
expectativas, uma vez que “se a hipótese for comprovada, se saberá mais sobre
alguns aspectos do objeto analisado e sobre o caráter operatório de determina-
da maneira de abordar o mundo.” ( JOUVE, 2012, p. 148). Foram os diversos
comentários relacionados à obra, às personagens, em especial, o Toinho, que
143
possibilitaram a construção de novos saberes e a reflexão acerca do itinerário
de cada ente da ficção
Mensagens implícitas com significações de um mundo a ser descober-
to por meio do contato com o texto literário perpassaram pelos comentários;
ponderações que não podem ser ignoradas, pois “a identificação dessas refe-
rências é fundamental para firmar ou ampliar o entendimento da história que
se está lendo.” (COSSON, 2019b, p. 59). Situações análogas à realidade dos
estudantes que proporcionam reflexões a respeito de relacionamentos abusivos
e controversos, que são retratados nas descrições do seringal.
O romance Seringal (2007) traz em seu contexto representações ex-
pressivas sobre personagens com características benéficas que buscam sempre
ajudar o outro, somando-se a personagens cheias de amargura, ganância, refle-
tindo abuso de poder em suas ações. Tendo em vista a diversidade de atributos
representados em cada ser ficcional percebe-se a imersão dos estudantes no
enredo, buscando encontrar alternativas plausíveis para amenizar a situação
daquelas personagens subjugadas. É como se cada ser exercesse uma função di-
ferenciada nas emoções, reflexões dos leitores a ponto de se revoltarem, aplau-
direm e se frustrarem com o desfecho surpreendente.
Considerações
144
conclusão da educação básica e muito influenciarão nos contextos adversos de
suas vidas para a resolução de problemas diários. Propiciar o contato com a
obra literária nessa etapa da vida dos jovens é um direcionamento a novas pers-
pectivas que por muitas vezes, somente será promovido no ambiente escolar.
Nesse sentido, a literatura na sala de aula deve ultrapassar os estudos de
contexto histórico, biografia de autores e características de movimentos lite-
rários, pois seus objetivos vão muito além desses aspectos. É um componente
curricular imprescindível na educação básica, a fim de alavancar a construção
de sentidos por meio de uma linguagem que auxilia o estudante no confronto
com acepções, pensamentos e ideologias de um outrem.
A investigação realizada com os estudantes do 1º ano do Ensino Médio,
comprovou a importância dos estudos literários em sala de aula e, principal-
mente que sejam lidas obras completas, não somente entregue trechos para
análise. Seringal (2007), a princípio, causou estranhamento devido a linguagem
apresentar vocábulos específicos de uma determinada sociedade – os serin-
gueiros, mas ao se permitirem o embate e continuarem a leitura, os estudan-
tes puderam vivenciar uma experiência estética-literária que gerou reflexões,
novas visões, mas também frustrações, tristezas e revoltas. Esse é o principal
escopo da literatura: desconstruir para reconstruir saberes e expectativas.
Portanto, a construção de uma experiência literária consiste na troca
de sentidos, pois possibilita o encontro com as respostas aos questionamen-
tos iniciais quando houve o contato com a obra literária, como também pode
causar frustrações às expectativas, devido gerar angústia, tristeza e aversão ao
desfecho. No entanto, mesmo diante de sentimentos ruins, o prazer estético é
configurado. É o estranhamento, a experimentação de sensações que produ-
zem no leitor um contato mais aprofundando mediante à linguagem literária
arquitetada. Nesse sentido, “o que expressamos ao final da leitura de um livro
não são sentimentos, mas sim os sentidos do texto. E é esse compartilhamento
que a leitura literária ser tão significativa em uma comunidade de leitores”
(COSSON, 2019a, p.28).
145
REFERÊNCIAS
COSSON, Rildo. Ensino de literatura sempre: três desafios hoje. In: Ensino
da literatura no contexto contemporâneo. Campinas: Mercado de Letras, 2021.
JOUVE, Vicent. Por que estudar literatura? Trad. Marcos Bagno, Marcos Mar-
cionilo. São Paulo: Parábola, 2012.
OBERG, Maria Silva Pires. Onde estão as chaves? Considerações sobre a for-
mação do leitor e a fruição literária In: Onde está a literatura? Seus espaços,
seus leitores, seus textos, suas leituras. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
p. 202 - 209.
RÖSING, Tania Maria Kuchenbecker. Onde estão os leitores. In: Onde está a
literatura? Seus espaços, seus leitores, seus textos, suas leituras. Belo Horizon-
te: Editora UFMG, 2014. p. 210-229.
146
DO LEITO DOS RIOS AOS RIOS LITERÁRIOS – LITERA-RIOS
Introdução
O mundo quer ser visto: antes que houvesse olhos para ver, o olho da água,
o grande olho das águas tranquilas olhava as flores que se abriam. E é nesse
reflexo — quem dirá o contrário? — que o mundo tomou, pela primeira vez,
consciência de sua beleza (BACHELARD, 1994, p. 39).
147
As águas, conforme destaca a epígrafe acima, mesmo” antes que houves-
se olhos para ver”, permitiu por meio de seus reflexos, que o mundo adquirisse
consciência de sua beleza. No caso das águas amazônicas, muito além de es-
pelhar e espalhar a beleza de seu entorno aos olhos do mundo, destaca-se pelo
profundo impacto no processo de configuração e ocupação do território ama-
zônico, dada a influência dos rios amazônicos na complexa geografia fluvial da
região e na conformação histórica das sociedades amazônicas.
Na Amazônia “pátria” e “nação” da água, as vias de acesso e locomoção
ocorrem, principalmente, através das veredas líquidas, vias aquáticas que com-
põem a bacia hidrográfica da região. Assim, por meio desse labiríntico mundo
aquático, os rios, como bem disse Leandro Tocantins (1988, p.232), são como
“caminhos que andam”, ou ainda, de acordo com Caio Prado Jr (2011, p.210),
são as “estradas líquidas”, que muitas vezes também atuam como fronteiras
naturais. Deste modo, através dos rios, ocorreu ao longo do tempo o processo
de ocupação do espaço que hoje configura a Amazônia. Pelos rios, moveram-se
os povos autóctones e também pelos rios chegaram depois os colonizadores
europeus, tal como nos apresenta Mello (2007, p.32 e 34) a seguir:
Acabo de subir e descer todo o rio Solimões, desde o seu encontro com o
Negro, bem pertinho de Manaus, até o triângulo amazônico que o Brasil
forma com o Peru e a Colômbia. A brasileira Tabatinga e a colombiana
Letícia, uma contígua à outra e, na frente delas, lá do ouro lado do rio, a
pequenina e valente Ramón Castilla peruana, já onze vezes destruída pela
força das águas que lhe carregam as terras da várzea. Foram dias e dias de
viagem, a subida contra a correnteza, numa pequena embarcação a motor
de centro. Tempo de cheia, o rio crescendo alagando a várzea, derrubando
casebres de palha e árvores enormes, as raízes querendo ainda agarrar-se à
terra. Às vezes eram horas e horas de viagem sem encontrar uma criatura
humana.
[...]
Bem ao lado do porto principal, está a desguarnecida e escura beira do rio,
aos fundos do Mercado Municipal, que serve de ponto de chegada e de
partida às embarcações dos mais diversos tipos e tamanhos que viajam par
148
os incontáveis afluentes. Paranás, igarapés e furos de quase toda a Bacia
Amazônica, uma rede fluvial de 400 mil quilômetros.
Viajam prontas a parar a qualquer instante. São os barcos “paradores”. É só
pedir, que eles param. Quando é de dia, basta acenar com um pano branco lá
do alto do barranco ou, se é tempo de cheia, com um trapo colorido balan-
çando no verde tenro da várzea coberta pela plantação de juta. Quando é de
noite, é só acender a lamparina ou focar com a lanterna. O motor – motor
de linha – sempre para.
149
[...]. Manaus é uma cidade que nasce e vive da água, por cujos caminhos
lhe chegaram os primeiros habitantes indígenas com as suas igarités e apor-
taram as embarcações dos colonizadores europeus. Água dos seus igarapés
antigos que desapareceram. Dos igarapés que ainda cortam, mas não sepa-
ram, senão unem, as diferentes partes da cidade. Igarapé de Manaus, igarapé
dos Quarenta, igarapé do São Raimundo, igarapé do Tarumãzinho. Mas
sobretudo A das águas desse poderoso afluente do Amazonas que banha
nossa cidade, à cuja beira ela nasceu e ao qual já os índios, seus mais antigos
navegantes, deram o nome de Rio Negro.
150
se forma além dos pátios da ferrovia” (SAMPAIO, 2010, p. 33). Enquanto a
cidade in, tem sua população inicial composta por trabalhadores estrangeiros,
a cidade out se constituía por povos originários ou migrantes de outras regiões
brasileiras. Deste modo, nas rias apresentadas em Mello (2007), os igarapés
atuam como que “rios internos“, ofertando à população de seu entorno, não
apenas caminhos de acesso aos “rios externos” à Manaus, mas também pro-
vendo-os com água, peixes e oportunizando eventuais ocupações (catraieiros,
remadores, vendedores ambulantes, carregadores).
Quanto ao conceito de Fluvitório, este se originou dos estudos em-
preendidos pela pesquisadora Martine Droulers (2017) acerca da formação
territorial da Amazônia. De acordo com Droulers (2017, p.2), o conceito surge
a partir do:
151
sistemas territoriais sempre mais integrados se fez aos poucos na medida
em que a sociedade amazônica se estruturava. A cada época, a complexidade
dos processos opera de maneira concomitante, cada vez com mais amplitu-
de e precisão.
152
Tabela 1- Tabela Cronotemática do fazer territó-rio na Amazônia
Processos Lugares
Exploração Ocupação Organização
Século Emblemáticos
Expedições
fluviais Amazônia
Aldeamento dos Missões
17 oriental (Pará e
índios religiosas
Maranhão)
Rio-Mar
Cidades
Bipado-
estratégicas Oeste
Freguesia
Expedições
18 Fronteiras flu- Mato Groso
Cartográficas <<Ilha Brasil >>
viais
Guaporé
Monções
Minas
Migrantes Seringais Alto dos Rios
Naturalistas
Latifúndio – Borracha
Afluentes do
19
Amazonas
Acre
Telégrafo
Caboclos Aviamento
Estradas
153
Podemos observar na tabela apresentada anteriormente, a relação es-
tabelecida ao longo dos séculos, entre o processo de exploração, ocupação e
a organização exógena do espaço amazônico. Desta forma, verificamos que
a Amazônia, a partir das primeiras expedições fluviais, tem sido revelada ao
mundo através dos registros literários que testemunham e dão conta do que se
passou ao longo do tempo em meio aos diversos processos de exploração, ocu-
pação e organização, que configurou o espaço amazônico. Constatando, que
desde as primeiras expedições fluviais nas águas amazônicas, a importância dos
rios da região é central não apenas nos processos de exploração, organização e
configuração do espaço, conforme propõe Droulers (2017), mas também nas
narrativas literárias. Assim, ao analisar tais aspectos verificou-se a possibilidade
de relacionar a cada período histórico a produção literária (real ou ficcional)
elaborada da/na Amazônia. Deste modo, a partir da adaptação da tabela cro-
notemática de Martine Droulers, apresentamos a relação entre a ocupação dos
rios, a conformação do “territó-rio” Amazônico e os registros Litera-rios.
Lugares
Processos Obra
Organiza- Gênero
Exploração Ocupação
ção Emblemá- Literário
Século Autor
ticos
- “De Orbe
Novo De-
* Chegada cades Octo”
de Pinzón (1501)
à foz do rio
de Pietro
Amazonas
Martire
(1500)
d’Anghiera
Expedições
XVI
- “Descubri-
Marítimas e
Não houve miento del
fluviais *Navegação Relatos de
Não houve río de las
da Calha do Viagem
Amazonas Amazonas”
por Orella- (1541,1542)
na e Pizarro
de Gaspar
(1541/1542)
de Carvajal
154
Novo des-
cobrimento
do grande
Expedições
Amazônia rio das
fluviais Aldeamento
Missões oriental Relatos de Amazonas
dos indíge- (1641)
Rio-Mar religiosas (Pará e Viagem
nas
XVII Maranhão)
de Cristóbal
de Acuña
Cidades
Bispado- Oeste Muhuraida
estratégicas (1785)
Freguesia
Expedições Mato Gros- Poema
XVIII Fronteiras
cartográficas “Ilha Brasil” so épico -Henri-
fluviais que João
Monções Guaporé Wilkens
Minas
Naturalistas Scenas
Migrantes da Vida
Seringais Alto dos
Afluentes Amazônica
Borracha Rios
XIX do Amazo- Latifúndio – Contos (1886)
nas Aviamento Acre
Caboclos José Verís-
Telégrafo simo
Estradas Marajó
Colonização Amazônia
Cobertura (1947)
agrícola, Legal
aérea Pan Ama-
Mineração
XX zônia Romance Dalcídio
Interflúvio
IBGE – Jurandir
Metropoli- Criação de
Radam Bacia
zação Municípios
Ykamiabas-
Imagens de
Filhas da
Satélites Urbanização
Eixos multi- lua, mulhe-
generalizada Floresta
Biodiversi- modais res da Terra
XXI dade Hidro- Hidrovias Romance (2008)
Zoneamen-
logia
Usinas hi- tos Am- Regina
Fluvitórios
Sustentabi- drelétricas bientais Melo
lidade
155
em meio aos processos de exploração, ocupação e organização do espaço ama-
zônico nos últimos cinco séculos.
Quantos aos aspectos literários, ou melhor, litera-rios, é possível veri-
ficar a presença dos rios nas narrativas de viagem dos séculos XVI e XVII, à
exemplo das cronísticas de Carvajal (1541-42) e Acuña (1641), apresentan-
do-nos as impressões e registros dos colonizadores europeus acerca do espa-
ço amazônico, fornecendo relatos descritivos da geografia da região, marcada
pelo imenso e desconhecido rio, até o encontro com o mar, bem como por sua
fauna, flora e por sua gente, testemunhando a importância estratégica des-
tas expedições para os colonizadores europeus (espanhóis e portugueses em
sua maioria) realizarem a navegação e mapeamento de toda a extensão do rio
Amazonas, pois ao conhecerem tais caminhos fluviais, poderiam controlar e
ocupar mais facilmente a região.
No século XVIII, o território da atual Amazônia, sob a égide do projeto
colonizador português, buscava pôr em prática a política expansionista engen-
drada pelo Marquês de Pombal, cujo objetivo era reorganizar o território, a
economia, a política indigenista nas vilas, visando não apenas obter e explorar
as riquezas naturais encontradas na região, mas também assegurar a expansão e
a ocupação portuguesa no vale amazônico, através da ampliação e demarcação
das novas fronteiras. Em meio a este contexto turbulento, marcado por confli-
tos de interesses religiosos e mercantilistas (entre a Igreja Católica e o Impé-
rio português), o militar português Henrique João Wilkens, escreve o poema
épico Muhuraida (1785), que se destaca por ser o primeiro texto poético de
estrutura épica escrito em língua Portuguesa, no território que hoje se confi-
gura como amazônico. O destaque litera-rio deste período, narra a empreitada
colonizadora dos portugueses, frente à resistência dos indígenas da etnia mura
quanto ao processo de pacificação e cristianização. Nesta narrativa, os rios am-
bientam a espacialidade da trama do poema, destacados espaços fluviais. O rio
Amazonas, é retratado ainda pelo autor, como “novo Oceano”, servido por “mil
Rios”, que recolhidos pelo Amazonas, vai “soberbo e sem reparo”, arrastando
terras e arvoredos até se precipitar no mar, Wilkens (2017, p.13).
156
No século XIX, marcado pelas expedições naturalistas percorrendo os
afluentes do Amazonas, dentre as obras literárias produzidas à época, destaca-
mos a obra “Scenas da Vida Amazônica” (1886), do jornalista, escritor, crítico
literário, José Veríssimo. De acordo com Silva (2017, p. 42) tem como lugar
a “Amazônia oitocentista, período que compreende a passagem do império
à primeira república brasileira.”, reunindo contos e esbocetos, apresentados
como um conjunto cênico voltado para dar a conhecer os simbolismos ati-
nente às culturas amazônicas (principalmente a popular). Ao longo da obra,
Veríssimo (2011), consegue nos apresentar com realismo as culturas amazôni-
cas de sua época, destacando a interação entre o homem, as forças da natureza,
particularmente a importância dos rios não apenas como espaço que ambienta
as tramas narrativas, mas como referenciais dos mitos amazônicos.
Dentre as tantas obras produzidas ao longo do século XX, acerca do
contexto amazônico, cuja temática literária se configure como narrativa lite-
ra-rio, escolhemos o romance Marajó (1947), do escritor paraense Dalcídio
Jurandir, autor de um importante conjunto de obras literárias, denominado
“Ciclo do Extremo-Norte”. Em Marajó, Jurandir (2016), articula ao universo
mítico amazônico, os vários personagens e a prodigiosa natureza do arquipé-
lago homônimo- entrecortado por um intricado labirinto de água doce (rios,
igarapés, furos) e água salgada (oceano Atlântico).
Ykamiabas, filhas da lua, mulheres da terra (2004), da escritora, poeta e
compositora amazônida, Regina Melo, é a obra escolhida para representar o
registro litera-rios do século XXI. O romance teve origem da pesquisa empre-
endida pela autora, ao longo de 12 anos, sobre as mulheres guerreira do vale do
Amazonas, é o primeiro livro da trilogia mitológica escrita por Melo, da qual
constam ainda os romances “Oceano primeiro – mar de Leite, rio da Criação”
e “A Fênix e o dragão – paixão e eterno retorno”. Além da intertextualidade
narrativa acerca da configuração do imaginário amazônico, o texto, nos apre-
senta a temática sob a perspectiva feminina.
Além dos exemplos litera-rios elencados acima, destacam-se as produ-
ções literárias de Thiago de Mello acerca da Amazônia, particularmente a obra
157
Amazonas, pátria da água (1987,1990, 2007), a qual será examinada sob o viés
litera-rio, logo à frente.
Demonstrada a relação entre a ocupação dos rios, a conformação do
territó-rio Amazônico e a produção de registros Litera-rios, apresentar-se-á
as bases teóricas deste conceito, apoiando-se principalmente nas reflexões de
Bachelard (2001, 2018), bem como na perspectiva da “aquonarrativa” proposta
por Nunes (2004).
Acerca do vasto conjunto da obra bachelardiana, a qual costuma ser
dividida em duas vertentes: a diurna e a noturna. Enquanto na obra diurna
Bachelard aborda os conceitos, atinentes à epistemologia da ciência ( relacio-
nada ao conhecimento objetivo e claro); na obra noturna o foco está voltado
para as imagens relacionadas ao universo simbólico da poesia, do devaneio,
do imaginário e do sonho, marcada por arquétipos e padrões associados aos
quatro elementos: fogo, água, terra e ar. Considerando, que iremos aprofundar
a análise do elemento água, utilizamos como fundamento, textos da vertente
noturna, destacadamente: a A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da ma-
téria (2018), e O ar e os Sonhos: ensaios sobre a imaginação do Movimento (2001).
Assim, em A água e os sonhos, Bachelard (2018, p.11) realiza um ensaio
de estética literária, cujo duplo objetivo é “determinar a substância das imagens
poéticas e a adequação das formas às matérias fundamentais”. Neste intento,
o autor analisa as relações do elemento água ao devaneio poético apresentados
nas obras literárias que examina. O autor busca ainda, distinguir e apresentar o
psiquismo hidrante, ou seja, a “participação” que é própria do pensamento das
águas. Ao longo da obra, o autor se ocupa em comprovar a existência “sob as
imagens superficiais da água, de uma série de imagens cada vez mais profun-
das, cada vez mais tenazes “(BACHELARD, 2018, p.6).
Principiando sua classificação, pelas “águas claras, as águas primaveris
e as águas correntes” consideradas pelo autor como imagens superficiais, ou
seja, aquelas “que atuam na superfície do elemento, sem deixar a imaginação
tempo para trabalhar a matéria” (BACHELARD, 2018, p. 11). Na sequência,
o autor apresenta “as águas profundas – as águas dormentes – as águas mortas”,
que são as águas dos lagos sombrios, dos pântanos, as águas imóveis evocando
158
seus mortos, ressaltando o autor, que embora possamos descobrir nas águas a
alegria e a dor, “o conto da água é o conto humano de uma água que morre”
(BACHELARD, 2018, p. 53). Ao discorrer sobre as “águas compostas”, o
autor enfatiza a capacidade da água em combinar-se com os demais elemen-
tos (BACHELARD, 2018, p.98), referindo-se também às “águas violentas”,
as quais desde os mitos primitivos, são costumeiramente vinculadas ao mar,
cuja melancolia é ativamente atroz, destoando da melancolia poesca das “águas
mortas” (BACHELARD,2018, p.184). Trata ainda do evemerismo potencial
aplicado ao elemento água, o qual permite supor “a supremacia da água das
fontes sobre as águas do Oceano” (BACHELARD, 2018, p.158), pois confor-
me prossegue o autor:
O rio, malgrado seus mil rostos, recebe um destino único; sua fonte tem a
responsabilidade e o mérito de todo o curso. A força vem da fonte. A ima-
ginação quase não leva em conta os afluentes. Ela quer que uma geografia
seja a história de um rei. O sonhador que vê passar a água evoca a origem
legendária do rio, sua fonte.
159
-rio, particularmente os conceitos referentes ao psiquismo hidrante, bem como
às diversas imagens do elemento água e ainda aos elementos ressoadores (que
propiciam um ecoar poético-semântico ao psiquismo hidrante), nos ocupare-
mos, agora, em apresentar a aquonarrativa, outro importante aporte teórico,
para a construção da categoria litera-rio (BACHELARD, 2018, p.10).
Uma gota de água poderosa basta para criar um mundo e para dissolver
a noite. Para sonhar o poder, necessita-se apenas de uma gota imaginada
em profundidade. A água assim dinamizada é um embrião; dá à vida um
impulso inesgotável.
160
rias da/na Amazônia, tal conceito não se circunscreve a este contexto, poden-
do ser utilizado/aplicado às mais diversas narrativas, onde esteja presente o
psiquismo hidrante dos rios, manifesto nas várias imagens das águas e em seus
elementos ressoantes, conforme nos aponta Bachelard (2001,2018), bem como
na “aquonarrativa” cuja marca é fazer jorrar das páginas as liquidoamplivivên-
cias autorais, que permeiam tais narrativas.
161
no psiquismo hidrantes e seus elementos ressoadores, bem como na aquonar-
rativa, verifica-se a presença das diversas características e tipologias das águas
amazônicas presentes na rica prosa poética de Amazonas, pátria da água, como
no excerto apresentado a seguir, do capítulo intitulado “As tantas almas da
água” (MELLO, 2007, p. 26 – 28):
A lei do rio não cessa nunca de impor-se sobre a vida dos homens. É o
império da água. Água que corre no furor da correnteza, água que leva, água
que lava, água que arranca, água que se oferta cantando, água que se des-
penca em cachoeira, água que roda no rebojo, água que vai, ainda bem que
começou a baixar, mas de repente volta em repiquete, água de rio que quase
não corre, um perigo quando vento vem, o vento não avisa, água que se
agarra no vento para poder voar, água que gosta de ficar parada no silêncio
do igapó. Água de fundura muita, mais de cem braças de fundo, no silêncio
do abismo se movem lentas as gigantescas piraíbas cegas. Igarapés estreitos,
como o do Pucu, com o encanto de suas curvas que me conhecem tanto,
pode vir a maior vazante, que ele nunca se fecha seco, jamais mostra o fundo
de seus leitos. Água rasa transparente, água rasa barrenta, onde as arraias de
ferrão de fofo se espalham de manhã cedinho. Água de boca de lago, água
redonda de cabeceira de rio. Água imóvel: no lago do Marcelo, ali atrás do
paraná-mirim da Eva, quando o uirapuru canta, toda a floresta fica silen-
ciosa, os outros pássaros param de cantar e as águas também ficam imóveis,
escutando, de vez em quando a pele delas estremece. Água atravessada de
capim de margem a margem, ilhas verdes que cantam no vento, água cober-
ta de chavascal, de aninga de folhas grossonas, o caboclo caminha por cima
da espessa vegetação entrelaçada, a gente chega, escuta o barulho dos peixes
assustados debaixo dela. Água de doenças: água de ameba, água de febre ne-
gra. Mas também água de cacimba: no ardor úmido da selva, o olho-d’água
se ofertando frio, nunca para de minar. As águas medonhas das cachoeiras
do Alto Aripuanã. As águas barrentas do Solimões, do Madeira, do Juruá,
do Purus. As azuis do Tocantins, as verdes do Tapajós, do Xingu.
162
fugidias. Porém, em função da unidade do elemento, essas imagens se reorga-
nizam, de modo que o espelho das águas, de acordo com Bachelard (2018, p.
27) tem a função psicológica de naturalizar nossa imagem, devolvendo “um
pouco de inocência e naturalidade ao orgulho de nossa contemplação íntima”.
O que podemos verificar em Mello (2007, p.26) na “água que leva”, na “água
que lava”, na “água que se oferta cantando”, na “água rasa transparente”, na
“água de boca de lago, água redonda de cabeceira de rio”.
Quanto às “águas profundas – as águas dormentes – as águas mortas”,
Bachelard (2018, p. 51), a partir da análise da obra de Edgar Poe, afirma que “o
destino das imagens da água segue com muita exatidão o destino do devaneio
principal que é o devaneio da morte”. Assim, as águas profundas, as águas si-
lenciosas, as águas insondáveis, são as águas dos lagos sombrios, dos pântanos;
são as águas imóveis a evocarem os mortos (visto que as águas mortas são águas
dormentes), tais como as águas apresentadas por Mello (2018, p.26) “Água de
fundura muita, mais de cem braças de fundo, no silêncio do abismo se movem
lentas as gigantescas piraíbas cegas.” A “Água imóvel: no lago do Marcelo, ali
atrás do paraná-mirim da Eva”, a “Água de doenças: água de ameba, água de
febre negra.”
Com referência às “águas compostas”, Bachelard (2018, p.98) ressalta
que a água é elemento mais favorável para ilustrar os temas da combinação
dos poderes (combinação entre os elementos primordiais). Dentre as misturas,
Bachelard (2018) destaca que “O limo é a poeira da água, como a cinza é a
poeira do fogo. Cinza, limo, poeira, fumaça darão imagens que trocarão indefi-
nidamente”. Sendo o limo, uma das matérias mais valorizadas, pois, de acordo
com o autor, “ao que parece, sob essa forma a água trouxe à terra o próprio
princípio da fecundidade.” (BACHELARD, 2018, p.114). Podemos verificar
a fecundidade das águas compostas em Mello (2007, p.30) “Grandes vazantes
significam fartas as colheitas: a terra da várzea inundada é fertilizada pelo rio,
que lhe acrescenta sais minerais e matérias orgânicas.”.
Acerca da “água maternal e a água feminina”, afirma Bachelard (2018,
p.120) que “sentimentalmente, a natureza é uma projeção da mãe”. O autor,
ao discorrer sobre os aspectos que fazem da “água um leite inesgotável, o lei-
163
te da natureza Mãe” afirma que a marca da água é profundamente feminina,
desta maneira “ao lado da mãe-paisagem tomará lugar a mulher-paisagem”
(BACHELARD, 2018, p.131). A presença da “água maternal” e seu manan-
cial fecundo e vivificador, em “Amazonas, pátria da água”, pode ser observado,
particularmente, no capítulo “Tudo depende da água”, no qual Mello (2007,
p.30) enfatiza a importância primordial do ciclo das águas na vida do homem
amazônida “não só no interior das florestas, na beira dos rios “, influenciando
também as cidades e os grandes centros urbanos da região, fazendo-os sentir
todos “os efeitos generosos ou adversos, da subida ou da descida das águas”.
Quanto à “água violenta”, de acordo com Bachelard (2018, p.184) “é um
dos primeiros esquemas da cólera universal. Por isso não há epopeia sem uma
cena de tempestade”. O autor destaca ainda que, a melancolia das “águas vio-
lentas” é ativa e atroz, diferentemente da melancolia poesca das “águas mortas”.
(BACHELARD,2018, p.184). As águas violentas, costumam ser associadas ao
mar, desde os mitos primitivos. Assim, acerca da água violenta, dentre os belos
exemplos apresentados por Mello (2007), transborda o capítulo “O ímpeto do
rio, a vingança do mar”, que além de apresentar diversas tipologias da água,
evidencia o percurso do rio Amazonas, de sua nascente até seu encontro/em-
bate violento com as salgadas águas do oceano Atlântico.
Deste modo, verifica-se a partir do exposto acima, que Amazonas, pá-
tria da água (2007), propicia navegar e adentrar nas tantas almas da água, per-
mitindo ilustrar os elementos característicos do conceito litera-rios, os quais
estão ancorados teoricamente no psiquismo hidrante e nas múltiplas imagens
da água que nos traz Bachelard em A água e os sonhos (2018), bem como na
ideia dos elementos “ressoadores” apresentados pelo autor em O ar e os sonhos
(2001), propondo que tais elementos, ecoariam palavras ou termos vinculados
semanticamente aos objetos poéticos dos quais derivam.
No caso em tela, os ressoadores do elemento água, ecoam o psiquismo
hidrante, “como os adjetivos que vão prolongar sua cadência, sua vida temporal”
(BACHELARD, 2001, p.5), fazendo ressoar o elemento água, conforme dis-
põe a aquonarrativa proposta por Nunes (2004). Deste modo, destacamos aqui
alguns dos termos e palavras que se encontram relacionados ao elemento água,
164
em Amazonas, pátria da água (2007), dentre os quais: água, águas subterrâne-
as, água dos Andes, nuvens, água doce, úmido, rios, mar, chuvas, neve, escorre,
remando, proa do casco, quilhas, caravelas, batelão, várzea, encalhada, pântanos,
friagem, mananciais, estagnados, Atlântico, foz, oceano, Paraná-açu, margens,
navegador, tributários, águas paradas, vitórias-régias, caudal, calha, baía, salga-
das, embocadura, adocicado, ondas, pororoca, margens, navios, correnteza, água
que leva, água que lava, água que arranca, água que se oferta, cachoeira, rebojo,
repiquete, parada, igapó, fundura, igarapé, curvas, rasa, transparente, funda, suja,
barrenta, ilhas, água de doenças (água de ameba, água de febre negra), água de
cacimba, olho-d’água, águas negras, águas verdes, águas de todas as cores, canoa,
ciclo das águas, “primeiras águas”, enchentes, vazante, lago, transbordando, pes-
carias, assoalho, palafitas, alagando, várzea, motor, “boca do rio”, barcos, canoas,
remo de faia, catraia, favela fluvial, margens, “beirinha”.
Assim, em “Amazonas, pátria da água”, navegamos em meio a escritos
carregados de um lirismo franco e, por vezes, insubmisso, dos quais transbor-
dam poemas e prosas poéticas, ou melhor, narrativas aquopoéticas, que descre-
vem, em pinceladas certeiras, as múltiplas imagens que nos traz as águas (mais
especificamente dos rios), destacando não apenas o quanto o rio condiciona o
comportamento humano, mas também denunciando os males que os homens
causam à natureza.
Considerações
165
dos aspectos geohistóricos, mas também com relação aos registros literários
da/na Amazônia, apresentando profundas e poéticas relações entre o mundo
das águas, suas interações e interpretações pelo ser social, demonstrando a im-
portante possibilidade por meio de espacialidades e geografias locais, a partir
da observação das rugosidades e especificidades que tornam as interações so-
ciais diferenciadas e integradas ao meio ambiente. É importante destacar, que
embora o conceito litera-rio, tenha se originado a partir da análise do contexto
amazônico, a ele não se limita, podendo ser aplicado na análise literária de
outros rios deste vasto mundo. Tendo como base, os pressupostos teóricos que
ancoram o conceito litera-rio, têm como principal fonte o psiquismo hidrante,
as múltiplas imagens do elemento água e os elementos ressoadores, apresen-
tados por Bachelard (2001, 2018), aos quais se complementa os elementos da
aquonarrativa proposta por Nunes (2004).
Deste modo, considera-se a possiblidade de observar as relações hu-
manas por meio dos rios, reais ou literários. Permitindo concluir que entre
histórias, sonhos, devaneios e vida, os rios podem ser vistos como caminhos
para ampliar a percepção da poética e do imaginário das águas, em sua mais
profunda relação entre cultura e natureza.
REFERÊNCIAS
166
CARVAJAL, Frei Gaspar de. Descubrimiento del rio de las amazonas apud José
Toríbio Medina. Edição de Sevilla, 1894. In: MEDINA, Juan B. Bueno em:
https://www.cervantesvirtual.com/obra/descubrimiento-del-rio-de-las-ama-
zonas--0/
MELLO, Thiago de. Amazonas, pátria da água e Notícia da visitação que fiz
no verão de 1953 ao rio Amazonas e seus barrancos. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1987.
MELLO, Thiago de. Amazonas: pátria da água: Patrie de l’eau. São Paulo: Bo-
catto, 1990. Fotografias de Luiz Cláudio Marigo. Tradução para o francês:
Luciano Lopreto e Maria Suzana Moreira do Carmo.
167
MELLO, Thiago de. Amazonas: pátria da água: Water heartland. São Paulo:
Sver & Boccato, 1990. Fotografias de Luiz Cláudio Marigo.
MELLO, Thiago de. Amazonas: pátria da água: Whater heartland. São Paulo:
Bocatto, 2007. Fotografias de Luiz Cláudio Marigo.
168
TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: Uma Interpretação da Ama-
zônia. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 1988. 284 p. Apresentação de Gilberto
Freyre
VERÍSSIMO, José. Cenas da vida amazônica. São Paulo: Wmf Martins Fon-
tes, 2011
169
REPRESENTAÇÕES DO IMAGINÁRIO AMAZÔNICO NO
CONTO “O MENINO E O TREM”, DE VIRIATO MOURA
Introdução
Este trabalho tem como objetivo geral analisar a maneira pela qual
se instituem representações da locomotiva e do espaço poético amazônico
no conto “O menino e o trem”, de Viriato Moura, publicado em 2013 no
livro intitulado Trem vivo: viagem ao imaginário da Ferrovia do Diabo. Por
assim dizer, a proposta específica é a apreciar imagens e formas discursi-
vas presentes na narrativa, a fim de averiguar o modo como se firma uma
relação entre o universo da floresta e as descrições do trem, traduzida na
narrativa por uma metafórica viagem feita pela Estrada de Ferro Madeira-
-Mamoré (EFMM).
Nesse sentido, vale ressaltar que vários teóricos que se debruçaram
sobre a história dessa misteriosa linha férrea trazem em seus escritos dados
que contextualizam aspectos a respeito de sua localização geográfica, bem
como do cunho regional multicultural, criado por causa da concentração de
trabalhadores advindos de inúmeras regiões nacionais e internacionais. Por
esse enfoque, lembramos que (DOS SANTOS, 2021, p. 380):
170
que ocorreria uma das mais expressivas concentrações de cunho multicul-
tural da Amazônia brasileira, e, por outro, representasse a tentativa de se
instaurar à força a modernidade na selva.
Nota-se que o lugar em que a linha férrea foi edificada tornou-se mui-
to popular no Brasil e no Mundo, em especial, devido às “condições precárias
nas quais os trabalhadores se encontravam [...] Assim, “muitos deles morriam
durante a empreitada. Em virtude das lendas de assombração ou de morte, a
Madeira-Mamoré passou a fazer parte do imaginário popular, ficando conheci-
da, por exemplo, como Ferrovia do Diabo ou da Morte” (DOS SANTOS, 2021,
p. 380). Em vista disso, pode-se dizer que a narrativa de “O menino e o trem” é de
certa forma alimentada por essa mesma impressão do imaginário que por déca-
das rondou e ainda faz parte do cotidiano de muitos habitantes da cidade porto-
velhense. Não por acaso, no início do conto, o narrador da obra de Viriato Moura
destaca que “Um trem atravessou a infância do menino” (MOURA, 2013, p. 23).
Em toda a narrativa, portanto, a viagem do garotinho é acometida pela suntu-
osidade da máquina e pela exuberância da selva, pautando significativamente
o imaginário vivificado em um momento especial da infância que influenciará
toda a existência da personagem. Não sem motivo, sabendo-se que o conto é um
recorte de um episódio distinto, Viriato Moura, segundo as premissas teóricas de
Julio Cortázar (1993, p. 151-2), poderia definir sua arte da narrativa breve
171
logia da literatura e sua correlação com a crítica imanente, conforme sugere
o crítico Antonio Candido. Por essa perspectiva, seguindo as observações de
Cortázar sobre o conto como fragmento de uma atmosfera muito mais ampla
e significativa do que o mundo ordinário, partiremos do pressuposto de que
as questões presentes em um determinado ambiente social advêm diretamente
do universo – intrínseco – da produção estética. Por esse prisma, em sua obra
Literatura e Sociedade (2000, p. 13-14), Candido explica o funcionamento de
um método dialético da análise literária, dizendo que
hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma des-
sas visões dissociadas (estrutural e histórica); e que só a podemos enten-
der fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra,
em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos,
quanto outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente
independente, se combinam como momentos necessários do processo in-
terpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não
como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha
um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.
172
Na esteira das reflexões pontuadas acima, para a consecução de nos-
sos objetivos, traçamos no decorrer do texto um debate teórico com obras
de João de Jesus Paes Loureiro (2001), Sandra Jatahy Pesavento (2002), Neide
Gondim (2019), Michel Pollack (1992), Julio Cortázar (1993), Walter Benjamin
(1994), Paul Ricœur (2007), entre outros. Além disso, conforme o mencionado
acima, serão trabalhados aspectos teóricos do estruturalismo e da sociologia
da literatura, com intuito de verificar a forma como o conto intitulado “O
menino e o trem”, de Viriato Moura, problematiza a dialética entre os fatores
sociais, políticos, históricos, em consonância com os elementos da própria
narrativa. Assim, acreditamos que imagens e formas discursivas propagadas
por este texto literário representam parte de um expressivo imaginário popu-
lar, atinente à Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, às configurações do trem,
bem como a uma determinada poética da Amazônia.
Começamos a nossa análise de “O menino e o trem”, observando a
proposta do título do livro em que a narrativa de Viriato Moura foi publi-
cada, isto é, Trem vivo: viagem ao imaginário da Ferrovia do Diabo. Perce-
be-se que os autores que fazem parte dessa coletânea1 tinham por objetivo
excitar os limites da imaginação, tendo como pano de fundo a conhecida “Fer-
rovia da Morte”. Não por acaso, no local em que foi construída a linha férrea
até hoje há muitas histórias populares, as quais destacam temas, como, por
exemplo, o medo, a morte, fantasmas, entre muitos outros. Assim, ribeirinhos,
indígenas e outros habitantes de regiões citadinas, por meio da história da
construção da Estrada de Ferro, fomentam um peculiar exercício da memória.
Retomando os preceitos teóricos de Paul Ricœur (2007, p. 71), sabemos que
173
cedida, designa a face cognitiva da recordação, ao passo que o esforço e o
trabalho se inscrevem no campo prático.
174
imagens assombrosas etc. No caso da construção da Estrada de Ferro Madei-
ra-Mamoré, o imaginário local foi fomentando desde a chegada de operários
que relataram suas experiências em torno da sobrevivência e da morte. Em cada
dormente assentado, em cada metro de trilho posto, tudo isso forneceu matéria
imaginativa para confeccionar centenas relatos ou de estórias. É dessa forma
que “[...] a Amazônia apresenta-se como uma realidade cujos limites mais am-
plos são fixados pelas falas que foram construindo durante séculos a ideia de
que, nela, toda experiência humana está de algum modo envolta no mistério
da floresta e das águas” (SILVA, 1998, p. 23). É nesse sentido também que,
mesmo abordando o tema da floresta, é necessário apontar o trem e a ferrovia
como ícones deste sistema imaginário, porque pontuam uma singular história
pautada no ideal de civilização, a qual a máquina atravessaria por décadas, até
ser vencida e transformada por fim em ruínas.
No trajeto de sua existência histórica, o advento da construção da
Estrada de Ferro revela a maneira como o imaginário se apresenta, sobre-
posto “à ideia de representação, evocação, simulação, sentido e significado,
jogo de espelhos onde o ‘verdadeiro’ e o aparente se mesclam, estranha com-
posição onde a metade visível evoca qualquer coisa de ausente e difícil de per-
ceber”. (PESAVENTO, 1995, p 24). Destacando a correlação entre lendas
e mitos compostos no cenário da floresta, “O menino e o trem”, de Viriato
de Moura, trata da analogia entre experiência e infância, por meio de um
jogo lúdico entre simulação, sentido e significado, instituído em torno de
imagens e formas discursivas da Amazônia e, em especial, da máquina.
Por tal prisma, existe um poema chamado “Quando o trem passa”, do
escritor portovelhense Antonio Cândido da Silva (1997) que representa de
maneira muito forte essa representatividade entre sentimentos e locomotiva,
assim como o saudosismo das memórias em torno dela:
175
Passa em silêncio, sem lançar teu grito
pois a saudade há muito descansa
no escrínio da memória que não cansa
do velho trem que se tornou meu mito
176
destacamos: Haicais mutantes; Doses mínimas de máximas: 300 reflexões de um
médico; Ritual de catarse: poesia como terapia; Labirinto com rota de saída; Trem
vivo: viagem ao imaginário da Ferrovia do Diabo, no qual encontramos o con-
to intitulado “O menino e o trem”.
A narrativa trata da história da viagem de uma criança com seus avós
pela já remota Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), demarcando o
período de grande atividade da locomotiva. O relator dos eventos destaca o
trajeto da linha férrea que as pessoas faziam de Porto Velho até Guajará-Mi-
rim, durante a primeira metade do século XX, dando-lhe contornos de magia,
em meio às paisagens que se formam no caminho, delimitado pelas florestas,
cachoeiras, árvores exóticas etc. De tal maneira, o papel do sujeito da enun-
ciação é pontuar momentos em que o imaginário2 e a fantasia do protagonista
adquirem configurações distintas (MOURA, 2013, p. 23):
177
é intenso o sentimento definido pela voz do narrador, quase se torna possível
sentir a alegria e a ansiedade que envolve o menino, explicando-nos a sua visão
de mundo, projetada de dentro do trem. Nota-se que a representação de ima-
gens e formas discursivas é tão abrangente que a experiência delimitada pela
viagem, pontuada por uma brincadeira da infância, fará parte de toda trajetória
de vida do garotinho. Em sua excursão, o menino passa a subverter tudo aquilo
que era visto, isto é, traduzindo magicamente coisas do universo adulto para o
ambiente infantil. Nesse sentido, teoricamente, o filósofo alemão Walter Ben-
jamin (2009, p. 107, 108) observa que na infância
178
cachoeiras que não existem mais, devido à construção de usinas ou à destrui-
ção sistemática propagada pela derrubada de uma parte significativa da mata;
apenas persistem essas imagens na lembrança e são retomadas, pelo garotinho,
a fim de pontuar o mundo mágico de outrora, em relação às ruínas de um mo-
mento presente. Portanto, pode-se dizer que, para o narrador de “O menino
e o trem”, é somente pela perspectiva da infância que é possível explorar esse
universo misterioso e quase olvidado. Além disso, o conto de Viriato Moura
pontua ainda mais a mencionada relação entre imaginação e fantasia, ao res-
saltar que (MOURA, 2013, p. 24):
179
zônia torna – se um fertilíssimo campo de germinação para as produções do
imaginário do homem, na fruição, no compartilhamento, na intervenção ou
na explicação simbólica de sua realidade.
180
essa narrativa de Viriato Moura fornece, por um lado, a partir da história do
garotinho, uma síntese de emoções ou de sentimentos que fazem até hoje parte
de um imaginário coletivo em torno da exuberância de um paraíso perdido;
e, de outro, representa múltiplos sentidos que permitem a determinado leitor
reconhecer imediatamente os significados que giram em torno da imagem do
“Trem Fantasma” e da “Ferrovia do Diabo” (MOURA, 2013, p. 24):
O trem, em marcha rítmica, seguia imponente até sua parada para pernoite
em Abunã, uma das vilas à margem da via férrea. Ao desembarcarem, os
passageiros foram para um tosco hotel de madeira no meio do quase nada.
O garoto e seus avós ficaram no mesmo aposento. Não havia comodidade.
Os carapanãs produziam um ruído incômodo que espantava o sono. Mos-
queteiros os protegiam das picadas desses transmissores de doenças, prin-
cipalmente de malária. Porém, o menino continuava viajando na dimensão
sem limites de sua criatividade lúdica. Arquitetou até uma estratégia de
fuga para si e para seus avós se a hospedaria fosse atacada por índios ferozes.
Mas logo o sono o alcançou para amainar o cansaço provocado pela viagem
de dia inteiro.
181
[...] Com as ferrovias, muito claramente, a técnica se desgarra das formas
que a produziram e assumem feição sobrenatural. A paisagem dos cami-
nhos de ferro torna-se, assim, remota, cujo duplo sentido dá conta das rup-
turas operadas simultaneamente nas relações com o tempo e com o espaço,
podendo-se aí configurar tanto como localidade perdida quanto época ir-
resgatável. A ordem cronológica quebra-se: o tempo da locomotiva – aquela
que já fora celebrada como deusa do progresso – permaneceu parado. As
coordenadas geográficas esboroam-se: o trem extraviou-se em algum ramal
solitário, em alguma estação sem nome. Por isso, velhos ferroviários guar-
daram esse idêntico ar de mistério. Seus relatos possuem um toque épico
indisfarçável. Sua memória não tem começo nem fim.
182
tem a drástica consciência da mudança espacial e temporal, a qual tem a função
de demarcar a transformação de sua própria visão de mundo, exemplificada na
trajetória daquele garotinho (MOURA, 2013, p. 25):
183
gados pela infância. Nesse contexto, abordamos os conceitos de imaginário
e de poética amazônica, apresentando de que forma eles se configuram no
conto e na proposta do livro Trem vivo. De certa maneira, considerando as
estórias e causos que, até hoje, permeiam o imaginário coletivo, em especial,
de parte da população que habita o estado de Rondônia até a fronteira de
Guajará-Mirim, esse assunto torna-se ilimitado, abrindo um leque para inú-
meras propostas de pesquisas literárias, históricas, sociais, antropológicas etc.
Não por acaso, atualmente, há um conjunto de escritores que se propõem
a confeccionar trabalhos que seguem essa linha fértil de pesquisa que visa
valorizar o universo amazônico.
REFERÊNCIAS
184
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1993.
ORTIZ, Fernando. El contrapunteo cubano del azúcar y del tabaco. Cuba: Edito-
rial de ciencias sociales, La Habana, 1983.
185
POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, vol.5, n.10, Rio
de Janeiro, 1992, pp. 200-212.
SILVA, Laélia. Acre: prosa e poesia (1900-1990). Rio Branco: UFAC, 1998.
186
UM HORIZONTE POÉTICO NAS ÁGUAS AMAZÔNICAS
DAS OBRAS DE DALCÍDIO JURANDIR
Introdução
187
da técnica narrativa que enfoca, além da crítica social diante da situação eco-
nômica vivida na época, mas também análise psicológica, dando destaque ao
íntimo das personagens mesmo diante da paisagem da Amazônia, o que torna
Dalcídio um autor singular no período.
Suas narrativas entrelaçam, em um universo representativo da vida co-
tidiana amazônica, os dramas humanos vividos por seus personagens em suas
micro-histórias mediadas por suas relações com a sociedade local. Com uma
visão de quem nasceu e cresceu na Amazônia, a produção dalcidiana difere
daquela que muitos fizeram sem nunca ter sequer nela pisado, ou ainda por elas
apenas transitado de maneira passageira. Nesse sentido, Maligo (1992) analisa
que o conjunto da obra “representa um contraponto à literatura naturalista dos
primeiros trinta anos do século XX, [...] os romances de Jurandir exibem um
nível de realização formal que os coloca entre os melhores da literatura brasi-
leira de após-Modernismo” (1992, p. 48).
188
linguagem quanto na estrutura. Das outras cinco edições citadas no estudo, as
três seguintes foram publicadas pela Editora Cejup/Belém nos anos de 1991,
1995 e 1997. Esta última, uma edição especial publicada em um consórcio em
que também participaram a editora Secult/Pará e o jornal A Província do Pará.
Em 1998 saiu a 6ª publicação, uma edição crítica, pela editora UNAMA, a
partir de estudos realizados pela professora Rosa Assis. Em 2011 foi publicada
a 7ª edição pela editora 7 Letras, do Rio de Janeiro, também revisada pela pro-
fessora Rosa Assis. Ela considerou a edição do texto definitivo pois, conforme
explicou na própria obra, a edição tomou como base um “exemplar da primeira
edição inteiramente ‘emendado’ pelo autor [...] e que alcançou em torno de
95% das páginas” ( JURANDIR, 2011, p. 9). As alterações foram tantas que
até um dos vinte capítulos da obra inaugural foi retirado, justamente o que deu
nome à obra. Em 2019, a Parágrafo Editora, a partir de um financiamento co-
letivo realizado através do site Catarse, publicou a 8ª edição da obra inaugural,
retomando integralmente o texto original.
Obra de estreia do romancista, Chove nos campos de Cachoeira foi pu-
blicada em 1941 e tem sua narrativa encenada em Cachoeira do Arari, espaço
onde se apresenta a história da família do menino Alfredo, mediada pela atua-
ção do narrador que ora acompanha a perspectiva desse personagem, ora a do
seu irmão Eutanázio. A atuação do narrador, com seu discurso indireto livre,
traz a marca do romance moderno na composição literária de Dalcídio Juran-
dir. É uma estratégia composicional que marca toda sua produção literária.
Em Chove nos campos de Cachoeira (2011) Alfredo e seu meio irmão Euta-
názio dividem a função de narrador. Na condição de filho mestiço, Alfredo às vezes
tem, ainda que em pensamento, vergonha da cor de sua mãe, para, em seguida, re-
criminar-se por assim ter pensado. É descrito como um garoto feridento e sonhador
que traz consigo um caroço de tucumã, tratado como um amuleto mágico capaz
de transportá-lo a qualquer lugar. Alfredo cresce sob as influências culturais dos
pais, dos índios da região e de toda a miscigenação cabocla local. Nesse aspecto,
o caroço reveste-se de uma simbologia que se relaciona, pelo formato arredonda-
do, à origem do mundo. Alfredo vê, na pequena semente de palmeira, um portal
de fuga onírico, empregando ao caroço de tucumã significados que remetem às
189
culturas indígena e negra. Para ilustrar esse fato, basta lembrar que anéis feitos
desse material já eram utilizados por índios e negros na época da escravidão, como
símbolo de amizade e de resistência pela liberdade. Alfredo tem um meio irmão
com o nome, não por acaso, de Eutanázio, que lembra o termo eutanásia. Sofre
com a sífilis, o que justificaria seu nome, e parece não se importar com a aproxi-
mação da morte e com o amor não correspondido de Irene. Major Alberto é um
funcionário que acumula dois cargos distintos, o de secretário de Intendência e o
de adjunto do promotor público, o que faz com que os moradores lhe olhem com
desconfianças. Representa uma classe dominante e colonizadora em decadência.
D. Amélia, mãe de Alfredo, personagem feminina, negra e de condição econômica
inferior à do marido, por sua atuação despertará a atenção de muitas personagens,
seja por sua união com um homem branco de condição social diferente, seja por
suas ações benevolentes diante da comunidade. Embora seu campo de atuação seja
basicamente o familiar, suas ações são respostas inquestionáveis aos preconceitos
impostos à mulher amazônida nas suas condições. Dessa forma, a narrativa traduz
a vivência que somente um autor nascido na região teria condições de transformar
em ficção o cotidiano de uma realidade social e cultural amazônica. O resultado é
uma produção que recria e descreve a vida de moradores comuns, com seus proble-
mas pessoais, sociais, políticos e financeiros, utilizando-se de uma linguagem culta,
poética e com expressões locais.
A segunda obra do Ciclo é Marajó, publicada em 1947, também é, se-
gundo Bolle (2014), a que contém a maior diversidade de informações sobre
a cultura cabocla. Segundo o pesquisador, o episódio central da obra é um
utópico projeto de melhoria social, empreendido pelo protagonista, o filho re-
belde de um latifundiário. Com essa utopia social e a opção do romancista por
essa figura de mediação entre ricos e pobres – no plano da ação narrada, como
na tradução da cultura cabocla para o código do leitor culto – o romancista
apresenta um tema que é relevante tanto para as ciências sociais quanto para os
estudos literários e culturais. Essa obra aguardou oito anos entre sua conclusão
e publicação. Nesse período, segundo a pesquisadora Marlí Tereza Furtado
(2015), mudou de título três vezes: ao ser concluída, Jurandir a intitulou como
“Marinatambalo”, primeiro nome da ilha de Marajó. Posteriormente, Dalcídio
190
adotou o título “Missunga”, mesmo nome de uma das personagens da obra.
Marajó foi, então, o terceiro título adotado de forma definitiva por Dalcídio,
quando de sua publicação.
Em 1952, o escritor viaja à União Soviética e, em 1959, publica
Linha do parque, o único romance que não se integra ao Ciclo do Extremo
Norte. Sua edição russa foi lançada em Moscou em 1961, com apresenta-
ção de Jorge Amado.
Três casas e um rio, publicada em 1958 é a terceira obra do Ciclo. O mar-
co diferencial dessa produção, segundo a pesquisadora Marlí Furtado (2015),
é o entrecruzamento de três planos narrativos: o da realidade ficcional, que dá
conta do plano de ação das personagens, conforme suas diferentes trajetórias;
o do imaginário popular como elemento da tessitura do enredo ou como nar-
rativas recontadas por uma personagem, conforme suas diferentes trajetórias;
e o da simbologia, que salta do entrecruzamento dos dois planos anteriores e
da função que neles exercem diferentes elementos do ambiente, como a água,
o fogo, as árvores, certos acontecimentos, signos que remetem ao absconso, ao
mítico, ao arquétipo e ao esotérico.
A quarta obra do Ciclo é Belém do Grão Pará. Publicada em 1960 é o
primeiro romance urbano do ciclo. O cenário é a Belém da década de 1920,
remodelada aos moldes parisienses pela gestão do senador Antônio Lemos,
mas que registra, sobretudo, a decadência econômica que assola a sociedade
em razão da queda do primeiro ciclo da borracha. Conforme analisa Ferreira
(2016), nos tempos áureos desse produto, o político foi responsável por di-
versas medidas urbanísticas que visavam transformar a “cidade de Belém em
uma capital ao estilo parisiense” (2016, p 404). Nessa obra, que é o primeiro
romance urbano do ciclo, Alfredo realiza o sonho de estudar em Belém, mas
também se decepciona pela dura realidade da cidade em decadência, conforme
analisa Furtado (2010, p. 43), referindo-se a Alfredo:
Seu grande sonho é ir para Belém estudar. Temos, então, um dado interes-
sante: a cidade de Belém aparece na obra com duas faces, uma delas bela,
luminosa, próspera e feliz, preenchendo os sonhos de Alfredo; e a outra,
191
pobre, suja, lamacenta. Rejeitada por ele, posto ser esta a de suas recordações
de uma viagem que para lá fizera com os pais.
192
Ponte do Galo, sétima obra do ciclo, apresenta um Alfredo adolescente,
aluno do ginásio e que retorna, de férias, ao Chalé em Cachoeira do Arari.
Publicada em 1976 a sétima obra do Ciclo é dividida em duas partes com
os títulos I e II marcando, respectivamente, a volta ao Chalé, em Cachoeira
do Arari e, posteriormente, o retorno à Belém. A primeira parte o narrador
e protagonista Alfredo, de volta ao Chalé, relembra momentos do passado
vividos com personagens que já não estão presentes, como os irmãos Eutanázio
e Mariinha, além de personagens da vizinhança, como Didico, Salu e outros. A
segunda parte, Alfredo, também como narrador, focaliza seu retorno hos agora
sem a visão encantadora e inocente de outrora. Belém agora reveste-se de uma
áurea de cidade de periferia, desprovida de belezas e decadente.
A oitava obra do Ciclo é Os Habitantes, publicada em 1976. Nela temos
a continuação da saga do agora adolescente Alfredo, com aproximadamente
dezessete anos. O jovem vive momentos conflituosos, seja pelo mistério que
envolve o desaparecimento de Luciana, caçula do coronel Boaventura, seja pe-
las decepções com os estudos no Liceu. Conforme salienta Souza (2019), a
obra é marcada por um forte aspecto memorialista, recheada de monólogos
interiores e poucos discursos diretos, que retomam histórias e lembranças de
diversas personagens de obras anteriores.
Chão dos Lobos, penúltima obra do Ciclo do Extremo Norte, publicada
também em 1976, tem Alfredo, mais uma vez, como protagonista. Subdividi-
da em cinco partes, todas sem título, a obra é densa, com várias alternâncias
do foco narrativo e perpassadas por cenas marcadas por variações do fluxo de
consciência. A primeira parte mostra a vida de Alfredo como morador da fa-
vela “Não-Se-Assuste”, zona Norte de Belém. Na segunda, ao lado de Alfredo,
a professora d. Nivalda também se torna protagonista. Na terceira parte o en-
foque são as festas tradicionais da cultura paraense celebradas em junho, como
o boi bumbá e o São João. A quarta tem como tema as desilusões de Alfredo
com Roberta e com a perda da matrícula no ginásio, fazendo com que ele de-
cida viajar ao Rio de Janeiro. A viagem ao Rio de Janeiro é o tema da quinta e
última parte, que se encerra quando Alfredo consegue embarcar em um navio
193
cargueiro de volta a Belém, depois de muitas desilusões naquela cidade que o
levaram a ter saudade até da vista de sua janela na favela.
Ribanceira é a obra que fecha o Ciclo do Extremo Norte. Publicada
em 1978, narra a estadia de Alfredo, agora com 20 anos, na pequena cidade
de Gurupá, exercendo a função de Secretário da Intendência. Muito mais que
um intendente, Alfredo atua como um atento observador e participante ativo
da cultura ribeirinha. Como intendente, Alfredo interage com os habitantes da
ribanceira, construindo uma narrativa em fluxo contínuo e um detalhado registro
da cultura local e da sociedade gurupaense. O período abordado na narrativa é o
final da década de 1920 e o início da década de 1930, justamente um período de
grande declínio econômico em função da queda do preço da borracha. Esse fato
culminou com um longo período de desestruturação social, revelado na narrativa
pela aparência decrépita dos prédios públicos e das moradias. “A própria deno-
minação de ‘Ribanceira’ sugere uma recaída do espaço urbano nos domínios da
selva” (BOLLE, 2014, p. 96) Essa situação só viria a dar sinais de recuperação no
fim da narrativa, graças à iniciada exploração da madeira.
194
apenas três anos após, o mesmo Jorge Amado, em análise sobre os novos autores
do romance brasileiro, defende a ideia de que, em 1934, não se admitiriam auto-
res sem posição política. No Brasil, a crise política, em função da desavença entre
as oligarquias paulista e mineira, resultou na Revolução de 30 e na tomada do
poder por Getúlio Vargas, deixando o ambiente político e social bastante dividi-
do. No mundo, os reflexos da Grande Depressão de 29 ainda estavam presentes
em muitas sociedades e impunham restrições severas às famílias.
A literatura, como qualquer arte, não pode e não deve limitar o artista e
sua produção dentro de padrões estabelecidos através do espaço, tempo, estru-
tura ou tema, sob pena de, nessa busca incessante de enquadramentos, ignorar
durante anos, décadas ou mais ainda, séculos, obras que, de outra forma, teriam
seu merecido valor reconhecido no tempo em que foram escritas. Afinal, como
bem define Dacanal (1986, p. 09):
195
ciliano Ramos, Jorge Amado, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Raquel (Sic)
de Queiroz, Cyro Martins, Ivan Pedro de Martins e Aureliano de Figueiredo
Pinto” (DACANAL, p. 11). Entretanto, sob esse aspecto da divisão entre ro-
mance social-regional e romance psicológico, a questão central é saber se ela
ajuda ou atrapalha a compreensão do impacto da produção dessa época “sobre
a história da literatura brasileira” (BUENO, 2015, p. 37). Alfredo Bosi, como
lembra Bueno (2015, p. 37), já fez referência ao problema:
196
seguintes, obras icônicas da literatura brasileira com temáticas urbanas, como
Érico Veríssimo, Jorge Amado e Graciliano Ramos.
Diante da ausência de um conceito apaziguador, que pacifique o en-
tendimento, Dacanal (1986) sugere considerar algumas características básicas
como definidoras do “romance de 30”. Segundo o autor, seriam três caracterís-
ticas de natureza técnica e quatro de natureza temática. A primeira delas está
relacionada à “verossimilhança”, ou seja, a narrativa é verossímil, semelhante
à verdade, sem quebras das leis físicas ou biológicas. Se não ocorreu, pode-
ria ter ocorrido. Essa característica é facilmente percebida nas obras do Ciclo
do Extremo-Norte, cujos fatos narrados correspondem claramente àquilo que
ocorreu, como a decadência econômica da região em razão da derrocada do 1º
Ciclo da Borracha, entre os anos de 1870 e 1920, ou em relação aos dramas das
personagens, sempre realistas ou muito próximas disso.
A segunda característica relaciona-se à estrutura da narrativa, através da
opção fundamentalmente linear. Não é que inexistam rompimentos da lineari-
dade, mas é inegável que tais recursos são utilizados com discrição e parcimô-
nia e não chegam a comprometer essa classificação. Essa característica também
está presente, de forma geral, na produção dalcidiana e mais especificamente,
na obra inaugural do Ciclo, Chove nos campos de Cachoeira (2011). Ainda que
haja algumas quebras da linearidade, se tomarmos a narrativa como um todo,
estão claramente definidos o começo, o meio e o fim.
A terceira característica tem relação com a linguagem utilizada, nor-
malmente, há a opção pelo código gramatical culto. Quanto a esta característi-
ca, duas explicações se fazem necessárias, a primeira, de natureza prática: não é
que inexistam termos coloquiais na narrativa, mas que estes estão relacionados
às personagens secundárias, com pouco ou nenhum estudo. A segunda expli-
cação se relaciona com o espaço urbano e as normas gramaticais inerentes a ele
que a produção será direcionada. Isso não significa uma aproximação do ro-
mance de 30 com o artificialismo linguístico utilizado nas produções do século
XIX, apenas um fato inerente às questões econômicas, sociais e culturais do
Brasil daquela época. Também essa característica é facilmente perceptível na
obra estudada, seja nas falas de Alfredo ou Eutanázio, personagens principais
197
que se revezam na função de narradores. Os termos coloquiais que fogem aos
padrões cultos estão vinculados às personagens secundárias, normalmente sem
instrução e que de outra forma, trariam um aspecto artificialista ao texto.
A quarta característica relaciona-se às estruturas históricas das obras,
facilmente identificáveis nas narrativas através das características sociais e eco-
nômicas. As personagens dessas narrativas compõem um cenário multiface-
tado que representam as estruturas presentes em qualquer sociedade, como as
que apenas integram o conjunto de viventes, as que lutam por transformações
sociais, ainda que a delas próprias, ou as que são constantemente, vítimas da
sociedade. A obra em análise possui várias personagens que se relacionam ple-
namente a essa característica, mas vamos ficar com as principais, Alfredo e
Eutanázio. O primeiro sonha em sair do lugar em que vive e ir morar na cidade
grande, já que o futuro onde mora é limitado. O segundo sofre de sífilis, que foi
um grande problema de saúde pública na época, uma doença que irá levá-lo à
morte, mas pouco faz para mudar sua trajetória.
A quinta característica podemos considerar um aprofundamento da
anterior, pois refere-se ao fato de que as estruturas históricas citadas nas nar-
rativas dessa geração são, geralmente, agrárias. Quando diferem desse aspecto,
situam as personagens no mundo urbano, mas os vinculam ao agrário, de onde,
geralmente, surgem os conflitos do enredo. A Amazônia focalizada por Juran-
dir vai de “1920, com retrospectivas à época áurea da borracha, encerrando o
último romance da série com alusões à revolução de outubro de 1930” (Furta-
do, p. 193). Com relação à obra Chove nos campos de Cachoeira (2011), esta ca-
racterística pode ser relacionada aos espaços descritos no enredo, que envolvem
tanto o ambiente interiorano quanto o urbano. Não cabe aqui destacar este ou
aquele como de maior relevância, já que ideia de sair do interior rumo à cidade
vai ganhando corpo à medida que Alfredo vai crescendo e acaba se alternando
no decorrer das demais obras que compõem o Ciclo do Extremo-Norte.
A perspectiva crítica é outra característica que Dacanal (1986) destaca
nas produções dos romancistas de 30. De fato, muitas obras associadas a esse
grupo, trazem, de forma mais clara ou menos explícita, posicionamentos em
relação à política, às questões sociais e econômicas que envolvem as persona-
198
gens em suas tramas. Se tomarmos como exemplo a obra Marajó, basta lembrar
que no episódio central, Missunga, apelido de Manuel Coutinho Filho, filho
rebelde de um latifundiário, empreende um utópico projeto de colonização de-
nominado “Felicidade”. Pura ironia, afinal, Missunga descobrirá os problemas
que o impedirão de concretizar “Felicidade”. A trama tem uma forte crítica
social ao narrar as dificuldades para quebrar paradigmas que mantinham a
miséria, a desigualdade e o poder dos coronéis no arquipélago paraense.
A última característica a ser destacada nas obras dos romancistas de 30
faz alusão a um forte otimismo na capacidade de reformar o que está errado
e contornar os problemas. A capacidade das personagens de modificar-se e
com isso construir um mundo novo, o seu mundo novo, a partir da apreensão
de tudo que o rodeia, sem qualquer barreira entre o real e o racional, é um
dos aspectos destacados nas obras desse período, segundo Dacanal (1986). O
exemplo mais marcante é Paulo Honório, da obra São Bernardo, com sua crue-
za naturalista, cuja evolução patrimonial é impressionante, ainda que discutível
eticamente, mas sem qualquer recurso milagroso de herança, dote ou prêmio,
muito comum nas obras românticas. Entretanto, Bueno (2015) ressalta o fato
de que essa afirmação não integra a obra, baseia-se em algo fora dela. Segundo
ele, o mundo é passível de transformação nos romances de 30, porém, não há
registro de qualquer narrativa que configure tal facilidade, nem mesmo nas
obras de Jorge Amado, considerado o mais engajado dos romancistas da época
e que, por consequência, deveria ser o mais otimista.
Com destaque à obra de estreia de Dalcídio Jurandir, de fato, como afir-
ma Bueno (2015) pode-se afirmar que Alfredo vislumbra um futuro promissor
em Belém, longe de onde mora. Podemos ainda citar a personagem Amélia em
situações distintas: quando decide mudar de vida, até então de muito trabalho
e sofrimento; e de lugar, ao aceitar o convite para acompanhar Major Alberto
e com ele iniciar uma relação conjugal. Também quando Amélia demonstra
determinação em enviar Alfredo para estudar em Belém, nem que para isso
tivesse que voltar a trabalhar na cidade para sustentá-lo. Se tomarmos a obra
Marajó (1947), temos mais uma referência de uma “vontade” de transformar o
real, quando Missunga tenta implantar o projeto de colonização na ilha. Os
199
destaques acima podem confirmar um certo otimismo de mudança de rota,
porém, não há qualquer demonstração de que elas foram fáceis ou mesmo que
ocorreram, como no caso de Missunga, bastando a “vontade dos indivíduos e/
ou do grupo para que a consciência, que domina o real, o transforme” (DACA-
NAL, 1986, p. 15).
Considerações
200
As obras do Ciclo do Extremo-Norte caracterizam-se pela temática
amazônica, narrativa em terceira pessoa com diálogo e monólogo interior.
Dos dez romances do Ciclo, nove deles focalizam a vida de Alfredo entre
a infância e a adolescência. Marajó, única obra que não tem Alfredo como
personagem principal, é também, segundo Bolle (2014) a que possui, sobre a
cultura cabocla, a maior quantidade de informações.
Se a produção dalcidiana causa curiosidade quando, hoje, avaliam-se
os motivos pelos quais, apesar de premiada quatro vezes, não alcançou o su-
cesso editorial e crítico nas décadas passadas, associando-o muitas vezes a um
escritor menor, a história está sendo reescrita atualmente. Diversos estudiosos
vêm contribuindo para o redescobrimento do importante legado de Dalcídio
Jurandir e, se no passado seu nome foi associado a autores com menor expres-
são literária, atualmente essa associação não encontra respaldo nos meios aca-
dêmicos e literários. Referindo-se às obras de Dalcídio Jurandir, Paulo Nunes
(2001) considera que a interiorização densa com experiência interior o afasta
da produção regionalista, sendo genuinamente uma característica dalcidiana.
REFERÊNCIAS
BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Univer-
sidade de São Paulo/Campinas: Editora da Unicamp, 2015.
201
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, 2002.
COSTA, Regina Barbosa da. Imagens de leituras em Chove nos campos de Cacho-
eira, de Dalcídio Jurandir. 2014. 107 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade
Federal do Pará, Instituto de Letras e Comunicação, Belém, 2014. Programa
de Pós-Graduação em Letras. Disponível em: http://repositório.ufpa.br:8080/
jspui/handle/2011/5936. Acesso em: 15/05/2018.
202
HAGE, José Elias Pereira. Figurações do pobre em Dalcídio Jurandir: do Chalé
à rua das Palhas em Chove nos campos de Cachoeira. 2015. 131 f. Dissertação
(Mestrado) Universidade Federal do Pará, Instituto de Letras e Comunicação,
Belém, 2015. Programa de Pós-Graduação em Letras. Disponível em: http://
repositorio.ufpa.br/jspui/bitstream/2011/7977/1/Dissertacao_FiguracoesPo-
breDalcidio.pdf . Acesso em: 30/08/2019.
203
CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA, DE DALCÍDIO
JURANDIR E O CENÁRIO DO ROMANCE DE 30
Introdução
204
em situação de decadência refletida na vida das personagens e na re-
criação do cenário amazônico onde se devolvem suas tramas narrativas.
Marli Tereza Furtado, pesquisadora de Dalcídio, afirma que o autor de-
monstrou em seu projeto literário (SOIHET, 2004, p. 325):
205
toiévski e Guimarães Rosa. Trata-se de uma crítica que reconhece o lugar que
Dalcídio deveria ocupar, porque sua literatura é nata e peculiar.
Imerso nesse contexto de recepção crítica, temos o primeiro romance
de Dalcídio, Chove nos campos de Cachoeira, introduzido no meio literário como
“rebento primogênito do ciclo Extremo Norte”. Nas palavras de Paulo Nunes
(2000), traz uma narrativa forte, com vasto teor existencialista e as dualidades
do mundo no ser humano como o bem e o mal, morte e vida, bom e ruim,
amor e ódio, céu e inferno, saúde e doença. Convém ressaltar que o tema sobre
doença é recorrente nesta obra, pois suas personagens revelam suas mazelas
físicas ou psicológicas em suas trajetórias na narrativa.
O espaço encenado é povoado por personagens carentes, simples e com
seus problemas comuns a qualquer ser humano. Embora ficcionalmente, as
personagens que trafegam em Cachoeira do Arari espelham as pessoas que pas-
saram por uma década conturbada de doenças graves e sem cura como a sífilis,
doença disseminada já no fim do século XIX. Nesse contexto histórico, essa
doença se tornou um problema de saúde pública tornando a vida das pessoas
mais difícil, pois com dificuldades financeiros não tinham como se tratarem.
Na corrida pela sobrevivência, buscavam superar seus limites e com isso o psi-
cológico de cada indivíduo ficava afetado a ponto de travarem um conflito
existencial. Chove nos Campos de Cachoeira simboliza essa questão existencial,
conforme revela a passagem: “Há uma necessidade do mal num ser humano.
A sua perversão que pula do inconsciente é como uma advertência. Em Euta-
názio, a perversão como sempre vinha do espírito. O instinto é sempre puro”.
( JURANDIR, 1976, p. 142). Apesar dos conflitos internos, todas as persona-
gens dessa obra sofriam de algum mal físico. As doenças existentes nessa época
eram a grande preocupação das pessoas na situação de miséria que se encon-
travam, pois se adoecessem, não tinham como custear o tratamento e, com isso,
a única saída era se preparar para a morte, conforme revelam os excertos:
206
vermelho de cachaça com limão, bradava:
_ É a influenza em Cachoeira e o bolchevismo nas estepes! ( JURANDIR,
1976, p. 89).
[...] _ Todos perdem, é isso. Todos perdem. Estou perdendo meus pulmões
aqui nesta barraca velha. Casa velha que já está arriada. Poeira. Não posso
me tratar. Acabo tísica. ( JURANDIR, 1976, p. 101).
207
livros publicados, dez formam o chamado Ciclo do Extremo Norte: Chove nos
Campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três Casas e um Rio (1958), Belém
do Grão - Pará (1960), Passagem dos Inocentes (1963), Primeira Manhã (1968),
Ponte do Galo (1971), Os Habitantes (1976), Chão de Lobos (1976), Ribanceira
(1978) e um livro publicado isoladamente desse ciclo, intitulado Linha do Par-
que (1959). Todos escritos entre 1939 e 1978.
O romance Chove nos campos de Cachoeira (1941) é a primeira obra de
Dalcídio Jurandir, a que abre o Ciclo do Extremo Norte. Para Moreira, “Chove nos
Campos de Cachoeira é um livro embrionário no qual estariam todos os temas
futuramente desenvolvidos nos outros nove romances do ciclo Extremo Norte”
(2015, p. 137). A partir desse embrião, os temas e personagens serão retoma-
dos nas obras seguintes. É nessa obra que nasce a saga de Alfredo, protagonista
que corre em busca do sonho de ir estudar em Belém. Ao manusear o caroço de
tucumã nas mãos, o menino Alfredo cria um mundo imaginário, uma espécie
de microcosmo ( JURANDIR, 1976, p. 21):
208
narrativa é perpassada pelo teor psicológico, que, sobretudo, evidencia um
cenário amazônico sofrido, decaído, doente, características de uma época difícil
afetada pelos horrores da guerra.
Esse cenário de destruição do pós-guerra também deixou marcas no
Brasil e atingiu as pessoas que sobreviveram e que passaram a não ter pers-
pectiva de vida. Esse período marcou a vida das pessoas que, pelo devaneio,
buscavam o que queriam ser ou fazer para melhorar suas vidas. Surge, assim,
um período em que todas as desgraças eram narradas em forma de romance.
Sobre essa atuação do romance, Cortázar (1993, p. 65) afirma:
209
tação de obras criadas a partir dessas desgraças, sob o argumento de que isso
não era romance e que qualquer um podia escrever.
No romance, a história narrada passa pela decadência da região norte,
pela pobreza das pessoas, mas, sobretudo, é enviesada pelos sonhos, angústias,
aflições e desejos de cada personagem em suas buscas pela sobrevivência. É o
caso do protagonista Alfredo, um menino que sonha em morar em Belém, por-
que quer ter a oportunidade de um estudo melhor e usufruir do que a cidade
poderia lhe oferecer (DALCÍDIO, 2011, p. 79-80):
Quando for para Belém não que ir para aquela cidade triste, cheia de lama,
com meninos sujos, homens rotos e tisnados que passavam carregados de
embrulhos, com carrinhos de mão vendendo bucho, com uns velhinhos ba-
tendo na porta e estendendo a mão [...]. Queria ver o Círio, a Santa na
berlinda, [...] o museu, queria ao menos ver os colégios e as livrarias onde se
vendiam as histórias maravilhosas que sempre desejava.
210
Embora seja uma denominação sem muita ênfase, essa fase trouxe para
nossa literatura a questão regional, religiosa e social em obras escritas no calor
da desigualdade, da pobreza e na questão ideológica de um país melhor. Ainda
segundo Dacanal (1986), fazem parte desse cenário escritores como Graciliano
Ramos, Jorge Amado, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Cyro Martins, Ra-
quel de Queiroz, Ivan Pedro de Martins e Aureliano de Figueiredo Pinto. Em
comum, produziram obras de temáticas agrárias e escreveram na década de 1930.
Com isso, o enfrentamento para se dispor de uma literatura conserva-
dora, romântica e naturalista gerou no meio literário conflitos entre os autores
das primeiras fases do modernismo, culminando na negação de obras consi-
deradas intimistas, ruralista e artificial. Segundo Pereira, apareceram “surtos
regionalistas”. (1957, p.187). Dentro dessa questão, os escritores não se intimi-
daram com as críticas e passaram a escrever de maneira verossímil, ressaltando
contextos históricos lineares, que representavam a realidade de um país em
decadência política, econômica e social. Surge assim, a literatura de denúncia
social, de pobreza regional, de conflitos rurais e urbanos, que ganharam des-
taques em obras de grandes escritores como O Quinze (1930), de Raquel de
Queiroz; Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos; Usina (1936), de José Lins
do Rego, dentre várias outras que tematizaram sobre os aspectos acima citados.
Nesse sentido (DACANAL,1986, p.10),
Dentro desse contexto, Chove nos campos de Cachoeira é uma obra intros-
pectiva, densa e intensa, que narra a história de pessoas simples, com sonhos
e desejos comuns, que almejam um final feliz em suas vidas. Narra também a
pobreza do povo da Amazônia, o psicológico do ser humano como fuga, numa
tentativa de se sentir em outra realidade. Fala das doenças incuráveis como
a sífilis, resultado de uma era de guerra que transforma a vida das pessoas em
apreensões e medo da morte. Mostra a decadência social, moral, econômica e
211
pessoal, temáticas que vão ao encontro da caracterização do romance de 30.
Sobre o romance social brasileiro de 30, Bueno (2015, p. 23) afirma:
212
em um cenário diferente. Há a representação de uma Amazônia destruída pelo
fim do ciclo da borracha, fim da guerra que, mesmo de longe, afetou até a mais
remota região e refletiu nos moradores da Ilha de Marajó, onde cada um conta o
que lhes aflige e suas perspectivas para dias melhores ( JURANDIR, 1976, p. 38):
213
tre escritores do próprio modernismo, os chamados da primeira geração, aque-
les da semana de 22 que relutavam em aceitar as narrativas de seus sucessores,
dizendo ser uma literatura ruim, imprópria e regionalista. Assim definiam os
autores que fizeram parte da geração de 30, regionalistas (BUENO, 2015).
Sob essa ótica, o termo regionalista carrega o peso, o estigma de uma
literatura menor. Contudo, se era uma época em que o contexto literário estava
voltado para os problemas sociais de cada região, torna-se incompreensível a
não aceitação de escritores que escreveram sobre sua região, mas não tiveram
o privilégio de se consagrarem grandes escritores. Segundo Maligo: “desenvol-
veu-se na direção de uma tomada de consciência de questões regionais. Neste
contexto, seu interesse parecia mais voltado a relações sociais do que a proble-
mas culturais” (MALIGO apud Bosi, 1992, p. 48).
Motivada por essas características, a geração de 30 criou seus romances
envoltos num quadro de crises sociais, porque era o contexto daquele momen-
to, os problemas peculiares de cada região serviram de inspiração para seus
escritores. Contudo, somente três ou quatro se destacaram nessa época: Graci-
liano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
No entanto, outros escritores também fizeram parte desse cenário e
mereceriam ser estudados com mais profundidade, não pela delimitação do re-
gional, mas pela produção artística que se configuram suas obras. O não reco-
nhecimento dessa literatura os impelem à margem. Conforme analisa Maligo
(1992), foi o que aconteceu com Dalcídio Jurandir, um autor que “permanece
relativamente ignorado pelos críticos literários, da mesma forma como a maior
parte da literatura de inspiração amazônica é praticamente desconhecida de
editores e estudiosos” (1992, p.48).
Grandes escritores foram e ainda são ignorados por fazer uma literatura
de expressão regional, por escrever sobre sua origem ou sobre o povo da sua re-
gião. Foi o que fez Dalcídio, escreveu sobre sua região e, principalmente, sobre
seu povo e tudo que o envolvia, questões sociais, culturais e psicológicas, em
um momento quando tudo se encontrava em desarmonia.
Corroborando essa ideia de vidas decaídas na obra, Moreira em seu ar-
tigo sobre A recepção de Chove nos campos de cachoeira afirma que “o fato da obra
214
ter seu enredo contado no norte do Brasil, já foi o principal motivo para que os
críticos a colocassem sob suspeição” (2015, p. 132). Dessa forma, fica evidente
que houve uma não aceitação das obras originadas na década de 30 por alguns
críticos. Essa recusa partiu, inclusive, de escritores que lançaram suas críticas a
respeito dos novos autores que iam surgindo com suas temáticas regionais, psi-
cológicas e sociais, deixando os primeiros modernistas com certa indignação.
Nesse sentido, para esses críticos, o regionalismo configurava-se em um
fenômeno momentâneo, desprovido de valor literário, sem nenhuma denomi-
nação mais relevante como arte. Entretanto, havia quem se manifestasse em
defesa da nova geração, como nos mostra Luís Bueno (2006, p. 46):
215
anjos e S. Pedro com as chaves no céu. O sol nascia e morria. Queria apren-
der para mudar o sol. O sol nascer na meia-noite. Mudar de rumo. Em vez
de sentar no poente desaparecer no meio-dia. Que a gente não dormisse.
Enfim saber ler e escrever para mudar a face das coisas.
216
mances possuem grande relevância para a literatura nacional e representam
um modelo particular de quem consegue escrever sobre as dualidades do ser
humano. O maniqueísmo relacionado às crises existenciais do ser humano,
os conflitos econômicos e políticos de sua região, bem como a profundidade
psicológica de suas personagens dão o tom a sua escrita. Esse existencialismo
tão presente na obra de Dalcídio, configura-se na dualidade que o ser humano
possui diante do bem e do mal, do amor e do ódio, do certo e do errado, ou seja,
diante das escolhas que o indivíduo pode fazer, os caminhos que pode seguir e
engendram o percurso das personagens na narrativa.
Chove nos campos de Cachoeira concentra essas temáticas que têm conti-
nuidade nos outros noves romances que sucedem e mostram o desfecho de cada
personagem nascida nessa primeira obra. Essa criatividade faz com que o leitor
busque nas outras obras a sequência da trajetória das personagens, principal-
mente no protagonista que luta em busca de realizar seu sonho. Com exceção do
personagem Eutanázio, que tem seu desfecho na primeira obra, os outros ainda
vão se fazer conhecer, exemplo de Dona Amélia, mãe de Alfredo, que Dalcídio
vai contar sua história na obra Três Casas e Um Rio, terceiro romance do ciclo.
As leituras feitas sobre a biografia e a fortuna crítica do autor possibili-
tam afirmar que Dalcídio deixa nuances de sua trajetória de vida reveladas na
narração do menino Alfredo, atrelando seus sonhos a uma realidade difícil na
época, que era a de estudar numa cidade grande e conseguir garantir um bom
futuro. Em meio às adversidades que são narradas, Dalcídio nos transporta
para um período conflitante de injustiças, doenças, misérias em todo país. E a
região que um dia era protagonista de belezas exóticas, transforma-se em um
cenário arrebatador, tenso e perigoso para as pessoas que ali moravam. Com
isso, vai se tecendo um enredo em que os dilemas de pessoas humildes se trans-
formam numa narrativa enviesada com muitos devaneios e fugas da realidade
presente, ora para o passado nostálgico, ora para o futuro próspero. Assim,
temos na obra “o principal assunto de Jurandir que é a vida das pessoas de
situação econômica menos favorecida”, (MALIGO, 1992, p.49). Trata-se de
uma temática recorrente em todos os seus romances, mas que, nessa primeira
obra, é pertinente porque mostra o início da degradação do ser humano frente
à situação de pobreza, doenças incuráveis, desprezo e paixão.
217
Considerações
REFERÊNCIAS
BUENO, Luís. Uma História do Romance de 30. São Paulo: Editora da Univer-
sidade de São Paulo/Campinas: Editora da Unicamp, 2015.
218
DACANAL, José Hildebrando. O romance de 30. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1982.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Prosa e ficção. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1973.
219
OS FIOS DA HISTÓRIA NA TESSITURA FICCIONAL EM
A NOITE DA ESPERA, DE MILTON HATOUM
Introdução
220
criação realizado sobre esses fatos. Nesse sentido, ganha destaque a recriação
de cenários, a criação de personagens, o trabalho realizado com a linguagem,
enfim a seleção e a combinação de elementos que permitem à obra ultrapassar
a reprodução do real.
É no ato criativo, portanto, que convergem os caminhos da História e
da ficção, pois se a escrita da primeira se ocupa de eventos que fazem referência
a situações observáveis em determinados tempo e espaços, a escrita ficcional se
ocupa tanto desse tipo de evento quanto de outros imaginados ou inventados.
Assim, ao tratar dos mesmos eventos da História, o procedimento adotado
pela literatura é emoldurar os eventos dessa natureza em um universo regido
pela imaginação.
221
Já houve tempo em que o ficcionista pode ter invejado o historiador ou,
pelo menos eventualmente, tenha se sentido inferiorizado por não dispor
dos mesmos recursos, isto é, da intimidade com os documentos, para alcan-
çar o que se supunha ser o acesso à Verdade, uma entidade com existência
própria.
222
do esse viés de enriquecimento, Weinhardt (2002, p. 109) afirma: “Em trânsito, a
literatura teve mais a oferecer à teoria da história do que a buscar nela”.
Mesmo quando um autor escreve sobre uma época sem ter vivido nela, é
importante ter em mente que um literato é um artista, e artistas não precisam
produzir obras condizentes com a realidade. É natural que no processo de pro-
dução da obra o escritor pesquise sobre a época (o acontecimento, personagem,
cenário) que quer abordar em seu texto, e a adapta como quiser, tornando-a
ficcional. Milton Hatoum fez isso durante a produção de sua obra A noite da
espera (2017). Ao usar como cenário a Ditadura Militar brasileira muitos anos
após ela já ter sido abolida, Hatoum revela, na composição estrutural da sua
obra, a presença de eventos que marcaram esse período da história do Brasil,
empregando-os como referência na retomada do tempo: “Asa Norte, Brasília,
março, 1968” (HATOUM, 2017, p. 26); na constituição dos cenários: “Numa
quinta-feira de agosto, quando o campus da UnB foi invadido e ocupado, pro-
fessores, alunos e deputados da oposição foram espancados e presos” (p. 54); na
construção das personagens: “Disse a Ângela que coleciona retratos e frases do
marechal Costa e Silva. Agora, o álbum está inchando com as fotos do general
Médici e textos de decretos e atos institucionais” (p. 84.).
Contudo, a presença do factual no ficcional não é suficiente para con-
fundir História com literatura, bem como para se considerar que a versão apre-
sentada pela ficção é verdadeira e expressa o real. Nesse sentido, a obra nos
adverte de que: “Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no
universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem
opinião sobre eles” (HATOUM, 2017, p. 4). Na obra de Hatoum, a poética que
perpassa toda a narrativa deixa claro que o objetivo não é provar que uma parte
ou outra do enredo realmente ocorreu, mas apontar as referências empregadas
pelo autor na composição estética do seu romance.
223
obras traduzidas e estudadas em outros países. Hatoum nasceu em Manaus
em 1952, descendente de libaneses, estreou na ficção com a obra Relato de um
certo Oriente (1989). Esse seu primeiro romance rendeu-lhe o prêmio Jabuti. A
obra tem características que marcam o estilo de escrita de Hatoum, tais como
famílias desestruturadas, na maioria os membros são libaneses e a presença da
Amazônia, seu local de nascimento, como cenário para suas tramas.
Seu segundo e mais conhecido romance, Dois Irmãos (2000), foi tradu-
zido para doze idiomas, adaptado para o teatro, quadrinhos, e em 2017 tornou-
-se minissérie da Globo. Vencedora do prêmio Jabuti, a obra apresenta uma
narrativa encenada em Manaus e centrada em uma família com descendência
libanesa, com foco na relação de rivalidade entre os gêmeos Omar e Yaqub.
Possivelmente, nessa obra, o autor tenha apresentado indícios para o que, mais
tarde, viria a ser a saga de O lugar mais sombrio, iniciada em 2017, pela referên-
cia à ditadura militar no Brasil na passagem (HATOUM, 2008. p. 198):
Ele sabia que Manaus se tornara uma cidade ocupada. As escolas e os cine-
mas tinham sido fechados, canhas da Marinha patrulhavam a baía do Ne-
gro, e as estações de rádio transmitiam comunicados do Comando Militar
da Amazônia. Rânia teve que fechar a loja porque a greve dos portuários
terminava num confronto com a polícia do Exército.
224
trama se desenrola durante os 20 anos do regime. Em Dois irmãos (2004)
a referência se restringe a um episódio específico dentro do romance. Esse
ponto de vista visa estabelecer uma relação paralelística das obras com o
contexto histórico, ou seja, identifica-se nos romances elementos da socie-
dade e da cultura vigente no período.
Em 2006, Hatoum lançou outro livro, dessa vez reunindo contos breves,
intitulado A cidade ilhada. E em 2008, escreve sua primeira novela, Órfãos do
Eldorado, novamente usa a Amazônia como cenário: “Naquela tarde, meu avô
me contou uma das histórias que ouviu em 1958, numa de suas viagens ao
interior do Amazonas” (HATOUM, 2008. p. 105). Em 2015, a obra Órfãos do
Eldorado foi adaptada para o cinema.
Em 2013, o autor reuniu crônicas publicadas em 2005 e 2007 e lançou-
-as no livro Um solitário à espreita. Algumas dessas crônicas, também retratam
o período da ditadura militar vivenciado pela sociedade brasileira, como a in-
titulada Sob o céu de Brasília (HATOUM, 2013. p. 43-4):
225
Entre os elementos que diferenciam A noite da espera dos romances an-
teriores é o fato de o protagonista ser paulista, e não amazonense, e o enredo
ter como cenário a capital brasileira, Brasília, e não Manaus. Contudo, possui
a característica da família desestruturada, presente na relação do protagonista
Martim e seus progenitores, marcada pela saudade da mãe e pela ausência do
pai. É notável ressaltar, ainda, a mudança de estilo na estrutura da obra, consti-
tuída por capítulos curtos em forma de diário do narrador personagem.
O tema da Ditadura Militar, que sempre foi referenciado em obras an-
teriores de Hatoum, ganha força em A noite da espera, pois não é algo apenas
mencionado em determinado ponto e depois esquecido, mas percorre todo o
romance, com menção a eventos, personagens, cenários e intertextos frequentes.
O trabalho criativo de inserção dos intertextos na narrativa revela
as estratégias de escrita do autor em associar o drama social vivido pelos
personagens em meio à ditadura militar ao drama pessoal do protagonista
Martim. Nesse sentido, “A referência ao real que ela comporta manifesta
que o reino da natureza incide sobre toda e qualquer produção, sendo, en-
tretanto, inseparável da dimensão criadora” (COSTA, 2006. p. 66). Ao se
apropriar do recurso da intertextualidade, Hatoum mistura acontecimentos
reais com a vida de personagens fictícios.
Entretanto, cabe ressaltar que a presença do Regime Militar nessa obra
é muito maior que simplesmente ser o cenário do enredo. Cada nome, detalhe
ou fato foi minuciosamente e estrategicamente representado, fazendo alusão
aos acontecimentos históricos, explícitos e implícitos.
Entre suas características, o romance possui o tom crítico na esfera políti-
ca, pois tem como cenário o momento mais sombrio da Ditadura Militar (1964-
1985), chamado de “Anos de Chumbo”, período que começou depois da decreta-
ção do Ato Institucional número 5 (A-I 5), no fim do governo de Costa e Silva e
início do governo de Médici. “O ato era uma reedição dos conceitos trazidos para
o léxico político em 1964. Restabeleciam-se as demissões sumárias, cassações de
mandatos, suspensões de direitos políticos; [...]” (GASPARI, 2014. p.342).
A narrativa começa em 1977, quando o protagonista e narrador, Mar-
tim, está no exílio em Paris: “Hoje, em Neuilly-sur-Seine, meu aluno francês
226
me ofereceu café e quis conversar um pouco sobre o Brasil” (HATOUM, 2017,
p. 11). Então a narrativa volta no tempo, com o personagem datilografan-
do o que lhe ocorrera no passado, então descobrimos que ele é filho de pais
separados, Lina e Rodolfo, e aos poucos vai perdendo o afeto e a atenção de
ambos. A distância aumenta quando vai morar em Brasília com o pai que se
mostra ausente, amargurado e indiferente à presença do filho, como evidencia
a passagem: “O homem estava ressentido demais para dizer uma palavra; era
raro meu pai falar diretamente comigo: as palavras dirigidas a mim eram ditas
a minha mãe, e agora não havia espelho nem anteparo às palavras paternas”
(HATOUM, 2017, p. 21).
Na construção da narrativa, o autor intercala a vida pessoal do prota-
gonista com situações e diálogos sobre a situação política ali vivida, Hatoum
(2017, p. 142-3):
227
Filho querido,
Em fevereiro Dácio me surpreendeu com a notícia do falecimento do teu
avô. Aliás, do enterro. Eu dava uma aula particular para um grupo de alunas
em Campinas, e o teu tio só conseguiu falar comigo na manhã do enterro. É
ainda mais triste não ver um pai, mesmo morto, pela última vez.
Querida mãe,
[...] Também sonhei mais uma vez com você. Não foi um sonho sereno
num lago imenso, e sim um dos pesadelos nas noites na capital: você, outras
mães e Dinah apareciam juntas num protesto contra o fechamento da es-
cola onde estudei. Quando ia te abraçar, soldados do Exército reprimiram o
protesto e as pessoas sumiram numa poeira cinzenta. Você também sumiu
[...].
228
Nesse pequeno trecho da carta escrita por Martim, temos a descrição
de um sonho que ele teve, onde mescla o desejo de voltar a encontrar a mãe e a
violência cometida pelo Exército do Governo. O período histórico e a ausência
dos pais interferem na sua personalidade, deixando-o inconformado com toda
a situação. A escrita das cartas revela a emoção de seus autores, ora Martim, ora
a mãe. O diário e as cartas podem ser compreendias como estratégias da escrita
do autor para dar mais visibilidade aos conflitos que perpassam as diferentes
fases de atuação do personagem.
229
com a definição de Brandão: “Aqui se entende espaço como ‘cenário’, ou seja,
lugares de pertencimento ou trânsito dos sujeitos ficcionais, recurso de contex-
tualização da ação” (2013, p. 59). De acordo com o problema investigado por
este estudo, que consiste em analisar qual o tratamento dado pelo romance aos
eventos da ditadura na tessitura narrativa, é notável analisar a composição dos
cenários e seus efeitos na obra.
Assim, a concepção de cenário envolve o que Brandão (2013) conceitua
de significados translatos, estão relacionados aos espaços metafóricos de repre-
sentação do social e do psicológico. Segundo o autor, a representação do social
nos cenários é analisada em uma perspectiva histórica, cultural e ideológica.
Dessa forma, as descrições, por exemplo, das perseguições aos professores, das
manifestações e da ação violenta dos militares sobre os estudantes nos espaços
da UnB dão visibilidade a um cenário de opressão.
Quanto à presença do psicológico na composição dos cenários, o que se
destaca é um enfoque mais subjetivista, compreendendo uma atmosfera mais
intimista criada pelos diferentes sentimentos que movem narrador e persona-
gem. “[...] muitas narrativas comuns [...] pretendem ser realistas ou baseadas
no real (contam aquilo que teria realmente acontecido). Mas, em todos esses
casos, trata-se de efeitos do real, [...]” (REUTER, 2002, p. 18). Sob esse en-
foque, são analisados os efeitos produzidos por procedimentos descritivos e
narrativos empregados na construção do texto. Tais efeitos em A noite da espera
(2017) manifestam-se nas ações dos personagens, nos conflitos gerados a par-
tir das relações entre eles e núcleos de convivência.
Na estrutura do enredo em A noite da espera (2017), há a figuração de
elementos como a caracterização de personagens, a marcação temporal e a
composição de espaços que, no externo na obra, remetem a personalidades po-
líticas e acontecimentos do passado histórico do Brasil, enfim fazem referência
ao mundo real. Contudo, no universo ficcional da obra, são revestidos de uma
roupagem estética da linguagem e escapam a qualquer espécie de confirmação.
Logo, o que se constitui como ponto de referência para efeito de análise é a
estrutura da obra. A presença de fatores sociais chama a atenção como “agen-
tes da estrutura, não como enquadramento nem como matéria registrada pelo
230
trabalho criador; e isto permite alinhá-los entre os fatores estéticos” (CAN-
DIDO, 2010, p. 15). É um viés de análise que impede de ver a obra como
mero pretexto para dar visibilidade aos problemas sociais ou, ainda, como uma
forma de estabelecer uma correlação entre o que existe de real e o que consta
na ficção. O universo da ficção ultrapassa essas fronteiras.
É revelado, nesse processo, todo o trabalho de manipulação lexical, os
critérios para a escolha de tipos de personagens e as ações que estes cumprem
no enredo (LIMA, 2006). Emerge desse ato de criação a ideia de texto como
tecido, tomado não como produto acabado, conforme contesta Roland Barthes
(2008), mas como tessitura que se constitui num contínuo entrelaçamento.
De forma semelhante, nas lacunas deixadas pelo registro histórico, Hatoum
entretece a ficção. É o caso de O lugar mais sombrio, um romance contemporâ-
neo que usa como tema central a opressão do governo na Ditadura Militar. O
enredo faz menção a fatos, personagens, nomes e lugares que remetem a esse
período sombrio da história do Brasil. As referências à opressão perpassam
toda a narrativa (HATOUM, 2017, p. 50):
231
Um expatriado pode esquecer seu país em vários momentos do dia e da
noite. Mas o pensamento de um exilado quase nunca abandona seu lugar de
origem. E não apenas por sentir saudade, mas antes por saber que o cami-
nho tortuoso e penoso do exílio é, às vezes, um caminho sem volta.
Um covarde. É o que penso hoje, quase dez anos depois, [...] um covarde
que virou as costas para a manifestação. Lembro que fiz um último esforço
de coragem para ir ao encontro com Dinah e dos meus amigos, o destemor
deles me animava, e até Vana, medrosa e insegura, estava lá com o Nortista
[...].
232
com ele, vivenciaram todo esse processo de perseguição do regime da ditadura,
conforme revela a passagem “Meus últimos dias no Brasil. A debandada geral,
cara... Não quero guardar a porra desse diário. Se eu reler esses rabiscos vou
sentir mais saudade dos amigos, da escola de samba e da Vila Madalena. A
saudade destrói e seca o coração” (HATOUM, 2017, p. 13).
No exílio em Paris, Martim ocupa o quarto da casa de um casal de An-
golanos que estavam fugindo de uma guerra (HATOUM, 2017, p. 13):
Esse detalhe seria irrelevante, se não fosse pelo fato de que Martim e o
casal estariam em uma situação parecida: o medo que os obrigou a saírem de
seus países de origem. Martim pega todos os papéis de Brasília e São Paulo.
Eram “cadernos, fotografias, cadernetas, folhas soltas, guardanapos com frases
rabiscadas, cartas e diários de amigos, quase todos distantes; alguns perdidos,
talvez para sempre” (HATOUM, 2017, p. 16) e decide datilografar. Come-
çando assim, uma volta ao passado e tudo o que ocorreu com ele, antes de seu
exílio em Paris. Aqui inicia de fato o primeiro capítulo, uma metalinguagem
do processo de criação que se configura na estrutura do romance: “Comecei a
datilografar os manuscritos: anotações intermitentes, escritas aos solavancos:
palavras ébrias num tempo salteado” (HATOUM, 2017, p. 17).
O romance encena o período da Ditadura Militar, que se inicia com o
Golpe de 1964, uma conspiração realizada pelos militares contra o governo de
João Goulart, porém o tempo inicial da narrativa é o ano de 1967, ou seja, o
regime já estava implantado no país há três anos.
Com tom de poeticidade, que o romance faz, retrata a juventude mili-
tante daquele período. Ao encontro do que afirma Gaspari: “O regime tinha
cerca de quinhentas pessoas nos seus cárceres. Mais da metade delas eram
estudantes, com idade média de 23 anos.” (2014. p. 208). E o fato de Martim
ser jovem e estar entre jovens, torna-se uma testemunha de tudo o que está
233
acontecendo. Isso ocorre, por exemplo, quando Dinah e Lázaro falam com os
demais estudantes (HATOUM, 2017, p. 48):
234
e de pessoas envolvidas nessas atividades. Muitos tiveram de viver na clan-
destinidade, ou no caso de Martim, pedir asilo político em outro país. Em
suas reflexões, Martim afirma: “Depois da decretação do AI-5, o medo tomou
conta. A liberdade é uma quimera. Essa noite macabra é muito longa, não vai
acabar tão cedo assim” (HATOUM, 2017, p. 158).
O jovem estudante estava, literalmente, num campo de guerra, onde a
qualquer momento podia ocorrer um “ataque do inimigo” e, para isso, tinha que
estar preparado. Os atos violentos não eram deflagrados apenas pelo governo,
a narrativa faz menção às ações dos dois lados: “Os políticos subversivos foram
cassados, sobraram poucos. Vai piorar por causa dos guerrilheiros... assaltos a
bancos, sequestros de diplomatas, assassinatos...” (HATOUM, 2017, p. 142).
Contudo, Hatoum mostra pouco disso e foca mais nos atos cometidos por quem
estava no poder, talvez, pela diferença entre eles (HATOUM, 2017, p. 143).
Considerações
235
muito mais que entretenimento, pois também proporcionam a compreensão
do que outrora fez parte da história.
É um traço recorrente na escrita do autor manauara o conflito familiar,
a presença de personagens libaneses e o cenário amazônico na moldura do
enredo. Em A noite da espera um outro contexto espacial entra em cena, pro-
tagonizado por um paulista na capital brasileira, Brasília. Contudo, o marco
diferencial está no diálogo instaurado com eventos que marcaram o contexto
histórico e político da ditadura militar no país como fio condutor da trama
narrativa. A temática da ditadura encenada na obra, no entanto, não se isenta
de ser perpassada pelo conflito familiar vivido pelo personagem Martim na
relação com os pais.
A proposta de trazer como a ficção recria e redimensiona aspectos do
contexto histórico suscita a compreensão das questões que envolvem o ro-
mance histórico e a escrita da ficção. A análise da tênue fronteira que delimita
os dois tipos de escrita evidencia o viés de subjetividade que perpassam o ro-
mance e a escrita da história. Dessa forma, para além de se questionar o que o
romance tem de real ou inventado, sobressai a necessidade que história e lite-
ratura têm de narrar, como princípio de convergência, respeitadas as estruturas
próprias de cada uma.
REFERÊNCIAS
COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles. Ática. 2ª edição. São Paulo. 2006.
236
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. Ed. Intrínseca. 2ª edição ver. Rio
de Janeiro. 2014.
LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. Ed. Companhia das Letras. 2006.
237
ANÁLISE DO PROTAGONISMO E RESISTÊNCIA DA
PERSONAGEM YARA A PARTIR DA REPRESENTAÇÃO
COLONIAL, EM AS BOTAS DO DIABO, DE KURT
FALKENBURGER
Introdução
238
A obra também evidencia o conflito entre a personagem cabocla Yara, a
colonizada, e o homem branco o narrador/personagem, Reginald Wire, o co-
lonizador, por quem a cabocla Yara, após seu pai encontrá-lo quase morto e ela
tratá-lo, apaixona-se. Posteriormente, quando as obras da ferrovia paralizaram
e ele já havia decidido ir embora de Santo Antônio, ao ir chamar os compa-
nheiros na floresta, foi atacado pelos indígenas que defendiam as suas terras,
novamente foi salvo por Yara, que decidiu ficar com ele, cuidar dos ferimentos
e escondê-lo por três meses, dando-lhe remédios para dormir, deixando-o em
Pau Santo com a ajuda de três indígenas, sendo a Isabel, Simão e Maria.
O clímax do romance se dá em um ato de resistência da personagem ca-
bocla Yara ao ser exposta, humilhada, oprimida, julgada de todas as formas no
seu cotidiano pela imposição de gênero no discurso do narrador/personagem
Reginal Wire e, por último, ser humilhada e ter que decidir entre aceitar trai-
ção, ou libertar-se do casamento com o colonizador branco, pois este engravida
a Airik que ela criara como filha.
Esta análise, sob a Luz de Maria Lugones (2014, p. 936) compreende “a
hierarquia dicotômica entre humano e não humano como a dicotomia central
da modernidade colonial.” Na categoria não humana, a atribuição de gênero está
ausente, o que não chamou atenção dos autores decoloniais. É esse o passo à
frente que deu nome ao feminismo decolonial: o gênero como elemento estru-
turante da colonialidade, como categoria criada pelo vocabulário colonial, e que
não faz propriamente parte das dinâmicas pré-coloniais. Nesse sentido, o femi-
nismo decolonial denuncia a imbricação estrutural das noções de heteronorma-
tividade, classificação racial e sistema capitalista (LUGONES, 2020, p.19).
Verifica-se que o discurso do narrador/personagem Reginald Wire im-
põe um constante julgamento às colonizadas, nas ações cotidianas que gera um
conflito, e exige relações entre oprimir/resistir no namoro/casamento, sobretu-
do, no cotidiano das relações de Yara e Reginald Wire.
Diante disso, em As Botas do Diabo, pode-se observar que, ao retratar
as personagens femininas, o discurso de gênero do narrador/personagem é de
atribuir às mulheres o trabalho doméstico, é um discurso repetitivo e cansa-
tivo, para dizer que esse é um lugar que deve ser ocupado por elas. Podemos
239
verificar isso em ações do narrador/personagem que aguarda ser servido e cui-
dado pela mãe que fornece comida para ele levar para o barco; pelo trabalho
de Gertie no Mercedita, sempre ligado aos afazeres domésticos e ao servir; os
trabalhos domésticos são também atribuídos as outras personagens, tais como
dona Iná, Yara e as indígenas.
240
que as trocavam como objetos, um corpo subjugado frente ao opressor que
impõe um sistema de gênero moderno colonial e um sistema capitalista onde
todos viram produtos a ser vendido, ou comprado e isso podemos perceber na
passagem a seguir (1971, p. 226):
A mãe de Yara fora uma indígena Pacaá, adquirida por Duarte lá em cima,
nas primeiras cachoeiras do rio Mamoré em troca de um machado. Segun-
do contou Duarte tinha ela uns treze anos apenas, mas era de uma beleza
estranha, exótica, raramente encontrada entre as tribos ribeirinhas. Duarte
voltou rio abaixo, fundou Cascata e quando ela engravidou, resolveu es-
posá-la. Logo após o nascimento de José, quando Duarte estava ausente,
sua jovem mulher morreu miseravelmente, de uma mordida de cobra e, ao
voltar, encontrou somente o seu túmulo. Naquela ocasião Yara tinha apenas
três anos e, em seguida, ela e José foram criados pelas indigena que compar-
tilharam a cama de Duarte. No entanto, ele não tornou a casar-se.
241
(FALKENBURGER, 1971, p. 134). Em outra passagem diz: ela fez um sinal
negativo com a cabecinha” e posteriormente diz:
Mas eu gosto do senhor”, susurrou ela tão baixo que quase não a compre-
endi. De repente, enlaçou-me com os braços, colocou a cabeça em meu
pescoço e começou a chorar”. Senti seu corpo quente na minha pele do meu
pescoço, correndo para dentro da camisa e decendo pelo meu peito.
242
Em outra passagem, a imposição do discurso do narrador/personagem
para a colonizada retira a intelectualidade, desvaloriza sua língua como po-
demos observar no discurso do narrador Reginald Wire que, mesmo doente,
como se já demonstrando sua superioridade e conhecimento fala com Yara
e então diz “Os olhos me fitaram interrogativos e vi que não havia compre-
endido o que falei [...] Enfim, percebi que estava falando em inglês” (p.125)
“Beber”, “repeti em Português” (p.125). Podemos explicar esta passagem com o
que Walter Mignolo (2017, p.125) diz:
243
Reginald Wire refere-se com um certo desprezo, com a visão única do coloni-
zador. Isso nos lembra o que diz Thomas Bonnice (1942, p. 37):
244
a exemplo disso, ao definir onde iriam morar, Duarte persistiu por uma resposta
da Yara, e ela responde: “Não, o senhor não tem razão”, o narrador/personagem
diz que ela falou quase aos gritos, ou seja, já sugere que ela é desequilibrada, e a
discussão continua (FALKENBURGER,1971, p. 221).
O narrador/personagem frisa que Yara soltou gargalhada estrindente,
como se estivesse louca, endemoniada, fosse mal-educada que cortou a palavra
do pai. A personagem Yara continua argumentanto: “pensou? Então pensou
errado” (1971, p. 221). “Por que devemos nós ir para lá?” (1971, p. 221-222). E
então, novamente Yara argumenta que eles podem ficar doentes e morrerem,
no entanto, o pai contra-argumenta, que mesmo em Cascata ou qualquer outro
lugar poderiam adoecer, não há garantias em relação a isso (1971, p. 222).
Ao continuarem a discussão, Duarte faz a argumentação final. Duarte
ao visualizar virando (faz comunicação visual e verbal) para o Reginal” prosse-
gue: “no entanto, a última palavra está com Reggi. A ele é que cabe decidir.” E
então Reggi decide e diz (comunicação visual e verbal) “Sim”. Falei calmamen-
te e firmemente, olhando-o bem. “A última palavra está comigo. E eu acho que
a proposta é boa. Também Yara vai achá-la boa com o tempo. Por isso aceito-a”
(FALKENBURGER, 1971, p. 222).
Assim, ele naturaliza que quem decide é o homem e num discurso ver-
bal e visual com o seu sogro determinam naturalizando a submissão de Yara e
ainda decide que ela irá gostar futuramente, bem como, ele marca que decidiu
“calmamente e firmemente”, também pondera, o pai dá a palavra a ele, e retira
toda a possibilidade de autoridade da Yara.
Nesse embate, de resistência da Yara as normas heteronormativas, pa-
triarcais não deixam Yara nem mesmo contribuir com a decisão, antes, o pai
decidia, e agora o marido é quem decide, a personagem Yara sente a opressão
de ser esposa de Reginald, num sistema de opressão, que mesmo com a resis-
tência da Yara, é impossível transpor as regras que os próprios homens fizeram
para seus benefícios.
Nesses recortes, podemos perceber que Yara argumenta com o pai e
o marido ao mesmo tempo, no entando, eles mantêm o discurso visual entre
ambos e o narrador/personagem logo ao descrever as intervenções e argumen-
245
tações da personagem Yara, a descredibiliza, deslegitima, exalta a gargalhada
estrindente, dissonante, e gritando alto, ou seja, a coloca como desequilibrada,
falando alto, com má educação, grosseira que interrompeu a fala de Duarte.
Um animal irracional, sem controle, não civilizada e não humana.
Em outra passagem, Yara demonstra ao Reginald que tem autoridade
coletiva em Cascata, como vemos a seguir (FALKEMBURGER, 1971, p. 193):
Aquelas, bruxas, com sua droga amarga! Fizeram-me dormir por três meses.
E então a Yara lhe responde “Aquelas bruxas não têm culpa”, interrompeu
Yara. “Elas só fizeram o que mandei. Você estava com uma flexa no pulmão;
não se esqueça. Além disso, estava com febre. Apenas dei ordens para elas
fazerem o que era melhor para você. De repente, a dureza de sua voz me
surpreendeu e, de um momento para outro, Yara me pareceu estranha e in-
compreensível. Está bem, Yara, decerto você só fez o que de melhor poderia
fazer.” No entanto, apesar de eu ter falado com calma e em tom baixo, ela
bem percebeu que as suas palavras me surpreenderam e o tom de sua voz
me deixara assustado. Tremiam-lhes os lábios e subtamente, seus olhos se
encheram de lágrimas.
246
Nessa passagem, nos chama a atenção o que o pai da Yara recomenda ao
Reginald, pois, este teve como namorada a Mabel e enquanto namorava com
Mabel, ele manteve relações com a Collins, que era uma prostituta, e o pai de
Yara diz a ele que se ele a trair ela o matará, ou seja, deixa claro que ela não aceita
ser traída e essa é uma grande diferença entre ela e as mulheres brancas que casa-
vam-se e os maridos tinham amantes. Como consta no romance, o personagem
Oyola tinha uma esposa enclausurada e uma que era uma indígena como esposa
de viagem. E essa questão é central para a personagem, não aceitar ser traída. E
assim, Reginaldo já avisado pelo pai dela, casa-se com ela. Mais tarde, retomare-
mos a esse ponto pois, o clímax da obra tem essa premissa como central.
Em outro momento, no romance em análise, Yara decidiu que Reginald
ficaria com ela, e o escondeu de todos por três meses, sem que ninguém desco-
brisse, cuidando dele ferido por flexas indígenas, e só depois contou a ele parte
do que fizera para escondê-lo. Ela fala para Reginald que o indígina que sabe
este segredo, não irá contar, pois, ela o ameaçou mandar chicoteá-lo até que ele
morresse, caso este contasse, a alguém, uma só palavra, e ele ficou com medo e
fugiu apavorado. A Yara afirma que tem certeza de que esse não irá retornar. E
então, Yara demonstra sua preocupação a Reginald com a sua imagem perante
a comunidade de Cascata. Como se constata nos trechos seguintes “Eu não
suportaria o pensamento de todos saberem que mantive você escondido. Que
mantive você preso, para não poder ir-se embora, quando falei para todo mun-
do que você morreu” (1971, p. 122).
Aqui, a personagem Yara demonstra que tem preocupação com sua
imagem, com sua autoridade coletiva, na comunidade, pois, diz que seria muito
sofrimento se a sua comunidade soubesse que ela obrigara um homem a ficar
com ela. Como Reginald não sabe toda a história, diz para ela não se preocu-
par, pois, não há maldade em ela ter tido ajuda para salvá-lo.
Em outra passagem, a naturalização da violência de gênero de Reginald
a Yara, após descobrir o que fizera Yara, e por tê-lo escondido por três meses,
e dado veneno em uma garrafa aos seus ajudantes, ao descobrir isso Reginald
então espera Yara que se humilha e demonstra toda a sua submissão ao rastejar,
beijando-lhe os pés. Como vemos a seguir (FALKENBURGER, 1971, p. 223):
247
Lentamente ergui-me da cadeira e dei três passos à frente, chegando bem
perto dela. Sem olhar-me, Yara pegou seus vestidos, abriu os dois botões e
deixou-o cair a seus pés. Depois ela caiu em si, ajoelhou-se, agarrando-se
nas minhas pernas, apertou os lábios contra meus sapatos e os beijou. Mate-
-me, Reggi, meu único amor. Mate-me depressa. Se não me amar mais, ma-
te-me. Não quero mais viver. Nem posso mais viver, se não me amar mais”.
Esse discurso que coloca a Yara em plena submissão, ela já está total-
mente vulnerável, e à mercê de seu algoz, o amor exagerado da Yara, que está
totalmente humilhada. O narrador/personagem a agride, descreve a violência
doméstica cometida por ele como vemos no recorte a seguir (FALKENBUR-
GER, 1971, p. 223-224):
Com a mão peguei e afundei os dedos na sua espessa cabeleira negra e puxei
seu corpo para cima. E segurando-lhe a cabeça, que afastei um pouco de
mim, bati-lhe com a outra mão no rosto. Bati uma vez, uma segunda vez.
Depois joguei-a longe de mim, fazendo-a cair sobre a cama. Lá ela ficou.
Tirei a lamparina do gancho, fui para perto de Yara e segurei a luz de modo
que lhe iluminasse o rosto todo. Nos seus olhos procurei uma centelha qual-
quer que denotasse ódio. No entanto, não a encontrei, apenas achei devoção,
dedicação e amor.
Percebe-se, que ele a agride e retrata como se ele que sofresse a dor, e con-
tinuando, a narração ele diz: “Fiquei admirando-a longamente, por muito tempo.
Se não a amasse, ia matá-la agora, disse, e senti que estava a ponto de romper
em pranto”. Como se houvesse justificativa para que ele matasse aquela mulher
diz: “Ia matá-la por isso tudo, mas não posso” (FALKENBERG, 1971, p.224).
Percebe-se, também que Yara, após ser agredida, ainda está feliz “Ela me
olhou radiante, depois fechou os olhos e a expressão de imensa alegria que a
envolvia permaneceu no seu rosto” (FALKENBERG,1971, p.224). As leitoras
podem pensar que bater, matar estar à mercê do amor do homem, podendo
este decidir sobre agredir ou matar a mulher e ainda a passividade e atitude da
Yara, que ele descreve, como se ela estivesse gostando, cada palavra vai natura-
lizando a violência de gênero contra Yara.
248
No enredo, Reginald esqueceu o que dissera Duarte, sobre Yara não
aceitar traição, então ele trai a Yara com a indígena que ela criava como filha
e, após várias traições dele, a personagem Airik e Reginald conversam,
(1971, p. 244):
Porque vou morrer, senhor, respondeu devagar. Vou morrer, pois, Yara vai
me matar, se perceber minha barriga.
Você terá um filho?
Sim, senhor, vou ter.
Mas, o senhor não vai chegar a ver seu filho. É pena. Sei que gostaria de ter
um filho. Porém ele nunca vai sair de mim, porque dona Yara vai me matar.
Apesar de tudo encontrei uma saída. Sem ninguém saber, mandei construir
uma pequena canoa, bastante leve para que Airik pudesse puxá-la sozinha
pelas cachoeiras e a escondi na espessa vegetação à beira do rio (...) poucos
dias mais tarde tudo estava pronto. Encontramo-nos pela última vez na
floresta. (...) endireitou o corpo e por uns instantes fixou em mim os olhos
bem abertos. Em seguida, saiu, e eu sabia que aquela era a sua despedida.
Posteriormente, Yara conta a Reginald que Airik sumiu e ele ficou ali-
viado de saber que Yara não se incomodou com isso. E percebeu que Yara
estava rindo muito e muito amorosa com ele. No entanto, após uma semana
do desaparecimento de Airik, Yara recebe Reginald radiante de felicidade, e
ele nota ao chegar em casa, pois, ela lhe dar muitos beijos e abraços e o leva
para dentro de casa. Ele fica surpreso e Yara, então, lhe comunica dizendo
(FALKENBURGER, 1971, p. 245-246):
Hoje vamos fazer uma festa, meu amor”, anunciou, empurrando-me para
dentro. A sala estava toda iluminada. Tudo o que havia de lâmpadas em
casa, Yara reunira na sala e cada canto resplandecia com luz quente e aco-
lhedora. Ao ver minha surpresa. Yara soltou uma gargalhada cristalina, sem
explicar coisa alguma. Esperou que eu falasse.
249
O que é, Yara, querida? Perguntei. Terei esquecido alguma coisa? Será que
hoje é um dia especial?
O cabelo descia-lhe pelos dois lados do rosto e nele estava preso uma flor
clara, quase radiante, que, com os enfeites de pena que trazia no tornozelo
direito, formava o seu único adorno.
Após Yara fazer Reginald beber dois copos da bebida que lhe preparou
então diz “Oh meu bem” [...]. Beba, e juro que explicarei tudo. Vou abrir meu
coração e minha alma e vou deixar você olhar dentro, para que saiba de uma
vez por todas quem sou e como sou eu” (op. cit., 1971, p. 246) e então, Yara ini-
cia o último duelo de resistência ao discurso julgador que a oprimiu e Reginald
mesmo sabendo que ela não aceitava traição, lhe traíra, e humilhara engravi-
dando a menina indígena Airik que ela criara como filha e então Yara lhes diz
e revela quem é ela dizendo-lhe em um discurso visual e verbal (1971, p. 246):
Mas quero que você me olhe e escute, tranquilamente, sem impedir que eu
faça o que eu quero. Está vendo Reg agora você me escuta. Agora posso
falar com você sossegada. Acredito, você sempre pensou que sou uma boba.
Talvez tivesse razão. Mas nem tanto assim como pensa. Por exemplo, em
tudo que se refere a você, não sou nada boba. Você acha que eu não sabia
daquela canoa que você mandou fazer para aquela menina, conforme você
chamava sair daqui? Acha? Quem foi que meteu essas ideias em sua cabeça?
Disse lentamente e com toda a calma de que era capaz. “Você está vendo
fantasma em toda a parte, Yara querida. Se eu soubesse para onde foi Airik,
não ia deixar de dizer-lhe. Acalme-se Reggi. Sempre fiz força para acreditar
em tudo o que se percebe, você me falou. Mas você sempre mentiu. Pensa
que não sei que queria mandá-la para Santo Antônio?
Mas que tolice Yara, quem foi que lhe deu essas ideias?
A personagem Yara afirma para Reggi que já faz tempo que não é mais
sua querida, e, em seguida, mostra a Reginald a Airik, amarrada e toda machu-
cada, parecendo morta, estava amarrada nas mãos e nos pés e Reginald pare-
cendo um fraco, impotente, se vê acuado, sem ação e com o coração acelerado.
E então “Yara deu uma gargalhada dissonante, estridente, louca, que me
fez virar a cabeça” (FALKENBURGER, 1971, 248) e continuou, “Não fique
250
com medo Reggi, ela não está morta. Ainda não, só está sem sentido, mas logo
mais acordará e Yara continua lhe contando o que ocorrera, para lhe demons-
trar o seu poder na comunidade de Cascata e então em outra passagem lhes
diz (1971, p. 249):
Yara tornou a rir. “Você se esqueceu, Reggi, meu amor, de que aqui você
é um estranho. Enquanto que eu sou daqui e sou a dona de tudo isso. A
mim contam tudo, porque bem sabem que eu o mataria, se não falassem.
Já sabia da canoa quando ainda nem estava construída. Mas eu mandei que
a construíssem. Depois só precisei esperar, e quando a peguei, só precisei
perguntar. Sem tirar os olhos de mim, Yara aproximou-se de Airik. Segurou
as mãos atadas e colocou-a de bruços.
Percebe-se, que Reggi, ficou perplexo de ver como Airik estava toda
machucada, e então “sua canalha”, exclamei, ‘oh sua canalha selvagem”. E en-
tão: “Yara esperou eu abrir os olhos para sacudir a cabeça em sinal de desapro-
vação”. E, mesmo com a insistência de Reggi para Yara não fazer mais nada
com Airik “Yara virou-se para Airik e cravou-lhe a flecha no ventre” (1971,
p. 251), e então Reggi desesperado diz que “como doido comecei a puxar as
cordas que me prendia, comecei a berrar, suplicar” e após perder os sentidos e
depois retornar ouvi Yara dizer-lhe:
Não vou matá-lo, Reggi. Pois eu o amo, sabe? Se o matasse, choraria por
você depois de estar morta. Eu amo você bastante, para saber que só um de
nós deve morrer, já faz tempo que morri, tanto tempo que nem lembro mais
como foi, quando ainda estava viva. Aprendi muita coisa com você. Lembro
que certa vez, você me contou de uma rainha que colocou uma cobra no seu
peito, para morrer. Nem me dei o trabalho de procurar uma cobra. Vou usar
apenas esta flecha.
Yara, eu suplico, pedi. Pelo nosso amor, não faça isso. Tudo será esquecido.
Nunca mais vamos pensar nisso. Vamos sair daqui. Para qualquer parte, bem
longe. Só você e eu. Rogo, Yara, minha noivinha, minha única querida, jogue
251
fora a flecha. Você vai ver como vamos ser felizes. Tudo ficará bem, quando
estivermos longe desse lugar maldito.
252
A honra da mulher constitui-se em um conceito sexualmente localizado
do qual o homem é o legitimador, uma vez que a honra é atribuída pela
ausência do homem, através da virgindade, ou pela presença masculina no
casamento. Essa concepção impõe ao gênero feminino o desconhecimento
do próprio corpo e abre caminhos para a repressão de sua sexualidade. (..)
O medo a insegurança, a vergonha, por sua vez, extravasa do sexual para a
atuação no social, num sistema de realimentação constante.
Verifica-se que Yara é órfã de mãe e tem dezessete anos, nasceu e viveu
em Cascata, carrega em sua subjetividade o fato de ser órfã de mãe, sendo que
na imposição da colonialidade de gênero sua mãe foi trocada ainda criança por
um martelo era da tribo Pacaá.
Podemos, evidenciar que Yara, no processo de imposição do sistema de
gênero moderno/colonial, fora retratada como sendo gerada do estupro, pois,
a marca nos corpo das meninas vulneráveis no processo de assujeitamento de
corpos que se deu devido à colonização teve início com a chegada dos enco-
bridores dos povos indígenas, conhecidos na história como descobridores do
Brasil, da América Latina, do Novo Mundo, processo esse que continuou na
colonialidade de gênero, que está retratada na obra em análise.
Yara já nascera filha de uma indígena que teve em seu corpo as marcas
do processo de subjugação de corpos das mulheres nativas que se deu devido
ao processo de colonização que marcou e ainda marca as mulheres, bem como,
a todos os/as colonizadas/os da América Latina e Caribe.
Considerações
253
sendo demonstrado para ele a sua preocupação e o orgulho frente a esse espaço
desde o início da narrativa.
Ao ser humilhada publicamente, tendo sua filha grávida de seu amor,
ela sucumbe diante de tamanha violência, e, como num ato de libertação de
tanta opressão e diante de um romance ultrarromântico que resolve tudo com
a morte, ela ao sucumbir diante da violência imposta pelo colonizador branco,
retira a própria vida e este é o fim da personagem Yara em As Botas do Diabo.
Consequentemente, enfatizamos que a resistência dessas personagens, em
As Botas do Diabo, pode ser percebida em diversos momentos em que elas fogem
da violência, enfrentam a violência ou sucumbem e morrem frente a violência,
como foi o desfecho da personagem Yara. E, ao contrário do que é propagado
pelo narrador/personagem, elas resistem a um sistema opressor que é esmagador,
estuprador, violentador de todas as formas para todas as personagens femininas
representadas, e, em uma constante luta, ao resistir individualmente, pode até ter
sucumbido, mas, ao resistirem coletivamente, a resistência ainda continua após
a morte de Yara, da Gertie e das indígenas não visualizadas, que são retratadas
na obra como os/as não modernos (as). Os/as não modernos/as não aceitaram a
modernidade, mataram, morreram e ainda morrem lutam e buscam seus direi-
tos tão difíceis nestes tempos atuais, após a chegada dos colonizadores o povo
indígena luta por sobrevivência e sua existência está registrada tanto nas reações
contra os invasores, como na luta por sobrevivência e certamente as mulheres
indígenas sempre estiveram lado a lado aos homens desses povos nativos.
Outra questão a se colocar é que ao homem colonizado por esse homem
branco, assim como foi retratado pelo narrador/personagem Reginald Wire,
é imposto um olhar único, o que se faz necessário repensarmos como, nesse
discurso colonial, as categorias utilizadas para representação dos papéis sociais
inerentes ao homem e, consequentemente à mulher são fixas e engessadas, re-
legando ao homem o papel representativo de “machão” munido de autoridade
nas relações sociais de gênero e de poder. A esse homem branco, protótipo do
poder colonialista, são dadas prerrogativas para tratar a mulher como um “ob-
jeto”, assim como constatamos no discurso do narrador /personagem Reginald
Wire nas análises que realizamos ao longo desta breve análise.
254
Percebe-se que o narrador/personagem retrata no discurso a colonia-
lidade com ideias de um feminismo hegemônico com ideias eurocentradas e
universalizadas de emancipação da mulher ,sem considerar as diferenças essen-
ciais que existe entre as mulheres brancas, as negras, latinas, indígenas e suas
opressões, e nesse sentido, são representações, portanto não são representativas
das mulheres não brancas, portanto são fontes de dominação e propagação da
colonialidade, pois, as representações de Falkenburger denuncia, a divisão ra-
cial do trabalho, e isso como consequência para a construção identitária e para
as lutas por antecipação de modo a retratá-lo como universal, hegemônico sem
levar em consideração as diferentes opressões a Gertie que ao ser enfermeira
diz ao homem branco que não é sua empregada que este vá buscar sua bebida,
e retrata a indígena que trabalha para o narrador /personagem Reginald Waire
e o serve como objeto na cama e após três anos foge deste, ao retratar a mulher
branca que sai do ambiente doméstico e vai trabalhar no hospital e apresar in-
dígena, visitar a família, as coloca como se fossem iguais e estivessem em uma
mesma luta por liberdade no entanto estão em diferentes espaços, diferentes
opressões, diferentes contextos.
Quanto à colonialidade do saber é representada de modo estereoti-
pado, pois a Yara cura os doentes, sabe fazer dormir, no entanto seu saber
é tão brutalmente narrado de modo a colocar uma linguagem de que ela
é incivilizada, irracional, quando ela cura o doente retirando uma bala do
corpo ao narra esse conhecimento de Yara ele deturpa tanto que coloca
ela gostando de estar cortando o corpo do doente, o cuidado ao cortar a
maestria de fazer o serviço é narrado a fazer parecer ela uma selvagem.
E a narrativa coloca o conhecimento do médico como superior, o parto
já está sendo realizado pelo médico para a mulher branca a indígena vai
para o mato e retorna com a criança e isso é colocado de modo a reforçar
o civilizado e o incivilizado. E assim, a apropriação e aculturação do saber
da cultura do conhecimento e as formas do civilizado vão se apropriando e
passando como verdadeiro e universal e superior, vai sendo universalizado.
Concluímos com a passagem que serviu de inspiração para o título
deste trabalho: Yara diz ao Narrador/personagem Reginald Wire “Você é um
255
amor, falou Yara, afastando os lábios um pouco dos meus, você é tão bom, mas,
você mente!” (FALKENBURGER,1971, p.135).
E essa passagem, por si mesma, sintetiza todo o posicionamento das
nossas análises frente ao discurso colonial adotado pelo narrador Reginald.
Assim, para finalizarmos com uma constatação da própria personagem que
analisamos, reiteramos que o discurso da colonialidade tem uma boa roupagem
e uma aparência de civilidade, como demonstramos na crítica ao sistema de
gênero moderno-colonial, mas, o único problema é que esse discurso “mente”.
REFERÊNCIAS
256
epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá. Siglo del Hombre Editores;
Universidad Central; Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Ponti-
ficia Universidad Javeriana: Instituto Pensar, 2007;
257
SOBRE OS AUTORES
258
membro do grupo de pesquisa em letramento literário: estudo de narrativas
da/na Amazônia. http://lattes.cnpq.br/9057409146993596 Orcid: https://
orcid.org/ 0000-0002-4196-3909
259
ELIANE AUXILIADORA PEREIRA
Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do
Amazonas (2018), Mestrado em Letras Literatura e Crítica Literária pela Pon-
tifícia Universidade Católica de Goiás (2008), especialização em Literatura Bra-
sileira Contemporânea (1996) pela Universidade Católica de Goiás, graduada
em Letras Português e Literaturas Correspondentes pela Universidade Católica
de Goiás (1994). Atualmente é professora do CMCG. Tem experiência na área
de Letras, com ênfase em teoria e crítica literária, língua Portuguesa, atuando
principalmente nos seguintes temas: literatura, análise do discurso, letramento
literário e processos de criação entre artes: literatura e cinema. Vice-líder do gru-
po de Pesquisa Criamazônia /IFRO/CNPq e membro do Letramento literário:
pesquisas de narrativas da/na Amazônia/UNIR/CNPq. Atua como avaliadora
de projetos de ensino, pesquisa e extensão. E-mail: elianegyngo@gmail.com Or-
cid: https://orcid.org/0000-0001-7418-0479
260
Entre as pesquisas desenvolvidas atualmente, elabora trabalhos a partir dos
seguintes temas: a) teoria do romance; b) narrativa, imaginário e modernidade;
c) representações literárias e culturais sobre a Amazônia. É pesquisador as-
sociado do PROCAD AMAZÔNIA UFF-UFRR-UNIR. ORCID: https://
orcid.org/0000-0002-7853-5713
261
MARA GENECY CENTENO NOGUEIRA
Possui graduação em História pela Universidade Federal de Rondônia (1987),
Mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia (2008) e
Doutorado em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (2015). Pro-
fessora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal de
Rondônia e professora do Programa de Pós-Graduação Mestrado Acadê-
mico em Estudos Literários. Tem experiência na área de História, atuando
principalmente nos seguintes temas: memória, patrimônio, morte e estudos
amazônicos. Email: maracenteno@gmail.com Orcid https://orcid.org/0000-
0003-0660-2128
262
NUBIA DE SOUZA SILVA
Graduada em Letras Português/Inglês pela Universidade Federal do Amazo-
nas -UFAM; MESTRA em Estudos Literários pela Universidade Federal de
Rondônia. Membro do grupo de pesquisa Letramento literário: pesquisas de
narrativas da/na Amazônia/UNIR/CNPq. Email: nubia_08souza@hotmail.
com Orcid https://orcid.org/0000-0001-6468-5924
263
SUELEN DA COSTA SILVA
Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Rondônia (2008).
Atualmente é professora nível III- SECRETARIA ESTADUAL DE EDU-
CAÇÃO desde 2010 (lotada na Escola Marcelo Cândia – subsede 1). Mestre
em Estudos Literários na UNIR. Experiência na área de Letras. Docente de
Língua Portuguesa, Literatura, Redação e Arte. Soma-se a isso, Docência nas
áreas de Redação e Literatura, na instituição privada – MEDQUIM. Membro
do Grupo de Pesquisa em Letramento Literário: estudo de narrativas da/na
Amazônia e do Grupo de Pesquisa: Criamazônia/IFRO/CNPq – Processos
de criação na/da Amazônia. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8497-3656
E-mail: scsigjc@gmail.com
264
A Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR) é uma instituição pública
de ensino superior criada em 1982. Ao longo de aproximados 40 anos, as ações de
ensino, pesquisa e extensão formaram profissionais qualificados para atuação em
todas as esferas da sociedade e do mercado de trabalho. A partir do ano 2000, com
o início da oferta de cursos de Pós-Graduação, essa ação foi sendo ampliada, sen-
do ofertados, atualmente, 24 mestrados e 04 doutorados, abrangendo diversas áreas
do conhecimento e priorizando pesquisas atinentes às questões ambientais, sociais,
educacionais, culturais, econômicas e geográficas da Amazônia e especialmente de
Rondônia. Como política de apoio e fortalecimento à Pós-Graduação e à pesquisa
na Universidade, a Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (PROPESQ) insti-
tuiu a publicação de livros elaborados pelos programas de Pós-Graduação, como
atividade de divulgação e compartilhamento dos resultados das pesquisas produz-
idas por pesquisadores desta Instituição, tendo a Editora da Universidade Federa
de Rondônia (EDUFRO), como unidade sistematizadora de todas as produções.
Dessa forma, a coleção é resultado dos trabalhos elaborados pelos PPG da UNIR,
com temas e abordagens disciplinares e transdisciplinares que visa a divulgação dos
resultados das pesquisas elaboradas nessa Instituição e aproximação da UNIR das
Instituições Estaduais, Municipais e de toda a Sociedade.
Maria Madalena de Aguiar Cavalcante – Diretora de Pós-Graduação
Artur de Souza Moret – Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa
265