Caracterizacao de Luisa de o Primo Basil

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CARACTERIZAÇÃO DE LUÍSA, DE O PRIMO BASÍLIO: REDUNDÂNCIA

E SUPERFICIALIDADE

Eliane Fittipaldi

Embora o título de O Primo Basílio coloque ênfase na personagem


masculina que protagoniza a história e, com isso, destaque o tema do
donjuanismo, é Luísa que se instaura como o signo estruturador da
ação. É ela que dá coesão à trama, é a sua trajetória, da ingenuidade
à morte, passando pelo adultério e pela punição, que está em
primeiro plano em toda a obra. Analisá-la significa reunir os indícios
lingüísticos e extra-lingüísticos que a compõem e acompanhar as
modulações por que vão passando ao longo da trama. Dizemos
modulações e não transformações porque tais indícios são
apresentados quase em sua totalidade, logo no primeiro capítulo do
romance. A ação, posteriormente, virá apenas a exemplificá-los ou
reforçá-los, mas não a modificá-los fundamentalmente.
A cena de abertura do romance já a apresenta num quadro
bem acabado, repleto de sugestões significativas. Observemos de
perto a primeira apresentação de Luísa:

Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge fechou o


volume de Louis Figuier que estivera folheando devagar, estirado na
velha voltaire de marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse:
- Tu não te vais vestir, Luísa?
- Logo.
Ficara sentada à mesa, a ler o Diário de Notícias, no seu roupão de
manhã de fazenda preta, bordado a soutache, com largos botões de
madrepérola; o cabelo louro um pouco desmanchado, com um tom
seco do calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça
pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea
das louras; com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha, e, no
movimento lento e suave dos seus dedos, dois anéis de rubis
miudinhos davam cintilações escarlates (p. 9).

1
Segundo Shlomith Rimmon-Kenan1, há dois modos possíveis
de apresentação da personagem: a definição direta, que nomeia os
traços caracterizadores por meio de adjetivos ou substantivos
abstratos, e a apresentação indireta, em que os traços não são
mencionados mas exemplificados, de maneira que o leitor possa
inferir a qualidade que implicam. Enquanto o predomínio do
primeiro modo leva à conceptualização e à generalização,
determinando estaticidade e nitidez da personagem, o do segundo
indica maior sugestividade e indeterminação.
Na protagonista dO Primo Basílio, encontram-se os dois
modos de apresentação, utilizados em maior ou menor grau
conforme a intenção enunciativa em cada momento da trama.
Aqui ela surge com características físicas bem definidas e bem
delineadas, que revelam um alto grau de figurativismo. Sua descrição
é analítica, seu retrato é elaborado minuciosamente, com base na
sinédoque: a focalização não é globalizada, mas, por intermédio do
close-up, concentra-se em partes do corpo e detalhes de
indumentária, tudo adjetivado com abundância.
O processo descritivo que configura Luísa realiza-se mais por
contigüidade que por similaridade. Cabelos, pele, cotovelo, dedos e,
posteriormente, olhos, braços, pés, toilettes, vão compondo uma
figura feminina da qual nunca é feita uma apresentação general. É
como se Luísa estivesse sendo examinada por um microscópio com
lente amplificadora que ganha em detalhes mas perde em
distanciamento. Quando esse processo tende para a similaridade,
não utiliza a metáfora plenamente realizada2, mas a imagem ou a
comparação explícita.

1 Cf. Narrative Fiction.


2 Conhecida como metáfora in absentia, é considerada como a verdadeira metáfora. Nela, não
se encontra presente o termo comparado, que é totalmente substituído pelo comparante.

2
Tal apresentação, aparentemente direta, contém no entanto
indicações sutis que nos levam a inferir características mais
complexas, não apenas no que diz respeito ao delineamento do
caráter da protagonista, mas principalmente quanto às técnicas
empregadas em sua construção.
O cabelo, por exemplo, um tanto desalinhado, "com um tom
seco do travesseiro", e o "movimento lento e suave dos seus dedos"
apontam para uma calma e indolência que encontrarão ressonância
na descrição do ambiente, feita logo a seguir com base no princípio
de semelhança: se o narrador se abstém de utilizar, de imediato, em
relação a Luísa, adjetivos que apontam explicitamente para o traço
da preguiça, não os poupará ao cenário, caracterizado por um
silêncio "sonolento" às vezes interrompido por um "zumbido
monótono de moscas" e um "rumor dormente" (p. 9). Tudo isso,
reforçado por verbos como "amolentava" e "arrastava-se", instaura a
atmosfera modorrenta que caracteriza sua existência "fácil e doce".
A interação entre Luísa e o meio em que vive é, por um lado,
enfatizada e, por outro, posta em questão: a identidade ocorre no
nível da descrição, mas há um imenso contraste no nível do desejo.
A verdade é que Luísa passa o tempo todo a abafar-se e rebela-se
contra a "vida estreita entre quatro paredes, passada a examinar róis
de cozinha e a fazer crochê", quando a vida ideal parece transcorrer
algures, na cidade que constitui o centro da civilização: "ir para Paris!
para Paris!" (p. 171).
O fato de ainda encontrar-se em roupão, às onze horas da
manhã ("que seca ter de se ir vestir!"), demonstra a ociosidade à qual
está entregue (não só nesta cena mas ao longo de toda a narrativa).
Acontece que indolência e ociosidade constituem traços
fundamentais que servirão não apenas como molas propulsoras da

3
paixão da protagonista, mas também como instrumento de crítica a
toda uma classe social. À medida que Luísa é descrita, esses traços
vão-se explicitando. Sempre através da sinédoque, sua figura é
paulatinamente acentuada por meio de um processo de adjetivação
que mescla qualidades morais a atributos físicos:

dedos preguiçosos (p. 42)


braços frouxos (86, 123)
lábios passivos e inertes (p. 188)

O próprio roupão que Luísa veste, "bordado a soutache", com


"botões de madrepérola", constitui mais um indício: da sua condição
abastada, da sofisticação e do luxo com que ela gosta de se rodear.
Nos dois anéis de rubi, a marca do excesso, que já se vai delineando
como um dos elementos básicos de sua maneira de ser. Este excesso
será retoricamente marcado, tanto na descrição como na narração e
no diálogo, pela figura da amplificação, que consiste na expansão de
termos ou idéias, dentro de frases, períodos e do texto como um
todo. No trecho acima, por exemplo, identificamos a amplificação
em recursos como:

• acumulação de adjetivos e locuções adjetivas;

• enumeração de verbos: "fechou o volume [...], espreguiçou-se e disse";

• aposições: "o cabelo louro, um pouco desmanchado, com um tom seco


do calor do travesseiro, enrolava-se";

• sinonímia: "devagar", "movimento lento e suave".

Esses recursos vão-se acentuando e se multiplicando


gradativamente, ao longo da narrativa, a ponto de encontrarmos
enumerações quádruplas e até mesmo quíntuplas ("[...] não queria
perder o seu marido, o seu Jorge, o seu amor, a sua casa, o seu

4
homem!" - p. 261). A eles, juntar-se-ão outros elementos de
amplificação, como tipos diferentes de construções paralelísticas,
assíndetos, polissíndetos e gradações, muitas vezes combinados:

se ele a enganasse, se tivesse a certeza da 'mais pequena coisa' -


separava-se, recolhia-se a um convento, morria decerto, matava-o! (p.
196)
Neste trecho, observamos uma construção paralelística
assindética com gradação chegando ao clímax, caracterizando o
discurso impetuoso da protagonista e o perfil hiperbólico que está
sendo delineado.
Mas o recurso de amplificação mais utilizado em O Primo
Basílio é a repetição pura e simples de substantivos, adjetivos,
verbos, advérbios, expressões e comparações. Na própria pontuação,
essa preferência pode ser facilmente visualizada. Basta abrirmos o
romance em qualquer página: salta aos olhos a grande quantidade
de pontos de exclamação e reticências, representanto graficamente a
função emotiva predominante (excesso que aponta para a ironia na
caracterização de uma criatura demasiadamente romântica).
Na cena inicial que estamos analisando, uma expressão, "brancura
tenra e láctea das louras", será tautologicamente retomada em
outros momentos do discurso:

o seu pé pequeno, branco como leite, com veias azuis (p. 13);

[...] a brancura macia e láctea do colo e dos braços (p. 78);

o colo branco e tenro, azulado de veiazinhas finas (p. 42).

Observamos também, no primeiro e terceiro exemplos, a repetição,


com variação, de "veias azuis" que ainda tornará a ocorrer outras
vezes no discurso da narrativa.

Outra recorrência digna de nota:


5
As recordações da véspera redemoinhavam-lhe na alma a cada
momento, como as folhas que um vento de outono levanta a espaços
dum chão tranqüilo. (p. 128)

as suas idéias redemoinhavam como folhas de outono, violentadas


por ventos contraditórios. (p. 160)

uma multidão de idéias, todas extremas e insensatas, redemoinhava


no seu cérebro como um montão de folhas secas numa ventania [...]
(p. 259)

Cabe notar que essas repetições são de tal modo espaçadas e


modalizadas ao longo de toda a obra, que podem passar
despercebidas a um leitor que não tenha preocupações analíticas. O
efeito final é o de um texto com linha melódica definida, repleto de
leitmotifs que se entrecruzam. Não se trata de polifonia, no sentido
que Bakhtine dá a esse termo1, mas de variações "melódicas" de um
mesmo tema.
À primeira vista, tal insistência na utilização das mesmas
formulações lingüísticas parece indicar um repertório limitado, uma
falha ou vitium do discurso. Trata-se, porém, de um recurso
intencionalmente utilizado por Eça de Queiroz, uma das
características inovadoras do seu estilo. Ele próprio defende esse
princípio em Cartas Inéditas de Fradique Mendes , ao dizer: "Bem
aventurados os pobres de léxicon, porque deles é o Reino da
Glória"2. E é Ernesto Guerra da Cal quem explica a função de tal
escolha no efeito geral dos romances de Eça:

[...] para realizar o que ele se propunha e atingir os seus alvos


estéticos mais específicos, tinha de basear-se, necessaria e
inevitavelmente, na restrição do vocabulário. Uma das características
mais nitidamente definidas do seu mecanismo sintático é a constante
tensão visando a uma clara sobriedade. E o alicerce inicial dessa

1 Cf. Problemas da Poética de Dostoiévski.


2 Apud Guerra da Cal, Ernesto. Língua e Estilo de Eça de Queiroz.

6
concentração expressiva - que tem, como veremos, manifestações
muito ricas - é a limitação propositada do léxico. Mas esta economia
quantitativa o obriga, para traduzir suas variadas percepções, em
primeiro lugar, a extrair desse vocabulário até à última essência das
possibilidades significativas que cada palavra contém e, em segundo,
a forçar cada uma delas a novas acepções, totalmente inéditas, por
meio de alianças sutis e choques combinatórios. Através destes meios,
consegue ele obter a contribuição das forças ocultas evocativas de
todos os seus significados, fazendo-as desdobrarem-se,
multiplicarem-se semanticamente e saltarem dos seus trilhos
consagrados pelo uso até então. E sem a menor sensação de esforço
nem distorção, com uma naturalidade capaz de iludir o mais vigilante
dicionarista.1

Além das razões acima expostas, gostaríamos de aventar


outra hipótese: a repetição, como instrumento didático e
encantatório por excelência, é capaz de promover o convencimento
e a persuasão. Utilizada dentro de um texto literário que visa à
reforma da sociedade, agindo sobre a própria burguesia que está a
criticar, pode vir a ser muito eficaz por sua acessibilidade. Assim
também o caráter coloquial da linguagem de Eça, a que Guerra da
Cal se refere como "retórica da naturalidade". Trata-se da fusão entre

[...] a língua falada e a escrita numa fórmula que, sendo no fundo


intensamente literária, produz a impressão de simplicidade afetiva de
expressão oral.2

A coloquialidade e a limitação do léxico constituem, em


Eça, um rompimento com os padrões de oratória que então
imperavam na literatura, uma reação contra a afetação que
predominava nos textos pós-românticos, uma tentativa de tornar
mais espontâneo o diálogo, mais fluida a leitura.
No que diz respeito à estruturação da protagonista, a
repetição funciona como um reforço do traço caracterizador; a

1 Op. cit., p. 75
2 Op. cit., p. 79

7
coloquialidade, como uma opção realista de representar o humano
"tal como é".
Em O Universo do Romance, Bourneuf e Ouellet chamam a
atenção para o fato de que uma personagem "não pode existir no
nosso espírito como um planeta isolado"1. Ao contrário, ela
estabelece, com os "homens e coisas" do seu universo fictício, uma
rede de relações reveladora daquilo que realmente é.
Assim, na cena inicial de O Primo Basílio, o foco descritivo
alterna-se entre Luísa e Jorge: ele, estirado na voltaire, espreguiça-se
e boceja, e sua figura plácida, bonachona, de " proseirão, burguês",
põe em relevo, ainda por meio da identidade, a postura acomodada
da esposa.
O diálogo significativamente lacônico e corriqueiro que se
estabelece entre ambos, contrastando com a frase expandida da
narração, é significativo para o desenrolar da trama, já que uma das
molas da intriga é a sua situação conjugal insatisfatória. Desse
diálogo, podemos depreender que o casamento aqui retratado
assenta-se basicamente em exterioridades e frivolidades. Mais
adiante, saberemos quais foram os predicados de Luísa que
atraíram Jorge: "seus cabelos louros, [...] sua maneira de andar, [...]
seus olhos castanhos muito grandes" (p. 11). Jorge apaixona-se por
sinédoque, já que Luísa se lhe apresenta apenas como um conjunto
de atributos físicos. A decisão de casar-se, ele a toma antes mesmo
de conhecê-la, movido por razões mais pragmáticas que passionais,
ou seja, pela morte da mãe, por sentir-se "um pouco desamparado",
por desejar "enlaçar uma cinta fina e doce, ouvir na casa o frufru de
um vestido".

1 p. 199.

8
Quanto a Luísa, tampouco se casa por amor. Ao contrário,
tudo o que a motiva é uma atração física, ainda incipiente:

Jorge, ao princípio, não lhe agradou. Não gostava dos homens


barbados; depois, percebeu que era a primeira barba, fina, rente,
muito macia decerto" (p. 16).

A partir do momento em que são atendidas suas exigências


sensoriais, ela passa a apresentar, em relação ao marido, um misto
de admiração, respeito e dependência provenientes dessa mesma
indolência que constitui o seu traço de caráter predominante:

e, sem o amar, sentia ao pé dele como


uma fraqueza,
uma dependência e
uma quebreira,
uma vontade de adormecer encostada ao seu ombro e
de ficar assim muitos anos,
confortável
sem receio de nada. (p. 16)

Neste trecho, a indolência se exprime pela expansão de termos


dentro do período (como se o próprio discurso se espreguiçasse), e
é reforçada por:

• repetição anafórica: "uma", "de";

• paralelismo gramatical: enumeração quádrupla de artigo +


substantivo e enumeração dupla de preposição + verbo;

• redundância semântica: "fraqueza", "quebreira".

Novamente, temos recursos de amplificação, resultado de um


mecanismo retórico recorrente em todo o texto: a adjunção,
entendida por Heinrich Lausberg como "repetição do igual e (...)
acumulação do diferente"1.

1 Elementos de Retórica Literária.

9
Observamos, no discurso que enforma a protagonista, que
esse mecanismo de adjunção determinará o tipo de paixão que
passará a ser por ela vivenciado. Luísa, "sem o amar", "pôs-se a
adorá-lo", numa atitude que revela alto grau de idealização. Trata-se
de uma paixão excessiva, mas não de sentimentos consistentes, e
sim, de necessidades. O fato é que ela espera do parceiro que lhe
proporcione o repouso, a eliminação das tensões, e que tome para si
o papel de dar sentido ao relacionamento:

Era o seu tudo - a sua força, o seu fim, o seu destino, a sua religião, o
seu homem! (p. 17)

Aqui, o pronome indefinido com caráter hiperbólico ("tudo"),


seguido de aposição realizada em enumeração quíntupla e em
gradação com clímax (enfatizada pela exclamação), continua
apontando para a grande quantidade de recursos adjuntivos na
enunciação da personagem e de sua paixão de certo modo tanática,
já que caracterizada pelo desejo de repouso. Cada vez mais, a
amplificação em excesso vai apontando para a tensão que permeia o
relacionamento do casal: movida pela carência ("sem o amar"), Luísa
projeta no outro a sua plena realização, a expectativa de que dele
lhe venha "tudo". Daí resulta que sua vida conjugal, retratada pela
impiedosa câmera realista como experiência em que predominam os
bocejos e falta o diálogo, não apresenta um movimento para o
entrosamento e a completude. Tendo como base do seu vínculo tão-
somente o compromisso, tudo o que este casal encontra e cultiva
em sua relação são a inércia e a trivialidade das pequenas questões
cotidianas. Ironicamente e paradoxalmente, o excesso aponta para o
seu oposto, a falta, indicando uma paixão impulsionada pela
carência.

10
As grandes emoções, Luísa as vivencia de maneira vicária, quer
durante a leitura dos romances de Dumas e Scott, quer ouvindo as
narrativas dos amores ilegítimos da amiga de colégio, Leopoldina.
Com a amiga, sim, Luísa mantém uma profunda intimidade,
que remonta aos primeiros "sentimentos". O tema recorrente de
suas conversas é a paixão,

[...] aquela grande palavra, faiscante e misteriosa, de onde a felicidade


escorre como a água duma taça muito transbordante (p. 19)

Nesta concepção, formulam-se a abundância ("escorre") e o


excesso ("grande e transbordante"), traduzindo as expectativas e os
impulsos da protagonista. Impulsos que apresentam uma
contraparte antagônica e conferem, ao seu desejo, um movimento
pendular, quer voltando-se para a sensação de "um torpor
agradável, um bem estar de inércia", quer para a expectativa de
aventura. O grande problema de Luísa é encontrar o equilíbrio entre
essas duas tendências, a satisfação de ambos os impulsos, um que a
prende ao lar e ao marido, e outro que a fará voltar-se para o primo
de ares "estrangeirados".
Nas leituras de cunho romântico, ela encontra a evasão do
ambiente doméstico que por vezes lhe parece abafado, a imagem de
"homens ideais" e "o sabor poético de uma vida intensamente
amorosa" (p. 14). Observamos, aqui, um movimento da personagem
em direção à paixão: paixão voltada para um outro impossível,
fictício, devido à incompletude do contato com aquele que partilha
da sua realidade. Trata-se de um movimento paradoxal, já que
orientado para a passividade: Luísa não age no sentido de alterar a
realidade do seu casamento. Escolhe, em vez disso, uma maneira
escapista e estática de buscar o tipo de prazer que lhe falta.

11
É assim que, já na primeira cena e no primeiro capítulo do
romance, apresenta-se um dos temas recorrentes do realismo: a
crítica ao casamento como clichê social, cuja inconsistência tem por
base a acomodação, o ócio, a superficialidade do pensamento
burguês e o idealismo romântico, que faz buscar no ser amado a
solução para as insatisfações pessoais. Incorporando esses temas,
Luísa transforma-se, no decorrer da trama, num argumento
personificado contra as instituições, às custas de sua autonomia
como ser fictício. Revestida dessa função crítica, constituindo ela
própria uma sinédoque ao representar toda burguesa urbana com
instrução limitada que faz do casamento o seu ofício, a protagonista
de O Primo Basílio instaura-se como estereótipo. Na trama, à medida
que atribui, não a si mesma, mas ao outro, a capacidade de vivenciar
o "destino", a "religião" a "força", ela se esvazia como caráter
(inclusive no sentido de "character", personagem): se "tudo", para
Luísa, está concentrado no marido, a ela lhe resta o nada, o vácuo,
que tenta preencher com atos mecânicos e inconsistentes, como
fazer "saltar com a pontinha da chinela a orla do roupão" (p. 13),
bater "distraidamente no piano pedaços de valsas" (p. 63) ou fazer
"recuar a película das unhas" (p. 14). Marcadas pela redundância e
pela superficialidade, suas ações consistem, na maioria, em:

Acariciar-se
Bocejar
Cantar
Devanear
Espreguiçar-se
Fazer a toalete
Ficar olhando as unhas
Ler romances de evasão
Mirar-se no espelho
Passear
Suspirar

12
Estender-se na voltaire e na causeuse (com notável recorrência, às
páginas 9, 13, 63, 128, 143, 164, 171, 172, 190, 191, 246).

As ações habituais, segundo Rimmon-Kenan, "revelam o


aspecto estático ou imutável da personagem"1. Nas de Luísa,
depreendemos as seguintes tendências: banalidade, egocentrismo,
futilidade, hedonismo, languidez, sensualismo, narcisismo.
Convém ainda notar que suas reações às ações dos outros são,
em grande parte, puramente instintivas, físicas e emocionais, mas
raramente racionais. Ao longo de toda a narrativa, por exemplo, não
são poucas as vezes em que cora (mais exatamente às páginas 91,
93, 105, 110, 112, 116, 117, 120, 134, 149, 162 (duas vezes), 207, 208,
216, 218, 227, 243, 255, 265 e 266). Ou então torna-se "muito
branca", "lívida", "pálida" um número ainda maior de vezes.
Também "o seu seio arfava" às páginas 77, 79, 91, 105.
Quanto à fala de Luísa, caracteriza-se por períodos simples,
orações absolutas, em sua maioria nominais. Quando há
coordenação, é assindética:

- [Basílio] É o meu único parente. Fomos criados ambos, brincávamos


juntos. Em casa da mamã, na Rua da Madalena, estava lá sempre. Ia lá
jantar todos os dias. É como se fôssemos irmãos. Em pequena trazia-
me ao colo... (p. 112)

A falta de articulação do período denota uma linguagem


imatura, própria da reflexão primária da infância.
A subordinação, característica de um raciocínio mais complexo,
é inexistente na fala da protagonista no início do romance. A
primeira oração subordinada que enuncia é no condicional,
exprimindo capricho:

1 Narrative Fiction., p. 62, tradução nossa.

13
Mas, enfim, se eu embirro com ela [Juliana], não me importa, posso
bem mandá-la embora (p. 13)

Observamos ainda, neste exemplo, a frase suspensa e duas


vezes interrompida numa espécie de anacoluto ("enfim, não me
importa"), que reflete certa desconcatenação de idéias.
Outra marca da fala de Luísa é a diferença de tratamento
reservado aos destinatários, conforme sejam do sexo feminino ou
masculino. Em relação às mulheres, é muitas vezes ríspida:

"disse com severidade" [para Leopoldina, p. 20]

"gritou" [para Juliana, p. 61]

"disse com impaciência" [para D. Felicidade, p. 68]

Em relação aos homens, é faceira e lânguida, dirigindo-se a


eles por meio de trejeitos e meneios:

"mordeu o beicinho" (40);

"bateu com o pé" (80).

No que diz respeito aos verbos dicendi no diálogo direto de


Luísa, observamos o predomínio de "murmurar" (que aparece 24
vezes em todo o texto), "exclamar" (19 vezes), "suspirar" (6 vezes) e
"balbuciar" (5 vezes). Já os verbos de asserção vêm sempre
acompanhados por advérbios atenuantes: disse, falou, respondeu
"vagamente". Daí resulta que sua fala seja marcada por muita
emotividade e pouca firmeza, o que se confirma especialmente
numa discussão que tem com Basílio:

- [...] Por que não vieste?


Aquele modo enraiveceu-a:
- Porque não quis.
Mas emendou logo:

14
- Não pude. (p. 160)

A modalização do verbo "querer" indica uma vontade fraca,


uma atitude receosa. A rebeldia, aqui, cede lugar à submissão, a
autenticidade à máscara.
A voz de Luísa, passa por várias tonalidades ao longo da
narrativa, conforme a emoção que esteja experimentando. Quando
Basílio a corteja "com voz quente e forte, de que recebia o bafo
amoroso", retribui num "tom abstrato, mal acordado" (p. 79). Sua
recusa ao desejo do primo é acompanhada pelo "arrastado duma
lamentação, com a moleza duma carícia" (p. 80), que resulta numa
mensagem de efeito ambígüo e termina contrariando o "não"
enunciado. Após ceder à insistência dele, apresenta "uma voz
desvairada" (p. 124), e quando Sebastião, o amigo de Jorge,
adverte-a sobre os falatórios da vizinhança, exprime sua indignação
"numa vibração aguda" (p. 111) e "numa loquacidade trapalhona"
(p. 112). Ao tomar conhecimento de uma possível aventura do
marido no Alentejo, pronuncia-se a respeito com "uma voz sibilante"
(p. 194).
Em todas essas modulações, duas características principais: a
harmonia com uma atmosfera de entorpecimento e a dissonância na
expressão de firmeza.
Em geral, o discurso de Luísa é caracterizado pela economia e
por certo laconismo. Não que ela seja naturalmente de poucas
palavras, criatura exuberante que é. Acontece que não há muito a
dizer: tudo o que lhe passa pela cabeça são anseios, desejos
indefinidos. O pensamento de Luísa não é disciplinado, mas caótico,
fundindo aleatoriamente toda a sorte de impressões difusas:

Mil pensamentozinhos corriam-lhe no cérebro como pontos de luz


que correm num papel que se queimou; lembrava-lhe sua mãe, o

15
chapéu novo que lhe mandava Madame François, o tempo que faria
em Sintra, a doçura das noites quentes sob a escuridão das
ramagens... (p. 87)1

O padrão feminino que se vai assim estabelecendo caracteriza-


se pela imaturidade que chega às raias da infantilidade e por
atitudes de muito impulso e pouca reflexão. Quando Luísa pensa, é
numa

infinidade de coisinhas - em meias de seda que queria comprar, no


farnel que faria a Jorge para a jornada, em três guardanapos que a
lavadeira perdera... (p. 13)

Nos diminutivos, "coisinhas", "pensamentozinhos", e nas


reticências, a ambigüidade: o narrador diante de Luísa pode muito
bem ter uma predisposição positiva ou uma atitude irônica.
O fato é que ele transcreve a sua correnteza mental, mas não
aprofunda idéias e sentimentos como faz, por exemplo, o narrador
de Madame Bovary. Emma, assim como Luísa, não tem consciência
do que se passa em seu íntimo, apresentando-se também como um
feixe de sensações em lugar de uma racionalidade lúcida. Acontece
que, para caracterizá-la, o narrador, em sua onisciência, verbaliza
aquilo que ela própria não chega a compreender. Emma pode não
saber o que ocorre consigo, mas ele sabe, e não deixa de transmitir
isso, embora muito sutilmente, ao leitor. No caso de Luísa, não há tal
defasagem entre o "discurso narrante" e o "discurso narrado". Em O
Primo Basílio, o diálogo direto é mais freqüente e, no discurso
indireto livre, que mescla a voz do narrador e a da personagem,
predomina o estilo desta. Como vimos observando, trata-se de uma
preocupação com o coloquialismo e a verossimilhança. O resultado,

1 Chama a atenção, neste trecho, a repetição exaustiva do conectivo "que", aproximando a voz
narrativa do modo de exprimir-se da personagem: essa marca de coloquialismo, em lugar de
representar um vício do discurso, contribui para a sua verossimilhança.

16
porém, é uma personagem pouco elaborada do ponto de vista
psicológico.
É verdade que Luísa é um signo que passa por constantes
alterações ao longo da narrativa. Não podemos dizer, no entanto,
que há evolução, que ela caminha para a esfericidade.
O caso com Basílio, por exemplo, chega a impulsioná-la para o
desenvolvimento do raciocínio e a ampliação de suas preocupações,
o que pode ser observado pela nítida alteração dos verbos dicendi:
agora, Luísa "pensa", "reflete". Ao perceber que o primo começa a
tratá-la com frieza, abandona os trejeitos e assume uma postura
mais adulta, um discurso mais sério, repleto de "bom senso e lógica",
a ponto de surpreendê-lo ("trazias isso decorado", diz ele à página
159. Mas ela mesma o havia preparado, ainda que de antemão).
Insatisfeita também com a relação extraconjugal, volta o
pensamento para o marido ausente, analisando seus sentimentos
num discurso que ainda não é racionalmente articulado, mas que já
caminha para a argumentação:

... e juntava ao acaso argumentos, uns de honra, outros de


sentimento, para o amar, para o respeitar (p. 86)

instintivamente justificava-se (p. 112)

As expressões adverbiais "ao acaso" e "instintivamente"


revelam que, embora já argumentativo, seu discurso ainda não tem
uma estrutura amadurecida e que ainda tem um impulso
inconsciente .
Assim, à medida que sua relação com o amante se desgasta,
nossa protagonista começa a sofisticar sua maneira de pensar e
acaba pela primeira vez revelando, mesmo que em uníssono com o
narrador no discurso indireto livre, um raciocínio articulado e

17
coerente a respeito do amor como um sentimento que "na hora em
que nasce começa a morrer" (p. 159).
Neste momento da narrativa, apresenta-se, à personagem,
uma possibilidade de adensamento; as frustrações amorosas a
impulsionam para uma tomada de consciência e para a crítica dos
relacionamentos. Se isso fosse levado adiante, o resultado seria uma
espécie de precursora portuguesa da Nora de Ibsen (Casa de
Bonecas), e o romance proporia de fato a reforma social ao oferecer
a alternativa de independência à mulher nele retratada. Contudo, no
momento em que começa a crescer, Luísa é obrigada a recuar, caso
contrário a obra não atingiria a finalidade pré-estabelecida de
mostrar, através de sua decadência, a decadência da educação e do
casamento burguês. Caso esta personagem se afirmasse como
individualidade complexa, estabeleceria maior autonomia em relação
ao narrador, contrariando a tese taineana e comprometendo a
"verdade" que o autor se propunha a demonstrar. É assim que ela
termina por retroceder nesse movimento para a conscientização,
voltando à postura infantil e insegura do início, e buscando ajuda no
amigo de Jorge, Sebastião.
Dos traços fundamentais que compõem a protagonista de O
Primo Basílio, o mais indicativo do seu tipo de paixão é a forte
sensualidade. Apenas sugerido, na primeira cena citada, pelo ato
narcisista de acariciar a orelha (que virá a se repetir mais adiante em
"com o gesto acariciador e amoroso dos dedos sobre a orelha" p.
13), mas amplamente explicitado e explorado ao longo da narrativa,
esse traço é marcado no discurso por uma adjetivação que remete a
sensações visuais, auditivas, olfativas, gustativas e táteis. Além disso,
não é apenas referido como um dado temático, mas principalmente

18
criado na própria linguagem, por meio do léxico, da criação de
aliterações e do ritmo ondulante das frases, como no seguinte caso:

Desejaria estar numa banheira de mármore cor-de-rosa,


em água tépida, (6 sílabas)
perfumada, (4 sílabas)
e adormecer! (4 sílabas)
ou numa rede de seda, (7 sílabas)
com as janelas cerradas, (8 sílabas)
embalar-se, (4 sílabas)
ouvindo música! (6 sílabas) (p. 13)

A atmosfera sensual, aqui, é construída por meio da excitação


da percepção auditiva: a musicalidade, neste exemplo, faz-se por
intermédio da metrificação, bastante uniforme para a prosa, e do
deslocamento de acentos que cria uma espécie de gradação sonora
em tépida (proparoxítona), perfumada (paroxítona) e adormecer
(oxítona).
Voltando a Luísa, cabe salientarmos que também sua
sensualidade mostra-se infantil, ainda em estado bruto. É uma
sensualidade que mal se conhece e se manifesta com naturalidade,
mas não encontra objeto definido, dirigindo-se ora para ela mesma
("acariciando devagarinho, voluptuosamente, a pele branca e fina"),
ora para Jorge (cujo pedido de casamento faz "dilatarem-se
docemente os seus seios"), ora para Leopoldina (por quem "tinha um
fraco", "que quase lhe inspirava uma atração física"), ora para o filho
imaginado ("E via-o [...] mamando a ponta rosada do seu peito [...]"
com "um estremecimento de um deleite infinito [...] no corpo") e,
finalmente, para Basílio.
Acontece que esse impulso erótico não pode encontrar
satisfação em nenhum dos objetos que se lhe apresentam: o marido,
que seria o seu destinatário legítimo, não está adequado à imagem

19
ideal exigida pelas expectativas românticas da esposa; o filho tão
desejado acaba por revelar-se impossível, já que seu casamento
comJorge é marcado pela esterilidade (não só no que diz respeito à
fábula, mas principalmente no plano simbólico); Leopoldina
representa a libertinagem, pouco condizente com a situação social
que o casal faz questão de manter; e Basílio, mesmo quando Luísa
assume viver na ilegalidade do adultério, foge ao compromisso que
poria fim ao seu estilo lúdico de amar.
Se é na relação com as outras personagens que Luísa se faz
mais compreensível, sua sensualidade é melhor enfatizada quando
comparada à de Leopoldina:

LUÍSA LEOPOLDINA

vestida de preto, o véu descido vestidos muito colados, de uma justeza


x que acusava, modelava o corpo como
uma pelica

ombros alvos, duma redondeza macia ombros de modelo, duma redondeza


= descaída e cheia

o colo branco e tenro, azulado de seios [...] o desenho rijo e harmonioso


veiazinhas finas = de duas belas metades de limão

e havia no seu andar uma lassidão que a linha dos quadris, rica e firme, certos
lhe quebrava a linha da cinta de um = quebrados vibrantes de cintura faziam
modo lânguido e prometedor voltar os olhares acesos dos homens

face mimosa x a cara era um pouco grosseira

brancura tenra e láctea das louras, na pele muito fina, dum trigueiro
rosado úmido x quente e corado, havia sinaizinhos
desvanecidos de antigas bexigas

magníficos olhos castanhos, luminosos A sua beleza beleza eram os olhos,


e meigos duma negrura intensa, afogados num
= fluido, muito quebrados, com grandes
pestanas

20
beicinhos vermelhos e cheios = beiços gordinhos dum vermelho cálido

Neste caso, identidade e contraste concorrem


simultaneamente para o processo de caracterização. A sensualidade
de Luísa, mais implícita e latente, contém certa dose de ingenuidade
e ausência de intencionalidade: meiga e delicada, a protagonista do
romance merece aqui um tratamento mais recatado do narrador
que, porém, ao descrever Leopoldina, parece fazê-lo também ele
com o "olhar aceso". Esse narrador focaliza o colo de Luísa, mas
volta-se para os seios de sua amiga; detém-se na cintura da
protagonista, mas nos quadris de Leopoldina; e enquanto designa a
primeira por intermédio de um vocabulário positivamente conotado,
refere-se de maneira nada eufemística à "cara um pouco grosseira"
da segunda. Não nos iludamos, porém: se, por um lado a descrição
de Leopoldina parece ser mais maliciosa, por outro contém um apelo
mais visual, enquanto, na caracterização de Luísa, os adjetivos
relativos ao tato, como macia e tenro, demonstram que a
sensualidade da protagonista não é menos forte por ser mais
sugerida.
Nas duas amigas, parece esboçar-se um mesmo arquétipo: o
da mulher-amante, dotada do poder de sedução, mas em versões
sociais diferenciadas: a imagem da protagonista, até o momento,
está protegida pela legalidade do casamento. A de sua amiga, ao
romper com essa legalidade, expõe-se mais.
A esse respeito, é importante salientar que, segundo os
padrões de moralidade da época, há apenas dois tipos de mulher: a
santa e a cortesã. A santa é a mulher que está fechada em casa ou
no convento; a cortesã é a que se volta para a rua, não se insere num
esquema produtivo e não assume a responsabilidade de cuidar do
lar e dos filhos. O amor, para a figura feminina, é sempre um

21
paradigma de comportamento, mas, enquanto o amor conjugal é
reconhecido e normatizado, o amor passional é considerado como
nocivo ao bem estar social e, por isso, sempre associado à morte e
ao fracasso. Assim, a paixão é banida do casamento e impõe-se, à
"mulher santa", um modelo de relacionamento pautado pelo
respeito e pela submissão ao marido. O mapeamento da sexualidade
conjugal é feito pela Igreja, que proscreve a erotização das relações
íntimas (por isso, Luísa sente-se envergonhada de ter "um capricho
pelo marido")1.
Assim, à mulher de amantes e vícios que é Leopoldina,
protótipo da visão naturalista do ser humano submetido às forças do
meio, raça e momento, opõe-se, de início, a figura romântica de
Luísa como "muito boa dona de casa" que tem "cuidados muito
simpáticos nos seus arranjos", "asseada", "alegre como um
passarinho", "serzinho louro e meigo" , que confere ao seu lar um
"encanto sério".
Nestes exemplos, os termos avaliativos de conotação positiva
(um deles acompanhado de intensificador, "muito") e os
substantivos no diminutivo afetivo oferecem uma imagem favorável
da protagonista, indicativa do alto conceito de que desfruta no seu
meio. Mas, como contraponto à voz narrativa, a fala direta das outras
personagens apresenta juízos de valor indicando a crítica a que
Luísa está sujeita. Jorge, por exemplo, oferece-nos dela um retrato
acurado, no discurso paternalista e preconceituoso que prega contra
a amizade de Leopoldina:

- A Luísa é um anjo, coitada [...], mas tem coisas em que é criança!


Não vê o mal. é muito boa, deixa-se ir. com este caso da Leopoldina,

1 As observações contidas neste parágrafo constituem o resumo de algumas das idéias expostas
pela professora Mary del Priore em palestra proferida no Instituto de Psicologia da USP em
28/04/93.

22
por exemplo [...] não tem coragem agora para a por fora. É
acanhamento, é bondade.

Porque ela é assim: esquece-se, não reflexiona. É necessário alguém


que a advirta, que lhe diga: "alto lá, isso não pode ser!" que então cai
logo em si, e é a primeira!...

Que ela, sentindo-se apoiada, tem decisão. Senão, acanha-se, deixa-a


vir. sofre com isso, mas não tem coragem de lhe dizer: "não te quero
ver, vai-te!" não tem coragem para nada: começam as mãos a tremer-
lhe, a secar-lhe a boca...é mulher, é muito mulher!... (p. 37)

Na fala argumentativa que busca justificar a inconsistência de


caráter e o comportamento a seu ver inconseqüente da esposa,
Jorge demonstra sua concepção estereotipada da feminilidade ao
estabelecer uma relação implícita de causalidade entre "não ter
coragem para nada" e "ser mulher". Na parcialidade de sua defesa
percebemos, encoberta por referências à bondade, timidez e
ingenuidade (que fazem parte da tradição romântica da heroína
frágil e pura), a criatura dependente, covarde e indecisa que o
narrador procura mostrar-nos: sob pressão, Luísa revela-se incapaz,
quer de pôr fim ao contato com Leopoldina, assumindo a repulsa
consciente que esta lhe desperta ("às vezes, na consciência achava
Leopoldina indecente", p. 19), quer de desafiar o marido,
entregando-se à atração instintiva que a impulsiona para a amiga.
Tal covardia é reconhecida, por ela própria, como traço constituinte
do seu caráter ("Mas pobre dela, era 'uma mosquinha'!" - p. 203).
Quando Basílio entra em cena, pondo à prova a vontade débil
de Luísa, o narrador começa a tomar um partido claro, de crítica
aberta contra ela: através de um léxico pejorativo, que quase chega
ao impropério, começa a declarar aquilo que antes sutilmente
insinuava. O diminutivo, por exemplo, que vinha exprimindo uma

23
afetividade ambígüa, passa a ser utilizado repetidamente de
maneira sarcástica e pejorativa, demonstrando desprezo:

Saiu correndo, tontinha, cantarolando. (p. 136)

[...] como idiota (p. 124)

Luísa teve uma cobardia indominável (p. 193)

[...] e do fundo de sua natureza de preguiçosa vinha-lhe uma


indefinida indignação contra Jorge,
contra Basílio,
contra os sentimentos,
contra os deveres,
contra tudo o que a fazia
agitar-se
e sofrer.
Que a não secassem, Santo Deus! (p. 86)

Observamos agora, claramente enunciada e criticada, a


tendência de Luísa à inação, enfatizada ainda pela repetição
anafórica da preposição contra e pela enumeração paralelística
dupla (Jorge/Basílio; os sentimentos/os deveres), culminando em
deprecação no discurso indireto livre.
Neste último exemplo, a expressão "indefinida indignação"
indica que a protagonista não tem, como já apontamos, plena
consciência do que ocorre com ela própira: e aí também percebemos
a atitude desdenhosa torna-se, aos poucos, cada vez mais evidente.
Como vemos, o adultério funciona como turning point, não só do
ponto de vista do enunciado, mas também da enunciação. Ele
determina visível mudança na atitude narrativa, que se manifesta
num discurso mais avaliativo em relação à protagonista. Há,
inclusive, certa progressão no seu modo de imiscuir-se no texto que
culmina na interferência direta. Por intermédio de epifonemas, o

24
narrador explica para o leitor o processo de degradação por que
passa Luísa: ([...] o primeiro erro que se instala numa alma até aí
defendida facilita logo aos outros entradas tortuosas [...] - p. 128).
Dentre os traços que formam a personagem Luísa, distingue-se
o contraste, concentrado principalmente na tensão entre o desejo
de uma vida mais apaixonante e as pressões sociais que obstam esse
desejo. Revelado exteriormente na indumentária, cuja escolha
sempre recai nas cores preta ou branca, esse traço surge na
descrição e reverbera no nível das ações e do diálogo, traduzindo-se
retoricamente em antítese (mais um recurso de adjunção na
formação da personagem).
O relacionamento com o primo é responsável pela
exteriorização do lado impetuoso de Luísa. Após o reencontro dos
dois, a passividade e a indolência iniciais (expressas por adjetivos
como "mole", "frouxa", "lânguida", "prostrada", "imóvel") passam a
alternar-se com atitudes opostas, motivadas por impulsividade e
irritabilidade:

impaciente (p. 130, 134, 180, 188, 262, 268)


agitada (p. 133, 202)
afogueada (p. 171)
palpitante (p. 150)
excitada (p. 169, 158, 196)
louca (p. 163)
furiosa (p. 169, 194)
alvoroçada (p. 204, 228, 193)
resoluta (p. 247)

Essa dubiedade de comportamento e instabilidade de


temperamento, ora plácido e suave, ora intempestivo e caprichoso,
acaba por suscitar os mais divergentes comentários das demais
personagens e do próprio narrador, muitas vezes expressos por meio
da comparação com animais:

25
passarinho [narrador] x viborazinha [Jorge]
é uma víbora [Basílio]

pomba [D. Felicidade] x que bicha! [cocheiro]


grande cabra [Juliana]

Porém, em lugar de funcionar como sinal de uma maneira de


ser complexa, o contraste indica uma personalidade amorfa, que está
sempre tentando adaptar-se à expectativa dos outros, que se
mostra, por exemplo, moralista para Leopoldina, mas libertina para
Basílio; covarde para Juliana e corajosa para Castro (o homem que se
oferece para resolver seus problemas financeiros em troca de favores
amorosos e a quem ela acaba por chicotear). Luísa age por impulso,
mas, como vimos, esse impulso se volta principalmente para a
acomodação. Trata-se de uma criatura que não tem código próprio
de comportamento, com base em princípios éticos. Isso fica claro no
seu relacionamento com Basílio:

Luísa admirava muito a sua experiência do luxo; obedecia-lhe,


amoldava-se às suas idéias: - até afetar, sem o sentir, um desdém pela
gente virtuosa, para imitar as suas opiniões libertinas (p. 149/150).

Por um lado, Luísa desfruta de alto conceito moral no seu


próprio meio, manifestado nas palavras dos amigos da casa,
Sebastião ("um anjinho cheio de dignidade"), Conselheiro Acácio
("esposa modelo") e D. Felicidade ("uma pomba"); por outro, é vista
com desconfiança pelos que se encontram em outros graus da
hierarquia social: a opinião a seu respeito é formulada de maneira
pejorativa tanto nas camadas inferiores (Julião: "tola"; Juliana:
"sonsa", "grande bêbada"; Paula: "vaca solta lambe-se toda") como
nas superiores (Visconde Reinaldo: "um trambolho!").

26
Por todos esses testemunhos, perpassa o tratamento
desdenhoso do narrador, que os desautoriza na medida em que
aponta para as próprias fraquezas daqueles que os enunciam:
Sebastião é ingênuo e inexperiente em relação às mulheres e tem
delas uma visão bastante idealizada; D. Felicidade, em sua "beatice
parva de temperamento irritado"1, não é muito consciente do que se
passa à sua volta; Juliana e Julião (versões feminina e masculina da
mesma paixão, a ambição pelo poder econômico) têm inveja de
Luísa; Reinaldo também é ocioso e superficial, além de indiferente
aos problemas dos outros; e finalmente o Conselheiro, preocupado
com o seu discurso pomposo e com a máscara de homem
importante, é de todas as personagens do livro a mais ridicularizada,
espécie de alazon à mercê do juízo do narrador.
Se as demais personagens do livro mantêm atitudes
antinômicas em relação a Luísa, também esta apresenta opiniões
antitéticas sobre elas, dependendo do estado de espírito do
momento. Ora "maldizia a vida que lhos fizera conhecer, a ele [o
Conselheiro] e a todos os amigos da casa!" (p. 169); ora "todos [...]
lhe pareciam adoráveis, com qualidades nobres, que nunca
percebera, que repentinamente tomavam um grande encanto" (p.
180).
Ainda a respeito da antítese, cabe salientar que a figura de
Luísa é posta em relevo pela imagem de sua oponente na trama,
Juliana. O quadro seguinte, em que colocamos lado a lado
características físicas de ambas, procura demonstrar com mais
clareza de que maneira funciona o princípio de contraste:

1 A expressão é do próprio Eça, em carta a Teófilo Braga, Newcastle, 12 de março de 1878, O


Primo Basílio, p. 320.

27
LUÍSA JULIANA

movimento lento x nervosamente

formas redondinhas x muitíssimo magra

brancura ... láctea x amarelidão

olhos luminosos x olhos ... encovados

cabelo louro ... enrolava-se x cuia de retrós imitando tranças


torcido no alto da cabeça

cabeça pequenina x ... lhe fazia a cabeça enorme

roupão x vestido chato sobre o peito

Alguns adjetivos que constroem essas diferenças referem-se a


dimensões: enquanto a protagonista é marcada pelo diminutivo
("pequenina", redondinha"), na antagonista predominam o
aumentativo e o superlativo ("enorme", muitíssimo"). Esses recursos
têm um sutil efeito conotativo que marca a protagonista pela beleza,
a expansão e a descontração e, ao mesmo tempo, realça a feiúra, a
rigidez, e a repressão traduzidas nas "feições espremidas" e em toda
a figura "antipática" da criada.
Luísa nutre, por ela, uma aversão que, ao marido, parece
gratuita. Ainda no primeiro capítulo do romance, o casal mede forças
a respeito de Juliana. Quando Luísa confessa ao marido, "embirro
com ela", e ameaça despedi-la, este termina por exercer sua
autoridade sobre a esposa e decide pela permanência da criada.
Há, porém, indícios de que a implicância para com Juliana tem
relação direta com as dificuldades que permeiam esse casamento. O
universo em que Luísa vive é, antes de mais nada, o universo de
Jorge, o que foi transmitido a ele pelo pai, juntamente com os

28
"ombros fortes" que carregam as responsabilidade e os direitos do
patriarcado. Como responsabilidade principal, o sustento da casa e
dos caprichos da mulher; dentre os direitos, o de vetar as amizades
dela que não lhe agradam e impor-lhe as que acha convenientes
(caso de Julião, de quem Luísa não gosta, "mas disfarçava, sorria-lhe,
porque Jorge admirava-o" - p. 27). O que Jorge oferece à esposa é a
herança de tradições que a aborrecem e tolhem: a casa onde ela vive
a abafar, símbolo do obstáculo a uma vida mais livre e apaixonada;
os "móveis íntimos que eram do tempo da mamã" (p. 10); o quadro
em que esta aparece "direita no seu corpete espartilhado e seco" (p.
18), já ela sufocada pelo costume (nos dois sentidos possíveis da
palavra). Como parte dessa herança imposta pelo marido, encontra-
se Juliana, mulher ambiciosa, inconformada com a sua posição social,
invejosa do conforto e do luxo da ama. Luísa vive a assustar-se com
sua figura soturna, que desliza pela casa como uma sombra. E
Juliana constitui, de fato, o aspecto sombrio da figura feminina: ao
arquétipo da mulher luxuriosa e exuberante, contrapõe-se como o
da megera em seu celibato involuntário.
Assim desenvolve-se, entre as duas, uma relação com toques
de sadismo e masoquismo, revelada explicitamente a partir da
paixão amorosa entre Luísa e Basílio. Na verdade, o triângulo de
paixões que se forma no romance é constituído tanto por Basílio-
Luísa-Jorge como por Basílio-Luísa-Juliana. Na trama, a criada acaba
por representar, ainda que por interesse próprio, a parte ofendida
que se encontra ausente.
É exatamente na metade do livro que se dá a reviravolta na
ação: Juliana confronta Luísa com as cartas de amor que esta trocara
com o amante, criando a complicação. A partir desse momento,
realiza-se plenamente a antítese nos papéis que ambas representam,

29
com uma permutação de funções traduzida em quiasmo: a criada
impondo-se à ama e esta assumindo as tarefas da criada. É pela
atuação de Juliana que a protagonista acabará vivenciando
plenamente a antítese de si mesma: durante o dia, esgotada pelos
pesados serviços domésticos, apresenta uma imagem descomposta,
lúgubre, deprimida. À noite, com o marido, a quem "amava agora,
imensamente" (p. 221), "era ela mesma, era Luísa, como dantes" (p.
223).
O fato, porém, é que, estirada entre os dois extremos, sujeita a
forte pressão emocional exercida tanto por Juliana como pelo
marido, Luísa acaba sofrendo a comoção cerebral que a levará à
morte. Nova faceta da personagem se apresenta: é agora dissecada
em sua agonia sob a perspectiva de um naturalismo anátomo-
patologista. Sempre pautada pela sinédoque, a descrição passa a
focalizar o desmanchar-se da personagem e sua decadência: os
olhos, "como largos bugalhos prateados" (p. 304) , "a língua branca e
dura como gesso" (p. 303), "o crânio rapado, duma cor ligeiramente
amarelada" (p. 307), "as feições crispadas" (p. 306).
O final de O Primo Basílio descoincide com o final de Honra e
Paixão, a peça teatral da personagem Ernestinho que, pela técnica de
mise-en-abîme, põe em relevo a questão do adultério feminino.
Quando tal peça é discutida num dos serões em casa de Luísa e
Jorge, este sugere-lhe o final, com o veredito:

Mata-a [a personagem adúltera]! É um princípio de família. Mata-a


quanto antes! (p. 34)

É essa atitude intransigente do marido que Luísa registrará em


sua imaginação exacerbada pelas leituras romanescas,
desconsiderando a natureza pacata dele. Seu conflito resulta mais do
medo de ser punida que da culpa de haver traído sua confiança ou
30
do remorso de não haver correspondido aos seus sentimentos. Esse
medo, Luísa o vivenciará no sonho em que se vê protagonista do
drama de Ernestinho. Nesse sonho (que continua o processo de
mise-en abîme), figuras masculinas sinbólicas (o rei, o patriarca de
Jerusalém e o marido) representam os modelos sociais de
moralidade e autoridade masculina que, desafiados, não deixam de
condená-la à morte.
E é finalmente Jorge quem, de maneira indireta, acaba
matando Luísa. Sabendo-a doente, susceptível à menor emoção,
pede-lhe contas do adultério ao interceptar a carta de Basílio.
Identifica-se, então, com o marido violento e punitivo da imaginação
da esposa. Na peça de Ernestinho, o marido perdoa a mulher, e
também Jorge, quando já é tarde demais, oferece seu perdão a
Luísa. Personifica-se nele a crítica a uma classe cujos valores são
agentes de uma ruptura entre a maneira de sentir e a maneira de
agir.
A morte de Luísa é mais melodramática que trágica. As
deformações físicas por que passa, em lugar de sugerir a piedade e o
horror que dão origem ao pathos, chegam à beira do caricatural.
Sua agonia é descrita de fora: o narrador que até então lhe sondara
os pensamentos, abstém-se agora de esmiuçar os delírios que lhe
vão na alma, deixando que sejam percebidos nas palavras soltas por
ela enunciadas. Essas palavras, porém, não contêm força dramática.
A morte dá acabamento à figura de Luísa: agora seu retrato
está completo. E diante dessa morte, as outras personagens
procuram exteriorizar a opinião que dela faziam. Digno de nota é o
discurso laudatório que lhe dedica o Conselheiro Acácio,
enfatizando-lhe o lado angelical de "casta esposa", "virtuosa
senhora" (p. 312), e que consiste numa reunião hiperbólica de clichês

31
vazios. Esse discurso é solenemente declamado a Julião num bar,
onde o diálogo rústico e grosseiro que se desenvolve paralelamente
cria um efeito acentuadamente irônico e humorístico. Ao final da
leitura, diz Acácio, orgulhoso:

- Creio que está digno dela, e de mim! (p. 313)


O que é motivo de orgulho para o Conselheiro pode ser
submetido a uma leitura às avessas. Seu discurso é digno de ambos:
tão superficial e mentiroso como a homenageada e tão pomposo e
estereotipado como quem o escreve.
Mas o último retrato de Luísa é fornecido por Reinaldo:

Porque enfim fossem francos: que tinha ela? Não queria dizer mal "da
pobre senhora que estava naquele horror dos Prazeres", mas a
verdade é que não era uma amante chic, andava em tipóias de praça;
usava meias de tear; casara com um reles indivíduo de secretaria; vivia
numa casinhola, não possuía relações decentes; jogava naturalmente
o quino, e andava por casa de sapatos de ourelo; não tinha espírito,
não tinha toilette... que diabo! Era um trambolho! (p. 318)

A enumeração exaustiva de características burguesas,


finalizada em clímax constituído de uma imprecação e um insulto,
funciona como um necrológio crítico tão válido (e tão superficial)
como o do Conselheiro. O toque final ao quadro que configura a
personagem é o pesado traço da caricatura: ao perfil delicado e
meigo delineado no início do romance, sobrepõe-se a imagem
grotesca, de "trambolho" deselegante.
Assim analisado o retrato da protagonista de O Primo Basílio,
caberia perguntarmos qual o modelo de mulher que através dela se
apresenta. Reunindo os principais recursos retóricos que a
enformam, a adjunção, a sinédoque, o sensorialismo e a antítese,
acreditamos ser possível estabelecer uma hipótese antes de
confrontá-la com as personagens dos outros romances.

32
Trata-se, em primeiro lugar, de um ser fragmentado em
partes, uma soma de atributos físicos sem estrutura moral a
sustentá-los e a conferir-lhes integridade. Eça quis fazê-la superficial
e, para isso, adotou técnicas de superfície, como a repetição
insistente, a comparação explícita, a linguagem sensorial epidérmica
que não se aprofunda na psicologia da personagem, simplesmente
porque não há complexidade no universo interior retratado.
Criatura antitética, oscilando entre a luxúria e o medo,
desejando por um lado a aventura e, por outro, o repouso, Luísa tem
sempre os sentimentos "numa dolorosa trapalhada"; essa dor, no
entanto, não chega a provocar a adesão do leitor, exatamente por se
originar de uma "trapalhada". Afinal, como pode provocar
solidariedade uma criatura descrita de cima para baixo, sob a lente
do sarcasmo e do desprezo?
Dentre os críticos de Eça, Machado de Assis se ressente dessa
impossibilidade de empatia. Diz ele:

Para que Luísa me atraia e me prenda, é preciso que as tribulações


que a afligem venham dela mesma; seja uma rebelde ou uma
arrependida; tenha remorsos ou imprecações; mas, por Deus! dê-me a
sua pessoa moral.1

Acontece que há duas maneiras possíveis de se julgar a


qualidade de uma personagem: tomando-a isoladamente ou
considerando-a como parte de um todo, relacionando suas
características éticas com as propostas estéticas contidas no tecido
ficcional de que faz parte.
O Primo Basílio é um romance em que a ação predomina
sobre a personagem. Ele não tem a pretensão de "atrair e prender" o
leitor por intermédio de sua protagonista; ao contrário, Luísa é

1 O Cruzeiro, 16 e 30 de abril de 1878. Apud BOSI, A. et al., Machado de Assis, p. 80.

33
construída através de um mecanismo de rejeição que já se origina
no próprio sarcasmo do foco narrativo. O texto procura exatamente
configurar uma pessoa amoral, movida por uma paixão
desorientada, que se reconhece culpada porque a sociedade assim a
considera, mas que não se sente verdadeiramente culpada. As forças
que agem sobre o seu comportamento são mais externas que
internas: sua tortura não é originada na alma, mas na chantagem de
Juliana. O grande drama de Luísa, como diz Silviano Santiago, é o da
"inconsciência no mal"1. E o mal, aqui, não pode ser lido sob a luz de
um moralismo que condena o seu comportamento adulterino. O
grande mal de Luísa, o seu "pecado", é a divisão de si mesma em
dois modelos que permanecem lado a lado, que são vivenciados
paralelamente sem confrontar-se em conflito psicológico.
Indelevelmente marcada pela antítese, incapaz de compreender a
distância que há entre sua inclinação natural e o papel social que é
obrigada a representar, dilacerada entre os arquétipos da santa e da
cortesã e incapaz de fundi-los numa síntese complexa, Luísa é de
fato um estereótipo, mas um estereótipo verossímil diante das
intenções discursivas: aquilo que ela faz é coerente com o que ela é.
Eça pretendeu fazê-la superficial. E Luísa é redundantemente
superficial.

1 "Eça, Autor de Madame Bovary", in Uma Literatura nos Trópicos, p. 65.

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