Nomenclatura Gramatical Mattoso

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UNIVERSIDADE | Va T VI A fi FACULDADE

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P A R A N Á I I L I 11 f i I I FILOSOFIA
REVISTA DOS CURSOS DE LETRAS

Diretor: R. F. MANSUR GUÊRIOS

Curitiba - Brasil i960 ¿a N.° 1!

Nomenclatura Gramatical n

J. Mattoso Camara Jr.

Rio

1.° A U L A

O Diretório Acadêmico da Faculdade Católica de Filosofia


de Petrópolis quis que abrisse eu a série de aulas programadas
para comentar a nova Nomenclatura Gramatical Brasileira. Devo
ressalvar de início que, não tendo participado da Comissão Ela-
boradora, nem da Sub-Comissão Revisora, é possível que nem
sempre tenha eu penetrado na verdadeira intenção das medidas
adotadas. Fontes mais seguras, peíste particular, fornecem os
seguintes trabalhos: 1) a própria Nomenclatura Gramatical Brasi-
leira, editada pela CADES; 2) o Comentário à Nomenclatura, de
Antenor Nascentes, que foi o Presidente da Comissão Elaborado-
ra e nos apresenta neste opúsculo uma exposição rápida mas ex-
tremamente lúcida, como tudo que sai da sua pena; 3) a Nova
Nomenclatura Gramatical Brasileira, de Hamilton Elia e Sílvio

(*) Curso organizado pelo Diretório Acadêmico Santo Tomás de Aquino, da


Faculdade Católica de Filosofia de Petrópolis, aos sábados, de 23 de abril
a 21 de maio. As aulas foram taquigrafadas pelo estudante da Faculdade
Católica de Direito Luciano René Boettger.
Elia, que tem como um dos co-autores o nosso colega nesta Facul-
dade Sílvio Elia, que trabalhou na Sub-Comiçsão Revisora e que,
aliás, por sugestão minha, vai encarregar-se de 3 aulas déste nosso
curso, corrigindo assim as falhas que, como seu antecessor, eu
possa cometer nas 2 primeiras aulas, que me couberam. Também
aconselho a consulta ao livrinho Pequena Gramática para explica-
ção da Nova Nomenclatura Gramatical, de Adriano Kury, um dos
sólidos valores novos do nosso magistério de Português.

Da minha parte, tenho a dizer de início que considero a no-


va Nomenclatura Cramatical um excelente passo para combater o
arbítrio e a fantasia individual em matéria de nomenclatura. No
séc. X I X , dizia-se que todo professor de filosofia alemão se acha-
va obrigado a criar um sistema filosófico seu. A Alemanha é a
terra da Filosofia; no Brasil, que é a terra da Gramáticâ, todo pro-
fessor de português se acha obrigado a criar uma nomenclatura
gramatical sua.
Daí uma multiplicidade quase estonteante, que dá vertigens
aos jovens estudantes e aos adultos leigos interessados em ques-
tões de linguagem. Essa multiplicidade decorre de duas causas:
1) certo pedantismo exibicionista, muito encontradiço nos estu-
dos lingüísticos urbe et orbe, onde já se disse que há a epidemia
dos tèrmos novos (própria da puericia tanto nos sêres humanos
como nas ciências do homem, segundo o comentário que ouvi
de Roman Jakobson a propósito da escola lingüística norte-ame-
ricana); 2) divergências doutrinárias profundas, que tinham de se
refletir na Nomenclatura, pois, como comenta por sua vez Otto
Jespersen, não há doutrina segura sem nomenclatura precisa.

O primeiro fator é fácil de eliminar e a Nomenclatura Nova


foi feliz nesse ponto, de maneira geral. É bastante adotar o tèr-
mo mais em voga entre dois ou mais que no fundo querem di-
zer a mesma coisa.
Já o segundo fator impunha uma tomada de posição doutri-
nária. A N.G.B, não se pôde furtar de fazê-lo e em regra também
foi feliz nisso. Ressalve-se, porém, que não raro procedeu com
excessiva timidez; a preocupação de não assumir atitudes dou-
trinárias radicais levou-a a certas incoerências e à manutenção,
em alguns casos, de pontos de vista superados. Não o fèz por
falta de informação, estou certo, pois pelo menos o seu Presi-
dente é entre nós talvez o professor de português mais bem in-
formado em matéria de correntes lingüísticas hodiernas, e na
Sub-Comissão trabalhou Sílvio Elia, sempre preocupado com os
grandes problemas doutrinários da linguagem.

Não é meu objetivo focalizar essas falhas por dois motivos:


1) elas são secundárias e não prejudicam profundamente as li-
nhas mestras do edifício elaborado; 2) odeio a atitude de crítico
de obras feitas, que é sempre negativa e estéril.

Prefiro, pois, a atitude mais construtiva de salientar alguns


pontos em que a N.C.B, merece a nossa gratidão pela salutar de-
cisão que adotou. Quero assim colaborar, na medida de minhas
forças, para o triunfo definitivo de idéias que ainda encontram
incompreensão e uma resistência que vem da rotina.

Em primeiro lugar, consideremos o tratamento dado ao con-


ceito de adjetivo e de pronome. Há uma velha tradição em nosso
ensino gramatical para fazer do adjetivo uma classe de pala-
vras no mesmo plano que o substantivo e o pronome e subdivi-
di-la em sub-classe de adjetivos qualificativos e sub-classe de
adjetivos determinativos. Os inconvenientes dessa atitude são múl-
tiplos e profundos. A sua falha fundamental é não compreender
e respeitar a natureza meramente sintática de um adjetivo —
palavra que não funciona isolada na frase mas se apõe (lat. adji-
eit) a outra como modificadora ou "determinante", sendo essa
outra um "substantivo", i. e., uma palavra que na frase "subsiste"
por si (lat. substat). já entre o nome e o pronome temos, ao con-
trário, uma distinção de natureza semântica: o nome designa, ou
"nomeia", enquanto o pronome "situa". O conceito, para o pro-
nome, de palavra que fica em lugar do nome é válido, não no
sentido sintático (palavra que na frase substitui o nome), mas no
sentido semântico (palavra que substitui a "designação" por uma
"indicação de situação"). Compreende-se assim que haja nomes
— substantivos, quando figuram isolados na frase, e nomes adje-
tivos, quando modificam um substantivo; da mesma sorte, há —
pronomes substantivos e pronomes adjetivos. A N.C.B, não dei-
xou bem claro o conceito de nome substantivo e nome adjetivo,
porque suprimiu o tèrmo englobador "nome"; mas, estabelecen-
do a divisão dos pronomes em substantivos e adjetivos e frisando
que "adjetivos" tout court são apenas os chamados "qualificati-
vos", eliminou a classe dos chamados adjetivos determinativos,
que fragmentava a grande classe dos pronomes e separava, em
compartimentos estanques, pares vocabulares tão evidentemente
associados como — as séries demonstrativas (êste-isto etc.), as
partículas pessoais e as possessivas (eu, me, mim-meu etc.), as
séries de indefinidos (algum-alguém etc.). Também aboliu a si-
tuação artificiai de ora classificar uma palavra como pronome,
ora como adjetivo determinativo, noutra classe completamente
distinta; ex.: "aquêle que fala...", aquele — pronome; "aquêle
homem...", aquêle adjetivo determinativo (o que só se evitava
por um artifício ainda maior, qual o de considerar em "aquêle
que" um substantivo elíptico, para pôr a palavra entre os adjeti-
vos determinativos também).

Em outros tèrmos, podemos dizer que as divisões nome-


-pronome, de um lado, e substantivo-adjetivo, de outro, não estão
no mesmo plano e sim constituem duas hierarquias: a do plano
semântico (designação-situação, para nome-pronome) e a do pla-
no sintático, ou frasai (substantivo-adjetivo, ou seja, emprêgo au-
tônomo e emprêgo como elemento modificador). A segunda di-
visão se enquadra na primeira, mais geral e básica e nos dá para
cada membro da primeira dois sub-membros de uma sub-divisão
do mesmo tipo: nome (substantivo-adjetivo), pronome (substanti-
vo-adjetivo).

Consideremos, porém, outro ponto em que a N.G.B, firmou


a doutrina certa.

É o caso da classificação do verbo pôr, que uma tradição gra-


matical viciosa, mas que se recusava a morrer, fazia paradigma
de uma chamada 4.a conjugação. A N.G.B, estabeleceu a inter-
pretação oposta de verbo irregular da 2.a conjugação, e num
plano exclusivamente descritivo (deixando-se de lado considera-
ções de ordem histórica, que com efeito não vêm ao caso — que
interessa para a classificação atual que a forma arcaica tenha si-
do poer? que interessa para o gênero atual de fim que a palavra
já tenha sido feminina?) num plano exclusivamente descritivo,
repito, é esta a verdadeira classificação do verbo. Com efeito, não
se pode tratar de um verbo em -or, porque a vogai -o- pertence ao
radical ; basta comparar pôr com ponho, pões, onde a vogai que se
segue imediatamente ao p-, e é correspondente à de pôr, faz evi-
dentemente parte do radical. Poder-se-ia alegar que em pôr esta
vogai radical está em crase com um -o- da flexão, visto que em
português a crase é o tratamento normal de duas vogais iguais
em contacto. Mas em nenhuma outra forma do verbo aparece essa
vogai flexionai -o-. Se compararmos, por exemplo, os pretéritos
do subjuntivo das 3 conjugações — amasse, temesse, partisse com
pusesse, de pôr, vemos logo com uma clareza meridiana a vogai
flexionai -e-, que caracteriza a 2.a conjugação (apenas com o
timbre aberto, que é também o de outros verbos irregulares da
2.a conjugação, como pudesse, quisesse, tivesse, houvesse). Aliás,
em pões temos a vogai flexionai -e-, e, se o verbo fòsse na rea-
lidade de uma 4.a conjugação em -or, teríamos põs, com a crase
do pretenso -o- da flexão com o do radical.

Acresce que um verbo, para ser paradigma de uma conju-


gação, tem que ser regular quanto ao radical, ou seja, deve ter o
radical invariável, e tal não acontece com pôr, que no pretérito
imperfeito do indicativo, por exemplo, apresenta uma variabili-
dade de radical análoga à de verbos irregulares da 2.a conjuga-
ção e 3.a: punha (com a alternância o/u e o desdobramento da
nasal palatal -nh-) como tinha (com a alternância correspondente
e/i e o desdobramento da mesma nasal palatal); da mesma sorte,
em pus temos uma irregularidade equivalente à de quis em face
de querer, e entre pus-pôs uma alternância do tipo pude-pôde de
poder. Fatos todos êsses que mostram tratar-se de um verbo irre-
gular, que não pode servir de paradigma para nenhum outro, co-
mo em verdade não serve, pois só o acompanham os seus com-
postos, como os compostos de ter acompanham ter e assim por
diante entre os verbos irregulares.

Não menos feliz foi a N.G.B., quando suprimiu a denomina-


ção de "modo condicional" e enquadrou as formas respectivas no
modo indicativo como um "futuro do pretérito". É a justa ma-
neira de ver de Said Ali, o nosso maior teorista gramatical, que
afinal encontra uma aceitação que quero crer definitiva. O nome
de condicional para èsse tipo de formas verbais decorreu do apa-
recimento delas no esquema condicional — "se pudesse... faria...".
Mas há contra isso duas objeções irretorquiveis. Em primeiro lu-
gar, também o presente do indicativo e o futuro aparecem nesse
tipo frasai — "se èie pode... faz..." — "se èie puder... fará...".
Em segundo lugar, o pretenso "condicional" aparece em tipos de
frase de outra espécie: "disse que faria..." — "faria èie uma coisa
dessas?".

Na verdade, essa forma verbal pertence ao sistema do fu-


turo, mas um futuro do pretérito, isto , futuro em relação a um
momento que é pretérito em relação ao momento em que se
fala. Ao contrário, o futuro stricto sensu é futuro em relação ao
momento em que se fala (digo que farei..., disse que faria...). Os
dois tipos de formas estão intimamente associados tanto na mor-
fologia quanto no emprêgo; constituem um conjugado, onde se
opõem pelo contraste de presente-pretérito. Assim, na constru-
ção condicional, o pretenso "condicional" se articula com o pre-
térito do subjuntivo e se apresenta como "futuro" em relação a
èsse pretérito ("se pudesse... faria...", primeiro a capacidade de
fazer, expressa em "pudesse"; depois a atividade de fazer, ex-
pressa em "faria"). O emprêgo do presente ou do futuro do sub-
juntivo, na formulação da condição prévia, logo elimina o "pre-
tenso condicional" e faz aparecer o presente do indicativo ou o
futuro stricto sensu ("se posso... faço..." — "se puder... farei. .).

Pode-se alegar que o pretenso condicional tem um valor mo-


dal muito nítido. Mas isso não seria justificativa para o nome de
"modo condicional", e sim, quando muito, para o de "modo irreal",
pois é a irrealidade que se expressa no emprêgo modal da forma
em aprêço. Assim, em — "se pudesse..., faria..." indica-se que
realmente não posso; em — "faria êle uma coisa dessas?" assi-
nala-se a convicção de que uma coisa dessas êle não é capaz de
fazer.

Nem èsse valor modal, porém, prejudica a denominação de


"futuro do pretérito", tão bem proposta pelo mestre Said Ali. Com
efeito, ainda aqui existe a correspondência com o futuro stricto
sensu, que também êle tem um emprêgo nitidamente modal. Passa
então a indicar a dúvida sem idéia de tempo ("fará êle uma coisa
dessas?" — é possível que faça, não sei...). É que o futuro visto
do presente tem sempre qualquer coisa de incerto e duvidoso,
e assim se compreende que a forma verbal de futuro passe a
indicar puramente a dúvida no emprêgo que, com Andrés Bello,
podemos chamar "metafórico" (i. e. um "futuro", que não é fu-
turo, mas apenas incerteza, como há no futuro; da mesma sorte
que em — "olhos de safira", se tem uma "safira", que não é sa-
fira, mas apenas um azul intenso, como há na safira). já o futuro
visto do pretérito traz não a incerteza mas a irrealidade, porque
foi uma expectativa que, vista do momento atual, sabemos que
em regra não se realizou, e ficou, pois, como futuro sem se con-
cretizar em pretérito. Daí os contrastes semânticos das seguin-
tes frases, que vou glosar de um trecho famoso de Manuel de
Macedo: 1) Há somente um homem capaz disso, o que não ama
a Pátria (tenho certeza de que tal homem existe); 2) Haverá so-
mente um homem capaz disso, o que não amar a Pátria (tenho
dúvida de que tal homem exista); 3) Haveria somente um homem
capaz disso, o que não amasse a Pátria (a projeção metafórica
no pretérito — "amasse", "haveria" — expressa a minha con-
vicção de que tal homem não existe e eu apenos formulo uma
hipótese irreal a título de argumento).

O conceito do "futuro do pretérito" é, pois, impecável em


seu rigor teorético, abarcando todos os empregos da forma ver-
bal em aprêço e associando-a ao futuro stricto sensu com que
constitui inegavelmente um par gramatical de correlação e con-
traste.

Não é pequeno o mérito da N.C.B, em ter firmado nesse


ponto a boa e inconcussa doutrina, aquela que dá ao falante a
verdadeira compreensão da forma e lhe permite a boa aplicação
com plenitude e expressividade, enquanto o conceito do "condi-
cional" era uma fonte de insegurança e perplexidade quanto a
empregos genuínos, mas que se colocam fora do esquema con-
dicional.
E muitos outros pontos, assim exatamente tratados, se po-
deria citar e comentar na N.G.B., suficientes para compensar de
sobra as suas falhas e pequenas incoerências. Quero apenas, pa-
ra terminar, focalizar a denominação de dígrafo, que ela dá às
letras geminadas -rr- e -ss-, porque com isso se criou um estado
de incerteza quanto à separação silábica na escrita. A ortografia
vigente manda que se separe. . .s-s. . ., . . .r-r. . ., mas nos dí-
grafos propriamente ditos (eh, Ih, nh) seria absurda tal separação.
Daí concluir muita gente que a N.G.B, quis modificar a regra de
separação silábica para as letras geminadas, estabelecendo im-
plicitamente a divisão à espanhola . . .-rr. . ., . . . - s s . . . Uma
modificação dessas ,porém, não se pode fazer assim implicita-
mente, sem a derrogação expressa da regra ortográfica vigente
até agora.

O que houve é que a Comissão Elaboradora da N . G . B , deu


a "dígrafo" o sentido lato de duas letras que só servem para re-
presentar um fonema (e nisto está plenamente justificada), mas
deixou de ressalvar que há 2 tipos de dígrafo — 1) aquêle em
que as duas letras entram na leitura do som (eh, Ih, nh), 2) aquê-
le em que, das duas letras geminadas, a primeira é muda e só
indica uma posição especial que se cria para a leitura da segunda
(-ss-, -rr-). Neste segundo caso, o primeiro -r, ou -s, só serve para
indicar que o segundo não deve ser lido como intervocálico, mas
como depois de consoante (como em manso, persa, tenro, guel-
ra); somente, há a circunstância de que essa primeira consoante
não soa e só tem a função de influir no som a se dar à segunda
— pa(s)so, fe(r)ro. Nestas condições, nada impede que a deixe-
mos na primeira sílaba, que ela fecha apenas gràficamente —
pa(s)-so (oposto a — pê-so), e(r)-ra (oposto a — e-ra).

Com isso, pego licença para concluir. Não foi meu propósi-
to explicar minuciosamente as prescrições da nova Nomenclatura
Gramatical Brasileira, mas tão somente, para corresponder à con-
fiança do nosso Diretório Acadêmico, na medida de minhas for-
ças, ressaltar alguns aspectos importantes e positivos que
ela trouxe para o progresso do ensino gramatical da língua por-
tuguêsa.
2. a A U L A

Na aula passada, procurei focalizar, de maneira geral, o es-


pírito da nova Nomenclatura, insistindo em alguns pontos que
me parecem de alta significação, por representarem uma toma-
da de, posição muito oportuna em matéria de doutrinação gra-
matical. Hoje vou me limitar a um aspecto apenas, que é refe-
rente à análise da frase, ou análise sintática. Talvez seja um assun-
to que empolgue mais o auditório em vista da importância quase
absorvente que tem no nosso ensino gramatical essa desmonta-
gem da estrutura da frase. Em parte, se justifica tal atitude, por-
que, de um lado, a frase é a unidade essencial da comunicação
lingüística e todos os elementos de uma língua convergem, por
assim dizer, para e eficiente elaboração das frases, e, de, outro
lado, o conhecimento de tudo que se refere à língua, tem de ser
adquirido por meio análise. É o que já sentiam os antigos gramá-
ticos hindus, quando chamavam ao estudo gramatical — "vyaka-
rana", isto é, decomposição ou análise, em sànscrito.

O defeito de tal atitude está no caráter "absorvente", que


leva a se desprezar tudo mais em matéria de língua e a se imagi-
nar que a análise da frase é um estudo que se basta a si mesmo,
que não depende de outros elementos e. que além dêle não há
mais nada que mereça estudo na língua materna. Tenho a èsse
respeito uma curiosa experiência pessoal: certa vez fui chamado
pela Irmã Superiora de um Colégio Religioso em que eu tinha
por muito tempo lecionado português, a fim de dirimir uma con-
trovérsia numa cidadezinha do interior de Minas, onde a Irman-
dade também tinha um Colégio; era o caso que naquela locali-
dade surgira um debate empolgante entre o Vigário e o Juiz de
Direito sobre a justa maneira de analisar a parte inicial do Pa-
dre-Nosso — "Padre nosso que estais no Céu, bem-aventurado
seja o vosso nome. . . " (Tratar-se-ia de um "vocativo", valendo
por uma oração ou de um "anacoluto" — 1) Ó Padre nosso. . . ;
2) Padre nosso. . . bem-aventurado sejas com vosso nome. . .?).
Por outro lado, a análise que se pratica é em bases estritamente
lógicas, o que decorre da maneira por que se iniciou e se consti-
tuiu na velha Grécia como uma exegese da frase para fins filosó-
ficos. Parte-se do pressuposto de que a lógica abarca em sua to-
— 10-

talidade a expressão lingüística, ou seja, que a expressão lin-


güística só se faz na base de um raciocinio explícito, qual o de-
preendeu a lógica aristotélica examinando aquela pequena par-
cela de frases em que isso realmente se dá. Criou-se assim um
círculo vicioso muito pouco lógico: de uma parte da expressão
lingüística tirou-se uma teoria de expressão lógica e projetou-se
essa teoria sobre tôda a expressão lingüística. A única reação
contra èsse insatisfatório estado de coisas foi a de substituir a
denominação "análise lógica" por "análise sintática", à maneira
daquele personagem de Machado de Assis que mudava de vez
em quando o nome de batismo do seu criado para ter a impressão
de que mudara de criado.

O esquema lógico da frase tornou-se assim um leito de


Procusto em que tinham de caber todos os tipos de'frase. É o que
ridicularizou Artur Azevedo naquele conto em que um professor
de província analisava a taboleta "Farmácia Pereira" como uma
frase lógica com elementos elípticos: (Esta) Farmácia (é do Sr.)
Pereira. A anedota é instrutiva, porque focaliza justamente um
tipo de frase em que a expressão lingüística se projeta no mundo
extralingüístico e a dicotomia su jeito-predicado não aparece em
tèrmos lingüísticos puros: o sujeito é o estabelecimento em que se
acha a taboleta, cuja frase funciona como um predicado. Trata-
se em suma das frases que Ferdinand Brunot chama "indicações".

Em matéria de análise sintática é preciso uma reformulação


integral do problema; é o que se está fazendo nos meios univer-
sitários europeus e norte-americanos. Nestes, pode se citar a
doutrina dos constituintes imediatos, onde professores de inglês
(Charles Fries, por exemplo) tem ido buscar a reelaboração di-
dática da análise da frase; na Europa, é bastante citar as elocubra-
ções de Bally em Linguistique Générale et Linguistique Française,
as de Hans Glinz em Die Innere Form des Deutschen e a "teoria
sintagmática" de Francis Mikus, a que dediquei uma "Crònica
Lingüística" na Revista Brasileira de Filologia.

A nova Nomenclatura Oficial Brasileira não enveredou por


èsse caminho e com efeito não ¡he cabia fazê-lo, pois apenas se
pretendeu com ela consolidar e selecionar dentro da doutrina
— 11 —

corrente gramatical entre nós e nunca inovar no sentido rigoroso


do tèrmo, e de maneira geral está perfeitamente certa nessa ati-
tude. Assim, a nomenclatura explícita e a doutrina implícita que
nos oferece em análise sintática não fogem das linhas tradicio-
nais. Às vêzes, não obstante, foi muito feliz, simplificando (já
que não lhe cabia eliminar ou substituir) e coibindo exageros a
que levou muitos gramáticos a preocupação das diretrizes lógicas
criticadas no início desta aula.

Quero aqui apenas focalizar dois pontos em que acho que


a Comissão da Nomenclatura prestou um grande serviço ao estu-
do e ao ensino da língua materna entre nós em questão de análise
sintática: a supressão dos conceitos de "correlação" e "justaposi-
ção" como estruturas frasais paralelas à coordenação e à subor-
dinação.

Para compreendermos bem o acêrto da decisão, convém es-


clarecer o que se entende por coordenação e subordinação em
linguagem.

Numa e noutra se resume tôda a estruturação na linguagem.


Podemos compará-las, no âmbito matemático, com a adição e a
multiplicação, respectivamente. Na coordenação os elementos
lingüísticos se somam, como se juntam as parcelas de uma soma,
e o conjunto não é mais do que a reunião de partes justapostas.
Na subordinação, ao contrário, êles se fundem para se tornar
outra coisa: o multiplicador, ou seja, o elemento modificador, se
integra no multiplicando, ou seja o elemento modificado, e o re-
sultado é um produto em que se absorvem um e outro. Exempli-
fiquemo-lo no plano vocabular. Uma palavra composta como "au-
riverde" é uma coordenação, porque uma soma da côr amarela a
que se justapõe a côr verde: um pano auriverde tem em si, de
um lado, o amarelo e, de outro lado, o verde, e o conjunto é
amarelo mais verde. Já uma palavra como "verde-garrafa" não é
a soma de um verde e uma garrafa; é coisa muito diversa — um
verde que é como o verde das garrafas: "garrafa" é o multiplica-
dor, o elemento modificador, que se integra no elemento modi-
ficado "verde" e o caracteriza de certa maneira. Trata-se de uma
subordinação, onde um elemento está subordinado ao outro e
— 12 —

nada vale sem o outro, enquanto èsse outro sem êle fica incarac-
terizado. "Verde" sem "auri-" continua o mesmo verde, e "auri-"
designa por si só uma parte do pano; "verde" sem "garrafa" não
é o mesmo verde, e "garrafa" por si só nada tem que ver com o
pano.
Se passarmos ao plano da frase, temos analogamente a co-
ordenação em "João e Maria" como dois indivíduos distintos que
estão citados juntos. Mas em "João da Maria" temos uma subordi-
nação, pois se trata de um indivíduo único — o João, que se dis-
tingue de outros por ser qualquer coisa da, Maria (seu filho, seu
marido e assim por diante). Em "João e Maria" eu focalizo o João
e depois focalizo a Maria; em "João da Maria" eu só focalizo
João e procuro bem caracterizá-lo. Isto quanto a focuções. Quan-
to a orações, temos, de um lado, — "Disse mas mentiu", e, de
outro lado, — "Disse que mentiu". No primeiro caso, tenho duas
afirmações justapostas: afirmo que êle disse qualquer coisa e
afirmo que o que disse foi uma mentira. No segundo caso, a mi-
nha afirmação é só uma e refere-se ao que foi dito, caracterizan-
do-o em seu conteúdo. Da mesma sorte que em "verde-garrafa",
o elemento "garrafa" não faz sentido, na subordinação oracional
uma oração subordinada nada vale sem aquela a que modifica e
esta sem a sua subordinada fica incaracterística ou fragmentária.

Em português, o processo normal de subordinação é apor


ao elemento subordinado uma partícula, ou "transpositor" que o
caracteriza como tal. Na subordinação vocabular é êle a prepo-
sição (em regra "de") mas pode faltar: temo-lo em "jardim da
infância", mas não o temos em "verde-garrafa" ou "guarda-ma-
rinha" (um guarda que é da marinha). Na subordinação frasai o
transpositor é a conjunção subordinativa, e em português não
é de esperar que falte; mas em outras línguas, como o inglês,
temos a subordinação frasai do tipo de "verde-garrafa" em "he
said he was afraid", por exemplo. Enfim, não é o conectivo, em
princípio, que define uma oração como subordinada, mas o seu
papel de integradora da oração dita principal.

Vejamos agora a coordenação. O fato de cada oração coor-


denada manter a sua individualidade não quer dizer que cada uma
— 13 —

seja independente das outras. Ou melhor: uma oração coordena-


da não forma sentido "completo", como se costuma dizer erronea-
mente por fôrça de uma tradução falsa da definição de Dionisio
da Tràcia — "autotele", que no velho gramático alexandrino sig-
nifica "autònomamente", isto é, com sua individualidade; assim,
em "auriverde", "verde" tem a sua individualidade mas não dá
o sentido completo para a verdadeira côr do pano, pois só se re-
fere a uma parte dêle. Mesmo nas orações assindéticas, cada
uma não dá o sentido completo, pois cada uma prepara a com-
preensão da seguinte: "olhei para o céu, vi-o cheio de nuvens,
apanhei o guarda-chuva" — só vi as nuvens porque olhei para o
céu e só apanhei o guarda-chuva porque vi as nuvens; "apanhei
o guarda-chuva", apenas, não dá o sentido completo do que pre-
tendo comunicar e muito menos qualquer outra das orações an-
teriores. Em — "Disse mas mentiu", a idéia adversativa "mas
mentiu" seria inoperante sem a oração "disse". Da mesma sorte
— "Ou êle vem ou eu o castigo" vem a ser uma soma de duas
parcelas e uma não dispensa a outra.

Isto pósto, se agora nos voltarmos para os conceitos de "jus-


taposição" e "correlação", verificamos fàcilmente que não passam
de modalidades da coordenação e da subordinação. Em princípio,
só há duas ligações oracionais: coordenação ou parataxe; subor-
dinação ou hipotaxe.

Os conceitos de justaposição e correlação partem de dois


pressupostos que vimos serem falsos: 1) a subordinação exige um
conectivo; 2) a oração coordenada é independente (de sentido
completo).

Foi o primeiro pressuposto que levou à doutrina da justa-


posição. Os seus adeptos costumam considerar 3 casos de justa-
posição: 1) Intercalada: " . . . — disse X. — . . . " 2) Apositiva:
"Dei-lhe tudo: ofereci meu nome, tornei-a minha esposa, elevei-a
à minha posição" (estou glosando um exemplo de Adriano Kury
em sua excelente Pequena Gramática para explicar a Nomencla-
tura nova, mas onde sem razão a meu ver lamenta a ausência do
conceito de "justaposição"); 3) adverbial: "Saí há duas horas".
Ora, o que temos realmente aí são subordinações sem conectivo,
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como "verde-garrafa" ou "he said he was afraid": o que X . disse


são elementos subordinados ao verbo "disse" (orações subordina-
das substantivas); "ofereci..., tornei..., elevei-a..." são desdobra-
mentos de um elemento da oração principal "tudo", da mesma
sorte que em — "o livro que comprei", a oração "que comprei"
desdobra uma característica de "livro" (oração adjetiva); em
"Saí há duas horas", ou, "Há duas horas saí", temos uma circuns-
tância adverbial de tempo expressa por uma oração subordinada
sem conectivo — desde que saí, a partir do momento que saí
(e "saí" sem conectivo caracteriza as duas horas a que me refiro
na oração principal) (oração adverbial). "Justaposição" é que não
há, porque "justaposição" é sinônimo de "coordenação": reunir
elementos em ordem é pôr um ao lado do outro. Assim, no exem-
plo 1) as palavras ditas por X caracterizam o que êle disse, e
nunca se justapõem ao que êle disse (a integração é evidente).
Da mesma sorte, em — "Saí ha duas horas", a expressão "há
duas horas" não tem individualidade sem "saí" (tal qual "garra-
fa" sem "verde") e "saí" fica incaracterizado sem "há duas ho-
ras" (tal qual "verde" sem "garrafa").

Já o conceito de "correlação" parte do falso pressuposto de


que a oração tem de ter um sentido "completo", o que é inter-
pretado como não devendo apresentar elementos que só se ex-
plicam pela presença da oração seguinte.

Daí, os 3 tipos de correlação, a que até se adjungiu um quar-


to: 1) Correlativa, stricto sensu, ou consecutiva: "Falei tanto que
fiquei rouco"; 2) Comparativa: "Fala mais do que pensa"; 3) "É
não só desatento mas também preguiçoso". Os dois primeiros
tipos são casos evidentes de subordinação: a segunda oração ca-
racteriza a primeira e nela se integra. Alega-se que "falei tanto"
e "fala mais" não formam "sentido completo" sem a segunda e
dependem dela, não sendo pois pròpriamente principais. Mas será
que numa construção integrante — "Êle pede que você vá", a
oração "êle pede" forma "sentido completo"? Ou que em —
"se eu tivesse dinheiro, eu te emprestaria essa quantia", o sen-
tido está completo se eu disser apenas — "eu te emprestaria
essa quantia"?
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Já no 3.° tipo da alegada "correlação", o que se tem na rea-


lidade é uma coordenação aditiva enfática. "Êle é desatento e
preguiçoso" equivale em princípio a — "Êle não só é desatento
mas também preguiçoso". Apenas na segunda frase insiste-se
mais na gravidade dos defeitos: ser desatento é ruim e ainda por
cima é preguiçoso! Que importa para conceituar a coordenação
que os elementos "não só" e "mas também" exijam uma parte
seguinte e uma parte anterior? Por acaso, em — "êle é bom
mas preguiçoso" a partícula "mas" também não exige uma parte
anterior? E — "Não me limitarei a dizer isso; acrescentarei...", a
oração com "não limitarei" não exige uma parte seguinte?

Aliás, os adeptos da correlação, à fôrça de explorar o con-


ceito, chegaram à demonstração por absurdo dé que êle é falso,
quando criaram a "correlação alternativa", como faz Gladstone
Chaves de Mello atendendo a uma sugestão do jovem professor
Maximiano de Carvalho. Assim, dois professores excelentes (e
Gladstone Chaves de Mello é uma pessoa que muito admiro, co-
mo já frisei mais de uma vez) aboliram a coordenação alternati-
va com — "ou. . . ou. . .", "quer. . . quer... " sob alegação de
que uma oração de "ou" ou "quer" não se justifica sem a outra.
Mas isso é normal em tôda coordenação: na adversativa, na ex-
plicativa, na conclusiva e até na aditiva, em que cada oração se
compreende em função da anterior: "mas preguiçoso", "pregui-
çoso pois" e assim por diante não formam "sentido completo".
A ser válido o raciocínio dos dois dignos professores, não há coor-
denação, e em seu lugar teremos a correlação. Como a criada de
Ali Babá, depois de assinalarem os ladrões de "vermelho" a
casa do amo, "correlação" e não "coordenação", êles assinalaram
de "vermelho" todas as demais casas da rua e a coordenação de-
sapareceu, ou melhor, esvaiu-se o inconsistente conceito da "cor-
relação".

A eliminação dos conceitos de "justaposição" e "correla-


ção", na nova Nomenclatura oficial, foi, por tudo isso, a meu
ver uma medida das mais salutares. O retorno à dicotomia coor-
denação-subordinação (ou parataxe-hipotaxe) reata uma tradição
gramatical que se apóia na verdadeira natureza da expressão lin-
güística, e faz cessar tôda uma série de considerações e elocubra-
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ções inconsistentes, que em ultima análise decorrem de dois prin-
cípios falsos — a de que só há subordinação com conectivo su-
bordinativo e o de que a oração não-subordinada tem de apre-
sentar "sentido completo'".

É claro que a Nomenclatura não resolveu com isso o magno


problema da análise sintática, assente em bases precárias, insufi-
cientes e até não raro artificiais. Mas isto é "outra história", co-
mo diria o narrador do Jungle Book de Kipling, uma história lon-
ga, complexa, que tem de ser encetada pelos professores de por-
tuguês em geral, depois de aparelhados com um indispensável
conhecimento da natureza da expressão lingüística, seus propósi-
tos e sua função na comunicação social.

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