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Musicologia e Interpretação: Teoria e Prática

Régis Duprat1

RESUMO: O presente artigo aborda a música como um ato interpretativo que nos transforma.
Fundamenta-se em Gadamer que afirma haver uma fusão de horizontes no ato interpretativo. Mostra a
história da música nos séculos XV e XVI até a contemporaneidade discutindo a simbiose entre a teoria e a
prática.

PALAVRAS – CHAVES: musicologia, interpretação, música.

ABSTRACT: This article deals with music as an interpretative act that transforms us. Fundamenta
himself in Gadamer says that there is a fusion of horizons in the interpretative act. It shows the history of
music in the fifteenth and sixteenth centuries to the contemporary discussing the symbiosis between theory
and practice.

KEY – WORDS: musicology, interpretation, music

Abrir a nossa sensibilidade para um tema, lacônico que seja, já é proceder a um


vastíssimo ato de interpretação, já é nos introduzirmos no universo infinito e multifacetado da
pré-compreensão das coisas. Porque nós já estamos sempre previamente inseridos dentro desse
estar-aí no mundo da música; porque aprender música já constitui, desde antes de seu início
pedagógico, um gigantesco passo de interpretação, pois nenhuma interpretação é possível sem
que cotizemos a nossa pré-compreensão de alguma coisa com os desafios permanentes a que o
estar-aí no mundo da música nos convida, nos constrange, nos condiciona. Eis porque o ato
interpretativo nos transforma. Gadamer, o grande nome da hermenêutica filosófica
contemporânea (Gadamer, 1990), diz que na interpretação dá-se uma fusão de horizontes, ou
melhor, ela consiste necessariamente numa fusão de horizontes, fusão que no nosso caso consiste
no diálogo com a obra que interpretamos ou nos dispomos a interpretar. Gadamer desenvolve a
noção de círculo hermenêutico, de Heidegger, ou seja, o reconhecimento da permanente e
constante vigência da situação hermenêutica; a condição interpretativa é uma condição
existencial, inerente à própria vida, ao compreender. Viver e compreender a música são
igualmente atos continuadamente interpretativos. Mas a interpretação não é um processo através

1
Professor-titular da Universidade de São Paulo
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Faculdade de Educação Ciências e Letras Don Domênico

do qual chegamos à versão definitiva de uma coisa. Fazendo “blague”, diríamos que a versão a
que chegamos é definitivamente provisória...
Desde o início do século dezenove, século em que se consagrou o historicismo, a
civilização ocidental despertou para a música do seu passado. De longa data dedicam-se as
Sociedades de Concertos de Música Antiga à interpretação da música da Idade Média, dos
séculos XV e XVI, épocas em que o rigor da instrumentação e da execução era uma preocupação
muito relativa. No decorrer do século dezenove as pesquisas, estudos e especulações sobre o
passado musical gradualmente recuaram no tempo, culminando, no final daquele século, nas
descobertas importantes sobre a Ars Nova, do início do século XIV. Hoje, que adentramos o
século XXI, o antigo já alcança o século XVIII, abarcando todo o período barroco. Mas o
problema não se reduz ao que se costuma ouvir em matéria de execução, ou seja, contingentes
orquestrais e/ou vocais gigantescos executando obras escritas originariamente para pequenos
conjuntos de câmara, e cuja sonoridade assim obtida é de duvidosa validade histórica; ou mesmo
se devem usar-se instrumentos originais de época, determinando a redução do volume de
acompanhamento por razões de sonoridade. Geralmente escudam-se na propriedade estilística.
Estilo, porém, também não se reduz a problemas de sonoridade; é uma coisa muito mais
complexa; resulta de uma elaboração contra o acaso. Apesar de não se pretender um modelo
matemático de estilo, diríamos, com Gilles Granger, (1974) que se trata, pelo menos, de aplicar
aos fatos de estilo elementos que permitam estabelecer uma orientação para a análise efetiva dos
casos concretos e até sugerir, em certos casos, o estabelecimento de verdadeiros modelos. Nos
fatos de estilo, muito mais do que a sonoridade dos instrumentos de época, há outros parâmetros
pertinentes como o tempo e o andamento, a interpretação das alterações rítmicas praticadas
convencionalmente na época, a solução dos ornamentos, a agógica e a realização do baixo
cifrado, e muitos outros cuja execução até causaria estranheza hoje.
Até agora não surgiu um corpo teórico, abrangente e consistente, tentando listar os
elementos que se trata de reformular. O próprio uso de instrumentos originais nem sempre é
coisa meridiana; qual o instrumento de teclado para o qual foi escrita uma peça: cravo, órgão,
clavicórdio, fortepiano ou lautenclavicembalo? Com os demais instrumentos de corda e sopro
ocorre o mesmo problema. Mas as especulações e experimentos interpretativos encarados como
alternativas e não como apaixonada exclusividade, só poderão contribuir para enriquecer a visão
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do problema da interpretação de época. Igualmente, não podemos repudiar em bloco as


contribuições interpretativas anteriores só porque descobrimos, por pesquisa, convincentes
aspectos em que a prática original era diversa. Em certo sentido, nossa visão dos estilos,
historicamente elaborada, é inseparável da evolução histórica que teve essa mesma visão.
Concordemos, entretanto, com as especulações quando elas refletem pesquisa competente
e inteligente sobre problemas de expressão, sonoridade, ritmo, andamento e tempo, agógica,
ornamento, fraseio, dinâmica, baixo contínuo e/ou cifrado etc.. Pois também ocorre que muita
gente que não tem nenhuma proposta, e tende a inovar no modismo vazio, propondo novas
extravagâncias. A crítica deve estar alerta para debater, pois não se trata de cercear a liberdade de
expressão...
O problema fundamental parece ser o das limitações naturais da notação musical, da
exata correspondência desta com a execução original; da execução original com a atual. A
consciência disso é coisa muito recentemente conquistada, porque nas artes do som especificam-
se formas existenciais não cognoscíveis em sua plenitude perceptiva senão através do seu
registro sonoro. A grafia musical constitui, então, um verdadeiro metacódigo (não um
subcódigo) a cujo acesso só se permitem os iniciados, e dentre estes, em geral, que são os
músicos, há os especializados nas execuções de época. Ora, o barroco não primou por manter o
intérprete numa camisa-de-força, tendência forte da música moderna no princípio do século XX,
na qual pouca coisa resta ao intérprete além de cumprir fielmente o projeto realizado pelo
compositor. Diga-se de passagem que essa postura já havia inspirado João Sebastião Bach (1685-
1750) na própria codificação sistematizada da realização dos ornamentos em sua música.
A introdução do áleas, o aleatório, na música moderna, reverteu essa tendência iniciada já
no barroco. Passados os tempos, foram surgindo novos estilos; evolaram-se as tradições de
improvisação e o executante atual, ao retomar a interpretação daquela música, vê-se cruamente
diante da obra escrita, às vezes de um esqueleto, de um esquema da notação musical que não
representa inteiramente a música viva daquele período. Defronta-se, inclusive, com uma visão
adulterada que pode conduzi-lo a ver a música escrita como rigorosamente inalterável. O
intérprete, como diz Thurston Dart (1960), tornou-se prisioneiro do passado; e também das
interpretações-chave das obras do passado.
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O problema se agrava ainda mais quando transcendemos os aspectos técnicos para


abordar, na interpretação, a teoria das paixões, dos afetos, e sua evolução. Os autores de época
falam muito de “paixão dominante” em um texto musical; dela se desdobrariam todas as demais
formulações técnicas de interpretação. Quantz (Johan Joachin, 1697-1773), o grande teórico do
século XVIII, fonte inesgotável de sugestões, dizia, em 1752 (Strunk, 1952), que uma boa
execução deve ser cheia de variedade, opor luz e sombra, mudanças de forte e piano etc.. Se
colhermos em nosso período colonial brasileiro, depoimentos do mesmo âmbito, posso citar um
exemplo que nos calha bem: o de André da Silva Gomes (1752-1844), mestre-de-capela da Sé de
São Paulo entre 1774 e 1823, que no seu notável tratado denominado “Arte Explicada de
Contraponto”, (Duprat et al. 1998), que como os similares europeus da época constituíam
verdadeiros tratados de composição, destaca, enfática e preliminarmente, na primeira página e
lição do tratado, uma lúcida distinção entre contraponto e composição: o primeiro seria a
invenção da harmonia das partes e a segunda, a invenção das partes individuais; o contraponto
são as regras e a composição é a fantasia... Para ele o preceito da variedade também é prioritário,
pois evita, na música, os motivos fastidiosos. As dissonâncias são-lhe preceito salutar (Lição 9),
pois com elas a música se torna mais deleitável e até realçam-se as espécies consonantes.
Aqui se levanta o aspecto mais pertinente, que é o da edição, da transcrição ou revisão de
obras do passado, verdadeira intermediação ente o original e o intérprete, e que nem sempre, na
História, contribuiu positivamente para esclarecer – em vez disso, confundiu e às vezes continua
confundindo. Esse próprio mister já possui uma tradição. As edições conhecidas e consagradas
pela interpretação resultam de mais de século e meio de movimento editorial, pois até o princípio
do século XIX não surgira o interesse pela música do passado. Foi o romantismo que redescobriu
os trovadores; Felix Mendelssohn (1809-1847) a João Sebastião Bach. Guillaume de Machault
(1300-1377) e a Ars Nova são recuperados a partir de 1893; as edições eruditas das décadas de
1910 e 1920 recuperam a memória de Gillaume Dufay (1400-1474), Jean de Ockeghem (1430-
1495), Josquin dès Prés (1440-1521) e outros polifonistas dos séculos XV e XVI; muitos deles
ainda aguardam a sua vez... Antes mesmo de Curt Sachs (1881-1959) se sensibilizar pela
aplicação, no campo da música, das designações cronológicas e morfológicas que Heinrich
Wölfflin cometera às artes visuais e à arquitetura do período barroco, Arnold Dolmetsch (1946),
lança em 1916 o seu livro de interpretação da música dos séculos XVII e XVIII. Já se vê que,
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apesar de tudo, a tradição de interpretação é acentuadamente recente e jovem. Por isso, talvez, o
encanto do seu arrebatamento deslumbrado e juvenil...
Lembremos as palavras de Thurston Dart (1960) em A Interpretação da Música: “A música
é ao mesmo tempo uma arte e uma ciência; como toda arte e toda ciência não tem nenhum
inimigo salvo a ignorância”. Para interpretar o barroco não basta formar conjuntos pequenos ou
eleger instrumentos originais; é preciso muito mais do que isso, como dissemos anteriormente.
De alguma forma nos defrontamos, nesta altura, com um problema que não é outro senão o
da contraposição de teoria e prática, de racionalidade e sensibilidade. Sustentar que o artista não
se prestaria ao raciocínio sistemático e ao trabalho cientificamente conduzido; de que a função
do artista seria limitada a intuir e a expressar por signos misteriosamente específicos, parece-nos
preconceito difuso e daninho, ultrapassado resíduo da estética romântica.
Cabem aqui algumas considerações sobre o fazer e o refletir em arte. Parafraseando John
Barth, o novelista norte-americano tido como pós-moderno, porque fabulista desde a década de
1960, de fato os pássaros têm pouco a dizer sobre ornitologia. Mas essa atitude, compreensível
no artista atuante que não tem caprichos reflexivos relativamente ao desempenho do seu fazer
artístico, pode conduzir, e conduz efetivamente, à adoção de um comportamento empírico, ou se
quiserem, empiricizante, no qual não há lugar para a manifestação humana diferenciada que é a
reflexão e que nos distingue dos animais, no caso, dos pássaros aos quais não interessa,
realmente, a ornitologia.
São comuns os argumentos de que é bonito falar sobre arte mas que esse falar não pode
sobrepor-se a ou substituir o fazer arte. Essa atitude é simplória e reducionista já que, de início,
se torna difícil a definição do que seja “fazer arte”. Será que fazer arte sem refletir sobre o fazer
seria fazê-la bem? E valeria a pena fazer arte sem fazê-la bem? O fato é que embutida no fazer,
e inseparável dele, está sempre presente a reflexão sobre o fazer. A polêmica, então, muda de
lugar, de âmbito: trata-se de saber em que nível ou até que nível é válido refletir sobre o fazer.
Aí, já não estamos numa refutação pura e simples de toda reflexão, ou de nenhuma reflexão.
Diríamos, até, que os que fazem as coisas bem seriam justamente os que refletem bem sobre o
que fazem; porque se não souberem refletir sobre o que fazem jamais se tornarão bons no fazer.
Insisto em que não há fazer sem a reflexão sobre esse fazer; que existe uma instância pragmática
em toda tarefa reflexiva, e uma instância reflexiva em toda tarefa pragmática. O homem
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culturalizado de hoje não pode mais abdicar dessa verdade. E toda vez que o faz ou que é
constrangido a fazê-lo, se robotiza. E essa ameaça de robotização, universalmente presente em
nossa civilização pós-industrial, tida como pós-moderna, constitui, talvez, o maior obstáculo para
a livre expansão das potencialidades humanas e, portanto, da liberdade. Diríamos, também, que
essa robotização constitui uma sobrevivência da modernidade, porque mecânica, no período da
pós-modernidade.
No âmbito do fazer instrumental musical, por exemplo, é flagrante a tradicionalidade do
ato mecânico e manual frente ao gesto eletro-eletrônico-geracional que transcende a dimensão
mecânico-muscular que busca deflagrar o som, com suas proverbiais imperfeições. Aliás, é tido
e sabido pelos que manipulam os recursos eletro-acústicos agora computadorizados e
digitalizados, que vem sendo uma tarefa interessante e divertida introduzir no “fazer eletro-
acústico”, imperfeições perfeitamente projetáveis graficamente, para garantir ao produto final
um resultado mais “humano”. Entretanto, a música instrumental nunca conheceu o viço de que
goza atualmente. A própria capacidade instalada universalmente, que demanda vultosos recursos
aplicados permanentemente nessa área transforma os anseios eletro-acústicos de substituição dos
recursos instrumentais em um sonho ingênuo que provavelmente jamais se realizará...
A expressão moderna do fazer prende-se em grande parte à sobrevivência do trabalho
manual e escravo que, na atualidade, se expressa na robotização. Na verdade, é uma divisão de
trabalho que gerou um preconceito, expresso por uma divisão da sociedade em classes sociais;
até mais do que uma simples divisão de classes, uma divisão entre o capital e o trabalho
(dimensão econômica), entre a iniciativa e a passividade (dimensão social), entre a apropriação e
o despojamento (dimensão jurídica) entre o fazer e o refletir (dimensão gnosiológica ou
epistêmica).
O fato é que conhecemos duas grandes divisões no estudo da Música: a Música Prática e
a Música Teórica. Teoria e Prática são os dois componentes de qualquer estudo musical
imaginável. E não tenho notícia de ninguém que pudesse ter chegado ao domínio razoável de
qualquer uma dessas divisões sem ter tido um treinamento exaustivo, intensivo e permanente, na
outra divisão. Ninguém consegue conceber um bom teórico sem a prática e muito menos um
bom prático sem a Teoria.
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O que é Teoria, afinal? Vem do grego: visão de um espetáculo, visão intelectual,


especulação, construção especulativa do espírito. O grande teórico do Renascimento musical
espanhol, Bartolomé Ramos de Pareja (1983) que reprochava aos teóricos a abstração
matemática, diz no Prologo do seu Livro, publicado no ano de 1482: ”...preparamos uma obra
muito proveitosa tanto para os cantores práticos como para os especulativos, que em grego
chamamos teóricos”
E, dando ao seu livro o título de Música Prática, e admoestando severamente os teóricos
conservadores da época, não deixou de fazer, ele mesmo, a melhor Teoria, a melhor especulação,
porque quando esta se baseia na prática, e na boa prática, tudo correrá bem. E o nosso Pareja
também não deixa de atingir com vigor os praticões do seu tempo quando diz: « Y si en estos
tiempos nuestros son muy escasos los prodigios por obra de la musica, no se ha de imputar al
arte, en su divina perfección, sino a los que la usan malamente. Si volviesen pues a vivir aquellos
sumos musicos ..., negarian haber compuesto la musica de nuestro tiempo, que la depravación de
algunos cantores ha provado de buen gusto, de elegancia y de reglas”.
Talvez tenha sido o Romantismo (a cena do estudante, no 1º Ato do Fausto, de Goethe:
« Toda teoria, caro amigo, é uma coisa cinza; mas a árvore de ouro da vida é verdejante”) o
principal responsável pela veiculação de um sentido pejorativo da palavra Teoria; seja, como diz
André Lalande (1951), em seu Vocabulário da Filosofia, como uma visão do espírito
artificialmente simplificada, que representaria os fatos de uma forma demasiadamente
esquemática para que se possa aplicá-las à realidade; seja como uma concepção individual e
casual, devida muito mais à imaginação do que à razão. E’ o mesmo Lalande que invoca as
palavras de Claude Bernard para esclarecer e engrandecer que a Teoria: «é a hipótese verificada,
após submetida ao controle do raciocínio e da crítica experimental... Para permanecer, uma
Teoria deve modificar-se com o progresso da ciência e permanecer constantemente submetida à
verificação e à crítica dos fatos novos que surgem” o que a isenta, inclusive, de transformar-se
em doutrina. Assim dizendo estamos em plena vigência do espírito de uma obra antológica que,
publicada em 1960, goza ainda hoje de grande prestígio na ciência moderna. Falo da « Estrutura
das Revoluções Científicas », de Thomas Kuhn (1994), na qual o autor defende que o progresso
da ciência se procede pela sucessiva vigência e periódica substituição de paradigmas acatados
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pela comunidade científica internacional enquanto e até que esses paradigmas deixem de explicar
os fenômenos estudados pela ciência em geral e/ou pelas ciências particulares.
Já a Prática, é o que concerne à ação (do grego: practikós, do verbo agir: prattein). A
antiguidade grega já a contrapunha a Teoria. Mas Aristoteles (1973) a opõe, também, a Poética
(de fazer, poiéo), formando as tres categorias: Teoria, Prática e Poética, as tres grandes divisões
do pensamento, ou da ciência. Ernildo Stein (1988, p.104) é claro em sua abordagem: Em Kant,
as idéias puras da razão (liberdade, imortalidade, Deus, lei moral) garantem a ação prática do
homem, e os conceitos fundamentais são a base do conhecimento empírico-matemático tratato
pelo universo do ser. Temos aí, então, razão pura e razão prática (Teoria e Prática) mas estanques
ainda, cuja síntese entre ser e dever ser (Prática e Teoria) Kant nunca conseguiu realizar. Temos
aí, também, a marginalização do campo estético que, para Kant, não pertencia nem à razão pura
nem à razão prática e que foi tratada pelo filósofo alemão, na Crítica do Juízo.
Só em Heidegger desaparece essa separação estanque: não há, para ele, uma teoria e uma
prática da racionalidade. Nosso modo de ser-no-mundo já implica um todo indissociável em que
se pressupõe estarmos sempre ligados ao mundo por uma pré-compreensão, praticamente, a um
mundo que interpretamos e compreendemos.
Evidenciada a simbiose natural entre teoria e prática, categorias inseparáveis no mundo da
música, cabe uma incursão no campo das práticas interpretativas vigentes no mercado dos
concertos e do disco. Atualmente a quase totalidade da atividade mundial no setor da
interpretação musical transformou-se numa gigantesca usina de fabricação de peças de reposição,
ou seja, numa reprodução, ipsis literis, exata, de um repertório musical consagrado já na era
romântica, sem nenhuma preocupação de pesquisa, seja de repertório novo de toda a fase de ouro
da música instrumental, do barroco ao moderno, seja de reinterpretação do repertório conhecido.
A ânsia da carreira, as necessidades profissionais de enquadramento e por fim, uma
universidade que não pretende mais ser universal, conduzem docilmente o músico a esse estado
de coisas. Todos sabem como o mercado de discos anda abarrotado de produtos de quinta
categoria, impingidos como de primeira e que nada mais oferecem além da enésima interpretação
facsimilada de tantas obras num sistema quadrafônico ou digital como se o acesso aos recursos
tecnológicos mais sofisticados satisfizessem plenamente a carência de expressão e comunicação
do Homem.
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Nenhum esforço para solucionar problemas, e pelo menos, equacioná-los na


interpretação, no andamento, na dinâmica, no ornamento, ritmo etc., de que a música do passado
e do presente está repleta. Não será com a imitação auditiva que daremos um passo sequer para o
enriquecimento autêntico dessa atividade. Bons mestres não faltam para ombrear: no teclado
podemos citar tres que fizeram desse mister um verdadeiro sacerdócio: Albert Schweitzer (1875-
1965), para a obra de João Sebastião Bach; Willi Apel (1893-1981), para o cravo e toda a música
do século XVII e XVIII; e Charles Rosen (1977), para a interpretação do estilo clássico e
romântico.
Os três grandes intérpretes assumiram o desafio de conceber a música como a simbiose
perfeita entre a Teoria e a Prática. Todos sabemos que as grandes soluções pragmáticas de um
regente sobre uma obra deve ser obtida no silêncio recluso das horas de estudo devotado à
partitura. Se isso não ocorrer, teremos meramente reprodução mecânica de gestos e um coro e/ou
uma orquestra cantando e/ou tocando sozinha; porque afinal o compositor, em última instância,
zelou para que também o fizessem...

Referências bibliográficas

ARISTOTELES Poética. São Paulo, Abril Cultural, 1973 (trad. Eudoro de Souza)
DART, Thurston The Interpretation of Music. Londres, Hutchinson, 1960
DOLMETSCH, Arnold. The Interpretation of the Music. Londres, Novello/ Oxford, 1946
DUPRAT, Régis et al. André da Silva Gomes, a “Arte Explicada de Contraponto”, São Paulo,
Arte e ciência, 1998
GADAMER, Hans-Georg , Verità e Método, Milão, Bompiani (trad. Gianni Vattimo)1990
GRANGER, Gilles . Filosofia do Estilo. São Paulo, Ed. Perspectiva / Ed. da Universidade de
São Paulo, 1974 (trad. Scarlet Z. Marton)
KUHN, Thomas A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo, Ed. Perspectiva,1994
LALANDE, André. Vocabulaire de la Philosophie. Paris, Presses Universitaires de France,1951
PAREJA, Bartolomé Ramos. Musica Practica, Madri, Joyas Bibliográficas,1983
ROSEN, Charles. The Classic Style. Nova York, Faber,1977
STEIN, Ernildo Racionalidade e Existência, Porto Alegre, LPPM ,1988

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