Desver o Mundo Perturbar Os Sentidos-Repositorio
Desver o Mundo Perturbar Os Sentidos-Repositorio
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O MUNDO,
PERTURBAR
OS SENTIDOS
CAMINHOS NA LUTA PELA
DESMEDICALIZAÇÃO DA VIDA
Vice-reitor
Paulo Cesar Miguez de Oliveira
Diretora
Flávia Goulart Mota Garcia Rosa
Conselho Editorial
patrocínio:
DESVER
O MUNDO,
PERTURBAR
OS SENTIDOS
CAMINHOS NA LUTA PELA
DESMEDICALIZAÇÃO DA VIDA
Salvador
Edufba
2021
ISBN: 978-65-5630-241-6
CDU: 615.2:304.9
Editora afiliada à
Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo, s/n – Campus de Ondina
40170-115 – Salvador – Bahia
Tel.: +55 71 3283-6164
www.edufba.ufba.br / edufba@ufba.br
9 Prefácio
Aline Lima da Silveira Lage e Lucia Masini
11 Apresentação
Elaine Cristina de Oliveira, Lygia de Sousa Viégas e Hélio Messeder Neto
https://youtu.be/yx4qjXcHy3s
11
Apresentação 13
Apresentação 15
Apresentação 17
Apresentação 19
Apresentação 21
DESVER O MUNDO
ABORDAGENS CRÍTICAS DA INFÂNCIA
1 Esta palestra foi proferida pelo prof. Alain Goussot no dia 3 de setembro de 2015, na ocasião do
IV Seminário Internacional “A Educação Medicalizada: desver o mundo, perturbar os sentidos”.
No dia 26 de março de 2016, recebemos com muita tristeza a notícia de seu falecimento. Agra-
decemos a colaboração de Sabrina Gasparetti Braga, que foi aluna de doutorado da Universi-
dade de São Paulo, orientada pela profa. dra. Marilene Proença Rebello de Souza e coorientada
pelo prof. dr. Alain Goussot, pela tradução da palestra.
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26 Alain Goussot
28 Alain Goussot
30 Alain Goussot
32 Alain Goussot
Obrigado.
1
Dar a todos a consciência de que a ciência não é contrária à liber-
dade, dar a oportunidade a todos de compreender a natureza da
percepção científica, parece ser o único meio de tornar a ciência
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Faz tempo que Alain Touraine advertia para que o principal slogan dos
tecnocratas que hoje lideram as sociedades é: adaptai-vos.3 A patologização
dos comportamentos e a medicalização e psicologização da educação escolar
é estratégica a essa adaptação incondicional. Ao longo de seu percurso histó-
rico, a sujeição da pedagogia às ciências experimentais, facilitou e fortaleceu
esta estratégia.
Ora, precisamente pelo crescimento do poder exponencial das ciências e
das técnicas e da gravidade dos desafios do futuro, mais do que nunca tem-se
necessidade de homens e de mulheres adaptados a nossas sociedades, mas
não à custa da subversão domesticadora do desenvolvimento da criatividade
e do pensamento crítico. Ao contrário, é necessário que adultos e crianças se
desenvolvam num quadro de crescente autonomia, na procura de sentido de
suas próprias vidas e do que com elas fazer.
Como lembra João Caraça (um cientista das “ciências duras”), é o den-
so mundo das emoções que nos confronta com a necessidade absoluta de se
encontrar um sentido para a vida, sem o qual nos comportamos de maneira
paradoxal e não funcionamos. Neste tempo da tecnociência e da internet, do
mercado e do espetáculo, o que conta no fundo, tão no fundo que nem parece
importante, são os afetos. São as emoções, os sentimentos, as paixões, pol-
vilhados por uns tímidos discursos e exercícios da razão que, na realidade,
conduzem o mundo. No conjunto dos significados que constituem nosso co-
nhecimento da realidade, os ligados aos afetos são dominantes. Este aspecto
é central na moderna teoria do conhecimento. (CARAÇA, 2003)
É minando a impossível objetividade das chamadas “ciências fundamen-
tais”, e da psicologia experimental, que a pedagogia experimental encontrou
uma fundamentação médica e tentou fazê-lo num impressivo esforço de ana-
logia conceptual e do discurso correspondente. É que o poder envolvido na
linguagem pericial não é aqui de pouca monta. Uma reflexão epistemológica,
com a psicologia escolar por objeto, levanta de imediato a questão do poder
2
A atração da escola pelo discurso médico e psicológico subsiste e se in-
tensifica. Os valores que se vão introduzir são os das diferenças de competên-
cias, diferenças de velocidade nas aprendizagens, distúrbios da personalidade
e da atenção, os abençoados dis (dislexia, disgrafia, disortografia, discalculia,
descartada a reflexão da dispedagogia que lhes corresponde) e a avassaladora
hiperatividade.
4 “Une médecine préventive qui permettrait de prendre en charge, de manière précoce et adaptée,
des enfants manifestant une souffrance psychique ne doit pas être confondue avec une médecine
prédictive qui emprisonnerait, paradoxalement, ces enfants dans un destin qui, pour la plupart
d’entre eux, n’aurait pas été le leur si on ne les avait pas dépistés. Le danger est en effet d’émettre
une prophétie autoréalisatrice, c’est-à-dire de faire advenir ce que l’on a prédit du seul fait qu’on
l’a prédit”.
4
Daí que me ocorra a clarividente interpelação de Pierre Bourdieu aos in-
telectuais, sobre seu papel no racismo da inteligência. Para procurar contornar
a complexidade do conceito que, por razões óbvias, se pretende aqui apenas
aflorar, opto por seguir de perto a atualidade de a reflexão de Bourdieu em
Questions de sociologie (1984, p. 260), trazendo ao debate o que, seletivamen-
te, mais diretamente se lhe ajuste. Reconhecida a condição plural do racismo,
o racismo da inteligência é uma forma das mais sutis, das mais difíceis de se
reconhecer, por isso, é mais difícil de ser denunciada. Como esclarece o autor,
o racismo de inteligência é próprio das classes dominantes, cuja reprodução
Zoia Prestes
Este texto tem como objetivo apresentar algumas reflexões que ajudem
a pensar processos educacionais em que estamos envolvidos na sociedade
contemporânea. Indicar rupturas possíveis com a lógica medicalizante no in-
terior da educação, sem dúvida, é um desafio e, como estudiosa da teoria his-
tórico-cultural, me proponho a pensar sobre as possíveis contribuições ou
problematizações que a referida teoria pode trazer para o tema central desse
debate. Por isso, considerando o que estamos vivenciando no campo da edu-
cação atualmente em termos de medicalização, formulei a seguinte questão:
em que os estudos da teoria histórico-cultural podem nos ajudar a enfren-
tar esta avalanche de medicalização? Quais são as possibilidades para resistir
ao que, aos olhos de uma pessoa desavisada (ou até mesmo avisada!), parece
apenas uma pílula com a solução mágica?
Impossível abordar o tema proposto sem refletir a respeito da sociedade
em que vivemos. Pode até parecer contraditório, porém, a sociedade brasilei-
ra está cada vez menos tolerante com a diversidade, e isso tem acontecido em
tempos de discussões sobre criminalização da homofobia, descriminaliza-
ção de drogas, redução de maioridade penal, mobilidade social com progra-
mas voltados para pessoas pobres, estabelecimento de sistema de cotas para
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Na sequência, afirma:
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Referências
VIGOTSKI, Lev Semionovitch et al. Fachizm v psiconevrologuii. Moskva-
Leningrad: Gosudarstvennois izdatelstvo biologuitcheskoi i meditsinskoi
literaturi, 1934.
VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003.
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Sandra Caponi
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O que Berlinguer enuncia aqui não é outra coisa que a fragilidade de uma
definição infinitamente elástica, capaz de transformar problemas cotidianos
em diagnósticos médicos. Desse modo, a definição da OMS contribui para
reduzir um imenso conjunto de problemas sociais, conflitos cotidianos e so-
frimentos que fazem parte de nosso do dia a dia, em objeto de intervenção
médica. Um processo que conhecemos com o nome de medicalização da vida,
ou medicalização dos problemas cotidianos. Essa definição colaborou também
para legitimar a intervenção médica em comportamentos comuns na infân-
cia, possibilitando a medicalização psiquiátrica de crianças e adolescentes.
Assim, quando, em 1994, a partir da definição da OMS, Berlinguer afir-
ma que “cada conflito e cada distorção nas relações entre os homens se trans-
forma em pretexto para curas médicas” (p. 16), parece estar falando do DSM
muito antes de que exista a ampla aceitação desse Manual de Diagnóstico e
Estatística de Transtornos Mentais, que hoje se transformou em referência
hegemônica e obrigatória no mundo inteiro, não só no campo da psiquiatria,
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Humor raivoso/irritável:
Comportamento questionador/desafiante:
Índole vingativa:
8. Foi malvado ou vingativo pelo menos duas vezes nos últimos seis meses.
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Parece inevitável apontar a utilidade dessa análise para realizar uma crí-
tica ao modo como o DSM propõe estabelecer os diagnósticos. Isto é, uma
crítica às estratégias que se limitam a contar sintomas e estabelecer sua fre-
quência de aparição, com o único objetivo de identificar supostos desvios em
relação a uma frequência, que deve ser considerada normal, de aparição de
comportamentos comuns no dia a dia, tais como perder a calma, ou incomo-
dar-se com os outros.
Vemos que, desconsiderando essas dificuldades, o DSM-5 acrescenta
que para identificação do diagnóstico que “outros fatores devem ser consi-
derados, tais como se a frequência e a intensidade dos comportamentos es-
tão fora de uma faixa normativa para o nível de desenvolvimento, o gênero e
a cultura do indivíduo”. (APA, 2013, p. 463) Trata-se de contar a frequência
de aparição dos sintomas, de calcular o desvio que a criança apresenta em
relação à média ou padrão da mesma idade, uma tarefa que, muitas vezes, o
psiquiatra solicita que a própria criança realize, autoavaliando seus compor-
tamentos em relação aos comportamentos típicos dos meninos de sua turma.
É aqui que aparece de modo evidente a estratégia securitária de detecção
e antecipação de riscos (CASTIEL; DIAZ, 2007), que caracteriza o processo
de medicalização da infância, pois, se os impulsos agressivos antes tolerados
e se as condutas indesejadas que faziam parte do universo infantil ingressa-
ram ao campo da psiquiatria, isso ocorreu porque esses comportamentos fo-
ram descritos como indicadores de risco para doenças mentais graves na vida
adulta. De fato, o que possibilita a aceitação social do crescente processo de
psiquiatrização da infância não é outra coisa que a esperança, certamente in-
fundada, de antecipar riscos futuros. Tais riscos são apresentados como ver-
dadeira ameaça social: desde a esquizofrenia até o homicídio ou o suicídio,
passando pelo fracasso laboral ou sentimental na vida adulta.
Dir-se-á que o grupo denominado “transtornos de conduta e impulso”,
grupo no qual está inserido o TOD, permite diferenciar os transtornos in-
telectuais e do desenvolvimento, dos transtornos de comportamento, po-
rém, ainda que no DSM-5, os transtornos intelectuais e os transtornos de
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Referências
AMARANTE, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz,
2007.
AMARANTE, Paulo. Saúde mental, formação e crítica. Rio de Janeiro: Laps, 2008.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION [APA]. Diagnostic and statistical
manual of mental disorders. 3. ed. Arlington: American Psychiatric Association,
1980.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION [APA]. Diagnostic and statistical
manual of mental disorders. 4. ed. Arlington: American Psychiatric Association,
1994.
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Introdução
Desde os anos 1980, a chegada de uma nova edição das classificações
de transtornos mentais tem agitado o campo “psi”, provocando reações que
vão da adesão entusiasmada e acrítica até a contestação e recusa de suas ca-
tegorias diagnósticas. Não diferente é o que vem ocorrendo desde a publica-
ção da 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM-5), em 2013, e da 11ª edição da Classificação Internacional de Doenças
(CID 11), em 2018.1 Este artigo visa investigar as noções de normal e pato-
lógico que estão explícita ou implicitamente presentes nessas classificações,
tomando como objetos alguns dos diagnósticos psiquiátricos nelas incluídos,
e colocando em questão a própria noção de (psico)patologia na infância e
adolescência.
1 A previsão é que a CID 11 passe a ser usada como sistema classificatório oficial pelos países-
membros da OMS a partir de 2022. (WHO, 2018)
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Desta forma, nos primeiros anos de vida, quando ainda não construiu
um mundo interno totalmente autônomo nem está segura em relação a seu
ambiente, é comum que a criança demonstre ansiedade frente a estranhos e
choro ao se afastar das figuras familiares de referência. No período pré-esco-
lar, o que normalmente predomina são medos específicos, como de animais
e de escuro, podendo também haver rituais na hora de dormir. À medida que
a criança cresce e passa a apresentar maior desenvolvimento da vida mental
e da vida de relação, aparecem medos de fracasso, críticas ou violência, além
de medos imaginários como de fenômenos sobrenaturais. Na adolescência,
4 A tese foi publicada em 1943 com o título de Essai sur quelques problèmes concernant le normal
et le pathologique. Em 1966, foi reeditada com o título de O normal e o patológico, acrescida de
Novas reflexões referentes ao normal e ao patológico.
Caso alguém se depare com uma criança que preencha muitos dos quesi-
tos acima, deveria encaminhá-la – urgentemente! – para atendimento clínico,
5 Neurodiversidade é um termo criado em 1999 por Judy Singer, portadora da Síndrome de As-
perger, com influência do feminismo, internet e movimento de direitos dos deficientes (espe-
cialmente dos surdos). O termo se refere a uma conexão neurológica atípica ou neurodiver-
gente, deslocando o autismo do campo da patologia ou déficit para o registro da diferença.
(ALLRED, 2009; ORTEGA, 2008)
6 Não podemos deixar de apontar que, em nosso meio, Cavalcanti e Rocha (2001) fizeram críti-
cas às “metáforas negativas” usadas por psiquiatras e psicanalistas para descrever o autismo,
como “fortaleza-vazia”, “tomada desligada”, “ovo”, “concha”, “carapaça” ou “folha de papel”.
Para concluir
Este texto abordou as categorias psiquiátricas ligadas à infância e adoles-
cência nas classificações contemporâneas, com o duplo objetivo de apontar
de que modo o par normal/anormal se faz presente em seus critérios diag-
nósticos, e que ideais de normalidade se revelam quando invertemos o sinal
da psicopatologia (de negativo para positivo, ou vice-versa), gerando a Sín-
drome da Criança Normal.
Dos transtornos de conduta e TOD até os transtornos de ansiedade e o
TEA, pudemos mostrar que o tema do normal e o patológico raramente é
abordado de modo explícito ou elaborado nas páginas do DSM ou na CID,
mas seus rastros sempre podem ser identificados. A partir do TDAH, perce-
bemos como a noção de normatividade introduz uma nova dimensão nesse
debate, para além da normalidade tomada como média ou ideal, situando o
patológico não como variação quantitativa do normal, mas como alteração
qualitativa no percurso da vida daquele sujeito – em nosso caso, da criança e
seus cuidadores –, tomado sempre em sua relação com o ambiente natural e
cultural.
Além disso, observamos como o radical neuro se universaliza, designan-
do tanto um amplo grupo de transtornos iniciados na infância (os transtor-
nos do neurodesenvolvimento) quanto as identidades de indivíduos que se
identificam como “neurodiversos”. Mesmo os não autistas são apresenta-
dos como “neurotípícos”. Isso mostra o quanto as neurociências se torna-
ram fonte de legitimação para gregos e troianos, ou seja, tanto para aqueles
que aderem às categorias psiquiátricas quanto para os que as questionam ou
subvertem. O cérebro parece ter se tornado o locus definitivo e definidor da
subjetividade na cultura atual.7 Frente a esse fenômeno, a própria noção de
7 Para uma visão mais abrangente desse tema, remetemos os leitores a Vidal e Ortega, Being
brains: making the cerebral subject. New York: Fordham University Press, 2017, que em breve
contará com versão em português.
PERTURBAR OS SENTIDOS
ROMPENDO PRÁTICAS MEDICALIZANTES
103
1 Optamos por escrever em itálico as expressões ver-se em cena e nos ver em cena como forma
de acentuar a presença do que tomamos como objeto neste texto.
2 A pesquisa com apoio da FAPESP (2018-26101-1) intitulada Uso da escrita de narrativas como
estratégia de formação na interface entre psicologia e educação, subsidiou essas discussões.
3 No ano de 2017, foi publicado um livro em homenagem aos 40 anos do Serviço de Psicologia
Escolar (com acesso aberto, público e gratuito), em que são apresentados textos que reto-
mam conceitos, percursos e produções do Serviço de Psicologia Escolar. O livro foi organizado
pelas participantes do Serviço de Psicologia Escolar na época: Adriana Marcondes Machado
(docente) e Ana Beatriz Coutinho Lerner e Paula Fontana Fonseca (psicólogas). A intensa pre-
sença, neste texto, de referências relacionadas a essa publicação justifica-se pela contribuição
das ideias lá desenvolvidas para as apresentadas no seminário e traçadas neste texto: dar re-
levo à percepção de nos ver em cena na produção dos acontecimentos.
Referências4
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000
[1954].
CARVALHO, José Sérgio Fonseca. Prefácio. In: MACHADO, Adriana
Marcondes; LERNER, Ana Beatriz Coutinho; FONSECA, Paula Fontana (org.).
Concepções e proposições em psicologia e educação: a trajetória do Serviço de
Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
São Paulo: Blucher, 2017.
DELEUZE, Gilles. El Bergsonismo. Madrid: Cátedra, 1987.
MACHADO, Adriana Marcondes. Os psicólogos trabalhando com a escola:
intervenção a serviço do quê? In: MEIRA, Marisa Eugênia Melillo; ANTUNES,
Mitsuko Aparecida Makino (org.). Psicologia escolar: práticas críticas. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2003. p. 63-86.
MACHADO, Adriana Marcondes. Perdas e apostas na luta contra o
silenciamento presente no processo de medicalização. Entreideias: Educação,
Cultura e Sociedade, Salvador, v. 3, n. 1, p. 111-123, 2014a.
MACHADO, Adriana Marcondes. Exercícios de superação da lógica da
medicalização: a escrita de relatórios. In: VIÉGAS, Lygia de Sousa; RIBEIRO,
Maria Izabel Souza; OLIVEIRA, Elaine Cristina de; TELES, Liliane Alves da
Luz. Medicalização da educação e da sociedade: ciência ou mito? Salvador: Edufba,
2014b. p. 93-105.
MACHADO, Adriana Marcondes. Entre as demandas das pesquisas, dos
psicólogos e das escolas. In: CRP-RJ (org.). Conversações em psicologia e educação.
Rio de Janeiro: Conselho Regional de Psicologia 5ª região, 2016. p. 75-82.
4 A necessidade de escrever uma nota de rodapé em relação às referências advém do fato de ter
citado muitos textos meus nessas referências. Neles, há divulgação e apresentação de auto-
res que permitiram desenvolver as ideias aqui apresentadas.
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118 Ana Paula Berberian • Kyrlian Bartira Bortolozzi • Sammia Klann Vieira
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R – 7 anos “Eu sou burro e agitado, não gosto de escrever e não sei escrever”.
Mãe de R “Ele é muito devagar em sala de aula, a educadora disse que ele tem um déficit
de atenção, pois não copia as coisas do quadro”.
“Ele se recusa a ler e escrever, não gosta de ler nada. Ele é preguiçoso e
acomodado”.
“Sempre foi agitado, por isso não aprende”.
“Não quero escrever, sei que vou fazer um monte de coisas erradas, sou devagar”.
V – 32 anos “Tinham situações que não tinha como me esquivar, como na sala de aula, os
professores, eu não gostava muito deles.
Quando faziam avaliações de leitura, era muito comum eu ouvir as seguintes frases:
– Você acha que tem algum palhaço aqui?
– Não é para adivinhar é para ler;
– Você está tirando com a minha cara ou você realmente não sabe ler ou é burro?”
“Eu troco letras na escrita porque eu não presto atenção e sou meio preguiçoso
e vagabundo”.
“Eu devo ter algum distúrbio”.
“Eu evito escrever porque sei que vai ter um monte de erros e eu tenho vergonha”.
122 Ana Paula Berberian • Kyrlian Bartira Bortolozzi • Sammia Klann Vieira
E – 9 anos “Eu sou agitada. Sou agitada sim, todo mundo fala, por isso tenho dificuldade
para ler escrever”.
“Eu não paro de falar, eu fico no mundo da lua. Não presto atenção em nada”.
“Eu quero tomar Ritalina, depois que comecei melhorou na escola, pararam um
pouco com as reclamações”.
Mãe de E “Ela toma Ritalina desde os 6 anos para ficar menos dispersa. Eu também sou
um pouco assim, acho que tenho déficit de atenção”.
“Eu acho que ela é agitada porque ela é bem falante, já na pré-escola a
professora fazia queixa dela, porque ela falava muito”.
“Eu digo que o remédio é bom para ela se concentrar e fazer as coisas
corretamente”.
J – 9 anos “Eu troco o “s” e o “z” porque eu não presto atenção. Mas eu não sei não por que
troco o “p” e o “b”, isso ninguém me explicou”.
“O resto das coisas eu lembro, mas a minha memória falha para as letras”.
“Eu tiro nota baixa na redação, acho que não tenho boas ideias. Não sei
escrever, a professora sempre briga quando eu escrevo muitas páginas”.
Mãe de J “J é como eu, tem problema na cabeça, é muito nervosa. Não dá para isso, está
bloqueada para aprender a ler e escrever”.
“Lá em casa são em cinco filhos, três já abandonaram a escola, apenas a mais
velha ainda insiste”.
“J tem dificuldade para ler e escrever e por isso é abandonada na escola”.
Mãe de D “Ela fala que talvez tenha sido porque ele ficou no oxigênio quando nasceu, daí
pode ter afetado algum nervo, alguma coisa na cabeça dele”.
Mãe de H “Eu vi que é um pouco de genética, porque o pai dela tem a mesma dificuldade,
puxou o pai”.
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126 Ana Paula Berberian • Kyrlian Bartira Bortolozzi • Sammia Klann Vieira
K – 8 anos “Eu não quero escrever, não sei escrever carta. Eu tenho a letra feia”.
“A professora pediu para escrever uma história, ela reclamou que eu passei o
número das linhas e que escrevi coisas erradas”.
“Não sei escrever, troco letras”.
Mãe de K “Eu sou disléxica, quando era pequena, uma psicóloga da escola descobriu.
Eu sabia que iria ter um filho disléxico, meu pai também era. É da família, o
médico e a fono do posto disseram”.
“K é que nem eu, tem dificuldade, precisa ler duas, três vezes para entender o
assunto dos livros da história, da geografia”.
Mãe de T “A gente copia, sempre copiando alguma lição. Eu faço ele repetir tudo de
novo em casa, ele está sempre tentando melhorar na escola pra não ter que
chegar em casa e ter que fazer tudo de novo”.
Mãe de A “A pedagoga me explicou que ela está com muitos erros na escrita porque
fala errado”.
128 Ana Paula Berberian • Kyrlian Bartira Bortolozzi • Sammia Klann Vieira
Mãe de L “Ela fala que ela é gorda, que ela é burra, que ela quer morrer, ela também não
vê esperança. Ela sabe, por mais que ela tenha algum problema, ela vê que
pessoas que não têm estudo hoje em dia tá morta, tá morta”.
Mãe de F “Ela tem medo até de passar de ano porque cada vez mais vai ser pior
na escola, mais difícil. Ela recebeu o boletim e tinha melhorado, daí ficou
preocupada, porque achou que ia ser muito ruim no ano que vem”.
Mãe de C “Eu queria descobrir o que ele tinha, o problema maior foi quando veio a
hipótese da dislexia, essa me deixou transtornada, foi um choque grande
quando eu vi que meu filho tinha dislexia, o neuro confirmou e deixou de ser
uma hipótese”.
Mãe de V “Muitas vezes eu me questionei se ele não deveria estar na Apae, não que ele
seja deficiente, lá o aprendizado é mais devagar, ele se sentiria mais humano,
que poderia ajudar, porque na escola é muito acelerado, mas daí falam que
tem que ser assim pra ele entrar no ritmo”.
Mãe de G “Eu me sinto meio impotente com relação a tudo isso, por mais que eu tente
ajudar parece que eu não consigo chegar a lugar nenhum; eu me sinto bem
impotente, parece que não sei o caminho”.
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132 Ana Paula Berberian • Kyrlian Bartira Bortolozzi • Sammia Klann Vieira
Considerações finais
A possibilidade de ressignificar posições medicalizantes, assumidas he-
gemônica e discursivamente por crianças e seus familiares, emerge na explici-
tação e crítica de suas contradições e, portanto, do embate travado, nas redes
dialógicas, entre essas posições e outras que com elas antagonizam. Procura-
mos, com este estudo, evidenciar que a (re)significação de tais posições pode
ser orientada a partir do reconhecimento do estatuto da palavra do outro e do
fato de esta requerer sempre uma compreensão ativa e uma atitude responsi-
va-ativa na constituição da nossa palavra, ou seja, no reconhecimento do ca-
ráter dialógico da linguagem, da consciência e da posição dos sujeitos na vida.
Tal entendimento, fundamentado a partir de uma perspectiva social e
histórica, oferece elementos para o implemento de abordagens, clínicas e
educacionais que priorizem as relações dialógicas como matéria-prima dos
processos de objetivação e de subjetivação da consciência humana.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. ed. São Paulo: Hucitec,
1998.
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136 Ana Paula Berberian • Kyrlian Bartira Bortolozzi • Sammia Klann Vieira
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2 O que segue corresponde ao filme tal como dele me lembrava. Reencontrei e revi o filme re-
centemente. Qual não foi minha surpresa! Minha lembrança, passados tantos anos da primei-
ra exibição, havia modificado ou acrescentado elementos, perdido alguns, felizmente perma-
necendo a estrutura e o argumento do filme original. A memória trabalha o passado. A infor-
mação e a imaginação podem disputar a lembrança por times contrários, noutras vezes sob
mesma camisa. Algumas vezes, graças à parceria, informação e imaginação alcançam juntas a
melhor lembrança. Em todo caso, os caprichos do lembrador ou os preconceitos de seu grupo
podem cobrir o passado e dominar a memória. O decisivo é sempre a liberdade para o obje-
to, para a coisa lembrada, o que exige desapegos de ego e de grupos. Convido o leitor a fazer
a experiência do filme e que seja condescendente com minha lembrança falha: https://www.
youtube.com/watch?v=_SsccRkLLzU.
4 Permitam-me uma longa nota e em expressão própria, embora soprada de Simone Weil e
Hannah Arendt. A dependência é condição que se modifica e que temperamos, mas nunca
anulamos. O adulto não é alguém sem depender de ninguém, é alguém de quem os outros
podem depender. O que distingue a criança imatura não é tanto depender de nós quanto o
fato de não podermos depender dela, e o amadurecimento dos menores pede que os maiores
saibam gradualmente depender dos menores. A independência, como atributo dos adultos,
caracteriza não os repletos, mas pessoas capazes de trocas ou mútua dependência. As rela-
ções assimétricas são relações necessariamente temporárias. Tomemos o caso das relações
entre mestres e aprendizes. A autoridade do mestre não é atributo próprio ou inato, mas
uma condição ela mesma adquirida por aprendizagem. A competência de um mestre jamais
foi solitariamente adquirida e sempre dependeu de mediadores humanos ou outros mestres.
Por exemplo, um jovem nunca por esforços só seus poderia se tornar um cardiologista. Mui-
tas vidas e heranças humanas lhe chegam através de professores até que uma competência
seja alcançada e, desde então, arriscando parecer uma posse vaidosamente empunhada pelo
indivíduo. Há uma dívida ancestral no cardiologista e que remonta aos primeiros humanos
atentos ao coração. Uma dívida que não se paga, a não ser transferindo-a. O mestre, como nas
brincadeiras de roda, recebe e passa o anel, e recebe de quem o recebeu. O mestre progressi-
vamente aprende com os aprendizes, afinal, ensinar é demonstrar uma aprendizagem e seguir
aprendendo. Ideia-guia de Paulo Freire: ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, nós
nos educamos em comunhão. As relações pedagógicas, quando não envenenadas pelo mando-
nismo, implicam respeito dos mestres pelos aprendizes. A instrução dos moços não será pra-
ticada como humilhação. A severidade eventual vai ser aproveitada e vencida pela persistente
amabilidade. A atenção dos aprendizes para as orientações ou advertências dos mestres será
concedida sem servilismo. Um conselho vai esperar consideração sem nunca obrigar obe-
diência. A desobediência poderá ser requerida pela tarefa aprendida e não pela insolência do
aprendiz.
Referências
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988.
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1992.
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense,
1982.
Introdução
Em 2021, fará cem anos de uma história americana recente de geno-
cídio em massa pouco contado nos livros de história. Em 1921, na cidade
de Tulsa, no estado de Oklahoma, aconteceu um dos piores massacres de
genocídio racial da história dos EUA. No dia 31 de maio, uma multidão de
pessoas brancas invadiu e destruiu o distrito de Greenwood, que na épo-
ca era uma das comunidades negras mais prósperas do país, apelidada de
“Wall Street Negra”.1
O episódio de filme de terror da vida real durou cerca de dezoito horas,
matando mais de trezentas pessoas negras e deixando outras 10 mil desabri-
gadas. Pelo menos uma metralhadora e até aviões foram usados no ataque.
Por fim, as autoridades da época decidiram que os negros eram os culpados
pela violência, classificada como um motim racial. Nenhum dos invasores
brancos jamais foi responsabilizado. Ainda em 2020, existem valas comuns
161
2 Cf. https://www.facebook.com/forumsobremedicalizacao/photos/a.1099828860069579/1109
518935767238.
3 Cf. http://academic.udayton.edu/health/01status/mental01.htm?fbclid=IwAR3qY48b_GS6b5d
Rkrs3GhvH-hJot37jRyO-z3o3tLooOJ4mIQ_ZuIq73pQ.
A esperança equilibrista
Sabe que o show
De todo artista
Tem que continuar…
(João Bosco e Aldir Blanc)
Nesse sentido, Carolina teria passado por uma série de violências por
não atender à heteronormatividade que normatiza como cada um deve per-
formar seu gênero, sua orientação sexual, sua prática sexual e a que(m) deve
desejar. Dizemos que dispositivo na sexualidade gerencia o regime dos afetos
e desejos, pois
O dispositivo
O dispositivo é o objeto de descrição da genealogia na obra de Michel
Foucault. Com a noção de dispositivo, Foucault reitera sua crença na histori-
cidade do dizer verdadeiro, que é o que lhe confere seu caráter singular. Ele é
mais geral que a episteme, que é mais discursiva, por assim dizer.
Medicalização do racismo
Em 2016, o psiquiatra Telmo Kiguel defendeu que condutas discrimina-
tórias precisavam de diagnóstico compatível com o crime.4 Ele acreditava
que a prevenção para a discriminação estaria em um diagnóstico psiquiátri-
co, de modo que o conhecimento de tal definição inibiria tais violências.
No dia 6 de junho de 2020,5 um jovem negro entregador de aplicativo
sofreu racismo por parte um morador de condomínio de luxo em Valinhos
(SP). Em seguida, o pai do agressor apresentou como defesa para o crime do-
cumentos de que o filho teria o diagnóstico de esquizofrenia e o juiz acatou.
Consideramos igualmente problemáticas as duas tentativas de redu-
ção da complexidade das relações raciais a questões da medicina, na medi-
da em que escamoteiam o racismo enquanto dado estruturante das relações.
Resumidamente:
É preciso escutar a ruína até para que ela se torne outra coisa, escutar no
limiar, na zona de transição, um “entre” que indique movimento, espaço de
passagem da diferança, (DERRIDA, 1991) “um devir-espaço do tempo e de-
vir-tempo do espaço”, um espaço potencial de diferenciação, espaço do “qua-
se”, do “ainda não”.
Freud foi um pensador do “entre”, das variações, das possibilidades de
circular entre as várias potencialidades e modos de existir. Propomos aqui
(Sabrina Benaim)6
Referências
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de psicofármacos como sintoma social dominante, operadores fundamentais
da atenção psicossocial: contribuição a uma clínica crítica dos processos de
subjetivação na Saúde Coletiva. 2011. Tese (Livre-Docência em Psicologia
Leonardo Peçanha
Guilherme Silva de Almeida
1 A pesquisa foi intitulada “TransUerj – Saúde e cidadania de pessoas trans no contexto do HIV-
-Aids no Brasil: uma aproximação comparativa Brasil/França” e foi coordenada entre os anos
de 2013 e 2018 pelos professores Anna Paula Uziel (Lidis/UERJ) e Alain Giami (Inserm/FR), e de-
senvolvida por uma ampla equipe (Adriana Maria Shad e Balthazar, Ana Beatriz Sant’Anna Ma-
galhães, Ana Camilla de Oliveira Baldanzi, Aureliano Lopes da Silva Junior, Carolina Gonçalves
Santos de Brito, Guilherme Silva de Almeida, Jimena de Garay Hernández, João Pedro Passos
de Queiroz, Luana Guimarães, Luisa Bertrami D´Angel, Marcela Virgílio Vendramini, Mario Felipe
de Lima Carvalho, Sergio Luis Carrara e Vanessa Marinho Pereira) que incluiu um grande núme-
ro de pessoas trans como Comitê Assessor (incluiu pessoas trans e cisgêneras: Alessandra Ra-
mos Makkeda, Bárbara Aires, Daniela Murta Amaral, Denise Thaynáh Leite, Giowana Cambrone,
185
Leila Dumaresq, Leonardo Peçanha, Lívia Casseres, Márcia Cristina Brasil Santos e Veriano Ter-
to Junior). Durante a pesquisa foram aplicados questionários com perguntas fechadas junto a
391 pessoas, o que fez desta uma das maiores amostras quantitativas já produzidas no Brasil
sobre pessoas trans. Os questionários foram aplicados majoritariamente por pessoas trans,
que receberam treinamento e remuneração para fazê-lo. A pesquisa foi fruto da parceria en-
tre a UERJ e o Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica (Institut National de la Santé
et de la Recherche Médicale – Inserm), da França, e buscou produzir e analisar dados acerca da
diversidade da população trans na região metropolitana do Rio de Janeiro (perfil demográfico,
epidemiológico e psicossocial), bem como os itinerários de saúde e cidadania percorridos por
tal grupo em sua afirmação de gênero (em especial no acesso a serviços de saúde, tecnologia
de modificações corporais e demandas jurídicas). Agradecemos a toda a equipe da pesquisa
Transuerj também pelos dados referidos neste artigo.
2 Como descreveu Berenice Bento, o processo transexualizador é o “conjunto de alterações cor-
porais e sociais que possibilitam a passagem do gênero atribuído para o identificado. A cirur-
gia de transgenitalização não é a única etapa desse processo. Para as pessoas transexuais que
desejam realizá-las há procedimentos consensuados internacionalmente, principalmente a
partir de documentos produzidos pela Associação Internacional de Disforia de Gênero Harry
Benjamin. Estes procedimentos formarão os protocolos a que todas as pessoas transexuais
devem submeter-se”. (BENTO, 2008, p. 146)
3 Para Leonardo Peçanha, “apesar da atividade física ser algo importante para a construção,
adaptação e modelagem do corpo, o profissional de educação física, que é o que entende de
movimento relacionado ao corpo e a prática de exercícios não está no Processo Transexuali-
zador do Sistema Único de Saúde (SUS)”. (PEÇANHA, 2017, p. 467)
4 É muito comum que endocrinologistas se recusem a atender pessoas trans, algumas vezes
alegando que não atendem a este público por razões morais e, outras vezes, alegando desco-
nhecimento, no entanto, este último argumento não encontra sustentação, uma vez que este
já não é um procedimento experimental internacional e nacionalmente, e existe literatura
técnico-científica para ser acessada acerca da temática. Esta recusa vem levando ao frequen-
te não acesso de pessoas trans à assistência endocrinológica, mesmo nas unidades especiali-
zadas do processo transexualizador e na rede privada de saúde.
5 Remoção cirúrgica de um ou os dois ovários.
6 Remoção cirúrgica do corpo e colo do útero, podendo também ser removidos ovários e
trompas.
7 Cirurgia de redesignação sexual.
Considerações finais
O processo transexualizador é uma política pública importante para as
demandas em saúde trans, embora hoje seja insuficiente. Com a atualização
do Código Internacional de Doenças (CID), com a CID-11, tivemos um novo
capítulo sobre saúde sexual, no qual as identidades trans foram realocadas
como “incongruência de gênero”. Tal mudança justifica a necessidade de que
10 É amplamente divulgado nas pesquisas de ordem biomédica a relação entre infecção por al-
guns tipos de HPV e o câncer de colo uterino.
Referências
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PEÇANHA, Leonardo Morjan Britto. (Re)construções corporais e saúde:
desafios e limites do corpo trans*. In: UZIEL, Anna Paula; GUILHON, Flávio
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2017.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Recurso Extraordinário (RE) 670422.
Brasília, DF: STF, 2018.
DESVER O MUNDO,
PERTURBAR OS SENTIDOS
A DESMEDICALIZAÇÃO EM MOVIMENTOS (SOCIAIS)
Introdução
Este capítulo busca analisar consensos e dissensos presentes entre três
movimentos sociais que têm forte relação com o campo psi – o antimanico-
mial, o antiproibicionista e o contra a medicalização da vida. Temos intuito
de promover uma reflexão sobre as alianças já existentes entre esses movi-
mentos e as que ainda são necessárias, a partir da possibilidade de superação
de algumas divergências. Ao final, será discutida a necessidade da intersec-
cionalidade das pautas desses movimentos com as de outros movimentos so-
ciais, caso desejemos priorizar a promoção de saúde mental a partir de uma
abordagem centrada nos direitos humanos.
A título de caracterização, consideramos aqui que o movimento antima-
nicomial se situa quase totalmente no campo psi (ainda que dialogue com
outros saberes das ciências sociais e humanas). O movimento contra a me-
dicalização da vida, por sua vez, tem forte relação com o campo psi – em-
bora não seja dele exclusivo – devido ao avanço da neuropsiquiatria sobre o
campo do sofrimento mental, com a consequente explosão dos chamados
197
Referências
BRASIL. Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019. Altera as Leis nos 11.343, de 23 de
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attainable standard of physical and mental health: report of the Special Rapporteur
on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of
physical and mental health. Genebra: United Nations Human Rights Council,
2019.
207
Pelo que tenho observado nos últimos anos, o mesmo pode ser dito acer-
ca da RD, uma vez que múltiplos sentidos se superpõem dialogando com os
diversos dispositivos em que ela é aplicada. É possível perceber apropriações
da RD que vão se identificar com uma lógica biomédica até perspectivas mais
estruturais, abarcando em seu escopo lutas coletivas.
Alguns sujeitos ainda operam a RD a partir de uma lógica voltada para o
indivíduo, orgânica e limitada a reduzir os efeitos das substâncias no corpo.
No entanto, pelo que se percebe na literatura, nas últimas décadas a atuação
da RD se desenvolveu para além das noções de riscos e danos, incorporan-
do em sua reflexão/prática uma vertente positiva como produção de vida.
(LANCETTI, 2016)
Desde o seu nascimento na década de 1980, a redução de danos esteve
associada a um princípio orgânico. Com o surgimento da HIV/aids, num
contexto de práticas de consumo de drogas injetáveis, a ideia de redução de
danos como diminuição dos riscos e danos associados ao consumo de drogas
fez muito sentido, no entanto, com o passar dos anos, gradualmente as inter-
venções que antes se concentravam apenas na identificação dos riscos asso-
ciados ao consumo de drogas se expandiram e passaram a incluir questões
relacionadas a direitos humanos. Assim, houve articulação entre o aparato
jurídico e outros aspectos do Estado para além das questões relacionadas à
saúde e à justiça, deslocando os pressupostos centrais do processo de proi-
bição do uso de drogas associados à articulação do Estado com os aparatos
médico-jurídico.
Para fins didáticos, agrupei a RD, quanto ao seu local de atuação, a partir
de três grandes eixos. O primeiro eixo, mais relacionado à ação na rua, domi-
nou inicialmente a discussão, principalmente por sua preocupação objetiva
com as condições de vida dos usuários e os danos associados não só ao con-
sumo, mas à vida à margem da produção, enquanto párias sociais.
O segundo eixo surge com a introdução do debate sobre drogas na Re-
forma Psiquiátrica, a partir de 2002, entrando em cena os dispositivos de
atenção psicossocial. Sua apropriação, desde o início, foi bastante proble-
mática, uma vez que, ao contrário do que aconteceu com a discussão sobre a
Referências
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Jorge Zahar, 2001.
A opressão do mercado
A humanidade sempre buscou, embora nem sempre de forma consciente
e consequente, as curas para seus males, mas o que mais vem encontrando ao
longo do tempo são diferentes formas de remediá-los, nem todas racionais.
O mais racional talvez fosse preveni-los.
O uso de medicamentos tem ocorrido em todo o mundo, principalmente
após sua massiva industrialização como panaceia para todos os males do cor-
po e da alma. Isto acontece porque o medicamento ganhou valor simbólico,
representando a possibilidade de adquirirmos saúde na forma de “pílulas má-
gicas”, o que induz as pessoas a consumirem o produto mesmo quando dele
não necessitam. (PETROVICK, 2004)
Todos sabemos que o uso de medicamentos não é sinônimo de saúde
e que esta não depende apenas de sua utilização. A saúde é o resultado de
um conjunto de condicionantes socioeconômicos, como condições de mo-
radia, transporte, trabalho, educação e nutrição. (LAPORTE; TOGNONI;
ROZENFELD, 1989) Mesmo assim, com todo o avanço do conhecimento
219
Organizando a resistência
Diante deste grave quadro de opressão do mercado, é preciso que haja, por
parte dos movimentos sociais, uma forte resistência para impedir ou pelo menos
amenizar os riscos causados pelo consumo desenfreado de medicamentos quan-
do não necessários ou quando inadequadamente prescritos ou consumidos.
Os farmacêuticos têm participado ativamente desse movimento de resis-
tência juntamente a outros profissionais não só da área da saúde, mas tam-
bém com os usuários, que, como parte interessada no enfrentamento deste
problema, podem e devem contribuir para sua solução.
Internacionalmente
A Organização Mundial da Saúde (OMS), em sua 28ª Assembleia Mun-
dial de Saúde, realizada em 1975, estabeleceu a necessidade de assessorar os
Estados-membros a selecionarem medicamentos essenciais com qualidade e
custo razoável. No mesmo ano, o Brasil já definia sua primeira Lista de Me-
dicamentos Essenciais (Rename), enquanto a OMS só em 1977 apresentaria
sua primeira lista-modelo. (BRASIL, 2012a, 2015a) O estabelecimento des-
sa lista de medicamentos passa por um processo de avaliação crítica daquilo
que deve e do que não deve estar à disposição da população, contribuindo, e
muito, para a racionalização do uso dos medicamentos.
No Brasil
A escolha de um tratamento medicamentoso ou não e a prescrição do
medicamento, se esta for a opção, considerando sua efetividade, segurança e
posteriormente a dispensação e utilização pelo usuário de formas adequadas
dependem de informações e da relação entre os profissionais e os usuários
para o sucesso terapêutico. (BRASIL, 2012a)
Considerando que os profissionais de saúde precisam de informações em
tempo hábil e que o conhecimento científico cresce rapidamente, é preciso
encontrar mecanismos de obtenção das informações de evidência atualizada,
de forma ágil e confiável. A publicação Uso racional de medicamentos: temas
selecionados veio cumprir este papel, apresentando condutas terapêuticas ba-
seadas em evidência, abrangendo manifestações clínicas frequentes e doen-
ças prioritárias, contendo informações sobre indicação, seleção, prescrição,
monitoramento de benefícios e riscos, bem como potenciais interações com
medicamentos e alimentos, baseados em conhecimentos sólidos, indepen-
dentes e atualizados. (BRASIL, 2012a)
Outra forma confiável de obter informações são os centros e serviços de
informações sobre medicamentos, cujo objetivo é promover o uso racional
dos medicamentos por meio de informação técnico-científica objetiva, atua-
lizada, devidamente processada e avaliada. Para a manutenção destas ativida-
des, é indispensável a permanente qualificação profissional, a atualização das
fontes de informação e a articulação entre as instituições em todo o territó-
rio nacional visando a otimização e o aprimoramento dos serviços prestados,
A contribuição da Fenafar
A Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar), entidade representa-
tiva da categoria farmacêutica em nível nacional fundada em 25 de outubro
de 1974, construiu uma história de lutas, buscando o resgate do importante
papel social do farmacêutico na atenção à saúde, como forma de contribuir
para o acesso seguro e racional dos medicamentos. (FENAFAR, 2015a)
Na década de 1980, a Fenafar participou ativamente do movimento que
culminou com a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986; do processo
constituinte até a aprovação da nova Carta Magna em 1988 e da lei que criou
o Sistema Único de Saúde (SUS) em nosso país em 1990. Graças ao inten-
so trabalho das entidades farmacêuticas, entre elas a Fenafar, a Lei Orgânica
do SUS estabeleceu a assistência farmacêutica como integrante das ações de
saúde e como direito da população brasileira. A partir de 1991, a entidade
empreendeu uma luta que mobilizou a sociedade contra a Lei de Patentes e
foi uma das entidades que coordenou o Fórum pela Liberdade do Uso do Co-
nhecimento, luta esta que perdura até hoje para garantir a todos o acesso aos
medicamentos. (FENAFAR, 2015b)
Em 1993, iniciou-se a luta contra o projeto de lei da senadora Marluce
Pinto, que desobrigava a presença do farmacêutico nas drogarias, tirando
deste profissional o papel fundamental de prestar assistência farmacêutica
de qualidade. Durante a realização do 1º Congresso da Fenafar, ocorrido em
1994, os farmacêuticos foram surpreendidos com artigos da Medida Provi-
sória do Plano Real, que liberava a venda de medicamentos em supermerca-
dos, armazéns, empórios, lojas de conveniência e drugstore. Motivados pela
medida, eles aprovaram a realização de uma campanha de âmbito nacional
de conscientização do uso correto de medicamentos. A Campanha Nacional
pelo Uso Correto de Medicamentos teve três objetivos: 1. a conscientização da
população sobre o uso correto de medicamentos; 2. envolver os profissionais atin-
gidos, principalmente farmacêuticos, na prestação da assistência farmacêutica;
Os congressos
A realização do I Congresso Brasileiro sobre o Uso Racional de Medica-
mentos em Porto Alegre-RS, no ano de 2005, organizado pelas professoras
Maria Beatriz Cardoso Ferreira e Lenita Wannmacher, da Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul, deu início a uma nova estratégia para a promoção
Os prêmios
Considerando as competências e o plano de ação estruturado nas áreas
de educação, informação, pesquisa e regulação, em 2009, o comitê decidiu
pela criação de um concurso que incentivasse não apenas a pesquisa científi-
ca realizada na academia, mas que também contemplasse trabalhos realiza-
dos nos serviços de saúde e em entidades. O Prêmio Nacional de Incentivo
à Promoção do Uso Racional de Medicamentos (PNIPURM) foi instituído
Publicações
Em 2015, o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Me-
dicamentos elaborou uma cartilha voltado para o público leigo. Utilizando
linguagem simples, ela aborda os cuidados ao adquirir, utilizar, guardar e des-
cartar os medicamentos, e, ainda, como conversar com os profissionais da
saúde sobre esses assuntos. Visto que a intenção da cartilha é abordar a racio-
nalidade do uso do medicamento, ela inicia fazendo uma pergunta instigante:
você sabia que nem todas as doenças exigem o uso de medicamentos? Lembrando
que alguns problemas podem desaparecer mesmo sem nenhum tratamento.
Antes mesmo de falar de doenças e medicamentos, chama a atenção que é
melhor prevenir do que remediar e que, portanto, para se ter boa saúdem, é
indispensável termos condutas saudáveis, como alimentação sem excesso de
sal, açúcar e gorduras, beber água e evitar bebidas alcoólicas, não fumar, pra-
ticar exercícios físicos e ter uma boa noite de sono. (BRASIL, 2015b)
Mais recentemente, o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racio-
nal de Medicamentos, cumprindo seu papel de difundir informações e fazer
recomendações que objetivem conter os abusos relacionados ao uso de me-
dicamentos, elaborou relatório abordando temas de importância estratégica:
a medicalização da vida, uso de medicamentos em populações vulnerabiliza-
das e uso racional de antimicrobianos. A intenção é que o trabalho possa se
Considerações finais
Estas são algumas das muitas intervenções realizadas pelas instituições e
pelos movimentos sociais em nosso país no processo de resistência que se faz
necessário frente à brutal opressão que sofremos por parte daqueles que, vi-
sando unicamente o lucro, induzem ao uso indiscriminado e abusivo de me-
dicamentos pela população, expondo-a a riscos desnecessários.
Sabemos que este não é um problema atual. Unírio Machado, que foi re-
lator da CPI 1961/62 sobre a indústria farmacêutica no Brasil, dizia que a
livre circulação e consumo de produtos condenados em outros países cons-
titui crime e atentado contra a saúde e a soberania nacional. O mesmo autor,
avaliando os relatórios das CPI de 1976 e de 1980, chamava a atenção para
as seguintes conclusões que nos mostram quantos problemas ainda perma-
necem insolúveis:
Nota-se, mesmo passados muitos anos e realizadas muitas CPI para tra-
tar do assunto e mesmo depois de muitos avanços conquistados pela atua-
ção das entidades e dos movimentos sociais, um longo caminho ainda precisa
ser percorrido. De fato, a efetividade das estratégias para a promoção do uso
racional dos medicamentos depende principalmente da vontade política dos
responsáveis pelas políticas públicas e da dedicação de indivíduos convenci-
dos de que o medicamento é um bem social. (FEFER, 1999)
Ainda há muito a se fazer no processo de resistência e enfrentamento des-
se problema. Este papel é, sem dúvida, dos movimentos sociais organizados
no país com a participação de atores representantes das diversas profissões
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Aprova a Política Nacional de Assistência Farmacêutica. Diário Oficial da União:
Brasília, DF, 7 maio 2004.
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
247
3 Aqui cabe observar que sou consciente da crítica à categoria de poder em Foucault e em seu
caráter ambíguo, ora positivo, ora negativo. Para uma análise do conceito de poder na filosofia
contemporânea, consultar Han (2019).
Referências
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Econômica Aplicada, Brasília, DF, 5. jun. 2017. Disponível em: https://bit.
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FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE.
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MEIRELLES, Renato; ATHAYDE, Celso. Um país chamado favela: a maior
pesquisa já feita sobre a favela brasileira. São Paulo: Gente, 2014.
[...]
Descobrir o que liberta o sol
Que faz buraco
Furação do escuro, escuro, escura
Esquecer ao menos uma noite
O medo, o mal real que te insegura
[...]
Leve e auto-reverse plugado no peito
Mostrando outro jeito,
batendo de frente
com o bicho feroz
1 O capítulo é inspirado na fala “Medicalização nas mídias, expandindo o debate”, feita no IV Se-
minário Internacional “A Educação Medicalizada: desver o mundo, perturbar os sentidos”, que
foi revisada e atualizada. Tal fala se encontra disponível em: https://youtu.be/F7x56yoWgnU.
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(AUTO-REVERSE, 2013)2
2 Essa música e seu clipe psicodélico é um presente lindo que Aline Laje Lima trouxe para o
Fórum.
3 Essa referência à música dos Secos e Molhados é lindamente trazida por Tito Carvalhal (2019).
Passados nove anos desde que foi fundado, o Fórum sobre Medicalização
da Educação e da Sociedade segue atuante no enfrentamento aos processos
de medicalização da vida. Hoje, temos dimensão nacional, tendo núcleos em
diversos estados do país,4 tais como Bahia, Distrito Federal, Mato Grosso do
Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte
e São Paulo, além de boa parceria com diversos outros estados e países, so-
bretudo na América Latina. A potência dessa articulação tornou-se uma de
nossas bandeiras: “só a luta coletiva mudará nossas vidas”.
4 Seguimos abertos à criação de novos núcleos, desde que afinados a nossos princípios.
5 Essa percepção, devemos a Liliane Alves da Luz Teles.
Rafael Puetter
Meu nome é Rafael, mas meu apelido é Rafucko. Faço vídeos de sátira po-
lítica no YouTube, alguns dos quais se tornaram virais, e por esse motivo fui
convidado para este Seminário sobre Educação Medicalizada para falar so-
bre o meu trabalho. Sou, em muitos contextos sociais, inclusive neste em que
me encontro agora, reconhecido como produtor de conteúdo, outras vezes
como jornalista, em geral, como artista.
Ao contrário do que se espera, entretanto, não passarei este capítulo fa-
lando sobre mim ou versando sobre meu trabalho, por mais tentadora que
seja essa oportunidade para um produtor independente com poucas chances
tão preciosas para divulgar seu trabalho. Neste capítulo, falarei do trabalho
de outras pessoas. Um trabalho que causou em mim uma revolução no olhar
e influenciou tudo que fiz até hoje.
O leitor certamente já assistiu ao objeto de estudo deste capítulo, mas as
chances são altas de não ter lhe dado a legitimação merecida, ou mesmo lhe
atribuído o status de obra de arte no momento da visualização. Falarei aqui
de uma forma de arte amplamente consumida, ao mesmo tempo que é com-
pletamente ignorada em seu valor. Quando reconhecida, é para ser diminuí-
da. Em um futuro, espera-se que breve, será estudada, pois é uma arte que diz
293
Modernismo Profundo
Os primeiros acordes da música “Fico assim sem você”, interpretada por
Adriana Calcanhotto, começam a soar. Na tela, o vídeo anuncia: “Claudinho
e Buchecha – Fico Assim Sem Você – HD”.1
À esquerda, no Quadro 1, encontra-se o texto cantado pela intérprete. À
direita, a imagem vista pelo espectador.
Fogueira sem brasa, Uma fogueira acesa. Transição para uma fogueira em
Sou eu assim sem você brasas.
Por que é que tem que ser assim? Uma dezena de pessoas sentadas no chão de cimento
formam um ponto de interrogação.
Circo sem palhaço Foto de uma tenda de circo. Transição para a foto de uma
pintura de um palhaço triste.
Alex Frechette
301
Figura 1
Figura 2
Figura 3
Figura 5
Figura 6
Figura 7
Em seguida, mostrei outra série, dessa vez feita com mosaicos de recortes
religiosos. O que me motivou a criar esse trabalho foram os ataques que ter-
reiros de candomblé e umbanda estavam sofrendo em favelas cariocas, sendo
invadidos e depredados a mando de traficantes recém-convertidos a religiões
neopentecostais. Foram divulgados vídeos e fotos desses religiosos de matriz
africana sendo obrigados a quebrar suas imagens sagradas. Assim, fiz o tra-
balho denominado Diário ecumênico, primeiramente indo a templos religio-
sos diversos e coletando seus panfletos e publicações e, depois, misturando
tudo, de modo a fazer colagens que formavam diversos líderes e renomados
representantes religiosos, forçosamente unindo inúmeras religiões em con-
sonância para legibilidade das imagens.
Figura 9
O suporte também precisa trabalhar para a arte: neste caso, os pratos são
de plástico para metaforizar a fragilidade dos nossos direitos.
Em seguida, baseado no ensaio “O capitalismo como religião”, de Wal-
ter Benjamim, de 1921 – em que o autor diz que o capitalismo seria como
uma celebração de um culto à culpa, transformado em universal2 –, realizei,
através de uma técnica chamada falso vitral, vários ícones idolatráveis: San-
ta Repressão, Santa Obsolescência Programada, São Conformismo, Santa
Gentrificação etc. A técnica empregada consiste apenas em pintar um vidro
inteiriço, e não fazer junções de pedaços de vidros coloridos com estrutura
de ferro, como acontece com um vitral tradicional. A técnica assim me pare-
cia perfeita: falsos vitrais para falsos ídolos.
2 “Em primeiro lugar, o capitalismo é uma religião puramente cultual, talvez até a mais extre-
mada que já existiu. Nele, todas as coisas só adquirem significado na relação imediata com o
culto; ele não possui nenhuma dogmática, nenhuma teologia. Sob esse aspecto, o utilitarismo
obtém sua colaboração religiosa”. (BENJAMIN, 2013, p. 21)
Mal sabia eu que, dois anos depois deste seminário, seria diagnosticado
com a Síndrome de Burnout, depois de sofrer estresses vários, típicos do tra-
balho de professor no município, por conta do reflexo da violência social nas
escolas e da precariedade estrutural. Depois de uma aula, ao voltar para casa
e ficar ilhado em um tiroteio que matou duas crianças de escolas próximas,
pedi exoneração. Foi a maneira que encontrei na época para tentar manter a
saúde mental em meio a tanta violência. A violência me impulsionou a fazer
as primeiras séries de 2013, levantando as bandeiras dos direitos humanos,
me levou a espaços de reinvenção, e, com a chegada da Copa do Mundo de
Futebol FIFA 2014 no país inteiro, tendo o Rio de Janeiro como um dos pal-
cos principais, quis novamente apropriar-me da técnica do “inimigo”, porém,
mantendo-me, como avisava Oswald, tanto quanto possível emancipado des-
ta. Foi assim que comecei a fazer releituras, trabalhando a história da arte.
A história da arte documentada e valorizada, obviamente, é uma história
europeia ou estadunidense, de acordo com a qual as Américas, a África ou o
Oriente pouco aparecem. Parodiei telas conhecidas de artistas renomados,
como Picasso, Van Gogh, Dalí, Munch, Goya, Matisse etc., inserindo seus
trabalhos icônicos na realidade brasileira de 2014, mantendo elementos das
cenas da época. O trabalho em que releio Picasso ficou conhecido na impren-
sa mundial, principalmente espanhola, como Guernica de las Calles, e rece-
beu uma grande matéria no jornal El Diario, escrita por Bernardo Gutiérrez,
Figura 13
Figura 14
Referências
ANTHA, Larry. Memórias não-póstumas de um punk. Rio de Janeiro: Multifoco,
2011.
ASSANGE, Julian. Cypherpunks: liberdade e futuro da internet. São Paulo:
Boitempo, 2013.
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: FTD, 1991.
BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013.
COMISSÃO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO DO CRP-RJ (org.).
Conversações em psicologia e educação. Rio de Janeiro: Conselho Regional de
Psicologia 5ª Região, 2016.
FRECHETTE, Alex. Átimo. [S. l.]: s. n., 2004.
FRECHETTE, Alex. Catraca. [S. l.]: s. n., 2004.
FRECHETTE, Alex. 7 milhões de libras esterlinas. [S. l.]: s. n., 2004.
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Ano JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
2008 0,9 4,1 6,8 7,5 9,2 10,9 9,4 11,7 11,8 11,1 9,9 6,6
2009 3,6 5 7,2 7 8,4 9,1 7,5 9,5 11 11,9 11,3 8,5
2010 4 5,6 8,6 8,4 9,5 9 8,1 9,2 9,5 9,6 10,5 7,8
2011 3,8 6,6 7,8 8 7 9,9 8,2 10,7 10,6 10,7 9,7 7,2
2012 4,7 6,9 8,7 8 9,6 9,1 7,9 10,5 9,8 10 8,2 6,5
Tabela 3 – Consumo de Ritalina entre jan. 2009 e jun. 2014 (Unidades Físicas Distribuídas)
Ranking UF Venda %
1º SP 1.047.506 20,2
2º RS 859.979 16,6
3º MG 806.863 15,6
4º PR 635.869 12,3
5º RJ 483.958 9,3
6º SC 262.698 5,1
Total no Brasil 5.186.981 100
Gráfico 6 – Venda de Ritalina por 1000 habitantes: estados com maiores índices (Uni-
dades Físicas Distribuídas)
ANO CLONAZEPAM %
2007 425 0,002
2008 267.510 1,466
2009 755.567 4,142
2010 1.708.700 9,367
2011 3.115.253 17,077
2012 4.345.945 23,824
2013 4.769.692 26,146
2014 3.279.166 17,976
Total 18.242.258 100,00
Ranking UF TOTAL %
1º SP 3.574.464 20,1
2º MG 2.821.008 15,9
3º RJ 2.624.452 14,8
4º RS 1.742.470 9,8
5º SC 1.423.273 8
6º PR 824.787 4,6
7º PE 784.601 4,4
8º ES 677.235 3,8
9º GO 517.777 2,9
10º BA 500.781 2,8
11º RN 460.980 2,6
12º PB 349.960 2
13º CE 337.351 1,9
14º DF 209.437 1,2
15º MT 126.831 0,7
16º PI 126.361 0,7
17º PA 124.494 0,7
18º MA 116.936 0,7
19º MS 110.402 0,6
20º SE 101.776 0,6
21º AL 101.383 0,6
22º RO 67.398 0,4
23º TO 26.983 0,2
24º AM 20.286 0,1
25º AC 11.299 0,1
26º AP 3.821 0
27º RR 2.376 0
TOTAL 17.788.922 100
Tabela 11 – Venda de clonazepam (UFD) a cada mil habitantes - Regiões com maiores índices
continua...
Referências
ANVISA. Boletim de Farmacoepidemiologia do SNGPC. ANVISA: Brasília, DF,
2012.
ITABORAHY, Claudia; ORTEGA, Francisco. O metilfenidato no Brasil: uma
década de publicações. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, p. 803-
816, 2013.
ONU. Report of the International Narcotics Control Board for 2014. New York:
International Narcotics Control Board, 2015.
ORTEGA, Francisco et al. A Ritalina no Brasil: produções, discursos e práticas.
(Dossiê) Interface, Botucatu, v. 14, n. 34, p. 499-510, 2010.
REDE BRASILEIRA DE AVALIAÇÃO DE TECNOLOGIAS EM SAÚDE
[REBRATS]. Metilfenidato no tratamento de crianças com transtorno de déficit
de atenção e hiperatividade. Boletim Brasileiro de Avaliação de Tecnologias em
Saúde, Brasília, DF, v. 8, n. 23, p. 1-12, 2014.
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Alex Frechette
Artista Plástico. Bacharel em Pintura pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (EBA-UFRJ) e mestre em Turismo pela Universidade Federal Flu-
minense (UFF). Professor de arte no ensino fundamental do estado do Rio
de Janeiro e escritor. Autor de Copa pra quem? Olimpíadas pra quem? Arte
e megaeventos esportivos no Rio de Janeiro (Circuito, 2019), entre outras
publicações.
E-mail: alexluiz@gmail.com
Rafael Puetter
Bacharel em Comunicação Social: Rádio e TV pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) (2008). Faz vídeos, instalações e performances de sá-
tira política no canal Rafucko e em espaços públicos.
E-mail: rafaelitobarbacena@gmail.com
Sandra Caponi
Fonoaudióloga, doutoranda e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em
Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Apoio
Financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supe-
rior-Brasil (CAPES).
E-mail: sandracaponi@gmail.com
Zoia Prestes
Graduada em Pedagogia e Psicologia Infantil e mestre em Educação pela
Universidade Estatal de Pedagogia de Moscou (URSS), doutora em Educa-
ção pela Universidade de Brasília (UnB). Professora da Faculdade de Educa-
ção da Universidade Federal Fluminense (UFF). Desenvolve pesquisas com
base na teoria histórico-cultural de L. S. Vigotski e traduz do russo para o
português obras deste pensador, além de obras literárias de autores soviéti-
cos e russos.
E-mail: zoiaprestes@yahoo.com.br