Okinaw

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇAO EM ANTROPOLOGIA
SOCIAL

Okinawanos e não-okinawanos em Campo


Grande: Relações de Parentesco e Famílias

NÁDIA FUJIKO LUNA KUBOTA

São Carlos, 2015


Nádia Fujiko Luna Kubota

Okinawanos e não-okinawanos em Campo


Grande: Relações de Parentesco e Famílias

Tese de Doutorado
apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em
Antropologia Social da
Universidade Federal de São
Carlos, sob orientação do Prof.
Dr. Igor José de Renó
Machado.

São Carlos, 2015


Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária/UFSCar

Kubota, Nádia Fujiko Luna.


K95on Okinawanos e não-okinawanos em Campo Grande :
relações de parentesco e famílias / Nádia Fujiko Luna
Kubota. -- São Carlos : UFSCar, 2015.
239 f.

Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São Carlos,


2015.

1. Antropologia social. 2. Família. 3. Comunidade nikkei.


4. Decasségui. 5. Campo Grande (MS). 6. Okinawa (Japão).
I. Título.

a
CDD: 306 (20 )
à minha família
Agradecimentos

Agradeço à FAPESP pelo financiamento desta pesquisa de doutorado.

Agradeço à Capes/PDSE pelo financiamento do estagio de doutorado


sanduiche realizado em Paris/França.

Foram vários anos dedicados à esta pesquisa, sendo imprescindível


um agradecimento especial ao meu orientador, Prof. Igor Jose de Reno Machado,
por sua supervisão constante e por sua enorme paciência e calma. Agradeço
também a todo o corpo docente da UFSCar, que em todos estes anos pode
contribuir para a minha formação e reflexão sobre o tema do projeto de pesquisa.
Em especial, ao Prof. Piero de Camargo Leiner e ao Prof. Luis Henrique Toledo, por
sua grande contribuição.

Também agradeço aos meus primeiros professores do curso de


graduação em Ciências Sociais, especialmente Alvaro Banducci Junior, Ana Maria
Gomes e David Victor Emmanuel Tauro. Foram eles que ajudaram a construir os
pilares para que esta tese de doutorado pudesse ser finalmente apresentada.

Agradeço à Profa. Monica Raisa Schpun, minha supervisora no


período de realização do estagio de doutorado sanduiche em Paris, na Ecole des
Hautes Etudes en Scienses Sociales. Meus agradecimentos também à Celia
Sakurai, que fez parte de quase toda minha vida acadêmica e sua ajuda foi sempre
muito importante.

Meus agradecimentos aos colegas e amigos do PPGAS, que fizeram


parte de todo este processo, desde o meu ingresso no doutorado, até este momento
final. Victor Hugo Kebbe, José Valdir Jesus de Santana, Ludmila Helena Rodrigues
dos Santos, Gil Vicente Lourenção, Erica Hatugai, Cristina Silva e Alexandra Gomes
de Almeida.

Aos colegas e amigos, antropólogos e não-antropólogos, que também


fizeram parte desta historia, ouvindo minhas inquietudes e me ajudando sempre que
possível. Obrigada à Francisco Neto, Lais Miwa Higa, Sandra Mara, Natacha Simei
Leal, Thiago Motta, Leandro Nascimento, Julie Shapiro, Vinicius Sato, Renato
Ishikawa, Stephanie Amaya, Vitor Silva Pereira, Diego Correia, Flavia Santa Cecilia,
Miriam Mity, Tiago “Miojo”, Tatiana “Stones” Cavalcanti, Adriano Kobayashi, Silvia
Salomão, Edson Benedito Rondon Filho, Iris Araujo, Raimundo Santos, Gilmaria
Salviano, Sarah Le Baron Von Bayer, André Luiz Frozino Ribeiro, Gilberto
“Geribola”. Entre estes, talvez eu tenha esquecido algum nome, não por falta de
consideração de minha parte, mas pela falta de memoria a que todos estamos
sujeitos.

Agradeço à Celso Higa e Edna Kohatsu por sua ajuda. Sem seus
conhecimentos sobre a cidade o caminho para esta tese seria muito mais árduo.

Aos familiares que estiveram sempre por perto. Sem sua ajuda,
certamente este trabalho não poderia ser realizado da mesma forma. À Minha mãe,
Teofila Luna, aos meus irmão, Daniel Luna Kubota e Hajime Luna Kubota, à minha
prima Eveny Luna, à minha tia Maria Neide Luna, meu agradecimento profundo por
toda a ajuda e colaboração recebida em toda a minha vida.

Aos grandes amigos que fizeram parte de minha historia, Regina


Resstel, Ricardo Arruda e Teophanes Resstel, muito obrigada por todo o apoio.

À minha nova família, que tem me apoiado apesar da distância que


nos separa. Arnaud Treillard, Mirreille Treillard et Didier Treillard, un grand merci.
Resumo

O Japão tem sido ao longo das ultimas décadas, permeado pelo mito
da homogeneidade étnica. A ideia dessa homogeneidade está presente mesmo nos
países que receberam imigrantes nipônicos, como é o caso do Brasil. Entretanto, há
algumas décadas tem sido possível notar que a multiplicidade e a diversidade
também fazem parte da realidade japonesa. Essa diversidade faz com que os
grupos pensem-se e pensem os outros como opostos. Assim, Campo Grande torna-
se campo de investigação dessa heterogeneidade, visto que possui dois grupos
distintos – okinawanos e não-okinawanos (japoneses) – em um movimento de
oposição e englobamento ao longo da história. Ao pensar em uma “unidade
japonesa” acaba-se por não dar atenção às particularidades que compõe as
relações estabelecidas entre os grupos envolvidos (okinawanos, não-okinawanos e
ocidentais). A proposta dessa pesquisa é, portanto, a de compreender como noções
de família e pertencimento podem construir as oposições e diferenciações entre
imigrantes japoneses e seus descendentes na cidade de Campo Grande.

Palavras-Chave: Okinawa, Japão, Campo Grande, Nikkei, Parentesco, Família


Abstract

Japan has been permeated by the myth of ethnic homogeneity. The


idea that homogeneity is present even in countries receiving "nikkeys" immigrants, as
is the case in Brazil. However, a few decades it has been possible to note that the
multiplicity and diversity are also part of the japanese reality. This diversity makes the
group think of themselves and others to think as opposites. Thus, Campo Grande
becomes field investigation of this heterogeneity, since it possesses two distinct
groups - Okinawans and "naichi" (japanese) - in an opposition movement and
aggregation throughout history. When thinking of a "Japanese unit" is over for not
paying attention to details that make up the relations between the groups involved
(Okinawans, non-Okinawans and non-western). The purpose of this research is
therefore to understand how notions of family and belonging can build the
oppositions and differences between Japanese immigrants and their descendants.

Key-Words: Okinawa, Japan, Campo Grande, Nikkey, Kinship, Family.


LISTA DE TABELAS

Tabela 01 – Variáveis de Casamentos Entre 1920 e 1960........................................93

Tabelo 02 – Variáveis de Casamentos – 1980-1981...............................................100

Tabela 03 – Variáveis de Casamentos – 1990-1991...............................................103


LISTA DE FIGURAS

Figura 01 – Monumento em Homenagem aos Imigrantes Nikkei de Campo


Grande.......................................................................................................................45

Figura 02 – Escola Visconde de Cairu em 1926........................................................48

Figura 03 – Escola Visconde de Cairu nos Dias Atuais.............................................49

Figura 04 – Clube Nipo..............................................................................................51

Figura 05 – Clube Nipo..............................................................................................51

Figura 06 – Associação Okinawa...............................................................................54

Figura 07 – Associação Okinawa...............................................................................55

Figura 08 – Genealogia de Emiko-San....................................................................125

Figura 09 – Genealogia de Cezar............................................................................126

Figura 10 – Genealogia de Sara..............................................................................129

Figura 11 – Genealogia de Priscila..........................................................................131

Figura 12 – Genealogia de Raquel..........................................................................133

Figura 13 – Genealogia da Avó de João..................................................................136

Figura 14 – Genealogia de José..............................................................................138

Figura 15 – Genealogia de Margarida......................................................................141

Figura 16 – Genealogia de Paulo.............................................................................146


LISTA DE GRAFICOS

Gráfico 01 – Numero de Casamentos Nikkei Por Década.........................................89

Gráfico 02 – Nacionalidade dos Homens Nikkei........................................................90

Gráfico 03 – Local de Nascimento Entre Todos os Homens.....................................91

Gráfico 04 – Nacionalidade das Esposas Nikkei........................................................92

Gráfico 05 – Local de Nascimento Entre Todas as Mulheres....................................92

Gráfico 06 – Variáveis de Casamentos Entre 1920 e 1960.......................................94

Gráfico 07 – Tipos de Casamentos em 1980............................................................99

Gráfico 08 – Variáveis de Casamentos em 1980.....................................................101

Gráfico 09 – Tipos de Casamentos em 1990...........................................................102

Gráfico 10 – Dos 74 Casamentos com Não-Nikkei..................................................102

Gráfico 11 – Variáveis de Casamentos em 1990.....................................................105

Gráfico 12 – Tipos de Casamentos em 2000...........................................................105

Gráfico 13 – Tipos de Casamentos Entre 2010 e 2012...........................................106

Gráfico 14 – Casamentos Entre Nikkei e Não-Nikkei...............................................110

Gráfico 15 – Homens Okinawanos e Naichi e suas Esposas Não-Nikkei................111

Gráfico 16 – Mulheres Okinawas e Naichi e Seus Esposos Não-Nikkei..................111

Gráfico 17 – Casamentos com Não-Nikkei em Todos os Períodos ........................112

Gráfico 18 – Mulheres Okinawanas e Naichi e seus Esposos não-nikkei


.................................................................................................................................113
Índice

Dedicatória…………………………………………………………………………………..04

Agradecimentos.........................................................................................................05

Resumo......................................................................................................................07

Abstract......................................................................................................................08

Lista de Tabelas.........................................................................................................09

Listas de Figuras........................................................................................................10

Lista de Gráficos .......................................................................................................11

Introdução..................................................................................................................14

1. Famílias “Japonesas”.............................................................................................24

1.1 A Família Okinawana................................................................................25

1.2 A Família Japonesa ..................................................................................31

1.3 O Pós-Guerra Mudou a Família?..............................................................40

2. Crochetando o Campo...........................................................................................44

2.1 Das Ilhas à Campo Grande – as Historias dos dois Grupos na Cidade....45

2.2 Produzindo Japonesidades.......................................................................58

2.3 Nas Tramas do Crochê – Uma Naichi na Associação Okinawa de Campo


Grande.......................................................................................................................62

2.4 Crochetando Meio-Parentes......................................................................69

2.5 Crochetando Passado e Futuro – Mulheres Okinawanas e Seus Netos..73

3. Registros de Casamento – Histórico das Famílias Nikkei em Campo Grande......82

3.1 Famílias Nikkei em Campo Grande – De 1920 aos dias Atuais................85

4 Crochetando Relações - Genealogias e Relacionalidades...................................117

4.1 As Genealogias.......................................................................................121
4.2 Além das Genealogias – Crochetando Laços de Parentesco.................147

5. Movimento decasségui.........................................................................................156

5.1 O Movimento Decasségui – De 1980 aos dias atuais.............................157

5.2 O Movimento Decasségui e a (Quase) Homogeneidade........................162

5.3 Família, Almoça Junto Todo Dia?............................................................165

5.4 Famílias aos Pedaços e a Formação de Novos Parentescos.................171

5.5 Os Papeis Flutuantes de Parentesco......................................................178

Conclusão................................................................................................................191

Referências Bibliográficas .......................................................................................201

Anexos.....................................................................................................................210
14

Introdução

-
Did you learn this in Japan?
- Okinawa.
- Where’s that?
- My country. China here, Japan here, Okinawa here1.

O tema dessa pesquisa foi aos poucos sendo descoberto durante as


investigações do mestrado, em campo, quando procurava refletir sobre a “colônia
japonesa” em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, local onde nasci e
passei grande parte da minha vida.

Naquele momento, meados dos anos 20002, minha experiência na ci-


dade já havia me mostrado há algumas décadas que essa ideia de uma colônia, de
um grupo coeso e homogêneo3, não representava exatamente a realidade. Podia
observar desde pequena que havia ao menos dois grupos distintos entre aqueles
nikkei4. “Ele/ela não é japonês” era uma frase recorrente na minha família e entre os
conhecidos. Foi quando ouvi as primeiras explicações sobre as tais diferenças. “Eles
não são japoneses”, “eles são japoneses, mas são diferentes” ou ainda, “eles são
japoneses negros” e, finalmente, “eles são okinawanos”. Foi a partir das leituras so-
bre Japão que passei a obter mais informações sobre a existência de diversos gru-
pos no interior daquele país, entre os mais conhecidos, Okinawanos, Burakumin e
os Ainu.

1
The Karate Kid. Direção: John G. Avildsen, Produção: Jerry Wientraub. Los Angeles (USA):
Columbia Pictures, 1984, 126 min. 1 DVD (30’17”)
2
Realizei o mestrado no período de 2004 a 2008.
3
A opção pelo uso das aspas ao tratar sobre a “colônia japonesa”, é tentativa de evitar justamente o
erro de que existiria tal coesão e unidade. Assim, o uso das aspas indica a população nikkei em
Campo Grande independente de sua origem. Opto também por utilizar o termo japonês – sem aspas -
ao me referir à esta população no Japão, independente do grupo ao qual pertencem e que não viven-
ciou a experiência da migração.
4
Nikkeis são todos os indivíduos de origem “japonesa” nascidos fora do Japão. Como forma de sanar
qualquer confusão, utilizo o termo nikkei ao me referir aos dois grupos okinawano e naichi (termo a
ser explicado adiante) genericamente, quando a origem e as particularidades de cada grupo não pre-
cisam ser exteriorizadas.
15

No dialogo entre Daniel-san5 e o Senhor Miyagi, no célebre filme Kara-


tê Kid, citado acima, fica evidente a existência e a afirmação das diferenças no inte-
rior do grupo “japonês”. Em nenhum momento o professor de karatê se posiciona
como um simples japonês. Ao contrário, explica ao jovem aprendiz da arte marcial
que seu país é Okinawa, contrapondo-o ao Japão e até mesmo à China. Sua fala é
simbólica, pois, anteriormente conhecido como Reino de Ryūkyū, a província de
Okinawa teve seu passado de independência e manteve em sua história relações
com diversos países, incluindo a China, que mais tarde protesta sua anexação por
parte do Japão.

Durante séculos, a região manteve uma relação de vassalagem com a


China (período entre 1372-1874). Somente em 1609 o Japão passa a estender seu
poder político sobre Okinawa, quando o então rei okinawano é tomado como prisio-
neiro pelo Japão. Em 1879 torna-se província nipônica, o que leva essa região a
passar por um rápido processo de adequação às leis, idioma e costumes nipônicos.
Por conta do fim da Segunda Guerra Mundial e da derrota japonesa, Okinawa este-
ve sob tutela dos EUA entre 1945-1972, quando a administração da província final-
mente foi devolvida ao Japão.

The people of the Ryūkyū islands (including present-day Oki-


nawa prefecture and the Amami islands of Kagoshima prefecture) are
another native minority group to consider. An independent kingdom
until 1609, and thereafter a semi-autonomous tributary of both China
and Japan, the islands were annexed by Japan in 1879. Since an-
nexation, Okinawa has had a troubled history, subjected to harsh
Japanese economic domination, devastating warfare, and the twenty-
seven-year US military occupation (HOWELL, 1996, p. 175)

Apesar da multiplicidade de grupos, esta pesquisa trata somente dos


imigrantes e descendentes de origem okinawana e japonesa/não-okinawana, visto
que estas são as duas populações residentes na cidade de Campo Grande. Para
diferenciar estes indivíduos, optei por utilizar o termo nikkei ao me referir à popula-
ção de imigrantes e seus descendentes de maneira geral, sem separação entre os
grupos, bem como emprego da categoria nativa naichi6 referente aos imigrantes e

5
Forma de tratamento honorifico utilizado no Japão.
6
O termo será discutido adiante.
16

descendentes não-okinawanos. É preciso ressaltar que, além do termo naichi, o


termo “japonês” também é utilizado como categoria nativa pelos descendentes de
okinawanos ao se referirem aos demais, não-originários da província de Okinawa, o
que demonstra que tal contraposição é dada diariamente dentro do grupo nikkei em
questão.

Contudo, saber que existiam estes dois grupos na cidade de Campo


Grande nunca me trouxe grandes informações sobre as reais diferenças existentes
entre japoneses e okinawanos ou sobre suas histórias7. Foi durante o mestrado que
me deparei com essa questão. Ao pesquisar sobre a festa japonesa do Bon Odori e
o prato okinawano conhecido como Sobá (LUNA KUBOTA, 2008, 2012), passei a
ouvir e presenciar constantemente entre meus informantes que essa diferenciação
nativa ainda existia e que era preciso saber “quem era o quê”, em especial sobre o
que fazia parte de uma cultura japonesa ou de uma cultura okinawana.

De acordo com meus informantes, além das diferenças culturais entre


os dois grupos, existiria ainda uma diferença fenotípica, através da qual seria facil-
mente possível identificar os indivíduos na cidade de Campo Grande. Uma de mi-
nhas interlocutoras, de origem okinawana, foi enfática em afirmar que os okinawa-
nos teriam o sangue forte, passado de geração em geração e que tais indivíduos
carregariam as “piores”8 características dos japoneses:

Nós possuímos o que têm de pior dos japoneses, somos mais


baixinhos, com pernas batatudas e feios.

Segundo ela, esse "sangue okinawano" seria forte, pois mesmo quan-
do há casamentos entre okinawanos e naichi, os filhos sempre se parecem mais
com os okinawanos:

O filho pode até ser alto, mas a gente bate o olho e percebe
que ele é okinawano.

7
KEBBE, V. H. ; MACHADO, I. J. R. . Mito do sucesso da imigração japonesa, dekasseguis e o so-
nho da comunidade Nikkei. In: ZANINI, Maria Catarina Chitolina ; POVOA, Helion ; Santos, Miriam de
Oliveira. (Org.). Migrações Internacionais - valores, capitais e práticas em deslocamento. 1ed.Santa
Maria: Editora da UFSM, 2013, v. , p. 100-141.
8
Essa foi exatamente a expressão por ela utilizada.
17

O termo nativo naichi, apesar de possuir um caráter pejorativo, é utili-


zado pela população originária de Okinawa e pelos nativos de outros países, como
os coreanos, para designar os japoneses e seus descendentes originários das três
ilhas principais do Japão. É comum ouvi-los dizer que os naichi são os japoneses de
Tóquio. Apesar do tom negativo, esta é uma categoria nativa amplamente utilizada
na cidade de Campo Grande, mesmo entre os nikkei de origem não-okinawana. No
Japão, muitos naichi desconhecem a existência desta palavra.

Ao apresentar minha pesquisa de mestrado em um congresso em


2007, tive a oportunidade de falar sobre o uso do termo e, entre os ouvintes, estava
presente um pesquisador japonês que havia realizado seu doutorado no Brasil e ha-
via ingressado há pouco em uma grande universidade brasileira como docente, car-
go que ele dizia não saber por quanto tempo iria ocupar. Filho primogênito, tinha
obrigações com relação aos seus pais, sendo o retorno ao Japão inevitável.

Após minha apresentação, conversamos sobre a população okinawana


de Campo Grande e ele relembrou os tempos em que, estudante, foi fazer um inter-
câmbio na Coréia. Ele relata que os primeiros meses foram difíceis naquele país,
especialmente porque o tratavam por naichi e ele não sabia o que aquilo queria di-
zer. Somente mais tarde ele passou a entender que aquela era uma forma de classi-
ficação em oposição aos próprios coreanos.

O mesmo ocorre entre os okinawanos, que usam o mesmo termo ao se


referirem aos japoneses das ilhas principais. Entre a população nikkei campo-
grandense, aqueles que são identificados como naichi acabam por se auto-
identificar enquanto tal, apropriando-se do termo e o usando como mais uma forma
de oposição. Em decorrência desta apropriação da categoria pelos próprios naichi,
apesar do conhecimento de seu teor pejorativo, na ausência de outro termo menos
carregado de tom negativo, utilizarei naichi para diferenciar os dois grupos na cida-
de, já que seu uso nativo indica a continuidade, entre os nikkei, da permanente exis-
tência de oposição à uma ideia de homogeneidade.

Esta oposição é colocada de diversas formas e a identificação dos dois


grupos seria possível, de acordo com minha interlocutora de origem okinawana cita-
da acima, até mesmo pelas características físicas e pela cor da pele. Entretanto, por
diversas vezes notei que a utilização do fenótipo para identificar estes indivíduos
nem sempre funciona. Diversos informantes afirmavam que okinawanos têm os
18

olhos mais abertos e que os naichi não tem a dobra das pálpebras9. No caso campo-
grandense, pude notar ao longo dos últimos anos que esta fácil identificação dos
indivíduos ocorre mais pelo fato de que, em menor ou maior grau, todos se conhe-
cem, não sendo, realmente, por determinadas características fenotípicas.

Foi possível chegar à esta conclusão, pois, ao seguirem esta lógica


que dá ênfase na cor da pele e nos traços fisionômicos, meus informantes por vezes
se enganavam quando eu solicitava que identificassem determinadas pessoas. Eu
mesma, nos casos em que não conheciam meu sobrenome, era classificada como
okinawana, o que demonstra o quão frágil pode ser o uso do elemento fenotípico na
realização de qualquer classificação dentro do grupo nikkei.

Quando falei sobre minha pesquisa, Esther10 logo comentou que seria
uma pesquisa e tanto, pois em sua própria família havia surgido muita confusão
quando um de seus 11 irmãos se casou com uma naichi. Infelizmente, para muitos
dos interlocutores, talvez mais especialmente no caso nikkei, certos assuntos podem
ser extremamente dolorosos, pois fazem com que memórias - muitas vezes desa-
gradáveis - sejam retomadas, ainda mais quando se trata de falar sobre a própria
família.

Quando tentei me aprofundar no assunto, Esther logo mudou de con-


versa e se despediu. Após algumas tentativas frustradas de contatá-la, entendi que
o quão complicado seria seguir adiante com a pesquisa. Mais tarde, minha intuição
se concretizou e me vi sendo “expulsa” de diversas residências ao longo de todo o
trabalho de campo. Apesar de quase sempre educados, vários interlocutores me
solicitavam para que eu partisse logo após me informarem suas genealogias. O mo-
tivo era quase sempre a falta de tempo, entretanto, alguns iam direto ao assunto
logo depois de cerca de uma hora de conversa, dizendo: “acabou né?”, me levando

9
Mônica Schpun (História de uma invenção identitária », Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne],
Colloques, mis en ligne le 14 mars 2007, consulté le 16 septembre 2014. URL :
http://nuevomundo.revues.org/3685 ; DOI : 10.4000/nuevomundo.3685) trata sobre a questão da ci-
rurgia de ocidentalização dos olhos, realizada por garotas nikkei no Brasil. Tal cirurgia tem como obje-
tivo transformar a aparência dessas jovens mais próxima de padrões ocidentais de beleza e, conse-
quentemente, menos “japonesas”. O procedimento consiste justamente na criação de uma dobra em
suas pálpebras.
10
Os nomes reais foram trocados por pseudônimos. Entretanto, ao renomear meus informantes, a
escolha por nomes ocidentais ou orientais não se da ao acaso. Utilizo nomes ocidentais para infor-
mantes registrados como tal e nomes orientais para indivíduos registrados dessa forma por seus pais.
19

até a porta. A solução nesses casos era me despedir e tentar um novo contato, qua-
se sempre recusado.

Essa situação, entretanto, foi um forte indício de que eu estava seguin-


do o caminho certo. As relações de parentesco e as diferenças entre os okinawanos
e os naichi ainda era – e é – questão tabu e importante entre essa população na ci-
dade de Campo Grande.

Vale ressaltar que o Japão, a partir da Era Meiji11, passou a ser um pa-
ís permeado pelo mito da homogeneidade étnica, conhecido como nihonjinron, for-
mado por um povo coeso que ressalta conceitos como os de “exclusividade, homo-
geneidade, orientação grupal e harmonia” (SASAKI, 2009, p. 111):

Phenomena such as the mass of Nihonjinron literature on


Japanese identity emphasize the special uniqueness of the Japanese
almost to the point of characterizing them as a different species of
human (Dale). The unquestioned description of Japan as a tan'itsu
minzoku kokka (monoethnic state) is another expression of this ideol-
ogy. Scholars and intellectuals, as well as the nation's political, busi-
ness, and media elite, commonly base their discussions of Japanese
culture, society, and national character on the assumption of a wide-
spread belief in the myth of monoethnicity or social homogeneity
(Murphy-Shigematsu, 1993, p. 66).

Sasaki (2009, p. 111) explica que pelo conceito de nihonjinron temos a


construção de uma identidade “japonesa”, que reforça suas diferenças não só com
os países do ocidente, mas com relação também aos outros países asiáticos, já que
o termo apresenta em sua fórmula a ideia de superioridade nipônica perante os de-
mais povos. Outra característica do nihonjinron seria a disseminação de um discurso
de que o Japão seria composto socialmente por uma unidade harmônica, afastando-
se, portanto, de noções que valorizem individualidade ou mesmo a diversidade e
diferenças étnicas.

11
Período entre 1868 a 1912
20

Em sua obra sobre o Japão, Lévi-Strauss faz uma breve consideração


sobre o que ele chama de originalidade “japonesa” e onde podemos ver a presença
deste conceito de homogeneidade:

Compte tenu de la diversité des éléments qui, dans des temps


très anciens, ont dû concourir pour former un type ethnique, une
langue et une culture relativement homogènes, le Japon apparaît
d’abord comme un lieu de rencontres et de mélanges; mais sa posi-
tion géographique à l’extrémité orientale du Vieux Continent, son iso-
lement intermittent lui ont aussi permis de fonctionner comme un filtre
ou, si l’on préfere, un alambic distillant une essence plus rare et plus
subtile que les substances charritées par les courants de l’histoire qui
vinrent s’y combiner. Cette alternance d’emprunts et de synthèses,
de syncrétisme et d’originalité, me paraît la mieux propre à définir sa
place et son rôle dans le monde. (LÉVI-STRAUSS, C. 2011, p. 30-
31)

Essa ideia teria sido levada até mesmo pelos imigrantes para os países
que receberam essa população, como no caso brasileiro. Entretanto, o caso campo-
grandense torna-se ilustrativo, pois apesar da existência de um discurso que se refe-
re a uma suposta homogeneidade, é possível perceber que a multiplicidade (MA-
CHADO, 2011) também faz parte da realidade “japonesa” mesmo em situação de
imigração.

No caso de Campo Grande, se continuássemos a pensar por esta ideia


de “unidade japonesa”, acabaríamos por não dar atenção às particularidades que
compõem as relações estabelecidas entre os grupos envolvidos (okinawanos, naichi
e ocidentais) na cidade. Assim, Campo Grande se tornou um campo de investigação
dessa heterogeneidade, por possuir esses grupos distintos – okinawanos e naichi –
em um movimento de oposição e englobamento ao longo da história.

Foi ao perceber esse movimento de oposição que pude também obser-


var que muito se falava sobre as famílias nikkeis. Alguns de meus informantes dizi-
am o quão diferentes eram esses dois grupos e como isso atrapalharia na formação
de casamentos. Jovens declaravam claramente possuir preferências na escolha de
seus parceiros, normalmente mantendo a relação dentro do mesmo grupo de ori-
gem.
21

É, eles têm rixa, igual a nossa aqui, do pessoal do norte [e] do


pessoal do sul. Assim é lá no Japão também. Naichi com Okinawa é
a mesma coisa. Tem essa rivalidade, porque eles dizem que okina-
wano é mais burro, não sei o que, e começa a xingar. (Fala de uma
informante em 2007)

Bom, então você traz a sua namorada para eu ver qual é o


costume dela, como é que tem que fazer, porque nós somos diferen-
tes, somos japoneses, mas cada um é de um lado. (A mesma infor-
mante relembrando as palavras de sua irmã ao saber que o filho na-
morava uma naichi).”

Tais informações obtidas durante o mestrado trouxeram à tona a ne-


cessidade de compreender como noções de família e pertencimento podem constru-
ir as oposições e diferenciações entre imigrantes nikkeis e seus descendentes na
cidade de Campo Grande.

Esta tese é construída da seguinte forma: no primeiro capitulo elaboro


uma revisão da literatura especifica sobre parentesco japonês e okinawano, produ-
ção esta basicamente realizada pelos próprios “japoneses” sobre si mesmos. Vale
aqui ressaltar que ao realizar a pesquisa bibliográfica sobre tais parentescos e famí-
lias, pode-se verificar que muito pouco é produzido no Brasil ou acessível através de
revistas acadêmicas eletrônicas sobre a população okinawana em português ou
mesmo em inglês.

Grande parte da literatura sobre temas relacionados à família “japone-


sa” e à província de Okinawa foram por mim encontrados no período de estágio dou-
toral que realizei em Paris no ano de 2013. Além de ter acesso à produção acadêmi-
ca que trata sobre questões como minorias étnicas no Japão (okinawanos e outros),
pude acompanhar alguns seminários que abordavam o tema das migrações e, mais
especificamente, o Japão como um todo.

Foi possível, durante este período no exterior, perceber quais questões


interessam aos pesquisadores na França e no mundo (visto que pude consultar na
Biblioteca Nacional as bibliografias produzidas em outros países).
22

No que se refere à família e parentesco, por exemplo, boa parte da


produção acadêmica encontrada na França é voltada para a questão da demografia
e economia no arquipélago japonês. São em sua maioria dados estatísticos que pro-
curam demonstrar crescimento ou redução das famílias, quantidade de filhos, tama-
nho das casas e moradia dos idosos. Algumas produções voltam-se para a questão
da mulher “japonesa”, seu papel na sociedade, na família e feminismo, sendo outras
para a questão da língua e artes.

Este período no exterior foi também proveitoso para conhecer um pou-


co mais sobre a população nikkei na França. Assim como em diversas cidades do
Brasil, onde a imigração japonesa é relativamente alta, Paris possui seu bairro “ja-
ponês (ali, nunca encontrei nenhuma referência sobre Okinawa), repleto de peque-
nas lojas com artigos de decoração, moda, restaurantes e livrarias especializadas,
onde é possível encontrar livros em japonês para a população imigrante e obras de
literatura traduzidas para o francês.

Pude perceber que existe um interesse enorme por parte dos france-
ses pela cultura japonesa. Em qualquer livraria da cidade há uma sessão específica
para mangás12, obras de literatura de escritores japoneses e livros sobre arte e es-
tampas de artistas japoneses. No metrô de Paris, Haruki Murakami, autor também
conhecido pelo público brasileiro, foi a estrela de 2013 tanto com seu 1Q84 quanto
com outros de seus livros. J.P. Nishi, um jovem japonês desenhista de mangá, esta-
va em todas as livrarias, que destacavam em suas prateleiras seus dois livros, pro-
duzidos após passar um período em Paris e regressar ao Japão, publicando então,
em forma de quadrinhos suas histórias na cidade e sua percepção sobre a popula-
ção francesa. Um verdadeiro estranhamento sobre um país ocidental.

E o estranhamento também se dava “vers moi”. Ali, eu era tudo – viet-


namita, coreana, chinesa – menos brasileira ou japonesa. O olhar de espanto era
constante ao descobrirem que eu era brasileira, mas longe do estereótipo “morena
que samba” (o que me livrou de situações desagradáveis). Mais estranho ainda era
o olhar ao descobrirem minha ascendência japonesa. Em Paris, diz-se frequente-
mente que os nikkeis locais são chineses, devido ao grande número de imigrantes

12
Revistas em quadrinhos produzidas no Japão.
23

provenientes da China13. Para os franceses, era um verdadeiro choque descobrir


que “japoneses”, assim como outros grupos asiáticos, migram, já que a população
francesa costuma imaginar os japoneses apenas como turistas que gastam enormes
quantidades de dinheiro em alta moda em Paris.

Esse período de estagio tornou possível, portanto, tanto o acesso a


obras e pesquisas desenvolvidas fora do Brasil sobre o tema deste doutorado, quan-
to a possibilidade de vivenciar e descobrir novas visões e percepções sobre as po-
pulações nikkeis fora do Japão.

No capitulo dois exponho os dados etnográficos que se referem às mi-


nhas primeiras impressões em campo e a minha participação na Associação Okina-
wa de Campo Grande. No terceiro capitulo será abordada a construção da(s) famí-
lia(s) nikkei em Campo Grande, trazendo reflexões que contrapõem a literatura en-
contrada ao trabalho de campo referente aos registros de casamento encontrados
na cidade. No capítulo Quatro realizo mais uma vez a contraposição dos dados, tan-
to bibliográficos quanto documentais colhidos no cartório de Campo Grande às in-
formações genealógicas realizadas através das entrevistas com nikkeis campo-
grandenses.

A quinta e última parte tratará sobre família e parentesco dentro do


movimento decasségui, questão essa que não havia sido prevista no início da pes-
quisa, mas que durante o trabalho de campo evidenciou-se cada vez mais como um
tema que não poderia ser preterido, visto o grande número de informantes que pos-
suíam família no Japão e que citavam essa condição durante nossas conversas

13
Um pouco do que acontece no Brasil, onde até pouco tempo atrás, dizia-se que os chineses imi-
grados eram japoneses.
24

1. Famílias “Japonesas”

Nas últimas décadas diversas pesquisas têm-se focado nas


transformações sofridas na “tradicional família japonesa”, especialmente no período
pós-Segunda Guerra, caracterizado por grandes transformações no papel das
mulheres dentro e fora da família, maior igualdade reprodutiva, além dos efeitos
decorrentes de uma mudança demográfica no país.

Estes estudos produzidos por pesquisadores do/no Japão surgem na


tentativa de desvendar esse período em que se dizia que a família “japonesa” estaria
em crise. De acordo com Ochiai (1997, p. 05), na década de 1970 o vocabulário
japonês estava repleto de expressões que tratavam sobre “a dissolução da família e
sua queda”:

A vague sense that the family is in crisis has, in fact, existed


throughout the postwar period, more as a kind of unconscious mood
than as a conclusion based on solid data. In the late 1950s and early
1960s, government publications such as the White Paper on Health
and Welfare discussed the Wes's legacy of social problems, which
included large numbers of orphans and single-mother household, and
at the same time cited as a problem the weakness of the postwar
family resulting from the abolition of the legal framework of the Ie
system, Japan's traditional family system which placed great
importance on the continuity of the family line. And it seems that this
concern was not limited to the government. While people welcomed
liberation from the Ie where husband-wife relationships were
concerned, they were not without misgivings when it came to
changes affecting the relations of parents and children, as famously
depicted by director Ozu Yasujiro's films such as Tokyo Story
(OCHIAI, 1997, p. 04).

Seria o fim da conhecida “família tradicional” japonesa? Que


transformações seriam estas e como estas famílias estariam configuradas na
25

atualidade? Este capítulo é dedicado à formação das famílias no Japão e as


construções de parentesco naquele país.

Levando-se em conta que a maior parte da população nikkei em


Campo Grande é de origem okinawana, opto por expor inicialmente a literatura
referente ao parentesco na província de Okinawa, apesar desta população ser
considerada como “japonesa” devido a sua anexação ao Japão. Ali a diferença é
marcada sempre que possível, fazendo com que se pense realmente em uma
heterogeneidade e produção de diferenças, como veremos a seguir.

1.1 A Família Okinawana

Now and then we go to into the mountains to see if there are any citrus trees which
can be picked up and taken to our gardens. We begin the transplantation by uprooting the
chosen tree; branches are cut off and thrown away. The tree is denuded. In another patch of
soil a new tree grows. The root is the same, but the branches are different. Sweet and
delicious citruses mature on the new branches. One receives a bride from the outside. She
brings fruits to a new branch. But the root remains the same14.

Ao contrário do caso das famílias originárias das ilhas principais do


Japão, encontra-se raríssima etnografia e produção antropológica sobre as famílias
okinawanas traduzidas para o inglês ou outros idiomas.

Há, entretanto, os textos de Masako Tanaka, “Categories of Okinawan


“Ancestors” and the Kinship System”, publicado na Revista Asian Folklore Studies de
1977 e de Arne Rokkum, intitulado “Nature, Ritual, and Society in Japan’s Ryūkyū
Islands”, publicado pela Editora Routledge em 2006, que podem contribuir para
compreender melhor algumas questões referentes à família e parentesco entre esse
grupo.
14
Fala de uma okinawana, extraída da obra de Rokkum (2006).
26

De acordo com Tanaka (1977), que fez seu trabalho de campo na área
de Inoha, Okinawa, os casamentos são endogâmicos e sem regras de preferências
ou prescrições, o que faz com que nesse local todos sejam de alguma maneira
parentes (related). Cada indivíduo pertence a um grupo patrilinear.

Três categorias básicas de parentes são encontradas e chamadas por


Tanaka (id. Ibid.) de “forebear” (uya-faafuji 15 ), os “Vivos” e “Offsprings” (kwaa-
maaga). A primeira categoria refere-se aos pais e avós que ainda vivem ou já
faleceram, mas que continuam fazendo parte do repertório familiar. A segunda,
como podemos ver, refere-se aos vivos, podendo ser relacionados aos pais e na
terceira categoria encontram-se os membros que estão por vir, os filhos e netos
ainda não nascidos. Os membros das três categorias formam a ideia de aldeia
(shima), e todos os seus membros (shimanchu) possuem o interesse na
continuidade e bem-estar da comunidade.

Tanaka (1977, p. 34) esclarece que essa divisão em três partes é, na


realidade, a relação entre as duas categorias forebears-offsprings (“os velhos” e os
“novos”) mediada pelos membros vivos, desde que esses membros vivos sejam ao
mesmo tempo os não-nascidos (novos) dos mortos (velhos) e os mortos (velhos)
dos futuros descendentes que ainda estão por vir (novos).

O que torna essa relação distinta no caso okinawano são os termos


“forebear” e “offspring”, que se referem não apenas aos membros passados e
futuros, mas as pessoas vivas em determinados contextos. Para os okinawanos
essa relação entre “velhos” e “novos” tendo como mediador um membro vivo, pode
se expandir até cinco gerações, concebidas como uma série de relações “pais-filhos”
(ibid., p. 36).

Para essas pessoas, certos acontecimentos da vida são ordenados por


uma força (inn) e por relações de consanguinidade (keichi-inn), especialmente as
relações entre pais-filhos:

15
Uya-faafuji e kwaa-maaga são os termos nativos para as categorias usadas por Masako. Pode-se
tentar a seguinte tradução: uya – pais, faafuji – avós, kwaa – filhos e maaga – netos. Usarei os
termos “velhos” e “novos” para uma tradução nesta pesquisa.
27

P-C16 relationship in the Okinawan culture is, therefore, not just


the relationship based on a biogenetic substance, but it is something
pre-ordained by mysterious inn, which, (…) is ultimately supreme
over individual efforts and desires. (TANAKA, 1977, p. 36).

Seria esse o espírito de todos os tipos de adoração aos ancestrais


encontrados nesse grupo. Uma pessoa venera seu pai e, em troca, espera ser por
ele amado e que tenha dele orgulho, da mesma forma que ele adora seus
ancestrais, honrando e oferecendo preces, incenso e alimentos, esperando em troca
sua proteção.

Sangue e sêmen são importantes elementos para a compreensão da


produção de parentesco e família entre os okinawanos pelo seu papel nas relações
entre pais-filhos. Sangue para os okinawanos é substância transmitida por ambos os
genitores (pai e mãe), não existindo diferença qualitativa entre as relações
estabelecidas com o pai ou a mãe. No sêmen, entretanto, a descendência é
realizada apenas através do pai:

Both man and woman transmit their “blood” status to their


offspring; only man can transmit his agnatic status to the
descendants through his semen. (TANAKA, 1977, p. 38).

As mulheres okinawanas são, assim como os homens, compostas de


sêmen (de seu pai, avô e assim por diante), entretanto, incapazes de produzir tal
substância, impossibilitando-as de produzir descendência agnática (TANAKA, 1977,
p. 38).

Tanaka (1977, p. 34) ressalta que apesar da descendência ser


patrilinear, isso não faz muita importância em Inoha, visto que o casamento, como
dito anteriormente é endogâmico, estando todos os membros do local, sob proteção
espiritual da mesma deidade utaki (arvoredo sagrado). Mesmo nos casos em que
não residentes decidem retornar à aldeia, seu status no grupo de descendência é
automaticamente reativado.

16
Parent-Child.
28

No caso de descendentes nascidos fora da aldeia, a patrilinearidade é


então seguida. Tanaka cita o caso de imigrantes okinawanos no Peru:

Whether they were born in Peru (where the village sent many
migrants), whether they can speak the dialect, whether they personally
know a single Inoha residence, do not matter, so long as their fathers
are “villagers” (MASAKO, 1977, p. 34).

São feitas ainda outras duas divisões na organização social da aldeia


okinawana. Há o grupo de descendência patrilinear, chamado de munchuu, e a casa
(household), denominada de yaa. Essas categorias não devem desaparecer, “even if
such a unit should physically die out, it is not allowed to disappear entirely” (p. 34).

Essa diferenciação se torna importante ao notar a distinção que se faz


entre homens e mulheres na província okinawana. As mulheres, apesar de não
transmitirem sua descendência aos filhos, mantém a sua própria descendência
agnática17 durante toda sua vida, adorando os ancestrais de sua casa (household)
natal (e ao mesmo tempo os ancestrais de seu marido), mantendo as relações com
seu grupo original e ainda participando das cerimônias de seu grupo de
descendência. Ao falecer, ela se junta ao grupo de seu marido, sendo então,
venerada como ancestral da linhagem patrilinear de seu esposo (TANAKA, 1977, p.
38).

Não se pode deixar de ressaltar que no período de pesquisa da autora,


Okinawa já havia sido anexada há diversas décadas ao Japão, assim Tanaka (1977,
p. 44) afirma que:

The Okinawans are very conscious about their ancestor worship


which they identify collectively in a Japanese term of sosen suuhai. In
their own native terms, they define it as "the act of ugan (honor and
homage rendered to any supernatural in a culturally established
ceremonial procedure) rendered to the uya-faafuji (forebear) by the
kwaa-maaga (offspring)". Ancestor worship may then tentatively be
defined as "reverent honor and homage rendered to the dead
'forebears' by the living 'offspring' according to culturally established
ceremonial procedures".

17
Ou seja, a descendência de seu pai.
29

As pesquisas de Rokkum (2006) sobre a província de Okinawa


iniciaram-se aproximadamente na mesma época das investigações de Tanaka
(1977), ou seja, quando a região já estava há diversas décadas anexada ao Japão.
Em suas análises, especialmente na região de Dunang (sul de Okinawa), Rokkum
relaciona toda a lógica de pensamento indígena de Ryūkyū à natureza. A essa
natureza estaria ligada a produção do parentesco (ou, de acordo com Rokkum, o
seu “cultivo”). É interessante notar o emprego por parte do autor do termo
“indigenous” ao se referir à população uchinanchu. Esse é um termo também
utilizado pela população japonesa (durante minha pesquisa de campo pude ouvir
essa designação algumas vezes) ao se referirem aos grupos étnicos encontrados no
Japão.

Dois grupos de pessoas seriam descritos pelo autor. Àquelas


pertencentes ao grupo tani (traduzido como seed - semente ou sêmen) e àquelas
incluídas no grupo siki. No primeiro grupo estariam os consanguíneos:

. Consanguines are seed people. The category comprising the


following relations, is quite inclusive: male inheritors of House
eponymy together with their father’s sisters and own sisters, and
children on the respective sides. So when the children of the sister
are seed people – notwithstanding an agnatic premise for House
succession – what matters is simply that affinity carries little
consequence, possibly because marriage itself has been only weakly
codified in Dunang (ROKKUM, 2006, p. 52).

Os filhos do irmão da mãe são então classificados como pessoas siki.


Esse termo se refere ao cultivo do arroz (siki seria o termo usado para designar o
fundo lamacento onde o arroz é plantado) e, especialmente, sobre a sua fertilização
baseada em sementes (seed) e água.

Entretanto, não é a afinidade do marido com o cunhado que dá peso a


essas relações, mas a relação da mulher com o seu irmão. É sua relação tani
(consanguínea) com seu irmão que produz uma nova relação siki entre seus
próprios filhos e os filhos do tio.
30

Children retain a dual extraction: in its tani bifurcation, it


includes cross-cousin on the father’s side; in its siki bifurcation, it
includes cross-cousin on the mother’s side (ROKKUM, 2006, p. 52).

De acordo com Rokkum (2006) essa bifurcação pode ser percebida


pela imagem da natureza descrita no início desse subcapítulo, através da fala de
uma mulher okinawana, em que se pode notar a relação entre as raízes citadas ao
útero e os ramos frutíferos como desdobramentos desse útero. Dessa forma, a
afinidade é minimizada ao máximo, dando lugar aos elos realizados pelo sangue.

O sangue é considerado elemento importante mesmo nas relações


matrimoniais, sendo a esposa sempre considerada uma “outsider” na casa,
enquanto a irmã do marido será sempre pertencente ao grupo familiar:

A bride is a mere stranger in the house. The sister belongs to


a man’s seed. (…) For without marrying women being fully covered
by an idiom of consanguinity, as “born (by) brothers and sisters
(utadanmari)”, they are House members even when living elsewhere.
(ROKKUM, 2006, p, 58-59).

Outra característica do parentesco okinawano enquanto constituído


pelo sangue, seria, ao contrário do que ocorre no caso japonês, a sucessão que é
atribuída aos filhos nascidos de concubinas, mesmo estes em determinados
momentos sendo considerados como filhos ilegítimos. Na falta de um filho homem
para suceder o patriarca da família, a adoção não é aqui uma possibilidade,
recorrendo-se a linha consanguínea (ROKKUM, 2006, p. 56).

Essa diferença no que se refere à sucessão nos demostra de antemão, um


indicio de que estes dois parentescos – okinawano e naichi – são construídos a
partir de lógicas e estratégias muitas vezes opostas (como veremos a seguir),
apesar de existir uma certa proximidade em determinados aspectos. Esta
proximidade e similaridade entre os parentescos citados se deve, principalmente à
influência sofrida pelas famílias okinawanas pelas leis do Japão após sua anexação
31

ao país. A província de Okinawa precisou, portanto, se adequar à legislação


japonesa vigente à época, entretanto, determinadas diferenças se mantiveram,
mesmo após o processo de migração para o Brasil e, mais especificamente para
Campo Grande. No subcapítulo seguinte, veremos como se constrói o parentesco
japonês, tornando assim possível a realização de uma contraposição entre estes
dois sistemas.

1.2. A Família Japonesa

A organização familiar japonesa tinha como base o ie18, que era um


instrumento de poder e de subordinação dos indivíduos ao coletivo, garantindo
estabilidade política e administrativa (BEILLEVAIRE, 1997, p. 203 apud OKAMOTO,
2007, p. 50).

The Japanese word 'iê' denotes both actual houses and the
steam-families 19 that are supposed to inhabit them. This notion of
family is linear and extends to members long dead as well as those
yet to be born. Moreover, iê has been a powerful theorical concept
and is frequently used to explain other forms of relatedness in Japan
such as company life or loyalty to the nation. In recent decades, how-
ever, the 'Japanese family' has been deemed to be in 'crisis'
(Hayashi, 2002), or at least, to be undergoing a significant reorienta-
tion (Ochiai, 1994, 1997; Ueno, 2009). (RONALD, R; ALEXY, A.
Home and Family in Japan: Continuity and Transformation. Routled-
ge, 2011, p. 01).

18
O iê aproxima-se da ideia de casa, de “teto” compartilhado.
19
Pode ser traduzida como “família de origem”, na qual a regra rege que apenas um filho permanece
com sua esposa e filhos na residência dos pais, mesmo depois do casamento (AUGÈ, 1975).
32

De acordo com Ariga (1954, p. 362), o ie não pode ser simplesmente


traduzido como família, pois possui diferenças das famílias ocidentais em seus
aspectos institucionais. O grupo familiar nipônico possuiria características
específicas, que podem ser explicitadas em quatro pontos principais. O primeiro
ponto refere-se à questão da continuidade. A família japonesa é concebida enquanto
continuidade de um passado remoto até o futuro e que não se cessa independente
da morte ou nascimento de membros.

Antepassados e descendentes são colocados juntos pela ideia da família


genealógica (keifu). Essa genealogia não está relacionada com a ideia de
consanguinidade, mas em laços (que poderíamos chamar de relacionalidades) que
perpetuem a manutenção e continuidade da família como instituição. No segundo
ponto, Ariga descreve que cada grupo familiar possui seu templo para adoração dos
deuses. O deus da família não é objeto de adoração individual, mas é um deus-
guardião da própria família.

Os ancestrais são adorados pelo grupo familiar, tanto em suas


sepulturas, como no altar da família. As funções dos ancestrais e dos deuses
coincidem como guardiões da família. A terceira característica apontada pelo autor é
a propriedade. Toda família mantém sua própria propriedade, e ela não é
considerada como pertencente a apenas um indivíduo. Tais propriedades podem
incluir casas, arados, matas, etc. Cada membro pode adquirir do chefe da família o
direito em ter uma propriedade individual, mas desde que ela possua um tamanho
insignificante (idem, p. 363).

No ultimo ponto arguido pelo autor, estão os afazeres familiares. Estes


são gerenciados pelo chefe da família (patriarca) e realizados por todos os membros
do grupo. Mesmo quando um membro vai trabalhar em outras localidades, com a
possibilidade de ter uma vida independente, sua remuneração é sempre enviada
para o patriarca, que a controla. A esposa do chefe também vive sob seu comando,
sendo encarregada da vida familiar. Por seu papel em supervisionar os membros da
família, o patriarca é visto como o representante de todo o grupo. Esse poder do
patriarca começou a ser enfraquecido a partir do capitalismo e da restauração da
Era Meiji, bem como da revisão do novo Código Civil japonês (criado em 1898,
revisto após o termino da II Guerra Mundial, em 1947). Entretanto, tais elementos
33

não mudaram totalmente a configuração familiar japonesa, principalmente no que se


refere à área rural.

De acordo com Brown (1966, p. 1131), todos os membros de uma


família de origem irão constituir um grupo doméstico, entretanto, nem sempre o
grupo doméstico coincide exatamente com a família de origem, e devem ser
consideradas analiticamente como entidades sociais diferentes. Um exemplo seria o
caso de filhos solteiros que estudam em outros locais, residindo em outros grupos
domésticos, assim como membros de um grupo doméstico não fazem parte
necessariamente da mesma família de origem.

A família nipônica (CARDOSO, 1995, p. 83) seria então “apresentada


como um sistema hierárquico, organizado a partir do principio de descendência
patrilinear, onde o primogênito de sexo masculino tem direito à herança e sucessão”.
Porém, segundo a autora, no caso japonês existem frequentemente desvios desta
regra de sucessão. Também vale ressaltar que, no caso japonês, a filiação não está
necessariamente ligada à consanguinidade, mas na existência de um grupo
corporativo. Segundo Ariga (1954, p. 363) o patriarca atua também como tipo de
líder religioso nos momentos de adoração familiar e gerente da propriedade e das
atividades exercidas.

Ochiai (1997, p. 59) também faz ressalvas com relação à terminologia


“patrilinear” no sistema familiar japonês, pois ao contrário do sistema chinês em que
se baseia, possui justamente como característica a não necessidade da
consanguinidade na transmissão de herança. A possibilidade da adoção seria um
meio para sanar questões demográficas e, consequentemente, manter a
sobrevivência do sistema do ie (OCHIAI, 1997, p. 153).

De acordo com Nakane (1971, p. 1, apud CARDOSO, 1995, p. 84) o grupo


doméstico constituía-se normalmente por uma família elementar, que poderia incluir
parentes e não-parentes em seu núcleo. É o grupo doméstico, portanto, e não a
família consanguínea que forma a base da organização social. Segundo Cardoso
(1995, p. 85), é preciso fazer a distinção entre “descendência patrilinear” e “grupo
doméstico”, que caracteriza-se pela junção de mais uma família elementar, ligadas
pelo mesmo nome, formando assim o Dōzoku.
34

Unlike the Chinese jia, the ie system is not purely patrilineal,


since the headship may be inherited by an adopted son or son-in-law
– a feature which is considered characteristic of the Japanese iê.
(OCHIAI, E. The Japanese Family System in Transition. LTCB Inter-
national Library Foundation, 1997, p. 59).

Para Lebra (1989, p. 188) o ie deve ser analisado dividindo a categoria


em dois pontos. No primeiro caso, iê consiste em uma unidade estrutural de papéis
e/ou posições de membros dentro do grupo que impliquem em “família”. Esses pa-
péis ou posições são referidos ao ie como corpo corporativo20. A autoridade do pa-
triarca existe com base na chefia e não na paternidade. Quando ele se retira dessa
posição, deve escolher um sucessor, podendo ser um filho biológico (o mais velho
normalmente) ou um adotivo. Essa adoção pode ocorrer tanto na ausência de filhos
homens, como quando o filho com direito à sucessão não possui competências para
atuar nesse papel.

Segundo Lebra (1989, p. 186), a adoção existe em todas as classes sociais


do Japão, mas há indícios de que a classe alta adota mais do que a classe baixa. A
pesquisa da autora, procura demonstrar justamente a ideia de que nas classes mais
altas (citando as famílias de samurais, que adotavam muito, especialmente no perí-
odo Tokugawa) produz-se um grande número de adotantes e adotados.

O segundo aspecto diz respeito à perpetuação do ie enquanto entida-


de, através da sucessão entre as gerações. Quando se trata de ie, um ponto é sem-
pre discutido pelos pesquisadores dos estudos nipônicos: a sucessão. Para Lebra
(1989, p. 189), a sucessão no ie depende de uma unidade, representada por uma
casa, mantendo o tamanho da família relativamente pequeno já que existe apenas
um casal para cada geração.

De acordo com Nakane (1969) há dois modelos de estrutura familiar entre os


japoneses, “one being a large family based upon the collateral, fraternal or horizontal
solidarity, the other a small-sized family structured along the successional line based
on the lineal or vertical bond between the head and his heir”.

20
Tais papéis possuem status, carreiras, posses e metas próprias.
35

O foco na sucessão “unigenitural” torna a adoção muito mais necessá-


ria e sem limite de regras, desde que não existam “insiders” para serem adotados:

An outsider is as acceptable as a close kinsman; a sister's son


or daughter's son is just as adoptable as a brother's son; a brother
can be adopted as a son; historically, the adoptee could be older than
the adopter; the house with a daughter but no son can adopt a son-
in-law; not just a single person but a married couple can be adopted;
and so on (LEBRA, 1989).

Essa adoção pode ser compreendida principalmente como posição por


sucessão. Isso pode significar que é irrelevante a harmonia ou afinidade entre pai e
filho na adoção. Essa é uma situação, segundo Lebra (1989), bem diferente do que
ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, onde

Adoption is primarily between a childless couple and a child


whose natural parent(s) is not available, capable, or willing as a nur-
turer, and enables both parties to satisfy their personal needs -- one
as parental, the other as filial (LEBRA, 1989).

A adoção não é sempre realizada dentro da coabitação, e uma criança


pode viver com seus pais biológicos até alcançar a idade adulta em que existem
condições de maturidade para assumir o posto de sucessor.

Levando-se em consideração as proibições de incesto, cada geração


deve selecionar uma esposa-sucessora de outro local. Se a casa tem um filho, sua
esposa deve vir de outra casa. Quando há apenas filhas (e nenhum filho), ela per-
manece em sua casa original com seu marido, que é adotado como filho (mukuyoshi
- son-in-law).

A sucessão na família japonesa não está simplesmente relacionada à


herança da propriedade (ARIGA, 1954, p. 364). Segundo o autor, existem dois tipos
de sucessão: katokusozoku, baseada na sucessão da autoridade da família, está
relacionada diretamente com a continuação da família enquanto instituição. O patri-
36

arca (responsável pela continuidade da família) decide qual homem irá sucedê-lo em
caso de sua morte. Esse sucessor geralmente é o filho mais velho da esposa oficial.

No caso de ausência de filhos homens, opta-se por algum dos filhos


das concubinas, ou adota-se um herdeiro. Um homem poderia, por exemplo, ter
mais de uma esposa, caso esta não lhe proporcionasse filhos homens. Assim ele
poderia garantir a perpetuação de sua continuidade. Na ausência total de filhos ho-
mens, o chefe da família utiliza-se da prática de adoção de um sucessor. O concubi-
nato não existe apenas como forma de obter herdeiros, visto que existe a prática de
adoção, mas é também, visto como indício de alto status social. Outro tipo de suces-
são é a partir da herança das propriedades deixadas pelo chefe da família após sua
morte.

Através da literatura sobre a sociedade japonesa, nota-se nas famílias


nipônicas a subordinação dos interesses individuais aos do grupo. Segundo Vieira
(1973, p. 110), as decisões, tais como casamento e educação, entre outras, eram
sempre tomadas pelo chefe da família, pois a organização familiar era baseada na
descendência patriarcal. Uma das expressões mais fortes desse padrão dominação-
subordinação está nas relações marido-esposa e pai-filhos.

There was a hierarchy of positions of power, so that from the


lowest to the highest there was an unbroken chain of obedience up-
wards and protection downwards (IZUHARA, 2000, p. 19).

A esposa era legalmente considerada incompetente, sendo a autori-


dade do homem/marido sobre a mulher/esposa, absoluta. Os casamentos dos filhos
dependiam do aval paterno, tendo o pai o poder de anulá-los caso já tivessem sido
realizados.

O chefe de família ordenava a fôrça de trabalho familiar e era


responsável pela família, devendo ter em vista sempre o interêsse
desta como grupo, deixando de lado os próprios interêsses ou de
qualquer outro membro. (VIEIRA, 1973, p. 111)
37

No caso de morte ou ausência do pai, o poder recai sobre o filho mais


velho. A hierarquização é percebida dentro das famílias desde a infância e dividida
em 3 princípios, em que 1) o homem é superior à mulher, 2) os mais velhos
possuem poder sobre os mais jovens e 3) os nascidos nas famílias aos que vierem
de fora.

A família japonesa é percebida, portanto, através da continuidade do


grupo, o que, segundo Cardoso (1995, p. 93) a distingue muito da família ocidental,
que confunde o biológico com o social. No caso nipônico “a unilinearidade do paren-
tesco é muito mais flexível, porque pode ser estendida além da consanguinidade
pela participação no culto ao nome e aos ancestrais da família (...). Pertencer a este
grupo é fazer parte de sua continuidade pela aceitação de um nome que deve ser
honrado”.

Entretanto, transformações já vinham sendo percebidas nas últimas


décadas na família japonesa. De acordo com Koyano (1964, p. 149), mudanças fo-
ram ocorrendo na estrutura da família nipônica, dos padrões tradicionais do período
feudal para a moderna família nuclear, típica das sociedades industriais. Entretanto,
as atitudes e o comportamento dos japoneses sobre a família não mudaram tão ra-
pidamente quanto sua estrutura na sociedade japonesa em geral:

Despite its formal dissolution in the New Civil Code of 1947,


the 'family system' continued to constitute a normative force in family
affairs and social relations. The post-war hegemonic image of family
life focused upon an urbanized and nucleated form of iê, imagining
standard families including breadwinning husbands, fulltime house-
wives and educationally-minded children. Steam-family relations also
persisted and, although families became more mobile and multigen-
erational households declined, intergenerational obligations for care
and rights of inheritance were largely sustained across family net-
works (RONALD, R; ALEXY, 2011, p. 1)

Passado o período da Segunda Guerra Mundial, a família japonesa te-


ria mudado estruturalmente, passando da tradicional família linear, em que o filho,
ou filho-adotivo recebe a sucessão dando continuidade à família, ainda vivendo com
os pais mesmo depois de casado, para o então modelo de família nuclear, em que
cada geração estabelece seu próprio lar a partir do casamento. Esses novos pa-
38

drões de casamento foram reconhecidos a partir da revisão do Código Civil Japonês


em 1947. Desde então, o costume da adoção para a formação da família linear tem
decrescido (Koyano 1964, p. 151).

De acordo com Ronald & Alexy (2011, p, 01-02),

More recently, however, although an ideological iê hegemony


has endured, dramatic shifts have emerged in actual families and
households conditions. Japanese homes, particularly since the post-
bubble recessions, have been increasingly likely to include childless
couples; divorcees; unmarried adult children; children who refuse to
leave the house and elderly relatives living alone or in nursing homes.
The fastest growing household forms have been single-only and cou-
ple-only households, while at the margins of society significant num-
bers of people have become homeless. Along with the erosion of iê
norms and 'standard' household patterns, family lives have been in-
creasingly described as dysfunctional instead of harmonic and as
problematic rather than stable.

Entretanto, mesmo após essa revisão dos costumes, a concessão ao


filho mais velho da maior parte das propriedades ainda prevaleceria. Com o novo
Código Civil houve uma transformação nos padrões da família em “núcleos funda-
mentais”, que consistem em um casal e seus filhos solteiros (Koyano 1964, p. 152).

Essas transformações foram mudando também a vida familiar e a edu-


cação das crianças. Para o Koyano (1964, p. 153), quatro foram os principais ele-
mentos a sofrerem mudanças em sua prática original. Os pontos citados são o altar
budista; da sucessão pelo filho mais velho; da prática em servir alimentos às pesso-
as e a função dos membros mais velhos em cuidar da educação das crianças. O
templo budista ainda é encontrado em alguns núcleos familiares, mas à época de
sua pesquisa, era mais comum em lares tradicionais (household21).

No caso da sucessão, Koyano (idem, p. 154) demonstra que a manu-


tenção da linhagem pode ser alcançada com sucesso pela sucessão do primogênito
da ocupação principal da família, mas que ocorre com mais probabilidade quando a
família tem uma fazenda, barco, loja ou algo que possa ser herdado e, de acordo

21
Household pode ser traduzido como grupo doméstico ou lar (AUGÈ, 1975).
39

com as entrevistas realizadas, muitos de seus informantes admitiam que não espe-
ravam que seus filhos os sucedessem nessa ocupação familiar. Referente à prática
alimentar, o autor evidencia que o chefe da família tinha posição privilegiada durante
as refeições, sendo sempre servido primeiro, mas que tal prática foi se transforman-
do ao longo dos anos. Assim como outros costumes, ainda é mais comum em famí-
lias proprietárias de terras e pouco realizada entre “office worker“ e “laborers “.

Finalmente, com relação à educação das crianças, Koyano (idem, p.


155) declara que as famílias japonesas começaram a seguir cada vez mais as influ-
encias norte-americanas e outras fontes modernas22. Como nos Estados Unidos,
cada vez mais passou-se a ouvir pediatras e especialistas (outras fontes de informa-
ções eram as revistas) no que dizia respeito a alimentação das crianças, educação e
higiene23.

Outra característica descrita por Koyano (idem, p. 156) sobre a família


japonesa, é que os membros passavam um tempo considerável juntos diariamente
em casa. Após a industrialização e urbanização, esse tempo disponível para intera-
ção diminuiu consideravelmente. A interação dos familiares passa a ser limitada pela
ausência dos pais ou outros assalariados, que ficam boa parte do dia fora.

Nota-se certa semelhança entre o sistema de parentesco okinawano e


a lógica familiar japonesa do ie, especialmente no que se refere à sucessão e às
relações entre vivos e mortos (TANAKA, 1977). Entretanto, no caso uchinanchu24,
por se tratar originalmente de um grupo endogâmico25 (TANAKA, 1977), sangue e
sêmen são apontados como elementos intrínsecos na construção desse parentesco.
Por sua vez, o ie é por vezes exogâmico na formação de novas alianças com outros
ie(s) e que permite a “consanguinização” de afins.

22
Koyano cita o Dr. Spock como uma dessas referencias ocidentais. O personagem seria a metáfora
da ciência influenciando as famílias e os cuidados com as crianças (de acordo com Watsugma, 1977,
p. 189, seria o momento Japan’s Dr. Spock).
23
Essas práticas consideradas mais “científicas” eram comuns entre as famílias das áreas urbanas,
enquanto que nas regiões rurais, ainda prevaleciam os cuidados recebidos pelas avós.
24
O termo uchinanchu refere-se aos indivíduos originários da província de Okinawa. Uma discussão
sobre o termo será realizada no capitulo 2.1.
25
A pesquisa de Tanaka (1977) trata sobre categorias de adoração aos ancestrais okinawanos
através do sistema de parentesco. Seu trabalho de campo foi realizado entre1969 e 1970 em uma
aldeia na província de Okinawa, e que contava com aproximadamente 567 indivíduos vivendo em 96
casas. Infelizmente, não foi encontrada vasta bibliografia sobre parentesco entre okinawanos, o que
não permite contrapor dados documentais sobre a questão.
40

Mas e na situação de imigração? Tais sistemas de parentesco teriam


sido seguidos em outros lugares do mundo, como no Brasil? É possível que esta
diferença exista, mesmo nos dias atuais, entre os descendentes de japoneses ou de
okinawanos na cidade de Campo Grande? O subcapítulo a seguir procura retratar as
transformações ocorridas ao longo das últimas décadas nas famílias “japonesas”,
especialmente refletindo sobre o período pós-guerra. Em seguida, a discussão
segue em direção à Campo Grande, quando poderemos, enfim, compreender sobre
parentesco e família entre os nikkei da cidade.

1.3 O Pós-Guerra Mudou a Família?

Such a thing could never have been done by a father before the war!

A frase acima, como dito anteriormente, indicava um pensamento re-


corrente no Japão no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Ela está presen-
te no artigo de Wagatsuma (1977) e ilustra um caso citado pelo autor, em que um
pai, na década de 1970, ao tentar ajudar a filha em um exame escolar, entrou em
sua escola e roubou a prova para que ela pudesse realizar o teste sem dificuldades.
De acordo com o autor, acreditava-se que as mudanças teriam afetado não somente
a estrutura da família, a partir da dissolução formal do ie em 1947, como também as
relações entre membros de uma mesma família.

Se com o ie o papel do pai se mantinha na educação dos filhos, corri-


gindo-os, às mães cabia um papel mais reconfortante e amoroso:
41

The father raises children strictly, corrects their manners,


teaches them arts and techniques, educates them in all matters,
scolds them for, and warns them against, wrong doing, cultivates
their good character, looks after them so that they grow up to be
praiseworthy in the opinion of others, and disciplines them for their
own sake. Such is the father’s benevolence and duty. The mothers
cares for her children gently and quietly, calms them down and ex-
plains to them in detail and reasonably why their father is strict, so
that the children will not become angry and resent their father’s atti-
tudes. Such is the mother’s benevolence and duty (Watsugama,
1977, p. 183).

Um dos motivos dessa transformação e consequente perda da autori-


dade paterna, característica intrínseca ao ie, seria o aumento do número de famílias
nucleares, compostas apenas por pais com filhos solteiros, bem como a entrada das
mulheres no mercado de trabalho, consequentemente, ganhando mais liberdade na
sociedade japonesa. De acordo com Tokuhiro (2010), o ingresso das mulheres japo-
nesas no trabalho fora do ambiente doméstico teria trazido a possibilidade de esco-
lhas anteriormente inadmissíveis, como a opção de cursar uma universidade. Tais
transformações também influenciaram na decisão de quando, com quem e “se” re-
almente uma mulher desejaria casar. A autora ilustra essa situação com o seguinte
caso:

As mentioned earlier, Sayuri was living with her boyfriend and


had no intention of getting married. This was mainly because she was
(and still is) against conventional iê ideas based on the feudalistic
family structure known as the iê system. For instance, Sayuri believes
her name constitutes part of her identity and individuality and she
wishes to maintain her surname for the rest of her life. The marriage
law today, however, requires a couple to choose one common sur-
name, either the husband's or wife's, prior to marriage; today almost
all couples (97 percent) choose the husband's surname (Nishikawa
and Nishikawa, 2001). Sayuri perceives the convention whereby most
Japanese women change their family name at the time of marriage
as problematic, because it perpetuates the conventional normalcy of
a bride entering into her husband's family. Sayuri and her partner had
continued their relationship for about seven years without incident. It
changed when Sayuri was 36 years old, and became pregnant. The
couple believed that theirs child would be socially stigmatized if they
remained unmarried. Thus they decided to become legally married
and needed to decide which surname to take. As the decision should
be made based on fairness and equality, they decided that the winner
of 'janken' or the game of 'rock, paper, scissor' would keep their sur-
42

name while the loser would give up theirs. Sayuri won the game and
they currently have their marriage registered under Sayuri's family
name. Her father was has no son was extremely grateful when he
heard about the couple's decision. For Sayuri's partner, however, be-
coming a husband in order that his child would not be illegitimate
meant surrendering his family name. Sayuri believes had the loss of
his surname was a blow to her husband and has tactfully refrained
from discussing the matter with him ever since (TOKUHIRO, 2010, p.
01-02)

De acordo com Kamo (1990, p. 413), ao trabalharem fora, as mulheres


adquiririam mais poder na sociedade japonesa e isso seria visto como causa de pro-
blemas entre as jovens japonesas e suas sogras, estas ainda na lógica do ie e, por-
tanto, com a expectativa de que a hierarquia fosse seguida.

Watsugama (1977) e Ochiai (1997) discordam de que haveria uma cri-


se familiar instaurada com o fim da Segunda Guerra Mundial. Para Ochiai (1997, p.
59) o erro nesta análise parte da tradução do sistema de ie como família, quando, na
realidade, o termo se aproxima do conceito de household. Neste sentido, seria incor-
reto afirmar que existiu no Japão uma nuclearização da família, mas, talvez, uma
nuclearização de households:

Their rise has not been offset by a decline in the households


with other kin, which consist mainly of extended families. If the iê had
been replaced by the nuclear family, as we are told, we would ex-
pected to see a drop in the number of extended family households.
But while their relative weight has decreased as the actual numbers
have remained constant. in other words, nearly all of the iê have had
successors who continued to live with their parents after marriage,
maintaining the continuity of these extended family households
(OCHIAI, 1997, p. 61).

Apesar de toda a ênfase dada à família japonesa como “em crise” de-
vido às diversas alterações pelas quais tem passado nas últimas décadas, Ronald &
Alexy (2001, p. 02) destacam que há uma resiliência na formação familiar japonesa,
sendo essa resistência visível ao observar como as casas e os valores familiares
43

são continuamente ajustados às mudanças sociais, espaciais e econômicas pelos


quais passou o Japão:

Essentially, the ie norm has perpetuated perceptions of


continuity in Japanese society despite substantial shifts. For Ueno
(1994), the ie ideal is, rather than an essential and eternal aspect of
Japanese existence, the product of modernity, or in the other words
'the Japanese version of the modern family'. To considerer changes
in family and household relationships as the end of 'traditional' values
is to misrepresent the modern character of Japanese kinship. The ie
system has, in many cases served to transform family relationships
into more intimate and pragmatic ones, rather than preserve feudal
practices and obligations that bind Japanese generations together
(ROLAND & ALEXY, 2001, p. 02)

Como pode-se notar, pesquisadores de décadas anteriores preocupa-


ram-se com uma suposta crise na “tradicional família japonesa”, decorrente das
transformações socioeconômicas que ocorrem no Japão, especialmente no período
pós-guerra.

Apesar de tais mudanças que, segundo alguns, haviam desconfigurado


a noção de ie, a essência dessa prática não teria sofrido grandes transformações,
sendo possível encontrá-la até os dias atuais, mesmo após a anulação da lei que a
regulava (KEBBE, 2012).

De alguma forma a lógica do ie está ainda presente na forma de pensar


a construção das famílias e do parentesco japonês contemporâneo. Poderíamos
pensar que o mesmo vale para a população “japonesa” imigrada no Brasil e, mais
especificamente, em Campo Grande?

Para dar continuidade ao tema, nos capítulos seguintes retornarei às ques-


tões colocadas pelos parentescos japonês e okinawano, atualizando-os ao processo
de imigração para Campo Grande e refletindo sobre as produções de parentesco
entre estes grupos nikkei na cidade. A partir do próximo capitulo, intitulado Croche-
tando o Campo, trago novas discussões baseadas a partir da etnografia realizada
tanto na Associação Okinawa de Campo Grande, quanto nas relações que estabele-
ci com meus interlocutores aos longo de toda a pesquisa de campo.
44

2. CROCHETANDO O CAMPO

Shima uta yo kaze ni nori tori to tomo ni umi wo watare


Shima uta yo kaze ni nori todokete okure watashi no ai wo26
É a musica da ilha que acompanha o vento, e junto com
os pássaros atravessa o mar
É a musica da ilha que acompanha o vento e leva junto o
meu amor

Talvez pela própria particularidade em seu processo migratório, em


Campo Grande a multiplicidade presente no grupo nikkei, que aqui podemos chamar
de japonesidades (MACHADO; LUNA KUBOTA; KEBBE, 2011) foi, por muitas déca-
das, ressaltada, mesmo que de maneira pejorativa e em forma de ataques dentro do
grupo nikkei, pois ali se encontram imigrantes majoritariamente de origem okinawa-
na, sendo o número de famílias de origem naichi inicialmente bem reduzido.

Para investigar as questões concernentes às produções de parentesco


pelos grupos okinawano e naichi em Campo Grande, passei a frequentar a Associa-
ção Okinawa da cidade, onde pude reconhecer que as diferenças existentes entre
os grupos é constantemente (re)produzida e atualizada por estes sujeitos. Através
da pesquisa de campo realizada com meus interlocutores foi possível observar como
se desenrolam as relações entre naichi e okinawanos e como esse desenrolar pode
ser verificado na construção de novas famílias. Neste capitulo, portanto, discorro
sobre como foi construída a pesquisa de campo na cidade e sobre minha inserção
na associação okinawana, que me conduziu a questionamentos e observações so-
bre as famílias nikkei de Campo Grande, especialmente guiadas pelas especificida-
des internas a cada grupo nikkei do local.

No subtópico que apresento a seguir, foi possível, de certa maneira,


retomar questões histórias dos grupos nikkei da cidade, através das falas de meus

26
The Boom. Shima Uta. Single, 1993, Sony Music Japan, 05’06”. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=hyg6Z17DTrg Acesso em 09 out 2014.
45

interlocutores que, ao tratarem sobre suas vidas na Campo Grande de hoje,


referem-se ao passado para descrever seu presente.

2.1 Das Ilhas a Campo Grande – As Histórias dos Dois Grupos na cidade

A imigração japonesa para o Brasil começou no ano de 1908. Esses


imigrantes chegaram ao Porto de Santos e aos poucos se espalharam por todo o
Estado de São Paulo e pelo resto do país. Apesar de relatos bibliográficos indicarem
a chegada destes imigrantes em 1909 na cidade de Campo Grande, em função da
construção da Estrada de Ferro Noroeste iniciada naquele ano, somente em 2014 as
associações nikkei do local celebraram seu centenário, cálculo este que coincide
com o término das obras da ferrovia em 1914.

Figura 01 – Monumento em Homenagem aos Imigrantes Nikkei de Campo Grande


Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2006.
46

Os três Estados com maior concentração de imigrantes e


descendentes nikkei são São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul, nesta ordem.
Esta imigração se iniciou por uma junção de acordos de trabalho entre Brasil e
Japão. Muitos dos que aqui chegaram, imaginavam retornar à terra natal após
acumular alguma quantia em dinheiro (LUNA KUBOTA, 2008). Esse sonho,
entretanto, foi muito pouco realizado e será abordado mais adiante, pois esta
questão pode ser relacionada ao movimento de descendentes de nikkei nascidos no
Brasil que migram ao país de seus antepassados à trabalho.

Diversos pesquisadores se debruçaram sobre a imigração japonesa


para o Brasil, no intuito de compreender um pouco mais sobre o grupo nikkei –
sempre a partir da ideia de unidade e homogeneidade, pouco refletindo sobre as
diferenças internas, como a presença de okinawanos e naichi compondo o chamado
povo “japonês” - , tão diferente dos outros imigrantes e dos próprios nativos do
Brasil.

Pesquisas importantes foram realizadas e entre as mais citadas estão


a tese de doutorado de Ruth Cardoso, de 1972 e publicada em 1995 e a obra de
Francisca Vieira, de 1973. Ambas retomam o modelo de construção de parentesco
no Japão, o ie, para pensar sobre as famílias nikkeis no Brasil.

De acordo com as autoras, reproduzia-se no início da imigração o


mesmo modelo de hierarquia encontrado no arquipélago nipônico, em que os
homens possuíam todo o poder de decisão e, à esposa e aos filhos, cabia a
obediência. Ambas fazem referência também à questão da patrilinearidade e à
transmissão de poder ao filho mais velho, denominado como chōnan.

Uma questão recorrente em quase toda a literatura sobre esta


população imigrante trata das “famílias arranjadas”, visto que para imigrar, era
preciso estar incluído de alguma maneira em uma família, não sendo permitida a
vinda de pessoas solteiras ou sozinhas. Desse modo, casamentos e adoções foram
feitos às pressas para preencher os requisitos burocráticos necessários para a vinda
ao Brasil. De acordo com Cardoso, Vieira e vários outros pesquisadores, o grupo
nikkei formaria famílias fechadas e restritas às uniões com não-descendentes.
Entretanto, como veremos no capitulo três, uma transformação ocorre no
estabelecimento de novas famílias nikkei em Campo Grande, após algumas
décadas deste inicio de imigração para o Brasil.
47

De acordo com tais pesquisas27, as primeiras décadas teriam focado a


manutenção desse sistema familiar trazido com os imigrantes que aqui chegaram no
início do século XX para trabalhar nas fazendas de café. Fala-se muito sobre o
processo de urbanização como agente transformador no contexto das famílias que
aqui se estabeleceram. Em Campo Grande, ainda hoje fala-se nos nomes das
antigas colônias ao se referir à determinados indivíduos. “Ah, ela(a) nasceu na Mata
do Segredo”, ou “meus pais vivem na Mata do Prosa”. As 23 colônias agrícolas
existentes na cidade desapareceram, tornaram-se bairros urbanizados, sem
qualquer referência ao passado, mas ainda existem na memória dos imigrantes e
descendentes que habitam na cidade. De acordo com diversos autores, incluindo
Cardoso (1995) e Vieira (1973), viver nas cidades – ou sofrer suas influências – teria
trazido mudanças na própria maneira de ser “japonês”, antes relacionado a uma
coletividade, obedecendo ao chefe do grupo e, posteriormente, voltado cada vez
mais à individualidade.

Essa transformação na família teria trazido mudanças tanto nas


relações dentro do próprio grupo, quanto na educação dos filhos no que se referia à
escolha das escolas, por exemplo. Em Campo Grande, uma solução encontrada foi
a criação de uma escola voltada para a população nikkei. A Escola Visconde de
Cairu, que existe até os dias atuais (e que atualmente recebe alunos das mais
diversas origens, sem restrições quanto à ascendência nikkei ou não), inicialmente
surgiu como instrumento para a alfabetização no idioma japonês das crianças nikkei
que haviam nascido no Brasil. Posteriormente, durante a guerra e após passar aos
cuidados de um diretor brasileiro - visto que as escolas estrangeiras foram proibidas
no país -, consagrou-se como uma instituição de ensino tradicional.

Em documentário28 realizado em 2005, uma das ex-diretoras da escola


comenta sobre aquele período, relembrando que as crianças eram constantemente
vigiadas e, diversas vezes, apedrejadas na rua enquanto ouviam os gritos de “quinta
coluna”.

27
Mais estudos sobre as primeiras décadas sobre as famílias “japonesas” no Brasil foram
amplamente discutidos na dissertação de mestrado (LUNA KUBOTA, N. F. 2008).
28
Arigatô: Um Olhar Sobre a Imigração Japonesa em Campo Grande. Direção: Maristela Yule.
Roteiro: Rosiney Bigattão. 2005. Campo Grande, 86 min.
48

No tempo da guerra, a única escola japonesa (nikkei),


estrangeira que ficou funcionando no Brasil, foi a Escola Visconde de
Cairu. O doutor Alexandre ficou como diretor da escola. Mais tarde ele
ainda teve que passar o nome da escola, toda a propriedade em nome
dele e eu fiquei como diretora da escola até terminar a guerra. E eles
eram vigiados. As crianças eram apedrejadas quando atravessavam
ali, perto do jardim. Os molequezinhos da rua gritando “quinta coluna!”.
Eu queria bem os japoneses e tinha pena da situação deles.
Depoimento da professora Ayd Camargo Cesar (Arigatô, 2005,
25’24”).

Figura 02 – Primeiros alunos da Escola Visconde de Cairu em 1926


Fonte: Ayumi – A Saga da Colônia Japonesa em Campo Grande, 2005.
49

Figura 03 – Escola Visconde de Cairu nos dias atuais


Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2005.

Vieira (1973, p. 76) também aponta para a característica desse grupo


no Brasil, formando o que a autora chama de “blocos sociais unificados” estabeleci-
dos fortemente em Campo Grande/MS, litoral santista e algumas outras regiões do
interior do Estado de São Paulo. Em Marília, sua pesquisa indica o caráter estrita-
mente endogâmico na formação de famílias, ou seja, evitando casamentos com não-
descendentes.

Pela fala de entrevistados (ibid, p. 77), nota-se de forma ainda tímida a


tentativa em descrever as relações de parentesco e como elas se estabeleciam en-
tre os membros desse grupo, diferenciando, finalmente, nikkei de origem naichi e
okinawanos. A fala de dois de seus entrevistados, uma issei29 okinawana e uma nis-
sei naichi, demonstra como os okinawanos se veem em contraposição aos nikkei
provenientes das outras ilhas e sobre como essas diferenças aparecem ao se tratar
da constituição de famílias e do casamento:

29
Issei é a categoria utilizada para denominar os imigrantes nascidos no Japão. Nissei são seus
filhos e sansei seus netos. Os nissei e sansei são os descendentes nascidos fora do Japnao.
50

Os okinawanos contam como parentes qualquer um que tenha


um pequeno parentesco; os japoneses não, só até a segunda
geração. (...) Meus pais preferem que eu me case com um brasileiro
antes que com um okinawano. (VIEIRA, 1973, p. 77)

Outras pesquisas dirigiam-se ao período da Segunda Guerra, por


exemplo, quando questionava-se sobre a possibilidade de “adaptação” ou
“aculturação” dos nikkei à sociedade brasileira (LUNA KUBOTA, 2008). Essa
discussão sobre a “assimilação” de grupos imigrantes na sociedade brasileira já
havia sido iniciada durante o período do Estado Novo - 1937-1945 - (PANDOLFI,
1999) quando foi cunhado o termo “perigo amarelo” (SAKURAI, 1993) ao se
referirem aos imigrantes nikkei.

O temor vigente era o de que esses imigrantes tomassem o poder e


ameaçassem a soberania nacional, temor este expresso no depoimento da antiga
professora da Escola Visconde de Cairu citado acima. Como medida preventiva, o
governo brasileiro decidiu proibir o uso do idioma japonês em público, bem como a
existência de qualquer associação oficialmente nikkei no pais30 (LUNA KUBOTA,
2008).

Em Campo Grande os imigrantes que haviam formado logo que


chegaram uma pequena associação, viram suas portas serem fechadas devido às
interdições. Como solução, o advogado e professor Alexandre – não-descendente –
citado pela professora Ayd, que havia pego para si a responsabilidade da escola,
assume também a direção do que é hoje a Associação Esportiva e Cultural Nipo-
Brasileira de Campo Grande, mais conhecido como Nipo.

30
As mesmas proibições foram dirigidas também aos alemães e italianos, criando-se um cerco aos
imigrantes originários dos países do eixo.
51

Figura 04 – Clube Nipo


Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2005.

Figura 05 – Clube Nipo


Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2005.
52

Alguns dos meus informantes que vivenciaram aquele período relatam


situações de truculência na cidade de Campo Grande. Casas eram invadidas à
procura de livros ou itens que pudessem ser considerados perigosos ao país. A
situação se intensificou e piorou com a derrota do Japão na guerra, provocando
conflitos dentro do próprio grupo, que culminou com a criação do movimento
conhecido como Shindo Renmei31. Aqui, vemos a separação entre os nikkei em dois
grupos conhecidos como “vitoristas” e “derrotistas”, ou seja, os membros e
simpatizantes do grupo Shindo Renmei não aceitavam a derrota do Japão naquele
conflito mundial e opunham-se àqueles que teriam aceitado a derrota do país na
guerra.

A Segunda Guerra Mundial pode ser entendida, portanto, como um


momento marcante, tanto para a população não imigrante do Japão, mas especial-
mente para a população nikkei que já se encontrava no Brasil. Pode-se notar até os
dias atuais em Campo Grande a existência de certos vestígios de conflitos da histó-
ria dessa população na cidade, decorrentes, entre outros, do término da Segunda
Guerra.

Esses conflitos aconteceram mais fortemente no interior do Estado de


São Paulo e pesquisas mais atuais (LINS, mimeo) têm se debruçado sobre o tema
da Shindo Renmei a partir de outras perspectivas. Antecipando a pesquisa de cam-
po em andamento nas cidades de Lins e Promissão - no Estado de São Paulo - de
Tiago Lins, sob orientação de Igor Reno Machado, nota-se que, este movimento não
foi o gerador de conflitos internos mas, ao contrário, resultou de discordâncias inter-
nas ao grupo nikkei que já existiam anteriormente, como disputas familiares ou entre
clubes e associações.

No caso campo-grandense, essa divisão entre os grupos estava tam-


bém relacionada ao pertencimento okinawano e naichi. Em Campo Grande, indiví-
duos nikkei de origem naichi eram considerados vitoristas em oposição aos indiví-
duos nikkei de origem okinawana, classificados na época como derrotistas. Em de-
corrência deste conflito interno, forma-se a Associação Okinawa de Campo Grande,
que marca definitivamente as diferenças entre os grupos nikkei na cidade.

31
Sua existência data de 1946 a 1947. (MORAIS, Fernando. Corações Sujos. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000).
53

Meus interlocutores não afirmavam categoricamente ter havido ali um


movimento parecido como o de São Paulo, incluindo os episódios de violência que
culminaram em assassinatos, apesar do uso explicito dos termos “vitoristas” e “der-
rotistas” em suas falas. Entretanto, foi possível observar que naquele período – pós
Segunda Guerra - as diferenças entre naichi e okinawanos se tornaram mais explici-
tas e públicas, o que culminou com a separação entre os dois grupos na cidade e
que levou a separação do Clube Nipo e consequentemente, à criação do Clube Oki-
nawa (LUNA KUBOTA, 2008):

Em 1947, a colônia japonesa no Brasil encontrava-se caótica


devido à polemica entre vitoristas e derrotistas. Nesse ínterim, alguns
provincianos residentes em São Paulo, profundamente consternados
pelo fato de sua terra natal, Okinawa, ter sido reduzida a terra quei-
mada pela guerra, convocaram conterrâneos de todo o país para ar-
recadarem bens visando a assistência às vitimas. Voluntários de
Campo Grande atenderam rapidamente ao chamado, providenciando
um grande número de bens que foram enviados a Okinawa através
do Centro de Assistência às vitimas da Guerra de Okinawa. Campo
Grande, na época, ainda não estava em condições de organizar uma
associação de provincianos. Havia apenas um trabalho assistencial
centralizado em uns poucos voluntários, os quais eram criticados pe-
las costas como “derrotistas” (Associação Esportiva da Colônia Ja-
ponesa em Campo Grande. AYUMI. A Saga da Colônia Japonesa
em Campo Grande. Campo Grande: SABER Editora, 2005, p. 110-
111).

Na obra “Ayumi”, publicada em conjunto pelas duas associações nikkei


de Campo Grande, vemos pequenos relatos que se referem àquele período e pelos
quais notamos a existência do conflito entre os grupos. Considerados como “derro-
tistas”, os imigrantes e descendentes originários da província de Okinawa decidem
criar sua própria associação, mas encontram dificuldades:

A Associação Kenjikai de Campo Grande realizava todas as


atividades em conjunto com a Nihonjinkai (Associação Japonesa),
sem se prender a titularidade ou nomes. Todavia, a colônia também
passou por alterações. Pressionada pela necessidade de dispor de
um kenjikai próprio, a entidade tentou negociar a cessão do terreno
que estava registrado para a Associação Japonesa, a fim de constru-
ir um Kaikan (recinto comunitário) naquele espaço que já lhe era co-
nhecido de longa data; não sendo aceita a proposta, a Kenjikai inau-
54

gurou, em 17 de setembro de 1966, o seu Kaikan no endereço atual.


(Associação Esportiva da Colônia Japonesa em Campo Grande.
AYUMI. A Saga da Colônia Japonesa em Campo Grande. Campo
Grande: SABER Editora, 2005, p. 111).

Em sua biografia, o imigrante okinawano Hiroshi Gushiken também re-


lembra o período pós Segunda Guerra na cidade de Campo Grande ao citar a cons-
trução da Associação Okinawa. Em seu livro autobiográfico intitulado “Deixei o Co-
ração me Conduzir”, publicado por ele mesmo, Gushiken diz que na época da cons-
trução da associação “ainda continuava o confronto entre o grupo de vitória e o de
derrota” (p. 61).

Figura 06 – Associação Okinawa de Campo Grande


Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2014.
55

Figura 07 – Associação Okinawa de Campo Grande


Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2015.

Já o Clube Nipo havia sido fundado no ano de 1920, com o nome de


Associação Nipo – Nihon-jin-kai (LUNA KUBOTA, 2008). Em 1964 o clube muda sua
nomenclatura para Associação Esportiva e Cultural Nipo-Brasileira de Campo Gran-
de. Atualmente, no Nipo o grupo de sócios abrange imigrantes e descendentes de
todo o Japão, enquanto que no Clube Okinawa, ainda persiste majoritariamente a
presença de membros originários desta província.

Pode-se perceber, entretanto, que a partir da década de 1990 esforços


passaram a ser realizados para que o grupo fosse visto enquanto unidade, para que
a população local passasse a ver esse grupo como uma colônia nikkei homogênea:
56

Para o dia 26 de agosto32 nós recebemos da prefeitura um


convite, a Associação Nipo, a Associação Okinawa recebeu outro
convite. Nós nos reunimos para definir, para fazermos um desfile da
colônia japonesa. Sentamos, conversamos, decidimos. Nipo, Okina-
wa e Associação de beisebol. Como uma unidade nipo-brasileira. Is-
so é o que tem que ser feito. (Fala do presidente do Clube Nipo du-
rante minha pesquisa de campo em 2007)

Apesar do intuito expresso na fala do antigo presidente do Clube Nipo


de promover a ideia de comunidade homogênea, as diferenciações entre naichi e
okinawanos puderam, portanto, ser a todo momento percebidas ao realizar o
trabalho de campo em Campo Grande.

Logo no início de minha chegada à cidade, ao mesmo tempo em que


efetuava a busca pelos registros de casamentos referentes à pesquisa documental,
mantinha contato com alguns participantes da Associação Okinawana da cidade.
Conheci o então presidente, sr. Jorge Tamashiro, que concordou em receber-me em
sua residência.

Marcamos um encontro e fui muito bem recebida. O sr. Jorge me con-


tou um pouco sobre a história da associação, sobre seu período de mandato (que já
estava no fim) e quais foram suas conquistas para o local, como a ajuda que conse-
guiu para construir a cobertura de uma parte da Associação Okinawa. Durante nos-
sa conversa, fui pega de surpresa ao ser por ele corrigida ao utilizar o termo okina-
wano. O sr. Jorge informou que não utiliza tal termo e que prefere ser denominado –
e denominar às pessoas de seu grupo – como uchinanchu, pelo tom pejorativo que o
primeiro termo carregaria.

Aquela não foi a primeira vez que ouvi o termo, mas até aquele mo-
mento ainda não havia de minha parte, a consciência do caráter político ali incutido.
Retomando o processo histórico de anexação da região ao Japão, sabe-se que Oki-
nawa passa a ser assim denominada após sua conquista por aquele país, sendo
esta província anteriormente conhecida como Reino de Ryūkyū ou Reino de Uchina.

32
Data de comemorações do aniversário de Campo Grande.
57

Denominar-se uchinanchu é, portanto, reforçar a contraposição e a diferença com


relação aos demais nikkei, ao mesmo tempo em que reafirmam não se encontrarem
em posição de subalternidade ou inferioridade.

Pude notar esse posicionamento político em outro momento, ainda com


o então presidente da Associação Okinawa, quando ele enfatizou o erro cometido ao
tratar a língua okinawana como dialeto e não como língua oficial e relembra que
após a Segunda Guerra Mundial, ainda sob tutela dos Estados Unidos, todos os in-
divíduos uchinanchu eram denominados em seus passaportes como originários de
Ryūkyū33.

O que observei durante a pesquisa, especialmente ao contrapormos


ambas as falas dos dois antigos presidentes das associações, é que apesar desta
tentativa de homogeneização, existe a produção contínua de japonesidades34, cons-
tituídas e baseadas nas diferenças e particularidades próprias aos dois grupos. Sen-
do assim, foi possível observar a produção de dois feixes de japonesidades, evoca-
dos em momentos específicos. Poderíamos, portanto, falar em uma japonesidade
englobante, cujo propósito é o de apresentar uma ideia de unidade nikkei na cidade
e mais relacionada aos eventos públicos e, por fim, outras japonesidades que po-
dem ser desdobradas em okinawanidades e naichicidades (categorias que serão
tratadas em subcapítulo adiante), priorizando as características e particularidades
dos dois grupos localizados em Campo Grande.

Se retomarmos o capítulo anterior, vemos que as formas como se


constroem os parentescos okinawano e naichi são, por vezes, divergentes, apesar
das semelhanças que se constituíram entre ambos, especialmente após o processo
de anexação da província de Okinawa ao Japão. Sendo assim, percebemos a im-
possibilidade de discutir tais parentescos e/ou famílias sem antes apresentar estas
especificidades que compõem as múltiplas formas de ser nikkei na cidade e que
são, consequentemente, acionadas na construção de novas famílias. O subcapitulo
a seguir destina-se, portanto, à discussão sobre como são construídas e
(re)produzidas tais japonesidades em Campo Grande.

33
Devido ao amplo uso dos dois termos na cidade de Campo Grande, opto por utilizar o termo nativo
de acordo com as falas de cada interlocutor.
34
Uma discussão sobre produção de japonesidades será realizada subcapítulo 2.2
58

2.2 Produzindo Japonesidades

A música citada no início deste capítulo é uma das demonstrações do


que aqui chamo de okinawanidade, presentes entre os indivíduos pertencentes à
este grupo. Conhecida e amada entre os jovens okinawanos de Campo Grande, ela
representa a oposição que se faz constante entre os nikkei da cidade. A Ilha, exalta-
da na canção, foi/é historicamente considerada menos importante pela população
naichi, mas reverenciada por aqueles que têm ali sua origem. Nada parecido ocorre
entre os nikkei originários de outras ilhas do Japão (mainland). Não existem, por
exemplo, associações de Honshu ou Hokkaido (outras duas ilhas que compõem o
arquipélago japonês).

Frequentando as pequenas butiques Nikkei de Campo Grande, jamais


encontrei CDs ou vídeos que retratassem outros locais e suas especificidades ou,
que reverenciassem a cultura e as particularidades de províncias específicas. Ao
entrar nestes pequenos comércios ou frequentando os quiosques montados durante
festas e festivais realizados por ambas as associações nikkei na cidade – ou até
mesmo em eventos realizados pela prefeitura – , a quantidade e variedade de produ-
tos comercializados que mostram as características da província de Okinawa é
enorme.

Curiosamente, tais produtos não tratam exatamente sobre as pessoas


da região e/ou suas tradições, mas tratam, explicitamente, da ilha em si, que parece
ser vista pelos indivíduos de origem okinawana como uma entidade. É a ilha que
produz canções ou pessoas. Se voltarmos aos termos do parentesco, a ilha pode
ser vista como a genitora desta população. O solo – ou território –, como veremos
mais adiante, é peça importante na criação do parentesco okinawano, sendo (tam-
bém) através dele que relações são elaboradas entre os membros deste grupo nik-
kei, que se sentem unidos pelo por terem sido gerados através de uma mesma se-
mente, germinada na terra dos ancestrais.

Okinawanidades que constroem sua oposição em relação às outras


ilhas do Japão e que são comparáveis àquelas produzidas em Campo Grande, foi
59

também observada por Matthew Allen na obra “Identity and Resistance in Okinawa”
(2002). De acordo com o autor:

In articulating “Okinawan identity,” the self/other relationship


has been invoked to create a pastiche of images that together form a
less-than-coherent picture of a not-Japan. (...) Identity in Okinawa,
like all forms of identity, is something that has highly flexible geo-
graphical, sociocultural, and political boundaries. It can take the form
of an island’s singular representation within the outer island chain (rit-
tou), in opposition to the mainland of Okinawa (hontou). (ALLEN, M.
Identity and Resistance in Okinawa, Rowman & Littlefield Publishers,
2002, p. 10).

Como podemos notar, existe uma forte pluralidade na população do


Japão que foge completamente à ideia do nihonjinron e da suposta existência de
uma homogeneidade étnica naquele país, ideia esta que foi carregada pelos
imigrantes – pertencentes aos diversos grupos nikkei – para o Brasil. Sendo assim,
ao analisarmos estas populações nikkei na cidade de Campo Grande, acredito que
seja possível afirmar que, ao conceito de japonesidade, que refere-se justamente à
existência de múltiplas possibilidades e formas de ser e de pertencimento nikkei, é
inerente à existência de tensões e conflitos, pois a resistência do grupo okinawano,
por exemplo, demonstra que na própria construção das japonesidades a diferença é
constantemente produzida e ativada por aqueles que compõem ambos os grupos.

Através das diversas japonesidades produzem-se ao mesmo tempo na


cidade, tanto movimentos e relações de exclusão entre os grupos – e que evocam
as tensões já citadas e o preconceito, pois faz parte de seu conteúdo a
multiplicidade e as diferenças, opondo-se firmemente à ideia de homogeneidade –
quanto movimentos e relações de englobamento e unidade, quando os grupos
precisam, de certa forma, se mostrar coesos. O uso do conceito de japonesidades
nos permite, portanto, pensar sobre os grupos nikkei em Campo Grande a partir da
produção de diferenças, em que as variadas formas de ser naichi ou okinawano são
postas em evidência e, por vezes, ocasionando até mesmo em choques entre eles.

A etnografia realizada na cidade de Campo Grande nos demonstra a


todo momento a ativação destas diferentes formas de ser Nikkei, resultando mais
em uma oposição entre os grupos e menos em coesão entre seus membros. Esta
60

oposição, é preciso relembrar, é histórica e sempre se mostrou presente, desde o


momento da anexação de Okinawa ao Japão, até os dias atuais. Para produzir uma
discussão sobre a atualidade destes grupos na cidade, torna-se necessário retomar
alguns pontos de seu passado e histórias.

A declaração do presidente do Clube Nipo, citada anteriormente, deixa


transparecer que a partir de determinado momento, os dois grupos passam a reali-
zar um esforço para que, publicamente, a ideia de uma “colônia japonesa” fosse
transmitida na cidade de Campo Grande. Eventos da cidade realizados com o pro-
pósito de mostrar a cultura e características da cidade e, de certa forma, homenage-
ar aqueles que tiveram participação em sua construção, passaram a apresentar sua
“comunidade nikkei” para toda a população local. Mesmo fora de Campo Grande, o
que se propaga é a existência de um grupo homogêneo na cidade, apesar do co-
nhecimento da população campo-grandense da existência de dois grupos – okina-
wanos e naichi.

Relembro o ano de 2009, quando fui contatada para fornecer minhas


fotos do Bon Odori à comitiva do então governador do Estado de Mato Grosso do
Sul que viajaria ao exterior e procurava por material fotográfico que apresentasse a
cultura campo-grandense (LUNA KUBOTA, 2011). O portfólio com as informações
sobre esta cidade japonizada não contemplariam, entretanto, as características par-
ticulares dos nikkei locais. O Bon Odori seria retratado como a festa japonesa de
Campo Grande, não levando em conta que a festa é realizada pelo Clube Nipo, nai-
chi, e conta com elementos e participação okinawana, o que, de acordo com alguns
de meus interlocutores, era visto como um problema para alguns descendentes de
okinawanos da cidade (LUNA KUBOTA, 2008), especialmente por não concordarem
com a mistura de duas culturas que possuem elementos tão distintos entre si.

Há, portanto, duas formas distintas de ativar as japonesidades na cida-


de. A primeira é construída de maneira a englobar toda a população nikkei da cidade
e destinada aos eventos públicos, realizados ou não pela “colônia”, produzindo uma
japonesidade centrada na ideia de coesão, união e homogeneidade, mesmo que
oculte, abrande, anule ou mascare as diferenças internas existentes entre os grupos.

A segunda forma de construir japonesidades em Campo Grande deriva


justamente desta diferença histórica, o que produz uma ativação muito mais contun-
61

dente da heterogeneidade e evoca a oposição entre okinawanos e naichi na cidade,


tornando visível as particularidades de cada um dos grupos.

No primeiro caso, notamos a produção de uma japonesidade engloban-


te e acolhedora das particularidades de cada grupo e, por isso mesmo, constituída
de tensão, visto que, apesar de englobadas, as diferenças não são apagadas neste
processo de homogeneização. No segundo caso, temos a produção clara de japo-
nesidades constituídas de partes opostas, que nos permite pensar em “naichicida-
des” e uma “okinawanidades”.

A percepção da existência destas formas de produção de japonesida-


des é refletida na escolha do uso das aspas ao tratar sobre “japoneses”. O uso das
aspas remonta, portanto, à uma japonesidade englobante, ativada nos momentos
em que a ideia de unidade precisa ser exteriorizada pelos nikkei da cidade, apesar
das diferenças internas. Existem, portanto, contextos em que toda a população nik-
kei da cidade se posiciona como “japonesa” – mesmo os descendentes de okinawa-
nos – , obliterando, mesmo que superficialmente e temporariamente as particulari-
dades e especificidades de cada grupo.

Assim, em determinados momentos, todos são “japoneses”, pois ape-


sar de suas diferenças internas, “Okinawa agora faz parte do Japão né?”, diz um de
meus interlocutores de origem okinawana, propondo uma generalização nikkei. Afi-
nal, após sua incorporação política ao Estado japonês, os indivíduos originários da
província uchinanchu passaram a ser todos cidadãos japoneses. Este fato é o que
nos permite continuar a falar em japonesidades, mesmo quando se trata de ques-
tões estritamente okinawanas e/ou naichi. Mesmo ao se posicionarem constante-
mente como grupos diferentes, não se trata aqui, da produção por parte da popula-
ção okinawana de uma negação total à sua condição de “japoneses”, mas, da elabo-
ração incessante da diferença, que os opõem aos descendentes de origem naichi
dentro de suas especificidades, mas que de certa forma os une enquanto pertencen-
tes ao Estado nação (KEBBE, 2012).

Verificamos que, apesar da elaboração de uma okinawanidade que se


contrapõe a uma naichicidade, não é possível fugir do conceito de uma japonesida-
de generalista, pois ela se mantem presente – mesmo que mais raramente – em
contextos específicos na cidade de Campo Grande, sendo impossível tratar exclusi-
vamente sobre okinawanidade ou naichicidade isoladamente. Ao pensarmos sobre
62

estas múltiplas formas de japonesidades, que englobam o ser okinawano e o ser


naichi, em dado momento foi preciso refletir sobre minha própria condição nesta
pesquisa. Apesar de minha condição de pesquisadora ser por vezes “esquecida” por
meus/minhas interlocutores(as), eu continuava a ser lembrada como uma mulher
naichi. Como alguém duplamente “de fora” – antropóloga e naichi – a inserção e os
primeiros contatos nem sempre foram fáceis.

As falas de meus informantes, na maioria de origem okinawana, eram


reguladas pela minha própria condição/pertencimento ao grupo oposto. Diferente-
mente do que poderia ocorrer se eu não fosse uma nikkei, a quem os interlocutores
poderiam se expor mais abertamente sobre as relações entre os dois grupos na ci-
dade, sem receios de causar um possível inconveniente ou mal-estar ou, ainda, se
eu fosse uma uchinanchu como eles, com quem possuiriam automaticamente a ilha
como elo, ali eu era vista claramente como o “outro”, o oposto, a quem seria preciso
medir as palavras. Entretanto, apesar de produzirem um discurso em certa medida
controlado pela minha origem naichi, as diferenças continuaram a ser explicitadas
durante todo o decorrer da pesquisa. O próximo subcapítulo pretende uma discus-
são sobre minha inserção e participação dentro da associação okinawana da cidade.

2.3 Nas tramas do crochê – Uma Naichi Na Associação Okinawa


de Campo Grande

 Após meu primeiro encontro com o então presidente da Associação

Okinawa de Campo Grande, obtive sua autorização para realizar visitas regulares ao
clube e passei então a frequentar as reuniões do Fujinkai, o departamento de senho-
ras. Os encontros acontecem às segundas-feiras no próprio clube, reunindo aproxi-
madamente vinte senhoras para aprender, ensinar e trocar experiências com o cro-
chê. Uma “professora”, de origem okinawana, as acompanha semanalmente, ensi-
nando novas técnicas, encontrando erros nas tramas e as instruindo sobre como
63

corrigi-los, além de oferecer seus produtos para venda. Além do crochê, outras ativi-
dades são realizadas por outras participantes no mesmo espaço da associação,
sendo elas danças okinawanas e as artes do kurumie35 e origami36.  

Como forma de entrar em proximidade com essas senhoras e estabe-


lecer ali certo grau de intimidade, passei a frequentar as reuniões. Os encontros são
realizados a partir das 14:30h e seguem até aproximadamente às 18:00h, pois mui-
tas são deixadas ali por seus filhos que depois retornam para pegá-las após o horá-
rio comercial.

Cheguei pontualmente às 14:30h no primeiro dia como aprendiz de


crochê. Como sempre realizam um intervalo no meio da tarde, levei um bolo, reve-
lando meu interesse em fazer parte das atividades do grupo. Ao entrar no salão,
cumprimentei as senhoras que já estavam ali e aguardei o momento da chegada da
professora Maria, que ficou de levar a agulha e linha para que eu aprendesse. Com
barbante, agulha na mão e completamente perdida, uma das senhoras se prontificou
a me ensinar os primeiros pontos, mas logo em seguida foi ajudar uma outra amiga.

Maria vinha esporadicamente me ver e, quase me consolando, dizia


para que eu não desistisse e que eu aprenderia a fazer o crochê. Sem ter consegui-
do fazer nenhuma carreira, o horário do café da tarde chegou. Pontualmente às
16:00h é servido um lanche, com alimentos e bebidas levados pelas próprias partici-
pantes. O mais comum são os pratos de origem “japonesa”, normalmente prepara-
dos por elas mesmas, especialmente para a ocasião. O típico chá japonês era uma
regra em todas as semanas e sempre levado pela mesma obachan37.

Ainda perdida entre linhas e agulhas, durante aquele intervalo procurei


me aproximar das senhoras, que comiam rapidamente para retornarem às suas ca-
deiras e continuarem seu crochê. Após esta primeira tentativa fracassada de me re-
lacionar com as participantes, noto a presença de uma menina em meio aquelas
mulheres. Depois de quase duas horas tentando aprender o básico do crochê, eu, já
frustrada e com fortes dores nas mãos que me impediam até mesmo de mexer meus

35
Kurumie são quadros feitos com montagens de recortes de papéis específicos formando uma figura
pré-determinada.
36
Dobradura em papéis.
37
Termo usado entre os “japoneses” que pode ser traduzido como avó ou tia, referindo-se sempre às
senhoras mais idosas.
64

dedos, decidi que não faria mal relaxar um pouco e me aproximar para tentar ter
uma conversa tranquila com uma criança.

Ana era uma garota de apenas 10 anos de idade e estava ali acompa-
nhando a avó. Logo que a cumprimentei, Ana mostrou interesse pelo meu cabelo.
Na época ruiva, ela me perguntou se eu fazia mechas. Respondi que não, que eu
costumava tingir todo o cabelo. Ela então, me mostra contente sua mecha vermelha.
Minha resposta imediata diante de uma criança com os cabelos tingidos foi questio-
na-la se sua mãe havia aceitado a mudança de cor sem problemas.

Com um tom de desapego, Ana me responde que sua mãe não morava com
ela, pois vivia no Japão. Seu tom de voz e sua expressão facial evidenciavam que
aquela não era uma situação agradável. Pude constatar durante toda a pesquisa de
campo que, especialmente para crianças, nunca é fácil viver longe dos pais, mesmo
estando sob os cuidados de avós, como no caso de Ana. Diante do seu olhar entris-
tecido, não tive coragem para questioná-la sobre seu pai. Logo em seguida a meni-
na relata a presença de seu avô nos Estados Unidos, que sempre lhe envia presen-
tes. “Sempre coisas que eu preciso” explica Ana, que estuda a quinta série na Esco-
la Visconde de Cairu, recebendo especialmente materiais para a escola, como mo-
chila, estojo e outros itens do gênero. Neste momento nossa conversa foi interrom-
pida pelo chamado de uma das senhoras para que retornássemos às atividades.
Ana retornou para o origami e eu para o crochê. A jovem retornava esporadicamente
à associação e quase sempre acompanhada de outras crianças, o que dificultava
um novo contato.

Continuei a frequentar as atividades do Fujinkai e, após algumas se-


manas, pude perceber que a presença dessas senhoras era flutuante. Algumas apa-
recem apenas quando têm dúvidas em suas peças de crochê, outras são assíduas,
tendo este como compromisso não cancelável. Muitas inclusive fazem questão de ir
aos encontros mesmo em vésperas de feriados, ou então remarcam outros com-
promissos, como consultas médicas para outros dias da semana.

Ali, logo notei que o idioma mais utilizado é o japonês e até mesmo o
“uchinago” – dialeto (ou, de acordo com o sr. Jorge, idioma) da província de Okina-
wa - e mesmo com minha presença, poucas fizeram questão, num primeiro momen-
to, de tentar se comunicar comigo em português. A pesquisa de campo, por diversos
65

momentos, tornou-se assim um teste de japonesidade aplicado a mim pelos meus


interlocutores.

A cada primeiro contato com meus informantes, eu, como pesquisado-


ra, passava a ser pesquisada. As questões giravam em torno da minha vida no local,
se eu era da cidade, a qual família pertencia – ou se tinha algum parentesco com
determinadas pessoas. Perguntavam-me sobre o meu sobrenome, percebendo ime-
diatamente que eu não era uma japonesa pura e nem de origem okinawana, mas
uma mestiça, o que levava a discussão sobre o quanto eu conhecia de cultura japo-
nesa e, especialmente, se falava japonês, um indício para a população mais velha,
de maior ou menor proximidade com as tradições orientais.

Pude perceber que ali que eu era considerada por aquelas pessoas
como uma estranha em duplo sentido. Primeiramente, eu era uma intrusa naquele
local por não ser conhecida por aquelas mulheres, que tentavam a todo momento
me relacionar com algum conhecido – especialmente através do meu sobrenome –,
mas quase sempre sem sucesso. Eu não possuía, portanto, outros elos que pudes-
sem me conectar em toda a trama de relações construídas por aquelas mulheres
okinawanas. E, justamente por aquele ser um espaço majoritariamente uchinanchu,
eu, de origem naichi, era encarada mais uma vez como alguém de fora.

É importante lembrar que entre os imigrantes nikkei em Campo Gran-


de, é comum o discurso de que este grupo teria mantido as “verdadeiras tradições”,
independentemente de serem de origem okinawana ou naichi, sendo mais “japone-
ses” que aqueles que nunca deixaram o Japão. Os imigrantes seriam os portadores
da “verdadeira cultura”38, enquanto que no Japão, aquela população teria passado
por tantas transformações que teriam se tornado menos “verdadeiros”, especialmen-
te pela ideia do processo de ocidentalização. Com a minha resposta negativa sobre
o conhecimento do idioma, os comentários eram quase sempre relacionados ao fato
de ser filha de mãe não-descendente, já que às mães cabe o papel de japonizar39 os
filhos e netos (LUNA KUBOTA, 2008).

Mesmo sendo considerada alguém de fora, fui aceita e, de certa forma,


passei então a frequentar os encontros mais como aluna de crochê do que como

38
Expressão nativa
39
Retornarei a esta questão no capitulo 2.5.
66

pesquisadora. Logo em meu primeiro dia de visita ao Fujinkai, um pesquisador oki-


nawano estava lá, realizando sua pesquisa sobre a população okinawana de Campo
Grande. Fui então a ele apresentada pelo sr. Jorge. O pesquisador se mostrou muito
interessado com minha presença e, tentando se comunicar em inglês, me pediu para
que eu respondesse o questionário, referindo-se, pelo pouco que o presidente Ta-
mashiro me informou, sobre o orgulho de ser uchinanchu. Imediatamente tive a par-
ticipação negada pelo presidente, dizendo ao pesquisador que eu não era uma uchi-
nanchu.

Essa situação demonstrou que, neste contexto, apesar de ser uma nik-
kei, não haveria a possibilidade de uma okinawanização por parte de pessoas de
outros grupos. Gil Vicente Lourenção (2011) discorre sobre a produção de “japone-
ses” através da arte do kendō (esgrima japonesa). O autor, sem origem Nikkei, pas-
sa a ser japonizado através da prática desta arte marcial.

Há não-descendentes que se tornam “mais” japoneses que


descendentes, segundo critérios dessas japonesidades múltiplas.
É o caso de Lourenção, que lutando kendō e praticando uma arte
moral japonesa – sob a ótica da japonesidade derivada da pratica
do kendō – tornou-se japonês naquele contexto. Victor Hugo
Kebbe, em sua trajetória de pesquisa, acabou sendo reconhecido
até pelo Estado japonês como, de alguma forma, “próximo” ao
universo japonês. (MACHADO, I. J. R. (Org.). Japonesidades mul-
tiplicadas: novos estudos sobre a presença japonesa no Brasil.
São Carlos: Edufscar, 2011. v. 1. p. 16).

A minha origem naichi, diferentemente dos casos dos pesquisadores


citados acima, não seria esquecida e, sobretudo, minha condição de pesquisadora
por vezes ignorada. Mesmo após ser apresentada às demais participantes do depar-
tamento de senhoras como antropóloga e aluna de doutorado, fazendo pesquisa em
Campo Grande, muitas entenderam que minha presença ali se dava apenas pelo
interesse em aprender a técnica manual do crochê, até porque, de maneira oposta
ao pesquisador okinawano, eu não fazia perguntas contidas em um questionário fe-
chado, bem como elas não precisavam fazer uma fila para participar de uma entre-
vista comigo.
67

Aqueles primeiros minutos foram até mesmo sem muita interação, já


que muitas das senhoras estavam na fila que ia em direção à mesa estrategicamen-
te posicionada, longe dos grupos de crochê ou de dança, especialmente para aquela
ocasião e iam, aos poucos, retornando aos seus lugares em torno da grande mesa
onde o crochê é compartilhado, aprendido e ensinado.

Logo, as primeiras semanas foram então sem aproximação. Eu nunca


havia pego em uma agulha de crochê antes, mal sabia dar um nó na linha, o que
acabou trazendo vantagens e desvantagens nesses primeiros contatos. Elas não
estavam ali para ensinar alguém tão inexperiente, mas sim, para terminar seus pró-
prios projetos manuais. Quase todas estavam focadas em preparar tapetes ou toa-
lhas de mesa para noras e, com o inverno se aproximando, roupinhas de lã para
seus netos. A professora também não conseguia me dar a atenção necessária, já
que as obachans40 eram exigentes e a solicitavam a todo momento.

Foi quando uma senhora, que apareceu somente naquele dia e nunca
mais retornou, aceitou me ajudar após ver meu total desconhecimento sobre tudo
aquilo. Conversamos durante aproximadamente uma hora. Enquanto ela me dizia o
que fazer com a agulha e a linha, eu aproveitava para perguntar-lhe sobre sua vida.

Cristina já se aproximava dos 70 anos de idade, era casada e sem fi-


lhos. De origem okinawana, seu marido era naichi, “japonês mesmo”, dizia ela, refe-
rindo-se mais ao fato, acredito, de que ele havia nascido no Japão e imigrado já
adulto para o Brasil do que por ser naichi. Ela me contou que quando o conheceu,
sua família o aceitou bem, pois apesar de ter sido considerada em sua família como
uma “ovelha-negra”41 em sua juventude, principalmente pelo fato de ter saído cedo
de casa para morar no Rio de Janeiro, seus pais não estavam muito contentes com
o fato de que os outros filhos estavam casando-se com nisseis e gaijins42. Ela ao
menos, em suas palavras, manteria as “tradições”.

Uma outra participante do Fujinkai, Amalia-san, contou-me brevemente


em uma outra ocasião sobre seu casamento. Seu marido, nascido em Okinawa, foi
enviado para que os dois se casassem. Os pais de ambos já se conheciam e enten-

40
Avós.
41
Em suas próprias palavras.
42
No Japão o termo gaijin refere-se aos estrangeiros. No Brasil, a populaçãoo nikkei utiliza o termo
ao se referirem aos não-nikkei.
68

deram que o matrimônio seria adequado. Esse tipo de casamento, conhecido como
miai, era comum no Japão e foi utilizado nas primeiras décadas da imigração nikkei
no Brasil e, como pude constatar mais tarde, tais acordos para realização de matri-
mônios foram muito usados na cidade de Campo Grande.

Durante todo o período em que frequentei as atividades do departa-


mento de senhoras, as conversas foram sempre muito rápidas, não havendo muito
tempo para que pudéssemos discutir mais profundamente sobre suas vidas, pois era
preciso que eu também fizesse minha parte no crochê. Algumas das senhoras, por
exemplo, só passaram a me cumprimentar e a sorrir para mim depois que terminei
minha primeira peça, inicialmente um tapete que, de tão deformado e criticado por
todas que o viam, acabou se transformando em uma bolsa, por sugestão da profes-
sora que, sem dó nem piedade, não continha os risos e gargalhadas ao ver uma pe-
ça tão horrível. Após me ensinar a reutilizar o tapete e, me explicando como costurá-
lo, todas bateram palmas ao ver surgir, finalmente, uma bolsa com aspecto agradá-
vel aos olhos. E assim seguiram-se todas as semanas seguintes. Eu só conseguia a
atenção daquelas senhoras se terminasse meu crochê.

Essas conversas, mesmo que rápidas e superficiais, apontaram algo


que inicialmente não estava previsto ao dirigir-me ao campo e que me foram expos-
tas, ainda mais explicitamente, nos momentos em que fazia as genealogias de in-
formantes e que remetiam ao Koseki-Tohon - Registro de Família Japonês. Pude
notar que o documento é muitas vezes encarado, por esta população, como sinôni-
mo de mais ou menos parentesco. Este fato nos remete novamente à minha partici-
pação naquela associação. A pesquisa de campo foi aos poucos me demonstrando
que, exceto pela condição de casamento, quando é possível de alguma forma (mas
não totalmente) suprimir a naichicidade de um dos cônjuges (como veremos em ca-
pítulos adiante), um indivíduo naichi que não carregue outros gêneros de elos, difi-
cilmente será incorporado ou englobado por uma okinawanidade, como foi o meu
caso. O que se pode observar é que, através do koseki-tohon, ao incluir neste do-
cumento familiar novos membros, é possível, de certo modo, construir determinados
elos de parentesco entre os indivíduos que são posteriormente classificados pela
população okinawana como “meio-parentes”, condição esta, que exponho no tópico
seguinte.
69

2.4 Crochetando Meio-Parentes

Durante minha participação no curso de crochê, enquanto tentava lidar


com as agulhas e barbantes, podia ouvir algumas senhoras que haviam acabado de
descobrir que eram “parentes”, pois possuíam sobrenomes em comum. Aliás, o ter-
mo “meio-parente”43 apareceu diversas vezes em várias situações em que eu estava
presente, seja oficialmente em reuniões da associação, seja em encontros informais
ao acaso, onde estivessem presentes descendentes de okinawanos.

Entre meus informantes, sempre que eu solicitava por novos contatos,


ouvia como resposta a tentativa de contatar determinados indivíduos que poderiam
me ajudar na pesquisa. Quando questionava quem seriam estes possíveis interlocu-
tores, me respondiam que estes seriam “aparentados” ou “meio-parentes”. Um dos
informantes a serem contatados, por exemplo, era “meio-parente” do marido de uma
colega com quem estabelecia contatos na cidade.

O uso do mesmo termo pode ser observado na Associação Okinawa.


Como dito anteriormente, a presença de algumas daquelas senhoras nas reuniões
do departamento Fujinkai não era constante, sendo assim, nem todas conheciam
detalhes sobre as vidas umas das outras. Apesar dos membros da Associação Oki-
nawa de Campo Grande se conhecerem – em maior ou menor grau – muitos indiví-
duos são reconhecidos por seus nomes e/ou sobrenomes, mas algumas vezes pou-
co se sabe sobre suas histórias. Se pensarmos no grande número de descendentes
na cidade, terceira maior agregação nikkei do Brasil, é fácil entender que nem todos
se conhecem profundamente.

Sendo assim, a participação em atividades dos clubes, mesmo que es-


porádica, proporciona novos encontros e, assim, novas relações se estabelecem.
Em uma das conversas que pude observar durante minha participação, presenciei o

43
Categoria nativa.
70

encontro de duas senhoras que se conheciam de vista, mas que nunca haviam con-
versado. Aos poucos, após se apresentarem devidamente informando seu nome e
sobrenome, ambas começaram a falar sobre suas famílias. Quem eram seus filhos e
netos, onde moravam. Uma delas questiona, então, o possível parentesco com um
determinado indivíduo. Com a resposta afirmativa, ela era tia daquele rapaz, ambas
descobriram que o mesmo era casado com alguém da família da outra. Elas se des-
cobriram então, “meio-parentes” e exclamaram: "ah, nós somos meio parentes en-
tão". Em outro diálogo, ouço a discussão sobre um terceiro individuo:

- Você conhece o X?

- Ah, sim, conhece44, ele é meio parente.

O mesmo ocorreu quando, em uma ocasião sem qualquer pretensão


acadêmica e totalmente ao acaso, conheci três irmãs de origem okinawana. Ao con-
versar com estas três senhoras, me lembrei de ter conhecido outras pessoas com o
mesmo sobrenome. Quando as questiono se existiria o parentesco entre elas e esta
outra pessoa, obtenho um sim como resposta, pois “ela é meio-parente”. Este meio-
parentesco seria, de acordo com elas, resultado do casamento de minha conhecida
com um primo daquelas três okinawanas.

Pude perceber que, em diversos espaços da cidade, bem como na as-


sociação okinawana, entre aquelas pessoas há uma noção da existência de certo
elo através, também, de seus sobrenomes. Assim como na prática do crochê, reali-
zado por aquelas senhoras a cada semana e sem faltas, pequenas famílias e laços
são criados mesmo que a proximidade entre elas não seja uma constante. Esses
laços, assim como a técnica que trança linhas ou barbantes, podem ser mais frouxos
ou mais firmes ao se construir uma peça, mas o importante é que eles estejam lá.
Neste caso, possuir o mesmo sobrenome, é dar um pequeno ponto em toda a trama
que constrói estes “meio-parentescos”.

44
Por serem imigrantes e por se comunicarem normalmente no idioma japonês ou okinawano,
muitas senhoras possuem dificuldade em falar o português.
71

Pude notar ao longo do trabalho de campo que esses pontos decorrem,


em geral, da existência de um mesmo sobrenome em comum. A questão da impor-
tância do sobrenome toma uma proporção muito grande entre nikkeis em Campo
Grande, principalmente pela existência do Koseki Tohon. Esse registro é um docu-
mento obrigatório para todo indivíduo nascido no Japão e contém detalhadamente
toda a sua genealogia:

O Koseki Tohon consiste no registro de todo indivíduo nascido


no Japão, englobado numa grande e detalhada árvore genealógica
retratando a partir do hittosha, o primeiro indivíduo homem que
transmite seu sobrenome aos demais, todos os parentes consanguí-
neos e afins, mostrando e datando os casamentos, filhos casados e
solteiros, nascimentos, crianças adotadas e óbitos. (KEBBE, V. H.,
Koseki Tohon e Iê – Metáforas de Família e Nação, mimeo).

Nas conversas que pude acompanhar nos encontros do Fujinkai, pude


notar que, sempre que possível, eram também estabelecidos estes pequenos pon-
tos, ou, na linguagem do parentesco, vínculos, entre aquelas participantes através
de outras pessoas, como sobrinhos de segundo grau, parentes de cunhados(as) e
assim por diante. Sempre havia alguém que ligava aquelas pessoas.

Vemos que é possível contrapor estes dados encontrados durante o


campo com a observação de Vieira (1973), citada anteriormente sobre o parentesco
okinawano no interior de São Paulo, em que demonstra a abrangência dos indiví-
duos descritos como parentes. Vemos, como no contexto campo-grandense, nesses
parentescos ou “meio-parentescos”, o sobrenome constantemente citado, é elemen-
to importante para a ativação destes elos ou “meio-elos”. Entretanto, diferentemente
do que ocorre no caso naichi45 em que o parentesco não é baseado no comparti-
lhamento de sangue mas, primordialmente, no sobrenome de família, no caso oki-
nawano, observa-se que os dois elementos precisam estar presentes ao mesmo
tempo para a criação de possíveis parentes.

Retomando a conversa informal que tive com as três irmãs de origem


okinawana, cito o momento em que me lembrei de uma jovem que havia conhecido
45
Capítulo 01.
72

alguns anos antes. Ela também possuía o mesmo sobrenome que aquele grupo de
mulheres. Neste caso, após indagá-las sobre um possível “meio-parentesco” entre
elas, a resposta foi negativa. Apesar de possuírem o mesmo sobrenome, não existia
ninguém que conectasse aquela jovem como parente ou “meio-parente” daquelas
três irmãs. Existiria no caso okinawano de Campo Grande, portanto, uma junção de
elementos - sangue, sobrenome e solo (ver mais à frente) - que constituem os pa-
rentescos possíveis.

Portanto, se a metáfora ainda é possível, parentes em comum são as


agulhas que “crochetam” os laços de parentesco entre os indivíduos e, assim, a
ideia do “meio-parentesco” vai sendo construída e permeando os diálogos, especi-
almente, entre as senhoras que participam das reuniões do Fujinkai na Associação
Okinawa de Campo Grande.

Dessa forma, acredito que não seja imprudente afirmar nesse momen-
to, que ali se forma uma família, usando inclusive, termos do parentesco para se
referirem umas às outras. Todas chamando-se de onêchan – irmã mais velha ou
algo como “irmãzona”, sem levar em consideração a idade dessas senhoras - e cri-
ando laços, mesmo que temporários. Ali, elas são todas irmãs umas das outras, com
exceção das professoras (de crochê, de dança e das outras artes), que são sempre
denominadas com respeito hierárquico. Mesmo sendo amigas fora daquele espaço
e, convivendo rotineiramente em outras ocasiões, são ali sempre chamadas de pro-
fessoras e mais raramente pelo próprio nome, como no caso de Maria, que ensina a
técnica do crochê. A grande diferença de idade entre ela e as demais participantes –
de no mínimo vinte anos - talvez produza algum tipo de desconforto por parte das
senhoras, que a chamam costumeiramente pelo nome próprio.

O departamento Fujinkai se torna, de alguma forma, um espaço familiar


e de fraternidade, compartilhado por todas aquelas “irmãzonas” que o utilizam tanto
para crochetar novas relações, quanto para falar de suas famílias. Ali, não se cro-
chetam única e exclusivamente tapetes ou outros acessórios para a casa. As rela-
ções no interior de suas próprias famílias são constantemente crochetadas através
dos presentes que são, no espaço da associação, produzidos. Nenhuma toalha de
mesa é feita ao mero acaso, sendo cada peça produzida especificamente para de-
terminados membros da família.
73

Ao longo de toda a pesquisa, noto a especial importância das mulheres


nikkei dentro de suas famílias. Seu papel se torna imprescindível na construção de
japonesidades diversas e nas relações de parentesco. Para discutir este papel das
avós dentro de suas famílias a partir da perspectiva do crochê, proponho um novo
subcapítulo, resultado das muitas conversas presenciadas durante minha participa-
ção nas reuniões semanais da associação okinawana.

2.5 Crochetando Passado e Futuro – Mulheres Okinawanas e Seus netos

Semana após semana, ao me sentar ao seu lado naquela mesma me-


sa, a relação que se estabeleceu acabou sendo outra, para além de pesquisadora-
pesquisadas, mas, em certo grau – apesar de ser uma naichi –, de companheirismo
e ouvinte dos conselhos das sábias obachan, mesmo que sua atenção só se voltas-
se realmente para mim quando eu finalmente conseguia terminar alguma peça, co-
mo um tapete ou uma bolsa. Durante semanas eu era para elas apenas uma jovem
tentando aprender algo para poder aplicar em minha vida após construir “minha pró-
pria família”. Algumas diziam: “você precisa aprender mesmo, porque um dia vai ser
obachan”.

Ser uma obachan para essas mulheres é o destino normal e esperado


para toda “japonesa”. Esse posicionamento evidencia qual é o papel esperado para
as mulheres nikkei, tanto na vida pública da “colônia”, quanto no espaço privado da
família, que pode aqui ser entendido como um desdobramento da vida dessa coleti-
vidade, visto que em determinado nível, são todas “meio-parentes”.

A todo o momento me questionavam quais os motivos de uma mulher


como eu, naquele momento casada, não possuir ainda filhos. Opunham-se ao fato
de que eu havia tomado a decisão de cumprir com meus anseios profissionais antes
de constituir uma família no modelo entendido por elas como “normal”. Uma das se-
nhoras me questionava semana após semana sobre tal escolha, se dizendo triste
74

porque nenhum de seus três filhos haviam ainda lhe dado um neto. Ela não era, por-
tanto, uma verdadeira obachan. Seus filhos também fizeram a escolha pela espera,
para que pudessem ter mais estabilidade em suas carreiras (na medicina e na en-
genharia), mas Yoko-san46 era taxativa, afirmando que “depois dos trinta já é velho,
precisa ter filhos”:

Nádia: mas Yoko-san, eu preciso terminar meu doutorado antes de


ter filhos.

Yoko-San: Depois termina doutorado.

Nádia: Mas se eu terminar depois, como vou criar meu filho?

Yoko-San: Traz que eu cuido!

Nádia: Mas eu tenho vários sobrinhos e sobrinhas.

Yoko-San: Sobrinho não é a mesma coisa. Precisa ter um que é seu.

Ouvindo nosso diálogo, todas as senhoras riram ao ouvir Yoko-san


afirmando que ela mesma poderia cuidar de meu suposto filho. Notei que aquele
parece ser um assunto recorrente para Yoko-san e todas ali conhecem seu desejo
por se tornar uma verdadeira avó. Nessa mesma conversa, tive ainda a oportunida-
de de perguntar-lhe sobre o casamento de seus filhos. Ela rapidamente respondeu
que “chonan47 é casado com japonesa. Okinawana!”, exclamou, com certo orgulho.

Ainda que rápido, neste diálogo com Yoko-san um ponto importante


pode ser observado. De origem okinawana, Yoko-san nos demonstra a importância
do sangue no que se refere a filiação dentro deste parentesco. Como vimos no capí-
tulo anterior, ao contrário do que ocorre no caso naichi, caracterizado pela prática
das diversas formas de adoção de filhos, no parentesco okinawano o sangue é ain-
da uma substância importante na construção de famílias. Sobrinhos, como sugerido
por mim naquele momento de conversa com Yoko-san, não substituem os elos do
que chamarei aqui, consanguinidade direta: pais, mães e filhos.

46
Para determinados interlocutores, uso o honorifico –san, pois é a maneira comum como são
tratados no dia a dia por outras pessoas. Para outros, utilizo apenas seu nome próprio, seguindo esta
mesma logica de denominação.
47
Termo utilizado para designar o filho primogênito.
75

Apesar de todos serem, em certa medida, parentes, especialmente de-


corrente da prática de endogamia elucidada por Tanaka (1977) e por sua relação
com o solo (idem), de acordo com a fala de minha informante, haveria mais ou me-
nos consanguinidade que seria resultado de uma possível diluição do sangue entre
gerações colaterais. Dessa forma, vemos que mesmo partilhando da lógica do ie e
do koseki-tohon, em que o prosseguimento do sobrenome torna-se talvez a questão
mais importante, no parentesco okinawano mantêm-se entre os imigrantes e seus
descendentes a relação derivada a partir da perpetuação do sangue para a prole.
Desse modo, filhos e netos possuem maior parentesco com seus pais e avós do que
um sobrinho, este portador de um sangue mais diluído.

Os netos, tão citados pelas senhoras que participam da associação


okinawana, apesar de aparentemente distantes uma geração dos pais de seus pais,
são os indivíduos que produzem certa plenitude à condição de avós. Nestes casos,
não basta ser mãe. Para completar seu papel dentro da família é preciso que seus
filhos produzam uma nova geração de descendentes. Por isso, para estas mulheres,
torna-se obachan é um momento ansiosamente aguardado, quando deixarão de
crochetar para si e passarão, finalmente a crochetar para seus netos. O crochê, de
certa forma, ativa e alimenta a relação que se constitui entre estas duas gerações.

Aqui, podemos contrapor os dados observados sobre este


“obachianismo”, ou seja, a importância de se tornar uma avó, com a fala de um outro
interlocutor com quem pude conversar sobre as diferenças entre ser okinawano e
ser naichi e, sobre como tais diferenças são importantes para pensar sobre estes
parentescos. Antônio, de aproximadamente 60 anos de idade, é claro ao afirmar que
existe uma diferença entre ser naichi ou okinawano. O elemento primordial, seria
neste caso a religião. No caso uchinanchu não existe, de acordo com ele, uma
religião em si, mas a forte crença nos ancestrais. Pode-se dizer que deus é o próprio
ancestral ou, no caso da existência de um Deus, é o ancestral que faz o elo entre
estes dois mundos.

Antônio me retrata então, a situação de um nascimento. Quando um


novo uchinanchu nasce, alguém mais velho, normalmente mãe ou avó, o apresenta
76

diante do toutoumee48 ao ancestral morto. “A gente fala kwaa-maaga”, diz Antônio


ao explicar essa relação entre filhos recém-nascidos e os mortos.

No documentário Arigatô (2005), um outro depoimento chama a


atenção sobre a questão dos ancestrais. Uma senhora de ascendência okinawana,
professora, conta porque decidiu matricular seus filhos, desde a tenra infância, na
escola de idioma japonês. Segundo ela, seus pais imigrantes pouco falam em
português. Seus filhos, portanto, podem dessa forma se comunicar com os avós
com maior facilidade e encerra sua fala afirmando que “tendo conhecimento da
língua e da cultura, os antepassados se sentiriam gratificados com essa lembrança,
com esse resgate” (Arigatô, 2005, 6’33”).

Aos poucos pude notar o quanto a questão dos ancestrais é importante


no caso okinawano. Mesmo que superficialmente, não são raros os comentários
sobre “o que os antepassados sentem” e como fazer para agradá-los. Okinawanos
então, veneram seus ancestrais, enquanto que a população de origem naichi estaria
mais conectada ao budismo. Esta relação com os ancestrais produz, portanto, uma
ligação entre sangue e solo na construção do parentesco uchinanchu, em
contraposição ao parentesco naichi, mais interessado em relações e sobrenomes.

Outro elemento citado por meus informantes de origem okinawana,


mas nunca mencionado pelos descendentes de origem naichi, é o solo, mencionado
acima. Diversos foram os comentários sobre visitas realizadas à terra dos ancestrais
e até mesmo, sobre o pedido de idosos de serem enterrados no local em que
nasceram. Pedidos estes, raramente realizados, mas que ficaram na memória de
seus descendentes.

Para muitos, é importante que o parente falecido fique perto de sua


família, ou seja, em seu solo e próximo dos próprios ancestrais. Alguns idosos
recorrem ao retorno ao Japão a fim de realizar seu desejo, mas esses casos seriam
uma exceção. No contexto de famílias migrantes, encontra-se grande dificuldade em
cumprir este retorno à terra natal. Entretanto, a fim de tentar sanar este problema na
situação de falecimento, entre as famílias okinawanas é comum que se cumpram

48
Palavra okinawana que se refere ao altar em homenagem aos ancestrais da família. Entre os
japoneses é conhecido como butsudan.
77

certos rituais em datas especificas após a data da morte, para que o ente familiar
descanse finalmente em paz, ao lado de seus ancestrais.

Estes rituais são realizados mesmo entre os descendentes de


okinawanos em Campo Grande, apesar da influência do cristianismo e até mesmo,
em conjunto às missas católicas. Após o falecimento, o velório é ainda realizado de
maneira mais próxima possível de acordo com as antigas tradições. Há o momento
de oferta de alimentos aos antepassados e a doação do koden49 à família. Também
é feito o ihee, uma pequena tábua onde é escrito o nome do ente falecido, que será
queimado no 49° dia após o falecimento, momento em que se realiza o ritual
considerado o mais importante, pois é nesta data que, após a destruição do ihee, a
alma do indivíduo pode finalmente subir ao céu. Para este momento, também é
celebrada uma missa dentro dos padrões do catolicismo, mas, normalmente,
proferida por um padre nikkei e no idioma japonês.

Essa questão da importância da territorialidade pode ser também


verificada durante a pesquisa de campo, quando tive o conhecimento da publicação
de um livro sobre as famílias originárias de Nishihara, Okinawa, que estabeleceram-
se em Campo Grande. De autoria de Edna Kohatsu, dentista na cidade, o livro
resultou de um pedido do prefeito da cidade okinawana em um momento em que
Edna se encontrava na região, trazendo uma listagem de todas as famílias de
Nishihara localizadas hoje em Campo Grande:

No ano de 2001 estivemos em Okinawa-Japão (...). Durante o


diálogo, o prefeito perguntou sobre a possibilidade de elaborarmos
uma lista de descendentes de Nishihara que aqui residem.
(KOHATSU, E. Y I. NISHIHARA-N-CHU – Memorias dos Imigrantes
de Nishihara-Okinawa. 2012, p. 21).

Percebe-se que sangue e solo são elementos ainda presentes entre


descendentes de okinawanos em Campo Grande, fazendo parte do que Antônio
chama de “tradição da família” okinawana. Entretanto, Antônio se mostra reticente e
crítico com relação às próximas gerações, especialmente no que se refere aos ca-
samentos realizados com não-descendentes. De acordo com ele, é preciso que am-

49
Envelope com uma doação em dinheiro.
78

bos os cônjuges tenham sido criados dentro da cultura okinawana. Citando seu pró-
prio casamento, ele relembra que sua mãe foi criada dentro dos moldes uchinanchu,
mas que é necessário que a esposa também o seja, pois é ela quem vai passar os
costumes e tradições aos filhos e netos.

Com certo saudosismo, a solução para que as tradições não fossem


perdidas e continuassem a ser passadas às novas gerações, seria, de acordo com
Antônio, que tivesse sido mantida a prática do miai no Brasil. Apesar de realizado
nas primeiras décadas de imigração, o casamento organizado por pais foi abando-
nado e as novas uniões têm sido, desde então, escolhidas pelos próprios noivos.

Nota-se que, se antes, as noras e genros eram escolhidos pelos pais,


que decidiam como se constituiriam as novas famílias, agora, ao se adquirir o direito
de escolher os próprios cônjuges, a forma como sogros e genros/noras se relacio-
nam poderia também se transformar. Dessa forma, se anteriormente não existia a
necessidade de “familiarizar” o novo membro da família, atualmente é preciso tornar
este novo indivíduo em um parente, até mesmo naichicizando-o ou okinawanizando-
o.

Assim, observou-se que, além das relações das avós com seus netos,
as relações de sogras e noras também é ativada pelas peças de crochê que são
constantemente utilizadas por estas senhoras para presentear as esposas de seus
filhos. O mesmo não ocorre, entretanto, quando se trata de genros. Em todo o perí-
odo em que participei das reuniões, nunca ouvi sobre presentes para esposos de
suas filhas.

Sylvia J. Yanagisako (1985) discorre sobre a questão de gênero entre


imigrantes japoneses no Estados Unidos e sobre como ele é reproduzido dentro da
família nikkei, sendo as mulheres as responsáveis pela vida doméstica e os homens
pelo o que está fora da casa. Se retomarmos minha presença dentro da associação
okinawana de Campo Grande, veremos adiante que, enquanto mulher, eu era vista
por aquele grupo de senhoras como alguém que deveria se preparar para o papel
dentro de minha própria família, para realizar as funções concernentes a uma mãe e,
consequentemente, avó nikkei que, futuramente, repetiria o ciclo de transmissão das
tradições às minhas gerações futuras.
79

Desse modo, no que se refere à educação das gerações nascidas no


Brasil e, mais particularmente em Campo Grande, é importante a reflexão sobre
como ela ocorre dentro da família nikkei em geral. Durante a pesquisa de mestrado
foi possível perceber o quanto das japonesidades passam, diretamente, pelas
mulheres. Elas, sempre vistas como inferiores ou subordinadas ao poder do pai e,
posteriormente, do marido, são as grandes responsáveis na construção destas
japonesidades.

De acordo com Sakurai (1993, p. 93), são as mulheres que “exercem


como ninguém o espírito do gambarê”, termo que expressa a ideia de que um
indivíduo deve suportar todas as adversidades sem reclamar. Aceitação resignada
do “destino”. É considerado também força e disposição para seguir adiante. Seu
sentido, no Brasil, é traduzido pela necessidade de trabalhar ao máximo, para
economizar também ao máximo (Id. Ibid., p. 52). São elas também que sofrem mais
de perto as agruras das diferenças culturais:

Têm que adaptar a alimentação ao gosto da família, cuidam


das roupas com os recursos que dispõe, criam os filhos e ainda
trabalham na lavoura para ajudar o marido. (SAKURAI, 1993, p. 93)

Uma família “mais” ou “menos” “japonesa” – seja ela naichi ou


okinawana – está diretamente ligada à presença de uma mulher nikkei (imigrante ou
descendente) como educadora das crianças. São elas que ensinam o idioma (sendo
ele usado amplamente entre os membros da família, ou mesmo apenas utilizando-se
de expressões e palavras), que cozinham ou que levam os filhos e netos às
associações para realizarem atividades consideradas como tradicionais. Por isso os
testes de japonesidade aplicados a mim durante minha pesquisa não podem ser
considerados ao acaso e, a minha maior ou menor japonesidade estaria, segundo as
minhas interlocutoras, relacionadas ao fato de ser filha de mãe não-nikkei.

Desse modo, podemos observar que as mulheres japonesas, como


responsáveis pela casa e pela família, são também responsáveis pela transmissão
das tradições aos seus descendentes, pois possuem o importante papel de
socializadoras das crianças – filhos e netos. Isso é resultado da própria situação de
dominação que sofrem quotidianamente. Como estão mais entrelaçadas ao mundo
80

doméstico que os homens, acabam adquirindo a função de dar continuidade às


tradições, aos costumes e à cultura nipônica.

Ribeira (2011, p. 108-109) nos traz uma importante reflexão sobre


como o papel das mulheres nikkeis é visto dentro da família. Enquanto educadora e
socializadora de filhos e netos, recai sobre elas toda responsabilidade por ter
“criado” um filho homossexual:

Dentro deste contexto, a revelação da homossexualidade do


filho pode ser interpretada como um distanciamento dos interesses e
do projeto familiar, e ainda pode ser visto, principalmente pela mãe,
como uma derrota pessoal nas suas tarefas de produzir sujeitos
adequados e da manutenção da família. (RIBEIRA, F., 2011, p. 109

Diante da diferenciação entre o espaço público e privado, nota-se que


as mulheres nikkei, responsáveis pelo espaço doméstico, acabam também tendo
uma grande inserção nas associações. A presença masculina nestes espaços, ao
contrário, ocorre de maneira bem mais reduzida. Apesar da direção destes clubes
estar sempre nas mãos dos homens, reproduzindo de certa maneira o modelo de
hierarquia encontrado no Japão, quem dá realmente vida às atividades ali realizadas
são as mulheres. Diferentemente dos homens, as mulheres estão muito mais
envolvidas com as atividades das associações e clubes nikkei na cidade de Campo
Grande, o que possibilita que se mantenha vivo o interesse dos descendentes mais
jovens em conhecer e participar de eventos e atividades culturais de origem nikkei.

De acordo com os relatos obtidos em minhas entrevistas, também pude


notar que as mulheres não só são as responsáveis pela continuidade de
determinadas tradições “japonesas”, mas também são aquelas que mantêm a
“família unida”. São essas mulheres, as obachans, que reúnem filhos e netos aos
domingos durante o almoço familiar. Após o falecimento das avós, é comum o
afastamento de outros membros da família:

Quando minha avó era viva, era todo domingo, todo


domingo. Ai ela faleceu e dispersou. Ela faleceu em 2006.
(Depoimento de Joana, uma jovem sansei de 27 anos).
81

As mulheres orientais constituem, portanto, as peças de resistência


que possuem o importante papel de nutrir nas gerações mais jovens as tradições e
costumes nikkei, apesar dos cento e seis anos em que esse grupo construiu sua
vida no Brasil. Neste ponto, não é possível fazer uma diferenciação entre mulheres
de origem naichi e okinawanas. Ambas são, dentro da família, as grandes
responsáveis por passar adiante o que aprenderam com suas próprias mães e avós.
Vemos, desse modo, a importância do papel exercido pelas mulheres dentro da
família nikkei em Campo Grande, especialmente no que se refere à construção de
japonesidades entre os descendentes, sejam eles naichi ou okinawanos. Neste
sentido, nota-se que dentro do grupo nikkei, é a mulher, futura obachan, quem
assume a educação dos filhos e netos, formando-os dentro das tradições e
passando adiante tudo o que foi aprendido.

No caso campo-grandense, pelas falas de meus interlocutores aqui


expostas e, aliadas à pesquisa documental com análise de registros de casamento,
foi possível perceber as transformações ocorridas ao longo das últimas décadas no
que se refere à composição da família nikkei na cidade e, mais especificamente,
como se constroem – ou não – o parentesco entre os dois grupos nikkei localizados
em Campo Grande.

Quais seriam, então, as configurações das novas famílias nikkei em


Campo Grande, quando há o direito à escolha dos companheiros? Após um longo
levantamento documental, foi possível descobrir mais sobre as transformações
ocorridas na produção de família e parentesco na cidade. No capítulo seguinte
exponho os dados colhidos no cartório de Campo Grande. Dados estes que
tornaram possível refletir sobre as famílias nikkei da cidade e sobre como os
casamentos vêm sendo constituídos ao longo do tempo.
82

3. Registros de Casamentos - Histórico das Famílias


Nikkeis em Campo Grande

Uma das propostas desta pesquisa era a de construir genealogias de


famílias japonesas/okinawanas na cidade, bem como realizar consulta aos registros
públicos de casamentos documentados em cartórios locais. Optei assim, por iniciar
as investigações pelas certidões de casamentos. Os matrimônios eram efetuados no
Cartório do 2° Oficio Santos Pereira, e assim se mantém até os dias atuais50, sendo
o primeiro ponto principal de coleta de dados.

Definidas as etapas (pesquisa documental, participação na Associação


Okinawa e entrevistas/genealogias), a primeira parte da pesquisa de campo foi reali-
zada através de diversas viagens à cidade entre os meses de fevereiro de 2011 e
junho de 201251. Após o período de estágio doutoral no exterior de fevereiro à outu-
bro de 2013, voltei ao campo entre os meses de fevereiro e maio de 2014 para, en-
fim, finalizar a busca por mais dados.

Contrariando as minhas expectativas, o contato com a pessoa respon-


sável pelo cartório se estabeleceu de forma muito mais complicada do que o espe-
rado. Foram diversas visitas ao local tentando uma aproximação com a tabeliã, que
sempre estava ausente ou ocupada demais para me atender.

Após várias idas em vão, consegui ser por ela recebida. Como a pro-
posta era consultar os primeiros registros de casamentos entre japone-
ses/okinawanos na cidade, a tabeliã se recusou a permitir minha entrada e, conse-
quentemente, à consulta aos dados, pois segundo ela, esse material é mantido com
extremo cuidado, visto sua delicadeza devido ao seu tempo de existência. Somente
uma pessoa no cartório é autorizada a manipular tais papéis, utilizando de técnica
50
A partir de 1965 outro cartório da cidade, o 9° Cartório de Registros passa também a documentar
matrimônios.
51
Em fevereiro de 2014, retornei ao campo para a coleta de mais dados no referido cartório.
83

adequada para que maiores desgastes ou danos sejam evitados. Como essa pes-
soa também era responsável por outras funções naquele local, não haveria possibi-
lidade de que eu ocupasse seu tempo.

Após muita conversa, finalmente a tabeliã me informou que há alguns


anos um pesquisador da cidade, chamado Celso Higa, de origem okinawana, vem
coletando os mesmos dados que eu procurava. Ela me informou seu nome, mas não
me indicou qualquer contato ou maneira de encontrá-lo.

Passei então a procurar por esse pesquisador. Como também estava


iniciando os primeiros contatos com membros da Associação Okinawa, sempre que
possível perguntava se alguém teria maiores informações sobre ele. Tais informa-
ções eram sempre muito superficiais. Sabiam me dizer o que ele fazia, mas nunca
algum número de telefone ou endereço que me permitisse localizá-lo. Até que em
uma conversa totalmente informal em um salão de beleza - onde eu fazia contato
com as proprietárias de origem okinawana - com uma designer de interiores (não
descendente), cujo marido o conhecia, descobri que poderia existir uma forma de
contata-lo através do Arquivo Histórico de Campo Grande. Conhecido como ARCA,
o instituto reúne os arquivos históricos da cidade, como documentos e fotografias,
além de convidar memorialistas para escreverem sobre momentos ou personagens
históricos de Campo Grande na revista publicada anualmente pelo instituto. É ali que
Celso Higa publica seus artigos, que tratam desde a presença nikkei na cidade, até
curiosidades envolvendo sua paixão por samba e gibis.

Ela se prontificou a me levar até a ARCA e ali, finalmente, consegui


seus números de telefone. Além de seu contato, descobri neste mesmo salão infor-
mações sobre uma outra pesquisadora da cidade, Edna Kohatsu, cirurgiã dentista
nascida no Estado de São Paulo, de origem naichi e casada com um okinawano,
que há alguns anos vem escrevendo sobre a trajetória de “japoneses” na cidade.
Consegui seus telefones e e-mails de forma bem mais simples que o caso anterior.

Edna e Celso não possuem formação específica em pesquisa, mas são


assim denominados por outras pessoas da cidade pelo fato de escreverem sobre
suas próprias experiências ou hobbies. Após realizar o primeiro contato por telefone
com Celso, ele trata sobre o assunto e me conta que decidiu pedir para que o de-
nominassem como pesquisador, pois muitos se referiam à ele como historiador.
84

Como não tem essa formação, sendo na verdade economista e engenheiro, sentia-
se desconfortável com tal classificação.

Neste mesmo primeiro contato, Celso Higa se prontificou a encontrar-


se comigo pessoalmente para que pudéssemos conversar sobre minha pesquisa.
Com certa desconfiança em um primeiro momento, após entender o propósito do
projeto, aceitou que eu consultasse os registros de casamento que ele havia recolhi-
do até o momento no cartório de Campo Grande. Celso abriu as portas de sua casa
para que eu pudesse analisar todos aqueles dados.

Para o recolhimento destes dados foram necessárias diversas visitas à


sua residência, pois era preciso intercalar tais visitas com outros encontros e com a
participação na Associação Okinawa de Campo Grande. Com esses dados foi pos-
sível construir uma visão preliminar da imigração japonesa/okinawana na cidade,
bem como quem eram essas pessoas. Estes primeiros registros possuem elementos
importantes, como profissão, idade, local de nascimento e local de residência dos
pais dos cônjuges no momento da união.

Os primeiros dados recolhidos através da pesquisa de Celso referem-


se aos casamentos realizados no período de 1921 a 1960, contabilizando 322 ma-
trimônios na cidade de Campo Grande. Posteriormente retomei o contato com a ta-
beliã do cartório e, por solicitar os registros de casamento mais recentes, obtive sua
autorização para acessar tais arquivos. Nesse segundo momento de pesquisa do-
cumental, recolhi 100 documentos referentes à cada década entre 1980 e 2000.
Também realizei a pesquisa com os registros de casamento de 2010, somando qua-
se 400 uniões, entretanto, no que se refere a esta década, foram recolhidas 86 certi-
dões. Esse número, mais baixo do que o esperado, foi resultado da dificuldade em
encontrar novas uniões de descendentes de nikkeis na cidade de Campo Grande, o
que demonstra uma diminuição de casamentos de nikkeis na cidade e que parece
estar relacionada ao movimento decasségui, iniciado no início dos anos 1990. Uma
análise mais detalhada sobre essas uniões matrimoniais serão apresentadas em
capítulo onde trato sobre as famílias nikkeis na cidade de Campo Grande.

A partir desses registros foi possível descobrir que o primeiro casamen-


to nikkei estabelecido na cidade data de 08 de junho de 1921, sendo ambos os côn-
juges imigrantes Okinawanos. Vale ressaltar que os dados a que tive acesso nesta
primeira fase de pesquisa documental foram colhidos de segunda mão, fruto da
85

pesquisa de Celso e, por isso, as anotações e detalhamentos dos registros variam


de acordo com a época em que ele teve acesso ao cartório. Em alguns casos, por
exemplo, há detalhes bem específicos sobre o local onde nasceram as pessoas, em
outros, consta-se apenas o país de nascimento. Para sanar tal questão, como recur-
so para desvendar a origem daqueles indivíduos (enquanto okinawanos ou naichi),
apoiei-me na análise dos sobrenomes.

Antes de se tornar província do Japão, Okinawa era um reino indepen-


dente e possuía sua própria língua e sobrenomes muito característicos, e que per-
manecem assim até os dias atuais. Eu mesma, enquanto descendente nikkei, co-
nhecia algumas das características que indicavam ser um sobrenome japonês ou
não. Entretanto, para não correr riscos ao contar somente com a minha própria per-
cepção de nomeação, recorri à imigrantes e descendentes da província de Okinawa,
que poderiam me auxiliar nesta tarefa.

Com as informações necessárias sobre o local de origem daqueles


primeiros cônjuges, foi possível, então, identificar o segundo casamento em Campo
Grande, que data de 11 de março de 1922, com cônjuges também nascidos no Ja-
pão, sendo o noivo de origem okinawana e a noiva de origem japonesa e o terceiro
casamento que só foi realizado sete anos mais tarde, em 23 de outubro de 1929,
sendo o cônjuge masculino nascido em Nagano, província localizada na ilha de
Honshu e a noiva brasileira, sem origem nipônica. Assim, dei continuidade a toda a
pesquisa documental, colhendo os registros e averiguando a origem de cada cônju-
ge a partir de seus sobrenomes. Este capítulo destina-se, portanto, à análise de toda
a documentação encontrada referente aos casamentos nikkei na cidade de Campo
Grande.

3.1 Famílias Nikkei em Campo Grande – de 1920 aos dias atuais


86

Ao longo das últimas décadas, apesar do grande número de pesquisas


realizadas sobre imigrantes nikkei no Brasil, muito pouco se fala sobre esse grupo
imigrado na cidade de Campo Grande, hoje a terceira maior colônia nikkei do país.
Menos ainda se fala sobre como essas pessoas pensam o parentesco e quais as
estratégias para a criação de novas famílias, levando-se em conta que o local possui
dois grupos considerados tão diferentes entre si.

Entre as informações contidas nos registros, consta o local de


nascimento de cada cônjuge, entretanto, devido à grande quantidade de
descendentes, foi preciso estabelecer formas de identificar a origem desses
indivíduos. A minha experiência em campo durante o mestrado me mostrou que a
análise dos sobrenomes poderia ser a ferramenta necessária para a identificação da
origem dessas pessoas. Isso porque meus interlocutores me diziam a todo momento
que “pelo sobrenome a gente sabe quem é”. Eu mesma era rapidamente
classificada como naichi assim que respondia qual era o meu nome completo.

Com o passar do tempo, passei então a notar algumas características


nos sobrenomes okinawanos que me permitiam saber em grande parte dos casos
“quem era o quê”. Segui então para a análise de tais sobrenomes e fiz uma
separação entre originários de okinawanos e originários de japoneses. Em seguida,
na tentativa de garantir que os dados por mim coletados haviam sido corretamente
analisados, recorri ao ex-presidente da Associação Okinawa de Campo Grande para
que ele pudesse averiguar quais seriam as famílias japonesas e quais seriam as
okinawanas.

De acordo com ele, dos 322 casamentos coletados nesse primeiro pe-
ríodo, 40 constavam um dos cônjuges com sobrenomes não identificáveis, pois es-
tes seriam utilizados por todo o país. Segui então para a contraposição entre as
classificações listadas por ele e os dados contidos nos próprios registros de casa-
mento. Em grande quantidade de casos (mas não em 100% deles), além do país,
estava listada também a província de origem dessas pessoas. Percebi, então, que
alguns sobrenomes eram por ele classificados como de origem japonesa, ao contrá-
rio do que informavam os registros.

Essa situação me indicou que, assim como ocorre no caso do fenótipo


– mais uma vez, de acordo com diversos dos meus interlocutores, existiria uma fisi-
onomia própria que distinguiria japoneses de okinawanos - somente através dos so-
87

brenomes não é possível, em parte considerável dos casos, saber, afinal, “quem é o
quê”. Essa dificuldade em distinguir os sobrenomes e, consequentemente, os indiví-
duos que os portam, é decorrente de duas questões importantes e que se relacio-
nam entre si. A primeira questão diz respeito à existência de sobrenomes iguais,
registrados por todo o Japão, incluindo a província de Okinawa. Ou seja, há sobre-
nomes encontrados por todo o país, mas que se referem à grupos e famílias distin-
tas entre si. Este fato nos leva à segunda questão e que se refere às semelhanças e
diferenças existentes tanto na grafia, quanto na pronúncia de nomes e sobrenomes
okinawanos e japoneses. Em um caso específico encontrado durante minha pesqui-
sa de campo de mestrado, conheci um senhor, imigrante okinawano, que havia sido
registrado no Japão, de acordo com a grafia okinawana, completamente diferente do
que estamos habituados a encontrar no grupo japonês. A pronúncia, entretanto, re-
metia a uma sonoridade mais japonesa. Ao se fixar em Campo Grande, passou a
escrever seu nome de acordo com a língua japonesa. Pude ouvir diversos comentá-
rios sobre imigrantes okinawanos que propositalmente mudaram seus registros ao
chegarem na cidade, para que seus sobrenomes ficassem mais parecidos aos so-
brenomes naichi.

Não é raro ouvir sobrenomes dúbios, em que não é possível uma iden-
tificação clara e até mesmo sobre suas origens enquanto nikkeis ou não-nikkeis. Du-
rante a coleta dos registros de casamento, em alguns casos me deparei com sobre-
nomes que não pude identificar num primeiro momento. Já tendo conhecimento so-
bre certidões de nascimento realizadas com alterações de grafia, optei por procurar
nestes documentos, elementos que pudessem fornecer mais informações, como a
existência dos nomes dos pais e avós, seus locais de nascimento, utilizando, até
mesmo, da análise dos sobrenomes das testemunhas. Ao analisar tais certidões de
casamento foi possível notar, especialmente até a década de 1980, que o comum
entre os nikkeis da cidade era convidar padrinhos e madrinhas que faziam parte do
mesmo grupo de origem. Vale ressaltar que nos períodos seguintes, a partir de
1990, a situação se altera e, como testemunhas de casamentos nikkeis encontram-
se pessoas das mais diferenças origens, bem como pude verificar que não-nikkeis
convidam frequentemente padrinhos e madrinhas de origem “japonesa” para seus
matrimônios.
88

Além disso, sabe-se que nas primeiras décadas de imigração nikkei pa-
ra Campo Grande (e em todo o Brasil), sobrenomes foram alterados pelo desconhe-
cimento por parte de funcionários de cartórios que não compreendiam os imigrantes
e vice-versa. Através de uma conversa informal, relataram-me o fato de que um se-
nhor, hoje já idoso, foi registrado por seu pai como mulher. De acordo com minha
interlocutora, o pai, que quase não falava português, não soube responder à questão
sobre o sexo do bebê. Após lhe perguntarem se era menino ou menina, ele apenas
balançou a cabeça e o escrivão compreendeu que seria a última opção por ele colo-
cada. Ainda é preciso lembrar que, imigrantes nikkei, assim como outros povos, ao
falarem português, utilizam normalmente o gênero masculino ao se referirem a ou-
tras pessoas.

Alguns possuem consciência de sua dificuldade na pronúncia e com-


plementam suas informações dizendo, por exemplo, “filho homem” ou “filho mulher”
quando falam de seus filhos e familiares. Em outras situações, para sanar essa dú-
vida ao conversar com meus informantes, optava por lhes perguntar o nome de cada
indivíduo a todo momento, para que fosse possível saber realmente de quem eles
falavam.

Apesar de todas as ferramentas utilizadas para identificar corretamente


todos os indivíduos encontrados nos registros de casamento efetuados em Campo
Grande, alguns casos continuaram sem solução. Optei, então, por considerar em
determinados momentos, em que é preciso uma maior exatidão nas informações,
apenas os registros de casamento em que é possível identificar claramente a origem
destas famílias. Apesar desta não ser uma pesquisa de cunho quantitativo e do uso
de gráficos ser pouco frequente na antropologia, recorro a essa ferramenta como
forma de proporcionar uma visualização dos casamentos oficiais 52 e, assim,
contrapor tais informações aos dados referentes às famílias nikkei no Brasil.

Os cinco primeiros gráficos expostos a seguir referem-se a todos os


322 casamentos registrados e colhidos durante a pesquisa documental, pois neste
primeiro momento não realizo a separação entre okinawanos e naichi, mas sim entre
nikkeis e não-nikkeis. No gráfico que se segue (gráfico 1), por exemplo, são verifica-

52
Digo oficiais, pois não se pode, através dos registros de casamentos, ter conhecimento sobre as
uniões matrimoniais realizadas, mas não documentadas.
89

dos os números de casamentos registrados no cartório da cidade no período de


1920 a 1960. É importante ressaltar que, neste primeiro gráfico, foi realizada a con-
tabilização de casamentos por década, entretanto, excepcionalmente em 1960, o
baixo número de casamentos não reflete, necessariamente, um decréscimo de uni-
ões, mas é explicado pelo fato de terem sido recolhidos os matrimônios apenas des-
te ano. Como minha entrada no cartório de Campo Grande não havia sido autoriza-
da, estes foram os dados que obtive através do contato com o pesquisador Celso
Higa, tendo ele colhido os casamentos apenas até o ano de 1960.

Fonte: Celso Higa, 2012.


90

De acordo com as referências bibliográficas sobre os primeiros anos de


imigração “japonesa” para o Brasil, os imigrantes que aqui chegaram vieram em
famílias já formadas. Isso nos responde, de certa maneira, a questão sobre o baixo
número de casamentos realizados até a década de 1940, quando os filhos daqueles
imigrantes começam a efetuar matrimônios na cidade. Outros dados que nos
indicam que esses são casamentos realizados pelos nissei surgem ao analisarmos o
local de nascimento desses cônjuges.

Entre todos os 322 homens de origem nikkei casados entre 1920 e


1960, 65% nasceram em solo brasileiro (209 homens), enquanto 35% (113 homens)
eram imigrantes, nascidos no Japão (gráfico 02). Outro dado que corrobora que
essa população masculina de esposos seria a segunda geração de imigrantes na
cidade é a naturalidade. Entre os 209 homens nissei, ou seja, nascidos no Brasil,
79% deles nasceram no Estado do Mato Grosso do Sul (gráfico 03).

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2012.


91

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2012.

Entre as mulheres pode-se verificar que os dados são semelhantes aos


dos homens, em que a grande maioria é de indivíduos nissei. Dentre as 322 espo-
sas, 88% (ou seja, 283 mulheres) delas nasceu no Brasil e apenas 12% (39 mulhe-
res) eram de mulheres “japonesas” imigrantes (gráfico 04). Outro dado que pode ser
verificado na análise destes registros de casamento refere-se à região de nascimen-
to. Das 283 mulheres de segunda geração, casadas entre 1920 e 1960, 70% nasce-
ram no Estado do Mato Grosso do Sul, o que nos mostra mais uma vez que houve
uma imigração dirigida para a região de Campo Grande, onde as famílias nikkei se
estabeleceram logo após chegar ao Brasil. Entre as outras esposas, 21 % nasce-
ram em outras regiões do Brasil e 09% não eram de origem nipônica (gráfico 05).
92

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2012.

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2012.


93

Após a depuração dos dados apresentados, foi possível conhecer mais


sobre o universo de cônjuges homens e cônjuges mulheres de origem Nikkei. A eta-
pa seguinte foi direcionada para a análise dos sobrenomes, para que fosse possível
desvendar e compreender mais sobre as relações entre okinawanos e naichi na ci-
dade de Campo Grande.

Como dito anteriormente, alguns dos sobrenomes não puderam ser


identificados por mim ou por meus interlocutores, entretanto, o universo de indiví-
duos “desconhecidos” foi muito pequeno (dos 322 casamentos, apenas em 41 deles
não foi possível a identificação de um dos cônjuges através de seus sobrenomes),
sendo 281 contabilizados nos gráficos a seguir, o que não trouxe problemas ao se
verificar como eram realizados os casamentos na cidade daquele período.

Na tabela e no gráfico abaixo (tabela 01 e gráfico 06) são explicitadas


todas as 281 relações de casamentos identificadas e encontrados no período que
vai de 1920 até 1960 em Campo Grande:

Tabela 01 – Variáveis de Casamentos entre 1920 e 1960

Tipos de Casamentos Total de Casamentos

Homens Okinawanos com Mulheres Okinawanas 232

Homens Okinawanos com Mulheres Japonesas 06

Homens Okinawanos com Mulheres Não-Nikkei 13

Homens Japoneses com Mulheres Japonesas 11

Homens Japoneses com Mulheres Okinawanas 07

Homens Japoneses com Mulheres Não-Nikkei 09

Mulheres Okinawanas com Homens Não-Nikkei 01

Mulheres Japonesas com Homens Não-Nikkei 02

TOTAL DE CASAMENTOS 281

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota


94

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota

Através destes dados pode-se verificar que, durante as primeiras dé-


cadas após o momento de chegada e fixação dos primeiros imigrantes “japoneses”
em Campo Grande, os casamentos eram realizados majoritariamente dentro do pró-
prio grupo nikkei, até mesmo por conta da existência, ainda que tímida, da prática do
miai até aquele momento.

É interessante notar que, na cidade de Campo Grande entre as


décadas de 1920 e 1960, tanto homens okinawanos quanto naichi, casaram-se mais
95

com mulheres sem ascendência oriental, do que com esposas de origem nipônica
diferente das deles.

Seja por preferência dos cônjuges ou pela escolha realizada pelos pais,
estes que realizavam entre si acordos de casamentos para seus filhos, relações
conjugais entre os dois grupos de “japoneses” eram, em certa medida, evitadas para
a construção de novas famílias.

Se retomarmos a questão histórica desses dois grupos, tanto no Japão


quanto no Brasil, pode-se notar que as diferenças entre estes “japoneses” estava
fortemente presente entre os imigrantes, especialmente se levarmos em conta duas
questões importantes: 1) a anexação da província de Okinawa de maneira
conturbada ao território japonês – no final do século XIX, ou seja, pouco tempo antes
do movimento migratório para o Brasil ter sido iniciada em 1908 - e 2) os conflitos
que se seguiram após a II Guerra Mundial - quando a população campo-grandense
originaria de Okinawa foi considerada como “derrotista” pelos demais nikkeis na
cidade.

Mas essa diferenciação e desclassificação da população uchinanchu


não era uma novidade. O texto de Mori (2003, p. 50) relembra momentos da
imigração para o Brasil, quando a vinda de okinawanos era controlada em
quantidade, pois eram considerados os responsáveis pelos problemas enfrentados
pelos imigrantes japoneses no Brasil (como as fugas das fazendas cafeeiras):

Considering that there are few problems involving mainland


japanese migrants and that there are many involving okinawa
migrants, we are forced do question the suitability of okinawan
characteristics for selection (as immigrants). With regards to their
ways and custom, mainland japanese migrants suffer from their
association with okinawans who have (1) a high rate of false families
[nise kazoku], (2) culinary inferiority, (3) uncleanliness of living
quarters, (4) uninhibited display of nudity, and so on” (Report to the
foreign ministry from vice-consul Misumi Yozo, branch office chief at
the Consulate General of Japan in Ribeirão Preto – March 15th,
1918). (MORI, K. 2003, p. 50).

Já no período após o término da Segunda Guerra Mundial, a divisão


dentro do grupo nikkei e a classificação da população okinawana como “derrotista”
96

foi acirrada em consequência das diferentes formas encontradas pelos dois grupos
em atuar em relação aos que encontravam-se no Japão. Imigrantes e descendentes
da província de Okinawa, uma das regiões mais afetadas durante a guerra,
decidiram se organizar afim de enviar ajuda e suporte àqueles que haviam
enfrentado de perto todo o conflito, o que culminou com a separação em duas
associações distintas em Campo Grande, como vimos no capítulo 2.

Analisando os documentos civis de casamentos, podemos notar que


até a década de 1960 as diferenças entre os dois grupos eram fortemente marcadas
na cidade e coincidem com baixos números de matrimônios entre okinawanos e
naichi, sendo dada preferência tanto por parte de homens quanto de mulheres, por
uniões dentro do próprio grupo ou, ainda, com cônjuges sem origem nikkei. Durante
40 anos, dos 281 casamentos encontrados e com cônjuges identificados com
relação à sua origem, apenas 13 foram realizados entre japoneses e okinawanos.
Sem abandonar os outros 41 casamentos em que não foi possível identificar a
origem okinawana ou não-okinawana dos cônjuges, ressalto que 10 destas uniões
foram consumadas entre cônjuges nikkeis e não-nikkeis, o que diminui ainda mais o
espectro de relações matrimoniais entre os dois grupos nikkeis campo-grandenses.

Mas e nas décadas atuais? Cinquenta ou sessenta anos depois, essa


diferença tão marcada entre os dois grupos estaria ainda presente entre a população
nikkei de Campo Grande? Esse questionamento me levou a buscar novamente no
cartório da cidade pelos registros mais recentes, para que pudesse realizar uma
contraposição de dados entre as gerações. Retomei então a pesquisa documental.
Como o último registro coletado havia sido de 1960, optei por procurar pelos
casamentos realizados a partir de 1980 até os dias atuais, pra que fosse possível
uma visualização das relações entre nikkeis ao longo dos anos. Para tanto, os
registros de casamentos foram coletados da seguinte forma:

• 100 registros realizados entre fevereiro de 1980 a setembro de


1981

• 100 registros realizados entre abril de 1990 a outubro de 1991

• 100 registros realizados entre janeiro de 2000 e janeiro de 2001


97

• 86 casamentos realizados entre janeiro de 2010 e setembro de


2012

A escolha por realizar a pesquisa nesta segunda fase por cada ano
(1980, 1990, 2000 e 2010) e não pelas décadas completas foi resultado da
observação do grande aumento no número de casamentos realizados por nikkeis
em Campo Grande. Delimitando a quantidade de cem uniões para cada um destes
quatro períodos, foi possível abranger os últimos 34 anos que, contrapostos aos
primeiros casamentos nikkeis de Campo Grande, abarcam assim, as transformações
ocorridas em quase toda a história do grupo nikkei da cidade.

Como esta segunda fase de coleta dos dados foi realizada diretamente
no cartório da cidade, os livros me eram entregues, um a um, por um dos
funcionários do estabelecimento. Para segurança do próprio cartório, apesar de eu
ter entregue um documento oficial da universidade informando sobre o intuito da
pesquisa, a tabeliã estipulou os horários em que eu poderia ler os livros de registros,
horários estes em que aquele funcionário estaria presente para acompanhar minha
pesquisa. Foi me fornecida uma mesa, de frente para ele, onde eu me posicionava
todos os dias e de onde ele (assim como todos os outros funcionários) poderia me
observar. A fim de tentar tornar o trabalho mais rápido, solicitei o uso de fotografias
dos livros, pois dessa forma eu poderia, além de coletar um maior número de
certidões (caso sentisse essa necessidade) e, consequentemente, ficar menos
tempo no local, possuir um registro completo de todas as uniões matrimoniais
realizadas pelos nikkeis na cidade, visto que eu já havia observado que os dados
nos registros mudavam de tempos em tempos.

Com a resposta negativa, foi preciso fazer todo o levantamento à mão,


o que me impossibilitou de coletar certos dados que foram mais tarde percebidos em
algumas certidões e que poderiam ser utilizados em uma investigação futura, como
a presença de divórcios, novos casamentos e mais especificidade sobre o local de
nascimento e residência de pais e avós. Para que eu pudesse realizar minhas
anotações sobre tais informações, seria necessário recomeçar todo o trabalho, o
que naquele momento se tornou completamente inviável, já que seria necessário
muito mais tempo para retomar todos os livros já consultados, o que também traria
98

um inconveniente ao cartório, pois diversas vezes, foi preciso pausar a coleta e


entregar os livros que eu consultava a funcionários que procuravam por registros de
clientes. Contudo, apesar de não ter sido feita uma análise mais detalhada em todos
os quase 400 registros sobre os divórcios, pude observar que, quando ocorrem,
novos casamentos são realizados com cônjuges de origem não-nikkei.

Outro ponto importante a ser analisado é o número de dados coletados


referentes ao período que vai de janeiro de 2010 à setembro de 2012. Aqui, nota-se
um decréscimo no número de casamentos realizados por nikkeis em Campo
Grande. Foram necessários coletar dados que referem-se a um período muito maior
do que nas épocas anteriores, ou seja, como as certidões foram colhidas de forma
continua (na ordem cronológica, uma após a outra), foi necessário analisar todas os
livros e registros realizados em um período de quase três anos (mais precisamente,
32 meses) para obter um número de certidões próximo ao coletado anteriormente.

Retomando a depuração destes dados, os registros coletados no


período que vai de fevereiro de 1980 à setembro de 1981, mostraram imediatamente
que uma grande mudança havia sido iniciada na realização de matrimônios no local.
Naquele espaço de tempo de pouco mais de um ano, dos cem casamentos
pesquisados, mais da metade (62 ao todo) foram realizados entre um(a) nikkei com
cônjuge sem ascendência “japonesa” (Gráfico 07):
99

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2014.

Dentre estes 62 casamentos realizados com cônjuges sem


ascendência nipônica, em 42 dos casos foi o homem nikkei quem escolheu uma
esposa não-nikkei, contra apenas 20 mulheres nikkeis que se casaram com homens
sem origem japonesa ou okinawana. Se entre 1920 e 1960 os casamentos eram
realizados primordialmente, tanto por homens quanto por mulheres, dentro do
próprio grupo de origem (homem naichi – mulher naichi e okinawano - okinawana)
e, sendo o casamento com não-nikkeis preferível como forma de evitar a união entre
os dois grupos nikkeis, em 1980, neste novo momento, vê-se um movimento
contrário, em que as escolhas são dirigidas aos não-descendentes e, especialmente,
realizadas pelos homens nikkeis, sendo as mulheres ainda relativamente mais
propensas ao casamento dentro do grupo nikkei.

Após a análise dos sobrenomes, dos 100 casamentos encontrados, 80


foram identificados como okinawanos ou como naichi. Através de tais informações,
na tabela 02 (abaixo), é possível visualizar as transformações ocorridas a partir de
todas as variáveis de casamentos realizados no período citado:
100

Tabela 02 – Variáveis de Casamentos – 1980-1981

Tipos de Casamentos Total de Casamentos

Homens Okinawanos com Mulheres Okinawanas 16

Homens Okinawanos com Mulheres Japonesas 04

Homens Okinawanos com Mulheres Não-Nikkei 22

Homens Japoneses com Mulheres Japonesas 08

Homens Japoneses com Mulheres Okinawanas 02

Homens Japoneses com Mulheres Não-Nikkei 13

Mulheres Okinawanas com Homens Não-Nikkei 10

Mulheres Japonesas com Homens Não-Nikkei 05

TOTAL DE CASAMENTOS 80

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota

É importante ressaltar que tanto na Tabela 02, quanto no Gráfico 08


(abaixo), foram incluídos apenas os 80 casamentos cujos sobrenomes pude o
identificar enquanto okinawanos ou japoneses. Mas, dentre os 20 casamentos não
identificados, sabe-se que 12 foram realizados com cônjuges sem ascendência
nikkei, o que nos indica neste caso, que pouco importa qual a origem nikkei dessas
pessoas, mas sim, o fato de que casamentos entre os dois grupos – okinawanos e
naichi - continuam sendo evitados e foram escassos naquele período, dando
preferência ao estabelecimento de novas relações com os chamados gaijins.
101

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2014.

O mesmo se repete no período seguinte, referente ao período que vai


de abril de 1990 à outubro de 1991. Dentre os cem casamentos realizados na
Cidade Morena, apenas 26 referiam-se a uniões entre dois descendentes de
“japoneses”. Mas agora, uma nova transformação parece ocorrer: dos 74
matrimônios efetuados com não-descendentes, há um equilíbrio no que diz respeito
ao gênero dos cônjuges, visto que em 38 deles os maridos eram nikkeis e em 36
foram de mulheres de origem nikkeis com homens sem ascendência “japonesa”.
Vemos que no caso das mulheres de origem nikkei, que anteriormente ainda se
casavam mais com homens também nikkeis, talvez por influência ou orientação da
família, passam então a concretizar relações conjugais fora do grupo oriental.
102

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2014.

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2014.


103

A tabela 03 (abaixo) e o gráfico a seguir (gráfico 11), compostos pelos


61 casamentos com sobrenomes identificados, ilustram a configuração dos
matrimônios realizados no período de 1990, mostrando a queda no número de
uniões entre a população nikkei.

Tabela 03– Variáveis de Casamentos – 1990-1991

Tipos de Casamentos Total de Casamentos

Homens Okinawanos com Mulheres Okinawanas 05

Homens Okinawanos com Mulheres Japonesas 01

Homens Okinawanos com Mulheres Não-Nikkei 16

Homens Japoneses com Mulheres Japonesas 05

Homens Japoneses com Mulheres Okinawanas 02

Homens Japoneses com Mulheres Não-Nikkei 08

Mulheres Okinawanas com Homens Não-Nikkei 11

Mulheres Japonesas com Homens Não-Nikkei 13

TOTAL DE CASAMENTOS 61

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota


104

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2014.

Apesar do número considerável de pessoas sem identificação em


relação as suas origens (39 casos), vê-se que a questão que se coloca a partir
desse momento, está mais relacionada ao fato de que, casamentos entre nikkeis
são cada vez mais raros a cada década que se passa, visto que, dentre estes 39
casamentos, 26 foram realizados com não-nikkeis. Com apenas 26% de
relacionamentos conjugais realizados dentro do grupo nikkei, o que se verifica é que
torna-se para esta população preferível casar-se com um(a) não-nikkei,
consequentemente, evitando a construção de novos relacionamentos entre
okinawanos e naichi.
105

Nas duas décadas seguintes, no que se refere aos registros de


casamentos de 2000 e 2010, é possível afirmar que essa transformação na escolha
dos parceiros continua e se intensifica. Entre os cem registros de casamentos
recolhidos no cartório da cidade no período de janeiro de 2000 à janeiro de 2001,
apenas 09 casos referem-se à uniões dentro do grupo nikkei em Campo Grande.

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2014.

No período referente entre janeiro de 2010 e setembro de 2012, foram


analisados 86 casamentos, sendo 05 o número de casamentos registrados entre
nikkeis. A decisão de interromper a busca antes mesmo de completar os 100
matrimônios se deu, como dito anteriormente, pela dificuldade em acumular essa
quantidade de registros, o que não trouxe prejuízo algum para a pesquisa, mas um
106

dado importante a ser levado em consideração. Em todos os períodos anteriores, foi


relativamente rápido recolher o número proposto de casamentos. Consultando três
ou quatro livros (cada livro possui trezentas certidões de casamentos registrados no
cartório, abrangendo toda a população campo-grandense) era possível chegar à
quantidade proposta no início das investigações.

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2014.

No ano de 2010, entretanto, tornou-se um trabalho realmente árduo


levantar todos esses dados. Foi preciso verificar certidão por certidão de
aproximadamente 08 livros para chegar aos 86 casamentos. A primeira impressão
ao refletir sobre essa questão foi a de que a população nikkei estaria se casando
menos na cidade, mas um dado interessante estava localizado nestas certidões
mais atuais: o local de residência dos pais. Em grande número de casos, pais ou
107

mães (ou ambos) residiam no Japão na época em que os casamentos foram


registrados.

Durante toda a pesquisa de campo, a questão decasségui se


apresentou nas diversas conversas que mantive com meus informantes. Quase
todos já haviam passado algum tempo no Japão, trabalhando em fábricas, ou
possuíam algum familiar nesta situação. Portanto, a dificuldade em encontrar novas
certidões se mostra diretamente relacionada ao fato de que essa população está em
constante movimento entre os dois países.

Com a crise econômica sofrida pelo Japão (e por outros países) no ano
de 2008, estes podem ser os jovens que haviam migrado para o Japão em anos
anteriores e que teriam voltado ao Brasil recentemente. Estes jovens, porém,
mantém a tendência dos dois períodos anteriores ao compor novas famílias.
Vivendo no Japão ou no Brasil, essa população nikkei tem, cada vez mais,
construído novas famílias a partir das escolhas matrimoniais com indivíduos não-
nikkeis.

Como podemos ver através de todos os gráficos e estatísticas,


casamentos entre okinawanos e naichi nunca foram comuns na história destes dois
grupos em Campo Grande. Desde o momento de sua chegada à cidade até os dias
atuais, sempre houve um número muito pequeno e residual de famílias construídas
a partir de relações entre estes nikkeis.

A prática de evitar determinadas uniões de conjugalidade com grupos


considerados pelos japoneses como impróprios não é nova, podendo ser verificada
em outros países que receberam os imigrantes nikkeis. Hiroshi Ito (1966, p. 200-
221), em seu texto sobre os Eta, trata sobre as relações entre estes indivíduos e os
japoneses. Os Eta foram classificados como párias a partir do período Tokugawa e
considerados impuros devido ao trabalho que realizam - normalmente como
açougueiros e coveiros – e que era passado de pai para filho, mantendo-se desta
forma, seu status de “intocáveis” a cada geração.

De acordo com o autor, que pesquisou os Eta imigrados nos Estados


Unidos no período pós-guerra (década de 1950), este grupo passou a evitar ocupar
posições de trabalho em que precisassem manter relações com outros japoneses
108

como, por exemplo, proprietários de pequenos estabelecimentos (restaurantes ou


outros comércios), buscando dessa maneira, não serem reconhecidos enquanto Eta.

Apesar de não ter conhecimento sobre descendentes dos Eta em


Campo Grande, cito este caso, pois, ele nos traz à tona mais informações sobre a
produção de novas relações dentro do grupo nikkei e, nos demonstra mais uma vez
o quão heterogêneo é o Japão. Assim como vimos no caso de Campo Grande,
casamentos entre japoneses e Eta são evitados. De acordo com Ito (ibid., p. 217) a
rejeição japonesa em criar novos casamentos e alianças com indivíduos
pertencentes aos outros grupos produz uma endogamia forçada dentro das
chamadas minorias étnicas nikkeis.

Ao retomarmos os dados aqui apresentados, vemos que no caso nikkei


campo-grandense, desde sua fixação na cidade até os dias atuais, um percentual
muito pequeno de casamentos entre okinawanos e naichi tem sido realizado. As
falas dos diversos interlocutores demonstram o quanto as diferenças existentes
entre os dois grupos atuam como forte e importantes elementos para a continuidade
da “não-relação” entre ambos. Ao afirmarem que são diferentes e que mais conflitos
poderiam ser gerados a partir da relação entre eles, o que se destaca é a visível
separação que persiste ao longo dos anos. Quando uma interlocutora me diz “nós
somos diferentes”, compreende-se que casamentos entre cônjuges de origens
diferentes, neste caso, entre okinawanos e naichi, mais do que criar a possibilidade
de interação e/ou aproximação, resulta em mais conflitos justamente onde eles não
devem ocorrer, ou seja, dentro da família nikkei.

Entretanto, ao contrário do que ocorre no caso Eta descrito por Ito


(idem), em que por conta dessa endogamia forçada tais indivíduos passaram a se
casar com primos, no contexto nikkei campo-grandense vimos que os matrimônios
entre consanguíneos são evitados. Fazendo uma pequena comparação entre os Eta
nos Estados Unidos e os “naichi” em Campo Grande, poderíamos pensar que o
pequeno número de japoneses “verdadeiros” na cidade - ou seja, um número restrito
de futuros cônjuges disponíveis - reformularia esta lógica da não-relação,
consequentemente, produzindo casamentos entre “naichi” e uchinanchu ou, no
limite, casamentos dentro do próprio grupo familiar. Isto, entretanto, não ocorre e a
estratégia utilizada para a criação de novas relações e famílias, é o estabelecimento
de casamentos com cônjuges não-nikkeis.
109

Já entre os indivíduos de origem okinawana, durante as primeiras


décadas na cidade de Campo Grande, observa-se que houve a prática de se manter
as relações dentro do grupo de origem uchinanchu, tendo sido grande o número de
casamentos com ambos os cônjuges com origens okinawanas. Com okinawanos
estabelecendo suas relações dentro do próprio grupo e os “naichi” optando por
casamentos com não-nikkeis, estes grupos mantêm-se fechados e opostos, com
suas diferenças sendo continuadamente marcadas e expostas.

O que se nota, entretanto, é que o estabelecimento de novas relações


com pessoas sem origem nikkei não se dá de maneira aleatória ou ausente de
certas lógicas. Os dados colhidos nos mostram que nas primeiras décadas em
Campo Grande, os novos casamentos foram estabelecidos majoritariamente por
homens nikkeis. Estes homens são detentores de um certo direito de escolher suas
esposas, enquanto elas eram mantidas em situação de maior opressão, casando-se
mais dentro do grupo de origem, mesmo contra sua vontade. Uma de minhas
interlocutoras, de origem okinawana, relembra a história de uma de suas tias:

Teve um casamento por miai também (irmã da mãe). E foi


com uchinanchu. E ela não queria casar por miai, mas ela preferiu
abdicar da vontade dela de casar com brasileiro para não
desrespeitar a família. Ela fala até hoje (Fala de Cecília).

Às mulheres eram dados poucos direitos e suas escolhas quase nunca


prevaleciam às escolhas de seus pais, ao contrário do que, segundo Yanagisako
(1985), ocorria com os filhos homens que possuíam o poder de emitir suas opiniões
sobre possíveis esposas. Mas ao analisarmos os gráficos, vemos que no decorrer
dos anos a situação vai aos poucos se transformando e, a partir da década de 1990
se dá início à uma equiparação entre os gêneros quando, tanto homens quanto
mulheres, independentemente de serem okinawanos(as) ou naichi, passam
igualmente a escolher cônjuges fora do grupo nikkei.

Mais uma vez, para explicitar graficamente como se deu essa mudança
ao longo dos anos, apresento quatro gráficos abaixo que referem-se aos dados de
todos os casamentos nikkei (okinawanos e naichi) com cônjuges não-nikkeis. Os
dois primeiros (Gráficos 14 e 15) primeiro apresenta os dados gerais, sem uma
110

separação de gênero, desde 1920 até o último registro colhido e que refere-se ao
ano de 2012. O gráfico 16 mostra as diferenças existentes estatisticamente entre
homens de origens okinawana e naichi e seus casamentos com mulheres não-
nikkeis. Já o gráfico seguinte (gráfico 17), apresenta tais dados a partir de um
recorte de gênero, em que podemos comparar como essas transformações atingem
especialmente as mulheres nikkeis em Campo Grande.

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2014.


111

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2014.

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2014.


112

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2014.


113

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota, 2014.

No gráfico 15 as três primeiras barras (1-okinawanos e naichi, 2-naichi


e 3-okinawanos) referem-se aos dados em que foi possível identificar a origem dos
cônjuges, porém, na quarta barra, todos os casamentos foram contabilizados, visto
que trata sobre nikkeis de maneira geral com cônjuges sem ascendência nikkei. Ali,
podemos visualizar o quão residual foi – e ainda é - o número de casamentos
realizados entre os dois grupos de “japoneses” na cidade, indicando o fechamento
de um grupo para o outro. O que o gráfico seguinte na mostra, entretanto, é que, ao
contrário do que se poderia imaginar, entre os homens de origem nikkei, foram – e
114

ainda são – os okinawanos que mais se casaram com mulheres sem qualquer
ascendência nikkei.

Se pensarmos sobre o número muito menor de indivíduos de origem


não-okinawana em Campo Grande, poderíamos imaginar que essa escolha por
cônjuges mulheres não-nikkeis partiria primordialmente por homens japoneses, o
que demonstraria além do fechamento do grupo em relação aos okinawanos, a
opção por realizar casamentos com mulheres gaijin devido à uma escassez de
mulheres naichi.

Todavia, apesar do grande número de mulheres uchinanchu na cidade


de Campo Grande, os homens de origem okinawana – em comparação aos homens
de origem não-okinawana – são os que mais contraem casamentos fora do grupo
nikkei, mesmo nas primeiras décadas de imigração na cidade. A partir deste dado,
talvez seja importante relaciona-lo à fala de diversos de meus interlocutores que
afirmam existir ainda o preconceito entre os grupos, visto que em todas as variáveis
possíveis e também através da separação entre homens e mulheres, os casamentos
são formados na seguinte ordem: 1) dentro do próprio grupo de origem, 2) com
cônjuges não-nikkeis e 3) com cônjuges pertencentes ao grupo nikkei oposto.

Assim como ocorre entre os homens, as mulheres okinawanas e não-


okinawanas, mesmo que mais tardiamente, dão preferência à realização de
casamentos fora do grupo nikkei ao preterirem conjuges que pertençam ao grupo
nikkei oposto. Mas assim como acontece no caso dos homens, foram encontradas
mais mulheres de origem okinawanas casando-se com homens não-nikkeis do que
mulheres naichi unindo-se à não-nkkeis.

Todos estes dados nos levam à questão da heterogeneidade nikkei em


Campo Grande. Eles nos demonstram que, mesmo após décadas longe do Japão
devido ao movimento migratório que se estabeleceu em direção ao Brasil no início
do século XX, estes grupos permenecem separados, reforçando a existência das tão
aclamadas diferenças. Portanto, o uso de categorias nativas amplamente utilizadas
mesmo nos dias atuais, tais como “naichi” ou “japoneses verdadeiros” não seria
apenas resquício de velhos habitos, mas a externalização em seus discursos de
oposição que ainda se coloca entre os diversos nikkeis.
115

Para além das relações entre okinawanos e naichi, ao analisarmos os


registros de casamentos verificamos que, ao se dar preferências por maridos ou
esposas sem qualquer origem nikkei, Campo Grande pode ser vista como uma
cidade japonizada devido à grande quantidade de relações que são estabelecidas
com não-nikkeis. Ambos os grupos – okinawanos e naichi – ao se manterem
relativamente isolados um para o outro, abrem-se para a população não-nikkei,
produzindo relações que ultrapassam as fronteiras da conhecida “colônia”, gerando
novas gerações de descendentes que os ligam à sociedade campo-grandense como
um todo.

Conhecida como a terceira maior cidade “japonesa” do Brasil, Campo


Grande japoniza-se não só através do consumo do sobá ou pela festa do Bon Odori,
mas também pela produção de parentesco que se amplia como a trama de um
crochê, em que correntes e pontos vão formando as famílias da cidade. É o que nos
demonstram, assim como os registros de casamento civis recolhidos no cartório, as
genealogias realizadas com os diversos interlocutores com os quais conversei na
cidade.

As genealogias corroboram, portanto, as estatísticas apresentadas


neste capítulo nos mostrando o quão comum é a formação de novas famílias com
indivíduos de fora dos grupos nikkeis, ao mesmo tempo em que evocam o
afastamento entre okinawanos e naichi. Antes de prosseguir para o capítulo
seguinte, dedicado à análise das genealogias, é preciso fazer uma pequena
ponderação referente aos casamentos entre okinawanos e naichi e entre nikkeis e
não-nikkeis. No caso dos registros civis os dados foram depurados levando-se em
consideração a pertença a algum dos grupos nikkeis a partir da análise dos
sobrenomes.

Tendo conhecimento de que, tradicionalmente tanto entre “japoneses”


quanto entre não-nikkeis há a pratica da adoção do nome de família do marido por
parte das mulheres e, consequentemente, muitos filhos são registrados apenas com
o sobrenome paterno, poderíamos incorrer no erro de não perceber a dupla origem
okinawana e não-okinawana ou, no caso de famílias formadas entre nikkeis e não-
nikkeis, excluir registros de casamentos de indivíduos “mestiços” que carregam
apenas sobrenomes não-“japoneses”. No intuito de não cometer este deslize, em
todas as certidões analisadas foi dada especial atenção à observação dos
116

sobrenomes dos pais dos cônjuges, elemento presente em todas as certidões de


casamento.

A partir de tais observações pode-se verificar que entre os casamentos


realizados no período de 1920 à 1960, ou seja, nas primeiras décadas após o início
da imigração para Campo Grande, boa parte dos maridos e esposas eram filhos de
imigrantes, possuindo assim apenas a origem okinawana ou não-okinawana. Já no
período entre 1980 e 2012, diversos cônjuges eram filhos apenas de pai ou mãe
nikkei. Esta averiguação foi possível pois, notou-se que entre as mulheres não-
nikkeis que se casam com homens “japoneses” é comum o acréscimo do
sobrenome do marido sem a exclusão de seus sobrenomes de família.

Este dado corrobora mais uma vez, a existência da preferência de


casamentos com não-nikkeis e o fechamento de um grupo para o outro. Ao analisar
os sobrenomes das mães dos cônjuges, entretanto, torna-se muito mais difícil
reconhecer se ela seria filha dos dois pais com a mesma origem nikkei ou, se ela
seria resultado de um casamento entre okinawanos e naichi, pois, normalmente elas
possuem apenas o sobrenome do marido.

As genealogias realizadas, entretanto, de certa forma sanam esta


questão e nos dão indícios de que estes casos, apesar de existirem são realmente
raros, havendo poucos casamentos formados entre indivíduos pertencentes aos
grupos nikkeis opostos. No capítulo seguinte, portanto, adentramos nas famílias
nikkeis a partir da criação destas genealogias, o que nos permite compreender mais
profundamente sobre as relações familiares entre nikkeis em Campo Grande.
117

4. CROCHETANDO RELAÇÕES – GENEALOGIAS E RELACIONALIDADE

Retomando os dados sobre as décadas de 1920 a 1960, sabe-se que


famílias vieram formadas ao Brasil, o que justificaria o pequeno número de
casamentos, mas outra questão que também precisa ser levada em consideração é
o fato de que entre os “japoneses” era comum a prática do miai. De acordo com
Higa (2008, p. 30), no ano de 1925 uma figura importante da colônia “japonesa” de
Campo Grande trouxe do Japão um grupo de 25 pessoas, entre estas, “um casal,
quatro jovens mulheres e mais 19 novos trabalhadores para plantação de café na
região de Rincão. Como a maioria dos colonos imigrantes já estabelecidos
constituía-se de solteiros, o empreendedor trouxe as noivas pelo sistema de miai
para formação de novas famílias” (HIGA, C. Miai: Casamentos arranjados. Revista
Mina San/ Correio do Estado, Campo Grande, p. 30, 18 de junho de 2008).

É possível, portanto, pensar que grande parte dos casamentos


realizados naquelas primeiras décadas tenham sido realizados através de acordos
entre famílias, prática que talvez tenha sido utilizada até os anos de 1960, como
demonstra o caso de Amalia-San, citado no início deste texto.

Aqueles primeiros anos foram, portanto, marcados por casamentos


realizados de maneira endogâmica53 - alguns frutos de arranjos matrimoniais, em
que se manteve a preferência na escolha dos cônjuges dentro dos grupos naichi ou
okinawano mesmo entre nisseis. Nota-se que entre os poucos casos de casamentos
exogâmicos, 35 no total (incluindo os casamentos não identificados até o momento),
apenas 05 foram realizados por mulheres naichi, enquanto 30 homens naichi
casaram-se com mulheres sem ascendência nikkei. Além disso, sobre os

53
Trato aqui por casamentos endogâmicos, aqueles realizados dentro do grupo nikkei em oposição
aos casamentos realizados com cônjuges sem ascendência nipônica, e não exclusivamente sobre
casamentos entre naichi ou okinawano/okinawana.
118

casamentos realizados entre naichi e okinawanos, percebe-se que há uma


preferência em contrair matrimônios com cônjuges não-descendentes em relação ao
grupo nikkei oposto.

Este dado se mostra importante para pensarmos sobre a questão da


heterogeneidade nikkei na cidade. Como já dito anteriormente, nas últimas décadas
tem havido um esforço por parte das associações “japonesas” na cidade em se
mostrar cada vez, mais homogênea e coesa. O que se verifica a partir da análise
dos registros de casamentos, é que aos poucos um movimento contrário vai se
estabelecendo entre essa população, que reforça a existência da diferença.

A partir de 1980 pode-se verificar que nas décadas seguintes, esta


prática do casamento com parceiros não-descendentes em detrimento do
casamento endogâmico não só continua, como aumenta consideravelmente. Mas
nesse momento, vemos uma nova transformação no perfil dessas uniões. Se
anteriormente, os casamentos com pessoas sem ascendência nikkei era quase
exclusividade de homens naichi, a partir da década de 1990, as mulheres nikkeis,
apesar de mais tardiamente, também passam a se relacionar com homens não-
descendentes em igual proporção, vide os dados encontrados referentes aos anos
de 2000 e 2010.

Se o foco desta pesquisa sobre os casamentos realizados na cidade de


Campo Grande, entre imigrantes nikkei e seus descendentes estava no
estabelecimento de relações familiares entre naichi e okinawanos no que se refere
às primeiras sessenta décadas (de 1920 a 1980) de matrimônios ali efetuados, a
partir de 1990 o que se percebe é que além da questão da heterogeneidade nikkei,
as relações entre nikkeis de modo geral e “brasileiros” aparecem com bastante
força.

Nota-se que há grande disparidade entre o discurso e a prática no que


se refere à formação de novas famílias na cidade. Ao iniciar minha pesquisa de
campo de mestrado sobre festas e comidas “japonesas” em Campo Grande no ano
de 2005 - apenas cinco anos antes dos últimos registros coletados - meus (jovens)
interlocutores afirmavam existir preferências no que se referia aos seus namorados
e futuras uniões. Segundo eles, seus pais e avós os orientavam sobre suas
escolhas, mas mesmo seus interesses pessoais se voltavam para outros
descendentes e, mais especificamente, dentro do mesmo grupo de origem.
119

Marcela, uma jovem okinawana com quem conversei na época, ao ser


por mim questionada sobre preferências em seus namoros, me dizia que
provavelmente em sua família não haveria problema caso começasse a se
relacionar com um naichi ou com um não descendente:

- E na sua família tem algum problema de misturar


okinawanos com naichi?

- Acho que não tem, mas eu prefiro dar continuidade.

Cecilia, uma outra jovem, hoje com aproximadamente 28 anos de idade


relata:

- Nádia: Houve casamentos multiétnicos em sua família?

- Cecilia: Sim. Tanto da parte do meu pai quanto da minha


mãe. Tanto de brasileiros com “japoneses” (nikkei), quanto de
naichi com okinawanos. Sempre que eu falava de amigos ela
perguntava se era japonês (okinawano). Ela falava que era para
casar com japonês (nikkei), e além de ser japonês (nikkei) tinha
que ser uchinanchu. Vê se pode! Dizia que naichi era metido e
arrogante. Minha avó sempre quis que casassem, além de ser
japonês (nikkei), tinha que ser uchinanchu. A minha mãe fala que
isso não tem nada a ver, mas a gente percebe. Tem aquela
preferência. Mas ela fala que se não for, não tem problema. Eu
prefiro japonês (nikkei) (em comparação aos não-descendentes).
É o que mais me atrai.

A fala de Cecilia é interessante, pois revela diversos conflitos dentro de


sua família. Percebe-se que existe uma tentativa de demostrar o fim de conflitos
entre naichi e okinawanos, o fim do preconceito e das diferenças. Entretanto, suas
palavras são claras, mostrando que a homogeneidade está apenas no discurso:
“tinha que ser uchinanchu”.

Sua fala também evidencia a questão das japonesidades possíveis na


cidade de Campo Grande. Ao utilizar o termo uchinanchu, vemos não só na fala de
120

Cecilia, mas também na de outros informantes, um maior investimento na noção de


okinawanidade dos indivíduos. Entre todos os meus interlocutores, quanto maior a
participação em atividades associativas e/ou maior proximidade com as tradições –
que derivam das relações com as avós – mais comum é o emprego do termo
uchinanchu para designar seu pertencimento em detrimento do termo okinawano.

A todo momento, Cecilia também emprega o termo “japoneses” de


maneira englobante, ao se referir à população nikkei em oposição aos indivíduos
que não possuem qualquer origem “japonesa” na cidade, demonstrando o quão
polissêmico pode ser o seu uso e o quanto esta utilização depende do contexto em
que os nikkeis falam sobre si mesmos. Porém, a cada referência que faz a este
grupo – englobado -, em seguida é realizada a diferenciação existente entre naichi e
okinawanos.

O termo “japonês”, como vimos em capitulo anterior, além de possuir a


função de homogeneizar em determinados contextos – mais públicos – a população
nikkei, também é utilizado como forma de demonstrar a oposição com relação a
população não-nikkei. A festa do Bon Odori e o catálogo solicitado pelo então
governador do Estado do Mato Grosso do sul, tornam-se novamente bons exemplos
de como essa autodenominação pode variar de acordo com o contexto e para quem
se dirige essa autoclassificação. Esta festa (LUNA KUBOTA, 2008) é vista como
uma celebração “japonesa” e indica à população não-nikkei a ideia de
homogeneidade e unidade da mesma forma que a cidade de Campo Grande é
apresentada aos outros países como um local “japonês” por excelência (LUNA
KUBOTA, 2012). Em ambos os casos, a diferença e as particularidades próprias a
cada grupo são obliteradas e preteridas em função de uma imagem de cidade
portadora de uma coesão “japonesa”.

Finalmente, sua fala nos dá apontamentos sobre como são construídas


as relações entre indivíduos de origem naichi e okinawana na cidade. Ela demonstra
que, mesmo na época atual, passadas tantas décadas do início da imigração nikkei
para o Brasil e, mais especificamente, para Campo Grande, apesar do término da
pratica do miai, ainda é preferível para a população mais velha, que seus filhos e
netos construam novas famílias com cônjuges pertencentes ao mesmo grupo de
origem. Conselho este dito ser seguido pelos jovens mesmo nos dias atuais mas,
como visto no capítulo anterior, os registros de casamentos indicam que esta não é
121

uma realidade, sendo os casamentos, cada vez mais, realizados preferencialmente


com indivíduos sem origem nikkei.

Ao observar tais diferenças, entre o que é esperado e desejado para a


realização de novos casamentos, e os matrimônios de fato, recorro às genealogias
que realizei, também durante o período de pesquisa de campo. Entre as 10
genealogias colhidas, em todas há casos de uniões afetivas entre descendentes de
nikkeis e não-descendentes, porém, raros são os casamentos entre descendentes
de naichi e de okinawanos.

Com ou sem influência de familiares mais velhos, como pais ou avós,


nos últimos vinte anos, essa população têm evitado a formação de novos grupos
familiares dentro da chamada “comunidade nikkei”.

4.1. As Genealogias

No início do trabalho de campo contatei diversos conhecidos para que


pudessem me apresentar pessoas dispostas a me falar sobre suas genealogias e,
consequentemente, sobre suas famílias. Como minha experiência no mestrado já
havia me mostrado que a população nikkei de Campo Grande não é muito afeita a
falar mais sobre sua intimidade, acreditei que usando como recurso um instrumento
aparentemente mais “técnico” meus interlocutores seriam mais afáveis e
concordariam em me receber em suas casas para falar um pouco sobre seus
ancestrais.

Naquele momento acreditei que os descendentes de nikkeis teriam até


mesmo um certo orgulho ao contar as histórias de seus avós, já que para mim,
existiria uma noção de honra à memória dos antecessores. No entanto, o ocorrido foi
exatamente o oposto. Todas as pessoas com quem falei se dispuseram a me
apresentar conhecidos, mas quando eu dizia que eles mesmos poderiam me ajudar,
contando sobre suas próprias famílias, a resposta era sempre negativa. Como
122

exemplo, cito uma situação em que um de meus contatos, ao me acompanhar em


uma visita à casa de uma senhora nascida no Japão e que havia aceitado conversar
comigo sobre sua genealogia, me fazia diversas perguntas sobre os “desenhos” que
eu ia fazendo em uma grande folha.

Expliquei superficialmente cada símbolo e como poderia ser feita cada


relação (casamentos, filiações, etc.). Questionei o porquê de sua curiosidade e como
resposta ela me disse que queria fazer o mesmo sobre sua família. Ofereci minha
ajuda dizendo que eu mesma poderia fazer os tais “rabiscos” um outro dia, mas ela
se negou, dizendo que não gostaria que aquilo fosse de conhecimento de outras
pessoas.

Notei que suas relações de parentesco eram algo extremamente íntimo


e que não a agradaria que uma antropóloga soubesse mais a respeito de sua
família, apesar do fato de nos conhecermos há bastante tempo e, vez ou outra, ouvir
comentários sobre as histórias de alguns de seus parentes (como a existência de
traições, brigas e abandonos). Fui então, aos poucos percebendo que falar sobre as
famílias, relembrar o passado e a existência de certos elos com determinadas
pessoas, traz à tona sentimentos nem sempre agradáveis. Não foram raras as
expressões de mágoa e desconforto em suas faces, algumas vezes chegando
mesmo às lagrimas.

O fato de ter sido apresentada aos meus interlocutores através de


contatos entre conhecidos em comum também deve ser considerado. Meus
informantes sabiam que não conversavam apenas com uma antropóloga, alguém
que veio de longe e que desapareceria de suas vidas logo em seguida. Apesar dos
longos anos morando longe da cidade, eu era uma campo-grandense, irmã de um
jovem conhecido devido ao seu histórico dentro das associações nikkeis na cidade.
Não era raro, por exemplo, relacionarem meu sobrenome ao meu irmão: “ah, você é
irmã do Haruo?”. Eu era, portanto, alguém que conhecia o círculo social de meus
informantes (ou era por eles reconhecida), o que talvez, trouxesse receio sobre a
divulgação das informações por mim colhidas no seio da “colônia nikkei” da cidade.

Esse receio talvez possa ser considerado como real, afinal, muitas
informações foram por mim obtidas em momentos totalmente informais quando
meus conhecidos me contavam “fofocas” sobre “fulano ou ciclano”.
123

Depois de muito trabalho de convencimento, pouco a pouco algumas


pessoas foram concordando em me receber, porém, a construção de genealogias
como técnica de investigação para o posterior aprofundamento sobre as noções de
parentesco de cada indivíduo se mostrou falível. Isto porque ao informar que a
pesquisa seria realizada a partir da construção de árvores genealógicas,
prontamente meus interlocutores procuravam seu koseki-tohon.

Alguns me diziam não possuir o documento em mãos, mas tratavam


sobre sua existência como se ele fosse uma prova de pertencimento à determinada
família ou mesmo, de japonesidade. Possuir o koseki seria o mesmo que afirmar que
tais sujeitos seriam mesmo “japoneses”. Naquele pedaço de papel, estaria presente
uma parte de sua japonesidade, de sua relação real com o Japão54.

Ao relacionar koseki com parentesco, porém, meus interlocutores não


entendiam a minha necessidade em ouvir mais sobre suas famílias. Quase sempre,
após nomear todos os indivíduos a eles relacionados genealogicamente, a conversa
era terminada e me conduziam até a porta.

Apesar de todas as dificuldades, em quase todas as entrevistas,


mesmo que algumas vezes de maneira rápida e superficial, foi possível recolher
informações de meus informantes que remetem ao tema desta pesquisa,
especialmente no que tange às relações entre descendentes de naichis e
okinawanos e às famílias de decasséguis.

Todas as genealogias recolhidas estão presentes nesta tese, tornando


assim possível, a visualização de grande parte dos tipos de relações estabelecidas
dentro da família nikkei campo-grandense. O fácil reconhecimento dos variados tipos
de casamentos se dá pela escolha de cores especificas para cada grupo de
indivíduos. Na cor verde pode-se identificar todos os indivíduos de origem
okinawana. Na cor preta estão todos os indivíduos de origem naichi e em vermelho
identifico as pessoas não-nikkeis.

Na família de Emiko-san, por exemplo, uma senhora naichi imigrante


de 88 anos, um de seus quatro filhos - três deles nascidos no Brasil, casou-se com

54
Para muitos, a descoberta do koseki se dá no momento em que decidem ir ao Japão trabalhar
como decasséguis. Essa questão é discutida no capítulo seguinte.
124

mulher não-nikkei e outro com mulher okinawana. De seus oito netos, apenas um é
casado, e neste caso, também com uma não-nikkei.

Emiko-san chegou ao Brasil com seu marido e seu filho mais velho,
que na época tinha apenas cinco anos. Nosso contato se deu através de uma
conhecida em comum, Fernanda, naichi, mas casada com um okinawano. Fernanda
que nasceu no interior do Estado de São Paulo afirma que só descobriu as
diferenças entre os dois grupos de nikkeis quando se mudou para Campo Grande.
Morando ao lado de Emiko-san, Fernanda conta que sempre ouvia da vizinha que
“os okinawanos não são japoneses”.

Minha surpresa foi descobrir, através de sua genealogia, que seu filho
primogênito, o chonan, havia se casado com uma mulher de origem okinawana.
Mesmo após décadas de casamento, Emiko-san baixa os olhos e o tom de sua voz
ao citar a nora. Nota-se que há um certo descontentamento com a escolha do filho.
Ao pedir para que ela continuasse a falar de sua família, Emiko-san responde que
vai buscar seu koseki-tohon, pois isso facilitaria o trabalho. Ela então, apenas traduz
o documento que tem em mãos para a construção de sua genealogia. Após nomear
seus avós55, pais, filhos e netos, Emiko-san se mostra cansada e, em seguida, me
pede para finalizar a conversa.

55
Apesar de seus pais e avós serem listados em sua genealogia, como Emiko-san é imigrante, tendo
chegado na vida adulta ao Brasil, optei por não inclui-los no gráfico por não trazerem as questões
pertinentes à tese. Em sua família, nenhum casamento anterior ao seu foi realizado, por exemplo,
com estrangeiros ou indivíduos originários de Okinawa.
125

Figura 08 – Genealogia de Emiko-san

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota

Em outro caso, o jovem Cezar, de 29 anos namora há vários anos uma


jovem descendente. Ele é de origem naichi, mas sua namorada de origem
okinawana, fato este que o jovem afirmou somente ter constatado durante nossa
conversa, ao falarmos sobre seu sobrenome. Seus dois irmãos são casados, ambos
com jovens de origem naichi. Entre seus oito tios maternos, em dois casos há
casamentos com pessoas sem qualquer origem nipônica e um caso de casamento
com cônjuge de origem okinawana56.

56
Como não pude obter respostas sobre como seriam classificados os filhos deste tio naichi casado
com esposa okinawana, optei por incluí-los na cor preta, porém, neste caso, faço a ressalva e que
seria necessário investiga-los a fim de conhecer mais a fundo como estes indivíduos são vistos pela
família e por si próprios.
126

Figura 09 – Genealogia de Cezar

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota


127

Ao observar a geração de Cezar, entre seus vinte primos, os mais


jovens - oito no total - relacionam-se com “brasileiros”. Cezar, talvez por sua idade,
foi o único que não mencionou o koseki ao falar sobre sua família. Com ele a
conversa rumou para longe da questão consanguínea ou biológica. Cezar falava em
proximidade e relações de convivência. Não foram raros os casos em que ele
afirmava saber que tinha alguns primos, podendo até mesmo relaciona-los como
filhos de determinados tios, mas não conseguia se lembrar de seus nomes. “Que
vergonha”, diz ele com um sorriso envergonhado ao se dar conta de que não
poderia nomear determinadas pessoas.

Para ele, entretanto, cônjuges ou namorados de alguns de seus


familiares são considerados como parentes pelo tipo de relação – amizade ou
proximidade geográfica - estabelecida entre ambos. Segundo ele, o fato de morar
perto de primos ou tios é importante para que exista uma proximidade mais afetiva.
O jovem relembra os tempos em que a avó materna era viva, fazendo com que
todos se encontrassem em sua casa aos finais de semana e em datas
comemorativas.

“A questão da convivência mesmo, porque o que eu sei mais


são os primos da minha idade, a gente conviveu mais tempo. É
questão de convivência mesmo. Porque os outros são bem mais
velhos. É importante o tempo de convívio”.

Cezar se referiu também a uma prima adotiva – sem origem “japonesa”


-, que apesar de “chata”, é por ele considerada como um familiar da mesma forma
que os outros. Ele também menciona uma prima transexual57 que vive na Europa
com o marido. Apesar de não terem um relacionamento próximo, percebo que o fato
de considerar sua prima como alguém “diferente”, é motivo suficiente para inclui-la
em sua genealogia. Essa prima também é citada na genealogia de uma tia paterna
de Cezar, com quem converso mais tarde. Ele sugere que eu a conheça, pois, ela

57
Cezar fala de sua prima sempre no feminino, não parecendo existir dúvidas sobre sua condição de
mulher.
128

poderia me dar mais informações. Seguimos para sua casa, distante apenas alguns
metros e marcamos um dia para conversarmos.

No dia agendado segui para a casa de Dona Sara, que não pareceu
muito confortável em me receber, mas aceita falar um pouco sobre sua família. Logo
no início ela questiona quem deveria entrar em sua genealogia, visto que é ela a
mãe da prima adotiva de Cezar. A jovem, que estava presente, veio imediatamente
ao meu encontro, pois também queria explicações sobre sua condição de filha
adotiva. Explico a ambas que Sara deveria incluir ou excluir quem preferisse, mas
que eu gostaria de mais detalhes sobre o porquê de suas escolhas.

Sara afirma prontamente que seria óbvia a inclusão do nome de Camila


em sua listagem. Demos início à construção de sua genealogia e, aos poucos, Sara
vai tecendo seus comentários sobre alguns indivíduos. Ela cita alguns nomes, mas
afirma que eles só seriam listados por estarem consanguineamente relacionados,
mas que na realidade, não são considerados por ela como parentes, pois teriam
agido de maneira errada com a família. Percebo ao final de nossa conversa, que
Sara inclui a filha transexual de seu irmão, mas sem tecer nenhum comentário sobre
sua orientação sexual ou sobre o fato de viver fora do Brasil. Evangélica,
frequentadora de uma igreja fundada por nikkeis, Sara falava sempre o
comportamento “errado” de determinados indivíduos que compunham sua rede de
parentesco.

Suas críticas estavam quase sempre relacionadas à falta de


participação afetiva com relação a outros familiares ou, ao que ela chama de
“destrambelhamento familiar”. Vários membros de sua família teriam se divorciado
e casado diversas vezes, tendo filhos em diversos relacionamentos. Outros
dirigiram-se ao Japão como decasséguis deixando filhos e esposas no Brasil.

De acordo com Sara, essa separação geográfica, culminaria em uma


separação emocional e afetiva dos que aqui permanecem e resulta na criação de
novas famílias durante a estadia no Japão, causando, portanto, tal
“destrambelhamento” 58 . Apesar de declarar a existência de diversos divórcios e
novos casamentos, Sara inclui em sua genealogia apenas a separação de um
58
Partir ao Japão quase nunca é visto com bons olhos para a população nikkei de Campo Grande,
sendo motivo de diversas críticas. O assunto será abordado mais profundamente no capítulo
seguinte.
129

indivíduo. Outro dado importante em sua família é a existência da doação de uma


filha de um de seus tios para um de seus irmãos (em amarelo).

Figura 10 – Genealogia de Sara

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota


130

Ao continuar a conversa, questiono-a sobre relacionamentos com


descendentes de okinawanos. Sara logo esclarece que em sua família, esse tipo de
união nunca aconteceu, como podemos notar em sua genealogia, sendo todos de
origem unicamente japonesa. Relacionamentos com não-descendentes, entretanto,
são comuns. Dentre seus seis sobrinhos, três casaram-se (um mais de uma vez)
com cônjuges não-nikkeis.

Sara descreve também, por iniciativa própria, a genealogia de seu


marido59, que é de uma família nikkei do Estado de São Paulo. Entre todos os
indivíduos listados até a geração dos avós de seu esposo, nenhum casamento foi
realizado com okinawanos e apenas um com um não-descendente, o que demonstra
uma diferença com relação ao caso campo-grandense, em que há grande número
de casos de uniões com não-descendentes de nikkeis.

Na família de Priscila60, uma jovem estudante de 27 anos de idade e


que viveu parte de sua adolescência no Japão, a situação é diferente. Quando
traçamos sua genealogia, foi possível notar imediatamente que quase cem por cento
de seus tios e primos constituíram novas famílias com não-descendentes. Entre os
que relacionam-se com nikkeis, não há nenhuma união afetiva com descendentes
de okinawanos.

Apesar da grande quantidade de namoros e casamentos com os


chamados gaijin, a situação para Priscila parece ser um pouco mais complicada.
Seus pais, ambos naichi, não teriam aprovado seu namoro com um jovem sem
ascendência nikkei, o que teria causado alguns conflitos e culminado no término do
relacionamento. Sua única irmã, hoje com aproximadamente 30 anos de idade e
casada há mais de cinco anos com um “naichi”, ao contrário, nunca teve problemas
ao apresentá-lo aos pais.

59
Optei por separar a genealogia de seu marido, que encontra-se nos anexos, devido à falta de
espaço.
60
A genealogia de Priscila foi construída somente com os dados referentes a seus parentes pelo lado
materno, mas não intencionalmente. Apesar de termos nos encontrado mais de uma vez, o espaço
de tempo nunca era suficiente para completarmos os dados como ela gostaria, pois sempre nos
víamos em horários entre seus compromissos. Além de passar boa parte do dia na universidade,
Priscila trabalha com os pais no restaurante da família. Apesar de não ser possível visualizar sua
genealogia por completo, sabe-se que do lado paterno, existem uniões com não-nikkeis e que não há
casamentos com indivíduos de origem okinawana.
131

Figura 11 – Genealogia de Priscila

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota


132

Segundo Raquel, outra jovem de origem japonesa de 29 anos de


idade, criada pela avó paterna por ter perdido sua mãe, que era imigrante naichi,
ainda na infância (Raquel tinha apenas cinco anos quando sua mãe veio a falecer),
teve seu casamento com um rapaz de origem okinawana aprovado por sua
obachan, pois ao menos ela daria continuidade à uma família “nikkei”, já que todos
os seus tios e primos estavam em relacionamentos com pessoas sem ascendência
nikkei.

A avó de seu marido, entretanto, “implicou”61 um pouco quando uma de


suas filhas – sogra de Raquel - se casou com um naichi, mas que posteriormente
teria aceitado o matrimônio. E assim também foi quando ela e João decidiram se
casar. Raquel apesar de naichi, era uma nikkei, enquanto todo o restante da família
casava-se com não-descendentes.

O caso de Raquel é bastante interessante. Sua avó foi casada três


vezes62. Após um primeiro casamento “relâmpago”, e já casada pela segunda vez no
Brasil e com dois filhos homens, sua obachan ficou viúva devido ao suicídio de seu
marido. De acordo com Raquel, entre os japoneses seria comum juntar pessoas que
passaram pela mesma situação, então lhe apresentaram um senhor que também
havia perdido a esposa da mesma forma.

61
Termo utilizado por Raquel.
62
O primeiro casamento de sua avó teria sido desfeito pouco tempo após a união ser realizada. Com
a separação, entretanto, outro casamento precisou ser diluído. Sua prima havia se casado com um
primo deste primeiro cônjuge, o que acarretou problemas. Ao se separar, sua prima foi obrigada a
também desfazer o casamento.
133

Figura 12 – Genealogia de Raquel

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota


134

Ele também já possuía dois filhos. Acabaram se casando e tiveram


mais um filho em comum. Ela diz que sua avó tentava não fazer diferenciações, que
todos os cinco filhos eram do casal, criados como irmãos, mas como possuíam
sobrenomes diferentes, apesar de afirmarem serem iguais, quando o pai faleceu, os
filhos do terceiro marido tentaram evitar que os outros recebessem sua parte na
herança, dizendo “vocês não têm o mesmo sobrenome".

Ela era neta resultado do segundo matrimônio, mas cresceu


acreditando que seu avô era o terceiro marido de sua avó. Somente na adolescência
Raquel descobriu tal fato, ao perceber que os sobrenomes não eram os mesmos de
outros parentes que ela sempre acreditou serem consanguíneos.

“Na verdade eu descobri que minha avó casou três vezes.


Olha que mulher sem vergonha. Mas ela nunca contou. O primeiro
marido dela ninguém sabe quem é, o nome, de onde veio, pra onde
foi. Sabe aquele casamento relâmpago? Desfez, separou. Naquela
época não faziam isso nem a pau, principalmente entre os japoneses
[nikkeis]. Aí tinha aquela tradição, a irmã casava com um parente
deles, aí parece que na época, como ela desfez o casamento, não
sei se prima dela, teve que desfazer o casamento também. É um rolo
danado. E a gente descobriu só no aniversário dela de 90 anos. A
irmã dela veio e contou isso, aí meus tios falaram: mas a obachan é
sem vergonha hein (em tom de risos)”.

Diferentemente do caso de Sara, apesar dos três casamentos de sua


avó e de como isso modificou as formas como foram realizadas as relações entre
tios, irmãos e primos, Raquel não vê sua família como “destrambelhada”. Mesmo
tendo descoberto tardiamente que seu avô não era quem ela imaginava e que
grande parte de seus primos não eram consanguíneos, Raquel vê todos como
parentes, mesmo que em determinados momentos, dependendo do contexto, alguns
sejam mais parentes do que outros, afinal, até a adolescência ela sequer imaginava
que existiam algumas diferenças entre eles.

Outro fato interessante em sua genealogia, é o casamento da irmã de


sua mãe com um tio de seu pai, o que também não parece lhe causar estranheza.
Apesar de não ser muito crítica com relação à sua família, Raquel não deixa de
135

salientar que entre eles, também há alguns problemas. Um de seus tios maternos é,
segundo ela, o “estragado da família”. Casado com uma mulher não-nikkei, com
quem teve dois filhos, decidiu trabalhar no Japão como decasségui. Chegando lá,
abandonou definitivamente a família e nunca mais retornou ao Brasil. Além dele,
outros primos são citados por terem, de certa maneira, fugido dos padrões:

A minha tia (paterna), sabe aquela mulher extremamente


tradicional? Era aquela mulher que sonhava que um dia todos os
filhos iam casar com descendente, ia ter os filhos, sabe aquela coisa
assim? Aí, o que aconteceu, o mais velho casou com uma brasileira
que eu acho que era ex-garota de programa, teve uma filha com ela
e tudo mais, aí o Tarcísio casou com essa filipina, depois casou com
uma mestiça e ela já tinha um filho, aí também não ficou feliz. E o
Francisco estava noivo de uma moça que era brasileira, uma moça
comum, normal, então o sonho dela foi por água abaixo.

Apesar da grande quantidade de membros, Raquel ressalta que em


sua família não existem muitas diferenças no que se refere às gerações. Segundo
ela, não há parentes de segundo ou terceiro grau, já que todos se conhecem e se
comunicam constantemente:

Tudo é próximo pra eles. Esse pessoal velho, mesmo que


tenha um batizado na “puta que pariu”, eles vão.

Para ilustrar a situação, Raquel relembra que em seu casamento


compareceram como convidados aproximadamente 400 pessoas, quase todos
membros de sua família, já que seria inadequado deixar de convidar alguém, pois
todos ficariam sabendo. Ela se mostra emocionada ao relembrar que um de seus
tios, irmão de sua mãe, lhe enviou como presente um álbum de fotos da família, com
imagens desde os tempos do Japão até os primeiros anos depois da chegada no
Brasil.

A partir das genealogias colhidas durante a pesquisa de campo, pode-


se notar que são raros os casamentos e a construção de novas famílias entre os
dois grupos de nikkeis na cidade de Campo Grande, quando isto ocorre, entretanto,
há sempre a tendência clara em identificar os filhos destes relacionamentos
136

enquanto naichi ou okinawanos. Em nenhum dos casos pesquisados houve dúvidas


por parte dos pais entrevistados com relação à escolha das cores a serem utilizadas
para designar seus filhos, sendo a resposta sempre imediata (verde para
okinawanos e preto para naichi).

No caso do marido de Raquel, por exemplo, apesar de seu pai ser


naichi, João é considerado por todos como okinawano. Já o filho do casal, recém-
nascido, é visto por Raquel como naichi. Na genealogia abaixo (Figura 06), colhida
através de entrevista com a avó de João, a partir da geração de seus netos,
somente foram incluídos os cônjuges casados no civil. Entre todos os cônjuges,
casados oficialmente ou não, apenas Raquel é nikkei. Os bisnetos aparecem como
pequenos uchinanchu, apesar de serem filhos de não-descendentes.

Figura 13 – Genealogia da avó de João

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota

Em outro caso, na genealogia de José, seus filhos, apesar de terem


nascido no Japão e de terem como mãe uma japonesa “de verdade”63, são por ele
classificados como okinawanos. A descendência nestes casos, é dada por apenas

63
A população nikkei utiliza o termo “de verdade” para se referirem aos japoneses do e no Japão.
137

um dos genitores e não por ambos. Nestes dois últimos casos apresentados, um
outro detalhe que chama a atenção é o sobrenome. João, marido de Raquel, apesar
de utilizar o sobrenome de seu pai, de origem naichi, é visto como um indivíduo
okinawano, membro de uma família uchinanchu, morando todos um ao lado dos
outros (são todos vizinhos), ao redor de sua avó materna.

Raquel, entretanto, não adotou o sobrenome do marido. Seu filho,


fugindo ao padrão de nomeação nikkei, em que apenas o sobrenome paterno é
passado adiante, possui tanto o sobrenome do pai, quanto da mãe. Já no caso de
José, apesar dele ter sido incluído no koseki-tohon de sua esposa no Japão, foi sua
esposa Aiko quem recebeu seu sobrenome, passado também para seus filhos, que
são, segundo ele, okinawanos.

.
138

Figura 14 – Genealogia de José

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota


139

Esta identificação enquanto indivíduos okinawanos ou naichi pode ser


contextual, especialmente quando se trata de crianças. Nos dois casos encontrados
não pude questionar os filhos e ouvir suas próprias respostas, visto que no caso de
Raquel, seu filho é recém-nascido e no caso de José, eles sequer falam português.
As respostas por mim obtidas, portanto, refletem a forma como cada um dos pais se
auto-identifica, ou como foi o caso do neto de Emiko-san, que apesar de adulto, não
esteve presente em nosso encontro, não sendo possível, portanto, questiona-lo
sobre o assunto.

Ela, enquanto naichi, insere seus netos dentro do grupo nikkei não-
okinawano. Provavelmente, se a pergunta fosse direcionada para seus cônjuges ou
outros membros das famílias, pertencentes ao grupo nikkei oposto, as respostas
seriam outras. No caso do filho de Raquel, seu marido possivelmente diria que o
recém-nascido é um pequeno okinawano, bem como Aiko, se falasse português, me
diria que seus filhos são jovens japoneses.

Retomando o caso de João, esposo de Raquel, vemos que uma


identificação de si mesmo enquanto pertencente a determinado grupo nikkei se deve
ao fato de que, além de carregar o sobrenome de seu pai, possuir também uma
família mais fechada, em que membros entram, mas não saem. Os indivíduos que
vieram de foram são, portanto, englobados ao grupo familiar. Todos estão muito
próximos uns dos outros, inclusive no que tange à questão da espacialidade, visto
que moram todos próximos e mantém relações diárias até mesmo no que se refere
ao trabalho, já que a família possui um comércio na própria residência da avó.

Vemos que a questão do sobrenome volta como um importante


elemento. Em todos os casos encontrados durante a pesquisa de campo, em que há
famílias compostas pela união dos dois grupos nikkeis, ser okinawano ou naichi
parece estar relacionado tanto à existência da noção de patrilinearidade, quanto à
questão da coabitação, que de certa maneira, estão relacionadas entre si. Em todas
estas famílias mistas, a esposa que veio de fora passa a fazer parte do grupo
familiar do marido, reproduzindo-se desta forma, a lógica do ie operando entre os
nikkei na cidade de Campo Grande.

Tais informações nos levam novamente à questão da heterogeneidade


nikkei. Apesar de existirem, estas famílias mistas compostas por indivíduos
pertencentes aos dois grupos nikkei estudados são minoria na cidade, como pode-
140

se observar ao analisarmos não somente os nomes e sobrenomes dos cônjuges no


capítulo anterior, mas também os nomes e sobrenomes de seus pais, presentes nos
registros de casamento civil. Entretanto, o que nos indica haver ainda uma oposição
entre estes dois grupos, apesar dos casamentos realizados, é a noção de
pertencimento a determinado grupo nikkei especifico. Filhos de casamentos mistos
não são simples “japoneses”, mas sim, okinawanos ou naichi, não existindo nestes
casos, uma terceira categoria possível, diferentemente do que ocorre quando há
casamentos de nikkei com não-nikkei. Nestes casos, os filhos destes casais são
identificados como mestiços64, ou seja, uma terceira categoria de pertencimento é
possível.

Vemos nas genealogias que os filhos mestiços são identificados como


“japoneses” (tanto em famílias okinawanas quanto os não-okinawanas), mas seu
duplo pertencimento é sempre ativado e está presente nas falas de meus
interlocutores, o que não ocorre no contexto das famílias mistas nikkei, não existindo
mestiços de okinawanos e naichi. Vemos que esse pertencimento a apenas um dos
grupos nikkei é produzido dentro e fora da família, pois em todos os casos a que tive
acesso e com quem pude realizar as entrevistas, me foram apresentados por outros
informantes como okinawanos ou naichi e a descoberta sobre a dupla origem só se
deu após a realização das genealogias ou através de comentários em conversas
informais.

Vemos que como método de pesquisa, a construção de genealogias


contribuiu para a realização de uma comparação entre os dados recolhidos nas
certidões de casamentos no cartório de Campo Grande, tornando-se possível
concluir que entre os nikkeis da cidade, cada vez menos novas famílias são
formadas entre estes nikkeis. Na genealogia de Margarida, vemos mais uma vez a
realização de diversos casamentos com cônjuges não-nikkeis e nenhum casamento
com indivíduos de origem okinawana:

64
Categoria nativa.
141

Figura 15 – Genealogia de Margarida

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota


142

Além de confirmar o fato de que é mais fácil se casar com um “gaijin”


do que se casar com alguém pertencente a outro grupo nikkei, as genealogias
forneceram maiores dados concernentes à produção das relações de parentesco de
meus entrevistados, ao listarem todos aqueles que seriam ou não considerados por
eles parentes. Margarida, por exemplo, teve dúvidas ao nomear aqueles que eram
por ela considerados como parentes. A princípio, não estava muito certa sobre
cunhados e cunhadas, mas ao final optou por inclui-los em sua genealogia, porém,
somente os “casados mesmo”, excluindo aqueles que vivem juntos, mas sem ter
feito o casamento civil.

As árvores genealógicas funcionaram, então, como instrumento para


compreender como seria realizada a construção de parentesco entre o grupo nikkei
na cidade, através de suas histórias ao pensarem sobre cada indivíduo que
comporia suas famílias ou relacionalidades.

Janet Carsten (2000, p. 02) propõe o uso do conceito de


“relacionalidade” ou “conectividade”, utilizando as críticas aos estudos de parentesco
iniciadas por Schneider (1968), ao demonstrar que a biologia já não constitui as
bases imutáveis para as relações de parentesco.

De acordo com Machado (2012, p. 76), Carsten:

Destaca a noção de “relacionalidades” para dar conta de


universos de prática e significação similares aos que na nossa
sociedade chamamos de parentesco. A avenida aberta por estes
trabalhos levou a uma mão dupla inesperada: encontramos em
sociedades ocidentais universos de relacionalidades que acabam por
expandir a nossa própria noção de parentesco. É assim que a autora
lida com o caso de filhos adotados e suas relações com as famílias
consanguíneas, por exemplo (MACHADO, 2012, p. 76).

Segundo Vieira (2004, p. 09), em toda parte as pessoas estabelecem


laços que incluem uma dimensão social, afetiva e material, distinguindo aqueles com
os quais mantém essa relação complexa e especial dentre todos os demais,
reconhecendo-os como parentes. No entanto, embora frequentemente a ligação
entre os parentes possa ser expressa em termos de genealogia comum, essa não é
143

necessariamente a única forma de fixar a conexão entre eles e nem é sempre a


justificativa principal que lançam para explicar o tipo de relação existente que os
une. As evidências postas pelos estudos etnográficos revelaram que a simples
ligação biológica não é o alicerce imutável das relações de parentesco. O
parentesco é algo vivo, flexível, manipulável, criado e recriado.

Igor Machado (2012, p. 24) demonstra a importância dos trabalhos de


David Schneider para os estudos de parentesco 65 . Ao analisar famílias norte-
americanas, Schneider (1968) discute sobre a importância do sangue e da biologia
na constituição familiar e conclui que nesse grupo, o sistema de parentesco é
baseado na ciência:

A relação consanguínea não pode ser perdida. É


culturalmente definida como sendo um fato objetivo da natureza, de
significação fundamental e capaz de produzir efeitos profundos. (...)
dois parentes de sangue são relacionados pelo fato de que eles
compartilham em algum grau o material de uma hereditariedade
particular. (...) o parentesco consiste na posse comum desse
material. (MACHADO. 2012, p. 23).

No caso americano, Schneider diferencia parentes de sangue, dos


parentes “relacionados” pela lei (in-laws). Nesse rol de membros familiares
encontram-se pessoas relacionadas “pela virtude de suas relações, não por seus
atributos genéticos” (SCHNEIDER, 1968, p. 27).

No contexto nikkei de Campo Grande podemos notar as diferentes


formas de elaboração de diversos parentescos, seja pela via do sangue, seja pelo
sobrenome ou mesmo, pela presença de fortes laços afetivos, em que os indivíduos
utilizam a linguagem do parentesco para definir suas relações.

Vemos que esses parentescos não são estáticos e nem podem ser
enquadrados em modelos. A categoria “meio-parente”, por exemplo, amplamente
utilizada por esta população, nos demonstra que, talvez, o intuito seja mesmo o de
65
Ou não-parentesco? Schneider era grande critico dos estudos de parentesco. De acordo com
Machado (2012, p. 76), Schneider considerava as pesquisas realizadas até então como “
etnocêntricas e baseadas em noções ocidentais de consanguinidade, talvez impossíveis de serem
transpostas para outras sociedades”.
144

buscar, não uma solidez nas relações, mas a possibilidade de serem criadas – e ao
mesmo tempo des(criadas) – ligações entre os indivíduos de acordo com o contexto
em que se encontram – ou se (des)encontram.

No caso de Raquel, podemos ver que na construção de seu parentesco


existe certa dinâmica quando se trata de relacionar ou não determinadas pessoas
enquanto parentes. Neste parentesco existe uma dinâmica, havendo a todo
momento um movimento que permite que relações sejam acionadas ou
desconectadas de acordo com cada situação vivida. Aqui, para cada vinculo, é
acionado um elemento diferente na construção de seu parentesco:

“De afetividade a nossa referência sempre foram os K 66 ,


convivemos a vida inteira. Meu avô é o K, porque eu nem conheci o
outro, até os 13 anos nem sabia dele. Eu vivia com ele. (Mas) Eu
tenho mais proximidade com as minhas primas N, relação de
amizade sempre foi com elas a vida inteira”.

Como foi comum durante todo o período de pesquisa de campo, ao


conversarmos sobre sua família, Raquel lembra que ao menos quatro pessoas estão
nesse momento no Japão, trabalhando como decasséguis. Entre estes, apenas uma
de suas primas vive com o marido e a filha no Japão. João, um de seus primos
casou pela primeira vez no Japão com uma filipina, com quem teve uma filha que
não vê. Posteriormente casou novamente com uma nikkei, com quem teve outro
filho. Sua esposa, que já era mãe, atualmente vive no Brasil com as crianças,
enquanto ele continua seu trabalho como decasségui.

Hideki, o “estragado da família”67, vivia também entre Brasil e Japão.


Sua esposa e filhos o acompanhavam algumas vezes. Entretanto, no ultimo retorno
ao Brasil de sua família, Hideki decidiu “abandoná-los”68, regressando ao Japão
sozinho e nunca mais retornando.

66
Ao contrário do que ocorre com os nomes, em que optei por usar pseudônimos, no caso de
sobrenomes, prefiro a utilização de letras ou siglas.
67
Palavras da própria informante.
68
Palavras de Raquel.
145

Vistos como “destrambelhados” ou “estragados”, os nikkeis que migram


ao Japão para trabalhar como decasséguis produzem um reordenamento familiar,
seja entre seus cônjuges e filhos que ficam no Brasil, seja construindo novas
famílias na Terra do Sol Nascente.

Para Paulo, por exemplo, um jovem nissei de origem naichi de 28 anos,


outros elementos, excluindo-se o sangue, são acionados para construir suas
relações de parentesco. Ao conversarmos o jovem esclarece que somente pessoas
próximas são por ele consideradas “parentes”. Durante nossa conversa, apesar de
ter mencionado a existência de diversas irmãs e sobrinhos de seu pai, Paulo não os
insere em sua genealogia, pois, segundo ele, não existe nenhum elo que os una
enquanto familiares. Para Paulo a consanguinidade não é o motor dessas relações,
sendo a proximidade e o convívio os reais elos entre seus “familiares”.

Tal reordenamento, resultado tanto da distância geográfica ou afetiva,


quando das separações de fato – como ocorre nos casos de divórcio ou abandono –
leva a população nikkei em Campo Grande a reformular os papeis de cada indivíduo
dentro da família, bem como a produzir novos laços de parentesco entre os
“abandonados”.
146

Figura 16 – Genealogia de Paulo

Fonte: Nádia Fujiko Luna Kubota


147

4.2. ALÉM DA GENEALOGIA - CROCHETANDO LAÇOS DE


PARENTESCO

Foi possível notar que determinados laços ou sentimentos entre certos


indivíduos podem ser exteriorizados para os termos de parentesco, extrapolando o
sentido da “amizade”. Em uma de nossas conversas, Paulo diz para irmos até a
casa de seu primo para ver se tinha alguém. Conhecendo sua “genealogia”, sabia
que Paulo não possuía primos nikkeis consanguíneos na cidade. Perguntei então,
que primo era esse. Ele então me respondeu de forma muito simples, “meu primo”.

Esse era o primo que Paulo adquiriu na infância. Bruno e Joaquim


(irmãos) eram amigos de infância de Paulo. De origem japonesa, seus pais haviam
se dirigido ao Japão quando os dois eram ainda muito pequenos. Ficaram aos
cuidados de avós, mas logo se aproximaram da família de Paulo e começaram a
frequentar constantemente sua casa. Isso ocorreu há cerca de 20 anos.

Ainda hoje, esses jovens mantêm seus laços familiares a partir da


afinidade, demonstrando o quanto o sangue, no caso naichi, é substancia fraca na
criação de parentes, sendo as relações construídas ao longo da vida, consideradas
por meus interlocutores como um elemento mais importante do que a
consanguinidade no que se refere aos parentescos que (re)elaboram
constantemente.

Como discutido por Schneider (1968), Sahlins (2013), Carsten (1995,


1997, 2004), Machado (2011, 2013, 2014), entre outros, o parentesco está longe de
ser definido pelos laços de sangue ou da biologia. Diversas etnografias e reflexões
demonstram cada vez mais o quanto o parentesco pode ser baseado em diferentes
elementos além do sangue, como a comida, o espaço compartilhado da casa ou até
mesmo, como no contexto nikkei-naichi de Campo Grande, nas relações afetivas e
148

de certa cumplicidade estabelecidas entre os indivíduos. Neste sentido, o que se


compartilha entre os nikkei da cidade são valores, emoções e sentimentos que criam
fortes vínculos de afeto entre eles.

Especialmente entre os jovens, vemos que possuir ou compartilhar a


substancia do sangue, é encarado como elemento secundário quando pensam
sobre quais indivíduos são considerados como familiares. A família é, portanto,
composta por aqueles com quem se mantêm determinadas relações e vínculos
compreendidos como “laços fortes” e mais duráveis do que a consanguinidade.

Essa conclusão foi possível através da construção das genealogias


que, para esta população nikkei, referia-se imediatamente ao koseki-tohon, que está
relacionado à transmissão do sobrenome, sendo mantida uma certa lógica de ie
entre os descendentes em Campo Grande. Entretanto, ao contrapor as genealogias
às entrevistas, vemos em alguns casos, que até mesmo o elo criado pelo
sobrenome é ultrapassado, em todos os casos observados, já que meus
informantes, ao possuírem a opção de excluir parentes o fazem sem maiores
problemas ou incômodos. Em todas as entrevistas por mim realizadas, diversos
indivíduos foram excluídos por meus interlocutores, apesar da existência da relação
de consanguinidade entre eles. Relação de sangue que, para estes nikkei,
especialmente de origem “naichi”, não é suficiente ou forte o bastante para a
consolidação da noção de família. O parentesco, nestes casos, precisa ser
estimulado e ativado constantemente ou acaba perdendo potência e,
consequentemente, é anulado. O sangue se mostra, desse modo, um elemento
secundário nestas relações que baseiam-se primordialmente no convívio e na
afinidade entre os indivíduos.

Se pensarmos nas diferenças existentes na construção dos


parentescos entre indivíduos de origem naichi e de origem okinawana, a história de
José, citada no capítulo anterior, causa uma grande confusão, visto que, de origem
okinawana, por vezes demonstra o quanto a consanguinidade é um elemento frágil
na construção dos laços familiares, referindo-se sempre ao koseki e ao sobrenome
ao mesmo tempo que em reafirma a importância do sangue.

Apesar de contraditório, é preciso lembrar que José, apesar da origem


uchinanchu, vive desde a adolescência na região de Tóquio, é casado com uma
japonesa “de verdade” e ainda não é bem aceito pela família de Aiko, sua esposa.
149

Os pais Aiko só começaram a aceitá-lo depois da primeira gravidez e uma de suas


tias rompeu relações com toda a família, pois não estava de acordo com o
casamento de sua sobrinha com um “estranho”. Inicialmente José afirma que o
problema seria o fato de ser brasileiro, mas após algum tempo de conversa ele
conta que sempre é reconhecido como um descendente de okinawano no Japão, o
que poderia ser visto como mais um motivo para todo o problema familiar.

Senti que todo o tempo ele tentava me dar as “respostas corretas” e se


mostrar um verdadeiro “japonês do Japão”, tentando demonstrar que teria sido, de
certa forma, anulada sua condição de simples descendente nikkei e estrangeiro
decasségui naquele país. Por vezes o jovem corrigia sua mãe, uma baiana sem
ascendência nikkei, que estava presente, quando ela tentava falar alguns termos em
japonês. Seus três filhos, hoje com idades entre oito e um ano de idade, nascidos no
Japão, até aquele momento não falavam português, visto que em casa a família só
se comunicava no idioma japonês. Quando então o questiono sobre como seus
filhos poderiam interagir e se relacionar com a família que estava no Brasil, em
especial com a avó que a todo momento tentava, sem êxito, se aproximar dos netos
que acabara de conhecer pessoalmente69, percebo que José se sente sem jeito,
quase envergonhado70.

Conversando sobre sua família, juntamente com uma de suas primas,


Marli de aproximadamente 30 anos e casada com um não-descendente, José afirma
que não considera como parentes os filhos e filhas de seu tio (pai de Marli) que não
foram registradas por ele. Nesse caso, para José, ter um sobrenome é mais
importante do que o sangue quando se trata de família, apesar de ser descendente
de okinawanos. Abaixo segue um diálogo entre os primos:

José: nesse termo aí tem o pai da Marli. Porque o pai da Marli


é o mais velho. Mario. Como seu pai fica nessa história aí? Porque
você tem um monte de irmão que eu nem sei mais. Nem sei o nome
da sua irmã mais nova.
Nádia: Quantos casamentos ele teve?

69
Aquela foi a primeira visita de José ao Brasil desde que seus filhos nasceram. Sua mãe via os
netos apenas por Skype, mas José confessa que quando seu filho mais velho percebe que é sua avó
no vídeo, desaparece, evitando qualquer contato, já que não a entende.
70
Nosso primeiro encontro ocorreu em dezembro de 2011. Há alguns meses nos falamos
rapidamente por telefone e José me contou que estava falando em português com os filhos.
150

Marli: Eu nem sei mais!

Mãe de José: foram quatro casamentos.

José: Eu só sei ela e os irmãos dela por parte do pai dela.

Contando com a presença da mãe de José, os primos aproveitaram


para perguntar mais sobre a história da família que eles mesmos desconhecem.
José se lembra que sua avó paterna faleceu quando seu pai tinha três anos de
idade, em 1967.

José: Minha avó morreu quando meu pai tinha três anos, em
1967. Depois ele casou com essa atual esposa dele e teve mais três
filhos. Meu avô. Aí, tipo, nesse pedaço aqui vai ficar meio complicado
pra você.
Nádia: Seu pai e o pai da Marli têm o mesmo pai e mãe?

José: Sim, são irmãos legítimos, de sangue.

Marli, desconhecendo a história, pergunta à mãe de José como se


chamava essa segunda esposa. Após a resposta, José continua a falar sobre os
filhos deste segundo casamento. Conta que uma filha é falecida e que uma outra é
casada, mas que não sabe nada sobre o casal, apenas que eles têm uma filha.

Marli comenta que seus primos sabem mais do que ela sobre quem
são os membros da família. Ele ressalta diversas vezes que não se lembra de todos,
porque eles não tiveram muito contato. José também contou com a ajuda da mãe,
que mesmo não sendo nikkei, teve contato com a maioria das pessoas da família do
marido quando eram casados71.

Ao dar continuidade à construção da genealogia, José e sua mãe se


dão conta de que o pai de Marli foi casado não quatro, mas cinco vezes. Além disso,

71
Os pais de José também são separados.
151

sua mãe relembra a existência de um outro filho de Mario, mas José não o inclui em
suas relações de parentesco:

“Se não assumiu não pode contar, não tem o nome. Se o pai
registrou, querendo ou não é parente. Leva o sobrenome, certo? É a
mesma coisa se você faz um testamento e na hora de dividir os
bens... Se o tio me falar, esse é seu primo, seu parente, aí vou ter
que falar que é, porque eu não vou mudar a história”.

Por vezes senti que José estava um pouco incomodado com essa
questão. Acredito que ele não queria que eu tivesse uma impressão errada sobre
sua família, ou que pensasse que era uma das tais famílias “destrambelhadas”. Mas
sua fala mostra muito sobre o que é importante para ele: a junção de sangue e
sobrenome. No caso deste jovem, sangue e sobrenome sozinhos não acionam
parentesco, mas ao unir esses dois elementos criam-se parentes.

Marli, ao contrário, apesar do mau relacionamento com o pai devido ao


seu comportamento “inadequado”, casando-se e separando-se diversas vezes, cita
todos os irmãos e irmãs consanguíneos em sua genealogia, mas nota-se que há
uma maior aproximação afetiva daqueles que foram fruto do casamento de seus
pais.

Em dado momento José decide ligar para seu pai, para tentar saber se
existiam outros parentes que ele havia esquecido. Tal fato nos remete à questão da
consanguinidade, pois apesar de não se recordar de todos, ele ainda procurava por
pessoas para incluir em sua genealogia. Seu pai, porém, também não se recorda de
outras pessoas.

José: É uma bagunça essa família. Até onde eu sei é isso,


acabou. O resto tem que ver no koseki.
152

Ao retornar ao assunto do koseki, José mais uma vez relata que o


documento está “certinho” e que seu avô e alguns dos seus tios foram os últimos
registrados no registro. Marli pergunta então se ele poderia lhe dar uma cópia. O
primo concorda e decide rememorar um momento de sua estadia no Japão, quando
decidiu entrar em contato com a família que nunca havia imigrado ao Brasil.
Chegando à casa de seus parentes, José apresenta-se, porém, ninguém o
reconhece como membro da família. José então corrige a história, informando que
seu avô, na verdade, não estava inscrito no koseki, não sendo então identificado
pelos que nunca haviam saído do Japão.

O jovem comenta que não sabe ao certo como a agência de viagens


realizou seu processo de ida àquele país, já que seu bisavô teria sido o último a
possuir o registro civil japonês e que, por isso mesmo, diversas pessoas
questionavam sua presença naquele país. José diz apenas que isso não importa
mais, já que agora é casado e a família tem seu próprio koseki, e que seu próximo
objetivo, na realidade, é pedir a naturalização.

Outra interlocutora que imediatamente também citou o koseki foi


Priscila. A jovem, de origem naichi e que viveu alguns anos no Japão como
decasségui, mencionou o documento logo que começamos a conversar, no
restaurante de sua família. Seu pai, que estava trabalhando próximo de nós naquele
momento, também menciona o koseki, mas logo se vira e continua seus afazeres.
Como não era minha intenção perturbar o funcionamento do restaurante, marco
outro horário para nos encontrarmos. Assim, na data seguinte, Priscila começa a
falar sobre sua família a partir de sua genealogia.

Diferentemente do que ocorreu com outros interlocutores, interessados


apenas em listar aqueles que consideravam parentes, sem falar muito sobre suas
vidas, Priscila inicia elencando uma prima e qual a relação que se estabelecia entre
ambas. Ela conta que Catarina, é como uma filha para sua mãe, resultado de ter
vivido diversos anos sob o teto da família:

A minha mãe é tipo a matriarca da família, e ela ainda


sustenta isso. Era eu, Catarina e a obachan que ficávamos em casa.
153

Sua fala refere-se ao fato de que, tanto sua avó, quanto sua prima,
viveram sob os cuidados de sua mãe por vários anos, sendo ela quem assumia toda
a responsabilidade por tudo o que acontecia na família. Ao continuar sua
genealogia, Priscila informa que, apesar do pouco contato com a família materna,
existe uma forte relação entre eles, que a jovem chama de “consideração”, por
existirem entre estes familiares, o elo criado por sua avó. Ela seria a linha que une
cada indivíduo nesta trama familiar. É através de sua avó que são criados os laços
efetivos entre Priscila e seus parentes citados, já que no caso da jovem naichi, ao
construirmos sua genealogia, divórcios e filhos fora de casamentos também foram
relembrados e alguns, não incluídos como parentes.

Há, por exemplo, um tio que possui uma filha que Priscila não conhece.
Apesar de mencionar a existência do interesse de sua parte por encontra-la um dia.
Há também o filho de sua prima Catarina, que engravidou sendo solteira. Neste
caso, entretanto, o menino faz parte de sua genealogia, visto que a proximidade
entre ambos é grande. Sendo criado pelos avós, a quem chama de pai e mãe,
Priscila relata seu interesse por trazer o garoto para viver com ela em Campo
Grande, pois Catarina seria muito namoradeira e, apesar de estar em um
relacionamento há cerca de cinco anos, não vê expectativas de que ela se case.
Entretanto, apesar das críticas ao comportamento da prima, Priscila ressalta a
importância de ter sido criada ao seu lado, tendo “aprendido com seus erros” e a
define como sendo mais sua irmã, do que sua irmã direta.

Dando prosseguimento à construção de sua genealogia, Priscila


discorre sobre o quanto é importante o tipo de relação que se estabelece entre ela e
cada parente mencionado. A inclusão de cada membro depende de mais ou menos
proximidade de sentimentos existentes entre eles. A jovem comenta então, sobre a
relação que se estabeleceu entre ela e uma prima que não conhecia, com quem só
teve o primeiro contato quando esteve no Japão. Sem saber de sua existência até
alguns anos atrás, Clara e Priscila são hoje extremamente próximas.

Vimos através de toda a etnografia descrita neste trabalho que, apesar


de possuir certas similitudes, as formas como os nikkei de origem naichi constroem
seu parentesco difere em determinados pontos da forma como os nikkei de origem
okinawana o fazem. Em ambos os casos, não se trata de um ou outro elemento
isolados os responsáveis pela elaboração da ideia sobre quem é ou não um parente,
154

ao contrário, é preciso amalgamar estes elementos, que juntos produzem parentes


ou “meio-parentes”.

Entre os nikkei de origem naichi, parece haver muito mais flexibilidade


na construção do parentesco, visto que assumem a importância da existência de um
sobrenome em comum na criação de seus parentescos mas, este sobrenome
precisa estar atrelado ao tipo de relação estabelecida entre os indivíduos. O sangue
no caso naichi, é substância preterida pelos meus interlocutores, não sendo
primordial para denominar quem pode ou não se tornar um irmão ou primo. Vemos
através das entrevistas que, coabitação e sentimento de pertencimento familiar, são
muito mais importantes do que compartilhar do mesmo sangue recebido por
determinados ancestrais.

Ao contrário, no caso okinawano, o sangue torna-se elemento mais


relevante quando se trata de acionar parentesco, especialmente relacionando-o à
presença de um mesmo sobrenome em comum. Em contraposição ao que ocorre no
parentesco naichi, em que indivíduos mais afastados são excluídos de suas
genealogias e esquecidos enquanto parentes, no contexto okinawano, pessoas
distantes tornam-se “meio-parentes” a todo o tempo, particularmente através de
sujeitos que criam vínculos entre pessoas portadoras de um mesmo sobrenome e de
um ancestral em comum.

Quando se trata de okinawanos e seus ancestrais, vale lembrar sobre a


etnografia de Tanaka (1977) citada anteriormente, em que a autora aborda a
questão da endogamia, que está fortemente relacionada ao pertencimento ao
mesmo solo/território, produzindo-se, portanto, casamentos entre pessoas com
ancestrais em comum.

No que se refere ao parentesco naichi, o que se nota é a necessidade


da ativação das relações entre pessoas que possuem um mesmo sobrenome
através da proximidade, seja afetiva/emocional ou mesmo geográfica. O caso de
Priscila, mencionado a pouco, é mais um desses exemplos. Vivendo no Japão como
decasségui, a proximidade que se cunhou entre elas e outros indivíduos que
compunham seu koseki-tohon, foi o elemento responsável pelo acionamento do
parentesco que hoje ela menciona.
155

Vemos que todas as genealogias e entrevistas descritas até o


momento, além de nos darem informações sobre como os parentescos possíveis
são construídos entre os nikkei de Campo Grande, indicam fortemente o quanto a
questão decasségui deve ser analisada mais profundamente. Ao tratarmos sobre
família, não podemos desprezar este movimento migratório de descendentes nikkei
brasileiros para o Japão que, no limite, tornou-se o responsável por transformações
na família nikkei de Campo Grande.

Os relatos citados nos revelam que grande parte dos informantes


mencionaram suas próprias experiências como decasséguis, ou citaram parentes
vivendo no Japão, tendo este movimento migratório contribuído para um
(re)ordenamento familiar, seja produzindo as chamadas “famílias destrambelhadas”,
seja o abandono e desaparecimento ou até mesmo, a criação de novas famílias no
Japão, que afetam as relações com os familiares que continuam na cidade

Finalizando as discussões sobre parentescos e famílias nikkei em


Campo Grande, o próximo capitulo é dedicado a este fenômeno migratório, visto por
muitos como problemático e ao mesmo tempo contraditório, especialmente no que
se refere aos motivos que levam descendentes nikkei a migrar para o Japão.
Opiniões contra e a favor, criticas ferrenhas dos que permanecem na cidade,
saudades e rancores por parte dos filhos que ficaram aos cuidados de terceiros.
Este é um movimento complexo e que precisa ser escrutinado para que possamos
entender todos os aspectos possíveis sobre como se constroem e se mantm as
famílias nikkei de Campo Grande.
156

5. Movimento Decasségui

Como dito anteriormente, após minha inserção em campo, foi possível


notar a necessidade de uma investigação sobre as famílias nikkeis na cidade de
Campo Grande com parentes distantes vivendo no Japão como decasséguis. Essa
foi uma das questões que mais apareceram durante todo o período de investigações
e que demonstrou ser um viés importante a ser considerado nesta pesquisa de
doutorado, não podendo ser preterido ou abandonado.

Ao tratar sobre este –relativamente - recente movimento migratório, opto por


utilizar o termo “distante” ao “ausente”, visto que no contexto de migração, não
necessariamente exista a ausência – ao menos emocional - por parte de algum

membro de uma família. Vale ressaltar que nos dias atuais, ao contrário do que
ocorria no início do processo migratório do Brasil para o Japão, os avanços
tecnológicos vêm servindo como aliados das famílias transnacionais,
proporcionando o contato e a comunicação frequentes entre esses indivíduos, ao
utilizarem recursos como Skype, Facebook, entre outros.

O uso de tais equipamentos no intuito de manter a proximidade por


parte dos migrantes tem sido tão comum, que pesquisas se debruçam sobre o
assunto. Sangernt, Larchance-Kim e Yatera (2007) debatem a questão do uso de
tais tecnologias entre famílias transnacionais entre França e África Ocidental.

No contexto nikkei campo-grandense, sempre que meus interlocutores


mencionavam sua experiência como decasséguis ou, como parentes de
decasséguis, relatavam a prática desta interação virtual – em maior ou menor grau -
157

com aqueles que estão ou estiveram distantes. Antes de entrar propriamente nesta

discussão sobre as famílias nikkei decasséguis da cidade de Campo Grande, bem


como são constituídas suas relações com aqueles que vivem no Japão, é preciso

retomar como se deu esse processo de migração para aquele país. Para tanto, o
próximo subcapítulo tratara sobre a história desse movimento.

5.1. O Movimento Decasségui – Da década de 1980 aos dias atuais

Diversos outros países já enviavam nikkeis (descendentes de


japoneses fora do Japão) para o Japão, entretanto, somente na década de 1980 o
Brasil começa a fazer parte desse fluxo (CAPUANO, 1997, 1999). Esse fenômeno
migratório surge no Brasil na década de 1980, consistindo na emigração destes
brasileiros descendentes nikkei para o Japão, conhecido como o “Movimento
Decasségui”.

A palavra decasségui originalmente significa “trabalhar fora de casa”, e


era usada especialmente para designar os trabalhadores que saiam de suas regiões
e dirigiam-se às áreas mais desenvolvidas, principalmente em épocas pouco
produtivas, quando o inverno rigoroso atrapalhava as plantações. A partir dos anos
de 1980, entretanto, foi usada para designar os brasileiros nikkeis, que trabalham no
Japão.

A ida desses brasileiros ao Japão se deu através de uma conjunção


entre necessidades brasileiras e japonesas. Naquele período, o Japão necessitava
de mão-de-obra nas fábricas e o Brasil passava por sérias crises político-
econômicas. O governo japonês necessitava de trabalhadores para as atividades
que não interessavam aos japoneses. Assim, optou-se por abrir as portas do Japão
essencialmente para nikkeis, esperando dessa forma, que houvesse pouco impacto
de outras culturas sobre as tradições japonesas (KEBBE, 2008, p. 38). Esses
158

brasileiros passaram a trabalhar no Japão como mão-de-obra não-qualificada e


barata, atuando nas fábricas e montadoras (de eletrônicos, automotivas, etc.).

No caso dos brasileiros, o trabalho decasségui (KAWAMURA, 2003, p.


12) caracteriza-se pela “nivelação para baixo de trabalhadores migrantes brasileiros,
os quais apesar das diferenças de background eram quase todos empregados em
atividades rotineiras e sem necessidade de qualificação técnica, conhecidas por três
Ks (kitsui – pesado, kitanai – sujo e kiken – perigoso), com acréscimo de mais dois
Ks pelos brasileiros (kirai – detestável e kibishii – exigente). O termo decasségui, de
caráter pejorativo, rotularia os emigrantes brasileiros considerados desqualificados e
por estarem, aparentemente, em busca apenas de remuneração financeira.

O termo decasségui, tem sido desde então intensamente utilizado para


designar todos72 os trabalhadores brasileiros que migram para o Japão na busca por
melhores condições econômicas, assim como seus antepassados que chegaram ao
Brasil a partir de 1908. Como os pais e avós que aqui chegaram, a ida ao Japão,
também era considerada temporária, visto que a ideia inicial desse grupo era a de
permanecer naquele país apenas pelo tempo necessário para acumular a quantia
necessária para reconstruir suas vidas no Brasil.

Contudo, assim como os japoneses que vieram ao Brasil a partir de


1908, a busca por melhores condições econômicas não era o único motivo que
levava os brasileiros aos Japão. A migração estaria envolta também por outros
elementos, como ascensão social e educacional para os filhos que ficavam, por um
desejo de “vencer na vida”.

Segundo Sasaki (2000, p. 04), a ida ao país de seus ancestrais não foi
bem vista pelos imigrantes japoneses que aqui se encontravam, pois apesar das
facilidades em entrar no Japão, eram considerados “clandestinos morais”73. Mesmo
nos dias atuais, apesar de terem se passado algumas décadas do início desse
movimento migratório, em Campo Grande ainda são feitas certas críticas por parte
daqueles que permanecem na cidade (veremos adiante).

72
Sasaki (In: REIS & SALES, 1999, p. 244) informa que ao contrário do que imagina-se, nem todos
os brasileiros no Japão caracterizam-se como decasséguis, exercendo diversas outras funções.
73
Segundo Elisa Sasaki (2000, p. 05) emigrar ao Japão como trabalhadores era vergonhoso para
muitos nikkeis, por isso muitos foram escondidos, sem que amigos ou familiares soubessem, evitando
assim reprovações.
159

Contudo, apesar de rotulados como trabalhadores desqualificados e da


reprovação pela atitude em dirigir-se ao Japão, em 1996 já existiam
aproximadamente 200 mil brasileiros nesse país, o que fez com que, ao longo dos
anos, essa imagem negativa do trabalhador brasileiro no Japão começasse a se
transformar:

O que era vergonhoso passou a ser uma boa oportunidade de


conhecer a terra dos antepassados e a cultura que tinge a pele de
amarelo e rasga os olhos, além de ganhar um salário melhor do que
se estivesse no Brasil, mesmo se submetendo a trabalhos
subalternos. (SASAKI, 2000, p. 05)

Apesar da situação em que emigraram - e ainda emigram -


(contrariando parentes e amigos) e sendo considerados desqualificados enquanto
mão-de-obra, a ida ao Japão aumentou cada vez mais. Sasaki (1999, p. 257)
classifica esse movimento em três fases: a primeira surgiu em meados de 1980,
quando os primeiros nipo-brasileiros estabeleceram-se no país de seus
“antepassados”74.

Posteriormente, entre o final da década de 1980 e início dos anos


1990, caracteriza-se o segundo período da emigração brasileira para o Japão.
Nesse momento o fluxo de migrantes entre os dois países foi grande, em
decorrência da instabilidade econômica experimentada no Brasil, e pela facilidade
em conseguir o visto de entrada no país do Sol Nascente 75 . É a partir desse
momento que “ser decasségui” adquire uma nova conotação, excluindo-se seu
sentido pejorativo e passando a ser uma possibilidade em conhecer o local de
“origem” (ver LESSER, 2000 e 2003), além de boa oportunidade em acumular
dinheiro. Em meados da década de 1990 configura-se a terceira fase do fenômeno
decasségui, quando dificilmente podia-se identificar o caráter temporário dessa
emigração.

74
Nesse momento, segundo a autora, o termo decasségui carregava maior sentido pejorativo,
justamente por trabalharem em locais caracterizados pelos três Ks já descritos.
75
Os isseis e nisseis com dupla-naturalidade possuíam facilidade em conseguir o visto: “os
decasséguis brasileiros têm acesso facilitado no Japão, dada a sua consanguinidade, a possibilidade
de exercer atividades no Japão sem restrições, de renovar o visto quantas vezes quiser e de vir a ser
um residente permanente” (SASAKI, 1999, p. 252).
160

Outra característica desse período foi a mudança na forma em que tais


migrações eram realizadas. Diferentemente do que ocorreu com seus pais ou avós,
que vieram ao Brasil em famílias – requisito este imposto pelo governo brasileiro da
época – nos primeiros anos da migração de brasileiros nikkei para o Japão, grande
número desses emigrantes eram homens casados ou solteiros que dirigiam-se
sozinhos àquele país. Entretanto, com o passar dos anos, famílias inteiras começam
a ter o Japão como destino.

Aos poucos evidencia-se que, contrariando suas expectativas iniciais, o


retorno ao Brasil é cada vez mais remoto, sendo comum após regressarem ao Bra-
sil, permanecerem pouco tempo em suas cidades natais. Um novo momento, porém,
foi estabelecido no que se refere aos migrantes brasileiros no Japão. Com a atual
crise econômica que afetou fortemente Europa e Japão (iniciada em 2008), esses
parentes distantes foram retornando ao Brasil e assim, pressupõe-se o surgimento
de uma nova (re)ordenação das relações familiares. Estima-se que em 2009 50 mil76
brasileiros no Japão estiveram desempregados, muitos tendo retornado a suas cida-
des natais:

A diminuição drástica da renda mensal alterou a distribuição


dos brasileiros na cidade de Hamamatsu, muitos deles hoje retorna-
dos ao Brasil e outros tantos relocados para inúmeros dormitórios
municipais ou provincipais dispostas na cidade. Desta nova distribui-
ção, dos 19.402 brasileiros na cidade (SASAKI, 2009) estima-se que
cerca de 4.000 deixaram a cidade rumo ao Brasil no período. Uma
série de estabelecimentos brasileiros foram fechados, o que pude
perceber facilmente durante caminhadas com brasileiros pela cidade.
Assim, vários bairros que continuam uma presença brasileira como
Takaoka, Ohiradai e Sanarudai acabaram ficando esvaziados.
(KEBBE, V. 2013, p. 63-64)77.

Entretanto, ao realizar a pesquisa de campo em Campo Grande, pude


constatar que muitos dos decasséguis que haviam retornado à cidade no período de

76
Fonte: ipcdigital.com/br. Acesso em 11 mai. 2009. Disponível em <
http://ipcdigital.com/br/Noticias/Crise-no-Japao/Pelo-menos-50-mil-brasileiros-estao-desempregados-
no-Japao >
77
De acordo com informações pessoais de Kebbe, a populaçãoo de brasileiros em Hamamatsu é de
aproximadamente 8.000 pessoas atualmente. Tal informaçãoo foi colhida por ele em sua ultima
pesquisa de campo, realizada no Japão no final de 2014.
161

2008 a 2010, já haviam novamente feito suas malas e se dirigido mais uma vez ao
Japão, apesar da crise econômica enfrentada pelo país. Outros, que ainda perma-
necem na cidade, falam sobre a possibilidade de retornar ao Japão caso “as coisas
não andem bem por aqui”.
Observa-se que muitos acabam, portanto, por viver entre Brasil e
Japão, não se fixando definitivamente em lugar algum, enquanto outros
estabelecem-se terminantemente no Japão. A presença definitiva naquele país se
dá mesmo com a existência de parentes em suas cidades natais, proporcionando
assim, um reordenamento das relações familiares. Esse reordenamento leva em
conta não somente a distância dos parentes que permaneceram no Brasil, mas a
possível proximidade de parentes (muitas vezes desconhecidos) que encontram-se
no Japão.

Muitos destes decasséguis vão para complementar a renda


familiar, contudo, outros partem como uma forma de se desligar de
seus parentes no Brasil – ou mesmo se religarem com parentes no
Japão – gerando um imenso desconforto quanto ao próprio termo,
para alguns incorreto, inadequado ou mesmo obsoleto. Nem todo
mundo vai para o Japão para ganhar dinheiro e voltar (KEBBE, 2012,
p. 24).

Vemos que os motivos para partir ao Japão são diversos, entretanto,


fica claro ao realizar a pesquisa de campo que as razões que levam a população
nikkei de Campo Grande a emigrar independem de suas origens okinawana ou
naichi. No subcapítulo abaixo trato sobre como o movimento decasségui apaga de
certa forma as diferenças entre os nikkei em Campo Grande, sem anular, entretanto,
uma outra diferença que é posta assim que pisam em solo japonês: os nikkei
continuam a alimentar a ideia de heterogeneidade no sentido em que sua condição
de estrangeiros e/ou de “japoneses” diferentes permanece inalterada em relação aos
japoneses não-imigrantes do Japão.
162

5.2 O Movimento Decasségui e a (Quase) Homogeneidade

Durante toda a realização desta pesquisa ficou claro que a questão


decasségui deveria ser observada, visto que em todas as famílias contatadas por
mim possuíam alguma relação com parentes vivendo no Japão ou tendo eles
mesmo vivido tal experiência em algum momento de suas vidas. Pude aos poucos
perceber que o movimento decasségui era um elemento importante no que tange as
formas de se pensar e elaborar as relações de parentesco e as formas como os
indivíduos organizam – ou desorganizam – seus laços familiares.

Quando parentes – especialmente pais, mães, filhos – migram, é


preciso 1) repensar de que forma as estratégias possíveis serão utilizadas para que
as relações entre estes sujeitos não se percam no contexto da distância geográfica,
ou ainda, como 2) desfazer ou anular relações que não são mais consideradas como
importantes por aqueles que migram e deixam seus familiares em Campo Grande.
Estes dois pontos serão discutidos nos tópicos a seguir, entretanto, antes de
avançarmos sobre como o movimento decasségui reformula e reelabora as noções
de parentescos e família entre os nikkei de Campo Grande, é preciso retomar um
ponto importante desta pesquisa e que se refere à questão da heterogeneidade
japonesa e nikkei, relacionando a partida ao Japão a existência das diferenças entre
okinawanos e naichi da cidade.

Durante a realização do trabalho de campo, acompanhando as


obachan na Associação Okinawa ou contatando meus informantes e realizando
entrevistas e genealogias, foi possível observar que, no que se refere as diferenças
entre os dois grupos nikkei na cidade, partir ao Japão não se relaciona ao
pertencimento okinawano ou naichi. Indivíduos pertencentes aos dois grupos
migram para trabalhar como decasséguis independente de “quem é o quê”.
163

Ser ou pertencer ao grupo okinawano ou ao grupo naichi não interfere


mais ou menos na decisão de deixar a cidade de Campo Grande e,
consequentemente, deixar sua cidade natal para trabalhar em outro país, neste caso
o Japão, de certa forma, anula ou vela as diferenças entre os dois grupos neste
novo contexto especifico de migração decasségui.

Aparentemente, dirigir-se à terra natal de seus pais, avós ou bisavós


produziria entre estes nikkei uma homogeneização, sendo todos apenas
descendentes nikkei. Entretanto, o próprio termo nikkei produz em si mesmo uma
nova diferenciação e classificação que fomenta, novamente, a heterogeneidade que
demonstra o erro ao se pensar no Japão e seus descendentes espalhados pelo
mundo enquanto uma unidade coesa.

No contexto decasségui, pouco importa a origem “japonesa” dos


trabalhadores. Ao chegarem ao Japão, ao contrário do que se acredita normalmente,
estes indivíduos não são vistos pela sociedade local como “japoneses” que enfim
realizam a viagem de retorno, mas sim, imigrantes brasileiros ou estrangeiros,
independente de seus sobrenomes e seu fenótipo.

Ao estabelecer as leis para recebimento de estrangeiros no Japão


como trabalhadores nas fábricas, o país optou por receber preferencialmente
descendentes nikkei a fim de tentar controlar as possíveis influências externas que
poderiam causar “danos” à sociedade japonesa, tão conhecida por sua suposta
coesão e homogeneidade (KEBBE, 2012, SELLEK, 1997). Desse modo,
descendentes nikkei possuem facilidades para dirigirem-se ao Japão, pois estariam
de certo modo, mais próximos das tradições e costumes japoneses do que
estrangeiros sem origem “japonesa”, visto que, de acordo com Sellek (idem) “the
arrival of “new” migrant workers has presented another serious challenge to the
prevailing conceptualization of Japanese racial an cultural homogeneity” (SELLEK,
1997, p. 179).

Sellek (1997) ao enumerar quem seriam os indivíduos que poderiam


adentrar no Japão sem causar grandes transformações nessa homogeneidade e
coesão, cita os nikkei como aqueles considerados menos problemáticos para
viverem no país:
164

South American of Japanese descent and their spouses (the


Nikkeijin). These individuals are legally permitted to reside in Japan
with no job restrictions, for up to Three years. (SELLEK, 1997, p.
185).

Entretanto, apesar de considerados “japoneses” no Brasil, estes


imigrantes são vistos como estrangeiros no Japão, ou melhor, como Nikkeijin,
pertencendo desse modo, a uma categoria intermediaria entre ser ou não ser um
japonês nacional78. Esta sua condição intermediaria os coloca, no limite, em uma
classificação de minoria no Japão, ao lado de okinawanos, Burakumin, Ainu, entre
outros.

The presence oh Nikkeijin also provides an opportunity to


reconsider what it means to be “Japanese”. It also raises questions
about the ideological boundary which separates the Japanese from
certain national minorities within Japan. The commonsense definition
of “Japaneseness” encompasses both culture and pseudobiological
notions of a Japanese “race”. Although Nikkeijin are descendants of
Japanese emigrants and therefore share the same lineage as the
Japanese, their language, culture, customs and behavior derive from
South America. The physical appearance of some Nikkeijin might be
indistinguishable from that of indigenous Japanese, but it has been
claimed that Nikkeijin are easily identified by their social behavior.
Thus, while they may be regarded as Japanese in their countries of
origin, in Japan they are identified as Brazilians or Peruvians. (…)
People such as Nikkeijin, kikokushijo, Japanese orphans left behind
in China after the Second World War, and even Japanese permanent
residents abroad must be considered somewhat different from “real”
Japanese (SELLEK, 1997, p. 201).

Podemos observar que, apesar da abertura do Japão para receber


trabalhadores nikkei, buscando-se por indivíduos que pudessem manter o conceito
de nihonjinron vigente naquele país, estes migrantes continuam a reforçar a
existência de classificações internas no Japão e, expondo a continua existências das

78
Japoneses não migrantes.
165

chamadas minorias étnicas na terra do sol nascente. Assim, verifica-se que o


pertencimento okinawano ou naichi é obliterado pela condição de migrantes no
Japão, ao mesmo tempo em que seu pertencimento nikkei torna-se cada vez mais
evidente.

Ressalto que, apesar das particularidades internas ao grupo nikkei de


Campo Grande serem de certa forma apagadas pelo processo de migração
decasségui, continua sendo importante a análise de suas famílias na cidade, visto
que, de certa forma, relações de diferenças continuam a ser produzidas entre estes
indivíduos e os nacionais japoneses. Deste modo, os próximos capítulos referem-se
aos dados colhidos na pesquisa de campo sobre as transformações e
(re)formulações constantemente realizadas nas famílias nikkei da cidade.

Já sabemos que os motivos ou explicações para a ida ao Japão por


parte dessa população nikkei são diversas, assim como são muitas as formas como
estas famílias distantes se reorganizam – ou se desorganizam - neste contexto, visto
que ainda há a ideia entre a população que permanece na cidade, de que migrar ao
Japão provoca problemas, como os citados ao longo desta tese.

Para compreender mais especificamente sobre esta questão, passemos ao


próximo subcapítulo, em que trago mais uma vez a etnografia para elucidar este
assunto que é, de certa forma, visto por meus interlocutores como problemático e
responsável pelo “destrambelhamento familiar” campo-grandense.

5.3. Família, almoça junto todo dia?

No contexto do movimento decasségui está presente de forma


praticamente inerente a distância entre parentes. Quase todos os nikkei da cidade
de Campo Grande possuem alguém de suas famílias que habitam no Japão há
muitos anos. São pais que vivem longe de seus filhos, tios longe de sobrinhos e
assim por diante. Em alguns raros casos, existe a decisão por parte de pais de
migrarem levando consigo seus filhos mas, mesmo nestas situações, há sempre
166

alguém que fica, como avós, tios, sobrinhos, e os almoços de domingo na casa das
avós, desse modo, nunca estão completos.

Mas nestes casos, em que a família nuclear migra unida, deixando no


Brasil aqueles parentes que, de alguma forma são considerados mais distantes,
especialmente levando-se em conta as diferenças geracionais, existe sempre a ideia
de que, de certa maneira, não houve exatamente uma separação, afinal, o primordial
nestes casos, é manter os filhos próximos de seus pais.

O caso de Maria - a professora de crochê - foi um destes. Apesar de


possuir um trabalho estável, concursada em um banco onde trabalhou durante
quinze anos, decidiu tentar a vida no Japão. Com o desejo de ter seu próprio
comércio, preparou suas malas e mudou-se com seus quatro filhos, a fim de
acumular certa quantia em dinheiro para tornar-se possível o sonho de ser dona de
seu próprio negócio. Lá viveu durante seis anos.

Seus filhos, três crianças e um adolescente, passaram a frequentar a


escola e contavam com o acompanhamento de um professor particular, fornecido
pelo Governo japonês, para que pudessem acompanhar o ritmo dos outros alunos.
Seus filhos, ao aprenderem relativamente rápido o idioma japonês, passaram então
a atuar como interpretes de Maria, o que é algo comum entre famílias nikkei que
vivem no Japão.

Crianças aprendem muito mais rápido outras línguas e muitas vezes


dedicam-se exclusivamente à escola, enquanto seus pais trabalham o dia todo e
dificilmente podem dedicar parte de seu tempo para o aprendizado da língua. Além
disso, mesmo vivendo em outro país, é comum que imigrantes frequentem
ambientes direcionados a outros indivíduos provenientes de seu país de origem,
como restaurantes e lojas ou, que estabeleçam seus laços de amizade ou de novos
parentescos (KEBBE, 2012) com outros conterrâneos, mantendo os diálogos e
encontros sempre na língua nativa.

Após seis anos trabalhando como decasségui, Maria decide voltar ao


Brasil com seus filhos. Tendo ajudado a reformar a casa de sua mãe, Maria havia
conseguido acumular uma quantia em dinheiro suficiente para recomeçar sua vida
em Campo Grande, mas desta vez, não como funcionária, mas como dona de seu
próprio negocio. Foi assim que, em 2008, ela abriu sua loja de aviamentos e
167

dedicou-se a ensinar a técnica do crochê para outras pessoas e passou a frequentar


a Associação Okinawa, onde ensina e vende seus produtos para as senhoras que
frequentam as reuniões do Fujinkai. Maria é um dos poucos casos em que a família
que foi unida, retorna ao Brasil decidida a não migrar novamente, estabelecendo-se
definitivamente em sua cidade natal. Seus filhos, ao retornarem, retomaram seus
estudos e o mais velho foi, no início de 2013, aprovado no vestibular para medicina
em uma universidade do estado de São Paulo, o que foi motivo de muito orgulho
para Maria.

Outra família que migrou unida para o Japão foi a de Priscila e sua ida
e permanência naquele país é fruto das redes (familiares) que lá já possuíam.
Pessoas nunca antes vistas ou conhecidas por Priscila quando ainda vivia no Brasil
passaram a ser apresentadas e uma nova família foi aos poucos se formando.

Priscila chegou ao Japão quando tinha 14 anos de idade. Segundo ela,


a ida se deu devido à grande insistência de sua irmã, que desejava sair do Brasil e
seus pais acabaram então por ceder. Chegando ao Japão, Priscila trabalhou
ilegalmente por algum tempo, já que não tinha idade suficiente para ser contratada
regularmente por nenhuma fábrica. Naquele país, acabaram se mudando diversas
vezes, sempre através dessa rede de “parentes desconhecidos”.

Foi assim que ela acabou conhecendo Clara, que esteve conosco em
nosso segundo encontro. Priscila e Clara relembram que estavam na fábrica quando
um outro parente as chamou e as apresentou.

As duas jovens me contam parte de sua história no Japão e como


diversas pessoas foram aos poucos entrando em suas vidas:

Priscila: eu sabia que tinha uma prima lá, mas não sabia, por
causa do Augusto. Porque o Augusto levou a Clara pra lá. A Clara
ficou na casa do primo Augusto. E esse primo Augusto foi quem
recebeu a gente quando teve os problemas no Japão. Ele acolheu a
gente na casa dele. Dai que eu conheci o primo do meu pai. Eles são
primos de infância. Só que eu não conhecia. Eu não conhecia a
Roberta, que são uns amores. Receberam a gente lá. A casa era
pequena, ficou uma família em um quarto e a nossa família no outro.
Até conseguir emprego, tudo, e a gente foi pra lá. Depois a gente foi
pra Nagoya. Nessa época eu não estava trabalhando, eu era de
menor, tinha 14. Eu fui pra Hiroshima, daí não deu certo, daí o
Augusto acolheu a gente. Arrumou emprego pra todo mundo,
168

apartamento bom, tudo. Dai que eu conheci o Maurício e o Mateus.


Dai uns meses depois, quando você chegou? Em janeiro?
Clara: Não, cheguei em abril.

Priscila: Abril? Então, depois de alguns meses eu conheci a


Clara. Dai me chamaram lá fora pra contar. “Priscila, essa aqui é sua
prima tá? Você vai ter que ensinar o serviço pra ela” (Risos). Foi
assim que a gente se conheceu. Eu, “oi prima!” (Risos). Muito louco.
Acho que se eu tivesse ido pra São Paulo a gente não teria essa
amizade que a gente tem hoje.

As duas, hoje muito próximas, aproveitam o momento para contarem


as famosas “fofocas” de família, como separações, brigas por herança e desafetos.
Os problemas com divisão de bens teriam sido, inclusive, o estopim para o fim das
relações entre irmãos e primos de seu pai. Segundo Priscila, com exceção de Clara,
que genealogicamente é filha de um primo de seu pai, este lado de sua família “não
tem importância” e ela faz pouco esforço para tentar se lembrar de nomes.

Os problemas entre eles foram tantos que, mesmo após retornarem ao


Brasil, seu pai ficou anos sem visitar sua cidade natal, no interior de São Paulo.
Somente a família da mãe de Priscila é de Campo Grande e na fala abaixo ela
relembra alguns momentos da história de sua família que teriam culminado com o
afastamento de seu pai dos irmãos e até mesmo, o início do namoro de seus pais:

Nádia: Seu avô ainda esta vivo?


Priscila: Faleceu quando a gente voltou do Japão. Nós não
fomos pra lá depois que a gente voltou do Japão. Meu pai ficou dez
anos sem ver a família dele. Quando minha avó faleceu meu pai não
tinha ido ver a família dele. Dai meu avô faleceu, a gente estava sem
dinheiro, não tinha a facilidade que tem hoje. Quando meu avô faleceu
meu pai parou tudo e foi pra lá. E você acredita que quando ele foi pra
lá, pro velório do meu avô, o irmão dele ainda perguntou sobre a
procuração do meu pai. Olha que absurdo. Ele vai pro velório e na
hora do velório o outro quer saber da procuração. Então como a minha
mãe, apesar dela ser descendente, ela sofreu muito nessa época. Eles
se conheceram na faculdade e o pessoal, eles estudavam no interior
até o ensino médio e iam pra São Paulo fazer cursinho. Só que minha
mãe fala que meu pai foi muito, meu pai não era estudioso. Ele é
super trabalhador, trabalho braçal. Ele não reclama, não fala nada,
mas pra estudar, não faz esforço nenhum. Ele queria odontologia. Daí
a minha mãe diz que largou a faculdade pra casar com ele. Foi uma
batalha, foi uma luta. Ela casou só no cartório, o religioso ela não teve,
169

mas ela teve uma celebração budista. Diz que foi bonita pra caramba,
ela tem o álbum. Mas ela não teve casamento religioso. Só essa
cerimonia. Porque a família do meu pai era budista. (...) minha mãe
não queria mais confusão, se não tem relação familiar, só econômica,
pra ela não serve. Até hoje é assim.

Devido à tal desavença, o pouco contato existente atualmente entre


Priscila, Clara e outros primos se dá por redes sociais como Facebook. Priscila, que
retornou ao Brasil em 2005 e em 2012 terminou seu curso universitário em Campo
Grande, diz receber convites de determinadas pessoas que não conhece, ou que
encontrou apenas algumas vezes em sua vida, mas que descobre ser algum
parente, pois é possível enviar tais convites virtuais adicionando o grau de
parentesco entre os indivíduos.

O site foi citado em diversas conversas no período em que realizei a


pesquisa de campo. Com parentes distantes, na maior parte dos casos vivendo no
Japão como decasséguis, o Facebook tem sido visto como um verdadeiro elo entre
familiares. Através dele seria possível estar sempre em contato com tios, primos,
sobrinhos e até mesmo filhos e netos. Em todas os comentários a fala era sempre a
mesma: “hoje tem o Facebook, a família fica próxima”. Porém, depois de algum
tempo de discussão, não foi raro que meus interlocutores confessassem o fato de
sequer conversarem com muitos daqueles inscritos como parentes.

Adriana, uma senhora de aproximadamente 60 anos e com diversos


parentes vivendo no Japão, conta que a verdadeira interação entre sua família pela
rede social baseia-se apenas em olhar as fotos que ali são postadas. Raramente as
pessoas se comunicam, telefonando ou enviando mensagens para saber como
estão ou contar – e ouvir - sobre suas vidas e as novidades. Como nossa conversa
se deu em uma reunião da Associação Okinawa, Adriana baixa seu tom de voz, me
prevenindo que no local haveria muitos “meio-parentes” e que seria preciso tomar
cuidado com as palavras para evitar as famosas fofocas.

De modo geral, meus interlocutores afirmavam mandar mensagens por


Facebook para primos ou tios de duas a três vezes por ano, sempre muito
esporadicamente. Algumas vezes, as mensagens se referem apenas a recados de
parabéns em seus aniversários, data que o próprio site avisa a cada membro
inscrito. Já quando se trata de mensagens para pais ou filhos que permaneceram na
170

cidade, os contatos variam entre uma a duas vezes por mês, especialmente por
Skype, programa que realiza vídeo chamadas entre os usuários cadastrados. A
duração destas mensagens, entretanto, parece ser sempre curta, sendo as
conversas restritas a dizer que tudo está bem, até porque há o problema do fuso
horário de doze horas de diferença. Sendo assim, as ligações são realizadas ou no
período da manhã, antes de saírem para trabalhar, ou à noite, quando regressam
para suas casas e estão cansados para bater longos papos.

Em certo sentido, apesar de facilitar o contato e a interação entre


familiares, o surgimento das novas tecnologias não causou grandes transformações
nas formas como se mantém as relações entre estas pessoas, ao menos na cidade
de Campo Grande. Atualmente, mesmo com o fácil acesso à internet e a estes
recursos, não houve realmente uma grande mudança ou transformação na forma
como as pessoas interagem quando se trata de decasséguis.

Antes, nas décadas de 1980 e 1990, maridos ligavam para suas


esposas e filhos nesta mesma frequência de uma a duas vezes por mês, como
ocorre hoje em dia. Cartas eram enviadas nos aniversários dos filhos para
parabeniza-los da mesma forma como fazem atualmente através do Facebook. A
grande mudança, talvez, tenha sido a transformação na própria forma em que essa
migração era realizada. Nos últimos anos, muitos casais se dirigem ao Japão na
companhia de seus filhos, criando assim, a ideia de “família unida”.

É preciso ressaltar que, diferentemente do que vêm ocorrendo nos


últimos anos, como os casos de Maria e Priscila, que migraram ao Japão no início
dos anos 2000 em família, inicialmente, os pais eram os migrantes e os filhos
permaneciam com as mães, com as transformações que foram se estabelecendo no
movimento decasségui, quando as esposas passaram a acompanhar seus maridos,
os filhos passaram aos cuidados de avós ou outros parentes próximos, como tios, ou
irmãos mais velhos que ainda não haviam decidido emigrar (KAWAMURA, 2003).

Poderíamos, portanto, dividir o movimento decasségui entre os nikkei


de Campo Grande em três fases: 1) a primeira, realizada especialmente por
homens, solteiros ou casados que deixavam esposas e filhos na cidade; 2) a
segunda, quando as esposas decidem acompanhar os maridos nesta investida
partindo juntos, ou se dirigindo ao Japão para reencontrar com seus maridos que
haviam migrado anos antes, deixando os filhos aos cuidados de avós ou outros
171

parentes e, finalmente, 3) a terceira fase, caracterizada pela migração de pais e


filhos.

Opto desse modo, por tratar especialmente sobre estas duas primeiras
fases, citadas por meus interlocutores como as responsáveis pela destruição de
famílias, caracterizadas pelo abandono e pela traição. Seriam estes dois primeiros
momentos da imigração para o Japão, os causadores de um reordenamento familiar
realizado, especialmente, pelos filhos que ficaram na cidade.

5.4. Famílias aos pedaços e a formação de novos parentescos

Como vimos no capítulo anterior, ao construir as genealogias, muitos


de meus interlocutores citaram parentes vivendo no Japão como decasséguis,
muitos deles naquele país há décadas, tendo deixado filhos e esposas, produzindo
problemas ao “despedaçarem” suas famílias. Apesar deste termo não ter sido usado
por nenhum de meus interlocutores, entendo que ele represente bem o sentimento
daqueles que vivem em Campo Grande, visto que declaram abertamente a
sensação da existência de diversos problemas, muitas vezes chamados por eles de
emocionais ou psicológicos, resultado desta migração que construiria uma ruptura
afetiva entre familiares que vivem separados geograficamente. Estas famílias, de
certo modo, deixam de ser completas e/ou plenas, passando a ser vistas como
famílias fracionadas ou trincadas.

Entretanto, muitas vezes, essa ruptura não é resultado na migração


mas, ao contrário, é o próprio motivo por que muitos decidem partir. Na opinião de
um dos meus interlocutores, é raro que alguém vá ao Japão simplesmente para
ganhar dinheiro. A motivação, segundo ele, muitas vezes é o desejo prévio de uma
fuga da realidade vivida no Brasil, especialmente, do casamento. Neste caso, a
viagem ao Japão serve como ferramenta para desfazer determinados laços com os
172

que ficam aqui neste país. Para muitos, trabalhar no Japão seria mais fácil do que
assumir o fracasso de um casamento e oficializar um pedido de divórcio.

Durante uma conversa com o proprietário de uma agência de turismo


na cidade de Campo Grande, responsável desde 1990 por organizar a
documentação para o pedido de visto dos futuros decasséguis na cidade, não são
raros os casos em que esses imigrantes, ao chegarem no Japão, parem de enviar
noticias e remessas aos que ficaram em Campo Grande, desaparecendo por longo
período.

Ao questioná-lo sobre o motivo de tal desaparecimento, o senhor


inicialmente relata que muitos imigrantes no Japão teriam ficado envergonhados por
não conseguirem salários tão bons quanto os que almejavam antes da partida. Seria
assim mais fácil deixar de enviar noticias e dinheiro, do que dar algum tipo de
satisfação aos familiares.

Apesar desta sua resposta inicial, que remonta a existência de


determinadas características exaltadas por parte da população japonesa e nikkei,
como o sentimento de vergonha em decorrência de sua grande honra, conforme
íamos conversando, em determinado momento, ele retorna ao assunto e diz que,
por sua experiência e pelo contato que continua mantendo com os familiares dos
decasséguis, o que pode perceber é que na realidade esses imigrantes em
determinado momento não desejam mais manter o contato com determinados
parentes que aqui continuam, e uma das razões seria a criação de novos laços em
seu novo local de moradia e consequentemente, a criação de novas famílias.

A percepção por parte da família que fica, de que existem outros


motivos por parte do decasségui para sua mudança ao Japão, pode ser verificada se
retomarmos o período em que as esposas começam a seguir seus maridos. Muito
antes de iniciar minhas pesquisas sobre imigração nikkei em Campo Grande,
quando ainda era uma adolescente, pude acompanhar comentários e as famosas
fofocas sobre a decisão destas mulheres em deixarem os filhos para ficarem ao lado
de seus cônjuges. Acompanhar ou ir em busca dos maridos era, desde aquela
época, entendido por todos como uma maneira de evitar traições e divórcios e,
portanto, tentar manter a família unida. Para esta população de migrantes nikkei no
Japão, a distância dos filhos, criados a partir de então por avós e outros parentes,
seria superada pela possibilidade de manutenção dos casamentos.
173

Entretanto, em muitos casos, mesmo a ida das esposas em busca de


manter a proximidade de seus maridos não foi suficiente para manter seus
casamentos e a tão pretendida união. O caso do jovem Fernando, de 25 anos idade,
revela um pouco sobre essa situação. Após seu pai se mudar para o Japão para
trabalhar como decasségui, sua mãe decide depois de algum tempo deixar os filhos
com avós, a fim de manter o casamento com o pai dos jovens. Porém, mudar de
país para ficar ao lado do marido não foi suficiente para manter o casamento, o que
causou fortes dores e mágoas em Fernando e sua irmã. O jovem demonstra seus
sentimentos ao falar sobre a situação de sua família:

Após meus pais viajarem, se separarem, eu e meus irmãos fi-


carmos sem contato com meu pai, eu percebi que família realmente
era um ideal, que na verdade ele (o ideal) não existiria simplesmente
pelo consanguíneo. Quero dizer que o sentimento que sempre tive-
mos pelo nosso pai se mostrou como era, simplesmente um senti-
mento criado pelos anos de relação que tivemos com ele e não algo
preconcebido que nasce pelos laços de sangue. Pra reforçar, ele in-
clusive parou de mandar dinheiro passamos por problemas seríssi-
mos por causa disso. Percebi também que meu pai tinha as próprias
vontades dele e que na verdade, no fundo ele nos considerava um
fardo, algo que limitava ele. Hoje vejo que ele se arrependeu, meus
pais se separaram pois ele traiu minha mãe no Japão, e se isso já
não bastasse ele a abandonou lá literalmente, não ia buscá-la no fi-
nal do expediente dela, não dormia na casa junto dela, não saia com
ela, tinha dias que ela nem via ele. Assim minha mãe que na época
não tinha nem ensino médio, não sabia nem o básico de inglês se via
num mundo totalmente diferente daqui do Brasil. Tudo isso contribuiu
mais ainda pra ela entrar em depressão longe dos filhos longe de
qualquer rosto amigo ou conhecido.

Para a população nikkei de Campo Grande, a presença das mães na


cidade cuidando de seus filhos, ainda representava a ideia de que aquelas famílias
manteriam uma certa harmonia, ao passo que, com a ida cada vez mais constante
destas mulheres que buscavam manter-se próximas de seus esposos, teria se
iniciado a verdadeira crise familiar. Pude observar que as críticas contra aqueles
primeiros decasséguis – e mesmo os que deixam esposas e filhos nos dias atuais –
ainda é muito grande.
174

Há uma diferença considerável quando se questiona alguém sobre sua


experiência decasségui. Aqueles que regressaram à cidade e com quem pude
conversar, fazem questão de afirmar que optaram por migrar com sua família,
afastando qualquer possibilidade de comentários negativos. O mesmo ocorre entre
meus informantes solteiros que viveram no Japão, e que constituíram suas famílias
após retornarem à Campo Grande. Todos mencionam a possibilidade de uma nova
ida ao Japão mas, desta vez, levando esposas/maridos e filhos, afirmando que a
“família precisa ficar unida”.

Entretanto, apesar deste momento mais recente, em que pais e filhos


viajam juntos para a terra do sol nascente, foram centenas as crianças e
adolescentes que ficaram aos cuidados de avós, algumas vezes, até mesmo
vivendo com pessoas não muito próximas e praticamente estranhas. Essa situação
produz, consequentemente na cidade de Campo Grande, um novo ordenamento
familiar, baseado na criação de novas famílias compostas por aqueles
“abandonados”.

Como dito anteriormente, aos poucos, esses jovens que encontravam-


se longe de seus pais e que deixaram de possuir o sentimento de pertencimento
familiar, aproximam-se cada vez mais de amigos e passam a considerar-lhes como
“irmãos” ou “primos”. Amizade e parentesco, desse modo, se amalgamam sendo
difícil a criação de fronteiras entre ambos. Segundo Marshall (apud VIEIRA, 2004, p.
23), as relações de parentesco criadas pela amizade podem ser consideradas
potencialmente melhores do que as relações de parentesco construídas a partir do
fator biológico, visto que o “parente” é aquele que compartilha algo, que age como
tal. O parentesco precisa, portanto, ser estimulado, o que faz com que laços sejam
tanto criados quanto desfeitos.

Aqui, como exemplo, podemos retomar o caso de Paulo citado


anteriormente. Filho de pai imigrante naichi e de mãe não-nikkei, Paulo vê seu pai
retornar ao Japão quando ainda era uma criança, quando tinha aproximadamente 06
anos de idade. Como nos comentários de meus dois interlocutores acima, o
casamento dos pais de Paulo não ia bem e, com a grande movimentação de nikkeis
de Campo Grande para o Japão, em 1990 seu pai encontra um motivo para retornar
à sua terra natal. Sua mãe, na tentativa de contornar a situação em que se
encontrava com o marido, inicialmente cogita a possibilidade de acompanhá-lo, mas
175

ele nega, dizendo que ela deveria ficar para cuidar dos filhos. Algum tempo depois,
seus pais se divorciam e seu pai se casa novamente.

Nesta mesma época, um de seus colegas de sala no colégio, o primo


Bruno, também enfrentava a mesma situação. Seu pai havia se mudado para o
Japão para trabalhar como decasségui e, tempos depois, sua mãe decide deixar a
cidade para encontrá-lo, fazendo com que Bruno e seu irmão Joaquim passassem a
ser criados pela avó. Vivendo a mesma experiência, mesmo sendo ainda muito
crianças e sem entender muito bem o que se passava, os três meninos foram se
aproximando cada vez mais. A mãe de Paulo ia buscá-lo todos os dias na escola e
assim conheceu a mãe de Bruno e Joaquim, com quem sempre que possível
conversava e, dessa forma, toma conhecimento da partida da mãe dos dois irmãos.
Continuando com sua rotina diária, a mãe de Paulo procurava sempre se manter
informada sobre os meninos, que passaram então, a frequentar sua casa.

O que se produziu, aos poucos, foi a transformação de uma relação de


amizade para os termos do parentesco. Paulo, Bruno e Joaquim, que antes eram
apenas colegas de colégio, transformaram-se em grandes amigos para, finalmente,
cunharem seu parentesco. Passados mais de vinte anos, os três meninos tornaram-
se adultos, casaram-se, tiveram filhos, mas ainda são os mesmos primos de
sempre. Bruno e Joaquim continuam sendo estimados pela família de Paulo que os
acolheu naqueles anos anteriores.

A mãe de Paulo, em toda esta historia de abandonos, tornou-se mãe e


tia de muitos. Quase todos os amigos nikkei de seus filhos entram em sua casa sem
cerimonias a chamando de tia a todo momento. Além destes sobrinhos, ela também
tornou-se mãe de André, hoje um jovem de 33 anos de idade, casado e pai de duas
meninas. André conheceu a irmã de Paulo quando ambos tinham aproximadamente
14 anos de idade e estudavam no mesmo colégio na década de 1990 em Campo
Grande.

Seus pais haviam migrado para o Japão quando André era ainda
criança, deixando-o com os dois irmãos mais velhos e a avó materna, que não tem
ascendência nikkei. O relacionamento de André com seus irmãos não ia bem,
ambos não se entendiam e se mantinham afastados, pouco interagindo entre si
(alguns anos mais tarde, seus irmãos também decidem se mudar para o Japão e
André fica só com a avó). O jovem começa então a passar mais tempo nas ruas do
176

que em sua casa. Estava sempre com um ou outro amigo em jogos de fliperama
durante o dia e em bares durante a noite. Era o típico garoto problema. Nessa
época, ele conhece Rita e ambos começam a se aproximar.

Assim como aconteceu com Bruno e Joaquim, Rita passa a levar André
para sua casa e, pouco tempo depois, o garoto ganha novos irmãos e uma nova
mãe, que era chamada exatamente desta forma pelo adolescente: mãe.

Aos dezesseis anos de idade, aproximadamente em 1996, apesar das


críticas e da reprovação da nova família, André decide ir ao Japão, assim como
fizeram seus irmãos biológicos. Ao contrário do que ocorre normalmente entre
decasséguis, durante todo o período em que esteve naquele país, foram constantes
os telefonemas e as cartas enviadas para a (nova) família que havia deixado no
Brasil.

O contato era tão comum que, ao retornar à Campo Grande, André dá


continuidade às relações anteriormente construídas, visitando a “nova” mãe e os
“novos” irmãos frequentemente. Neste período em que esteve de volta conhece sua
atual esposa, que engravida em seguida. Lizandra, que não tem origem nikkei, é
apresentada à sua nova sogra e também é adotada por aquelas pessoas.

Algum tempo após o nascimento de sua primeira filha, o casal decide ir


junto ao Japão. Mais uma vez sob fortes críticas e sem a aprovação da família, os
dois deixam sua filha ainda pequena com a mãe de Lizandra. É nesse momento,
diante da forte reprovação com relação ao novo retorno ao Japão, que o contato
começa a se tornar mais esporádico, apesar de nunca terem deixado realmente de
se falar. André mandava notícias sobre acontecimentos importantes, contava sobre
como estavam as meninas e perguntava aos irmãos sobre sua mãe.

Foram diversas idas e retornos. Em sua última estadia no Japão


Lizandra e André haviam partido quando a filha caçula - nascida em Campo Grande
em um desses momentos que o casal havia decidido se fixar na cidade – estava
com apenas alguns meses de idade, retornando ao Brasil somente em 2012, após
quase oito anos ininterruptos longe.

Durante todos aqueles anos, os pais e irmãos biológicos de André


sempre estiveram no Japão, mas de acordo com o casal, sempre moraram em
cidades diferentes e foram poucas as vezes em que se viram. Aproximadamente em
177

2010 seu pai biológico descobre um câncer e decide então, retornar ao Brasil. Em
nosso encontro a questionei se, a partir desse momento, os avós teriam se
aproximado de suas netas, mas Lizandra afirma que não.

Vemos através destes exemplos de meus interlocutores que, na


ausência de membros familiares e, diante da pouca força da consanguinidade,
muitos indivíduos citam suas relações com amigos como forma de
relacionalidades/parentesco. Porém, pude observar que esse novo parentesco,
criado a partir dos laços de amizade e de fortes sentimentos entre estes jovens,
mantiveram-se dentro do mesmo grupo de origem nikkei. Todos são filhos ou netos
de imigrantes naichi que se aproximaram após a ida de seus pais ao Japão.

Diferentemente do que cita Kebbe (2012), que demonstra existir uma


anulação das diferenças naichi e okinawana quando nikkeis migram ao Japão para
trabalharem como decasséguis, essa diferenciação aparentemente persiste entre
aqueles que continuam em Campo Grande. No caso decasségui, novas relações
são formadas entre os imigrantes brasileiros, independente de suas origens ou
pertencimentos, criando-se laços e uniões entre nikkeis okinawanos e naichi. No
Japão, longe de outros familiares e até mesmo dos amigos, aparentemente tais
diferenças entre okinawanos e naichi passam a ser suprimidas diante da sublimação
de sua condição de brasileiros imigrantes que os colocaria na já citada “minoria
nikkei” em detrimento de outros pertencimentos – okinawanos, naichi ou outros.
Naquele país, são todos brasileiros decasséguis e suas origens tomam uma menor
importância ao se construir novos laços.

Ao compararmos os dois contextos – decasségui e campo-grandense,


certamente seria precipitado afirmar contundentemente que novas relações são
produzidas entre aqueles que ficam na cidade de Campo Grande, orientando-se
exclusivamente pela origem nikkei e grupo ao qual pertencem, em contraposição ao
contexto nikkei no Japão, entretanto, levando-se em consideração que entre aqueles
que ficam, não há uma ruptura ou transformação nos sentidos de pertencimento, os
casos encontrados em Campo Grande nos fornecem indícios de que esta divisão
pode ser continuamente mantida ao se estabelecerem novos elos familiares,
especialmente se levarmos em conta que, muitos destes jovens frequentam espaços
destinados mais a determinado grupo nikkei – Clube Nipo ou Associação Okinawa, o
178

que, mantendo-se de certo modo, mais próximos daqueles que possuem o mesmo
pertencimento nikkei.

Nota-se que, apesar da partida de familiares ao Japão derivada do


movimento decasségui – especialmente pais e mães –, o (re)ordenamento familiar
que se produz decorrente da distância destes parentes, é similar ao parentesco
construído ao longo das décadas de imigração nikkei na cidade e detalhados nos
capítulos anteriores. Verifica-se que, de certa maneira, as relações entre os grupos
naichi e okinawano de descendentes de decasséguis, mantem a lógica dos que
chegaram do Japão à cidade, dando continuidade a certa oposição e a
heterogeneidade.

Assim como é possível observar a criação de novos laços e da


plasticidade da consanguinidade na construção do parentesco nikkei em Campo
Grande, podemos também notar claramente entre descendentes de decasséguis
uma constante mudança dos os papeis de parentesco realizados por cada individuo.
Irmãos ou avós assumem os papeis de pais e mães enquanto estes estão no Japão
trabalhando como decasséguis, e muitas vezes, com o retorno desses membros
familiares ao Brasil, essas posições passam a ser conflitantes dentro da família.

5.5. Movimento Decasségui E Os Papéis Flutuantes do Parentesco

Diante da situação de migração, especialmente dos pais para o Japão,


a fim de trabalharem como decasséguis, percebe-se uma grande fluidez no que diz
respeito aos papeis de cada membro de uma família. Nota-se que, se pessoas sem
conexão consanguínea podem se tornar irmãos, primos, tias ou mães, irmãos ou
avós consanguíneos podem, por exemplo, se tornar pais, bem como pais, podem se
tornar amigos.

Aqui, retomamos o caso de Lizandra, esposa de André, de quem


falamos acima. Hoje Lizandra esta com aproximadamente 32 anos e suas filhas,
179

com idades entre 13 e 09 anos. Como descrito anteriormente, as meninas


cresceram com os avós maternos, pois Lizandra e seu esposo André, foram ao
Japão pela última vez quando a caçula acabara de nascer. Na época em que nos
encontramos, em meados de 2012, Lizandra havia retornado ao Brasil há
aproximadamente sete meses, deixando André no Japão.

Em nosso primeiro encontro era visível o quanto as meninas


encontravam-se confusas com a nova situação. Lizandra tentava a todo momento
impor seu papel de mãe, entretanto, as crianças só reagiam às ordens e pedidos de
seus avós. Lizandra argumentava para que elas ouvissem a “mamãe”, mas seus
olhares procuravam pelos rostos dos avós e, em situações conflitantes, quando
Lizandra dizia algo e seus pais o contrário, ambas obedeciam aos avós.

Pude me reencontrar com essa família após o retorno de André ao


Brasil. Ele havia chegado no mês de novembro de 2012 a Campo Grande. André
ainda estava bastante assustado com a nova situação. Durante nossa conversa, ele
me confessou ainda não ter compreendido direito o que estava acontecendo, pois
era ainda tudo muito novo. Era o começo de sua nova vida como pai. Sua posição
dentro da família, segundo sua esposa, refletia mais um amigo do que um pai. Um
dos motivos, seria a falta de autoridade devida a um chefe de família. Além dessa
falta de poder e, consequentemente, a ausência de hierarquia, foi possível notar a
falta de afinidade e proximidade por parte de André com relação às pequenas filhas.

Utilizando da mesma ferramenta que meus interlocutores, passei a


acompanhar suas vidas através do Facebook, já que estava com viagem marcada
para meu estágio de doutorado na França e não poderia mais encontrá-los
pessoalmente durante quase um ano. Foi quando, apenas alguns meses depois de
chegar a Paris, acesso uma postagem de Lizandra comentando sobre o sofrimento
de suas filhas por conta de uma viagem de André.

Conhecendo a história de André, logo imaginei que ele havia decidido


retornar ao Japão, afinal, foram constantes idas e vindas nos últimos vinte anos,
sem nunca se adaptar em nenhum dos países. Como é comum entre os nikkeis que
migram ao Japão para trabalharem como decasséguis, a cada viagem André partia
cheio de planos que incluíam seu retorno à Campo Grande. A cada chegada de
volta na cidade, entretanto, sentia-se perdido e sem sentir que estava em “casa”.
180

Através do próprio Facebook, lhe escrevo para saber o que havia


acontecido e se André, mais uma vez tinha decidido ir ao Japão. Lizandra me
responde dizendo que seu marido, após conseguir um emprego na cidade,
precisava passar alguns dias em São Paulo para fazer um treinamento, mas que
teria sido o suficiente para que suas filhas sofressem com a separação, mesmo que
por um breve período de tempo.

É possível verificar através dos depoimentos colhidos ao longo da


pesquisa de campo que, para as crianças, a situação de separação dos pais que
migram para o Japão, acontece sempre de maneira mais traumática.

Acho que a primeira vez que meu pai foi pro Japão, eu não
lembro direito, mas minha mãe fala que eu tive depressão. Tive que
ter acompanhamento psicopedagógico, eu estudava na época. Era
terceira ou quarta serie. Eu era bem pequenininha. Eu não lembro,
pra mim eu estava de boa. Mas ela falou que eu não conseguia
concentrar na aula, eu não fazia tarefa, eu não prestava atenção na
professora, a professora começou a perceber e pediu, conversou
com minha mãe. Ela falou, realmente, porque o pai dela viajou e tal e
não tem previsão de volta. Então diz que mexeu muito comigo. Mas
eu não lembro direito. Tanto é que eu não lembro direito da fase de
infância. Acho que foi por causa disso também. Mas hoje eu estou
bem. Quando minha mãe contou eu fiquei surpresa. Falei, nossa, eu
tive depressão. Nem lembro. Mas quando minha mãe foi que eu senti
mais sabe. Eu acordava, ficava chamando ela (Depoimento de
Jeniffer).

No depoimento de Jeniffer, acima, uma jovem de 22 anos que passou


parte da infância até o começo de sua adolescência com os irmãos e os avós em
Campo Grande depois de seus pais decidirem ir ao Japão para trabalhar, percebe-
se o quanto pode ser complicado para as crianças e adolescentes compreenderem a
separação e a distância:

A gente morou com meus avós. Depois moramos com uma


tia. Aí a gente foi pra uma outra família e depois voltamos de novo
pra casa dos meus avós. Aí depois a gente ficou com a mãe do meu
pai. Que também é bem complicada a relação. Mas a gente mudou
muito de família em família. Mas aí minha mãe fala assim: ainda bem
que vocês não ficaram revoltados. Porque a gente ficou muito tempo
separados. Tempo em família que a gente realmente teve, foi o
181

tempo no Japão, que realmente foi, sabe, família mesmo. A gente


teve esse contato maior, e agora que a gente voltou, mas o ruim é
que agora cada um tem as suas coisas pra fazer. Então a gente
quase não se encontra. Mesmo morando na mesma casa. Meus
irmãos moram juntos. É que meu irmão do meio faz medicina o mais
velho formou em administração, trabalha e meu irmão do meio faz
plantão. Eu trabalho de manhã, estava fazendo mais ou menos
estágio a tarde, a noite tem faculdade. Então, assim, a gente não se
encontra. A gente tem uma rotina totalmente diferente que parece
que nunca tem ninguém em casa. Aí quando eu chego a noite, está
todo mundo dormindo. Então é meio difícil, mas, estamos aí!

Em sua fala podemos notar que, quando fala sobre sua experiência
como filha de decasséguis, Jeniffer utiliza de sua própria memória combinada à
memória de sua mãe e outros adultos. Tal questão remonta as pesquisas orientadas
por Igor Reno Machado (2014) que discorrem sobre a diferença de percepção sobre
a distância produzidas por adultos em contraposição a percepção das crianças.

Adultos, normalmente, tendem a crer que as crianças não entendem a


separação, especialmente dos pais, sendo vistas como problemáticas, podendo
aqui, lembrarmos do termo “família destrambelhada” citada por uma de minhas
interlocutoras. Entretanto, ao entrevistar filhos de emigrantes brasileiros
(MACHADO, GUERREIRO, ALMEIDA, 2014), pode-se verificar que os filhos
compreendem o porquê da partida de seus pais para outros países e a situação em
que ambos – pais e filhos - se encontram.

No relato de minha jovem interlocutora, é possível observar estes dois


contrapontos ao mesmo tempo. Sua depressão na infância é uma conclusão de sua
professora à época e de sua mãe, que lhe conta sobre a situação algum tempo
depois – quando voltaram a viver juntas – visto que Jeniffer afirma não se lembrar de
ter sofrido de qualquer mal psicológico. Porém, já com idade um pouco mais
avançada na época da partida de sua mãe ao Japão, a jovem explica poder se
lembrar de seu sofrimento, que culminou na insistência em viver com os pais
naquele país, pois não aceitava a distância entre eles. Somente após sua própria
viagem ao Japão e posterior retorno de todos, Jeniffer cita a verdadeira “vida em
família”.
182

Ainda em seu depoimento Jeniffer aborda essa questão da separação


e o quanto ela afeta as relações familiares quando compara sua família com a de
seu namorado, também nikkei (mas sem pais decasséguis). Quando fala de sua
relação com o pai, Jeniffer explica que eles são como amigos:

A gente zoa um com o outro. Tipo, meu namorado, pra ele é


estranho eu zoar meu pai, porque pra ele pai é uma representação
de respeito, você tem que respeitar seu pai, não tem como ficar
zoando seu pai. Lá em casa não.

Através destes dados, questões importantes foram colocadas com


relação à construção do parentesco transnacional. Pode-se notar no contexto da
migração que os laços e as posições de parentesco dentro da família possuem
grande dinamicidade e flexibilidade durante o período de afastamento/distância
geográfica (o que, nestes casos, não significa, essencialmente, distancia emocional)
(KEBBE, 2011a; 2011 b).

Constantemente, os membros de uma família podem localizar-se em


papéis diferentes, ora como filhos, ora como irmãos, ora como pais. Essa dinâmica é
refletida de acordo com o contexto de imigração em que se encontram, com as
relações entre quem fica e quem vai.

Meus irmãos já eram mais velhos. Então eles sempre cuida-


vam de mim. Eu acho que se não tivesse eles, ia ser bem mais difícil.
O mais velho hoje tem 25 anos, o do meio tem 23 anos. Não é muita
coisa, mas eles já eram mais maduros. Na época que eu tinha 13,
14, eles já estavam mais velhos. Tinham 16, 17. Eles eram maduros
pra idade deles, sabe. Então eles sempre me cuidaram bem. E o
meu avô que dava suporte, acho, da parte paterna. Do que faltava do
meu pai, meu avô me ajudava. Nossa, acho que sem meus avós, es-
se suporte, seria bem mais difícil, sabe. Porque geralmente é assim,
os filhos ficam com outra família, mas é diferente uma família cuidar
dos filhos dos outros. Meus avós não. Era praticamente filhos. Filhos
dos filhos. Então meus avós se apegaram muito a gente. Eles cuida-
ram muito bem. Mas eu acho que meus irmãos também foram bem
maduros. Porque no momento em que eu desesperava, eles não po-
diam desesperar. Então eles tentavam me acalmar. Mas meus pais
sempre ligavam, a gente conversava, eles ficavam mandando pre-
sentes, sabe. Eu acho que nunca fiquei revoltada por causa disso.
Ah, meus pais estão longe. Que é o que muitas crianças fazem. Mas
183

era difícil pra conversar no telefone e contar tudo que passava, né.
Minha mãe que fala: ah, eu perdi sua menstruação. Risos. Eu não li-
go sabe, minha mãe que ficava mais... ah, eu perdi não sei o que.
Mas a gente é bem amiga, sabe. Acho que pelo fato de eu ter ido pro
Japão pra morar, aproximou muito a gente. A gente tem uma intimi-
dade que você fala, nossa, nem parece mãe e filha. Parece irmã ou
amiga.

Jeniffer demonstra em sua fala essa transição constante de papéis.


Logo que ela nasceu, seu pai foi trabalhar como decasségui no Japão. Essa
situação acabou por levar toda a família a mudar-se constantemente durante alguns
anos:

Meus pais nasceram aqui, em Campo Grande. Tem uma vida


normal. Na juventude, acho que meu pai foi ao Japão logo que eu
nasci. Eu não sei direito a época que cada um foi. Eu sei que ele foi,
ficou bastante tempo, então ele ia bastante e voltava né. Ai teve uma
época que a gente morou em São Paulo, durante sete anos. Aí a
gente mudou de novo pra Campo Grande. Continuamos morando
aqui. Viemos em 1999. Então a gente saiu bastante. Eu fui pra São
Paulo com três anos, voltei pra Campo Grande com uns nove. Então
a gente ficou indo e voltando bastante. Ai, quando a gente se fixou
aqui, meu pai decidiu ir. Depois a minha mãe foi e a gente ficou com
meus avós. Aí quando eles voltaram em 2004, pra férias, pra visitar,
eu falei que eu queria ir. A minha mãe não queria me levar de jeito
nenhum. E eu continuava chorando que eu queria ir. Queria ir. Na
época, eu estava com 14 anos, eu fui com 15 pra lá. Foi final de
2004 que eles voltaram pra fim de ano. Foi nessa época mais ou
menos, meus pais iam ficar mais ou menos três meses. Novembro,
dezembro e janeiro. Só que eles não queriam me levar. Ai eles ti-
nham feito essa viagem pra mais ou menos três meses. Só que aí
eles decidiram me levar. Minha mãe ficou mais um três meses pra
arrumar minha documentação, passagem, tudo. E arrumar as coisas
aqui no Brasil. Porque eu estava estudando. Tinha que trancar, tudo.
Tinha que ver um monte de coisa. Foi bem tenso na época, acho, pa-
ra os meus pais me levarem”

Sem aceitar mais as constantes separações, Jeniffer acabou


convencendo seus pais e partiu rumo ao Japão, aos 15 anos de idade.
Diferentemente da situação de Priscila ou André, a jovem foi pelos pais matriculada
em uma escola e por eles proibida de abandonar os estudos para trabalhar:
184

É, mas eu acho que eu nem queria parar de estudar. Não era


uma opção pra mim. Porque todo mundo vai pra lá e quer trabalhar
né. Eu acho que se tivesse feito isso, teria perdido muita, muita coi-
sa. Meus pais sempre apoiaram, tanto é que lá no Japão eu entrei
em escola particular, japonesa. Tanto é que eu fui a primeira japone-
sa, ops, brasileira a entrar na escola japonesa, que era essa particu-
lar. Então, eu fiz, na verdade, a face do brasileiro naquela escola. E
na outra escola que eu fui também. Era assim, tem o governo do Ja-
pão, que oferece até o ensino médio. Se quiser faculdade é pago.
Mas tem escolas do ensino médio que são particulares. É mais ou
menos que nem aqui. mas a qualidade lá é totalmente melhor. Bem
melhor”.

Jeniffer relembra que antes de ir ao Japão, mas já com planos de


convencer seus pais em acompanha-los, decidiu começar a estudar japonês por
conta própria, para que pudesse conhecer ao menos algumas palavras e
expressões. Entretanto, ao chegar ao Japão, percebeu que não seria tão fácil
aprender o novo idioma. Ela conta que no início ria a maior parte do tempo, pois não
entendia a língua, mas as palavras a faziam lembrar de palavrões em português:

Eu ria muito sozinha. Porque assim, tinham algumas palavras


em japonês, que não é besteira, mas aqui é, entendeu. Besteira as-
sim, porque eu não sou de falar palavrão. Nossa, era muito engraça-
do, que nem, -koko- é aqui, aí eles falavam –koko- toda hora. Eu fi-
cava rindo. Porque eu não entendia. Ai eu fui aprendendo aos pou-
cos. Eu tive o acompanhamento de uma tradutora que o governo ofe-
recia. Era uma japonesa que dava aula em português para os es-
trangeiros. Então a primeira escola que eu fui que era só pra fazer o
oitavo ano, tinha essa tutora e a professora de inglês me ajudava
bastante. Ela me deu um dicionário que tinha as três línguas, japo-
nês, português e inglês. Inglês eu estudei um ano, eu fui pros Esta-
dos Unidos também em 2004 e eu tenho o básico do básico. Então
eu consegui desenvolver bem o inglês, falando com essa professora.
Porque ela morou no Canada, então, assim, não era tão feio. Não
era tão triste.

Jeniffer foi aos Estados Unidos através de sua Igreja, quando ainda
morava no Brasil com os avós. Nesse momento, conta o quão difícil foi quando seu
avô, que a criara pelos anos em que seus pais estavam fora, veio a falecer.
185

Ele praticamente me criou. Então a perda pra mim, lá, foi bem
tensa. Bem triste.

Durante nossa conversa, Jeniffer fala sobre a relação com os irmãos


enquanto seus pais viviam no Japão. A jovem relata que por terem mais idade, os
dois jovens acabaram por atuar de maneira diferenciada com relação à ela. Eles
eram os protetores, que zelavam pelo seu bem-estar físico e psicológico, na
tentativa de suprir a distância de seus pais. Quando esteve no Japão, seus irmãos
foram visitá-la e o contato entre eles era sempre constante:

A gente se falava bastante por e-mail. E-mail e telefone. Então,


a gente conversava muito. Meus pais eu só encontrava à noite. Por-
que a minha rotina era assim (no Japão), eu acordava, a gente to-
mava café da manhã juntos, mesmo que não estivesse com fome,
acho que a gente fazia isso pra ter um tempo juntos. Então, durante
a semana eu tomava café, ia pra escola, eles trabalhavam juntos,
perto de casa, aí eu voltava umas quatro horas pra casa quando eu
não saia com as minhas amigas, porque elas sempre me chamavam
pra comer, assim. Aí eu voltava pra casa, fazia a limpeza da casa,
lavava roupa, essas coisas básicas”.

Ao contar sobre sua rotina no Japão, Jeniffer relembra os momentos


em que a família se reunia. Ela conta que os três assistiam TV juntos,
acompanhando as novelas japonesas e que foi quando, assim como os filhos de
Maria, ela passou a atuar como tradutora para os pais, que nunca aprenderam o
idioma japonês:

Eu ficava traduzindo as coisas pros meus pais, por que eles


não falam muito, então a gente ficava sentado, só rindo. Meus pais
falam pouco. Porque assim, a empresa que eles trabalhavam tem
muito brasileiro e peruano, então o máximo que eles poderiam
aprender era o espanhol. Mas os peruanos lá, aprendem português
muito rápido. Então, elas que acabavam falando português. E eles
acabaram não pegando nada, entendeu.
186

Os depoimentos citados demonstram que, durante este processo de


separação outros parentes precisam, de certa forma, ocupar os papéis daqueles que
estão distantes, especialmente quando se trata de pais e mães. Produz-se o tempo
todo uma reordenação na lógica familiar sobre quem ocupa determinada posição
entre aqueles membros. Mesmo nos casos em que os filhos mudam-se com seus
pais para o Japão, o simples fato de atuarem como intérpretes de pais e mães traz,
no limite, uma alteração destes papéis, em que filhos passam a realizar a
comunicação entre seus pais e os demais. Muitas vezes, responsabilizam-se por
questões domésticas e/ou burocráticas, acompanhando-os em supermercados ou
bancos, além de ensinar o idioma para seus pais.

Entre aqueles que ficam em Campo Grande, irmãos mais velhos, por
exemplo, passam constantemente a se ocupar da educação e bem-estar dos mais
novos, assumindo responsabilidades até então, impensadas e para as quais não
estavam preparados. Em casos mais extremos, jovens são ou sentem-se realmente
abandonados e, quando acolhidos, produzem parentesco a partir de suas relações
com outras famílias, com as quais não possuíam nenhum tipo de vínculo anterior,
seja pelo sangue ou pelo sobrenome.

A fluidez, portanto, é constante no que se refere aos parentescos e


parentes quando se trata de famílias decasséguis. A noção de modelo aos poucos
desaparece, não sendo, de certa forma, possível categorizar quem é o que. Pais são
aos poucos classificados como amigos, irmãos ou avós assumem as
responsabilidades dos pais, amigos se tornam irmãos ou primos.

Apesar de não podermos falar em padrões, visto que todas as famílias


possuem determinadas particularidades, nota-se que há elementos que podem ser
percebidos em todas as falas dos interlocutores com os quais mantive contato
durante todo o período de pesquisa de campo no que se refere ao movimento
decasségui. Os relatos e depoimentos se aproximam constantemente,
especialmente quando se trata de sentimentos produzidos pela separação de casais
e pais e filhos.
187

Os relatos de Margarida e Amanda, por exemplo, aproximam-se


constantemente, particularmente no que se refere aos sentimentos criados pela
distância. Margarida é uma senhora de 59 anos de idade, nascida em Dourados,
cidade localizada a 300 km de Campo Grande. Filha de pai issei e mãe nissei,
ambos de origem naichi, Margarida mudou-se para Campo Grande na adolescência.
Ao relembrar a historia de sua família no Brasil, Margarida, assim como todos os
outros interlocutores, lamenta não estar com o koseki em mãos.

Ao realizarmos sua genealogia, Margarida começa nomear cada


parente. Quase todos vivendo no Japão como decasségui, inclusive uma de suas
filhas, que havia viajado com o marido e o filho pouco antes de nos encontramos.
Margarida também viveu no Japão por diversos anos, assim como seus outros filhos
e seu ex-marido. Em sua família, as histórias de separações entre migrantes nikkei
no Japão são constantes, tendo ela mesma se divorciado do pai de seus filhos
quando, após Margarida retornar ao Brasil, seu marido envolve-se com outra mulher.

Após uma separação tumultuada, visto que seu marido, um não-nikkei,


não aceitava o divórcio pois não queria perder o direito de viver no Japão, o casal se
divorcia oficialmente. Outros parentes mencionados por Margarida se divorciaram
nas mesmas situações, após um dos cônjuges viver no Japão enquanto o outro
continuava no Brasil com os filhos, perdendo contato quase total logo depois da
separação.

O ponto mais tocante de sua fala, entretanto, refere-se à relação que


os filhos estabelecem com pais e irmãos que vivem no Japão. No caso de
Margarida, uma de suas filhas, Joana, a única que nunca viveu naquele país devido
a pouca idade na época em que seus pais e irmãos migraram, ficou em Campo
Grande aos cuidados dos avós e, posteriormente, da sogra de sua irmã mais velha,
até que finalmente, sua mãe decide retornar ao Brasil, com um novo filho que havia
nascido enquanto ela trabalhava no Japão como decasségui. Sentindo falta de sua
família, Joana pede aos irmãos como presente de quinze anos a passagem para
que pudesse encontrá-los.

Joana conta que a saudade era muito grande e que, quando recebeu o
telefonema de seus irmãos para que escolhesse um presente, não teve dúvidas ao
pedir para vê-los. Os irmãos, que não estavam preparados para tal solicitação,
188

precisaram de tempo para, juntos, acumularem o dinheiro suficiente para realizar


seu desejo.

Assim como Joana, Amanda79, uma jovem nikkei de 32 anos de idade,


casada e mãe de um bebê, também sofria na adolescência com a ausência dos
irmãos. Para conhecer sua história, fui recebida em sua casa, onde sua mãe, irmã e
sobrinho passavam alguns dias de férias. No caso de Amanda, não realizamos sua
genealogia, visto que eu fui levada até ela por acaso através de uma conhecida e,
portanto, nem eu, nem ela estávamos preparadas para a coleta deste tipo de dados.

Mesmo com a surpresa de minha visita, Amanda abriu as portas de seu


lar e concordou em falar sobre sua família, especialmente sobre sua experiência
como decasségui. Diferentemente do que ocorreu em quase todas as entrevistas
coletadas (com exceção da entrevista de Margarida), pude conversar com diversos
membros de uma mesma família ao mesmo tempo. Assim, estes dois casos, o de
Margarida e o de Amanda, nos transmitem uma perspectiva familiar e não individual.
Desse modo, minha presença era quase a de uma ouvinte de diálogos entre
familiares, uns questionando e respondendo aos outros. Especialmente no caso de
Amanda, nossa entrevista aflorou sentimentos entre os membros daquela família e o
choro não pôde ser controlado pela jovem, particularmente quando falava sobre as
relações de sua família, considerada por muitos e, talvez por eles mesmo, como
problemática.

Tais problemas familiares seriam o resultado das separações e da


distância que se cunhou entre eles ao longo dos últimos anos. O maior afetado, de
acordo com Amanda e sua irmã, seria o sobrinho de ambas, filho do terceiro irmão.
O adolescente, nascido no Japão, teria sofrido com a separação dos pais, o novo
casamento de ambos e a necessidade de viver com a avó e a tia – mãe e irmã de
Amanda que estavam presentes em nosso encontro – durante anos, para,
recentemente, voltar a viver com a mãe, que já tem outros filhos de outros
casamentos, o que produz certos conflitos familiares.

Ao retomarmos todas as entrevistas, vemos que, diante de todas as


particularidades de cada interlocutor e suas famílias, suas histórias se convergem

79
As historias na integra de Margarida e Amanda podem ser lidas nos anexos.
189

em uma só em determinados pontos. A todo momento suas falas demonstram que o


processo de migração para o Japão não se da de maneira fácil e descomplicada e,
que a decisão de um afeta à todos os membros de suas famílias, produzindo novas
formas de experimentar e viver o parentesco, utilizando-se das ferramentas e/ou
estratégias que se apresentam disponíveis para cada família ou parente distante,
seja utilizando-se dos meios de comunicação disponíveis atualmente, na tentativa de
manter a relação entre parentes ativa ou ainda, construindo a constante expectativa
do retorno dos que estão longe.
Pudemos observar ao longo de toda a pesquisa, que o movimento de-
casségui possui sua importância na construção de parentescos e relacionalidades
na cidade de Campo Grande. Parentescos e relacionalidades estas, que sempre
estiveram em intenso e constante movimento entre os nikkeis que elaboram suas
famílias na Cidade Morena, como foi possível notar ao analisarmos todos os dados
colhidos durante o período de campo.
Vemos que o movimento decasségui em si, não surge como um ele-
mento desestabilizador do(s) parentesco(s) ou das famílias, mesmo quando estas
são consideradas “destrambelhadas” pelos nikkei que permanecem em Campo
Grande. Apesar de tais críticas, foi possível notar que os parentescos nikkei da regi-
ão sempre foram construídos de forma dinâmica, alterando-se ao longo dos anos e,
no limite, contrapondo as particularidades okinawana e naichi.
A reformulação ocasionada pela partida de parentes ao Japão conti-
nua, de certa forma, as transformações que têm ocorrido ao longo das ultimas déca-
das e que foram expostas nos capítulos anteriores. Através dos dados colhidos, ve-
mos que os casamentos das primeiras décadas de imigração em Campo Grande,
realizados quase que exclusivamente dentro do próprio grupo de origem nikkei –
naichi ou okinawano – dão lugar às novas famílias formadas majoritariamente com
cônjuges não nikkei que produzem, consequentemente, uma nova forma de japone-
sidade mestiça, mas que carrega ainda os contrastes e diferenças de uma okinawa-
nidade oposta à uma naichicidade.
Finalmente, nos últimos anos, uma nova reformulação de parentescos
é produzida, relacionada à distância de membros familiares e que geram novas
construções familiares agregando-se indivíduos que vivem esta mesma experiência
da transnacionalidade. Entretanto, ao contrário do que ocorre entre os indivíduos
que migram ao Japão e lá constroem novas famílias ou relacionalidades, obliterando
190

as diferenças internas aos grupos e às quais estavam habituados em Campo Gran-


de, os nikkeis que permanecem na cidade, ao estabelecerem novas relações de pa-
rentescos dão continuidade às diferenças internas compõem o grupo nikkei de
Campo Grande, e assim, continuam a pensar aos outros e a si mesmos, enquanto
indivíduos naichi ou okinawanos.
Neste sentido, a pesquisa tem demonstrado que, apesar de todas as
mudanças e transformações nas formas como são estabelecidos os elos e laços
entre os indivíduos nikkei da cidade, particularmente no que se refere ao parentesco,
a ideia de existência de uma homogeneidade e coesão não são realmente observá-
veis em Campo Grande, que mantêm até os dias atuais a contraposição e a hetero-
geneidade que reforçam a todo momento as especificidades e diferenças existentes
entre os grupos okinawano e naichi.
191

CONCLUSÃO

O tema desta pesquisa surgiu a partir de minhas inquietudes sobre as


relações entre os dois grupos nikkeis que vivem em Campo Grande, capital do Mato
Grosso do Sul. Por mais que que ambos tentassem se apresentar como um único
grupo homogêneo e coeso, denominando-se como iguais, e identificando-se
enquanto japoneses, suas falas nem sempre coincidiam com seus comportamentos
excludentes. Saber “quem é o quê” sempre foi parte importante nas construções das
relações nikkei da cidade. Saber a origem naichi ou okinawana seria visto como uma
explicação para questionamentos produzidos sobre determinados indivíduos.

Partindo do conhecimento de que estes grupos não compartilhariam de


um mesmo modo de ser ou se sentir “japonês”, me debrucei sobre as investigações
que compõem esta tese. Se, apesar das tentativas públicas de se homogeneizar
estes grupos continuam a marcar suas diferenças, como se constituiria o parentesco
entre eles?

Para tentar encontrar as respostas para este questionamento inicial,


comecei a investigação sobre quais seriam as bases destes dois parentescos
focados no Japão, anterior ao processo de imigração. Deste modo, o primeiro
capítulo desta tese foca-se particularmente sobre as discussões realizadas por
pesquisadores do Japão sobre eles mesmos. Através da bibliografia produzida por
estes investigadores pudemos notar que, mesmo sendo visto como um país e um
povo tradicional, que exalta a manutenção de suas tradições, o Japão passou por
diversas transformações ao longo do tempo que afetaram de alguma maneira, a
forma como constroem ou enxergam seus parentescos, considerado a cada dia mais
ocidentalizado.

Especialmente no que se refere ao período da Segunda Guerra


Mundial, foram produzidos diversos embates teóricos entre os críticos das
mudanças que a família japonesa enfrentava, especialmente após a mudança da
192

legislação que anulava “legalmente” a noção de iê, e os que defendiam a ideia de


que, apesar destas transformações nas leis japonesas, a lógica do ie persistia – e
ainda persiste – para além de uma mudança de legislação.

Além de proporcionar a possibilidade de compreender tais


transformações – ou manutenções – nos parentescos no próprio Japão, a literatura
analisada evoca ainda, algo particularmente importante, que reforça a existência de
diferenças internas ao grupo que se pretende homogêneo.

Vemos através das etnografias publicadas em décadas anteriores que


as formas como os naichi e os okinawanos constroem e elaboram seus parentescos
divergem entre si, apesar de todos serem, em certa medida, classificados
genericamente como japoneses. A própria lógica do ie e do koseki-tohon, inseridas
no contexto okinawano após o processo de anexação da província ao Japão, não
são suficientes para torna-los homogêneos.

Nos dois casos, a transmissão de sobrenomes se mostra importante no


que diz respeito ao reconhecimento de indivíduos enquanto parentes ou familiares,
entretanto, ao analisarmos a literatura exposta no primeiro capítulo sobre os dois
tipos de parentescos, vemos que sua constituição depende do ajuste do sobrenome
a outros elementos. No caso okinawano, as entrevistas nos demonstraram que a
construção do parentesco estaria baseada na transmissão do sangue e na
endogamia, que resultaria da noção de pertencimento a um solo, um território em
particular. No limite, todos são parentes por compartilharem do mesmo sangue,
atribuído aos descendentes por um ancestral em comum, resultado de diversos
casamentos entre aqueles que compõem e se relacionam a determinado território.

No contexto japonês/naichi, entretanto, meus interlocutores


demonstraram que o sangue se apresenta como uma substância menos importante
no que se refere à construção de parentesco, prevalecendo neste caso, o status das
relações entre os indivíduos. Entre os naichi, indivíduos são facilmente
incorporados/adotados pelas famílias, sendo possível pensar em um parentesco
“flutuante” ou “fluido”.

Estas questões puderam ser observadas particularmente através de


minha participação na Associação Okinawa de Campo Grande, onde pude
frequentar as atividades desenvolvidas pelas obachan e descobrir sobre suas
193

famílias, especialmente, sobre a importância de seus papeis como avós. Aquele


pode ser considerado um dos períodos mais frutíferos da pesquisa, quando pude
dentro de certos limites, me integrar ao dia a dia daquelas senhoras. Acompanhando
o curso de crochê, pude observar mais profundamente como se constroem as
diferenças entre okinawanos e naichi na cidade e, sendo uma jovem mulher de
origem naichi, foi possível vivenciar a constante diferenciação entre os grupos que
continua a ser produzida mesmo nos dias atuais.

Naquele espaço eu sempre fui uma naichi, uma “japonesa de Tóquio” e


não uma uchinanchu, ou alguém originaria da “ilha” (Okinawa). O segundo capitulo,
portanto, debruçou-se sobre as japonesidades e okinawanidades possíveis entre os
nikkei de Campo Grande, que puderam ser observadas através da presença no
Fujin-kai.

Ao refletir sobre a presença nikkei na cidade, é possível observar que


Campo Grande se caracteriza como uma cidade japonizada devido à forte influência
dos imigrantes e descendentes que ajudaram a construí-la e que até os dias atuais
possuem forte visibilidade na cidade. Entretanto, ao adjetivar Campo Grande, usa-se
constantemente o termo “japonês” ou “japonesa”, obliterando de certa forma a
enorme presença okinawana e sua cultura e tradições. Como exemplo, podemos
retomar a culinária uchinanchu, o Sobá, símbolo da cidade mas, classificado
genericamente como um prato “japonês”.

Participar do Fujin-kai me proporcionou em certa medida, portanto,


averiguar que, apesar de se eclipsarem em determinados contextos, as
japonesidades e okinawanidades são construídas separadamente por estas
populações nikkei, apesar dos mais de cem anos em que se estabeleceram em
Campo Grande.

Tais diferenças produzidas em e por suas japonesidades e


okinawanidades nos levam ao tema principal desta pesquisa que refere-se à
construção de novas famílias nikkei na cidade. Acompanhando meus interlocutores
e recolhendo os registros de casamentos de indivíduos nikkei em Campo Grande, foi
possível observar que o pertencimento naichi ou okinawano aparentemente é
fortemente levado em consideração ao se construir novas famílias, através da
escolha de cônjuges na formação de novos casamentos.
194

Como vimos ao longo dos capítulos dois, três e quatro que compõem
esta tese, uniões matrimoniais entre membros dos dois grupos nikkei pouco foram
realizadas nas primeiras décadas de imigração em Campo Grande e assim
permaneceram até a época atual.

Tanto os registros documentais quanto meus interlocutores permitiram


observar algumas características sobre os casamentos nikkei. Vemos que
inicialmente havia uma preferência na formação de novas famílias a partir de uniões
matrimoniais que permanecessem dentro de um mesmo grupo nikkei, fosse naichi
ou okinawano, tendo sido realizados poucos casamentos entre indivíduos com
origens nikkei diferentes.

Com o passar dos anos, entretanto, uma transformação começa a se


estabelecer no que diz respeito aos novos matrimônios e que aos poucos foi se
delineando durante a coleta dos dados documentais e que indicavam a formação de
uniões sendo criadas entre casais nikkeis e não-nikkeis. Contrariamente às
expectativas de que ambos os grupos fossem aos poucos se “misturando” e
produzindo famílias naichi-okinawanas, anulando-se assim em certa medida as
diferenças existentes entre nikkeis e que pudessem produzir um grupo mais
homogêneo, bem como reforçar a ideia de nihonjinron propagada pelo Japão, o que
ocorre é o oposto.

Se nas décadas iniciais havia uma diferenciação entre homens e


mulheres nikkeis com relação à escolha de seus cônjuges, possuindo os homens
aparentemente mais direitos de contrair casamentos com mulheres não-nikkeis em
contraposição às mulheres nikkeis, que durante mais tempo casaram-se quase que
exclusivamente dentro do mesmo grupo de origem, surge o momento em que
ambos, homens e mulheres casam-se cada vez mais com cônjuges sem
ascendência nikkei.

Escolhendo preferencialmente esposos ou esposas sem origem nikkei,


as famílias da cidade de Campo Grande passam a ser cada vez mais compostas
com filhos mestiços que, mais tarde, repetem as escolhas de seus pais. E aqui, ao
refletirmos sobre a produção de filhos com pais de origens diferentes, estabelece-se
uma diferenciação entre aqueles indivíduos que possuem pais de origens nikkei e
não-nikkei e filhos de pais naichi e okinawanos.
195

Durante o trabalho de campo, enquanto frequentava eventos nikkei e a


Associação Okinawa de Campo Grande pude observar mais claramente a
diferenciação que se produz entre estes grupos “mestiços”. Eu mesma, por possuir
pai naichi e mãe não-nikkei, era classificada facilmente como uma jovem mestiça por
todos os meus interlocutores e interlocutoras. Ser mestiça ou mestiço nestes casos,
jamais se apresentou relacionado a possuir pai ou mãe de origem naichi ou
okinawana com cônjuge não-descendente.

Neste caso, pouco importa a qual grupo nikkei um dos pais pertença,
mas sim, a presença não-nikkei de um dos pais. Em contraposição a este dado,
situam-se os filhos de pais com origens okinawana e naichi. Estes, nunca são
classificados como mestiços, sendo o seu pertencimento naichi ou okinawano
constantemente explicitado. Assim, verificou-se através das entrevistas que
dificilmente filhos de pais com origens nikkeis diferentes são vistos ou classificados
por outros nikkei como pertencentes as duas origens mas, pertencentes à apenas
uma destas.

Este pertencimento, podemos notar, conecta-se as produções de


naichicidade e okinawanidade citadas anteriormente, que se constituem
independentemente uma da outra apesar da existência de uma japonesidade pública
e contextual, produzida em momentos particulares e específicos da vivência nikkei
campo-grandense, reforçando-se deste modo, constantemente, as particularidades
destes dois grupos que se opõem.

Pode-se verificar que, em ambos os casos, a construção de uma


“japonesidade mestiça”, da naichicidade ou da okinawanidade está intimamente
relacionada à presença e participação das mães e avós nikkei na educação dos
filhos e netos. As falas de meus interlocutores apontaram para esta direção em
diversos momentos, explicitando a importância do papel destas mulheres na
construção de tais pertencimentos, bem como evidenciaram a relação afetiva e
emocional que se estabelece, especialmente, entre avós e netos.

Essa relação entre netos e avós também está presente com muita
força e ênfase ao tratarmos sobre o movimento decasségui, descrito no quinto
capítulo desta tese. Quando pais partem ao Japão para trabalharem como
decasséguis, normalmente como mão de obra nas fábricas daquele país, seus filhos
196

são deixados geralmente aos cuidados dos avós que permanecem na cidade de
Campo Grande.

Os motivos para partir ao Japão são diversos. Muitos falam do desejo


de conhecer a terra de seus ancestrais, de viver nossas experiências, mas quase
todos se focam na questão econômica para explicar sua permanência no Japão,
mesmo que tais razões sejam discutidas e questionadas até mesmo por outros
nikkeis da cidade, que vêem esse movimento migratório mais como fuga da
realidade vivida na cidade – inclusive familiar - do que como uma busca por
melhores condições financeiras.

Mas, apesar de todos esses comentários e das famosas fofocas, na


fala de muitos interlocutores observa-se que a ideia de ir ao Japão quase sempre
está envolta no desejo e na esperança de comprar ou construir uma casa. “Meu ir-
mão comprou a casa da minha mãe” ou, “eu pude reformar a casa da minha mãe”,
são frases comuns e evidenciam este anseio entre a população nikkei decasségui
de Campo Grande. A casa comprada através do trabalho no Japão é o espaço onde
essa família pode novamente se reunir e dar continuidade às suas relações. Ao de-
clararem, especialmente, a importância de comprar ou reformar a casa de suas
mães, retornamos à importância que avós exercem dentro de suas famílias, organi-
zando almoços e, assim, aproximando gerações e mantendo os laços entre seus
descendentes.
O conceito de Casa, proposto por Lévi-Strauss vem sendo utilizado por
diversos pesquisadores atuais do parentesco. De acordo com Machado (2012, p.
60),

para Stone, o conceito de Casa tem inúmeros paralelos com


outras correntes do parentesco contemporâneo: ele separa as
relações de parentesco das relações enraizadas em conexões
biológicas. Ele também é mais facilmente identificado com conceitos
nativos e abre portas para uma visão do parentesco como construído
por ações estratégicas, além de misturar a distinção entre
sociedades complexas e simples. Também tem ressonâncias com o
parentesco pós-schneideriano, ao ser conectado com a organização
social: a Casa 80 é entendida como uma característica central da
organização social em sociedades de casa.

80
Casa difere-se aqui de casa, por seu conteúdo analítico, não referindo-se à estruturas arquitetôni-
cas ou prédios. De acordo com Lévi-Strauss, “Casa, diferente de família, não coincide com a linha-
gem agnática, que às vezes é até destituída de base biológica e consiste numa herança material e
197

Janet Carsten e Stephen Hugh-Jones, na obra “About the House - Lévi-


Strauss and Beyond”, publicada em 1995, apresentam diversos ensaios em que
demonstram a importância da Casa enquanto elemento importante na construção de
parentescos.

Nota-se que não é qualquer indivíduo que está apto a adentrar em uma
casa e compartilhar da intimidade da família. A presença dessas pessoas neste
espaço depende das relações existentes (ou, neste caso, das relações desejadas)
entre os indivíduos. Novos parentescos, citados anteriormente, baseados na
amizade, compõem-se primordialmente da inserção destes novos membros neste
espaço, que passa a ser compartilhado por quem o frequenta, produzindo irmãos,
primos ou tias e tios.

A Casa, para além de sua estrutura arquitetônica, é um espaço tanto


físico quanto simbólico através do qual é possível construir e/ou descontruir famílias
e relações de parentesco. Ninguém torna-se membro de uma Casa por acaso,
sendo preciso que exista uma forte relação entre os indivíduos que os tornam uma
família, independente de ligações biológicas entre estes indivíduos. No contexto
nikkei de Campo Grande, pudemos observar em um dos casos que a constante
presença dentro da casa conjugada ao elemento da amizade produziu um forte laço
de parentesco entre um grupo de jovens que se tornaram irmãos e primos.

A Casa também atua como elemento que aproxima indivíduos


separados no espaço transnacional. No caso decasségui, ela é o elemento que
reforça determinados laços/conexões de parentesco. A ideia do retorno está
comumente atrelada à construção da casa e às relações que continuarão ou serão
(re)produzidas dentro daquele espaço, tão almejado por esta população nikkei.

Além destas novas formas de parentesco produzidas pela partida ao


Japão e pelas relações que se estabelecem em torno da noção de Casa, ainda
sobre o movimento decasségui podemos refletir sobre sua importância no que diz
respeito as noções de parentescos discutidas ao longo desta tese, especialmente no

espiritual que compreende a dignidade, as origens, o parentesco, os nomes e os símbolos, a posição,


o poder e a riqueza” (1999, p. 22).
198

tocante ao koseki-tohon. Desde o início desta pesquisa meus interlocutores citavam


este documento ao se referirem à família e ao parentesco.

É certo que quase toda a população nikkei de Campo Grande, seja


naichi ou okinawana, experimenta ou experimentou essa vivência decasségui,
sempre possuindo alguém da família que vive ou viveu no Japão. Esse movimento
parece ter uma grande importância ao pensar a família através do koseki, afinal,
através dele é que se torna possível viajar à Terra do Sol Nascente.

Talvez, tenha sido o registro civil japonês a produzir uma nova


(re)formulação do parentesco entre esses nikkeis, aproximando-os novamente dos
conceitos sobre parentesco pertencentes aos seus ascendentes que migraram do
Japão para o Brasil. Se atualmente todo nikkei conhece e cita automaticamente o
koseki-tohon, anteriormente ao movimento decasségui surgido nos anos 1980
aparentemente a situação era um pouco diferente.

Poucos possuíam conhecimento e informações sobre este registro civil.


Talvez esse desconhecimento tenha sido consequência da descoberta de seus pais
ou avós de que dificilmente eles voltariam ao Japão, deixando de lado a atualização
dos dados (KEBBE, 2012) presentes no koseki e não informando seus filhos e netos
sobre sua existência. Entretanto, diante da possibilidade de irem ao país de seus
antepassados, descobrem através das agências de viagens especializadas em
enviar nikkei para trabalharem nas fábricas japonesas que somente indivíduos
registrados podem realizar o percurso até o Japão. Dessa forma, podemos observar
que o movimento decasségui teve sua parte de responsabilidade na construção das
noções de parentesco existentes atualmente entre os nikkei da cidade de Campo
Grande.

Pudemos observar através dos registros de casamentos realizados ao


longo do tempo na cidade, das entrevistas e da participação em atividades
direcionadas ao nikkei de Campo Grande que o parentesco tem se transformado ao
longo do tempo. Transformações estas que ao longo dos anos tem tanto os
aproximado quanto distanciado dos conceitos compartilhados por seus
antepassados. Novas famílias têm sido construídas nas últimas décadas
contrariamente à ideia de homogeneidade, visto o grande número de casais
formados com indivíduos não-nikkei, preterindo cônjuges de origem nikkei
199

diferentes, bem como retomam o koseki ao discursarem sobre suas famílias e


relações de parentesco.

Retomando os primeiros dados apresentados nesta tese, é possível


traçar as transformações que vêm ocorrendo ao longo das décadas no que se refere
à produção de novas famílias. Vimos que os casamentos nos anos seguintes a
chegada à cidade foram construídos particularmente dentro do mesmo grupo de
origem nikkei. Os cônjuges eram escolhidos preferencialmente entre indivíduos de
mesma origem, fosse ela naichi ou okinawana.

As primeiras mudanças visíveis naquele período referem-se à questão


de gênero, que não pode ser preterida nesta pesquisa. Inicialmente, homens
possuíam maior abertura em estabelecer relações conjugais com mulheres sem
origem nikkei, enquanto as mulheres mantinham-se frequentemente dentro do
mesmo grupo. Aos poucos, porém, às mulheres também é concedida certa liberdade
de escolha, que caminhou intensivamente para a escolha de maridos não-nikkei,
preterindo-se homens do grupo nikkei oposto.

Este novo posicionamento nos leva a uma nova transformação nikkei


na cidade. Cada vez mais produzem-se famílias mestiças, que casam não somente
indivíduos – esposos e esposas – mas grupos nikkei e não nikkei. Esta nova
produção e geração de filhos e netos mestiços, entretanto, não anulam a condição
de pertencimento okinawano ou naichi, que se mantêm constante entre os nikkei
campo-grandenses.

Nem mesmo o movimento decasségui que surge nas décadas mais


recentes – e que também altera a formação de novas famílias na cidade – é capaz
de anular ou obliterar tais diferenças. Com a partida de parentes e familiares ao
Japão, que produz através da distância novas formas de relacionalidades entre os
indivíduos que permanecem em Campo Grande, ou seja, produzindo novas famílias
compostas especialmente de jovens com pais ausentes, a heterogeneidade e a
noção de pertencimento okinawano ou naichi é continuadamente produzida. Estes
novos parentescos têm sido formados entre indivíduos que possuem um mesmo
pertencimento nikkei especifico.

Diante de tantas mudanças na história desse grupo nikkei em Campo


Grande, o que fica claro é que, de alguma forma, apesar de tantas transformações e
200

reformulações nos parentescos produzidos por essa população, a ideia de


homogeneidade se mostrou sem força em oposição à heterogeneidade e as
diferenças internas aos nikkeis continuam a ser construídas intensamente.

Heterogeneidade e diferenças que produzem japonesidades distintas,


que resultam em naichicidades, okinawanidades que se englobam e se opõem
constantemente, e que tornaram esta população nikkei um grande nicho de
investigações e questionamentos que parecem não poder ser encerrados mas, ao
contrário, objeto de investigação constante, especialmente no que se refere aos
pertencimentos e às exteriorizações destes pertencimentos.

Finalmente, acredito ter sido possível cumprir com a proposta da


pesquisa, de analisar mais profundamente a questão das diferenças construídas
pelos nikkei de Campo Grande, local onde foi possível constatar a constante
produção de japonesidades diversas, separadas em contextos públicos ou privados,
em que emergem okinawanidades e naichidades constrapostas.

Através da pesquisa de campo, foi possível verificar o quanto são


múltiplas as formas como os grupos se vêem e como seus posicionamentos
dependem de seu pertencimento, muitas vezes relacionada à uma certa oposição
criada constantemente entre estes nikkei e que, mais uma vez, reforça a questão da
heterogeneidade nipônica.
201

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ANEXOS
210

Genealogia 01 – Família Okinawana


211

Outras historias

Aqui apresento três relatos colhidos durante minha pesquisa de campo


na cidade de Campo Grande. Como dito anteriormente, o tema deste pesquisa
tratava inicialmente sobre as relações de parentescos entre os nikkei de origem
naichi e de origem okinawana na cidade. Questão esta que se mostrava presente
constantemente, desde minha infância, até o período em que realizei o mestrado.
Naquele momento, já se falava e discutia-se consideravelmente sobre o movimento
decasségui e diversos pesquisadores se debruçavam sobre o assunto. Por isso, por
muito tempo acreditei que esta não seria uma questão sobre a qual eu devesse
investir. Porém, quanto mais eu me aprofundava em meu campo, mais este tema
vinha à tona e se mostrava imperativo.

A cada contato que eu realizava, os comentários sobre parentes


vivendo no Japão evidenciavam-se e, finalmente, houve o momento em que percebi
não poder abandonar esta questão, pois ela faz parte da realidade de quase toda a
população nikkei campo-grandense e esta intrinsicamente relacionada às formas
como essa população reformula seus parentescos, consequência da distancia
importa por este movimento migratório.

Proponho neste momento, portanto, a apresentação das experiências


de três de meus interlocutores, que abriram suas casas e suas vidas e me
expuseram suas felicidades e suas dores, seu passado e seus anseios para o futuro.

Margarida

Margarida é uma senhora de 59 anos de idade, nascido em Dourados,


cidade localizada a 300 km de Campo Grande. Filha de pai issei e mãe nissei,
ambos de origem naichi, Margarida mudou-se para Campo Grande na adolescência.
212

Ele (seu pai) veio mais ou menos em 1917. Nasceu em 1903.


Chegou em são Paulo primeiro. Era a segunda imigração para o
brasil. Ele quase não falava essas coisas. Aí ele rodou, morou em
Corumbá, Aquidauana, Dourados e depois veio pra cá. Foi pra
Aquidauana, conheceu minha mãe. Foi pra Dourados, Fátima do sul,
aí eu vim pra cá morar com minha irmã e depois eu fui lá buscar eles
e trouxe eles pra cidade grande. Minha mãe é filha de japonês. Ela é
nissei, nascida aqui. Minha mãe nasceu em Aquidauana. A família I.
era de lá. Mas do meu pai eu não sei. Nossa, se eu soubesse tinha
procurado antes, os documentos. Só meu pai veio. Ele foi danado.
Ele teve irmãos, mas não posso falar nomes nada. Ele veio pra cá
criança. Não sei se no consulado a gente pode achar tudo. O koseki
tem nessa minha irmã. Minha irmã mais velha mora com minha mãe.
Mas a historia eu não sei.

Neste momento, sua filha Joana, que estava presente, começa a me


fazer diversas perguntas, procurando saber mais sobre mim e sobre minha família.
Margarida então, decide começar a fazer sua genealogia, para que não
perdêssemos muito tempo. Ela começa a nomear seus irmãos e logo pergunta: “mas
cunhado tem que colocar”? Respondo que essa é uma opção dela e ouço o seguinte
comentário: “Mas o Cleber não é casado, só vive junto. Eu não vou por. Não casou.
O Pedro é separado, também não vou por”.

Ao continuar a mencionar seus parentes, Margarida recomeça a falar


sobre sua mãe:

Ela falava que não queria morar na casa de ninguém, por que
se mora na casa de um filho, difícil o outro filho ir. Tem sempre
alguém que não vai. Por exemplo, eu tendo a minha casa, todo
mundo vai. Eu falei, o dia que a mamãe fechar os olhos a gente não
vai mais se encontrar. Tanto, com frequência. Dito e feito. Afastou
assim, por exemplo, teve o aniversario dessa minha irmã mais velha
que mora lá, é uma desculpa que eu invento, vamos la no aniversario
dela, por que assim eu tenho certeza que todo mundo vai. Se eu faço
meu aniversario aqui, já tem alguém que não vem. E a gente fazendo
lá, você vê como é né. Aí depois que ela faleceu em 2006 a gente vê
assim, tem a missa de morte. Ou uma comemoração no final do ano.
213

Aí a gente vai tudo pra lá. A casa está do jeitinho de quando ela
faleceu. Tem que ser lá por que senão os irmãos não se reúnem

Pergunto mais sobre seus irmãos e Margarida conta um pouco da


historia de sua família, imediatamente direcionando a conversa para a questão
decasségui:

Margarida: Tem um que está no Japão. O Pedro. Faz tempo


que ele está lá, uns 15 anos. Os filhos são nascidos aqui. Lá ele se-
parou da esposa, da primeira, aí ele teve filho com a outra lá. Ele fi-
cou por lá e a esposa dele veio agora. Ela é brasileira. Não descen-
dente. Brasileira mesmo. Depois que ele separou, nunca mais entrou
em contato com a gente. A gente procura através de internet, mas
ele não entra em contato com a gente. Nem com os filhos. deve fazer
uns cinco anos que ele esta separado. Filha, quantos anos o Caio
deve ter? O Caio deve ter uns 27 anos. A Simone 25. A Simone está
no Japão. A mãe veio agora, mas ela ficou lá. Ela tem um marido,
namorado, não casou lá, mas tem um filho. O Caio veio pra cá pra
comprar casa pra mãe. Ele não tem filho ainda. Engraçado, a Teresa
(filha de Margarida) foi pra lá agora. Dia 07. A minha filha casada.
Ela foi pra temporada, pra trabalhar no hotel. E o inverno traz soli-
dão. Porque você fica restrito, fechado. Diz que bateu uma vontade
de vir embora. Ela foi com o marido e o filhinho, meu netinho. Eles
vão todo ano quase. Meu genro vai todo ano. O dono do hotel já
acostumou com meu genro. Porque ele fala bem japonês. Ele toma
conta do hotel. Ele aprendeu (japonês) lá. O japonês manda email
pra ele ir. Vai pra lá em dezembro e volta em abril (temporada de in-
verno). Ele (neto) nasceu lá. Ai quando ele tinha um aninho ele veio.
O Marcelo, esse meu filho caçula de 17 anos, ele nasceu lá também.
O temporão. A Joana tinha seis anos. Ela ficou até de mal comigo.
Ela era caçula, ai eu tive mais o Marcelo. Ela ficou de mal de mim.

Joana: Fiquei, perdi o trono.

Margarida: Ele nasceu em Hiroshima. Eu fiquei um ano e oito meses.


Aí ele nasceu. E quando ele fez um aninho eu vim embora pra cá.
Foi em 1993 a primeira vez. Ai voltei em 1997. Ai não voltei mais.

Nádia: Os filhos foram juntos?

Margarida: Não, fui só eu e meu ex-marido.

Joana: Primeiro a gente ficou com minha avó.

Margarida: Eles eram todos pequenininhos.


214

Joana: Depois a gente ficou com a sogra da minha irmã. Ai depois a


minha mãe não quis mais saber de ir, porque é horrível.

Margarida: Nossa, eu sofri muito. Você acredita que eu saia choran-


do daqui? Chegava em São Paulo, a minha cara estava desse tama-
nho! Inchada. Aí eu entrava no avião em São Paulo, eu ia chorando
daqui ao Japão.

Joana: O Marcelo tinha dois aninhos.

Nádia: naquela época não tinha acesso a internet né.

Margarida: Não, era só telefone. era telefone. E a gente tinha que ir


na cabine. Aí tinha que andar dentro da neve. Afundava, pra eu ir lá
na cabine, pra telefonar pra eles. Porque em casa não tinha telefone.
E eu ia. Era sofrido. Gente do céu!

Joana: Tinha que comprar cartão, comia tudo os minutos. Era com-
plicado né mãe?

Nádia: E você nunca pensou em ir Joana?

Joana: Então, eu fui em 2002, mas só fui pra passear. Fiquei quatro
meses.

Margarida: Ganhou de 15 anos.

Joana: É. Meus irmão não queriam de jeito nenhum que eu traba-


lhasse lá. Aí eu voltei, forçada. Mas voltei.

Margarida: Ela só foi porque prometeu que ia voltar, pra estudar.


Eles não queriam que ela ficasse lá, por que senão fica sem estudar.

Joana: Como eu era menor, o meu pai autorizou. Naquela época era
só um ou outro que autorizava. Porque eles eram separados. Aí ele
autorizou. Eram só três meses, então se alguém me pagasse la, por
mais que estivesse com meus irmãos, querendo ou não, eles não
eram meus representantes legais. Daí eu tive que vir.

Margarida: Ela não aprendeu (japonês) e diz que não saia do 1,99.
Trouxe tanta coisa que até hoje tem. Ela era tão cabeça. Ela trouxe
as coisinhas de cozinha. Que eu tenho ate hoje.

Nádia: Foi seu presente de 15 anos? Você que pediu?

Joana: uhum.

Margarida: Olha só, foram inventar de ligar pra ela pra dar os para-
béns e perguntar o que ela queria ganhar de presente. Ai ela res-
pondeu: ver vocês.

Joana: Eles ligaram era fevereiro. Ai eles falaram, esse ano você faz
quinze anos. O que você quer? A minha irmã queria me dar uma fes-
215

ta de debutante. Falei, credo! Eu sempre fui muito tímida e nem tinha


tantos amigos assim. Eram muito poucos amigos. Ai eles juntaram o
dinheiro. Ai fui atrás de visto, tudo. Tinha que ter foto com minha avó.
Um monte de coisas.

Margarida: Nádia, põe aí o nome do meu sobrinho que eu acabei de


lembrar (risos). Vitor.

Nádia: os outros sobrinhos, já estiveram no Japão.

Margarida: Já. Esse meu irmão, Teodoro, ele já foi, tem um filho ain-
da lá. A Pamela já foi e o Douglas ainda está la. O Douglas conhe-
ceu uma menina lá. Já tem dois filhos, nascidos lá.

Nádia: Aqui quem mora com você?

Margarida: O Marcelo, a Joana e o Leonardo. O Gilberto mora em


São Paulo. Ele trabalhou no Japão também. Ele veio, aí como aqui é
mais difícil de arrumar serviço, ele foi pra lá. Ele arrumou serviço na
semana que chegou. Está la ate hoje. Ele trabalha em um bar a noi-
te. E a namoradinha dele está trabalhando em um shopping. Aqui é
mais difícil. São Paulo não. Tem mais opção. Ele foi em julho. Che-
gou do Japão em maio, dia das mães aí em julho, depois do meu
aniversario ele foi. No Japão a gente não para de trabalhar. A pessoa
chega do Japão, não aguenta ficar parado.

Nádia: Ele estava lá na época do Tsunami.

Margarida: Estava. Eu fiquei desesperada. Ele estava longe, mas vo-


cê não quer saber, ele estava lá. Como o Japão é uma ilha, você fica
imaginando, de repente acontece em outro lugar. Aí que ele veio. Ele
não queria vir. Eu falei “pode vir”. Veio por minha pressão. Ele estava
em Nagano. No lugar onde meu genro e minha filha foram. Essa
Inês, filha da Josefa, minha irmã mais velha, ela mora lá no Japão.
Ai, primeiro ela casou com um japonês mesmo, teve uma filha. Tanto
é que ela não veio embora por que não dava pra filha vir. Por que ela
é filha de japonês. Se ele não autorizar ela vir, ela não pode vir. En-
tão, pra filha ficar la e ela vir, ela preferiu morar lá. Tem até casa lá.
Essa aí, minha filha, ela foi jovem pra lá. Ela aprendeu tão bem que
ela é tradutora da prefeitura. Ela fala bem. A Inês tem uns 46 anos
mais ou menos. Aí ela tem um menininho que é o Miguel e essa me-
nina que é filha do japonês.

Nádia: A filha mora com ela ou com o pai?

Margarida: Mora com ela, mas ela mora sozinha em Tokyo, porque
ela já ta fazendo faculdade. miguel deve ter uns três anos. Ela casou
com um nissei. Ai teve esse segundo filho.

Nádia: Seus pais diziam com quem vocês deveriam se casar?

Margarida: Ele queria (pai) que todos casassem com descendentes.


Ele dizia assim, a Harumi que é a irmã mais velha, deveria casar
com japonês. O segundo casou com a Antônia, que é descendente
de Okinawa. A família dela é bem diferente sabe. Tem uma diferença
216

que você percebe. Ela é muito bonita. Pro meu pai precisava ter cara
de japonês. Não importava se era Okinawa. Mas ele queria. Mas a
gente falava: mas fulano casou com brasileira. Ai ele ficava sem ar-
gumentos. Ele não queria que casasse com brasileiro. Porque ele ti-
nha medo de fazer sofrer. De judiar. Como não aconteceu, depois
que casava ele ficava. Era só antes mesmo. Minha mãe sempre foi a
favor de quem gostasse. Da felicidade. Porque ela já era brasileira.
Era filha de japonês, mas era bem brasileira. Por mais que ele veio
com 14 anos, mas a cabeça era de japonês mesmo. Ele não falava
japonês em casa, porque minha mãe não sabia falar nada. Então
quando a gente foi pro Japão, minha filha quando foi, a Teresa, o
Leonardo, ai eu coloquei no Cruzeiro (Clube Nipo) porque tinha aula
de conversação em japonês. Pra não ir cru pra lá. Se bem que hoje
em dia, ate escrita, alguma coisa eles sabem. Mas eles não sabiam
nada. Eu mesma fui crua pra lá. Ai eu fui pra lá. Ai eu fiz um trata-
mento aqui e fui pro Japão. A Joana tinha seis anos. Ai quando eu fi-
quei gravida, eu não defecava. Passei mal, mas era sintoma da gra-
videz, do Marcelo. Mas até descobrir, eu tive infecção urinaria pra
descobrir que eu estava gravida do Marcelo. Ai, o que aconteceu. O
remédio do Japão é tudo assim meio homeopático, não é igual ao do
Brasil. Que tem tarja vermelha, tarja preta e faz mal. Então lá é um
remedinho fraco. Só que o remédio não fazia efeito, porque eu não
estava com problema de intestino preso. Era sintoma da gravidez.
Porque não aconteceu nada com o Marcelo? Porque eu com quatro
meses, emagreci muito então não aparecia barriga. E vinha sinal da
menstruação. Então eu não achava que estava gravida. Ai quando
eu tive infecção urinaria, eu fui pro hospital fazer ultrassonografia, aí
viram o feto. Ai aparecia só a cabecinha, o tronquinho, e ainda ia
nascer os bracinhos. Ai eu pensei, pronto aleijei ele! Menina, me deu
um ataque de choro! Eu pensei que era o remédio que eu tomei. Mas
não era. Era daquele jeito mesmo. Eu não falava em japonês. Eu ia
com dicionário, com a secretaria, o medico mais ou menos sabia por-
tuguês porque tinha muito brasileiro na cidade, chegando. Ai, o me-
dico se interessou também. Ai eu sempre convidava alguém, colega.
A menina que morava comigo, era um casal, ela sabia japonês, ai eu
levava. Eu cheguei lá, eu deveria estar com 15 dias (de gestação).
Eu estava em Hiroshima quando eu tive. Ai fui pra Mie-ken. Em outro
estado. Porque onde eu estava era muito mais frio, ai meu sobrinho,
que faleceu com 27 anos, veio pra cá pra casar, casou e quando fez
seis meses de casado, aqui no Brasil, que ele estava retornando pro
Japão, ele foi despedir do Brasil, foi pra Camboriú, morreu la na
praia. Afogado. Triste né. Eles estavam com amigos de Dourados
que iam voltar todos pro Japão. Foi em 1994. Ai ele me trouxe pra
Mie-ken, porque eu não tinha serviço, o Marcelo estava com dois
meses e não podia ir pra creche da prefeitura. Ai esse meu sobrinho
arrumou uma brasileira pra cuidar pra mim. Ai eu podia ir trabalhar.
Eu não queria ficar parada. E lá em Hiroshima ele só podia ir pra
creche da prefeitura aos quatro meses. Ai me mudei. Era uma babá
brasileira que cuidava dele. Ai com quatro meses ele ficou na creche
da prefeitura e eu fui trabalhar na fabrica, mas a creche ficava cem
metros da minha casa e do meu serviço. Eu ia pro serviço, deixava
ele na creche. Ai, era tão pertinho que eu ia almoçar em casa. Eu
não podia fazer isso, mas fazia. Eu ia de bicicleta. Ai eu ia e olhava
pela janela, porque eu morria de saudades dele. Era muito triste,
mas eu tinha que trabalhar, eu tinha que ajudar meu marido, eu tinha
217

deixado os outros aqui e eu tinha que mandar dinheiro. A gente se


separou depois de muito tempo. Ele não é descendente. Essa gravi-
dez, deus que me perdoe. Eu amo demais o Marcelo, graças a deus
que ele veio, mas eu tinha tanta coisa pra fazer, não é que eu es-
queci os daqui, mas ele ocupou minha cabeça. Porque eu tinha ele.
Ele que fez eu aguentar la. Porque a gente tinha que ter ido, porque
meu marido tinha perdido tudo em Cuiabá. Eu vim pra cá, as crian-
ças ficaram os quatro com minha mãe, ai depois que eu fui pro Ja-
pão. Mas eu sofri muito. Então a gravidez foi uma salvação pra mim.
Ai eu fiquei um ano e oito meses lá. Ai eu vim. Quando eu vim, o
Marcelo tinha um aninho. Eu vim pra os irmãos conhecerem ele. Ai
quando ele fez dois aninhos, eu tive que voltar porque meu ex-
marido não conseguia visto. Porque ele era brasileiro. Ele comprou
minha passagem e eu fui. Deixei o Marcelo aqui com dois anos. Só
que daí tinha a Teresa, que era uma irmãzona, que cuidava dos ir-
mãos. Deixei com ela e fui pra dar o visto pra ele. Só que eu não ia
dar o visto e vinha embora. O que eu fazia? Eu trabalhava, pagava
minha passagem e ainda trazia dinheiro. Eu fazia sempre assim pra
compensar, pra não ir lá, só gastar a passagem e vir embora. Eu ti-
nha tanta sorte que eu chagava lá, tipo, chegava hoje a amanha se
quisesse já ia trabalhar. Eu só não ia porque meu ex-marido tinha dó.
Ele falava não, você vai ficar muito cansada. Mas eu ficava só uma
semana. Ai só ficava uma semana e já ia trabalhar. Ai eu voltei pra lá
duas vezes. Sozinha, pra dar o visto pra ele. Eu vinha e ele ficava lá.
Porque o pai aguenta ficar longe dos filhos, eu não aguento. Ai,
quando eu vim a penúltima vez, ele aprontou. Ai eu fui bem fria, meu
casamento já não estava bem, ele aprontou, dai pronto, falei, dessa
vez não da. Mas ele não me achou na rua. Eu fui inteligente. O que
eu fiz. A gente não tinha o apartamento. A gente tinha casa, tinha
chácara, tinha tudo la em Cuiabá. Ele acabou com tudo. O plano Col-
lor veio, ele tinha imobiliária, mas acabou com tudo. Eu pensei, eu
tenho que ser inteligente. Pensei, vou ficar numa boa com ele. Ele
me traiu. Só que traiu, conheceu essa mulher, bem mais velha que
ele, e ela entrou em contato com ele e foi encontrar com ele no Ja-
pão, enquanto eu estava aqui no Brasil. Só que a minha filha mais
velha tinha ido. Ela fez 18 anos e podia ir. Ela disse, chega da se-
nhora ir. Eu vou. Ai ela foi pra ajudar o pai. Ai essa mulher foi pra la.
Ela ficou desesperada. Ai eu falei, filha, a mãe esta numa boa. Só
que a gente precisa ser inteligente. Fazer ele dar um apartamento
pra gente e um carro. A partir do momento que ele vir, a gente vai
estar numa boa com ele. Pode deixar, eu tenho paciência. Ai ele
veio, eu só falei, acaba aqui. Porque homem é assim, se você agra-
dar ele da ate a vida dele. Se você tratar ele mal, ele te deixa na
mão. Ai quando ele veio, a gente falou, nosso casamento não tem
jeito mais. Eu esperei bastante tempo. Eu falei, vamos usar ele. Esse
sofrimento que ele causou na gente, ao invés da gente cair, a gente
vai tentar erguer. A gente não vai deixar isso ai levar a gente pra bai-
xo. Ai o que eu fiz. Ele mandava dinheiro, ai a gente comprou esse
apartamento. Era um outro maior. Como ele não ia mais morar com a
gente, eu usei a cabeça. Ai eu fiz as contas, a gente pegando esse
menor, eu já não contando com ele, já contava com a separação. Eu
falei, a mãe vai trocar o apartamento, porque o que eu já dei no outro
que era grande, bem maior, a mãe já dá nesse que fica bem pouco
pra quitar esse aqui. Ai eu fiquei no Brasil, fui trabalhar pra fora. Os
filhos foram crescendo. O Leonardo estava no Japão na época, ele
218

me ajudava. Mandava dinheiro ate eu arrumar serviço. Quando o Le-


onardo conseguiu mandar dinheiro pra mim, ele falou, se o casamen-
to estiver assim, termina com ele. Eu aguentei o casamento ate o ul-
timo filho falar eu não quero ficar sem pai. Ai eu fui aguentando. No
momento em que eles falaram, se a senhora quiser separar, foi um
alivio. Ai eu sozinha fui e arrumei um advogado. Já arrumei toda a
papelada, chamei ele pra assinar. Chamou três vezes e ele não
compareceu. Ai eu falei com o advogado. Tem que ser litigioso. Na
época ele estava em Cuiabá. Era 15:30 a audiência. 10 horas ele es-
tava ali. Daí ele tentou conversar. Mas ele teve três oportunidades. Ai
a gente separou. Ele jogava na minha cara que ele estava no Japão
por inteligência dele. Não era porque era casado comigo. Então, va-
mos provar. Ai teve a separação, ele queria voltar pra lá. Veio falar
comigo, eu falei não tem como. Você não é mais casado comigo. Ele
disse, eu vou prova pra você que eu consigo. Eu falei, tudo bem. Eu
peguei amizade com uma brasileira que trabalhava na imigração. Ele
tentou ficar com a mulher la, foi na imigração e tentou tirar o re-entry
dela, pra ela não vir embora, ficar lá. Porque ela foi com visto de tu-
rista. O que a menina fez. Ela sabia que a esposa natural dele era
eu, Margarida. Ela guardou como eu era. Ela fazia a papelada. Ela
disse, a sua esposa é Margarida. Com que cara de pau o senhor
chega aqui e fala que essa é a mulher do senhor?

Neste momento Margarida muda de assunto e passa a falar sobre o


trabalho nas fabricas e sua função. Percebo Marcelo calado, somente ouvindo aque-
las historias de sua família e, então, o questiono se ele gostaria de ir ao Japão, as-
sim como os irmãos. Ele responde que sim, pois gostaria de conhecer o local onde
nasceu. Mas, continuando calado e dirigindo-se ao computador, volto a falar com
sua mãe e peço para que ela fale sobre a filha que estava naquele momento no Ja-
pão:

Margarida: Com a Teresa a gente fala pela internet. É difícil ele (gen-
ro) ir sozinho. Quando o Gilberto estava lá e até mesmo o Leonardo,
eles trabalhavam juntos no hotel. Agora que o Gilberto veio, meu
genro ia chegar la sozinho. Ia ser muito triste. Minha filha ficou pen-
sando que o Arnaldo ia se sentir sozinho la. Em uma semana resol-
veu ir. Ele tinha um lava jato e passou pra outra pessoa. O Edson
(neto), nasceu lá.

Já eram quase dez horas da noite e Margarida resolve nos servir um


bolo com chá. Neste momento, fizemos o lanche e combinamos de nos encontrar
novamente para terminar sua genealogia, que foi apresentada anteriormente.

Amanda
219

Amanda é uma jovem nikkei de 32 anos de idade, casada e mãe de um


bebê. Fui recebida em sua casa, onde sua mãe, irmã e sobrinho passavam alguns
dias de ferias. No caso de Amanda, não realizamos sua genealogia, visto que eu fui
levada até ela por acaso através de uma conhecida e, portanto, nem eu, nem ela
estávamos preparadas para a coleta deste tipo de dados.

Mesmo com a surpresa de minha visita, Amanda abriu as portas de seu


lar e concordou em falar sobre sua família, especialmente sobre sua experiência
como decasségui. Diferentemente do que ocorreu em quase todas as entrevistas
coletadas (com exceção da entrevista de Margarida), pude conversar com diversos
membros de uma mesma família ao mesmo tempo. Assim, estes dois casos, o de
Margarida e o de Amanda, nos transmitem uma perspectiva familiar e não individual
Como no relato anterior, aqui apresento o dialogo, não entre um interlocutor e a
pesquisadora mas, um dialogo entre os próprios familiares:

Amanda: Na verdade, eu nasci em Fernandópolis, mas morava em


Americana, Estado de São Paulo. Meus irmãos já estavam lá (no Ja-
pão). Minha irmã e meu irmão. E eu fui mais a trabalho né. Tipo,
meus irmãos já estavam lá, e eu queria tentar uma vida melhor pra
minha família, pra mim. Quando eu era mais nova, eu tinha mais
vontade de ir pelo fato dos meus irmãos estarem lá. E logico que lá
tem uns lugares muito bonitos, pra passear, então eu queria ir mais
pra conhecer. Eu Sou a caçula. Somos três. Os três lá. Minha irmã
foi primeiro, acho que logo depois foi meu irmão, e aí eu fui bem de-
pois. Tipo, eu não encontrei muitas dificuldades pelo fato de que eles
já estavam lá né. Então eles já tinham uma residência fixa, então eu
não encontrei dificuldades nessa parte. E foi minha irmã que me aju-
dou, na passagem e tudo, porque a maioria na primeira vez vai pela
empreiteira. Passagem financiada, geralmente você não sabe nem
onde vai ficar, você não sabe onde você vai trabalhar. Com que tipos
de pessoas você vai lidar. Então, pra eles eu acho que foi mais difi-
culdade mesmo. No caso, minha mãe é descendente, meu pai que é
brasileiro. E a gente, bem dizer, nem sabia falar nada em japonês,
mal arigatô e sayonara, que acho que todo brasileiro sabe. Porque
como meu pai é brasileiro, minha mãe, tipo assim, conviveu mais
com a família do meu pai. Então minha mãe não ensinou muita coisa
pra gente, até mesmo porque ela não tinha convivência. Porque mi-
nha avó morava em outra cidade. Minha mãe nasceu em Nova Euro-
pa, Estado de São Paulo também. No caso, meus avós que nasce-
ram no Japão. Meus avós são de Hiroshima. Eu fui, minha irmã que
220

me ajudou com a passagem, tudo. Ela já estava vendo emprego pra


mim onde ela trabalhava. Ela falava, lá é mais tranquilo, tudo, aí ela
que arrumou tudo assim pra mim. Fui, fiquei morando com eles, fui
sozinha e fiquei morando com ela e meu irmão. Meu irmão sempre
trabalhou em fábrica que fazia dois horários. Uma semana de dia,
outra a noite. Geralmente, a maioria dos homens trabalham em fábri-
cas assim. Já mulher tem opção. Tem mulher que faz esse horário,
mas geralmente, a maioria, prefere mais durante o dia. A gente con-
vivia mais, eu e minha irmã que a gente era mais assim, porque co-
mo meu irmão trabalhava uma semana de dia outra a noite, era mais
eu e ela, era a mesma fábrica. Mesma sessão. Porque a empresa
fornece condução própria né, no caso das empreiteiras. A gente pe-
gava junto e voltava junto. Antes, eu morava com minha mãe. Minha
irmã ligava sempre, praticamente uma vez por mês ela ligava. As ve-
zes até mais. Porque como meus pais eram, meus pais são separa-
dos né, e a gente não tinha uma condição financeira assim, a gente
morava com minha avó também, porque o irmão da minha mãe tam-
bém decidiu ir pro Japão, e meu tio que cuidava da minha avó, daí
pra minha avó não ficar sozinha, foi aí que a gente mudou, porque aí
minha mãe ficou com minha avó, e meu tio foi também. Só que meu
tio foi em 1990. No começo, até acostumar, eu sentia muita falta. Mi-
nha mãe ficou no Brasil e eu decidi ir, porque praticamente era meu
irmão que sustentava a casa, dai ele casou e ficou eu e minha irmã
pra sustentar. Ele casou la com brasileira, descendente também. Só
que já é o segundo casamento dele. Ele casou la, separou la e casou
com outra de la. As duas são descendentes. Essa atual mulher dele,
pai e mãe dela são descendentes, no caso da mãe dele (sobrinho), a
mãe dela é brasileira e o pai é descendente. Ele (sobrinho) nasceu
no Japão. Ele nasceu la em 1997. a mãe dele vinha muito pro Brasil,
então trazia ele. Ele ficava uns tempos (no Brasil). Ele ficou o que,
dois anos daquela vez que ela voltou? (perguntando para Flavia, sua
irmã). E já faz três anos que a gente voltou (2009).

Nádia: você foi quando?

Flávia: Fui em 1994, antes dela.

Amanda: Foi tudo meio junto, ela foi e logo depois meu irmão foi
também.

Nádia: Ai vocês voltaram todos juntos?

Amanda: ela voltou em janeiro, eu voltei em março.

Nádia: O sobrinho veio junto?

Amanda: Foi, por causa daquela crise que deu. Crise financeira.
Porque muitas fábricas, a gente morava na cidade de Toyota, a mai-
221

oria la é fábrica de carro, a maioria dos brasileiros trabalhavam em


fábrica de carro, então, muita gente ficou desempregada. inclusive
eu, ela, a gente trabalhava na mesma fábrica. antes de vir embora o
meu irmão também ficou desempregado. A Mariana (uma amiga) fi-
cou desempregada?

Flávia: Não, porque ela nem trabalhava direito, ela fazia mais era bi-
co.

Amanda: Ai, como todo mundo ficou desempregado, e ele estudava


la, só que em escola brasileira, ai meu irmão ficou meio assim, tipo,
como vai sustentar a mulher e o filho? tinha que pagar as despesas
de la, a escola dele, ai ele acabou vindo com a gente.

Nádia: Então ele estudava em escola brasileira? Mas ele aprendeu


japonês?

Amanda: Fala, porque, tipo assim, antes ele estudava em escola ja-
ponesa, depois que mudou pra escola brasileira. Três anos na escola
japonesa e mudou pra escola brasileira.

Flavia: Porque meu irmão não queria que ele fosse alfabetizado pri-
meiro na escola japonesa, queria primeiro a brasileira. Porque as cri-
anças que estudam na escola japonesa tem muita dificuldade de
aprender o português.

Nádia: Então o plano dele era…

Amanda: Voltar. Inclusive ele tem a intenção de voltar, mas esta


meio difícil.

Nádia: Ele (o sobrinho) é filho único?

Amanda: Não, tem mais um que é do segundo casamento (do pai).


Que esta la. Ele esta em creche japonesa, por que ele é pequeno,
tem um ano e meio. Porque la, ou você coloca na creche japonesa
ou paga babá brasileira. Só que não compensa, é muito caro, as
brasileiras que cobram pra cuidar das crianças.

Nádia: Ele (sobrinho) foi o único que nasceu la? Seu filho nasceu
aqui?

Amanda: É, eu vim grávida. Estava de dois meses. Na verdade a


gente não estava esperando. Eu e meu marido, a gente ficou de-
sempregado e a gente estava recebendo o seguro desemprego, ai
ele falou: “não dava pra gente ficar aqui. Vai saber quando vai me-
lhorar. Agora você ficou gravida”. E eu não tinha convênio médico,
nem nada. Ia ter que fazer tudo particular. Ai ele falou: “vamos voltar,
222

porque se for pra ficar aqui pagando conta, vamos voltar”. Ai a gente
decidiu voltar.

Nádia: E você conheceu seu marido lá?

Amanda: Conheci meu marido la no Japão. Inclusive eu vim direto do


Japão pra Campo grande com ele.

Nádia: Você nem tinha ideia daqui?

Amanda: Nunca ouvi falar, nunca vim pra esses lados. Era só estado
de São Paulo mesmo.

Nádia: Vocês se conheceram trabalhando?

Amanda: Trabalhando, na mesma fábrica. Tinha uma amiga em co-


mum, ai a gente acabou se conhecendo na mesma fábrica.

Nádia: E quando vocês voltaram, aproveitaram as passagens que o


governo…

Amanda: Não, não pegamos, se a gente tivesse esperado um pou-


co… Mas ele até falou (marido), brincando né, que foi melhor, porque
se a gente tivesse pego, eles não dariam mais o visto pra voltar.
Porque a gente nunca sabe o dia de amanha, se a gente precisar
voltar.

Nádia: Hoje é um desejo?

Amanda: Não, porque hoje não compensa mais, o dólar esta baixo
lá. Esta ruim de emprego. Melhorou, depois da crise, deu uma me-
lhorada, mas não melhorou 100%. e com filho, ai fica mais complica-
do, porque o forte do Japão é hora extra, quanto mais você trabalha,
mais você ganha, e com filho já não da pra você trabalhar tanto. Ai
no caso, se a gente voltasse, seria mais ele. A sogra brinca, diz, dei-
xa ele (bebê) ai que eu cuido. Muitos casais fizeram isso, muitos fa-
zem, foram e deixaram os filhos com os avos e vão.

Nádia: Que bom que você tocou nesse assunto. Ele (sobrinho) mora
com quem, com você?

Flávia: Ele morava comigo, ele veio comigo. Ficava comigo e com
minha mãe, a gente trabalhava e cuidava dele depois da escola. Ai
ele ficou comigo até o ano passado. Ai a mãe dele veio e ele decidiu
morar com ela.
223

Nádia: Você gosta de computadores Luís81 (sobrinho)?

Flávia: Ele é viciado em games. Desde criança.

Luís: Mas no Japão eu ficava mais na rua que aqui.

Flávia: É que no Japão ele tinha dois ou três amiguinhos, aqui ele
não socializa com ninguém. Ele diz que os meninos não tem assun-
to, eles não conversam o mesmo assunto que ele, então ele prefere
os games.

Luís: Eu não socializo mesmo, ficar em casa é melhor.

Nádia: E seus amigos lá, eram descendentes? Eram brasileiros?

Flávia: Eram descendentes, vieram embora também. Mas no Brasil


perde contato porque mora tudo longe um do outro. Que nem lá, a
gente morava tudo pertinho, tudo junto, eram vários prédios.

Amanda: E tinha bastante brasileiro onde a gente morava. E a gente


morava tudo junto, no mesmo apartamento, separamos quando ca-
samos, primeiro meu irmão depois eu.

Nádia: E sua sogra mora aqui?

Amanda: Ela mora aqui.

Nádia: E ela disse que se vocês quiserem voltar pro Japão ela cui-
da?

Amanda: É que ela fica com meu filho. Mas eu não tenho coragem.
Igual meu marido fala, se for pra ficar, fica todo mundo junto, se for
pra ir vai todo mundo junto. Porque ele também foi muito novo pro
Japão (ele tem 30 anos), a primeira vez que ele foi ele tinha 9 anos,
foi com os pais, foi, voltava, foi, voltava, ficava um tempo aqui, de-
pois resolveram voltar. Tanto que ele parou na sétima serie. Ele ta
terminando os estudos agora, mas ele tinha parado na sétima serie.

Nádia: E ele conseguiu se adaptar bem, apesar de sempre ir e vol-


tar?

Amanda: Ele diz que prejudicou nos estudos, porque ele nem ficava
lá, nem ficava aqui. Ele começava a se adaptar lá os pais dele resol-
viam voltar. Por isso que ele fala, se for pra gente ficar aqui, que nem

81
Luís manteve quase todo o tempo diante do computador e pouco interagiu durante nossa
conversa.
224

agora a gente tem filho, se for pra ficar vamos ficar todo mundo aqui,
se for pra voltar, vamos ficar todo mundo lá. Agora, fica um lá, o ou-
tro aqui, deixa o menino ai e vamos nós, ele fala que não, acho que
por causa da experiência que ele passou.

Nádia: E sua mãe, esta acostumada com todo mundo longe?

Mãe de Amanda: A separação mais difícil foi dele (sobrinho) porque


estava acostumada junto (Luís, que morava com a avó passou a mo-
rar com a mãe).

Amanda: Minha mãe também foi pro Japão.

Mãe de Amanda: A primeira vez fiquei dois meses e depois que mi-
nha mãe faleceu eu fiquei seis meses.

Amanda: Voltou junto com minha irmã.

Flávia: Mas ele morou mais com a gente, porque depois que meu ir-
mão separou ele foi morar com a mãe e depois ele passou a morar
com a gente. Porque a mãe dele teve uns problemas lá. E depois ele
já não quis mais voltar com ela. Faz seis meses agora que ele esta
com a mãe dele. A família fica desestruturada né.

Amanda: Por mais que ele veio morar com a gente, meu irmão ainda
morava com a gente, ele não tinha casado ainda. Então, querendo
ou não, ele estava ali com a gente, mas tinha o pai dele. Dormia com
o pai dele. Depois que ele casou, ai ele foi morar com meu irmão,
mas ele não se adaptou muito com a atual esposa do meu irmão. Aí
ele falou que queria ficar morando com a avó. E como a gente deci-
diu voltar, aí ele veio.

Flávia: É que meu irmão falou, ano que vem eu volto.

Amanda: Então, acho que talvez a esperança dele era que meu ir-
mão voltasse, porque talvez ele queria morar com o pai dele.

Flávia: É que a mãe dele já casou várias vezes. E ele tem mais ir-
mãos. Ela tem mais quatro e a situação financeira dela também não
era muito boa, então ele ficou com a gente também por causa disso.

Amanda: Então meu irmão falou, vai que ano que vem eu volto. Já
se passaram três anos. É que assim, a esposa atual dele ficou gravi-
da, teve bebê, fica complicado, tem que sustentar ele, o outro pe-
queno, então ele esta lá, acho que ele tem medo de vir e não dar
conta de sustentar.

Flávia: A gente tem um primo que veio ficou seis meses aqui, mas
225

como ele tem três filhos pequenos, não conseguiu sustentar e voltou.
Ele arrumou um emprego, mas tinha a família pra sustentar, pagar
aluguel, a ele voltou, sozinho. A mulher dele estava grávida e voltou
pra ganhar o neném aqui, ai ele voltou depois de um ano, mas ficou
seis meses só. É ruim porque tem muitos casamentos que se aca-
bam nesse meio. Um fica lá o outro fica aqui.

Amanda: Por isso que meu marido fala, se for pra ficar aqui, fica todo
mundo junto, se for pra ficar lá, porque lá no Japão você vê muitos
casos, a mulher ficou grávida, volta pra ter o neném pra depois dei-
xar o neném, o que tem de casamentos desestruturados, família, é
complicado.

Flávia: Muitos deixam os filhos pra ser criados por parentes, pelos
avós, aí as crianças não ficam muito assim com os pais. Destrói mui-
to. Ele (sobrinho) sente bastante. Ele sempre foi muito apegado ao
meu irmão, eles (os pais) separaram cedo, mas mesmo assim ele
sempre foi muito apegado com o meu irmão. E agora ele quis ficar
um pouco com a mãe dele.

Amanda: Meu irmão liga, ele não é muito de internet.

Amanda: Eu vou falar por mim, eu senti muito (Amanda começa a


chorar e pede para fazer uma pausa). Eu fiquei sozinha com a minha
mãe, a minha irmã foi, meu irmão, então eu senti muito. Porque era
só eu e minha mãe, eu não tinha uma irmã, uma companhia, de
compartilhar, depois que eu fui que a gente ficou mais unida, mais
amiga, ela foi quando tinha 17 anos, eu tinha 13 (na época), eu não
tinha com quem conversar, me apeguei muito a minha prima porque
a irmã dela também foi, mas não era a minha irmã. Eu morava na
casa da frente e ela dos fundos, os irmãos dela foram na mesma
época, minha irmã foi, depois os irmãos dela, mas depois que eu fui
a gente se apegou muito, ficamos amigas. Minha irmã que se preo-
cupava com a gente pelo fato da gente não ter pai, meus pais se se-
pararam cedo.

Flávia comenta sobre uma amiga que conheceu no Japão e que acabaram por
se tornar irmãs:

Flávia: A gente disse, vamos adotar você como irmã.

Nádia: Então é possível criar laços?

Amanda: Cria, mesmo porque muitos que vão lá, não tem a família,
que nem essa amiga nossa, depois que o irmão dela foi, mas eles
nem eram muito assim, ela preferia ficar com a gente. Ela é da famí-
lia mesmo. Se vamos fazer um churrasco, uma janta lá em casa, ou
226

ela fazia janta na casa dela.

Como Amanda ainda encontrava-se bastante emocionada decido en-


cerrar a entrevista. Passamos então a outros assuntos mais amenos até que me
despedi para que a família pudesse se recompor, após tratarem sobre assuntos tão
íntimos e que causaram lembranças por vezes desagradáveis.
Para finalizar, trago em seguida o relato de Francisco, um jovem de 34
anos de idade e que passou alguns anos de sua vida no Japão. De volta à Campo
Grande, quando nos encontramos seu filho estava com apenas alguns meses de
vida.

Francisco

Francisco, um jovem de origem naichi é casado com uma jovem de


mesma ascendência. Sua esposa é também de Campo Grande e os dois se conhe-
ceram em um dos momentos em que Francisco voltou para a cidade. Ele viveu no
Japão trabalhando como decasségui entre 1998 e 2000 e entre 2002 e 2008.
Fui apresentada ao casal através de uma de minhas informantes que,
em um de nossos encontros sugere de irmos até a casa de Francisco. Ao chegar-
mos à sua residência não havia ninguém. Raquel então decide ligar para Cátia, in-
formando de nossa presença. Ela pede para esperarmos, pois o casal iria chegar em
breve. Nossa conversa acabou sendo bem rápida. Francisco havia acabado de sair
do trabalho e estava cansado. Mesmo assim, ao saber sobre nossa presença em
sua casa, antes de retornar decide comprar algumas coisas para comermos juntos.
Fizemos então um breve lanche antes de começarmos a conversar.
Francisco trabalha em uma universidade da cidade e comentou breve-
mente sobre a greve que paralisava as atividades acadêmicas, mas ele, que não é
concursado, precisava cumprir com o expediente. Ele então viu meu caderno de ge-
nealogias e logo me pergunta o que era. Lhe falei sobre as genealogias que estou
colhendo e ele me disse: “Se for isso aí, agora não vou poder te ajudar, porque não
sei. Preciso pegar o koseki dos meus pais pra saber”.
227

Expliquei para Francisco que as genealogias que colho são baseadas


na memória de cada entrevistado e em quem efetivamente é considerado parente.
Francisco automaticamente reponde que “no meu, todos são considerados paren-
tes”. Ele parecia meio apreensivo, fechado. Após a entrevista, Raquel comentou que
Francisco é “muito japonês” e que sua família segue muito o modelo do Japão. São
reservados, a noção de hierarquia é seguida por todos. Isso ficou bem claro, com as
palavras de Raquel sobre o nascimento de do filho de Francisco e sobre como a fa-
mília se comportou. A mãe de Francisco, reservada, só foi visitar o neto quando eles
já estavam em casa. Quase sem se aproximar, ia apenas para levar as refeições.
Com quase três meses de idade, os pais de Francisco foram visitar o filho apenas
umas duas vezes.
Percebendo seu nervosismo, peço à Francisco para que me fale um
pouco sobre sua experiência como decasségui:

Francisco: A primeira vez eu fui em 1998 até 2000 e a segunda em


2002 até 2009. Não, 2008. 2008 a gente voltou né? (Perguntando
para a esposa). 05 de novembro de 2008.

Nádia: Nas duas vezes vocês foram juntos?

Francisco: Não, a primeira eu fui sozinho e na segunda, ela tinha ido


antes, depois de seis meses eu fui atrás dela.

Nádia: Vocês já namoravam então?

Francisco: Sim.

Nádia: Essa primeira vez, você foi sozinho?

Francisco: Não, fui com um amigo meu.

Nádia: Mas como, do tipo, ei, vamos para o Japão?

Francisco: É, mais ou menos assim.

Nádia: Já tinha alguém da sua família que já tinha ido?

Francisco: Na época minha irmã já estava no Japão. Eu estava fa-


zendo faculdade e estava de saco cheio. Pra falar a verdade, estava
de saco cheio da faculdade, do serviço.

Nádia: Você tinha 20 anos?


228

Francisco: Isso, aí esse amigo meu, que é amigo mesmo, bem che-
gado, ele voltou pro Brasil, ficou um tempo aqui e conversando com
ele, ele falou que ia voltar pro Japão. E como eu também já estava
de saco cheio resolvi chutar o pau da barraca. Vou trancar a faculda-
de e vou pra lá.

Nádia: Você fazia que curso?

Francisco: Administração. Que eu estou fazendo até hoje porque eu


não terminei. Entrei de novo. Aí eu fui pro Japão, justamente com
ele, porque ele já conhecia lá, então até já facilitava. Eu já conhecia
a língua, mas não conhecia o local, o Japão né. Então ele que me
conduziu lá no país. Nisso ele ficou seis meses, teve um problema
de saúde e teve que voltar. Eu fiquei sozinho até o ano de 2000.

Nádia: Você aprendeu o nihongo pequeno, em casa?

Francisco: Sim, eu aprendi o nihongo primeira língua. Que era dos


meus pais.

Nádia: Recapitulando então. Você tinha família lá nessa primeira


vez?

Francisco: Sim, só meus pais que estão aqui no Brasil. O restante da


minha família, tios, primos, primas, todos no Japão. Nessa época já
estavam lá. A minha irmã não estava lá nessa época. Sempre quan-
do eu estava lá, ela estava aqui. Sempre tinha essa inversão.

Nádia: Então ela tinha ido antes de você, antes de 1998?

Francisco: É assim, ela foi em 1991, por aí.

Nádia: Bem na época que...

Francisco: Do bubble né. Ela pegou bem o início. Ela trancou a fa-
culdade também, com 19 anos ela foi pra la.

Nádia: Ela ficou muito tempo direto ou...

Francisco: Ela não volta mais. Ela está lá ainda. Ela volta, fica uns
seis meses e volta pro Japão. Só que da ultima vez, faz já uns seis
anos que ela não volta pra cá. Mas ela foi bem no início da bolha,
em torno de 1990, 1991, deve ter ficado uns sete, oito anos lá. Dire-
to, sem voltar. Depois ela voltou, ficou um ano, voltou pro Japão. De-
pois voltou, ficou seis meses e voltou pro Japão de novo.

Nádia: Ela fez família lá? Foi solteira?


229

Francisco: Não. Foi solteira e até hoje eu sei que está solteira.

Nádia: E ela não pensa em voltar mesmo?

Francisco: Talvez mais no futuro, mas agora mesmo, você conver-


sando com ela, ela fala que não.

Nádia: Mesmo com essa crise?

Francisco: Mesmo com a crise. Porque ela já tem um estilo de vida


japonês. Ela não se adapta ao Brasil. A minha esposa também teve
uma dificuldade grande nessa adaptação. Porque lá você tem uma
facilidade maior da vida. Você tem segurança. Você tem emprego.
Você trabalhando, você consegue pagar todas as suas contas e ain-
da gastar o seu dinheiro. Coisa que é diferente aqui. Aqui você ga-
nha seu dinheiro e tem que segurar pra pagar suas contas. Então,
por isso que você acostuma lá. E estando sozinho aproveita a vida lá
né.

Nádia: E como foi nessa primeira vez que ela foi, porque você era
pequeno.

Francisco: É, eu deveria ter uns 10, 12 anos. A gente tem sete anos
de diferença. Eu deveria ter uns 11, 12 anos.

Nádia: Como é que ficou a constituição familiar, seus pais, porque


naquela época não tinha internet, ligação era cara...

Nádia: Não, não tinha internet, ligação era cara, mas mesmo assim
minha irmã fazia questão de ligar pelo menos uma vez a cada dois
ou três meses pra saber como estava a situação aqui em casa. Só
que meus pais, também, como eles sabiam que a ligação era cara,
tentavam diminuir ao máximo a conversa, só falavam como é que es-
tava tudo e tal, e queriam desligar.

Nádia: Eles nasceram no Brasil?

Francisco: Meus pais? Não. No Japão. Os dois são japoneses. Por


isso que em casa a gente só fala japonês por causa disso. Foi a pri-
meira língua que a gente aprendeu por causa disso né.

Nádia: Eles eram adolescentes quando vieram?

Francisco: Meu pai veio pro Brasil com 18 anos e minha mãe deve
ter vindo menor, lá pelos 15 anos. Meu pai é de trinta e cinco. Quase
na década de 50. Foi no pós guerra. O país estava naquela crise,
não se tinha emprego, não se tinha comida, aí o Governo Japonês
230

disse quem quiser ir pro Brasil a gente dá a passagem. Meus avós fi-
caram de vir pro Brasil, meu pai estava fazendo uma faculdade no
Japão, aí falaram, você não pode deixar seus pais irem sozinhos pra
outro país. Aí no dia ele saiu da faculdade, o pessoal já tinha embar-
cado no navio. Ele saiu correndo, só com a roupa do corpo e embar-
cou no navio. Não trouxe roupa nem nada. Só com a roupa do corpo.

Nádia: Sem falar nenhuma palavra?

Francisco: Nem sabia o que era o Brasil. Meus avós sabiam mais ou
menos pela informação que o Governo deu pra eles, tal. Mas meu
pai não tinha essa ideia de vir. Meio que foi de ultima hora. Vou ter
que ir. Pegou e foi.

Nádia: Ele é de onde?

Francisco: Fukuoka. Minha mãe de Osaka. Aí da minha mãe eu não


sei como foi a historia dela vir. Eu sei que o pai dela era professor e
veio pra cá também trazendo os três filhos.

Nádia: Então, você pequeno aqui, a sua irmã lá e seus pais aqui
também.

Francisco: Sim.

Nádia: Além do contato telefônico, mandava cartas, alguma coisa


assim?

Francisco: Cartas? Não. Cartas a gente mandava só em época de


aniversário. A gente mandava o cartão de aniversário. E logo no iní-
cio que ela foi, a gente mandava revistas. Isto É, Veja, porque na
época no Japão ainda não tinha produtos brasileiros. Então a gente
mandava. Um ano depois ela falou que podia parar de mandar, por-
que aqui tem a revista. Nessa época o pessoal teve a visão de fazer
um comércio pra brasileiros. Eram caros, mas você tinha o acesso a
aquilo lá.

Nádia: Ela foi pra onde?

Francisco: Acho que Tokyo no início.

Nádia: E você foi pra onde?

Francisco: Eu, na primeira vez fui pra Nagoya. Depois voltei pro Bra-
sil, na segunda vez eu fui pra Mie-ken, aí eu fui pra Fukuchama, vol-
tei pra Mie-ken ai voltei pra Fukuchama de novo.

Nádia: Você nunca foi pra Hamamatsu que tem muito brasileiro?
231

Francisco: Não, ia só pra festas lá. Porque a gente evitava os gran-


des centros, de muita concentração de brasileiros porque a imagem
deles estava queimada nessa época. Então, só na época em que eu
fiquei em Nagoya que tinha muito brasileiro. Mie-ken eu fiquei lá por-
que tinha um serviço bom. O salário era bom. E Fukuchama, que eu
fui quando ela morava, era muito pouca a quantidade de brasileiros.
Então lá, a gente passava muitas vezes despercebido. A gente tinha
um estilo de vida japonês também.

Nádia: Aqui, antes de ir você diz?

Francisco: Não, no Japão. A gente se misturava com a japonesada


ali né. Porque por mais que eu seja japonês, chegando lá a gente
consegue identificar quem é brasileiro. Que nem, lá eu usava cabelo
pintado, tudo também. A gente se misturava à população. Passava
despercebido. Dá pra saber, você consegue distinguir. Então lá a
gente passava mais despercebido né.

Nádia: Então nesse período que você ficou lá, você se relacionava
mais com nihon-jin mesmo?

Francisco: Lá em Mie-ken eu tinha alguns amigos que eram japone-


ses mesmo. Em Fukutiama, a maior parte era japonês. Porque na
fábrica deveria ter uns 25 brasileiros. O restante japoneses. Então a
gente se relacionava muito com eles.

Nádia: Mas as pessoas sabiam que você era brasileiro?

Francisco: Alguns sim. Só que nessa fábrica de Fukuchama teve


gente que foi descobrir isso, cinco, seis meses depois.

Nádia: Teve alguma situação de preconceito...

Francisco: Sim. Só que com a gente foi pouco, por que a gente en-
tendia o japonês. Então muitas vezes, se evitava falar perto da gen-
te, porque eles sabiam que a gente entendia. Agora o pessoal que
não entendia, eles falavam mesmo. Eu mesmo, assim, foram poucas
vezes. Eu sei que existem muitos casos de preconceito, mas comigo
e com minha esposa acho que não foi tanto. Foram casos bem pon-
tuais.

Nádia: E isso por vocês serem brasileiros?

Francisco: Exato. Porque se você fosse americano, nossa, você é


um deus pra eles. Agora se você falar que é de qualquer pais que
não seja os Estados Unidos, é tratado como um estrangeiro.
232

Nádia: Você conseguiu perceber alguma coisa assim com relação


aos okinawanos?

Francisco: Não, porque tinha muito okinawano que trabalhava na


nossa fábrica também. Eu mesmo nunca vi, se é que existia algum
tipo de preconceito contra esse tipo de pessoa. Porque hoje no Ja-
pão, você não tem o trabalho só na sua região onde você nasceu to-
do mundo esta buscando um serviço em outros estados.

Nádia: Ai na segunda vez você já foi com namorada?

Francisco: Isso, ela foi primeiro, eu fiquei de ir depois. Depois de seis


meses fui atrás dela. Então, tudo isso que aconteceu foi nessa se-
gunda vez né. Na primeira vez, como eu tinha ido com esse amigo
meu, na fábrica, a maior parte era brasileiro. Então, eu tinha alguns
amigos japoneses, mas a maior parte era com brasileiro.

Nádia: E na primeira vez seu amigo foi mas voltou depois de seis
meses. Você não ficou preocupado em ficar sozinho?

Francisco: Não, porque como eu te falei, eu sei a língua. Sabendo a


língua, você vai até Roma. Então, pelo menos nessa parte, eu nunca
tive nenhuma dificuldade. E outra coisa, você se acostumar com coi-
sa boa é muito mais fácil do que passar o perrengue né. E lá você ti-
nha tudo na mão. Então, nunca passei um apuro no Japão.

Nádia: Você não estava na mesma cidade da sua irmã?

Francisco: Não, tanto que a gente sempre procurava ficar meio dis-
tante. A gente tentou ficar meio distante, só pra visitar.

Nádia: Então o contato entre vocês dois eram esporádicos mesmo


vocês dois estando lá?

Francisco: Olha, na primeira vez que eu fui pro Japão, nesse um ano
e meio que eu fiquei lá, eu encontrei com ela uma vez, talvez, e con-
versamos por telefone algumas vezes. Mas não era aquele negócio
de toda semana estar ligando, não. Não era assim.

Nádia: São só vocês dois?

Francisco: Sim. A cada dois ou três meses eu ligava pra ela. Ela me
ligava, pra saber se estava tudo bem. Normal.

Nádia: A ultima vez que você voltou foi em 2008. Não pensou em
voltar pra lá de novo? Foi bem quando começou a crise né?
233

Francisco: Exatamente. A gente pediu demissão da fábrica em agos-


to, a gente ia parar o serviço em outubro. Depois que a gente já es-
tava cumprindo o aviso prévio, teve essa crise e quase todo mundo
da fábrica foi mandado embora. A gente só não foi mandado embora
porque a gente já estava cumprindo o aviso. Bem nessa época.

Nádia: Então vocês não usufruíram do que o Governo fez, as passa-


gens...

Francisco: Não, porque pra você usar essa passagem não poderia
voltar durante três ou cinco anos. A gente só ficou sabendo disso
depois que a gente chegou. Que mais gente foi cortada, que não ti-
nha mais ninguém da empreiteira.

Nádia: E de lá pra cá vocês não pensaram em voltar?

Francisco: Pensar, a gente até pensa. Só que a gente quer ir pra lá


pra passear dessa vez. A gente veio com uma ideia dessa vez, pro
Brasil, da gente tentar firmar novamente aqui, criar uma base e con-
tinuar a vida por aqui. Porque no Japão a gente tem aquela ideia de
que tudo vai ser passageiro. Não adianta você querer ficar lá traba-
lhando sem pensar no futuro porque uma hora você vai quebrar. Se
você não guardar dinheiro você não vai ter de onde tirar sustento de-
pois. Então, ainda estava em tempo da gente tentar firmar raízes no
Brasil, a gente voltou e graças a deus tudo esta correndo bem. Eu
sempre tive a ideia de voltar pro Brasil e levar minha vida aqui no
Brasil. Nunca pensei minha vida no Japão. Lá é só pra ir trabalhar,
juntar o dinheiro e voltar. A minha esposa já não. Ela pensava na vi-
da lá. Tanto que ela falou, não penso em voltar pro Brasil. Só que
com o tempo, a gente foi conversando, aí ela amadureceu um pouco
a ideia e disse, realmente, vamos voltar pro Brasil, a gente pode ter
uma família lá.

Nádia: Então, agora você tem um filho, você voltaria?

Francisco: Olha, sim, voltaria, mas dependendo muito da situação.


Se eu chegasse num ponto, aqui no Brasil, de não conseguir susten-
tar minha família, e ver que no Japão tem alguma oportunidade me-
lhor, com certeza eu vou. Mas eu vou fazer o máximo pra não preci-
sar.

Nádia: Seu porto é aqui?

Francisco: Sim.

Nádia: Porque muitos querem ter filhos lá, criar lá, gostam da educa-
ção japonesa...
234

Francisco: Tudo isso, se você pensar, lá é realmente muito bom. Mas


a gente tem que pensar um pouco no futuro. No Japão, assim como
no Brasil, o sistema previdenciário é falido. E a gente, como estran-
geiro, tem menos direitos do que os japoneses. Pra eu ter o mesmo
direito, eu teria que me naturalizar japonês, pra ter os mesmos direi-
tos. Nós tínhamos o visto permanente. Ajudava? Sim, ajudava muito
mais do que você de descendente, de três anos. Mas mesmo assim,
você não tem os mesmos direitos que um japonês. Então, por mais
que a gente pague lá a aposentadoria, provavelmente a gente não ia
conseguir sobreviver depois de certa idade. E a gente trabalhando
por empreiteira, dependendo, com 40, 50 anos você já vai ser demi-
tido. Já não vai ter mercado pra você. Diferente de você ser naturali-
zado, você tivesse emprego estável, como funcionário da fábrica, um
chefe, aí tudo bem, porque você não corre o risco de ser demitido.
Ai, você pensando por esse lado, no Brasil, se você conseguir um
emprego, trabalhar, você vai ter todos os seus direitos. Independente
se você é estrangeiro, se você é brasileiro. Você vai ter seu direito lá
na frente né.

Nádia: E seus pais nunca pensaram em voltar?

Francisco: Não. Os meus pais pensaram em voltar uma vez, bem no


início da bolha, nessa época eles pensaram, vamos voltar pra lá.
Trabalhar lá. Mas eles queriam trabalhar pra juntar o dinheiro.

Nádia: Pra depois voltar pra cá de novo?

Francisco: Sim. É que ele fica assistindo muito canal japonês, e ele
vê como é que está indo o Japão. e na cabeça dele, não entra que o
Japão está daquele jeito. Que nem, tem muita facilidade, o pessoal
fica vagabundo. Não gosta de pensar, então, meu pai fica p# da vida
com isso.

Nádia: Pra ele é outro Japão?

Francisco: Por isso que ele fala que se voltasse não se acostumaria.
Apartamento que passa na TV ele olha e fala, que cubículo. Aqui ele
tem uma casa confortável, que minha irmã deu pra ele. Tem muito
espaço. Ele fala, não vou trocar isso aqui por um apartamento mi-
núsculo.

Nádia: E seus pais estarem aqui, também pesou na hora de decidir


voltar?

Francisco: Também, porque meus pais estão com a idade um pouco


avançada. E a minha irmã, eu sei que ela não pretende voltar pro
Brasil. Então, a gente tinha medo de deixar os dois aqui sozinhos.
Primeiro que eles não falam a língua direito. Eles têm uma dificulda-
235

de razoável. O meu pai até que se vira, minha mãe não consegue se
virar.

Nádia: Mas eles têm bastante tempo aqui né?

Francisco: Tem, mas como eles conviveram muito tempo só com o


pessoal da colônia japonesa, ela não aprendeu muito. Ela aprendeu
o básico. Como ela trabalhou em comércio, ela sabe falar, mas o bá-
sico. Fugiu daquilo, você pode conversar com ela, mas ela tá ahhh.
Ela não vai entender nada. Então, por causa disso a gente sempre
teve receio de deixar eles sozinhos. Então, a gente conseguia, quan-
do um vinha o outro ia. Dai dessa vez eu vim pra cá, pra tentar de al-
guma forma dar essa assessoria pra eles. Caso precise.

Nádia: Porque teve essa coisa na sua família, já que seus pais são
japoneses, do chonan, das tradições?

Francisco: Sim, é que sempre teve a cultura japonesa mais forte em


casa. Desde pequenos, as historinhas eram todas em japonês, a
gente foi começar a aprender português na pré-escola. Quando pe-
quenos a gente falava um pouco de português por causa dos ami-
guinhos, mas não que conversasse direto. Tanto eu quanto minha
irmã, foi a língua materna, tanto por causa dos meus avós quanto
dos meus pais. Não se podia falar em português em casa.

Nádia: Os avós, são os pais da sua mãe?

Francisco: Os pais do meu pai. Veio toda a família. Os pais do meu


pai e os pais da minha mãe também, só que eles faleceram há muito
tempo. Então, justamente por isso que a gente tinha que conversar
em japonês em casa. Português era meio que proibido. Fora a gente
podia conversar em português, mas dentro prezava-se pelo japonês.
É claro que existiam exceções, se você não conhece a palavra não
vai ficar sem falar. Mas a conversa mesmo tinha que ser em japonês.

Nádia: E o butsudan...

Francisco: Sim, nós tínhamos. A minha avó e meu avô eram fieis
mesmo, aquela coisa de rezar três vezes ao dia. De manhã, a tarde
e a noite. Uma hora cada sessão. Então a gente tinha o butsudan em
casa, e permaneceu até a morte da minha avó. Depois que ela fale-
ceu, teoricamente meu pai teria que assumir, mas meu pai não tinha
tempo, por causa do comércio, tudo, aí meio que se afastou da reli-
gião. Ai a gente devolveu o pergaminho pra sokagakai. Aí o butsudan
mesmo eu não sei o que aconteceu. Deve ter jogado fora, alguma
coisa assim. Mas o pergaminho foi devolvido pra igreja.
236

Nádia: E como você vê a relação familiar, a distância, o tempo lon-


ge...

Francisco: O meu pai eu não sei o que ele pensa. Mas o que ele
sempre disse pra gente é o seguinte, que ele criou os filhos pro
mundo. E nunca vai chegar e dizer, não, eu quero que você fique do
meu lado. Claro que quer, mas nunca vai pegar e falar, não, você
tem que seguir seu caminho. Então quando a gente estava no Japão,
eu ligava pra ele a cada três meses. Já cheguei a ficar quatro, cinco
meses sem ligar pra ele, pra casa. A minha irmã já liga, antes ela li-
gava quase todo mês. Agora a cada dois, três meses ela liga. Mas
ela sempre esta mandando coisinhas. De vez em quando eu encon-
tro com minha irmã na internet, a gente conversa. Mas é raro porque
não batem os horários.

Nádia: Você falou do koseki, me fale um pouco sobre sua família?

Francisco: Na minha opinião, desde pequeno, que todo mundo esta-


va no Brasil, meus tios, sempre tinha uma relação um pouco melhor
assim, digamos, mais frequente. Eles moravam no Paraná, então
duas vezes por ano eles vinham pra cá. Ou a gente ia pra lá. Ai de-
pois que eles foram pro Japão, a gente praticamente não tem conta-
to. Eu de vez em quando falo com minha prima, mas acho que é
mais essa lembrança de infância. De sempre reunir a família. Acho
que o que me deixa mais como parente, é o contato mesmo. Tem
uns primos que eu nunca tive contato, eu sei que são meus primos,
mas eu não considero, porque não sei nem o nome. Acho que mais o
contato mesmo que a gente tinha na infância. Fazia festa de família.
Esses outros parentes, primos que moravam no Paraguai, as vezes
vinham, mas eles, como são mais velhos do que eu, quem teve mais
contato foi minha irmã. Minha irmã conhece todo mundo, eu já não
tive contato. Querendo ou não, deve ter uma diferença ai de 15, 20
anos, eu estou com 33, eles devem estar com quase 50 anos. A dife-
rença é muito grande, por isso que, eu pelo menos, nunca tive conta-
to. Mas quando eu estava no Japão, minha prima falava, ah, vamos
visitar seus primos. Ai eu falava, desculpa, mas minhas primas são
vocês. Eles são meus primos, mas eu não conheço. Não sei nem o
nome. Como é que eu vou visitar uma pessoa que eu não sei o no-
me?.

Nádia: E agora que você é pai, sua noção de família mudou?

Francisco: Assim, que nem eu tinha falado com minha esposa, até
ele vir pra casa, eu sei, eu vi ele nascer, tudo, mas ainda não tinha
caído a ficha de que ia ser pai. A gente nunca esta preparado pra is-
so, por mais que você ache que esteja preparado, não vai estar. Hoje
eu vejo assim, que a coisa mais importante pra mim é ele. Hoje mi-
nha família seria meus pais e ele. Mas eu não sei te definir exata-
237

mente, se mudei minha ideia de família. Acho que não. Creio que
não.

Nádia: E os avós? É o primeiro neto?

Francisco: É o primeiro tanto do meu lado, quanto da minha esposa.


Primeiro neto. Só que meus pais não são muito assim de demonstrar
carinho, coisa assim. Demonstrar afeto. São bem fechados. Então,
por enquanto, eles devem ter visto o meu filho duas ou três vezes. É
pouco.

Nádia: E você não sente falta de ter os avós mais perto?

Francisco: Sentir falta eu até sinto, mas é que hoje eles têm a vida
deles, eu tenho a minha vida. Mas são meus pais, eu não vou deixar
de ir lá nunca. Mas acho que nosso contato sempre foi assim mes-
mo, nunca demos muito afeto assim, sempre uma relação de pai e fi-
lho, só que mais respeitoso, nada de contato direto, tanto que fui pro
Japão e não tive problema nenhum em ficar por lá. Falar que entrei
em depressão, não tive nada disso. Pra mim foi uma alegria, diga-
mos assim. Você sai de casa, consegue sua independência. Mas
nunca esquecia deles né. Só que a gente não tem aquele contato,
muito contato. Não que a gente não se goste.

Nádia: E quando você voltou, foi fácil adaptar?

Francisco: Foi meio complicado porque você volta pra casa dos seus
pais, tem as regras deles. Quando você tem a sua casa, é a sua re-
gra, mas na casa deles tem que seguir.

Nádia: Mas vocês voltaram casados?

Francisco: Não, a gente voltou, cada um foi pra sua casa. Eu fui pra
minha casa, ela pra dela e a gente se encontrava final de semana.
Mas a gente tinha que seguir as regras da casa. Meus pais gostam
que na refeição você fique à mesa, toda a refeição, não pode ser,
vou almoçar agora, ou vou almoçar depois.

Nádia: E já era assim antes?

Francisco: Sim, sempre foi. Pelo menos a refeição era uma hora sa-
grada. Tinha que estar todo mundo à mesa. Sábado eu voltava de
madrugada, ia pra balada, ia dormir oito horas da manhã, e o almoço
era 10:30. Almoço eu tinha que estar à mesa.

Nádia: De ressaca.

Francisco: De ressaca (risos), mas tinha que estar lá pra almoçar.


238

Nádia: E fora da família, se adaptar de novo.

Francisco: Ah, sim, nesse ponto eu não tive problema de adaptação.


Pelo fato de eu sempre ter a ideia de querer voltar pro Brasil, mas o
único problema de adaptação que você tem é o choque que você so-
fre de sair de lá e vir pra cá, nessa parte de respeito com as pesso-
as, tem muita coisa quando você vem pra cá que você acha que o
Brasil é mal educado, comparando com o Japão né. Tirando isso,
acho que não teve muito. Comida também a gente não teve proble-
ma de adaptação, não tive esse problema também. Com amigos
também não. Voltei pros mesmos amigos. É claro que o grupo se
separou né. Sempre vai mudando né. Algo sempre muda. Mas eu
sempre tive o circulo de amizades que se manteve por vários anos.
São pessoas que eu realmente considero meus amigos. Colega você
sempre fica trocando, sempre fica conhecendo gente.

Nádia: O seu filho vai aprender primeiro japonês ou português?

Francisco: O japonês vai ficar a cargo do meu pai, ele já falou. Já fa-
lei com ele. Ele disse, japonês deixa que eu ensino quando ele esti-
ver aqui em casa.

Nádia: Vocês dois (casal) conversam em japonês?

Francisco: Quando a gente voltou a gente conversava mais. Pra ela


não esquecer a língua. Porque ela aprendeu no Japão. Então, como
não é a língua nativa dela, se você não conversa, você acaba es-
quecendo. Eu não esqueço porque eu ainda converso. Hoje eu con-
verso com meus pais praticamente toda semana. Pra saber se preci-
sam de alguma coisa. Procuro ir mais lá. Pra não deixar eles desam-
parados. Mas o japonês vou deixar com eles. Mas talvez, assim que
ele começar a falar, talvez a gente comece a introduzir mais a língua
japonesa aqui em casa. Mas não que vá ser uma coisa mais rígida.
Não tem como a gente cobrar isso.

Nádia: E vocês já estão pensando em fazer outro?

Francisco: Ela está (risos), eu estou tentando assimilar esse. A gente


sempre pensou em ter pelo menos uns dois filhos. Mas mal chegou
um, eu não consigo pensar no outro.

Nádia: E essa escolha do nome. Ele não tem nome...

Francisco: Português? Não. A gente entrou num acordo. Eu queria


que colocasse um nome brasileiro, um nome japonês e um sobre-
nome. Ela já não queria. Ela queria só um nome e um sobrenome. Ai
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ficou só nome e sobrenome, sendo o nome japonês. Porque ela


achou que três nomes ia ficar comprido.

Nádia: E vocês “abrasileiraram”?

Francisco: É, a gente queria um nome que não causasse constran-


gimento. Eu gostava desse nome, ela também gostava, então fe-
chou. Aí tem aquele negocio do “d” (a grafia correta do nome de seu
filho é com J, que pronuncia-se “d”, então, o casal decide registra-lo
de acordo com a pronuncia).

Percebendo o cansaço de Francisco, e que o assunto começara a mu-


dar completamente de direção, agradeço por sua colaboração para enfim me des-
pedir, deixando a família repousar após o longo dia de trabalho.

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