Telma Rocha Lisowski: Breve Estudo Sobre Carl Schmitt

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 59

1

TELMA ROCHA LISOWSKI

A LEGITIMIDADE DO PODER ESTATAL


NA NORMALIDADE E NA EXCEÇÃO:
BREVE ESTUDO SOBRE CARL SCHMITT

Trabalho de conclusão de curso para a obtenção


de grau de Bacharel em Direito pela Faculdade
de Direito da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.

Orientador: Luis Fernando Barzotto

Porto Alegre
2010
2

TELMA ROCHA LISOWSKI

A LEGITIMIDADE DO PODER ESTATAL


NA NORMALIDADE E NA EXCEÇÃO:
BREVE ESTUDO SOBRE CARL SCHMITT

Trabalho de conclusão de curso para a obtenção de grau de Bacharel em Direito pela


Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Banca Examinadora:

...........................................................................................................................
Prof. Dr. Luis Fernando Barzotto

...........................................................................................................................
Prof. Dr. Wladimir Barreto Lisboa

...........................................................................................................................
Prof. Me. Alejandro Montiel Alvarez

Conceito: A

Porto Alegre, 9 de julho de 2010.


3

RESUMO

A justificação do poder estatal é assunto há muito tempo presente nas literaturas


jurídica e política. Problemas como a diferenciação entre a validade e a eficácia do poder
político e a explicitação das relações entre legalidade e legitimidade são apenas alguns
exemplos entre os inúmeros pontos que permanecem sem solução. Um dos autores que se
ocupou desses temas foi Carl Schmitt, importante jurista alemão nascido no ano de 1888.
Neste trabalho, propõe-se a análise de seu conceito de legitimidade e das formas como, com
base nessa noção, ele procura resolver a questão da justificação do poder. Inicialmente,
estuda-se o comportamento das instituições estatais na situação de normalidade e observa-se,
através da demonstração das deficiências do sistema de legalidade, a crítica feita por Schmitt
ao pensamento liberal. Após, já no estudo do estado de exceção, analisa-se o modo como o
autor constrói sua própria teoria da legitimação em contraposição àquela do liberalismo.
Pretende-se, ao fim, apontar quais são suas contribuições à filosofia política, bem como os
problemas e limites de seu pensamento.

Palavras-chave:
poder político – justificação – legitimidade – estado de exceção
4

INHALT

Die Rechtfertigung der staatlichen Macht ist ein Thema, das schon seit lang in der
juristischen und politischen Literatur lebendig ist. Probleme wie die Unterscheidung zwischen
Gültigkeit und Wirksamkeit der politischen Macht und die Verdeutlichung der Beziehungen
zwischen Legalität und Legitimität sind nur Beispile der vielen Punkten, die noch keine
Lösung bekommen haben. Ein der Autoren, die sich mit diesen Themen beschäftigen haben,
ist der 1888 geborene deutsche Jurist Carl Schmitt. Bei dieser Arbeit nimmt es sich vor,
seinen Legitimitätsbegriff zu analysieren und die Weise, wie er die Frage nach der
Rechtfertigung der Macht antwortet, zu untersuchen. Erstens wird man das Verhalten der
staatliche Einrichtungen während des normalen Zustands und Schmitts Kritik des liberalen
Denkens beobachten, indem er die Schwäche des Legalitätssystems nachweist. Zweitens wird
man bei der Untersuchung des Ausnahmezustands die Weise analysieren, wie der Autor seine
eigene Legitimationstheorie schafft und diese der Theorie des Liberalismus gegenüberstellt.
Endlich wird man versuchen, sowohl Schmitts Beitrag zur politischen Philisophie als auch die
Probleme und Grenzen seines Denkens zu zeigen.

Stichwörter:
Politische Macht – Rechtfertigung – Legitimität – Ausnahmezustand
5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................6

1 LEGITIMIDADE NA NORMALIDADE..........................................................................10
1.1 LEGITIMIDADE DA ORDEM LEGAL...........................................................................11
1.1.1 Pressupostos e Problemas do Sistema de Legalidade.................................................14
1.2 LEGITIMIDADE DO PODER CONSTITUINTE.............................................................18
1.3 ALTERAÇÃO CONSTITUCIONAL E O PODER CONSTITUINTE DERIVADO.......23
1.3.1 A Supralegalidade e os Limites do Artigo 76 da Constituição de Weimar...............26

2 LEGITIMIDADE NA EXCEÇÃO....................................................................................32
2.1 A DITADURA COMISSÁRIA E O ART. 48 DA CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR......33
2.1.1 Poder Constituinte, Soberania e Ditadura..................................................................36
2.1.2 Os Limites do Artigo 48 da Constituição de Weimar.................................................40
2.2 A DITADURA SOBERANA.............................................................................................45
2.2.1 O Problema da Capacidade de Ação Política do Povo...............................................48

CONCLUSÃO.........................................................................................................................53

BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................57
6

INTRODUÇÃO

A vida em comunidade é objeto de reflexão teórica desde que o homem passou


a exercer a capacidade de pensar sobre si mesmo e questionar seu próprio modo de vida.
Antes que existisse um “Estado”, da forma como o conhecemos hoje, já haviam surgido
dúvidas a respeito do exercício de poder de uns sobre os outros, das causas e eventuais
justificativas desse poder, das diversas formas de autoridade, do respeito e da obediência.
Foi a partir da criação do que comumente chamamos de Estado moderno,
contudo, que essa discussão passou a povoar de forma mais intensa a filosofia jurídica e
política ocidental e mostrar, então, toda sua beleza e complexidade. De Hobbes e Rousseau,
passando por Hegel, Marx, Weber, até autores contemporâneos como Arendt e Rawls, todos
se preocuparam com o estudo da dinâmica do poder estatal, sua relação com os cidadãos, suas
origens e, talvez um dos pontos mais desafiadores, sua justificação.
A secularização do Estado só veio a aumentar esses desafios. O que antes era
explicado de forma mítica, através da remissão a eventos, símbolos, mitos, enfim, a uma
tradição vivida em comum, ou (seja alternativa, seja cumulativamente) de forma religiosa,
com base em textos sagrados revelados por uma divindade onipotente, agora deve ser
racionalizado e entendido a partir do homem-terreno, independentemente de suas crenças e
pertenças1. A retirada do âmbito do político de quaisquer argumentos transcendentais

1
Dyzenhaus afirma ser justamente essa a questão central da filosofia política de Hobbes. Para ele, “a pergunta de
Hobbes é como é possível uma ordem inicial, dada a desintegração das justificações tradicionais oferecidas para
a legitimidade do poder supremo”. Ele segue dizendo que “a resposta de Hobbes à questão é que nós precisamos
de uma justificação racional para a ordem política e legal, uma que apele apenas à razão”. (DYZENHAUS,
David. Legality and Legitimacy. Carl Schmitt, Hans Kelsen and Hermann Heller in Weimar. New York: Oxford
University Press Inc, 2003, 2ª edição, pág. 8)
7

pretendia conferir a essas novas teorias políticas a capacidade de universalização, tão


admirada e almejada pelo iluminismo.
Esse desejo de racionalização, como era de se esperar, não diminuiu, mas
aumentou as dificuldades de qualquer teoria que tencionasse explicar e justificar as relações
de poder, já que raciocínios explicitamente metafísicos haviam perdido quase que
completamente sua credibilidade. Tamanha era (e ainda é) a dificuldade que não raramente
são encontradas teses revestidas de suposta cientificidade, mas que deixam transparecer, ainda
que muito sutilmente, a assunção de pressupostos em alguma medida transcendentais.
É nesse contexto de discussões políticas e filosóficas que se insere o autor cujo
pensamento será objeto de análise neste trabalho. Carl Schmitt nasceu na pequena cidade de
Plettenberg, oeste da Alemanha, no ano de 1.888, mesmo ano em que o imperador Wilhelm II
(Guilherme II) chegou ao poder naquele país. Presenciou uma guerra mundial, a instauração e
o fracasso da República de Weimar, outra guerra mundial – ainda mais brutal e traumatizante
que a primeira –, a separação da Alemanha, a guerra fria, a ascensão e decadência do regime
comunista soviético e veio a falecer em 1985, antes de ver seu país natal reunificado. Em
1915, graduou-se em Ciências Jurídicas na cidade de Strasbourg, após ter estudado também
em Berlim e Munique2.
A vasta obra de Schmitt abrange desde tratados jurídicos e políticos até textos
literários e crônicas de viagem, passando por importantes produções nos campos teológico,
sociológico e filosófico. Explorar toda essa riqueza, embora seja um projeto sem dúvida
interessante, seria não apenas uma tarefa demasiadamente pretensiosa, mas também
metodologicamente comprometedora. O objetivo deste trabalho, bastante específico, não
admite tal leitura.
O que se propõe aqui é um estudo das formas como o poder aparece e se
justifica dentro da estrutura do Estado moderno. Para tanto, partiremos do conceito de
legitimidade, noção de certa forma recorrente nas literaturas política e jurídica, mas que foi
apropriada de forma singular por Schmitt. As relações e modos de interação entre este
conceito e aquele de legalidade é tema que foi explicitamente tratado pelo autor em sua obra
intitulada justamente “Legalidade e Legitimidade” 3, publicada em julho de 1932. A questão
também se apresentou, entretanto, sob os mais diversos ângulos em outros de seus estudos,

2
As informações biográficas foram extraídas de: HERRERO LOPÉZ, Montserrat. El Nomos y lo Político: La
Filosofia Política de Carl Schmitt. Navarra: Ediciones Universidad de Navarra, 1997. Pág. 21-41.
3
SCHMITT, Carl. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker & Humblot, 1998. 6ª edição.
8

como “A Ditadura” 4, a “Teologia Política” 5, a “Teoria da Constituição” 6, “O Conceito do


Político” 7 e a “Teoria do Guerrilheiro” 8, publicados, respectivamente, em 1921, 1922, 1928,
1932 e 1963. Exceto o último, todos foram escritos durante a República de Weimar, período
em que a justificação das instituições estatais na Alemanha foi particularmente problemática.
Essas são as obras que fornecerão o principal substrato para esta pesquisa.
Ao longo deste trabalho, tentaremos demonstrar que, a partir do estudo da
legitimidade do poder estatal, Schmitt formulou um dos pontos mais relevantes da sua
famigerada crítica ao liberalismo político. Para o autor, uma teoria que pretende acabar com
tudo o que é verdadeiramente público não é, de fato, uma teoria política. Uma das principais
deficiências do liberalismo seria que, na sua crença de que apenas a lei pode ser uma
justificativa racional para o exercício do poder, ele estaria ignorando os limites do raciocínio
legal-burocrático e terminaria por não fazer qualquer diferenciação entre validade e eficácia
nas situações em que a lei se torna uma explicação insuficiente. Entretanto, veremos que,
mesmo ao desconstruir o liberalismo para construir sua própria teoria do político, Schmitt não
dá uma solução cabal ao problema da justificação do poder, embora alcance uma resposta
mais satisfatória.
A compreensão da teoria política de nosso autor depende do esclarecimento de
alguns conceitos-chave, que deverão ser analisados neste estudo. Um deles é a noção de
estado de exceção, à qual ele dedicou boa parte de sua obra. A única forma de se entender o
funcionamento ordinário e corriqueiro das instituições do Estado seria através da negação
dessa normalidade, é dizer, a partir do ponto de vista da exceção. Este seria o autêntico modo
jurídico de argumentação: aquele que, através do método negativo, admite a existência do
normal através da circunscrição do anormal.
Sugerimos, assim, duas perspectivas distintas de análise da questão da
legitimidade. A primeira diz respeito com a política cotidiana, ordinária, com o caso normal;
já a segunda é atinente à política extraordinária, ao conflito, ou ao caso excepcional. O
objetivo de tal distinção é trazer à tona o fato de que todo exercício de poder, seja durante a
realização da tarefa mais ordinária possível, seja durante o manejo de verdadeiro estado de
exceção, carece de uma justificativa racional. Legalidade e legitimidade, como não poderia

4
Idem. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994. 6ª edição.
5
Idem. Politische Theologie. Berlin: Duncker & Humblot, 2009. 9ª edição.
6
Idem. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição.
7
SCHMITT, Carl. Der Begriff des Politischen. Berlin: Duncker & Humblot, 2002. 7ª edição.
8
Idem. The Theory of the Partisan: a Commentary/Remark on the Concept of the Political. Tradução de A. C.
Goodson. Michigan State University Press, 2004.
9

deixar de ser, comportam-se de forma diversa em cada caso, adquirindo diferente peso e
relevância conforme se esteja tratando de um ou de outro.
É essa separação entre normalidade e exceção que dará forma a este trabalho.
Iniciaremos, então, pelo caso normal e trataremos, no primeiro capítulo, do sistema de
legalidade (1.1), da legitimidade do poder constituinte (1.2) e da possibilidade e limites da
alteração constitucional (1.3). A figura do poder constituinte somente será abordada aqui
enquanto fonte primeira de legitimidade à qual se reportam todos os poderes constituídos
durante a vigência do estado de normalidade. O momento de atuação propriamente dito desse
poder originário, por ser tema que diz respeito ao estado de exceção, será analisado
posteriormente.
No segundo capítulo, já tratando do caso excepcional, explicitaremos o que
Schmitt entendeu pelo conceito de ditadura e veremos como se dá a atuação do ditador
comissário (2.1) e do ditador soberano (2.2) nos diferentes tipos de estado de exceção. A
justificação do exercício de poder por essas duas figuras se mostrará problemática e é então
que tentaremos expor os principais limites do argumento de Schmitt.
Analisar o pensamento de um dos autores mais controversos do século XX não
será uma tarefa fácil. O seu aparente gosto por teorias autoritárias, a recorrência de temas
relacionados ao conflito e à guerra em seus escritos, a sua união ao partido nacional-socialista
alemão em 1933, esses são alguns dos motivos que, por bastante tempo, levaram ao
esquecimento das contribuições de Schmitt ao mundo acadêmico. Foi apenas na década de 90,
por ocasião da reedição de “O conceito do Político” em língua inglesa, que o debate em torno
da obra de Schmitt acendeu novamente e ganhou novo vigor 9. É nesse contexto, então, que se
deu a escolha do autor para a elaboração deste trabalho. Ao final do breve estudo, esperamos
ter ajudado a tornar mais clara a importância de seu legado para o estudo das filosofias
política e jurídica contemporâneas.

9
Cf. DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy. Carl Schmitt, Hans Kelsen and Hermann Heller in
Weimar. New York: Oxford University Press Inc, 2003. 2ª edição;
10

1 LEGITIMIDADE NA NORMALIDADE

No seio de uma comunidade política bem organizada, em que os cidadãos


encontram as condições necessárias ao seu desenvolvimento pessoal e à realização de suas
tarefas diárias, em que o Estado responde satisfatoriamente às demandas por segurança10 e
infra-estrutura, enfim, em que sociedade civil, organizações políticas e aparato estatal
convivem em harmonia, praticamente não há espaço para indagações a respeito da validade da
ordem legal vigente e da legitimidade da atuação do Estado. Novas leis são promulgadas
diariamente de acordo com os procedimentos previstos em um documento constitucional,
providências diversas são tomadas pela administração e pelo executivo, decisões judiciais são
proferidas em consonância com os ditames legais e tudo isso é observado e aceito
pacificamente pelo cidadão.
A ausência de tais indagações tem fácil explicação: em condições ideais de
funcionamento e normalidade, não há motivos para que nos questionemos constantemente a
respeito dos fundamentos primeiros de nossa comunidade, sob pena de colocarmos sua
atividade em dúvida e, no caso extremo, em risco. É normal e mesmo desejável que seja
assim, pois a segurança oferecida pela ordem legal permite que nos preocupemos, ao invés de
com temas existenciais, com as ordinárias e não menos importantes questões do dia-a-dia. É
exatamente esse, aliás, o objetivo primordial de uma ordem jurídica estável e confiável.
Essas condições ideais, contudo, dificilmente estão dadas na prática. Os
cidadãos não confiam absolutamente em seus representantes, as leis são muitas vezes
consideradas (ainda que de forma vaga e pouco técnica) “injustas”, as decisões judiciais
invocam valores supostamente superiores que as leis (deixando, assim, de aplicá-las), a
insegurança nas ruas das grandes cidades torna duvidosas importantes decisões do executivo,
para listar apenas algumas hipóteses que podem nos forçar a parar e refletir.
Quanto menos o Estado for exitoso em garantir a segurança e a ordem, assim
como, eventualmente, outras demandas sociais tais que educação, emprego e seguridade
social, menos nos contentaremos com a mera realização da legalidade e mais
problematizaremos a correção e a justeza dos meios de atuação do poder estatal, bem como a

10
É interessante o que Hobbes diz a respeito da segurança que deve ser oferecida pelo soberano: “O cargo do
soberano (seja ele um monarca ou uma assembléia) consiste no objetivo para o qual lhe foi confiado o poder,
nomeadamente a obtenção da segurança do povo (...). Mas por segurança não entendemos aqui uma simples
preservação, mas também todas as outras comodidades da vida, que todo homem por uma indústria legítima, sem
perigo ou inconveniente ao Estado, adquire para si próprio.” HOBBES, Thomas. Leviatã. Editora Nova Cultural,
coleção Os Pensadores, volume I. Pág. 200.
11

justificação mesma desse poder. Por que, afinal, devemos respeitar as ordens e as leis
impostas por um ente que não é capaz de atingir os objetivos para os quais ele foi criado?
Essas considerações pretendem mostrar como é sensível e complexa a
dinâmica entre legalidade e legitimidade e como a não-realização dos pressupostos de um dos
modelos exige que se traga elementos do outro, a título de complementação. A pergunta
acima colocada não possui uma resposta simples, isso se partirmos do pressuposto de que ela
sequer possui uma resposta. A seguir, serão analisados de forma mais pormenorizada esses
temas, a iniciar pelas características e pressupostos do sistema de legalidade.

1.1 LEGITIMIDADE DA ORDEM LEGAL11

A primeira forma de se justificar a atuação de um governante é através da


constatação de que a forma de aquisição de seu poder, assim como os meios com que ele age
e intervém constantemente na vida de determinada comunidade política, estão revestidos de
legalidade. Ou seja, esses meios e formas tanto de aquisição de poder como de atuação
cotidiana estão previstos em leis gerais e abstratas, leis essas que, por sua vez, foram editadas
e promulgadas segundo um procedimento também ele previsto em lei.
Essa cadeia de justificação, em que “legalidade superior” fundamenta uma
“legalidade inferior”, não é outra coisa que o modelo jurídico de Estado formulado por
Kelsen12. O forte apelo dessa teoria reside, por um lado, na explicação altamente racional e
universalizável e, por outro, na facilidade de manejo desses conceitos abstratos. Ordem
jurídica e Estado se confundem e nasce, assim, o que Kelsen chamou de Rechtsstaat – o
“Estado de Direito”.
Schmitt prefere intitular esse esquema de Gesetzgebungstaat – “Estado de
Legislação” –, pois a terminologia “Estado de Direito” melhor se compatibilizaria com o
modelo da Common Law, em que a fonte do direito é jurisprudencial13. Já o “Estado de

11
A expressão é utilizada por David Dyzenhaus em dois trabalhos em que ele compara as teorias jurídico-
constitucionais de Carl Schmitt e Hermann Heller. Cf. DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy: Carl
Schmitt, Hans Kelsen and Hermann Heller in Weimar. New York: Oxford University Press Inc., 2003;
DYZENHAUS, David. “Hermann Heller and the Legitimacy of Legality”, in: Oxford Journal of Legal Studies
Vol 16, No 40, pag. 641 a 666.
12
Nas palavras de Kelsen: “Devido ao caráter dinâmico do direito, uma norma vale porque e até ser produzida
através de outra norma, isto é, através de outra determinada norma, representando esta o fundamento de validade
para aquela. A relação entre a norma determinante da produção de outra e a norma produzida de maneira
determinada pode ser representada com a imagem espacial do ordenamento superior e inferior.” KELSEN, Hans.
Teoria Pura do Direito: introdução à problemática científica do Direito. Tradução de J. Cretella Jr., Agnes
Cretella. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2003, pag. 103.
13
SCHMITT, Carl. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker & Humblot, 1998, 6ª edição. Pag. 9.
12

Legislação” reflete a construção do Estado parlamentar-burguês, cuja principal característica


consiste na formação de uma estrutura fechada e completa de normas promulgadas por um
Parlamento. São essas normas que vão delinear todas as ações do Estado.
Em uma primeira aproximação, as vantagens desse modelo são bastante claras.
Sendo a principal função do Estado a garantia da ordem e da segurança, não há instrumento
mais adequado à consecução desses objetivos do que aquele que melhor proporciona a
estabilidade, a previsibilidade e a segurança jurídica: a lei. Schmitt, que está ciente desses
atributos da legislação estatal, admite que a legalidade é o modo de legitimação por
excelência do Estado moderno:

A legalidade mostra ser [...] de longe a forma mais forte de validade; de fato,
ela se mostra como aquilo que significava originariamente para um republicano, a
saber, a única forma moderna, racional, progressiva, em uma palavra, a mais alta
forma de legitimidade. 14

Esse modo de atuação estatal via legislação é de vital importância para o


liberal. Ele precisa de um Estado que lhe dê segurança e que esteja apto a se impor
coercitivamente; mas ele também necessita, sobretudo, que esse mesmo Estado se abstenha de
ingerências (consideradas por ele indevidas) em seus negócios privados, ou que, no mínimo,
eventuais ingerências estejam previstas em lei, para que ele possa antecipadamente fazer o
cálculo das conseqüências de suas ações no mercado.
É isto, então, que a legalidade significa para o liberal: burocratização e
racionalização. Seus direitos, que em sua concepção são prévios à existência de qualquer
comunidade política, estão devidamente protegidos, pois somente por lei poderá o Estado
atingi-los. “(...) a lei se converte em garantia da liberdade e em mensurabilidade de todas as
manifestações do poder do Estado, é dizer, em controle do poder” 15.
Mas não é esse modo de agir instrumental-burocrático que Schmitt pretende
realçar quando trata do Estado de Legislação. Nosso autor, que não é um liberal, põe ênfase
no fato de que a lei é a expressão de uma decisão tomada pelos órgãos representativos do
Estado, ou seja, em última análise, de uma decisão de toda aquela unidade política que se
concretiza em seu representante. “(...) mesmo uma legalidade duvidosa é mais forte, em um

14
SCHMITT, Carl. The Theory of the Partisan: a Commentary/Remark on the Concept of the Political. Tradução
de A. C. Goodson. Michigan State University Press, 2004. Pag. 59 (tradução própria).
15
HERRERO LÓPEZ, Montserrat. El Nomos y lo Político: La Filosofía Política de Carl Schmitt. Navarra:
Ediciones Universidad de Navarra, 1997. Pag. 206.
13

Estado moderno, do que qualquer outro tipo de justiça. Isso reflete a força decisionista do
Estado e a sua transformação da justiça em lei.” 16
Em sua análise a respeito do conceito de “nomos” em Schmitt, Montserrat
Herrero López afirma que para ele o Direito, antes de ser um conjunto de normas, é uma
ordem concreta, é “direito situado” em determinada comunidade ou grupo de pessoas. A
norma é apenas expressão dessa ordem concreta: “em um segundo momento, esta [a
substância jurídica] se expressará em regras gerais, mas somente como explicitação dessa
substância, de sua particularidade e de sua ordem interna. Nesse contexto a norma deixa de
ser um fantasma ideal para ser manifestação de uma ordem, um meio para a realização do
17
direito” . A decisão apenas opera a mediação entre a substância jurídica, que está em um
plano abstrato, para um plano de maior concretude, que é o da realidade positiva18.
Quer a norma seja vista como manifestação de uma decisão, quer como
expressão de uma ordem concreta, o fato é que a “força da legislação” não pode residir apenas
na peculiaridade de que ela é capaz de tornar racional e previsível a ação estatal. Schmitt vê
com ressalvas as características de neutralidade e mera instrumentalidade que o liberalismo
pretende atribuir à legislação, mesmo porque (ou principalmente porque) a pretensão última
dessa doutrina é garantir a neutralidade do próprio Estado. Ora, se o Estado é a corporificação
de uma comunidade política e esta, por sua vez, é a união de pessoas em torno de um valor ou
ideal comum que as identifica, é ininteligível, em termos schmittianos, falar-se em um Estado
neutro.
Mas, em não se querendo trazer ao Estado valores distintos daqueles
preconizados pelo liberalismo – individualismo, garantia da propriedade privada, etc. –, tem-
se como conseqüência necessária que ao próprio modo de atuação burocrática deve-se atribuir
um valor em si mesmo. Schmitt é, de certa forma, um continuador do pensamento de Weber 19
a respeito da crença na validade do poder como forma primordial de sua legitimação.
Especificamente sobre esse ponto do pensamento de Weber, expõe Andreas Kalyvas:
A dominação legal se baseia na crença da legalidade da lei, segundo a qual as
normas, uma vez formuladas de acordo com as normas procedimentais corretas, são
gerais e imparciais. Essa é a crença de que a legalidade e o rule of Law limitam a
discrição e a arbitrariedade. Mesmo nesse caso de legitimidade qua legalidade,
entretanto, a legitimidade legal-racional ainda é condicionada à crença de que

16
SCHMITT, Carl. The Theory of the Partisan: a Commentary/Remark on the Concept of the Political. Tradução
de A. C. Goodson. Michigan State University Press, 2004. pag. 60 (tradução própria).
17
HERRERO LOPEZ, Montserrat, op. cit., pag. 157 (tradução própria).
18
Idem, ibidem, pag. 172
19
Sobre a noção weberiana de carisma, cf. KALYVAS, Andreas. Democracy and the Politics of the
Extraordinary: Max Weber, Carl Schmitt and Hannah Arendt. New York: Cambridge University Press, 2008,
pág. 46-64.
14

igualdade formal, regras impessoais e justiça procedimental abstrata representam ou


incorporam valores normativos mais profundos. Dessa forma, essa crença não pode
ser separada de um conjunto particular de valores e significados do qual a legalidade
obtém sua legitimidade 20.

É a crença no valor do procedimentalismo que, em última análise, legitima o


Estado liberal naquela que é sua configuração por excelência: o Estado parlamentar.
“Enquanto a crença na racionalidade e idealidade de seu normativismo estiver viva, (...) ele [o
Estado de legislação] parecerá por isso mesmo ser algo mais alto e mais ideal” 21. A idéia de
que um procedimento, ou melhor, uma discussão de certa forma pré-determinada por
parâmetros já definidos em lei (que funcionam como “regras do jogo”) pode e vai alcançar
uma verdade em virtude dessa formalização mesma, essa idéia subjaz qualquer organização
estatal em que a mais importante figura pública seja a de um parlamento.

1.1.1 Pressupostos e Problemas do Sistema de Legalidade

A crença no valor do procedimento parlamentar, seguindo o argumento de


Schmitt, não tem qualquer sentido sem que haja um momento logicamente anterior de
confiança no próprio parlamento. Tal confiança não é um simples elemento desse tipo de
sistema, nem pode ser mera vicissitude dependente de outros fatores circunstanciais, tais
como a momentânea formação partidária do corpo legislativo; ela é pressuposto de
funcionamento do Estado de legislação e sua falta significaria um desmoronamento das tão
prezadas objetividade e racionalidade da estrutura hierárquico-normativa:

Toda dignidade e supremacia da lei dependem exclusivamente e


imediatamente (...) dessa confiança na justiça e racionalidade do próprio legislador e
de todas as instâncias participantes do procedimento legislativo. (...) Esse sistema de
legalidade não é em caso algum livre de pressupostos. Uma equiparação livre de
pressupostos do direito com o resultado de qualquer procedimento formal seria
apenas uma submissão cega (...) à decisão daqueles a quem foi confiada a legislação,
ou seja, uma renúncia também livre de pressupostos a qualquer direito de
resistência. 22

Os problemas, evidentemente, começam a aparecer quando esse pressuposto


não se realiza. Schmitt não vê isso como uma hipótese, mas como a realidade vivida pela
Alemanha de sua época. A crítica ao parlamentarismo é tema que percorre importante parte de
sua obra, principalmente aquela compreendida no período de Weimar, e na verdade não é

20
Idem, ibidem, pág. 50 (tradução própria).
21
SCHMITT, Carl. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker & Humblot, 1998, 6ª edição, pag. 15 (tradução
própria).
22
Idem, ibidem, pags. 22 e 23 (tradução própria).
15

outra que a crítica feita ao próprio liberalismo. Em 1923 publica, especificamente sobre essa
23
problemática, um estudo intitulado “A Crise da Democracia Parlamentar” , e a retoma na
24 25
“Teoria da Constituição” e em “Legalidade e Legitimidade” .
Na concepção de nosso autor, o parlamento alemão nas décadas de 20 e 30 não
apenas não era um local de verdadeiro debate público e político, como também havia perdido
toda consciência dos próprios pressupostos ideológicos que o sustentavam. Ele se dizia
democrático, sem perceber que seu modo de funcionamento, em que as principais decisões
eram tomadas em comitês cada vez menores e eram baseadas em coligações e pactos
confidenciais, sequer parecia com aquele de uma real democracia. O valor da publicidade
estava esquecido e o pleno parlamentar não passava de mera fachada26.
Na verdade, Schmitt já considera a expressão “democracia parlamentar” em si
um contra-senso. Enquanto a democracia é guiada pelo princípio da identidade entre
governantes e governados, o parlamento é uma clara expressão do princípio da representação
política27. Contudo, esse fato não significaria um problema por si só, uma vez que, ele mesmo
admite, não existe na realidade qualquer sistema capaz de realizar por completo o ideal da
identidade, de modo que um mínimo de representação sempre se fará necessário. Schmitt,
então, continua seu argumento e afirma que esse sistema parlamentar, da forma como se
encontrava naquele momento histórico, não mais constituiria uma alternativa digna à
irrealizável democracia28.
Ocorre que o parlamento alemão, na vigência da Constituição de Weimar,
estava longe de ser um órgão de verdadeira representação política (Räpresentation). Esta é
uma representação de direito público que pressupõe a existência de um povo unificado,
homogêneo, dotado de certas qualidades morais e, assim, capaz de ser representado por um
órgão que também será, por sua vez, uno.
Schmitt não vê nada disso, mas apenas um povo fragmentado, composto de um
sem-número de organizações que buscam cada uma a concretização de seus interesses
particulares. Essa fragmentação se reflete no parlamento, que já não é mais um representante
político, mas sim exerce um tipo de representação típica de direito privado (Vertretung); ou

23
Idem. The Crisis of Parliamentary Democracy. Tradução de Ellen Kennedy. Massachusetts Institute of
Technology, 2000. 6ª edição.
24
Idem. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição. Pag. 218 e seg; 312 e seg.
25
Idem. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker & Humblot, 1998, 6ª edição.
26
Idem. The Crisis of Parliamentary Democracy. Tradução de Ellen Kennedy. Massachusetts Institute of
Technology, 2000. 6ª edição, pag. 49-50.
27
Idem. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição, pag. 205.
28
Idem, ibidem, pag. 205 e seg.
16

seja, não há falar em formação de uma vontade política de um povo, pois o que é trazido à
discussão são apenas os interesses privados dos mais distintos segmentos da sociedade.
Fica fácil perceber, então, como se perde a confiança no legislador: uma vez
que não há um povo unificado a sustentar e fortalecer as bases do sistema, há apenas a
submissão de determinadas vontades particulares àquelas que conseguiram sair vencedoras
em uma votação. A maioria não tem qualquer distinção qualitativa em relação à minoria, a
qual deixa de se ver representada no parlamento e passa a constituir simplesmente uma massa
vencida. Tudo se resolve em termos de acordos, compromissos e trocas de favores, pois essa é
a única forma de fazer com que os vencidos continuem a ter alguma vantagem em participar
do sistema.
Essa desunião da sociedade Schmitt vê refletida na própria Constituição de
Weimar. No momento de sua elaboração, havia tantas forças e interesses contrapostos –
monarquistas, republicanos, comunistas, liberais, social-democratas – que algumas decisões
importantes e mesmo essenciais foram simplesmente postergadas e substituídas por meros
acordos29. É certo que se decidiu pela república em desfavor à monarquia; mas a Constituição
de Weimar não tomou uma verdadeira decisão a respeito da adoção do liberalismo ou da
democracia social.
O resultado dessa postergação é que o documento formal da Constituição de
Weimar continha, na verdade, duas Constituições, não só diferentes como mesmo
incompatíveis entre si30. Retomaremos esse ponto abaixo, em 1.3. O que nos é interessante,
por enquanto, é perceber que a crítica feita ao parlamento alemão em “A crise da Democracia
Parlamentar”, aquela feita aos falsos acordos (Scheinkompromisse) da Constituição de
Weimar em “Teoria da Constituição” e, por fim, aquela feita ao liberalismo em “Legalidade e
Legitimidade” são uma e a mesma crítica.
Todos esses problemas, que Schmitt obviamente considerava importantes,
tinham sua origem nas circunstâncias sociais e políticas vividas à época, mas não eram, a
princípio, defeitos internos ao próprio sistema de legalidade. Há, entretanto, um problema
ainda mais grave, este sim interno, a que nosso autor dedica especial atenção.
A principal deficiência desse sistema pretensamente fechado de legalidade é
sua incapacidade de lidar com qualquer gênero de situação excepcional ou extraordinária. Na
tentativa de abarcar todos os possíveis casos em normas gerais e abstratas previamente
publicadas, a legalidade esquece a condição mais básica ao seu próprio funcionamento: a

29
Idem, ibidem, pag. 28 e seg.
30
Idem. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker & Humblot, 1998, 6ª edição, pág. 38 e seg.
17

normalidade31. Dito de outra forma, a existência de uma situação normal, ordinária, é


pressuposto de fato necessário à validade mesma de qualquer lei formal, é condição que deve
ser observada antes da possibilidade de sua aplicação. Nas palavras de Schmitt, “nós sabemos
que a norma pressupõe uma situação normal e tipos normais” 32.
O caso excepcional é, por definição, imprevisível e passível de adquirir
infinitas configurações concretas. Não espanta, dadas essas características, que a lei não
consiga previamente abarcá-lo, pois a sua forma de atuação é diametralmente oposta àquela
das providências (Maßnahme), instrumentos executivos típicos do caso de exceção. As
providências existem e fazem sentido somente em sua relação com a situação concreta; as
leis, por sua vez, têm aversão à concretude e, sobretudo, à imprevisibilidade.
O que acontece, então, quando um Estado fundado em um sistema rígido de
legalidade se vê diante de um caso que não apenas não foi previsto pela legislação, mas que
representa verdadeira exceção à normalidade? Dado que (a) esse modelo resume todo o
Direito à legalidade e que (b) aquilo que não pode ser previsto também não pode ser objeto de
lei, resta claro que onde há exceção não há Direito. Essa conclusão é nada mais do que lógica,
pois o sistema de legalidade não admite a existência de qualquer outra fonte normativa
legítima, a par de sua própria legislação, que seja capaz de criar Direito.
O que nos resta, então, é apenas um vácuo jurídico-normativo em que todo tipo
de arbitrariedade pode ter lugar. Justamente o modelo que mais preconizava a segurança e
estabilidade jurídicas é aquele que mais deixa espaço à vontade pura e simples de qualquer
poder que obtenha sucesso em se impor. E, assim, o sistema de legalidade flutua de um
extremo a outro: de um lado, normativismo rígido; de outro, voluntarismo sem amarras.
Talvez a única forma de explicar, nesse ponto, uma eventual justificação do poder seja através
de sua eficiência; mas sabemos que Schmitt vai além de Weber e que, para o nosso autor, a
força não é suficiente para legitimar o poder33. “O poder não demonstra nada para o
Direito34”.

31
“Essa concepção [normativista] tem, na opinião de Schmitt, duas falhas fundamentais: Em primeiro lugar, não
se dá conta de que para que seja possível o governo da norma é necessário que exista uma situação normal. Por
isso, depende de uma ordem concreta, é dizer, da situação que se considera como normal. Enquanto essa
normalidade desaparece, desaparece a norma, porque perde todo sentido jurídico.” HERRERO LÓPEZ,
Montserrat. El Nomos y lo Político: La Filosofía Política de Carl Schmitt. Navarra: Ediciones Universidad de
Navarra, 1997, pag. 173 (tradução própria).
32
SCHMITT, Carl. Über die drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens. Berlin: Duncker & Humblot,
1993. 2ª edição. Pag. 19 (tradução própria – grifo no original).
33
“Uma tentativa que aceite esses termos, sejam quais forem suas diferenças substanciais em relação a Weber,
está mais ou menos disposta a concluir que o poder faz o direito. Não existe nenhuma ilustração melhor da
problemática do que aquela oferecida pelas teorias do direito e da política de Carl Schmitt e Hans Kelsen.
Schmitt não está muito obrigado a abraçar a tese de que o poder faz direito; na verdade esse é o ponto de partida
18

Voltaremos a essa questão em 2.1. Antes disso, falaremos daquele que é autor
e fonte de legitimidade de qualquer ordem constitucional: o poder constituinte.

1.2 LEGITIMIDADE DO PODER CONSTITUINTE

O primeiro momento de toda legitimidade está na decisão soberana e


fundamental de uma unidade política a respeito de sua própria existência. É com essa tese que
Schmitt procura se afastar da orientação normativista dominante, encampada sobretudo por
Kelsen, bem como de toda sorte de concepção empirista que vê na eficiência do poder a única
fonte de sua justificação.
O problema do fechamento lógico da teoria jurídica de Kelsen é tema que já
foi amplamente discutido e não nos cabe, neste trabalho, adentrar em seus pormenores.
Parece-nos interessante, entretanto, fazer duas observações sobre essa questão. A primeira diz
respeito à interessante interpretação de seus escritos mais tardios feita por Andreas Kalyvas
em “Democracy and the Politics of the Extraordinary”35; a segunda concerne à solução
schmittiana alternativa ao conceito de “norma fundamental” de Kelsen.
O sistema formulado por Kelsen pretende ser puramente jurídico-normativo,
isento do quaisquer influxos provenientes de além do Direito, seja da sociologia, da
economia, da política ou mesmo da realidade empírica. Para tanto, ele concebeu uma forma
de legitimação de normas em que a validade de uma norma inferior depende única e
exclusivamente de sua conformidade (material e procedimental) com uma norma que lhe seja
hierarquicamente superior, e assim sucessivamente, até que cheguemos à maior de todas as
normas positivas: a Constituição.
A questão que surge, nesse ponto, é evidente: se a Constituição é a fonte de
validade de todas as normas que lhe são inferiores, e ela própria é o ápice hierárquico desse
sistema, então de onde ou do quê ela deriva sua própria validade? Certamente não de uma
norma positiva superior, pois assim estaríamos a admitir um regresso ao infinito. A resposta,
36
diz Kelsen, só pode estar na existência de uma “pressuposição mental” , uma norma não-
positiva que deve ser postulada para que o sistema ganhe em lógica e coerência. Kalyvas
aponta que, nos primeiros escritos de Kelsen, ele chamou essa norma hipotética de “norma

das suas reflexões sobre a política e o direito.” (tradução própria). Dyzenhaus, David. “Hermann Heller and the
Legitimacy of Legality”. In: Oxford Journal of Legal Studies, vol. 16, nº 40, 1996, pag. 645.
34
SCHMITT, Carl. Politische Theologie. Berlin: Duncker & Humblot, 2009. 9ª edição. Pag. 26.
35
KALYVAS, Andreas. Democracy and the Politics of the Extraordinary: Max Weber, Carl Schmitt and Hannah
Arendt. New York: Cambridge University Press, 2008.
36
Idem, ibidem, pag. 109.
19

original” (Ursprungnorm) e apenas mais tarde de “norma fundamental” (Grundnorm)37, como


acabou ficando amplamente conhecida.
A problemática acerca da validade dessa “norma original” foi inicialmente
ignorada por Kelsen, que a considerava anti-jurídica e acientífica. Entretanto, conforme a
interpretação feita por Kalyvas, ele não pôde ficar calado frente a críticas, como a de
Schmitt38, que chamaram atenção para o fato de que essa construção era incapaz de distinguir
entre validade e eficácia39. Então, na articulação da “norma fundamental” feita por Kelsen na
segunda versão da “Teoria Pura do Direito”, publicada em 1960, ocorre uma sutil mas
importante mudança no seu pensamento.
A diferença está na postulação não mais apenas da norma em si, mas da
existência de um sujeito reconhecido como a mais alta autoridade, o qual está, assim,
autorizado a criar ou estabelecer essa norma fundamental. Kelsen, embora admitindo ao seu
sistema um conceito de autoridade que antes lhe parecia extravagante, procura manter seu
ideal de cientificidade, ou melhor, de “pureza” de sua teoria jurídica. Para isso, destaca que o
reconhecimento dessa autoridade não provém dos destinatários da norma, mas do cientista
jurídico:
Há um elemento de reconhecimento que é indispensável para prover a norma
fundamental da legitimidade apropriada. Esse reconhecimento é expresso pelo
cientista jurídico ou a partir do “ponto de vista da ciência do direito positivo”, que
corresponde a um ponto de vista científico e objetivo. Em outras palavras, parece
que, para Kelsen, o agente que funda uma nova ordem política e jurídica e
estabelece uma nova norma fundamental deve ser reconhecido pelo jurista, o qual o
vê sub specie aeternitatis, como a mais alta autoridade.40

Embora essa visão tardia de Kelsen, segundo Kalyvas, de certa forma se


aproxime daquela de Schmitt (principalmente em virtude da admissão de um ato constitutivo
original41), ainda resta uma diferença avassaladora que novamente distancia as duas teorias.
Para nosso autor, não basta que o reconhecimento da autoridade provenha do jurista; é a
própria unidade política que deve reconhecê-la. Aqui chegamos à nossa segunda observação:
Schmitt, identificando essa autoridade com o poder constituinte, coloca sua decisão
fundamental no lugar da norma fundamental de Kelsen, e daí deriva a legitimidade de todo o
sistema42.

37
Idem, ibidem, pag. 103.
38
SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição, pag. 8-9.
39
KALYVAS, Andreas. Democracy and the Politics of the Extraordinary: Max Weber, Carl Schmitt and Hannah
Arendt. New York: Cambridge University Press, 2008, pag. 105.
40
Idem, ibidem, pag. 109 (tradução própria).
41
Idem, ibidem, pag. 110.
42
“Uma norma pode valer ou porque ela é correta, e então a conseqüência sistemática conduz ao direito natural
e não à Constituição positiva, ou porque ela é ordenada positivamente, ou seja, por força de uma vontade
20

Em sua “Teoria da Constituição”, Schmitt afirma que “uma Constituição é


legítima, isto é, reconhecida não só como estado fático, mas também como ordem jurídica
válida, quando o poder e a autoridade do poder constituinte, em cuja decisão ela repousa,
43
também são reconhecidos” . Nessas poucas palavras, o existencialismo de Schmitt adquire
uma de suas mais importantes expressões. Não é em virtude de uma norma jurídica ou ética
superior, tampouco em razão de uma imposição fática de poder, que uma ordem jurídica é
considerada válida. “A decisão política (...) que forma a substância da Constituição vale
porque a unidade política, de cuja Constituição se trata, existe (...)” 44.
A legitimidade de uma Constituição depende, então, da legitimidade do poder
constituinte que a concebeu. Este se legitima, por sua vez, unicamente em sua própria
existência e no seu reconhecimento como tal. Essa concepção de poder constituinte, à qual se
poderia chamar “orgânica”, representa em última análise a concepção também orgânica que
Schmitt tem do próprio Estado. Ele é um ser, um ente uno, capaz de tomar as próprias
decisões e orientar o próprio destino. É comparável, assim, a um ser humano:

Não se pode falar de legitimidade de um Estado ou de um poder estatal. Um


Estado, isto é, a unidade política de um povo, existe, e em verdade existe na esfera
do político; ele é tão pouco passível de ser justificado ou considerado lícito, legítimo
etc., quanto o indivíduo humano, na esfera do direito privado, deveria ou poderia
fundamentar normativamente sua existência45.

Schmitt retoma, então, o conceito de poder constituinte formulado por Sieyès e


lhe acrescenta um peso fundamental. Pouvoir Constituant é não apenas aquele que não pode
ser limitado, pré-configurado ou pré-determinado, uma vez que é a fonte primeira de todo
pouvoir constitué; ele é também a fonte primordial de justificação de toda relação posterior de
subordinação e obediência a esse poder constituído.
Pois bem, assentado que a legitimação de uma ordem constitucional repousa,
em última análise, no poder constituinte, precisamos agora analisar as características desse
46
poder. Historicamente, afirma Schmitt em “Teoria da Constituição” , ele adquiriu duas
configurações básicas, a saber, a monárquica e a democrática. Na primeira, é o monarca quem
dá a Constituição a seus súditos, fundamentando-se para isso na tradição e autoridade de uma
dinastia. Essa autoridade, entretanto, deve ser reconhecida por aqueles que se submetem a ela,

existente. Uma norma nunca se põe a si mesma (...), ao contrário, ela é reconhecida como correta (...)”.
SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição, pag. 9 (tradução própria).
43
Idem, ibidem, pag. 87 (tradução própria).
44
Idem, ibidem, pag. 87 (tradução própria).
45
Idem, ibidem, pag. 89 (tradução própria – grifo nosso).
46
SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição, pag. 90.
21

sob pena de permanecer despida de qualquer eficácia. O argumento da autoridade se


transforma, então, em reconhecimento da autoridade por um povo.
Note-se que, mesmo ao tratar do poder constituinte monárquico, foi necessária
a introdução de um termo que diz respeito diretamente à segunda configuração antes
mencionada: o povo, sujeito e titular do poder constituinte democrático. Ocorre que é este, e
não aquele monárquico, o principal conceito da teoria constitucional de Schmitt (pelo menos
na parte em que ele trata das origens de uma Constituição), de forma que ele acaba sendo
subjacente a outras de suas formulações. Nosso autor é um democrata – e, de fato, um
democrata radical 47.
O povo difere da multidão enquanto é um conceito político. Em outras
palavras, ele é uma multidão que existe e se configura em torno de certas identidades comuns
e, mais do que isso, tem autoconsciência dessa configuração – daí decorre seu caráter
propriamente político. Língua, cultura, costumes, religião, etnia são exemplos de identidades
que, quando compartilhadas, podem dar origem a um povo. Aumentando a complexidade da
organização desse povo, podemos chegar a ter instituições comuns; é a partir daí que se torna
mais clara a idéia de uma Constituição.
A decisão fundamental, então, não surge do vazio, do nada, mas reflete a
configuração dessa existência concreta. No momento em que o grau de autoconsciência e
autocrítica de um povo atinge determinado grau, já bastante elevado, ele decide dar-se a si
mesmo uma Constituição positiva e instituir-se a si mesmo como Estado. Nesse momento ele
é poder constituinte, a “substância amorfa” que não só é capaz de criar forma, como é origem
de toda forma48.
Nesse ponto, é interessante mencionar a análise feita por López a respeito da
relação entre a Constituição e a existência concreta de um povo. O que a autora faz, na
verdade, é uma leitura diferenciada do conjunto da obra de Schmitt, procurando fundamentar
todo seu pensamento no conceito de nomos, que “é o desenvolvimento de comunidades de

47
Ao tratar da transposição da teoria democrática do poder constituinte do povo para a idéia de um poder
constituinte monárquico, Schmitt afirma que tal só pode ser feito em tese e, ainda assim, com certas dificuldades.
“Pois a nação pode modificar sua forma e pode sempre dar novas formas à sua existência política; ela tem toda a
liberdade de autodeterminação política (...). A monarquia hereditária, ao contrário, é uma instituição (grifo no
original) vinculada à ordem sucessória de uma família, uma instituição em si mesma já formada”. Idem, ibidem,
pag. 81.
48
“Essa distinção [entre poder constituinte e poder constituído] só é possível se se distingue entre sujeito e
forma. O poder constituinte é sujeito e como tal origina a decisão. A forma se cria na decisão mesma. O sujeito é
o informe que forma. E nessa informidade se manifesta a existência política mesma.” HERRERO LÓPEZ,
Montserrat. El Nomos y lo Político: La Filosofía Política de Carl Schmitt. Navarra: Ediciones Universidad de
Navarra, 1997, pag. 209 (tradução própria).
22

homens no espaço graças ao trabalho, as relações naturais entre eles, a tradição e o modo de
ser natural do homem e desse povo em concreto” 49.
Segundo López, muito embora Schmitt só tenha perfectibilizado essa noção na
década de 50, a partir de “O Nomos da Terra”, ela já teria permeado seu pensamento desde os
escritos mais prematuros como “Romantismo Político”, publicado originalmente em 1919. E
é justamente nesta obra que a autora pretende ver as primeiras referências de Schmitt ao
nomos como existência concreta de uma sociedade humana e fundamento primeiro da sua
Constituição.
Para melhor caracterizar essa sociedade humana que, na verdade, não seria
apenas sociedade, posto que este não é um conceito propriamente político, nem comunidade
humana, que seria uma noção demasiadamente abstrata e carente de limites situacionais,
Schmitt propõe o conceito de nação50. Este sim seria capaz de transmitir corretamente a idéia
de uma comunidade política particular, situada e historicamente concreta.
Ao se falar em nação, remete-se automaticamente a Sieyès, aqui já
mencionado, e à convocação feita por ele para que todos os franceses se reunissem em uma
Assembléia Nacional Constituinte, onde não teriam lugar quaisquer interesses particulares e
privilégios de classe e, assim, poderia ser formulada uma verdadeira Constituição do e para o
povo francês51. O próprio Schmitt relembra que foi ele quem formulou a teoria do poder
constituinte da nação, sendo esta “uma unidade capaz de ação política e dotada de consciência
de sua singularidade política e vontade de existir politicamente” 52.
O povo, então, existe previamente à decisão e também antes dela já tem
determinado modo de ser. Se a legitimidade de uma ordem constitucional repousa na decisão
de um poder constituinte – pois, como vimos, Schmitt não admite que uma norma tenha
validade independentemente de uma vontade que lhe seja anterior53 –, esta, por sua vez, não é
livre de qualquer referencial. “Uma vez que todo ser é concreto e já se encontra disposto de
alguma maneira, qualquer Constituição pertence ao existir político e concreto correspondente”
54
. Quer dizer, a decisão fundamental é tanto mais legítima quanto mais reflete esse modo de
existir.

49
Idem, ibidem, pag. 164.
50
Idem, ibidem, pag. 201
51
SIEYÈS, Emmanuel. Qu’est-ce que le Tiers État? Paris: Flammarion, 1988. A brochura de Sieyès foi
inicialmente publicada no anonimato e circulou pela primeira vez em janeiro de 1789, conforme prefácio de
Jean-Denis Bredin.
52
SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição. Pag. 79.
53
“Todo tipo de normatividade jurídica, inclusive a constitucional, pressupõe a existência de uma vontade.”
Idem, ibidem, pag. 22 (tradução própria).
54
Idem, ibidem, pag. 23 (tradução própria).
23

É nesse sentido que López afirma que a legitimidade de uma Constituição não
está dentro, mas fora dela mesma55. O critério de aferição da legitimidade, é claro, não pode
ser interno ao sistema. Assim, em se tratando de uma ordem constitucional democrática, esse
critério externo é a existência de um povo autoconsciente que, enquanto titular do poder
constituinte (o “sujeito amorfo” que tudo pode formar), toma uma decisão a respeito da forma
e tipo de sua unidade política56, decisão essa que corresponde à sua configuração concreta e
real.

1.3 ALTERAÇÃO CONSTITUCIONAL E O PODER CONSTITUINTE DERIVADO

Após termos tratado da legitimidade do poder constituinte, é importante que se


faça algumas notas a respeito da eventual possibilidade de alteração posterior da decisão desse
sujeito. Antes disso, é necessário esclarecer que não se trata aqui de um novo ato do poder
constituinte originário, do estabelecimento de uma nova Constituição, mas sim de alterações
constitucionais no âmbito de uma ordem já posta.
O interessante deste ponto específico para nosso trabalho está em saber quem
teria legitimidade para tanto, se é que de fato essa possibilidade existe. Quem pode alterar a
Constituição, senão seu próprio autor, sem provocar uma desestabilização de suas bases? E,
uma vez respondida essa questão, qual o limite dessa competência?
A prática jurídico-constitucional contemporânea admite a alteração
constitucional através de um órgão que comumente se chama de “poder constituinte derivado”
e que, na maior parte das vezes, se identifica com o corpo legislativo ordinário57. Essas
modificações normalmente se dão no âmbito de um procedimento legislativo diferenciado
(quórum mais elevado, votação em dois turnos, etc.) e devem respeitar algumas disposições
que, por determinação explícita da própria Constituição, são inalteráveis – as famosas
58
“cláusulas pétreas” . Schmitt, entretanto, considera inútil essa noção e propõe, para
substituí-la, os conceitos de Constituição propriamente dita e lei constitucional.
Em um documento constitucional encontram-se diferentes tipos de disposições
que, conforme versem sobre questões mais ou menos essenciais ao Estado que está a ser
instituído, são não apenas quantitativa, mas qualitativamente distintas. Se assim se quiser,

55
HERRERO LÓPEZ, Montserrat. El Nomos y lo Político: La Filosofía Política de Carl Schmitt. Navarra:
Ediciones Universidad de Navarra, 1997, pag. 206.
56
SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição, pag. 21.
57
Cf. AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2007. 28ª
edição, revista e atualizada. Pag. 64-65.
58
Afonso da Silva prefere falar em “núcleo imodificável”. Idem, ibidem, pag. 65-68.
24

podemos falar em dispositivos com posições hierarquicamente diversas, embora essa imagem
não agrade ao nosso autor59.
Aqueles que tratam da própria decisão fundamental do povo ou nação a
respeito da forma de sua existência política, aqueles que carregam em si o conteúdo principal
do ato do poder constituinte, estes são os que compõem a Constituição propriamente dita. Já
os que dispõem sobre questões menos essenciais, regulamentam em detalhes alguma regra
procedimental, versam sobre matéria de importância não imediata para a sobrevivência do
Estado, estes formam o conjunto das leis constitucionais.
Quando a nossa Constituição diz que “a República Federativa do Brasil (...)
constitui-se em Estado Democrático de Direito” (art. 1º da Constituição da República
Federativa do Brasil – CRFB) e, mais tarde, determina que “o Presidente e o Vice-Presidente
da República não poderão, sem licença do Congresso Nacional, ausentar-se do País por
período superior a quinze dias (...)” (art. 83, CRFB) 60, fica claro que ela não está tratando de
questões igualmente essenciais. Uma emenda constitucional poderia determinar que a
autorização viesse apenas do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados, assim como
poderia diminuir o período de quinze para dez dias, sem que isso violasse a decisão
fundamental da Assembléia Constituinte de 1988. Nenhum poder constituído, entretanto,
poderia estabelecer que o Brasil se constitui em uma monarquia hereditária, pois isso estaria a
modificar a configuração mesma de nossa existência política.
Pois bem, a partir desse exemplo podemos demonstrar um dos principais
objetivos de Schmitt com a distinção entre Constituição e lei constitucional: esta pode ser
alterada através de um procedimento previsto na própria Constituição, enquanto aquela só
poderá sofrer modificações através de um novo ato do poder constituinte. A competência dada
pelo constituinte ao constituído para que este proceda a alterações no documento
constitucional não o autoriza, é dizer, não o legitima a subverter a ordem instituída61:

O fato de que ‘a Constituição’ pode ser alterada não significa que a decisão
política fundamental, que compõe a substância da Constituição, pode ser a qualquer
tempo afastada pelo Parlamento e substituída por qualquer outra decisão.62

59
“Não existe – se não se quiser apelar para metáforas ou alegorias – hierarquia entre normas, mas apenas
hierarquia entre homens e instâncias concretas”. SCHMITT, Carl. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker &
Humblot, 1998, 6ª edição, pag. 53.
60
Brasil: Constituição da República Federativa do Brasil.
61
SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição, pag. 25 e seg; pag. 102 e
seg.
62
Idem, ibidem, pag. 26.
25

Para Schmitt, essa idéia de inalterabilidade da Constituição propriamente dita é


tão clara e básica que sua explicitação em regras proibitivas só serviria como uma espécie de
confirmação63. Na verdade, se a distinção qualitativa entre Constituição e lei constitucional
for ignorada ou mal compreendida, a existência de “cláusulas pétreas” seria mesmo um
instrumento inútil. Voltando ao exemplo brasileiro, em nada nos serviria o art. 60, §4º da
CRFB64 se não se entendesse que esse próprio dispositivo também é inalterável.
Não esqueçamos que, para bem compreender a obra de Schmitt, devemos levar
em consideração também o contexto histórico em que ele está inserido. A “Teoria da
Constituição”, embora em alguns momentos seja uma teoria de toda e qualquer Constituição,
é sobretudo uma teoria da Constituição de Weimar, a Reichsverfassung de 1919. É a partir
desse documento, e especificamente de seu art. 76, que ele faz sua crítica a respeito da prática
das emendas constitucionais, que começava a ameaçar as estruturas da república.
Assim determinava o mencionado art. 76: “A Constituição pode ser alterada
através de procedimento legislativo. Entretanto, as decisões do Reichstag nesse sentido só se
realizam quando estiverem presentes dois terços do número legal de seus integrantes e quando
no mínimo dois terços dos presentes estiverem de acordo”. Em “Legalidade e
Legitimidade”65, Schmitt dedica parte de um capítulo à análise desse dispositivo e chega à
conclusão de que a doutrina e jurisprudência alemãs a respeito do art. 76 da Reichsverfassung
se equivocam ao admitirem que qualquer disposição constitucional possa ser emendada.
Antes de se analisar essa consideração, é preciso esclarecer um importante
pressuposto seu, a saber: a existência, no mesmo documento constitucional, de “duas
Constituições” distintas. Schmitt identifica uma delas na primeira parte da Constituição de
Weimar, denominada “Estrutura e Tarefas da República”. Essa parte, eminentemente
organizacional, continha disposições características de um Estado verdadeiramente liberal e
pluralista, em que qualquer grupo político, seja qual fosse sua orientação, poderia alcançar o
poder. Já a segunda “Constituição” estaria contida na sua segunda parte, intitulada “Direitos e
Deveres Fundamentais dos Alemães”. Essa parte, por sua vez, pretendia instituir determinada
orientação valorativa na sociedade, de forma que a busca pelo poder por grupos que fossem

63
Idem, ibidem, pag. 105.
64
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direito, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.
65
SCHMITT, Carl. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker & Humblot, 1998, 6ª edição, pág. 38 e seg.
26

contrários a esses valores seria mesmo inconstitucional. Aqui estavam explicitados, por
exemplo, os direitos à propriedade privada e à liberdade de expressão, tão caros ao
liberalismo.
Voltando à conclusão antes mencionada, o equívoco da doutrina dominante
estaria em aceitar que um sistema fosse neutro em relação a seus próprios pressupostos. Como
pode uma Constituição estabelecer determinados valores, intitulá-los de “fundamentais” e não
fornecer os mecanismos necessários para protegê-los? Levando ao extremo esse argumento de
que quaisquer disposições poderiam ser alteradas, mesmo as da segunda parte da
Reichsverfassung, deve-se admitir que não apenas direitos civis como o de livre associação ou
a inviolabilidade do lar poderiam ser abolidos, senão que também a propriedade privada
estaria sujeita à extinção66. Uma simples votação no parlamento, desde que respeitado o
quórum qualificado, seria capaz de transformar um Estado liberal-capitalista em um Estado
comunista de economia planificada.
Mas a questão não termina aí. Não era apenas a possibilidade de modificação
das disposições a respeito dos direitos fundamentais dos alemães, ou seja, aquelas contidas na
segunda parte da Constituição de Weimar, que representava um problema e um perigo às
instituições da república. Mesmo caso se entendesse que esses direitos seriam intocáveis,
continuaria possível a alteração de dispositivos essenciais da parte organizacional, como a
forma de eleição ou as competências do Presidente. Se, por meio de uma emenda
constitucional, ficasse determinado que o Presidente poderia revogar indiscriminadamente as
leis promulgadas pelo parlamento, este restaria completamente despido de poder e não se
estaria mais diante de um Estado parlamentar.
Veremos, a seguir, como Schmitt insere o conceito de supralegalidade nessa
discussão, na tentativa de melhor demarcar os limites da alteração constitucional, e como esse
mesmo conceito, posteriormente, acaba se tornando parte integrante de sua crítica ao
liberalismo.

1.3.1 A Supralegalidade e os Limites do Art. 76 da Constituição de Weimar

A interpretação que Schmitt pretende dar ao artigo 76 da Constituição de


Weimar é a seguinte: uma norma que possibilita a modificação da Constituição não visa
permitir que qualquer outro tipo de organização política, em tudo diverso daquele instituído,

66
Idem, ibidem, pag. 45-46.
27

venha a tomar o poder por vias legais. Não pode ser intenção de uma carta constitucional
permitir que seus próprios fundamentos sejam abrogados a partir dos procedimentos nela
previstos67. Assim, deve-se entender que a norma do art. 76, que trata de alterações
constitucionais via procedimento legislativo, contém implicitamente uma proibição absoluta
de modificação de determinadas normas. Muito embora nosso autor considere relevante a
proteção de determinados direitos fundamentais (como, em se tratando de um Estado liberal,
os direitos de liberdade do cidadão), mais crucial é a proibição de violação de normas que
instituem órgãos, competências e procedimentos, pois estas é que dão configuração ao Estado
e, em última análise, dão forma à existência política do povo que é sua substância.
Essas disposições que contém em si, implicitamente68, um mandado de
inalterabilidade parecem ser aquilo que Schmitt chamou, primeiramente em “Legalidade e
Legitimidade” e mais tarde em um estudo intitulado “A Revolução Legal Mundial” (1978) 69,
de “supralegalidade constitucional”. Esse conceito, diz Schmitt, foi forjado pelo juspublicista
francês Maurice Hauriou e abrange aqueles “princípios” que não estão protegidos apenas das
leis ordinárias, mas que não podem ser modificados ou abolidos mesmo por emendas
constitucionais70. Tal “supralegalidade” estaria presente em qualquer sistema ou ordem
constitucional e serviria como escudo contra tentativas de eliminação da legalidade ou
legitimidade posta através de meios legais/constitucionais.
Ao retomar o tema em “A Revolução Legal Mundial”, nosso autor fala em
“validade aumentada de certas normas frente a normas comuns ou ordinárias” e dá, como
exemplo de supralegalidade, “as normas de procedimento que devem dificultar a
transformação ou abolição de normas, por maioria qualificada ou estruturação do
71
procedimento em várias instâncias distintas” . Ou seja, quando uma Constituição permite
sua própria alteração e determina para tanto um procedimento especial, essa norma permissiva
é, ela mesma, inalterável.

67
SCHMITT, Carl. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker & Humblot, 1998, 6ª edição, pág. 56.
68
Pois, como já vimos, não faz parte do sistema de Schmitt a existência de mandados explícitos de
inalterabilidade constitucional.
69
SCHMITT, Carl. “La Revolución Legal Mundial: Plusvalía política como prima sobre legalidad jurídica e
superlegalidad”, in: Revista de Estudios Políticos (Nueva época), Nº 10, Julio – Agosto, 1979.
70
“Elas têm, como expôs (...) Maurice Hauriou (...), uma ‘superlégalité constitutionnelle’ que as eleva não só
acima das normas ordinárias, simples, como também acima da Constituição escrita, e que exclui a possibilidade
de sua eliminação através de emendas constitucionais”. SCHMITT, Carl. Legalität und Legitimität. Berlin:
Duncker & Humblot, 1998, 6ª edição, pág. 56 (tradução própria – grifo no original).
71
SCHMITT, Carl. “La Revolución Legal Mundial: Plusvalía política como prima sobre legalidad jurídica e
superlegalidad”, in: Revista de Estudios Políticos (Nueva época), Nº 10, Julio – Agosto, 1979, pag. 8 (tradução
própria).
28

A dificuldade no manejo do conceito de supralegalidade está em que, ao


contrário daqueles de legalidade e legitimidade, este foi muito brevemente tratado por Schmitt
e, no entanto, parece ser central à sua obra. A princípio, a supralegalidade é uma espécie de
conceito intermediário, que tem uma proximidade muito grande com a legitimidade sem, no
entanto, estar absolutamente fora do campo da legalidade.
A relação entre legalidade e supralegalidade residiria no fato de que as normas
“supralegais” foram concretizadas por uma decisão soberana e colocadas de forma expressa
na Constituição. Já a relação entre esta e a legitimidade estaria em que foi o poder
constituinte, ele mesmo autor e fonte de toda legitimidade, quem estabeleceu a configuração
da unidade política e determinou a quais instituições cabem as mais essenciais funções do
Estado. Não poderia, assim, o legislador ordinário (nem o legislador qualificado, com
competência para emendas constitucionais) suprimir ou mesmo modificar essas
determinações, porque isso representaria, ao fim e ao cabo, a instituição de nova ordem
constitucional, o que não compete a nenhum poder constituído.
Com essas considerações se teria resolvido a questão caso Schmitt não tivesse
utilizado o conceito de supralegalidade com um fim ulterior específico. Mas o fato é que, em
“A Revolução Legal Mundial”, ele realmente trabalha essa idéia com o propósito de realizar
uma crítica dura ao progresso técnico-industrial e à burocracia. Ele começa, então, por afirmar
que a supralegalidade pode ser facilmente desvirtuada, deixando de ser um conceito
tipicamente jurídico para se tornar um instrumento político:

A supralegalidade se concebe como uma noção especificamente jurídico-


constitucional. Sem embargo, se presta facilmente a aplicações polêmicas e a um
emprego com intenção política. Palavras com super quase provocam essa utilização.
A legitimidade aparece então como uma espécie de legalidade superior e se
transforma também em um método de forçar a obediência.72

A supralegalidade, em virtude daquela mencionada característica de ser um


conceito intermediário, parece ser, nesse trecho, uma forma de mediação entre legitimidade e
legalidade. Ou seja, qualquer poder político é capaz de transformar a ideologia que o legitima,
utilizando-se como bem entender da idéia de supralegalidade, em uma espécie de legalidade.
Com isso, ele obtém o maior prêmio oferecido por esta última: o poder de obrigar à
obediência incondicional.
Schmitt vai mais além para afirmar que, no momento histórico em que ele
vive, há uma ideologia que serve aos mais diversos grupos políticos. É a ideologia do

72
Idem, ibidem, pag. 9 (tradução própria – grifo no original).
29

progresso, que, por ser pretensamente neutra em relação a valores morais, éticos e religiosos,
pode fundamentar desde programas liberal-capitalistas até os comunistas. Dessa forma, a
legitimação oferecida por essa amplamente aceita ideologia passa por aquele processo de
mediação via supralegalidade e, por fim, se estabelece como parte integrante da ordem legal:

Nessa situação, o progresso, como desenvolvimento acelerado nos campos


científico, técnico e industrial, pode se converter em legitimação geral e global de
objetivos políticos opostos. Então, qualquer programa de partido, de direita ou de
esquerda, pode legalizar seus valores fundamentais; e isso implica arranjar-se a
possibilidade de obrigação à obediência. Este seria o mais transcendental de todos os
prêmios sobre a possessão legal do poder. 73

No que consiste esse progresso, entretanto, é uma questão que não se resolve
sem que voltemos à leitura de “O Conceito do Político”, mais especificamente do texto “A
Era das Neutralizações e Despolitizações”, que foi integrado por Schmitt à obra de 1932.
Nesse texto, ele faz um panorama dos últimos quatro séculos de história da Europa e constata
que, em cada um deles, houve uma determinada dimensão da vida humana ou do
conhecimento humano que prevaleceu sobre as outras. A essa dimensão prevalente ele
chamou de “área central” (Zentralgebiet). A partir dessa idéia, as quatro áreas que
correspondem, respectivamente, aos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX são: o teológico, o
metafísico, o humanitário-moral e, finalmente, o econômico74. O autor reconhece, ainda, que
a área predominante na época em que vive (ou seja, primeira metade do século XX) parece ser
a da tecnicidade.
A identificação dessa área central não significa que outras dimensões do
humano tenham sido esquecidas ou ignoradas em função daquela prevalente, mas apenas “que
nos quatro séculos de história européia as elites dominantes mudaram, as evidências de seus
convencimentos e argumentos se alteraram continuamente, assim como o conteúdo de seus
interesses intelectuais, o princípio de sua ação, os segredos de seus sucessos políticos e a
75
disposição das grandes massas se deixaram influenciar por determinadas sugestões” . Quer
dizer, se no século XVI a elite intelectual era aquela que tinha grande conhecimento em
teologia, no século XIX era aquela que obtinha sucesso em descrever e aplicar sistemas
econômicos. Do mesmo modo, todos os conceitos de alguma forma vinculados à vida
espiritual e intelectual humana só podem ser concretizados em sua relação direta com a
cultura predominante em determinada época e local.

73
Idem, ibidem, pag. 9 (tradução própria).
74
SCHMITT, Calr. Der Begriff des Politischen. Berlin: Duncker & Humblot, 2002. 7ª edição, pág. 80.
75
Idem, ibidem, pág. 82.
30

O progresso, finalmente chegando ao nosso ponto, é um desses conceitos que


apenas pode ser entendido quando bem contextualizado. No século XVIII, consistiria em um
progresso humanitário e se exteriorizaria como um problema relacionado à educação moral;
no século XIX, poderia ser representado unicamente por um desenvolvimento ou crescimento
econômico; já no século XX, progresso é igual a desenvolvimento da técnica e da indústria. O
problema dessa idéia de tecnicidade é que com ela se pretendeu ter encontrado um campo
absolutamente neutro, sobre o qual todas as pessoas e Estados, defensores de qualquer religião
ou ideologia podiam fazer repousar aquele mínimo de consenso necessário à paz e à vida em
comunidade. “A esfera da técnica pareceu ser uma esfera da paz, do entendimento e da
reconciliação” 76.
Mas Schmitt alerta que a técnica, justamente em virtude dessa característica de
neutralidade, pode servir de instrumento a qualquer grupo ou ideologia; é então que ela deixa
de ser neutra para se tornar arma política. “Todo tipo de cultura, todo povo e toda religião,
77
toda guerra e toda paz pode se utilizar da técnica como arma” . A noção de progresso, por
sua vez, quando entendida como desenvolvimento ou avanço da técnica e da indústria, pode
servir como legitimação para qualquer poder político. O autor explica que um progresso
técnico não está necessariamente vinculado a um progresso humano ou mesmo econômico,
mas que muitas pessoas, ingenuamente, atribuem a tal avanço um valor moral positivo. Quer
dizer, se um avanço da técnica ou da indústria pode ser útil a todos da forma mais
democrática possível, então isso seria (nessa visão ingênua) algo bom por definição. Aqueles
que conseguem, então, dominar a técnica e utilizar-se da ideologia do progresso em seu favor
acabam legitimados (quiçá moralmente) a exercer o poder. Como bem coloca Ulmen, “no
século XX, e principalmente com Blumenberg, ele [o progresso] se tornou um conceito da
legitimação” 78
Essa interpretação é apenas uma tentativa de se entender, da forma mais global
possível, a obra muitas vezes enigmática e quase sempre fragmentada de Schmitt. Se a crítica
ao tecnicismo fica explícita em “A Revolução Legal Mundial”, não é menos verdade que ela
já estava presente em “Legalidade e Legitimidade”, pois, para nosso autor, liberalismo e
tecnicismo andam lado a lado ao compartilharem de uma pretensão comum, qual seja, a de
neutralidade axiológica. Precisamos concordar com Dyzenhaus quando ele afirma que mesmo
nesta obra, quando a crítica ao liberalismo ainda parece estar de certa forma dissimulada,

76
Idem, ibidem, pág. 90.
77
Idem, ibidem, pág. 90.
78
ULMEN, Gary L. Politischer Mehrwert: Eine Studie über Max Weber und Carl Marx. Weihnheim: VCH, Acta
Humaniora, 1991, pág. 151.
31

Schmitt já declarara que os liberais seriam os verdadeiros inimigos de toda orientação política
autêntica – e, conseqüentemente, seriam também seus inimigos pessoais 79.

79
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy: Carl Schmitt, Hans Kelsen and Herrmann Heller in Weimar.
New York: Oxford University Press Inc, 2003. 2ª edição. Pág. 40 e seg.
32

2 LEGITIMIDADE NA EXCEÇÃO

Após termos tratado do problema da legitimidade das instituições estatais nas


situações de normalidade, partimos para a análise de seu comportamento em situações de
excepcionalidade. “O normal não demonstra nada, a exceção, tudo” 80 – já disse Schmitt logo
nas páginas iniciais de sua “Teologia Política”. Se o caso normal permite que estudemos de
maneira (até certo ponto) sistemática as relações entre órgãos de criação e de aplicação de
leis, entre poder constituinte e poderes constituídos, é no caso excepcional que se pode
compreender o significado grave e profundo de todos esses conceitos.
Schmitt foi acusado de nutrir um gosto peculiar pelo tratamento de situações
conflituosas, o que de fato é verdade, mas que de forma alguma representa por si só algo
negativo. Nosso autor pretende argumentar que, mesmo quando a condição mais básica de
aplicabilidade de normas gerais – ou seja, a condição de normalidade – não está presente,
mesmo nessa situação de penumbra e instabilidade o Direito se manifesta. Afinal, como
vimos em 1.1, o Direito não se resume às leis e a ausência destas não implica necessariamente
o retrocesso daquele.
Há, entretanto, dois tipos de situações excepcionais que não podem ser
confundidas e que, para fins didáticos, devem ser estudadas separadamente. A primeira (a ser
tratada em 2.1) é justamente aquela em que, ainda dentro de uma ordem jurídica constituída e
vigente, a ordem legal deve ser provisoriamente suspensa para que se busque o
restabelecimento da condição de normalidade necessária à regular aplicabilidade das leis. Este
é, por excelência, o momento de manifestação do jurídico, pois aqui uma ordem legal se
suspende em nome de uma ordem jurídica que lhe é anterior; em outras palavras, as leis se
suspendem em nome e em função do Direito. Este é o âmbito de atuação do ditador
comissário.
Mas a preocupação de Schmitt com o jurídico não exclui e, na verdade, até
mesmo propicia a tematização do político. Surge, então, o segundo tipo de situação
excepcional (a ser tratado em 2.2): aquele em que as estruturas sociais resultam tão abaladas
que não mais comportam a ordem jurídica antes vigente. Esta ordem, uma vez tendo deixado
de refletir a sociedade que deveria lhe servir de fundamentação, precisa ser substituída por
uma nova. Aqui, quando atua o ditador soberano, termina o papel do jurídico e entra em cena
o político, que (re)adquire em nosso autor toda sua importância e dignidade.

80
SCHMITT, Carl. Politische Theologie. Berlin: Duncker & Humblot, 2009. 9ª edição.
33

Nesse ponto, alguém pode se questionar qual a relevância dessa diferenciação


ou mesmo da própria análise do caso excepcional para este trabalho. A resposta demanda
pouco esforço: na situação de exceção, de forma mais urgente do que na situação normal,
algum órgão ou alguma pessoa terá que tomar decisões e agir em prol do restabelecimento da
antiga ordem ou do estabelecimento de uma nova. Mas a exceção não é o caos – a ausência da
normalidade não significa que qualquer pessoa poderá impor seu poder pela força, muito
menos que a mera efetividade desse poder, por si só, será suficiente para legitimá-lo.
Quem, afinal, é competente para decidir sobre o estado de exceção e agir nesse
estado? Ainda mais importante, de onde esse alguém deriva sua legitimidade? Estas sim são
questões relevantes e complexas e para elas tentaremos esboçar uma resposta em seguida.

2.1 A DITADURA COMISSÁRIA E O ARTIGO 48 DA CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR

Antes de abordar o tema da ditadura, é preciso esclarecer o significado desse


termo no contexto da obra de Schmitt. As palavras “ditadura” e “ditador” carregam na
literatura política e jurídica contemporânea, bem como na linguagem cotidiana, uma
conotação negativa que lá não estava presente. O ditador hoje é confundido com um tirano,
com uma espécie de governador despótico e antidemocrático que pretende dominar uma
comunidade política, independentemente do apoio ou confiança proveniente do povo.
81
Logo na abertura de “A Ditadura” , obra publicada em 1921, Schmitt
desmistifica o termo e afirma que o ditador em nada diz respeito ao tirano. Ditadura, para
nosso autor, é uma instituição excepcional que remonta às origens romanas clássicas. É
excepcional porque, a exemplo dos períodos ditatoriais em Roma, apenas se manifesta quando
alguma situação de anormalidade – como um levante, um desastre natural, guerra externa ou
interna – está a colocar em risco a paz, a segurança e a ordem do Estado e deve, portanto, ser
urgentemente afastada. Especificamente para o cumprimento dessa tarefa – afastamento da
situação excepcional – é que surge o ditador.
Essa figura, então, tem vida curta, pois somente perdura – ou, pelo menos,
somente deveria perdurar – enquanto estiver presente a circunstância de risco em virtude da
qual lhe foi conferido um mandato, ou seja, enquanto sua tarefa não estiver totalmente levada
a cabo. Atingido aquele determinado fim, restabelecida a ordem e a segurança, termina
imediatamente a comissão do ditador.

81
SCHMITT, Carl. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994. 6ª edição.
34

Essa era, aliás, uma das hipóteses de encerramento da ação do ditador romano,
não importando há quanto tempo ele vinha cumprindo sua função. Outra hipótese era o
decurso do prazo de seis meses, não importando, neste caso, se sua tarefa fora ou não
integralmente cumprida82. Desse exemplo é importante guardar apenas a idéia de que a
ditadura não é uma instituição integrante das estruturas normais do Estado, mas que, pelo
contrário, é provisória por definição.
Pois bem, esboçado um conceito de ditador, cabe-nos agora explicitar algumas
de suas principais características: (a) o ditador reúne em si funções deliberativo-normativas e
executivas; (b) ele não depende da autorização de quaisquer instâncias superiores para dar
efetividade a suas determinações; (c) ele possui um mandato que pode ser revogado a
qualquer momento e não se confunde, portanto, com o soberano.
(a) Já mencionamos neste trabalho que o pressuposto de fato necessário à
aplicabilidade de leis, entendidas estas como normas gerais e abstratas promulgadas por um
parlamento, é a condição de normalidade. A regulamentação de um estado excepcional só
pode ser feita caso a caso, em vista da situação concreta, pois os modos de configuração da
realidade são os mais diversos possíveis. Não há como definir ou calcular previamente a
forma como a exceção se manifestará e, em conseqüência, não há como decidir
antecipadamente sobre como normatizar (ou normalizar) essas situações futuras
imprevisíveis.
Não é objeto de dúvida, porém, o fato de que o caso excepcional necessita de
algum tipo de regulamentação. É então que entra em cena e adquire relevância o caráter
normativo-deliberativo da figura do ditador. É essencial ao bom cumprimento de sua função
que ele possa, a seu critério, suspender o direito comum e decidir casuisticamente através de
normas concretas e particulares, objetivando sempre restabelecer aquela situação em que as
normas gerais e abstratas possam ser normalmente aplicadas.
Segundo a terminologia de Schmitt, essas normas concretas e particulares são
denominadas providências (Maßnahme) e são típicas do que ele chama de “Estado de
administração”, que se contrapõe aos Estados de legislação e jurisdição (cf. acima, 1.1). No
Estado de administração não governam as leis nem os homens, mas sim “as coisas
administram a si mesmas” 83. O ponto de vista de que parte o administrador é exclusivamente
aquele do estado de coisas que deve ser administrado e o único critério de correção de suas
decisões é a adequação e utilidade das mesmas em relação a esse fim pré-determinado. Não

82
SCHMITT, Carl. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994. 6ª edição, pág. 1.
83
Idem. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker & Humblot, 1998, 6ª edição, pág. 9.
35

por acaso, esse é também o ponto de vista do ditador, o qual, de fato, é um administrador do
estado de exceção.
O mais importante atributo das providências tomadas pelo ditador, que decorre
imediatamente de seu caráter de particularidade, é sua aplicabilidade imediata e independente
de qualquer concretização ulterior. Dado que essa norma já foi proferida tendo em vista um
caso concreto, sua execução prescinde de mediação. O ditador pode, ele mesmo, executá-las,
satisfazendo assim a demanda por eficiência que é inerente ao seu cargo – já que o estado
excepcional é também um estado emergencial. Aí está, então, a função executiva dessa figura,
que vem se agregar à função deliberativo-normativa.
(b) A segunda característica da ditadura é, na verdade, um anterior lógico dessa
função executiva que acabou de ser mencionada. Se o ditador deve ter em suas mãos todos os
meios necessários à regulamentação, administração e normalização do estado excepcional, ele
não pode estar à mercê da autorização de instâncias que, ao contrário dele próprio, não estão
única e exclusivamente vinculadas ao estado concreto de coisas.
O mandato conferido ao ditador para agir no estado de exceção lhe garante,
então, a competência absoluta para a tomada de decisões, na qualidade de última instância
deliberativa. Do contrário, a efetividade e objetividade das medidas por ele tomadas seriam
colocadas em risco, posto que se estaria sempre admitindo a possibilidade de sua revisão.
Ademais, nesse nível “superior” de julgamento os critérios de avaliação provavelmente
exacerbariam aqueles que devem ser os únicos guias da ação no estado de exceção, quais
sejam: necessidade, adequação e utilidade das medidas em vista de determinada situação
concreta.
(c) Essa grande concentração de poder na figura do ditador, entretanto, pode
induzir ao pensamento de que ele detém também o poder de soberania, conclusão essa que,
pelo menos por ora, deve ser evitada. A teoria política de Schmitt, a princípio, parece manter
segregados esses papéis, atribuindo – no que diz respeito à ordem estabelecida pela
Constituição de Weimar – a soberania ao povo alemão e a ditadura excepcional ao Presidente
da República, conforme veremos adiante.
Para facilitar, pelo menos em tese, essa separação, Schmitt menciona o critério
utilizado por Bodin: a provisoriedade e revogabilidade do mandato ou comissão do ditador.
Independentemente da abrangência de suas competências, ele pode ser a qualquer momento
destituído de seu mandato pelo soberano, posto que este continua sendo o senhor absoluto de
36

tudo o que se passa naquela comunidade política84. Ele nunca transfere total e absolutamente
suas competências, pois a titularidade da soberania em si é indisponível. O cargo do ditador
sempre será um derivado desse poder soberano:

Mesmo quando, em um Estado, um único homem ou uma única autoridade


pública obtém competências ilimitadas e não há nenhum meio jurídico capaz de
contrariar suas providências, isso ainda não é um poder soberano, se não for também
duradouro (...). O funcionário ou comissário de uma república democrática ou de um
imperador, ainda que muito poderoso, tem apenas competências derivadas; soberano
é o povo ou, na monarquia, o imperador.85

O ditador, esclarece Bodin, tem apenas direitos em seu cargo, mas não tem
nenhum direito ao seu cargo, posto que sua competência é excepcional e se dá sempre por
derivação. Ele se justifica, em última análise, ao fazer referência ao soberano, enquanto este
não precisa derivar seu poder de qualquer outro órgão ou instância e se justifica, assim,
apenas em sua própria existência.
Schmitt concorda com esse pensador em relação ao caráter temporário e
derivado da função do ditador; entretanto, há um elemento de grande importância na teoria do
nosso autor que não é admitido por Bodin, qual seja, a existência da figura do ditador
soberano, distinto daquela do ditador comissário. Para ele, sempre que uma nova ordem
estatal estiver sendo criada, necessariamente estará agindo o soberano.86Já para Schmitt,
mesmo nessa situação poderá estar presente um ditador. Aliás, essa é não só uma
possibilidade, como uma necessidade em sua teoria.
Esse ponto será abordado especificamente em 2.2. Antes disso, é importante
aprofundar a questão a respeito da titularidade da soberania e da ditadura.

2.1.1 Poder Constituinte, Soberania e Ditadura

Foi mencionado acima que o titular do cargo de ditador não poderia ser
confundido, a princípio, com o soberano. A ressalva não foi feita por acaso: esse, pelo menos
nos limites deste trabalho, é um dos pontos mais obscuros da teoria política de Schmitt. Em
alguns momentos de sua obra, ele afirma que o povo é o soberano e identifica, assim,
soberania com poder constituinte. Em outras passagens, porém, ele parece dar pistas no
sentido de que também o ditador carregaria alguns atributos típicos da soberania e que, se ele

84
SCHMITT, Carl. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994. 6ª edição, pág. 25.
85
Idem, ibidem, pág. 26.
86
Idem, ibidem, pag. 39.
37

não fosse o único soberano, haveria uma espécie de “soberania concorrente” entre povo e
ditador.
O fato é que o autor não está preocupado com a criação de um sistema; a
política, sendo uma disciplina que trata precipuamente do humano, não admitiria tal
simplificação. Diferentemente de seu antecessor Hobbes, de quem ele se considera seguidor,
mas a quem faz fortes objeções, uma construção sistemática da política sempre acabaria
excluindo alguma ou algumas dimensões da vida humana, o que Schmitt quer ao máximo
evitar. Se a sua teoria ganha em complexidade, perde muitas vezes, porém, em clareza,
aumentando a dificuldade do trabalho do intérprete.
Feita essa breve consideração, iniciaremos com a questão da identificação das
figuras do poder constituinte e da soberania no povo. Em vários aspectos, os atributos do
soberano acabam se assemelhando em muito com aqueles do poder constituinte, analisados
em 1.2: competência originária para a determinação da própria configuração do estado;
justificação existencialista, independente da prévia existência de outras instituições;
capacidade de autorizar e desautorizar a atuação de órgãos derivados. De fato, em uma
primeira análise da obra de Schmitt, o povo parece ser tanto o sujeito do poder constituinte
quanto o titular da soberania. Aliás, no próprio trecho de “A Ditadura” transcrito acima (2.1),
está explícita a afirmação de que o povo é o soberano; entretanto, o leitor atento, ao se
questionar se Schmitt está fazendo suas as palavras de Bodin ou se está apenas analisando a
tese deste autor, não encontra uma resposta indubitável.
Já na “Teoria da Constituição”, Schmitt fala longamente do poder constituinte
do povo87, mas apenas em uma curta passagem fala do “povo soberano”. O autor faz uma
diferença entre as competências plebiscitárias do povo, assim definidas pela e na
Constituição, e aquelas originárias, típicas do poder constituinte:

Tudo o que se sucede com fundamento na Constituição, nos regulamentos


constitucionais ou nas competências definidas na Constituição tem, essencialmente,
outra natureza daquela de um ato do poder constituinte. Todas as permissões e
competências constitucionais do “povo”, isto é, dos cidadãos com direito a voto, (...)
não são competência do povo soberano, que se dá uma Constituição e estabelece um
ato do poder constituinte, mas sim competências no âmbito de uma Constituição já
posta.88

Nessa passagem, então, o povo é soberano do ponto de vista externo à ordem


constitucional vigente, ou seja, ele é soberano justamente enquanto é poder constituinte. Ao se
inserir nessa ordem constitucional, ele deixa de ser soberano para se tornar uma espécie de

87
SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição, págs 75-87.
88
Idem, ibidem, pág. 98 (tradução e grifo nosso).
38

poder constituído, posto que tem competências específicas, regradas e limitadas, assim como
as outras instituições estatais.
É então que a definição de conceitos se torna mais sutil e delicada. Esse mesmo
povo que, dentro da ordem constituída, não mais é soberano, continua sendo titular da
soberania de uma forma latente? A soberania do povo apenas deixa de se manifestar ou, na
realidade, ela acaba por se extinguir? Ou ainda, será que a soberania, quando não se está
diante de um ato do poder constituinte, muda de titular?
É impossível falar de soberania em Schmitt sem mencionar uma de suas mais
famosas definições, aquela que abre sua “Teologia Política”: “Soberano é aquele que decide
sobre o estado de exceção” 89. A tese é de que o poder de decidir quando ou em que condições
se está de fato diante de um estado de exceção – muito mais do que a capacidade de agir já
dentro dessa situação – seria tão grande que o seu titular teria em suas mãos imediatamente a
soberania, ou seja, seria o senhor daquela comunidade política, aquele que é competente e
capaz de tomar as mais graves decisões.
Isso é assim porque o caso excepcional, por definição, não pode ser previsto ou
previamente determinado. A Constituição pode atribuir competências e mesmo prescrever
diretrizes, mas nunca poderá definir exatamente em que consiste o estado de exceção. Ela
poderá falar, genericamente, em uma situação que prejudique ou coloque em risco a ordem e a
segurança de Estado, mas a situação concreta de risco só será assim qualificada por uma
pessoa, também ela, concreta. O que é segurança, o que é ordem – são perguntas que nunca
poderão ser respondidas em definitivo por uma norma geral. Quem tem o poder de dar
concretude a esses conceitos abstratos é quem detém o poder soberano.
Pois bem, Schmitt expõe a tese de que o soberano é aquele que decide sobre o
estado de exceção e precisa compatibilizar essa idéia com a Constituição de Weimar, que é o
pano de fundo de boa parte de sua obra. Ocorre que, segundo o art. 48 desse documento
constitucional, quem tinha competência para tomar todas as medidas necessárias ao
restabelecimento da segurança e da ordem no Estado, quando uma situação de risco estivesse
presente, era o Presidente da República. Ora, se o Presidente é quem decide sobre o estado de
exceção, a conclusão imediata a que se chega é que ele, e não o povo, é o soberano.
Essa não é, entretanto, a conclusão a que pretende chegar nosso autor. Ele
90
afirma, tanto na parte final de “A Ditadura” quanto no artigo que foi anexado a essa obra
em 1924, intitulado “A Ditadura do Presidente da República de acordo com o art. 48 da

89
SCHMITT, Carl. Politische Theologie. Berlin: Duncker & Humblot, 2009. 9ª edição, pág. 13.
90
Idem. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994. 6ª edição, pág. 198.
39

Constituição” 91, que nessas condições o Presidente estaria a exercer uma ditadura comissária
e que seus poderes apenas se confundiriam com a soberania em casos patológicos.
Para concluir dessa forma, a argumentação precisa dar um grande desvio
desde aquela primeira premissa explicitada na “Teologia Política”; Schmitt, entretanto, não
mostra expressamente qual é esse caminho, mantendo-o subentendido e deixando sua
compreensão a cargo de seu leitor. A premissa a ser acrescentada, para dar sentido ao
raciocínio, parece ser a seguinte: o povo soberano, ao agir como poder constituinte, já
transferiu antecipadamente ao Presidente da República, através da Constituição, a
competência para decidir sobre o estado de exceção e nele tomar todas as medidas
necessárias.
Aceitando-se essa proposição, é possível que se conclua pela natureza
comissária dessa atuação do Presidente. Quando ele decide a respeito da existência ou não de
uma situação capaz de colocar em risco a segurança e a ordem do Estado, ele está apenas
levando a cabo uma competência que já foi definida pela Constituição, um mandato que já lhe
foi conferido previamente pelo soberano, através da mediação desse documento
constitucional.
O que não fica claro é se a transferência daquele que é o maior poder do
soberano, daquele poder que o define, não significa, por si só, uma transferência da própria
soberania. Se não é mais o povo quem decide sobre o estado de exceção, o que sobra, afinal,
para ele? Por que ele deveria ainda ser considerado o soberano? Schmitt responde que o
exercício da ditadura comissária pelo Presidente no âmbito do art. 48 da Constituição de
Weimar não é uma atuação sem limites, e que justamente esses limites, quando devidamente
observados, estariam a impedir a transferência da soberania92.
De qualquer forma, por mais que tais limitações sejam respeitadas, o poder do
ditador comissário é um poder de vida ou morte, uma vez que ele está autorizado a fazer tudo
o que for necessário, ou melhor, tudo o que ele próprio considerar necessário – já que ele é o
único juiz da conveniência de suas medidas e o estado concreto de coisas é o único critério de
adequação das mesmas. A linha entre ditadura e soberania é muito tênue e, se o Presidente
não tem em si toda a soberania, é difícil negar que ele concorra com esse poder soberano, pelo
menos alguns aspectos 93.

91
SCHMITT, Carl. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994. 6ª edição, pág. 212-257.
92
Idem, ibidem, pág. 198.
93
Essa é a tese de Dyzenhaus em: DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy: Carl Schmitt, Hans Kelsen
and Hermann Heller in Weimar. New York: Oxford University Press Inc., 2003
40

A seguir, veremos em que consistem essas limitações e tentaremos analisar se


elas de fato permitem a caracterização de uma ditadura comissária.

2.1.2 Os Limites do Artigo 48 da Constituição de Weimar

Para facilitar nosso trabalho, iniciaremos pela transcrição da parte do art. 48


que nos interessa e, após, mencionaremos os principais aspectos da exegese feita por Schmitt.
Determinava o mencionado artigo:

Quando a segurança e a ordem pública da República alemã forem


significativamente perturbadas ou colocadas em risco, o Presidente da República
poderá tomar todas as providências necessárias ao seu restabelecimento e, caso
necessário, intervir com a ajuda do Exército.
Para o mesmo objetivo, ele poderá temporariamente revogar, total ou
parcialmente, os direitos fundamentais estabelecidos nos artigos 114 [liberdade de ir
e vir], 115 [inviolabilidade do lar], 117 [inviolabilidade da correspondência], 118
[liberdade de expressão e de imprensa], 123 [liberdade de reunião pacífica], 124
[liberdade de associação] e 153 [garantia da propriedade privada].

O primeiro limite que Schmitt encontra na própria redação do artigo é o


seguinte: “tomar as providências necessárias” não significa legislar. Em “Legalidade e
Legitimidade”, ele dedica um capítulo à análise do que ele chama, em tom de crítica, de
legisladores extraordinários, categoria em que se incluiria, de acordo com a doutrina e
jurisprudência dominantes na época, o Presidente da República no exercício das atribuições
do art. 48 94.
As medidas ou providências tomadas durante o estado de exceção, conforme
analisamos anteriormente, sempre terão a característica de serem particulares e específicas
para uma situação concreta. Diferentemente das leis gerais e abstratas promulgadas pelos
parlamentos, elas não foram feitas para valerem em situações normais e previsíveis. Ora, se a
condição necessária à validade das leis é a normalidade, pode-se dizer, fazendo o paralelo,
que a condição necessária à validade das providências é a perpetuação da situação
excepcional que propiciou seu surgimento. Finda a exceção, termina também a vigência da
providência.
Essa conclusão, que parece ser lógica, não era porém a perspectiva adotada
pela prática jurídica durante o período de crise da Constituição de Weimar. Schmitt afirma
que o Presidente vinha sendo de certa forma equiparado ao legislador parlamentar, pois as
suas providências, que apareciam sob a forma de decretos, adquiriam força de lei, ainda que
94
SCHMITT, Carl. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker & Humblot, 1998, 6ª edição, pág. 64-81.
41

isso não fosse expressamente admitido. Quer dizer, esses decretos continuavam válidos
independentemente da existência de uma situação concreta a lhes dar suporte e assim, na
prática, sua eficácia em nada se diferenciava daquela das leis parlamentares.
Os problemas ocasionados por essa situação são inúmeros: o poder do
Presidente aumenta incomensuravelmente, já que ele próprio decide sobre os pressupostos de
sua atuação, ele próprio executa suas providências e estas continuam a viger por tempo
indeterminado; o parlamento se vê destituído de sua principal função, qual seja, a de legislar,
já que – levando o argumento ao extremo – o Presidente pode revogar as normas
parlamentares através de suas providências que, assim como aquelas, também têm força de
lei; em última análise, a própria construção do Estado parlamentar-burguês é colocada em
risco, pois, ao se admitir a convivência de tipos diferentes de legisladores, desaba o principal
pressuposto do Estado de Legislação, que é a confiança única e incondicional no
parlamento95.
Conforme dissemos anteriormente, Schmitt admite que a transferência da
soberania para o Presidente só se daria em casos patológicos. Nessa equiparação do ditador
comissário com o legislador estaria, então, uma dessas patologias:

Deve ser observado que, quando a autorização ilimitada [para fazer tudo o
que for necessário, segundo o estado das coisas] não quiser significar a dissolução
de toda ordem jurídica vigente e a transferência da soberania para o Presidente da
República, essas providências devem ser sempre do tipo fático e, como tal, não
podem se tornar atos de legislação ou de jurisprudência.96

A distinção entre leis gerais e providências concretas talvez seja bastante clara
em tese. Permanecendo clara essa separação, Schmitt pode estar correto ao afirmar que o
Presidente não será o soberano enquanto suas providências não estejam vigentes na situação
de normalidade e não adquiram, assim, força de lei. Mas o problema está justamente na
competência dada a essa figura para determinar quando se está diante da normalidade e
quando, ao contrário, ainda está presente a exceção. Essa parece ser uma questão sem resposta
na obra do autor – uma aporia que ele não pôde ou não quis solucionar.
O segundo limite que estaria implícito na redação do art. 48 seria a
impossibilidade de alteração constitucional através de providências. Claro, se “tomar todas as
providências necessárias” não significa legislar em concorrência com o legislador ordinário,

95
“O Estado de Legislação parlamentar, com seus princípios de primazia da lei e reserva de lei, conhece apenas
um, nomeadamente o seu legislador, o Parlamento; ele não suporta a concorrência de um poder legislativo
extraordinário.” SCHMITT, Carl. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker & Humblot, 1998, 6ª edição, pág.
70. Cf. também o que dissemos acima, em 1.1.
96
Idem. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994. 6ª edição, pag. 198.
42

muito menos pode denotar uma eventual concorrência com o poder constituinte. O principal
ponto a ser observado aqui é o caráter de provisoriedade das medidas tomadas pelo ditador,
característica essa, aliás, que é constitutiva do próprio conceito de providência, tanto quanto a
temporalidade é constitutiva do conceito de ditadura comissária.
Se a função de ditador é temporária por definição, não faz sentido que os
efeitos de suas ações particulares fiquem gravados na Constituição e, assim, perdurem
indefinidamente. O documento constitucional é justamente o mais estável e duradouro
estatuto de uma comunidade política, é aquele que a institui e constitui como Estado. Ele não
pode, então, ser modificado de forma emergencial, na vigência de um estado de exceção, pois
no momento em que aquela comunidade está em risco ela deixa de ter uma visão clara de
todos os aspectos integrantes de uma situação normal e saudável. Quando há um perigo
concreto a ser afastado, é verdade, a ocasião exige que medidas drásticas sejam tomadas, mas
ao mesmo tempo impede que sejam levadas a cabo alterações de caráter permanente, com
capacidade de persistir no futuro.
É esse o significado daquela permissão apenas temporária, estampada no art.
48, para que o Presidente revogue determinados direitos fundamentais. Revogar é negar
vigência de uma norma, excluí-la do ordenamento jurídico, o que só pode ser feito de forma
genérica; ou seja, revogar uma norma não é o mesmo que tomar uma providência concreta.
Essa abertura dada pela Constituição de Weimar ao Presidente da República não é uma
competência típica da ditadura comissária e deve, portanto, ser interpretada de forma restrita e
cautelosa. O art. 48, por isso mesmo, conferiu ao Presidente essa capacidade de atuar em
matéria constitucional já a limitando previamente, ao determinar que a revogação seja
provisória. Essa técnica, entretanto, enseja por si mesma um grande problema, uma vez que a
interpretação dessa limitação cabe justamente àquele a quem ela se direciona. Ao fim e ao
cabo, se é o Presidente quem decide sobre o alcance da normalidade ou a permanência da
exceção, é ele quem tem o controle do que é permanente ou provisório.
Por fim, a terceira limitação encontrada por Schmitt é a inviolabilidade da
Constituição propriamente dita, em contraposição à possibilidade de violação casuística de
leis constitucionais na vigência do estado de exceção. A distinção entre Constituição e lei
constitucional já foi feita neste trabalho97; basta lembrar que, enquanto aquela trata das
questões mais fundamentais a propósito da existência e configuração do Estado, esta

97
Acima, em 1.3
43

regulamenta de forma mais detalhada alguns pontos menos essenciais, para os quais se quis
dar, por qualquer motivo, tratamento constitucional98.
Há uma segunda distinção, entretanto, que deve ser melhor explicitada.
Acabamos de mencionar que as competências do ditador comissário não abrangem a
possibilidade de modificação da Constituição, seja daquele núcleo que integra o que
chamamos de Constituição propriamente dita, seja de quaisquer leis constitucionais. Mas o
que significa, então, a violação casuística de leis constitucionais e porque esta é possível?
Ocorre que há uma diferença fundamental entre a mera violação de uma norma
e sua revogação. Como já dissemos, revogar é negar vigência; é afastar, de forma genérica, a
sua aplicabilidade. Já a violação é um ato concreto em que a norma deixou de ser observada,
mas que em nada afeta sua vigência. Schmitt usa como exemplo a imagem do delinqüente
que, com suas ações, fere inúmeras regras do direito penal, sem que isso tenha qualquer
influência na sua validade99. Pelo contrário, é justamente por ocasião dessa violação que elas
demonstram de forma mais intensa sua força.
Ao exercer a competência do art. 48 da Constituição de Weimar, então, o
Presidente da República poderia eventualmente ferir algumas normas previstas no documento
constitucional. Um exemplo disso seria a proibição de que determinada pessoa ou grupo de
pessoas modificasse seu domicílio, o que estaria em confronto com o disposto no art. 111
daquela carta100. Note-se que esse artigo não está naquele rol de direitos fundamentais que
poderiam ser temporariamente revogados; mas, se o Presidente considerasse necessário impor
tal proibição, ele poderia fazê-lo com base na competência genérica para “tomar todas as
providências necessárias” ao restabelecimento da segurança e da ordem. Caso ele pudesse
apenas suspender a vigência daqueles artigos listados e fosse inadmissível a violação
casuística de qualquer outra norma constitucional, não haveria sentido se falar em
providências excepcionais nem em estado de exceção.
A Constituição propriamente dita, entretanto, não pode ser tocada nem por esse
tipo de violação específica e temporária. Schmitt afirma, na “Teoria da Constituição”, que
essa é justamente uma das principais conseqüências práticas da distinção entre lei
constitucional e Constituição101. Se o ditador comissário pudesse exercer qualquer influência
naquela que é a decisão fundamental do poder constituinte, então ele próprio, que é poder

98
SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição, pág. 23 e seg.
99
Idem. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994. 6ª edição, pág. 224.
100
Art. 111 da Constituição de Weimar: “Todos os alemães gozam de liberdade de residência em toda a
república. Todos têm o direito de se estabelecer em qualquer lugar do território, lá adquirir imóveis e exercer
qualquer forma de sustento. Limitações a esse direito dependem de lei.”
101
SCHMITT, Carl, op. cit., pág. 26-27.
44

constituído, estaria na prática destituindo a fonte originária de sua autoridade. O poder


constituinte restaria de todo impotente e a soberania estaria, finalmente, nas mãos do ditador.
Mais uma vez, a distinção parece ser clara em tese. Mas é diante da situação
excepcional concreta, a qual pode se configurar das mais diversas e imprevisíveis formas, que
aparecem as tensões e paradoxos que tornam essa questão complexa. A ditadura comissária,
na verdade, tem dois pólos de justificação que podem entrar em conflito. Por um lado, ela se
justifica com amparo na Constituição, através da qual o próprio poder constituinte, que é autor
de toda ordem vigente, lhe deu competência para agir nos casos de necessidade extrema. O
ditador tem, então, uma autoridade derivada desse poder constituinte e mediada pela
Constituição. Por outro lado, a atuação do ditador também se justifica em virtude da
consecução daqueles objetivos específicos para os quais ele foi comissionado; ou seja, a
eficiência de seu poder e o sucesso na realização de tudo aquilo que for exigido pela situação
concreta também acaba por lhe dar legitimidade.
Se, na “Teoria da Constituição”, Schmitt sustenta que a Constituição
propriamente dita não pode ser ferida nem mesmo no estado de exceção, em outras passagens
ele é bastante enfático ao afirmar que o ditador pode realmente fazer tudo o que considerar
necessário e adequado, de acordo com o estado de coisas concreto e independentemente de
qualquer limitação jurídica:

Aqui não mais se questiona sobre considerações jurídicas, mas apenas sobre
quais os meios adequados, no caso concreto, para a obtenção de um resultado
concreto. Mesmo aqui o procedimento pode ser falso ou correto, mas esse
julgamento diz respeito apenas à correção das providências no sentido técnico, quer
dizer, no sentido de sua conveniência e oportunidade. (...) Assim, precisamente na
ditadura domina com exclusividade o objetivo, libertado de todas as obstruções do
direito e determinado apenas pela necessidade de se produzir um estado concreto.102

Vemos, mais uma vez, surgir uma aporia que parece não ter solução: a
Constituição atribui competências ao ditador e impõe limites à sua atuação, mas o estado
concreto de coisas pode exigir que ele extrapole essas competências para que possa levar a
cabo sua missão. Qual desses pólos deve prevalecer é uma pergunta que nosso autor não
responde de forma cabal. Permanece a dúvida a respeito de até que ponto atua de forma
legítima o ditador comissário.

102
SCHMITT, Carl. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994. 6ª edição, pág, pag. 11
45

2.2 A DITADURA SOBERANA

Após termos visto como se dá a dinâmica das instituições estatais no primeiro


tipo de situação excepcional, em que a ordem legal deve ser temporariamente suspensa em
função de uma ordem jurídico-constitucional que continua vigente, cabe-nos alisar a situação
de crise em que o objetivo não é o restabelecimento dessa ordem jurídica, mas sim o
estabelecimento de uma nova. Aqui, de certa forma perde o sentido falar-se em “instituições
estatais”, pois a busca por uma nova ordem representa justamente a queda daquelas
instituições e a criação de um novo Estado.
Cronologicamente, pode-se imaginar a seguinte sucessão de eventos: situação
de normalidade e vigência da ordem legal – situação de risco para a segurança e a ordem –
estado de exceção e atuação do ditador comissário – continuidade da situação de risco –
desconfiguração profunda das bases da comunidade política – decadência e término do
Estado. Estamos, então, no momento em que a unidade se desfaz e em que não há mais
qualquer possibilidade de vigência de uma antiga ordem.
Essa é a situação de conflito que está na origem e no fim de todo Estado.
Retomando a imagem utilizada por Schmitt de comparação entre este ente e um ser humano,
metáfora já mencionada em 1.2, podemos dizer que o conflito é o ocasionador do seu
nascimento e o causador de sua morte. O estado de exceção que vimos acima igualmente pode
ser incluído na metáfora, pois ele também representa, de certa forma, um momento de
conflito; este é, entretanto, de todo menos grave e poderia ser concebido apenas como uma
doença do Estado.
A diferença elementar entre os dois conflitos, entre a doença e a morte, é que
naquela o agente ainda pode pautar sua atuação no Direito, que, embora em crise, continua a
viger; nesta, por outro lado, o Direito já não é mais um critério válido e o único guia para a
ação é o político. Se aquele conflito é jurídico, este é fundamentalmente político103. Schmitt
afirma que, mesmo em condições de normalidade e estabilidade, este conflito mais absoluto e
existencial deve permanecer como um horizonte possível104, pois só existe situação normal
em contraposição à situação excepcional, assim como só existe paz em contraposição à
guerra. A exceção confirma a regra105.

103
HERRERO LÓPEZ, Montserrat. El Nomos y lo Político: La Filosofía Política de Carl Schmitt. Navarra:
Ediciones Universidad de Navarra, 1997. pág. 229-235.
104
SCHMITT, Carl. Der Begriff des Politischen. Berlin: Duncker & Humblot, 2002. 7ª edição, pág. 33-35.
105
Idem. Politische Theologie. Berlin: Duncker & Humblot, 2009. 9ª edição, pág. 21.
46

Esse horizonte de crise é necessário à construção do Estado porque a sua


função primordial é justamente a manutenção da segurança de seus cidadãos. Quer dizer,
inexistindo essa hipótese, desaparece também qualquer justificativa para a dominação de uns
sobre os outros e, assim, não há mais possibilidade de existência de um poder legítimo. O
momento do conflito político, então, representa a atualização daquilo que, durante a
estabilidade ou mesmo durante o conflito jurídico, era apenas uma possibilidade. É nesse
instante que a comunidade política precisará, novamente, decidir a respeito das questões mais
fundamentais à sua existência: como se dará a configuração da nova ordem; sobre qual ou
quais princípios se fundamentará a (re)unificação; e o mais importante, qual será o critério
para a distinção amigo-inimigo.
Esta última é a questão mais importante porque, como ensina Schmitt, a
verdadeira amizade política, essencial à formação de uma unidade real e coesa no âmbito de
um Estado, depende da existência de uma inimizade política, à qual ela se contrapõe. Esse
inimigo não precisa ser guerreado diariamente, nem mesmo invadido ou injuriado; mas deve-
se ter presente de quem ele se trata, para que qualquer ameaça possa ser prontamente
combatida. Assim como a oposição bom-mau dá conteúdo à moral, a oposição útil-nocivo dá
conteúdo ao econômico e a oposição belo-feio dá conteúdo à estética, a distinção que constitui
o político é aquela entre amigo e inimigo106. Sem ela, pode haver outros tipos de unidade –
cultural, religiosa, etc. – mas não uma unidade política.
Pois bem, em uma primeira análise, o único sujeito que pode, legitimamente,
tomar todas essas decisões existenciais é o povo ou, caso se prefira a terminologia de Sieyès,
a nação. Ela é quem tem capacidade de se auto-determinar, de configurar e constituir a si
mesma, justamente por ser prévia a toda constituição e existir anteriormente a qualquer
instituição ou forma política. Todos os poderes constituídos existem apenas por dependência
e em relação a esse poder constituinte, o qual, por sua vez, é absoluto e ilimitado107. A relação
jurídica existente entre poderes constituinte e constituído não é bilateral, mas unilateral;
aquele, que permanece em uma espécie de estado natural, tem apenas direitos, enquanto este,
que age tão somente em função e nos limites de competências pré-determinadas, tem apenas
deveres108.
Mas o fato de que o poder constituinte não possui uma forma ou organização
definida não significa que ele não se deixa representar. O povo, conceito abstrato que é,

106
SCHMITT, Carl. Der Begriff des Politischen. Berlin: Duncker & Humblot, 2002. 7ª edição, pág. 26
107
Idem. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994. 6ª edição, pag. 137
108
Idem, ibidem, pag. 140.
47

precisa encontrar um modo de agir politicamente com eficiência, o que ele consegue, enfim,
através de seu ou seus representantes. São eles que tornarão o povo presente na discussão
política e que terão capacidade de concretizar sua vontade. Além disso, retomando a idéia de
que estamos tratando de uma situação extraordinária de conflito, é apenas através desses
representantes que o sujeito do poder constituinte poderá alcançar o estado de normalidade
necessário à vigência da nova ordem jurídica. O titular dessa função excepcional, derivada
imediatamente da autoridade do poder constituinte – e não mediatamente, como acontecia na
ditadura comissária – é o ditador soberano109.
Nesse ponto, Schmitt não vê problemas em admitir que essa figura tenha de
fato um poder soberano, ilimitado. Entretanto, essa soberania persiste apenas enquanto durar a
situação que justificou seu aparecimento. Também a ditadura soberana tem uma forma dupla
de legitimação: por um lado, a derivação imediata e a autorização do poder constituinte; por
outro, a eficiência na consecução de um objetivo concreto. Chegando-se ao fim dessa tarefa,
isso é certo, encerra automaticamente o mandato do ditador soberano. O que o autor não deixa
claro é se, da mesma forma como o poder constituinte podia destituir o ditador comissário a
qualquer momento e independentemente de qualquer motivo pré-determinado, ele pode fazê-
lo no caso da ditadura soberana. Esse parece ser um ponto de tensão em sua teoria.
Faz-se necessário, agora, abordar quais as especificidades da tarefa concreta do
ditador soberano. Já mencionamos que seu objetivo é o alcance de um estado de coisas que dê
condições ao estabelecimento de uma nova ordem jurídico-legal. Essa figura só pode ser
entendida, assim, em função de uma Constituição futura que se pretenda instituir ou, ao
menos, em função de uma idéia de Constituição que se tenha pela mais justa, correta e
adequada à realidade daquela nação. Isso estará presente em ambos os tipos de conjuntura que
podem se configurar como conflito político a exigir a atuação do ditador, os quais passaremos
a analisar a seguir.
Podemos imaginar, em primeiro lugar, uma situação de revolução ou guerra
civil em que a desordem e a insegurança sejam tão grandes que a vontade do poder
constituinte não consiga, por impossibilidade fática, se atualizar. Antes que a nova
Constituição seja instituída, devem ser afastadas todas as pressões ou coações externas que
estejam a impedir a real liberdade daquela que deveria ser a “vontade livre do povo” 110. Para
que esse mínimo de organização seja atingido, eventualmente pode ser necessário que alguma
espécie de “poder revolucionário” submeta um documento constitucional provisório à

109
SCHMITT, Carl. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994. 6ª edição, pág. 143.
110
Idem, Ibidem, pág. 142.
48

apreciação do povo, ou mesmo que institua tal documento sem sua aprovação expressa. Essa é
uma forma de atuação do ditador soberano.
Em segundo lugar, é possível que ainda não se esteja diante da situação de
desordem, mas que, mesmo assim, exista um conflito latente, embora não atual. Quando a
própria ordem vigente é considerada um impedimento à concretização da vontade livre do
povo, ele, na qualidade de poder constituinte, pode instituir um ditador soberano que terá
como função imediata a destituição desse poder que vigora com base em uma Constituição até
então considerada válida.111 O povo, ensina Schmitt, em algum aspecto sempre estará acima
da Constituição e, dessa forma, poderá a qualquer momento modificá-la ou mesmo afastá-la,
conforme considere mais conveniente ou adequado à sua auto-realização112. O ditador será,
então, o agente da revolução e o iniciador daquela mesma desordem que posteriormente
deverá ser colocada de lado.
O que deve ficar presente é que, esteja o ditador atuando já no contexto de uma
revolução ou seja ele próprio a origem da insurreição, sua legitimidade sempre se dará em
virtude de uma nova ordem constitucional que se pretende alcançar. Nesse sentido, embora
estejamos tratando do momento de manifestação do político por excelência, não se pode dizer
que o mandato do ditador soberano seja absolutamente vazio de qualquer conteúdo jurídico.
Este é exprimido justamente pela estrita relação da ditadura soberana com o povo, único autor
legítimo de uma Constituição. “Tanto a ditadura comissária quanto a soberana têm um
contexto jurídico. A ditadura soberana se reporta ao poder constituinte, o qual não pode ser
afastado por qualquer Constituição a ele oposta” 113.

2.2.1 O Problema da Capacidade de Ação Política do Povo

A questão que agora se coloca tem duas etapas. Inicialmente, precisamos saber
se é possível que o poder constituinte atue independentemente da existência de um ditador
soberano ou se, ao contrário, sua capacidade de ação política está condicionada à presença
dessa figura. Após, caso se responda afirmativamente à segunda alternativa, deveremos nos
perguntar de que forma se dá a eleição desse ditador.

111
Idem, ibidem, pág. 142.
112
O povo “acima” da Constituição não pode ser confundido com o povo “dentro” da Constituição. Neste caso,
ele se manifesta como uma espécie de poder constituído e tem competências constitucionalmente definidas. O
povo não poderia afastar a Constituição através de um procedimento nela mesma previsto (como, por exemplo,
um plebiscito). A respeito dessa diferenciação, cf.: SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Berlin: Duncker &
Humblot, 2003. 9ª edição, pág. 238-242.
113
SCHMITT, Carl. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994. 6ª edição, pág. 136.
49

É possível, em tese, que um povo se reúna em um espaço físico limitado e


então, munido de um forte sentimento de homogeneidade, decida imediatamente a respeito de
sua própria forma de existência. A expressão desse povo, em determinado momento e
determinado local ali presente, é a realização daquilo que Schmitt chama de princípio da
identidade – o povo “idêntico consigo mesmo” 114 é, nessas circunstâncias, a própria unidade
política. A máxima efetivação da identidade, como momento em que a nação tem vontade e
consciência política suficientes para fazer a distinção amigo-inimigo sem necessidade de
representantes ou de qualquer espécie de mediação115, seria também a máxima realização da
democracia.
Essa idéia, entretanto, só é possível como construção mental. Na vida real,
segundo Schmitt, “não há Estado que possa abdicar de todos os elementos estruturais da
representação” 116. Quer dizer, os princípios da identidade e da representação, que são os dois
modos possíveis de conformação de uma comunidade política, na verdade convivem
dialeticamente, embora sejam, conceitualmente, de certa forma contrapostos. Ocorre que o
povo nunca estará de fato presente em sua totalidade, mesmo porque não vivemos mais uma
realidade em que isso seja fisicamente possível. Ademais, não seria realista a generalização de
que todas as pessoas que vivem em um Estado, simplesmente por terem a condição de
cidadãs, teriam também uma consciência política. Em virtude disso, a representação é
necessária para tornar presente esse povo que está ausente e constituir, assim, um espaço
público qualitativamente distinto de uma soma de esferas privadas.
É verdade que, quando o autor fala da mútua conformação e complementação
desses dois princípios na “Teoria da Constituição”, ele está tratando já do contexto do Estado
e não da situação de conflito prévia à sua instituição. Aliás, em um pequeno trecho em que
aborda a relação entre os princípios e o poder constituinte, ele dá a impressão de admitir que o
povo em certa circunstância prescinda da representação: “Onde o povo se apresenta como
sujeito do poder constituinte, a forma política do Estado se define a partir da noção de uma
117
identidade; a nação está lá; ela não precisa e não pode ser representada (...)” . Entretanto,
parece haver algum problema com as idéias de que o povo, no âmbito de um Estado
constituído, só possa estar presente através da mediação de um representante e que, por outro
lado, ele tenha capacidade de ação política independentemente de qualquer representação no

114
SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição, pág. 205.
115
Idem, ibidem, pág. 214.
116
Idem, ibidem, pág. 205-206.
117
Idem, ibidem, pág. 205.
50

momento anterior à Constituição. Como pode ser que aqueles impedimentos físicos à
presença absoluta do povo tenham simplesmente desaparecido?
O fato é que eles não desapareceram – a idéia de um povo idêntico consigo
mesmo, que constitua imediatamente a própria unidade política, não passa, portanto, de mera
ficção. É impossível conceber que um ente amorfo e totalmente destituído de qualquer
organização, como o é o poder constituinte, possa tomar essas decisões essenciais sem
necessidade de instituições e procedimentos mínimos, que definam ao menos como ou por
que meios essas primeiras conclusões serão alcançadas. Que as decisões sejam tomadas por
maioria, por exemplo, não é uma regra procedimental necessária; também sobre ela é preciso
que haja uma decisão. Justamente a ausência de forma, que permite ao povo ser origem de
toda forma posterior, constitui, paradoxalmente, sua maior força e maior deficiência. Nas
palavras de Schmitt:

Na democracia, o povo precisa ser capaz de ações e decisões políticas.


Mesmo que em apenas poucos instantes ele tenha uma vontade decisiva e a
expresse de maneira reconhecível, ele é capaz de ter tal vontade e de
responder Sim ou Não às perguntas fundamentais à sua existência política.
Tanto a fortaleza quanto a fraqueza do povo estão em que ele não é uma
instância formada, circunscrita com competências, que execute funções por
meio de procedimentos regulamentados. [...] A fraqueza está em que o povo
deve decidir sobre as perguntas fundamentais à sua forma política e sua
organização sem que, ele mesmo, esteja formado ou organizado. Por isso,
suas expressões de vontade podem ser facilmente ignoradas, mal-
interpretadas ou falsificadas.118

A nação precisa, então, de instituições mínimas que constituam um espaço


público, a partir do qual se iniciará a discussão política. Como bem coloca López, “o povo é
uma realidade existencial, o público, não” 119; quer dizer, o público precisa de algum grau de
conformação, pois ele não existe simplesmente e não é, ao contrário do povo, anterior a toda
forma. Essa constituição do público se dá exatamente através da representação.
Mas essa constatação, ao invés de responder à nossa pergunta a respeito da
capacidade de ação política do povo, apenas nos coloca um novo problema. Chegamos, então,
à segunda etapa da questão proposta inicialmente: se o povo, mesmo na qualidade de poder
constituinte, precisa de uma mediação para agir, como se dará a escolha desse representante?
Se ainda não há qualquer prescrição a respeito de competências ou procedimentos, de que
modo o povo poderá conferir um mandato ao ditador soberano? E, ainda mais grave, como ele
poderá decidir sobre quem será o ditador legítimo?
118
SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição, pág. 83.
119
HERRERO LOPÉZ, Montserrat. El Nomos y lo Político: La Filosofia Política de Carl Schmitt. Navarra:
Ediciones Universidad de Navarra, 1997, pág. 330.
51

Schmitt não dá respostas claras a todas essas perguntas, embora certamente as


tenha em mente. Ao ler “A Ditadura”, o intérprete tem a impressão de que seu ponto de
partida é a situação em que já há um ditador soberano atuante e em que a ação deste é, acima
de tudo, eficiente. O argumento é, de certa forma, histórico; quer dizer, historicamente não
conseguimos imaginar uma sociedade em que não haja um mínimo de organização do poder
ou, caso assim se prefira, um mínimo institucional. O “estado de natureza” absoluto será
sempre uma pressuposição mental. É importante que, em já havendo uma instituição mínima
que se traduza como ditadura soberana, o povo em certo momento consinta com esse poder ou
mesmo deposite nele sua confiança, pois, como nos ensina Weber, o que legitima o poder é a
crença na sua legitimidade120. Entretanto, esse consentimento não é um elemento que deva
estar necessariamente presente na origem dessa instituição.
No trecho de “Teoria da Constituição” anteriormente citado, já aparece a idéia
de que o povo atua politicamente ao responder com “sim” ou “não” a uma pergunta que lhe
foi colocada. Este é um ponto crucial na teoria de Schmitt: a resposta simples, que pode ser
resumida a uma afirmação ou a uma negação incondicionais, não é apenas uma forma de
atuação do povo, mas a única forma natural e possível. “A forma natural de expressão
imediata da vontade de um povo é o grito de aprovação ou desaprovação da multidão reunida,
a aclamação” 121. É apenas no momento da aclamação que se constitui uma vontade originária
e verdadeiramente pública, pois somente nessas condições o indivíduo se apresenta como
membro de uma comunidade política e não como pessoa particular.
Com essa idéia de aclamação, Schmitt nega, a uma só vez, dois pressupostos
básicos do liberalismo: em primeiro lugar, que se possa formar, por meio de uma votação
secreta em que a cada pessoa é conferido o direito a um voto de igual peso, uma vontade
pública, distinta da soma de vontades particulares; em segundo lugar, que o povo seja capaz,
por meio da razão e do discurso, de deliberar e chegar a conclusões mais complexas que um
simples “sim” ou “não”.
Em relação ao primeiro ponto, basta fazer alusão à critica que constitui a idéia
central de “A Crise da Democracia Parlamentar”, obra aqui já citada122. Para o autor, os
indivíduos, ao participarem de tal esquema de votação típico de um sistema liberal-burguês,
levam em consideração apenas seus interesses particulares e, assim, não agem propriamente

120
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Regis Barbosa
e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. 3ª edição, pág. 23, 176-177.
121
SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição, pág. 83 (tradução nossa,
grifo no original).
122
Idem. The Crisis of Parliamentary Democracy. Tradução de Ellen Kennedy. Massachusetts Institute of
Technology, 2000. 6ª edição.
52

como cidadãos. Há um abismo intransponível entre essa adição de esferas privadas e a esfera,
qualitativamente distinta, do público. Quanto ao segundo ponto, menciona-se a análise feita
por Andreas Kalyvas, segundo o qual Schmitt atribuiu ao liberalismo as práticas do “discurso,
da discussão e da deliberação” 123, tradicionalmente consideradas públicas e democráticas. “E
porque essas práticas estavam associadas [ao liberalismo], ele [Schmitt] não podia incorporá-
las à sua própria teoria” 124.
Seja qual for o motivo que tenha levado Schmitt a ignorar o discurso público
como modo de atuação política do povo, o fato é que ele admitiu somente a possibilidade de
que o povo responda a uma pergunta sobre sua forma de existência, e não que ele mesmo
formule a pergunta. Mas alguém deverá articular a questão e colocá-la diante do povo –
justamente aí está todo o problema. Se as primeiras instituições, organizações e
procedimentos surgirão apenas com a primeira resposta, a justificação do poder daquele que
fará a primeira pergunta continua sendo um mistério. Aparentemente, a eficiência em impor
essa questão originária acaba por ser mais relevante que qualquer alusão a uma instituição ou
autoridade anterior.
Ao fim e ao cabo, nosso autor não consegue resolver de modo absoluto o
problema da diferenciação entre validade e eficácia do poder. Nessa tensão, entretanto, parece
residir tanto a fortaleza quanto a fraqueza do argumento de Schmitt. Fraqueza, porque ela
mantém sem resposta a pergunta mais fundamental a respeito da legitimação do poder e
impede que sua tão promissora teoria do político tenha um fechamento perfeito; fortaleza,
porque ela nos mostra que não há sistematização que abarque a complexidade do homem e de
todos os assuntos referentes à vida humana, como é o caso da política.

123
Kalyvas, Andreas. Democracy and the Politics of the Extraordinary: Max Weber, Carl Schmitt and Hannah
Arendt. New York: Cambridge University Press, 2008, pág. 124.
124
Idem, ibidem, pág. 124.
53

CONCLUSÃO

O objetivo deste trabalho foi mostrar a forma como Carl Schmitt, importante
jurista alemão nascido no ano de 1888, procura resolver o problema da justificação das
instituições e do poder estatal. A questão, que é tema constante das literaturas jurídica e
política, mais uma vez revelou-se complexa e impassível de soluções absolutas. O conceito de
legitimidade, por ser chave em boa parte da obra de Schmitt e especialmente em seus escritos
que datam do período da República de Weimar (1919 – 1933), foi escolhido para alinhavar os
argumentos deste breve estudo.
O principal ponto que se tentou esclarecer foi a crítica forte e incisiva que Schmitt
faz a todo tipo de construção teórica que tenha por finalidade a neutralização do político
através do banimento do horizonte de conflito da vida humana. O autor, que parte de uma
antropologia segundo a qual o homem é um ser sobretudo perigoso125, considera que ele não
deixará de sê-lo em virtude da redução de importantes dimensões de sua existência a uma
questão de técnica ou procedimento. O liberalismo e o tecnicismo, seus principais inimigos,
são os alvos dessa censura feita por Schmitt justamente a partir do desenvolvimento da idéia
de legitimidade e das relações dessa noção com a legalidade.
Uma vez que a teoria política de nosso autor pressupõe a manutenção da hipótese
do conflito, considerou-se oportuna a divisão deste trabalho com base em uma distinção que é
de todo relevante para uma boa compreensão da obra de Schmitt, qual seja, aquela entre
estado de normalidade e estado de exceção. A análise do primeiro é importante porque a
situação normal é pressuposto necessário ao funcionamento de um sistema ordinário de
normas jurídicas, formado por um conjunto de leis gerais e abstratas, do qual o Estado – como
hoje o conhecemos – não pode prescindir. Já o estudo do segundo se mostra essencial porque
é no momento da exceção que a justificação de qualquer exercício de poder se torna mais

125
SCHMITT, Carl. Der Begriff des Politischen. Berlin: Duncker & Humblot, 2002. 7ª edição, pág. 60-64.
54

delicada, pois a diferenciação entre validade e eficácia do poder já não mais pode ser feita de
forma tão clara.
Iniciando pela situação de normalidade, procuramos expor como Schmitt constrói
a idéia de “sistema de legalidade” e como justamente a observância incondicional das leis
promulgadas por um parlamento pode ser, em um Estado burocrático moderno, a mais alta
forma de legitimação. A esse respeito, comenta Gary Ulmen:

No plano jurídico, a crítica de Schmitt está cunhada através de sua análise


conceitual da teoria normativa liberal de legitimidade como legalidade. De acordo
com essa teoria, a coesão do Estado liberal, visto filosoficamente, se dá na
congruência fictícia entre direito e lei, justiça e legalidade (...). Tal crença na
dignidade da lei depende de uma crença na racionalidade da legislação e do
procedimento legislativo, o que só faz sentido quando direito e justiça são
conceituados como legalidade formal. (...) Assim, a legalidade é a única justificativa
para a aplicação da força e, então, a base de todo poder político. 126

Esse trecho é bastante ilustrativo, pois ele esclarece como a crença no


procedimento parlamentar e a crença no próprio legislador são elementos fundamentais do
sistema de legalidade. Conforme vimos, um dos pontos da crítica de Schmitt ao liberalismo
está centrado na idéia de que o parlamento, da forma como se apresenta nos Estados liberal-
burgueses (e aqui ele utiliza o exemplo da própria Alemanha de Weimar), não é um órgão de
verdadeira representação política, mas sim de defesa de interesses particulares, e que,
portanto, o pressuposto de confiança no legislador não estaria sendo realizado. No mesmo
contexto, vimos também que a principal deficiência do sistema de legalidade está na sua
incapacidade de lidar com situações excepcionais, em que as normas ordinárias não podem
ser aplicadas.
Ainda com relação à situação de normalidade, foi abordada brevemente a figura do
poder constituinte, em cuja decisão fundamental Schmitt faz repousar a legitimidade primeira
de todos os poderes constituídos do Estado. A partir dessa construção, analisamos o que o
autor entende por Constituição propriamente dita e lei constitucional e procuramos
demonstrar a forma como ele utiliza esses conceitos para delimitar o espaço de atuação
legítima do legislador constitucional (ou poder constituinte derivado). Para Schmitt, fazer essa
delimitação é uma tarefa essencial para qualquer teórico do Direito, uma vez que nenhuma
ordem legal-constitucional pode oferecer os meios e procedimentos úteis à própria ruína127.

126
ULMEN, Gary L. Politischer Mehrwert: Eine Studie über Max Weber und Carl Marx. Weihnheim: VCH,
Acta Humaniora, 1991, pág. 162 (tradução nossa).
127
SCHMITT, Carl. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker & Humblot, 1998, 6ª edição, pág. 56-57.
55

Em seguida, já no tratamento do estado de exceção, fez-se uma distinção entre os


dois tipos de situação que podem se apresentar quando não se está diante do caso normal: o
primeiro é o caso excepcional ocorrido no âmbito de uma ordem jurídica posta e ainda
vigente, a qual deve ser apenas provisoriamente suspensa até que seja restabelecida a
condição de normalidade necessária ao seu regular funcionamento; o segundo é o caso em
que, em virtude de um abalo profundo nas estruturas de determinada comunidade política, já
não existe mais uma ordem jurídica válida e em que, então, uma nova deve ser estabelecida.
Com essa diferenciação em mente, pode-se compreender as duas figuras que,
segundo Schmitt, têm legitimidade para agir no estado de exceção. O ditador comissário, o
qual deriva sua competência diretamente de um documento constitucional instituído e vigente
– e apenas mediatamente do poder constituinte –, é aquele que pode atuar através de normas
concretas e particulares em busca do restabelecimento da ordem e que, como uma espécie de
“administrador”, pode tomar todas as medidas necessárias para tal fim, sempre em vista do
estado concreto de coisas. O ditador soberano, por sua vez, também atua em função de uma
situação concreta e utiliza como critérios para suas ações apenas a necessidade e a utilidade,
com a diferença de que ele não tem competências constitucionais, mas sim um mandato
derivado imediatamente do poder constituinte, já que seu objetivo primordial é justamente o
estabelecimento de uma nova Constituição.
A grande tensão que surge quando do estudo da ditadura decorre do fato de que a
ela está associada uma dupla forma de legitimação: por um lado, a Constituição ou o próprio
povo, enquanto titular do poder constituinte, lhe dá autorização para agir e lhe concede,
portanto, autoridade; por outro lado, a estrita vinculação do ditador com as exigências do
estado concreto de coisas significa que a necessidade e a utilidade também justificam suas
ações. Problemas importantes, então, podem surgir quando a situação concreta requerer que
ele atue de forma a extrapolar os poderes que lhe foram conferidos via mandato ou comissão,
é dizer, quando houver um descompasso entre esses dois modos de legitimação. Ademais, em
se tratando especificamente da ditadura soberana, é difícil conceber que um povo que –
conforme a construção de Schmitt – somente pode agir politicamente respondendo “sim” ou
“não” consiga, de fato, escolher democraticamente seu primeiro representante sem que se faça
necessário o uso da força.
Com essas considerações, procurou-se demonstrar alguns aspectos da
multifacetada questão da validade do poder político. Schmitt, durante o exame da situação de
normalidade, desconstrói pontos centrais da teoria liberal e obtém sucesso em apontar as
graves deficiências de sua tese de legitimidade como legalidade. Entretanto, ao construir sua
56

própria teoria baseada na análise do estado de exceção, ele não nos dá respostas unívocas a
respeito da possibilidade de justificação do poder independentemente de sua eficácia, de
modo que o mesmo problema por ele já identificado no liberalismo parece persistir. O mérito
do autor talvez esteja justamente em sugerir que o papel de uma teoria política não seja a
proposição de soluções cabais, mas sim o incentivo para que continuemos perguntando.
57

BIBLIOGRAFIA

AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros,
2007. 28ª edição, revista e atualizada.

BARZOTTO, Luis Fernando. “Filosofia e Constituição”, in: MARTINS, Ives Gandra da


Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO, Carlos Valder. Tratado de Direito
Constitucional, v. 1. São Paulo: Saraiva, 2010. Pág. 617-653.

BRASIL: Constituição da República Federativa do Brasil.

BURCHARD, Christoph. “Puzzles and Solutions: Appreciating Carl Schmitt’s Work on


International Law as Answers to the Dilemmas of his Weimar Political Theory”, in: IILJ
Working Papers 2004/8. New York: New York University School of Law, 2004.

DYZENHAUS, David. “Intimidations of Legality amid the Clash of Arms”, in: I.CON,
Volume 2, Number 2, 2004, pp. 244–271. New York: Oxford University Press and New York
University School of Law, 2004.

. Legality and Legitimacy. Carl Schmitt, Hans Kelsen and Hermann


Heller in Weimar. New York: Oxford University Press Inc, 2003. 2ª edição.

. “Hermann Heller and the Legitimacy of Legality”, in: Oxford Journal


of Legal Studies Vol. 16, Nº 40, pág. 641 a 666. Oxford University Press, 1996.

GALLI, Carlo. “Carl Schmitt’s Antiliberalism: its theoretical and historical sources and its
philosophical and political meaning”, in: Cardozo Law Review, 21:5-6 (2000), pp. 1597-
1617.

HARVEY, Colin. “Contesting Legality”, in: Oxford Journal of Legal Studies, Vol. 20, Nº 4
(2000), pp. 667-672. Oxford University Press, 2000.

HERRERO LOPÉZ, Montserrat. El Nomos y lo Político: La Filosofia Política de Carl


Schmitt. Navarra: Ediciones Universidad de Navarra, 1997.

HOBBES, Thomas. Leviatã. Editora Nova Cultural, coleção Os Pensadores, volume I.

KALYVAS, Andreas. “Carl Schmitt and the Three Moments of Democracy”, in: Cardozo
Law Review, 21:5-6 (2000), pp. 1525-1565.
58

. Democracy and the Politics of the Extraordinary: Max Weber, Carl


Schmitt and Hannah Arendt. New York: Cambridge University Press, 2008.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: introdução à problemática científica do Direito.


Tradução de J. Cretella Jr., Agnes Cretella. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2003.

MCCORMICK, John P. “Irrational Choice and Mortal Combat as Political Destiny: The
Essential Carl Schmitt”, in: Annual Review of Political Science 2007, 10:315-339.

RICHTER, Emanuel. “Carl Schmitt: The Defective Guidance for the Critique of Liberalism”,
in: Cardozo Law Review, 21:5-6 (2000), pp. 1619-1644.

RIGAUX, François. “L’histoire du Droit International Revue par Carl Schmitt”, in: Journal of
the History of International Law, 9 (2007) 233–262.

SCHMITT, Carl. “Das Problem der Legalität (1950)”, in: Verfassungsrechtliche Aufsätze aus
den Jahren 1924-1954. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 4ª edição. Pág. 440-451.

. Der Begriff des Politischen. Berlin: Duncker & Humblot, 2002. 7ª edição.

. Der Nomos der Erde im Völkerrecht des Jus Publicum Europaeum. Berlin:
Duncker & Humblot, 1974. 2ª edição.

. Die Diktatur. Berlin: Duncker & Humblot, 1994. 6ª edição.

. “Die staatsrechtliche Bedeutung der Notverordnung, insbesondere ihre


Rechtsgültigkeit (1931)”, in: Verfassungsrechtliche Aufsätze aus den Jahren 1924-1954.
Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 4ª edição. Pág. 245-262.

. “Die Stellvertretung des Reichspräsidenten (1933)”, in: Verfassungsrechtliche


Aufsätze aus den Jahren 1924-1954. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 4ª edição. Pág. 351-
358.

. “El Orden del Mundo Despues de la Segunda Guerra Mundial”, in: Revista
de Estudios Políticos, Nº 122, março-abril, pág. 19-36. Madrid: Instituto de Estudios
Políticos, 1962.

. “Freiheitsrechte und institutionelle Garantien der Reichsverfassung (1931)”,


in: Verfassungsrechtliche Aufsätze aus den Jahren 1924-1954. Berlin: Duncker & Humblot,
2003. 4ª edição. Pág. 140-173.

. “La Revolución Legal Mundial: Plusvalía política como prima sobre


legalidad jurídica e superlegalidad”, in: Revista de Estudios Políticos (Nueva época), Nº 10,
Julio – Agosto, 1979.

. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker & Humblot, 1998. 6ª edição.


59

. “Machtpositionen des modernen Staates (1933)”, in: Verfassungsrechtliche


Aufsätze aus den Jahren 1924-1954. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 4ª edição. Pág. 367-
371.

. Politische Theologie. Berlin: Duncker & Humblot, 2009. 9ª edição.

. The Crisis of Parliamentary Democracy. Tradução de Ellen Kennedy.


Massachusetts Institute of Technology, 2000. 6ª edição.

. The Theory of the Partisan: a Commentary/Remark on the Concept of the


Political. Tradução de A. C. Goodson. Michigan State University Press, 2004.

. Über die drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens. Berlin: Duncker


& Humblot, 1993. 2ª edição.

. Verfassungslehre. Berlin: Duncker & Humblot, 2003. 9ª edição.

. “Weiterentwicklung des totalen Staats in Deutschland (1933)”, in:


Verfassungsrechtliche Aufsätze aus den Jahren 1924-1954. Berlin: Duncker & Humblot,
2003. 4ª edição. Pág. 359-366.

SIEYÈS, Emmanuel. Qu’est-ce que le Tiers État? Paris: Flammarion, 1988.

ULMEN, Gary L. Politischer Mehrwert: Eine Studie über Max Weber und Carl Marx.
Weihnheim: VCH, Acta Humaniora, 1991.

URBINATI, Nadia. “Schmitt’s Critique of Liberalism”, in: Cardozo Law Review, 21:5-6
(2000), pp. 1645-1651.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução


de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000.
3ª edição.

Você também pode gostar