Legalidade Penal e A Homofobia Subsumida

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ANÁLISE

Legalidade penal e a homofobia subsumida ao crime de


racismo: um truque de ilusionista
Ao julgador cabe interpretar a lei, mas não a reescrever

GUSTAVO BADARÓ

24/05/2019 11:06
Atualizado em 24/05/2019 às 11:07

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Ontem, em continuação de julgamento, o Supremo Tribunal Federal formou


maioria no sentido de que a homofobia e a transfobia caracterizam crime de
racismo.

Não temos mais, portanto, garantia da legalidade no direito penal! Descanse em


paz nullum crimen, nulla poena, sine lege.

A Lei nº 7.716, de 05.01.1989, deQne os crimes resultantes de preconceito de raça


e cor. Seu artigo 1º, com a redação dada pela Lei nº 9.459, de 15.05.1997,
estabelece que “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de
discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
Segue-se, então, nos seus artigos, várias condutas tipiQcadas como crime de
racismo.

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Na homofobia há discriminação ou preconceito? Evidente que sim. Trata-se de


uma visão de mundo retrógrada, de quem não aceita a diferença e não sabe
conviver em uma sociedade plural, que permita a cada um buscar realizar a sua
felicidade na máxima potencialidade possível.

Não há nada de errado ou reprovável em ser homossexual. Ao contrário, a lei deve,


expressamente, assegurar direitos a todos, sem distinção de sexo e de orientação
sexual. Aliás, a Constituição, no inciso XLI, do art. 3º elenca, entre os objetivos
fundamentais da República, “promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Para
assegurar tal objetivo, também estabelece, no inciso XLI da cabeça do art. 5º que
“a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdade
fundamentais”.

A homofobia ou a transfobia é um ato ilegal, de discriminação e preconceito em


razão da orientação sexual de alguém. E como tal deve ser punida. Isso não
signiQca, porém, que quem assim agir estará praticando um ato de preconceito
racial e, muito menos, que possa ser punido pelas Qguras que caracterizam o
crime de racismo, previstas na Lei nº 7.716/1989.

Não é possível extrair dos substantivos “raça, cor, etnia e religião”, nem na
expressão “procedência nacional”, constantes do artigo 1º daquela lei, qualquer
conteúdo que se conecte, minimamente, à orientação sexual ou identidade de
gênero. Basta uma consulta aos léxicos. Ser assexual, bissexual, heterossexual,
homossexual, intersexual ou pansexual não diz respeito à “raça, cor, etnia, religião
ou procedência nacional” da pessoa.

Ofender verbalmente, agredir ou matar alguém por ser lésbica, gay, bissexual,
travesti, transexual ou transgênero é absolutamente inaceitável, é ilegal, é crime. É
necessário punição. Tais condutas serão caracterizadas como crime contra a
honra, contra a integridade física ou contra a vida!

Por outro lado, é perfeitamente possível criar, por lei, delitos especíQcos,
criminalizando em um tipo penal próprio a homofobia e transfobia. Há parte
considerável da sociedade que considera a criminalização da homofobia algo
necessário. Mas quem deverá o fazer é o Congresso Nacional, não o Poder
Judiciário. Qualquer das opções, quais sejam, criminalizar ou não criminalizar,
penso serem compatíveis com a Constituição. Mas isso é tarefa para o legislador,
se assim considerar que é a vontade da sociedade.

DesconQo muito da crença de que o direito penal resolve tudo. A criminalização de


condutas, por si só, não passa de uma resposta simples e fácil, mas tem sido
pouco eQciente. Não ataca as causas do problema. Só satisfaz um punitivismo
desenfreado. É preciso muito mais para que se evolua do ponto de vista
civilizatório.
Ao Estado é muito mais difícil criar políticas
públicas eIcientes, a partir da educação para o
convívio harmônico com as diferenças em nossa
sociedade. Então, cria-se um tipo penal e dá-se a
falsa impressão que o problema deixou de existir.

A posição da maioria do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta


de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26, na linha do voto do relator,
ministro Celso de Mello tinha adotado no voto uma premissa irretocável no item 7:
a impossibilidade jurídico-constitucional de o Supremo Tribunal Federal, mediante
provimento jurisdicional, tipiQcar delitos e cominar sanções de direito penal.

De outro lado, se reconhece a inconstitucionalidade na demora do Congresso


Nacional em legislar sobre a proteção penal aos integrantes do grupo LGBT,
declarando a existência de omissão legislativa. Diante disso, a solução adotada foi
propor uma “interpretação conforme a Constituição Federal”, para enquadrar a
homofobia e a transfobia, ou qualquer que seja a forma da sua manifestação, nos
diversos tipos penais deQnidos na Lei nº 7.716/1989 (que deQne os crimes de
racismo), até que o Congresso Nacional edite uma norma autônoma. Trata-se de
uma inaceitável conclusão.

Do ponto de vista hermenêutico, não é possível concordar com o posicionamento


de que “a homofobia representa uma forma contemporânea de racismo”. Do ponto
de vista cientíQco, a genética demonstrou que há uma só raça: a raça humana. As
diferenças físicas mais perceptíveis são decorrência de uma parcela ínQma de
genes dos mais de 25 mil genes que forma o genoma humano.

Atualmente se reconhece a infelicidade do conceito de raça. Há uma única raça, a


raça humana! Todavia, não se pode desprezar o sentido de tal expressão no
contexto legislativo do crime de racismo. Desde a chamada Lei Afonso Arinos –
Lei nº 1.390, de 03.07.1951, que tipiQcou como contravenção penal “a prática de
atos resultantes de preconceito de raça ou de cor”, o conceito penal de “raça”
assim com o conceito de “cor”, relacionado à cor da pele, não é o conceito
cientíQco atual. Aliás, se o fosse, seria imprestável, não medida em que se a raça é
uma só, não haveria sentido em cogitar de preconceito e discriminação de algo
unitário e do qual faria parte o próprio indivíduo que realiza o ato, em verdade,
também contra si mesmo.

Ao julgador cabe interpretar a lei, mas não a


reescrever.

Como bem assevera Natalino Irti (Per un dialogo sulla calcolabilità giuridica, In.
Alessandra Carleo (Org.). Calcolabilità giuridica. Bologna: Il Molino, 2017, p. 26),
“reconhecer ou aceitar o poder normativo dos juízes signiQca – como adverte um
eminente estudioso alemão, Bernd Rütheres – realizar uma revolução clandestina
ou secreta (Heimlich), e subverter os princípios da democracia representativa”.

Mormente quando se está cogitando do conteúdo de um tipo penal, em relação


ao qual há garantia constitucional de reserva de lei, é inaceitável que o julgador
possa considerar crime condutas que o legislador não tipiQcou. Admitir isso seria
substituir o princípio de legalidade por um de “jurisdicionalidade”! Isso porque, a
conduta criminosa estará sendo determinada, em última análise, não pelo
legislador, mas por um órgão judiciário.

Em outras palavras, há uma obrigação do legislador de Qxar os tipos penais por


meio de critérios legais estabelecidos com precisão, clareza e taxatividade.
Somente assim será possível evitar que, por qualquer mecanismo, não haja
incerteza ou criação para determinar a norma incriminadora e condutas vetadas
ao cidadão.

Evidente que a lei penal, como qualquer enunciado normativo, deve


necessariamente ser interpretada. Na passagem do momento legislativo para o
momento de sua aplicação pelo juiz, os critérios abstratos de determinação dos
elementos do crime acabam assumindo, em maior ou menor grau, um caráter de
relativa incerteza que caracteriza toda norma jurídica antes de sua aplicação no
caso concreto. Seria ingênuo acreditar na possibilidade de aplicação do direito
que esteja protegida contra algum tipo de subjetivismo do interprete.

Porém, se qualquer norma é, em alguma medida, indeterminada, a solução para


tal problema não é aceitar que toda e qualquer regra possa ser interpretada com a
máxima discricionariedade e liberdade interpretativa. O que se deve buscar, com o
Qm de alcançar maior certeza jurídica, seja ao aplicador do direito, seja ao
cidadão, para saber como se comportar em sociedade, é obtenção da norma, a
partir do resultado da interpretação, reduzindo ao máximo esse grau de
indeterminação.

Nesse caso, quando o sentido do texto legal for claro – o que não signiQca que a
escolha de seu conteúdo foi a melhor ou é a mais adequada para reger a situação
– o primeiro e principal critério hermenêutico deve ser o literal.

Ora, não é necessário grande conhecimento linguístico para entender que


“discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”
não diz respeito a homofobia ou transfobia.

Depois de toda a defesa da legalidade, e da impossibilidade de o Supremo


Tribunal Federal criar tipo penais, o voto do ministro Celso de Mello, no que acaba
de ser acompanhado por seus pares, realizou um verdadeiro truque de ilusionista:
não é possível criar um tipo penal, mas é possível utilizar um tipo penal já
existente, para considerar crime algo que nele não está descrito.

GUSTAVO BADARÓ – Professor Titular de Direito Processual Penal da USP. Advogado Criminal e
Consultor Jurídico.

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