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Série Aperfeiçoamento de Magistrados 11tCurso de Constitucional - Normatividade Jurídica

281

A Inconstitucionalidade da
Criminalização do
Usuário de Drogas
Vinicius Marcondes de Araujo1

Lembro-me de quando estudava para concurso a advertência de um


professor a respeito da tese sustentada pela Profª. Maria Lucia Karan, sobre
a inconstitucionalidade da criminalização do usuário: “– Nem aborda isso,
porque a reprovação é certa”.
Realmente o tema é um assunto maldito. Os detratores da possi-
bilidade da não criminalização do usuário apontam para o suplício dos
viciados e de suas famílias para concluir que os entorpecentes devem ser
proscritos e as pessoas não devem se drogar, sob a ameaça de submissão à
lei penal.
O objetivo deste trabalho é revisitar o tema com argumentos e dados
à reflexão jurídica, sem receio de moralismo ou conservadorismo.
Para tanto, é preciso que se levante uma premissa de fato, inquestio-
nável: o homem, desde sempre, se droga.
Praticamente todos nós usamos drogas, mesmo o Sumo Pontífice,
que ao repetir o ritual da Santa Ceia ingere vinho (droga, aqui e hoje líci-
ta), tal como fez Jesus Cristo e seus apóstolos.
A diferença é que determinadas drogas o poder público decidiu
proibir o consumo, criminalizando-as, e outras não; o fundamento jurí-
dico estatal é o de que as proibidas afetam a saúde pública de tal maneira
que devem ser proscritas.
O presente estudo busca identificar os motivos que levam à proibi-
ção do uso das drogas e se existe possibilidade jurídica de o juiz declarar
a inconstitucionalidade da criminalização do consumo e condutas afins,

1 Juiz de Direito em exercício na 1ª Vara Criminal de Madureira.


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tipificadas no art. 28 da Lei 11.343.

DOS ANTECEDENTES HISTÓRICOS E PANORAMA ATUAL

As populações mais primitivas de caçadores/coletores descobriram


o que poderia se constituir em alimento no método “tentativa e erro”. À
procura de alimentos acabaram descobrindo substâncias alucinógenas que
passaram a fazer parte de seus cotidianos.
Através dos tempos essa lógica se sofisticou, mas nunca foi aban-
donada, em lugar algum do planeta, mesmo onde o flagrante do porte de
droga pode significar a morte.2
Há registros do consumo da maconha em 2.700 anos antes de Cris-
to. Ópio, 1.000 ac. Sigmund Freud receitava cocaína a seus pacientes no
século XIX, e não era incomum que festas da alta sociedade carioca no
início do século XX fossem regadas com carreiras desta droga, época em
que não havia proibição do consumo de drogas no Brasil.
Os EUA fomentaram o movimento para proibição das drogas, in-
clusive a bebida alcoólica, no início do século XX, influenciando a ONU,
e dali o resto do mundo, recrudescendo esta política na virada da década de
60 para 70, no que se convencionou denominar Guerras contra as Drogas.
De lá para cá foram gastos, só nos EUA, mais de um trilhão de
dólares na vã tentativa de transformar o mundo num lugar sem drogas. O
insucesso dessa guerra é mais do que evidente.
O homem sempre se drogou e isto nunca vai mudar, mesmo com
prisão de usuários e/ou penas pesadíssimas aos traficantes. Muito ao rever-
so, o consumo das drogas não parou de aumentar durante todo o período
nos países que tomaram parte na política incentivada pelos EUA.
Na contramão da Guerra contra as Drogas está a descriminalização
em países da Europa, que desviaram os vultosos valores gastos no encarce-
ramento de usuários para campanhas de educação e desestímulo ao con-

2 Dois brasileiros (Marco Archer Cardoso Moreira e Rodrigo Gularte) encontram-se presos na Indonésia, aguar-
dando execução de pena de morte por tráfico de drogas. Mesmo ciente do risco extremo e fatal, assumiram o risco
do transporte da droga naquele canto do planeta.
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sumo, e notadamente o adequado tratamento dos dependentes químicos.


Os resultados são bons.
Na Revista Carta Capital de 31 de agosto de 2011 há o registro de
que Portugal:

“comemorou dez anos de descriminalização de todas as drogas e é


considerado o país mais avançado da Europa em termos de legis-
lação. (...) Na entrevista de dez anos da descriminalização, Gou-
lão apontou a queda no consumo de drogas em Portugal como
a maconha, a heroína e a cocaína, atualmente dos menores em
todo o continente europeu.”3

Parece intuitivo, pois, que a política de proibição, criminalizando


condutas associadas às drogas, não seja a mais eficaz.

DOS MOTIVOS ALEGADOS E ESCAMOTEADOS PARA


CRIMINALIZAÇÃO DO USUÁRIO DE DROGAS

O discurso oficial é o de que a lei de drogas procura tutelar a saúde


pública quando criminaliza o usuário. Isso está em qualquer manual a res-
peito do tema.
Há jurisprudência relevante no sentido de que o indivíduo que usa
sua liberdade para se drogar afeta a saúde pública, na medida em que terá
de se submeter a atendimento/tratamento médico custeado pelo Estado.
Mas será mesmo?
Acredita-se que não.
Relatório do Ministério da Saúde acerca das estatísticas do SUS re-
vela um dado assustador e intrigante.
Do total de gastos no SUS relacionados às drogas (lícitas e ilícitas),
87,90% são por bebida alcoólica. O restante dos atendimentos consta da
rubrica: “outras drogas”. (A POLÍTICA DO MINISTÉRIO DA SAÚDE

3 Menezes, Cynara, Carta Capital, edição nº 661, 31 de agosto de 2011.


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PARA ATENÇÃO INTEGRAL A USUÁRIOS DE ÁLCOOL E OU-


TRA DROGAS, p. 19, 2003)4
Aliás, o Estado Juiz, quando afirma em seus julgados que a crimi-
nalização do uso de drogas visa à proteção da saúde pública, se esquece de
perguntar ao Estado Administração se isto realmente procede, tal como o
fez (ou não fez) o Estado Legislador, pois o Ministério da Saúde, através
do relatório acima citado, página 26, afirma o contrário: “o rigor da lei
criminal de drogas manifesta-se em condições desfavoráveis de acesso
à saúde e a participação e organização dos usuários de drogas, ao esta-
belecer o uso como “proibido”.
Daí pergunta-se: O Estado realmente está preocupado com a saúde
pública quando criminaliza usuários de outras drogas?
Como se viu, os números demonstram que o álcool é responsável
por quase 90% do impacto das drogas na saúde pública. Se o fundamento
da criminalização é a saúde pública, qual seria a razão para a maconha ser
proibida e a cachaça não?
Sabe-se, por estudos científicos incontestáveis, que dentre os vários
tipos de drogas, a maconha é das menos nocivas ao organismo, bem menos
que o álcool e o tabaco (vide documentários “Quebrando Tabu” e “Cortina
de Fumaça”).
Volvendo o rumo da argumentação à normatividade constitucional,
afigura-se clara a violação ao princípio da isonomia que um sujeito surpre-
endido com maconha para uso próprio, exemplificativamente, tenha de
submeter à persecução criminal, enquanto um alcoólatra beba até cair to-
dos os dias na mesma esquina em que o usuário de maconha foi flagrado.
A conduta daquele que bebe desmedidamente tem uma potenciali-
dade lesiva muito maior em relação à saúde pública do que a do usuário de
maconha, ainda que este também faça dela um uso abusivo.
Mesmo drogas pesadas, como o crack e a cocaína, juntas, estão mui-
to longe do álcool no ranking do Ministério da Saúde que afere o impacto
das drogas no SUS.

4 bvsms.saude.gov.br/publicações/pns_alcool_drogas.pdf
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Daí que a propalada proteção à saúde pública é uma falácia, um


embuste. Não existe este comprometimento estatal. A verdadeira razão da
criminalização é de outra ordem.
Abram-se parênteses para esclarecer que não se está a reivindicar
que a bebida alcoólica seja criminalizada, pois a história demonstra que a
tentativa neste sentido só serviu para potencializar o crime organizado, tal
como se dá hoje com as drogas ilícitas.
Os Estados Unidos editaram a lei seca e o que se viu foi o fortaleci-
mento das máfias ítalo-americanas.
Aliás, ainda dentro dos parênteses uma situação esdrúxula e curiosa;
se Jesus Cristo tivesse praticado o milagre de transformar água em vinho,
numa festa da Chicago dos anos vinte do século passado, seria considerado
traficante.
Veja-se que o ordenamento jurídico também produz aberrações.
Fechados os parênteses, o que realmente justifica a criminalização do
usuário de drogas, mas não se assume, é uma cultura conservadora de nossa
sociedade em relação ao diferente, ou numa única palavra: preconceito. O
estigma do drogado é algo muito forte entre nós.
Contraditoriamente, é da nossa cultura achar graça e admirar algu-
mas pessoas que se notabilizam por beber muito. O talentosíssimo Zeca
Pagodinho é um exemplo disso. Já o usuário de drogas é estigmatizado
como criminoso.
O direito penal, entretanto, como última ratio do ordena-
mento jurídico, não deve impor às pessoas criminalização de conduta que
não afete realmente o bem jurídico que se pretende tutelar, in casu a saúde
pública, pois do contrário seria, como reprova o mestre Assis Toledo, a
admissão de um sistema penal que pretendesse punir o agente pelo seu
modo de ser ou de pensar.5

5 Toledo, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª edição. São Paulo. Saraiva. 1994, p. 19.
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DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 28 DA LEI 11.343

O art. 28 e seu parágrafo primeiro da Lei de Drogas criminalizam


diversas condutas relativas ao usuário6, sob o falso argumento, como já
fundamentado, de proteção à saúde pública.
Quando o bem jurídico alegadamente tutelado na verdade não está
sob afetação, o corolário de direito é considerar como violado o princípio
constitucional da lesividade, que se extrai do art. 98, I da Carta Magna.
Outra vertente do princípio da lesividade é a de impedir a punição
de atos que tenham consequências restritas à esfera íntima do indivíduo
que pratica uma determinada conduta, ou no dizer abalizado de Rogério
Greco:
“o Direito Penal também não poderá punir aquelas
condutas que não sejam lesivas a bens de terceiros, pois
que não excedem ao âmbito do próprio autor, a exemplo
do que ocorre com a autolesão ou mesmo a tentativa de
suicídio.”7

Outro doutrinador de escol, Nilo Batista, sustenta que a legislação


que “incrimina o uso de drogas, [está] em franca oposição ao princípio
da lesividade e às mais atuais recomendações política criminais”.8
Ainda na mesma linha, Alexandre Bizzoto et al sustentam:

“O art. 28, que criminaliza a posse de droga para consu-


mo, é inconstitucional, porque o indivíduo é senhor de
seu próprio destino, corpo e saúde, razão pela qual lhe

6 Art. 28 – Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, dro-
gas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
(...) parágrafo primeiro – Às medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas
destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência química.

7 Grego, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral. 5ª edição. Belo Horizonte. Impetus. 2007, p. 55.

8 Apud Grego, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral. 5ª edição. Belo Horiszonte. Impetus. 2007, p. 55.
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compete decidir sobre o que é melhor (e pior) para si mes-


mo. Assim, por força do princípio da lesividade, só pode
constituir infração penal uma conduta que implique vio-
lação a interesse, à liberdade ou a bem jurídico de terceiro,
razão pela qual ações que encerrem apenas má disposição
de direito ou interesse próprio não podem ser objeto do
direito penal, a exemplo da autolesão, do suicídio tentado
ou do dano à coisa própria. John Stuart Mill escreveu, a
propósito, que o “indivíduo não responde perante a socie-
dade pelas ações que não digam respeito aos interesses de
ninguém, a não ser ele próprio. Conselho, ensino, persua-
são, esquivança da parte de outras pessoas, se para o bem
próprio a julgam necessária, são as únicas medidas pelas
quais a sociedade pode legitimamente exprimir desagrado
ou desaprovação da conduta do indivíduo.”9

Em direito comparado, convém citar que as cortes supremas da Ar-


gentina e da Colômbia declararam a inconstitucionalidade da criminaliza-
ção dos usuários de drogas, ao argumento de que a conduta que cause lesão
apenas ao próprio agente não pode ser sancionada pelo Direito Penal.
Realmente, o sujeito que se droga só pode estar fazendo mal a si
próprio.
Outro princípio constitucional vergastado pela Lei de Drogas é o da
isonomia, dado o caráter aleatório com que as drogas proibidas são selecio-
nadas para o enquadramento típico.
Gabriel O Pensador tratou do tema na música “O Cachimbo da
Paz”, em que faz uma crítica à proibição da maconha, usando como sím-
bolo um cacique que trouxe à urbe “o cachimbo” para tranquilizar a socie-
dade, muita violenta na sua visão. Acabou preso, torturado e morto. Antes
de morrer assassinado na prisão, expressou sua perplexidade pela falta de

9 Bizzoto, Alexandre, Rodrigues, Andréia de Brito e Queiroz, Paulo, Comentários Críticos à Lei de Drogas, 3ª
edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010, p. 45/46.
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coerência entre o que era e o que não era proibido, vazada no seguinte
trecho:
“Na delegacia só tinha viciado e delinqüente
Cada um com um vício e um caso diferente
Um cachaceiro esfaqueou o dono do bar
Porque ele não vendia pinga fiado
E um senhor bebeu uísque demais
Acordou com um travesti e assassinou o coitado
Um viciado no jogo apostou a mulher
Perdeu a aposta e ela foi seqüestrada
Era tanta ocorrência, tanta violência
Que o índio não tava entendendo nada
Ele viu que o delegado fumava um charuto fedorento
E acendeu um “da paz” pra relaxar
Mas quando foi dar um tapinha
Levou um tapão e um chute naquele lugar
Foi mandado pro presídio e, no caminho
Assistiu um acidente provocado por excesso de cerveja
Uma jovem que bebeu demais
Atropelou um padre e os noivos na porta da igreja
E pro índio nada mais faz sentido
Com tantas drogas por que só o seu cachimbo é proibido?

Como já dito alhures, qual a razão para a maconha ser droga ilícita e
a bebida alcoólica não, sob o prisma da saúde pública, quando se sabe que
quase noventa por cento dos atendimentos no SUS em função das drogas
decorrem do consumo abusivo de álcool?
Fere a igualdade constitucional, ad colorandum, que o usuário de
maconha, cientificamente considerada como droga leve, seja submetido
à persecução penal, e o alcoólatra não, pois a conduta deste é bem mais
nociva, do ponto de vista médico, do que a daquele.
A ordem constitucional vigente expressa profundo compromisso
com a liberdade do indivíduo, seja no expressar, no ser, no agir e no consu-
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mir, desde que não afete a esfera jurídica de terceiros, como sói acontecer
com aquele que simplesmente se droga.
Extrai-se da leitura do art. 5º da Carta Magna que é livre a mani-
festação do pensamento (IV), é inviolável a liberdade de consciência e de
crença (VI) e que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas (X).
O indivíduo que resolve se drogar age no espaço aberto pela Consti-
tuição, tanto quanto aquele que senta no bar para beber cerveja, revelando-
se atentatória a criminalização de sua opção ínsita a sua liberdade, garan-
tida no texto maior.
Mariana de Assis Brasil e Weigert exprime com precisão o tema:
“Ao limitar a vida privada e a intimidade da pessoa, o proi-
bicionismo atua em esfera tutelada pela Constituição. Em
inúmeras disposições a Carta visou proteger os direitos de
personalidade dos cidadãos, informando existir parcela
de direitos de personalidade dos cidadãos que não pode
ser invadida pelo Estado. A personalidade e as opções que
dela exsurgem está inserida em tais direitos individuais
inacessíveis, devendo ser igualmente respeitadas “a esfera
do pensamento, das convicções, das paixões e emoções
como núcleo inviolável, como reserva de direito do cida-
dão na qual o Estado não pode interferir.
Em não se respeitando o direito de escolha do indivíduo,
nas diferentes expressões que possui, viola-se o princípio
da secularização, vislumbrado por Zaffaroni como prin-
cípio metajurídico, referencial de legitimidade externa
do direito penal. Entendido como o princípio dos quais
os demais princípios e valores são dedutíveis, este obje-
tiva exatamente a busca de limites do Estado perante as
liberdades dos cidadãos, como referido anteriormente.
Deste modo, não é constitucionalmente possível impor-se
a proibição (penal) de comportamentos unicamente imo-
rais, malvados ou hostis, pois é imprescindível a efetiva
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lesão a terceiros.
Esta é uma das razões pela qual a criminalização do con-
sumo não se justifica. A punição de atos autolesivos, que
causam dano somente ao indivíduo que os pratica, não
pode ser considerada nada além de resíduo pré-moderno,
baseado em concepções filosóficas e religiosas incapazes
de traçar diferenciação entre o Direito e a moral.10

A liberdade constitucional não há de ser uma mera indicação poé-


tica ou quimérica. Trata-se de direito fundamental do cidadão que precisa
ser afirmado e reafirmado segundo a prática cotidiana da sociedade e do
Estado.
Pautada nessa premissa de alto valor axiológico, surgem precedentes
na jurisprudência na linha de raciocínio que se está a argumentar. Neste
sentido, o seguinte aresto do TJSP:

“O art. 28 da lei 11.343/06 é inconstitucional. A crimina-


lização primária do porte de entorpecentes para uso pró-
prio é indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, por-
que não há tipificação de conduta hábil a produzir lesão
que invada os limites da alteridade, afronta os princípios
da igualdade, da inviolabilidade, da intimidade e da vida
privada e do respeito à diferença, corolário do princípio
da dignidade, albergados pela Constituição Federal e por
tratados internacionais de Direito Humanos ratificados
pelo Brasil. 11

Estrema-se usuário de drogas do dependente químico, vez que nem

10 Weigert, Mariana de Assis Brasil, Uso de Drogas e Sistema Penal – entre o proibicionismo e a redução de
danos. 1ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Júris. 2010, p. 79/80.

11 Apelação Criminal 0011135633, 6ª Câmara Criminal, Relator José Henrique Rodrigues Torres, julgado em
31/03/2008.
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sempre essas figuras se acumulam numa única pessoa. O dependente quí-


mico já sofre a desgraça de sê-lo, e a verdadeira providência esperada do,
Estado é que ofereça tratamento adequado.
Aqui outro ponto de relevo, pois o princípio da proporcionalidade,
de jaez constitucional, impõe que qualquer medida estatal guarde uma
relação instrumental entre o fim alvitrado e a medida propriamente dita.
Relembre que o princípio da proporcionalidade se descortina atra-
vés de um método trifásico, em que num primeiro momento cabe aferir se
a medida estatal que venha a restringir algum direito fundamental é idônea
ou adequada para se atingir o objetivo alvitrado pelo legislador, no caso a
proteção da saúde pública; a segunda etapa é o exame de necessidade da
medida, ou seja, se não existe outro meio menos gravoso para se atingir
o objetivo estatal; a terceira fase diz com a proporcionalidade em sentido
estrito, que remete à ideia de ponderação entre os interesse contrapostos.
A Lei de Drogas não passa no teste da proporcionalidade já nas duas
primeiras etapas, porquanto a persecução penal do usuário não é adequa-
da à proteção da saúde pública, bem como existem outros mecanismos
mais eficazes à aludida proteção e menos gravosos ao exercício da liberdade
constitucional.
Cediço que o direito penal é o último recurso normativo do Estado,
o mais contundente. O só fato da persecução criminal importa em cer-
to constrangimento, no que se convencionou denominar strepitus judicii.
Uma mera anotação criminal na folha de antecedentes já inviabiliza uma
série de empregos formais.
Outro problema é o estigma criminoso que envolve o uso de drogas,
de forma que o usuário, notadamente aquele que se viciou, tem dificuldade
de assumir sua condição no relacionamento médico, ocultando-a e dificul-
tando um diagnóstico mais preciso, e, por conseguinte o tratamento.
O direito penal não é adequado para proteção da saúde pública, an-
tes dificulta o tratamento, afastando o doente, como o próprio Ministério
da Saúde, através do relatório acima citado, página 26, afirma: “o rigor
da lei criminal de drogas manifesta-se em condições desfavoráveis de
acesso à saúde e a participação e organização dos usuários de drogas,
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ao estabelecer o uso como “proibido”. 12


Na observação empírica, tem-se que a política de repressão ao usuá-
rio, com a criminalização de sua conduta, não logrou diminuir o consumo
em lugar algum do planeta. Os Estados Unidos gastaram mais de trilhão
de dólares na Guerra Contra As Drogas e consumo só fez aumentar. Já em
países como Portugal e Suíça, onde os valores gastos com repressão crimi-
nal foram redirecionados para campanhas de educação e desestímulo, bem
assim ao adequado tratamento médico de alguém que não é estigmatizado
como criminoso, mas como doente, o consumo diminuiu.
Tal observação empírica impõe considerar que a criminalização não
passa no segundo teste de aferição do princípio da proporcionalidade (sub-
princípio da necessidade ou inexistência de meio menos gravoso).
Mais eficazes e menos gravosos à liberdade constitucional no trato
da questão das drogas são as amplas campanhas de orientação e as medidas
administrativas de desestímulo, tal como o tabaco no Brasil, em que o
consumo diminuiu pela metade de 1989 até esta quadra.
O crack é um sério problema há mais de uma década e só agora
o governo federal se mobilizou para promoção de campanhas de rádio e
televisão avisando sobre os riscos da rápida dependência química que esta
droga proporciona.
Quantos experimentaram o crack ignorando por completo os riscos
a que estavam submetidos.
O Estado tem o dever de explicar adequadamente os riscos que as dro-
gas, singularmente consideradas, podem proporcionar, conferindo ao cida-
dão a liberdade de assumi-los através de sua vontade, agora sim, informada.
Noutra ponta, é dever do Estado promover a saúde dos dependentes
químicos com tratamento adequado e leitos para internação, escassos em
geral, inexistentes em muitos locais desse imenso país.
Verifica-se, portanto, que não é o direito penal o meio proporcional
para se buscar a redução do consumo e a cura dos dependentes químicos.
Vem a talho o apotegma: “Não se matam pardais com canhões”.

12 bvsms.saude.gov.br/publicações/pns_alcool_drogas.pdf.
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CONCLUSÃO

O homem se droga desde sempre e esta realidade é imutável. A po-


lítica de proibição do consumo através da persecução penal é um fracasso
mundial e importa em violação de vários princípios constitucionais.
A proteção da saúde pública pela criminalização do usuário é uma
falácia, pois o álcool, droga, hoje e aqui lícita, é responsável por quase
90% dos atendimentos no SUS relativos ao uso abusivo, razão pela qual
não existe esse comprometimento estatal na proibição das drogas; o que se
busca, mas não se assume, é a restrição ao diferente, é a manutenção de um
moralismo paralisante, o conservadorismo, pois o estigma do drogado é
muito forte em nossa cultura, o que mais se robustece com o direito penal,
em que o usuário de drogas figura como criminoso.
Tal cenário impõe considerar que o princípio constitucional da le-
sividade encontra-se violado com a criminalização do usuário, pois este só
pode fazer mal a si próprio com o ato de se drogar. Tal conclusão encontra
precedentes na doutrina e na jurisprudência, doméstica e internacional; o
princípio da isonomia também afigura-se vergastado pelo caráter aleatório
com que as drogas são escolhidas à proibição a importar em consequên-
cias completamente distintas, sendo que o usuário de droga mais branda,
de que é exemplo a maconha, sofre a persecução criminal, ao passo que
o alcoólatra bebe até cair cotidianamente sem qualquer repressão estatal,
restando provado estatisticamente que a conduta deste é bem mais nociva
à saúde pública do que a daquele.
Por fim, a criminalização do usuário fere o princípio da proporcio-
nalidade, na medida em que o direito penal não é idôneo ou necessário à
proteção da saúde pública, antes atrapalha essa missão estatal, como o pró-
prio Ministério da Saúde reconhece em documento formal alhures citado,
e como o empirismo internacional leva a crer, sendo certo que existem ou-
tros mecanismos mais eficazes e menos gravosos à liberdade do indivíduo,
tais como campanhas de orientação e medidas de desestímulo.
Enfim, por todos estes argumentos, o art. 28 da Lei 11.343 não
passa pelo filtro de constitucionalidade. ♦
Série Aperfeiçoamento de Magistrados 11tCurso de Constitucional - Normatividade Jurídica
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bizzoto, Alexandre, Rodrigues, Andréia de Brito e Queiroz, Paulo, Co-


mentários Críticos à Lei de Drogas, 3ª edição, Rio de Janeiro, Lumen
Juris, 2010.

Costa, Humberto. A política do ministério da saúde para atenção inte-


gral a usuários de álcool e outra drogas, Brasília, 2003, in bvsms.saude.
gov.br/publicações/pns_alcool_drogas.pdf.

Grego, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral. 5ª edição. Belo Ho-
rizonte. Impetus. 2007.

Menezes, Cynara, Carta Capital, edição nº 661, 31 de agosto de 2011.

Toledo, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª edi-


ção. São Paulo. Saraiva. 1994.

Weigert, Mariana de Assis Brasil, Uso de Drogas e Sistema Penal – entre


o proibicionismo e a redução de danos. 1ª edição, Rio de Janeiro, Lu-
men Juris. 2010.

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