O Psicanalista No Cinema

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O psicanalista no cinema – algumas resenhas


Luiz Fernando G. Gallego Soares1

1. Segredos de uma alma (Geheimnisse einer seele, título


original), dirigido por G. W. Pabst, lançado em 1926

A figura do psicanalista aparece no cinema pela primeira vez neste filme silen-
cioso lançado em 1926. O espectador ainda não sabe quem é aquele persona-
gem que – numa primeira impressão – poderia ser apenas um figurante lendo
o jornal num café (ou bar) de Berlim (ou de outra cidade não especificada da
Alemanha na época).
Em uma mesa próxima está o tipo principal sobre quem o filme se deteve
até agora: um cientista que desenvolveu grave fobia a objetos cortantes e teme
usá-los contra a esposa por quem é apaixonado. Ao levantar-se para ir embora,
o cientista fóbico deixa um molho de chaves sobre a mesa, o que é percebido
pelo sujeito que está lendo as notícias. Haveria tempo e chance de chamar o
outro e avisá-lo do esquecimento, mas ele também se levanta de onde está, pega
as chaves e sai, seguindo o “distraído” a uma certa distância.
Ao se dar conta de que não tinha consigo um meio de entrar em sua casa,
já no portão de entrada, é que o outro se aproxima e entrega-lhe o chaveiro,
comentando que o “esquecido” talvez preferisse não ter que voltar para casa
naquela noite. Surpreso ao escutar tal coisa, pergunta como quem lhe levou as
chaves fizera tal dedução, escutando como resposta: “Eu sou psicanalista, é o
meu trabalho”. E se afasta.
Desesperado com a intensidade e o agravamento dos sintomas, o cientis-
ta retorna ao bar no dia seguinte e consegue saber que “o doutor atende ali em
frente”. Quando entra no consultório, o (agora já se sabe quem é) psicanalista
lhe diz: “Sabia que o senhor viria, mas não imaginei que fosse tão cedo”.

1. Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ) e membro da Associação de


Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ).

TRIEB Vol.21 / No 2 / 2022 211


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Gallego Soares

A partir daí, o filme vai mostrar algumas sessões com o paciente no divã
e, principalmente, a análise detalhada de um longo sonho que o filme já havia
mostrado anteriormente. É descoberta a origem dos sintomas na infância do
paciente com forte componente de conflito triangular e ciúmes. A ideia obses-
siva de que poderia matar a mulher se desfaz, assim como o sintoma fóbico que
lhe era conexo, podendo a vida conjugal do ex-neurótico entrar nos eixos, con-
cluindo o filme com um happy ending. O casal, antes explicitamente frustrado
por não terem filhos (ficara bem subentendida a impotência sexual do marido),
surge com um bebê numa cena final campestre e idílica.
É bastante conhecida a ojeriza que Freud teve à realização de um “filme
psicanalítico”, levando-o a indispor-se com seus discípulos Hans Sachs e Karl
Abraham por terem aceitado o papel de “consultores científicos” na elaboração
do roteiro (que teria utilizado fragmentos de casos reais atendidos por psica-
nalistas). Se o filme retratou com alguma fidedignidade o que Abraham e Sachs
ofereceram aos roteiristas profissionais para a elaboração cine-dramatúrgica do
enredo, o que vemos – quase cem anos depois – pode servir como retrato de
como os seguidores de Freud trabalhavam: com ênfase na interpretação de so-
nhos e buscando o trauma originário para o estabelecimento da neurose e dos
sintomas a serem removidos.
Chama nossa atenção, hoje em dia, a curiosa atitude do psicanalista que
atua fora de um setting ainda não estabelecido, criando a demanda de análise:
ele procurara um neurótico antes que este viesse procurá-lo como analisando.
Mas, doravante, o psicanalista vai se restringir às sessões em seu gabinete.

2. Quando fala o coração (Spellbound, título original), dirigido


por Alfred Hitchcock, lançado em 1945

Este é outro filme famoso na história do cinema por pretender abordar a psica-
nálise, mas o que vemos acontecer é bem mais heterodoxo do que um analista ir
atrás de alguém que cometeu um ato falho – como no filme antes mencionado:
há um profissional sênior de forte sotaque germânico com aspecto amistoso, e
até mesmo bonachão, que é uma espécie de professor, orientador – ou super-
visor – de uma psiquiatra mais jovem (a atriz Ingrid Bergman) que trabalha
num hospital de “doentes mentais”. Ela o procura, levando o paciente que está
tentando auxiliar (Gregory Peck). Ele narra um sonho na presença conjunta da
médica e do professor que, juntos, vão “decifrando” os símbolos e imagens do
sonho – que o espectador vê na tela com concepção visual do pintor surrealista

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Salvador Dalí. Qualquer semelhança na caracterização do professor com a ima-


gem pública de Freud na época não era mera coincidência.
Neste filme estadunidense, diferentemente do filme alemão, o trabalho
com referências psicanalíticas da psiquiatra (lembrando que nos Estados Uni-
dos só era permitido a médicos o exercício da clínica psicanalítica – e, naquela
época, psiquiatria e psicanálise se misturavam bastante) é prioritariamente ins-
titucional para pacientes necessitados de internação institucional. O caso que
ela leva (concretamente) ao seu antigo mestre tem como eixo o bloqueio mnê-
mico de um homem que, sem lembrar o que fez durante alguns dias, teme haver
assassinado um novo diretor que havia sido designado para o hospital em que
a médica trabalha.
Trazendo à consciência memórias recalcadas do amnésico, descobrem
que o temido “assassinato” já havia acontecido na infância do paciente, tendo
sido, entretanto, na verdade, uma morte acidental – o que não impediu que se
originasse intenso sentimento de culpa neste homem. Ter presenciado, mui-
to tempo depois, por mero acaso, o assassinato do tal novo diretor da clínica
(antes que este pudesse ter chegado lá) transformou-se num fenômeno “après-
-coup” (ou “nachträglichkeit”, como cunhou Freud), pois o evento atual passou,
na vida psíquica do personagem, pelo deslocamento das vivências de culpa em
relação à morte do irmão para o crime que testemunhou no presente. As duas
experiências passaram também pelo processo de condensação em uma única
vivência traumática, recriando a sensação de culpa intolerável.
Apesar das diferentes atuações dos terapeutas nos filmes de Pabst e neste
de Hitchcock, são coincidentes, entretanto, as fantasias homicidas dos dois pa-
cientes neuróticos, assim como é idêntica a tarefa dos psicanalistas: descobrir
motivações inconscientes para tais ideias obsessivas de vir a cometer – ou de já
haver cometido – um assassinato.
Estabeleceu-se – como certo clichê de dramaturgia “psicanalítica” nestes
filmes já clássicos – uma analogia entre o desvelamento do que está recalcado
no Inconsciente por parte do psicanalista com a resolução de um enredo de
mistério. O que não seria de se estranhar, se concordarmos que, muito antes de
ser transformado em ícone freudiano, o “Édipo Rei”, de Sófocles, já poderia ser
considerada a primeira história policial – e já com um desfecho “inesperado”:
o “detetive” Édipo acaba por descobrir que o assassino de seu antecessor, o rei
Laio, havia sido o próprio Édipo-detetive.
Este modelo de “analista-detetive” repetiu-se em outros filmes – assim
como no imaginário do público menos informado da tarefa psicanalítica já me-

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nos aprisionada exclusivamente ao desvelamento de traumas e de memórias


reprimidas no Inconsciente. A imagem popular dos psicanalistas que predomi-
nou através dos filmes ficou sendo a de agentes para a descoberta de verdades
indispensáveis para a vida psíquica mais saudável dos analisandos – ou seja, os
analistas eram como que heróis “do bem”.
Ao longo de décadas, este percurso no sentido da revelação de algo im-
prescindível para a recuperação da saúde mental de um personagem portador
de grande sofrimento psíquico foi parte dos enredos de filmes como “O Segre-
do da Porta Fechada” (Secret Beyond the Door), de Fritz Lang, 1947, ou, trinta
anos depois, Equus, de Sidney Lumet, 1977. A versão que John Huston filmou
em 1962 sobre a trajetória inicial de Freud na descoberta da psicanálise não
fugia do clima de “desvelamento de um mistério”: o próprio Freud, em sua au-
toanálise, encontrava em si mesmo o famoso “Complexo de Édipo” – ao mesmo
tempo em que propiciava que uma paciente histérica vencesse a repressão de
lembranças indesejadas e afastadas da consciência.
Mas cabe ainda destacar outro aspecto no enredo do filme de Hitchcock:
o envolvimento amoroso da psiquiatra Ingrid Bergman com o paciente Gre-
gory Peck, um “final feliz” inevitável para os padrões hollywoodianos da época.
Com uma conclusão bem diferente e nada feliz, esta séria questão ética
e técnica vai ecoar em outro filme, também de 1962, no qual o psiquiatra (re-
pete-se a mescla psicanálise-psiquiatria), apaixonado pela paciente que havia
“curado”, casa-se com ela.

3. Suave é a noite (Tender is the Night, título original), dirigido


por Henry King, lançado em 1962, a partir do romance de F.
Scott Fitzgerald, lançado em 1934

Também aqui, o personagem profissional de saúde mental é chamado de “psi-


quiatra”, embora discuta o caso de sua paciente com o diretor científico do hos-
pital em que trabalha (na Suíça, em 1919) usando termos como “transferência”
e “contratransferência”. Ou seja, a psiquiatria que ele exerce é fortemente orien-
tada por conceitos psicanalíticos. Mas o que mais nos interessa neste retrato de
mais um terapeuta-psicanalista retratado num filme é que ele contrai matrimô-
nio com a paciente, ainda que advertido pelo colega mais velho.
O diálogo entre o promissor Dr. Dick Diver (o ator Jason Robards) com
seu professor deixa claro que Dick obteve avanços importantes no tratamento
da jovem Nicole Warren (Jennifer Jones), uma milionária herdeira norte-ame-

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ricana, através da “transferência” – que parece ter incluído (e mencionam como


se fosse algo inevitável) o enamoramento dela por seu médico. Comentam que
a dissolução da transferência será o passo conclusivo para a “cura” dos sintomas,
sobre os quais praticamente nada é informado, exceto quando a paciente diz
que “acreditava em coisas de dentro da sua cabeça”.
Surge também a questão do que eles chamam de “contratransferência”
do Dr. Diver, seus sentimentos igualmente amorosos por Nicole. O “super-
visor” questiona o relacionamento da dupla além dos limites profissionais,
alegando que a “transferência” irá se dissolver quando a paciente estiver to-
talmente “curada”, trazendo enorme decepção para o relacionamento com o
ser humano comum Dick Diver. Ele deixará de ter a aura de médico salvador
que “curou” Nicole após internações – sem resultados – em outras clínicas e
com outros médicos.
O que nos chama atenção é que nunca será mencionada a postura ética
do profissional, ficando tudo restrito a aspectos “técnicos” e ao risco de futuros
problemas – mas apenas para a imagem do terapeuta, já que isto vai acontecer
quando a paciente já estiver “curada” e em decorrência de sua “cura”.
Claro que não se trata de cobrar do enredo que esteja totalmente de acor-
do com o que preconiza a ética psicanalítica: afinal, nos filmes – assim como
na ficção em geral – o artista criador quer construir um arco dramático que lhe
interessou desenvolver. Não estamos avaliando um caso clínico real que passou
por uma situação técnica questionável, sendo que a nosso ver atual, a questão
principal é ética.
Digo “atual” porque sabemos que essa história transcorre, grosso modo,
durante a mesma década (1910) em que situações similares surgiram na prática
dos primeiros psicanalistas seguidores de Freud. Ferenczi, por exemplo, apai-
xonou-se por uma paciente. E que era filha de sua amante, casada com outro
homem. O tratamento da jovem foi então interrompido, e a moça enviada a
Freud para analisar-se com ele – que, por sua vez, escreveu para a amante de
Ferenczi uma forte reprovação à conduta do colega: “Ele se voltou da mãe para
a filha, esperando que eu venha a considerar esta troca como auspiciosa.” (Freud
& Ferenczi, 1908-1911/1994, p. 375). E Ferenczi ficou ambivalente face às críti-
cas de Freud, pensando em romper com a amante para casar com a filha – que
agora não era mais sua paciente.
Em meio a este quadrilátero de afetos ambíguos (Martins, 2010) entre
um homem e duas mulheres (uma delas tendo sido sua paciente) e entre dois
psicanalistas, mestre e aluno (que por sua vez também foi paciente do mes-

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tre), Freud publica seus artigos sobre técnica psicanalítica, tendo escrito sobre
o “amor de transferência”:

É tão desastroso para a análise que o anseio da paciente por amor seja satisfeito,
quanto que seja suprimido. O caminho que o analista deve seguir não é nenhum
destes [...]. Ele tem de tomar cuidado para não se afastar do amor transferencial,
repeli-lo ou torná-lo desagradável para a paciente; mas deve, de modo igualmente
resoluto, recusar-lhe qualquer retribuição. (Freud, 1915/1996a, p. 183)

E, anos mais tarde, seria Ferenczi mesmo quem escreveria: “o analista, de quem
depende o destino de tantos seres, deve conhecer e controlar as fraquezas mais
escondidas de sua própria personalidade, o que é impossível sem uma análise
inteiramente terminada” (Ferenczi, 1927/1992, p. 24).
Retomando o enredo de “Suave é a Noite”, fica claro que o conhecimento
teórico do Dr. Diver sobre transferência e contratransferência não foi suficiente
para suprir a ausência de uma “análise inteiramente terminada” – ainda que
Freud vá escrever em 1937 que a análise de um psicanalista permanece mesmo
“interminável”.
Também não pode ser deixado de lado que o filme “Suave é a Noite” le-
vou às telas o enredo de um romance com fortes traços autobiográficos: F. Scott
Fitzgerald escreveu o livro ao longo do declínio da relação conjugal com sua
idealizada paixão de juventude, Zelda Sayre (nome de solteira). Ela viria a ser
diagnosticada como esquizofrênica durante a difícil e longa elaboração do livro
que começou em 1925, logo depois da obra-prima do autor, “O Grande Gatsby”.
Depois de abandonar uma trama que envolveria um matricídio por parte de
um homem jovem, Fitzgerald escolheu como foco central da história o casal
Dick e Nicole Diver, americanos ricos (com o dinheiro de família dela) vivendo
as delícias da “era do jazz” na Riviera Francesa entre 1919 e 1925, tal como os
Fitzgeralds viveram suas excentricidades em período semelhante.
Antes de prosseguir até 1930 – quando o casamento dos Divers se desfaz
– o romance vai ao passado (um flashback) para mostrar os antecedentes de
como se conheceram: Nicole, também diagnosticada como “esquizofrênica”, te-
ria sido acompanhada por Dick entre 1917 e 1919, ano em que surgem as antes
mencionadas conversas entre ele e outro psiquiatra mais velho.
O que Fitzgerald quis demonstrar foi a “gangorra” de uma relação con-
jugal: a decadência pessoal e profissional de Dick, inversamente proporcional
à recuperação psicológica de Nicole. Esta é a curva dramática nuclear da obra.

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Mesmo que Nicole sofra uma recaída em 1925, quando tentam abandonar a fu-
tilidade dos tempos na Riviera, ela continuará evoluindo – enquanto Dick não
consegue voltar a clinicar como antes, bebendo cada vez mais. Por fim, ela se
enamora de outro homem que a corteja há tempos e decide pelo divórcio, como
que elaborando – e abandonando – a transferência idealizada.
Certamente este enredo ficcional corresponde a fantasias do escritor so-
bre sua relação com a mulher, de fato esquizofrênica (ou seria “bipolar” segun-
do os relatos que temos de suas crises de insana euforia?) e que jamais chegaria
a uma cura definitiva. De qualquer modo, a decadência pessoal de Fitzgerald
(como a de Dick, pelo álcool) é bastante conhecida, propiciando sua morte pre-
coce em 1940 – quando deixou inacabado um romance que, pelo planejamento
e notas encontradas, talvez viesse a ser menos hesitante em sua elaboração do
que “Suave é a Noite”, que levou nove anos até ser publicado e após oito versões
terem sido abandonadas. Ao contrário da brevidade e concisão de “Gatsby”, o
longo romance que acabou sendo “Suave é a Noite” não atinge a mesma preci-
são psicológica dos personagens do livro anterior de Fitzgerald.
Também não pode ser deixada de lado a “causa” da doença mental de
Nicole, uma situação de incesto cometido pelo milionário pai. À parte qualquer
objeção psiquiátrica a esta ficcional etiologia como único fator determinan-
te para um caso de esquizofrenia, o que chama a atenção é a intuição “psica-
nalítica”, aí sim, acertada, do romancista sobre outro aspecto previsível para
o fracasso do casamento entre o psiquiatra/psicanalista e sua ex-paciente: na
relação transferencial que teria propiciado a cura, também se encontrava um
componente “incestuoso” – e que deixaria de ser apenas uma fantasia por parte
da paciente para se concretizar na vida sexual conjugal.
Cabe ainda assinalar que o título do romance vem sendo compreendido com
uma conotação totalmente divorciada do significado pretendido por Fitzgerald. Ele
usou como epígrafe alguns poucos versos da “Ode to a Nightingale”, de John Keats
(1795-1821), na qual lemos que a noite é linda e suave, porém, não há luz (“tender is
the night, But here there is no light”). Neste poema, Keats modificou o tom otimista
de outras obras, voltando-se ao tema da finitude – como podemos constatar tam-
bém em outros trechos na tradução de Augusto de Campos (s.d., s.p.):

[...] Fugir e dissolver-me, enfim, para esquecer


A febre, o desengano e a pena de viver
Aqui, onde os mortais lamentam os mortais;
Onde o tremor move os cabelos já sem cor

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E o jovem pálido e espectral se vê finar,


Onde pensar é já uma antevisão sombria
Da olhipesada dor,
Onde o Belo não pode erguer a luz do olhar
E o Amor estremecer por ele mais que um dia.
Adeus! Adeus! Eu sigo em breve a tua via,
Não em carro de Baco e guarda de leopardos,
Antes, nas asas invisíveis da Poesia,
Vencendo a hesitação da mente e os seus retardos;
Já estou contigo! Suave é a noite linda,
Logo a Rainha-Lua sobe ao trono e luz
Com a legião de suas Fadas estelares,
Mas aqui não há luz, [...]
Às escuras escuto; em mais de um dia adverso
Me enamorei, de meio-amor, da Morte calma,
Pedi-lhe docemente em meditado verso
Que dissolvesse no ar meu corpo e minha alma.
Agora, mais que nunca, é válido morrer,
Cessar, à meia-noite, sem nenhum ruído [...]

A “suavidade” da noite à qual o título do romance se refere é a de uma “noite”


eterna, um nirvana equacionado com a morte, uma dissolução do self na qual
o personagem do psiquiatra/psicanalista vai mergulhando ao longo do fracasso
de sua vida profissional, amorosa e conjugal após um breve período de suces-
sos. A tragédia de Fitzgerald recriada em ficção.

4. Freud, além da alma (Freud, the secret passion, título original),


dirigido por John Huston, lançado em 1962, a partir de roteiro
de Jean-Paul Sartre

O diretor americano John Huston (1906-1987) acalentava a ideia de levar às


telas uma biografia parcial de Freud desde 1939: o foco seria a época inicial da
descoberta da psicanálise. Em 1957, Huston procurou Jean-Paul Sartre (1905-
1980) para que o filósofo escrevesse um roteiro sobre o “jovem” Freud.
O que teriam em comum o cineasta, o filósofo e o psicanalista? Huston
era fanfarrão, mulherengo, beberrão e aventureiro. E esta autoimagem de aven-
tureiro em Huston já foi aproximada, em um trabalho de Peter Wollen (1999),

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de uma fantasia de Sartre, que dava livros de aventuras para Simone de Beau-
voir ler, dizendo que assim ela o conheceria melhor. Wollen também aproxima
estes dois “aventureiros” do “conquistador” – que era como Freud se via.
Em torno de um ano depois, Sartre entregou a Huston uma sinopse bem
detalhada que foi imediatamente aprovada. Em 1959, o roteiro de Sartre estava
pronto, mas com 500 páginas, o que renderia cinco horas de filme – algo invi-
ável para o cinema comercial de Hollywood. Em 1960, encontraram-se na casa
de Huston, na Irlanda, para resumir o texto – mas não se entenderam mais e
Sartre pediu para que seu nome não constasse dos créditos do filme depois que
leu o que foi bastante reformulado por roteiristas profissionais habituados a
escrever para filmes americanos.
Sartre estudou todos os primeiros trabalhos de Freud (e não só os pri-
meiros) assim como leu a biografia escrita por Ernest Jones. Quando tentou
resumir o roteiro original, acabou acrescentando mais cenas relativas a concei-
tos e aspectos biográficos que achou importantes. Embora, como lembra Eli-
sabeth Roudinesco (1990), ele tivesse uma filosofia da liberdade humana que
era contrária à sua leitura de Freud. Achava que Freud restringia o sujeito a um
determinismo psíquico, enquanto ele afirmava a plena liberdade do sujeito: não
podia concordar que o ser humano não fosse “senhor de sua própria casa”. O
inconsciente freudiano lhe parecia muito mecanicista e biológico e ele já havia
pretendido substituir este conceito pelo de “má fé”: situação na qual são combi-
nados, em um só ato, uma ideia e a negação desta ideia, fugindo-se à responsa-
bilidade das próprias ações e atitudes. O sujeito refugia-se numa máscara para
não assumir sua liberdade, procurando imaginar-se como é visto pelos outros
– e é apenas nesta circunstância que “o inferno são os outros”.
Os outros em relação aos quais o self deixa-se aprisionar, o que, para
Sartre, acaba sendo uma espécie de danação para a verdade e a liberdade indi-
viduais. É o que ele demonstra na sua peça de 1943, “Huis clos” (“Entre quatro
paredes”, título brasileiro) que se passa no inferno, mas um inferno que é uma
sala fechada na qual três pessoas que já morreram encontram-se sem saída
para exercer sua liberdade de ser. Passarão a eternidade aprisionados à imagem
que cada um dos outros dois têm de si, pois não podem mais exercer qualquer
mudança existencial. Se, durante a vida, construirmos nossa autoimagem de-
pendente do olhar alheio, estaremos existencialmente “mortos” no inferno de
negação das possibilidades de ser, vir-a-ser e devir.
Mas pode-se constatar que, na elaboração do seu roteiro, Sartre foi extre-
mamente respeitoso para com Freud e suas ideias, transmitindo vários conceitos

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freudianos (e mesmo de outras categorias da psicanálise depois de Freud, assim


como de compreensões da psiquiatria dinâmica influenciada pela psicanálise)
muito bem ilustrados nas situações ficcionais que desenvolveu. Vale destacarmos
algumas passagens, mesmo que a maioria não tenha sido aproveitada no filme
– que foi rodado, no final das contas, a partir de um roteiro muito reduzido em
relação ao que Sartre (1984) escrevera, ainda que fiel às suas linhas gerais.
Freud e Breuer discutem sobre uma paciente que está sendo tratada por
Breuer. Freud percebe que tanto a paciente parece enamorada de seu médico
como este estaria se deixando envolver pelo clima de enamoramento. Breuer
fala da “meiguice” da paciente, mas Freud já percebeu que ela se encontra con-
turbada por sentimentos ambivalentes em que o ódio não está ausente e radica-
liza: “Nada é meigo nela”. Breuer retruca: “Eu conheço sua ternura”. Freud escla-
rece: “É a sua própria ternura que você conhece. É a sua ternura que encontra
nela”. (Contratransferência. Projeção).
Fliess proibira Freud de fumar. Freud sente falta de seus charutos e Fliess diz
que não o está proibindo mais. Freud fica confuso e diz: “Eu sentia prazer em me
privar para lhe obedecer...” (Prazer do superego, ao qual nos submetemos por temor,
ou talvez, mais exatamente, ao Ideal do Ego, ao qual nos submetemos por amor).
A mãe da paciente com anos de paralisia histérica diz que “cuida” dela.
Freud denuncia: “A senhora cuida dela, mas não deseja vê-la curada: alimenta
a doença dela. Porque isso lhe permite dominá-la”. (Aqui, Sartre sugere a “dis-
tribuição de papéis” nas tramas familiares; o lucro com a doença... do outro).
Há um momento em que Freud tenta aproximar-se de seu pai sem tantas
reservas, mas o velho homem se mostra choroso e sentimental, quando Freud
esperava força e apoio. Uma decepção com o objeto designado para funcionar
com o que hoje se compreende como selfobjeto idealizado.
Em uma rubrica, Sartre diz que Freud está, naquele momento, “disposto a
tudo para provar a verdade de sua teoria” – que ainda é a “teoria da sedução” – que
vai ser reformulada mais adiante através da teoria da fantasia. (Claro alerta contra
o furor curandis e contra um excessivo privilégio da teoria sobre a clínica).
A paciente histérica diz: “Quando estou paralítica não há o menor proble-
ma: parece que meu corpo assume a responsabilidade por meus erros. Quando
posso usar meus membros, eu me corroo por dentro”. (Deslocamento dos afetos
intoleráveis para a Consciência, mas convertidos em sintomas físicos).
Sartre também amplia o conceito de repressão para o campo social: “Tal
como o indivíduo reprime verdades insuportáveis, a sociedade resiste: quer su-
primir o inoportuno que lhe descobre segredos”.

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Com conceitos mais popularizados, como o amor edípico, Sartre permi-


te-se escrever passagens de muito bom-humor. Quando Freud faz uma “visita
de médico” a seu pai e, depois que ele sai, apressado, a mãe comenta: “Parece
que ele não ama o pai”, ao que a mulher de Freud retruca: “Além da senhora, me
pergunto se ele ama mais alguém”.
Outro exemplo bem-humorado é o que ilustra ideias de Freud sobre reli-
gião e pensamento mágico. Freud cedera, tolerantemente, a um pedido supers-
ticioso da mulher de Breuer e este critica: “Você, um ateu, cedendo a supersti-
ções?”. Ao que Freud brinca: “Quando se é ateu, é indispensável ser supersticio-
so, pois senão, o que nos resta?”.
A transferência é exemplificada e discutida em várias passagens. Numa
delas, a mulher de Freud comenta irritada: “Transferência: bonita palavra. Ex-
plica tudo. Meu amor por você teria sido uma transferência?”. Freud responde:
“E por que não?”.
Encontramos ainda uma visão intersubjetivista mais sartreana do que
freudiana: “Não poderei conhecer meus pacientes enquanto não me conhecer,
nem me compreender enquanto não compreendê-los. Devo descobrir neles o
que eu sou, e em mim, o que eles são”.
Com tanta sintonia com o pensamento de Freud, onde ficou o conceito
de “má fé” sartreano? Sartre o aplicou aos “pais substitutos” que o jovem Freud
buscava: Meynert, Fliess, Breuer. Mas o que Sartre quis, coerentemente com as
teorias do próprio Freud, foi mostrá-lo enredado no complexo de Édipo. En-
tretanto, outro personagem mitológico também deve ter inspirado a imagem
que Sartre construiu para si mesmo de Freud. Lembremos a primeira peça de
Sartre, baseada no mito de Orestes, “As Moscas” (Gallego, 2004).
Roudinesco (1990) diz:

Sartre está consciente da extravagância de sua posição. Ele, que sempre negou a exis-
tência do inconsciente está frente ao inventor do conceito. A situação é sartreana
por excelência, já que ilustra à perfeição que descobrimos no outro e contra o outro
aquilo que é o nosso eu. O Freud de Sartre é o seu oposto: um pai de família que
vive de modo burguês e que não terá conhecido outra mulher além da esposa. [...]
sem sua castidade não teria teorizado a transferência nem compreenderia o enorme
poder da hipótese da sedução. Este foi o seu destino como sábio, o que Sartre admite.
Mesmo assim, precisa atribuir-lhe um caminho sartreano – como deixou claro ao
escrever: “Freud é um homem que se propõe compreender os outros porque esse lhe
parece o único meio de conhecer a si próprio; e dá-se conta de que deve conduzir

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ao mesmo tempo suas pesquisas sobre os outros e sobre si mesmo”. Conhecemo-nos


através dos outros, conhecemos os outros através de nós. [...] Não importa que o
Freud real não fosse “filosoficamente” sartreano; isto não impediu Sartre de cons-
truir um Freud perfeitamente freudiano. (s.p.)

Penso que Jean-Paul Sartre, ao compor um retrato ficcional de Sigmund Freud


nos primórdios da psicanálise, foi fiel ao ideal de seu próprio pensamento ex-
presso por meio de seus heróis existencialistas; e modelou seu “Freud” – cons-
ciente ou inconscientemente – a partir do “Orestes” de sua primeira peça, “As
moscas”. Curiosamente, ao se manter fiel aos seus ideais, acabou por construir
um Freud-personagem cuja essência e existência parecem mais coerentes com
a imagem que se tem hoje em dia do criador da psicanálise do que aquela das
hagiografias da época em que o roteiro de Sartre foi concebido. E, ao mesclar
ideias próprias com respeitosas recriações da trajetória intelectual de Freud, an-
tecipou a concepção intersubjetivista do processo analítico que naquela época
estaria – talvez – apenas embrionária no pensamento de Heinz Kohut e seria
desenvolvida de fato por outros de seus seguidores.
Em síntese, no filme – e, mais ainda no roteiro completo que não foi
filmado integralmente, mas publicado em 1984 por Pontalis numa coleção de
livros sobre a história da psicanálise, ainda que seja uma ficção –, Freud é um
descobridor/aventureiro no mundo das ideias e da psicologia humana. Age
com ética, é fiel aos seus princípios e enfrenta dificuldades enormes. Talvez,
na concepção de Sartre, quase como o herói Orestes que desafiou as Erínias ao
cumprir os designíos de Apolo. As “erínias” seriam tanto a neuropsiquiatria da
época como a hipocrisia da sociedade que rejeitaram Freud; Apolo seria a ver-
dade de suas descobertas – às quais Freud, como personagem sartreano ideal,
não podia se furtar.

4.1 Freud em alguns outros filmes

O criador da psicanálise foi retratado em outros filmes de ficção baseados em


eventos reais, sendo um deles feito para a TV francesa em dois episódios, totali-
zando cento e noventa minutos de duração: “Princesse Marie”, dirigido por Be-
noît Jacquot (2004), teria sido um projeto da atriz Catherine Deneuve, retratan-
do com bastante fidelidade aspectos da vida de Marie Bonaparte (1882-1962),
princesa da Grécia, paciente de Freud, psicanalista que foi uma das fundadoras
da Sociedade Psicanalítica de Paris. O filme, além de abordar as dificuldades se-

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xuais de Marie, trata especialmente do resgate de Freud e sua família das garras
do nazismo, pago em grande parte com dinheiro da princesa. Heinz Bennett
(1921-2011), ator alemão que também esteve em filmes de Ingmar Bergman
(“O ovo da serpente”) e de François Truffaut (“O último metrô”) faz o papel de
Freud, enquanto sua filha, a atriz Anne Bennet, faz a filha de Freud, Anna.
Em “Um método perigoso” (A dangerous method), de David Cronenberg
(2011), Freud ficou a cargo do ator Viggo Mortensen, enquanto Michael Fass-
bender interpretou Jung e Keyra Knightley ficou com o papel de Sabina Spiel-
rein, paciente de Jung com a qual ele teve envolvimento sexual, na verdade o
tema central do filme.
O roteiro é bastante satisfatório em relação à história da psicanálise e às
teorias seminais de Freud. O encantamento inicialmente mútuo entre Freud
e Jung e a ruptura posterior, após poucos anos, se deu, em maior parte, por
divergências teóricas; mas outro possível motivo para o afastamento só ficou
mais conhecido em 1980, quando Aldo Carotenutto, um analista junguiano,
publicou a correspondência entre Sabine, Jung e Freud no livro Diário de uma
secreta simetria – Sabine Spielrein entre Jung e Freud. Muito do que se escuta no
filme é transcrição direta de trechos das cartas entre os três.
O filme retrata a violência psicológica do abuso de uma analisanda por
parte de seu analista despreparado para lidar com as manifestações de inves-
timento amoroso transferencial. É bastante interessante observar a dificuldade
de Jung para com a ênfase de Freud na libido, sendo que Jung não pôde – e mais
de uma vez – deixar de ser “libidinoso” com pacientes. Mas se Jung fica mal na
foto, os letreiros finais o colocam como “o” (ou “um”) grande psicólogo do sé-
culo XX – sobre o que há muitas discordâncias, aliás expostas no filme por sua
evidente tendência ao misticismo e ao ocultismo, em contraposição à tentativa
mais rigorosa (cientificizante) de Freud e dos que desenvolveram suas ideias
em formulações de fato “psicanalíticas” – terreno do qual Jung e sua “psicologia
analítica” se afastou.

5. O psicanalista colocado em questão (vários filmes)

5.1 O cinema tanto pode refletir o imaginário popular como contribuir para
a sua formatação. Se observarmos alguns filmes da virada do século XX para
nossos dias veremos que o psicanalista “heroico” de “Segredos de uma alma” até
“Equus” foi posto em questão. Apesar de artisticamente medíocres, produções
como “Desejos” (Final analysis, 1992), “Gemidos de prazer” (Whispers in the

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dark, 1992) – no qual o ator Alan Alda faz o papel de um supervisor que come-
te crimes – e “No limite do silêncio” (The unsaid, 2001) mostram o psicanalis-
ta como, no mínimo, incompetente. Em “Desejos”, por exemplo, uma paciente
(Uma Thurman) e a irmã (Kim Bassinger) – com a qual o analista se envolve
– combinam que a falsa analisanda vai contar, numa sessão, um sonho copiado
de “A Interpretação dos Sonhos”. O psicanalista (Richard Gere) não reconhece
que o material onírico faz parte da obra freudiana e desenvolve uma compre-
ensão equivocada. Por trás disso, um enredo complicado de crime cheio de
reviravoltas inverossímeis.
E tudo fica bem mais demeritório em “Gemidos de prazer”: o supervisor
de uma jovem analista – que atende alguns casos de graves perversões sexuais,
alguns deles também apresentando fortes impulsos homicidas – no intuito de
protegê-la (?!) sai matando os pacientes dos quais a jovem analista não conse-
gue dar conta.
Tão ou mais maledicente é “No limite do silêncio”, em que há insinua-
ção de que o psicanalista (interpretado pelo ator Andy Garcia) teve parcela de
responsabilidade no suicídio de seu filho: ele havia encaminhado o adolescente
que estava com um quadro de depressão para um colega – em vez de enca-
minhá-lo para acompanhamento psiquiátrico e uso de medicamentos antide-
pressivos. O jovem acabou por matar-se. Sua situação havia se agravado ainda
mais depois que sofreu abuso sexual cometido pelo psicanalista que havia sido
indicado por seu pai...
Apesar de se apresentarem como “dramas”, nenhum destes produtos me-
rece ser levado a sério, mas tinham atores que atraíam o púbico, independente-
mente da recepção desfavorável por parte da crítica especializada.
Embora em outro patamar de qualidade cinematográfica, “O quarto do
filho” (La stanza del figlio), de Nanni Moretti, também de 2001, questiona a ca-
pacidade do psicanalista lidar com as emoções alheias quando sua própria vida
emocional sofre um abalo tão intenso como o da perda de um filho.

5.2 Em tom de comédia, “O amor tem seu preço” (Lovesick, 1983), de Marshall
Brickman, corroteirista de alguns importantes filmes de Woody Allen (“Noivo
neurótico, noiva nervosa” e “Manhattan”, por exemplo), encena o aparecimen-
to fantástico do próprio Sigmund Freud (interpretado por Alec Guiness) para
um psicanalista contemporâneo (Dudley Moore). A aparição refuta algumas de
suas teorias, além de questionar o trabalho analítico do colega nos anos 1980. O
analista com quem o personagem de Dudley Moore faz análise dorme durante

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as sessões do colega mais jovem. O papel é defendido pelo diretor e ator John
Huston – que, vinte e um anos antes, conseguiu realizar seu ambicionado pro-
jeto sobre Freud já comentado anteriormente.
Com raras exceções, a crítica cinematográfica recebeu o filme muito mal,
demonstrando enorme decepção, especialmente pelo fato deste diretor bissexto
ter colaborado em enredos de filmes tão marcantes dirigidos por Woody Allen.
As piadas com analistas em filmes de Allen não costumam ter o tom agressivo
de uma frase atribuída à aparição de Freud neste filme, quando ele diz que sua
criação da psicanálise foi “uma experiência que nunca deveria ter se transfor-
mado numa indústria”. De qualquer modo, Elisabeth Roudinesco já apontou
muitas vezes (e não raramente com palavras muito duras) que o uso indiscri-
minado do “tempo lógico” em sessões extremamente curtas foi algo que propi-
ciou forte descrédito para a imagem pública dos psicanalistas. Apenas uma das
tantas vezes em que ela discutiu o assunto pode ser encontrada em entrevista à
Revista Prosa Verso e Arte (s.d.).

5.3 Claramente inspirado na trágica história da psicanalista Hermine Hug-


-Hellmuth (1871-1924), “Genealogias de um crime” (Généalogies d’un crime,
1997), dirigido pelo cineasta chileno de longa carreira na França, Raúl [às vezes
assinando como Raoul] Ruiz, usa de nonsense e humor negro para debochar até
mesmo de uma tal “Franco-Belgian Psychoanalytic Society”. A história se passa
em dias atuais, envolvendo o assassinato de uma analista pelo sobrinho de vinte
anos, sobrinho que ela mesma teria analisado por haver diagnosticado nele um
potencial homicida desde a infância. Ela tinha razão? Ou ele acabou por dar
razão a ela, incorporando a imagem que ela construiu sobre ele quando ainda
era uma criança? Ele culpa a tal sociedade à qual a tia pertencia.
Hug-Hellmuth é considerada a primeira analista de crianças, foi louva-
da pelo próprio Freud e, de algum modo, teria influenciado tanto Anna Freud
como Melanie Klein ao usar brinquedos e desenhos nas sessões de pequenos
pacientes. Em 1913, ela publicou “Aus dem seelenleben des kindes”, traduzido
em inglês como “On the spiritual and mental life of the child”, baseado em suas
observações sobre o sobrinho “Rolf ”, filho “ilegítimo” de uma meia-irmã. Com
a morte desta, em 1915, o garoto de nove anos teve outros cuidadores, pois sua
mãe não queria que ele fosse criado por Hermine – embora tenha vivido com
a tia por algum tempo.
Rolf cresceu sem gostar dela, dizia que ela só o via como um animalzinho
de laboratório para experiências. Aos 16 anos, foi internado em uma instituição

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para jovens delinquentes – de onde saiu em 1924, passando a pedir dinheiro


à tia, e cada vez mais. Acabou por enforcá-la neste mesmo ano durante uma
tentativa de roubo, sendo condenado a 12 anos de prisão. Em 1930, recebeu
liberdade condicional e passou a exigir dinheiro da Sociedade Psicanalítica de
Viena, alegando que sua vida havia sido arruinada pelos experimentos psica-
nalíticos de sua tia.
O roteiro do filme problematiza os fatos, dando à atriz Catherine Deneu-
ve dois papéis: o da psicanalista assassinada e o de uma advogada que defende
o rapaz que matou a tia. Com isso, a paráfrase da história real, francamente
decalcada numa das linhas do roteiro, fica envolvida por uma espécie de jogo de
espelhos entre duas situações nem sempre análogas e cada vez mais confusas,
desperdiçando uma abordagem mais responsável sobre a tragédia realmente
acontecida em recriação ficcional.

5.4 Em “Confidências muito íntimas” (Confidences trop intimes), de Patrice Le-


conte (2004), o psicanalista acaba, de certa forma, sendo até mesmo dispensado:
uma mulher (Sandrine Bonnaire), que havia marcado uma primeira consulta
por telefone, equivoca-se e entra no escritório de um profissional de contabi-
lidade (Fabrice Luchini). Senta-se e começa a falar de sua vida sem parar para
respirar. O contador fica atônito e, quando ela resolve sair, diz que voltará no
mesmo dia da semana seguinte e mesma hora. Ele se dá conta de que no final
do corredor daquele mesmo andar trabalha um psicanalista. Fica claro que a
mulher havia agendado o encontro inicial com este profissional, mas não havia
comparecido – pois errara de porta e passou a confidenciar coisas de sua vida
íntima para o tributarista.
O psicanalista, de fato, é uma figura um tanto “blasé” e não está con-
seguindo ajudar um homem claustrofóbico que prefere subir seis lances de
escadas até o andar do terapeuta em vez de usar o elevador, porque entra em
pânico. Já a mulher que se equivocara de porta está elaborando alguns aspec-
tos de sua vida nas conversas com o contador – e ainda tenta ajudar o homem
fóbico a subir no elevador com ela – enquanto o psicanalista teria dito ao seu
paciente que ele ainda não estava preparado para tanto (segundo o fóbico
conta para a mulher).
Há outras ironias em relação a este psicanalista, que não chega a ser tosco
como os de outros filmes mencionados acima; pelo contrário, aparece como um
sujeito cordato, receptivo, refinado, inteligente e que diz coisas interessantes: até
mesmo ajuda o contador a lidar com a situação bizarra em que se colocou ao

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manter as “sessões” com a mulher que se equivocara de porta – cobrando 120


euros por cada conversa com o outro, como se fosse uma supervisão.
Num breve diálogo entre a mulher e o paciente do verdadeiro psicanalis-
ta, ela pergunta como o rapaz vê o seu tratamento. O fóbico diz que “é como ir
ao dentista: dói mais depois”. Será esta a visão que as pessoas temem encontrar
se entrarem em análise? Mais dor e sofrimento durante o processo analítico?
Num clima simpático de comédia romântica, o contador e a mulher
evoluem no sentido de se libertarem de esquemas rígidos estabelecidos até
então em suas vidas. O filme é refinado, graças aos diálogos espertos e à du-
pla de ótimos intérpretes – enquanto o psicanalista verdadeiro fica como su-
pérfluo, dispensável. É como se a “transferência” pudesse ser resolutiva em si
mesma, ainda que não seja trabalhada/compreendida num setting adequado
por um analista treinado que saiba como lidar com as transferências de acor-
do com as teorias e técnicas psicanalíticas propriamente ditas... Uma “bouta-
de” à francesa, aludindo – de certa forma – ao que Freud dizia sobre o objeto
ser variável para a pulsão?

6. Um enigma no divã (Mortel transfert, título original), dirigido


por Jean-Jacques Beineix, lançado em 2001

Ainda que originado de um livro (“Transferência mortal”, do escritor Jean-Pier-


re Gattégno), este filme pode servir como mais um exemplo da mudança pela
qual a imagem cinematográfica do psicanalista vem passando. Mesmo avan-
çando no terreno do nonsense e do humor, cabe lembrar que Freud também
demonstrou que piadas podem revelar bem mais do que sorrisos. Pode ser bem
divertido ver o analista (o ator Jean-Huges Anglade em chave de interpretação
algo apalermada) tentando esconder um corpo sob o divã – onde, antes, o ci-
nema tentava esclarecer crimes. Como se aliar à Lei se (tal como Gregory Peck
no antigo filme de Hitchcock) Anglade teme que ele mesmo, fora de si, tenha
cometido o assassinato de uma paciente?!
Nem sempre os psicanalistas recebem com bom humor as inúmeras pia-
das que são feitas com sua atividade profissional que, afinal das contas, é para
ser uma coisa muito séria mesmo. Talvez valorizemos mais aquilo que existe
de grave, e muito além do riso que as piadas provocam (e sugerem). Por isso
mesmo seria o caso de se pensar os motivos pelos quais a imagem do analista e
da psicanálise nos filmes vem se modificando tanto ao longo dos anos. No caso
de Édipo, já lembramos antes, o detetive era o culpado.

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Depois dos anos de aparente bonança, a psicanálise na mídia ficcional


vem colhendo tempestades. E a atual idolatria que vigora nos corações e mentes
ocidentais é dirigida aos psicofármacos e a outras formas de terapias (como tal-
vez seja a atitude da moça no filme lembrado acima ao obrigar o fóbico a entrar
no elevador com o apoio da companhia dela).
Se a psicanálise frustrou as expectativas que lhe foram atribuídas duran-
te anos de exagerada idealização pelo American way of life, foi porque nunca
levaram a sério os chistes de Freud quando de sua visita aos Estados Unidos.
Para ele, aquele país era um magnífico equívoco. Magnífico, mas sem deixar de
ser um equívoco; e não entendia como pareciam receber tão bem suas ideias.
Dizem que, para Freud, a psicanálise – tal como ele a concebia – era equivalente
a uma “peste” para o imaginário puritano daquele império que insiste em se
ver como “do bem”, esquecendo, entretanto, que até mesmo num detetive pode
habitar um assassino.
“Um enigma no divã” era bem mais divertido e interessante no livro
“Transferência mortal”, onde o nonsense era, curiosamente, bem mais, digamos,
verossímil. Ao filme faltou um clima oniroide eficiente: a vivência de pesadelo
cômico surge empalidecida e artificiosa na tela (não fosse Beineix o diretor
apenas cosmético que é). E, a rigor, repetem-se os mesmos elementos de outros
filmes mais antigos: como no de Pabst, fantasia-se sobre crimes; como no de
Hitchcock, houve um crime, há um personagem que suspeita de si próprio e um
supervisor. Se, antes, o analista supervisor no filme de Hitchccock mimetizava
Freud, agora (e por sua origem francesa), o que se vê é uma caricatura de Lacan.
Só que no filme de Hitchcock, o supervisor funcionava apenas como detetive e
pretendendo fazer algo bom...
Além da desidealização (no caso dos filmes, melhor seria dizer “desido-
latrização”) da psicanálise, o que mais ocorre na contemporaneidade que faz
com que uma atividade que deve envolver extrema consideração para com os
afetos e para com o sofrimento psíquico esteja sendo retratada de modo tão
ambivalente? A delicadeza, a intimidade, os afetos, estarão – em geral – tão
menosprezados?

Referências

Carotenutto, A. (1984). Diário de uma secreta simetria – Sabine Spielrein entre Jung e Freud. Rio
de Janeiro: Paz e Terra.

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Ferenczi, S. (1992). O problema do fim de análise. In S. Ferenczi, Obras completas: psicanálise IV


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Freud, S. (1996a). Observações sobre o amor transferencial. In S. Freud, O caso Schreber, artigos
sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913)(Edição standard brasileira das obras psicoló-
gicas completas de Sigmund Freud, vol. XII, pp. 175-190). Rio de Janeiro: Imago. (Original
publicado em 1915).
Freud, S. (1996b). Análise terminável e interminável. In S. Freud, Moisés e o monoteísmo, esboço
de psicanálise e outros trabalhos (1937-1939)(Edição standard brasileira das obras psi-
cológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXIII, pp. 225-270). Rio de Janeiro: Imago.
(Original publicado em 1937).
Freud, S. & Ferenczi, S. (1994). Correspondência. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado entre
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Gallego, L. F. (2004). Édipo e Orestes: o jovem Freud segundo Sartre. Trieb, 3(1-2).
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analítico. aSEPHallus, 5(10). Recuperado de http://www.isepol.com/asephallus/nume-
ro_10/artigo_07_revista10.html
Pontalis, J.-B. (1984). Prefácio. In J.-P. Sartre, Freud, além da alma: roteiro para um filme (pp. 9-26).
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Roudinesco, E. (1990). Sartre, lecteur de Freud. Les temps modernes, 531-533 : 589-613.
Sartre, J.-P. (1984). Freud, além da alma: roteiro para um filme. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Recebido: 09/09/2022
Aceito: 31/10/2022

Luiz Fernando Gallego


luizgallego@gmail.com

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