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Régis Duprat1
RESUMO: O presente artigo aborda a música como um ato interpretativo que nos transforma.
Fundamenta-se em Gadamer que afirma haver uma fusão de horizontes no ato interpretativo. Mostra a
história da música nos séculos XV e XVI até a contemporaneidade discutindo a simbiose entre a teoria e a
prática.
ABSTRACT: This article deals with music as an interpretative act that transforms us. Fundamenta
himself in Gadamer says that there is a fusion of horizons in the interpretative act. It shows the history of
music in the fifteenth and sixteenth centuries to the contemporary discussing the symbiosis between theory
and practice.
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Professor-titular da Universidade de São Paulo
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Faculdade de Educação Ciências e Letras Don Domênico
do qual chegamos à versão definitiva de uma coisa. Fazendo “blague”, diríamos que a versão a
que chegamos é definitivamente provisória...
Desde o início do século dezenove, século em que se consagrou o historicismo, a
civilização ocidental despertou para a música do seu passado. De longa data dedicam-se as
Sociedades de Concertos de Música Antiga à interpretação da música da Idade Média, dos
séculos XV e XVI, épocas em que o rigor da instrumentação e da execução era uma preocupação
muito relativa. No decorrer do século dezenove as pesquisas, estudos e especulações sobre o
passado musical gradualmente recuaram no tempo, culminando, no final daquele século, nas
descobertas importantes sobre a Ars Nova, do início do século XIV. Hoje, que adentramos o
século XXI, o antigo já alcança o século XVIII, abarcando todo o período barroco. Mas o
problema não se reduz ao que se costuma ouvir em matéria de execução, ou seja, contingentes
orquestrais e/ou vocais gigantescos executando obras escritas originariamente para pequenos
conjuntos de câmara, e cuja sonoridade assim obtida é de duvidosa validade histórica; ou mesmo
se devem usar-se instrumentos originais de época, determinando a redução do volume de
acompanhamento por razões de sonoridade. Geralmente escudam-se na propriedade estilística.
Estilo, porém, também não se reduz a problemas de sonoridade; é uma coisa muito mais
complexa; resulta de uma elaboração contra o acaso. Apesar de não se pretender um modelo
matemático de estilo, diríamos, com Gilles Granger, (1974) que se trata, pelo menos, de aplicar
aos fatos de estilo elementos que permitam estabelecer uma orientação para a análise efetiva dos
casos concretos e até sugerir, em certos casos, o estabelecimento de verdadeiros modelos. Nos
fatos de estilo, muito mais do que a sonoridade dos instrumentos de época, há outros parâmetros
pertinentes como o tempo e o andamento, a interpretação das alterações rítmicas praticadas
convencionalmente na época, a solução dos ornamentos, a agógica e a realização do baixo
cifrado, e muitos outros cuja execução até causaria estranheza hoje.
Até agora não surgiu um corpo teórico, abrangente e consistente, tentando listar os
elementos que se trata de reformular. O próprio uso de instrumentos originais nem sempre é
coisa meridiana; qual o instrumento de teclado para o qual foi escrita uma peça: cravo, órgão,
clavicórdio, fortepiano ou lautenclavicembalo? Com os demais instrumentos de corda e sopro
ocorre o mesmo problema. Mas as especulações e experimentos interpretativos encarados como
alternativas e não como apaixonada exclusividade, só poderão contribuir para enriquecer a visão
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apesar de tudo, a tradição de interpretação é acentuadamente recente e jovem. Por isso, talvez, o
encanto do seu arrebatamento deslumbrado e juvenil...
Lembremos as palavras de Thurston Dart (1960) em A Interpretação da Música: “A música
é ao mesmo tempo uma arte e uma ciência; como toda arte e toda ciência não tem nenhum
inimigo salvo a ignorância”. Para interpretar o barroco não basta formar conjuntos pequenos ou
eleger instrumentos originais; é preciso muito mais do que isso, como dissemos anteriormente.
De alguma forma nos defrontamos, nesta altura, com um problema que não é outro senão o
da contraposição de teoria e prática, de racionalidade e sensibilidade. Sustentar que o artista não
se prestaria ao raciocínio sistemático e ao trabalho cientificamente conduzido; de que a função
do artista seria limitada a intuir e a expressar por signos misteriosamente específicos, parece-nos
preconceito difuso e daninho, ultrapassado resíduo da estética romântica.
Cabem aqui algumas considerações sobre o fazer e o refletir em arte. Parafraseando John
Barth, o novelista norte-americano tido como pós-moderno, porque fabulista desde a década de
1960, de fato os pássaros têm pouco a dizer sobre ornitologia. Mas essa atitude, compreensível
no artista atuante que não tem caprichos reflexivos relativamente ao desempenho do seu fazer
artístico, pode conduzir, e conduz efetivamente, à adoção de um comportamento empírico, ou se
quiserem, empiricizante, no qual não há lugar para a manifestação humana diferenciada que é a
reflexão e que nos distingue dos animais, no caso, dos pássaros aos quais não interessa,
realmente, a ornitologia.
São comuns os argumentos de que é bonito falar sobre arte mas que esse falar não pode
sobrepor-se a ou substituir o fazer arte. Essa atitude é simplória e reducionista já que, de início,
se torna difícil a definição do que seja “fazer arte”. Será que fazer arte sem refletir sobre o fazer
seria fazê-la bem? E valeria a pena fazer arte sem fazê-la bem? O fato é que embutida no fazer,
e inseparável dele, está sempre presente a reflexão sobre o fazer. A polêmica, então, muda de
lugar, de âmbito: trata-se de saber em que nível ou até que nível é válido refletir sobre o fazer.
Aí, já não estamos numa refutação pura e simples de toda reflexão, ou de nenhuma reflexão.
Diríamos, até, que os que fazem as coisas bem seriam justamente os que refletem bem sobre o
que fazem; porque se não souberem refletir sobre o que fazem jamais se tornarão bons no fazer.
Insisto em que não há fazer sem a reflexão sobre esse fazer; que existe uma instância pragmática
em toda tarefa reflexiva, e uma instância reflexiva em toda tarefa pragmática. O homem
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culturalizado de hoje não pode mais abdicar dessa verdade. E toda vez que o faz ou que é
constrangido a fazê-lo, se robotiza. E essa ameaça de robotização, universalmente presente em
nossa civilização pós-industrial, tida como pós-moderna, constitui, talvez, o maior obstáculo para
a livre expansão das potencialidades humanas e, portanto, da liberdade. Diríamos, também, que
essa robotização constitui uma sobrevivência da modernidade, porque mecânica, no período da
pós-modernidade.
No âmbito do fazer instrumental musical, por exemplo, é flagrante a tradicionalidade do
ato mecânico e manual frente ao gesto eletro-eletrônico-geracional que transcende a dimensão
mecânico-muscular que busca deflagrar o som, com suas proverbiais imperfeições. Aliás, é tido
e sabido pelos que manipulam os recursos eletro-acústicos agora computadorizados e
digitalizados, que vem sendo uma tarefa interessante e divertida introduzir no “fazer eletro-
acústico”, imperfeições perfeitamente projetáveis graficamente, para garantir ao produto final
um resultado mais “humano”. Entretanto, a música instrumental nunca conheceu o viço de que
goza atualmente. A própria capacidade instalada universalmente, que demanda vultosos recursos
aplicados permanentemente nessa área transforma os anseios eletro-acústicos de substituição dos
recursos instrumentais em um sonho ingênuo que provavelmente jamais se realizará...
A expressão moderna do fazer prende-se em grande parte à sobrevivência do trabalho
manual e escravo que, na atualidade, se expressa na robotização. Na verdade, é uma divisão de
trabalho que gerou um preconceito, expresso por uma divisão da sociedade em classes sociais;
até mais do que uma simples divisão de classes, uma divisão entre o capital e o trabalho
(dimensão econômica), entre a iniciativa e a passividade (dimensão social), entre a apropriação e
o despojamento (dimensão jurídica) entre o fazer e o refletir (dimensão gnosiológica ou
epistêmica).
O fato é que conhecemos duas grandes divisões no estudo da Música: a Música Prática e
a Música Teórica. Teoria e Prática são os dois componentes de qualquer estudo musical
imaginável. E não tenho notícia de ninguém que pudesse ter chegado ao domínio razoável de
qualquer uma dessas divisões sem ter tido um treinamento exaustivo, intensivo e permanente, na
outra divisão. Ninguém consegue conceber um bom teórico sem a prática e muito menos um
bom prático sem a Teoria.
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pela comunidade científica internacional enquanto e até que esses paradigmas deixem de explicar
os fenômenos estudados pela ciência em geral e/ou pelas ciências particulares.
Já a Prática, é o que concerne à ação (do grego: practikós, do verbo agir: prattein). A
antiguidade grega já a contrapunha a Teoria. Mas Aristoteles (1973) a opõe, também, a Poética
(de fazer, poiéo), formando as tres categorias: Teoria, Prática e Poética, as tres grandes divisões
do pensamento, ou da ciência. Ernildo Stein (1988, p.104) é claro em sua abordagem: Em Kant,
as idéias puras da razão (liberdade, imortalidade, Deus, lei moral) garantem a ação prática do
homem, e os conceitos fundamentais são a base do conhecimento empírico-matemático tratato
pelo universo do ser. Temos aí, então, razão pura e razão prática (Teoria e Prática) mas estanques
ainda, cuja síntese entre ser e dever ser (Prática e Teoria) Kant nunca conseguiu realizar. Temos
aí, também, a marginalização do campo estético que, para Kant, não pertencia nem à razão pura
nem à razão prática e que foi tratada pelo filósofo alemão, na Crítica do Juízo.
Só em Heidegger desaparece essa separação estanque: não há, para ele, uma teoria e uma
prática da racionalidade. Nosso modo de ser-no-mundo já implica um todo indissociável em que
se pressupõe estarmos sempre ligados ao mundo por uma pré-compreensão, praticamente, a um
mundo que interpretamos e compreendemos.
Evidenciada a simbiose natural entre teoria e prática, categorias inseparáveis no mundo da
música, cabe uma incursão no campo das práticas interpretativas vigentes no mercado dos
concertos e do disco. Atualmente a quase totalidade da atividade mundial no setor da
interpretação musical transformou-se numa gigantesca usina de fabricação de peças de reposição,
ou seja, numa reprodução, ipsis literis, exata, de um repertório musical consagrado já na era
romântica, sem nenhuma preocupação de pesquisa, seja de repertório novo de toda a fase de ouro
da música instrumental, do barroco ao moderno, seja de reinterpretação do repertório conhecido.
A ânsia da carreira, as necessidades profissionais de enquadramento e por fim, uma
universidade que não pretende mais ser universal, conduzem docilmente o músico a esse estado
de coisas. Todos sabem como o mercado de discos anda abarrotado de produtos de quinta
categoria, impingidos como de primeira e que nada mais oferecem além da enésima interpretação
facsimilada de tantas obras num sistema quadrafônico ou digital como se o acesso aos recursos
tecnológicos mais sofisticados satisfizessem plenamente a carência de expressão e comunicação
do Homem.
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Referências bibliográficas
ARISTOTELES Poética. São Paulo, Abril Cultural, 1973 (trad. Eudoro de Souza)
DART, Thurston The Interpretation of Music. Londres, Hutchinson, 1960
DOLMETSCH, Arnold. The Interpretation of the Music. Londres, Novello/ Oxford, 1946
DUPRAT, Régis et al. André da Silva Gomes, a “Arte Explicada de Contraponto”, São Paulo,
Arte e ciência, 1998
GADAMER, Hans-Georg , Verità e Método, Milão, Bompiani (trad. Gianni Vattimo)1990
GRANGER, Gilles . Filosofia do Estilo. São Paulo, Ed. Perspectiva / Ed. da Universidade de
São Paulo, 1974 (trad. Scarlet Z. Marton)
KUHN, Thomas A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo, Ed. Perspectiva,1994
LALANDE, André. Vocabulaire de la Philosophie. Paris, Presses Universitaires de France,1951
PAREJA, Bartolomé Ramos. Musica Practica, Madri, Joyas Bibliográficas,1983
ROSEN, Charles. The Classic Style. Nova York, Faber,1977
STEIN, Ernildo Racionalidade e Existência, Porto Alegre, LPPM ,1988