02-Lentes Literárias Sobre A Amazônia - Estudos Literários-1

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Maria de Fátima Castro de Oliveira Molina

Iza Reis Gomes


Mara Genecy Centeno Nogueira
(Organizadoras)

LENTES LITERÁRIAS SOBRE A AMAZÔNIA


Um diálogo entre narrativas, ilustrações e fotografias

Coleção Pós-Graduação da UNIR


LENTES LITERÁRIAS SOBRE A AMAZÔNIA
Um diálogo entre narrativas, ilustrações
e fotografias

Maria de Fátima Castro de Oliveira Molina


Iza Reis Gomes
Mara Genecy Centeno Nogueira
(Organizadoras)
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

Reitora Marcele Regina Nogueira Pereira


Vice-Reitor José Juliano Cedaro

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

CONSELHO EDITORIAL COMISSÃO CIENTÍFICA

Presidente Lou-Ann Kleppa Marília Lima Pimentel Cotinguiba


Ariana Boaventura Pereira Patrícia Goulart Tondineli
Carlos Alexandre Trubiliano Quesler Fagundes Camargos
Eliane Gemaque Gomes Barros Auxiliadora dos Santos Pinto
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Editora Filiada

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BR 364, Km 9,5
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www.edufro.unir.br
edufro@unir.br
LENTES LITERÁRIAS SOBRE A AMAZÔNIA
Um diálogo entre narrativas, ilustrações
e fotografias

Maria de Fátima Castro de Oliveira Molina


Iza Reis Gomes
Mara Genecy Centeno Nogueira
(Organizadoras)

Coleção Pós-Graduação da UNIR

Porto Velho - RO
© 2022 by Maria de Fátima Castro de Oliveira Molina, Iza Reis Gomes,
Mara Genecy Centeno Nogueira, (Organizadoras)
Esta obra é publicada sob a Licença Creative Commons Atribuição-Não
Comercial 4.0 Internacional.

Capa:
Rosivan Diagramação & Artes Gráficas

Revisão:
Marília Lima Pimentel Cotinguiba

Projeto gráfico:
Edufro - Editora da Universidade Federal de Rondônia

Diagramação:
Rosivan Diagramação & Artes Gráficas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Fundação Universidade Federal de Rondônia
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UNIR
_______________________________________________________________________________________________________
L574 Lentes literárias sobre a Amazônia: um diálogo entre narrativas, ilustrações e fotografias. / Organizadoras: Maria de
Fátima Castro de Oliveira Molina, Iza Reis Gomes, Mara Genecy Centeno Nogueira. – Porto Velho, RO, Edufro,
2022. – (Coleção Pós-Graduação da UNIR).
264 p.

ISBN: 978-65-87539-79-9 (digital)


DOI: 10.47209/978-65-87539-79-9

1. Literatura Amazônica. 2. Textos literários 3. Diálogos. I. Molina, Maria de Fátima Castro de Oliveira, Iza Reis
Gomes, Mara Genecy Centeno Nogueira. II. Título. III Série.

CDU 82.0
_______________________________________________________________________________________________________
Bibliotecária Ozelina do Carmo de Carvalho Saldanha CRB 11/486
Sumário

7 APRESENTAÇÃO

9 PLASTICIDADES POÉTICAS NA COMPOSIÇÃO DA ESPACIALIDADE


DO TEXTO EM BURBURINHO, DE DANIEL DA ROCHA LEITE
Maria de Fátima Castro de Oliveira Molina

26 UM PASSEIO PELAS LENTES DAS ILUSTRAÇÕES NA NARRATI-


VA A HISTÓRIA DAS CRIANÇAS QUE PLANTARAM UM RIO: UM
DIÁLOGO ENTRE O TEXTO VERBAL E O VISUAL
Izabel de Brito Nascimento
Iza Reis Gomes

43 ÓRFÃOS DO ELDORADO: DO ROMANCE ÀS TELAS


Eliane Auxiliadora Pereira

66 A PRESENÇA DA INTERTEXTUALIDADE EM MAD MARIA E OS


SUPORTES HISTÓRICOS
Sonia dos Santos

100 O CARÁTER IMAGINOSO COMO ELEMENTO COMPOSICIONAL DA


OBRA A HISTÓRIA DAS CRIANÇAS QUE PLANTARAM UM RIO
Ane Caroline Rodrigues dos Santos Fonseca

116 NARRATIVA DE EXPRESSÃO AMAZÔNICA: UMA BREVE ANÁ-


LISE DO MARAVILHOSO NA OBRA A HISTÓRIA DAS CRIANÇAS
QUE PLANTARAM UM RIO, DE DANIEL DA ROCHA LEITE
Suelen da Costa Silva
129 PRÁTICAS DO LETRAMENTO LITERÁRIO: UMA EXPERIÊNCIA
ESTÉTICA EM SERINGAL, DE MIGUEL FERRANTE
Adriana de Sá Marques Cruz

147 DO LEITO DOS RIOS AOS RIOS LITERÁRIOS – LITERA-RIOS


Elysmeire da Silva de Oliveira Pessôa
Mara Genecy Centeno Nogueira

170 REPRESENTAÇÕES DO IMAGINÁRIO AMAZÔNICO NO CON-


TO “O MENINO E O TREM”, DE VIRIATO MOURA
Cleiton Leirson Braga das Neves
Fernando Simplício dos Santos

187 UM HORIZONTE POÉTICO NAS ÁGUAS AMAZÔNICAS DAS


OBRAS DE DALCÍDIO JURANDIR
Alberto de Barros Molina

204 CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA, DE DALCÍDIO JURANDIR


E O CENÁRIO DO ROMANCE DE 30
Núbia de Souza Silva

220 OS FIOS DA HISTÓRIA NA TESSITURA FICCIONAL EM A NOITE


DA ESPERA, DE MILTON HATOUM
Andreia Tavares Ishimoto

238 ANÁLISE DO PROTAGONISMO E RESISTÊNCIA DA PERSONA-


GEM YARA A PARTIR DA REPRESENTAÇÃO COLONIAL, EM AS
BOTAS DO DIABO, DE KURT FALKENBURGER
Francisca Lusia Serrão Ferreira
Marília Lima Pimentel Cotinguiba
Roziane da Silva Jordão

258 SOBRE OS AUTORES


APRESENTAÇÃO

Realizar pesquisa na Amazônia é uma necessidade que se instaura nos


mestrados da Universidade Federal de Rondônia – UNIR. A Literatura produ-
zida na Amazônia perpassa por temáticas que trabalham o local e o global. Os
escritores trazem a experiência de seus saberes e a transformam em ficção, em
fantasia, em criação. Há uma negociação entre elementos constitutivos de um
texto literário. Essa ideia dialoga com a afirmação de Colomer (2007, p. 27):
“O texto literário ostenta a capacidade de reconfigurar a atividade humana e
oferece instrumentos para compreendê-la, posto que, ao verbalizá-la, cria um
espaço específico no qual se constroem e negociam os valores e o sistema estético
de uma cultura.” Esta ideia básica contribui para a nova argumentação sobre a
importância da literatura no processo educativo. O mundo amazônico é inven-
tado a todo momento por escritores que buscam ficcionar as relações humanas,
os espaços ribeirinhos, as representações de vida na/da Amazônia. “A literatura
– uma das mais importantes ciências do imaginário” (COELHO, 2000).
Trabalhar textos produzidos na/da Amazônia é trabalhar com a quota
de humanidade que nos torna mais compreensivos e abertos à natureza, à socie-
dade e ao semelhante (CANDIDO, 2011). Essa humanidade é encontrada nas
narrativas de Milton Hatoum, Daniel da Rocha Leite, Thiago de Mello, Márcio
Souza, Miguel Ferrante, Dalcídio Jurandir, Kurt Falkenburg e Viriato Moura,
autores que estão neste livro e contribuem com análises de mestres e doutores do
Mestrado em Estudos Literários da Universidade Federal de Rondônia.
O PPGMEL da Universidade Federal de Rondônia – UNIR – prima
por produções que enfatizam a Literatura em suas mais variadas perspectivas de
análise. Este livro apresentará treze capítulos que tematizam a análise literária de
obras escritas na/da Amazônia. São resultados de pesquisas de mestrado e dou-
torado já defendidos com experiências, reflexões e análises na área da Literatura.
Os artigos foram divididos em duas abordagens de análise:
A primeira intitula-se Passeios por ilustrações, fotografias e plas-
ticidade poética. Essa abordagem apresenta traços de reflexão, aquisição de

7
saberes e afinamento das emoções (CANDIDO, 2011). Maria, personagem
cega de Burburinho nos leva às emoções de tocar a palavra-mundo com as
mãos e com a potência da arte plástica; A história das crianças que plantaram um
rio nos envolve em suas ilustrações colaborativas, na complexidade de refletir
sobre uma imagem que envolve um mundo local e um mundo global; Dinaura,
personagem de Órfãos do Eldorado, nos envolve em sua configuração narrati-
va e fílmica, dois suportes complexos que envolvem os problemas da vida na
Amazônia; o maravilhoso está nos encantos do rio que fala com um menino e
uma vó contadora de histórias; junto com o maravilhoso, o caráter imaginoso
constitui a composição de personagens e espaços ribeirinhos; Mad Maria é
uma odisseia que nos conduz em um diálogo com as fotografias de Dana Mer-
ril. Registros de momentos ímpares sobre uma construção de uma locomotiva
em plena floresta amazônica, uma imagem complexa que se constitui em um
afinamento de emoções e representações.
A segunda intitula-se Lentes analíticas em narrativas da/na Amazônia.
Essa abordagem se configura em senso crítico e percepções complexas sobre
textos literários. Re-inventar a linguagem faz parte da vida do escritor. E Thiago
de Mello faz isso pela perspectiva do conceito litera-rios, uma unidade vocal da
poesia da água; trouxemos o humano em sua totalidade universal e o horizonte
poético nas águas de Dalcídio Jurandir; uma prática de letramento experiencia a
estética da obra Seringal com leitores em formação; em A noite da espera, temos
o diálogo da história e da literatura; a poética e o imaginário amazônico são
apresentados por um menino em sua relação com a Ferrovia do Diabo; e a per-
sonagem Yara nos faz refletir sobre a colonização em Botas do diabo.
A Literatura possui uma potência que nos permite conhecer dife-
rentes mundos, sujeitos, espaços e tempos. As palavras, as imagens, as cores,
os sons, os aromas, as texturas, todas as formas de linguagem contribuem
para que a Literatura tenha essa força e função: humanizar o homem. Os
capítulos aqui publicados buscam destruir os muros e construir pontes en-
tre a Literatura produzida na/da Amazônia e os leitores que aceitarem o
desafio de mergulhar nesses rios, seja pela lente da escrita, da fotografia, da
ilustração ou da plasticidade poética.

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PLASTICIDADES POÉTICAS NA COMPOSIÇÃO DA
ESPACIALIDADE DO TEXTO EM BURBURINHO, DE
DANIEL DA ROCHA LEITE

Maria de Fátima Castro de Oliveira Molina

Introdução

A obra Burburinho, de Daniel da Rocha Leite, publicada em 2017, é


marcada pela densidade estética dos enunciados verbal e visual que compõem a
espacialidade do texto. Partindo dessa configuração, a abordagem proposta por
este estudo tem como foco de análise os elementos empregados na composição
da espacialidade do texto na obra. Em suas estruturas constitutivas, texto, ima-
gens e textura desvelam a plasticidade poética do texto e das ilustrações que,
harmonicamente, entrelaçam-se na feitura da obra.
Em consonância com essa perspectiva, o percurso de investigação segue
pela compreensão conceitual em torno da espacialidade e do espaço do texto,
a partir dos estudos desenvolvidos por Barbieri (2009) sobre a composição do
espaço narrativo. Complementam o aporte teórico para a apreensão das espa-
cialidades da obra os estudos realizados por Menegazzi e Debus (2020) sobre o
design do livro ilustrado infantil, por meio das qualidades estilísticas do texto e
das ilustrações. As concepções de Linden (2018) acerca dos elementos ineren-
tes à diagramação do livro ilustrado aprofundam a base conceitual da análise
a ser empreendida.
Relacionar as questões teóricas com os elementos composicionais
da espacialidade do texto em Burburinho é o alinhavo que perpassa a in-
vestigação proposta. Nesse intento, o percurso inicial segue pela identifica-
ção conceitual desses elementos a partir dos espaços que ocupam na com-
posição das espacialidades. Sequencialmente, a análise desdobra-se sobre
os efeitos dessas presenças na construção dos sentidos que perpassam os
enunciados verbal e visual da obra.

9
A composição da espacialidade do texto em Burburinho

Entre os estudos que atravessam a composição da narrativa, os concei-


tos relacionados às diferentes manifestações e funções do espaço apontam para
os deslocamentos e formas de análise sobre a construção espacial da narrativa.
Em suas configurações conceituais, os estudos sobre o espaço literário revelam
caminhos que possibilitam ampliar a significação do texto, por meio dos re-
cursos composicionais, concebidos como “elementos compositivos agentes na
construção espacial da narrativa” (BARBIERI, 2009, p. 116). Em seus estudos
sobre a composição do espaço, a pesquisadora distingue os quatro elementos
que atuam no espaço da narrativa “como diferentes manifestações de um mes-
mo processo semântico. São eles: espaço-representado, espaço-cena e espacia-
lidade e espaço do texto” (2009, p. 116).
Nessa perspectiva, o olhar direcionado para a composição da espacia-
lidade e do espaço do texto em Burburinho segue pela apreensão dos recursos
convocados para a construção espacial da narrativa, a partir dos elementos ver-
bal e visual. Como formas de expressão criativa da linguagem, tais recursos
possibilitam aproximar o leitor por diferentes vias de comunicação e de per-
cepção. Por esse viés, importa considerar a interação entre texto, imagem e
textura, integrados à rede de sentidos que perpassa todo o espaço enunciativo
da obra. Segundo Barbieri (2009, p. 122):

A espacialidade do texto é caracterizada pelo uso de recursos artísticos


e plásticos empregados na sua composição, tais como ritmo, sonoridade,
pausas, repetições, e outros, enquanto o espaço do texto é constituído pela
organização estrutural deste em capítulos, parágrafos, frases. [...] O entre-
laçamento desses fatores colabora na composição de uma obra harmoniosa,
uma vez que todos os seus elementos dialogam entre si e trabalham conjun-
tamente para a construção espacial da narrativa [grifos do autor].

Portanto, a espacialidade também agrega outros elementos que, em suas


materialidades, atuam como uma unidade compositiva possível de ser inte-
grada, conforme proposto por esta abordagem, aos elementos do design do

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livro infantil ilustrado contemporâneo. Na investigação sobre esses elementos,
Megnegazzi e Debus (2020) relacionam a materialidade, a diagramação, a ti-
pografia, as qualidades estilísticas do texto e das ilustrações, os acabamentos
gráficos e os elementos paratextuais e peritextuais como os fundamentais que,
em suas intersecções, demonstram “características do projeto gráfico como ele-
mento literário” (2020, p. 16). Todavia, neste estudo, a análise direcionada está
ancorada nos elementos relacionados à disposição do texto e das ilustrações no
espaço da narrativa, especialmente, no que diz respeito às qualidades estilísti-
cas do texto, que se resvalam na diagramação.
Segundo Megnegazzi e Debus (2020), as qualidades estilísticas do texto
estão relacionadas à ideia de enunciação gráfica, ou seja, “ao modo como o tex-
to é materializado” (2020, p.38). Esse modo envolve, portanto, a comunicação
por imagem que se instaura por meio da forma do texto, ou a forma como o
projeto gráfico “pode tornar mais ou menos legível e visível o texto” (RAMOS,
2011, p. 145). Materializados no espaço da narrativa, esses modos de enuncia-
ção convergem para o diálogo entre os textos verbal e visual. Logo, atuam no
preenchimento de lacunas, em consonância com o mundo ficcional convocado
pela obra. Segundo a formulação teórica de Camargo (2006), a enunciação
gráfica compreende tanto aspectos linguísticos quanto gráficos, bem como é
indissociável da percepção visual do texto, na medida em que se revela sensível
aos sentidos (2006, p. 118).

Todo texto nasce como uma espécie de fala interior, mas só se torna efe-
tivamente texto quando é enunciado, ou seja, quando ganha uma forma
sensível, que pode ser percebida por um ou mais sentidos: audição, visão,
tato. A enunciação gráfica designa uma dessas formas sensíveis, a visual, do
texto escrito – manuscrito, impresso, digital etc.

Nesse campo de percepção, a comunicação visual gerada pela textura da


grafia em braile dá visibilidade às camadas de significação abertas à apreensão
do leitor em Burburinho. Em sua singularidade, esse elemento compositivo da
espacialidade do texto é um modo de enunciação gráfica sensível aos sentidos
da visão e do tato. Portanto, atua na significação da narrativa, no preenchimen-

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to dos espaços lacunares do texto, no contorno de um sentido de alteridade.
Assim, por meio desse modo enunciativo, a materialização do texto em braile
possibilita que os leitores tenham diferentes vias de acessos à história narrada.
Sobre a importância do projeto gráfico do livro, Megnegazzi e Debus partem
do princípio de que “é uma das principais formas pelas quais o leitor terá con-
tato com a narrativa e, a partir das condições gráficas, ter maior proximidade e
interação com a história” (2020, p.23). Revestidos dessa configuração, imagens,
textos e textura cumprem o propósito artístico de promover a interação entre o
leitor e a história da menina que lê o mundo com a ponta dos dedos:

Figura 1 – A menina lê o mundo com as mãos

Fonte: (LEITE, 2018, p. 8-9)

A intersecção dos elementos que compõem a espacialidade do texto re-


vela diferentes perspectivas para a história contada. Embora o texto seja escrito
sob o ponto de vista do narrador, o leitor consegue visualizar a cena narrada
também pelo ponto de vista da menina Maria, conforme mostra a grafia pon-
tilhada das palavras “mamífero terrestre” que descrevem o rinoceronte. Palavra
e imagem mostram, segundo Colomer, “A capacidade do texto e da imagem
de oferecer informações através de seus próprios recursos se vê acrescida pelas
possibilidades do contrato que estabelecem ambos os códigos” (2017, p. 281).
Na passagem, a ilustração expande os significados do texto pelas diferentes
perspectivas que a narrativa se mostra ao leitor. Em seus desdobramentos, ver-
bal e visual estimulam diferentes olhares na construção de significados.

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Auxilia na identificação desse ponto de vista, a distribuição e a posição
ocupada pela imagem e pelo texto na página dupla do livro. De acordo com
Linden: “[...] o livro ilustrado mantém estreita relação com a página dupla. As-
sim, é determinante a forma como textos e imagens se inscrevem nesse espaço”
(2018, p. 65). A diagramação, portanto, interfere no processo de percepção,
interação e leitura da história narrada.
Quanto à organização do conteúdo no espaço que irá ocupar na página,
Megnegazzi e Debus destacam duas conjunturas de diagramação nos livros
infantis ilustrados: entre texto e imagem e a que diz respeito à legibilidade.
Sobre a diagramação entre texto e imagens, os autores afirmam que “implica
diretamente nas relações de leitura de acordo com a distribuição gráfico-espa-
cial no formato da página dupla” (2020, p. 30). Essa distribuição em Burburi-
nho volta-se, entre outros aspectos, para a percepção do rinoceronte como um
animal grande, que ultrapassa o limite da dobra entre as páginas:

Figura 2 – Um beliche andante

Fonte: (LEITE, 2018, p. 12-13)

Na passagem, a imagem sangra no espaço da página ao lado, o que


contribui, segundo Linden para valorizá-la. [...] “o leitor passa sucessivamen-
te da observação da imagem para a leitura do texto, cada um se desvelando
em alternância (2018, p. 68). Em consonância com a proposta enunciativa da
narrativa, o rinoceronte é grande, é gigante, um beliche andante, uma palavra
andante, um mundo que, na imaginação de Maria, abre-se no toque dos seus
dedos. Como a menina Maria, o rinoceronte tem baixa visão: “Ele era ela?

13
Ela era ele?” (LEITE, 2018, p. 41). No reconhecimento da identidade pela
alteridade, o rinoceronte deixa de ser apenas uma palavra aprendida para uma
palavra sentida no reconhecimento do “eu” de Maria no “outro” do rinoceronte.
Na espacialidade do texto em Burburinho, a palavra ganha movimento,
assume a representação do visual, o caráter pictórico alia-se aos sentidos do
verbal e do visual que se entrelaçam na tessitura narrativa. Segundo Salisbury e
Styles, “O texto como um elemento pictórico [...] é formatado para se parecer
visualmente com seu tema” (2013, p. 100). Essa é a ligação proposta pela dis-
posição visual das palavras no espaço da narrativa:

Figura 3 – O rinoceronte

Fonte: (LEITE, 2018, p. 12-13)

A forma como imagem e texto se inscrevem no espaço da página


dupla registra a dinâmica que envolve o discurso visual e o verbal em todo
o percurso da narrativa. Pelo formato visual da disposição das palavras, vei-
culam os efeitos da relação simbólica criada pela personagem com o beliche
andante. No espaço do texto, a assimetria das palavras é portadora dos sig-
nificados anunciados pelo narrador na caracterização do rinoceronte como
uma palavra andante. Essa caracterização também é diretamente descrita
por Joana, a amiga que traduzia as imagens para Maria na sala de aula, e
associava a imagem do rinoceronte ao seu beliche em movimento, andando.
As palavras de Joana acendem a memória de Maria pela ponta dos dedos,
conforme revela a passagem (LEITE, 2013, p. 14):

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Maria sorriu. Lembrou-se do beliche da amiga. Parecia uma casa. Na pele
das suas mãos, no dia do aniversário de Joana, esse mundo veio escrito na
memória da ponta dos dedos de Maria. No toque das mãos,,, sentida a pa-
lavra beliche. Havia uma escadinha, elas subiam rapidamente.

Portanto, o formato visual das palavras na espacialidade do texto des-


vela as relações de sentido entre percepção e imaginação. Essas relações são
suscitadas pela memória do beliche, em especial, da escada, via de acesso ao
beliche-montanha, lugar que aproximava Maria das estrelas invisíveis, cenário
imaginado, de onde as meninas ouviam as histórias lidas pela mãe de Joana.
Assim evocada, a imagem também se constrói a partir das palavras. Em
sua disposição, a palavra se torna imagem, prenhe de significados, que se enun-
cia aos olhos do leitor, em um contínuo transmutar-se. Seguindo a formulação
de Colomer (2017, p. 270):

nos livros ilustrados o texto e a imagem dizem e mostram algo. É sua fun-
ção linguística e icônica, respectivamente. Mas, para atender um propósito
artístico, a atenção se encontra direcionada em como o dizem e como o
representam, ou seja, no plano da expressão literária e plástica. Como o dizem
e como o representam, ou seja, no plano da expressão literária e plástica. As
letras do texto podem invadir o campo icônico e ter uma função plástica que
se joga com a forma das letras ou se distribuem perseguindo um desenho
determinado.

Organizadas no formato que remete à imagem da escada do beliche,


as palavras atendem ao propósito artístico de se alinharem aos sentidos da
história narrada, ampliam os efeitos do texto propiciando, assim, um diálogo
de proximidade entre obra e leitor. Servem de liame para a apreensão desse
jogo entre o icônico e a expressão plástica, a imagem do rinoceronte ocupan-
do todo o espaço da página da esquerda, seguida das palavras sussurradas por
Joana, na página sequenciada da direita. Em suas especificidades constitu-
tivas, texto, formas e cores instauram a plasticidade poética que constitui o
espaço da narrativa em Burburinho.

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Um burburinho de palavras, imagens e textura

O termo plasticidade poética empregado nesta abordagem parte do


princípio da interação lúdica entre os enunciados verbal e visual elaborado
pelos estudos de Yara dos Santos de Augusto Silva, a partir “das relações entre
as artes literárias e visuais, em suas possibilidades de influxos e atualizações
potenciais, assim como as multiplicidades de sentidos e percepções passíveis
de serem suscitados por elas” (SILVA, 2016, p. 21). Partindo dessa perspectiva,
a proposta de suscitar essas possiblidades de sentidos e percepções por meio do
verbal e do visual na obra Burburinho tem por base a concepção de plasticidade
poética desenvolvido pela pesquisadora.
Em Burburinho, a confluência poética entre a palavra e a imagem pro-
tagoniza a composição das espacialidades nas diferentes camadas de apreensão
da palavra. Em suas estruturas expressivas, palavras, imagens e textura redi-
mensionam o campo de percepção do leitor, em especial, pela presença tátil
da escrita em braile no espaço do texto. O engendramento desses recursos na
tessitura narrativa é anunciado na composição da capa e da quarta capa:

Figura 4 – Capa e quarta capa

Fonte: (LEITE, 2018)

As estratégias de criação empregadas na feitura da capa e da quarta


capa dão visibilidade aos enunciados verbal e visual que perpassam toda a

16
espacialidade do texto, são elementos articuladores na construção dos sentidos
entrelaçados na tessitura narrativa. Já na capa, o leitor é motivado a experien-
ciar sensações táteis por meio do relevo da grafia em braile, um elemento vi-
sível que, ao ocupar o espaço privilegiado da capa, simbolicamente, antecipa a
atmosfera do texto. Segundo Megnegazzi e Debus, “os elementos paratextuais
podem ser minuciosamente planejados em função de contextualizar e reforçar
assuntos da história” (2020, p. 46). Nesse sentido, o diálogo instaurado cumpre
o papel de criar expectativas e suscitar o imaginário do leitor.
A tipografia impressa no título traz a representação de uma grafia in-
fantil, recurso que se repete na quarta capa e na transcrição das palavras beli-
che, redemoinho e prodigiosos empregadas no interior da narrativa. A grafia
diferenciada aponta para a percepção de Maria sobre palavras que lhe instigam
a imaginação, tanto pelo significado e pela pronúncia, quanto pela forma como
são escritas. Assim, o estilo caligráfico do título alude à relação de proximidade
da personagem com o universo das palavras. É, portanto, um recurso emprega-
do “para aproximar o conteúdo literário do modo de escrita da criança, o que
também proporciona espontaneidade e qualidades emocionais ao texto, como
se o escritor/artista tivesse agido diretamente na obra” (2020, p. 36). Sob essa
configuração, a espacialidade do texto em Burburinho é marcada pela interli-
gação dos recursos composicionais empregados no texto verbal e no imagético.
Na quarta capa, o enunciado verbal “um é o outro e o outro é o um”
condensa o sentido que dá contorno ao enredo, a partir do olhar de identifi-
cação que Maria projeta para o rinoceronte, animal portador de baixa visão,
característica comum que os aproxima: “Uma baixa visão, Maria pensou no
rinoceronte-branco. Ele era ela? Ela era ele? (LEITE, 2018, p. 40-41). Na
representação simbólica desse sentido de identidade e alteridade, a ilustração
dialoga com a narrativa mesclando texto e imagem:

17
Figura 5 – Ele era ela? Ela era ele?

Fonte: (LEITE, 2018, p. 40-41)


A imagem no texto literário pode atuar em diferentes frentes na cons-
trução dos significados. De acordo com Colomer, “a imagem pode confirmar,
expandir, analisar, contradizer, resumir ou acrescentar novos significados àque-
le contado pelo texto” (2017, p. 286). Em Burburinho, a imagem da lupa sobre-
posta ao texto amplia os significados da história narrada, pela representação do
olhar minucioso, da percepção da personagem sobre o rinoceronte. A palavra
que antes era apenas um signo linguístico, ao ser tocada e imaginada por Maria
ganha formas e vida.
Corrobora a proposta enunciativa do título, a grafia em braile seguida
da ilustração de uma mão de criança com expressões faciais e com pequenas
ilustrações acima de cada dedo, transmitindo possíveis sensações do contato.
Em suas formas enunciativas, verbal e visual relacionam-se aos efeitos gerados
pelo contato da personagem com a palavra, uma possível transcrição da leitura
de Maria. Portanto, tais recursos servem de liame para a construção dos sen-
tidos que perpassam toda a narrativa, a partir da palavra tocada, lida e sentida.
Os traços da grafia e de desenhos infantis também são convocados para ilustrar
a materialização do imaginário da personagem na passagem:

18
Figura 6 – Um burburinho

Fonte: (LEITE, 2018, p. 48-49)

A página dupla é ocupada por um emaranhado de formas, cores e


traçados, sem moldura, livremente dispostos, numa composição única. A
esse tipo de diagramação, Linden denomina de conjunção: “Textos e ima-
gens já não se encontram dispostos em espaços reservados. [...] Sejam elas
visuais ou verbais, as mensagens se revelam conjunta e globalmente” (2018,
p. 69). Essa conjunção de traços e cores pode ser associada aos registros da
imaginação criativa da personagem, livre para transformar, com o toque das
mãos, o silêncio em palavra.
Associada aos pontilhados da narrativa em braile na espacialidade do
texto, a confluência verbo-visual anuncia-se, ainda, como uma metalinguagem,
recurso que “consiste na atitude narcísica, de autocontemplação, que o texto
faz sobre o próprio texto. Entende-se que a linguagem cria o texto, mas a
metalinguagem o examina e o recria” (PEREIRA, 2020, P. 142). A ideia de
autocontemplação pode ser identificada na intersecção do verbal com o visual
no espaço da página dupla de abertura da narrativa:

19
Figura 7 – O livro

Fonte: (LEITE, 2018, p. 6-7)

Embora a imagem seja dominante no espaço narrativo, a presença do


texto ocupando o mesmo espaço corresponde ao que Linden define como dia-
gramação associativa, caracterizada por romper com a “dissociação entre pá-
gina de texto e página de imagem, e reúne pelo menos um enunciado verbal
e um enunciado visual no espaço da página (2018, p. 68). Assim estruturados,
texto e imagem atendem a um propósito da narrativa, posto que, organizados
no mesmo espaço da página dupla, implica em uma “leitura mais dinâmica por
meio dessa rápida sucessão de imagens e textos curtos (LINDEN, 2018, p. 69).
Na montagem da história, por meio do encadeamento de uma página
para outra, o livro que fora aberto é lido pelas mãos de Maria, um mundo é
desvelado pela ponta de seus dedos. Sobre a relação temática entre a narrativa
e as imagens, Linden pontua que “as mensagens visuais são primordiais [...].
Do ponto de vista do conteúdo, o humor e a sutileza dos temas abordados
são trabalhados em função do suporte e da materialidade do livro” (2018, p.
19). A temática da baixa visão é ludicamente entrelaçada às características do
rinoceronte, animal que ganha vida pelas mãos e imaginação de Maria: “O ri-
noceronte-branco começava a se desenhar dentro dos olhos de Maria. Palavra
virando mundo (LEITE, 2018, p. 11). Na leitura da palavra-mundo, as desco-
bertas são mediadas pela tradução da menina Júlia, além de parceira das lições
na sala de aula, a amiga também era a outra asa da sua imaginação. No livro

20
lido, a palavra rinoceronte acende o mundo imaginário de Maria, fagulha acesa
pela amiga que compara o rinoceronte com o seu beliche, o beliche-montanha,
o espaço alto das brincadeiras descrito na passagem (LEITE, 2018, p. 14):

Maria sorriu. Lembrou-se do beliche da amiga. Parecia uma casa. Na pele


das suas mãos, no dia do aniversário de Joana, esse mundo veio escrito na
memória da ponta dos dedos de Maria. No toque das mãos... sentida a pa-
lavra beliche. Havia uma escadinha, elas subiam rapidamente.

As relações que a amiga Júlia tece entre o rinoceronte e o beliche acio-


nam as memórias perceptíveis de Maria que, por sua vez, impulsionam a ima-
ginação criadora de mundos. Por esse viés, a palavra tocada passa a ter pre-
sença e efeitos na narrativa, o foco repousa sobre o mundo que é desnovelado
pelo toque das mãos da personagem. Uma rede de sentidos se abre pela forma
diferenciada de apreender o mundo: “Joana sabia o saber de partilhar palavras
de um livro com Maria, assim, em sussurros, um redemoinho suave de palavras
assopradas” (LEITE, 2018, p. 17). A projeção de imagens poéticas geradas pela
partilha da palavra dá visibilidade ao elo que liga a personagem ao universo que
é descoberto com o toque das mãos.
A expressão estética materializada no discurso verbal e visual em Bur-
burinho vai ao encontro do pensamento de Andruetto sobre a narrativa ficcio-
nal: “Uma narrativa é uma viagem que nos remete ao território de outro ou de
outros, uma maneira, então, de expandir os limites de nossa experiência, tendo
acesso a um fragmento de mundo que não é o nosso” (2012, p. 54). A trajetória
de Maria na narrativa é o caminho por onde se experiencia a percepção do
visível e do indizível, pela palavra sentida, na espacialidade do texto:

21
Figura 8 – A palavra tocada

Fonte: (LEITE, 2018, p. 30-31)

A busca pela apreensão da palavra também se manifesta pelos gestos


de tocá-las com a pontas dos dedos e de pensar sobre como grafá-la, fazer o
registro da palavra pensada e sentida. Engendrado na textura da espaciali-
dade do texto, o pontilhado das letras é o fio que conduz a ponta dos dedos
de Maria à descoberta do mundo. A mão ilustrada com os dedos sobre os
pontilhados aparece como uma resposta às indagações da personagem sobre
como ler, sentir e escrever a palavra burburinho que fora pronunciada pela
professora na sala de aula: “Maria ficou pensando nessa palavra burburinho.
Como ela iria ler essa palavra com a ponta dos dedos? Como sentir a pala-
vra, tocar com a ponta dos dedos” (LEITE, 2018, p. 30). Esse caminho de
descobertas é representado pela ilustração que ocupa o espaço privilegiado
na página, ampliando, assim, os sentidos do texto narrado. Nessa conjuntura,
da relação simbólica que envolve texto e imagem, há a sensibilidade poética
do olhar da narrativa. Verbal e visual unem-se, portanto, em um processo que
Feres (2020, p. 168) denomina de semiose textual:

[...] é inegável a contribuição da ilustração para o desenvolvimento não


só do repertório imagético-representacional do leitor, mas também de sua
capacidade perceptivo-afetiva, tão necessária para o sentimento de pertença
ao grupo no qual se socializa, em virtude da capacidade implicitadora de
temas e valores que a imagem demonstra.

22
Implicitamente, as ilustrações em Burburinho são poeticamente
enviesadas pela temática da narrativa que suscita um outro olhar sobre uma
forma diferente de apreender e ler o mundo. Na imagem, o toque da mão
sobre o tracejado também indica um caminho de descobertas a ser seguido
pelos dedos que leem, sentem e tocam as palavras, descortinam o mundo na
imaginação de Maria. Assim entrelaçadas, imagem e palavras, reciprocamente,
atuam na construção dos sentidos da narrativa.

Considerações

A plasticidade poética, materializada nos enunciados verbal e visual em


Burburinho, dá visibilidade ao papel exercido pelas ilustrações no texto literário
infantojuvenil, como elemento da composição das espacialidades da narrativa.
Em diferentes formas de expressão artística, texto e imagem atuam na constru-
ção de caminhos que possibilitam uma interação mais significativa com o leitor.
Em Burburinho, a textura visível da grafia em braile intensifica a rede de
sentidos tecida pelo texto e pela disposição das imagens nos espaços das pági-
nas. Assim, a enunciação gráfica exerce um papel fundamental no processo de
apreensão da obra, gerando a abertura de diferentes vias de acesso às camadas
de significação da narrativa, ampliando, assim, o horizonte de percepção do
leitor. Estruturada com essa configuração, a leveza poética da narrativa em
Burburinho cativa o olhar para a percepção do visível no espaço do texto, em
diálogo com a percepção tátil da palavra pela personagem.
Portanto, os recursos que se entrelaçam na composição da espacialidade
do texto em Burburinho aliam-se à proposta enunciativa da obra revelada na
leitura da palavra-mundo, imaginada e sentida pelo toque dos dedos da persona-
gem Maria. Em suas estruturas constitutivas, texto, imagem e textura atuam no
processo de percepção e apreensão dos enunciados verbal e visual da narrativa.

23
Referências

BARBIERI, Cláudia. Arquitetura literária: sobre a composição do espaço nar-


rativo. In: BORGE FILHO, Ozíris; BARBOSA, Sidney (Org.). Poéticas do
espaço literário. São Carlos, SP: Editora Claraluz, 2009.

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gem a Angela Lago. Campinas, SP. Tese (doutorado) Universidade Estadual
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COLOMER, Teresa. Introdução à literatura infantil e juvenil atual. Trad. Laura


Sandroni. São Paulo: Global, 2017.

FERES, Beatriz dos Santos. O que pode a imagem na literatura infantil? As-
pectos semiodiscursivos da relação verbo-visual em livros destinados à infân-
cia. In: MICHELI, Regina; LIMA, Elen Pereira; GARCIA, Flávio (Org.). A
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ras. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2020.

LEITE, Daniel da Rocha. Burburinho. Belém, PA, Twee Comunicação, 2018.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. Trad. Dorothée de Bru-
chard. São Paulo: SESI-SP, 2018.

MENEGAZZI, Douglas; DEBUS, Eliane. O design do livro de literatura


para a infância: uma investigação do livro ilustrado contemporâneo. In: DE-
BUS, Eliane; SPENGLER, Maria Laura; GONÇALVES, Fernanda (Org.).
Livro objeto e suas arti (e)manhas de construção. Curitiba, PR: Editora Merca-
dolivre, 2020.

PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. A linguagem da literatura infantojuve-


nil brasileira. In: MICHELI, Regina; LIMA, Elen Pereira; GARCIA, Flávio
(Org.). A literatura infantil/juvenil entre textos e leitores: reflexões críticas e
práticas leitoras. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2020.

24
RAMOS, Graça. A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

SALISBURY, Martin; STYLES, Morag. Livro infantil ilustrado: a arte da


narrativa visual. São Paulo, SP: Rosari, 2013.

SILVA, Yara Dos Santos Augusto. Plasticidades poéticas, escrituras picturais: jo-
gos do texto e da imagem na arte de poetas e pintores das vanguardas latino-
-americana. Belo Horizonte, MG. Tese (doutorado) Universidade Federal de
Minas Gerais, 2016.

25
UM PASSEIO PELAS LENTES DAS ILUSTRAÇÕES NA
NARRATIVA A HISTÓRIA DAS CRIANÇAS QUE PLAN-
TARAM UM RIO: UM DIÁLOGO ENTRE O TEXTO VER-
BAL E O VISUAL

Izabel de Brito Nascimento


Iza Reis Gomes

Introdução

Na história do livro infantojuvenil houve momentos de direcionamen-


tos na escrita a determinados tipos de leitor. A Literatura infantojuvenil con-
temporânea apresenta-se quase que liberta dessas amarras e há uma grande
produção de livros em que a estética literária se configura na relação entre
o texto verbal e a imagem. Os leitores, sejam infantis, juvenis ou adultos, na
interação com o livro ilustrado, “se descobrem entretidos em uma página por
um detalhe específico, atentos aos efeitos da diagramação, surpresos pela ou-
sadia de uma representação”, e isso dependerá de cada leitor juntamente com
sua experiência leitora; e “ainda encantados por uma inesperada relação texto/
imagem descobrem nesses momentos uma dimensão suplementar à história”
(LINDEN, 2018, p. 7). Essa relação nos mostra o quão o funcionamento de
um livro ilustrado pode ampliar a leitura e a recepção dos leitores.
A obra A história das crianças que plantaram um rio, do escritor Daniel da
Rocha Leite proporciona essa relação colaborativa entre texto visual e imagé-
tico. Há uma colaboração entre as linguagens. E a partir dessa obra, propomos
uma leitura baseada nesse diálogo.
E utilizaremos alguns conceitos da teórica Linden (2018) e Nikolaje-
va e Scott (2011) para uma análise da obra de Leite (2013). A ideia é provo-
car no leitor um olhar diferente para a narrativa, na perspectiva da ilustração
e seus efeitos de sentido.

26
Alguns apontamentos teóricos e analíticos sobre ilustração no livro A histó-
ria das crianças que plantaram um rio

Antes de partirmos para a teoria, pontuamos a narrativa utilizada nesse


artigo. Em A história das crianças que plantaram um rio, um narrador-adulto sem
nome em um sentimento de saudade e pesar deseja regressar ao mundo sociocul-
tural ribeirinho onde viveu quando criança. No entanto, não é somente o lugar
que ele almeja rememorar, mas também sua vivência e experiência vivida quan-
do criança nesse local. Ao fechar os olhos, e agora, menino, regressa ao mundo
ribeirinho, palco onde viveu quando era criança. Neste ambiente sonial e cheio
de sensações, menino e rio são companheiros. Além da voz do narrador-perso-
nagem, é apresentada a narração da avó e seus diálogos com o neto. São desses
diálogos e narração que ocorrem o intercâmbio de experiências. No percurso da
narrativa, o rio aproxima o narrador-personagem da avó, quando sentados sobre
o trapiche, a avó lhe conta histórias, aproximando-o do rio, ensinando-lhe a “ou-
vi-lo”. Nessa interrelação, os acontecimentos na narrativa vão tomando forma.
Para uma construção teórica sobre ilustração, imagem e livro partire-
mos das concepções de Linden (2018, p. 8 e 9):

De imediato, o livro ilustrado evoca duas linguagens: o texto e a imagem.


Quando as imagens propõem uma significação articulada com a do texto,
ou seja, não são redundantes à narrativa, a leitura do livro ilustrado solicita
apreensão conjunta daquilo que está escrito e daquilo que é mostrado. [...]
Ao longo de sua evolução histórica, o livro ilustrado infantil conheceu gran-
des inovações. A imagem foi gradativamente conquistando um espaço de-
terminante. Hoje, ela revela sua exuberância pela multiplicação dos estilos e
pela diversidade das técnicas utilizadas. Os ilustradores exploram ao máxi-
mo as possibilidades de produzir sentido. Assim, ler um livro ilustrado não
se resume a ler texto e imagem. É isso, e muito mais. Ler um livro ilustrado
é também apreciar o uso de um formato, de enquadramentos, da relação
entre capa e guardas com seu conteúdo; é também associar representações,
optar por uma ordem de leitura no espaço da página, afinar a poesia do
texto com a poesia da linguagem, apreciar os silêncios de uma em relação à
outra... Ler um livro ilustrado depende certamente da formação do leitor.

27
Consideramos a obra de Daniel da Rocha Leite um sistema complexo
que demanda várias habilidades de um leitor para uma leitura crítica e analí-
tica. Nossa leitura abarca as relações textuais que não foram ditas e não foram
ilustradas, mas que foram sugeridas na relação das duas linguagens.
Na tentativa de delimitar alguns conceitos, recorremos aos tipos de li-
vros descritos por Linden (2018, pp. 24 e 25).:

Livros com ilustração – obras que apresentam um texto acompanhado de


ilustrações.
Primeiras leituras – situado a meio caminho entre o livro ilustrado e o ro-
mance [...] o formato é característico do romance, a narrativa é sequenciada
em capítulos curtos.
Livros ilustrados – obras em que a imagem é especialmente preponderante
em relação ao texto [...] A narrativa se faz de maneira articulada entre texto
e imagens.
Histórias em quadrinhos – forma de expressão caracterizada não pela pre-
sença de quadrinhos e balões, e sim pela articulação de ‘imagens solidárias’.
Livros pop-up – tipo de livro que no espaço da página dupla acomoda sis-
temas de esconderijos, abas, encaixes etc.
Livros-brinquedo – objetos híbridos, situados frequentemente entre o livro
e o brinquedo.
Livros interativos – apresentam-se como suporte de atividades diversas:
pintura, construções, recortes, colagens.
Imaginativos – a um só tempo, apresentam organização material e funcio-
nalidade específica indissociáveis.

Diante dessas possíveis descrições, apontamos que a obra de Leite


(2013) está situada entre os conceitos de um livro com ilustração e um livro
ilustrado. Há momentos em que as imagens repetem o texto verbal e há mo-
mentos em que as imagens são colaborativas com o texto verbal.

28
Figura 1 – Meninos e meninas correndo pelo trapiche inundado

Fonte: (LEITE, MACISTE, 2012, p. 22-23)

Essa ilustração em diálogo com a linguagem verbal nos leva a afirmar


que a relação construída identifica um “livro com ilustração”, ou seja, uma obra
que apresenta um texto acompanhado de ilustrações, pois a imagem, por mais
que processe outros sentidos, repete a intenção do texto verbal: “Águas Gran-
des eram o tempo do nosso mundo, meninos e meninas correndo pelo trapiche
inundado” (2013, p. 23).
No entanto, como havíamos falado, o livro congrega as duas possi-
bilidades.

Figura 2 – Será que o rio sonha comigo?

Fonte: (LEITE, MACISTE, 2013, p. 32-33)

Essa ilustração não repete o que o texto verbal diz. Na linguagem ver-
bal há uma pergunta do menino narrador: “será que o rio sonha comigo?”. E

29
a ilustração leva o leitor a um mundo aquático, ao fundo de um rio em que
visualizamos um menino dormindo. Todo o ambiente que cerca esse menino
dormindo resgata a fantasia, o sonho e, dessa forma, a narrativa se faz de ma-
neira articulada entre texto e imagens. Por isso, afirmamos que a narrativa A
história das crianças que plantaram um rio é uma narrativa híbrida entre “livro
ilustrado” e “livro com ilustração”.
Linden também define diferentes status da imagem (2018, p. 44):

Imagens isoladas – do ponto de vista da organização interna do livro, pode-


-se considerar a apresentação de texto e imagem em páginas distintas como
uma herança do livro com ilustração. Parece-me que as imagens desse tipo
de livro ilustrado são definidas como ‘isoladas’, no sentido de que se apre-
sentam separadas umas das outras, sem se avizinharem no espaço da página
dupla. Aplicaremos esse termo para as imagens independentes que não in-
teragem entre si. Sua composição, e sua expressividade, sejam elas plásticas
ou semânticas, são rigorosamente autônomas e coerentes. Essas imagens
estão separadas do ponto de vista da expressão e da natureza).

Com essa caracterização, podemos inferir que os “livros com ilustração”


podem apresentar essas imagens isoladas, ou seja, imagens que não se conec-
tam, que repetem o texto verbal e se isolam diante de uma possibilidade de
conexão, seja contextual, temática, sonora, cultural, política etc.
A imagem sequencial é outro status desenvolvido por Linden: (2018, p. 44).

Imagens sequenciais – o quadrinho ou a vinheta da hq se opõem à imagem


isolada por pertencerem a uma sequência de imagens articuladas. Unidade
de uma sequência, o quadrinho é necessariamente uma parcela do todo,
dependente dos outros. [...] Cada imagem de uma história em quadrinhos
expressa uma parte de um discurso que se realiza de modo sequencial. As-
sim, cada quadrinho está muito ligado àqueles que o cercam

Esta caracterização da história em quadrinho traz intrinsicamente a


sequenciação das imagens. Um quadrinho depende do outro para o entendi-
mento da narrativa.
E por último temos a associada (LINDEN, 2018, p. 45):

30
Imagens associadas – entre a isolada e a sequencial, a do livro ilustra-
do não raro se afirma num meio caminho entre esses dois polos (isolada
e sequencial). Não sendo nem totalmente independentes nem solidárias
por completo, tais imagens poderiam ser qualificadas como associadas.
Desse modo, as associadas são ligadas, no mínimo, por uma continuida-
de plástica ou semântica. Elas podem apresentar uma coerência interna
(composição plástica, unidade narrativa) que as torna independentes das
imagens que as cercam.

A associada pode trazer ao texto uma complexidade de leituras enrique-


cedora, pois possibilitará realizar inferências e associações com o que a ilus-
tração e o texto verbal proporcionam, na medida que oferecem continuidades
estéticas ou de sentidos.

Figura 3 – Imagem associada

Fonte: (LEITE, MACISTE, 2013, p. 38-39)

Na narrativa de Leite, identificamos imagens associadas. Essa imagem é


considerada associada porque demonstra uma continuidade plástica, a imagem
é contínua ao texto, temos uma composição estrutural da linguagem verbal
com a imagem do pássaro, os dois estão em sintonia espacial; e semântica pelos
sentidos que a imagem de um pássaro carrega e as palavras do texto “tempo
de se ir e voltar”. Ela apresenta uma coerência interna, uma unidade narrativa:
Outro ponto interessante para analisar um livro ilustrado é a sua mate-
rialidade, ou seja, tudo que cerca as páginas em que se apresentam a narrativa.

31
Linden (2018) nos enumera esses elementos: os formatos dos livros, as capas,
as guardas, as folhas de rosto e as páginas do miolo.
A capa de um livro ilustrado é um convite à leitura, recebe os primeiros
olhares, as primeiras interpretações, indagações e juízos de valores. Para Lin-
den (2018, p. 57), a capa é o

Lugar de todas as preocupações de marketing, a capa constitui antes de


mais nada um dos espaços determinantes em que se estabelece o pacto da
leitura. Ela transmite informações que permitem apreender o tipo de dis-
curso, o estilo de ilustração, o gênero... situando assim o leitor numa certa
expectativa. Tais indicações podem tanto introduzir o leitor ao conteúdo
como levá-lo para uma pista falsa.

A capa do livro de Leite (2013) se relaciona com a quarta capa, a parte


final do livro. No entanto, as capas também podem ser independentes, ou seja,
não se relacionam. E há as que se complementam e trazem pistas da narrativa.
É o caso de A história das crianças que plantaram um rio.
Quando vemos a primeira capa, visualizamos uma casa de choupana
com pernas compridas dentro de um possível rio com peixes pulando e alguns
pássaros no céu. Quando abrimos o livro e juntamos as duas capas, obtemos o
olhar de um personagem, do menino que, após a leitura da narrativa, sabemos
se tratar do narrador ou de um possível leitor.

Figura 4 – Primeira e quarta capas do livro

Fonte: (LEITE, MACISTE, 2013)

32
No enquadramento da primeira capa, o leitor infere que temos um foco
direcionado ao espaço da narrativa em que supomos existir uma casa, um rio
e a natureza. No entanto, quando visualizamos o conjunto das capas, o enqua-
dramento se mostra numa dupla interpretação: a primeira é o ponto de vista
do menino narrador ou o menino faz parte da ilustração e o ponto de vista é
do leitor. São possíveis leituras que as capas nos proporcionam.
Após a capa, partiremos para o título do livro ilustrado. Esse elemento
está ligado intrinsicamente com a capa. Segundo Linden (2018), o título pode
ser humorístico, enigmático, antecipar o conteúdo, desarmar um efeito-surpre-
sa ou uma queda final, e ainda pode ser uma chave de interpretação narrativa.
“O título se relaciona sobretudo com a representação figurada da capa. Dessa
forma, ele obedece a qualquer tipo de vínculo texto-imagem, com suas relações
de redundância, complementariedade ou contradição” (LINDEN, 2018, p. 58).
Em relação à narrativa analisada, o título traz o imaginário por termos crianças
plantando um rio, temos o termo “A história” que convoca algum contador e
leva o leitor a embarcar nessa chave interpretativa.
Temos as guardas dos livros, a parte posterior e anterior à capa que ser-
vem para ligar o miolo do livro. Linden (2018) conceitua algumas funções das
guardas dos livros infantis: trazem motivos que se repetem, frequentemente se
relacionam com o conteúdo do livro, a primeira guarda pode antecipar a his-
tória, a última guarda pode remeter à volta da história, pode conduzir o leitor
a um jogo lúdico. Dessa forma, as guardas trazem informações que podem
interferir na leitura e interpretação da obra.
Em relação aos aspectos narrativos de textos e imagens, pontuamos
algumas relações, funções e suas características citadas por Linden (2018, p.
121):

33
Quadro 1 – Características essenciais das relações entre texto e imagem

REDUNDÂNCIA COLABORAÇÃO DISJUNÇÃO


Cada um, alternadamen-
Sobreposição total dos te, conduz a narrativa, ou Textos e imagens seguem
conteúdos cada um preenche as lacu- vias narrativas paralelas.
nas do outro.
Interação de duas men-
Nada no texto ou na ima- sagens distintas para uma Textos e imagens entram
gem vai além do outro. realização comum do sen- em contradição.
tido.
Isotopia narrativa. Divergências construtivas.
Sobreposição parcial: con-
gruência do discurso, mas
um deles diz mais que o
outro.
Fonte: Adaptado do livro de LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado.
2018, p. 121.

Quadro 2 – As funções do texto e da imagem

FUNÇÕES CARACTERÍSTICAS
A mensagem veiculadas pela instância secundária pode
apenas repetir, em outra linguagem, a mensagem veicula-
da pela instância prioritária.
1. Função de repetição
A leitura da segunda mensagem não traz então nenhuma
informação suplementar, e o leitor tema sensação de ler a
mesma mensagem de outra maneira.
O texto pode selecionar uma parte da mensagem da
imagem.
Um texto pode, por exemplo, mencionar apenas alguns
2. Função de seleção elementos específicos de uma imagem. Da mesma for-
ma, uma imagem pode se concentrar em um aspecto, um
ponto de vista preciso da narrativa, ou eleger um sentido
da polissemia do texto.
O aporte do texto ou da imagem pode revelar-se indis-
3. Função de revelação pensável para a compreensão um do outro que, sem sua
contraparte, permaneceria obscuro.
Quando a segunda expressão intervém sobre a prioritária,
pode dar ensejo ao entendimento de um sentido global.
4. Função completiva Uma completa a outra, fornece informações que lhe faltam,
preenche suas lacunas ou ‘brancos’, constituindo um aporte
indispensável para a compreensão do conjunto.

34
Uma das expressões pode se caracterizar como contra-
ponto da outra, particularmente por uma quebra das ex-
5. Função de contra-
pectativas geradas pela instância da primeira, não men-
ponto
cionando, por exemplo, um elemento que, no entanto, é
central.
Um pode dizer mais que o outro sem contradizê-lo ou
6. Função de amplifi-
repeti-lo. Estende seu alcance de sua fala trazendo um
cação
discurso suplementar ou sugerindo uma interpretação.
Fonte: Adaptado do livro de LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado.
2018, pp. 122 a 126.

Na figura 5, temos a imagem repetindo o texto verbal. Dessa forma,


a mensagem veiculada pela instância secundária, no caso a imagem, apenas
repete, em outra linguagem, a mensagem veiculada pela instância prioritária,
o texto verbal. A imagem retrata a seguinte narração: “estávamos ali, sentados,
lado a lado, na beira do trapiche, vendo o rio passar. Bem baixinho, com aqueles
seus olhos de vó, ela me disse, quase em um sussurro, que o rio queria conversar
com a gente”. E ainda tem a apresentação do tempo e espaço: “no final de uma
tarde, a minha avó quis me ensinar a conversar com o rio”. São duas linguagens
que se repetem, sendo que visualizamos a verbal como instância prioritária e a
ilustração como instância secundária. De acordo com Linden (2018), a leitura
da segunda mensagem não traz então nenhuma informação suplementar, e o
leitor tem a sensação de ler a mesma mensagem de outra maneira.

Figura 5 – Ilustração com função repetida

Fonte: (LEITE, MACISTE, 2013, p. 40-41)

35
Podemos encontrar, após a leitura do texto, outras funções não identifi-
cadas na primeira leitura. Não é algo engessado, podendo ocorrer variações de
acordo com cada livro ilustrado, ou seja, podemos encontrar várias funções em
um mesmo texto.
O último elemento a ser abordado aqui é o ponto de vista teorizado por
Linden, (2018, p. 130).

Muitas relações de complementaridade ou de disjunção surgem quando se


diferenciam pontos de vista entre texto e imagem. A articulação, em torno
de um mesmo discurso, textual e imagética permite multiplicar os pontos
de vista ou focalizações.

A teórica Linden (2018) discorre sobre a origem do termo ‘focalização’,


originário da palavra ‘focal’, utilizada pela Narratologia de Gérard Genette. Há
uma distinção proposta por Genette em relação à focalização: interna (o nar-
rador adota o ponto de vista de um personagem); externa (o narrador tem um
ponto de vista geral sobre os fatos narrados); a zero (o narrador, dito onisciente,
pode tanto se posicionar dentro do personagem como fora dele).
Perfazendo uma parceria com a proposta de Genette, no livro ilustrado,
conforme as pontuações de Linden (2018, p. 131), “os diferentes tipos de foca-
lização apresentados pelo texto são duplicados, já que entra em jogo uma visão
suplementar: a da imagem. A focalização do texto pode convergir ou entrar em
contradição com a da imagem”. Um elemento decisivo para analisarmos e identi-
ficarmos o ponto de vista, a focalização da imagem narrativa é o enquadramento.
De acordo com a construção desse enquadramento (posição das imagens, altura,
perspectiva, distância), poderemos identificar se temos um narrador onisciente
que apresenta a narrativa e todos os seus personagens e/ou temos um enquadra-
mento na perspectiva de uma criança, de um personagem em destaque.
Na narrativa analisada, temos imagens que ocupam toda a superfície das
páginas, sangrando a folha, não há uma moldura delimitando a criação. E essas
imagens que sangram contribuem para o entendimento e leitura da narrativa,
podendo ocasionar a impressão de estarmos diante de uma tela. Essa ideia co-
aduna com a escolha de focalização dada às imagens dos narradores, sempre de

36
costas para o leitor e de frente para a narrativa, como se estivéssemos em uma
sala de cinema assistindo à narrativa.
Pensando na possibilidade de associarmos a página dupla a uma pos-
sível moldura, trazemos a distinção realizada por André Bazin. Este teórico
pontua sobre a diferença entre tela e moldura, (BAZIN, 1985, p. 22):

Os limites da tela não são, como o vocabulário técnico pode às vezes sugerir,
a moldura da imagem, e sim um esconderijo que pode revelar apenas parte
da realidade. A moldura polariza o espaço para dentro; e, ao contrário, tudo
o que é mostrado na tela supostamente deve se estender indefinidamente no
universo. A moldura é centrípeta, a tela é centrífuga.

Dessa forma, as imagens no livro A história das crianças que plantaram


um rio podem ser analisadas como uma tela, imagens que sangram e sugerem
uma extensão além da página, além do suporte do livro, deixando para os lei-
tores a complementariedade, o preenchimento da leitura.
Além desse código da presença ou ausência da moldura, temos o en-
quadramento. Este código leva o leitor a ver a narrativa a partir de uma posi-
ção dos narradores e/ou personagens em relação à cena representada. Vamos
a alguns apontamentos sobre focalização na obra A história das crianças que
plantaram um rio.
Há o conceito de plongée, “que é a vista de cima para baixo”, quando
estamos visualizando a cena de cima; outro conceito é contra-plongée, “que é
a vista de baixo para cima”. (LINDEN, 2018, p. 75). Essas posições agregam
informações sobre como visualizamos a narrativa na relação de complementa-
riedade entre as linguagens verbal e visual:

37
Figura 6 – Visão Plongée (vista de cima)

Fonte: (LEITE, MACISTE, 2013, p. 12-13)

Na figura 6, temos uma visão de cima, visualizamos as pegadas que


iremos acompanhar durante a história. Nessa ilustração, a focalização é do
narrador e do leitor. Diferente da próxima em que teremos uma visão de cima,
porém, a visão não será do leitor, mas apenas do narrador-personagem. Os
leitores não estão focalizando a mesma cena que o narrador-personagem.

Figura 7 – Visão Plongée (vista de cima)

Fonte: (LEITE, MACISTE, 2013, p. 28-29)

Temos um zoom na ação do narrador-personagem que está com uma fo-


calização no rio. São focalizações narrativas diferentes e que se complementam,

38
deixando ao leitor a liberdade imaginativa do que possa o narrador-persona-
gem estar enxergando por aquela brecha.
Para uma maior exemplificação da focalização do narrador-personagem
dentro da narrativa de Leite (2013), apresentaremos algumas folhas duplas em
que a posição dos personagens nos leva a visualizar o foco do narrador.

Figura 8 – Ilustrações das posições dos narradores1

Fonte: (LEITE, MACISTE, 2013)

Observando o narrador menino, a narradora avó e o narrador adulto,


em nenhum momento há uma imagem deles olhando para o leitor, o foco
deles contando a história é sempre de frente para a narrativa e de costas para o
leitor. Não visualizamos o rosto deles. E quando aparecem de frente para nós,
estão dormindo ou de olhos fechados. O único momento em que temos um
1
Cada letra corresponde a um quadrado vermelho referente à posição do narrador ou personagem.

39
personagem olhando realmente em direção ao leitor é a Figura 8, letra E, na
sequência apresentada. Temos um menino montado em um pirarucu seguran-
do em suas barbatanas como se fosse um cavalo. E temos o texto verbal: “Há
mundos que os olhos é que ouvem, dizia a minha avó” (2013, p. 25).
Os narradores de A história das crianças que plantaram um rio se posi-
cionam como contadores de histórias, estão inseridos na narrativa contando
as histórias de acordo com as suas perspectivas. Essas posições influenciam
na narração da história porque esses narradores convidam os leitores a ca-
minharem junto com eles. Assim, temos um enquadramento na perspectiva
de uma criança, de um adulto e de uma avó. São visões que contribuem
para contar a narrativa. O jogo de enquadramento, demonstrado na figura
8, por meio dos quadrados vermelhos, nos leva a ouvir esses narradores e
suas histórias. Maciste Costa, em um diálogo com o texto verbal do escritor
Daniel da Rocha Leite, joga com a focalização da narrativa. Esse olhar para
dentro da narrativa nos leva ao passado, é o narrador pegando em nossas
mãos e nos conduzindo em uma viagem à história de seu passado. Quando
o ilustrador escolhe não mostrar o rosto dos personagens, possibilita a prá-
tica da imaginação, da criação imaginária pelo leitor.
A análise não objetiva de forma alguma enquadrar o livro de Daniel
em uma caixa com regras estipuladas e de encaixe. Cada livro possui a sua
organicidade, o seu funcionamento, as suas ferramentas que farão o texto
(verbal e visual) criarem vida. O texto é orgânico, está em movimento e as
relações propostas por ele podem mudar a qualquer momento, basta uma
nova leitura extra e identificá-la em sua intertextualidade, por exemplo.
Assim, em A história das crianças que plantaram um rio, vemos um texto que
pode ser mobilizado de acordo com a experiência estética literária de cada
leitor, seja infantil, juvenil ou adulta.

Considerações

Percorremos alguns rastros deixados pelos narradores de Daniel Leite


e as percepções imagéticas de Maciste Costa. Descobrimos caminhos ávidos a

40
serem explorados. Temos uma narrativa formada por uma construção de vozes:
o rio fala à avó, a avó fala ao menino, o menino rememora e fala ao leitor, como
menino e como adulto. Além de termos as ilustrações que nos direcionam os
olhares de acordo com as posições que ocupam nas páginas.
O processo de criação e construção dos narradores ganha visibilidade por
meio das ilustrações. Este elemento é utilizado na obra como recurso narrativo,
dando voz aos narradores e acompanhando-os no texto verbal. Assim como os
narradores nos contam as histórias por seus pontos de vistas, as ilustrações tam-
bém narram histórias. As cores, o enquadramento, a disposição nas páginas do
livro funcionam como foco e guiam o leitor nas leituras das imagens.
Presenciamos a colaboração entre o narrador do texto verbal e o do tex-
to imagético na contação da história: uma relação entre a linguagem verbal e a
imagética, crucial para a criação de sentido da narração. As ilustrações na obra
A história das crianças que plantaram um rio perfazem uma função, às vezes, de
repetição, e outras vezes, de colaboração. As duas funções contribuem no diá-
logo entre as linguagens na perspectiva apresentada aos leitores. As ilustrações
estabelecem uma relação entre si numa trilha analítica em que a estrutura dos
narradores é construída pelas posições que esses narradores se colocam verbal-
mente e imageticamente. São pontes que nos guiam a caminho da literatura,
da imaginação e das histórias contadas.

REFERÊNCIAS

ANDRUETTO, Maria Teresa. A leitura, outra revolução. Cadernos Emília.


Ano 1 - N° 0 - 2017.

ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. Tradução:


Carmem Cacciacarro. São Paulo: Pulo do Gato, 2012.

BAZIN, André. Peinture et cinema. In: LINDEN, Sophie Van der. Para ler o
livro ilustrado. Tradução: Dorothée de Bruchard. São Paulo: SESI-SP, 2018.

41
LEITE, Daniel da Rocha. A história das crianças que plantaram um rio. Ilustra-
ções de Maciste Costa. Belém: Ponto Press, 2013.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. Tradução: Dorothée de
Bruchard. São Paulo: SESI-SP, 2018.

NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens.


Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

42
ÓRFÃOS DO ELDORADO: DO ROMANCE ÀS TELAS

Eliane Auxiliadora Pereira

A memória é uma armadilha, pura e simples,


que altera, e sutilmente reorganiza o passado,
por forma a encaixar-se no presente.
Mário Vargas Llosa

Introdução

O diálogo entre Literatura e Cinema remonta ao início do século XX,


quando o cinematógrafo foi criado pelos irmãos Auguste Marie Louis Nicho-
las Lumière e Louis Jean Lumière e aprimorado, posteriormente, por Georges
Méliès. Desde então, a arte do fazer cinematográfico vem sofrendo mudanças
e sendo aperfeiçoada cada vez mais nesses pouco mais de cem anos do cinema.
Georges Méliés, um ilusionista francês, despertou a atenção para a capacidade
de se narrarem histórias com as imagens projetadas pelo aparelho cinemató-
grafo e, em 1902, inspirado na obra de Júlio Verne Da Terra à Lua, apresentou
o filme Viagem à Lua (1902).
Dessa forma, o cinema surge como arte narrativa, como linguagem. A
partir daí, o mundo do cinema modificou-se, pois histórias com construção
narrativa passaram a ser contadas, fazendo com que os espectadores fossem
atraídos por enredos, personagens e outros elementos inexistentes nas primei-
ras experiências cinematográficas. Assim, utilizando contextos literários, os
filmes produzidos foram se modificando e passaram a possuir maior duração.
Essas mudanças trouxeram maior desenvolvimento para a produção cinemato-
gráfica, que teve que criar mecanismos mais sofisticados e complexos, que con-
seguissem abarcar a construção de uma obra em toda a sua peculiaridade. Por
isso, essas modificações e o número crescente de espectadores ensejaram aos
produtores da época criar um produto que fosse comerciável e trouxesse lucro

43
para eles. Daí ter o cinema passado por diversas transformações ao longo de
todo o século XX. Pode-se dizer que foi por meio da (SEABRA, 2014, p. 20).

progressiva assimilação do procedimento narrativo, em paralelo com o


desenvolvimento da linguagem fílmica, que os filmes foram perdendo o
caráter incipiente inicial, ganhando outra consistência que era inerente à
imagem em movimento desde o seu início, apesar de os pioneiros não a
terem explorado.

No Brasil, há muitas produções cinematográficas do século XX e algu-


mas do século XXI que se basearam em histórias oriundas de obras literárias.
Citamos, como exemplificação, três obras que foram adaptadas para o cinema:
Lavoura Arcaica (2001), de Luiz Fernando Carvalho; Memória Póstumas de Brás
Cubas (2001), de André Klotzel; e Lisbela e o prisioneiro (2003), de Guel Arraes.
Rosemari Sarmento (2008), em sua dissertação À esquerda do pai: a
narrativa de Lavoura arcaica na literatura e no cinema, buscou demonstrar os
processos de criação e significação tanto na literatura quanto no cinema, bem
como essas se desenvolvem em seus diferentes discursos. Pretendeu traçar um
olhar sobre seus processos de criação e significação considerando suas espe-
cificidades. Afirma que essas duas artes operam em um mesmo espaço, o da
narratividade. Por isso, buscou confrontar as duas obras por meio de seus pro-
cedimentos narrativos, enfatizando a forma como foi retratada a problemática
relação entre pai e filho, relacionada, entre outros aspectos, à questão da tradi-
ção representada pelo pai e a modernidade, representada pelo filho, que viviam
em eterno conflito pela sua manutenção ou ruptura.
Outra estudiosa sobre a tradução da literatura para o cinema, Gedy
Brum Weis Alves (2013), analisou o romance e o filme Memórias Póstumas de
Brás Cubas, em sua pesquisa Da literatura ao cinema, o narrador Brás Cubas no
romance machadiano e na obra fílmica de Klotzel. Aborda a questão da hiper-
textualidade. Na pesquisa, ela analisa de que maneira foi trabalhada a ques-
tão do foco narrativo das duas obras, pois tanto o escritor quanto o cineasta
colocaram em destaque, em suas obras, a figura do narrador. Desta forma,
comparou como Klotzel transpôs para o cinema as características inerentes

44
do narrador-personagem criado por Machado de Assis. Além disso, traba-
lhou com a perspectiva de que a obra fílmica é um novo texto, cuja concepção
se dá por intermédio da intertextualidade.
Já Valquíria Elias Ferreira Rezende (2010), em seu estudo Um olhar
sobre as relações entre literatura e cinema: a adaptação de Lisbela e o prisioneiro,
fez um estudo comparativo entre a arte literária e a cinematográfica buscan-
do refletir acerca do processo de transposição entre essas duas linguagens por
meio da análise das transformações a que um texto é submetido no processo
de adaptação para um outro meio de produção. Ou seja, Rezende procurou
desvendar de que forma a peça teatral de Osman Lins foi adaptada para o texto
fílmico de Guel Arraes, abordando, dentre os elementos formais da narrativa,
com maior ênfase, a construção dos personagens. Analisar um filme requer um
olhar diferenciado, pois a construção de uma película é diferente de uma his-
tória escrita. Contar uma história de 200 páginas em duas horas exige algumas
escolhas que influenciarão na produção do filme.
O diretor, roteirista e documentarista Guilherme Fernandes Cezar Coelho
nasceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 24 de maio de 1979. Bacharelou-se em
economia na Califórnia pela Universidade Stanford, local onde também estudou
jornalismo, teatro e documentário. Guilherme foi coprodutor e codiretor dos ví-
deos Se Tu Fores, que fala acerca dos compositores da escola de samba Portela, e
Dorotéia Masquerade, uma adaptação em inglês da peça Dorotéia, de Nelson Ro-
drigues, em 2001. Foi diretor e roteirista do filme Órfãos do Eldorado lançado em
2015, filme baseado na obra homônima de Milton Hatoum, corpus deste estudo.
Adaptar, traduzir ou transcriar as obras de Milton Hatoum não é tarefa
fácil, pois a escrita deste escritor amazonense é poética e traz consigo todas
as nuances da região amazônica, sem que com isso trabalhe com o exotismo
presente na região.
A sinopse do filme Órfãos do Eldorado (2015), de Guilherme Coelho
nos traz que:

Inspirado no romance de Milton Hatoum, Órfãos do Eldorado é um mer-


gulho na mente de Arminto Cordovil, um homem atormentado que vol-

45
ta para casa depois de muitos anos ausente. Surpreendido pela inesperada
morte de seu pai, Arminto se vê obrigado a assumir os negócios da família,
que no passado fez fortuna com o transporte de mercadorias pelo rio Ama-
zonas. Aos poucos, no entanto, ele é consumido pelos fantasmas do passado
e por suas grandes paixões: Florita, a mulher que o criou, e Dinaura, uma
misteriosa cantora, cuja aparição na cidade fulmina sua vida.

A sinopse sozinha não nos dá nenhum indício acerca do que veremos


projetado na tela do cinema. É uma profusão de imagens e sons que se mes-
clam à mente de Arminto Cordovil, personagem ambíguo, confuso, ensimes-
mado. O filme é sobre quem ou o quê? Partindo dessa premissa, nossa proposta
é analisar a memória como fio condutor da narrativa num entrelaçamento en-
tre memória, personagens e espaços.
Guilherme Coelho em entrevista à Globo News, no lançamento do
filme em 2015, explicou por que se aventurou na ficção e escolheu uma obra
literária para roteirizar e dirigir.

Eu me apaixonei pelo livro, porque o livro traz uma questão fantástica e


fabular na Amazônia. Queria fazer um filme que fosse além do real, que
fosse estilizado, um filme além do Brasil, além do tempo. E a literatura de
Milton tem muito isso, especialmente Órfãos do Eldorado, que é um livro
sobre a passagem do tempo. Um livro sobre o tempo.

Em outra entrevista, desta vez concedida à Agência Estado de São Pau-


lo, em 2015, o cineasta explicou que o maior desafio que encontrou foi trans-
formar o romance Órfãos do Eldorado da linguagem literária para a linguagem
cinematográfica, pois, para ele, essa obra de Hatoum é a mais imagética e, nela,
há “uma Amazônia sombria”. E, “transformar isso em ação sem ser maneirista
ou formalista. Tudo era uma questão de tom. Dar um outro tom à Amazônia,
dar um outro tom a uma história simples”, que é retratar a vida de Arminto
Cordovil. Porque na obra literária há liberdade para criar as linhas temporais
pertinentes ao enredo. Porém, no cinema, explica Coelho, a narrativa flui mais
rápida, uma vez que o cineasta tem apenas algumas horas para transpor para
a tela “o clima, o universo, o sentimento que o livro constrói”. A “literatura é

46
algo intransponível. Os jogos com a língua portuguesa, o ritmo das frases, a
arrumação do texto, isso não se transpõe”.
Esta questão foi resolvida a partir do momento em que o diretor definiu
o perfil do personagem principal: “Arminto é o anti-herói buckeriano, pois
não apresenta uma motivação clara de suas intenções. Assim, escolhi fazer
um cinema mais sugestivo, a fim de fazer o espectador imaginar o que está
acontecendo”.
Falar sobre a narrativa fílmica de Coelho requer, primeiramente, apre-
sentar a obra fonte de sua criação, o romance Órfãos do Eldorado. Porém, nos-
sa intenção não é mostrar as semelhanças e/ou diferenças entre as duas obras,
mas, pontuar o ponto de partida para a criação fílmica de Coelho. Sendo um
filme inspirado na obra de Milton Hatoum, sentimos a necessidade de fazer
pontuações acerca das características estéticas de sua escritura, bem como as
suas temáticas recorrentes a elas e de que forma alguns teóricos e estudiosos de
sua obra as analisaram.

Órfãos do Eldorado e a memória: estratégia de Hatoum e a escolha de Gui-


lherme Coelho

Milton Hatoum é filho de pai libanês e de mãe amazonense, também des-


cendente de libaneses. Ele nasceu em 1952, em Manaus, Amazonas. Formou-se
em arquitetura pela Universidade de São Paulo. Foi professor de Literatura na
Universidade Federal do Amazonas e na Universidade da Califórnia, em Berkeley.
Seu primeiro romance foi Relato de um Certo Oriente, publicado em 1989;
escreveu também Dois Irmãos, publicado em 2000. Em 2005, publicou o roman-
ce Cinzas do Norte e, em 2008, Órfãos do Eldorado. Escreveu contos e publicou
vários artigos que versavam sobre literatura e cultura no Brasil e na Espanha. Em
2013, publicou o livro de crônicas Um Solitário à Espreita. Em 2017 o romance A
noite da espera, primeiro volume da trilogia O lugar mais sombrio.
A maioria das obras de Milton Hatoum já foi bastante analisada por
teóricos e estudiosos que tentaram demonstrar as características literárias da
escritura deste autor, cuja escrita e leitura conquistam tanto leitores quanto

47
críticos. Como exemplo podemos citar as obras Relato de um certo Oriente,
Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado. Como a fortuna crítica a
respeito das obras de Hatoum é vasta, nesta pesquisa apresentaremos apenas
alguns comentários de alguns pesquisadores sobre esses quatro romances do
autor. Escolhemos apontar as ideias de pesquisadores que analisaram as obras
de Hatoum sob o viés da memória, seja a memória individual ou a memória
coletiva, porque o objetivo desta pesquisa é analisar de que maneira o cineasta
Guilherme Coelho criou a memória em seu filme Órfãos do Eldorado, inspi-
rado na obra homônima de Milton Hatoum.
Tânia Pellegrini (2006, s/p.) apresenta duas obras de Hatoum: Relato de
um certo Oriente e Dois Irmãos. Para ela,

Os dois romances executam um mergulho vertical nos meandros da memó-


ria, sondando as inconclusões do passado e tentando refazer o desfeito, por
meio de um exame preciosista de cada elemento que deles brota: perfumes e
odores, sons e silêncios, luzes e sombras, palavras ditas e caladas, gestos con-
cluídos ou esboçados, vozes e passos que se estendem horizontalmente por
muitos anos de atos e fatos. O vertical e o horizontal tecendo uma trama
de tempos por meio de uma delicadíssima composição linguística que não
permite estabelecer um sentido único e definitivo, pois trabalha com dois
eixos, o anúncio e o segredo, que se alternam e complementam.
[…] Manaus surge nos dois livros, por esse viés, como um espaço sociocul-
tural e histórico, formado por estratos humanos que se cruzam e misturam,
quase desaparecendo e deixando poucos vestígios: o estrato indígena, o do
imigrante estrangeiro, o do migrante de outras regiões do país.

Já Maria da Luz Pinheiro de Cristo (2007, p. 9) analisa que um dos ele-


mentos de fundamental importância nos romances Relato de um certo Oriente
(1989) e Dois Irmãos (2000) é a memória, que a pesquisadora afirma ser uma
das possíveis leituras dessas duas obras, pois “ambos lutam contra a morte e o
esquecimento, registrando a memória de suas famílias, mas, ao mesmo tempo,
precisam esquecer.”
Stefania Chiarelli em Sherazade no Amazonas – a pulsão no narrar em
Relato de um certo Oriente, interpreta o romance como uma colcha de retalhos,

48
isto é, a narradora do romance narra sua trajetória a partir da morte de Emi-
lie. Assim, ela refaz a história da família, que se desfaz aos poucos, buscan-
do, na memória, revisitar seu percurso familiar e seu próprio percurso de vida
(CHIARELLI, 2007, p. 40).

Por meio da personagem-narradora, percebe-se a ênfase na recomposição


das memórias familiares, tentativa de reavivar um passado coletivo. Para
tanto, a palavra é recurso fundamental na montagem dos diferentes relatos.
A crença no poder transfigurador da linguagem como forma de acesso a um
mundo que se perdeu, impossível de ser recomposto, faz-se presente.

Elerson Cestaro Remundini e Kellen Wiginescki (2011, s/p) em A téc-


nica memorialística no romance Cinzas do Norte, de Milton Hatoum, analisam a
perspectiva da construção do romance Cinzas do Norte sob a ótica da memória
e da memória da cidade, pois,

O memorialismo é, sobretudo, experiência vivida e revivida nos domínios


da temporalidade, onde configura um discurso de retrospecção. Tal discurso
se processa como tema e como técnica narrativa. Em outras palavras, trata-
-se de uma forma de imaginar e organizar experiências vividas. Tal técnica
é utilizada de forma bastante oportuna e eficiente no romance “Cinzas do
Norte”, do amazonense Milton Hatoum, vindo a ser um dos grandes trun-
fos da referida obra.

Já Wilton Mota de Miranda Júnior (2013) nos apresenta na disserta-


ção As cinzas da cidade: cenas e vivências manauaras na ficção de Milton Hatoum,
uma análise de três romances de Milton Hatoum: Relato de um certo Oriente,
Dois Irmãos e Cinzas do Norte, relacionando-os ao espaço urbano presente,
pois, para o pesquisador, a cidade é representada pelas vivências, impressões e
olhares dos narradores das obras, que buscam na memória diversas leituras e
significados simbólicos de realidade vivida e (re)lembrada. Assim (MIRAN-
DA JÚNIOR, 2013, p. 18),

A literatura localiza no caráter coletivo da memória da cidade um terreno


muito fértil para a sua expressão. A cidade é o grande signo da modernida-

49
de, é uma realidade sempre em mudança onde as relações de poder, relações
sociais, existência cultural, atividades econômicas e acadêmicas, lugares co-
letivos, modificam-se de forma ininterrupta. A memória também se confi-
gura dessa forma, com sua temporalidade que, do mesmo modo, sempre se
encontra em movimento. Assim sendo, a memória dialoga com as vivências
e as cenas da cidade, com suas múltiplas faces, tanto espaciais quanto tem-
porais, reencontrando nela os lugares do passado.

Dessa forma, para o estudioso, é a cidade e sua memória passada ou re-


cente, representando a memória coletiva, que permeiam a memória individual,
pois as duas estão entrelaçadas. A cidade modifica, evolui, regride, mas está sem-
pre presente à memória individual, que transita entre o passado e o presente.
Apresentar este panorama sobre as pesquisas relacionadas à memória é
essencial ao nosso estudo, pois buscaremos apontar de que forma Guilherme
Coelho trabalhou a questão da memória presente em Órfãos do Eldorado para
a linguagem cinematográfica.
Após a descrição das pesquisas realizadas pelos estudiosos Pellegrini
(2006), Cristo (2007), Chiarelli (2007), Remundini e Wiginescki (2011), Mi-
randa Júnior (2013), sobre a obra de Hatoum, percebemos que a memória é
uma característica imanente da produção literária do escritor, que já afirmou
em diversas entrevistas que

não há literatura sem memória. A pátria de todo escritor é a infância. Acho


que o momento da infância e da juventude é privilegiado para quem quer
escrever. É onde a memória sedimenta coisas importantes: as grandes
felicidades, os traumas, as alegrias e também as decepções. Certamente não
estou falando da lembrança pontual e nítida. O que interessa é a memória
desfalcada, a memória não lembrada. Isso é bom para a literatura porque aí
é que se instala o espaço da invenção1.

Essa memória não lembrada a que Hatoum se refere, é a memória dos


espaços da invenção. Em Relato de um certo Oriente, a memória é resgatada

1
Entrevista concedida a Luiz Henrique Gurgel em 2008. Na ponta do lápis. Ano IV, nº 8,
AGWM editora e produções editoriais, p. 4, junho de 2008.

50
por um mosaico de vozes: ora a da narradora sem nome, ora de outros per-
sonagens com os quais ela dialoga e reproduz na carta enviada a seu irmão;
em Dois Irmãos, é Nael quem busca reconstruir o passado da família da qual
faz parte como agregado; em Cinzas do Norte, é Lavos quem reconstrói a vida
da família Trajano e do amigo Mundo. Todas essas narrativas perpassam a
temática memorialística.
E o romance Órfãos do Eldorado não foge à regra. Sua construção
é permeada pela memória. A obra narra à vida de Arminto Cordovil, filho
de Amando Cordovil. Um rapaz que cresceu atormentado pela ideia incutida
pelo pai de ter matado sua mãe ao nascer. Cresceu em meio às lendas locais,
traduzidas por Florita, que incorporaram em seu cotidiano e que o perseguiram
por toda a vida: a lenda da cidade encantada; da piroca grande; da mulher que
se apaixonou por uma Anta, do Uirapuru, da mulher sem cabeça, dentre ou-
tras. Conheceu o amor com Florita, uma indígena que cuidara dele desde sua
infância, e por isso foi enviado a Manaus para reparar o “erro” cometido com a
empregada da casa. Retorna a Vila Bela e vê o pai morrer à sua frente. Apaixo-
na-se por Dinaura, uma moça que vivia no orfanato da cidade, mas cuja vida
era uma incógnita. Não cuida da herança deixada por seu pai, a empresa de
navegação Cordovil, acaba falindo quando o barco Eldorado afunda. Gasta o
resto de sua herança buscando por Dinaura, que o abandonou após uma tarde
de amor. Arminto, já velho e desvalido, conta a sua história a uma pessoa que
havia parado para descansar perto de sua casa.
O romancista amazonense afirma que em seus romances, “se há um
centro, um eixo mais ou menos secreto que se desvela para o leitor em algum
momento, é a memória. Esse movimento da memória, e daquilo que não foi
possível dizer”, pois “a memória inventa suas versões a partir de um fato pas-
sado”, e esse passado, continua agindo em nós infinitamente. Porém, “com o
passar do tempo, os fios da memória são rompidos ou borram, e a imaginação
assume um papel decisivo na figuração do passado2.”

2
Entrevista concedida a Scheneider Carpeggiani. Suplemento Cultural do Diário Oficial do
Estado de Pernambuco, nº 104, outubro de 2014, p. 11.

51
Podemos afirmar que o que vemos/lemos nas obras de Hatoum é uma
memória revisitada, fragmentada, lacunar. Seja a memória da narradora ino-
minada de Relatos de um certo Oriente, seja Nael, narrador de Dois Irmãos, seja
a memória de Lavos, narrador de Cinzas do Norte ou a memória de Arminto
Cordovil, de Órfãos do Eldorado.
Outra característica evidente nas obras de Hatoum é a presença do es-
paço amazônico. Sobre essa questão, Estela Vieira (2007, p. 172) afirma que,

[...] nos romances de Hatoum, a representação do espaço é muito mais com-


plexa e liga-se à narração do tempo. A natureza não deixa de ser enigmática
nem de construir certas oposições e contradições, mas a sua representação
não admite interpretações únicas nem explicações de causa e efeito.

Assim sendo, pode-se dizer que a literatura do romancista é uma lite-


ratura das relações humanas. Há também em suas obras questões históricas e
econômicas, mas elas estão sempre em segundo plano. Os espaços de seus ro-
mances mostram a cidade, mas também trazem elementos da natureza, embo-
ra não a natureza exótica da Amazônia como muitos autores que falam sobre
a Amazônia o fazem. A intenção do autor, ao mencioná-la no enredo, não é
demonstrar seu exotismo, mas ambientá-la aos acontecimentos que envolvem
a vida das personagens dos romances, que vivem ou viveram na região.
Hatoum já afirmou diversas vezes que uma de suas “[...] preocupações
foi evitar o exotismo e a descrição da natureza, que, muitas vezes, podem tor-
nar-se uma camisa de força, uma forma de inscrever o texto numa área geográ-
fica” (2002, p. 11). Para o escritor, a linguagem deve

aprofundar as sugestões locais, para assim tentar inventar um mundo, seja


este o labirinto amazônico, ou o pequeno espaço do nosso quarto, que pode
tornar-se um labirinto, porque a memória e a imaginação são quase tão
vastas como o universo.

Esta ideia é também enfatizada na entrevista que concedeu, em 2006, ao


Suplemento Literário de Minas Gerais, quando responde uma pergunta rela-
cionada à problemática que é escrever sobre a Amazônia (BORGES, 2006, s/p):

52
Não ia cair na armadilha de representar “os valores” e a cor local de uma
região que, por si só, já emite traços fortes de exotismo. Percebi que podia
abordar questões a partir da minha própria experiência e das leituras. E
fiz isso sem censura, sem condescendência, usando recursos técnicos que
aprendi com algumas obras.

Estas afirmações do escritor corroboram a ideia defendida por Vieira (2007,


p. 174), para quem “o autor descreve com mais detalhes lugares interiores do que
exteriores”. Por isso, a narração aparece em primeiro plano aliada a esses lugares.
Sobre a questão do exotismo que normalmente representa a Amazônia,
Guilherme Coelho disse, em seu Master Class sobre o processo de criação do
filme Órfãos do Eldorado, que quis fazer um filme de rio e não da mata, pois
desejava demonstrar a Amazônia vista pelo personagem Arminto Cordovil,
para que ela – a Amazônia – não fosse retratada de forma exótica, como nor-
malmente é descrita. Além disso, preferiu utilizar o rio, pois a Amazônia é
cheia de rios, e o rio é fuga, o rio é cinema, afirma o diretor.
O cineasta, em entrevista à Globo News3, afirma que a sua maior difi-
culdade ao produzir o Órfãos do Eldorado foi encontrar o tom que gostaria de
imprimir à narrativa, uma vez que ele não desejava produzir um filme atemporal,
que pudesse ocorrer a qualquer momento ou a qualquer tempo. Por isso, Coelho
construiu uma narrativa subjetiva, contada do ponto de vista do personagem
Arminto Cordovil, uma narrativa que tivesse um quê de fantástico e fabular.
Vanoye, Goliot-Lété (2002, p. 144) afirmam que o “meio fílmico deixa,
graças à multiplicidade de materiais sonoros e, portanto, à sua ambivalência,
uma liberdade maior à narrativa subjetiva do que o romance, necessariamente
limitado”. E foi essa ambivalência do cinema que contribuiu com o processo de
criação do filme engendrado por Coelho. Pois, na organização fílmica, muito
mais que escolher o conteúdo a ser trabalhado, o roteirista deve moldar a nar-
rativa em função das possibilidades ou impossibilidades inerentes ao roteiro e
transformar palavras em imagens.

3
Entrevista concedida à Globo News. Literatura: “Órfãos do Eldorado”, romance de Milton
Hatoum, chega às telas. Disponível em: g1.globo.com/globo-new/literatura/videos/v/litera-
tura-orfaos-do-eldorado-romance-de-milton-hatoum-chega-as-telas.

53
Foi o que o cineasta procurou fazer, ao buscar transpor para o cinema
a narrativa subjetiva da obra-fonte na qual se inspirou, transformando o texto
“introspectivo, carregado de imagens, lendas e sons” (BRASIL, 2015) do ro-
mance Órfãos do Eldorado em um filme denso e pesado e, ao mesmo tempo,
poético e visual, uma vez que, na narrativa fílmica, percebe-se que a trama sen-
sorial sobrepõe-se à narrativa, e o filme traz para a tela a umidade amazônica
com suas paisagens, que permeiam toda a história. Portanto, pode-se dizer que
Guilherme construiu a narrativa da película por meio do tempo da memória,
que na obra, foi marcada por sutis elipses.
Ademais, o cineasta realiza a “interligação entre o imaginário e a me-
mória através da construção de espaços e de proposição de experiências dife-
renciais de tempos” (MENEZES, 1996, p. 89) retratadas pelas vivências do
personagem Arminto Cordovil. Essa subjetividade do personagem aliada aos
recursos cinematográficos nos traz um clima fabular. A constante presença
da natureza, mais especificamente do rio, as lendas rememoradas sempre, os
flashbacks, a montagem das cenas, a iluminação, tudo contribui para a constru-
ção do estranhamento presente na película.
Milton Hatoum, em entrevista ao Correio Braziliense, em 2012, co-
menta sobre a adaptação de duas obras suas para o cinema: Relato de um certo
Oriente e Órfãos do Eldorado. Para o escritor, embora os dois romances sejam
a fonte do roteiro dos filmes, ele não crê na transposição literal de seus textos
para o cinema, por tratar-se de uma linguagem diferente. Assim, para ele, o
que importa é que os cineastas “captem com imagens a essência dos romances,
em um processo de transcriação. O manauense afirma ainda entender “a in-
cursão no cinema como estranha, por ser uma arte ‘feita por uma multidão’ e a
literatura um ofício recluso” (PINHEIRO, 2012).” O que corrobora a ideia de
Cristiane Nova (1996, p. 3), para quem

Toda produção cinematográfica é um produto coletivo, não apenas por


conter elementos comuns a uma coletividade, mas por ter sido, de fato,
realizada por uma equipe (diretor, produtores, financiadores e tantos ou-
tros). No entanto, nem isso, nem os seus condicionamentos sociais elimi-

54
nam a presença do caráter individual e artístico de cada obra, cuja análise
é, por vezes, dificultada pelo fato da arte nem sempre seguir modelos lógi-
cos e coerentes e possuir um grau elevado de subjetividade.

Ou ainda nas palavras de Vanoye e Goliot-Lété (2002, p. 65) “no cine-


ma, são as imagens que desfilam e não as palavras”.
Em entrevista à Globo News Literatura, em 2015, o romancista ma-
nauara afirmou que teve uma surpresa ao assistir ao filme Órfãos do Eldorado:
quando o assistiu, não procurou por seu livro no filme, pois deu total liberdade
a Guilherme Coelho para traduzir sua obra para a linguagem cinematográfi-
ca. Para Hatoum, Guilherme possui uma visão muito particular e especial da
Amazônia e foi esta visão que o cineasta atribuiu em sua obra fílmica, sendo
então seu romance apenas o ponto de partida para o processo de criação da
narrativa fílmica. A liberdade de criação dada por Hatoum é corroborada pela
resposta do cineasta, ao explicar como foi enveredar pela tradução cinemato-
gráfica (HOLOFOTE, 2015, s/p):

[...] o processo de adaptação não foi fácil. Acho que mais importante que
entender qual história contar, os realizadores de cinema devem hoje pensar
como contar qualquer história. Em ÓRFÃOS, o “como” para influenciou
muito o “o que”. Descobri cedo no processo que o caminho para trazer às
telas o lindo livro do Milton seria ter liberdade para criar uma narrativa su-
gestiva, que nos permitisse filmar, atuar e assistir ao filme com subjetivação.

Essa ideia de Coelho reforça o que nos aponta Christian Metz sobre a
diferença entre o romance e o filme: “o romance é verbal por inteiro, a matéria
do filme é amplamente extralinguísticas” (VANOYE, GOLIOT-LÉTÉ apud
Metz, 2002, p. 44).

A narrativa fílmica de Guilherme Coelho

Um filme diz tanto quanto for interpelado, uma vez que as possibili-
dades de sua leitura são infindáveis. Dessa forma, cada analista pode ter uma
visão específica, diferente de outro pesquisador. Por isso, examinar tecnica-

55
mente um filme nem sempre é fácil, pois sua descrição e análise passam por
um processo de compreensão e interpretação do produto fílmico acabado, isto
é, o produto disponibilizado para o público.
A imagem cinematográfica possui seus próprios códigos, diferentes dos
da palavra escrita. Por isso, é preciso observar a transposição de uma linguagem
a outra. Ao diretor cabe criar seu produto, a película, e, para isso, ele deve tecer
as ideias e colocar em prática o que está escrito no roteiro. Essa tessitura agrega
as etapas da filmagem, da decupagem, da mixagem e da montagem, que são as
estruturas responsáveis pela organização fílmica, pelo resultado que vemos e
assistimos nas telas de cinema.
Portanto, cabe ao analista realizar a inter-relação entre a linguagem ver-
bal e a linguagem não verbal, uma vez que, na atualidade, o convívio com a
diversidade de linguagens é inevitável, visto que “quando se trata de cinema é
a interação entre essas duas linguagens que está em questão, é o domínio e in-
terpretação de dois discursos que se apresentam ao leitor”, segundo nos afirma
Palma (2004, p.11).
Para Vanoye, Goliot-Lété (2002, p.12), “analisar um filme não é mais
vê-lo, é revê-lo, mais ainda, examiná-lo tecnicamente”. Por isso, analisar um fil-
me procurando detectar se ele foi fiel ou não à obra-fonte não seria correto,
uma vez que estamos lidando com outra fonte que não a da palavra escrita: a
audiovisual. E a análise interpretativa deve analisar os meios em que a obra
fílmica se expressa. Sobre este assunto, Jorge Seabra (2014, p. 18) afirma que

Se quem escreve, nunca é plenamente senhor das palavras de forma a trans-


mitir a realidade tal qual ela existe, a imagem fílmica não pode ser encarada
de outra forma, ou seja, é apenas mais um meio de registro da realidade.
Trata-se sim, de uma questão de complementaridade e, nomeadamente da
parte da imagem, de uma aproximação diferente ao real, nuance essa que
implica, simultaneamente, que nos habituemos a interrogar o filme segundo
os meios em que se expressa, e não como se de um texto escrito se tratasse.

Por isso, ao analisar uma obra fílmica, deve-se buscar a materialidade


de seu discurso e seus parâmetros representativos. Essas ideias são corrobora-

56
das por Xavier (2003, p. 62) quando diz “ao cineasta o que é do cineasta, ao
escritor, o que é do escritor, valendo as comparações entre livro e filmes mais
como esforço para tornar claras as escolhas de quem leu o texto e o assume
como ponto de partida, não de chegada”. Assim, não há como analisar o texto
fílmico com as mesmas ferramentas que analisamos uma obra literária, seja ela
uma poesia, um conto, uma peça teatral ou um romance, pois são dois textos
distintos. Mesmo que tenham um tema em comum, expressam-se por meios e
formas diferentes, como é o caso de Órfão do Eldorado.
A literatura e o cinema são duas artes de naturezas diferentes, e, por isso
mesmo, possuem desenvolvimento e discursos próprios. Embora apresentem dife-
rentes processos de criação e dimensões, têm uma característica em comum: a arte
de contar histórias, pois ambas operam num mesmo espaço, o da narratividade.
A sequência narrativa no cinema se dá por meio das imagens e na litera-
tura elas são realizadas por palavras. Neste caso, quem cria as imagens é o leitor
da obra. Para Pellegrini (2003, p. 34),

o importante nesse complexo jogo de relações não é saber se os textos escritos


são substituíveis por filmes, fitas, CDs, e-books ou qualquer outra coisa; saber
que marcas deixarão entre si, na película viva das linguagens dos quadros, dos
filmes, dos textos; mas sim saber se determinados valores, ancorados em sécu-
los e séculos de cultura verbal, continuarão a ter o mesmo sentido.

Portanto, a construção da linguagem cinematográfica passa pela sintaxe,


pela forma e pelo discurso. A sintaxe fílmica está relacionada às partes referen-
tes à sequenciação das imagens, aos enquadramentos escolhidos pelo diretor,
que vão criando, além do discurso que se quer ver e transmitir na tela, o sentido
que se pretende construir, dado que, no cinema, é o domínio de dois discursos
que se apresentam ao espectador.
Em relação ao filme Órfãos do Eldorado, Guilherme Coelho afirma que
desde o momento em que decidiu adaptar esta obra de Milton Hatoum, pro-
curou traduzi-la como um filme atual ou atemporal, pois ele

tinha muito medo de fazer um filme de época e que isso resultasse num

57
filme modorrento, então uma das primeiras decisões foi trazê-lo para um
tempo contemporâneo. No entanto, eu não queria cravar uma data certa.
Queria deixá-lo suspenso no tempo, podendo acontecer em qualquer mo-
mento nestes últimos 25 anos. Achei, e acho, que isso ajudaria a deixar o
filme mais aberto a múltiplas leituras – que é o meu principal objetivo hoje
no cinema: fazer filmes cujas narrativas se completem na espectadora, fil-
mes que se construam na alteridade, um cinema que reforce e revele nossas
subjetividades, nossas diferenças4.

Por isso, o cineasta procurou produzir uma narrativa mais sugestiva,


contada por meio do personagem Arminto Cordovil, um rapaz atormentado.
Uma narrativa subjetiva, poética, cujas sensações despertassem no espectador
as mesmas angústias que percorrem a mente de Arminto.
De certa forma, Coelho conseguiu criar essa atmosfera, pois, em muitos
momentos, o filme é vago, fragmentado e é o espectador quem tem de preencher
as lacunas da narrativa para dar sequência à história, como ocorre, por exemplo, na
última cena fílmica, no capítulo 6, quando Estiliano visita Arminto em sua casa à
beira do rio e o informa sobre Florita, que lhe havia escrito, dizendo estar morando
em uma Ilha, num pequeno povoado chamado Miratinga, no rio Negro. Estiliano
lhe pede para levar o dinheiro que trouxera para Florita. E Arminto vai ao en-
contro dela. Ao chegar ao povoado, encontra a casa em que ela vive, bate palmas e
quem abre é uma menina, que usa o mesmo colar que Florita usava. Ele se abaixa e
pega o colar nas mãos. Em seguida, Arminto pergunta à criança onde Florita está
e a menina responde com gestos, apontando para o interior do casebre. Ele adentra
na casa e a imagem fica escura (COELHO, 2015, 1h26min).
Daí em diante, cabe ao espectador deduzir quem é essa menina, pois o
cineasta conclui a narrativa fílmica com o som das águas do rio e, por fim, a
imagem do rio. Nada se diz sobre a garota ou o que aconteceu com os persona-
gens após esta cena. A sequência fílmica dessa cena compreende os fotogramas
de 1 a 4, elencadas a seguir:

4
Entrevista concedida sobre o filme a Caio Pimenta, em 18 de maio de 2016, no site do
Cineset. Disponível em: www.cineset.com.br/entrevista-guilherme=cezar-coelho-dire-
tor-de-orfaos-do-eldorado.

58
Fotografia 1 - Arminto procura a casa de Florita. Tempo: 1h28min28s.

Fonte: DVD - Matizar filmes, em 2016.

Fotografia 2 - Arminto encontra a casa. Tempo: 1h29min06s.

Fonte: DVD - Matizar filmes, em 2016.

59
Fotografia 3 - Arminto olha o colar da menina. Tempo: 1h29min42s.

Fonte: DVD - Matizar filmes, em 2016.

Fotografia 4 - Arminto entra na casa. Tempo: 1h36min58s.

Fonte: DVD - Matizar filmes, em 2016.

60
Para Randal Jonshon (2003, p. 44), “uma obra artística, seja ela ro-
mance, conto, poema, filme, escultura ou pintura, tem de ser julgada em re-
lação aos valores do campo no qual se insere, e não em relação aos valores de
outro campo”, pois possuem características distintas uma das outras. Daí não
poderem passar pelo mesmo tipo de análise, sob o risco de serem mal inter-
pretadas. Além disso, ressalta que a diferença entre a Literatura e o Cinema
não está restrita à diferença entre a linguagem escrita e a imagem visual
( JOHNSON, 2003, p. 42):

um romancista tem à sua disposição a linguagem verbal, com toda a sua


riqueza metafórica e figurativa, um cineasta lida com pelo menos cinco
materiais de expressão diferentes: imagens visuais, a linguagem verbal oral
(diálogo, narração e letras de música), sons não verbais (ruídos e efeitos so-
noros), música e a própria língua escrita (créditos, títulos e outras escritas).
Todos esses materiais podem ser manipulados de diversas maneiras.

Portanto, a forma como se constrói o discurso fílmico é uma escolha do


cineasta, que, ao ler o roteiro, analisa quais técnicas devem ser utilizadas para
produzir o filme para que ele tenha o efeito desejado, ou seja, o seu ponto de
vista. O enquadramento, a utilização da trilha sonora, os diálogos, a edição e
a montagem são elementos que denotam um ponto de vista e uma leitura do
passado (METZ, 1972).
Um filme é uma história contada visualmente. Seu processo de realiza-
ção tem início quando ainda está no papel. O transporte do que está no papel
para a tela origina a definição dos elementos necessários à representação visual
do roteiro de acordo com a visão do diretor. É esta visão a responsável por
delinear, executar e controlar a visualidade de um filme, que ocorre por meio
do trabalho conjunto da fotografia, direção de arte, figurino, efeitos visuais e
efeitos gráficos.
No cinema, a palavra e a imagem têm uma relação de interdependência
– uma reforça a outra, ou uma preenche a lacunas que foi deixada pela outra.
Guilherme Coelho, para conseguir levar para as telas o estranhamento,
a subjetividade no filme, a atmosfera do ambiente amazônico, além da escolha

61
do cenário, realizou ensaios com os atores para que eles pudessem criar uma
relação de cumplicidade entre eles por meio de exercícios.
Os ensaios foram realizados em diversos espaços: na natureza, no rio,
dentro da casa em que convivem Florita e Arminto e na cidade de Belém, com o
intuito de trazer para a vivência dos atores o sentimento pretendido pelo diretor.
Esta preparação dos atores, afirma o cineasta5, iniciou três meses antes
do início das filmagens. Ele destacou que o ator com quem mais trabalhou
nesta preparação foi Daniel de Oliveira, pois seu personagem aparece em todas
as cenas. Além desta preparação, uma semana antes de iniciarem as filmagens,
a equipe foi para Belém (Pará) e lá tiveram uma preparação com a técnica do
Butô com os atores e toda a equipe de filmagem. Essa técnica é oriunda do
teatro japonês e foi criada para trabalhar os sintomas da guerra.
O cineasta optou por essa técnica porque ela busca a sombra dentro do
ator. Essa forma de atuação ajudaria na construção dos personagens e, conse-
quentemente, na subjetivação e na interioridade dos personagens e espaços que
percebemos no texto fílmico e que trouxeram o aspecto intimista à película.

Considerações

A relação entre o cinema e a literatura, não se trata de traduzir uma


forma na outra, mas de trabalhar a imagem cinematográfica a partir da mesma
fonte geradora da imagem não visual delineada pelo escritor. Portanto, a trans-
posição de um texto literário para uma outra linguagem de contexto diferen-
te, como o cinema, exige recursos diferenciados de significação, uma vez que
estamos lidando com linguagens e suportes distintos, com públicos diversos e
expectativas diferentes.
Aproveitando-se de alguns elementos da obra-fonte, como, por exem-
plo, a temática intimista, a manutenção do título do romance de Hatoum e
dos nomes dos personagens: Arminto, Amando, Florita, Dinaura e Estiliano, o
cineasta imprimiu, em seu trabalho, seu estilo de direção. Isto é, ele construiu

5
Entrevista concedida à Rádio Roquete Pinto, no programa Cinema em Sintonia, em 18 de
dezembro de 2015. Disponível em https://soundcloud.com/pedro-sales-300914350/entre-
vista-guilherme-coelho-a-radio-roquete-pinto.

62
seu texto fílmico observando as possibilidades de transposição entre essas lin-
guagens – literária e a cinematográfica, tendo em vista o sentido que pretendeu
imprimir à sua película: uma história narrada de forma subjetiva pelo persona-
gem Arminto Cordovil.

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63
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VANOYE, Francis, Goliot-lété, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. 2. ed.


Campinas: Papirus Editora, 2002.

65
A PRESENÇA DA INTERTEXTUALIDADE EM MAD MA-
RIA E OS SUPORTES HISTÓRICOS

Sonia dos Santos

Introdução

A história da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré confun-


de-se com a história do Estado de Rondônia. Essas histórias estão presentes
em livros que fazem o registro histórico da época, em fotografias e em roman-
ces. Mad Maria é um dos romances escritos com a fusão da história e da ficção.
É nítido encontrar pontos em comum entre Mad Maria e A Ferrovia do Diabo
relacionados a fatos históricos e principalmente à construção da ferrovia. Per-
sonagens históricos estão presentes nas duas obras: Percival Farquar (empre-
sário responsável pela construção da ferrovia), Hermes da Fonseca (Presidente
do Brasil entre 1910 e 1914) entre outros nomes. Nas duas obras também são
retratados os perigos iminentes na travessia das cachoeiras dos rios madeira e
Mamoré. Naufrágios, ataques indígenas, confinamento dos trabalhadores da
construção em meio à selva amazônica, rebelião dos ferroviários por desenten-
dimento e por melhores condições de trabalho, doenças tropicais e ataques de
insetos, os bastidores da política, denúncias e escândalos. Porém esses pontos
em comum sofrem oscilações explicadas pela teoria da intertextualidade.

O registro da História por meio de fotografias, documento histórico e


ficção – construções da realidade

Nesse sentido, iniciamos com a representação do único passatempo dos


trabalhadores registrado nas duas obras: a bebida. Em Ferreira (1981, p. 113),
esse momento de distração é privilégio dos ingleses: “Quando os ingleses para
cá vieram, as únicas coisas que fizeram durante os dois primeiros dias foi be-
ber e fumar, mas os americanos trabalham como diabo”. Souza também faz

66
referências aos momentos de embriaguez dos personagens, como na passagem
que envolve o inglês Collier (engenheiro) e o americano Finnegan (médico),
que se embriagaram no melhor e único bordel de Santo Antônio onde havia
índias para servi-los: “As duas mulheres, Finnegan sabe, são índias e prostitu-
tas. Ainda conservam no rosto algumas pinturas [...]” (SOUZA, 2005, p. 351).
Eles haviam aproveitado uma oportunidade para fugir do hospital onde esta-
vam quase de alta e foram se aventurar. Ficaram também dois dias longe do
local de trabalho e deixaram todos preocupados, conforme descreve o excerto
(SOUZA, 2005, p. 362-363):

Pela manhã, uma luz forte entrava pela casa e brilhava nas garrafas de uís-
que. As garrafas estavam completamente vazias. Os homens ainda dor-
miam, estirados no assoalho. Sob o banco está Finnegan, a boca aberta e a
cabeça acomodada sobre os braços que ele colocou em forma de travesseiro.
No canto da sala, Collier ressona em posição quase fetal, encolhido como
uma bola. As índias desapareceram. [...] Finnegan arrasta-se por sobre os
outros homens que dormem e vai colocar-se ao lado de Collier. — Acorda,
Collier! — grita Finnegan, sacudindo o engenheiro. — Já é dia, Collier!
[...] Finnegan sente pontadas em torno dos olhos e um vazio dilacerante
no estômago. — Temos de ir embora, Collier. — Para onde? Estou bem
aqui. — Se sairmos agora, ainda chegaremos no hospital antes do almoço.
— Não me fale de comida. — Temos de voltar ao hospital, Collier. — Para
o inferno com o hospital — gritou o engenheiro finalmente despertando.
— Nós ainda não recebemos alta.

Bebida e fumo sofreram alterações que remetem à bebida e a mulheres.


Essas e outras alterações são recorrentes em Mad Maria a partir da Ferrovia do
Diabo. Segundo Samoyault (2008, p. 9), em se tratando de intertextualidade, o
texto pode ser equiparado à genealogia de uma árvore, “com galhos numerosos,
com um rizoma mais do que com uma raiz única, onde as filiações se disper-
sam e cujas evoluções são tanto horizontais quanto verticais.” Essas evoluções
horizontais e verticais correspondem às múltiplas possibilidades pelas quais os
textos podem ser reescritos e modificados, e ainda, dialogando entre si, man-
tendo-se um ponto de intersecção, uma raiz em comum.

67
Se uma imagem vale por mil palavras, as fotografias de Dana Merril va-
lem muito para a obra de Ferreira, A Ferrovia do Diabo (1981, p. 12). O próprio
autor relata da importância dessas fotografias:

Este livro ao ser escrito e publicado em 1960, teve o mérito de despertar


a atenção da nacionalidade para uma então esquecida ferrovia situada nos
confins da Amazônia. [...]. Mas é de justiça dizer que o livro não teria exis-
tido se não fossem as fotografias de Dana B. Merrill, que despertaram o
meu interesse pela história da ferrovia. Por outro lado, Dana B. Merrill não
teria deixado Nova Iorque para vir fotografar a construção da Estrada de
Ferro Madeira – Mamoré, caso Percival Farquar não tivesse tido a ideia de
contratá-lo para esse fim.

A decisão de Farquar fez com que a construção da ferrovia fosse regis-


trada por Merrill. Por sua vez as fotografias de Merrill inspiraram Ferreira a
pesquisar a história e posteriormente a publicar o livro e, finalmente, o livro
juntamente com essas fotografias contribuíram para que Souza eternizasse e
promulgasse mais ainda a história da ferrovia a partir do romance Mad Maria,
o qual apresenta intertextualidade com os registros históricos de Ferreira e re-
gistros fotográficos de Merrill. A princípio, há intertextualidade até nas siglas
M.M. que podem significar Madeira – Mamoré e Mad Maria. As fotografias,
ainda podem ser analisadas sob a teoria da sintaxe visual, em que cada parte
que as compõem podem ter um significado, levando-nos à conclusão de que
existe algo maior que a totalidade dessas partes no mundo externo.
As fotografias registraram uma história já vivida, porém essa história
precisaria ser recontada. Mad Maria a reconta pela faceta da ficção e A Ferrovia
do Diabo a descreve pelo viés histórico. A análise dos pontos que unem esses
três registros inicia - se com a imagem da fotografia a seguir:

68
Figura 1 – Inauguração de trecho da ferrovia Madeira-Mamoré. Vagão de 1ª. Classe
com bandeira brasileira e norte-americana. Cerca de 1909-1910. Negativo flexível tipo
film-pack, gelatina. 12,40x17,40cm. IC 20193

Fonte: Catálogo da exposição Ferrovia Madeira-Mamoré: Trilhos e Sonhos – Foto-


grafias. BNDES e Museu Paulista da USP. Cortesia: Carlos E. Campanha.

As fotografias que estavam sob os cuidados de Ferreira exigiam análises


profundas para que pudessem ser compreendidas. Sua linguagem visual abrange
o conjunto de cada detalhe, ponto, sombra, luz. Segundo Dondis (2003, p. 31),
“As coisas visuais não são simplesmente algo que está ali por acaso. São acon-
tecimentos visuais, ocorrências totais, ações que incorporam a reação ao todo.”
Sendo assim, é normal que as fotografias nos despertem sensações e emoções,
pois reagimos a elas com base nos acontecimentos que vemos. Na figura 1, há
poucas pessoas na inauguração de um pequeno trecho da ferrovia. Estão bem
vestidas, com trajes sociais, usam camisa manga comprida, com a exceção apenas
de um. Estavam dispersos ao redor da grande máquina, quase que formando
quatro grupos na área externa ao trem e mais um grupo dentro do vagão que era
de primeira classe. Todos usavam chapéus e não se pode enxergar uma mulher
sequer. Alguns estavam descontraídos e outros olhavam para a câmera. As ban-
deiras brasileira e norte-americana não estão estendidas nas paredes do vagão
por acaso. Aqui, elas são como símbolos (DONDIS, 2003, p. 91-92):

A abstração voltada para o simbolismo requer uma simplificação radical,


ou seja, a redução do detalhe visual a seu mínimo irredutível. Para ser efi-
caz, um símbolo não deve apenas ser visto e reconhecido; deve também ser

69
lembrado, e mesmo reproduzido. Não pode, por definição, conter grande
quantidade de informação pormenorizada.

Havia motivo(s) para a exposição das bandeiras. Elas reafirmam que a


presente realização foi fruto desses dois países. Vejamos a contribuição do Brasil
conforme registrado no livro A ferrovia do diabo (FERREIRA, 1981, p. 189):

Os Estados Unidos do Brasil obrigam-se a construir em território brasilei-


ro, por si ou por empresa particular, uma ferrovia desde o porto de Santo
Antônio, no rio Madeira, até Guajará-Mirim, no Mamoré, com um ramal
que, passando pela Vila Murtinho ou outro ponto próximo (Estado de Mato
Grosso), chegue a Vila Bela (Bolívia), na confluência do Beni e do Mamoré.
Dessa ferrovia, que o Brasil se esforçará por concluir no prazo de quatro anos,
usarão ambos os países com direito às mesmas franquias e tarifas.

O excerto acima refere-se ao artigo VII do tratado de Petrópolis firmado


entre Brasil e Bolívia e assinado no dia 17 de novembro de 1903, com a expressa
responsabilidade assumida pelo Brasil. Percival Farquar, empresário norte-ame-
ricano, assumiria a posição que antes era do empreendedor e coronel George
Earl Church, a de idealizar a ferrovia, porém, após inúmeras tentativas, desistiu.
A bandeira norte-americana representava então o poder de concreti-
zação da ferrovia a partir dos esforços dos Estados Unidos representado pela
pessoa de Farquar. É interessante ressaltar que o coronel Church também era
norte-americano, formado em engenharia civil, já possuía vasta experiência em
construções de ferrovias, uma delas em Nova Jersey. Mas os Estados Unidos
possuíam um forte motivo para sair na frente nas construções civis férreas: era
o produtor do ferro mais resistente devido possuir em seu território a melhor
hulha (carvão mineral) que foi responsável pela revolução industrial na Ingla-
terra no século XIX (FERREIRA, 1981, p. 107):

Os Estados Unidos, por possuírem carvão mineral da melhor qualidade


e em abundância, puderam entrar na Revolução Industrial sem nenhuma
dificuldade. Dia e noite os altos-fornos das suas siderúrgicas jorravam ferro
e aço, com os quais esse país produzia trilhos, locomotivas, ferro perfilado

70
(para estruturas de prédios e pontes), fábricas, motores a vapor que iriam,
como as locomotivas, ser movimentados com hulha.

A hulha, como fonte de energia mecânica, aquecia bem o ferro, tornan-


do-o resistente. Apesar de pioneira, a Inglaterra possuía desvantagem na cor-
rida da concorrência de produção do ferro (FERREIRA, 1981, p. 104): “Até
1750, as siderúrgicas [...] produziam ferro com o calor obtido do carvão ve-
getal. A Inglaterra, muito rica em hulha (carvão mineral) não o podia usar em
suas siderúrgicas, pois o ferro obtido com ele era de péssima qualidade, que-
bradiço.” Voltando à figura 1, a bandeira norte-americana lá estampada pode
significar também essa vantagem e superação sobre a Inglaterra, representando
assim a dominação do mercado da indústria férrea. Como vemos, a fotogra-
fia traz em si muitas histórias externas, de uma simples bandeira, podemos
subtrair infinitos conhecimentos. Não há como não relacionar imagem a um
contexto (DONDIS, 2003, p.12): “O visual predomina, o verbal tem a função
de acréscimo.” Através da história, vimos o que poderia estar representando a
bandeira na fotografia. Márcio Souza aproveita esse ensejo de representação de
cada nação através da bandeira e a coloca em um novo contexto, o ficcional, em
que Farquar, juntamente com uma comitiva de políticos visitam Porto Velho
para acompanhar e vistoriar os trabalhos que estão sendo realizados e avista
uma bandeira, e questiona (SOUZA, 2005, p. 405-407):

King” John aproxima-se de seu chefe no momento em que ele levanta a


cabeça e faz uma expressão de espanto. — Que diabo é aquilo ali, John? —
grita Farquhar. — O quê, chefe? — Ali em cima, no mastro? “King” John
não consegue entender, mas ouve-se a voz provocadora de Collier. — É a
bandeira dos Estados Unidos da América, imbecil! — Eu sei — respondeu
Farquhar, ainda mais irritado. — É a nossa bandeira — diz John. — Ela
não deveria estar ali — gritou Farquhar. — Não deveria? — “King” John
está perplexo. — Não, idiota. Collier levanta-se e vem para perto dos dois.
— Era a bandeira da Bolívia que deveria estar ali — afirma Collier. “King”
John não titubeia e virando-se para um dos burocratas, berra com a sua voz
esganiçada. — Vá buscar a bandeira da Bolívia, rápido. Bando de cretinos,
imbecis... [...] — Em que país nós estamos, John? — pergunta Farquhar
prestes a assassinar “King” John. — No Brasil, eu suponho. — E quem são

71
esses convidados que estão nos visitando? — Políticos bolivianos — gri-
ta Collier. — Políticos bolivianos — repete “King” John. — Bolivianos!
— Farquhar mal se contém. — Quero dizer, políticos brasileiros. — Exa-
tamente, John, brasileiros. — É a mesma merda — grita Collier. [...] —
Farquhar respirava com dificuldade porque ainda estava muito tenso. Dois
burocratas saíram correndo do prédio da administração e “King” John viu
que eles traziam um embrulho verde. A bandeira norte-americana foi des-
cida e o próprio “King” John içou a bandeira brasileira o mais rapidamente
possível. — Agora está tudo bem-disse triunfante “King” John. Farquhar
olhou para cima e ficou vermelho. — Onde conseguiram esta bandeira?
— Mandamos fazer. — Onde mandaram fazer? — Aqui mesmo, por uma
senhora que costura. . . — Uma senhora americana, estou certo? — Certo!
[...] — É a bandeira brasileira, John. Mas está içada de cabeça para baixo.
E mais, naquela faixa branca, não é “Order and Progress” que deveria estar
escrito. Deveria estar escrito “Ordem e Progresso”.

Se a fotografia ou a história não lembraram da Bolívia, Souza lembrou. E


ainda apresenta, com ironia, o emblema da bandeira traduzida para o inglês, como
se os Estados Unidos quisessem até impor o seu idioma aos brasileiros. Entre
os três objetos, fotografia, Mad Maria e A ferrovia do diabo, encontramos pontos
de cruzamentos que ora se complementam, ora se afirmam, ora se distorcem.
Independente do ponto, uma remete à(s) outra(s). Dos três objetos analisados
aqui, as fotografias, cronologicamente, antecederam os demais, justamente por
ser o mais remoto tipo de registro (DONDIS, 2003, p.7): “a informação visual é
o mais antigo registro da história humana. As pinturas das cavernas representam
o relato mais antigo que se preservou sobre o mundo tal como ele podia ser visto
há cerca de trinta mil anos.” O comunicador visual tinha o poder em suas mãos,
através da pintura e rabiscos, de recriar a realidade ao seu redor, porém com a
invenção da máquina fotográfica, a partir do início do século XIX, foi possível
capturar imagens sem que fosse preciso desenhá-las (DONDIS, 2003, p. 216):

A fotografia tem uma característica que não compartilha com nenhuma


outra arte visual – a credibilidade. Costuma-se dizer que a câmera não pode
mentir. Embora se trate de uma crença extremamente questionável, ela dá à
fotografia um enorme poder de influenciar a mente dos homens.

72
Além de capturar a imagem tal qual é na realidade, a fotografia causou
impacto na vida das pessoas e continuará causando (DONDIS, 2003, p.12-13):

Há poucas dúvidas de que o estilo de vida contemporâneo tenha sido cru-


cialmente influenciado pelas transformações que nele foram instauradas
pelo advento da fotografia. Em textos impressos, a palavra é o elemento
fundamental, enquanto os fatores visuais, como o cenário físico, o formato
e a ilustração, são secundários ou necessários apenas como apoio. Nos mo-
dernos meios de comunicação acontece exatamente o contrário. O visual
predomina, o verbal tem a função de acréscimo. A impressão ainda não
morreu, e com certeza não morrerá jamais; não obstante, nossa cultura do-
minada pela linguagem já se deslocou sensivelmente para o nível icônico.
Quase tudo em que acreditamos, e a maior parte das coisas que sabemos,
apreendemos e compramos, reconhecemos e desejamos, vem determinado
pelo domínio que a fotografia exerce sobre nossa psique. E esse fenômeno
tende a intensificar-se.

Ao fotografar a construção da ferrovia, Merrill vivenciava de perto algo


que nunca imaginava existir. Suas fotografias atravessam gerações e as pesqui-
sas realizadas por Ferreira a partir delas eternizaram-nas mais ainda. À lingua-
gem visual foi acrescida a linguagem verbal. Por trás de cada fotografia há uma
micro-história. Para Dondis (2003, p. 22), “Qualquer acontecimento visual é
uma forma com conteúdo [...]”, porém para Ferreira as imagens até então não
faziam sentido algum, eram desprovidas de conteúdo, pois não se referia a algo
concreto, tudo era desconhecido. Elas haviam aberto uma lacuna ou várias que
precisavam ser preenchidas. Não havia familiaridade com as imagens, fato que
dificultava a sua decodificação. A imagem deve ou deveria fazer sentido, trazer
à mente algo concreto. As imagens existem dentro de um contexto, e Ferreira
teve que levantar dados, fazer pesquisas para localizá-lo. O que estava no in-
terior das imagens, poderia ser encontrado fora delas. Enquanto no interior
havia pessoas, ambiente, objetos, no exterior havia a grande epopéia histórica,
ora desconhecida. O olhar lançado sobre as fotografias foi o olhar curioso, in-
vestigativo. A visão das imagens proporcionaria a visão de algo maior. Era pre-
ciso investigar se o que constava ali era real e provar isso. Para Peixoto (1981,

73
p. 362), “Com esta proliferação de imagens, entramos na era da produção do
real. Aquilo que era pressuposto do olhar é agora o seu resultado. Não há mais
distinção entre realidade e artifício, entre experiência e ficção, entre história
e estórias.” A partir das fotografias, Ferreira descobriria um mundo real que
parecia não existir de verdade, já que elas haviam aguçado seu espírito de pes-
quisador. A sigla EFMM vista ao fundo de uma foto pode ser comparada à
situação do pássaro relatada por Dondis (2003, p. 86-87):

[...] todos somos capazes de ver e reconhecer um pássaro. Podemos ampliar


esse conhecimento até a generalização de toda uma espécie e seus atributos.
Para alguns observadores, a informação visual não vai além do nível pri-
mário de informação. Para Leonardo da Vinci, um pássaro significava voar,
e seu estudo desse fato levou-o a tentar a invenção de máquinas voadoras.
Vemos um pássaro, talvez um tipo específico de pássaro, digamos uma pom-
ba, e isso tem um significado ampliado de paz e amor. O visionário não se
detém diante do óbvio; através da superfície dos fatos visuais, vê mais além,
e chega a esferas muito mais amplas de significado.

Ferreira, inicialmente, teve dificuldades para identificar a procedência das


fotografias que chegara às suas mãos. Visualizava pessoas com diferentes tra-
ços fisionômicos e com vestimentas diversificadas, o que poderiam indicar falsas
pistas de que essas fotografias poderiam ter sido tiradas em qualquer lugar do
mundo, muito menos provável no Brasil. As casas e a floresta não indicavam
localização alguma, nenhum lugar específico. Até então, era um grande mistério
a localidade e a situação estampadas e, ao mesmo tempo, ocultas nas fotografias.
Após constantes análises, dentre a vasta coleção de negativos de fo-
tografias visualizadas pelo historiador, uma sigla vem à tona: EFMM. Essas
letras chamaram a atenção de Ferreira, que através delas, uma realidade ressur-
giria em meio a cinzas, como fênix, trazendo consigo a história nunca vista ou
contada antes. A princípio, a sigla possuía o seguinte significado (FERREIRA,
1981, p. 11): “‘a estrada dos trilhos de ouro’ onde cada dormente representava
uma vida humana.” Ferreira se aprofundou nessa informação inicial e, com
trabalho árduo, conseguiu reconstruir a realidade nunca propagada. A sigla

74
teve seu conhecimento ampliado por Ferreira e muito da história da estrada
áurea, o autor conseguiu resgatar e publicá-la no livro A Ferrovia do diabo. De
uma sigla, situada no fundo da imagem (figura 2) chegou-se a um livro, ou seja,
informação visual foi além do nível primário.

Figura 2 – Trabalhador hindu. Cerca de 1909-1910. Negativo flexível tipo film-pack,


gelatina. 17,30x12,50cm. IC 20268

Fonte: Catálogo da exposição Ferrovia Madeira-Mamoré: Trilhos e Sonhos – Foto-


grafias. BNDES e Museu Paulista da USP. Cortesia: Carlos E. Campanhã.

A partir das fotografias de Merrill e os relatos do livro A Ferrovia do Dia-


bo, Souza elabora o relato ficcional de Mad Maria, cuja primeira edição ocorreu
em 1980. Como podemos perceber, o cenário que envolve as fotografias e as
obras histórica e ficcional é o mesmo: a estrada de ferro Madeira- Mamoré.

Dana Merrill e Mad Maria – relações intertextuais entre a imagem e a


Literatura

As fotografias têm o poder de registro documental ou podem ser apenas


ilustrações fotográficas. No caso das fotografias de Dana Merrill, são imagens
que têm sua importância por serem registros documentais. Entre essas foto-
grafias e o romance Mad Maria podemos encontrar pontos que se entrecru-

75
zam. Na figura 3, por exemplo, veremos como Souza acrescentou suspenses a
fatos relacionados aos profissionais da saúde que desempenhavam suas funções
no hospital da Candelária. De acordo com Eco (2002, p. 56), “Em toda obra de
ficção, o texto emite sinais de suspense, quase como se o discurso se tornasse
mais lento ou até parasse [...].” Souza nos faz criar infinitas expectativas, pre-
visíveis e não previsíveis ao recriar um contexto para a fotografia da figura 3,
extrapolando o conteúdo apresentado pelo enunciado visual.

Figura 3 – Corpo médico e de enfermeiras norte-americanas do hospital Candelária.


Sentado, índio Caripuna. Cerca de 1909-1910. Negativo flexível tipo film-pack, gela-
tina. 12,40x17,40cm. IC 20142.

Fonte: Catálogo da exposição Ferrovia Madeira-Mamoré: Trilhos e Sonhos – Foto-


grafias. BNDES e Museu Paulista da USP. Cortesia: Carlos E. Campanhã.

Conforme Dondis (2003, p. 39), as fotografias podem apresentar di-


ferentes aspectos: “Em termos ideais, as formas visuais não devem ser propo-
sitalmente obscuras, mas devem harmonizar ou contrastar, atrair ou repelir,
estabelecer relação ou entrar em conflito.
Na figura 3, o indígena está em situação de conflito, pois é vítima da
repulsão social. Vemos a equipe de médicos e enfermeiros mirando seriamente
para a câmera fotográfica, todos estão de pé e bem-vestidos. Ocupam a parte
central da imagem, denominada eixo sentido na teoria do alfabetismo visual.
Ou seja, a equipe médica ocupa o centro das atenções. Ao mirar a foto, vemos

76
imediatamente os que estão de pé. O alfabetismo visual esclarece esse fenôme-
no (DONDIS, 2003, p. 25): “Vemos através de um movimento de cima para
baixo e da esquerda para a direita.” Então, no movimento vertical, o que estiver
situado na parte ínfima será o último a ser visualizado. O indígena caripuna é
o único sentado (ao solo) e encontra-se em posição inferior aos demais, está
descontraído e à vontade (pernas abertas) e com trajes simples e desalinhados.
O indígena é posicionado à parte dos “graduados”. Esse posicionamento pode
ter sido natural ou intencional, porém nos dois casos é possível ver e compre-
ender que o indígena é posto à margem dos demais.
O estudo do alfabetismo visual é importante para enxergarmos os pro-
blemas, às vezes ocultos, nas imagens. Sobre essa relação de ocultar e expor,
Dondis afirma: “A visão é natural, criar e compreender mensagens visuais é
natural até certo ponto, mas a eficácia, em ambos os níveis, só pode ser alcan-
çada através do estudo. Na busca do alfabetismo visual, um problema deve ser
claramente identificado [...]” (DONDIS, 2003, p. 16). É nítido identificar o
problema da repulsão do indígena em relação ao grupo. Márcio Souza fez
referência a esse problema na narrativa de Mad Maria. Na referida imagem,
o indígena está dividindo o espaço com a equipe médica. O que um indígena
estaria fazendo junto aos médicos e enfermeiras aguçou a imaginação de Sou-
za que formulou a explicação ficcional para esse fato extraordinário. É possível
afirmar que esta fotografia serviu de hipotexto para o escritor (GENETTE,
2010, p. 53): “[...] o hipotexto não passa de um pretexto: o ponto de partida
de uma extrapolação disfarçada de interpolação.” Souza extrapolou ao contar
o porquê do indígena está pousando com médicos e enfermeiras na fotografia.
Reconstruiu a realidade ultrapassando as fronteiras da utopia.
Em Mad Maria, após ser pego em flagrante, ao praticar pequenos
furtos, o índio caripuna teve suas mãos amputadas pelos trabalhadores, os
quais estavam com o objetivo de espancar-lhe até a morte. O índio foi salvo
pelo engenheiro-chefe Collier e sua guarda. O médico Finnegan tratou de
seus ferimentos e o batizou de Joe, o caripuna. Após se recuperar e sem ter
para onde ir, já que sua família fora toda exterminada, Joe ficou prestando
serviços à enfermaria onde ganhou a confiança de todos, principalmente de

77
Consuelo, boliviana que havia sido resgatada de um naufrágio e que, por
coincidência, não tinha para onde ir, pois perdera seu noivo em uma das
cachoeiras. Ela também ficou prestando serviços à enfermaria e cultivou
grande estima por Joe. Os sentimentos eram recíprocos, conforme descreve
a passagem (SOUZA, 2005, p. 174):

Mas o índio de mãos amputadas, e a moça encontrada na floresta, fugindo à


regra que parecia estabelecida, estavam se recuperando e eram sinais de que
a sua função básica ali como médico era salvar vidas e não assinar atestados
de óbito. A moça estava até ajudando um pouco no trabalho da enfermaria.
Embora mantivesse uma inclinação para o isolamento e estivesse sempre
sombria e triste, ela ocupava-se, sem que ninguém pedisse, com pequenos
afazeres, varrendo o chão, espanando, ministrando medicamentos quando
Finnegan solicitava. O índio estava ainda impossibilitado de andar, recupe-
rava-se mais lentamente devido à severidade de seu estado, além do mais,
Finnegan notara certos edemas nos pés dele, eram parasitas que haviam se
localizado na carapaça calosa que era a pele dos pés do índio. [...] O trata-
mento do índio foi bastante doloroso, mas Finnegan conseguira eliminar
todos os parasitas. A moça, que ele agora sabia se chamar Consuelo, cuidava
do índio, aprendera a fazer os curativos necessários, tanto nos braços quanto
nos pés, e o pobre homem já sentia até uma certa dependência dela.

Na ficção, o índio ganhara uma protetora. Através dela, incluía-se cada vez
mais entre a equipe médica. Para fazer parte da equipe médica, o indígena deveria
ter um diferencial. Souza (2005, p. 213-214) acrescentou-lhe o diferencial:

A grande companhia de Consuelo era o índio de mãos amputadas. Fin-


negan batizara o índio de Joe, Joe Caripuna, e o índio parecia gostar do
nome. Era bastante inteligente e dono de uma memória excepcional. Já
estava falando inglês melhor do que Consuelo e adorava conversar com o
médico, perguntar sobre as coisas, sobre o mundo dos civilizados. Durante
as conversas, Consuelo permanecia calada, mas os olhos estavam atentos
e animavam Finnegan. Ela gastava seus dias ao lado de Joe, ajudando-o,
trocando bandagens, correndo de um lado para outro fazendo mandados e
atendendo pedidos do índio.

78
Devido à sua capacidade de aprender, o indígena, de paciente, passa
a assistente da enfermaria. Na fotografia, ele diverge dos demais por estar à
vontade e descontraído. Na ficção, também apresenta atitude contrária ao am-
biente que é sombrio. Ele chama a atenção por seu espírito de entretenimento
(SOUZA, 2005, p. 348):

Os doentes da enfermaria número 3, isto é, aqueles em condições de prestar


atenção ao que se passava em volta de suas camas, chamavam ele de Joe,
Joe Caripuna, o índio. Naquele ambiente de morte, Joe trazia uma alegria
quase que desconcertante. Durante o dia, perambulava pela enfermaria, fa-
zendo proezas com os dedos dos pés, dançando ao ritmo de uma harmônica
tocada por um italiano que convalescia, e conversando numa língua que
era a síntese de todas as línguas faladas em Porto Velho. Sua única amiga,
Consuelo, vinha uma vez por dia, escoltada por dois enfermeiros, fazer-lhe
rápida visita. Não permitiam que ficasse com ele por muito tempo e isto o
entristecia um pouco exatamente no instante em que ela se retirava. Mas a
tristeza logo se dissipava e Joe retomava o espírito brincalhão que o tornava
a figura mais popular do Hospital da Candelária. Aqueles dias ali lhe seriam
muito úteis porque começaria a compreender e penetrar em alguns meca-
nismos desconhecidos do mundo dos brancos. E o mundo dos brancos lhe
parecia cada vez mais confuso e complicado.

O comportamento do indígena na figura 3 e na enfermaria é idêntico


quanto à distração. Porém na ficção, suas atitudes foram acentuadas. Conforme
(SAMOYAULT, 2008, p. 17), “Todo texto situa-se na junção de vários textos
dos quais ele é ao mesmo tempo a releitura, a acentuação, a condensação, o
deslocamento e a profundidade.” Souza fez, a seu modo, a releitura da figura 3,
aprofundando-se na personalidade do indígena, que em toda a narrativa será
retratado como uma pessoa dócil e extrovertida.
Gradativamente, Souza nos chama a atenção para o indígena que, ini-
cialmente, aparece praticando furtos, depois é quase morto pelos braçais; é
levado à enfermaria para os cuidados médicos, começa a conviver entre médico
e enfermeiros mesmo depois de curado dos ferimentos. Ganha a simpatia de
todos ao seu redor, ou seja, é aceito entre os brancos. O ponto auge da presença

79
do indígena na narrativa é quando ele se torna celebridade, pois aprendera a
tocar piano com Consuelo, que foi sua professora. Como não tinha as mãos,
tocava com os pés. Indígena tocar piano é por si só um fato inédito, quanto
mais com os pés. Souza envolveu o indígena no mundo da ficção. Sobre ficção,
afirma Candido (2010, p. 187):

A literatura é essencialmente uma reorganização do mundo em termos de


arte; a tarefa do escritor de ficção é construir um sistema arbitrário de obje-
tos, atos, ocorrências, sentimentos, representados ficcionalmente conforme
um princípio de organização adequado à situação literária dada, que man-
tém a estrutura da obra.

Souza reorganizou um mundo cheio de conflitos e aventuras para o


índio caripuna. Vejamos como o índio ultrapassa a fase de vítima à celebri-
dade. Farquar imaginou fazer um bom negócio sendo empresário de Joe e
de sua professora. Pretendia apresentá-los à elite da capital federal, Rio de
Janeiro. Porém, o megaempresário não contava com o protesto de religiosos
positivistas. Eles condenavam a atitude de Farquar por tratar o indígena como
mercadoria (SOUZA, 2005, p. 453-454):

Sob protestos da Igreja Positivista Brasileira e com a recusa de Rondon a


comparecer ao evento, Joe Caripuna deu o seu primeiro e único concerto
no Rio de Janeiro. Farquhar planejara três concertos na Capital Federal.
Um no Catete e dois outros na sede da Associação Comercial do Rio de
Janeiro. O concerto no Catete, frente à hostilidade de Rondon, não pôde ser
realizado, e um só concerto foi programado na Associação Comercial, com
uma plateia expressiva, incluindo vários ministros, jornalistas, renomados
intelectuais e o marechal presidente. A reação dos positivistas foi violenta
e deixou Farquhar irritado. [...] Em manifesto divulgado pela imprensa, os
positivistas acusavam Farquhar de ridicularizar um “verdadeiro brasileiro,
transformando o jovem índio caripuna em animal de feira”. O que mais
irritava Farquhar é que pela primeira vez estava ameaçado de ter prejuízo
num negócio, pois a viagem do índio e de sua instrutora, mais despesas de
acomodação na Capital Federal, estava levando muito dinheiro.

80
Souza consegue retratar, inversamente, a situação de rejeição, conforme
análise a partir da teoria do alfabetismo visual, estampada na fotografia (figura
3). Diferente da impressão passada na fotografia, o indígena, na ficção, ganha
adeptos e defensores, inclusive entre os graduados. Como não pretendia arcar
com prejuízos e contrariando a igreja positivista, Farquar não desistiu do show
inusitado de Joe que foi atração no exterior, foi aplaudido, até o dia de sua
morte (SOUZA, 2005, p. 454-455):

Mas Farquhar logo se recuperaria do frustrante acontecimento. Alguns dias


após o malogrado concerto, foi procurado por um simpático compatriota,
o Sr. Lawrence Halle, exportador de Nova York, que desejava lhe propor
um negócio. Lawrence era amigo pessoal do gerente do Museu Americano
de Barnum, a renomada organização fundada por P. T. Barnum e especia-
lizada em espetáculos com criaturas exóticas. Como costumava fazer re-
gulares viagens por muitos países, o gerente sempre lhe recomendava que
contrataria qualquer atração que Lawrence encontrasse e trouxesse para ele.
O índio pianista podia ser uma atração. Farquhar conversou muito tempo
com Lawrence e juntos recordaram todas as maravilhas já apresentadas no
Museu Americano de Barnum. Finalmente, Joe Caripuna e sua instrutora,
Consuelo, foram entregues ao comerciante, sob contrato, onde Farquhar
ganharia trinta por cento de todos os rendimentos da atração, além do res-
sarcimento das despesas com a vinda dos dois de Porto Velho para o Rio.
Consuelo e Joe embarcaram para os Estados Unidos e chegaram em Nova
York em dezembro de 1911. Fazia muito frio e havia neve nas agitadas ruas
da metrópole. Joe adoeceu e teve de ficar internado durante dois meses num
hospital. Mas quando recebeu alta, voltou a treinar intensamente, fazendo
sua estreia na primavera de 1912, apresentando atrativo programa. Além de
dedilhar agilmente o Hino nacional americano, o índio tocava, para deleite
da plateia, a Valsa do minuto, de Chopin, em trinta segundos. Consuelo
entrava em cena e executava a valsa de acordo com o andamento de Cho-
pin, depois, Joe, seguido por um imenso cronômetro que descia em cena,
dedilhava o piano acompanhado por uma plateia ruidosa e interessada. Joe
Caripuna morreu de sífilis em 1927.

81
As aventuras e desventuras vividas por Joe na narrativa são frutos da
transcendência textual definida por Genette (2010). O enredo envolvendo o
índio caripuna mantém relação com a imagem da figura 3, relacionam-se entre
si, porém o indígena não é excluído do grupo de graduados. Souza o faz convi-
ver entre os brancos e diplomados e cria uma situação para que o indígena seja
idolatrado, venerado por muitos. Segundo Samoyault (2008, p. 19), “O texto
aparece então como o lugar de uma troca entre pedaços de enunciados que
ele redistribui ou permuta, construindo um texto novo a partir de textos ante-
riores”. Souza reconstruiu a situação do indígena e graduados (figura 3), per-
mutando o foco de atenção. Na imagem, a equipe médica está posicionada ao
centro, enquanto o indígena encontra-se ao solo, à parte do grupo. Na ficção,
este torna-se o centro das atenções, chegando a ser idolatrado. Ainda segundo
Samoyault (2008, p. 67), “A intertextualidade permite uma reflexão sobre o
texto, colocado assim numa dupla perspectiva: relacional (intercâmbios entre
textos) e transformacional (modificação recíproca dos textos que se encontram
nesta relação de troca).” A partir da modificação de foco do indígena entre a
fotografia de Merrill e a narrativa ficcional, Souza nos leva a refletir sobre o
status do indígena na sociedade.

A ferrovia do diabo e Mad Maria – relações intertextuais entre a História e


o romance

O que A ferrovia do diabo e Mad Maria têm em comum é que ambas


abordam acontecimentos ligados à construção da Estrada de ferro Madeira
Mamoré. Há a coincidência de datas. No final do século XIX e início do século
XX houve no Brasil construções de estradas férreas com investimentos de
capitais estrangeiros, principalmente oriundos da Inglaterra e Estados Unidos.
O investimento nesse tipo de transporte seria para encurtar distância e tempo
no escoamento de mercadorias, e no caso da estrada de ferro madeira Mamoré,
para o transporte da borracha. A construção das ferrovias está associada ao
progresso urbanístico, e é conveniente ser tema de romance conforme afirma
Reuter (2004, p. 18-19):

82
A urbanização que se acelera nos séculos XIX e XX impõe o tema da cidade.
Este vai ser trabalhado em diferentes níveis no romance. Substitui lugares
tradicionais (castelo, cortes, caminhos...) por um lugar que concentra tra-
jetos espaciais e sociais antes divididos (dos bairros elegantes aos bairros
pobres), simboliza de fato a mobilidade social e a aventura individual. [...]
Os progressos técnicos impõem-se progressivamente nos transportes. Deste
ponto de vista, é toda uma visão do espaço e do tempo que se modifica. O
encurtamento dos deslocamentos significa uma redução do tempo das via-
gens (e de certas separações ou fugas) e um aumento do espaço disponível
conhecido.

A construção da estrada de ferro Madeira Mamoré mobilizou povos de


diferentes nacionalidades que compartilharam aventuras, estas foram contadas
por Ferreira sob a visão histórica e documental e recontadas por Souza sob
a ótica ficcional. Um texto nos faz remeter a outro. Ainda, segundo Reuter
(2002, p. 153): “Na verdade, nenhum texto pode fazer sentido sem as suas
remissões aos outros textos e às realidades do mundo” Então vejamos algumas
remissões entre esses dois objetos de estudo.
Tanto para trabalhadores braçais como para trabalhadores diplomados,
era desafiador viver no meio de animais selvagens, das doenças tropicais, da
insalubridade da região, do calor infernal do dia, do frio intenso das madruga-
das, do perigo, da escassez e do medo, suportando tudo isso isolados do mundo
civilizado. Mas nem todos suportavam essa situação e chegavam ao estágio de
insanidade mental, conforme relato de Ferreira (1981, p. 118):

Todo o pessoal da construção sofria mais ou menos dos ataques das do-
enças, que se apresentavam com os mais diversos sintomas. Muitos apre-
sentavam sinais de alienação mental. A doença do irlandês Manning, por
exemplo, foi assim descrita por um engenheiro: “Durante o dia ele passava
muito bem, mas, logo que a noite caía, seu estado agravava. Imaginava, en-
tão, que toda a expedição tinha abandonado Santo Antônio de regresso aos
Estados Unidos. Certa vez, passou a mão numa espingarda e fez menção
de dispará-la a esmo pelo acampamento, repetindo sempre: ‘Os demônios
estão me perseguindo. Já os expulsei uma vez, mas eles vêm de novo, em

83
bando, me lamber’. Depois disso tinha-se o cuidado de não deixar nenhuma
arma de fogo ao seu alcance; contudo, no dia seguinte, pedíamos a todos da
turma que não lhe revelassem as alucinações.

Esse caso de alucinação ocorria no período da noite. Os demais traba-


lhadores tomavam medidas preventivas para não serem atacados pelos insanos,
como por exemplo esconder as armas de fogo. Na ficção, Souza aponta um
único motivo para essas alucinações: seria um dos sintomas da malária. Ainda
na ficção, a noite é o momento dos insanos incomodarem, mas os que estavam
sãos precisavam dormir e tomaram uma atitude inusitada para solucionar o
problema (2005, p. 133-134):

— Não posso fazer nada. Trata-se de um ataque de malária falciparum.


Os parasitas se localizaram no cérebro de cada um deles. Poderiam ter es-
colhido os intestinos, provocando diarreias. No cérebro o parasita provoca
delírios. Logo entrarão em coma e morrerão. O tratamento desta forma de
malária não é difícil, mas aqui não tenho recursos. O senhor sabe que todo
o meu trabalho aqui é preventivo. — Quer dizer que eles vão ficar urrando?
— Até entrarem em coma. Sinto muito, não posso fazer nada para ajudá-
-los. — Poderão urrar a noite toda, não é verdade? — Não é possível preci-
sar o tempo que resistirão delirando. Todos apresentam sinais de cachexia.
. . — Mas temos de ter pena de nossos ouvidos e dos ouvidos dos outros
homens. Quando acontecem essas crises de alucinações, não há quem possa
dormir com os gritos. E nós precisamos dormir. —Todos precisam dormir,
mas não tenho nada que possa acalmá-los. — Eu sei, doutor. Mas podemos
dar uma solução provisória para o problema. Finnegan está intrigado, nas
palavras do engenheiro há uma lassidão perigosa. — Solução provisória! —
disse Finnegan. — Já fizemos isto algumas vezes. Collier faz sinal para os
guardas de segurança que prudentemente estão postados entre os caibros
do dormitório, as armas descansadas, mas à mão. Os guardas, como se já
soubessem do que se tratava, estremeceram. — Vocês aí, é vocês mesmo —
gritou Collier. — Vamos amarrá-los nas redes.

Quanto aos momentos de insanidade, é possível observar que foram


tomadas medidas preventivas de sossego: no relato histórico, escondem-se as

84
armas de fogo; na ficção, prendem-se os doentes às redes. Souza deu sequência
ao problema causado pelos transtornos mentais. Segundo Genette (2010, p.
58), “A sequência difere da continuação, pois não continua uma obra visando
levá-la a termo, mas ao contrário, para lançá-la além do que inicialmente era
considerado seu fim.” Essa sequência alterou a gravidade da situação. O ní-
vel de tensão para o problema da insanidade é amenizado na ficção, já que as
armas de fogo foram substituídas por redes e a causa da insanidade de alguns
trabalhadores é atribuída à malária. Farquar também fora tachado insano na
ficção (SOUZA, 2005, p. 93-94):

Lauro Müller era um homem corpulento, pele muito branca e leitosa e


sardas nas bochechas. Não parecia um sul-americano, a não ser pelos den-
tes estragados. Por um acaso veio sentar-se na mesma poltrona onde esta-
va Farquhar com uma taça de champanha na mão. Conversaram e Lauro
Müller disse que o considerava um homem bastante louco e que o Brasil
precisava de loucos como ele pois só os loucos seriam capazes de investir
confiando no futuro, sem imediatismo. O brasileiro deixou Farquhar in-
trigado porque aquele comentário era uma espécie de convite e pelo fato de
estar sendo considerado um louco sem nenhuma razão aparente. [...]Em-
bora a ideia de ser um louco lhe desagradasse, decidiu investigar o Brasil, a
América do Sul não seria uma novidade porque já estava na Colômbia com
um negócio muito rendoso que superava em menos de um ano três vezes o
capital investido, investimento este quase que inteiramente financiado pelo
próprio governo colombiano [grifo nosso].

Ele planejara construir a Estrada de Ferro em apenas dois anos. Era um


otimista nato e se sentia ofendido ao saber que era motivo de zombaria em Lon-
dres e Nova York quando afirmavam que a sua E. F. Madeira – Mamoré “ligava
nenhum lugar a lugar nenhum” (FERREIRA, 1981, p. 202). Esse ponto de saída
e chegada da ferrovia é citado e parafraseado por Souza (2005, p. 336-337):

— Pois é, antes de nós já estiveram outros malucos tentando abrir uma fer-
rovia por aqui. — Ingleses? — Americanos. O Coronel Church andou por
aqui por volta de 1870. Você ainda nem tinha nascido, rapaz, e ele já estava

85
aqui com os homens dele e com a ideia maluca de fazer uma ferrovia. —
Ideia maluca? — Maluca, é claro! Collier baixou a lanterna e não disse mais
nada. Largou os galhos e folhas, escondendo novamente a locomotiva em
seu túmulo de lama e capim. Caminhou até a beira do barranco, balançando
a lanterna e abandonando Finnegan na escuridão. Pensava em certa noite e
este pensamento lhe reafirmava que tudo aquilo não passava de maluquice.
Era inverno em Richmond, Virginia, no ano de 1909, ele julgava-se apo-
sentado e perguntava a Farquhar porque diabo tinham resolvido construir
uma estrada de ferro que saía do nada e levava a parte alguma [grifo nosso].

No romance, há a referência à utilidade da ferrovia através de um diálogo


direto entre o engenheiro Collier e o empresário Farquar. Em Genette (2010,
p. 15), “O intertexto [...] é a percepção pelo leitor de relações entre uma obra
e outras, que a precederam ou a sucederam.” A obra Ferrovia do Diabo precede
à Mad Maria e entre elas há relação de sentido quanto aos pontos extremos da
ferrovia, ambos ressaltando que tanto o ponto de partida como o de chegada
compreendem a lugar nenhum. E eis que nesse espaço preenchido pelo vazio
surge um piano, fato também registrado por Neville Craig: “[...] reencontra-se
um pouco dessa dissimetria grotesca na cena do transporte de um piano de
cauda alemão, lembrança de um fazendeiro boliviano à esposa, em barcos e
manualmente, por todo o trecho encachoeirado dos rios Madeira – Mamoré
[...] (HARDMAN, 2005, p. 131). O piano, de um boliviano de poderes aqui-
sitivos, sendo transportado no rio pode ser equiparado ao gramofone, tipo de
toca-discos, de um norte-americano de alto escalão, ocupando espaço numa
varanda. Ambos os objetos no interior da selva amazônica podem representar
a disparidade entre o espaço rústico e a tecnologia dos instrumentos sonoros.

86
Figura 4 – Vista parcial da varanda de residência em Porto Velho (Rondônia). Cerca
de 1909-1910. Negativo flexível tipo film-pack, gelatina. 12,50x17,30cm. IC 20260

Fonte: Catálogo da exposição Ferrovia Madeira-Mamoré: Trilhos e Sonhos – Foto-


grafias. BNDES e Museu Paulista da USP. Cortesia: Carlos E. Campanhã.

Porém, o que para uns pode parecer disparidade, para outros pode ser
o início do progresso, mesmo sendo imposto. Na ficção, o piano é responsável,
principalmente, pelo desencadeamento de ações entre Joe e Consuelo. O piano
une cada vez mais esses dois personagens no desenrolar do enredo. Vejamos a
passagem desse instrumento musical também em A Ferrovia do Diabo (FER-
REIRA, 1981, p. 115):

Cargas de 250 a 300 kg são às vezes transportadas à Bolívia nas mesmas


embalagens em que vêm do Pará; e disseram-me que mesmo pianos têm
sido assim conduzidos, e – é extraordinário relatar – têm chegado inteiros a
Santa Cruz de La Sierra.

Em Ferreira, pianos transportados têm como destino Santa Cruz de La


Sierra, em Mad Maria, são recorrentes as referências ao país vizinho, a Bolívia.
O enredo em torno do piano inicia-se com o sonho da boliviana Consuelo,
de possuí-lo. Agora, a cidade boliviana escolhida por Souza foi Sucre, não
como destino do piano, mas de procedência. Ainda, pelo lado histórico, Sucre
é a capital constitucional e sede do Poder Judiciário da Bolívia, ou seja, tem

87
grande importância para o país. Na ficção, Souza relata uma importância para
a cidade: “Sucre tinha sido declarada capital e o povo lutava para fazer valer
este direito” (SOUZA, 2005, p. 81). Na narrativa, o piano deveria desembarcar
em Guajará-Mirim, porém fora despedaçado durante o naufrágio. Vejamos a
passagem em que Consuelo se apresentava em Sucre (SOUZA, 2005, p. 80):

O teto de um palco de teatro, o pequeno teatro municipal de Sucre, a plateia


lotada de senhoras felizes e as lâmpadas de carbureto sendo acesas uma a uma.
Ela entrou no palco e as cortinas não estavam levantadas. Sentia-se nervosa e
os pés acutilados pelo sapato apertado e pela má circulação em mil pontas de
alfinetes. A roupa apertava também e o calor aumentava, a corrente sanguí-
nea parecia fluir para o seu rosto corado de medo e expectativa. Segurava um
pacote de partituras. Um medo terrível e ao mesmo tempo voluptuoso que
aumentava e queria obrigá-la a chorar quando a cortina foi abrindo quase sem
ruídos e ela se viu no meio de muitas crianças vestidas com esmero e que se
curvavam diante do público que aplaudia, aplausos fortes, como um trovão.

Depois do naufrágio, a pianista boliviana fora encontrada desacordada


pelos trabalhadores da Ferrovia e levada para a enfermaria e submetida aos
primeiros socorros. Desamparada e sem destino, convive entre os trabalhado-
res e passa a prestar serviços à enfermaria a pedido do médico. Ao tratar do
indígena Joe, o qual teve as mãos amputadas, simpatizou-se por ele a tal ponto
de ensinar-lhe a tocar piano com os pés. Consuelo, como professora, conse-
guia enxergar múltiplas capacidades de Joe e admirava sua inteligência. Os
dois fizeram apresentação para políticos durante a visita desses às instalações
da Ferrovia. Com o apoio de Farquar, apresentaram-se no Rio de Janeiro e
seguiram para as apresentações internacionais. Como se pode observar, Souza
colocou o piano em destaque na narrativa. Ele criou um universo literário para
esse instrumento. Sob a ótica de Samoyault (2008, p. 47):

A literatura se escreve com a lembrança daquilo que é, daquilo que foi. Ela
a exprime, movimentando sua memória e inscrevendo nos textos por meio
de um certo número de procedimentos de retomadas, de lembranças e de
reescrituras, cujo trabalho faz aparecer o intertexto.

88
O conhecimento do mundo real serviu como pano de fundo para que
Souza fizesse a releitura e a reescrita do piano transportando-o assim para a
ficção. Quanto ao mundo da ficção, afirma Eco (2002, p. 91): “[...] na medida
em que acrescenta indivíduos, atributos e acontecimentos ao conjunto do uni-
verso real (que lhe serve de pano de fundo), podemos considerá-lo maior que
o mundo de nossa experiência.” Souza explorou o caso do piano, tornando-o
presente no decorrer da narrativa, sendo despedaçado no naufrágio, depois há
lembranças de Consuelo se apresentando em um concerto na Bolívia. Em se-
guida o cenário muda para o interior da Amazônia brasileira onde a jovem
aproveita a destreza e habilidade do indígena caripuna para ensinar-lhe a tocar
piano. Juntos, os dois fazem apresentações nacional e internacional. Esses são
os “panos de fundo” acrescidos ao piano na ficção.
Na história da ferrovia, os índios exerciam o papel de guias dos navega-
dores já que conheciam muito bem os trechos encachoeirados. Vejamos o que
relata Ferreira (1981, p. 20-21):

As cachoeiras em geral localizam-se distantes umas das outras, por vezes


dezenas de quilômetros entre duas consecutivas, trechos em que o rio cor-
re manso, oferecendo condições normais de navegação. Passar através das
cachoeiras com êxito exigia um perfeito conhecimento dos seus canais.
Os índios bolivianos, que eram moradores principalmente na foz do rio
Beni, sempre foram considerados os melhores práticos na região, isto é,
grandes conhecedores dos canais das cachoeiras, guiando atrás deles as
embarcações dos viajantes e negociantes. Entretanto, os três saltos – e al-
gumas cachoeiras principalmente em certas épocas do ano – tinham que ser
contornados por terra. [...] Os viajantes e negociantes que navegavam na-
queles 400 km de rio encachoeirado sempre tomavam todas as providências
prévias necessárias: as embarcações não ultrapassavam certo tamanho; eram
feitas provisões necessárias de víveres, medicamentos, armas e munições; os
remadores (remeiros) deviam ser fortes e resistentes; deviam levar cordas de
linho especiais (sirgas), com as quais eram as embarcações arrastadas atra-
vés das correntezas etc. Ao longo das cachoeiras, habitavam muitas tribos
de índios, que, dependendo dos viajantes e negociantes, atacavam-nos
ou eram por eles atacados, ou com eles mantinham relações amistosas,

89
auxiliando-os inclusive nas penosas travessias. Eram frequentes os nau-
frágios, com perdas de vidas e de cargas [grifo nosso].

Encontramos em Mad Maria a presença dos indígenas prestando so-


corro aos naufragados, ou seja, o que prevalece é a relação amistosa (SOUZA,
2005, p. 31):

Agora, enquanto Consuelo reza fervorosamente, Alonso acompanha os ín-


dios que puxam as cordas da balsa sem se descuidar. Procurara contratar
os melhores em Santo Antônio, estava gastando um bom dinheiro com
aqueles homens e prometera uma recompensa extra caso o piano, chegasse
intacto no pequeno povoado de Guajará-Mirim, depois de passar por to-
das as corredeiras. Mas Alonso não tinha muita confiança naqueles índios,
achava-os lerdos, eram fortes, mas não demonstravam usar toda a força que
pareciam ter nos braços. Ele sabia que se alguma coisa desse errado, aqueles
índios não moveriam uma palha além do trabalho de puxar as cordas que
estavam fazendo. [...] Vendo que uma das cordas está prestes a escapar das
mãos dos índios, ele corre e junta-se a eles. Consuelo não gostaria de ver
o marido chegar ao extremo de se juntar aos índios, mas naquele instante,
quando a balsa parecia entregue ao poder da corredeira, ela aprovou a ati-
tude do marido e redobrou as promessas, mandaria celebrar uma missa a
cada sexta-feira durante um ano, na mais bela igreja da cidade, a Basílica
Metropolitana.

Os episódios recorrentes de naufrágios ocorridos na história e relata-


dos em A Ferrovia do Diabo são reproduzidos no início do romance, quando
o noivo da boliviana Consuelo morre afogado. Idêntico à história, os índios
prestaram socorro aos viajantes. Esse fato histórico é mencionado de forma
explícita na ficção, levando em consideração o fato do naufrágio e que os índios
eram importante mão de obra para auxiliar os navegadores. Podemos cha-
mar essa referência dos fatos de alusão, ou seja, o mesmo fato está presente
nas duas obras. Conforme Samoyault, (2008, p. 51), “A percepção da alusão é
frequentemente subjetiva e seu desvendamento raramente necessário para a
compreensão do texto.” Ou seja, não precisaríamos recorrer ao primeiro texto

90
para entender o segundo, haja vista que o segundo é uma ficção e independe
do mundo exterior. Para reconhecer a alusão é necessário que o leitor tenha
memória para recuperar o texto aludido.
Em Mad Maria, o indígena Joe praticava pequenos furtos. Entrava nas
tendas dos trabalhadores enquanto estes estavam ausentes. Como tinha a des-
treza de aparecer sem ser visto, os alemães culpavam os barbadianos pelos su-
miços de pequenos objetos, fato que acarretou uma rixa entre esses dois grupos
(SOUZA, 2005, p. 35-37):

O alemão, mal equilibrando o trapo nas costas, aproxima-se dos barbadia-


nos, segurando a picareta quase como uma arma. Apenas uma manhã sem
usar a camisa já lhe tinha provocado queimaduras de sol nas costas, a pele
ficou vermelha como uma vitela malpassada, e arde. — Ei, volte aqui, ficou
maluco — grita um de seus companheiros, pressentindo no ar cheiro de
desgraça. Mas o homem não para, está decidido, as costas lhe fazem sofrer e
ele está descontrolado. Por isto, segura o primeiro barbadiano que encontra,
agarra pelo colarinho e o outro fica perplexo, não estava esperando aquela
agressão. — Eu quero saber qual de vocês me roubou a camisa? [...] O bar-
badiano, bem mais forte e mais alto que o alemão, solta um suspiro e des-
vencilha-se do agressor, afastando-o facilmente com poucos movimentos e
um empurrão. Os guardas aparecem, as armas engatilhadas apontando para
os dois grupos de homens. [...] Sem que ninguém espere, ele investe contra
os barbadianos, segurando a picareta no ar com duas mãos. Embora de
costas, os barbadianos ficam unidos como por uma descarga de eletricidade.
Reúnem-se no momento exato em que o rapaz alemão partiu correndo com
a picareta levantada, pronto para matar. Tudo acontece muito rapidamente
e é assim que sempre muitos levam a pior diariamente por ali. Um dos
barbadianos trazia um machete preso à cintura, ele saca a arma e com um
movimento preciso gira a lâmina com toda a força decapitando o rapaz
alemão. Um rumor seco e gutural escapa de todas as gargantas e os homens
ficam estáticos, dominados pela surpresa, inclusive o autor da decapitação.
A cabeça do rapaz, a boca aberta e os olhos esbugalhados, parece levitar no
espaço, rolando como uma bola que gravita impulsionada por forças anár-
quicas, até começar a cair enquanto o corpo estremece, sem largar a picareta,

91
tombando na lama esguichando um jato de sangue vermelho-escuro. [...]
Alguns homens arrastam o corpo decapitado e procuram pela cabeça que
desapareceu na lama. Outros partiram para os barbadianos e engalfinha-
ram-se, gerando um tumulto.

Souza desencadeou uma sucessão de acontecimentos a partir do furto


da camisa de um alemão o qual quis tirar satisfação com os possíveis suspeitos
do delito. O clímax desse primeiro momento ocorre com a decapitação do
alemão pelo barbadiano. A tensão entre alemães e barbadianos só aumenta.
Brigam entre si e é preciso que o engenheiro-chefe tome uma solução drástica
para que cessem o tumulto. Vamos ao segundo momento de tensão, em que o
engenheiro quase é responsável por uma chacina (SOUZA, 2005, p. 38- 40):

— Isto aqui é um lugar de trabalho, não é uma competição de luta. Parem


de lutar, é uma ordem. Perderam a razão? Ficaram loucos, seus idiotas? Mas
os homens parecem não ouvir o engenheiro e continuam a lutar, revolvendo
a lama porque o sangue lhes martela na veia e somente o ódio pode agora
movimentá-los, nenhuma palavra, nenhuma ordem seria registrada naque-
las cabeças disformes que a lama aderira em contornos aberrantes. Collier
é um homem de porte musculoso e barba pontiaguda, muito bem tratada, a
sua voz é poderosa e ele sabe que agora deve começar a agir na única lingua-
gem capaz de fazer cessar o tumulto. [...] Por isto, ele toma uma winchester
de um dos guardas de segurança e começa a disparar a arma para o ar. [...]
Ele abaixa a winchester e aponta na direção dos homens que lutavam, for-
mas de lama que só a fúria define, puxa o gatilho mas a arma está descarre-
gada. Ele joga fora a winchester e ordena: — Abram fogo! Os guardas não
compreendem a ordem de Collier, vão apontando as armas, maquinalmente,
mas parecem não acreditar realmente que o engenheiro está ordenando um
fuzilamento. Collier rapidamente aproxima-se dos guardas e dá um safanão
no que está mais próximo, jogando longe o chapéu de cortiça • do homem.
— Eu disse, fogo! É ordem. Fogo sobre essa canalha. Os guardas começam
a atirar, quase sem fazer pontaria, como se o alvo fosse todo o lamaçal. [...]
— Parem, não atirem — grita um alemão. — Piedade. — Não atirem, pelo
amor de Deus. Collier levanta o braço e os guardas param de atirar. [...] Os
que sobreviveram vão levantando e cada um caminha para o seu trabalho.

92
Estão imundos, enlameados, alguns com cortes e feridas sangrando. — Re-
colham os mortos — ordena Collier aos guardas.

Nesse segundo momento de tensão é que acontece a barbárie: foi pre-


ciso que a guarda atirasse contra os trabalhadores a mando do engenheiro
Collier. Em A Ferrovia do Diabo (1981, p. 93-94), também encontramos um
caso parecido de extermínio. O caso inicia-se envolvendo, não furto, mas roubo
de objetos pelos índios que usavam arco e flecha para aterrorizar suas vítimas:

Uma formidável dificuldade ligada à construção da ferrovia tinha provavel-


mente sido relegada: a região através da qual ela tem de passar é infestada
pelos temíveis índios Parintintin e Araras, que frequentemente atacam os
batelões que passam pelo trecho encachoeirado, subindo-o ou descendo-o.
Eles fizeram um assalto à instalação dos engenheiros em Santo Antônio,
que aliás tornou-se desastrado para os próprios índios. Em uma pequena
choça que ficava separada, e não distante do ponto onde os índios surgiram
na floresta, o médico estava nesse momento atendendo um pobre homem
que se achava nas últimas da sua varíola. Ouvindo o grito de guerra dos
índios, o médico abandonou o seu paciente, correndo em direção a Santo
Antônio, seguido por uma chuva de flechas, das quais felizmente todas erra-
ram o alvo. Os engenheiros e artífices, despertados, agarraram suas armas e
prepararam-se para defender-se; em consequência, os frustrados selvagens,
apressaram o fim do moribundo, e levaram suas roupas como o único troféu
da sua façanha. Foi um evento fatal, porque a doença repugnante que é a
varíola rapidamente propagou-se entre os índios, fazendo muitas vítimas
e sem dúvida impressionando-os com a crença de que a vingança dos céus
caiu sobre eles por terem atacado os homens brancos.

Assim como em Mad Maria, vemos que em A Ferrovia do Diabo o rou-


bo de roupa é motivo de embate. No romance, houve decapitação, feridos e
mortos. No relato histórico, os índios costumavam atacar com arco e flecha
os trabalhadores. Porém, nesses ataques, um caso inusitado acontece: as peças
de roupas roubadas foram as responsáveis pela transmissão da varíola entre os
indígenas, já que a doença era transmitida também por meio de itens conta-

93
minados como roupas e lençóis. Os índios levaram consigo a doença que foi
motivo de muitas mortes.
Em Mad Maria, os alemães e barbadianos (negros e brancos) viram-se
encurralados pelas armas de fogos da guarda de Collier. Em A Ferrovia do
Diabo, os indígenas sofreram com a contaminação da doença pelos brancos.
O alvoroço dos trabalhadores por serem vítimas de furtos/roubos e as conse-
quências desastrosas estão presentes nas duas obras. Conforme pontua Sa-
moyault (2008, p. 9-10), “A retomada de um texto existente pode ser aleatória
ou consentida, vaga lembrança, homenagem explícita ou ainda submissão a um
modelo, subversão do cânon ou inspiração voluntária”. A relação entre índios
e trabalhadores na ficção submeteu-se à estrutura/modelo do relato histórico:
delito + revolta + punição. Tal estrutura pode ser considerada uma pastiche.
Segundo Samoyault (2008, p. 57) “O autor de pastiche interpreta como uma
estrutura fatos redundantes do modelo e [...] graças ao artifício de um novo
referente, reconstrói esta estrutura mais ou menos fielmente, segundo o efeito
que quer produzir para o leitor.” Na ficção, Joe não faz uso de arco e flecha e
nem de nenhum tipo de armamento, reproduzindo ao leitor a imagem menos
selvagem do indígena.
Dessa forma, a intertextualidade entre as duas obras remete à ideia de
que “[...] um texto não existe sozinho, é carregado de palavras e pensamen-
tos mais ou menos conscientemente roubados, sentem-se as influências que
o subtendem, parece sempre possível nele descobrir-se um subtexto” (SA-
MOYAULT, 2008, p. 42). Diante disso, tornam-se evidentes os pontos de
identificação entre A Ferrovia do Diabo e Mad Maria, por meio de elementos
que estabelecem esse diálogo intertextual entre as duas obras.

Considerações

Recuperar o acontecimento histórico da construção da Estrada de


Ferro Madeira Mamoré é uma marca que perpassa toda a composição li-
terária da obra Mad Maria, romance que, por meio da junção de elementos
históricos e estéticos, promove diferentes perspectivas de análise sobre a en-

94
cenação desse evento. Considerando tal premissa, a análise do romance Mad
Maria, realizada por este estudo, buscou destacar possíveis pontos de inter-
textualidade entre a narrativa ficcional, os registros históricos de Ferreira em
A ferrovia do diabo e os registros fotográficos de Dana Merrill, como uma
singularidade da sua composição.
O breve trajeto da retomada histórica desse acontecimento na região
Norte do Brasil abriu caminhos para a compreensão do que representou em
termos econômicos e sociais a ideia visionária de um megaempreendimento
em meio à densa floresta amazônica. A presença de elementos históricos no
romance ganha visibilidade por meio do aporte teórico elaborado por Genette
na perspectiva da intertextualidade. O princípio da presença efetiva de um tex-
to em outro instaura-se a partir dos pontos de contato entre elementos consti-
tutivos das duas narrativas e as imagens, concebidas como registros históricos
captadas pela câmera fotográfica de Dana Merrill. Observou-se que a história
iconográfica, em alguns pontos, é mais amena ao sofrimento dos trabalhadores.
Um exemplo é a fotografia da enfermaria, onde quase não havia doentes. Sou-
za, como escritor e romancista, desenvolveu o romance histórico incrementan-
do fatos novos ou invertendo fatos históricos. Ele ultrapassa as barreiras histó-
ricas e faz deslumbrarmos o mundo ficcional envolvendo a estrada de ferro. É
mais nítida essa criação literária ora comparando o romance com as fotografias
de Merrill, ora comparando-o com o livro A ferrovia do diabo.
Se não fossem as pesquisas históricas realizadas por Ferreira, muito so-
bre a construção da estrada de ferro teria se perdido no tempo e não passaria de
lendas. Tudo estaria propício a cair no esquecimento e o estado de Rondônia
também correria o risco de ficar sem a sua história de origem. Dana Merrill
também contribuiu com a iconografia da construção. Somente após o contato
com os negativos de Dana Merrill, Ferreira reconstruiu o cenário estampado
nas imagens. Sua obra A ferrovia do diabo foi e ainda é motivo de inspiração
para que outros pesquisadores também ingressassem neste universo inimagi-
nável, ora como passageiro, atento a cada passagem histórica, ora como cien-
tista, com o olhar ofuscante à procura de uma lacuna a ser preenchida. Souza,
a partir da obra Mad Maria, despertou em seus leitores e até telespectadores

95
(em relação à Minissérie Mad Maria) o olhar curioso e investigativo sobre a
Amazônia, principalmente para a real história da Estrada de Ferro Madeira
Mamoré (EFMM).
Com a construção da ferrovia, foi possível dar início a colonização e
exploração da inabitada floresta amazônica. A estrada de ferro Madeira Ma-
moré pode ser considerada o marco inicial de integração da região norte ao
restante do país. Ela pode ser considerada o início do transporte ferroviário. E
seu fim, não significou o fim de meio de transporte e integração da Amazônia
ao restante do Brasil, pelo contrário, seu fim deu início a um novo projeto:
revitalização da estrada transamazônica que interligaria essa região às demais
regiões, bem como deu origem às primeiras cidades de Rondônia, constituindo
em uma região que foi explorada e que continua em fase de desenvolvimento.
A Amazônia existe, tem história e faz história. Livros, fotografias, reportagens,
romances, em todo o tipo de mídia ela está presente, resgatando as suas origens.
A composição estética da configuração espacial criada pelo romance
dialoga com as imagens que atraem o olhar para as catástrofes provocadas pe-
las forças da natureza e para presença de personagens comuns aos dois supor-
tes. Tais elementos configuram-se em conexões intertextuais entre o romance,
os registros históricos e as fotografias, revelando, assim, os diferentes olhares
que Márcio Souza, Ferreira e Dana Merrill projetaram para o mesmo evento
histórico. Dessa forma, a opção por essa via não se esgotou nesta abordagem,
pelo contrário, pode suscitar outras possibilidades de leitura e investigação.

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96
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Fotografias BNDES E Museu Paulista da USP. Cortesia: Carlos E. Campanhã.
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99
O CARÁTER IMAGINOSO COMO ELEMENTO COMPO-
SICIONAL DA OBRA A HISTÓRIA DAS CRIANÇAS QUE
PLANTARAM UM RIO

Ane Caroline Rodrigues dos Santos Fonseca

Introdução

Este estudo visa analisar o caráter imaginoso presente na obra A


história das crianças que plantaram um rio (2013). O imaginoso é um dos
elementos que mais instiga em uma narrativa, principalmente quando se
trata de crianças. A imaginação fértil dos pequenos possibilita que eles
recepcionem o acontecimento imaginoso como um acontecimento possí-
vel, em que o irreal é visto como natural. Reforçando essa facilidade de
aceitação do sobrenatural, temos na obra analisada o contexto cultural que
auxilia a adesão do leitor aos elementos irreais.
Muitos autores1 de literatura infantojuvenil empregam esse meca-
nismo literário (imaginoso) para naturalizar o sobrenatural, entre estes,
Daniel da Rocha Leite. Em sua obra A história das crianças que plantaram
um rio (2013), o autor traz acontecimentos irreais com muita naturalida-
de, conferindo à sua narrativa um caráter imaginoso. É na literatura que
os mitos e as lendas dos povos amazônicos ganham espaço, por meio de
narrativas fabulosas, que incitam o imaginário, exploram o sobrenatural e
transmitem as tradições do espaço amazônico.
A literatura infantojuvenil produzida na Amazônia possui um aliado na
construção do caráter imaginoso2, uma vez que se utiliza das tradições orais,
mitos, lendas, além de outros elementos de encantamento existentes no es-
paço amazônico. Percebemos que o imaginário é um dos aspectos mais usa-
dos nas obras infantojuvenis de expressão amazônica, que por meio da ficção,

1
Monteiro Lobato; Ziraldo Alves Pinto; Maurício de Souza entre outros.
2
O termo imaginoso utilizado neste trabalho advém dos estudos de Jesualdo (1993).

100
empregam artifícios da narrativa imaginosa para introduzirem seres encanta-
dos e sobrenaturais, tal como acontece em nosso objeto de análise.
Para subsidiar a pesquisa, usamos teóricos de diferentes linhas de estudos,
mas que convergem e contribuem significativamente para a pesquisa, tendo em
vista que trazem conceitos que auxiliam a atingir o objetivo proposto. Como
aporte teórico para elaboração desta pesquisa utilizamos as contribuições dos se-
guintes teóricos: Jesualdo (1993); Tocantins (1973); Loureiro (2015). A pesquisa
é de cunho bibliográfico, baseado na técnica de análise crítica.

Breves considerações sobre autor e obra

A obra A história das crianças que plantaram um rio, objeto de nossa aná-
lise, foi escrita por Daniel da Rocha Leite, considerado um dos autores con-
temporâneos do Pará que mais tem acumulado premiações em concursos lite-
rários. Com seus livros de literatura infantojuvenil, crônicas, contos e romance,
o escritor conquista muitos jovens leitores.
Leite nasceu no Rio de Janeiro, mas ainda criança se mudou para Be-
lém, onde cresceu e escreveu suas obras. Daniel é graduado em letras/Alemão,
e pós-graduado em Análise Literária. É formado também em direito, e escritor
de livros de múltiplos gêneros, como poesias, crônicas, contos e romance.
Suas principais obras são: Casa de farinha e outros mundos (2007); Pro-
cura-se um inventor (2010); Menino astronauta (2011); A história das crian-
ças que plantaram um rio (2013); Natais de um norte (2013); A menina árvore
(2014); Vindos do mar (2015); Burburinho (2018), Esparadrapo (2020), Águas
Imaginárias (2004); Invisibilidades (2007); Girândolas (2009); Ave Eva (2011);
Elas (2010) e a Coletânea do Prêmio SESC-DF (2007).
Daniel da Rocha Leite possuí um número significativo de produções
(cerca de 17 obras publicadas), e, em curto período, alcançou consideráveis
premiações nacionais, tais como: Prêmio IAP nos anos de 2004, 2007 e 2014;
Prêmio Sesc-DF Carlos Drummond de Andrade em 2007; Prêmio Mac-
-Dowell da Academia Paraense de Letras em 2007 e 2010, e o prêmio Dalcí-
dio Jurandir, em 2010.

101
O contexto amazônico é um traço recorrente que marca boa parte das
obras literárias produzidas pelo autor, principalmente as águas dos rios e seus
elementos míticos. Daniel da Rocha Leite tem uma escrita marcada por uma
linguagem poética que encanta e desperta a imaginação, a partir de elementos
que expressam poeticamente a intensa relação do homem da Amazônia com
os rios. Sobre a escrita de Daniel Leite, Martins (2016, p. 79) afirma:

A escrita de Daniel Leite é uma prosa-poética. Extremamente metafórica.


Ele brinca com as palavras, escolhe-as com cuidado para depois arrumá-las
nas páginas. Algumas delas trazem uma única frase, algumas vezes as palavras
sobem e descem “desenhando” pequenas ondas no papel. Tudo trabalhado
com uma poesia capaz de preencher o coração dos leitores com um rio, cujo
curso é a vida que corre nas veias da Amazônia, que é o nosso corpo.

Essa poeticidade se deve ao fato de Leite ter sua escrita perpassada


por suas leituras, segundo ele “não há escrita sem leitura” (LEITE, 2017).
Alguns autores contribuíram para sua formação literária, tais como: Dal-
cídio Jurandir; Fernando Pessoa; Guimarães Rosa; Eça de Queiroz; Max
Martins; Carlos Drummond Andrade; Paulo Plínio Abreu; Lygia Bojunga
e Gabriel Garcia Marquez.
Especialmente nas obras de literatura infantojuvenil, Leite reafirma seu
talento em escrever para os pequenos leitores. Escrever para criança é sempre
um processo muito desafiador, pois exige uma poética singular em que o es-
critor precisa ouvir, olhar, sentir, sonhar como uma criança sonharia. Mesmo
sendo uma escrita direcionada ao público mirim, a técnica narrativa e os re-
cursos linguísticos usados por Leite possibilitam que seus livros sejam lidos e
apreciados por leitores de todas as idades.
Para dar vida às suas produções, em algumas de suas obras o autor conta
com a colaboração de outro escritor. Sendo assim, não poderíamos deixar de
mencionar a significativa contribuição do poeta, artista plástico e ilustrador
Raimundo Benedito Barreto da Costa, mais conhecido como Maciste, natural
de Belém. As ilustrações de Costa apresentam espaços carregados de poesia e

102
lirismo, que complementam de forma única a história e seus encantos. Há uma
interação sinergética entre Daniel e Maciste, tal como afirma Leite (2017):

Costumo dizer que ele pinta poemas e escreve aquarelas [...] Penso que as
ilustrações são, também, partes vitais de um livro para criança. Ilustrador
iluminado é o Maciste. Ele conta a história junto comigo, há uma poética
nas aquarelas que ele sonha.

No tocante a esta sinergia ocorrida entre estes autores, pressupomos que


o fato de ambos pertencerem ao mesmo contexto cultural, auxilia para que as
obras reflitam de alguma forma o espaço amazônico.
O livro infantojuvenil A história das crianças que plantaram um rio foi
publicado em 2013, em Belém do Pará. Como mencionado, foi escrito por
Daniel da Rocha Leite, e ilustrado por Maciste Costa, sendo este o primeiro
livro da coleção lamparina. A obra é dedicada a Adielson, um menino da ilha
de Marajó que Daniel conheceu durante suas andanças pelo Pará. Uma frase,
dita pelo garoto em uma noite, acendeu esse “livro lamparina”. Daniel na dedi-
catória exclama: “É para ti Adielson. Este meu mundo teu. Uma nossa história
de rios, gentes e esperanças” (LEITE, 2013, p. 05).
Em A história das crianças que plantaram um rio, escritor, ilustrador e
leitor sonham juntos, por meio de imagens e palavras sobre um rio, constitu-
ído não só de água, mas também de sonhos. O rio foi levado embora trazen-
do muita dor e sofrimento, contudo, de uma forma sobrenatural, crianças do
mundo todo se reuniram no leito do rio morto, e plantaram ali gotas de chuva
que germinaram rapidamente um caudaloso e grande rio, trazendo-lhe nova-
mente a vida e, consequentemente, ao homem ribeirinho.
Desde o título, o autor e o ilustrador nos sugerem a poeticidade da obra,
apresentando uma sinfonia lírica e imagética, uma combinação perfeita entre pala-
vras e imagens, entre sons e cores. O narrador nos convida a submergir nas profun-
dezas de sua memória e nos molharmos com suas lembranças cheias de estórias, de
imaginário e muita água, um espaço inundado pelo rio de suas lembranças.
O título do livro já sugere o enredo, de modo que o leitor já supõe que
conhecerá a história de crianças que plantaram um rio. No entanto, há também

103
o estranhamento causado pela ação de plantar um rio, levando o leitor a um
imaginário poético, repleto de suposições e imaginação.
A obra de Leite é uma prosa leve que mais parece um poema. É uma
história que tem sua nascente na imaginação do personagem menino, e seus
afluentes conduzem seus navegadores a um universo imaginado e imaginário,
no qual é possível desbravar novos rios, e conhecer suas correntezas de encan-
tos e desencantos.
Nessa obra, Leite traz uma linguagem acessível a todos os tipos de lei-
tores, capaz de alimentar sonhos e instigar a imaginação, sem se preocupar em
trazer um cunho moral, pedagógico ou didático. Ele simplesmente trata o tema
com leveza, poesia e alma, levando seus leitores a expandirem seus horizontes.
A obra é narrada em primeira pessoa, por um personagem que na fase
adulta, resgata e relata fatos de sua infância. Ao fazer isso, retrata, com precisão,
momentos cotidianos de sua meninice, vividos às margens do rio. Na retomada
ao passado, o narrador relembra a história contada por sua avó, que lhe trans-
mitiu, através de palavras, uma imensidão de sentimentos e conhecimentos.
Por meio de uma linguagem poética, o narrador apresenta ao leitor me-
mórias, cultura, sonhos e sensações do espaço amazônico, em especial o rio. Ele
utiliza-se também de metáforas, para que o teor ecológico se dilua em meio à
poeticidade, haja visto que manter o rio vivo é manter a cultura, as histórias, os
saberes. É manter a vida.
O enredo da obra é constituído por dois planos narrativos: O primeiro
é composto por digressões e memórias que conduzem o leitor à história tema.
Esse plano revela fluxos de pensamentos e desenha o pano de fundo da segun-
da planificação, ou seja, é o plano responsável por contar a história das crianças
que plantaram um rio.
Mateus Maia (2013) traz na última página do livro A história das crianças
que plantaram um rio, um comentário que elucida bem a proposta enunciativa da
obra “Um livro para se ler como quem ouve uma história, daquelas encantadas
que só as avós sabem contar. Um livro para acender a imaginação. Uma narrativa
candeeiro para iluminar gente de todas as idades” (MAIA, 2013, p. apud LEITE,
2013, p.). As histórias que compõem a tessitura narrativa deixam suas marcas na

104
estrutura espacial da obra, por meio de aspectos que dão singularidade à infância
em meio às águas.
Nessa obra, assim como em outras de suas literaturas infantojuvenis,
Leite trabalha de forma muito assertiva a questão da linguagem. Ele brinca
com as palavras e as dá vida, elas se instauram na narrativa e se completam no
imaginário do leitor. Ao longo de toda a narrativa, a linguagem poética se faz
presente e, junto às imagens simbólicas, criam o efeito estético da obra. No
enredo, as palavras são representativas e possuem o poder mágico de criar, até
mesmo os espaços da narrativa e da narração.
A intencionalidade poética da obra se apresenta nos jogos de lingua-
gens, na estrutura do texto e nas ilustrações. Todos os elementos contribuem
para criar sua linguagem poética, porém a água se destaca sobre as demais, ela
é a responsável por tornar essa obra tão lírica. A água é o fio que conduz toda
a narrativa, uma vez que os recursos poéticos se interligam a ela.
A poeticidade da água permite que os leitores divaguem com o narra-
dor, que desenvolvam sua imaginação e sonhem sem limites, afinal, longe de
restringir, a poesia abre caminhos e permite devaneios. Nessa obra é construída
ainda uma tessitura cujos fios se entrelaçam perfeitamente e dão forma a um
enredo compacto, repleto de “nuances” e simbologias provenientes dessa inte-
ração híbrida entre as categorias narrativas.
Na obra analisada, as ilustrações dão ao leitor elementos que aguçam
sua imaginação, pois sugerem interpretações que enriquecem o enunciado ver-
bal. Em sua completude, são as imagens que em alguns momentos nos contam
outras histórias e nos levam a outros espaços e tempos. O dinamismo visual
contribui grandemente para ambientar o leitor, pois auxilia na condução do
leitor pela narrativa, trazendo assim ainda mais lirismo à obra.
Esclarecemos que as ilustrações contidas na obra assumem funções distin-
tas. Sendo assim, em alguns momentos elas complementam o texto escrito, em
outras, ampliam a narrativa e permitem que os leitores visualizem além do que está
escrito. Também há imagens que se diferem do texto apresentado em conjunto,
sugerindo ao leitor outras possibilidades de leituras. A ilustração em alguns mo-

105
mentos da obra se impõe e age de forma independente do texto escrito, sendo este
um fator que dinamiza à obra e redimensiona a experiência de leitura.

Mergulhando no imaginário amazônico

De acordo com Jesualdo (1993) um livro infantojuvenil precisa ter qua-


tro características, sendo elas: Em primeiro lugar, o caráter imaginoso, o se-
gundo é o dramatismo e os outros dois são a técnica de desenvolvimento e a
linguagem. Na obra de Daniel é possível encontrar esses quatro elementos, em
especial o caráter imaginoso, cuja beleza poética auxilia a imaginação infantil a
atingir seus níveis mais elevados, tal qual veremos adiante.
Encontramos nesta obra uma sequência de acontecimentos imaginosos:
o rio é roubado, surgem crianças do mundo inteiro no leito do rio, invocação à
chuva por meio de uma canção, a transformação de gotas de água em sementes,
as crianças plantam o rio, que renasce de uma forma instantânea. Essas são
apenas algumas das várias passagens em que o imaginoso se faz presente.
Mediante essa definição é possível perceber que o imaginoso perpassa
vários momentos da obra, entretanto enfatizamos nesse momento apenas al-
guns que consideramos mais significativos. Esses acontecimentos foram nar-
rados pela personagem avó, que transmite ao neto os saberes ribeirinhos. Com
brilho nos olhos, ela começa a contar a história (LEITE, 2013, p. 67):

Houve uma noite, meu filho, que levaram o rio embora. Ficou só a cama dele
aqui, no meio do mundo da nossa terra. Um lugar vazio. Abandono que se
ouvia longe, eco solidão. Vento que tinha arame farpado por dentro. Do rio
daqui da nossa terra só deixaram a sobra dele. A sombra do rio ficou lá, dentro
do fundo da terra, esquecida e seca sombra, chão rachado de uma vida.

É possível ver nesse trecho o quão triste foi o sumiço do rio, levado
sem permissão ou consideração com os que dele dependiam. O rio significa
muito para o ribeirinho, há entre eles uma relação de cumplicidade e respeito,
por isso, o desaparecimento inexplicado e inusitado do rio traz muita dor e
sofrimento aos ribeirinhos. Não há na história uma explicação racional que

106
faça o leitor entender como um rio tão caudaloso e imponente pode ser levado
embora, quem o levou? De que maneira?
Há na obra a transmissão da tradição oral, a personagem avó era quem
contava as histórias, ela por meio dessas narrativas imaginosas estimulava a
imaginação de seu neto que, ao ouvir as histórias, se inseria em outro universo
cheio de vida e sonhos. De acordo com Barbosa (1999, p. 22):

Para a criança, ouvir histórias estimula a criatividade e formas de expressão


corporal. Sendo um momento de aprendizagem rica em estímulos senso-
riais, intelectuais, dá-lhe segurança emocional. Ouvir histórias também aju-
da a criança a entrar em contato com suas emoções, supre dúvidas e angús-
tias internas. Através da narrativa a criança começa a entender o mundo ao
seu redor e estabelecer relações com o outro, a socialização.

A avó personifica os espaços, ao dizer que “A sombra do rio cho-


rava um choro mudo, sem alma de águas. Ninguém ouvia, mas todo
mundo era capaz de sentir a tristeza da sombra do rio, era uma dor
muita meu filho” (LEITE, 2013, p. 67). A sombra do rio ganha vida e
sentimentos, pois chorava e sentia tristeza. Nota-se que a prosopopeia é
um recurso usado pelo autor para naturalizar o fato e não causar espanto
ao ouvinte.
Os elementos discursivos e textuais (figuras de linguagem) que Leite
usa nessa primeira parte da história tema servem para contextualizar o leitor de
que as narrativas imaginosas fazem parte da cultura ribeirinha, pois compõem
o seu imaginário. A partir dessa contextualização, a presença do imaginoso se
intensifica, como no trecho a seguir (LEITE, 2013, p. 69):

Na tarde de uma noite, nas margens do vazio do rio, não se sabe de onde,
apareceram umas crianças. A noite já ia alta, toda gente já estava dormindo.
Era criança de todo o lugar da terra. Elas vieram. Olharam para o céu e
cantaram uma canção.

Essa aparição das crianças no meio da noite, às margens do rio, deno-


ta-lhes uma magia, pois são crianças que surgem misteriosamente de todos os

107
lugares da terra, e reunidas, começam a cantar como num ritual, semelhante à
dança da chuva, realizada pelos nativos. Esse acontecimento dá origem a outro
fato imaginoso, que também é narrado naturalmente, como veremos a seguir
(LEITE, 2013, p. 59):

Lá, bem longe, um trovão tremeu o telhado do céu. Das nuvens noturnas,
daquelas que a gente pouco vê, começou a cair uma chuva bem fraquinha,
uma chuva fininha, chuva magrela, que parecia não ter força bastante para
cair aqui, na nossa terra. Relâmpagos em silêncio acenderam a escuridão da
noite. As crianças, todas juntas, abriram as mãos. A chuva, enfim, veio viva.
Chuva caindo, chuva prateada de estrelas, caindo dentro da palma da mão
daqueles meninos e meninas de todo o mundo.

O autor utiliza trovões, relâmpagos e nuvens noturnas para criar um


cenário obscuro, o momento de trevas antes da luz, gerando assim uma expec-
tativa pelos acontecimentos futuros. Nesse momento, possivelmente, o leitor
pode demonstrar interesse em querer saber o que aqueles meninos e meninas
pertencentes à várias partes do mundo estão fazendo sozinhos, em uma noite
escura, debaixo da chuva, mas isso é respondido no desfecho da história (LEI-
TE, 2013, p. 70-75):

Dia ainda noite quando as crianças guardaram a chuva dentro das suas mãos.
O sol estava nascendo quando elas foram até o lugar onde ficava a sobra do
rio. Chegando lá meu filho, as crianças que tinham a chuva em suas mãos
fizeram dela semente e lançaram as suas águas no chão da sobra do rio.
Aqueles meninos e meninas, meu filho, plantaram um novo rio, sonharam um
novo mundo, semearam uma nova história. Chuva semente, meu filho. Mãos
de todas as crianças do mundo. Um rio que foi plantado sonho de vida.
Quando o dia nasceu, meu filho, o rio estava aqui de volta, vizinho da gente,
respirando lá fora, perto da nossa casa, junto da gente. O nosso velho rio
novo. Vivo correndo as suas palavras e silêncios. O nosso rio, meu filho, as
nossas histórias.

Esse trecho demonstra que esses seres não são crianças comuns,
e sim, criaturas mágicas e encantadas. Elas assumem a posição de he-

108
róis, e possuem a missão de devolver os sonhos de vida. Essas crianças
reconhecem a importância do rio para os ribeirinhos, ao trazer o rio
novamente. Deste modo eles devolvem aos ribeirinhos seu mundo, suas
histórias e sua vida.
Um fator que auxilia na aceitação dos acontecimentos imaginosos sem
espanto, e com total naturalidade pelos personagens é o imaginário amazônico,
que possibilita a criação de um ambiente propício à crença nos milagres. Os
personagens compartilham de um “imaginário comunitário que nunca deixou
de criar suas próprias explicações do mundo” (RODRIGUES, 1988, p. 32).
O ribeirinho vê a Amazônia como um espaço possível para o sobre-
natural, permitindo que os acontecimentos imaginosos tenham adesão. Esse
ambiente possibilita a formulação de narrativas que evocam manifestações
sobrenaturais, que transcendam os limites entre o real e o imaginário. Fares
(2013), diz que a água influencia o imaginário do nativo amazônico, e revela o
caráter imaginoso da cultura ribeirinha.
Em nenhum momento o personagem que ouve a história, duvida que
ela tenha de fato ocorrido, ou presuma ter sido algum delírio, ou fantasia de sua
avó. Não há medo, estranhamento, hesitação ou dúvida quanto à veracidade da
aparição dos fenômenos sobrenaturais, ao contrário disso, ele não duvida e não se
desconcerta diante dos acontecimentos imaginosos, não vacila diante da história
contada por sua avó, e não busca explicações racionais. Isso se deve ao contexto
vivenciado pelo personagem, pois de acordo com Zilberman (1994, p. 22):

A literatura sintetiza, por meio dos recursos da ficção, uma realidade, que
tem amplos pontos de contato com o que o leitor vive cotidianamente. As-
sim, por mais exacerbada que seja a fantasia do escritor ou mais distanciadas
e diferentes as circunstâncias de espaço e tempo dentro das quais uma obra
é concebida, o sintoma de sua sobrevivência é o fato de que ela continua a se
comunicar com o destinatário atual, porque ainda fala de seu mundo, com
suas dificuldades e soluções, ajudando- o, pois, a conhecê-lo melhor.

Esses acontecimentos imaginosos são vivenciados pelos personagens e


pelos leitores sem muitas surpresas, pois, a ficção possibilita isso, ela leva o

109
leitor a um mundo em que as coisas extraordinárias são possíveis, de maneira
que até o evento mais imaginoso se torna verossímil.
O imaginoso da obra é retratado principalmente sob a perspectiva do
menino e da avó, isso possivelmente se dá, pois é nessas fases da vida que o
devaneio e a imaginação são mais frequentes. Ao usar esses personagens, o
narrador tem mais possibilidades de explorar o imaginoso, e principalmente de
conferir ao rio essa poeticidade. Segundo Frantz (2011, p.122):

A poesia convida-nos a viver a fantasia a soltar a imaginação, a sentir a rea-


lidade de maneira especial, mágica, a ver e buscar sentidos em tudo que nos
rodeia e a expressá-los de forma simbólica, lúdica, criativa, nova, prazerosa...
poética. É quando o belo se sobrepõe ao útil.

Tanto a infância quanto a velhice permitem que a realidade e a fantasia


se misturem, por meio do imaginário as histórias ganham mais sentido e ins-
tigam ainda mais o leitor, os levando a também divagarem e se imaginarem na
narrativa. A água é encontrada ao longo de toda narrativa, e suas significações
são muito marcantes, tanto na figura do menino que representa vida e vigor,
quanto na avó que representa a maternidade e o feminino.
Destacamos também outros momentos da narrativa, dentre eles o mo-
mento que o rio é personificado pelo narrador-menino; é imaginado como
um ser capaz de pensar, sonhar e interagir racionalmente com ele. Há uma
interação, um compartilhamento de sonhos entre o menino e o rio. Ao obser-
var o rio o menino inicia seu devaneio, tal imaginação é infinita, e acompanha
permanentemente os pensamentos e inquietações do personagem menino.
A personificação do rio, e sua relação com o menino na narrativa podem
ser explicadas por Costa (2017, p. 12), quando ela afirma que: “Em presença
da imensidão, da beleza e da imposição do rio, a relação visceral com a água
provoca no ribeirinho uma constante busca por respostas. Ele busca entender a
terra, a água, a fim de com ela se relacionar”. Essa interação concede respostas
e meios para desbravar esse universo muitas vezes desconhecido e misterioso.
Há uma entrega, uma rendição do ribeirinho às belezas e grandiosida-
des do espaço amazônico. Para Loureiro (2015, p. 84), “Percebe-se nas relações

110
estatizantes com o real da Amazônia que há um maravilhamento do homem,
o que é próprio de quem está diante de algo que é imenso e diante do qual a
pequenez do homem se evidencia”.
Compartilhando dessa ideia, Costa afirma que, “diante dessa grandeza,
beleza e imponência das águas amazônicas que todos, de crianças a velhos, es-
tabelecem sua identidade com aquele mundo, e fazem dele parte de si” (COS-
TA, 2017, p. 11). Ocorre, então, um processo de apropriação influenciada pelo
espaço amazônico.
Loureiro complementa esse princípio ressaltando que, “A identificação
com a paisagem propicia uma natural aderência física e moral à terra. Conse-
quentemente, a paisagem complementa a personalidade atendendo às íntimas
necessidades do indivíduo” (LOUREIRO, 2015, p. 148).
A água leva o personagem menino a sonhar, pois ela é poética e permite
que o menino tenha devaneios. Ela suscita no narrador-personagem inquieta-
ções e reflexões, com seu silêncio torna-se misteriosa, esse desconhecido per-
mite que seja criado a seu respeito suposições. O personagem encontra em si
referências para a água, comparando-a a um menino cheio de sonhos, criando
nas águas a imagem de si.
A água ganha vida no menino, ele a molda conforme sua percepção de
mundo. A água reflete sua figura, assim como o menino também reflete o rio,
“Aprendi que quando alguém aprende a ouvir o rio, passa a ser um rio também.
Uma outra gente, pessoa de rio, vida viva, indo e vindo, pedras e portos, ma-
rés, vazantes e enchentes, correntes de águas e sonhos mundo afora” (LEITE,
2013, p. 57). Ocorre um hibridismo entre menino e rio, de modo que, o per-
sonagem dá vida ao rio, e o rio dá vida ao personagem.
O rio na obra é um lugar simbólico, catalisador de novos significados.
É possível perceber que todos os acontecimentos são relacionados a ele, o rio
influencia e sofre a influência dos personagens. Sobre essa relação intrínseca do
homem com o rio Leandro Tocantins (2001, p. 278) afirma que:

O rio, sempre o rio, unido ao homem, em associação quase mística, o que


pode comportar a transposição da máxima de Heródoto para os condados

111
amazônicos, onde a vida chega a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio, e
a água uma espécie de fiador dos destinos humanos. Veias do sangue da
planície, caminho natural dos descobridores, farnel do pobre e do rico, de-
terminante das temperaturas e dos fenômenos atmosféricos, amados, odia-
dos, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do progresso, pois
sem ele o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis
fabulosos tornaram possível a conquista da terra e asseguraram a presença
humana, embelezaram a paisagem, fazem girar a civilização — comandam
a vida no anfiteatro amazônico.

A água não pode ser dissociada de tudo que a compõe, pois junto a ela
há muitos outros elementos que a cercam, tais como as casas, o barco, a paisa-
gem e principalmente o homem. Por isso, o rio, assim como os outros elemen-
tos, só ganha plena significação quando associados, pois eles se complementam
e juntos formam esse cenário poético.
O homem ribeirinho e o espaço dialogam, há uma constante troca de
saberes, isso é evidenciado em vários momentos da obra. Porém esse diálogo
não acontece por meio das palavras, mas sim por meio do silêncio, assim como
no trecho a seguir (LEITE, 2013, p. 40):

No final de uma tarde, a minha avó quis me ensinar a conversar com o rio.
Estávamos ali, sentados lado a lado, na beira do trapiche, vendo o rio passar.
Bem baixinho, com aqueles seus olhos de vó, ela me disse, quase em um
sussurro, que o rio queria conversar com a gente. Consegues ouvir o rio meu
filho? Eu olhei nos olhos dela. A minha avó, bem velhinha, pequenininha e
magra, parecia um peixe saído do rio quando ela passava me contar as suas
histórias. A minha avó e os seus olhinhos miúdos. As marcas da vida em
seu rosto eram escamas do tempo que tentavam esconder a luz dos seus
olhos negros. Quando ela começava a me contar uma história, muitas vezes
eu nem sabia que era uma história. Era uma pergunta, era um silêncio, era
uma palavra, era um olhar de vó, a luz do mundo de uma das suas histórias.
Sem eu nem saber, sequer desconfiar, a história já estava acontecendo. —
Consegues ouvir o rio meu filho? — a vó queria saber. E ela olhava em
meus olhos. E sorria aquele sorriso em silêncio. Eu, ali, menino, começava a

112
perceber que já estava dentro de mais uma história. E no olhar da minha avó
estava lá aquela luz. O rio, meu filho. Consegues ouvir a voz dele? Eu olhava
para o rio passando, ali, na nossa frente. Ouve, meu filho. Ouve o silêncio do
rio, a voz dele. Ouvir o rio, os seus silêncios, as suas palavras. Assim a minha
avó me ensinou a viver uma história. Tudo do rio é silêncio, meu filho. O rio
conta as histórias dele pra gente, por onde ele andou, as suas lutas e esperan-
ças, os seus encontros, as suas tristezas e felicidades, o seu mundo — mundo
de rio. A minha avó. Os seus olhos acesos em suas palavras. As histórias de
nós dois e um rio. Uma história da gente.

A poeticidade das águas emerge desse diálogo entre o ribeirinho e o


rio, esse momento de contemplação carrega consigo uma fusão entre o real e o
imaginado, onde o rio ganha vida e conta suas histórias. O silêncio das águas
diz muito, permitindo que sejam percebidos elementos que vão além das pala-
vras, aspectos que podem ser vistos e percebidos.
O menino inexperiente ainda precisa da ajuda da avó para ouvir o rio,
ela assume a função de porta-voz do rio, contando ao menino as histórias do
rio. Nesses momentos de contação de história é estabelecido um vínculo entre
o menino, a avó e o rio, que juntos vivenciam mundos e compartilham a vida.
São transmitidos durante esses momentos saberes que acompanharam o per-
sonagem menino por toda sua vida.
A personagem avó explica ao neto que “Há mundos que os olhos
é que ouvem” (LEITE, 2013, p. 25), ela se refere de maneira muito lírica
ao mundo aquático, mundo esse que conversa com o homem por meio
da paisagem, é uma comunicação visual em que só o olhar basta para
compreendê-lo. Ao observar esse universo aquoso é possível ouvi-lo e
até conversar com ele.

Considerações

A obra traz em sua narrativa o contexto de vida de ribeirinhos e sua


íntima relação com o espaço em que vivem. Há na obra a valorização dos
saberes, memórias e vivências desses sujeitos. As cenas narradas e ilustra-

113
das transmitem ao leitor elementos simbólicos de um espaço marcado pela
predominância das águas, uma singularidade que possibilita a apreensão da
poética existente na Amazônia.
Os episódios imaginosos que ocorrem na narrativa dão à citada obra de
Leite a possibilidade de uma leitura dentro do caráter imaginoso. Isto ocorre
pois há na narrativa um encantamento aplicável a uma realidade própria, de
modo que os acontecimentos que inicialmente pareciam irreais naturalizam-se
no texto, legitimando o imaginoso como parte integrante de uma realidade.
A narrativa, embora apresente acontecimentos imaginosos integrados
à realidade em um tom poético e instalem um sentido de verossímil ao in-
verossímil, não deixa de inquietar o leitor e gerar reflexões profundas sobre
a valorização do meio ambiente e dos recursos naturais presentes na floresta.
Mediante a análise da obra, constatamos também ser possível abordar
diferentes temáticas, conduzindo o leitor a inúmeras reflexões. Por esse moti-
vo, reafirmamos a pluralidade de saberes que constituem esse enredo, há nos
elementos que compõem a estrutura narrativa (tempo, espaço, personagem,
narrador) inúmeras possibilidades de estudos, tais como: o imaginário; a orali-
dade; a cultura; a memória; a imageticidade; os sujeitos amazônicos; o contexto
amazônico, entre muitos outros fatores que envolvem a literatura infantojuve-
nil e suas múltiplas vertentes analíticas.

REFERÊNCIAS

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UFMA, 1999.

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Josebel Akel; CAMELO; Marco Antônio da Costa; SILVA, Maria das Gra-
ças; AMARAL, Paulo Murilo Guerreiro (Orgs). Sociedade e saberes na Amazô-
nia. Belém, Eduepa, 2013.

FERRARA, Lucrécia. Olhar periférico: Informações, linguagem, percepção


ambiental. São Paulo: Edusp, 1986.

114
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presentações [livro eletrônico] /José Luís Jobim. -- Rio de Janeiro: Makunai-
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LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginá-


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MORAIS, Raimundo. Anfiteatro Amazônico. 2ed. São Paulo: Edições Melho-


ramentos, 1936.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São


Paulo: Ática, 1988.

RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: ática, 1988.

TOCANTINS, Leandro. O Rio Comanda a Vida. Uma interpretação da Ama-


zônia. Biblioteca do Exército editora: Rio de Janeiro, 1973.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 2. ed. São Paulo. 1994.

115
NARRATIVA DE EXPRESSÃO AMAZÔNICA: UMA BRE-
VE ANÁLISE DO MARAVILHOSO NA OBRA A HISTÓRIA
DAS CRIANÇAS QUE PLANTARAM UM RIO, DE DANIEL
DA ROCHA LEITE

Suelen da Costa Silva

Introdução

As obras literárias de expressão amazônida têm pouca visibilidade no


Brasil e no mundo, além disso a sociedade como um todo está submersa nesse
processo de invisibilidade e pouco sabe sobre esses escritos literários, devido
a realidade de ausência da circulação desses textos e seus autores. Nessa pers-
pectiva, reverberar as vozes de escritores da Amazônia nessa análise viabiliza
o contato com a cultura ribeirinha, sendo esta, potencial produtora de cultura.
Foi diante desse cenário, em Belém do Pará, que o escritor Daniel da
Rocha Leite foi criado. Entre poesia, romance, contos, crônicas e literatura
infantojuvenil, viveu e recriou a realidade ribeirinha da cidade. O autor possui
dezesseis livros publicados, dentre elas selecionamos para essa análise a obra A
história das crianças que plantaram um rio (2013), que é um convite para adentrar
no mundo poético das palavras, do cenário ribeirinho da Amazônia. Embora
carregada de imagens coloridas propostas pelo ilustrador Maciste Costa, A história
das crianças que plantaram um rio transpassa a ideia de uma obra de literatura
infantil, pelo teor poético encontrado na narrativa.
O próprio título da obra já alude a esse trabalho aprazível com as pala-
vras: A história das crianças que plantaram um rio, dessa forma o leitor encontra
uma metáfora que remete a uma ação que garante a ideia do maravilhoso e
convida o leitor a desvendar de que forma essa ação estética fora possível. A
indagação perdura com os questionamentos - por que e como essas crianças
plantaram um rio? Essas indagações serão visitadas nessa análise.

116
Dessa forma, seguindo a metodologia de natureza bibliográfica, será
possível discorrer sobre a incidência do Realismo Maravilhoso presente na
obra selecionada tendo como base os estudos de Irlemar Chiampi (2015), sob
o diálogo com as outras formas de insólito, como o Fantástico, o Realismo
Mágico e o Real Maravilhoso do artigo Expressões conceituais do insólito no
espaço literário sul-americano de Luciana Mazzutti e André Mitidieri (2015),
tendo em vista uma discussão com base na configuração e representação por
meio dos elementos da narrativa de Yves Reuter (2002) e da forma de insólito
em questão. Além disso, soma-se à análise os estudos de Paes Loureiro (2015).
Nesse sentido, apresentar essa categoria do Realismo Maravilhoso em uma
obra com o espaço ribeirinho da Amazônia representa uma característica me-
nos eurocêntrica de análise dessa produção de expressão amazônida.

Características das categorias de insólito na literatura sul-americana

O insólito, segundo Flávio Garcia, citado no trabalho dos pesquisadores


Luciana Helena Cajas Mazzutti e André Luís Mitidieri “[...] decorre daquilo
que não é usual, mas que se iguala ao sobrenatural ou extranatural, esquivan-
do-se do que é esperado ou previsível, todavia, contíguo ao estranho, inabitual
e imprevisto, dissociado da realidade.” (GARCIA, 2012 apud MAZZUTTI;
MITIDIERI, 2015, p. 22). É um efeito no discurso capaz de causar no leitor
desavisado o medo ou terror. Ele é um conceito abrangente que abriga todas as
categorias de insólito como o Fantástico, o Realismo Mágico, o Real Maravi-
lhoso e o Realismo Maravilhoso.
De acordo com os estudos de Bosi (1994) no século, XIX os roman-
ces literários são norteados pelas teorias em desenvolvimento na Europa que
chegam ao Brasil e inspiram, de forma semelhante, os autores do Realismo e
do Naturalismo. Estes autores, por sua vez, apropriam-se desses conhecimen-
tos como o Positivismo de Comte, o Determinismo de Taine, a Psicanálise
de Freud, dentre tantas outras propagações de teorias presentes nesse período
histórico. Quanto a isso, o autor Alfredo Bosi (BOSI, 1994, p. 163) expõe que:

117
[…] de 1870 a 1890 serão essas as teses esposadas pela inteligência na-
cional, cada vez mais permeável ao pensamento europeu que na época se
considerava em torno da filosofia positivista e do evolucionismo. Comte,
Taine, Spencer, Darwin e Haeckel [...].

Essa gama de teoria inspira e reflete na produção literária desse momento.


Nessa circunstância, o Fantástico surge como a hesitação experimentada no efeito
estético do texto. O professor Kenedi Santos Azevedo explica da seguinte forma
o evento insólito: “[…] para que um acontecimento possa ser considerado Fan-
tástico é necessário que o leitor fique sem solução em relação ao evento insólito,
com incerteza em todo o fato narrado” (AZEVEDO, 2011, p. 184). Nesse âmbito,
em diálogo com o crítico Tzvetan Todorov, “[…] o fantástico é a hesitação expe-
rimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento
aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2012, p. 31).
Dessa forma, o leitor deve permanecer sem uma explicação do evento pre-
sente no enredo literário, hesitante. Somando-se a essa afirmação, o teórico Todo-
rov acrescenta “é a hesitação que lhe dá vida” (TODOROV, 2012, p. 36), sendo
aquela, “[…] a hesitação do leitor a primeira condição do fantástico” (TODO-
ROV, 2012, p. 37). Este evento pode estar presente como chave de interpretação
em uma diversidade de textos literários, incluindo textos de expressão amazônica
como aponta a análise do professor Kenedi Santos Azevedo nos contos de Arthur
Engrácio, escritor amazonense.
Diante dessa perspectiva, ressalta-se o quanto é imprescindível forne-
cer contato com as obras literárias amazônidas para que os moradores locais da
Amazônia sintam-se como sujeitos de sua própria cultura, pois eles possuem uma
sabedoria única que, por vezes, é simplesmente apagada ou negligenciada na co-
munidade intelectual, alocando descrédito a esses saberes. Os apontamentos de
Loureiro são significativos quanto a essa elucidação (LOUREIRO, 2015, p. 55):

A cultura cabocla tornou-se a expressão das camadas populares das cidades,


fundindo-se assim numa só argamassa cultural – a da cultura popular. E
nisso reside uma das contradições fundamentais da cultura cabocla: ela é
dominante no sentido de pertencer à camada social que abrange a maior

118
parte da população, mas é também marginalizada, na medida em que é re-
jeitada ou não reconhecida pelos poderes instituídos e geralmente ignorada
pelas políticas públicas.

A exclusividade atribuída às manifestações culturais não caboclas infe-


re aos moradores dessas comunidades não se perceberem como produtores de
cultura. Infelizmente, a escola intensifica essa ideia eurocêntrica, pois não legi-
tima seus conhecimentos populares. Nessa conjuntura, analisar obras literárias
de paisagens, rios e personagens ribeirinhos vai na contramão dessa marginali-
zação e rejeição imposta pelas esferas de poder propagadoras de conhecimento.
Ainda quanto ao processo das outras categorias de insólito, as Vanguar-
das Europeias encontram-se como uma marca presente na produção literária
do século XX. Nesse contexto, são inseridas as outras características de insólito
como o Realismo Mágico, o Real Maravilhoso e o Realismo Maravilhoso. De
acordo com autora Irlemar Chiampi (2015, p.19):

[…] a constatação de um vigoroso e complexo fenômeno de renovação fic-


cional, brotado entre os anos 1940 e 1955, gerou o afã de catalogar suas
tendências e encaixá-las sob uma denominação que significasse a crise do
realismo que a nova orientação narrativa patenteava.

Nesse enquadramento, verifica-se a incidência de formas de compreen-


der as obras literárias da América do Sul.
Quanto ao Realismo Mágico, Lopes (2008) ressalta: “[…] o termo re-
alismo mágico foi utilizado pela primeira vez em 1925, na Alemanha, pelo
crítico de arte e historiador Franz Roh (1890-1965), num livro publicado pela
Revista do Ocidente, intitulado ‘O realismo mágico’” (LOPES, 2008, p. 381).
A princípio, era um conceito usado na pintura e posteriormente Ángel Flores,
em uma conferência no ano de 1954, emprega o termo para o uso narrativo
e de acordo com a autora Tania Mara Antonietti Lopes traduz “[…] como a
sobrenaturalização do real” (LOPES, 2008, p. 382).
Em contraponto, Chiampi declara que os termos empregados já pos-
suem outra definição, afirma que “[…] mágico, ao contrário, é o termo tomado

119
de outra série cultural e acoplá-lo a realismo implicaria ora uma teorização de
ordem fenomenológica (“a atuação do narrador”), ora de ordem conteudística
(a magia como tema)” (CHIAMPI, 2015, p. 43). Por conta desse antagonismo,
é uma forma teórica descartada pela autora e como esta foi uma tentativa de
caracterizar muitas das produções literárias sul-americanas deve ser encarada
com desconfiança, com base nessa abrangência classificatória.
Por outro lado, o Real Maravilhoso está associado à cultura. Mazzutti e
Mitidieri (2015, p. 24) relatam que Alejo Carpentier usa inicialmente o termo
no prólogo de sua obra literária El reino de este mundo:

A contribuição de Carpentier consiste nesse diálogo cultura-espaço-tempo


e na identificação da identidade hispano-americana com traços étnicos e
históricos que, de certa forma, são estranhos aos padrões racionais europeus,
mas característicos de uma realidade identificada como maravilhosa e real
ao mesmo tempo.

Sob a concepção da fé, percebe-se o Real Maravilhoso como a acuidade


do sujeito diante da realidade ficcional proposta. Acrescenta-se aqui o conceito
do Real Maravilhoso proposto por Alejo Carpentier: “[…] o maravilhoso o
começa a ser, de modo inequívoco, sempre que surge de uma inesperada alte-
ração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade [...]”
(CARPENTIER, 2011, p. 13). Todo esse contemplativo milagre, conforme
proposto por Carpentier, deve estar presente nos momentos da diegese, a fim
de que o analista seja capaz de agregar essa conceituação, com toda a comple-
xidade e alcance da teoria do Real Maravilhoso.
Conforme mencionado acima, a teoria do insólito selecionada para essa
análise é o Realismo Maravilhoso, pois a obra A história das crianças que plan-
taram um rio (2013) apresenta características que vão ao encontro dessa teoria.
Os autores Mazzutti e Mitidieri 2015, p. 27) abordam a categoria diferen-
ciando-a do Fantástico:

Essa hesitação própria do Fantástico não acontece no Realismo Maravilho-


so, modalidade em que o sobrenatural é naturalizado (neutralizado), o real e

120
o maravilhoso coabitam, o insólito se faz reconhecido no contexto sociocul-
tural ao qual o sujeito pertence; as explicações para os eventos representados
na obra literária encontram-se no universo real e maravilhoso do leitor.

Diante do panorama, é possível aferir que há esse fenômeno do insó-


lito na obra literária em análise, mas este, por sua vez, é naturalizado tanto na
obra ficcional, pela ação dos personagens, quanto para os leitores. O diálogo é
aceitável, principalmente ao considerar a infinidade de histórias presentes na
cultura amazônica. Nessa conjuntura, o Realismo Maravilhoso é uma forma
de abordagem aceitável na narrativa de Daniel da Rocha Leite, pois os eventos
desenhados pelo autor já são presentes no imaginário ribeirinho.

O realismo maravilhoso presente em A história das crianças que plantaram um rio

O texto literário de Daniel Rocha Leite, A história das crianças que plan-
taram um rio (2013), apresenta uma das possíveis temáticas da relação entre o
homem e o rio por meio de inúmeros implícitos na tessitura da narrativa, dire-
cionando o leitor a refletir sobre as relações entre os personagens ribeirinhos e
o espaço fluvial, fornecendo, assim, instrumentos que possibilitam a articulação
proficiente na linguagem literária. Nessa perspectiva, Chiampi já nos orienta
sobre a importância de versar sobre o real e o irreal relacionado ao Realismo
Maravilhoso, segundo a autora: “[…] o efeito de encantamento do leitor é pro-
vocado pela percepção da contiguidade entre as esferas do real e do irreal pela
revelação de uma causalidade onipresente, por mais velada e difusa que esteja”
(CHIAMPI, 2015, p. 60). A tradição oral presente no universo amazônico é a
forma comum de propagação do conhecimento de um povo, as histórias trans-
mitidas revelam a sabedoria da preservação desse ambiente, sob esse prisma,
para essa preservação de sapiência por vezes enquadra-se as narrativas com a
presença do insólito.
A captação desse espaço real e sobrenatural encontra-se naturalizada
na diegese. Ampliando essa percepção, João de Jesus de Paes Loureiro (2015)
destaca como se vive nesse cenário: “[…] na Amazônia as pessoas ainda vivem
seus deuses, convivem com seus mitos, personificam suas ideias e as coisas

121
que admiram” (LOUREIRO, 2015, p. 121). Em destaque na narrativa, encon-
tram-se as águas como o espaço onde se desenvolve e ganha vida com o rio
personificado: “[…] o rio sonhando acordado, embaixo do chão da nossa casa.”
(LEITE, 2013, p. 27). O narrador afirma com propriedade que o rio, ser não
vivo que compõe a natureza, sonha, característica humana, em diálogo com a
descrição de Loureiro. Somando-se a isso, há a concepção do personagem com
relação ao rio em seu relato de memória: “[…] para mim o rio sonhava acorda-
do, indo e vindo, vida sempre.” (LEITE, 2013, p. 36).
Sob esse viés, Chiampi (2015) afirma a situação presente na com-
posição dos personagens no Realismo Maravilhoso coadunados a essa
ligação em comum entre o insólito e sua vivência: “Os personagens do
realismo maravilhoso não se desconcertam jamais diante do aconteci-
mento insólito” (CHIAMPI, 2015, p. 60). A familiaridade proveniente
da vivência com o elemento das águas ao contrário de fazê-lo temer, cria
respostas e solidifica essa relação com o meio, característica marcante no
povo ribeirinho. Nessa perspectiva, Loureiro (2015, p. 48 - 49) esclarece:

No âmbito de uma cultura dissonante dos cânones urbanos, o homem ama-


zônico, o caboclo busca desvendar os segredos de seu mundo, recorrendo
aos mitos e estetização [...] seguem as nuances de uma natureza monu-
mentalizada pelas suas grandes proporções, que lhes exige criatividade e os
instiga a compreensão imaginativa.

É nesse potencial meio cultural que a narrativa se desenvolve, condu-


zida por um narrador em primeira pessoa. Na primeira página da obra é es-
colhida a expressão “A gente”, em “A gente morava lá onde o longe tinha os
pés descalços” (LEITE, 2013, p.13). Um convite ao leitor para ser conduzido
a esse ambiente curiosamente chamado de “o longe” - nesse espaço, as pesso-
as andavam descalços, em contato com a terra, estabelecendo uma conexão
maior com o meio em que vivem. Essas construções inusitadas com as palavras
são encontradas ao longo da diegese. Além disso, com relação ao espaço, Yves
Reuter refere-se a esse elemento “[…] como moldura dos acontecimentos”

122
(REUTER, 2002, p. 51), e como propulsor para que a composição poética se
torne mais circunscrita na verossimilhança.
Sobretudo, a identificação desse lugar consiste como destaque da rela-
ção do menino com a avó. Esta, por sua vez, repassa o ensinamento de ouvir
o rio: “Ouve meu filho. Ouve o silêncio do rio, a voz dele” (LEITE, 2013,
p.51). O envolvimento é apresentado como se o menino carregasse dentro de
si o próprio rio: “Sou menino crescendo nas palavras do rio” (LEITE, 2013,
p.19). O personagem incorpora o rio, apropria-se desse elemento de tal forma,
como se o seu crescimento dependesse diretamente dele. Dada a relevância dos
personagens, Reuter denomina “[…] toda história é história das personagens”
(REUTER, 2002, p. 41).
Em diálogo com a realidade da importância do rio para as comunidades
ribeirinhas, Loureiro (2005, p. 137) aponta que:

O rio é um fator dominante nessa estrutura fisiográfica e humana, confe-


rindo um ethos e um ritmo a vida [...]. Delas dependem a vida e a morte, a
fertilidade e a carência, a formação e destruição de terras, a inundação e a
seca, a circulação humana e de bens simbólicos, a política e a economia, o
comércio e a sociabilidade. O rio está em tudo.

Olhar o externo nos permite entender a importância desse elemento


para uma sociedade, não estabelecendo um olhar externo como verdade abso-
luta, por se tratar de uma ficção, mas considerar o interno permite analisar com
mais clareza a seriedade desse elemento para as personagens da narrativa e dos
moradores ribeirinhos. Mazzutti e Mitidieri inferem que “[…] o termo Realis-
mo Maravilhoso caracteriza de forma clara e precisa a narrativa sul-americana,
uma vez que vem imbuída de mitos e tradições pertencentes ao âmbito socio-
cultural do continente” (MAZZUTTI; MITIDIERI, 2015, p. 25).
Na narrativa, além de ser demarcado o espaço do rio, também há a
demarcação do tempo: “Era o tempo das chuvas. Tempo delas. Tempo do rio
morando com a gente” (LEITE, 2013, p. 19). Em consonância com esse re-
curso, “[…] o texto pode construir um tempo imaginário, mas de maneira tão
precisa, que o leitor logo aceita.” (REUTER, 2002, p. 57). Aqui o rio dita a

123
temporalidade vivenciada pelos ribeirinhos, não é a demarcação de datas do
calendário, mas sim a fluência do rio. Chiampi (2015, p. 69) sinaliza essa expe-
riência estética que o Realismo Maravilhoso suscita ao afirmar que:

[…] o realismo maravilhoso visa tocar a sensibilidade do leitor como ser


da coletividade, como membro de uma (desejável) comunidade sem valores
unitários e hierarquizados. O efeito de encantamento restitui a função co-
munitária da leitura, ampliando a esfera de contato social e os horizontes
culturais do leitor.

Não é apenas um fator de etiquetar um conceito no texto literário, mas


sim estabelecer um diálogo entre a teoria proposta, o escrito, a realidade social
e o leitor. A interpretação vai sendo tecida considerando esses referentes, é nes-
se aspecto que o Realismo Maravilhoso se difere das outras formas de insólito.
A história das crianças que plantaram um rio (2013) não pode ser deno-
minada de Realismo Mágico, pois o enredo proposto, embora seja carregado
dessa magia do lugar, está mais ligado ao imaginário amazônico como efeito
estético desse espaço e não se assemelha a um conto de fadas. Referente a essa
proposição, Chiampi (2015, p. 47) alega:

Qualquer similaridade entre a arte e a magia fundamentada na relação gno-


seológica sujeito-objeto, não basta para definir uma modalidade de discurso.
A razão mais óbvia é que o ato de criação poética é um mistério insondá-
vel (ainda que não haja mistérios na linguagem), tanto quanto as próprias
origens da linguagem, à Poética não compete a descrição do ato da criação
verbal. Sendo ambas, magia e criação poética, fenômenos demasiadamente
complexos e de difícil estruturação, qualquer paralelo entre o modo de co-
nhecimento, intenção ou ritual mágico com a poesia é inoperante.

Nessa linha de raciocínio, quando ocorre a descrição da cultura de um


povo, não há necessidade de apropriar-se da ideia de magia. Sobretudo na
Amazônia, entende-se que “[…] é por intermédio dessa espécie de sfumato
existencial que o homem teogônico da Amazônia resgata para seu mundo de
rios e florestas o sentido original de uma poesia da existência” (LOUREIRO,

124
2015, p. 95). Nesse panorama, o evento insólito, em especial vislumbrado na
tessitura da narrativa, consiste quando a avó conta a história das crianças que
plantaram um rio para o menino (LEITE, 2013, p. 67; 69-70; 75):

Houve uma noite, meu filho, que levaram o rio embora [...]. Na tarde de
uma noite, nas margens do vazio do rio, não se sabe de onde, apareceram
umas crianças. A noite já ia alta, toda a gente já estava dormindo. Era crian-
ça de todo o lugar da Terra. Elas vieram. Olharam para o céu e cantaram
uma canção [...]. Relâmpagos em silêncio acenderam a escuridão da noite.
As crianças, todas juntas abriram as mãos. A chuva enfim, veio viva [...].
Chegando lá meu filho as crianças que tinham a chuva em suas mãos fi-
zeram dela semente e lançaram as suas águas no chão da sombra do rio.
Aqueles meninos e meninas, meu filho, plantaram um novo rio, sonharam
um novo mundo, semearam uma nova história. [...] Quando o dia nasceu,
meu filho, o rio estava aqui, de volta, vizinho da gente, respirando lá fora,
perto da nossa casa [...], o nosso rio meu filho, as nossas histórias […].

Nesse excerto, percebemos que não houve hesitação como deve ocorrer
no Fantástico. Ainda sobre essa modalidade, Chiampi (2015, p. 53) declara:

[…] o ponto chave para a definição de fantástico é dado pelo princípio psi-
cológico que lhe garante a percepção do estético: a fantasticidade é, funda-
mentalmente, um modo de produzir no leitor uma inquietação física (medo
e variantes).

A história do rio foi encarada como um relato comum, percebida


com a máxima naturalidade pelo menino. Nesse âmbito, Chiampi (2015,
p. 135) nos apresenta a forma discursiva do Realismo Maravilhoso que se
relaciona diretamente com a história da avó:

É uma inclinação unânime no discurso crítico hispano-americano justapor


dois critérios para avaliar o processo de renovação ficcional dos últimos
quarenta anos. Um deles, da ordem temática, é o da representatividade, ou
seja, a capacidade do romance de expressar um espaço cultural, uma socie-
dade, uma problemática histórica, com uma perspectiva não documental,
mas integradora das várias faces do real.

125
O Realismo Maravilhoso, assim, alude ao verossímil, o natural unindo-se
ao evento insólito, sendo esta realidade parte do cotidiano ribeirinho, uma re-
presentação desse povo por vezes subjugado, à margem da visibilidade canônica
dos polos de produção no centro do poder econômico do Brasil. Dessa forma,
devido ao frequente problema de circulação dessas obras, circunscritos, primor-
dialmente, na falta de patrocínio, pouco são apreciadas e analisadas pelo círculo
de críticos literários. Acrescenta-se as considerações acerca do destaque no Re-
alismo Maravilhoso para esta análise, nas quais os teóricos aludem: “[...] o mais
importante a ser destacado nessa modalidade é a diversidade cultural fundida na
nossa vida e literatura” (MAZZUTTI; MITIDIERI, 2015, p. 25).

Frente à poesia e à estética presente na Amazônia, Loureiro (2015, p.


99) destaca, entre outras formas, a seguinte variante como:

um conjunto de relações culturais com o mundo, reguladas pelo poético


que emana do devaneio do imaginário em liberdade e cuja mediação é feita
por meio das simbolizações estéticas configuradas na mitologia, na arte, na
visualidade amazônica.

Uma experiência fundida ao homem ribeirinho que se depara com a


imensidão dos rios, das florestas e sem uma explicação aceitável. Diante dessa
imensidão, o homem sente a necessidade de as histórias serem um apelo à
sobrevivência nesse espaço.
O desfecho da narrativa se dá com esse questionamento: “Por onde será
que andam as crianças da minha avó?” (LEITE. 2013, p. 81). Essa pergunta
revela uma representação urgente de uma produção periférica pouco apreciada
na sociedade, mas expressiva, pois é engendrada em sua constituição marcas da
realidade sociocultural da cultura ribeirinha, que essa modalidade do Realismo
Maravilhoso representa.

Considerações

O autor Daniel da Rocha Leite representa vozes locais, de um povo


e uma produção esquecida, com baixa ou pouca circulação literária cultural.

126
Entretanto, por meio dessa análise foi possível estabelecer um olhar sobre o
discurso literário estético da obra A história das crianças que plantaram um rio
(2013). Além disso, realizou-se um diálogo direto com a caracterização do
Realismo Maravilhoso, essa categoria do insólito que valoriza as culturas, in-
clusive a cultura Amazônica. Já que de forma tão particular concebeu em sua
ficção imagens do espaço ribeirinho, com o rio em foco, capaz de figurar a
temporalização de seu povo.
A história das crianças que plantaram um rio (2013) representa a diversi-
dade cultural de seu povo. Os mitos e histórias presentes na realidade local são
circunscritas em universo de histórias extraordinárias que se harmonizam com
o meio em que vivem respeitando-o, ressignificando-o, pois o sobrenatural é
naturalizado por essa harmonia proveniente do homem e da natureza, do in-
sólito que revela o Realismo Maravilhoso.

REFERÊNCIAS

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jamin Sanches e Carlos gomes. Caderno Seminal Digital. ano 17, v. 16, n. 16, p.
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127
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conceituais do insólito no espaço literário sul-americano. Signo. Bahia, v. 40, n.
69, p. 21-32, jul./dez. 2015.

REUTER, Yves. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Rio de


Janeiro: Difel, 2002.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria


Clara C. Castello. São Paulo: Perspectiva, 2012.

128
PRÁTICAS DO LETRAMENTO LITERÁRIO: UMA EXPERI-
ÊNCIA ESTÉTICA EM SERINGAL, DE MIGUEL FERRANTE

Adriana de Sá Marques Cruz

A atividade de leitura deve se colocar como uma provocação,


para que o leitor, diante do texto, ou seja, dos conflitos, das
personagens, de suas experiências, de seu universo, de tudo que
lhe revela sua humanidade, possa se colocar frente a si mesmo,
na medida em que se depara com a vida do outro, ou se sente
tocado pela subjetividade alheia, considerando também a ex-
periência de leitura.
Vera Maria Tietzmann Silva

Introdução

A formação dos leitores propicia a leitura da vida e da sociedade re-


presentada pelo texto literário, amenizando o distanciamento dos estudantes
devido ao desgaste de metodologias e objetivos. Logo, ler ficção não pode estar
relacionada somente ao conhecimento da história literária e análise estrutural
de uma obra. Propiciar atividades relacionadas à leitura literária mediante às
metodologias do letramento literário torna-se imprescindível para que os es-
tudantes tenham experiências significativas acerca do contato com as obras. O
papel do professor, nesse processo de apropriação da linguagem, é fundamental
já que pode contribuir para o desenvolvimento do ser humano desde às habili-
dades cognitivas relacionadas à leitura e escrita, até à educação dos sentimen-
tos favorecendo as relações interpessoais.
Assim, o caminho para a realização dessa pesquisa foi norteado pela
inquietação ao constatar na sala de aula que os estudantes do Ensino Médio
apresentavam pouco interesse para a leitura do texto literário e desconheciam

129
obras com temáticas da Amazônia, uma vez que os leitores mais atuantes, es-
colhiam os best sellers relacionados a filmes ou séries estrangeiras.
Nessa perspectiva, buscamos nos orientar pela fundamentação teórica
de Rildo Cosson (2019a) ao explicitar acerca da metodologia da sequência
expandida como um processo para a efetivação do letramento literário, que vai
além de uma atribuição de notas ou deleite. Mediante ao estudo investigativo,
visamos depreender de que modo as impressões de leitura se tornam elementos
geradores de sentido e ressignificação de saberes para os estudantes.
O fomento à leitura de uma obra de expressão amazônica viabiliza aos
receptores saberes outrora desconhecidos, mas que fazem parte da história de
seus antepassados. Sob esse prisma, proporcionar aos estudantes do 1º ano
do Ensino Médio a interação e a apropriação da cultura amazônica a fim de
vivenciarem uma experiência estética-poetizante a partir da leitura da obra
Seringal (2007), de Miguel Jeronymo Ferrante foi o nosso escopo principal.
É mediante à inserção do leitor no discurso poético do imaginário ama-
zônico que ocorre a transformação do real, uma vez que há a contemplação
nas descrições de um ambiente circunscrito de significações intrínsecas à ex-
periência literária. Esse reconhecimento permeia-se pelas reflexões acerca das
diversidades culturais, dos sentimentos de pertencimento, mas, sobretudo, por
meio dos discursos literários que abordam as injustiças ocorridas no período
dos seringais e perduram até a contemporaneidade.
Dessarte, depreendemos que o foco na concepção do letramento literá-
rio denota sua relevância no ambiente escolar e nas pesquisas acadêmicas de-
vido a sua peculiaridade na construção de um leitor proficiente. Nesse prisma,
o trajeto investigativo direcionou-se para a aplicação de estratégias de leituras
diferenciadas, a partir das impressões proporcionadas pelo contato com os ele-
mentos constitutivos da obra que visam ampliação dos saberes diversos.

O Letramento literário e a sequência expandida: estratégias para leitura e


compreensão do texto literário, segundo Rildo Cosson

Na realização da leitura de um texto literário o que deve ser apresentado


não são os sentimentos gerados pela experiência estética, mas sim a diversidade

130
de sentidos produzidos mediante os percursos delineados pelo discurso literá-
rio em meio a um espaço de múltiplas possibilidades de impressões de leitu-
ra. A ressignificação extraída dos conteúdos apresentados no texto é capaz de
possibilitar a autonomia, a autocrítica e a formação de conceitos importantes
para a tomada de decisões, pois serve como uma ligação entre os saberes e a
liberdade de expressão do eu com o mundo.
O ato de ler é “um processo de compartilhamento, uma competência
social” (COSSON, 2019b, p. 36), uma vez que favorece a ligação entre passado
e presente com os indivíduos de uma sociedade representados em cada mo-
mento. São experiências significativas construídas por intermédio do contato
com as palavras.
A escola é o lugar onde os estudantes têm a oportunidade de, não so-
mente, aprender a decodificar os símbolos linguísticos, mas também gerar sen-
tidos em cada leitura e escrita realizadas. Um dos primordiais objetivos da
leitura de textos literários em sala de aula é possibilitar o contato do estudante
com a obra de ficção mediante à imersão dos saberes apresentados a fim de
relacioná-los à realidade.
As diversas leituras propiciam a construção ou reconstrução de concei-
tos sob novas perspectivas acerca dos relacionamentos que se tornam eviden-
tes nos sentidos apresentados em cada obra de ficção, uma vez que, segundo
Oberg (2014, 204):

A literatura é uma forma cultural diferenciada e única; é compreensão, inda-


gação, reflexão, construção e desconstrução de significados, que exige atuações
específicas por parte do leitor na sua apropriação – ao contrário de outras
formas textuais calcadas na univocidade e na transparência, o signo literário
alimenta-se da ambiguidade, da opacidade, da plurissignificação [...].

Posto isso, a literatura é um conhecimento imprescindível na formação


do leitor, pois contribui significativamente para o processo do desenvolvimen-
to integral dos estudantes, uma vez que oferece encontros peculiares com a
linguagem. É uma interação entre leitor e palavra que em nenhum outro lugar
ocorre. Esses momentos são propícios para ativar a capacidade de criatividade,

131
de reconhecimento do eu e do mundo. São discursos que não surgem no va-
zio, mas representam a constituição de características peculiares e significativas
para a construção de cidadãos mais críticos, autônomos e participativos.
Infelizmente, em muitos casos, devido a diversos fatores “a literatura
não está sendo ensinada para garantir a função essencial de construir e recons-
truir a palavra que nos humaniza” (COSSON, 2019a, p. 23). Os estudos literá-
rios têm sofrido transformações e um apagamento gradativo ao ser suprimido
o letramento literário no ambiente escolar. Em vista disso, o lugar da literatura
nos currículos precisa ser revisto e considerado igualmente aos múltiplos textos
que fazem parte das áreas de conhecimento.
É preciso compreender que a literatura não tem função utilitária,
pois vai muito além de apresentar informações relacionadas a uma data
comemorativa ou a uma mensagem moral, ela tem “o exercício da função
formativa que permite ao homem o conhecimento do mundo e dos seres ou
da função psicológica que pode prover a necessidade de fantasia universal do
homem” (ZAPPONE, 2021, p. 607).
A experiência literária, lograda pelo contato com as palavras que expressam
um mundo a ser explorado e vivenciado, ultrapassa barreiras impostas por espaços
e tempos atuais. É o encontro entre o passado e o presente propiciadores para o
alargamento e o entendimento das diversidades do ser humano e do mundo. A
finalidade desses textos é “identificar conteúdos expressos de maneira indireta ou
oblíqua; trazer as informações (estéticas, culturais, históricas) que permitem de-
volver a uma metáfora morta o poder de uma metáfora viva.” ( JOUVE, 2012, p.
132). É a imersão na palavra que o texto literário se configura em suas múltiplas
faces e complexidade sendo desvendadas aos poucos mediante as relações entre
compreender o discurso literário e o viver, pois, segundo Zulberman (2009, p.33)

[...] a obra de ficção avulta como o modelo por excelência da leitura. Sendo
uma imagem simbólica do mundo que se deseja conhecer, ela nunca se dá
de maneira completa e fechada; ao contrário, sua estrutura, marcada pelos
vazios e pelo inacabamento das situações e das figuras propostas, reclama a
intervenção de um leitor.

132
É no momento dessa conversa contextual que são adquiridos os
sentidos, consequentemente o aprimoramento de saberes condizentes
à solidez de uma formação que requer não somente prazer, mas esforços
imprescindíveis para o desenvolvimento de habilidades e competências em
suas variadas facetas. Conforme afirma Cosson (2021, p. 45), a apresentação
da literatura na escola ainda é

separada do ensino do ensino da língua materna tanto na leitura quanto na


escrita, a literatura é insulada como uma prática de fruição entendida como
leitura de prazer. Nessa condição, a leitura dos textos literários perde uma
função formativa própria e passa a ser simplesmente matéria de deleite, um
momento de distensão e diversão entre os saberes que realmente importa
ensinar, [...].

Nessa perspectiva, o estudo da literatura deve ir além de memorizar


características das escolas literárias, apresentar os elementos da narrativa, uma
vez que seu objetivo primordial é a formação do leitor literário, ou seja, pro-
porcionar o letramento da literariedade do estudante ao apropriar-se do seu
direito à literatura. É a interação com a palavra e o outro que a experiência
literária se torna efetivamente promissora de sentidos.
Consequentemente, o letramento literário por ser considerado como
apropriação de sentidos, mesmo sendo um processo individual, não se con-
figura totalmente indissociável do contato com o outro já que perpassa por
relações sociais. A literatura perpassa pelo encontro da palavra promovendo
interação e ressignificação sem fronteiras entre espaços e tempos do passado,
presente e futuro.
Rildo Cosson (2019a) apresenta em sua obra Letramento literário: teoria
e prática a sequência básica e a sequência expandida como métodos para au-
xiliar no percurso da aquisição das competências e habilidades voltadas para a
literatura. São estratégias pertinentes que conduzem o estudante à leitura da
obra literária com um foco diferenciado, observando a constituição das cate-
gorias narrativas, das temáticas, da linguagem que conduzem à compreensão e
interpretação global da obra.

133
Assim, as etapas da sequência expandida são uma possibilidade de pro-
piciar aos estudantes um trajeto mais significativo para a compreensão da li-
terariedade e, de preferência, realizado no ambiente escolar, onde a literatura
deveria ter o seu lugar como objeto de conhecimento.
Abordaremos o passo a passo da sequência expandida que foi utilizada
na aplicação de nossa pesquisa com alunos do 1º ano do ensino médio. Como
afirma Cosson (2019a) “a sequência expandida vem deixar mais evidente as ar-
ticulações que propomos entre experiência, saber e educação literários inscritos
no horizonte desse letramento na escola” (COSSON, 2019a, p. 76).
Na motivação, a primeira etapa, o professor preparará uma atividade
para inserir os estudantes na obra que será lida e em seus diversos contex-
tos, de maneira a conduzi-los a “refletir sobre as relações que se estabelecem
nesses ambientes e as transformações que trazem para a vida social e pessoal”
(COSSON, 2019a, p. 78). Sempre destacando a importância de atividades que
valorizem muito mais a obra para não ocorrer o afastamento do texto literário.
A segunda estratégia é denominada introdução que consiste em apre-
sentar o autor e a obra de maneira sucinta, pois não há necessidade de dispen-
sar muito tempo para esses aspectos. Dessa forma, Cosson (2019a) sugere três
momentos distintos para realizar a motivação: a entrada temática – compreen-
de o acesso à obra por meio de um tema relacionado à realidade do estudante;
o aproveitamento do acervo da biblioteca – desperta a atenção para os aspectos
da obra: conteúdo, imagem de outros leitores e situações de divulgação; leitura
das primeiras páginas na sala de aula – perpassa pelos prefácios, orelhas, dedi-
catórias, apresentação das personagens que aparecem no início do texto.
O terceiro passo é a leitura propriamente dita que, se possível, deve ser
realizada fora da sala de aula, por isso o planejamento do docente é muito im-
portante nesse momento, ao estabelecer períodos com términos estabelecidos
em conjunto com a turma. No decorrer da leitura, o autor sugere a organização
de intervalos para o engrandecimento dos aspectos significativos da obra. Es-
ses intervalos podem acontecer mediante a leitura de uma música, de um conto
ou de uma pintura com o escopo de estabelecerem diálogos entre a obra e os
textos com temáticas semelhantes.

134
Na sequência, ocorrerá a primeira interpretação - o registro das impres-
sões da leitura que está sendo realizada. Esse momento remete ao entendi-
mento geral da obra a fim de conduzir o estudante à reflexão sobre o título, os
efeitos de sentido depreendidos no primeiro contato com a linguagem literá-
ria. É o momento de compartilhar os pensamentos acerca das personagens, do
espaço, da linguagem, mas sem limitações, mesmo que, em alguns momentos
haja a interferência do docente para direcionar o estudante em um enten-
dimento com menos incoerências, a impressão de leitura de cada estudante
deve ser considerada em seus aspectos relevantes. Assim, o autor destaca que a
primeira interpretação “busca entrever na apreciação feita pelo aluno, ou seja,
o valor do texto do aluno está na capacidade de compreender a obra e não em
julgá-la de modo crítico” (COSSON, 2019a, p. 85). Uma das formas de re-
gistrar essa primeira interpretação pode ser por meio de entrevistas informais
ou formais realizadas em duplas e, posteriormente, redigidas em forma de um
texto, podendo ser um ensaio.
O quinto momento de apreensão da obra consiste na contextualização
com o objetivo de conhecer alguns aspectos significativos para a construção
de um texto literário. Nesse sentido, Cosson (2019a) sugere sete contextuali-
zações que podem auxiliar a compreensão da obra, são elas: Contextualização
Teórica, Contextualização Histórica, Contextualização Estilística, Contextu-
alização Poética, Contextualização Crítica, Contextualização Presentificadora,
Contextualização Temática.
Todas essas contextualizações foram indicadas pelo autor para pro-
piciar o aprofundamento da compreensão da obra literária, mas que podem
ser modificadas, acrescentadas conforme os objetivos do docente. No entanto,
nesse percurso, é imprescindível que se observem algumas diretrizes para a efe-
tivação do letramento literário, dentre elas, o autor enfatiza que “não pode con-
siderar a contextualização algo externo ao texto, pois é uma maneira de ir mais
longe na leitura do texto, de ampliar horizonte de leitura de forma consciente
e consistente com os objetivos do letramento literário na escola” (COSSON,
2019a, p. 90). Dessa forma, para registrar a ampliação dos horizontes de leitu-

135
ra, a produção de texto se torna fundamental para confrontar com a segunda
interpretação, que deve ser obrigatória nesse processo.
O penúltimo passo é intitulado como segunda interpretação e consiste
em aprofundar um elemento ou aspecto específico da obra. Nesse momento, se
estabelece um vínculo entre a contextualização e a segunda interpretação e pode
ser realizada de forma direta ou indireta, mas sempre em busca de aprimorar os
horizontes de leitura e compartilhá-los a partir de um texto oral ou escrito.
Vale salientar a diferença entre a primeira e a segunda interpretação,
sendo que uma busca propiciar o encontro do leitor com o texto literário, en-
quanto a outra consiste na partilha das impressões de leitura, momento cru-
cial para a efetivação do letramento literário. É mediante o compartilhamento
das interpretações acerca da obra que são revelados aspectos importantes, tais
como, a abrangência do texto literário, pois não se exaure devido a sua renova-
ção a cada leitura.
Por fim, o sétimo passo é conceituado como expansão e visa evidenciar as
intertextualidades articuladas pelo autor no momento da escrita, que perpassam
pelos contextos atuais ou anteriores à sua publicação. Entretanto, esse momento
somente ocorrerá de forma significativa se o estudante apresentar um repertó-
rio contextualizado, pois se deve estabelecer relações entre distintos textos. Vale
salientar que o registro não pode ser esquecido no processo de expansão. E esta
pode ser um passo para o recomeço da aplicação da sequência expandida.
Diante dessa descrição da sequência expandida, preconizada pelo autor
Rildo Cosson, na sua obra Letramento literário: teoria e prática (2019a), ressal-
tamos que o intento não fora engessar o processo de apreensão de um texto
literário, mas apresentar possibilidades para a construção de sentidos por meio
das sete sugestões apontadas que permitem criações e adaptações necessárias em
cada contexto escolar. São percursos exequíveis para a consumação do letramen-
to literário com significância tanto para os estudantes quanto para o docente.
Dessa forma, Cosson (2019a) enfatiza que “é preciso confiar na força
do texto literário e na capacidade da leitura de nossos alunos. É na experiên-
cia da leitura, e não nas informações dos manuais, que reside o saber e o sabor
da literatura” (COSSON, 2019a, p. 107). Por isso, não se pode negligenciar

136
a importância do texto literário no ambiente escolar, sendo o dever da escola
propiciar a aprendizagem da literariedade e a ampliação das impressões de
leitura mediante métodos e estratégias significativas. E, sempre agregar a
leitura do texto literário com a escrita – que consiste em apresentar o ama-
durecimento do leitor a cada obra lida.

Vivências estéticas-literárias em Seringal, de Miguel Ferrante - possibilida-


des para o letramento literário

O romance Seringal (2007), retrata a trajetória de Toinho, um adoles-


cente que, de forma abrupta, perde seu pai devido ao ambiente de trabalho
hostil e precisa sair de seu lugar de origem para morar em outro seringal. Logo,
é deslocado para o seringal Santa Rita e conhece o seu padrinho – coronel
Fábio Alencar. A princípio, sua vida era muito tranquila. Ajudava em algumas
atividades, mas boa parte do tempo, vivia solto na mata.
E, em meio às andanças pelo seringal, conheceu a linda jovem Pau-
la, por quem se apaixonou à primeira vista. Dentre os vários acontecimentos,
destaca-se, como o ápice de todo o desenrolar da narrativa, o relato do estupro
de Paula realizado por Carlinhos, afilhado do coronel Fábio. É a partir desse
ato violento que Toinho desperta sentimentos outrora adormecidos e inicia
questionamentos sobre sua vida naquele lugar. Concomitantemente, o menino
conhece o ambiente marcado por violentas paixões, por injustiças e crimes. Era
um turbilhão de pensamentos negativos que lhe atormentavam.
Assim, os anseios apresentados por Toinho, incitaram-nos à problemá-
tica de como a construção desse elemento ficcional pode concretizar o pro-
cesso de letramento literário. São os embates com os desejos e angústias da
personagem que o leitor se reconhece, alinhando-os à identificação de receios
ocultos. Por conseguinte, são as intenções do texto literário, ligadas às emoções
do leitor que suscitam um processo de reconhecimento. Sendo todo esse pro-
cesso denominado letramento literário.
Dessa forma, ao realizarmos essa pesquisa, buscamos apresentar aos
estudantes as estratégias de leitura preconizadas por Rildo Cosson (2019a)

137
denominada sequência expandida, a fim de propiciar um novo olhar acerca
da literatura, uma vez que havia na sala de aula uma rejeição de boa parte dos
alunos, por não apreciarem a leitura de obras ficcionais devido às experiências
frustrantes do preenchimento de questionários que não contribuíam para a
compreensão da obra.
O local da pesquisa foi em uma escola da rede estadual na cidade de
Porto Velho – RO. O acesso aos participantes deu-se pelo consentimento e
ciência do projeto da Direção e Coordenação da Escola, bem como a ciência
e o consentimento dos participantes. Os sujeitos da pesquisa foram alunos do
1º ano, num total de 40 alunos, com coleta totalizando 10 alunos, que apresen-
tavam maior idade. A escolha por esse grupo deu-se pela aproximação com a
turma e por atuar como professora.
A obra escolhida para aplicar o letramento literário dialoga com as
reflexões, os espaços e a convivência dos estudantes em sua comunidade.
Os instrumentos de coleta de dados foram mediante às rodas de conversa,
os questionários e a solicitação de produção de texto analítico; com liber-
dade da participação e contribuição com a pesquisa. A coleta de dados foi
realizada por meio de produções individuais e coletivas dialogadas com o
romance Seringal (2007).
Por fim, a análise do material coletado foi realizada com leitura, in-
terpretação, comparações e reflexões por meio de estratégias da sequência
expandida e da teoria do letramento literário, preconizados por Rildo Cos-
son (2019a). Assim, no decorrer de quinze dias, elaboramos práticas de
leitura e escrita condizentes com os processos da sequência expandida a
fim de proporcionar uma experiência estética-literária por meio da leitura
da obra Seringal (2007).
No primeiro dia, realizamos a motivação que consistiu em um diálo-
go sobre a temática da obra. Questionamos se os estudantes tinham paren-
tes que haviam trabalhado em seringais na Amazônia; se já haviam ouvido
histórias sobre esse período e solicitamos uma pesquisa para preencher um
questionário acerca das movimentações, culturas e desafios de um seringal,
conforme descrito abaixo:

138
1º QUESTIONÁRIO: (Motivação para a leitura do livro)
PESQUISA SOBRE O SERINGAL

1) Quais são as características de um seringal? Descreva-as:


2) Como eram as condições das pessoas que trabalhavam em um seringal?
3) Quais eram as funções exercidas em um seringal?
4) O que faziam as mulheres em um seringal?
5) Qual era a faixa etária que um seringueiro vivia no seringal? Por quê?
6) Quais tipos de doenças eram mais comuns no seringal?

A aula seguinte teve início com a leitura das pesquisas e discussão


acerca das dificuldades enfrentadas por aquela sociedade tão subjugada, mas
persistente e trabalhadora. Em seguida, apresentamos a obra Seringal (2007)
com seus paratextos: capa, contracapa, orelha/aba, dedicatória, prefácio), era o
momento da introdução. Então conversamos acerca das primeiras impressões
relacionadas ao prefácio escrito por Armando Nogueira.
O próximo encontro foi destinado à leitura. iniciamos com a divisão
dos 24 capítulos de Seringal (2007), conforme a quantidade de encontros que
teríamos, juntamente às atividades de intervalos e escrita das impressões de lei-
tura. Após lermos em sala de aula os capítulos I ao III, foi o momento de troca
de ideias sobre o contato inicial com as personagens ao destacarem, em forma
de escrita, como se daria a construção de cada uma. Assim, ocorreu a primeira
interpretação - apreensão global da obra. Eles responderam, individualmente,
o questionário que tratava das expectativas em relação ao título da obra e ao
estranhamento das atitudes das personagens no Capítulo III denominado “As
lamparinas estão acesas”, descrição do velório de Zé Leite, pai de Toinho.

2º QUESTIONÁRIO: (Primeiro intervalo de leitura do livro)


IMPRESSÕES DE LEITURA DOS CAPÍTULOS I AO III

1) Qual a temática dos três capítulos?


2) Ao ler o título Seringal, o que você esperava do livro? A primeira leitura
atendeu as suas expectativas? Por quê?
3) Descreva as impressões das seguintes personagens:

139
a) Raimundão: b) Toinho: c) Coronel Fábio:
4) Qual a sua opinião acerca do Capítulo III denominado “As lamparinas
estão acesas”? Você achou estranha ou normal aquela atitude? Por quê?

Na aula seguinte, os estudantes realizaram a troca das experiências lite-


rárias resultantes da leitura dos primeiros capítulos, ao responder o 3º Ques-
tionário (Troca da experiência estética-poetizante) - Compartilhando as im-
pressões de leitura com a seguinte proposta: Elabore um texto apresentando,
por meio das respostas coletadas na entrevista com o colega de classe, seme-
lhanças e diferenças acerca de suas impressões e do entrevistado sobre a leitura
dos primeiros capítulos.” Momento propício para transformar o ato individual
e solitário de ler o texto literário em uma atividade coletiva e solidária, con-
forme preconiza Cosson (2019a). Após o compartilhamento das respostas do
questionário anterior, os estudantes analisaram, compararam suas impressões
de leitura e expectativas em relação ao Seringal (2007) e relataram, em forma
de texto, as analogias e diferenças relacionadas às respostas.
Os estudantes ao compartilharem as impressões da leitura dos primei-
ros capítulos demonstraram o estranhamento com relação à linguagem, pois
foi um desafio, devido à existência de vocábulos sobre o espaço amazônico,
bem como a descrição de eventos peculiares daquela região. Dentre elas se
destaca o Capítulo III que causou estranhamento aos estudantes quando le-
ram sobre o velório da personagem Zé Leite. Nesse sentido, Zappone (2021,
p. 607) retrata que

Sem o desenvolvimento de processos cognitivos que levem à realização de


inferências, comparações e estabelecimento de relações entre o mundo, os
sentimentos, as ideias, os personagens, as ações presentes no universo fic-
cional e o mundo e a vivência dos leitores reais, a leitura literária esvazia-se
no espaço escolar.

Tendo em vista que os primeiros capítulos trouxeram a descrição do es-


paço e relações entre as personagens do seringal, convidamos um professor do
componente curricular de História para realizar a contextualização histórica

140
do período do I e II Ciclo da Borracha na Amazônia. Os estudantes realizaram
diálogos significativos entre a história e a ficção, uma vez que havia relatos e
descrições representados na obra de forma análoga às explanações do docente.
Nos encontros seguintes, demos continuidade à leitura da obra, sepa-
rando um tempo, no decorrer das aulas, para realizar a leitura e, em outros
momentos, em casa. Assim, após um tempo da leitura solitária, novamente nos
reportamos ao segundo intervalo que tinha como escopo responder à questão
acerca do itinerário de construção da personagem Toinho – apresentado no
4º Questionário: (Segundo intervalo da leitura do livro) - Expectativas sobre
a personagem Toinho: “Após a leitura dos capítulos IV ao IX, descreva em
um parágrafo, quais são as expectativas para a personagem Toinho diante das
dificuldades apresentadas.”
Em continuidade, na próxima atividade solicitamos a escrita de um pa-
rágrafo para apresentar as expectativas sobre Toinho diante das dificuldades
sofridas pela personagem. Nesse momento, os estudantes já tinham realizado
a leitura dos capítulos IV ao IX. Muitos estudantes acreditavam em um futuro
promissor para Toinho, uma vez que “algumas obras apontam, com efeito, para
dimensões fundamentais do ser humano, às quais, por definição, somos sempre
sensíveis.” ( JOUVE, 2012, p.123). A sensibilidade e esperança de dias melho-
res, mesmo diante de uma realidade hostil e repleta de injustiças foram des-
taque nas produções dos estudantes, dentre elas destacou-se o seguinte texto:

Diante de todas as dificuldades eu acho que Toinho consegue superar e até


mesmo por acontecer essas coisas possa realizar seu sonho de conhecer a
cidade e levar junto Paula, e mas antes disso ele talvez possa ajudar a Paula
a tentar esquecer o estupro que sofreu, seu Cazuza enche Toinho de alegria,
por dizer como é a cidade e o mar, Toinho tenta... Mas ao lembrar que irá
diariamente tomar esporão, palmadas da professora, pensa em desistir disso
tudo. Assim eu tenho a expectativa que Toinho consiga superar todos esses
problemas e possa conhecer a cidade, fique com quem gosta e tenha um
bom estudo (ESTUDANTE E).

141
A análise do Estudante E reverbera como a obra literária pode envolver
o leitor num mundo ficcional que propicia a avaliação, criticidade de aspectos
consideráveis para uma vida promissora, pois na arte da palavra “o leitor é sem-
pre levado a um trabalho intelectual para chegar à ideia, que nunca é óbvia: ela
só pode ser inferida daquilo que se lê.” ( JOUVE, 2012, p.164) Nesse sentido,
o estudante ao participar ativamente da leitura se vê impelido a buscar novas
alternativas de construção do protagonista de maneira que o final feliz seja a
melhor solução tanto no meio ficcional quanto na realidade.
Para finalizar a aplicação do projeto, foram realizadas leituras coletivas e
individuais durante as aulas de língua portuguesa. Com o intuito de trazer para
o debate situações do cotidiano representadas em Seringal (2007), trabalhamos
com a contextualização presentificadora, buscando questionar “o que é que a
obra exprime sobre o humano, assinalando o que era esperado na época, iné-
dito à época e novo ainda hoje.” ( JOUVE, 2012, p.137) Assim, os estudantes
expuseram oralmente, como também por escrito suas inferências acerca do
passado representado que repercutiu no presente.
Os confrontos, a ativação de sentimentos diversos, a frustração, a supe-
ração e os sonhos rememorados foram retratados no decorrer da última ati-
vidade realizada com os dez estudantes do primeiro ano do ensino médio.
Nesse momento, eles tiveram a oportunidade de relacionar a atualidade com o
passado que, infelizmente, ainda reverbera situações vividas na sociedade con-
temporânea. Temáticas como injustiças, traições, preconceitos, explorações são
retratados com angústia e pesar pelos estudantes ao revelarem suas impressões
de leitura na obra Seringal (2007).
As experiências vivenciadas alinham-se às construções das personagens,
dos espaços resultando em uma nova forma de olhar o ser humano e o mundo
que o cerca. Uma vez que, de acordo com Rosing (2014, p. 210):

A significação da obra é feita pelo leitor. Nesse sentido, valoriza-se o papel


do leitor na transformação de um objeto num ser vivo, capaz de estimular a
produção de significados os mais diferentes, superficiais e profundos, onde
se destaca o papel do leitor que passa a ser o grande protagonista da ação.

142
A obra Seringal (2007) apresenta um enredo de uma época desconheci-
da por boa parte dos estudantes em razão de não ser abordada em sala de aula.
Geralmente eles têm contato com esse período somente no terceiro ano do
ensino médio ao estudarem as disciplinas História e Geografia de Rondônia
ou por meio dos relatos de seus parentes que trabalharam no período do Ciclo
da Borracha. No entanto, não são os dados históricos que farão a diferença e
trarão uma nova realidade aos leitores. Conhecer o contexto é importante para
situar o leitor no espaço e no tempo descrito na narrativa, mas o que realmente
toca são as ações e reações de cada personagem ao vivenciar momentos de
dificuldades e superações.
A história da personagem protagonista se destacou em meio a várias
outras, devido os estudantes se identificarem com o menino sonhador, cheio
de esperança para um futuro promissor, pois “os grandes textos são aqueles que
nos apresentam uma metáfora de nossa própria vida, permitindo-nos nos re-
conhecer em alguns componentes – gerais e transculturais – da representação.”
( JOUVE, 2012, p. 124). Nesse sentido, cada estudante destacou sua experi-
ência literária. Alguns associaram a vida de Toinho com suas próprias vidas,
outros reivindicaram um final cheio de esperança. Sendo então, socializadas as
múltiplas provocações ativadas pelo texto.
Na atividade de intervalo, antes de encerrar a leitura da história, so-
licitamos aos estudantes que comentassem sobre as primeiras impressões da
personagem Toinho e quais seriam as expectativas para o final do protagonis-
ta. Enquanto alguns estudantes acreditavam que o conformismo é a realidade
mais propensa aos seringueiros, outros destacaram as dificuldades de Toinho e
almejavam um futuro diferenciado, com menos sofrimento.
Seringal retrata questões conflituosas e desafiadoras que geraram inú-
meros embates entre leitor e personagens. São essas adversidades que contri-
buem para despertar o interesse de continuar com a leitura para confirmar suas
expectativas, uma vez que “se a hipótese for comprovada, se saberá mais sobre
alguns aspectos do objeto analisado e sobre o caráter operatório de determina-
da maneira de abordar o mundo.” ( JOUVE, 2012, p. 148). Foram os diversos
comentários relacionados à obra, às personagens, em especial, o Toinho, que

143
possibilitaram a construção de novos saberes e a reflexão acerca do itinerário
de cada ente da ficção
Mensagens implícitas com significações de um mundo a ser descober-
to por meio do contato com o texto literário perpassaram pelos comentários;
ponderações que não podem ser ignoradas, pois “a identificação dessas refe-
rências é fundamental para firmar ou ampliar o entendimento da história que
se está lendo.” (COSSON, 2019b, p. 59). Situações análogas à realidade dos
estudantes que proporcionam reflexões a respeito de relacionamentos abusivos
e controversos, que são retratados nas descrições do seringal.
O romance Seringal (2007) traz em seu contexto representações ex-
pressivas sobre personagens com características benéficas que buscam sempre
ajudar o outro, somando-se a personagens cheias de amargura, ganância, refle-
tindo abuso de poder em suas ações. Tendo em vista a diversidade de atributos
representados em cada ser ficcional percebe-se a imersão dos estudantes no
enredo, buscando encontrar alternativas plausíveis para amenizar a situação
daquelas personagens subjugadas. É como se cada ser exercesse uma função di-
ferenciada nas emoções, reflexões dos leitores a ponto de se revoltarem, aplau-
direm e se frustrarem com o desfecho surpreendente.

Considerações

Mediante à leitura de uma obra literária, o leitor, ao se debruçar sobre o


texto, volta o seu olhar para dentro de si mesmo e se identifica com as ações das
personagens, de tal modo que busca soluções plausíveis ao seu modo de vida.
É por meio dessa busca entre o desfecho de uma narrativa e o anseio por algo
mais próximo da realidade que se configuram os efeitos de sentido, garantindo
ao leitor a experiência estética-literária, uma vez que “[...] a literatura permi-
te que o sujeito viva o outro na linguagem, incorpore a experiência do outro
pela palavra, [...]. Todos nós construímos e reconstruímos nossa identidade
enquanto somos atravessados pelos textos. (PAULINO; COSSON, 2009,
p.69). Dessa forma, a construção de sentidos é o primordial escopo da análise
literária, tendo em vista que é a diferença significativa para os estudantes na

144
conclusão da educação básica e muito influenciarão nos contextos adversos de
suas vidas para a resolução de problemas diários. Propiciar o contato com a
obra literária nessa etapa da vida dos jovens é um direcionamento a novas pers-
pectivas que por muitas vezes, somente será promovido no ambiente escolar.
Nesse sentido, a literatura na sala de aula deve ultrapassar os estudos de
contexto histórico, biografia de autores e características de movimentos lite-
rários, pois seus objetivos vão muito além desses aspectos. É um componente
curricular imprescindível na educação básica, a fim de alavancar a construção
de sentidos por meio de uma linguagem que auxilia o estudante no confronto
com acepções, pensamentos e ideologias de um outrem.
A investigação realizada com os estudantes do 1º ano do Ensino Médio,
comprovou a importância dos estudos literários em sala de aula e, principal-
mente que sejam lidas obras completas, não somente entregue trechos para
análise. Seringal (2007), a princípio, causou estranhamento devido a linguagem
apresentar vocábulos específicos de uma determinada sociedade – os serin-
gueiros, mas ao se permitirem o embate e continuarem a leitura, os estudan-
tes puderam vivenciar uma experiência estética-literária que gerou reflexões,
novas visões, mas também frustrações, tristezas e revoltas. Esse é o principal
escopo da literatura: desconstruir para reconstruir saberes e expectativas.
Portanto, a construção de uma experiência literária consiste na troca
de sentidos, pois possibilita o encontro com as respostas aos questionamen-
tos iniciais quando houve o contato com a obra literária, como também pode
causar frustrações às expectativas, devido gerar angústia, tristeza e aversão ao
desfecho. No entanto, mesmo diante de sentimentos ruins, o prazer estético é
configurado. É o estranhamento, a experimentação de sensações que produ-
zem no leitor um contato mais aprofundando mediante à linguagem literária
arquitetada. Nesse sentido, “o que expressamos ao final da leitura de um livro
não são sentimentos, mas sim os sentidos do texto. E é esse compartilhamento
que a leitura literária ser tão significativa em uma comunidade de leitores”
(COSSON, 2019a, p.28).

145
REFERÊNCIAS

COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Con-


texto, 2019a.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. 1ª ed. São Paulo:


Contexto, 2019b.

COSSON, Rildo. Ensino de literatura sempre: três desafios hoje. In: Ensino
da literatura no contexto contemporâneo. Campinas: Mercado de Letras, 2021.

FERRANTE, Miguel Jeronymo. Seringal. 3ª ed. São Paulo: Globo, 2007.

JOUVE, Vicent. Por que estudar literatura? Trad. Marcos Bagno, Marcos Mar-
cionilo. São Paulo: Parábola, 2012.

OBERG, Maria Silva Pires. Onde estão as chaves? Considerações sobre a for-
mação do leitor e a fruição literária In: Onde está a literatura? Seus espaços,
seus leitores, seus textos, suas leituras. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
p. 202 - 209.

RÖSING, Tania Maria Kuchenbecker. Onde estão os leitores. In: Onde está a
literatura? Seus espaços, seus leitores, seus textos, suas leituras. Belo Horizon-
te: Editora UFMG, 2014. p. 210-229.

ZAPPONE, Mirian Hisae Yaegashi. Literatura nos anos iniciais do ensino


fundamental: as propostas da BNCC e a formação de leitores. In: Ensino da
literatura no contexto contemporâneo. Campinas: Mercado de Letras, 2021. p.
589-608.

ZILBERMAN, Regina. A escola e a leitura da literatura. In: Escola e leitura:


velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009. p. 17-39.

146
DO LEITO DOS RIOS AOS RIOS LITERÁRIOS – LITERA-RIOS

Elysmeire da Silva de Oliveira Pessôa


Mara Genecy Centeno Nogueira

Introdução

A presença dos rios nas narrativas literárias e, particularmente, nas narra-


tivas da/na Amazônia são registradas desde os tempos remotos, seja através dos
relatos orais, seja por meio dos diversos gêneros textuais. Assim, os rios foram
transpostos de seus leitos naturais para os leitos literários, adentrando o imagi-
nário, a memória e as narrativas produzidas no cenário amazônico. É importante
ressaltar que o fluxo aquoso destas narrativas marcadas pela presença dos rios,
navega em diferentes correntes e estilos literários, configurando o que poderia
ser chamado de literatura dos rios, que por licença poética, denominei litera-rios.
Deste modo, o presente artigo discorre acerca do conceito litera-rios,
suas origens e pressupostos teóricos, conforme apresentei na dissertação inti-
tulada “Amazonas, pátria da água: Um mergulho poético-imagético na escrita e na
memória amazônida de Thiago de Mello” (2022).
Tal conceito surge a partir do diálogo entre os aspectos literários e os
aspectos geohistóricos que configuram a Amazônia, marcada, principalmente,
pela preponderância das águas sobre os demais elementos da natureza, de modo
que a centralidade dos rios, no contexto amazônico, transpõe o real, adentrando
e mesmo inundando as narrativas literárias elaboradas acerca da região.

Amazonas, a pátria das águas: Entre rias e a configuração dos Fluvitórios

O mundo quer ser visto: antes que houvesse olhos para ver, o olho da água,
o grande olho das águas tranquilas olhava as flores que se abriam. E é nesse
reflexo — quem dirá o contrário? — que o mundo tomou, pela primeira vez,
consciência de sua beleza (BACHELARD, 1994, p. 39).

147
As águas, conforme destaca a epígrafe acima, mesmo” antes que houves-
se olhos para ver”, permitiu por meio de seus reflexos, que o mundo adquirisse
consciência de sua beleza. No caso das águas amazônicas, muito além de es-
pelhar e espalhar a beleza de seu entorno aos olhos do mundo, destaca-se pelo
profundo impacto no processo de configuração e ocupação do território ama-
zônico, dada a influência dos rios amazônicos na complexa geografia fluvial da
região e na conformação histórica das sociedades amazônicas.
Na Amazônia “pátria” e “nação” da água, as vias de acesso e locomoção
ocorrem, principalmente, através das veredas líquidas, vias aquáticas que com-
põem a bacia hidrográfica da região. Assim, por meio desse labiríntico mundo
aquático, os rios, como bem disse Leandro Tocantins (1988, p.232), são como
“caminhos que andam”, ou ainda, de acordo com Caio Prado Jr (2011, p.210),
são as “estradas líquidas”, que muitas vezes também atuam como fronteiras
naturais. Deste modo, através dos rios, ocorreu ao longo do tempo o processo
de ocupação do espaço que hoje configura a Amazônia. Pelos rios, moveram-se
os povos autóctones e também pelos rios chegaram depois os colonizadores
europeus, tal como nos apresenta Mello (2007, p.32 e 34) a seguir:

Acabo de subir e descer todo o rio Solimões, desde o seu encontro com o
Negro, bem pertinho de Manaus, até o triângulo amazônico que o Brasil
forma com o Peru e a Colômbia. A brasileira Tabatinga e a colombiana
Letícia, uma contígua à outra e, na frente delas, lá do ouro lado do rio, a
pequenina e valente Ramón Castilla peruana, já onze vezes destruída pela
força das águas que lhe carregam as terras da várzea. Foram dias e dias de
viagem, a subida contra a correnteza, numa pequena embarcação a motor
de centro. Tempo de cheia, o rio crescendo alagando a várzea, derrubando
casebres de palha e árvores enormes, as raízes querendo ainda agarrar-se à
terra. Às vezes eram horas e horas de viagem sem encontrar uma criatura
humana.
[...]
Bem ao lado do porto principal, está a desguarnecida e escura beira do rio,
aos fundos do Mercado Municipal, que serve de ponto de chegada e de
partida às embarcações dos mais diversos tipos e tamanhos que viajam par

148
os incontáveis afluentes. Paranás, igarapés e furos de quase toda a Bacia
Amazônica, uma rede fluvial de 400 mil quilômetros.
Viajam prontas a parar a qualquer instante. São os barcos “paradores”. É só
pedir, que eles param. Quando é de dia, basta acenar com um pano branco lá
do alto do barranco ou, se é tempo de cheia, com um trapo colorido balan-
çando no verde tenro da várzea coberta pela plantação de juta. Quando é de
noite, é só acender a lamparina ou focar com a lanterna. O motor – motor
de linha – sempre para.

Nos recortes apresentados acima, podemos observar a preponde-


rância das águas na configuração geohistórica da Amazônia.
Com referência à interseção entre literatura e geografia, nos
aponta Marcos Aurélio Marques em Thiago de Mello, uma poética do lu-
gar (2012), que do mesmo modo que a “literatura serve de fonte para
reflexões geográficas, para a compreensão de um determinado lugar, a
geografia pode ser uma forma de Teoria sobre o texto quando se propõe
a isto” (MARQUES, 2012, p. 74). Desta forma, considera-se pertinente
apresentar nesta análise dois conceitos advindos da geografia, os quais
tomamos por empréstimo, cientes de sua contribuição para consolidar a
particular importância dos rios no contexto amazônico. São eles os con-
ceitos de rias e fluvitórios, apresentados respectivamente pelos geógrafos
franceses Pierre Gourou (1900-1999) e por Martine Droulers (1946),
com base em suas pesquisas acerca do espaço amazônico.
O conceito de rias, elaborado por Gourou (1949, p.83), é um neo-
logismo que resulta da junção entre as palavras rios e ruas, foi construído
pelo autor, a partir de seus estudos cartográficos sobre a configuração
hídrica dos cursos fluviais de Manaus, onde apresenta as cinco princi-
pais rias de Manaus: Igarapé da Cachoeira Grande (ou São Raimundo),
Igarapé de Manaus, Igarapé do Mestre Chico, Igarapé da Cachoeirinha
(ou Educandos) e a maior de todas as rias, o Rio Negro.
Mello (1984) em Manaus, amor e memória, nos permite apreciar o con-
ceito de rias aplicado à cidade, destacando Mello (1984, p.85) que:

149
[...]. Manaus é uma cidade que nasce e vive da água, por cujos caminhos
lhe chegaram os primeiros habitantes indígenas com as suas igarités e apor-
taram as embarcações dos colonizadores europeus. Água dos seus igarapés
antigos que desapareceram. Dos igarapés que ainda cortam, mas não sepa-
ram, senão unem, as diferentes partes da cidade. Igarapé de Manaus, igarapé
dos Quarenta, igarapé do São Raimundo, igarapé do Tarumãzinho. Mas
sobretudo A das águas desse poderoso afluente do Amazonas que banha
nossa cidade, à cuja beira ela nasceu e ao qual já os índios, seus mais antigos
navegantes, deram o nome de Rio Negro.

Também verificamos a existência das rias manauaras, e seus imbrica-


dos caminhos líquidos, em Amazonas, pátria da água, pois conforme nos relata
Mello (2007, p.34):

Subo a envelhecida e arruinada balsa onde dezenas de barcos estão atraca-


dos, mas prontos para partir. A barra do rio Negro se avermelha no instante
do entardecer. A multidão de gente se atravancando: carregadores, gente
que vai viajar, vendedores ambulantes, criança que não acaba mais. Este é
um dos lugares mais poluídos de não sei se só de Manaus, talvez do mundo.
Fedor de lixo, de suor, de peixe podre, de lama. Até 1983 o ponto destes
barcos que viajam pelo interior da floresta ficava na Escadaria dos Remé-
dios, cuja igreja se ergue lá no final da rampa. [....] Ao redor e para além dos
barcos, estão as canoas, a remo de faia ou a motor de popa, dos mercadores
fluviais. O comércio é intenso: vendem-se frutas, animais, os preços são
feitos ali na hora, ao sabor das circunstâncias; os refrescos de frutas natu-
rais são vendidos em garrafas dos refrigerantes industrializados. Não falta
sequer o cafezinho fluvial.

Conforme podemos analisar no excerto acima, as rias, em Mello, pos-


suem uma peculiaridade, pois os igarapés que entrecortam Manaus atuam não
apenas como rias mas também como “rios internos” da cidade, a exemplo do
que nos apresenta a professora e pesquisadora Sônia Maria Gomes Sampaio,
em Uma escola (in) visível: memórias de professoras negras em Porto Velho no início
do século XX (2010), destacando que tal cidade à época já nascera com divisões,
havendo “uma cidade in, que surge nos pátios da ferrovia e uma cidade out, que

150
se forma além dos pátios da ferrovia” (SAMPAIO, 2010, p. 33). Enquanto a
cidade in, tem sua população inicial composta por trabalhadores estrangeiros,
a cidade out se constituía por povos originários ou migrantes de outras regiões
brasileiras. Deste modo, nas rias apresentadas em Mello (2007), os igarapés
atuam como que “rios internos“, ofertando à população de seu entorno, não
apenas caminhos de acesso aos “rios externos” à Manaus, mas também pro-
vendo-os com água, peixes e oportunizando eventuais ocupações (catraieiros,
remadores, vendedores ambulantes, carregadores).
Quanto ao conceito de Fluvitório, este se originou dos estudos em-
preendidos pela pesquisadora Martine Droulers (2017) acerca da formação
territorial da Amazônia. De acordo com Droulers (2017, p.2), o conceito surge
a partir do:

[...] paradoxo de tratar a estruturação dos territó-rios no contexto da maior


bacia hidrográfica do mundo onde todo fenômeno de territorialização é
antes de tudo fluvial e onde a oposição entre a palavra da raiz “terra” e da
terminação “rio” é particularmente acentuada. Esse jogo de construção de
palavras permite aprofundar um raciocínio geográfico a respeito do concei-
to de território que é básico na geografia. De fato, existe uma tensão entre
os processos que se referem ao termo « terra » implicando apropriação/iso-
lamento/conflito e a palavra “rio” mais fluida significando circulação/união
entre os habitantes, mesmo se ele funciona também como linha divisória.

Em sua pesquisa, a autora destaca os três principais processos na cria-


ção de territórios na região amazônica - exploração, ocupação e organização.
Buscando, a partir destes processos, evidenciar como se configurou o fazer ter-
ritó-rios na Amazônia ao longo dos últimos cinco séculos, considerando tanto
o tempo quanto o espaço, vindo a culminar no conceito que denominou Flu-
vitório. A este respeito, Droulers (2017, p.2) esclarece que:

As explorações fluviais se estenderam do século 16 até nossos dias com


grandes progressos na cartografia e no reconhecimento dos lugares; a
ocupação ribeirinha e a fundação de cidades foram também progressivas,
acompanhando os ciclos econômicos; enfim, a organização de verdadeiros

151
sistemas territoriais sempre mais integrados se fez aos poucos na medida
em que a sociedade amazônica se estruturava. A cada época, a complexidade
dos processos opera de maneira concomitante, cada vez com mais amplitu-
de e precisão.

Dessa maneira, o espaço amazônico tem se estruturado ao longo do


tempo, passando gradualmente da descoberta dos rios à conformação dos flu-
vitórios. Assim, de acordo com Droulers (2017, p. 9), a dinâmica dessa reorga-
nização territorial no espaço amazônico surge a partir:

[...] de uma “reorganização socioespacial das zonas dominadas pelos siste-


mas fluviais onde a ocupação das beiradas dos rios, está sendo modificada e
enquadrada nas operações de planejamento e zoneamento, podendo receber
a denominação de “fluvi-tórios”, termo adequado aos fenômenos de territo-
rialização particulares às bacias amazônicas onde a água “comanda a vida”.
O fluvi-tório representaria uma construção territorial que depende, antes
de tudo, das características e especificidades dos sistemas fluviais, particu-
larmente realçadas na Amazônia. Atrás da expressão figura a preocupação
da gestão dos recursos hídricos nas bacias hidrográficas vista como instru-
mento do desenvolvimento integral multissetorial das bacias e sub-bacias.
Essas territorialidades hídricas surgem como uma nova possibilidade inter-
pretativa e de intervenção, em que a água assume uma função integradora.

Buscando evidenciar tal ideia, Droulers (2017, p.3) elaborou a tabela


“Cronotemática do fazer territó-rio na Amazônia”, apresentada a seguir:

152
Tabela 1- Tabela Cronotemática do fazer territó-rio na Amazônia

Processos Lugares
Exploração Ocupação Organização
Século Emblemáticos
Expedições
fluviais Amazônia
Aldeamento dos Missões
17 oriental (Pará e
índios religiosas
Maranhão)
Rio-Mar
Cidades
Bipado-
estratégicas Oeste
Freguesia

Expedições
18 Fronteiras flu- Mato Groso
Cartográficas <<Ilha Brasil >>
viais

Guaporé
Monções
Minas
Migrantes Seringais Alto dos Rios
Naturalistas
Latifúndio – Borracha
Afluentes do
19
Amazonas
Acre
Telégrafo
Caboclos Aviamento

Estradas

Colonização Amazônia Legal


agrícola, Interflúvio,
Cobertura aérea Pan Amazônia
20
IBGE – Radam Mineração Bacia
Metropolização
Criação de
Municípios
Imagens de Urbanização Eixos Floresta/
Satélites
generalizada multimodais
Biodiversidade, Hidrovias
21
Hidrologia
Usinas Zoneamentos
Hidrelétricas ambientais Fluvitórios
Sustentabilidade
Fonte: https://journals.openedition.org/confins/12065

153
Podemos observar na tabela apresentada anteriormente, a relação es-
tabelecida ao longo dos séculos, entre o processo de exploração, ocupação e
a organização exógena do espaço amazônico. Desta forma, verificamos que
a Amazônia, a partir das primeiras expedições fluviais, tem sido revelada ao
mundo através dos registros literários que testemunham e dão conta do que se
passou ao longo do tempo em meio aos diversos processos de exploração, ocu-
pação e organização, que configurou o espaço amazônico. Constatando, que
desde as primeiras expedições fluviais nas águas amazônicas, a importância dos
rios da região é central não apenas nos processos de exploração, organização e
configuração do espaço, conforme propõe Droulers (2017), mas também nas
narrativas literárias. Assim, ao analisar tais aspectos verificou-se a possibilidade
de relacionar a cada período histórico a produção literária (real ou ficcional)
elaborada da/na Amazônia. Deste modo, a partir da adaptação da tabela cro-
notemática de Martine Droulers, apresentamos a relação entre a ocupação dos
rios, a conformação do “territó-rio” Amazônico e os registros Litera-rios.

Tabela 2 – Relação entre a ocupação dos rios e os registros Literá-rios

Lugares
Processos Obra
Organiza- Gênero
Exploração Ocupação
ção Emblemá- Literário
Século Autor
ticos

- “De Orbe
Novo De-
* Chegada cades Octo”
de Pinzón (1501)
à foz do rio
de Pietro
Amazonas
Martire
(1500)
d’Anghiera
Expedições
XVI
- “Descubri-
Marítimas e
Não houve miento del
fluviais *Navegação Relatos de
Não houve río de las
da Calha do Viagem
Amazonas Amazonas”
por Orella- (1541,1542)
na e Pizarro
de Gaspar
(1541/1542)
de Carvajal

154
Novo des-
cobrimento
do grande
Expedições
Amazônia rio das
fluviais Aldeamento
Missões oriental Relatos de Amazonas
dos indíge- (1641)
Rio-Mar religiosas (Pará e Viagem
nas
XVII Maranhão)
de Cristóbal
de Acuña

Cidades
Bispado- Oeste Muhuraida
estratégicas (1785)
Freguesia
Expedições Mato Gros- Poema
XVIII Fronteiras
cartográficas “Ilha Brasil” so épico -Henri-
fluviais que João
Monções Guaporé Wilkens
Minas
Naturalistas Scenas
Migrantes da Vida
Seringais Alto dos
Afluentes Amazônica
Borracha Rios
XIX do Amazo- Latifúndio – Contos (1886)
nas Aviamento Acre
Caboclos José Verís-
Telégrafo simo
Estradas Marajó
Colonização Amazônia
Cobertura (1947)
agrícola, Legal
aérea Pan Ama-
Mineração
XX zônia Romance Dalcídio
Interflúvio
IBGE – Jurandir
Metropoli- Criação de
Radam Bacia
zação Municípios
Ykamiabas-
Imagens de
Filhas da
Satélites Urbanização
Eixos multi- lua, mulhe-
generalizada Floresta
Biodiversi- modais res da Terra
XXI dade Hidro- Hidrovias Romance (2008)
Zoneamen-
logia
Usinas hi- tos Am- Regina
Fluvitórios
Sustentabi- drelétricas bientais Melo
lidade

Fonte: Adaptação da Tabela “Cronotemática – Fazer territó-rios “de Martine Droulers


(2017, p.3)

Na tabela 2, demonstra-se que ao longo dos processos de exploração,


ocupação e organização do espaço amazônico, houve diferentes registros lite-
rários (variando tanto no estilo, quanto nas abordagens narrativas, tendo em
comum a presença dos rios). Destacando, desta forma, a relação entre o pro-
cesso da conformação dos “fluvitórios “e a ocorrência dos registros literários

155
em meio aos processos de exploração, ocupação e organização do espaço ama-
zônico nos últimos cinco séculos.
Quantos aos aspectos literários, ou melhor, litera-rios, é possível veri-
ficar a presença dos rios nas narrativas de viagem dos séculos XVI e XVII, à
exemplo das cronísticas de Carvajal (1541-42) e Acuña (1641), apresentan-
do-nos as impressões e registros dos colonizadores europeus acerca do espa-
ço amazônico, fornecendo relatos descritivos da geografia da região, marcada
pelo imenso e desconhecido rio, até o encontro com o mar, bem como por sua
fauna, flora e por sua gente, testemunhando a importância estratégica des-
tas expedições para os colonizadores europeus (espanhóis e portugueses em
sua maioria) realizarem a navegação e mapeamento de toda a extensão do rio
Amazonas, pois ao conhecerem tais caminhos fluviais, poderiam controlar e
ocupar mais facilmente a região.
No século XVIII, o território da atual Amazônia, sob a égide do projeto
colonizador português, buscava pôr em prática a política expansionista engen-
drada pelo Marquês de Pombal, cujo objetivo era reorganizar o território, a
economia, a política indigenista nas vilas, visando não apenas obter e explorar
as riquezas naturais encontradas na região, mas também assegurar a expansão e
a ocupação portuguesa no vale amazônico, através da ampliação e demarcação
das novas fronteiras. Em meio a este contexto turbulento, marcado por confli-
tos de interesses religiosos e mercantilistas (entre a Igreja Católica e o Impé-
rio português), o militar português Henrique João Wilkens, escreve o poema
épico Muhuraida (1785), que se destaca por ser o primeiro texto poético de
estrutura épica escrito em língua Portuguesa, no território que hoje se confi-
gura como amazônico. O destaque litera-rio deste período, narra a empreitada
colonizadora dos portugueses, frente à resistência dos indígenas da etnia mura
quanto ao processo de pacificação e cristianização. Nesta narrativa, os rios am-
bientam a espacialidade da trama do poema, destacados espaços fluviais. O rio
Amazonas, é retratado ainda pelo autor, como “novo Oceano”, servido por “mil
Rios”, que recolhidos pelo Amazonas, vai “soberbo e sem reparo”, arrastando
terras e arvoredos até se precipitar no mar, Wilkens (2017, p.13).

156
No século XIX, marcado pelas expedições naturalistas percorrendo os
afluentes do Amazonas, dentre as obras literárias produzidas à época, destaca-
mos a obra “Scenas da Vida Amazônica” (1886), do jornalista, escritor, crítico
literário, José Veríssimo. De acordo com Silva (2017, p. 42) tem como lugar
a “Amazônia oitocentista, período que compreende a passagem do império
à primeira república brasileira.”, reunindo contos e esbocetos, apresentados
como um conjunto cênico voltado para dar a conhecer os simbolismos ati-
nente às culturas amazônicas (principalmente a popular). Ao longo da obra,
Veríssimo (2011), consegue nos apresentar com realismo as culturas amazôni-
cas de sua época, destacando a interação entre o homem, as forças da natureza,
particularmente a importância dos rios não apenas como espaço que ambienta
as tramas narrativas, mas como referenciais dos mitos amazônicos.
Dentre as tantas obras produzidas ao longo do século XX, acerca do
contexto amazônico, cuja temática literária se configure como narrativa lite-
ra-rio, escolhemos o romance Marajó (1947), do escritor paraense Dalcídio
Jurandir, autor de um importante conjunto de obras literárias, denominado
“Ciclo do Extremo-Norte”. Em Marajó, Jurandir (2016), articula ao universo
mítico amazônico, os vários personagens e a prodigiosa natureza do arquipé-
lago homônimo- entrecortado por um intricado labirinto de água doce (rios,
igarapés, furos) e água salgada (oceano Atlântico).
Ykamiabas, filhas da lua, mulheres da terra (2004), da escritora, poeta e
compositora amazônida, Regina Melo, é a obra escolhida para representar o
registro litera-rios do século XXI. O romance teve origem da pesquisa empre-
endida pela autora, ao longo de 12 anos, sobre as mulheres guerreira do vale do
Amazonas, é o primeiro livro da trilogia mitológica escrita por Melo, da qual
constam ainda os romances “Oceano primeiro – mar de Leite, rio da Criação”
e “A Fênix e o dragão – paixão e eterno retorno”. Além da intertextualidade
narrativa acerca da configuração do imaginário amazônico, o texto, nos apre-
senta a temática sob a perspectiva feminina.
Além dos exemplos litera-rios elencados acima, destacam-se as produ-
ções literárias de Thiago de Mello acerca da Amazônia, particularmente a obra

157
Amazonas, pátria da água (1987,1990, 2007), a qual será examinada sob o viés
litera-rio, logo à frente.
Demonstrada a relação entre a ocupação dos rios, a conformação do
territó-rio Amazônico e a produção de registros Litera-rios, apresentar-se-á
as bases teóricas deste conceito, apoiando-se principalmente nas reflexões de
Bachelard (2001, 2018), bem como na perspectiva da “aquonarrativa” proposta
por Nunes (2004).
Acerca do vasto conjunto da obra bachelardiana, a qual costuma ser
dividida em duas vertentes: a diurna e a noturna. Enquanto na obra diurna
Bachelard aborda os conceitos, atinentes à epistemologia da ciência ( relacio-
nada ao conhecimento objetivo e claro); na obra noturna o foco está voltado
para as imagens relacionadas ao universo simbólico da poesia, do devaneio,
do imaginário e do sonho, marcada por arquétipos e padrões associados aos
quatro elementos: fogo, água, terra e ar. Considerando, que iremos aprofundar
a análise do elemento água, utilizamos como fundamento, textos da vertente
noturna, destacadamente: a A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da ma-
téria (2018), e O ar e os Sonhos: ensaios sobre a imaginação do Movimento (2001).
Assim, em A água e os sonhos, Bachelard (2018, p.11) realiza um ensaio
de estética literária, cujo duplo objetivo é “determinar a substância das imagens
poéticas e a adequação das formas às matérias fundamentais”. Neste intento,
o autor analisa as relações do elemento água ao devaneio poético apresentados
nas obras literárias que examina. O autor busca ainda, distinguir e apresentar o
psiquismo hidrante, ou seja, a “participação” que é própria do pensamento das
águas. Ao longo da obra, o autor se ocupa em comprovar a existência “sob as
imagens superficiais da água, de uma série de imagens cada vez mais profun-
das, cada vez mais tenazes “(BACHELARD, 2018, p.6).
Principiando sua classificação, pelas “águas claras, as águas primaveris
e as águas correntes” consideradas pelo autor como imagens superficiais, ou
seja, aquelas “que atuam na superfície do elemento, sem deixar a imaginação
tempo para trabalhar a matéria” (BACHELARD, 2018, p. 11). Na sequência,
o autor apresenta “as águas profundas – as águas dormentes – as águas mortas”,
que são as águas dos lagos sombrios, dos pântanos, as águas imóveis evocando

158
seus mortos, ressaltando o autor, que embora possamos descobrir nas águas a
alegria e a dor, “o conto da água é o conto humano de uma água que morre”
(BACHELARD, 2018, p. 53). Ao discorrer sobre as “águas compostas”, o
autor enfatiza a capacidade da água em combinar-se com os demais elemen-
tos (BACHELARD, 2018, p.98), referindo-se também às “águas violentas”,
as quais desde os mitos primitivos, são costumeiramente vinculadas ao mar,
cuja melancolia é ativamente atroz, destoando da melancolia poesca das “águas
mortas” (BACHELARD,2018, p.184). Trata ainda do evemerismo potencial
aplicado ao elemento água, o qual permite supor “a supremacia da água das
fontes sobre as águas do Oceano” (BACHELARD, 2018, p.158), pois confor-
me prossegue o autor:

O rio, malgrado seus mil rostos, recebe um destino único; sua fonte tem a
responsabilidade e o mérito de todo o curso. A força vem da fonte. A ima-
ginação quase não leva em conta os afluentes. Ela quer que uma geografia
seja a história de um rei. O sonhador que vê passar a água evoca a origem
legendária do rio, sua fonte.

Além dos conceitos da obra As águas e os sonhos, elencados acima, des-


taca-se os chamados “ressoadores”, conforme nos apresenta Bachelard (2001,
p.5) na obra O ar e os Sonhos:

O objeto poético, devidamente dinamizado por um nome cheio de ecos,


será, a nosso ver, um bom condutor do psiquismo imaginante. É necessário,
para essa condução, chamar o objeto poético por seu nome, por seu velho
nome, dando-lhe seu justo nome sonoro, cercando-o com os ressoadores
que ele vai fazer falar, com os adjetivos que vão prolongar sua cadência, sua
vida temporal.

Desta forma, os ressoadores, atuariam como condutores do psiquismo


imaginante (neste caso o psiquismo hidrante), ecoando os objetos poéticos dos
quais se origina (aqui o elemento material é a água).
Após destacar os conceitos apresentados por Bachelard (2001, 2018) os
quais constituem importantes aportes teóricos para delinear o conceito litera-

159
-rio, particularmente os conceitos referentes ao psiquismo hidrante, bem como
às diversas imagens do elemento água e ainda aos elementos ressoadores (que
propiciam um ecoar poético-semântico ao psiquismo hidrante), nos ocupare-
mos, agora, em apresentar a aquonarrativa, outro importante aporte teórico,
para a construção da categoria litera-rio (BACHELARD, 2018, p.10).

Uma gota de água poderosa basta para criar um mundo e para dissolver
a noite. Para sonhar o poder, necessita-se apenas de uma gota imaginada
em profundidade. A água assim dinamizada é um embrião; dá à vida um
impulso inesgotável.

A expressão aquonarrativa, em consonância com o destaque acima,


exemplifica bem o poder fecundo da água “para criar mundos’. De modo que a
criação do conceito pelo professor, pesquisador e escritor paraense Paulo Nu-
nes, surgiu a partir de seu “mergulho” analítico na obra “Chove nos campos de
Cachoeira”, de Dalcídio Jurandir, onde constatou a fartura líquida que salpica-
va das páginas da literatura do “Extremo Norte”. Conforme nos explica Nunes
(2004, p, 4) foi a partir daí que “guapuiou/pescou” o termo “aquOnarrativa e
não aquAnarrativa (como pediria a gramática e como ainda insistem alguns
em denominar).
A aquonarratividade, de acordo com o referido pesquisador, refere-se à
“escrita, léxico e semântica que realçam a fartura aquática que faz da Amazônia
uma “pátria de águas” (NUNES, 2004, p. 4).
Desta forma, o conceito “litera-rios” toma emprestado elementos cons-
titutivos da aquonarrativa, como forma de manifestação discursiva. Destacan-
do que, podemos observar a presença de tais elementos na escrita de alguns
autores da literatura de expressão amazônica, dialogando com o elemento
água, e demais elementos derivados do referencial líquido, típico da aquonar-
rativa amazônica, a exemplo das obras literárias apresentadas anteriormente,
constituídas por palavras ressoantes que se encontram relacionadas à poética
do elemento água.
Quanto ao conceito litera-rio, é necessário ressaltar que embora o con-
junto de análises, ora empreendido, tenha como base o exame de obras literá-

160
rias da/na Amazônia, tal conceito não se circunscreve a este contexto, poden-
do ser utilizado/aplicado às mais diversas narrativas, onde esteja presente o
psiquismo hidrante dos rios, manifesto nas várias imagens das águas e em seus
elementos ressoantes, conforme nos aponta Bachelard (2001,2018), bem como
na “aquonarrativa” cuja marca é fazer jorrar das páginas as liquidoamplivivên-
cias autorais, que permeiam tais narrativas.

Litera-rios em “Amazonas, pátria da água”

Em Amazonas, pátria da água (1987,1990,2007), Thiago de Mello, fala


sobre a natureza, sobre o rio a comandar a vida, em seus diferentes ciclos atra-
vessando a floresta, ditando o ritmo do tempo na vida dos povos amazônidas,
adentrando o imaginário poético em meio ao espaço das águas, onde transitam
a cultura e os mitos reinantes na região, apresentando relatos, memórias e de-
núncias, tanto em prosa, quanto em poesia. Mello (2005), se vale da linguagem
aquopoética, reunindo ainda elementos pertinentes ao conceito litera-rios, o que
contribui para ilustrar a unidade vocal da poesia da água, da qual nos fala Ba-
chelard (2018, p.184):

Para mostrar bem a unidade vocal da poesia da água, vamos desenvolver


imediatamente um paradoxo extremo: a água é a senhora da linguagem
fluida, da linguagem sem brusquidão, da linguagem contínua, continuada,
da linguagem que abranda o ritmo, que proporciona uma matéria uniforme
a ritmos diferentes. Portanto, não hesitaremos em dar seu pleno sentido à
expressão que fala da qualidade de uma poesia fluida e animada, de uma
poesia que se escoa da fonte.

É importante ressaltar que os elementos constitutivos do conceito lite-


ra-rios estão presentes na obra, apresentando franco diálogo não apenas com as
diferentes manifestações do elemento água e os ressoantes destes referenciais
líquidos, conforme nos apresenta Bachelard (2001,2018), bem como na escrita
aquosa presente na aquonarrativa, onde léxico e semântica, realçam de acordo
com Nunes (2020, p.8)” a fartura aquática que faz da Amazônia uma “pátria
de águas”. Assim, ancorada nas múltiplas imagens das águas bachelardianas,

161
no psiquismo hidrantes e seus elementos ressoadores, bem como na aquonar-
rativa, verifica-se a presença das diversas características e tipologias das águas
amazônicas presentes na rica prosa poética de Amazonas, pátria da água, como
no excerto apresentado a seguir, do capítulo intitulado “As tantas almas da
água” (MELLO, 2007, p. 26 – 28):

A lei do rio não cessa nunca de impor-se sobre a vida dos homens. É o
império da água. Água que corre no furor da correnteza, água que leva, água
que lava, água que arranca, água que se oferta cantando, água que se des-
penca em cachoeira, água que roda no rebojo, água que vai, ainda bem que
começou a baixar, mas de repente volta em repiquete, água de rio que quase
não corre, um perigo quando vento vem, o vento não avisa, água que se
agarra no vento para poder voar, água que gosta de ficar parada no silêncio
do igapó. Água de fundura muita, mais de cem braças de fundo, no silêncio
do abismo se movem lentas as gigantescas piraíbas cegas. Igarapés estreitos,
como o do Pucu, com o encanto de suas curvas que me conhecem tanto,
pode vir a maior vazante, que ele nunca se fecha seco, jamais mostra o fundo
de seus leitos. Água rasa transparente, água rasa barrenta, onde as arraias de
ferrão de fofo se espalham de manhã cedinho. Água de boca de lago, água
redonda de cabeceira de rio. Água imóvel: no lago do Marcelo, ali atrás do
paraná-mirim da Eva, quando o uirapuru canta, toda a floresta fica silen-
ciosa, os outros pássaros param de cantar e as águas também ficam imóveis,
escutando, de vez em quando a pele delas estremece. Água atravessada de
capim de margem a margem, ilhas verdes que cantam no vento, água cober-
ta de chavascal, de aninga de folhas grossonas, o caboclo caminha por cima
da espessa vegetação entrelaçada, a gente chega, escuta o barulho dos peixes
assustados debaixo dela. Água de doenças: água de ameba, água de febre ne-
gra. Mas também água de cacimba: no ardor úmido da selva, o olho-d’água
se ofertando frio, nunca para de minar. As águas medonhas das cachoeiras
do Alto Aripuanã. As águas barrentas do Solimões, do Madeira, do Juruá,
do Purus. As azuis do Tocantins, as verdes do Tapajós, do Xingu.

A partir do recorte acima, podemos verificar as diferentes tipologias da


água em Bachelard (2018). Acerca das águas claras, as águas brilhantes que, de
acordo com o autor, têm um frescor poético, fornecendo-nos imagens fáceis e

162
fugidias. Porém, em função da unidade do elemento, essas imagens se reorga-
nizam, de modo que o espelho das águas, de acordo com Bachelard (2018, p.
27) tem a função psicológica de naturalizar nossa imagem, devolvendo “um
pouco de inocência e naturalidade ao orgulho de nossa contemplação íntima”.
O que podemos verificar em Mello (2007, p.26) na “água que leva”, na “água
que lava”, na “água que se oferta cantando”, na “água rasa transparente”, na
“água de boca de lago, água redonda de cabeceira de rio”.
Quanto às “águas profundas – as águas dormentes – as águas mortas”,
Bachelard (2018, p. 51), a partir da análise da obra de Edgar Poe, afirma que “o
destino das imagens da água segue com muita exatidão o destino do devaneio
principal que é o devaneio da morte”. Assim, as águas profundas, as águas si-
lenciosas, as águas insondáveis, são as águas dos lagos sombrios, dos pântanos;
são as águas imóveis a evocarem os mortos (visto que as águas mortas são águas
dormentes), tais como as águas apresentadas por Mello (2018, p.26) “Água de
fundura muita, mais de cem braças de fundo, no silêncio do abismo se movem
lentas as gigantescas piraíbas cegas.” A “Água imóvel: no lago do Marcelo, ali
atrás do paraná-mirim da Eva”, a “Água de doenças: água de ameba, água de
febre negra.”
Com referência às “águas compostas”, Bachelard (2018, p.98) ressalta
que a água é elemento mais favorável para ilustrar os temas da combinação
dos poderes (combinação entre os elementos primordiais). Dentre as misturas,
Bachelard (2018) destaca que “O limo é a poeira da água, como a cinza é a
poeira do fogo. Cinza, limo, poeira, fumaça darão imagens que trocarão indefi-
nidamente”. Sendo o limo, uma das matérias mais valorizadas, pois, de acordo
com o autor, “ao que parece, sob essa forma a água trouxe à terra o próprio
princípio da fecundidade.” (BACHELARD, 2018, p.114). Podemos verificar
a fecundidade das águas compostas em Mello (2007, p.30) “Grandes vazantes
significam fartas as colheitas: a terra da várzea inundada é fertilizada pelo rio,
que lhe acrescenta sais minerais e matérias orgânicas.”.
Acerca da “água maternal e a água feminina”, afirma Bachelard (2018,
p.120) que “sentimentalmente, a natureza é uma projeção da mãe”. O autor,
ao discorrer sobre os aspectos que fazem da “água um leite inesgotável, o lei-

163
te da natureza Mãe” afirma que a marca da água é profundamente feminina,
desta maneira “ao lado da mãe-paisagem tomará lugar a mulher-paisagem”
(BACHELARD, 2018, p.131). A presença da “água maternal” e seu manan-
cial fecundo e vivificador, em “Amazonas, pátria da água”, pode ser observado,
particularmente, no capítulo “Tudo depende da água”, no qual Mello (2007,
p.30) enfatiza a importância primordial do ciclo das águas na vida do homem
amazônida “não só no interior das florestas, na beira dos rios “, influenciando
também as cidades e os grandes centros urbanos da região, fazendo-os sentir
todos “os efeitos generosos ou adversos, da subida ou da descida das águas”.
Quanto à “água violenta”, de acordo com Bachelard (2018, p.184) “é um
dos primeiros esquemas da cólera universal. Por isso não há epopeia sem uma
cena de tempestade”. O autor destaca ainda que, a melancolia das “águas vio-
lentas” é ativa e atroz, diferentemente da melancolia poesca das “águas mortas”.
(BACHELARD,2018, p.184). As águas violentas, costumam ser associadas ao
mar, desde os mitos primitivos. Assim, acerca da água violenta, dentre os belos
exemplos apresentados por Mello (2007), transborda o capítulo “O ímpeto do
rio, a vingança do mar”, que além de apresentar diversas tipologias da água,
evidencia o percurso do rio Amazonas, de sua nascente até seu encontro/em-
bate violento com as salgadas águas do oceano Atlântico.
Deste modo, verifica-se a partir do exposto acima, que Amazonas, pá-
tria da água (2007), propicia navegar e adentrar nas tantas almas da água, per-
mitindo ilustrar os elementos característicos do conceito litera-rios, os quais
estão ancorados teoricamente no psiquismo hidrante e nas múltiplas imagens
da água que nos traz Bachelard em A água e os sonhos (2018), bem como na
ideia dos elementos “ressoadores” apresentados pelo autor em O ar e os sonhos
(2001), propondo que tais elementos, ecoariam palavras ou termos vinculados
semanticamente aos objetos poéticos dos quais derivam.
No caso em tela, os ressoadores do elemento água, ecoam o psiquismo
hidrante, “como os adjetivos que vão prolongar sua cadência, sua vida temporal”
(BACHELARD, 2001, p.5), fazendo ressoar o elemento água, conforme dis-
põe a aquonarrativa proposta por Nunes (2004). Deste modo, destacamos aqui
alguns dos termos e palavras que se encontram relacionados ao elemento água,

164
em Amazonas, pátria da água (2007), dentre os quais: água, águas subterrâne-
as, água dos Andes, nuvens, água doce, úmido, rios, mar, chuvas, neve, escorre,
remando, proa do casco, quilhas, caravelas, batelão, várzea, encalhada, pântanos,
friagem, mananciais, estagnados, Atlântico, foz, oceano, Paraná-açu, margens,
navegador, tributários, águas paradas, vitórias-régias, caudal, calha, baía, salga-
das, embocadura, adocicado, ondas, pororoca, margens, navios, correnteza, água
que leva, água que lava, água que arranca, água que se oferta, cachoeira, rebojo,
repiquete, parada, igapó, fundura, igarapé, curvas, rasa, transparente, funda, suja,
barrenta, ilhas, água de doenças (água de ameba, água de febre negra), água de
cacimba, olho-d’água, águas negras, águas verdes, águas de todas as cores, canoa,
ciclo das águas, “primeiras águas”, enchentes, vazante, lago, transbordando, pes-
carias, assoalho, palafitas, alagando, várzea, motor, “boca do rio”, barcos, canoas,
remo de faia, catraia, favela fluvial, margens, “beirinha”.
Assim, em “Amazonas, pátria da água”, navegamos em meio a escritos
carregados de um lirismo franco e, por vezes, insubmisso, dos quais transbor-
dam poemas e prosas poéticas, ou melhor, narrativas aquopoéticas, que descre-
vem, em pinceladas certeiras, as múltiplas imagens que nos traz as águas (mais
especificamente dos rios), destacando não apenas o quanto o rio condiciona o
comportamento humano, mas também denunciando os males que os homens
causam à natureza.

Considerações

Conforme destacado anteriormente, o intento deste artigo teve como


escopo discorrer sobre o conceito litera-rios, abrangendo desde suas origens, a
partir do diálogo entre os aspectos literários e os aspectos geohistóricos que
configuram a Amazônia. Tanto que a elaboração deste novo conceito, teve
particular inspiração nos termos rias e fluvitórios, propostos, respectivamente,
pelos geógrafos Gourou (1949) e Droulers (2017). Deste modo, a partir das
confluências entre o processo de estruturação dos fluvitórios, ao longo dos di-
ferentes períodos de ocupação da Amazônia, a centralidade dos rios e dos ca-
minhos fluviais, mostrou-se importante não apenas em relação à conformação

165
dos aspectos geohistóricos, mas também com relação aos registros literários
da/na Amazônia, apresentando profundas e poéticas relações entre o mundo
das águas, suas interações e interpretações pelo ser social, demonstrando a im-
portante possibilidade por meio de espacialidades e geografias locais, a partir
da observação das rugosidades e especificidades que tornam as interações so-
ciais diferenciadas e integradas ao meio ambiente. É importante destacar, que
embora o conceito litera-rio, tenha se originado a partir da análise do contexto
amazônico, a ele não se limita, podendo ser aplicado na análise literária de
outros rios deste vasto mundo. Tendo como base, os pressupostos teóricos que
ancoram o conceito litera-rio, têm como principal fonte o psiquismo hidrante,
as múltiplas imagens do elemento água e os elementos ressoadores, apresen-
tados por Bachelard (2001, 2018), aos quais se complementa os elementos da
aquonarrativa proposta por Nunes (2004).
Deste modo, considera-se a possiblidade de observar as relações hu-
manas por meio dos rios, reais ou literários. Permitindo concluir que entre
histórias, sonhos, devaneios e vida, os rios podem ser vistos como caminhos
para ampliar a percepção da poética e do imaginário das águas, em sua mais
profunda relação entre cultura e natureza.

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169
REPRESENTAÇÕES DO IMAGINÁRIO AMAZÔNICO NO
CONTO “O MENINO E O TREM”, DE VIRIATO MOURA

Cleiton Leirson Braga das Neves


Fernando Simplício dos Santos

Introdução

Este trabalho tem como objetivo geral analisar a maneira pela qual
se instituem representações da locomotiva e do espaço poético amazônico
no conto “O menino e o trem”, de Viriato Moura, publicado em 2013 no
livro intitulado Trem vivo: viagem ao imaginário da Ferrovia do Diabo. Por
assim dizer, a proposta específica é a apreciar imagens e formas discursi-
vas presentes na narrativa, a fim de averiguar o modo como se firma uma
relação entre o universo da floresta e as descrições do trem, traduzida na
narrativa por uma metafórica viagem feita pela Estrada de Ferro Madeira-
-Mamoré (EFMM).
Nesse sentido, vale ressaltar que vários teóricos que se debruçaram
sobre a história dessa misteriosa linha férrea trazem em seus escritos dados
que contextualizam aspectos a respeito de sua localização geográfica, bem
como do cunho regional multicultural, criado por causa da concentração de
trabalhadores advindos de inúmeras regiões nacionais e internacionais. Por
esse enfoque, lembramos que (DOS SANTOS, 2021, p. 380):

a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) foi caracte-


rizada, no decorrer do século XIX, por tentativas frustradas de execução. A
terceira e mais importante fase das obras, – que delimitou o funcionamento
efetivo da ferrovia –, correspondeu aos anos de 1907 a 1912. Nessa época,
na região em que atualmente está localizado o território de Rondônia, aglo-
meraram-se pessoas de diversos lugares do mundo, fazendo com que, por
um lado, o percurso que vai da capital do estado (Porto Velho) até a cidade
de Guajará-Mirim (fronteira com a Bolívia) se tornasse um dos locais em

170
que ocorreria uma das mais expressivas concentrações de cunho multicul-
tural da Amazônia brasileira, e, por outro, representasse a tentativa de se
instaurar à força a modernidade na selva.

Nota-se que o lugar em que a linha férrea foi edificada tornou-se mui-
to popular no Brasil e no Mundo, em especial, devido às “condições precárias
nas quais os trabalhadores se encontravam [...] Assim, “muitos deles morriam
durante a empreitada. Em virtude das lendas de assombração ou de morte, a
Madeira-Mamoré passou a fazer parte do imaginário popular, ficando conheci-
da, por exemplo, como Ferrovia do Diabo ou da Morte” (DOS SANTOS, 2021,
p. 380). Em vista disso, pode-se dizer que a narrativa de “O menino e o trem” é de
certa forma alimentada por essa mesma impressão do imaginário que por déca-
das rondou e ainda faz parte do cotidiano de muitos habitantes da cidade porto-
velhense. Não por acaso, no início do conto, o narrador da obra de Viriato Moura
destaca que “Um trem atravessou a infância do menino” (MOURA, 2013, p. 23).
Em toda a narrativa, portanto, a viagem do garotinho é acometida pela suntu-
osidade da máquina e pela exuberância da selva, pautando significativamente
o imaginário vivificado em um momento especial da infância que influenciará
toda a existência da personagem. Não sem motivo, sabendo-se que o conto é um
recorte de um episódio distinto, Viriato Moura, segundo as premissas teóricas de
Julio Cortázar (1993, p. 151-2), poderia definir sua arte da narrativa breve

como um aparente paradoxo: o de recortar um fragmento da realidade,


fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue
como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais am-
pla, [...] o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar
uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só
valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador
ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inte-
ligência e sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento
visual ou literário contido na foto ou no conto.

Tendo em vista a relação entre o contexto social e histórico e a repre-


sentação do imaginário, para a confecção deste trabalho, destacamos a socio-

171
logia da literatura e sua correlação com a crítica imanente, conforme sugere
o crítico Antonio Candido. Por essa perspectiva, seguindo as observações de
Cortázar sobre o conto como fragmento de uma atmosfera muito mais ampla
e significativa do que o mundo ordinário, partiremos do pressuposto de que
as questões presentes em um determinado ambiente social advêm diretamente
do universo – intrínseco – da produção estética. Por esse prisma, em sua obra
Literatura e Sociedade (2000, p. 13-14), Candido explica o funcionamento de
um método dialético da análise literária, dizendo que

hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma des-
sas visões dissociadas (estrutural e histórica); e que só a podemos enten-
der fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra,
em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos,
quanto outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente
independente, se combinam como momentos necessários do processo in-
terpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não
como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha
um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.

De tal modo, observa-se que a sistematização sugerida por Antonio


Candido sustenta a ideia que seja possível averiguar os elementos externos às
obras literárias (isto é, histórico, sociológico, político, econômico etc.) como
agentes que exercem uma função decisiva na estrutura da narrativa, em sua
composição, concebendo-os, de antemão, como componentes internos, do
mundo artístico. Por meio desse enfoque, concomitantemente, Candido (2004,
p. 111) salienta que,

[...] embora filha do mundo, a obra é um mundo, e que convém antes de


tudo pesquisar nela mesma as razões que a sustêm como tal. A sua razão
é a disposição dos núcleos de significado, formando uma combinação sui
generis, que se for determinada pela análise pode ser traduzida num enun-
ciado exemplar. Este procura indicar a fórmula segundo a qual a realidade
do mundo ou do espírito foi reordenada, transformada, desfigurada ou até
posta de lado, para dar nascimento ao outro mundo.

172
Na esteira das reflexões pontuadas acima, para a consecução de nos-
sos objetivos, traçamos no decorrer do texto um debate teórico com obras
de João de Jesus Paes Loureiro (2001), Sandra Jatahy Pesavento (2002), Neide
Gondim (2019), Michel Pollack (1992), Julio Cortázar (1993), Walter Benjamin
(1994), Paul Ricœur (2007), entre outros. Além disso, conforme o mencionado
acima, serão trabalhados aspectos teóricos do estruturalismo e da sociologia
da literatura, com intuito de verificar a forma como o conto intitulado “O
menino e o trem”, de Viriato Moura, problematiza a dialética entre os fatores
sociais, políticos, históricos, em consonância com os elementos da própria
narrativa. Assim, acreditamos que imagens e formas discursivas propagadas
por este texto literário representam parte de um expressivo imaginário popu-
lar, atinente à Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, às configurações do trem,
bem como a uma determinada poética da Amazônia.
Começamos a nossa análise de “O menino e o trem”, observando a
proposta do título do livro em que a narrativa de Viriato Moura foi publi-
cada, isto é, Trem vivo: viagem ao imaginário da Ferrovia do Diabo. Perce-
be-se que os autores que fazem parte dessa coletânea1 tinham por objetivo
excitar os limites da imaginação, tendo como pano de fundo a conhecida “Fer-
rovia da Morte”. Não por acaso, no local em que foi construída a linha férrea
até hoje há muitas histórias populares, as quais destacam temas, como, por
exemplo, o medo, a morte, fantasmas, entre muitos outros. Assim, ribeirinhos,
indígenas e outros habitantes de regiões citadinas, por meio da história da
construção da Estrada de Ferro, fomentam um peculiar exercício da memória.
Retomando os preceitos teóricos de Paul Ricœur (2007, p. 71), sabemos que

[...] lembrar-se não é somente acolher, receber uma imagem do passado,


como também buscá-la, ‘fazer’ alguma coisa. O verbo ‘lembrar-se’ faz par
com o substantivo ‘lembrança’. O que esse verbo designa é o fato de que a
memória é ‘exercitada’. [...] o reconhecimento, que coroa a busca bem-su-
1
Além de Viriato Moura, publicaram no O trem vivo: Yêda Pinheiro Borazcov e Samuel
Castiel Júnior. Esse compêndio de narrativas breves traz uma conjunto de 35 contos, cujas
temáticas versam sobre o imaginário na selva e, em especial, sobre a construção da Ferrovia
do Diabo e suas lendas e histórias de assombração na região que engloba o trajeto que vai da
cidade de Porto Velho até Guajará-Mirim, ou seja, o mesmo feito pela EFMM.

173
cedida, designa a face cognitiva da recordação, ao passo que o esforço e o
trabalho se inscrevem no campo prático.

A partir das considerações de Paul Ricœur, pode-se dizer que a metá-


fora d’O trem vivo está vinculada a uma especial prática cultural, e um de seus
principais objetivos é exercer o ato de rememorar, a fim de fazer renascer os
mistérios que sondam a história da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Uti-
lizando-se de artifícios imagéticos, metaforicamente, esse “trem vivo” atra-
vessa algumas das principais estórias do livro, “carregando em seus vagões
da lembrança” um arcabouço de mitos, causos e lendas, os quais fornecem
matéria ao imaginário estabelecido em torno da máquina da morte e de sua
linha férrea obscura e misteriosa.
Segundo a escritora Sandra Jatahy Pesavento (1995, p. 15), “o imaginá-
rio faz parte de um campo de representação e, como expressão do pensamento,
manifesta-se por imagens e discursos que pretendem dar uma definição da
realidade”. Dessa maneira, o trem, metaforizado na Ferrovia do Diabo, agre-
ga proporções imaginativas gigantescas para a população da região de Porto
Velho, Guajará-Mirim, etc. Historicamente, desde a construção da EFMM,
há milhares de relatos e de fotografias que, cada vez mais, sondam os enigmas
desta região. A leitura deste livro faz com que seus intérpretes, de certa forma,
exercitem a memória e o imaginário, ligados à representação da máquina e
da floresta. Aqui, compreendemos o processo de representação inseparável do
imaginário, já que, segundo Makowiecky (2003, p. 4):

representação é a tradução mental de uma realidade exterior percebida e


liga-se ao processo de abstração. O imaginário faz parte de um campo de
representação e, como expressão do pensamento, se manifesta por imagens
e discursos que pretendem dar uma definição da realidade. Mas as imagens
e discursos sobre o real não são exatamente o real ou, em outras palavras,
não são expressões literais da realidade, como um fiel espelho.

Assim, é possível dizer que o imaginário amazônico engloba em si um


rico sistema de representações, o qual acentua a existência de causos, mitos,

174
imagens assombrosas etc. No caso da construção da Estrada de Ferro Madei-
ra-Mamoré, o imaginário local foi fomentando desde a chegada de operários
que relataram suas experiências em torno da sobrevivência e da morte. Em cada
dormente assentado, em cada metro de trilho posto, tudo isso forneceu matéria
imaginativa para confeccionar centenas relatos ou de estórias. É dessa forma
que “[...] a Amazônia apresenta-se como uma realidade cujos limites mais am-
plos são fixados pelas falas que foram construindo durante séculos a ideia de
que, nela, toda experiência humana está de algum modo envolta no mistério
da floresta e das águas” (SILVA, 1998, p. 23). É nesse sentido também que,
mesmo abordando o tema da floresta, é necessário apontar o trem e a ferrovia
como ícones deste sistema imaginário, porque pontuam uma singular história
pautada no ideal de civilização, a qual a máquina atravessaria por décadas, até
ser vencida e transformada por fim em ruínas.
No trajeto de sua existência histórica, o advento da construção da
Estrada de Ferro revela a maneira como o imaginário se apresenta, sobre-
posto “à ideia de representação, evocação, simulação, sentido e significado,
jogo de espelhos onde o ‘verdadeiro’ e o aparente se mesclam, estranha com-
posição onde a metade visível evoca qualquer coisa de ausente e difícil de per-
ceber”. (PESAVENTO, 1995, p 24). Destacando a correlação entre lendas
e mitos compostos no cenário da floresta, “O menino e o trem”, de Viriato
de Moura, trata da analogia entre experiência e infância, por meio de um
jogo lúdico entre simulação, sentido e significado, instituído em torno de
imagens e formas discursivas da Amazônia e, em especial, da máquina.
Por tal prisma, existe um poema chamado “Quando o trem passa”, do
escritor portovelhense Antonio Cândido da Silva (1997) que representa de
maneira muito forte essa representatividade entre sentimentos e locomotiva,
assim como o saudosismo das memórias em torno dela:

Não apites assim, pois teu apito


Mergulha minha alma na lembrança
Me transportando ao tempo de criança
E me deixando o coração aflito.

175
Passa em silêncio, sem lançar teu grito
pois a saudade há muito descansa
no escrínio da memória que não cansa
do velho trem que se tornou meu mito

Passa calado em tua nostalgia


sem despertar a minha fantasia
e velhos sonhos que estão latentes

Pois me recordo de tardes passadas


quando eu e Maria de mãos dadas
sonhávamos contando teus dormentes.
(CÂNDIDO, 1997, p. 200)

Dialogando com essas memórias traduzidas pelo poema de Cândido,


no conto que passamos a analisar de forma mais específica, pode-se dizer que
é forte a marcação das lembranças no modo pelo qual esse trem atravessa a
vida das personagens e de seus leitores, delineando o curso de uma existência.
Nesse sentido, a memória propagada em torno de um velho ícone do pro-
gresso (do trem) é tratada aqui “como um fenômeno coletivo e social, ou seja,
como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, trans-
formações, mudanças constantes” (POLLAK, 1992, p. 201). Isso permite anali-
sar, por exemplo, como as representações da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré
e de uma de suas locomotivas são modificadas e, por assim dizer, metaforizadas
pelas lembranças do protagonista da narrativa de Viriato Moura.
Viriato Moura é membro da Academia de Letras de Rondônia; autor de
dez livros, e um deles trata da história da medicina na Região Norte; jornalista,
com uma vida dedicada a análises críticas a respeito do estado de Rondônia e
às artes em geral. Esse pode ser um resumo da vida de escritor e profissional,
de um dos autores mais respeitados da recente história rondoniense. Não por
acaso, Viriato Moura tem muito a contar, desde o começo de sua carreira, há
mais de quatro décadas, ele aborda em seus textos temas variados. Não sem
motivo, tornou-se um escritor multifacetado. Entre suas obras já publicadas,

176
destacamos: Haicais mutantes; Doses mínimas de máximas: 300 reflexões de um
médico; Ritual de catarse: poesia como terapia; Labirinto com rota de saída; Trem
vivo: viagem ao imaginário da Ferrovia do Diabo, no qual encontramos o con-
to intitulado “O menino e o trem”.
A narrativa trata da história da viagem de uma criança com seus avós
pela já remota Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), demarcando o
período de grande atividade da locomotiva. O relator dos eventos destaca o
trajeto da linha férrea que as pessoas faziam de Porto Velho até Guajará-Mi-
rim, durante a primeira metade do século XX, dando-lhe contornos de magia,
em meio às paisagens que se formam no caminho, delimitado pelas florestas,
cachoeiras, árvores exóticas etc. De tal maneira, o papel do sujeito da enun-
ciação é pontuar momentos em que o imaginário2 e a fantasia do protagonista
adquirem configurações distintas (MOURA, 2013, p. 23):

UM TREM ATRAVESSOU A INFÂNCIA DO MENINO. Pouco mais


de sete anos de idade era o que ele tinha. Desde que fora avisado de que iria
fazer aquela viagem, embarcou em suas esperadas sensações
Todos os dias pareciam chegar, menos o dia da partida. Até que a véspe-
ra chegou, encontrando a ansiedade dele nos trilhos: sua noite foi quase
insone. Às quatro da madrugada não se conteve na cama. Seus avós já se
movimentaram pela casa. O dia da sonhada viagem finalmente chegou. Por
volta das cinco, foram para a estação. Às seis, o trem partiu.

No conto, à medida que a locomotiva avança, a imaginação do garoti-


nho amplia-se, de forma a configurar em sua mente batalhas entre assaltantes
e heróis que habitavam recônditos inexplorados. Não sem razão, na fantasia do
pequeno menino, aquelas imagens que ele via “acordavam histórias adorme-
cidas em seu imaginário lúdico” (MOURA, 2013, p. 24). Por esses meandros,
2
Sabemos que, “[...] no domínio da representação, as coisas ditas, pensadas e ex-
pressas têm outro sentido além daquele manifesto. Enquanto representação do real,
o imaginário é sempre referência a um ‘outro ‘ausente. O imaginário enuncia, se
reporta e evoca outra coisa não explícita e não presente. Este processo, portanto, en-
volve a relação que se estabelece entre significantes (imagens, palavras) com os seus
significados (representações, significações (Castoriadis), processo este que envolve
uma dimensão simbólica” (PESAVENTO, 1995, p.15).

177
é intenso o sentimento definido pela voz do narrador, quase se torna possível
sentir a alegria e a ansiedade que envolve o menino, explicando-nos a sua visão
de mundo, projetada de dentro do trem. Nota-se que a representação de ima-
gens e formas discursivas é tão abrangente que a experiência delimitada pela
viagem, pontuada por uma brincadeira da infância, fará parte de toda trajetória
de vida do garotinho. Em sua excursão, o menino passa a subverter tudo aquilo
que era visto, isto é, traduzindo magicamente coisas do universo adulto para o
ambiente infantil. Nesse sentido, teoricamente, o filósofo alemão Walter Ben-
jamin (2009, p. 107, 108) observa que na infância

atrás do cortinado, a própria criança transforma-se em algo ondulante e


branco, converte-se em fantasma. A mesa de jantar, debaixo da qual ela se
pôs de cócoras, a faz transformar-se em ídolo de madeira em um templo
onde as pernas talhadas são as quatro colunas. E atrás de uma porta, ela
própria é porta, incorporou-a como pesada máscara e, feita um sa-
cerdote-mago, enfeitiçará todas as pessoas que entrarem desprevenidas [...].

Salienta-se que, no excerto grifado acima, Benjamin destaca o imagi-


nário infantil em relação a um mundo sem magia do universo adulto. Em “O
menino e o trem”, com uma parada no distrito de Abunã, o garotinho entra na
locomotiva, seguindo o destino que o levaria de Porto Velho ao município de
Guajará-Mirim, preparando-se, de antemão, para aquela viagem inesquecível
(MOURA, 2013, p. 23):

O menino escolheu um assento próximo a uma janela do trem. Ele queria


ver a paisagem passar. Ficou do lado direito, porque seu rio estava no lado
direito. Floresta, cachoeiras, corredeiras, barracos, pequenas cidades – esse
era o cenário a ser visto. A maria-fumaça, com seu som de café-com-pão-
-bolacha-não, e seus silvos que acordaram o amanhecer e se anunciavam
para a mata e os lugarejos que vinham pela frente, avançava enquanto a
fumaça que expelia se fazia nuvem passageira para quem vinha nos vagões.

Trata-se da apresentação de um espaço amazônico memorialístico que


grifa as imagens do trem, do Rio Madeira, das florestas de Porto Velho, de

178
cachoeiras que não existem mais, devido à construção de usinas ou à destrui-
ção sistemática propagada pela derrubada de uma parte significativa da mata;
apenas persistem essas imagens na lembrança e são retomadas, pelo garotinho,
a fim de pontuar o mundo mágico de outrora, em relação às ruínas de um mo-
mento presente. Portanto, pode-se dizer que, para o narrador de “O menino
e o trem”, é somente pela perspectiva da infância que é possível explorar esse
universo misterioso e quase olvidado. Além disso, o conto de Viriato Moura
pontua ainda mais a mencionada relação entre imaginação e fantasia, ao res-
saltar que (MOURA, 2013, p. 24):

o pequeno passageiro criava enredos em profusão, como os dormentes


enfileirados lado a lado na ferrovia. Ora ele imaginava o Tarzan pendu-
rado em cipós de árvores frondosas soltando seu grito que assustava os
bichos próximos. Ou bandoleiros mascarados cavalgando próximos ao
trem para invadi-lo e assaltá-lo. Ele próprio, apesar da pouca idade e sem
meios físicos para fazê-lo, sacou seu revólver imaginário e viu-se como
um super-herói, impedindo que os malfeitores conseguissem seu intento,
fazendo-os partir em debandada. Teve até a sensação de que seria ovacio-
nado quando chegasse a seu destino, por ter salvado os passageiros da ação
criminosa dos bandidos:

Na história do menino, o sujeito da enunciação exerce um papel fun-


damental, pois ele tem a função de penetrar artisticamente a psiquê da crian-
ça, vasculhando seus sonhos, seu imaginário, seu mundo de representações,
estabelecido entre o trem e o ambiente da floresta. Estes elementos dão vida
especial à narrativa do garotinho, sobretudo, a partir daquilo que podemos
denominar aqui de poética amazônica, uma vez que, segundo o crítico literário
João de Jesus Paes Loureiro (2019, p. 110), ela representa um

universo mitológico produzido pela realidade imaginária, [pois] o


universo dos encantados dos rios e das matas tem sido um dos ângulos
mais fecundos para relacionar, compreender e explicar, na Amazônia, a re-
lação dos homens entre si e com a natureza. Região de silêncios, recortada
pela emaranhada variedade dos rios na paisagem verde da floresta, a Ama-

179
zônia torna – se um fertilíssimo campo de germinação para as produções do
imaginário do homem, na fruição, no compartilhamento, na intervenção ou
na explicação simbólica de sua realidade.

Sob a perspectiva do menino, um mundo novo se forma também aos


olhos do leitor, em meio a um diálogo entre o “trem vivo”, “a paisagem viva” e a
“mente fértil” do garotinho. Tudo isso nos possibilita uma melhor compreensão
da poética contista de cunho moderno de Viriato Moura. No que diz respeito
a este gênero literário (tendo ressignificado as formas clássicas das narrativas
tradicionais, transformando a maneira por que a narração de uma história era,
milenarmente, composta), o conto tende a condensar em seu espaço simbóli-
co, de forma impactante e questionadora, as “inconstâncias do ser humano” e,
assim, explicando “a misteriosa propriedade de irradiar alguma coisa para além
dele mesmo [...], de modo que um [...] episódio [...] se converta no resumo de
uma certa condição de vida ou no símbolo cadente de uma ordem social ou
histórica” (CORTÁZAR, 1993, p. 153). Por conta disso, é possível afirmar que
a história do menino propaga uma reflexão que vai além do mundo textual –
conforme veremos a seguir.
Não por acaso, em seu texto “Situações e formas do conto brasileiro
contemporâneo” (1995), Alfredo Bosi sustenta que, “proteiforme, o conto não
só consegue abraçar a temática toda do romance, como põe em jogo os princí-
pios de composição que regem a escrita moderna em busca do texto sintético
e do convívio de tons e significados” (1995, p.7). Logo, para o crítico literário,
o conto moderno traduz certo estranhamento que desloca e altera o fluxo li-
near da consciência das personagens, revelando determinadas divergentes que
giram ao seu redor – o que está em consonância com a forma da representação
da arte e na literatura dos séculos XX e XXI. No conto em pauta, esse aspecto
condiz com o estranhamento do menino em face da análise das transforma-
ções propiciadas pelo tempo.
Não sem motivo, a história de “O menino e o trem” apresenta uma nar-
ração especial, sobretudo, para todos aqueles que conheceram de perto a histó-
ria da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Em outras palavras,

180
essa narrativa de Viriato Moura fornece, por um lado, a partir da história do
garotinho, uma síntese de emoções ou de sentimentos que fazem até hoje parte
de um imaginário coletivo em torno da exuberância de um paraíso perdido;
e, de outro, representa múltiplos sentidos que permitem a determinado leitor
reconhecer imediatamente os significados que giram em torno da imagem do
“Trem Fantasma” e da “Ferrovia do Diabo” (MOURA, 2013, p. 24):

O trem, em marcha rítmica, seguia imponente até sua parada para pernoite
em Abunã, uma das vilas à margem da via férrea. Ao desembarcarem, os
passageiros foram para um tosco hotel de madeira no meio do quase nada.
O garoto e seus avós ficaram no mesmo aposento. Não havia comodidade.
Os carapanãs produziam um ruído incômodo que espantava o sono. Mos-
queteiros os protegiam das picadas desses transmissores de doenças, prin-
cipalmente de malária. Porém, o menino continuava viajando na dimensão
sem limites de sua criatividade lúdica. Arquitetou até uma estratégia de
fuga para si e para seus avós se a hospedaria fosse atacada por índios ferozes.
Mas logo o sono o alcançou para amainar o cansaço provocado pela viagem
de dia inteiro.

Com efeito, constata-se que no trecho há um embate entre dois tipos


representações do imaginário:
a) o primeiro versa sobre características diversas do lúdico, do mágico,
da fascinação;
b) o segundo, por sua vez, trata explicitamente de doenças e morte que
ceifaram vidas de muitas pessoas que trabalharam em vão para construir a Es-
trada de Ferro Madeira-Mamoré.
Nota-se igualmente que o trem aparece entre as imagens remotas, alu-
dindo a um tempo da memória; pautando um impasse entre reminiscência e
esquecimento, ou melhor, da necessidade de lembrar para não esquecer. Não
sem motivo, sobre a construção de Estradas de Ferro e seus múltiplos signifi-
cados através dos tempos (atrelados ao imaginário coletivo), no livro intitulado
Trem-fantasma: a Ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva, Fran-
cisco Foot Hardman (2005, p. 51) observa que

181
[...] Com as ferrovias, muito claramente, a técnica se desgarra das formas
que a produziram e assumem feição sobrenatural. A paisagem dos cami-
nhos de ferro torna-se, assim, remota, cujo duplo sentido dá conta das rup-
turas operadas simultaneamente nas relações com o tempo e com o espaço,
podendo-se aí configurar tanto como localidade perdida quanto época ir-
resgatável. A ordem cronológica quebra-se: o tempo da locomotiva – aquela
que já fora celebrada como deusa do progresso – permaneceu parado. As
coordenadas geográficas esboroam-se: o trem extraviou-se em algum ramal
solitário, em alguma estação sem nome. Por isso, velhos ferroviários guar-
daram esse idêntico ar de mistério. Seus relatos possuem um toque épico
indisfarçável. Sua memória não tem começo nem fim.

Em “O menino e o trem”, há nitidamente a recuperação memorialís-


tica da locomotiva como um ícone do progresso de outrora, bem como o es-
paço é representado, contraditoriamente, como uma “localidade perdida”, de
uma “época irrecuperável”, que se esboroa de forma paulatina. O sujeito da
enunciação sabe que ele narra episódios de um período que não existe mais;
ele tem consciência de que a linha férrea faz parte de um imaginário coletivo
que luta para mantê-la viva. Por conta disso, poder-se-ia dizer que de certa
forma a história da Estrada de ferro Madeira-Mamoré acabou tornando-se
praticamente mítica – conforme pontuam as imagens citadas do poema de
Antônio Cândido da Silva.
Tanto a representação do trem quanto a do espaço da floresta per-
passam a imaginação do garoto, em meio a outros fatores que estão no pano
de fundo da ambientação narrativa. Teoricamente, segundo Barbiere (2009,
p.105), o “espaço narrativo transcende de pano de fundo, tornando-se agente
ativo, como articulador da história”. Nessa cadência, o universo representado
na narrativa em pauta aparece carregado por aquilo que está por trás de sua
constituição: as paisagens, o rio, as estações de trem, as distâncias e os demais
elementos que o compõem. Dessa forma, as características descritas pelo nar-
rador do conto de Viriato Moura, na visão do menino, reforçam o ambiente
no qual a viagem ao imaginário ocorreu; a fascinação pela máquina existiu; o
lúdico da infância pontuou. Ao mesmo tempo, o relator dos acontecimentos

182
tem a drástica consciência da mudança espacial e temporal, a qual tem a função
de demarcar a transformação de sua própria visão de mundo, exemplificada na
trajetória daquele garotinho (MOURA, 2013, p. 25):

Muitas décadas se passaram. O menino cresceu e alçou voos em muitos céus


e navegou mares em diversas direções. Visitou terras distantes mundo afora.
Mas em nenhuma de suas andanças seu sonho teve a dimensão tão próxima
à realidade quanto daquela sua primeira e inesquecível viagem de trem pela
lendária Estrada de Ferro-Madeira Mamoré. Porque o que realmente o ga-
roto sonhador viu passar por sua janela nessa viagem foi a alegre e venturosa
infância que viveu. Sim, foi isso, eu garanto: aquele menino era eu:

No final do conto, o narrador atesta a verossimilhança da estória, a qual


evoca um mundo antigo que tem como papel demarcar etapas da vida: entre
a infância e a maturidade. Em um primeiro momento, o tempo no conto está
marcado por uma época específica, passada ainda no período de movimentação
da locomotiva que transportava os viajantes. Todavia, em uma segunda etapa, a
ruptura brusca da narrativa ocorre para salientar a epifania, isto é, as memórias
que ocorrem como acontecimentos que valorizam a perspectiva da infância,
fazendo com que o menino reviva um período que, infelizmente, nunca mais
voltará. Aqui, segundo as teorias de Julio Cortázar, pode-se dizer que o conto
exerce o poder de radiar alguma coisa para além de seu fim, pois a história do
garotinho, metaforicamente, poderia se tornar histórias de todos aqueles que,
na infância, tiveram a oportunidade de fazer essa mesma viagem. A diferen-
ciação nas indicações temporais do conto de Viriato Moura marca em sentido
profundo as etapas da vida, da existência. Assim, percebemos que a anacronia
é um recurso utilizado pelo narrador, não apenas para descrever os fatos do
passado, mas também para exemplificar como as imagens e formas discursivas
em torno da Amazônia e do trem permanecem vivas, não só para o menino,
mas em especial para determinado leitor desta narrativa.
O conto de Viriato Moura nos remete a uma viagem pela imaginação
do pequeno protagonista, uma vez que toda a sua construção está no entorno
da “Ferrovia do Diabo” e nos vislumbres da memória ou da fantasia, propa-

183
gados pela infância. Nesse contexto, abordamos os conceitos de imaginário
e de poética amazônica, apresentando de que forma eles se configuram no
conto e na proposta do livro Trem vivo. De certa maneira, considerando as
estórias e causos que, até hoje, permeiam o imaginário coletivo, em especial,
de parte da população que habita o estado de Rondônia até a fronteira de
Guajará-Mirim, esse assunto torna-se ilimitado, abrindo um leque para inú-
meras propostas de pesquisas literárias, históricas, sociais, antropológicas etc.
Não por acaso, atualmente, há um conjunto de escritores que se propõem
a confeccionar trabalhos que seguem essa linha fértil de pesquisa que visa
valorizar o universo amazônico.

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186
UM HORIZONTE POÉTICO NAS ÁGUAS AMAZÔNICAS
DAS OBRAS DE DALCÍDIO JURANDIR

Alberto de Barros Molina

Introdução

O escritor paraense Dalcídio Jurandir nasceu em Ponta de Pedras,


no Marajó, no dia 10 de janeiro de 1909. Viveu a infância em Cachoeira do
Arari e em 1922 mudou-se para a capital, Belém, para completar os estu-
dos. Jurandir é considerado por muitos estudiosos o maior romancista da
Amazônia nas primeiras décadas do século XX. Foi lido e admirado pelas
gerações de outros grandes autores da literatura brasileira, entre eles, Jorge
Amado e Graciliano Ramos.
Em julho de 2003 foi criado, na Fundação Casa de Rui Barbosa, por um
sobrinho do autor, o Instituto Dalcídio Jurandir, com objetivo de incentivar
pesquisas sobre a vida e obra do escritor. O Instituto recebeu, dos filhos do
romancista, o acervo particular com mais de 750 livros, correspondências de
Jurandir com os amigos escritores Jorge Amado e Graciliano Ramos, com o
pintor Cândido Portinari, além de diversos originais de suas obras. Todo esse
material está sob a guarda da Fundação Casa de Rui Barbosa, que vem atuan-
do, desde então, na divulgação do legado literário e reedição das obras.
Até o centenário de nascimento do autor paraense, sua produção lite-
rária não integrava a lista das grandes editoras, não se destacava na fortuna
crítica acadêmica e recebia o rótulo de regionalista. Esse rótulo, vinculado es-
pecialmente às obras modernistas da “Geração de 30”, que é onde se enquadra,
cronologicamente, a produção dalcidiana, é bastante discutível e será retomado
detidamente adiante. Por ora, basta-nos dizer que a produção do autor para-
ense ultrapassa, sob diversos aspectos, esse enquadramento, seja pelo apuro
formal de sua escrita, que também privilegia o vocabulário e a região amazô-
nica com um olhar sereno e de grande intimidade, seja pelo perfeito domínio

187
da técnica narrativa que enfoca, além da crítica social diante da situação eco-
nômica vivida na época, mas também análise psicológica, dando destaque ao
íntimo das personagens mesmo diante da paisagem da Amazônia, o que torna
Dalcídio um autor singular no período.
Suas narrativas entrelaçam, em um universo representativo da vida co-
tidiana amazônica, os dramas humanos vividos por seus personagens em suas
micro-histórias mediadas por suas relações com a sociedade local. Com uma
visão de quem nasceu e cresceu na Amazônia, a produção dalcidiana difere
daquela que muitos fizeram sem nunca ter sequer nela pisado, ou ainda por elas
apenas transitado de maneira passageira. Nesse sentido, Maligo (1992) analisa
que o conjunto da obra “representa um contraponto à literatura naturalista dos
primeiros trinta anos do século XX, [...] os romances de Jurandir exibem um
nível de realização formal que os coloca entre os melhores da literatura brasi-
leira de após-Modernismo” (1992, p. 48).

Um mergulho no fazer literário de Dalcídio Jurandir

Jurandir escreveu onze romances, dez constituem a série denominada


Ciclo do Extremo-Norte, iniciada com a obra Chove nos campos de Cachoeira,
publicada em 1941. Sobre o Ciclo do Extremo Norte, Bolle (2014) analisa que
“oferece uma apresentação da história e da cultura cotidianas da Amazônia,
principalmente das camadas populares, que é única em termos de amplitude
e fidelidade dos detalhes” (2014, p. 65). Para o autor, a importância do projeto
literário de Dalcídio reside, sobretudo, na visibilidade que dá à fala das pessoas
do povo. A citação evidencia o valor da produção estética do romancista. As te-
máticas que perpassam suas obras dão destaque a personagens que enriquecem
a representação da cultura que compõe o cenário amazônico.
Com relação às edições da obra inaugural, a pesquisadora Regina Bar-
bosa da Costa, no estudo intitulado Imagens de leituras em Chove nos campos de
Cachoeira, de Dalcídio Jurandir (2014) ressalta que a obra estava na 7ª edição.
Dessas, apenas a segunda edição (1976), foi publicada pela editora Cátedra,
quando o autor ainda estava vivo, tendo este revisado o romance, tanto na

188
linguagem quanto na estrutura. Das outras cinco edições citadas no estudo, as
três seguintes foram publicadas pela Editora Cejup/Belém nos anos de 1991,
1995 e 1997. Esta última, uma edição especial publicada em um consórcio em
que também participaram a editora Secult/Pará e o jornal A Província do Pará.
Em 1998 saiu a 6ª publicação, uma edição crítica, pela editora UNAMA, a
partir de estudos realizados pela professora Rosa Assis. Em 2011 foi publicada
a 7ª edição pela editora 7 Letras, do Rio de Janeiro, também revisada pela pro-
fessora Rosa Assis. Ela considerou a edição do texto definitivo pois, conforme
explicou na própria obra, a edição tomou como base um “exemplar da primeira
edição inteiramente ‘emendado’ pelo autor [...] e que alcançou em torno de
95% das páginas” ( JURANDIR, 2011, p. 9). As alterações foram tantas que
até um dos vinte capítulos da obra inaugural foi retirado, justamente o que deu
nome à obra. Em 2019, a Parágrafo Editora, a partir de um financiamento co-
letivo realizado através do site Catarse, publicou a 8ª edição da obra inaugural,
retomando integralmente o texto original.
Obra de estreia do romancista, Chove nos campos de Cachoeira foi pu-
blicada em 1941 e tem sua narrativa encenada em Cachoeira do Arari, espaço
onde se apresenta a história da família do menino Alfredo, mediada pela atua-
ção do narrador que ora acompanha a perspectiva desse personagem, ora a do
seu irmão Eutanázio. A atuação do narrador, com seu discurso indireto livre,
traz a marca do romance moderno na composição literária de Dalcídio Juran-
dir. É uma estratégia composicional que marca toda sua produção literária.
Em Chove nos campos de Cachoeira (2011) Alfredo e seu meio irmão Euta-
názio dividem a função de narrador. Na condição de filho mestiço, Alfredo às vezes
tem, ainda que em pensamento, vergonha da cor de sua mãe, para, em seguida, re-
criminar-se por assim ter pensado. É descrito como um garoto feridento e sonhador
que traz consigo um caroço de tucumã, tratado como um amuleto mágico capaz
de transportá-lo a qualquer lugar. Alfredo cresce sob as influências culturais dos
pais, dos índios da região e de toda a miscigenação cabocla local. Nesse aspecto,
o caroço reveste-se de uma simbologia que se relaciona, pelo formato arredonda-
do, à origem do mundo. Alfredo vê, na pequena semente de palmeira, um portal
de fuga onírico, empregando ao caroço de tucumã significados que remetem às

189
culturas indígena e negra. Para ilustrar esse fato, basta lembrar que anéis feitos
desse material já eram utilizados por índios e negros na época da escravidão, como
símbolo de amizade e de resistência pela liberdade. Alfredo tem um meio irmão
com o nome, não por acaso, de Eutanázio, que lembra o termo eutanásia. Sofre
com a sífilis, o que justificaria seu nome, e parece não se importar com a aproxi-
mação da morte e com o amor não correspondido de Irene. Major Alberto é um
funcionário que acumula dois cargos distintos, o de secretário de Intendência e o
de adjunto do promotor público, o que faz com que os moradores lhe olhem com
desconfianças. Representa uma classe dominante e colonizadora em decadência.
D. Amélia, mãe de Alfredo, personagem feminina, negra e de condição econômica
inferior à do marido, por sua atuação despertará a atenção de muitas personagens,
seja por sua união com um homem branco de condição social diferente, seja por
suas ações benevolentes diante da comunidade. Embora seu campo de atuação seja
basicamente o familiar, suas ações são respostas inquestionáveis aos preconceitos
impostos à mulher amazônida nas suas condições. Dessa forma, a narrativa traduz
a vivência que somente um autor nascido na região teria condições de transformar
em ficção o cotidiano de uma realidade social e cultural amazônica. O resultado é
uma produção que recria e descreve a vida de moradores comuns, com seus proble-
mas pessoais, sociais, políticos e financeiros, utilizando-se de uma linguagem culta,
poética e com expressões locais.
A segunda obra do Ciclo é Marajó, publicada em 1947, também é, se-
gundo Bolle (2014), a que contém a maior diversidade de informações sobre
a cultura cabocla. Segundo o pesquisador, o episódio central da obra é um
utópico projeto de melhoria social, empreendido pelo protagonista, o filho re-
belde de um latifundiário. Com essa utopia social e a opção do romancista por
essa figura de mediação entre ricos e pobres – no plano da ação narrada, como
na tradução da cultura cabocla para o código do leitor culto – o romancista
apresenta um tema que é relevante tanto para as ciências sociais quanto para os
estudos literários e culturais. Essa obra aguardou oito anos entre sua conclusão
e publicação. Nesse período, segundo a pesquisadora Marlí Tereza Furtado
(2015), mudou de título três vezes: ao ser concluída, Jurandir a intitulou como
“Marinatambalo”, primeiro nome da ilha de Marajó. Posteriormente, Dalcídio

190
adotou o título “Missunga”, mesmo nome de uma das personagens da obra.
Marajó foi, então, o terceiro título adotado de forma definitiva por Dalcídio,
quando de sua publicação.
Em 1952, o escritor viaja à União Soviética e, em 1959, publica
Linha do parque, o único romance que não se integra ao Ciclo do Extremo
Norte. Sua edição russa foi lançada em Moscou em 1961, com apresenta-
ção de Jorge Amado.
Três casas e um rio, publicada em 1958 é a terceira obra do Ciclo. O mar-
co diferencial dessa produção, segundo a pesquisadora Marlí Furtado (2015),
é o entrecruzamento de três planos narrativos: o da realidade ficcional, que dá
conta do plano de ação das personagens, conforme suas diferentes trajetórias;
o do imaginário popular como elemento da tessitura do enredo ou como nar-
rativas recontadas por uma personagem, conforme suas diferentes trajetórias;
e o da simbologia, que salta do entrecruzamento dos dois planos anteriores e
da função que neles exercem diferentes elementos do ambiente, como a água,
o fogo, as árvores, certos acontecimentos, signos que remetem ao absconso, ao
mítico, ao arquétipo e ao esotérico.
A quarta obra do Ciclo é Belém do Grão Pará. Publicada em 1960 é o
primeiro romance urbano do ciclo. O cenário é a Belém da década de 1920,
remodelada aos moldes parisienses pela gestão do senador Antônio Lemos,
mas que registra, sobretudo, a decadência econômica que assola a sociedade
em razão da queda do primeiro ciclo da borracha. Conforme analisa Ferreira
(2016), nos tempos áureos desse produto, o político foi responsável por di-
versas medidas urbanísticas que visavam transformar a “cidade de Belém em
uma capital ao estilo parisiense” (2016, p 404). Nessa obra, que é o primeiro
romance urbano do ciclo, Alfredo realiza o sonho de estudar em Belém, mas
também se decepciona pela dura realidade da cidade em decadência, conforme
analisa Furtado (2010, p. 43), referindo-se a Alfredo:

Seu grande sonho é ir para Belém estudar. Temos, então, um dado interes-
sante: a cidade de Belém aparece na obra com duas faces, uma delas bela,
luminosa, próspera e feliz, preenchendo os sonhos de Alfredo; e a outra,

191
pobre, suja, lamacenta. Rejeitada por ele, posto ser esta a de suas recordações
de uma viagem que para lá fizera com os pais.

Quando, na casa dos Alcântaras, que o acolheram em Belém, Alfredo


vê o trem e ouve seu apito pela primeira vez, relaciona-o à Cachoeira: “Quase
o mesmo apito que ouvia das lanchas no chalé. Em vez de barcos, da ‘Lobato’
e da ‘Guilherme’, passavam trens. Vinha, com efeito, morar à margem de outro
rio? ( JURANDIR, 2016, p. 50).
Passagem dos Inocentes, publicada em 1963 é a quinta obra e marca uma
mudança no modo de narrar em relação às primeiras obras. O ritmo suave
das obras iniciais dá lugar aos fluxos de consciência, dando ao texto aspectos
angustiantes e quase surrealistas. O romance não tem um narrador de ofício,
mas personagens que através do discurso indireto livre atuam como tal. Assim
como em Chove nos campos de Cachoeira, que tinha na personagem Eutanázio
um segundo protagonista, em Passagem dos Inocentes a personagem Celeste
atua dessa forma. Sobrinha de Major Alberto, Celeste é quem acolhe em sua
casa, em Belém, o jovem Alfredo, para que ele possa estudar no colégio Barão
do Rio Branco, tradicional escola belenense. Dessa forma, a obra se divide,
basicamente, em dois focos narrativos: o primeiro centrado em Alfredo, per-
turbado diante de suas novas descobertas, nem sempre boas, e as lembranças
que o afligem vivenciadas em Cachoeira do Arari. O segundo foco é centrado
na personagem Celeste, uma mulher respeitada e ao mesmo tempo angustiada
por possuir um passado impublicável, um casamento de aparências e uma rela-
ção conflituosa com o filho Belorofonte.
Em 1967 Dalcídio publica Primeira Manhã, sua sexta obra do Ciclo
do Extremo Norte. O tema é o primeiro dia de Alfredo no Liceu, em Belém.
Desde que saiu do Marajó para estudar em Belém, aos doze anos, reside em
casa de conhecidos da mãe. Aos dezesseis anos vai morar em uma casa do
coronel Braulino Boaventura que, embora more em Cachoeira, construiu essa
casa em Belém onde mora sua irmã, dona Santa. O primeiro dia no ginásio é
tão decepcionante que a narrativa se encerra com Alfredo retornando três dias
depois e questionando se essa não seria a primeira aula de fato.

192
Ponte do Galo, sétima obra do ciclo, apresenta um Alfredo adolescente,
aluno do ginásio e que retorna, de férias, ao Chalé em Cachoeira do Arari.
Publicada em 1976 a sétima obra do Ciclo é dividida em duas partes com
os títulos I e II marcando, respectivamente, a volta ao Chalé, em Cachoeira
do Arari e, posteriormente, o retorno à Belém. A primeira parte o narrador
e protagonista Alfredo, de volta ao Chalé, relembra momentos do passado
vividos com personagens que já não estão presentes, como os irmãos Eutanázio
e Mariinha, além de personagens da vizinhança, como Didico, Salu e outros. A
segunda parte, Alfredo, também como narrador, focaliza seu retorno hos agora
sem a visão encantadora e inocente de outrora. Belém agora reveste-se de uma
áurea de cidade de periferia, desprovida de belezas e decadente.
A oitava obra do Ciclo é Os Habitantes, publicada em 1976. Nela temos
a continuação da saga do agora adolescente Alfredo, com aproximadamente
dezessete anos. O jovem vive momentos conflituosos, seja pelo mistério que
envolve o desaparecimento de Luciana, caçula do coronel Boaventura, seja pe-
las decepções com os estudos no Liceu. Conforme salienta Souza (2019), a
obra é marcada por um forte aspecto memorialista, recheada de monólogos
interiores e poucos discursos diretos, que retomam histórias e lembranças de
diversas personagens de obras anteriores.
Chão dos Lobos, penúltima obra do Ciclo do Extremo Norte, publicada
também em 1976, tem Alfredo, mais uma vez, como protagonista. Subdividi-
da em cinco partes, todas sem título, a obra é densa, com várias alternâncias
do foco narrativo e perpassadas por cenas marcadas por variações do fluxo de
consciência. A primeira parte mostra a vida de Alfredo como morador da fa-
vela “Não-Se-Assuste”, zona Norte de Belém. Na segunda, ao lado de Alfredo,
a professora d. Nivalda também se torna protagonista. Na terceira parte o en-
foque são as festas tradicionais da cultura paraense celebradas em junho, como
o boi bumbá e o São João. A quarta tem como tema as desilusões de Alfredo
com Roberta e com a perda da matrícula no ginásio, fazendo com que ele de-
cida viajar ao Rio de Janeiro. A viagem ao Rio de Janeiro é o tema da quinta e
última parte, que se encerra quando Alfredo consegue embarcar em um navio

193
cargueiro de volta a Belém, depois de muitas desilusões naquela cidade que o
levaram a ter saudade até da vista de sua janela na favela.
Ribanceira é a obra que fecha o Ciclo do Extremo Norte. Publicada
em 1978, narra a estadia de Alfredo, agora com 20 anos, na pequena cidade
de Gurupá, exercendo a função de Secretário da Intendência. Muito mais que
um intendente, Alfredo atua como um atento observador e participante ativo
da cultura ribeirinha. Como intendente, Alfredo interage com os habitantes da
ribanceira, construindo uma narrativa em fluxo contínuo e um detalhado registro
da cultura local e da sociedade gurupaense. O período abordado na narrativa é o
final da década de 1920 e o início da década de 1930, justamente um período de
grande declínio econômico em função da queda do preço da borracha. Esse fato
culminou com um longo período de desestruturação social, revelado na narrativa
pela aparência decrépita dos prédios públicos e das moradias. “A própria deno-
minação de ‘Ribanceira’ sugere uma recaída do espaço urbano nos domínios da
selva” (BOLLE, 2014, p. 96) Essa situação só viria a dar sinais de recuperação no
fim da narrativa, graças à iniciada exploração da madeira.

O romance de 30 e a produção dalcidiana

O termo “romance de 30” ou ainda com a subclassificação de “romance


regionalista de 30”, é, de fato, amplamente questionável em função das diver-
sas variáveis a serem consideradas quando tentamos criar parâmetros rígidos
que enquadrem esta ou aquela obra dentro de conceitos padronizados. Deve-
mos considerar, também, que não se trata de uma simples definição literária,
pois vai, de fato, muito além disso. Passam por questões políticas da época e
que, queiramos ou não, os atores desse universo cultural estavam engajados em
maior ou menor grau.
Como exemplo dessa dicotomia, Bueno (2015) lembra que Jorge Amado
abre seu primeiro livro, O País do Carnaval, afirmando que a obra não tinha um
princípio filosófico, não era comunista ou fascista, materialista ou espiritualista e
que o motivo por sua indefinição era que, de fato, ainda não a encontrara. Bueno
(2015) mostra que não demorou muito até o autor encontrar sua causa, já que

194
apenas três anos após, o mesmo Jorge Amado, em análise sobre os novos autores
do romance brasileiro, defende a ideia de que, em 1934, não se admitiriam auto-
res sem posição política. No Brasil, a crise política, em função da desavença entre
as oligarquias paulista e mineira, resultou na Revolução de 30 e na tomada do
poder por Getúlio Vargas, deixando o ambiente político e social bastante dividi-
do. No mundo, os reflexos da Grande Depressão de 29 ainda estavam presentes
em muitas sociedades e impunham restrições severas às famílias.
A literatura, como qualquer arte, não pode e não deve limitar o artista e
sua produção dentro de padrões estabelecidos através do espaço, tempo, estru-
tura ou tema, sob pena de, nessa busca incessante de enquadramentos, ignorar
durante anos, décadas ou mais ainda, séculos, obras que, de outra forma, teriam
seu merecido valor reconhecido no tempo em que foram escritas. Afinal, como
bem define Dacanal (1986, p. 09):

Toda arte é, por evidência, integrante e produto das estruturas históricas da


comunidade em que surge. Desta forma, traz em si, mais ou menos trans-
formadas, as características econômicas, sociais e, passe o termo, psíquicas
daquela mesma comunidade.

Extraída da obra O romance de 30, de José Hildebrando Dacanal, a ci-


tação não deixa dúvidas quanto às influências que sofre a arte, “toda arte”,
por ser fruto do olhar do artista impregnado pelas vivências e experiências da
sociedade, ou sociedades, em que vive ou viveu. Se consideramos esse entendi-
mento plausível, ainda que toda definição seja uma forma de enquadramento
discutível, o autor destaca o quanto ele se aplica quando analisamos as obras de
narrativas realista/naturalistas. Nessas narrativas, por motivos óbvios, a apro-
ximação com o real ou muito próximo a ele é uma das principais característi-
cas, distanciando-as daquelas comumente presentes nos movimentos literários
passados, tenham sido eles idealizadores ou não.
O fato é que o termo “romance de 30” não tem uma definição clara.
Inicialmente, refere-se às obras publicadas no Brasil a partir de 1928, ano da
publicação de A bagaceira, de José Américo de Almeida. Além desse autor, vá-
rios outros são comumente qualificados como romancistas de 30, como “Gra-

195
ciliano Ramos, Jorge Amado, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Raquel (Sic)
de Queiroz, Cyro Martins, Ivan Pedro de Martins e Aureliano de Figueiredo
Pinto” (DACANAL, p. 11). Entretanto, sob esse aspecto da divisão entre ro-
mance social-regional e romance psicológico, a questão central é saber se ela
ajuda ou atrapalha a compreensão do impacto da produção dessa época “sobre
a história da literatura brasileira” (BUENO, 2015, p. 37). Alfredo Bosi, como
lembra Bueno (2015, p. 37), já fez referência ao problema:

A costumeira triagem por tendências em torno dos tipos social-regional/


romance psicológico, ajuda só até certo ponto o historiador literário; passado
esse limite didático vê-se que, além de ser precária em si mesmo (pois re-
gionais e psicológicos são obras-primas como São Bernardo e Fogo Morto),
acaba não dando conta das diferenças internas que separam os principais
romancistas situados em uma mesma faixa.

Dos autores citados por Dacanal, alguns são inegavelmente considera-


dos cânones literários, cujas obras ganharam repercussão, primeiramente, nos
grandes centros econômicos e culturais brasileiros e, posteriormente, até no
exterior. Entretanto, se analisarmos suas produções na década de 30, a temática
agrária está presente em todas as obras desse período, o que levou esses autores
a serem denominados “regionalistas de 30” ou “neorrealistas”. A respeito da
relação elaborada por Dacanal (1986), Bueno (2015) ressalta que ela contem-
pla apenas uma parcela das obras, mais precisamente as de temática regional,
ignorando outros importantes autores que não se enquadram nas característi-
cas destacadas ou refere-se às obras desses autores posteriores à década de 30,
como Fogo Morto e Terras do Sem Fim, publicadas em 1943.
O termo regionalista não é novo, já foi utilizado para autores do século
XIX como Bernardo Guimarães, Franklin Távora entre outros que também
utilizaram a temática agrária (DACANAL, 1986). Hoje, esse termo enseja
uma problemática que envolve temas como preconceito e colonialismo. Por
enquanto, apenas para darmos a dimensão da problemática que representa o
termo “romancista de 30” ou “regionalista de 30”, basta lembrarmos de autores
que, classificados como integrantes desse período, produziram, nas décadas

196
seguintes, obras icônicas da literatura brasileira com temáticas urbanas, como
Érico Veríssimo, Jorge Amado e Graciliano Ramos.
Diante da ausência de um conceito apaziguador, que pacifique o en-
tendimento, Dacanal (1986) sugere considerar algumas características básicas
como definidoras do “romance de 30”. Segundo o autor, seriam três caracterís-
ticas de natureza técnica e quatro de natureza temática. A primeira delas está
relacionada à “verossimilhança”, ou seja, a narrativa é verossímil, semelhante
à verdade, sem quebras das leis físicas ou biológicas. Se não ocorreu, pode-
ria ter ocorrido. Essa característica é facilmente percebida nas obras do Ciclo
do Extremo-Norte, cujos fatos narrados correspondem claramente àquilo que
ocorreu, como a decadência econômica da região em razão da derrocada do 1º
Ciclo da Borracha, entre os anos de 1870 e 1920, ou em relação aos dramas das
personagens, sempre realistas ou muito próximas disso.
A segunda característica relaciona-se à estrutura da narrativa, através da
opção fundamentalmente linear. Não é que inexistam rompimentos da lineari-
dade, mas é inegável que tais recursos são utilizados com discrição e parcimô-
nia e não chegam a comprometer essa classificação. Essa característica também
está presente, de forma geral, na produção dalcidiana e mais especificamente,
na obra inaugural do Ciclo, Chove nos campos de Cachoeira (2011). Ainda que
haja algumas quebras da linearidade, se tomarmos a narrativa como um todo,
estão claramente definidos o começo, o meio e o fim.
A terceira característica tem relação com a linguagem utilizada, nor-
malmente, há a opção pelo código gramatical culto. Quanto a esta característi-
ca, duas explicações se fazem necessárias, a primeira, de natureza prática: não é
que inexistam termos coloquiais na narrativa, mas que estes estão relacionados
às personagens secundárias, com pouco ou nenhum estudo. A segunda expli-
cação se relaciona com o espaço urbano e as normas gramaticais inerentes a ele
que a produção será direcionada. Isso não significa uma aproximação do ro-
mance de 30 com o artificialismo linguístico utilizado nas produções do século
XIX, apenas um fato inerente às questões econômicas, sociais e culturais do
Brasil daquela época. Também essa característica é facilmente perceptível na
obra estudada, seja nas falas de Alfredo ou Eutanázio, personagens principais

197
que se revezam na função de narradores. Os termos coloquiais que fogem aos
padrões cultos estão vinculados às personagens secundárias, normalmente sem
instrução e que de outra forma, trariam um aspecto artificialista ao texto.
A quarta característica relaciona-se às estruturas históricas das obras,
facilmente identificáveis nas narrativas através das características sociais e eco-
nômicas. As personagens dessas narrativas compõem um cenário multiface-
tado que representam as estruturas presentes em qualquer sociedade, como as
que apenas integram o conjunto de viventes, as que lutam por transformações
sociais, ainda que a delas próprias, ou as que são constantemente, vítimas da
sociedade. A obra em análise possui várias personagens que se relacionam ple-
namente a essa característica, mas vamos ficar com as principais, Alfredo e
Eutanázio. O primeiro sonha em sair do lugar em que vive e ir morar na cidade
grande, já que o futuro onde mora é limitado. O segundo sofre de sífilis, que foi
um grande problema de saúde pública na época, uma doença que irá levá-lo à
morte, mas pouco faz para mudar sua trajetória.
A quinta característica podemos considerar um aprofundamento da
anterior, pois refere-se ao fato de que as estruturas históricas citadas nas nar-
rativas dessa geração são, geralmente, agrárias. Quando diferem desse aspecto,
situam as personagens no mundo urbano, mas os vinculam ao agrário, de onde,
geralmente, surgem os conflitos do enredo. A Amazônia focalizada por Juran-
dir vai de “1920, com retrospectivas à época áurea da borracha, encerrando o
último romance da série com alusões à revolução de outubro de 1930” (Furta-
do, p. 193). Com relação à obra Chove nos campos de Cachoeira (2011), esta ca-
racterística pode ser relacionada aos espaços descritos no enredo, que envolvem
tanto o ambiente interiorano quanto o urbano. Não cabe aqui destacar este ou
aquele como de maior relevância, já que ideia de sair do interior rumo à cidade
vai ganhando corpo à medida que Alfredo vai crescendo e acaba se alternando
no decorrer das demais obras que compõem o Ciclo do Extremo-Norte.
A perspectiva crítica é outra característica que Dacanal (1986) destaca
nas produções dos romancistas de 30. De fato, muitas obras associadas a esse
grupo, trazem, de forma mais clara ou menos explícita, posicionamentos em
relação à política, às questões sociais e econômicas que envolvem as persona-

198
gens em suas tramas. Se tomarmos como exemplo a obra Marajó, basta lembrar
que no episódio central, Missunga, apelido de Manuel Coutinho Filho, filho
rebelde de um latifundiário, empreende um utópico projeto de colonização de-
nominado “Felicidade”. Pura ironia, afinal, Missunga descobrirá os problemas
que o impedirão de concretizar “Felicidade”. A trama tem uma forte crítica
social ao narrar as dificuldades para quebrar paradigmas que mantinham a
miséria, a desigualdade e o poder dos coronéis no arquipélago paraense.
A última característica a ser destacada nas obras dos romancistas de 30
faz alusão a um forte otimismo na capacidade de reformar o que está errado
e contornar os problemas. A capacidade das personagens de modificar-se e
com isso construir um mundo novo, o seu mundo novo, a partir da apreensão
de tudo que o rodeia, sem qualquer barreira entre o real e o racional, é um
dos aspectos destacados nas obras desse período, segundo Dacanal (1986). O
exemplo mais marcante é Paulo Honório, da obra São Bernardo, com sua crue-
za naturalista, cuja evolução patrimonial é impressionante, ainda que discutível
eticamente, mas sem qualquer recurso milagroso de herança, dote ou prêmio,
muito comum nas obras românticas. Entretanto, Bueno (2015) ressalta o fato
de que essa afirmação não integra a obra, baseia-se em algo fora dela. Segundo
ele, o mundo é passível de transformação nos romances de 30, porém, não há
registro de qualquer narrativa que configure tal facilidade, nem mesmo nas
obras de Jorge Amado, considerado o mais engajado dos romancistas da época
e que, por consequência, deveria ser o mais otimista.
Com destaque à obra de estreia de Dalcídio Jurandir, de fato, como afir-
ma Bueno (2015) pode-se afirmar que Alfredo vislumbra um futuro promissor
em Belém, longe de onde mora. Podemos ainda citar a personagem Amélia em
situações distintas: quando decide mudar de vida, até então de muito trabalho
e sofrimento; e de lugar, ao aceitar o convite para acompanhar Major Alberto
e com ele iniciar uma relação conjugal. Também quando Amélia demonstra
determinação em enviar Alfredo para estudar em Belém, nem que para isso
tivesse que voltar a trabalhar na cidade para sustentá-lo. Se tomarmos a obra
Marajó (1947), temos mais uma referência de uma “vontade” de transformar o
real, quando Missunga tenta implantar o projeto de colonização na ilha. Os

199
destaques acima podem confirmar um certo otimismo de mudança de rota,
porém, não há qualquer demonstração de que elas foram fáceis ou mesmo que
ocorreram, como no caso de Missunga, bastando a “vontade dos indivíduos e/
ou do grupo para que a consciência, que domina o real, o transforme” (DACA-
NAL, 1986, p. 15).

Considerações

Desprovido que qualquer preconceito quanto à classificação da produção


dalcidiana em romance de 30 ou não, já que nenhuma classificação seria capaz de,
plenamente, considerar todos os aspectos e nuances que envolvidos numa obra
literária, se adotarmos tais parâmetros a obra Chove nos campos de Cachoeira (2011),
de Dalcídio Jurandir, enquadra-se perfeitamente. Entretanto, se buscarmos apenas
o enquadramento de uma obra, deixamos de considerar a real importância do con-
junto da produção dalcidiana. Como ressalta (MALIGO, 1992) “De 1941 a 1978,
o escritor paraense Dalcídio Jurandir teve publicados dez romances que formam
um panorama amazônico sem paralelo na literatura brasileira” (1992, p. 48). Ainda
assim, passados quase 80 anos desde a publicação da primeira obra, o autor ainda
é desconhecido para a maioria dos editores, estudiosos e estudantes brasileiros,
mesmo tendo recebido dois importantes prêmios literários: o primeiro da Vecchi-
-Dom Casmurro para a obra Chove nos campos de Cachoeira, o que possibilitou sua
primeira edição em 1941, e o segundo, o prêmio Machado de Assis, da Academia
Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra até 1972 (MALIGO, 1992).
Com relação ao romance de 30, a manutenção da divisão crítico-lite-
rária entre regionalistas e intimistas é tão falha quanto insistir na superposi-
ção do problema sobre os demais aspectos literários. Isso significa que, se o
objetivo do autor é descrever o retrato de uma região, a esta obra não deve ser
atribuído o termo romance, já que dela deve ser exigido a fidelidade àquilo
que se propõe retratar. Já o romancista está liberto de qualquer amarra à rea-
lidade e à fidelidade, podendo exercitar plenamente sua habilidade criadora,
inventando, moldando ou mesmo retratando fatos, tipos e costumes a partir
da expressão pura de sua arte literária.

200
As obras do Ciclo do Extremo-Norte caracterizam-se pela temática
amazônica, narrativa em terceira pessoa com diálogo e monólogo interior.
Dos dez romances do Ciclo, nove deles focalizam a vida de Alfredo entre
a infância e a adolescência. Marajó, única obra que não tem Alfredo como
personagem principal, é também, segundo Bolle (2014) a que possui, sobre a
cultura cabocla, a maior quantidade de informações.
Se a produção dalcidiana causa curiosidade quando, hoje, avaliam-se
os motivos pelos quais, apesar de premiada quatro vezes, não alcançou o su-
cesso editorial e crítico nas décadas passadas, associando-o muitas vezes a um
escritor menor, a história está sendo reescrita atualmente. Diversos estudiosos
vêm contribuindo para o redescobrimento do importante legado de Dalcídio
Jurandir e, se no passado seu nome foi associado a autores com menor expres-
são literária, atualmente essa associação não encontra respaldo nos meios aca-
dêmicos e literários. Referindo-se às obras de Dalcídio Jurandir, Paulo Nunes
(2001) considera que a interiorização densa com experiência interior o afasta
da produção regionalista, sendo genuinamente uma característica dalcidiana.

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Acesso em: 30/08/2019.

203
CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA, DE DALCÍDIO
JURANDIR E O CENÁRIO DO ROMANCE DE 30

Núbia de Souza Silva

Introdução

A visão da Amazônia sem predominância da natureza exuberante que


antes privilegiava a descrição dos romances naturalistas também é cenário na
obra de Dalcídio Jurandir. O romancista foge dos modelos de cantar a natureza
e engrandecê-la com um olhar ufanista. Contrariando essa perspectiva, suas
obras mostram a outra face, a face em que a floresta castiga, os rios se enchem
e a natureza cobra seus desgastes.
Na estrutura dessas formulações, a abordagem proposta por este es-
tudo desenvolve-se a partir das relações entre a obra Chove nos campos de
Cachoeira (1976) e o Romance de trinta. Sob essa contextualização, Dal-
cídio fez parte dessa geração, marca por um momento quando os autores
começaram a escrever sob a ótica do social, fazendo denúncias, falando
sobre o governo da época e as mazelas que consequentemente apareceram
depois da Segunda Guerra Mundial.
Nessa perspectiva, ganha visibilidade o contexto social da obra Cho-
ve nos Campos de Cachoeira, a literatura de Dalcídio Jurandir, a circulação e a
recepção crítica de suas obras no seu horizonte poético. Em seu processo de
criação literária, o autor problematiza não só a região do Pará, mas o homem
amazônico inserido dentro de um cenário caótico social, em suas complexida-
des, incapacidade de transcendência e sem perspectiva de vida melhor.

A Amazônia no projeto literário de Dalcídio Jurandir

A produção literária de Dalcídio Jurandir apresenta, como um


dos um dos traços de sua estética, a representação do povo amazônico

204
em situação de decadência refletida na vida das personagens e na re-
criação do cenário amazônico onde se devolvem suas tramas narrativas.
Marli Tereza Furtado, pesquisadora de Dalcídio, afirma que o autor de-
monstrou em seu projeto literário (SOIHET, 2004, p. 325):

a construção romanesca de uma certa Amazônia. Uma Amazônia derruí-


da, sem perspectivas, atônita após a derrocada de um ciclo econômico que
ergueu palácios, teatros, palacetes; que deu ares europeus às altas tempera-
turas locais. Enfim, uma Amazônia nada misteriosa, uma região específica,
obviamente com suas singularidades, mas na qual se cumpriu um ciclo cuja
queda revelou-nos a fragilidade de nosso sistema de produção da borracha.

Dessa forma, o autor paraense percebeu que já era tempo de represen-


tar a realidade da nossa Amazônia, para que se fizesse conhecer um lado que
muitos exploradores já haviam conhecido, como o da Amazônia endêmica,
perigosa e mortal, mas também deslumbrante, exótica e grandiosa. Em seu
fazer literário, Dalcídio coloca em evidência uma Amazônia personificada, em
simbiose com os conflitos de seus habitantes, explorada em suas riquezas e
devastada com o declínio da economia na região.
Dentro desse contexto, Dalcídio Jurandir cria seus romances desnudan-
do a região Amazônica, especificamente a parte em que se situa a cidade de
Belém e a Ilha de Marajó, colocando em evidência o estado decadente dos
locais, bem como das pessoas que ali habitavam. Essa marca de decadência ou
corrosão, como afirma Furtado (2002), perpassa toda a obra Chove nos campos
de Cachoeira, que o autor simplesmente delineia do começo ao fim como o
vai e vem das águas dos rios. Sobre os dez romances que compõem o Ciclo do
Extremo Norte, Benedito Nunes (2000) afirma tratar-se de um ciclo romanesco,
pois é um projeto contínuo que interliga todas as obras do ciclo; caracteriza-se
por ser constituído pelo entrelaçamento das personagens, a partir das situa-
ções por elas vividas. No artigo intitulado Boca do Amazonas: roman-fleuve e
dictionarium caboclo em Dalcídio Jurandir, Willi Bolle (2014) afirma que o fazer
literário do autor, o modo como criava suas obras é comparado com o de Dos-

205
toiévski e Guimarães Rosa. Trata-se de uma crítica que reconhece o lugar que
Dalcídio deveria ocupar, porque sua literatura é nata e peculiar.
Imerso nesse contexto de recepção crítica, temos o primeiro romance
de Dalcídio, Chove nos campos de Cachoeira, introduzido no meio literário como
“rebento primogênito do ciclo Extremo Norte”. Nas palavras de Paulo Nunes
(2000), traz uma narrativa forte, com vasto teor existencialista e as dualidades
do mundo no ser humano como o bem e o mal, morte e vida, bom e ruim,
amor e ódio, céu e inferno, saúde e doença. Convém ressaltar que o tema sobre
doença é recorrente nesta obra, pois suas personagens revelam suas mazelas
físicas ou psicológicas em suas trajetórias na narrativa.
O espaço encenado é povoado por personagens carentes, simples e com
seus problemas comuns a qualquer ser humano. Embora ficcionalmente, as
personagens que trafegam em Cachoeira do Arari espelham as pessoas que pas-
saram por uma década conturbada de doenças graves e sem cura como a sífilis,
doença disseminada já no fim do século XIX. Nesse contexto histórico, essa
doença se tornou um problema de saúde pública tornando a vida das pessoas
mais difícil, pois com dificuldades financeiros não tinham como se tratarem.
Na corrida pela sobrevivência, buscavam superar seus limites e com isso o psi-
cológico de cada indivíduo ficava afetado a ponto de travarem um conflito
existencial. Chove nos Campos de Cachoeira simboliza essa questão existencial,
conforme revela a passagem: “Há uma necessidade do mal num ser humano.
A sua perversão que pula do inconsciente é como uma advertência. Em Euta-
názio, a perversão como sempre vinha do espírito. O instinto é sempre puro”.
( JURANDIR, 1976, p. 142). Apesar dos conflitos internos, todas as persona-
gens dessa obra sofriam de algum mal físico. As doenças existentes nessa época
eram a grande preocupação das pessoas na situação de miséria que se encon-
travam, pois se adoecessem, não tinham como custear o tratamento e, com isso,
a única saída era se preparar para a morte, conforme revelam os excertos:

[...] Cachoeira, desgraçadamente, se encontra em bom estado sanitário.


( JURANDIR, 1976, p.44).
[...] A guerra mandara a Espanhola para Cachoeira. E Doutor Campos

206
vermelho de cachaça com limão, bradava:
_ É a influenza em Cachoeira e o bolchevismo nas estepes! ( JURANDIR,
1976, p. 89).
[...] _ Todos perdem, é isso. Todos perdem. Estou perdendo meus pulmões
aqui nesta barraca velha. Casa velha que já está arriada. Poeira. Não posso
me tratar. Acabo tísica. ( JURANDIR, 1976, p. 101).

Dalcídio não se restringe a uma só temática. Ele parte de um tema que


vai servir para gerar outro tema e, assim, a história vai se desenrolando, mon-
tando todo o cenário da obra, colocando em evidência a história de cada per-
sonagem. É o caso da personagem Eutanázio que no início da obra já aparece
doente, porém o leitor só vai descobrir como ele adquiriu a doença depois que
lê a parte que fala de Felícia, mulher que lhe transmitiu a sífilis. Ao revelar a
trajetória de Felícia, como ela pegou a doença, a narrativa vai desvelando toda
a trama.
Por esse viés temático, a obra não deixa de fazer uma alusão ao contexto
histórico da época, quando o governo não subsidiava remédios e tratamentos
a pessoas que viveram o enfrentamento das doenças incuráveis sem nenhum
auxílio. Por conta disso, o viés psicológico ganha contorno na ficção dalcidia-
na, quando o autor dá visibilidade à imagem de como o ser humano era foco
de estudos comportamentais frente às desilusões, aos problemas financeiros e,
principalmente, aos problemas familiares.
Dalcídio Jurandir é um escritor reconhecido em meio a tantos auto-
res rotulados como regionalista. Sua produção literária chamou a atenção de
pesquisadores que se debruçaram sobre suas obras e contribuíram para o enri-
quecimento da sua fortuna crítica. Essa constante retomada da obra no meio
acadêmico vai ao encontro do que Jauss (1994) denomina de “um aconteci-
mento literário”. Em consonância com o que pontua Zappone: “Logo, o texto
literário não é um fato, sem uma ação, mas um ato de recepção (2019, p. 189).
Nesse ato de recepção, o leitor é o protagonista em retomar e propagar o texto
literário por meio de sua apropriação.
Dalcídio Jurandir era paraense, nascido em Ponta de Pedras, na Ilha
de Marajó. Foi escritor e jornalista. O conjunto de sua obra consta de onze

207
livros publicados, dez formam o chamado Ciclo do Extremo Norte: Chove nos
Campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três Casas e um Rio (1958), Belém
do Grão - Pará (1960), Passagem dos Inocentes (1963), Primeira Manhã (1968),
Ponte do Galo (1971), Os Habitantes (1976), Chão de Lobos (1976), Ribanceira
(1978) e um livro publicado isoladamente desse ciclo, intitulado Linha do Par-
que (1959). Todos escritos entre 1939 e 1978.
O romance Chove nos campos de Cachoeira (1941) é a primeira obra de
Dalcídio Jurandir, a que abre o Ciclo do Extremo Norte. Para Moreira, “Chove nos
Campos de Cachoeira é um livro embrionário no qual estariam todos os temas
futuramente desenvolvidos nos outros nove romances do ciclo Extremo Norte”
(2015, p. 137). A partir desse embrião, os temas e personagens serão retoma-
dos nas obras seguintes. É nessa obra que nasce a saga de Alfredo, protagonista
que corre em busca do sonho de ir estudar em Belém. Ao manusear o caroço de
tucumã nas mãos, o menino Alfredo cria um mundo imaginário, uma espécie
de microcosmo ( JURANDIR, 1976, p. 21):

Alfredo sentou-se na escada. O caroço ficará nos campos queimados con-


tando a história do faz-de-conta. Agora tem que ir ao tanque escolher outro
caroço que fale com o outro, lhe mostre os campos de Holanda, o arranque
daqueles campos mormacentos. A vila caía num sono profundo como uma
menina doente. Por que sua mãe não resolvia logo o caso do colégio? Al-
fredo não sabia que voltava com a escura solidão dos campos queimados,
estava mole, com um indefinido esmorecimento.

Os pensamentos de Alfredo revelam sua cosmovisão impulsionada pelo


caroço de tucumã. Tudo que a personagem pensa e sente, o narrador se encar-
rega de transformar em monólogo profundo, deixando transparecer seus dife-
rentes sentimentos. Nesse processo de evidenciar as emoções das personagens,
Dalcídio se desprende das amarras de situar a narrativa em tempo e espaço
determinados, pois prevalece a condição humana, a introspecção, característica
atemporal inerente a qualquer ser humano em qualquer espaço geográfico.
É uma obra intensa, que revela os medos, as angústias e os desejos dos
personagens, em meio a um espaço marcado pela desolação. Sua tessitura

208
narrativa é perpassada pelo teor psicológico, que, sobretudo, evidencia um
cenário amazônico sofrido, decaído, doente, características de uma época difícil
afetada pelos horrores da guerra.
Esse cenário de destruição do pós-guerra também deixou marcas no
Brasil e atingiu as pessoas que sobreviveram e que passaram a não ter pers-
pectiva de vida. Esse período marcou a vida das pessoas que, pelo devaneio,
buscavam o que queriam ser ou fazer para melhorar suas vidas. Surge, assim,
um período em que todas as desgraças eram narradas em forma de romance.
Sobre essa atuação do romance, Cortázar (1993, p. 65) afirma:

O romance enfoca os problemas de sempre com uma intenção nova e es-


pecial [...] cada romance representa ou tenta uma nova contribuição ao co-
nhecimento do mundo subjetivo; mas que interessa ao romancista enquanto
operação preliminar de toda volta à narrativa pura e simples.

Portanto, ora denunciando os descasos dos governantes com o povo, ora


contando histórias de pessoas que sofriam com a situação de miséria ou, ain-
da, mostrando que em meio à destruição havia esperança de dias melhores, “a
presença inequívoca do romance em nosso tempo, se deve ao fato de ser ele o
instrumento verbal necessário para a posse do homem como pessoa, do homem
vivendo e sentindo-se viver” (CORTÁZAR, 1993, p. 67). Emoldurado em tan-
tos problemas sociais, a condição humana está no centro das relações do homem
com o mundo e com os outros homens, uma constante no romance dalcidiano.
Dentro desse contexto, a obra Chove nos campos de Cachoeira nasce na
década de 1930, porém só é publicada em 1941. Nasce junto com o conflito
dos modernistas da primeira geração, contrários à escrita de romances feitos
a partir das mazelas que o país enfrentava. Aliás, o mundo inteiro passava
por crises políticas, sociais, econômicas e culturais por causa da guerra, essas
questões geravam temáticas para as quais os escritores voltavam seus olhares e
criavam suas obras. Em contrapartida, também havia escritores que criticavam
essas criações por acharem que essas temáticas não eram próprias para serem
romanceadas. Com isso, os conflitos entre escritores pairavam nessa não acei-

209
tação de obras criadas a partir dessas desgraças, sob o argumento de que isso
não era romance e que qualquer um podia escrever.
No romance, a história narrada passa pela decadência da região norte,
pela pobreza das pessoas, mas, sobretudo, é enviesada pelos sonhos, angústias,
aflições e desejos de cada personagem em suas buscas pela sobrevivência. É o
caso do protagonista Alfredo, um menino que sonha em morar em Belém, por-
que quer ter a oportunidade de um estudo melhor e usufruir do que a cidade
poderia lhe oferecer (DALCÍDIO, 2011, p. 79-80):

Quando for para Belém não que ir para aquela cidade triste, cheia de lama,
com meninos sujos, homens rotos e tisnados que passavam carregados de
embrulhos, com carrinhos de mão vendendo bucho, com uns velhinhos ba-
tendo na porta e estendendo a mão [...]. Queria ver o Círio, a Santa na
berlinda, [...] o museu, queria ao menos ver os colégios e as livrarias onde se
vendiam as histórias maravilhosas que sempre desejava.

Dalcídio leva a história de Alfredo nos romances seguintes, transforman-


do o sonho da personagem numa saga em busca de sua realização. Outro perso-
nagem que também ganha grande destaque na obra é Eutanázio, irmão mais ve-
lho de Alfredo, que chama atenção pela sua pertinência diante de um amor não
correspondido por Irene. Ao contrário de Alfredo, Eutanázio não busca realizar
seu sonho, embora muitas vezes, no seu interior, afligia-se por isso. Ele busca a
morte, ou ao menos tenta se convencer de que já está condenado a ela e com isso
ganha toda atenção do leitor no desvelamento de sua história.

Chove nos Campos de Cachoeira e o Romance de 30

Na literatura brasileira do final do século XIX até metade do século XX,


surge a fase chamada romance de 30, uma denominação atribuída, segundo
Dacanal, “[...] a um conjunto de obras de ficção escritas no Brasil a partir de
1928, ano da primeira edição de A bagaceira, de José Américo de Almeida, o
qual, como está implícito, integra o grupo de autores obviamente qualificados
de romancistas de 30. (1986, p. 11).

210
Embora seja uma denominação sem muita ênfase, essa fase trouxe para
nossa literatura a questão regional, religiosa e social em obras escritas no calor
da desigualdade, da pobreza e na questão ideológica de um país melhor. Ainda
segundo Dacanal (1986), fazem parte desse cenário escritores como Graciliano
Ramos, Jorge Amado, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Cyro Martins, Ra-
quel de Queiroz, Ivan Pedro de Martins e Aureliano de Figueiredo Pinto. Em
comum, produziram obras de temáticas agrárias e escreveram na década de 1930.
Com isso, o enfrentamento para se dispor de uma literatura conserva-
dora, romântica e naturalista gerou no meio literário conflitos entre os autores
das primeiras fases do modernismo, culminando na negação de obras consi-
deradas intimistas, ruralista e artificial. Segundo Pereira, apareceram “surtos
regionalistas”. (1957, p.187). Dentro dessa questão, os escritores não se intimi-
daram com as críticas e passaram a escrever de maneira verossímil, ressaltando
contextos históricos lineares, que representavam a realidade de um país em
decadência política, econômica e social. Surge assim, a literatura de denúncia
social, de pobreza regional, de conflitos rurais e urbanos, que ganharam des-
taques em obras de grandes escritores como O Quinze (1930), de Raquel de
Queiroz; Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos; Usina (1936), de José Lins
do Rego, dentre várias outras que tematizaram sobre os aspectos acima citados.
Nesse sentido (DACANAL,1986, p.10),

não importa que o conceito de romance de 30 tenha sido e continue sendo


usado de forma pouco rigorosa, que não se saiba exatamente seus limites
ou, até que não possa ser claramente delimitado. O importante é que ele
identifica um fato claramente constatável na evolução da ficção brasileira.

Dentro desse contexto, Chove nos campos de Cachoeira é uma obra intros-
pectiva, densa e intensa, que narra a história de pessoas simples, com sonhos
e desejos comuns, que almejam um final feliz em suas vidas. Narra também a
pobreza do povo da Amazônia, o psicológico do ser humano como fuga, numa
tentativa de se sentir em outra realidade. Fala das doenças incuráveis como
a sífilis, resultado de uma era de guerra que transforma a vida das pessoas em
apreensões e medo da morte. Mostra a decadência social, moral, econômica e

211
pessoal, temáticas que vão ao encontro da caracterização do romance de 30.
Sobre o romance social brasileiro de 30, Bueno (2015, p. 23) afirma:

Como se sabe, esta vertente colaborou grandemente para que se ampliassem


as possibilidades tanto temáticas quanto da constituição de um novo tipo de
protagonista para o romance brasileiro. A incorporação dos pobres pela fic-
ção é um fenômeno bem visível nesse período. O pobre [...] transforma-se
em protagonista privilegiado nos romances de 30, cujos narradores procu-
ram atravessar o abismo que separa o intelectual das camadas mais baixas da
população, escrevendo uma linguagem mais próxima da fala.

Essa incorporação é uma marca na composição das personagens esco-


lhidas por Dalcídio Jurandir para dar vida e significado ao universo por ele
criado. Dessa forma, temos como relevância aspectos sociais e psicológicos que
corroboram a caracterização de um escritor da década de trinta. Essas foram
algumas das características que impulsionaram autores dessa década a escrever
seus romances em uma vertente denunciadora, imersos em um período quando
os países estavam tentando se reerguer do caos deixado pela guerra.
No Brasil, a situação não estava diferente. Havia o Estado Novo, a Di-
tadura, um governo intolerante e militar que travava uma guerra interna com o
povo, deixando um rastro de desigualdade e injustiças sociais denunciadas nas
entrelinhas dos romances. A proposta não é estabelecer relações entre história
e literatura, mas uma complementa a outra no diagnóstico do contexto da obra
Chove nos campos de cachoeira, bem como em muitas outras obras escritas nesse
período de trinta.
As regiões norte e nordeste foram as que mais sofreram com os descasos
dos governantes. No caso da região Nordeste, as crises da seca, da miséria do
trabalhador rural culminaram para a criação de romances impulsionando os
autores a revelarem um cenário conturbado de crise econômica e social comum
às duas regiões.
Em Chove nos campos de Cachoeira (1976), há a decadência existente na
região Amazônica, juntamente com o povo que nela vive. A natureza que antes
era exaltada por sua exuberância, pelo exótico e por sua grandeza, é encenada

212
em um cenário diferente. Há a representação de uma Amazônia destruída pelo
fim do ciclo da borracha, fim da guerra que, mesmo de longe, afetou até a mais
remota região e refletiu nos moradores da Ilha de Marajó, onde cada um conta o
que lhes aflige e suas perspectivas para dias melhores ( JURANDIR, 1976, p. 38):

Ouvia contarem das festas do Itupanema. Da crise da borracha. Os serin-


gais desertos. A miséria. Uma vez ou outra teimava decifrar uma charada,
contava as cartas do baralho, arrumava os dominós na caixinha. Encolhido,
enervado ou absorto, ouvia no serão muito calmo de sua tia Eponina, as mil
e uma noites domésticas do vilarejo, vida alheia, crise, abusões, quebranto
em criança, mau olhado em moça noiva, canoa que tinha de chegar, doen-
ças, negócios bons e maus, marisco, apanha de açaí, a saúva nas plantações, a
lembrança dum morto, a ideia de jogar uma bisca, um dominó, chuva, calor.
Eutanázio abria a boca com sono.

Todos esses aspectos são reflexos de uma década de pessimismo que


tanto sofrimento trouxe à humanidade. Diante desse cenário, começam a apa-
recer os romances de cunho social, que vêm com uma carga forte de denúncias,
mostrando tudo que estava acontecendo naquele momento. Luís Bueno, na
sua obra Uma história do romance de 30, enfatiza que: “[...] os anos 30 são uma
época do romance social de cunho neonaturalista, preocupado em representar
quase sem intermediação, aspectos da sociedade brasileira na forma de narrati-
vas que beiram a reportagem ou o estudo sociológico” (BUENO, 2006, p. 19).
Nessa perspectiva, foram criadas narrativas a partir do teor social com a finali-
dade de mostrar os desmandos de um governo ditador, a miséria que assolava
todo o país, o ser humano que por sua vez lutava sem ver os resultados de sua
luta. Os romancistas convocaram essas temáticas para a composição dos seus
escritos, como meio de internalizar uma época conturbada e se aproximar mais
do seu próprio povo, como uma forma de falar uma mesma língua.
A geração de 30, portanto, foi marcada por escritores que quebraram
regras, tanto no que diz respeito ao uso da linguagem coloquial, quanto na
produção de uma literatura voltada para as injustiças, a pobreza, a vida rural em
decadência e a luta pela igualdade de classes. Todavia, havia uma antipatia en-

213
tre escritores do próprio modernismo, os chamados da primeira geração, aque-
les da semana de 22 que relutavam em aceitar as narrativas de seus sucessores,
dizendo ser uma literatura ruim, imprópria e regionalista. Assim definiam os
autores que fizeram parte da geração de 30, regionalistas (BUENO, 2015).
Sob essa ótica, o termo regionalista carrega o peso, o estigma de uma
literatura menor. Contudo, se era uma época em que o contexto literário estava
voltado para os problemas sociais de cada região, torna-se incompreensível a
não aceitação de escritores que escreveram sobre sua região, mas não tiveram
o privilégio de se consagrarem grandes escritores. Segundo Maligo: “desenvol-
veu-se na direção de uma tomada de consciência de questões regionais. Neste
contexto, seu interesse parecia mais voltado a relações sociais do que a proble-
mas culturais” (MALIGO apud Bosi, 1992, p. 48).
Motivada por essas características, a geração de 30 criou seus romances
envoltos num quadro de crises sociais, porque era o contexto daquele momen-
to, os problemas peculiares de cada região serviram de inspiração para seus
escritores. Contudo, somente três ou quatro se destacaram nessa época: Graci-
liano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
No entanto, outros escritores também fizeram parte desse cenário e
mereceriam ser estudados com mais profundidade, não pela delimitação do re-
gional, mas pela produção artística que se configuram suas obras. O não reco-
nhecimento dessa literatura os impelem à margem. Conforme analisa Maligo
(1992), foi o que aconteceu com Dalcídio Jurandir, um autor que “permanece
relativamente ignorado pelos críticos literários, da mesma forma como a maior
parte da literatura de inspiração amazônica é praticamente desconhecida de
editores e estudiosos” (1992, p.48).
Grandes escritores foram e ainda são ignorados por fazer uma literatura
de expressão regional, por escrever sobre sua origem ou sobre o povo da sua re-
gião. Foi o que fez Dalcídio, escreveu sobre sua região e, principalmente, sobre
seu povo e tudo que o envolvia, questões sociais, culturais e psicológicas, em
um momento quando tudo se encontrava em desarmonia.
Corroborando essa ideia de vidas decaídas na obra, Moreira em seu ar-
tigo sobre A recepção de Chove nos campos de cachoeira afirma que “o fato da obra

214
ter seu enredo contado no norte do Brasil, já foi o principal motivo para que os
críticos a colocassem sob suspeição” (2015, p. 132). Dessa forma, fica evidente
que houve uma não aceitação das obras originadas na década de 30 por alguns
críticos. Essa recusa partiu, inclusive, de escritores que lançaram suas críticas a
respeito dos novos autores que iam surgindo com suas temáticas regionais, psi-
cológicas e sociais, deixando os primeiros modernistas com certa indignação.
Nesse sentido, para esses críticos, o regionalismo configurava-se em um
fenômeno momentâneo, desprovido de valor literário, sem nenhuma denomi-
nação mais relevante como arte. Entretanto, havia quem se manifestasse em
defesa da nova geração, como nos mostra Luís Bueno (2006, p. 46):

O novo para Graciliano é representado pelos romances publicados depois


da revolução de 30. O que vinha antes ou era o ‘academicismo estéril’ ante-
rior ainda ao movimento modernista e à revolução, ou era, um pouco mais
tarde, ‘retórica boba.

Encontramos nesse cenário o escritor marajoara Dalcídio Jurandir, que


nas palavras de Paulo Nunes (2000, p. 5) “é um escritor admirável e que neces-
sita ser redescoberto pela crítica nacional”. A fortuna crítica construída sobre
as obras de Dalcídio revela que ele merece reconhecimento. Foi ganhador de
prêmios literários importantes, bem como possui referências que o designam
como autor de uma escrita marcante, produtor de excelentes obras.
Seus romances representam parte de uma Amazônia marcada pelo
declínio do ciclo da borracha e, junto com esse declínio, as expectativas dos
habitantes que dependiam dessa economia para sua sobrevivência. A obra,
portanto, leva o leitor a refletir sobre uma década em que tudo estava perdido,
inclusive o próprio ser humano. É essa condição humana que Dalcídio capta,
ou seja, o íntimo de cada personagem, deixando transparecer o que há no inte-
rior de cada indivíduo, conforme revela a passagem ( JURANDIR, 1976, p.36):

Eutanázio acabou não adivinhando a utilidade de saber ler e escrever. Tudo


seria a mesma coisa. A vida teria a mesma cara e a mesma coroa, quem era
rico e os que eram pobres, o almoço e o jantar, a fome e a morte. Deus, os

215
anjos e S. Pedro com as chaves no céu. O sol nascia e morria. Queria apren-
der para mudar o sol. O sol nascer na meia-noite. Mudar de rumo. Em vez
de sentar no poente desaparecer no meio-dia. Que a gente não dormisse.
Enfim saber ler e escrever para mudar a face das coisas.

As estratégias empregadas por Dalcídio, por meio de expressões que


evocam um tom sóbrio na narrativa, têm seus desdobramentos nos aspectos
físicos e psicológicos das personagens que atuam no cenário encharcado de
Cachoeira do Arari. Nesse contexto, o autor, segundo Willi Bolle, “deixar falar
sobretudo as pessoas do povo, dando-lhes assim uma voz na literatura brasi-
leira e, com isso, também na esfera pública (2014, p.65). Essa era também uma
das características dos escritores de 30: deixar as pessoas terem voz, não im-
portava se iam ser ouvidas ou não, mas precisavam falar e atuar como elemento
ativo de transformação da sociedade.
Sob essa configuração, Chove nos campos de Cachoeira está cheio de vozes
que representam, sobretudo, as camadas mais simples da sociedade. São vozes
que se anunciam das margens, contando suas histórias e revelando sua exis-
tência em um momento de sofrimento e tribulações. Esses registros marcam a
narrativa pelo emprego de expressões linguísticas proveniente dos habitantes
da região norte, dando visibilidade à cultura do povo amazônico.
Dalcídio foi criticado por escrever de maneira simples, fugindo da retó-
rica e do padrão estético defendido pela crítica da época, sem teor formal na sua
linguagem, utilizando monólogos e narrador em terceira pessoa. Nesse sentido,
Maligo afirma: “Ademais, quer tomados separadamente ou em conjunto, os ro-
mances de Jurandir exibem um nível de realização formal que o coloca entre os
melhores da literatura brasileira de pós-modernismo.” (MALIGO, 1992, p. 48).
Em contrapartida, há críticos que reconhecem o nível de seu fazer literário e o
coloca entre os melhores escritores, consideram que suas obras representam um
desabafo do seu eu nas questões políticas e, sobretudo, na representação estética
daquelas pessoas menos favorecidas, que habitam no contexto rural amazônico.
Todas essas marcas dão singularidade à produção literária de Dalcídio
Jurandir e impulsionam o resgate do nome do autor à cena literária. Seus ro-

216
mances possuem grande relevância para a literatura nacional e representam
um modelo particular de quem consegue escrever sobre as dualidades do ser
humano. O maniqueísmo relacionado às crises existenciais do ser humano,
os conflitos econômicos e políticos de sua região, bem como a profundidade
psicológica de suas personagens dão o tom a sua escrita. Esse existencialismo
tão presente na obra de Dalcídio, configura-se na dualidade que o ser humano
possui diante do bem e do mal, do amor e do ódio, do certo e do errado, ou seja,
diante das escolhas que o indivíduo pode fazer, os caminhos que pode seguir e
engendram o percurso das personagens na narrativa.
Chove nos campos de Cachoeira concentra essas temáticas que têm conti-
nuidade nos outros noves romances que sucedem e mostram o desfecho de cada
personagem nascida nessa primeira obra. Essa criatividade faz com que o leitor
busque nas outras obras a sequência da trajetória das personagens, principal-
mente no protagonista que luta em busca de realizar seu sonho. Com exceção do
personagem Eutanázio, que tem seu desfecho na primeira obra, os outros ainda
vão se fazer conhecer, exemplo de Dona Amélia, mãe de Alfredo, que Dalcídio
vai contar sua história na obra Três Casas e Um Rio, terceiro romance do ciclo.
As leituras feitas sobre a biografia e a fortuna crítica do autor possibili-
tam afirmar que Dalcídio deixa nuances de sua trajetória de vida reveladas na
narração do menino Alfredo, atrelando seus sonhos a uma realidade difícil na
época, que era a de estudar numa cidade grande e conseguir garantir um bom
futuro. Em meio às adversidades que são narradas, Dalcídio nos transporta
para um período conflitante de injustiças, doenças, misérias em todo país. E a
região que um dia era protagonista de belezas exóticas, transforma-se em um
cenário arrebatador, tenso e perigoso para as pessoas que ali moravam. Com
isso, vai se tecendo um enredo em que os dilemas de pessoas humildes se trans-
formam numa narrativa enviesada com muitos devaneios e fugas da realidade
presente, ora para o passado nostálgico, ora para o futuro próspero. Assim,
temos na obra “o principal assunto de Jurandir que é a vida das pessoas de
situação econômica menos favorecida”, (MALIGO, 1992, p.49). Trata-se de
uma temática recorrente em todos os seus romances, mas que, nessa primeira
obra, é pertinente porque mostra o início da degradação do ser humano frente
à situação de pobreza, doenças incuráveis, desprezo e paixão.

217
Considerações

As diferentes perspectivas de abordagem suscitadas pela obra de Dal-


cídio Jurandir reforçam o universo de temas dentro do fazer literário do autor
que se volta para o humano em sua totalidade universal, ou seja, o homem
comum, com suas crises existenciais, dúvidas, anseios, amores, vida e morte.
No universo ficcional criado pelo autor marajoara, as peculiaridades do
homem amazônico, as relações que estabelece com o espaço que o cerca e com
os outros homens servem de base para a escrita de suas obras. Com isso, o
cenário de exuberância da natureza abre espaço para a presença humana no es-
paço da Vila do Arari. Em meio aos encharcados dos rios e alagados, sobrevive
uma sociedade decadente, que busca sobreviver em um embate constante com
as mazelas deixadas pelo pós-guerra.
Aspectos da miséria humana refletem na vida do homem amazônico,
levando-o a perder o sentido da vida, seus valores e a busca por um futuro
melhor. É dentro deste contexto que se encontra a personagem Eutanázio, um
possível reflexo desse cenário caótico. Suas ações mostram o comportamento
do homem em situação de se auto degradar, seja pela pobreza ou amor doentio
e não correspondido que o deixa em constante estado de penúria.

REFERÊNCIAS

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Norte de Dalcídio Jurandir. In: Bastos, Élide Rugai; Pinto, Renan Freitas, Vo-
zes da Amazônia II. / Élide Rugai Bastos, Renan Freitas Pinto. – Manaus:
Editora Valere Edua, 2014.

BUENO, Luís. Uma História do Romance de 30. São Paulo: Editora da Univer-
sidade de São Paulo/Campinas: Editora da Unicamp, 2015.

COUTINHO, Afrânio. Introdução a literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Livra-


ria São José, 1968.

CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. 2. Ed. Perspectiva: São Paulo, 1993.

218
DACANAL, José Hildebrando. O romance de 30. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1982.

FURTADO, Marlí Tereza. Dalcídio Jurandir e o romance de 30 publicado em


40. In: Tereza revista de Literatura Brasileira / área de Literatura Brasileira. De-
partamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, nº16 (2015). São Paulo, 2015.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária.


Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

JURANDIR, Dalcídio. Chove nos campos de Cachoeira. 7ª Ed. Rio de Janeiro,


RJ: 7 Letras, 1976.

MALIGO, Pedro. Ruínas idílicas: a realidade amazônica de Dalcídio Jurandir,


In: Revista da USP nº13, São Paulo, 1992.

MOREIRA, Alex Santos. A recepção de Chove nos campos de cachoeira na


imprensa do Rio de Janeiro: Considerações Iniciais. In: e-scrita Revista do Cur-
so de Letras da UNIABEU Nilópolis, v. 6, Número 3, setembro-dezembro, 2015.

NUNES, Paulo. Aquonarrativa ou encharcar-se na poética de Dalcídio Jurandir.


Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/resenha-de-cho-
ve-nos-campos-de-cachoeira-de-dalcidio-jurandir-423083.html. Acesso em
30/04/2018.

PEREIRA, Lúcia Miguel. Prosa e ficção. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1973.

ZAPPONE, Mirian H. Yaegashi. Estética da Recepção. In.: BONNICI, Tho-


mas. Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas.
Maringá: EDUEM, 2019.

219
OS FIOS DA HISTÓRIA NA TESSITURA FICCIONAL EM
A NOITE DA ESPERA, DE MILTON HATOUM

Andreia Tavares Ishimoto

Introdução

A intervenção de elementos da História na literatura põe em evidência


o princípio de que tanto os escritos da história, quanto os escritos literários
podem ser concebidos como formas de conhecer e expressar o mundo. Em suas
formas de expressão, literatura e História apresentam traços de subjetividade
pelo viés da verossimilhança, são construções de linguagem. Todavia, em suas
formas de escrita, cada uma apresenta pontos de contato e distanciamento: se
a ficção se vincula à arte, a História, por sua vez, busca a verdade factual. O que
se apresenta, portanto, como ponto de convergência é o trabalho com a lingua-
gem que a História e a ficção realizam na construção de mundos textuais. O
mundo textual que Hatoum cria em A noite da espera (2017) é contornado pela
opressão, pelo medo constante de um sistema repressivo que persegue qualquer
direito à liberdade.
Seguindo na esteira desse diálogo, o objetivo desta abordagem consiste
em analisar o diálogo entre ficção e história na obra A noite da espera (2017), de
Milton Hatoum, o primeiro de uma série de três volumes. Entre suas caracte-
rísticas, encontra-se o tom crítico na esfera política encenada, pois tem como
cenário o momento mais sombrio da Ditadura Militar (1964-1985), chamado
de “Anos de Chumbo”, período que começou depois da decretação do A-I 5.
Com base nessas questões que dão singularidade ao romance, direcionamos o
olhar para a forma como a composição da obra recria, problematiza, destoa os
elementos históricos, de forma a dar visibilidade às relações que envolvem o
narrador e o momento histórico encenado.
Em A noite da espera, embora o autor tenha partido de acontecimen-
tos que fazem parte da História, é importante destacar todo o processo de

220
criação realizado sobre esses fatos. Nesse sentido, ganha destaque a recriação
de cenários, a criação de personagens, o trabalho realizado com a linguagem,
enfim a seleção e a combinação de elementos que permitem à obra ultrapassar
a reprodução do real.
É no ato criativo, portanto, que convergem os caminhos da História e
da ficção, pois se a escrita da primeira se ocupa de eventos que fazem referência
a situações observáveis em determinados tempo e espaços, a escrita ficcional se
ocupa tanto desse tipo de evento quanto de outros imaginados ou inventados.
Assim, ao tratar dos mesmos eventos da História, o procedimento adotado
pela literatura é emoldurar os eventos dessa natureza em um universo regido
pela imaginação.

Os fios da História e os bastidores da ficção

As discussões geradas acerca das construções textuais que versam sobre


eventos da História, às vezes, limitam-se a questionar se a história contada
é real ou imaginária e qual forma é mais relevante. No entanto, História e
ficção apresentam propostas diferentes na forma como tratam seus eventos.
A partir do momento que o fato histórico passa a ser objeto da literatura,
torna-se ficção, de forma que tempo, espaço e personagens, que fizeram parte
do evento histórico, podem ser adaptados ou até mesmo inventados, conforme
for conveniente para a narrativa ficcional. Segundo Hutcheon (1992, p. 141)
“[...] leituras críticas da História e da ficção têm se concentrado mais naquilo
que as duas formas de escrita têm em comum do que em suas diferenças”. A
autora parte do princípio de que História e ficção são construções linguísticas
em suas formas narrativas.
Dessa forma, o texto literário não tem o compromisso de corresponder
fielmente com a realidade, pois a intenção do autor não é se apropriar da histó-
ria, mas transpô-la para o ficcional. É natural, portanto, que, em alguns casos,
o autor não tenha total conhecimento daquele fato, então o adaptou na cons-
trução do seu universo ficcional. Nesse sentido, Marilene Weinhardt (2002, p.
106), ao retomar o antigo diálogo entre ficção e história, pontua:

221
Já houve tempo em que o ficcionista pode ter invejado o historiador ou,
pelo menos eventualmente, tenha se sentido inferiorizado por não dispor
dos mesmos recursos, isto é, da intimidade com os documentos, para alcan-
çar o que se supunha ser o acesso à Verdade, uma entidade com existência
própria.

A pretensão expressa na citação é superada pelos recursos e estratégias


que a ficção adota no diálogo com a História. As diferentes formas da intertex-
tualidade, por exemplo, fornecem suporte teórico para embasar o diálogo que a
ficção instaura com História. Esse é o percurso que adotamos para a análise da
obra A noite da espera (2017), a fim de identificar como a composição da obra
recria, problematiza, destoa os elementos históricos.
De uma forma mais abrangente, o uso das referências históricas em
obras ficcionais também compõe a intertextualidade, pois o historiador, assim
como o literato, também é um autor, com a diferença de que enquanto este cria
uma ficção, aquele tem o comprometimento com a comprovação do fato, com
documentos e provas de que esse fato realmente ocorreu. Em contrapartida, a
análise de elementos históricos na ficção segue um outro percurso que até pode
fornecer pistas ao olhar do historiador, porém, conforme ressalta Weinhardt
(2002, p. 110):

Não se trata de propor a ficção como sucedâneo ou como concorrente da


história, mas sim de observar de que forma e em que medida a convergência
dos estudos históricos e literários pode contribuir para revelar e desvelar
mecanismos da criação artística.

Assim, Narrativas ficcionais e narrativas históricas não podem ser ava-


liadas pelo crivo de que uma é melhor que a outra, pois, de certa forma, as duas
se complementam. Para o historiador, uma obra literária antiga é quase um do-
cumento histórico, pois foi algo daquele período, que sobreviveu com os anos,
com o uso de conceitos e ideias que hoje não são mais tolerados, como racismo,
homofobia ou inferiorizarão da mulher. Dessa forma, embora sendo textos de
ficção, já mostram como a sociedade pensava em determinada época. Ressaltan-

222
do esse viés de enriquecimento, Weinhardt (2002, p. 109) afirma: “Em trânsito, a
literatura teve mais a oferecer à teoria da história do que a buscar nela”.
Mesmo quando um autor escreve sobre uma época sem ter vivido nela, é
importante ter em mente que um literato é um artista, e artistas não precisam
produzir obras condizentes com a realidade. É natural que no processo de pro-
dução da obra o escritor pesquise sobre a época (o acontecimento, personagem,
cenário) que quer abordar em seu texto, e a adapta como quiser, tornando-a
ficcional. Milton Hatoum fez isso durante a produção de sua obra A noite da
espera (2017). Ao usar como cenário a Ditadura Militar brasileira muitos anos
após ela já ter sido abolida, Hatoum revela, na composição estrutural da sua
obra, a presença de eventos que marcaram esse período da história do Brasil,
empregando-os como referência na retomada do tempo: “Asa Norte, Brasília,
março, 1968” (HATOUM, 2017, p. 26); na constituição dos cenários: “Numa
quinta-feira de agosto, quando o campus da UnB foi invadido e ocupado, pro-
fessores, alunos e deputados da oposição foram espancados e presos” (p. 54); na
construção das personagens: “Disse a Ângela que coleciona retratos e frases do
marechal Costa e Silva. Agora, o álbum está inchando com as fotos do general
Médici e textos de decretos e atos institucionais” (p. 84.).
Contudo, a presença do factual no ficcional não é suficiente para con-
fundir História com literatura, bem como para se considerar que a versão apre-
sentada pela ficção é verdadeira e expressa o real. Nesse sentido, a obra nos
adverte de que: “Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no
universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem
opinião sobre eles” (HATOUM, 2017, p. 4). Na obra de Hatoum, a poética que
perpassa toda a narrativa deixa claro que o objetivo não é provar que uma parte
ou outra do enredo realmente ocorreu, mas apontar as referências empregadas
pelo autor na composição estética do seu romance.

A produção literária de Milton Hatoum

Milton Hatoum e suas obras destacam-se na produção da literatu-


ra contemporânea brasileira. O autor é ganhador de prêmios literários, com

223
obras traduzidas e estudadas em outros países. Hatoum nasceu em Manaus
em 1952, descendente de libaneses, estreou na ficção com a obra Relato de um
certo Oriente (1989). Esse seu primeiro romance rendeu-lhe o prêmio Jabuti. A
obra tem características que marcam o estilo de escrita de Hatoum, tais como
famílias desestruturadas, na maioria os membros são libaneses e a presença da
Amazônia, seu local de nascimento, como cenário para suas tramas.
Seu segundo e mais conhecido romance, Dois Irmãos (2000), foi tradu-
zido para doze idiomas, adaptado para o teatro, quadrinhos, e em 2017 tornou-
-se minissérie da Globo. Vencedora do prêmio Jabuti, a obra apresenta uma
narrativa encenada em Manaus e centrada em uma família com descendência
libanesa, com foco na relação de rivalidade entre os gêmeos Omar e Yaqub.
Possivelmente, nessa obra, o autor tenha apresentado indícios para o que, mais
tarde, viria a ser a saga de O lugar mais sombrio, iniciada em 2017, pela referên-
cia à ditadura militar no Brasil na passagem (HATOUM, 2008. p. 198):

Ele sabia que Manaus se tornara uma cidade ocupada. As escolas e os cine-
mas tinham sido fechados, canhas da Marinha patrulhavam a baía do Ne-
gro, e as estações de rádio transmitiam comunicados do Comando Militar
da Amazônia. Rânia teve que fechar a loja porque a greve dos portuários
terminava num confronto com a polícia do Exército.

No excerto, o cenário de tensão gerado pela presença militar descrito reme-


te aos acontecimentos encenados em A noite da espera (2017). Em 2005 Hatoum
recebeu o prêmio Jabuti com o romance Cinzas do Norte. Assim como nas obras
anteriores, essa também alcançou prestígio e deu visibilidade ao povo amazonense.
Cinzas do Norte também ganhou outros prêmios, dentre eles, um dos mais impor-
tantes dos países de língua portuguesa: “Prêmio Portugal Telecom de Literatura”,
em 2006. Nessa obra em questão, a referência aos anos iniciais do Regime Militar
torna-se mais evidente. De acordo com Ceccarello (2012. p.186):

A presença do regime militar nos romances pode ser percebida de duas


formas: primeiramente, como pano de fundo ou contextual. O caso de Cin-
zas do norte (2006) é ainda mais evidente, pois praticamente toda a ação da

224
trama se desenrola durante os 20 anos do regime. Em Dois irmãos (2004)
a referência se restringe a um episódio específico dentro do romance. Esse
ponto de vista visa estabelecer uma relação paralelística das obras com o
contexto histórico, ou seja, identifica-se nos romances elementos da socie-
dade e da cultura vigente no período.

Em 2006, Hatoum lançou outro livro, dessa vez reunindo contos breves,
intitulado A cidade ilhada. E em 2008, escreve sua primeira novela, Órfãos do
Eldorado, novamente usa a Amazônia como cenário: “Naquela tarde, meu avô
me contou uma das histórias que ouviu em 1958, numa de suas viagens ao
interior do Amazonas” (HATOUM, 2008. p. 105). Em 2015, a obra Órfãos do
Eldorado foi adaptada para o cinema.
Em 2013, o autor reuniu crônicas publicadas em 2005 e 2007 e lançou-
-as no livro Um solitário à espreita. Algumas dessas crônicas, também retratam
o período da ditadura militar vivenciado pela sociedade brasileira, como a in-
titulada Sob o céu de Brasília (HATOUM, 2013. p. 43-4):

Conversamos pouco: naquela época todos desconfiavam de todos. Pensei


em ir embora depois do jantar, mas a W3 estava cercada por viaturas da
polícia; da janela da sala eu podia ver caminhões e capacetes verdes, [...] não
me perguntaram nada sobre política nem movimento estudantil.

Esse breve panorama da produção literária do autor mostra que, além de


famílias desestruturadas e cenários amazônicos, o tema da ditadura também é re-
corrente em seus escritos, mas foi em A noite da espera que se tornou o tema central.
Com a saga O lugar mais sombrio o autor planeja uma série em três vo-
lumes. O primeiro, intitulado A noite da espera foi lançado em 2017 e vencedor
do prêmio Juca Pato no ano seguinte. O segundo foi lançado em 2019 com
o título Pontos de fuga. Ainda não há previsão de lançamento para o terceiro
volume. A proposta de diálogo com contexto histórico do país vai ao encontro
do que afirma Hutcheon: “Em romances como esse, a problematização da na-
tureza do conhecimento histórico se volta para a necessidade e para o risco de
distinguir entre a ficção e a história [...]” (1991, p. 148).

225
Entre os elementos que diferenciam A noite da espera dos romances an-
teriores é o fato de o protagonista ser paulista, e não amazonense, e o enredo
ter como cenário a capital brasileira, Brasília, e não Manaus. Contudo, possui
a característica da família desestruturada, presente na relação do protagonista
Martim e seus progenitores, marcada pela saudade da mãe e pela ausência do
pai. É notável ressaltar, ainda, a mudança de estilo na estrutura da obra, consti-
tuída por capítulos curtos em forma de diário do narrador personagem.
O tema da Ditadura Militar, que sempre foi referenciado em obras an-
teriores de Hatoum, ganha força em A noite da espera, pois não é algo apenas
mencionado em determinado ponto e depois esquecido, mas percorre todo o
romance, com menção a eventos, personagens, cenários e intertextos frequentes.
O trabalho criativo de inserção dos intertextos na narrativa revela
as estratégias de escrita do autor em associar o drama social vivido pelos
personagens em meio à ditadura militar ao drama pessoal do protagonista
Martim. Nesse sentido, “A referência ao real que ela comporta manifesta
que o reino da natureza incide sobre toda e qualquer produção, sendo, en-
tretanto, inseparável da dimensão criadora” (COSTA, 2006. p. 66). Ao se
apropriar do recurso da intertextualidade, Hatoum mistura acontecimentos
reais com a vida de personagens fictícios.
Entretanto, cabe ressaltar que a presença do Regime Militar nessa obra
é muito maior que simplesmente ser o cenário do enredo. Cada nome, detalhe
ou fato foi minuciosamente e estrategicamente representado, fazendo alusão
aos acontecimentos históricos, explícitos e implícitos.
Entre suas características, o romance possui o tom crítico na esfera políti-
ca, pois tem como cenário o momento mais sombrio da Ditadura Militar (1964-
1985), chamado de “Anos de Chumbo”, período que começou depois da decreta-
ção do Ato Institucional número 5 (A-I 5), no fim do governo de Costa e Silva e
início do governo de Médici. “O ato era uma reedição dos conceitos trazidos para
o léxico político em 1964. Restabeleciam-se as demissões sumárias, cassações de
mandatos, suspensões de direitos políticos; [...]” (GASPARI, 2014. p.342).
A narrativa começa em 1977, quando o protagonista e narrador, Mar-
tim, está no exílio em Paris: “Hoje, em Neuilly-sur-Seine, meu aluno francês

226
me ofereceu café e quis conversar um pouco sobre o Brasil” (HATOUM, 2017,
p. 11). Então a narrativa volta no tempo, com o personagem datilografan-
do o que lhe ocorrera no passado, então descobrimos que ele é filho de pais
separados, Lina e Rodolfo, e aos poucos vai perdendo o afeto e a atenção de
ambos. A distância aumenta quando vai morar em Brasília com o pai que se
mostra ausente, amargurado e indiferente à presença do filho, como evidencia
a passagem: “O homem estava ressentido demais para dizer uma palavra; era
raro meu pai falar diretamente comigo: as palavras dirigidas a mim eram ditas
a minha mãe, e agora não havia espelho nem anteparo às palavras paternas”
(HATOUM, 2017, p. 21).
Na construção da narrativa, o autor intercala a vida pessoal do prota-
gonista com situações e diálogos sobre a situação política ali vivida, Hatoum
(2017, p. 142-3):

[...] O marechal Castelo Branco era um macho letrado. Um intelectual car-


rancudo, comum vago ideal democrático, mas foi garroteado pelos trucu-
lentos da caserna. O marechal Costa e Silva era um machão triste, de índole
feroz e vingativa. Um verdadeiro cavaleiro do Apocalipse da Ordem Militar
de Cristo. E esse general Médici, a matança... ele é capaz de mandar arran-
car os olhos dos torturados, só para impedir que eles chorem de tanta dor.

O antagonista do romance não é uma pessoa, mas o Regime Militar.


Em consonância com essa presença, prevalece o tempo psicológico, nessa pers-
pectiva de tempo, a narrativa trabalha com a técnica da anacronia por retros-
pecção, também conhecida como analepse, anáfora, ou simplesmente “flashback”,
que consiste em esclarecer o passado de uma personagem ao contar aquilo que
ocorreu anteriormente (REUTER, 2002). Inicia em 1977 com o protagonista
exilado em Paris, mas na sequência narra às recordações do período que Mar-
tim viveu no Brasil, principalmente na época do governo de Médici. “As indi-
cações de tempo contribuem, em primeiro lugar, para fazer a fixação realista
ou não realista da história” (REUTER, 2002, p. 56). É por meio da escrita de
cartas ou diários que a história se desenvolve (2017, p. 60):

227
Filho querido,
Em fevereiro Dácio me surpreendeu com a notícia do falecimento do teu
avô. Aliás, do enterro. Eu dava uma aula particular para um grupo de alunas
em Campinas, e o teu tio só conseguiu falar comigo na manhã do enterro. É
ainda mais triste não ver um pai, mesmo morto, pela última vez.

É por meio das recordações de Martim que descobrimos que a maior


parte do romance se passa no Distrito Federal, intercalada com retornos ao
tempo, já que o personagem está vivendo “atualmente” em Paris. A inserção
simulada de documentos sociais também ajuda a produzir o efeito do real, pois
além da presença do narrador (quem escreve) também temos a presença do
narratário (que lê), já que essas cartas são direcionadas para seus amigos e para a
mãe, o leitor acompanha o conteúdo dos escritos pelas palavras do protagonista.
Durante a narrativa, em Brasília, há a referência a espaços como o campus da
UnB onde o personagem estuda arquitetura, a Livraria Encontro, onde trabalha
e a casa do pai e dos amigos (HATOUM, 2017, p. 27):

Quando me perdia nas superquadras da Asa Sul, ou me entediava, andava


até um setor comercial e a avenida W3 Sul, onde havia poucas pessoas,
ônibus, carros. No caminho de volta, passei pela galeria do Hotel Nacional
e parei diante da vitrine de uma livraria.

É nesse ambiente, marcado pelo período conhecido como “Anos de


Chumbo”, que o protagonista convive com os problemas sociais e pessoais.
Enquanto o país sofre com a perseguição e a violência do governo, Martim tem
seus próprios problemas, o principal deles é nunca conseguir se encontrar com
a mãe de quem sente muita saudade (2017, p. 150):

Querida mãe,
[...] Também sonhei mais uma vez com você. Não foi um sonho sereno
num lago imenso, e sim um dos pesadelos nas noites na capital: você, outras
mães e Dinah apareciam juntas num protesto contra o fechamento da es-
cola onde estudei. Quando ia te abraçar, soldados do Exército reprimiram o
protesto e as pessoas sumiram numa poeira cinzenta. Você também sumiu
[...].

228
Nesse pequeno trecho da carta escrita por Martim, temos a descrição
de um sonho que ele teve, onde mescla o desejo de voltar a encontrar a mãe e a
violência cometida pelo Exército do Governo. O período histórico e a ausência
dos pais interferem na sua personalidade, deixando-o inconformado com toda
a situação. A escrita das cartas revela a emoção de seus autores, ora Martim, ora
a mãe. O diário e as cartas podem ser compreendias como estratégias da escrita
do autor para dar mais visibilidade aos conflitos que perpassam as diferentes
fases de atuação do personagem.

Os cenários da ditadura em A noite da espera

Os cenários que constituem a tessitura narrativa em A noite da espera


(2017) expressam a opressão vivida pelos personagens perpassada pelo conflito
pessoal do narrador personagem Martim, que conta sua própria vida retrospec-
tivamente através de seus relatos. E assim, “[...] tem-se a impressão de se estar
‘na pele’ do personagem, bem perto de suas sensações e de seus pensamentos, à
medida que eles vão se formando” (REUTER, 2002, p. 84). Diferentes fases da
sua vida trazem as marcas desse período de repressão presentes na relação com
o pai e no convívio com os amigos. Espaços de lutas e resistências, como as
referências à UnB, os refúgios da livraria e dos cines dão visibilidade ao clima
de tensão que perdura na obra, conforme Reuter (2002, p. 52):

Os lugares vão primeiramente definir a fixação realista ou não realista da


história. Assim, eles podem ancorar a narrativa no real, produzindo a im-
pressão de que refletem o não-texto. Será esse o caso quando o texto rece-
ber indicações precisas correspondentes ao nosso universo, sustentadas, se
possível, pelas descrições detalhadas e pelos elementos típicos, tudo isso
remetendo a um saber cultural assinalável fora do romance [...]. Os lugares
participam, então, [...] para a construção do efeito real.

Nessa perspectiva, o conceito de cenário auxilia na compreensão dessa


estratégia do autor em trazer na composição do enredo referências espaciais do
contexto histórico para a ficção, pois um texto “[...] carecerá de indicações pre-
cisas e referências ao nosso universo [...]” (REUTER, 2002, p. 53). De acordo

229
com a definição de Brandão: “Aqui se entende espaço como ‘cenário’, ou seja,
lugares de pertencimento ou trânsito dos sujeitos ficcionais, recurso de contex-
tualização da ação” (2013, p. 59). De acordo com o problema investigado por
este estudo, que consiste em analisar qual o tratamento dado pelo romance aos
eventos da ditadura na tessitura narrativa, é notável analisar a composição dos
cenários e seus efeitos na obra.
Assim, a concepção de cenário envolve o que Brandão (2013) conceitua
de significados translatos, estão relacionados aos espaços metafóricos de repre-
sentação do social e do psicológico. Segundo o autor, a representação do social
nos cenários é analisada em uma perspectiva histórica, cultural e ideológica.
Dessa forma, as descrições, por exemplo, das perseguições aos professores, das
manifestações e da ação violenta dos militares sobre os estudantes nos espaços
da UnB dão visibilidade a um cenário de opressão.
Quanto à presença do psicológico na composição dos cenários, o que se
destaca é um enfoque mais subjetivista, compreendendo uma atmosfera mais
intimista criada pelos diferentes sentimentos que movem narrador e persona-
gem. “[...] muitas narrativas comuns [...] pretendem ser realistas ou baseadas
no real (contam aquilo que teria realmente acontecido). Mas, em todos esses
casos, trata-se de efeitos do real, [...]” (REUTER, 2002, p. 18). Sob esse en-
foque, são analisados os efeitos produzidos por procedimentos descritivos e
narrativos empregados na construção do texto. Tais efeitos em A noite da espera
(2017) manifestam-se nas ações dos personagens, nos conflitos gerados a par-
tir das relações entre eles e núcleos de convivência.
Na estrutura do enredo em A noite da espera (2017), há a figuração de
elementos como a caracterização de personagens, a marcação temporal e a
composição de espaços que, no externo na obra, remetem a personalidades po-
líticas e acontecimentos do passado histórico do Brasil, enfim fazem referência
ao mundo real. Contudo, no universo ficcional da obra, são revestidos de uma
roupagem estética da linguagem e escapam a qualquer espécie de confirmação.
Logo, o que se constitui como ponto de referência para efeito de análise é a
estrutura da obra. A presença de fatores sociais chama a atenção como “agen-
tes da estrutura, não como enquadramento nem como matéria registrada pelo

230
trabalho criador; e isto permite alinhá-los entre os fatores estéticos” (CAN-
DIDO, 2010, p. 15). É um viés de análise que impede de ver a obra como
mero pretexto para dar visibilidade aos problemas sociais ou, ainda, como uma
forma de estabelecer uma correlação entre o que existe de real e o que consta
na ficção. O universo da ficção ultrapassa essas fronteiras.
É revelado, nesse processo, todo o trabalho de manipulação lexical, os
critérios para a escolha de tipos de personagens e as ações que estes cumprem
no enredo (LIMA, 2006). Emerge desse ato de criação a ideia de texto como
tecido, tomado não como produto acabado, conforme contesta Roland Barthes
(2008), mas como tessitura que se constitui num contínuo entrelaçamento.
De forma semelhante, nas lacunas deixadas pelo registro histórico, Hatoum
entretece a ficção. É o caso de O lugar mais sombrio, um romance contemporâ-
neo que usa como tema central a opressão do governo na Ditadura Militar. O
enredo faz menção a fatos, personagens, nomes e lugares que remetem a esse
período sombrio da história do Brasil. As referências à opressão perpassam
toda a narrativa (HATOUM, 2017, p. 50):

Recordei o corpo do homem entre o Dauphine branco e a Veraneio, a mão do


policial enganchada no pescoço da mulher magra, forçando-a a ver de muito
perto o homem contorcer-se, ensanguentado; a outra mão rasgou a blusa azul,
os seios pequenos e brancos surgiram na claridade dos faróis, mais intensa que
a luz da tarde. O motorista da Veraneio gritou: “Vamos pra base”.

O romance começa com um prólogo, no ano de 1977, em Paris. Em


A noite da espera (2017) a narrativa não é linear, a trajetória do personagem
principal, Martim, é apresentada no início com a descrição da sua vida quando
estava exilado em Paris. Os diferentes tempos e espaços também se intercalam
na abertura dos capítulos: Paris, dezembro, 1977; Hotel das Nações Unidas,
Brasília, janeiro, 1968; Rua d’Aligre, Paris, primavera, 1978; Campus da UnB,
Brasília, 1968. No primeiro capítulo, um personagem misterioso está dando
aulas particulares de português, também toca violão no metrô para conseguir
dinheiro. Logo descobrimos que ele é um brasileiro exilado com muitas lem-
branças de seu país (HATOUM, 2017, p. 14-15):

231
Um expatriado pode esquecer seu país em vários momentos do dia e da
noite. Mas o pensamento de um exilado quase nunca abandona seu lugar de
origem. E não apenas por sentir saudade, mas antes por saber que o cami-
nho tortuoso e penoso do exílio é, às vezes, um caminho sem volta.

Embora convivendo com amigos que, como ele, estavam na condição


de exilados na França, em suas reflexões Martim revela o quanto é difícil ser
obrigado a viver longe da sua terra, no caso, o Brasil. Sentimento também de-
monstrado nas palavras do amigo Damiano: “Foi complicado deixar o Brasil,
Martim. Complicado e arriscado” (HATOUM, 2017, p. 15). A ameaça cons-
tante de ser preso, torturado ou assassinado pelo sistema da Ditadura acompa-
nhava a trajetória de todos, enquanto estivessem morando no Brasil, a perda da
liberdade ou da vida era iminente.
Mesmo estando longe de seu país, Martim não ficou afastado
completamente do período ditatorial no Brasil, que ainda o persegue
em suas recordações. O medo, as angústias e as incertezas de dias me-
lhores ainda estão presentes, como uma ferida aberta, difícil de ser cura-
da. Como dito em uma carta de Damiano: “Você tem medo de alguma
coisa? O pior já passou, Martim. [...]” (HATOUM, 2017, p. 16). Apesar
do medo e da saudade, no decorrer do romance, há momentos em que o
personagem mostra arrependimento por ter fugido, sentia-se um covar-
de (HATOUM, 2017, p. 51):

Um covarde. É o que penso hoje, quase dez anos depois, [...] um covarde
que virou as costas para a manifestação. Lembro que fiz um último esforço
de coragem para ir ao encontro com Dinah e dos meus amigos, o destemor
deles me animava, e até Vana, medrosa e insegura, estava lá com o Nortista
[...].

Martim também tinha amigos no Brasil e teve de abandoná-los, fican-


do com a consciência pesada. Até Dinah, sua namorada, ficou para trás. Em
A noite da espera (2017), o sentimento de saudade, de perda e de angústia pela
fuga realizada às pressas marca a vida de Martim e dos amigos que, juntamente

232
com ele, vivenciaram todo esse processo de perseguição do regime da ditadura,
conforme revela a passagem “Meus últimos dias no Brasil. A debandada geral,
cara... Não quero guardar a porra desse diário. Se eu reler esses rabiscos vou
sentir mais saudade dos amigos, da escola de samba e da Vila Madalena. A
saudade destrói e seca o coração” (HATOUM, 2017, p. 13).
No exílio em Paris, Martim ocupa o quarto da casa de um casal de An-
golanos que estavam fugindo de uma guerra (HATOUM, 2017, p. 13):

Durmo neste quartinho em forma de trapézio; o teto é inclinado, só posso


ficar de pé quando me aproximo da mesinha encostada na parede da janela.
[...] Conversam pouco comigo, sempre em português, e entre eles falam em
quimbundo.

Esse detalhe seria irrelevante, se não fosse pelo fato de que Martim e o
casal estariam em uma situação parecida: o medo que os obrigou a saírem de
seus países de origem. Martim pega todos os papéis de Brasília e São Paulo.
Eram “cadernos, fotografias, cadernetas, folhas soltas, guardanapos com frases
rabiscadas, cartas e diários de amigos, quase todos distantes; alguns perdidos,
talvez para sempre” (HATOUM, 2017, p. 16) e decide datilografar. Come-
çando assim, uma volta ao passado e tudo o que ocorreu com ele, antes de seu
exílio em Paris. Aqui inicia de fato o primeiro capítulo, uma metalinguagem
do processo de criação que se configura na estrutura do romance: “Comecei a
datilografar os manuscritos: anotações intermitentes, escritas aos solavancos:
palavras ébrias num tempo salteado” (HATOUM, 2017, p. 17).
O romance encena o período da Ditadura Militar, que se inicia com o
Golpe de 1964, uma conspiração realizada pelos militares contra o governo de
João Goulart, porém o tempo inicial da narrativa é o ano de 1967, ou seja, o
regime já estava implantado no país há três anos.
Com tom de poeticidade, que o romance faz, retrata a juventude mili-
tante daquele período. Ao encontro do que afirma Gaspari: “O regime tinha
cerca de quinhentas pessoas nos seus cárceres. Mais da metade delas eram
estudantes, com idade média de 23 anos.” (2014. p. 208). E o fato de Martim
ser jovem e estar entre jovens, torna-se uma testemunha de tudo o que está

233
acontecendo. Isso ocorre, por exemplo, quando Dinah e Lázaro falam com os
demais estudantes (HATOUM, 2017, p. 48):

Quatro colegas foram expulsos da nossa escola”, ela disse. Na invasão do


campus, a polícia prendeu dezenas de universitários e saqueou o barracão da
Federação de Estudantes da UnB. Lázaro acrescentou que no dia 21 a po-
lícia matou três estudantes durante uma manifestação no Rio. “Anteontem
teve uma passeada de cem mil pessoas”.

A atuação dos jovens nos movimentos contra a ditadura configura-se


no fio condutor da trama narrativa. Tanto no Brasil quanto no exílio eles reve-
lam a inconformidade em relação a um regime que os oprime, ameaça e lhes
tira a liberdade. É em meio a essa turbulência que Martim amadurece e pro-
cura se encontrar entre o drama pessoal e o vivido pela sociedade representada
nas intervenções de seus amigos.
Em A noite da espera (2017), a narrativa se passa durante os “Anos de
Chumbo” (1968-1974), “[...] com a transformação do Estado autoritário, im-
posto pelo golpe militar de 1964, num violento Estado policial” (NAPOLI-
TANO, 2018, p. 92). O início desse período é marcado com a decretação do
Ato Institucional (AI-5) e foi até o fim do governo de Médici. As consequên-
cias desse Ato é uma presença constante, de forma a refletir na atmosfera de
medo e suspense que recai sobre a narrativa. Uma referência explícita a esse
evento histórico é descrita na passagem (HATOUM, 2017, p. 55):

Numa quinta-feira de agosto, quando o campus da UnB foi invadido e ocu-


pado, professores, alunos e deputados da oposição foram espancados e pre-
sos, os laboratórios dos cursos de medicina e biologia, destruídos, os animais
na mesa de cirurgia agonizaram até a morte, um estudante de engenharia
foi baleado na testa... As incursões da polícia ao campus continuaram até
o fim do semestre. [...] Só no dia 14 entendi o motivo do júbilo paterno: o
Ato Institucional número 5.

Foi um período de combate entre a extrema-esquerda e a extrema-di-


reita, quando ocorreram centenas de desaparecimentos e mortes de militantes

234
e de pessoas envolvidas nessas atividades. Muitos tiveram de viver na clan-
destinidade, ou no caso de Martim, pedir asilo político em outro país. Em
suas reflexões, Martim afirma: “Depois da decretação do AI-5, o medo tomou
conta. A liberdade é uma quimera. Essa noite macabra é muito longa, não vai
acabar tão cedo assim” (HATOUM, 2017, p. 158).
O jovem estudante estava, literalmente, num campo de guerra, onde a
qualquer momento podia ocorrer um “ataque do inimigo” e, para isso, tinha que
estar preparado. Os atos violentos não eram deflagrados apenas pelo governo,
a narrativa faz menção às ações dos dois lados: “Os políticos subversivos foram
cassados, sobraram poucos. Vai piorar por causa dos guerrilheiros... assaltos a
bancos, sequestros de diplomatas, assassinatos...” (HATOUM, 2017, p. 142).
Contudo, Hatoum mostra pouco disso e foca mais nos atos cometidos por quem
estava no poder, talvez, pela diferença entre eles (HATOUM, 2017, p. 143).

Os golpistas de 64, civis e militares, [...]. Machões empertigados... e alguns


psicopatas. O marechal Castelo Branco era um macho letrado. Um intelec-
tual carrancudo, com um vago ideal democrático, mas foi garroteado pelos
truculentos da caserna. O marechal Costa e Silva era um machão triste, de
índole feroz e vingativa. Um verdadeiro cavaleiro do Apocalipse da Ordem
Militar de Cristo. E esse general Médici, a matança... ele é capaz de mandar
arrancar os olhos dos torturados, só para impedir que eles chorem de dor.

As referências a acontecimentos e pessoas que fizeram parte desse pe-


ríodo da história do Brasil instauram casos de intertextualidade do romance
com os registros históricos. Os recursos linguísticos empregados na descrição
desses elementos na obra são responsáveis pela densidade estética que perpassa
a encenação de um tempo marcado pela violência.

Considerações

Em A noite da espera, os lugares, as personagens e os eventos que com-


põem o romance relacionam-se, em suas entrelinhas, com fatos históricos. As-
sim, História e ficção são importantes e se complementam, textos literários são

235
muito mais que entretenimento, pois também proporcionam a compreensão
do que outrora fez parte da história.
É um traço recorrente na escrita do autor manauara o conflito familiar,
a presença de personagens libaneses e o cenário amazônico na moldura do
enredo. Em A noite da espera um outro contexto espacial entra em cena, pro-
tagonizado por um paulista na capital brasileira, Brasília. Contudo, o marco
diferencial está no diálogo instaurado com eventos que marcaram o contexto
histórico e político da ditadura militar no país como fio condutor da trama
narrativa. A temática da ditadura encenada na obra, no entanto, não se isenta
de ser perpassada pelo conflito familiar vivido pelo personagem Martim na
relação com os pais.
A proposta de trazer como a ficção recria e redimensiona aspectos do
contexto histórico suscita a compreensão das questões que envolvem o ro-
mance histórico e a escrita da ficção. A análise da tênue fronteira que delimita
os dois tipos de escrita evidencia o viés de subjetividade que perpassam o ro-
mance e a escrita da história. Dessa forma, para além de se questionar o que o
romance tem de real ou inventado, sobressai a necessidade que história e lite-
ratura têm de narrar, como princípio de convergência, respeitadas as estruturas
próprias de cada uma.

REFERÊNCIAS

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Perspectiva, 2008.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Ouro sobre azul. 9ª Ed. Rio de


Janeiro. 2006.

CECCARELLO, Vera Helena Picolo. Aspectos da ditadura militar presentes nos


romances Dois Irmãos e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. Revista eletrônica
Literatura e Autoritarismo – Dossiê, Maio de 2012.

COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles. Ática. 2ª edição. São Paulo. 2006.

236
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de Janeiro. 2014.

HATOUM, Milton. O lugar mais sombrio 1: A noite da espera. Ed. Compa-


nhia das Letras. 1ª ed. - São Paulo, 2017.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tra-


dução Ricardo Cruz. Imago Ed. Rio de Janeiro. 1991.

LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. Ed. Companhia das Letras. 2006.

NAPOLITANO, Marcos. 1964 – História do Regime Militar brasileiro. 1ª


edição, 5ª reimpressão. Editora Contexto. São Paulo. 2018.

REUTER, Yves. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Tradução


Mario Pontes. - Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. 190p. - Enfoque, Letras).

WEINHARDT, Marilene. Ficção e história: retomada de antigo diálogo. Re-


vista Letras, nº58. Curitiba. Editora UFPR. 2002.

237
ANÁLISE DO PROTAGONISMO E RESISTÊNCIA DA
PERSONAGEM YARA A PARTIR DA REPRESENTAÇÃO
COLONIAL, EM AS BOTAS DO DIABO, DE KURT
FALKENBURGER

Francisca Lusia Serrão Ferreira


Marília Lima Pimentel Cotinguiba
Roziane da Silva Jordão

Introdução

Neste trabalho, apresentar-se-á uma análise da personagem Yara no


contexto da colonialidade de gênero a partir do discurso de Reginald Wire,
narrador personagem da obra As Bota do Diabo, de Kurt Falkenburg (1971). O
romance retratou como pano de fundo a segunda etapa de construção da Es-
trada de Ferro-Madeira-Mamoré. A obra retrata mulheres/fêmeas não-bran-
cas colonizadas violentamente e, nesse cenário, o cotidiano da Yara é submerso
em relações de constante opressão e violência, mas também, conforme identi-
ficamos em nossas análises, de protagonismos e resistências.
Ao longo deste trabalho, estabelecemos um olhar decolonial para criar
um contradiscurso à imposição dos enunciados de gênero do narrador/per-
sonagem, com o intuito de responder ao seguinte questionamento “como, no
período da segunda etapa de construção da E.F.M.M, Falkenburger retrata,
no discurso do narrador/personagem Reginald Wire, a imposição da colonia-
lidade de gênero, as representações da violência e resistências nas ações das
personagens femininas, sobretudo, da Yara?”.
O escritor austríaco, Kurt Falkenburger, após pesquisar diversos docu-
mentos e ouvir várias pessoas, resolveu escrever a obra que se tornou objeto
de nossa análise, As Botas do Diabo (1971), que também foi lançada em 1979,
pelo Clube do Livro, onde o romancista aborda o trágico drama da construção
da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. O romance é ambientado no final do
século XIX e início do século XX (1877 a 1879) .

238
A obra também evidencia o conflito entre a personagem cabocla Yara, a
colonizada, e o homem branco o narrador/personagem, Reginald Wire, o co-
lonizador, por quem a cabocla Yara, após seu pai encontrá-lo quase morto e ela
tratá-lo, apaixona-se. Posteriormente, quando as obras da ferrovia paralizaram
e ele já havia decidido ir embora de Santo Antônio, ao ir chamar os compa-
nheiros na floresta, foi atacado pelos indígenas que defendiam as suas terras,
novamente foi salvo por Yara, que decidiu ficar com ele, cuidar dos ferimentos
e escondê-lo por três meses, dando-lhe remédios para dormir, deixando-o em
Pau Santo com a ajuda de três indígenas, sendo a Isabel, Simão e Maria.
O clímax do romance se dá em um ato de resistência da personagem ca-
bocla Yara ao ser exposta, humilhada, oprimida, julgada de todas as formas no
seu cotidiano pela imposição de gênero no discurso do narrador/personagem
Reginal Wire e, por último, ser humilhada e ter que decidir entre aceitar trai-
ção, ou libertar-se do casamento com o colonizador branco, pois este engravida
a Airik que ela criara como filha.
Esta análise, sob a Luz de Maria Lugones (2014, p. 936) compreende “a
hierarquia dicotômica entre humano e não humano como a dicotomia central
da modernidade colonial.” Na categoria não humana, a atribuição de gênero está
ausente, o que não chamou atenção dos autores decoloniais. É esse o passo à
frente que deu nome ao feminismo decolonial: o gênero como elemento estru-
turante da colonialidade, como categoria criada pelo vocabulário colonial, e que
não faz propriamente parte das dinâmicas pré-coloniais. Nesse sentido, o femi-
nismo decolonial denuncia a imbricação estrutural das noções de heteronorma-
tividade, classificação racial e sistema capitalista (LUGONES, 2020, p.19).
Verifica-se que o discurso do narrador/personagem Reginald Wire im-
põe um constante julgamento às colonizadas, nas ações cotidianas que gera um
conflito, e exige relações entre oprimir/resistir no namoro/casamento, sobretu-
do, no cotidiano das relações de Yara e Reginald Wire.
Diante disso, em As Botas do Diabo, pode-se observar que, ao retratar
as personagens femininas, o discurso de gênero do narrador/personagem é de
atribuir às mulheres o trabalho doméstico, é um discurso repetitivo e cansa-
tivo, para dizer que esse é um lugar que deve ser ocupado por elas. Podemos

239
verificar isso em ações do narrador/personagem que aguarda ser servido e cui-
dado pela mãe que fornece comida para ele levar para o barco; pelo trabalho
de Gertie no Mercedita, sempre ligado aos afazeres domésticos e ao servir; os
trabalhos domésticos são também atribuídos as outras personagens, tais como
dona Iná, Yara e as indígenas.

Yara e outras colonizadas:violências e resistências em As botas do diabo

Yara, a personagem central das nossas análises, mora em Cascata, é fi-


lha de um dos maiores seringalistas daquela região, como podemos perceber
na fala do irmão de Yara “[...] papai subiu o Jaci-Paraná com dez dos nossos
indígenas, ele tem três dúzias de indígenas e é o maior seringalista por aqui”
(FALKENBURGER, 1971, p.127).
Reginald, ao ver Yara, diz “pela primeira vez. Contemplei-a longamen-
te e deixei-a ligeiramente encabulada” (1971, p.127) podemos perceber que o
instinto predador, heterosexual, de Reginald mesmo estando doente e neces-
sitando dos cuidados de Yara, ainda assim, não deixa de exercer o papel de de-
monstrar a sua heterosexualidade de conquistador. Ele a julga como um objeto
que está ali para ser contemplado, analisado, julgado.
Percebe-se que Yara é responsável em fazer comida para os trabalha-
dores “Agora vou tratar da comida, senhor, explicou ela, corrigindo se rapida-
mente, quero dizer, senhor Reg. O pessoal deve voltar logo mais, e com fome.
José vai ficar aqui. Mas não fale muito. Amanhã é outro dia” (p.129), vemos que
Yara é jovem, mas o narrador/personagem garante no discurso que ela, já está
com a responsabilidade de cuidar do doente e também dos trabalhos domésti-
cos, bem como ela dá o tom de que o fato de chamar de Senhor ao Reginal é
uma forma de impor o respeito.
Em outra passagem, percebe-se, na obra em análise, a violência da im-
posição do sistema de gênero moderno/colonial, podemos observar na cabocla
Yara que é filha de uma indígena, que foi barganhada por seu pai, Duarte. Era
uma menina e isso nos mostra a vulnerabilidade das crianças meninas indíge-
nas e como estas tiveram seu corpo violado, à mercê da vontade dos homens

240
que as trocavam como objetos, um corpo subjugado frente ao opressor que
impõe um sistema de gênero moderno colonial e um sistema capitalista onde
todos viram produtos a ser vendido, ou comprado e isso podemos perceber na
passagem a seguir (1971, p. 226):

A mãe de Yara fora uma indígena Pacaá, adquirida por Duarte lá em cima,
nas primeiras cachoeiras do rio Mamoré em troca de um machado. Segun-
do contou Duarte tinha ela uns treze anos apenas, mas era de uma beleza
estranha, exótica, raramente encontrada entre as tribos ribeirinhas. Duarte
voltou rio abaixo, fundou Cascata e quando ela engravidou, resolveu es-
posá-la. Logo após o nascimento de José, quando Duarte estava ausente,
sua jovem mulher morreu miseravelmente, de uma mordida de cobra e, ao
voltar, encontrou somente o seu túmulo. Naquela ocasião Yara tinha apenas
três anos e, em seguida, ela e José foram criados pelas indigena que compar-
tilharam a cama de Duarte. No entanto, ele não tornou a casar-se.

Nessa passagem, observamos, também, que o narrador/personagem ao


descrever a mãe de Yara, deixa nítido o olhar do colonizador norte-americano,
narrador/personagem, pois, a beleza da indígena, que era diferente da mulher
branca de sua subjetividade, da beleza que ele costumava a ver, ele poderia ape-
nas aceitar uma beleza diferente, mas, ao querer impor o que ele pensa como
beleza de raça branca superior, ele deturpa a imagem da mulher indígena ao di-
zer que é raro ver essa beleza, deixa na subjetividade que as indígenas são feias.
Em toda a trama, o narrador/personagem Reginad utiliza um discurso
que coloca Yara insistentemente como uma criança, infantilizando-a e bestia-
lizando. Maria Lugones (2014, p. 936) explica que as condutas das colonizadas
e suas personalidades eram julgadas como bestiais. podemos observar também
que ele está buscando uma homogeneização, como se estendesse a todas as
caboclas, e estas fossem bestiais e infantis. Percebe-se que o narrador/persona-
gem, ao ouvir Yara chorar e dizer-lhe que está gostando, a retrata com um dis-
curso que a infantiliza, e a trata como uma criança novamente, bestializando-a,
como vemos nas passagens a seguir: Reg então diz “senti seu corpo quente
na minha pele e tive um desejo louco de beijar as lágrimas do seu rostinho”

241
(FALKENBURGER, 1971, p. 134). Em outra passagem diz: ela fez um sinal
negativo com a cabecinha” e posteriormente diz:

Mas eu gosto do senhor”, susurrou ela tão baixo que quase não a compre-
endi. De repente, enlaçou-me com os braços, colocou a cabeça em meu
pescoço e começou a chorar”. Senti seu corpo quente na minha pele do meu
pescoço, correndo para dentro da camisa e decendo pelo meu peito.

E depois prosseguiu dizendo “Oh, Reggi, Reggi”, foi repetindo, agarran-


do-se em mim. Senti lágrimas em seu rostinho. Com grande cuidado acariciei-
-lhe o cabelo e as costas e falei-lhe como se fala a uma criança” (1971, p.134).
Em contrapartida, Yara demonstra, como uma reação de resistência ao
discurso do narrador/personagem, Reginald Wire, que ele sim ficou como uma
criança, em seus braços, e ao confessar seu amor por ele e contar que o amou
desde quando o viu doente e ela o tratou, pois, ele estava como uma criancinha
de colo e ela diz “e podia cuidar de você, contemplar-te, tanto quanto quisesse.
Porque você de nada sabia. E aí imaginei que você pertencia somente a mim e
de noite sonhei com isso” (1971, p. 135).
Percebe-se também, o discurso que se mantém repetitivo é o de sempre
reforçar o trabalho doméstico como trabalho dessas mulheres. Nesse sentido,
faz-se importante considerarmos que o gênero (LOURO, 1997, p.21).

[...] não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como


essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz \
ou se pensa sobre elas que vai construir, efetivamente, o que o feminino
ou masculino em uma sociedade e em um dado momento histórico. Para
que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa
sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas, sim tudo o que
socialmente se construiu sobre os sexos.

Foi dito no discurso opressor que, ao encobrir o outro ou a Outra, im-


pregna, em um constante discurso, que de tanto ser repetido, reforçado, reela-
borado para se manter no poder, vai normalizando, em normativas heteronor-
mativas, que garantem o homem branco no poder.

242
Em outra passagem, a imposição do discurso do narrador/personagem
para a colonizada retira a intelectualidade, desvaloriza sua língua como po-
demos observar no discurso do narrador Reginald Wire que, mesmo doente,
como se já demonstrando sua superioridade e conhecimento fala com Yara
e então diz “Os olhos me fitaram interrogativos e vi que não havia compre-
endido o que falei [...] Enfim, percebi que estava falando em inglês” (p.125)
“Beber”, “repeti em Português” (p.125). Podemos explicar esta passagem com o
que Walter Mignolo (2017, p.125) diz:

O racismo moderno/colonial, ou seja, a lógica da racialização que surgiu no


século XVI, tem duas dimensões (ontológica e epistêmica) e um só propósi-
to: classificar como inferiores e alheios ao domínio do conhecimento siste-
mático todas as línguas que não sejam grego, o latim e as seis línguas euro-
peias modernas, para manter assim o privilégio enunciativo das instituições,
os homens e as categorias do pensamento do Renascimento e a ilustração
européias. As línguas que não eram aptas para o pensamento racional (seja
teológica ou secular) foram consideradas as línguas que revelavam a infe-
rioridade dos seres humanos que as falavam. Que podia fazer uma pessoa
cuja língua materna não era uma das línguas privilegiadas e que não havia
sido educada em instituições privilegiadas? ou devia aceitar sua inferiorida-
de, ou devia fazer um esforço por demonstrar que era um ser igual ao que
situava na segunda classe. Ou seja, em ambos os casos se tratava de aceitar
a humilhação de ser inferior para quem decide que devia manter-se como
inferior ou assimilar-se.

Podemos afirmar que, em Cascata, ainda se preserva o hábito de reu-


nir-se para ouvir histórias. Como na passagem a seguir (FALKENBURGER,
1971, p.132):

Muitas vezes, à noite, sentei com os indígenas ao redor do fogo, escutando


suas estórias das cobras dágua com olhos de fogo, que comem crianças pe-
quenas, ou da mãe d´água, ainda mais feroz, e do curupira, o gênio da floresta.

Mesmo o jovem José, e os demais, estando todos a serviço do homem


ocidental, no entanto, ao narrar essse costume que resiste aos colonizadores,

243
Reginald Wire refere-se com um certo desprezo, com a visão única do coloni-
zador. Isso nos lembra o que diz Thomas Bonnice (1942, p. 37):

Por uma especie de lógica perversa, o colonialismo se volta ao passado do


povo oprimido, distorcendo-o, desfigurando-o.O nativo/a então, percebe
que é uma mentira a ideia defendida pelos colonos, europeus de que ‘se
eles voltassem à metrópole os/as nativo/ass retornariam imediatamente à
barbárie, à degradação e à bestialização’.

Ao analisarmos o discurso do narrador/personagem sob a lente deco-


lonial, que aponta “a colonialidade como um sistema ou dispositivo de poder
vigente desde as Américas não como uma peculiaridade de tal território, mas
de todo o mundo”, percebe-se, que esse dispositivo de poder era acionado, na
trama de As Botas do Diabo, nos mais diversos continentes, tanto na Europa,
quanto na Àfrica, na Ásia e na Oceania, assim, se fez possível evidenciar a
colonialidade de gênero imposta nas relações entre as colonizadas e o coloniza-
dores/as. De acordo com Thomas Bonnice (2000, p. 37) “Fanon insiste em que,
como a degradação da cultura nativa foi um leitmotiv colonizador, o intelectual
nativo deve lutar contra as mentiras colonialistas no continente inteiro, porque
, ele exemplifica, “a cultura que é a cultura [...] Latina Americana [...] desmen-
tindo e contando suas histórias “relembrando seus povos das grandes páginas
de sua história é uma resposta às mentiras perpetuadas pelo poder colonizador”
(BONNICI, 2000, p. 37).
Sendo assim, percebe-se, em relação ao Reginald Wire, que ele se utiliza
tanto o discurso visual como o discurso verbal para impor sua forma de pensar à
Yara. E Yara, nas resistências cotidianas, busca fazer o mesmo, mas, são lhe im-
postos grandes desafios. Logo após o casamento de Yara e Reggi, no momento
de decidirem onde irão morar, a Yara não concorda e depois Duarte, pai da Yara,
continua, de forma que Yara ao ser inserida na conversa, já estava com um espaço
demarcado, o de concordar com as decisões tomadas, no entanto ela discorda, e,
nesse embate entre a personagem Yara, o narrador/personagem Reginald Wire e
Duarte (pai de Yara), a desvantagem da personagem mulher se dá em vários mo-
mentos, dentre elas, a heteronormatividade, na imposição das normas patriarcais;

244
a exemplo disso, ao definir onde iriam morar, Duarte persistiu por uma resposta
da Yara, e ela responde: “Não, o senhor não tem razão”, o narrador/personagem
diz que ela falou quase aos gritos, ou seja, já sugere que ela é desequilibrada, e a
discussão continua (FALKENBURGER,1971, p. 221).
O narrador/personagem frisa que Yara soltou gargalhada estrindente,
como se estivesse louca, endemoniada, fosse mal-educada que cortou a palavra
do pai. A personagem Yara continua argumentanto: “pensou? Então pensou
errado” (1971, p. 221). “Por que devemos nós ir para lá?” (1971, p. 221-222). E
então, novamente Yara argumenta que eles podem ficar doentes e morrerem,
no entanto, o pai contra-argumenta, que mesmo em Cascata ou qualquer outro
lugar poderiam adoecer, não há garantias em relação a isso (1971, p. 222).
Ao continuarem a discussão, Duarte faz a argumentação final. Duarte
ao visualizar virando (faz comunicação visual e verbal) para o Reginal” prosse-
gue: “no entanto, a última palavra está com Reggi. A ele é que cabe decidir.” E
então Reggi decide e diz (comunicação visual e verbal) “Sim”. Falei calmamen-
te e firmemente, olhando-o bem. “A última palavra está comigo. E eu acho que
a proposta é boa. Também Yara vai achá-la boa com o tempo. Por isso aceito-a”
(FALKENBURGER, 1971, p. 222).
Assim, ele naturaliza que quem decide é o homem e num discurso ver-
bal e visual com o seu sogro determinam naturalizando a submissão de Yara e
ainda decide que ela irá gostar futuramente, bem como, ele marca que decidiu
“calmamente e firmemente”, também pondera, o pai dá a palavra a ele, e retira
toda a possibilidade de autoridade da Yara.
Nesse embate, de resistência da Yara as normas heteronormativas, pa-
triarcais não deixam Yara nem mesmo contribuir com a decisão, antes, o pai
decidia, e agora o marido é quem decide, a personagem Yara sente a opressão
de ser esposa de Reginald, num sistema de opressão, que mesmo com a resis-
tência da Yara, é impossível transpor as regras que os próprios homens fizeram
para seus benefícios.
Nesses recortes, podemos perceber que Yara argumenta com o pai e
o marido ao mesmo tempo, no entando, eles mantêm o discurso visual entre
ambos e o narrador/personagem logo ao descrever as intervenções e argumen-

245
tações da personagem Yara, a descredibiliza, deslegitima, exalta a gargalhada
estrindente, dissonante, e gritando alto, ou seja, a coloca como desequilibrada,
falando alto, com má educação, grosseira que interrompeu a fala de Duarte.
Um animal irracional, sem controle, não civilizada e não humana.
Em outra passagem, Yara demonstra ao Reginald que tem autoridade
coletiva em Cascata, como vemos a seguir (FALKEMBURGER, 1971, p. 193):

Aquelas, bruxas, com sua droga amarga! Fizeram-me dormir por três meses.
E então a Yara lhe responde “Aquelas bruxas não têm culpa”, interrompeu
Yara. “Elas só fizeram o que mandei. Você estava com uma flexa no pulmão;
não se esqueça. Além disso, estava com febre. Apenas dei ordens para elas
fazerem o que era melhor para você. De repente, a dureza de sua voz me
surpreendeu e, de um momento para outro, Yara me pareceu estranha e in-
compreensível. Está bem, Yara, decerto você só fez o que de melhor poderia
fazer.” No entanto, apesar de eu ter falado com calma e em tom baixo, ela
bem percebeu que as suas palavras me surpreenderam e o tom de sua voz
me deixara assustado. Tremiam-lhes os lábios e subtamente, seus olhos se
encheram de lágrimas.

O narrador/personagem Reginald Wire, ao perceber que Yara lhe en-


frentara e que lhe demonstrou ter autoridade na comunidade de Cascata com
as indígenas, ele a julga e ao mesmo tempo que critica o tom de voz da Yara
já coloca como endemoniada, ele se descreve como tendo falado calmamente,
e então, busca imprimir na Yara a culpa, e a descreve já com tom de choro, ou
seja ao perceber que Yara teve uma atitude de resistência, de comando, ele logo
a coloca como criança e diz que ela chora. Nessa passagem outra questão que
podemos evidenciar é que havia outras indígenas, que ficavam na maioria dos
discursos de Reginald ocultas.
Em outro momento, após Reg pedir Yara em casamento para Duarte, o
pai de Yara o adverte e diz “mas tome cuidado, Yara é igual a mãe. É bom você
ficar prevenido. Se ela ama, ama com cada fibra de seu corpo e de sua alma. Ela
o amará com um amor egoísta, que poderá fazer de sua vida um inferno, e se
você a enganar, ela o mata” (FALKENBURGER, 1971, p. 201).

246
Nessa passagem, nos chama a atenção o que o pai da Yara recomenda ao
Reginald, pois, este teve como namorada a Mabel e enquanto namorava com
Mabel, ele manteve relações com a Collins, que era uma prostituta, e o pai de
Yara diz a ele que se ele a trair ela o matará, ou seja, deixa claro que ela não aceita
ser traída e essa é uma grande diferença entre ela e as mulheres brancas que casa-
vam-se e os maridos tinham amantes. Como consta no romance, o personagem
Oyola tinha uma esposa enclausurada e uma que era uma indígena como esposa
de viagem. E essa questão é central para a personagem, não aceitar ser traída. E
assim, Reginaldo já avisado pelo pai dela, casa-se com ela. Mais tarde, retomare-
mos a esse ponto pois, o clímax da obra tem essa premissa como central.
Em outro momento, no romance em análise, Yara decidiu que Reginald
ficaria com ela, e o escondeu de todos por três meses, sem que ninguém desco-
brisse, cuidando dele ferido por flexas indígenas, e só depois contou a ele parte
do que fizera para escondê-lo. Ela fala para Reginald que o indígina que sabe
este segredo, não irá contar, pois, ela o ameaçou mandar chicoteá-lo até que ele
morresse, caso este contasse, a alguém, uma só palavra, e ele ficou com medo e
fugiu apavorado. A Yara afirma que tem certeza de que esse não irá retornar. E
então, Yara demonstra sua preocupação a Reginald com a sua imagem perante
a comunidade de Cascata. Como se constata nos trechos seguintes “Eu não
suportaria o pensamento de todos saberem que mantive você escondido. Que
mantive você preso, para não poder ir-se embora, quando falei para todo mun-
do que você morreu” (1971, p. 122).
Aqui, a personagem Yara demonstra que tem preocupação com sua
imagem, com sua autoridade coletiva, na comunidade, pois, diz que seria muito
sofrimento se a sua comunidade soubesse que ela obrigara um homem a ficar
com ela. Como Reginald não sabe toda a história, diz para ela não se preocu-
par, pois, não há maldade em ela ter tido ajuda para salvá-lo.
Em outra passagem, a naturalização da violência de gênero de Reginald
a Yara, após descobrir o que fizera Yara, e por tê-lo escondido por três meses,
e dado veneno em uma garrafa aos seus ajudantes, ao descobrir isso Reginald
então espera Yara que se humilha e demonstra toda a sua submissão ao rastejar,
beijando-lhe os pés. Como vemos a seguir (FALKENBURGER, 1971, p. 223):

247
Lentamente ergui-me da cadeira e dei três passos à frente, chegando bem
perto dela. Sem olhar-me, Yara pegou seus vestidos, abriu os dois botões e
deixou-o cair a seus pés. Depois ela caiu em si, ajoelhou-se, agarrando-se
nas minhas pernas, apertou os lábios contra meus sapatos e os beijou. Mate-
-me, Reggi, meu único amor. Mate-me depressa. Se não me amar mais, ma-
te-me. Não quero mais viver. Nem posso mais viver, se não me amar mais”.

Esse discurso que coloca a Yara em plena submissão, ela já está total-
mente vulnerável, e à mercê de seu algoz, o amor exagerado da Yara, que está
totalmente humilhada. O narrador/personagem a agride, descreve a violência
doméstica cometida por ele como vemos no recorte a seguir (FALKENBUR-
GER, 1971, p. 223-224):

Com a mão peguei e afundei os dedos na sua espessa cabeleira negra e puxei
seu corpo para cima. E segurando-lhe a cabeça, que afastei um pouco de
mim, bati-lhe com a outra mão no rosto. Bati uma vez, uma segunda vez.
Depois joguei-a longe de mim, fazendo-a cair sobre a cama. Lá ela ficou.
Tirei a lamparina do gancho, fui para perto de Yara e segurei a luz de modo
que lhe iluminasse o rosto todo. Nos seus olhos procurei uma centelha qual-
quer que denotasse ódio. No entanto, não a encontrei, apenas achei devoção,
dedicação e amor.

Percebe-se, que ele a agride e retrata como se ele que sofresse a dor, e con-
tinuando, a narração ele diz: “Fiquei admirando-a longamente, por muito tempo.
Se não a amasse, ia matá-la agora, disse, e senti que estava a ponto de romper
em pranto”. Como se houvesse justificativa para que ele matasse aquela mulher
diz: “Ia matá-la por isso tudo, mas não posso” (FALKENBERG, 1971, p.224).
Percebe-se, também que Yara, após ser agredida, ainda está feliz “Ela me
olhou radiante, depois fechou os olhos e a expressão de imensa alegria que a
envolvia permaneceu no seu rosto” (FALKENBERG,1971, p.224). As leitoras
podem pensar que bater, matar estar à mercê do amor do homem, podendo
este decidir sobre agredir ou matar a mulher e ainda a passividade e atitude da
Yara, que ele descreve, como se ela estivesse gostando, cada palavra vai natura-
lizando a violência de gênero contra Yara.

248
No enredo, Reginald esqueceu o que dissera Duarte, sobre Yara não
aceitar traição, então ele trai a Yara com a indígena que ela criava como filha
e, após várias traições dele, a personagem Airik e Reginald conversam,
(1971, p. 244):

Porque vou morrer, senhor, respondeu devagar. Vou morrer, pois, Yara vai
me matar, se perceber minha barriga.
Você terá um filho?
Sim, senhor, vou ter.
Mas, o senhor não vai chegar a ver seu filho. É pena. Sei que gostaria de ter
um filho. Porém ele nunca vai sair de mim, porque dona Yara vai me matar.

Em outra passagem Reginald acredita ter encontrado uma forma de


salvar Airik então lhe diz (FALKENBURGER, 1971, p. 244):

Apesar de tudo encontrei uma saída. Sem ninguém saber, mandei construir
uma pequena canoa, bastante leve para que Airik pudesse puxá-la sozinha
pelas cachoeiras e a escondi na espessa vegetação à beira do rio (...) poucos
dias mais tarde tudo estava pronto. Encontramo-nos pela última vez na
floresta. (...) endireitou o corpo e por uns instantes fixou em mim os olhos
bem abertos. Em seguida, saiu, e eu sabia que aquela era a sua despedida.

Posteriormente, Yara conta a Reginald que Airik sumiu e ele ficou ali-
viado de saber que Yara não se incomodou com isso. E percebeu que Yara
estava rindo muito e muito amorosa com ele. No entanto, após uma semana
do desaparecimento de Airik, Yara recebe Reginald radiante de felicidade, e
ele nota ao chegar em casa, pois, ela lhe dar muitos beijos e abraços e o leva
para dentro de casa. Ele fica surpreso e Yara, então, lhe comunica dizendo
(FALKENBURGER, 1971, p. 245-246):

Hoje vamos fazer uma festa, meu amor”, anunciou, empurrando-me para
dentro. A sala estava toda iluminada. Tudo o que havia de lâmpadas em
casa, Yara reunira na sala e cada canto resplandecia com luz quente e aco-
lhedora. Ao ver minha surpresa. Yara soltou uma gargalhada cristalina, sem
explicar coisa alguma. Esperou que eu falasse.

249
O que é, Yara, querida? Perguntei. Terei esquecido alguma coisa? Será que
hoje é um dia especial?
O cabelo descia-lhe pelos dois lados do rosto e nele estava preso uma flor
clara, quase radiante, que, com os enfeites de pena que trazia no tornozelo
direito, formava o seu único adorno.

Após Yara fazer Reginald beber dois copos da bebida que lhe preparou
então diz “Oh meu bem” [...]. Beba, e juro que explicarei tudo. Vou abrir meu
coração e minha alma e vou deixar você olhar dentro, para que saiba de uma
vez por todas quem sou e como sou eu” (op. cit., 1971, p. 246) e então, Yara ini-
cia o último duelo de resistência ao discurso julgador que a oprimiu e Reginald
mesmo sabendo que ela não aceitava traição, lhe traíra, e humilhara engravi-
dando a menina indígena Airik que ela criara como filha e então Yara lhes diz
e revela quem é ela dizendo-lhe em um discurso visual e verbal (1971, p. 246):

Mas quero que você me olhe e escute, tranquilamente, sem impedir que eu
faça o que eu quero. Está vendo Reg agora você me escuta. Agora posso
falar com você sossegada. Acredito, você sempre pensou que sou uma boba.
Talvez tivesse razão. Mas nem tanto assim como pensa. Por exemplo, em
tudo que se refere a você, não sou nada boba. Você acha que eu não sabia
daquela canoa que você mandou fazer para aquela menina, conforme você
chamava sair daqui? Acha? Quem foi que meteu essas ideias em sua cabeça?
Disse lentamente e com toda a calma de que era capaz. “Você está vendo
fantasma em toda a parte, Yara querida. Se eu soubesse para onde foi Airik,
não ia deixar de dizer-lhe. Acalme-se Reggi. Sempre fiz força para acreditar
em tudo o que se percebe, você me falou. Mas você sempre mentiu. Pensa
que não sei que queria mandá-la para Santo Antônio?
Mas que tolice Yara, quem foi que lhe deu essas ideias?

A personagem Yara afirma para Reggi que já faz tempo que não é mais
sua querida, e, em seguida, mostra a Reginald a Airik, amarrada e toda machu-
cada, parecendo morta, estava amarrada nas mãos e nos pés e Reginald pare-
cendo um fraco, impotente, se vê acuado, sem ação e com o coração acelerado.
E então “Yara deu uma gargalhada dissonante, estridente, louca, que me
fez virar a cabeça” (FALKENBURGER, 1971, 248) e continuou, “Não fique

250
com medo Reggi, ela não está morta. Ainda não, só está sem sentido, mas logo
mais acordará e Yara continua lhe contando o que ocorrera, para lhe demons-
trar o seu poder na comunidade de Cascata e então em outra passagem lhes
diz (1971, p. 249):

Yara tornou a rir. “Você se esqueceu, Reggi, meu amor, de que aqui você
é um estranho. Enquanto que eu sou daqui e sou a dona de tudo isso. A
mim contam tudo, porque bem sabem que eu o mataria, se não falassem.
Já sabia da canoa quando ainda nem estava construída. Mas eu mandei que
a construíssem. Depois só precisei esperar, e quando a peguei, só precisei
perguntar. Sem tirar os olhos de mim, Yara aproximou-se de Airik. Segurou
as mãos atadas e colocou-a de bruços.

Percebe-se, que Reggi, ficou perplexo de ver como Airik estava toda
machucada, e então “sua canalha”, exclamei, ‘oh sua canalha selvagem”. E en-
tão: “Yara esperou eu abrir os olhos para sacudir a cabeça em sinal de desapro-
vação”. E, mesmo com a insistência de Reggi para Yara não fazer mais nada
com Airik “Yara virou-se para Airik e cravou-lhe a flecha no ventre” (1971,
p. 251), e então Reggi desesperado diz que “como doido comecei a puxar as
cordas que me prendia, comecei a berrar, suplicar” e após perder os sentidos e
depois retornar ouvi Yara dizer-lhe:

Não vou matá-lo, Reggi. Pois eu o amo, sabe? Se o matasse, choraria por
você depois de estar morta. Eu amo você bastante, para saber que só um de
nós deve morrer, já faz tempo que morri, tanto tempo que nem lembro mais
como foi, quando ainda estava viva. Aprendi muita coisa com você. Lembro
que certa vez, você me contou de uma rainha que colocou uma cobra no seu
peito, para morrer. Nem me dei o trabalho de procurar uma cobra. Vou usar
apenas esta flecha.

Percebe-se, que Reginald em última tentativa diz (1971, p. 253):

Yara, eu suplico, pedi. Pelo nosso amor, não faça isso. Tudo será esquecido.
Nunca mais vamos pensar nisso. Vamos sair daqui. Para qualquer parte, bem
longe. Só você e eu. Rogo, Yara, minha noivinha, minha única querida, jogue

251
fora a flecha. Você vai ver como vamos ser felizes. Tudo ficará bem, quando
estivermos longe desse lugar maldito.

O narrador/personagem, em seguida, apenas assistiu a Yara enfiar nos


seios a flecha envenenada. Observa-se, que o Reggi, sempre utilizou do discur-
so que submeteu a Yara a uma constante resistência, no entanto, ela não aceita-
va a traição, esse foi o último golpe que levara, pois, Yara foi humilhada frente
a sua comunidade, como ela mesmo falou e tinha o controle de tudo, como
antes de embriagar Reginald, ela fez todos/todas os/as indígenas tomarem o
remédio para dormirem por dois dias. Reginald anteriormente, ela o fez dor-
mir por três meses, mas, o fato de não poder ter filho, com a traição dele com a
menina que ela criou como filha, lhe impôs uma vergonha insuportável frente
a sua comunidade, nada do que Reginald lhe prometesse naquele momento
faria Yara mudar de ideia para permanecer no calvário de ser julgada, compa-
rada ao animal, constante negação de sua cultura, da sua forma de pensar, uma
opressão insuportável para aguentar em uma constante luta individual e diária.
Vale dizer que (SOIHET, 2004, 318-319).

A desigualdade entre homens e mulheres em relação à questão se constituía


numa realidade (...) Alguns países chegavam a adotar a norma de impuni-
dade total em favor do marido que “vingasse a honra” ao surpreender sua
mulher em adultério. No Brasil, de acordo com o Código Penal de 1890, só
a mulher era penalizada por adultério, sendo punida com prisão celular de
um a três anos. O homem só era considerado adúltero no caso de possuir
concubina teúda e manteúda.

E assim, “também nessa outra situação fica configurada a mentalidade


vigente em relação ao adultério. A fidelidade obrigatória era impossível de ser
mantida pelo homem cuja sexualidade era excessivamente exigente, resvalando
a qualquer “sedução”. Julgava-se dever da esposa a compreensão de tais “fra-
quezas” (SOIHET, 2004, p. 321).
Por conseguinte, em relação às mulheres as regras já se tornavam logo
outra (SOIHET, 2004, p. 325):

252
A honra da mulher constitui-se em um conceito sexualmente localizado
do qual o homem é o legitimador, uma vez que a honra é atribuída pela
ausência do homem, através da virgindade, ou pela presença masculina no
casamento. Essa concepção impõe ao gênero feminino o desconhecimento
do próprio corpo e abre caminhos para a repressão de sua sexualidade. (..)
O medo a insegurança, a vergonha, por sua vez, extravasa do sexual para a
atuação no social, num sistema de realimentação constante.

Verifica-se que Yara é órfã de mãe e tem dezessete anos, nasceu e viveu
em Cascata, carrega em sua subjetividade o fato de ser órfã de mãe, sendo que
na imposição da colonialidade de gênero sua mãe foi trocada ainda criança por
um martelo era da tribo Pacaá.
Podemos, evidenciar que Yara, no processo de imposição do sistema de
gênero moderno/colonial, fora retratada como sendo gerada do estupro, pois,
a marca nos corpo das meninas vulneráveis no processo de assujeitamento de
corpos que se deu devido à colonização teve início com a chegada dos enco-
bridores dos povos indígenas, conhecidos na história como descobridores do
Brasil, da América Latina, do Novo Mundo, processo esse que continuou na
colonialidade de gênero, que está retratada na obra em análise.
Yara já nascera filha de uma indígena que teve em seu corpo as marcas
do processo de subjugação de corpos das mulheres nativas que se deu devido
ao processo de colonização que marcou e ainda marca as mulheres, bem como,
a todos os/as colonizadas/os da América Latina e Caribe.

Considerações

Ao analisarmos a colonialidade do gênero podemos perceber implica-


ções, nas dicotomias de poder, nas dominações e na fundação da Modernida-
de/Colonialidade. Diante disso, o colonizador narrador/personagem, Reginald
Wire, impõe nas ações cotidianas da personagem Yara um sistema de gênero
moderno colonial, que exige dela a necessidade de resistir à imposição da vio-
lência diária imposta no seu cotidiano, uma resistência individual, e por fim o
discurso do narrador/personagem a coloca exposta a sua comunidade, mesmo

253
sendo demonstrado para ele a sua preocupação e o orgulho frente a esse espaço
desde o início da narrativa.
Ao ser humilhada publicamente, tendo sua filha grávida de seu amor,
ela sucumbe diante de tamanha violência, e, como num ato de libertação de
tanta opressão e diante de um romance ultrarromântico que resolve tudo com
a morte, ela ao sucumbir diante da violência imposta pelo colonizador branco,
retira a própria vida e este é o fim da personagem Yara em As Botas do Diabo.
Consequentemente, enfatizamos que a resistência dessas personagens, em
As Botas do Diabo, pode ser percebida em diversos momentos em que elas fogem
da violência, enfrentam a violência ou sucumbem e morrem frente a violência,
como foi o desfecho da personagem Yara. E, ao contrário do que é propagado
pelo narrador/personagem, elas resistem a um sistema opressor que é esmagador,
estuprador, violentador de todas as formas para todas as personagens femininas
representadas, e, em uma constante luta, ao resistir individualmente, pode até ter
sucumbido, mas, ao resistirem coletivamente, a resistência ainda continua após
a morte de Yara, da Gertie e das indígenas não visualizadas, que são retratadas
na obra como os/as não modernos (as). Os/as não modernos/as não aceitaram a
modernidade, mataram, morreram e ainda morrem lutam e buscam seus direi-
tos tão difíceis nestes tempos atuais, após a chegada dos colonizadores o povo
indígena luta por sobrevivência e sua existência está registrada tanto nas reações
contra os invasores, como na luta por sobrevivência e certamente as mulheres
indígenas sempre estiveram lado a lado aos homens desses povos nativos.
Outra questão a se colocar é que ao homem colonizado por esse homem
branco, assim como foi retratado pelo narrador/personagem Reginald Wire,
é imposto um olhar único, o que se faz necessário repensarmos como, nesse
discurso colonial, as categorias utilizadas para representação dos papéis sociais
inerentes ao homem e, consequentemente à mulher são fixas e engessadas, re-
legando ao homem o papel representativo de “machão” munido de autoridade
nas relações sociais de gênero e de poder. A esse homem branco, protótipo do
poder colonialista, são dadas prerrogativas para tratar a mulher como um “ob-
jeto”, assim como constatamos no discurso do narrador /personagem Reginald
Wire nas análises que realizamos ao longo desta breve análise.

254
Percebe-se que o narrador/personagem retrata no discurso a colonia-
lidade com ideias de um feminismo hegemônico com ideias eurocentradas e
universalizadas de emancipação da mulher ,sem considerar as diferenças essen-
ciais que existe entre as mulheres brancas, as negras, latinas, indígenas e suas
opressões, e nesse sentido, são representações, portanto não são representativas
das mulheres não brancas, portanto são fontes de dominação e propagação da
colonialidade, pois, as representações de Falkenburger denuncia, a divisão ra-
cial do trabalho, e isso como consequência para a construção identitária e para
as lutas por antecipação de modo a retratá-lo como universal, hegemônico sem
levar em consideração as diferentes opressões a Gertie que ao ser enfermeira
diz ao homem branco que não é sua empregada que este vá buscar sua bebida,
e retrata a indígena que trabalha para o narrador /personagem Reginald Waire
e o serve como objeto na cama e após três anos foge deste, ao retratar a mulher
branca que sai do ambiente doméstico e vai trabalhar no hospital e apresar in-
dígena, visitar a família, as coloca como se fossem iguais e estivessem em uma
mesma luta por liberdade no entanto estão em diferentes espaços, diferentes
opressões, diferentes contextos.
Quanto à colonialidade do saber é representada de modo estereoti-
pado, pois a Yara cura os doentes, sabe fazer dormir, no entanto seu saber
é tão brutalmente narrado de modo a colocar uma linguagem de que ela
é incivilizada, irracional, quando ela cura o doente retirando uma bala do
corpo ao narra esse conhecimento de Yara ele deturpa tanto que coloca
ela gostando de estar cortando o corpo do doente, o cuidado ao cortar a
maestria de fazer o serviço é narrado a fazer parecer ela uma selvagem.
E a narrativa coloca o conhecimento do médico como superior, o parto
já está sendo realizado pelo médico para a mulher branca a indígena vai
para o mato e retorna com a criança e isso é colocado de modo a reforçar
o civilizado e o incivilizado. E assim, a apropriação e aculturação do saber
da cultura do conhecimento e as formas do civilizado vão se apropriando e
passando como verdadeiro e universal e superior, vai sendo universalizado.
Concluímos com a passagem que serviu de inspiração para o título
deste trabalho: Yara diz ao Narrador/personagem Reginald Wire “Você é um

255
amor, falou Yara, afastando os lábios um pouco dos meus, você é tão bom, mas,
você mente!” (FALKENBURGER,1971, p.135).
E essa passagem, por si mesma, sintetiza todo o posicionamento das
nossas análises frente ao discurso colonial adotado pelo narrador Reginald.
Assim, para finalizarmos com uma constatação da própria personagem que
analisamos, reiteramos que o discurso da colonialidade tem uma boa roupagem
e uma aparência de civilidade, como demonstramos na crítica ao sistema de
gênero moderno-colonial, mas, o único problema é que esse discurso “mente”.

REFERÊNCIAS

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tura. Editora: Maringá – 2000 [1942];

BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lucia Ozama (org). Teoria Literária: aborda-


gens históricas e tendências Comteporâneas. Ed. – 4ª- Ampliada e Revisada.
Ed. – Eduen. - Maringá -2019

FALKENBURGER, Kurt. As Botas do Diabo. 2ª Ed. São Paulo: IBRA-


SA, 1971;

FALKENBURGER, KURT, Abismo. Clube do Livro Ltda., 1979;

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação-Uma perspectiva pós-


-estruturalista. 4ª Edição-editora vozes, 1997;

LUGONES, María. Colonialidad y Género. Tabula Rasa. Bogotá - Colômbia,


N° 9, 75-101, jul./dez., 2008;

LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas.


Florianópolis, 22(3): 320, set./dez./2014;

MALDONALDO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: con-


tribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMES, Santiago;
GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad

256
epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá. Siglo del Hombre Editores;
Universidad Central; Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Ponti-
ficia Universidad Javeriana: Instituto Pensar, 2007;

MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade.


Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, 2017;

SOIHET, Rachel. Mulheres Pobres e Violência no Brasil Urbano. In: PRIORE,


Mary Del (Org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004;

257
SOBRE OS AUTORES

ADRIANA DE SÁ MARQUES CRUZ


Possui Graduação em Letras/Português pela Universidade Federal de Ron-
dônia - UNIR (2006); Especialização em Língua Portuguesa pela Fundação
Riomar/ UNIR (2008); Mestre em Estudos Literários na UNIR; Membro
do Grupo de Pesquisa em Letramento Literário: estudo de narrativas da/na
Amazônia/UNIR/CNPq e do Grupo de Pesquisa Criamazônia - Processos
de Criação na/da Amazônia/IFRO/CNPq. Docente de Língua Portuguesa,
Redação e Literatura da Secretaria Municipal de Educação - SEMED. Atua
na Gerência de Formação, Capacitação Técnica e Pedagógica - GFCTP/SE-
DUC/RO como formadora de Língua Portuguesa do Referencial Curricular
de Rondônia (RCRO) do Ensino Fundamental. Iniciou, em maio de 2020, o
trabalho como redatora de Língua Portuguesa na construção do Referencial
Curricular de Rondônia do Ensino Médio. Compõe a Comissão de Imple-
mentação do Novo Ensino Médio no Estado de Rondônia. Orcid: https://
orcid.org/0000-0002-0700-6996 E-mail: asamarques25@gmail.com

ALBERTO DE BARROS MOLINA


Possui graduação em Letras - Português pela Universidade Federal de Rondô-
nia (1994). Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Ron-
dônia. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira.
Membro do grupo de pesquisa Letramento literário: pesquisas de narrativas
da/na Amazônia/UNIR/CNPq. E-mail: albertodebarrosmolina@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4424-6697

ANE CAROLINE RODRIGUES DOS SANTOS FONSECA


Possui graduação em Letras - Língua Portuguesa pela Universidade Federal
de Rondônia - UNIR (2018). Mestranda do Mestrado acadêmico em Es-
tudos Literários pela Universidade Federal de Rondônia - linha de pesquisa
1: estudos de literatura, cultura e letramento literário (início abril de 2019);

258
membro do grupo de pesquisa em letramento literário: estudo de narrativas
da/na Amazônia. http://lattes.cnpq.br/9057409146993596 Orcid: https://
orcid.org/ 0000-0002-4196-3909

ANDREA TAVARES ISHIMOTO


Graduada em Letras pela Universidade Federal de Rondônia. Mestrado em
Estudos Literários pela Universidade Federal de Rondônia. Membro do grupo
de pesquisa Letramento literário: pesquisas de narrativas da/na Amazônia/
UNIR/CNPq. http://lattes.cnpq.br/1601231436291551 E-mail: andreaishi-
moto@gmail.com

CLEITON LEIRSON BRAGA DAS NEVES


Possui graduação em pedagogia com licenciatura para os anos iniciais e espe-
cialização em Orientação Educacional pela União das Escolas Superiores de
Rondônia (2010). Atualmente, é professor dos anos iniciais de (1º ao 5º) da
Prefeitura Municipal de Porto Velho e orientador Educacional. Além de peda-
gogo, é músico. Nos anos de 2011 a 2017 realizou um projeto de musicalização
no Distrito de Jaci-Paraná – o que rendeu uma Moção de Aplausos na Câmara
dos Vereadores do Município de Porto Velho, em junho de 2018. Desde março
de 2018, desenvolve um projeto de música na comunidade da Vila Princesa. É
discente do PPGMEL/UNIR. Faz parte do grupo de pesquisa “Criação e (re)
criação do romance nacional: conteúdo histórico e forma artística”. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-3867-090X

ELYSMEIRE DA SILVA DE OLIVEIRA PESSOA


Mestre em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Rondônia. Gra-
duada em Ciências Econômicas, Turismo, Artes Visuais e Filosofia. Participa
dos Grupos de Pesquisa: Letramento Literário: estudos de narrativa da/ na
Amazônia e Processos de Criação na/da Amazônia. A produção acadêmica
mais recente tem ênfase em literatura, atuando principalmente nos seguin-
tes temas: cultura amazônica e letramento literário. Lattes: http://lattes.
cnpq.br/0444760616925943 Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4920-1471
E-mail: elysmeirepessoa@gmail.com

259
ELIANE AUXILIADORA PEREIRA
Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do
Amazonas (2018), Mestrado em Letras Literatura e Crítica Literária pela Pon-
tifícia Universidade Católica de Goiás (2008), especialização em Literatura Bra-
sileira Contemporânea (1996) pela Universidade Católica de Goiás, graduada
em Letras Português e Literaturas Correspondentes pela Universidade Católica
de Goiás (1994). Atualmente é professora do CMCG. Tem experiência na área
de Letras, com ênfase em teoria e crítica literária, língua Portuguesa, atuando
principalmente nos seguintes temas: literatura, análise do discurso, letramento
literário e processos de criação entre artes: literatura e cinema. Vice-líder do gru-
po de Pesquisa Criamazônia /IFRO/CNPq e membro do Letramento literário:
pesquisas de narrativas da/na Amazônia/UNIR/CNPq. Atua como avaliadora
de projetos de ensino, pesquisa e extensão. E-mail: elianegyngo@gmail.com Or-
cid: https://orcid.org/0000-0001-7418-0479

FRANCISCA LUSIA SERRÃO FERREIRA


Mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal de Rondônia- UNIR.
Pedagoga. Com Especializações: Psicopedagogia; Pedagogia Gestora: Admin-
istração, Orientação e Supervisão Escolar. Escritora. Feminista e Ativista Po-
lítica. Experiências profissionais como gestora, supervisora e sala de aula e em
Conselhos da Mulher e de Educação e coletivos de mulheres. Pesquisadora
do Grupo de Pesquisa Grupo de Estudo m Educação, Filosofia e Tecnolo-
gia-GET/IFRO. Pesquisadora do \grupo de pesquisa Migração, Memória e \
cultura na Amazônia; Pesquisadora do Grupo Letramento Literário/UNIR.
http://lattes.cnpq.br/3256581133250466

FERNANDO SIMPLÍCIO DOS SANTOS


Fernando Simplício dos Santos é professor da Universidade Federal de Ron-
dônia (UNIR), vinculado ao Departamento Acadêmico de Letras Vernácu-
las (DALV) e ao Mestrado Acadêmico em Estudos Literários (PPGMEL).

260
Entre as pesquisas desenvolvidas atualmente, elabora trabalhos a partir dos
seguintes temas: a) teoria do romance; b) narrativa, imaginário e modernidade;
c) representações literárias e culturais sobre a Amazônia. É pesquisador as-
sociado do PROCAD AMAZÔNIA UFF-UFRR-UNIR. ORCID: https://
orcid.org/0000-0002-7853-5713

IZABEL BRITO DE NASCIMENTO


Formada em Letras/Português pela UNIR- Universidade Federal de Rondô-
nia. Pós-graduada em Revisão de textos pela FGV-Fundação Grande For-
taleza. Mestre em Estudos Literários pela UNIR- Universidade Federal de
Rondônia. Membra dos grupos de Pesquisa Criamazônia /IFRO/CNPq e
Letramento literário: pesquisas de narrativas da/na Amazônia/UNIR/CNPq.
Professora de Língua portuguesa no Ensino Fundamental na Rede Estadual
de Ensino Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1271-7143 E-mail: izabepo-
esia1978@gmail.com

IZA REIS GOMES


Professora de Língua Portuguesa e Literatura do IFRO - Campus Porto Velho
Calama. Professora do Mestrado em Educação Profissional e Tecnológica do
IFRO; Professora credenciada do Mestrado em Estudos Literários da UNIR;
Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do
Amazonas (2018); Mestre em Letras - Linguagem e Identidade pela Univer-
sidade Federal do Acre - UFAC 2008). Graduada em Letras/ Português pela
Universidade Federal de Rondônia (1996). Pesquisa na área da Literatura Bra-
sileira com ênfase em Letramento Literário e Processos de criação; e na área
de Práticas pedagógicas dialógicas no Ensino Profissional e Técnico; É líder
do Grupo de Pesquisa Criamazônia/IFRO/CNPq – Processos de criação na/
da Amazônia e membro do Grupo de pesquisa Letramento literário: pesqui-
sas de narrativas da/na Amazônia/UNIR/CNPq. E-mail: iza.reis@ifro.edu.br
Orcid https://orcid.org/0000-0001-8668-1692

261
MARA GENECY CENTENO NOGUEIRA
Possui graduação em História pela Universidade Federal de Rondônia (1987),
Mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia (2008) e
Doutorado em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (2015). Pro-
fessora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal de
Rondônia e professora do Programa de Pós-Graduação Mestrado Acadê-
mico em Estudos Literários. Tem experiência na área de História, atuando
principalmente nos seguintes temas: memória, patrimônio, morte e estudos
amazônicos. Email: maracenteno@gmail.com Orcid https://orcid.org/0000-
0003-0660-2128

MARIA DE FÁTIMA CASTRO DE OLIVEIRA MOLINA


Maria de Fátima Castro de Oliveira Molina é professora da Universidade Fe-
deral de Rondônia (UNIR), vinculada à área de literatura do Departamen-
to Acadêmico de Letras Vernáculas (DALV) e ao Mestrado Acadêmico em
Estudos Literários (MEL). Possui doutorado em Letras pela Universidade
Estadual Paulista (UNESP – Rio Preto) – Área Literaturas em Língua Portu-
guesa. Líder do Grupo de pesquisa - Letramento literário: pesquisas de narra-
tivas da/na Amazônia/UNIR/CNPq. É pesquisadora associada do PROCAD
AMAZÔNIA UFF-UFRR-UNIR. E-mail: fatimamolina@unir.br Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-8193-3088

MARÍLIA LIMA PIMENTEL COTINGUIBA


É professora da Universidade Federal de Rondônia desde 1998. É pós-
doutora pelo Núcleo de Estudos Populacionais - NEPO/UNICAMP. Possui
doutorado em Linguística e Língua Portuguesa pela UNESP. Mestrado em
Letras pela UNESP. Faz parte do corpo docente do Programa de Mestrado
em Letras da Universidade Federal de Rondônia. É líder do grupo de pesquisa
Migração, Memória e Cultura na Amazônia Brasileira. É coordenadora do
Observatório das Migrações em Rondônia. Realiza pesquisas na área de
Linguística Aplicada e Análise do discurso de linha francesa. Realiza pesquisas
na área de migração, políticas públicas e direitos humanos para imigrantes,
ensino de Língua Portuguesa para imigrantes. Orcid https://orcid.org/0000-
0003-1847-4987

262
NUBIA DE SOUZA SILVA
Graduada em Letras Português/Inglês pela Universidade Federal do Amazo-
nas -UFAM; MESTRA em Estudos Literários pela Universidade Federal de
Rondônia. Membro do grupo de pesquisa Letramento literário: pesquisas de
narrativas da/na Amazônia/UNIR/CNPq. Email: nubia_08souza@hotmail.
com Orcid https://orcid.org/0000-0001-6468-5924

ROZIANE DA SILVA JORDÃO


Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas,
Mestra em Letras pela Universidade Federal de Rondônia; possui licenciatura
em Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas e participa como membro
dos grupos de pesquisas MIMCAB- Migrações, Memória e Cultura na Ama-
zônia Brasileira, da Universidade Federal de Rondônia e do GEMA- Grupo
de Estudos Migratórios na Amazônia. Contato: rozianejordao@gmail.com.
Orcid https://orcid.org/0000-0003-2396-5326

SONIA DOS SANTOS


Mestra em Estudos Literários (2018) pela Universidade Federal de Rondônia
-UNIR. Graduada em Letras/Língua Portuguesa e suas respectivas Literatu-
ras (2001) pela Universidade Federal de Rondônia-UNIR. Desde 2014 exerce
o cargo de Secretária Executiva do quadro efetivo de servidores técnico-admi-
nistrativos da Fundação Universidade Federal de Rondônia/UNIR, no Cam-
pus de Guajará-Mirim. Tem experiência de docência desde a alfabetização à
Pós-graduação Lato Sensu. Atualmente, desde 2021, está credenciada como
professora voluntária do curso de Pedagogia do Campus de Guajará-Mirim
(UNIR). do Departamento Acadêmico de Ciências da Educação – DACE
e também está credenciada como professora voluntária (desde 2021) do Ins-
tituto Federal de Rondônia (IFRO). Área de concentração docente: Língua
Portuguesa, Redação, Literatura infanto-juvenil, Literatura Amazônica, Lei-
tura e Interpretação de texto. E-mail: sonia.santos.gm@hotmail.com. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-2532-2669

263
SUELEN DA COSTA SILVA
Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Rondônia (2008).
Atualmente é professora nível III- SECRETARIA ESTADUAL DE EDU-
CAÇÃO desde 2010 (lotada na Escola Marcelo Cândia – subsede 1). Mestre
em Estudos Literários na UNIR. Experiência na área de Letras. Docente de
Língua Portuguesa, Literatura, Redação e Arte. Soma-se a isso, Docência nas
áreas de Redação e Literatura, na instituição privada – MEDQUIM. Membro
do Grupo de Pesquisa em Letramento Literário: estudo de narrativas da/na
Amazônia e do Grupo de Pesquisa: Criamazônia/IFRO/CNPq – Processos
de criação na/da Amazônia. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8497-3656
E-mail: scsigjc@gmail.com

264
A Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR) é uma instituição pública
de ensino superior criada em 1982. Ao longo de aproximados 40 anos, as ações de
ensino, pesquisa e extensão formaram profissionais qualificados para atuação em
todas as esferas da sociedade e do mercado de trabalho. A partir do ano 2000, com
o início da oferta de cursos de Pós-Graduação, essa ação foi sendo ampliada, sen-
do ofertados, atualmente, 24 mestrados e 04 doutorados, abrangendo diversas áreas
do conhecimento e priorizando pesquisas atinentes às questões ambientais, sociais,
educacionais, culturais, econômicas e geográficas da Amazônia e especialmente de
Rondônia. Como política de apoio e fortalecimento à Pós-Graduação e à pesquisa
na Universidade, a Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (PROPESQ) insti-
tuiu a publicação de livros elaborados pelos programas de Pós-Graduação, como
atividade de divulgação e compartilhamento dos resultados das pesquisas produz-
idas por pesquisadores desta Instituição, tendo a Editora da Universidade Federa
de Rondônia (EDUFRO), como unidade sistematizadora de todas as produções.
Dessa forma, a coleção é resultado dos trabalhos elaborados pelos PPG da UNIR,
com temas e abordagens disciplinares e transdisciplinares que visa a divulgação dos
resultados das pesquisas elaboradas nessa Instituição e aproximação da UNIR das
Instituições Estaduais, Municipais e de toda a Sociedade.
Maria Madalena de Aguiar Cavalcante – Diretora de Pós-Graduação
Artur de Souza Moret – Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa

O desafio da Fundação Universidade Federal de Rondônia no ensino de graduação e


de Pós-Graduação nunca foi tão grande, principalmente a partir dos recursos cada vez
menores. Nesta pandemia por covid-19, o desafio foi não parar e a Pós-Graduação da
UNIR não parou: defesas de dissertações e teses tornaram-se on-line e as produções
acadêmicas-científicas não cessaram. A Coleção Pós-Gradução é a demonstração de que
o esforço para o crescimento e a consolidação se mantém firme e constante. O futuro da
Pós-Graduação na UNIR é o resultado das ações articuladas entre todos os atores, com
maior abertura para a sociedade e para os setores públicos e com um grande objetivo que
nos motiva, o de contribuir na formação em excelência de professores e pesquisadores
nos países limítrofes. Os resultados nos colocam em papel de destaque na Amazônia e
é isso o que desejamos: ser uma Instituição pública e gratuita, com forte apoio da socie-
dade para a oferta de cursos e formações que promovam o Desenvolvimento Regional e
Sustentável do Estado de Rondônia.
Marcele Regina Nogueira Pereira - Reitora

265

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