Caracterizacao de Luisa de o Primo Basil
Caracterizacao de Luisa de o Primo Basil
Caracterizacao de Luisa de o Primo Basil
E SUPERFICIALIDADE
Eliane Fittipaldi
1
Segundo Shlomith Rimmon-Kenan1, há dois modos possíveis
de apresentação da personagem: a definição direta, que nomeia os
traços caracterizadores por meio de adjetivos ou substantivos
abstratos, e a apresentação indireta, em que os traços não são
mencionados mas exemplificados, de maneira que o leitor possa
inferir a qualidade que implicam. Enquanto o predomínio do
primeiro modo leva à conceptualização e à generalização,
determinando estaticidade e nitidez da personagem, o do segundo
indica maior sugestividade e indeterminação.
Na protagonista dO Primo Basílio, encontram-se os dois
modos de apresentação, utilizados em maior ou menor grau
conforme a intenção enunciativa em cada momento da trama.
Aqui ela surge com características físicas bem definidas e bem
delineadas, que revelam um alto grau de figurativismo. Sua descrição
é analítica, seu retrato é elaborado minuciosamente, com base na
sinédoque: a focalização não é globalizada, mas, por intermédio do
close-up, concentra-se em partes do corpo e detalhes de
indumentária, tudo adjetivado com abundância.
O processo descritivo que configura Luísa realiza-se mais por
contigüidade que por similaridade. Cabelos, pele, cotovelo, dedos e,
posteriormente, olhos, braços, pés, toilettes, vão compondo uma
figura feminina da qual nunca é feita uma apresentação general. É
como se Luísa estivesse sendo examinada por um microscópio com
lente amplificadora que ganha em detalhes mas perde em
distanciamento. Quando esse processo tende para a similaridade,
não utiliza a metáfora plenamente realizada2, mas a imagem ou a
comparação explícita.
2
Tal apresentação, aparentemente direta, contém no entanto
indicações sutis que nos levam a inferir características mais
complexas, não apenas no que diz respeito ao delineamento do
caráter da protagonista, mas principalmente quanto às técnicas
empregadas em sua construção.
O cabelo, por exemplo, um tanto desalinhado, "com um tom
seco do travesseiro", e o "movimento lento e suave dos seus dedos"
apontam para uma calma e indolência que encontrarão ressonância
na descrição do ambiente, feita logo a seguir com base no princípio
de semelhança: se o narrador se abstém de utilizar, de imediato, em
relação a Luísa, adjetivos que apontam explicitamente para o traço
da preguiça, não os poupará ao cenário, caracterizado por um
silêncio "sonolento" às vezes interrompido por um "zumbido
monótono de moscas" e um "rumor dormente" (p. 9). Tudo isso,
reforçado por verbos como "amolentava" e "arrastava-se", instaura a
atmosfera modorrenta que caracteriza sua existência "fácil e doce".
A interação entre Luísa e o meio em que vive é, por um lado,
enfatizada e, por outro, posta em questão: a identidade ocorre no
nível da descrição, mas há um imenso contraste no nível do desejo.
A verdade é que Luísa passa o tempo todo a abafar-se e rebela-se
contra a "vida estreita entre quatro paredes, passada a examinar róis
de cozinha e a fazer crochê", quando a vida ideal parece transcorrer
algures, na cidade que constitui o centro da civilização: "ir para Paris!
para Paris!" (p. 171).
O fato de ainda encontrar-se em roupão, às onze horas da
manhã ("que seca ter de se ir vestir!"), demonstra a ociosidade à qual
está entregue (não só nesta cena mas ao longo de toda a narrativa).
Acontece que indolência e ociosidade constituem traços
fundamentais que servirão não apenas como molas propulsoras da
3
paixão da protagonista, mas também como instrumento de crítica a
toda uma classe social. À medida que Luísa é descrita, esses traços
vão-se explicitando. Sempre através da sinédoque, sua figura é
paulatinamente acentuada por meio de um processo de adjetivação
que mescla qualidades morais a atributos físicos:
4
homem!" - p. 261). A eles, juntar-se-ão outros elementos de
amplificação, como tipos diferentes de construções paralelísticas,
assíndetos, polissíndetos e gradações, muitas vezes combinados:
o seu pé pequeno, branco como leite, com veias azuis (p. 13);
6
concentração expressiva - que tem, como veremos, manifestações
muito ricas - é a limitação propositada do léxico. Mas esta economia
quantitativa o obriga, para traduzir suas variadas percepções, em
primeiro lugar, a extrair desse vocabulário até à última essência das
possibilidades significativas que cada palavra contém e, em segundo,
a forçar cada uma delas a novas acepções, totalmente inéditas, por
meio de alianças sutis e choques combinatórios. Através destes meios,
consegue ele obter a contribuição das forças ocultas evocativas de
todos os seus significados, fazendo-as desdobrarem-se,
multiplicarem-se semanticamente e saltarem dos seus trilhos
consagrados pelo uso até então. E sem a menor sensação de esforço
nem distorção, com uma naturalidade capaz de iludir o mais vigilante
dicionarista.1
1 Op. cit., p. 75
2 Op. cit., p. 79
7
coloquialidade, como uma opção realista de representar o humano
"tal como é".
Em O Universo do Romance, Bourneuf e Ouellet chamam a
atenção para o fato de que uma personagem "não pode existir no
nosso espírito como um planeta isolado"1. Ao contrário, ela
estabelece, com os "homens e coisas" do seu universo fictício, uma
rede de relações reveladora daquilo que realmente é.
Assim, na cena inicial de O Primo Basílio, o foco descritivo
alterna-se entre Luísa e Jorge: ele, estirado na voltaire, espreguiça-se
e boceja, e sua figura plácida, bonachona, de " proseirão, burguês",
põe em relevo, ainda por meio da identidade, a postura acomodada
da esposa.
O diálogo significativamente lacônico e corriqueiro que se
estabelece entre ambos, contrastando com a frase expandida da
narração, é significativo para o desenrolar da trama, já que uma das
molas da intriga é a sua situação conjugal insatisfatória. Desse
diálogo, podemos depreender que o casamento aqui retratado
assenta-se basicamente em exterioridades e frivolidades. Mais
adiante, saberemos quais foram os predicados de Luísa que
atraíram Jorge: "seus cabelos louros, [...] sua maneira de andar, [...]
seus olhos castanhos muito grandes" (p. 11). Jorge apaixona-se por
sinédoque, já que Luísa se lhe apresenta apenas como um conjunto
de atributos físicos. A decisão de casar-se, ele a toma antes mesmo
de conhecê-la, movido por razões mais pragmáticas que passionais,
ou seja, pela morte da mãe, por sentir-se "um pouco desamparado",
por desejar "enlaçar uma cinta fina e doce, ouvir na casa o frufru de
um vestido".
1 p. 199.
8
Quanto a Luísa, tampouco se casa por amor. Ao contrário,
tudo o que a motiva é uma atração física, ainda incipiente:
9
Observamos, no discurso que enforma a protagonista, que
esse mecanismo de adjunção determinará o tipo de paixão que
passará a ser por ela vivenciado. Luísa, "sem o amar", "pôs-se a
adorá-lo", numa atitude que revela alto grau de idealização. Trata-se
de uma paixão excessiva, mas não de sentimentos consistentes, e
sim, de necessidades. O fato é que ela espera do parceiro que lhe
proporcione o repouso, a eliminação das tensões, e que tome para si
o papel de dar sentido ao relacionamento:
Era o seu tudo - a sua força, o seu fim, o seu destino, a sua religião, o
seu homem! (p. 17)
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As grandes emoções, Luísa as vivencia de maneira vicária, quer
durante a leitura dos romances de Dumas e Scott, quer ouvindo as
narrativas dos amores ilegítimos da amiga de colégio, Leopoldina.
Com a amiga, sim, Luísa mantém uma profunda intimidade,
que remonta aos primeiros "sentimentos". O tema recorrente de
suas conversas é a paixão,
11
É assim que, já na primeira cena e no primeiro capítulo do
romance, apresenta-se um dos temas recorrentes do realismo: a
crítica ao casamento como clichê social, cuja inconsistência tem por
base a acomodação, o ócio, a superficialidade do pensamento
burguês e o idealismo romântico, que faz buscar no ser amado a
solução para as insatisfações pessoais. Incorporando esses temas,
Luísa transforma-se, no decorrer da trama, num argumento
personificado contra as instituições, às custas de sua autonomia
como ser fictício. Revestida dessa função crítica, constituindo ela
própria uma sinédoque ao representar toda burguesa urbana com
instrução limitada que faz do casamento o seu ofício, a protagonista
de O Primo Basílio instaura-se como estereótipo. Na trama, à medida
que atribui, não a si mesma, mas ao outro, a capacidade de vivenciar
o "destino", a "religião" a "força", ela se esvazia como caráter
(inclusive no sentido de "character", personagem): se "tudo", para
Luísa, está concentrado no marido, a ela lhe resta o nada, o vácuo,
que tenta preencher com atos mecânicos e inconsistentes, como
fazer "saltar com a pontinha da chinela a orla do roupão" (p. 13),
bater "distraidamente no piano pedaços de valsas" (p. 63) ou fazer
"recuar a película das unhas" (p. 14). Marcadas pela redundância e
pela superficialidade, suas ações consistem, na maioria, em:
Acariciar-se
Bocejar
Cantar
Devanear
Espreguiçar-se
Fazer a toalete
Ficar olhando as unhas
Ler romances de evasão
Mirar-se no espelho
Passear
Suspirar
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Estender-se na voltaire e na causeuse (com notável recorrência, às
páginas 9, 13, 63, 128, 143, 164, 171, 172, 190, 191, 246).
13
Mas, enfim, se eu embirro com ela [Juliana], não me importa, posso
bem mandá-la embora (p. 13)
14
- Não pude. (p. 160)
15
chapéu novo que lhe mandava Madame François, o tempo que faria
em Sintra, a doçura das noites quentes sob a escuridão das
ramagens... (p. 87)1
1 Chama a atenção, neste trecho, a repetição exaustiva do conectivo "que", aproximando a voz
narrativa do modo de exprimir-se da personagem: essa marca de coloquialismo, em lugar de
representar um vício do discurso, contribui para a sua verossimilhança.
16
porém, é uma personagem pouco elaborada do ponto de vista
psicológico.
É verdade que Luísa é um signo que passa por constantes
alterações ao longo da narrativa. Não podemos dizer, no entanto,
que há evolução, que ela caminha para a esfericidade.
O caso com Basílio, por exemplo, chega a impulsioná-la para o
desenvolvimento do raciocínio e a ampliação de suas preocupações,
o que pode ser observado pela nítida alteração dos verbos dicendi:
agora, Luísa "pensa", "reflete". Ao perceber que o primo começa a
tratá-la com frieza, abandona os trejeitos e assume uma postura
mais adulta, um discurso mais sério, repleto de "bom senso e lógica",
a ponto de surpreendê-lo ("trazias isso decorado", diz ele à página
159. Mas ela mesma o havia preparado, ainda que de antemão).
Insatisfeita também com a relação extraconjugal, volta o
pensamento para o marido ausente, analisando seus sentimentos
num discurso que ainda não é racionalmente articulado, mas que já
caminha para a argumentação:
17
coerente a respeito do amor como um sentimento que "na hora em
que nasce começa a morrer" (p. 159).
Neste momento da narrativa, apresenta-se, à personagem,
uma possibilidade de adensamento; as frustrações amorosas a
impulsionam para uma tomada de consciência e para a crítica dos
relacionamentos. Se isso fosse levado adiante, o resultado seria uma
espécie de precursora portuguesa da Nora de Ibsen (Casa de
Bonecas), e o romance proporia de fato a reforma social ao oferecer
a alternativa de independência à mulher nele retratada. Contudo, no
momento em que começa a crescer, Luísa é obrigada a recuar, caso
contrário a obra não atingiria a finalidade pré-estabelecida de
mostrar, através de sua decadência, a decadência da educação e do
casamento burguês. Caso esta personagem se afirmasse como
individualidade complexa, estabeleceria maior autonomia em relação
ao narrador, contrariando a tese taineana e comprometendo a
"verdade" que o autor se propunha a demonstrar. É assim que ela
termina por retroceder nesse movimento para a conscientização,
voltando à postura infantil e insegura do início, e buscando ajuda no
amigo de Jorge, Sebastião.
Dos traços fundamentais que compõem a protagonista de O
Primo Basílio, o mais indicativo do seu tipo de paixão é a forte
sensualidade. Apenas sugerido, na primeira cena citada, pelo ato
narcisista de acariciar a orelha (que virá a se repetir mais adiante em
"com o gesto acariciador e amoroso dos dedos sobre a orelha" p.
13), mas amplamente explicitado e explorado ao longo da narrativa,
esse traço é marcado no discurso por uma adjetivação que remete a
sensações visuais, auditivas, olfativas, gustativas e táteis. Além disso,
não é apenas referido como um dado temático, mas principalmente
18
criado na própria linguagem, por meio do léxico, da criação de
aliterações e do ritmo ondulante das frases, como no seguinte caso:
19
ideal exigida pelas expectativas românticas da esposa; o filho tão
desejado acaba por revelar-se impossível, já que seu casamento
comJorge é marcado pela esterilidade (não só no que diz respeito à
fábula, mas principalmente no plano simbólico); Leopoldina
representa a libertinagem, pouco condizente com a situação social
que o casal faz questão de manter; e Basílio, mesmo quando Luísa
assume viver na ilegalidade do adultério, foge ao compromisso que
poria fim ao seu estilo lúdico de amar.
Se é na relação com as outras personagens que Luísa se faz
mais compreensível, sua sensualidade é melhor enfatizada quando
comparada à de Leopoldina:
LUÍSA LEOPOLDINA
e havia no seu andar uma lassidão que a linha dos quadris, rica e firme, certos
lhe quebrava a linha da cinta de um = quebrados vibrantes de cintura faziam
modo lânguido e prometedor voltar os olhares acesos dos homens
brancura tenra e láctea das louras, na pele muito fina, dum trigueiro
rosado úmido x quente e corado, havia sinaizinhos
desvanecidos de antigas bexigas
20
beicinhos vermelhos e cheios = beiços gordinhos dum vermelho cálido
21
paradigma de comportamento, mas, enquanto o amor conjugal é
reconhecido e normatizado, o amor passional é considerado como
nocivo ao bem estar social e, por isso, sempre associado à morte e
ao fracasso. Assim, a paixão é banida do casamento e impõe-se, à
"mulher santa", um modelo de relacionamento pautado pelo
respeito e pela submissão ao marido. O mapeamento da sexualidade
conjugal é feito pela Igreja, que proscreve a erotização das relações
íntimas (por isso, Luísa sente-se envergonhada de ter "um capricho
pelo marido")1.
Assim, à mulher de amantes e vícios que é Leopoldina,
protótipo da visão naturalista do ser humano submetido às forças do
meio, raça e momento, opõe-se, de início, a figura romântica de
Luísa como "muito boa dona de casa" que tem "cuidados muito
simpáticos nos seus arranjos", "asseada", "alegre como um
passarinho", "serzinho louro e meigo" , que confere ao seu lar um
"encanto sério".
Nestes exemplos, os termos avaliativos de conotação positiva
(um deles acompanhado de intensificador, "muito") e os
substantivos no diminutivo afetivo oferecem uma imagem favorável
da protagonista, indicativa do alto conceito de que desfruta no seu
meio. Mas, como contraponto à voz narrativa, a fala direta das outras
personagens apresenta juízos de valor indicando a crítica a que
Luísa está sujeita. Jorge, por exemplo, oferece-nos dela um retrato
acurado, no discurso paternalista e preconceituoso que prega contra
a amizade de Leopoldina:
1 As observações contidas neste parágrafo constituem o resumo de algumas das idéias expostas
pela professora Mary del Priore em palestra proferida no Instituto de Psicologia da USP em
28/04/93.
22
por exemplo [...] não tem coragem agora para a por fora. É
acanhamento, é bondade.
23
afetividade ambígüa, passa a ser utilizado repetidamente de
maneira sarcástica e pejorativa, demonstrando desprezo:
24
narrador explica para o leitor o processo de degradação por que
passa Luísa: ([...] o primeiro erro que se instala numa alma até aí
defendida facilita logo aos outros entradas tortuosas [...] - p. 128).
Dentre os traços que formam a personagem Luísa, distingue-se
o contraste, concentrado principalmente na tensão entre o desejo
de uma vida mais apaixonante e as pressões sociais que obstam esse
desejo. Revelado exteriormente na indumentária, cuja escolha
sempre recai nas cores preta ou branca, esse traço surge na
descrição e reverbera no nível das ações e do diálogo, traduzindo-se
retoricamente em antítese (mais um recurso de adjunção na
formação da personagem).
O relacionamento com o primo é responsável pela
exteriorização do lado impetuoso de Luísa. Após o reencontro dos
dois, a passividade e a indolência iniciais (expressas por adjetivos
como "mole", "frouxa", "lânguida", "prostrada", "imóvel") passam a
alternar-se com atitudes opostas, motivadas por impulsividade e
irritabilidade:
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passarinho [narrador] x viborazinha [Jorge]
é uma víbora [Basílio]
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Por todos esses testemunhos, perpassa o tratamento
desdenhoso do narrador, que os desautoriza na medida em que
aponta para as próprias fraquezas daqueles que os enunciam:
Sebastião é ingênuo e inexperiente em relação às mulheres e tem
delas uma visão bastante idealizada; D. Felicidade, em sua "beatice
parva de temperamento irritado"1, não é muito consciente do que se
passa à sua volta; Juliana e Julião (versões feminina e masculina da
mesma paixão, a ambição pelo poder econômico) têm inveja de
Luísa; Reinaldo também é ocioso e superficial, além de indiferente
aos problemas dos outros; e finalmente o Conselheiro, preocupado
com o seu discurso pomposo e com a máscara de homem
importante, é de todas as personagens do livro a mais ridicularizada,
espécie de alazon à mercê do juízo do narrador.
Se as demais personagens do livro mantêm atitudes
antinômicas em relação a Luísa, também esta apresenta opiniões
antitéticas sobre elas, dependendo do estado de espírito do
momento. Ora "maldizia a vida que lhos fizera conhecer, a ele [o
Conselheiro] e a todos os amigos da casa!" (p. 169); ora "todos [...]
lhe pareciam adoráveis, com qualidades nobres, que nunca
percebera, que repentinamente tomavam um grande encanto" (p.
180).
Ainda a respeito da antítese, cabe salientar que a figura de
Luísa é posta em relevo pela imagem de sua oponente na trama,
Juliana. O quadro seguinte, em que colocamos lado a lado
características físicas de ambas, procura demonstrar com mais
clareza de que maneira funciona o princípio de contraste:
27
LUÍSA JULIANA
28
"ombros fortes" que carregam as responsabilidade e os direitos do
patriarcado. Como responsabilidade principal, o sustento da casa e
dos caprichos da mulher; dentre os direitos, o de vetar as amizades
dela que não lhe agradam e impor-lhe as que acha convenientes
(caso de Julião, de quem Luísa não gosta, "mas disfarçava, sorria-lhe,
porque Jorge admirava-o" - p. 27). O que Jorge oferece à esposa é a
herança de tradições que a aborrecem e tolhem: a casa onde ela vive
a abafar, símbolo do obstáculo a uma vida mais livre e apaixonada;
os "móveis íntimos que eram do tempo da mamã" (p. 10); o quadro
em que esta aparece "direita no seu corpete espartilhado e seco" (p.
18), já ela sufocada pelo costume (nos dois sentidos possíveis da
palavra). Como parte dessa herança imposta pelo marido, encontra-
se Juliana, mulher ambiciosa, inconformada com a sua posição social,
invejosa do conforto e do luxo da ama. Luísa vive a assustar-se com
sua figura soturna, que desliza pela casa como uma sombra. E
Juliana constitui, de fato, o aspecto sombrio da figura feminina: ao
arquétipo da mulher luxuriosa e exuberante, contrapõe-se como o
da megera em seu celibato involuntário.
Assim desenvolve-se, entre as duas, uma relação com toques
de sadismo e masoquismo, revelada explicitamente a partir da
paixão amorosa entre Luísa e Basílio. Na verdade, o triângulo de
paixões que se forma no romance é constituído tanto por Basílio-
Luísa-Jorge como por Basílio-Luísa-Juliana. Na trama, a criada acaba
por representar, ainda que por interesse próprio, a parte ofendida
que se encontra ausente.
É exatamente na metade do livro que se dá a reviravolta na
ação: Juliana confronta Luísa com as cartas de amor que esta trocara
com o amante, criando a complicação. A partir desse momento,
realiza-se plenamente a antítese nos papéis que ambas representam,
29
com uma permutação de funções traduzida em quiasmo: a criada
impondo-se à ama e esta assumindo as tarefas da criada. É pela
atuação de Juliana que a protagonista acabará vivenciando
plenamente a antítese de si mesma: durante o dia, esgotada pelos
pesados serviços domésticos, apresenta uma imagem descomposta,
lúgubre, deprimida. À noite, com o marido, a quem "amava agora,
imensamente" (p. 221), "era ela mesma, era Luísa, como dantes" (p.
223).
O fato, porém, é que, estirada entre os dois extremos, sujeita a
forte pressão emocional exercida tanto por Juliana como pelo
marido, Luísa acaba sofrendo a comoção cerebral que a levará à
morte. Nova faceta da personagem se apresenta: é agora dissecada
em sua agonia sob a perspectiva de um naturalismo anátomo-
patologista. Sempre pautada pela sinédoque, a descrição passa a
focalizar o desmanchar-se da personagem e sua decadência: os
olhos, "como largos bugalhos prateados" (p. 304) , "a língua branca e
dura como gesso" (p. 303), "o crânio rapado, duma cor ligeiramente
amarelada" (p. 307), "as feições crispadas" (p. 306).
O final de O Primo Basílio descoincide com o final de Honra e
Paixão, a peça teatral da personagem Ernestinho que, pela técnica de
mise-en-abîme, põe em relevo a questão do adultério feminino.
Quando tal peça é discutida num dos serões em casa de Luísa e
Jorge, este sugere-lhe o final, com o veredito:
31
vazios. Esse discurso é solenemente declamado a Julião num bar,
onde o diálogo rústico e grosseiro que se desenvolve paralelamente
cria um efeito acentuadamente irônico e humorístico. Ao final da
leitura, diz Acácio, orgulhoso:
Porque enfim fossem francos: que tinha ela? Não queria dizer mal "da
pobre senhora que estava naquele horror dos Prazeres", mas a
verdade é que não era uma amante chic, andava em tipóias de praça;
usava meias de tear; casara com um reles indivíduo de secretaria; vivia
numa casinhola, não possuía relações decentes; jogava naturalmente
o quino, e andava por casa de sapatos de ourelo; não tinha espírito,
não tinha toilette... que diabo! Era um trambolho! (p. 318)
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Trata-se, em primeiro lugar, de um ser fragmentado em
partes, uma soma de atributos físicos sem estrutura moral a
sustentá-los e a conferir-lhes integridade. Eça quis fazê-la superficial
e, para isso, adotou técnicas de superfície, como a repetição
insistente, a comparação explícita, a linguagem sensorial epidérmica
que não se aprofunda na psicologia da personagem, simplesmente
porque não há complexidade no universo interior retratado.
Criatura antitética, oscilando entre a luxúria e o medo,
desejando por um lado a aventura e, por outro, o repouso, Luísa tem
sempre os sentimentos "numa dolorosa trapalhada"; essa dor, no
entanto, não chega a provocar a adesão do leitor, exatamente por se
originar de uma "trapalhada". Afinal, como pode provocar
solidariedade uma criatura descrita de cima para baixo, sob a lente
do sarcasmo e do desprezo?
Dentre os críticos de Eça, Machado de Assis se ressente dessa
impossibilidade de empatia. Diz ele:
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construída através de um mecanismo de rejeição que já se origina
no próprio sarcasmo do foco narrativo. O texto procura exatamente
configurar uma pessoa amoral, movida por uma paixão
desorientada, que se reconhece culpada porque a sociedade assim a
considera, mas que não se sente verdadeiramente culpada. As forças
que agem sobre o seu comportamento são mais externas que
internas: sua tortura não é originada na alma, mas na chantagem de
Juliana. O grande drama de Luísa, como diz Silviano Santiago, é o da
"inconsciência no mal"1. E o mal, aqui, não pode ser lido sob a luz de
um moralismo que condena o seu comportamento adulterino. O
grande mal de Luísa, o seu "pecado", é a divisão de si mesma em
dois modelos que permanecem lado a lado, que são vivenciados
paralelamente sem confrontar-se em conflito psicológico.
Indelevelmente marcada pela antítese, incapaz de compreender a
distância que há entre sua inclinação natural e o papel social que é
obrigada a representar, dilacerada entre os arquétipos da santa e da
cortesã e incapaz de fundi-los numa síntese complexa, Luísa é de
fato um estereótipo, mas um estereótipo verossímil diante das
intenções discursivas: aquilo que ela faz é coerente com o que ela é.
Eça pretendeu fazê-la superficial. E Luísa é redundantemente
superficial.
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