Leon Tolstoi - Arte de Recomeçar - 158
Leon Tolstoi - Arte de Recomeçar - 158
Leon Tolstoi - Arte de Recomeçar - 158
ISBN 978-85-99772-20-1
DA REENCARNAÇÃO...................................................................................................4
NASCER DE NOVO........................................................................................................5
O CRUZADO..................................................................................................................22
ESTER.............................................................................................................................53
OS LADRÕES.................................................................................................................72
A MULHER DA PRAIA.................................................................................................91
O HOMEM DE JERUSALÉM.....................................................................................101
O PROFETA.................................................................................................................132
Sinopse
De onde viemos? Para onde vamos? Por que estamos sobre a Terra? Vivemos realmente
muitas existências? Assim sendo, quem fomos no pretérito? Reis, rainhas, cortesãs,
plebeus, sacerdotes, soldados, senhores ou escravos? Onde nascemos? Quais os amores
em nossos destinos e onde estarão hoje? Poderemos reencontrá-los? Reconhecendo-os?
Em “Arte de recomeçar”, o autor espiritual Léon Tolstoi mais uma vez recorre a textos
bíblicos da época de Jesus, ao “O Evangelho Segundo o Espiritismo” e a belíssimas
narrativas de pessoas anônimas, muito parecidas conosco, enfocando, de maneira
esclarecedora e envolvente, o tema Reencarnação. Mergulhados em suas páginas,
realizaremos uma viagem ao passado de mais de dois mil anos, identificando-nos com
os personagens, reconhecendo-nos em seus sentimentos, intuindo havermos trilhado
camminhos semelhantes, dos quais guardamos tênues reminiscências, inexplicáveis
emoções, imprecisas saudades...
DA REENCARNAÇÃO
A doutrina da reencarnação, isto é, aquela que admite para o homem várias existências
sucessivas, é a única que responde à idéia que fazemos da justiça de Deus em relação
aos homens colocados em uma condição moral imferior, a única que nos explica o
futuro e fundamenta nossas esperanças, pois que nos oferece os meios de resgatar
nossos erros através de novas provas”.
Aquela fora uma manhã muito especial para o adolescente magro e pálido que se
comprimia na multidão, quase por ela sufocado, intentando chegar à frente dos demais
para enxergar o divino Rabi. Ainda não o divisara, embora ouvisse a voz doce e
persuasiva, enérgica e sonora; os ensinamentos caíam-lhes nos ouvidos como melodia
de inexcedível beleza, sem que, no entanto, tivesse a capacidade de distinguir as notas
que a compunhyam. A ânsia de se aproximar do Mestre, de roçar a fímbria de suas
vestes, rojando-se ao chão e oscultando-lhe os pés, impedia-o de concentrar-se
inteiramente na preleção. Afinal, a duras penas para a distante praia viajara, na
expectativa de tocá-lo, quem sabe somente passar os dedos por suas roupas; talvez Ele
se apiedasse de sua triste condição, concedendo-lhe a suprema alegria de algumas
palavras, de um toque das mãos que diziam curar. A esperança animava o coração
jovem e sofrido, fazendo-o bater célere, aos saltos.
Realmente, a vida não se mostrara gentil com ele, abstendo-se de aquinhoá-lo com
beleza e normalidade, insistindo em deformá-lo, transformando-o em verdadeiro
monstro, alvo de chacota e repulsa. Instintivamente dele se afastavam, impressionados
com as deformidades que o jovem corpo apresentava, manifestando asco e receio. O
temor de que tudo aquilo pudesse ser transmitido expressava-se nas fisionomias e, não
raro, canalizavam-no para o cruel campo das agressões. Analisavam o pobre pelo
exterior, julgando que as ações dele advindas seriam tão pouco aceitáveis como seu
aspecto! Habituara-se a isso, embora o tratamento discriminatório e a rejeição
magoassem. Sentia-se pleno interiormente, a mente lúcida e inteligente em vão
ambicionava comandar o corpo físico restrito e aleijão. Certamente, o invólucro carnal
representava cruel e perpétua prisão!
Almejava aceitação, carinho, ternura por parte das pessoas, ainda que a mãe, sofredora e
desamparada criatura, tentasse preencher as lacunas afetivas, acolhendo-o entre os
braços com amor e desvelo, ignorando-lhe a feiura e os tiques nervosos, respeitando as
limitações impostas pelas deformidades. A cabeça disforme, os ralos cabelos de fulva
cor, os dentes tortos e espaçosos, os esbugalhados olhos, tudo lhe conferia o aspecto de
um monstro, sem falar nos braços e pernas retorcidos que o obrigavam à movimentação
difícil e até arrastada, conforme os relevos do terreno percorrido. Constantemente
assustado e aguardando que o escorraçassem, fato que ocorria com freqüência e não
raras vezes de forma cruel, terminara por desenvolver o hábito d gritar angustiosamente
quando em contacto com pessoas. No entanto, a amorosa mãe sabia o bom e meigo, de
afável temperamento, resignado e humilde, quedando horas e horas nos cantos,
sorrateiramente observando os seres humanos, evitando-lhes o contacto, preservando-se
de seus ataques, temeroso das maldades com que já o haviam afligido antes: risos,
chacotas, tapas e pontapés, abandono em locais de custoso acesso, dos quais o infeliz
não conseguia sair, ficando exposto à fome e à sede até que a mãezinha conseguisse
localizá-lo...
A casinha onde residiam, praticamente no final da aldeia, fora construída pelo pai,
lenhador profissional, agora falecido, com madeira bruta retirada da mata próxima,
assim como os poucos móveis, toscos e resistentes. Quando vivo, estendera ao lar as
benesses da floresta, erguendo a casa com sólidas toras de madeira e talhando os móveis
com habilidade. Falecera ainda jovem, em fatal acidente durante o trabalho, e o
rapazinho dele sentia falta, conquanto soubesse que o rude lenheiro jamais aceitara o
filho nascido em tais condições, inexplicavelmente doente e repulsivo. Envergonhando-
se do menino, costumava chamar-lhe de nomes nada caridosos quando retornava a casa
no final do dia, tresandando a vinho barato. Crescera, ouvindo-o reclamar de tal filho,
peso inútil a constrangê-lo, motivo de opróbrio e zombarias.
- Monstrengo! Ainda te mato, livrando-me de tua feiura!
Ficando só, no desamparo comum às viúvas sem arrimo de filhos adultos, a pobre
esposa vira-se em dificuldades extremas, com um filho pequeno e doente a exigir
constantes cuidados. Os trabalhos oferecidos eram simples e mal remunerados e, acima
de tudo, excluíam a presença da criança de desagradável aparência. Ainda jovem e
bonita, restara-lhe a prostituição como meio de vida, garantindo o sustento de ambos.
Submetera-se à realidade após muito se esforçar por honesta colocação, vendo o filho
chorar de fome, obrigada a ocultá-lo aos olhares estranhos. Pelo menos poderia
alimentá-lo e com ele ficar durante o dia, cuidando do inocente ainda insciente das
maldades gratuítas do mundo, estendendo os bracinhos disformes a uns e outros,
pedindo colo, acreditando na possibilidade de ser amado.
Os anos passsaram, a criancinha crescera, a rejeição atingira o menino com toda a sua
força destruidora. Cedo apercebera-se das diferenças cruéis que lhe estigmatizavam a
existência, excluindo da normal convivência com os companheiros da mesma idade. A
princípio, aproximara-se confiante, mas, à custa de muita dor física e emocional,
aprendera a ficar pelos cantos, escondendo-se das vistas dos que brincavam
alegremente, ansiando em participar dos folguedos nas ruas e quintais da aldeia,
contemplando com desejosos olhos as brincadeiras, excluído e isolado.
Amava aquela mãe linda e triste mais que tudo no mundo. Das andanças
desacompanhadas e difíceis pelos campos próximos, trazia-lhe ingênuas lembranças,
flores que colhia à beira dos atalhos, reluzentes pedras de estranhos formatos, às vezes
alguma fruta, colhida com extrema dificuldade nos galhos mais baixos de generosa
árvore, também penosamente colocada entre as delicadas mãos da genitora. Palavras
que somente ela entendia falavam de seu amor e ternura, singelos cânticos de dedicação
e afeto à doce e sofrida criatura que se estiolava na áspera vida.
Fora então que, há exatamente doze dias, ouvira falar do Rabi que operava milagres.
Diziam que Ele curava cegos e aleijados, restituindo-lhes a saúde. Olhando-se,
reconhecido ser o seu caso muito grave, pois os entraves não se concentravam em um
único membro... Todo ele era estranho e disforme! Protegido pelas casas, entre os
arbustos, às ocultas escutava, deixando-se embalar pelas histórias mirabolantes e
assombrosas, uma esperança enorme tomando de assalto seu coraçãozinho, entrevendo,
pela primeira vez, possível solução para seu problema!
Em tais horas, ansiava por uma mente menos lúcida, tão comprometida como o corpo,
que o distanciasse da realidade, mergulhando-o nos abismos da ignorância. Sofreria
menos!
O homem alto e forte guiava algumas jovens e crianças pelo longo corredor que
serpenteava no interior do templo... Conquanto o caminho fosse complicado, a
segurança e a despreocupação com que caminhava indicavam que ele detinha pleno
conhecimento do mesmo, tendo-o percorrido vezes sem conta, quiçá realizando a
mesma tarefa. Alheio ao choro das crianças, ordenava às jovenzinhas que as tomassem
pelas mãos ou ao colo, inexorável em sua marcha e difício adentro.
Depois, levantando-se, empunha sólido bastão de metal, ferindo reluzente disco. O som
do bronze difundia-se pelos aposentos erguidos com enormes pedras e, instantes depois,
frágil criatura adentrava o recinto. Envolta em longa e transparente túnica vermelha, os
negros cabelos desnastrados, soerguidos acima da nívea fronte por estupendo diadema
de rubras pedras, que refletiam o fogo das entranhas do sanguinário deus, a jovem
postava-se orgulhosamente diante do homem. Seus olhos mergulhavam nas másculas
feições, indisfarçavelmente interessados e desejosos...
- Sacerdotisa, eis os que nosso deus distinguirá com a morte! Infelizmente os
desgraçados não conseguem entender a grandiosidade e a honra da escolha... Assim
sendo, recolhei-os sob guarda para que os sacrifícios não se frustrem.
Fora assim que a conhecera, na primeira vez em que adentrara os sagrados recintos do
enorme templo, conduzindo os escolhidos. Naquele dia fora agraciado com uma
criancinha de peito e a conduzia jubiloso, não obstante a mãe ficasse em
incompreensível pranto , retida pelo jovem e desesperado esposo. Covardes! A jovem
sacerdotisa estava defronte ao incandescente deus, em vestes diáfanas que a luz do fogo
incendiava, os longos cabelos negros espalhados pelas espáduas delicadas; preciosas
pedras vermelhas cintilavam na cabeleira, pendendo da tiara flamejante que lhe coroava
a fronte alva e perfeita. Jamais vira mulher tão linda! Bastara um único olhar e o
coração para sempre se perdera... Instintivamente, nela detectara a mesma paixão e
idêntica luta interior para permanecer fiel ao cumprimento do dever assumido com o
poderoso e vingativo deus.
***
Naquela manhã, após a noite do incrível sonho, disparara para os campos, com a
velocidade precária que os membros atrofiados permitiam. Encontraria algo que a
consolasse! Detestava vê-la chorar... De longe, vira-a sair para os campos também,
tomando direção oposta à sua, andando apressadamente. Não a seguiria, pois sabia de
sua necessidade de sozinha prantear a injunção dolorosa, ocultando do filho a mágoa,
temendo acabrunhá-lo. Que desabafasse em paz...
Quem lhe falara com tanta ternura em sonho? Suas mãos, tocando-o, transmitiam tanta
paz, como se estivesse ao abrigo das dores do mundo e o peso dos sofrimentos mais
leve fosse!
Junto a enorme pedra, a trepadeira enroscava-se rumo aos céus, e de seus flexíveis
ramos pendiam cachos de rubras florezinhas, quais gotas de sangue. As mãos
deformadas colheram cuidadosa e dificultosamente longa e florida haste, unindo as
pontas, transformando-a em perfumada tiara, destinada a adornar os compridos e negros
cabelos da mãezinha adorada. Retornara ao lar, carregando orgulhosamente o diadema
de flores vermelhas, ocultando sob as vestes o presente, insistindo por gestos e sons que
a jovem senhora permitisse que o colocasse em sua cabeça.
As flores rubras penderam sobre a nívea fronte, emoldurando o rosto pálido e sofrido,
marcado pelos golpes da violência noturna.
Estranha sensação envolvera o jovem. Antes ela já havia se adornado com rubras flores,
elaboradas com preciosas pedras, ensangüentados rubis... Quando? Onde? Do sonho
restavam na memória consciente somente imperfeitos trechos e vagas recordações...
Aquela constituía uma delas!
Outros seguiam na mesma direção. A estrada enchera-se de gente vinda dos mais
variados lugares, em demanda à praia onde o Mestre estaria. Caridosa alma, vendo-o
arrastar-se dolorosamente e adivinhando-lhe o intento comprovado pela palavra
dificultosamente pronunciada, Jesus, tomara-o em fortes braços, carregando-o,
despreocupado com seu desagradável aspecto. Assim não fosse, certamente não
chegaria, sucumbindo à beira do caminho. Lágrimas de gratidão desceram-lhe dos
olhos, molhando as faces e pingando sobre as mãos do homem.
- Deixa-te disso, menino! Sabes, já ouvi o Messias uma vez, quando estive em cidade
próxima, há algum tempo! Sim! Podes acreditar! E hoje vou ao encontro dEle
novamente. Como lá chegaria eu, se te deixasse caído ali? Como ouvi-lo em paz com
minha consciência, se não cumprir contigo o meu dever de amor ao próximo?
A poeira sufocava-o, frio suor empastava-lhe as vestes pobres. Uma infinita tristeza
tomara conta de sua alma, sentindo-se rastejante verme sobre o solo. Revolta e dor
dominaram-no! Não seria ele um ser humano, como os que ali estavam? Como, se
raciocinava e sentia, amava e sofria? Forçando-se a abandonar o desalento, persistira,
empurrando e empurrado... Pés descalços e alvas vestes, uma sensação íntima de bem-
estar... Aquele certamente seria Jesus! Contrito, quedou-se, o rosto na poeira, as
lágrimas abrindo claros sucos na face suja e disforme, sem coragem sequer de alçar os
olhos e fitar o rosto daquele que considerava o seu Salvador!
Então Ele falou, e suas palavras sábias e justas, impregnadas de profunda compreensão
e acendrado amor, espalharam-se na manhã clara e luminosa. José olhou-se e enxergou
o mesmo corpo disforme e repulsivo aos olhos dos homens, em nada diferente de
antes... Mas a dor... A dor diluíra-se ao contacto das mãos do Rabi, ao calor dos olhos
compadecidos e acolhedores...
Jesus esclareceu e curou. Filas de pessoas doentes do corpo e da alma desfilaram à sua
frente, em uma interminável sucessão de sofrimentos e emoções. Ao anoitecer, todos se
foram, instados pelos discípulos que cercavam Jesus, defendendo-o dos inconsoláveis,
chamando o Mestre para imprescindível descanso. Sob a relva, o jovem continuava,
pacientemente esperando...
Calmamente Jesus veio até ele e o rapazinho o cansaço expresso no rosto de nobres e
belos traços. O Rabi acomodou-se ao lado do extasiado José, suspirando satisfeito com
a possibilidade de refazimento físico, e seus olhos, repletos de piedade e luz, fitaram-no
compreensivos e ambos repartiram a paz do momento sob as primeiras estrelas.
Certo dia, após comovedora preleção noturna, Jesus anunciou a partida na manhã
seguinte, pois outros o aguardavam distante dali, ansiando por sua presença, aflitos, em
sofrimento.
O jovenzinho ficou a olhá-lo até que todos se perderam na curva da estrada, o som das
vozes dos discípulos diminuindo, diminuindo, até cessar completamente.
Ele se fora!
A casa ampla, planejada e construída para abrigar a muitos, apresentava evidentes sinais
de haver sido aumentada gradativamente, evidenciando o acréscimo significativo de
moradores com o decorrer dos anos. Aquele que a erguera certamente subestimara o
númerodos que ali buscariam auxílio, e, ao correr dos tempos, novos cômodos haviam
sido anexados ao corpo principal. Ao contrário de edificações que perdem a beleza no
caso das reformas, a natureza soubera premiar seu dono, espalhando trepadeiras pela
branca construção, unindo as diversas alas com primorosas pérgulas em flor, espalhando
matizes e perfumes.
No mesmo dia do retorno de José à aldeia natal, ele e sua mãe abandonaram a choupana
de tristes recordações, seguindo pela estrada; embora o moço não houvesse delineado o
destino de suas andanças, no íntimo algo lhe dizia que chegaria ao lugar certo na hora
certa. Durante dias palmilharam os empoeirados caminhos; nas aldeias, o jovem parava,
buscando ocupação como diarista, obtendo como pagamento comida e pouso para logo
depois seguirem viagem.
Meses decorreram nessa rotina insólita. Jamais ocorrera à jovem mãe indagar do filho as
razões que o impeliam. Escutando-o, observando-lhe o brilho nos olhos e a iluminada
face ao falar de Jesus e seus ensinamentos, compreendia que algo além de seu
entendimento acontecera com o filhinho, determinando que ele guardasse no coração
aspirações superiores às comuns.
A pequenina rua, suja e enlameada, iluminava-se pelo luar e por alguma luz que
espreitava das casas humildes. Em uma das esquinas, foram surpreendidos pela
presença de suspeito grupo, rodeando um homem de alta estatura, ricamente trajado,
que tentava defender-se valentemente do ataque, lutanto pela vida. Um dos salteadores
havia lhe retirado pesada bolsa, privando-o do dinheiro e das jóias que o adornavam.
Não contentes com o furto, intentavam subtrair-lhe a vida, irados com a reação e a
aparência do rico senhor, a inveja e a revolta a impulsioná-los. O homem lutava
desesperadamente, assustado com a perspectiva da morte iminente. Embora seus gritos
enchessem os ares, as portas das casas mantinham-se cerradas e ninguém ousava
aparecer e questionar o violento drama que se desenrolava na malcheirosa ruela.
Mudaram-se. Era primavera e, trazidos pelo vento cálido, sementes e distantes terras,
caindo miraculosamente ao lado do casarão de desnudas e brancas paredes, germinando,
as gavinhas enroscando-se nas paredes, subindo e arrebentando em coloridos e
perfumosos cachos de flores.
O primeiro dos pequeninos chegara ao anoitecer e medroso aproximara-se da porta,
timidamente batendo. Depois outros vieram e mais outros... Muitos buscaram agasalho
e alimento, partindo depois; outros ficaram, doentes e estropiados, os corações
maltratados e doridos, ocupando os leitos que se multiplicavam pelos quartos outrora
vazios...
Como se tácito acordo houvessem firmado, mãe e filho jamais questionaram o rumo de
suas existências a partir do momento em que Jesus nelas adentrara, aceitando com
alegria e reconhecimento a tarefa.
Pousada do Mestre!
À noite, à luz da candeia, o jovem percorria os quartos dos que não podiam se
locomover, falando-lhes de Jesus, levando sua Verdade. Fitando-os, enchia-se de
ternura e gratidão, recordando o tempo em que o corpo encarcerava sua alma lúcida e
inteligente. Quantos ali não estariam em idêntica ou pior situação? Os ensinamentos do
Mestre, a antevisão de uma vida após a morte e a possibilidade de múltiplas existências,
constituíam bálsamo para os sofredores e, gradativamente, a revolta e a angústia
começaram a abandonar aquelas pessoas, os fatos constrangedores de suas existências
transformando-se em lições preciosas. José abraça-os, falando-lhes do amor
incondicional de Jesus, consolando-os prometendo não desampará-los, criando e
mantendo condições emocionais e espirituais para que aquelas almas enxergassem a
encarnação sob o verdadeiro prisma evolutivo.
O dia-a-dia nos campos, a rotina da casa, os pequenos detalhes da vida em comum, tudo
se transformava em motivo de conversação entre ele e aquelas pessoas, às vezes até
monólogo, conforme a gravidade do caso.
Fé, esperança, paciência... Tudo passa na voragem do tempo, mas o homem detém em
suas mãos a construção do amanhã a partir de hoje!
As palavras saem facilmente e, enquanto fala, tem a certeza de que amanhã será um
novo dia de trabalho pela sua subexistência de muitos e pela retirada da venda de olhos
ainda fechados para a Verdade. Não está mais só. Olhando a família e os abrigados,
sente-se feliz e em paz com sua consciência: dever cumprido! A permuta feita há anos
parece-lhes cada vez mais vantajosa: amor, em lugar de sofrimento; trabalho
substituindo a inércia dos aleijões; renúncia às ilusões que impedem o crescimento do
ser; enfrentamento das próprias imperfeições... A figura inesquecível de Jesus e a
mesma emoção do passado permanecem em José:
- Senhor, favorecestes vosso humilde servo, acreditando-me capaz de auxiliar-vos na
redentora missão. Reitirastes-me das amarras do corpo físico disforme, oferecendo a
proposição sublime: trabalho e amor aos semelhantes. Nas horas difíceis jamais me
abandonastes, cumprindo cada palavra do que dissestes. Obrigado, Senhor!
DEPOIMENTO
Séculos se passaram e ainda posso sentir o perfume das flores que engalanavam a
Pousada do Mestre! Senhor, certamente cantavam vossa glória, oferecendo-vos cores e
aromas em humilde louvor! Que saudade! Aqueles dias perdidos no tempo ainda
apresentam tamanha nitidez que sons e odores persistem, posso senti-los ! Foram anos
de muito trabalho e amor, repletos de realizações, e sua recordação enche-me de alegria.
Após conhecer o Mestre, cedo percebi que saber a realidade de nossos espíritos como
seres atemporais e eternos, em constante processo evolutivo, faculta-nos a tranqüilidade
e a resignação necessárias ao crescimento interior e à superação dos obstáculos que nós
mesmos colocamos em nossos caminhos, através de nossos erros e culpas. Que mais fez
Jesus senão retirar vendas de enceguecidos olhos? Suas curas eram acompanhadas do
esclarecimento salutar, no sentido de alertar sobre novas incidências no erro, instando a
criatura ao autoconhecimento imprescindível às mudanças.
E as noites com Jesus! Quando a multidão dispersava, Ele aproveitava para nos contar,
com surpreendente clareza e propriedade, as verdades que desconhecíamos, desvelando
um novo mundo às nossas extasiadas consciências.
Pão para o corpo: alimento da carne; pão para o espírito: Jesus. Assim funcionava a
Pousada do Mestre, nos idos tempos da Palestina, cenário de amor e evolução. O
passado? Atendendo às doces considerações do Mestre, deixei de conceder-lhe
excessiva importância a partir do momento em que somente me serviu como racional
explicação para as dores do presente. Havia muito a fazer na seara do Mestre e a
permuta sempre me pareceu mais do que justa! Não havia tempo para remorsos
improdutivos! Aprendi que somos criados para a felicidade, contudo costumamos
buscá-la em coisas vãs, mergulhados em ilusão! Houvesse o Mestre deixado-me
aleijado, a tarefa poderia ser mais difícil, mas, ainda assim, a transformação não
deixaria de operar-se em meu interior, ensejando a plenificação do ser, pois independe
das exterioridades. Curado, tornei-me mais apto parao trabalho, principaolmente o de
desempenho físico, e as pessoas já não me fugiam ao convívio. Mas será que, iluminado
pelas verdades do Pai, essa luz não irradiaria, atraindo e pacificando, mesmo estando eu
aleijado e disforme?? Tenho certeza de que sim!
José
O CRUZADO
“Não penseis que vim trazer paz à Terra. Não vim trazer paz, mas espada. Com efeito,
vim contrapor o homem ao seu pai, a filha à sua mãe e a nora à sua sogra. Em suma,
os inimigos do homem serão seus próprios familiares” (Mateus, cap. X, v. 34 a 36).
“Quando Jesus declara: Não creais que eu tenha vindo trazer a paz, mas sim a divisão,
seu pensamento era este: não creais que a minha doutrina se estabeleça pacificamente;
ela trará lutas sangrentas, tendo por pretexto o meu nome, porque os homens não me
compreenderão, ou não quererão compreender-me. Os irmãos, separados por suas
respectivas crenças, desembainharão a espada um contra o outro e a divisão reinará
no seio de uma mesma família, cujos membros não compartilhem da mesma crença.
Vim lançar fogo à Terra para expungí-las dos erros e dos preconceitos... Do conflito
sairá triunfante a verdade. À guerra sucederá a paz; ao ódio dos partidos, a
fraternidade universal: às trevas do fanatismo, a luz da fé esclarecida.” (O Evangelho
Segundo o Espiritismo, cap. XXIII).
Sinuosa e áspera, estendia-se a vereda morro acima ladeada de floridos arvoredos, que a
transformavam em perfumada e colorida alameda. Ao longe, avistada do vale,
encantava o olhar. Terminava em antigo mosteiro, construído com sólidas e escuras
pedras, enverdecidas pelas heras e musgos durante o passar dos anos. Trepadeiras
lutavam contra a pétrea rudeza das paredes, incrustando suas persistentes gavinhas nos
arcos que guarneciam os vitrais, sobre eles derramando pencas de flores. Encantadora
visão! O viajante que dali se aproximasse sentiria imediatamente doce e salutar influxo,
inspirado pela beleza do lugar; no entanto, vencendo a estrada, ao chegar perto da
pesada porta de madeira de lei, estendendo as mãos para a aldrava de ferro, mal
ressoassem as surdas batidas, sentiria o coração opresso, angustiado. A harmonia que a
natureza insistia em revelar aos cegos olhos dos homens era substituída pela rudeza dos
corações ali enclausurados, sob a severidade da vida monástica, com todos os seus
dogmas e mistérios.
Durante a íngreme subida, a luz do dia ainda presente permitira que se deslumbrasse
com a formosura do local; largas nesgas de róseo e dourado céu distendiam-se em
incrível azul, e os contornos das árvores e da ampla construção delineavam-se quase
negros contra o poente. Alma sensível, o rapaz detivera-se não raras vezes, apreciando a
perfeição das nuvens e a poética vibração daquele cenário de sonho, envolto em mágica
luz áurea. Depois, notando que a noite descia célere, tratara de apressar-se, alcançando o
edifício.
Estendeu a mão para a peça de enegrecido ferro, fazendo soar surda e única batida; a
porta entreabriu-se e pôde perceber soturna figura de velho sacerdote, a encará-lo com
sombria desconfiança pela pequena abertura. Ignorando-lhe a hostilidade, o rapaz
curvou-se respeitosamente, solicitando:
- Meu pai, um pobre viajante suplica a caridade de ser acolhido entre as augustas
paredes dessa casa de Deus! Esscurece rapidamente, tenho fome e sede! Auxiliai-me,
em nome de Jesus!
Com ligeireza, depôs rústica tigela sobre o alvo tampo, instando-o a acomodar-se.
Depois, encheu uma terrina com sopa, acrescentando enorme fatia de macio pão. Os
olhos do moço brilharam e ele atacou a comida com vontade, sob as vistas
complacentes do ssacerdote. Somente então o rapaz reparou que, debaixo do grande
avental imaculadamente branco, seu anfitrião portava trajes eclesiásticos
consideravelmente surrados. Diferia visceralmente do home que o recepcionara à porta,
demonstrando alegria em auxiliar e pacientes modos. Finalmente satisfeito, limpando a
vasilha com o derradeiro naco de pão, o viajante suspirou longa e prazerosamente,
alisando o estômago com movimentos gentis, dizendo:
- Senhor, acabais de livrar-me das torturas da fome! Agradeço-vos do fundo do coração!
Ah! Cozinhais muito, muito bem... Um verdadeiro banquete para alguém como eu, que
enfrenta as asperezas de uma viagem longa e sem conforto, quase sempre comendo do
que me dão ou das raizes e frutos das matas... Hoje, graças ao bom Jesus, adormecerei
com a barriga cheia e quente! Por favor, complementaríeis a hospitalidade, destinando-
me um lugarzinho para descansar o corpo fatigado e dormir o sono dos justos?
O rapaz surpreendeu-se. Em um mosteiro tão grande, teria que repartir o espaço com o
sacerdote, arriscando-se a importuná-lo? Por outro lado, questionava-se quanto a
insólita localização do quartinho, certamente uma antiga despensa, transformada em
aposento de dormir... Por que o velho não ocupava aposento junto aos demais
confrades? Muito estranho! Encabulado, sugeriu ao ancião:
- Senhor, poderei muito bem dormir no celeiro ou na estrebaria... Assim não vos
causaria incômodo... Dizem que ronco...
Curioso, o rapaz espreitava a cena por uma das frinchas da porta, murmurando para si
mesmo:
- Que corja de enfatuados! Lá está o que me recebeu tão mal! Não para menos que se
assemelha a um barril... Que gula, meu irmãozinho! Ora, ora! Muito trahbalho deve ter
o meu novo amigo para alimentar essa gente toda... Interessante... Mal o olho, como se
não existisse... Turma de esnobes! Observemos mais atentamente!
Longo tempo durou a refeição. Cansado de espiar, exausto após o longo dia de
caminhada, o hóspede encolheu-se debaixo dos lençóis, cobrindo-se com a rústica
coberta de lã, adormecendo profundamente. Ao despertar, notou que o companheiro de
quarto já havia abandonado o leito, agora primorosamente arrumado; o moço
perguntou-se quanto tempo ele dormira, pois ainda era madrugada lá fora. Deteve-se na
cama, desfrutando o calor das cobertas, escutando os pássaros que começavam a
abandonar seus ninhos, saudando as primeiras luzes matinais. No mais, tudo era
silêncio. Onde estaria o gentil ancião? Levantou-se finalmente, espantando a preguiça e
a vontade de permanecer no leito, livrando-se do camisolão que o envolvia da cabeça
aos pés. Com relutância envergou a mesma roupa empoeirada do dia anterior, ansiando
por uma muda limpa. Que fazer? Na sacola de viagem, tudo estava sujo... Saiu para a
manhã que surgia, utilizando a porta da silenciosa cozinha. Estava nos fundos do
mosteiro e dali a visão não era tão poética como a da entrada, mas certamente mais
prática: celeiro, cocheira, galinhas e patos ocupados em ciscar o terreno ainda úmido do
orvalho da noite... Mais além, um ruidoso chiqueiro de porcos... Uma horta
cuidadosamente cercada... A porta do celeiro estava entreaberta... Encaminhou-se para
lá, encontrando o religioso a ordenhar luzidia vaca; o balde estava quase cheio do
grosso e branco líquido e ele cantava baixinho, entremeando o canto com frases
carinhosamente dirigidas ao animal.
- Isso, Princesa, vamos lá, minha amiga! Que beleza, que beleza! Leite puro, a melhor
qualidade, não é? Se encher o balde, poderemos guardar um pouco para as crianças de
Eulália... Estão tão fraquinhas... Mas estão melhorando, se estão... Graças ao teu leite,
Princesa, e a nosso Senhor Jesus Cristo...
Trêsm meses duraram os tais reparos e estenderam-se além dos telhados, pois o prior
soube explorar devidamente o trabalho não remunerado do jovem hóspede e sua
amizade pelo velho religioso. O moço continuava a observar o amigo, intrigado com sua
rotina de vida. Enquanto os companheiros se entregavam às convencionais formas de
prece, meditação e estudo, Damião desdobrava-se nas tarefas da casa e no atendimento
aos necessitados, sempre com alegre disposição. Jamais reclamava, nunca se queixava
de cansaço! Muito mais novo, sentia-se exausto no final do dia, e o velhinho ainda
encontrava tempo para uma conversa após a ceia, em frente a um chá ou a um púcaro de
leite adoçado com mel. De onde viria tamanha energia? Indagado a respeito, limitava-se
a rir, até que, certa vez, provavelmente cansado das lamúrias do companheiro e de sua
incessante curiosidade, Frei Damião concordou em esclarecer:
- Tudo o que faço me dá prazer! Sirvo a Jesus e aos meus irmãos não por imposição de
meus superiores e sim por ter consciência de que isto é o certo, acreditando realmente
nas palavras do Mestre quando iguala o amor a Deus ao amor a nosso semelhante. Cada
amanhecer traduz oportunlidade bendita no serviço do Messias! Respeitados os limites
da resistência física, não encontro justificativas para não aproveitar muito bem o tempo;
indolência e reclamações assoberbam mais a criatura do que o trabalho realizado com
alegria, e idade não é sinônimo de incapacidade para as tarefas. A saúde está na razão
direta de nosso aprimoramento espiritual, que, admitamos ou não, passa
obrigatoriamente pelas obras. Não basta que afirmemos ter fé ou nos afundemos nos
textos sagrados se não praticarmos, não vivenciarmos os ensinamentos de Jesus. Para
tanto, necessário se faz aproveitar bem cada dia de nossas existências, laboriosamente
preparando o terreno para as sementes do Divino Semeador. Senti-vos incomodado com
as atitudes ce meus companheiros de crença, como se eles estivessem me explorando ou
maltratando. Realmente, seria bem melhor para eles se assumissem outras posturas,
mais condizentes com as do Mestre, mas não nos cabe julgá-los ou exigir alguma
coisa... Na hora certa, de acordo com as mudanças evolutivas desencadeadas no
decorrer da existência de cada um, aabarão por perceber seus enganos, para o bem deles
mesmos, reafirmo. Quanto a mim, que já tenho esta compreensão, seguirei cumprindo
meu dever com o coração leve e a alma agradecida.
Certa noite, quando todos haviam se recolhido, restando somente os dois a limpar o
chão da enorme cozinha e refeitório, o moço resolveu relatar ao discreto amigo os
planos que trazia em sua mente.
- Frei Damião, assim que terminar os últimos reparos, e falta pouco, somente a cerca
dos fundos, precisarei partir, apesar da amizade e do apreço que vos dedico, pois
pretendo engajar-me na grande cruzada que partirá brevemente para as terras dos infiéis.
Nela seguramente estarei e garanto cumprir meu dever de bom cristão! Passaram em
nossa aldeia natal, aliciando jovens para o sagrado acontecimento... Achava-me nas
montanhas, caçando... Uma pena! Assim, fiquei para trás, todavia os homens deixaram
recado, a fim de encontrá-los em local determinado, até data que breve findará. Tenho a
esperança de levar a palavra de Jesus, a ferro e fogo se preciso, aos bárbaros que não o
aceitam como salvador! Certamente sabeis que os cultos pagãos e os deuses réprobos
ainda prevalecem em muitos lugares, cabendo a nós, verdadeiros cristãos, salvar os
infiéis das penas do inferno, ainda que à custa de suas míseras vidas! Em nome do
Mestre, empunharei a espada, eliminando os que se atreverem a negar-lhe a grandeza!
Tudo terminado, retornarei triunfante e aí então pensarei em casar, ter filhos e tocar
adiante a terrinha onde meu pai sempre labutou. A bem da verdade, Frei Damião, a
antevisão dessa rotina de homem certinho e caseiro assusta-me. Prefiro as aventuras,
cada dia em um lugar, as novidades, a agitação...
E foi por aí adiante, expondo idéias e projetos, em meio a muitas considerações e juízos
pessoais, falando sem parar. Repentinamente, ao olhar para o velho sacerdote, assustou-
se. Ele chorava! As lágrimas deslizavam silenciosa e doloridamente por suas magras
faces, caindo sobre o piso onde ele se ajoelhara para a limpeza, misturando-se à água
suja que dele escorria! Assustado, o candidato a cruzada instou-o a levantar-se,
acomodando-o em um dos muitos bancos que guarneciam as mesas, indagando ansioso:
- Estais bem? Sentis alguma dor, meu amigo? Onde dói? Dizei-me! Tendes trabalhado
demais e o culpado sou eu, que não vos ajudo como deveria! Por acaso, a notícia de
minha próxima partida causou tristeza? Ficastes nervoso? Acalmai-vos, pois retornarei
seguro e vitorioso. Trar-vos-ei um sabre e podereis mostrá-lo a todos!
A resposta do velho causou surpresa, pois imaginara que Frei Damião se alegraria com
seus propósitos, orgulhando-se dele! Todavia,encontrava repulsa e resistência à cruzada,
tida por santa por todos que conhecera até então! Justamente ele, um religioso, um servo
de Jesus, levantava a voz contra o massacre dos malditos infiéis, alegando
fraternidade?! Seu dever era divulgar a doutrina do Mestre e não ser condescendente
com os bárbaros! Assim pensando, pronunciou-se:
- não obstante a gratidão eo respeito por vossa pessoa, decepcionais-me! Precisamos
varrer da face da Terra essas religiões que negam Jesus e submeter os pagãos ao jugo do
Cristianismo, à revelia de suas vontades, não vedes? Que melhor maneira fazê-lo do que
nos unindo em enormes e invencíveis exércitos, juntando forças para o aniquilamento
do inimigo? À frente tremulará a bandeira com a cruz, a mesma cruz onde Jesus morreu
para expiar nossos pecados! Explicai-vos, pois não entendo vossa absurda colocação,
considerando-a sacrílega!
- Trata-se de uma longa história, longa e dolorosa, que procuro calar para não reavivar
pungentes recordações. Pretendia ocultá-la. Mas vejo a obrigação espiritual de revelá-la,
como possível meio de despertar vossa razão e derrubar errôneas crenças. Se assim
quiserdes, começaremos esta noite mesmo a narrativa que expõe o passado de uma
criatura iludida com o falso poder das espadas e das idéias controladoras. O amor de
Jesus guiou esse homem de volta ao aprisco de suas ovelhas, permitindo-lhe a reparação
do passado de atrocidades. Não vos enganeis, julgando que o Mestre, ao perecer na
cruz, fê-lo para livrar-nos de nossos pecados ! Eu diria que Ele não teve outra
alternativa, devido à ignorância dos homens, que exigiam provas daquilo que Ele
pregava. O Mestre aceitava as criaturas da forma como eram , simplismente. Veio
revelar-nos a Verdade, falar de amor e perdão, esperança e recomeço, mas os nossos
erros, meu irmãozinho, os nossos erros constituem responsabilidade nossa: a semeadura
depende de nosso livre-arbítrio, mas a colheita é obrigatória e os frutos adequados à
semente. Jesus constitui o caminho seguro para a reparação, todavia, a retificação exige
duro trabalho individual no aprimoramento de nossos sentimentos. Fizestes-me uma
pergunta assaz interessante: conheço eu algo melhor do que as cruzadas para levar o
Cristo aos infiéis que ainda não o conhecem? Atrevo-me a responder com outra: e vós,
vós conheceis o verdadeiro Jesus? Conheceis sua doutrina de amor e perdão, de
liberdade e crescimento individual, ao doce e perfeito ritmo de cada ser? Como podereis
levá-lo a outras criaturas se estais cego, se ainda desconheceis sua lei de Amor? Cego
guiando cegos... Não pretendo reprovar-vos, contudo abrirei meu coração e depois
fareis a escolha! Qualquer que seja ela, meu filho, estarei em paz com minha
consciência, pois nada terei ocultado.
***
Na pia batismal haviam me colocado o nome de Teodoro. Era jovem, mal completara
dezoito anos, alto e forte, de músculos enrigecidos pelos esportes, principalmente os
relacionados às artes marciais. Consideravam-me um belo rapaz e a insistência das
mulheres envaidecia-me... Contudo, nenhuma delas despertava meu interesse, somente
uma, linda e única criatura, povoava meus sonhos: Helena.
As aulas passaram a ser a melhor parte do dia! Surpreendi agradavelmente meus pais,
pelo afinco com que me lançava aos estudos, temeroso de fazer feio diante daquela que
constituía meu primeiro amor.
A imensa biblioteca de nossa casa, considerada um luxo para muitos dos nobres da
região, a maior parte semi-analfabeta, fascinava a menina humilde. Com a autorização
expressa de meu pai, começou a explorá-la, lendo constantemente. Naquela época, a
bem da verdade, as melhores obras constituíam privilégio dos mosteiros... Até hoje
assim é... Contudo, graças a meu genitor, possuíamos cópias interessantíssimas e
mesmo preciosos originais. Meu pai! Criatura inteligente e sensível, acima de seu
tempo, que herdara enorme patrimônio e invejável fortuna, muito diferente dos senhores
com quem convivia, apreciava as artes e o conhecimento, preferências que lhe
conferiam os títulos de tedioso, esnobe e maluco. Afinal, quando somente se conversava
sobre caçadas, conquistas amorosas e riquezas acumuladas, onde se encaixaria um
homem afetuoso, culto, leal e extremamente honesto? Eu também não o compreendia,
embora o amasse muito. Preferiria um pai que se entretivesse com armas, falasse alto
como os outros e se destacasse nas reuniões sociais. Em contrapartida, Helena adorava-
o e ele retribuía à afeição, maravilhando-se com o apurado gosto da formosa criaturinha.
Intrigava vê-los juntos: o alto e elegante senhor e a pequenina pobremente vestida,
percorrendo a biblioteca, enquanto ele apontava os caminhos dos tesouros ali
depositados, contidos nas elevadas estantes de madeira de lei. Nenhum de seus filhos
jamais se interessara por tudo aquilo!
Não houve empecilhos, pois meu pai estimava-a sobremaneira. Lenbro-me de seu riso
alegre e satisfeito ao saber de minha pretensões de desposá-la, exclamando:
- Que belos netos terei! Belos e inteligentes! Estupenda escolha, meu filho! Nunca te
esqueças de que estás colocando um verdadeiro tesouro a teu lado! Não basta amar
somente com a paixão do corpo, sendo imprescindível grandeza de alma. Queira Deus
saibas ser digno de tão doce criatura!
O casamento realizou-se em meio a grandes festas, que duraram sete dias. Nossa
enorme casa tornou-se pequena para tantos convidados e hóspedes e todos celebravam
minha felicidade. Mal sabia eu que tudo estava prestes a ruir!
Ao final do sétimo dia, quando os derradeiros convivas partiam para suas casas,
surpreendeu-nos a chegada de reduzida comitiva. Vinham exaustos, empoeirados,
atestando que há muito percorriam estradas. O rosto de meu pai turbou-se de imediato,
mas ele manteve a costumeira dignidade, estendendo aos recém-chegados sua
hospitalidade, convidando-os a sentarem à farta mesa, destinanndo-lhes alojamento para
a noite que rapidamente se aproximava. Após a refeição, o oficial em comando retirou
de sujo alforje amarelecido documento, estendendo-o a meu pai, que o leu de cabeça
baixa e cada vez mais pálido à medida que seus olhos percorriam o escrito. Depois,
enrolando-o, disse-nos:
- Recrutam para a cruzada dois de meus filhos: Teodoro e Eliasírio.
A grande escadaria de pedra que levava à nossa casa, ladeada por enormes vasos
floridos... A figura linda e delicada de minha jovem esposa, os longos e perfumados
cabelos loiros recolhidos em grossa trança entremeada de fita, seu vestido azul claro de
mangas transparentes e rodada saia, o xale de franjas a proteger-lhe os ombros do vento
frio da manhã... Minha mãe, os olhos vermelhos de tanto chorar... Meus irmãos... A
velha ama... Hoje, perdidas as ilusões, essas imagens adquirem força e importância cada
vez maior!
Eliasírio e eu partimos para a batalha santa, como todos a designavam. Ele era dois anos
mais novo do que eu e não concordava com minhas idéias; à feição paterna, apreciaria
continuar em nossa extensa e bucólica propriedade, em contacto com os animais, calmo
e pacífico como sempre fora. Suas idéias e atitudes irritavam-me e em vão tentei
estimulá-lo, mostrando-lhe as vantagens de ser um herói, um conquistador, tentando
com ele repartir minhas esperanças e preferências, insinando-lhe truques de lutas, nas
quais me destacava. Exasperava-me sua tristeza, suas lágrimas envergonhava-me
perante os demais e, muito breve, desligar-me-ia dele emocionalmente, abandonando-o
à própria sorte, envolvendo-me de forma total e alienante com os preparativos da grande
cruzada e as manifestações de força e poder expressas pelas armaduras, espadas, lanças,
estandartes bordados, jogos de guerra... O fanatismo religioso imperava de permeio com
as armas e as exibições de agilidade e destreza bélicas; a vaidade fazia os cavalheiros
exibirem-se diante dos olhares curiosos que nos cercavam... Podia-se sentir a inveja no
ar... Eu sonhava sonhos de excelsa grandeza: retornaria herói, famoso por minhas
façanhas, rico pelos saques, requisitado pelo rei como presença indispensável na corte...
Quanta incoerência, hoje percebo! Que honra pode haver na morte? Para que precisava
de mais riquezas se meu pai era riquíssimo e eu, seu primogênito? Ainda que a fortuna
familiar fosse dividida entre retirar os irmãos, todos teríamos com que viver longos anos
na abastança e poderíamos repassá-la a nossos descendentes!
A marcha que nos levaria ao odiado inimigo foi longa e, durante toda a viagem,
sacerdotes ricamente paramentados encarregavam-se de zelar por nosso bem-estar
espiritual, procurando manter o exército em constante estado de excitação e fanatismo
religiosos. Rezavam-se missas em latim, das quais quase nada se entendia. Falava-se de
Jesus com entusiasmo e presunção, retratando-o como o responsável pelas conquistas
que se rariam em seu nome e por sua glória. Os mais entusiastas, em seus desvarios,
despiam-lhe a túnica e o manto nazarenos, envolvendo-o em reluzente e rica armadura,
marcada com o símbolo da cruz. Aceite-o daquela forma, como a maioria dos que
engrossavam as fileiras do extenso exército, acreditando que Ele guerreava conosco,
espada nas mãos tintas de sangue, lutando por definitivo lugar no coração dos
descrentes, em meio a gemidos e gritos de dor e desespero! Pobre ignorante que eu era!
Nada conhecia dos Evangelhos de Jesus, guardados a sete chaves pela Igreja, ocultos
aos olhos do vulgo e incompreendidos pelos que se diziam representantes do manso
Cordeiro na Terra.
Os mouros eram exímios lutadores; se nos considerávamos bons, logo percebemos que
precisaríamos de muita astúcia e ingentes esforços para conseguir vencê-los. As baixas
entre os nossos foram muitas nos primeiros combates e, à visão dos companheiros
mortos e das atrocidades da guerra, estranhas inclinações e dessconhecidas habilidades
emergiram. Não havia em mim o desejo de servir ou de obedecer às ordens emanadas de
meus superiores e sim um desesperado anseio de comandar, criar estratégias bélicas,
fazer-me obedecido, temido. Aqueles oficiais, considerava-os uns idiotas! Incapazes de
articular os planos de batalha, limitavam-se a mandar homens para a morte, acreditando
que somente coragem e sorte seriam bastantes para garantir a vitória! Eu, inocente
soldado de primeira viagem, consegui enxergar onde estavam os erros que culminariam
em derrota! Assim, após amargar frustrações e acessos de impotente ira, ousei
aproximar-me de meu superior imediato e sugerir-lhe algumas ações visando ao melhor
aproveitamento dos homens e ao aniquilamento de nosso forte inimigo. Esperava reação
adversa, mas, para minha surpresa e alegria, acatou-me os alvitres com alívio e, pouco a
pouco, fui ganhando a confiança de muitos, principalmente quando começamos a
suplantar os infiéis graças a meus planos de combate. Eu era um estrategista nato!
Jamais questionei de onde viriam tais habilidades, se eu jamais antes havia participado
de uma ação bélica...
No silêncio da noite, somente perturbado pelos brados das sentinelas ao renderem seus
turnos de guarda, eu não conseguia conciliar o sono. Terminei saindo para a noite
estrelada, sentindo o vento da noite agitar-me os cabelos, refrescando o corpo suarento.
Singular agitação levou-me a selar o cavalo silenciosamente, fazendo sinal ao soldado
para que não se preocupasse comigo, mergulhando temerariamente na estrada que o luar
clareava. Ainda hoje me pergunto como pude arriscar-me tanto... Que força me guiava,
cegando os olhos dos companheiros de luta para minha questionável saída? Ser
aprisionado significaria tortura e lenta e dolorosa morte! Além do mais, havia o risco de
ceder aos maus tratos e entregar segredos ao inimigo... Quanto andei não saberia
precisar, como se estivesse envolto em angustioso manto energético, impulsionando-me
sempre para mais adiante.
Na quietude prateada, o ruído das águas despertou minha atenção, fazendo-me parar;
amarrei o animal em oculta árvore, adentrando o pequeno bosque, guiado pelo
murmúrio cada vez maior da queda d’água. Ao vislumbrar o etéreo cenário, logo
percebi que alguém mais tivera a mesma louca idéia, arriscando-se como eu. Sob a luz
do luar, seu corpo jovem e desnudo brilhava, em pé sobre larga e chata pedra, os longos
e negros cabelos agitados pela brisa noturna. Em um breve instante, projetou-se nos
ares, mergulhando na piscina natural formada pelas represadas águas da cascata, seu
riso abafado e prazeroso perdido no ar. Escondi-me entre os arvoredos, excitado e
curioso. Há pouca distância, sobre a relva, vestes coloridas, jóias de exótica
ourivesaria... Minha linda banhista viera da cidade dos infiéis! De onde mais, a não ser
dali?! Quem seria aquela maluca que se atrevera a tal façanha e como burlara a
vigilância nos guardas mouros? Com toda a certeza, alguém muito decidida e
voluntariosa... Isso não se encontrava entre as classes menos privilegiadas e muito
menos as grossas correntes de ouro e o magnífico bracelete circundado por preciosas
gemas, displicentemente largados sobre os vistosos e brilhantes panos... Tudo excluía
humilde e obscura origem! A formosa e imprudente ninfa das águas provavelmente
seria uma princesa!
Em um primeiro ímpeto, quis abordá-la ali mesmo, mal saísse do banho, servindo-me
de sua beleza. Helena? Na guerra, meu amigo, de acordo com nossa pequenina
evolução, revelamos o que há de pior em nós, impulsionados pelo medo da morte e
pelos sentidos exacerbados. Depois, poderia levá-la para o acampamento e os oficiais
fariam a festa! Tais idéias em nada me repugnavam, devo afirmá-lo, constituindo meu
padrão de pensamentos na época. Contudo, o propósito que me ocorreu em seguida
superava em muito a crueldade do inicial. Pensando melhor, concluí que aquela não
seria a primeira vez que a mocinha se evadia da cidade à noite para o banho refrescante:
seu cavalo tranqüilamente aguardava, atado a um arbusto, como se conhecesse o local; a
confiança e a tranqüilidade da linda criatura em meio à penumbra provava que ela ali
estivera outras vezes... Ela continuava na água, inocentemente brincando na bacia
formada pela descida da cascata ou sob o forte véu que despencava das alturas. Voltaria
certamente!
Uma outra questão deixava-me intrigado! Como passaria ela pelas altas torres de vigia?
Ao que sabíamos, somente havia aquela forma de adentrar a cidadela ou dela sair, pois o
inexpugnável paredão protegia-a inteiramente. Sempre escondido, escutei suave
estalido, semelhante ao detonar de uma mola, e, para meu espanto e júbilo, ela
praticamente emergiu dos floridos arbustos, por uma portinhola secreta na muralha,
puxando com muito cuidado o animal, um soberbo garanhão negro, cujas patas estavam
protegidas com lã para que não fizesse ruído. Ri surdamente, presa de extrema
excitação... Minha encantadora presa caíra na armadilha!
Não fizemos prisioneiros! Todos, com uma única exceção, foram mortos das mais
diversas formas, por expressa ordem minha. Samira, a banhista da cascata, a linda
Samira, como eu suspeitara, era nada mais nada menos do que a filha do odiado xeque,
do responsável pela morte de muitos de nós. Eu mesmo adentrei os portais rendados de
seus aposentos de dormir, surpreendendo-a em plácido sono, alheia ao que ocorria por
culpa de sua imprudência. Ouso, em nome da decência, privar-vos dos escabrosos e
terríveis detalhes de meu comportamento, indigno de um ser humano. Extrema e
derradeira crueldade, deixei-a viva, em meio aos mortos da cidade de seu pai!
Para finalizar, ordenei aos soldados que queimassem os elevados postos de sentinela, a
fim de que os soldados infiéis vissem, de seu acampamento, os clarões. Supremo e
irônico acinte, substituímos o colorido estandarte mourisco pela bandeira da cruzada
branca com uma cruz azul bordada em seda e pedrarias!
Toda essa operação foi realizada a toque de caixa, silenciosa e eficazmente, pela elite de
nosso batalhão, sem que o restante do exército tivesse conhecimento do que ocorria na
calada da noite. Por quê? Eu pretendia os louros todos! E eles vieram... E como vieram!
Rapidamente fui alçado a privilegiadíssimo posto de comando, atuando como
estrategista de guerra, com poder para decidir e ordenar, detendo infinitas oportunidades
de externar toda a belicosidade latente em mim. Consideravam-me um herói e todos me
bajulavam, menos uma pessoa... O olhar de meu irmão, reprovador e triste, caiu sobre
mim... Ignorei-o, atribuindo à inveja e ao despeito sua atitude!
Conseguis atinar com a gravidade dos delitos por mim cometidos, caro amigo? Tudo
gerado por minha insânia, pela ânsia de poder e glória que me avassalava a alma! Jesus
constituía a desculpa ideal para meus erros... Assim como os poderosos, utilizava-o para
mascarar espúrios interesses.
Há quase um ano e meio estávamos longe de casa quando, após importante e triunfal
contenda, decidiram conceder-me uma folga para visitar a família. Na realidade, nosso
soberano desejava de nós, nobres engajados na luta religiosa, fundos para a continuação
da mesma, uma vez que os cofres estavam praticamente exauridos e os ânimos
exaltados pela falta de dinheiro e pela consciência de que a luta poderia arrastar-se por
muito tempo ainda. Isso não me afonihnou em absoluto, uma vez que, sendo meu pai
extremamente rico, muito mais do que poderiam supor, certamente não negaria ajuda
financeira a seu ilustre e famoso filho, permitindo a continuidade de nossa santa luta em
defesa dos princípios religiosos cristãos. Quão cego persistia em ser, meu Deus!
Calei-me. Como dizer que o mandara enforcar e pendurar seu corpo até que
apodrecesse? Todos mortos por meu orgulho! Todos vitimados por minha ânsia de
poder e reconhecimento!
Estranha febre lançou-me ao leito. Queria morrer como se fosse a solução para os
problemas que eu mesmo criara. Ainda não entendia porque tudo saíra de forma errada,
questiionando: eu somente queria servir Jesus, propagar sua doutrina pelas terras dos
infiéis... Dia após dia, Noite após noite, delirava, chamando por Helena, por minha mãe,
por meu pai, por meus irmãos menores... Até o pequenino ser que não conhecera
povoava os delírios... Minlha filha! Sequer fora informado de que Helena esperava um
filho nosso! Percebia, de vez em quando, o frescor das compressas que o velho servidor
aplicava sobre minha ardente fronte e ouvia sua voz murmurando sentidamente:
- Perdoai-me, senhorzinho, por favor... Não pude salvar vossa família! Eu também sofro
muito, mas nada posso fazer para trazer os pobrezinhos de volta e muito menos vós o
podeis! Nesses casos, meu senhor, temos que entregar tudo nas mãos de Deus e ter
resignação... Ficareis bem, retornareis à frente de batalha...
Se me achavam feroz antes imaginai o novo Teodoro! Assustava até os cristãos, que de
mim se afastavam com medo das violentas e imprevistas reações! Lançava-me à luta
com insano ardor, como se desejasse ser transpassado pelo aço das cimitarras; Em
minlhas mãos, a espada adquiria vida, ceifando existências com sanguinária precisão.
Minha fama espalhou-se ainda mais entre os infiéis e os ódios multiplicaram-se. Ah,
meu amigo, se as criaturas tivessem consciência do poder do pensamento! Assim, além
de minhas próprias tendências agressivas, intensas vibrações de semelhante freqüência
reforçavam-nas. Vivia eu em um inferno particular, de indescritíveis proporções. As
perdas dos entes queridos eram consideradas injustas e arbitrárias, clamava pelos mortos
com desespero e revolta, culpando-os por me abandonarem. Jesus, aquele Cristo em
armadura guerreira, passou a despertar em mim estranhos e contraditórios sentimentos,
que iam do temor à raiva, mas jamais passavam pelo amor. Todas as outras mulheres do
mundo, já que Helena se fora, constituíam caso à parte, indignas do mais simples
respeito humano, sequer de piedade. Ah, meu irmão, em uma guerra, as maiores vítimas
são seguramente as mulheres e as crianças! Enorme lista de abusos acrescentou-se à que
eu ostentava antes da vingança do mouro, pois me esmerava em crueldade e insânia.
Nada mais restando em termos familiares, resolvi fixar-me na corte, escudado pelo
imenso patrimônio paterno, suficiente para longa existência de luxo e desperdício.
Desejava aproveitar a vida, uma nova companheira talvez...
A fama dos feitos de guerra precedera-me, sendo recebido com honrarias de herói; mais
uma vez mergulhei de cabeça em prazeres inconseqüentes, com rapidez me adaptando
ao estilo dos nobres da corte. Que diferença dos dias operosos na propriedade do
campo! No fundo, enfastiava-me, contudo simulava felicidade, enganando a mim
mesmo! Ócio e lazer contínuos... Dentro de mim, a consciência insistia em sinalizar que
algo estava muito errado, todavia não abaixava a guarda, prosseguindo em um mundo
irreal, fingindo, afivelando máscaras e mais máscaras de ventura, poder, orgulho,
superioridade...
Nessa época, envolvi-me com muitas mulheres, todas lindas, perfumadas, bem vestidas
e vazias, fúteis! Fugia das honestas, virtuosas e inteligentes, mesmo formosas, como se
temesse qualquer mudança em meu modo de ser, impulsionada por suas benéficas
presenças. A saudade de Helena atormentava-me! Sonhava encontrar alguém que
guardasse qualquer semelhançacom ela, no entanto fugia disso, com medo de sofrer
ainda mais... Os gemidos de amor, as palavras ternas, os carinhos, tudo se apresentava
frio, sem a veracidade do que compartilhara com Helena... Plágios do amor! Depois, a
solidão era sempre maior, muito maior e dolorida. Ansiava pela voz de Helena, pelo
toque suave de suas mãos, por sua sabedoria e equilíbrio! As outras mulheres pareciam-
me tolas e ignorantes... Minha Helena, não obstante o humilde sangue plebeu que lhe
animava as veias, excedia-as em sensibilidade e inteligência, em graça e beleza.
Pensando assim, afastava qualquer possibilidade de relacionamento com criaturas
afetuosas e sinceras, decretando minha falência amorosa.
Acedendo à solicitação do rei, praticamente uma imposição, aceitei vantajosa união com
linda e fútil jovenzinha, que me devotava alucinada paixão e cujo pai intercedera junto à
real pessoa no sentido de ter-me como genro. Infeliz escolha do pobre homem! Surrei-
lhe a filha, traía-a com qualquer uma que se insinuasse, humilhei-a! Pobrezinha! Morreu
em trabalho de parto e a primogênita acompanhou-a. Senhor Jesus, que ela possa me
perdoar!
Novamente só, voltei meus olhos para o Cristo, resolvendo servi-lo. Com maior
propriedade, deveria ter assim colocado: servir-me do Cristo. Ainda me sentia
injustiçado, questiionava os desígnos de Deus, insultava o Mestre em minhas constantes
bebedeiras, praguejando contra Ele, culpando-o pelos infaustos acontecimentos no solar
paterno e, principalmente, pela perda da bela e gentil Helena. Contudo, depois das
armas, a carreira religiosa era a de maior prestígio e poder, desde que o candidato não se
atoleimasse com falsas santidades e inútil caridade. Realmente acreditava nisso! Na
qualidade de religioso, poderia viver bem, com conforto e riqueza, e ascender a altos
postos no reino, o que não seria difícil com minha inteligência e sagacidade. Além do
mais, uma vez que religiosos poderiam pegar em armas se assim o desejassem, nada me
impediria de participar das guerras de que tanto gostava. Decidido, doei substancial
quinhão do patrimônio familiar à igreja, ingressando em conceituada ordem. Tudo
aparência, pois o coração continuava dissociado dos ensinamentos e vivências de Jesus!
Definitivamente, ainda não o conhecia!
Como padre, excedi-me uma vez mais... Embora me considerasse perfeito, bom, leal a
Jesus, neguei o Mestre em cada momento do sacerdócio. Então, incluía-se entre minhas
atribulações atuar como confessor de algumas ricas e nobres famílias. Ouvir segredos,
opinar, consolar, aconselhar, todos são dificílimos deveres de um representante de Deus,
exigindo verdadeiro amor fraterno, equilíbrio emocional e uma gama de sentimentos
puros, sem falar na imprescindível humildade. Nada disso se alinhava em meu
currículo. Assim, destituído de tais virtudes, ouvi mal, aconselhei pior, utilizei segredos
de confissão para intrigar e manipular, auferindo proveito próprio; explorei a boa fé de
meus tutelados, em uma sucessão de erros e enganos sub-repticiamente perpetrados.
Os anos foram passando e, cada vez mais fortalecido pela impunidade e excelentes
resultados materiais, continuava exercendo sombrio poder. Portava-me com discrição e
falsidade e todos me consideravam um exemplo de probidade e amor. Cometi horrores
com a serenidade com que praticaria o bem... Pior: acreditava-me certo!
Ajuntei cautelosamente:
- Mas, senhora, casastes com ele...
- Sim, mas somente para salvar minha família da miséria, de uma pobreza indigna,
restaurando o patrimônio dilapidado por meu falecido pai... Não é justo ser obrigada a
esbanjar a juventude ao lado desse velho nojento!
Calava-se a infeliz, fitando-me com significativos olhares. Simulei espanto, ainda mais
quando me enlaçou:
- Senhora, que fazeis?!
- Amo-vos, morrerei se não for vossa! Preciso de ajuda para eliminar o traste a quem
chamam de meu esposo!
Uma semana depois, o velho conde desencarnava, em meio a muitas dores, deixando
rica e linda viúva. Fomos amantes por muito tempo até que finalmente a substituí por
outra, enfadado de seus carinhos e ciúmes. Cansara-me dela, como de tantas que haviam
passado após Helena.
As coisas atingiram um ponto tal que tentei o suicídio. Fui para o pequeno bosque
vizinho ao mosteiro e lancei-me do galho de uma grande árvore, dependurado pelo
pescoço; felizmente alguns camponeses, que por ali passavam na exata hora, cortaram a
corda, conduzindo-me a cabana de velho aldeão, onde me deixaram. Ali, em meiio à
mata, o silêncio cortado somente pelo canto dos pássaros, finalmente conheci Jesus.
Este homem, em cujos olhos lia a mesma paz e a mesma humildade de minha Helena,
este homem, um camponês inculto do ponto de vista dos estudados, revelou coisas que
me abriram os olhos para a realidade do espírito imortal. Então, o sofrimento havia me
preparado para finalmente abaixar a cerviz... No começo, suspeitei-o louco, mas, com o
decorrer dos dias, conforme ele relatava fatos que ninguém conhecia a não ser eu,
comecei a interesssar-me por suas calmas e despretenciosas conversas, aguardando
ansiosamente que retornasse à noitinha, após a lida no campo.
Certa noite, depois de frugal ceia, ele tomou assento em frente a mim, convidando-me à
prece. Nela, meu anfitrião dirigia-se a um Jesus amoroso e compassivo, amigo e
fraterno, bem diferente daquele que eu julgava conhecer. Para meu susto, mergulhou em
estranho transe e, instantes depois, por suas cordas vocais, Helena, a minha doce
Helena, manifestava-se , assim falando:
- Teodoro, meu amor! Quão difícil foi chegar a ti! Desde que deixei o orbe terrestre,
tenho tentado comulnicar-me contigo, alertar-te, evitando maiores sofrimentos para ti e
para outros contigo ligados. Tu, porém, não me ouvias, surdo aos meus amorosos
apelos, cercado de criaturas em idênticas vibrações deletérias, inpedindo qualquer
auxílio do mundo espiritual. Agora, abatido sobre um leito, ao lado de alguém com
elevadas aspirações e propósitos, finalmente consigo realizar meu intento! Vai até o
espelho e contempla tua imagem, meu querido. Os sinais do tempo marcaram teu corpo,
vincando-te o ainda belo rosto. Teus cabelos estão completamente grisalhos e começas a
adentrar a maturidade. No entanto, qual inconseqüente menino, persistes nas infantis
ilusões, ignorando, principalmente, a verdadeira face do Cristo. Outros também não o
conhecem, mas não se dispuseram a servi-lo! Tu, não obstante os abusos, achas-te de tal
forma jungido ao Mestre da Galiléia por inquebrantáveis laços, que sempre retornas a
Ele, ainda que de forma totalmente errônea e prejudicial a ti mesmo e aos que se
acercam, crendo poder receber a orientação iluminada pelos conceitos cristãos. Rodeias,
foges, negaceias, mas acabas sempre atuando em nome dEle... Todos os teus caminhos
levam a Ele... Hoje te dizes um religioso e envergas a sotaina como tal; todavia,
comporta-te pior do que os ateus. Mataste e fizeste matar, lançaste lama sobre inocentes,
aconselhaste desastrosamente, manipulaste... Estás renegando o Cristo a cada minuto!
Jamais procuraste entendê-lo, sequer tentas buscá-lo nos Evangelhos! Teodoro, adentra
a biblioteca do mosteiro debruça-te sobre os Evangelhos do Mestre, lê atentamente, com
o coração em Jesus e longe do mundo, e acharás. Busca, meu amor!
Olhei-o perplexo. Humilde, sem instrução alguma, no entanto exprimia-se com rara
dignidade e enorme coerência. Senti-me enrubescer de vergonha, no mínimo por minha
falta de educação. Estava em sua casa, comia de sua comida, curava-me com suas
poções e umgüentos, dele necessitara para não perecer... E tratava-o daquela forma!
Identificava-me cada vez mais com o Mestre e seu amor inundava minha alma,
transferindo-se para meus semelhantes. As palavras de Helena e as de meu benfeitor da
floresta jamais me abandonaram. Tempos depois, soube que o amigo ancião partira para
a pátria espiritual, mas não me entristeci em absoluto, pois estava imbuído das certezas
da vida após a morte e da trajetória do espírito imortal, em sucessivas encarnações,
rumo a perfeição. Meu amigo cumprira, e muito bem, a missão a ele confiada; de minha
parte, restava a gratidão e o afeto que o tempo não destrói. No que se refere a minha
bela Helena, após meu retorno ao convento, nunca mais comigo se comunicou através
de um encarnado... Sinto-lhe, contudo, a presença e as intuições luminosas da alma
generosa e gentil. Que mais poderia querer? Vistes as árvores e as flores no caminho?
Plantei-as, depois de retirar as muitas pedras e renovar o terreno com a enxada,
perseverantemente, até que o solo desabrochasse em verde e cores mil. Também a hera
e as trepadeiras... Todo esse cuidado mudou o aspecto exterior do mosteiro, suavizando
as asperezas, tornando-o menos sombrio. Diariamente, encanto-me com a paisagem e,
ao influxo de minhas amorosas vibrações, as flores explodem em cor e perfume e os
pássaros fazem seus ninhos nos galhos dos arbustos... Lindo, não vos parece? Devo
confessar, a bem da verdade e sem qualquer presunção de julgamento, que não obtive os
mesmos excelentes resultados com nossos irmãos religiosos da casa... Ainda não...
Resistem à mudança, seus corações estão cristalizados, endurecidos pela imperfeição,
fechados ao amor. Não importa! Ainda não é o momento... Paciência! Somente me
entristece o fato de, em uma região tão pobre e com tantos necessitados, a casa de Deus
tão pouco oferecer aos que a procuram, alheia às aflições de seus tutelados espirituais;
deveria ser um oásis de reconforto e segurança, mas continua a timbrar por insultuosa
indiferença. Nesses anos todos, o máximo que consegui resume-se na permissão de
atender os pobrezinhos bem longe dos membros de nossa ordem, nos fundos da
construção e da forma mais discreta possível... Ainda assim, tenho muito a agradecer,
pois poderiam ter-me impedido! Como os compreendo! Entre as altas e orgulhosas
paredes de pedra da casa que se diz de Deus, ainda está aprisionado um Cristo de
reluzente armadura e dourados grilhões, resultado das construções mentais de cada um
dos religiosos e da imperfeição espiritual dos que se dizem cristãos. Contudo, o tempo
segue sua rota inexorável e o espírito evolui, não obstante a resistência das criaturas. Foi
assim comigo e assim será com eles... Então Jesus surgirá em seus corações, despido
das ilusões do mundo, verdadeiro! Conhecê-lo-ão manso e humilde, amigo e solidário,
sábio e iluminado.
***
No dia seguinte, como não poderia deixar de ser, o futuro soldado de Cristo estava mais
confuso e perturbado. Indagações diversas povoavam-lhe a mente e sérios arranhões em
seu arcabouço de crenças deixavam-no inseguro. Frei Damião desdobrava-se na
rotineira lide, parecendo muito bem, tratando-o com o mesmo carinho de antes. À noite,
cumpridas as derradeiras funções na grande e aquecida cozinha, o moço sugeriu ao
religioso nova conversa. Preparara-se cuidadosamente para o diálogo, esquematizando
uma série de perguntas, estabelecendo uma linha de defesa de seus princípios,
centralizada na conveniência e importância das cruzadas como agente de divulgação do
cristianismo e salvação de almas.
Na manhã seguinte, mal surgira o sol, o rapaz deixou o mosteiro. Fizera sua escolha: a
cruzada. Recusara-se a acreditar em tudo aquilo que o ancião dissera, fugindo à verdade,
preferindo as ilusões à realidade. Sete dias depois, achava-se no centro de mais uma
expedição, recebendo a túnica com a cruz, a espada, o reluzente escudo. O
acampamento fervilhava e todos ansiavam pela contenda; as promessas de feitos
heróicos e a contagem de mortes futuras aumentava à medida que os ânimos exaltados
não encontravam vazão para tanta agressividade latente. Em meio à balbúrdia, o rapaz
sentia-se confuso e triste, pois começara a identificar situações análogas às narradas por
Frei Damião com tanta sinceridade... Saudades do amigo, da psicosfera calma do
convento, receio e suspeita de ter-se enganado na escolha do caminho...
O mouro de escuros olhos e morena pele atingiu-o com facilidade. O golpe da cimitarra
rasgou-lhe o ventre, expondo as entranhas; caído ao solo, sentiu-se flutuar, o sol não
mais ardia; suaves mãos amparavam-no e ele questionava como uma mulher tão linda
surgida do nada,em meio à batalha que intensa persistia à sua volta. Era alta e esbelta,
com olhos verdes, semelhantes às tenras folhas da primavera, e a farta cabeleira loura
estava contida por tênue rede de fios prateados, caindo-lhe em clara cascata pelas
costas, revelando o rosto perfeito e as delicadas orelhas, de onde pendiam pequeninas e
refulgentes pedras preciosas... Sentiu que a conhecia, embora não se recordasse de
onde... Sorriu, retribuindo o sorriso afetuoso da moça, agarrando-se à mãozinha que lhe
segurava o braço, temendo que ela se fosse, miragem enleio à tarde de intensa claridade.
A dor causada pelo infiel passara como que por encanto e o temor da morte deixara de
existir... Ousou indagar da encantadora visão:
- Quem sois:? Estais em um campo de batalha e correis perigo, senhora! Não sois uma
estranha, mas não consigo lembrar de quando nos vimos antes...
- Proximamente, da narrativa do querido Teodoro, a quem chamais Frei Damião,
nafigura de Helena. Remotamente, do tempo de Jesus, quando também portáveis uma
espada e a levantáveis contra os seguidores do Mestre. Como soldado de Nero, o
sanguinário imperador romano, perseguistes os cristãos encarniçadamente,
encaminhando-os à tortura e à morte. Fizestes muito mais do que obedecer a ordens:
encontrastes real prazer em perseguir e maltratar os indefesos cristãos, principalmente
as donzelas bonitas,que sofreram ultrajes e violações antes de serem lançadas à arena de
sacrifício. Tantas foram que não vos recordais de mim... Não importa, contudo, pois faz
parte do passado e o Mestre ensinou-nos a perdoar, até porque a justiça divina não
coloca em nosso caminho aquilo que não seja necessário à evolução. Hoje resgatais
parte de vosso delituoso pretérito, como outrora quitei o meu... Hoje dizeis engrossar as
fileiras dos servidores do Mestre, mas ainda não o compreendeis, como antes meu
amado Teodoro também não conseguia... Fostes alertado, contudo ainda não estáveis
preparado para a verdade. Que importa? Sempre haverá tempo para recomeçar...
Que estaria a celestial criatura dizendo? Quis raciocinar, refutar, contudo algo
interiormente lhe dizia que ela estava coberta de razão. Fechou os olhos, relaxando,
deixando-se envolver pela tranqüilidade do momento, alheio aos barulhos da peleja que
prosseguia a seu redor. Os gemidos dos moribundos vinham de bem longe, o cheiro de
sangue na terra ressequida, o sol inclemente... Entre o presente e o passado, seu espírito
pairou, livre, pronto para as reminiscências...
Estava na cidade das sete colinas! Viu-se jovem e belo, os musculosos braços e peito
bronzeados pelo sol de Roma, os peitorais do uniforme rebrilhando... Relembrou os
cárceres lotados, os gritos de medo, o cheiro de palha apodrecida que forrava o chão...
Caminhou pelos corredores sombrios, revivendo as cenas dantescas de sevícia, o terror
nos olhos das jovens estupradas pelos soldados romanos... Tantas, meu Deus!
O moço estacou assombrado com a visão que seus olhos presenciavam. Longa fila de
espíritos abandonava o triste sítio, amparados por entidades benfeitoras. Um ou outro
agarrava-se ao respectivo cadáver, recusando-se a aceitar a perda da vida física,
bradando desesperadamente por ajuda. Surpreso, constatou a presença de
impressionante legião de espíritos vampirizadores, empenhados em absorver os flúidos
vitais que ainda impregnavam os corpos... Outras entidades apossavam-se de
determinados desencarnados, envolvendo-os em negras vibrações. Fitou
inquisitivamente Helena, que com tristeza explicou:
- Atraímos os que como nós vibram... Mesmo que quiséssemos, não poderíamos
auxiliá-los, pois fixam suas conturbadas mentes em faixas vibratórias tão baixas que
impossível aproximarmos, restando somente aguardar com paciência as transformações
que o sofrimento fatalmente impulsionará.
Os encarnados sobreviventes à contenda reagrupavam-se, abandonando a luta. Novas
pelejas suceder-se-iam, mais mortos... O jovem lembrou-se das derradeiras palavras de
Frei Damião na hora da partida:
- Escolhestes a cruel luta pelas armas... Respeito-vos a escolha... No entanto, caso
permitais, meu amigo, ousaria repetir as palavras ouvidas da boca de meu pai e de
Helena na hora da partida: sede misericordioso no combate, cumprindo vosso dever de
soldado com piedade cristã, sem jamais esquecer que cada um dos combatentes, não
importa a cor e o credo, é filho de Deus, vosso irmão em Cristo, merecedor de respeito.
Jesus estará convosco e com eles, pois o Mestre não faz distinção, entendendo que os
problemas e as contendas decorrem única e exclusivamente de nossas imperfeições e
intolerâncias, não havendo certos ou errados, mas tão somente criaturas ainda em
desequilíbrio, distanciadas da divina lei do amor. Com o passar dos séculos, todas essas
lutas religiosas cessarão, acompanhando o desenvolvimento moral do homem. Então, o
verdadeiro amor, incondicional e pleno, reinará absoluto, os homens viverão em paz.
Infelizmente, hoje ainda acreditais necessitar da espada para afirmar e instalar o reino
do amor sobre a Terra... Ainda assim, toda vereda trilhada pelo indivíduo é abençoada,
pois inevitavelmente, não importa quanto tempo demore, conduzirá ao bem a criatura.
Depoimento
Quando relatei ao jovem e iludido amigo minha história em uma das cruzadas, muitos
aspectos do pretérito achavam-se sob o abençoado manto de esquecimento. Assim,
desconhecia que estivera aos pés da cruz, assistindo, como soldado romano, ao
suplício do Justo, testemunhando a integridade do Mestre na decisiva hora,
presenciando a forma impoluta como exemplificara o que havia pregado em seu
messianato. Pobre espírito ignorante, não o compreendi, desprezando-o, classificando-
o como um farsante, um vencido... Seu manto serviu de pano para nossos jogos, sua
doutrina provocou risos e chacotas!
Como religioso, deixei sua doutrina fora de minha vida, afivelando no rosto máscaras
de bondade, pureza e fraternidade... Exterioridades somente! Sepulcro caiado de
branco por fora e podre por dentro...
Jesus pacientemente nos aguarda. Enquanto isso, estamos vestindo o Mestre com
nossas fantasias, mentindo para nós mesmos, fingindo estarmos felizes...
Teodoro
ESTER
“ Por isso vos digo: tudo quanto suplicardes e pedirdes, crede que já recebestes, e
assim será para vós.”(Marcos, cap.XI, v.24).
Está no pensamento o poder da prece, que por nada depende nem das palavras, nem
do lugar, nem do momento em que seja feita.”
(O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XXVII).
- Mãe! Mãe!
A criança corria pela ensolarada e poeirenta estrada com a velocidade que suas curtas
perninhas permitiam. O caminho estendia-se, ladeado por rasteira vegetação, perdendo-
se no horizonte de límpido azul. A pequenina vila, situada em verdejante vale, cercada
por frondosas árvores onde os pássaros estabeleciam álacre sinfonia, assemelhava-se a
tranqüilo oásis.
- Mãe! Mãe!
A casa de floridas trepadeiras agarradas à branca fachada ainda estava longe, mas a
criança insistia em seus chamamentos. Queria chegar, chegar! A seus brados ansiosos,
rostos surgiam em janelas, corpos espiavam das portas, vozes diversas indagavam:
- Que foi, menino? Para que essa gritaria toda?!
E o menino desatou a narrar histórias e mais histórias, sob o olhar espantado da jovem
senhora. De vez em quando, Marta arriscava alguma pergunta:
- Será que tudo isso é verdade, filho? O povo aumenta, exagera...
- A senhora é muito incrédula! Que interesse teria Jediadah em mentir?
- Ora, não se sabe...
- Mãe, escuta, por favor! Escuta! Já pensou se Ele cura Ester?!
- Filho, estás a sonhar novamente! Tua irmãzinha não tem jeito, nasceu assim... Imóvel,
muda, parece não nos ver ou escutar...
- Mas Ele pode curá-la! Ele pode, mãe! Vê o caso do coxo, por exemplo. Seria menos
sério do que o de Esterzinha? Duvido!
A mulher aproximou-se de uma das camas, fitando a criança com entristecido olhar: que
seria da filhinha quando se fosse? Desde o parto conturbado, há quase dois anos, não era
a mesma. Perdera a saúde, sem falar que o tempo excessivo para o nascimento
provavelmente lesara o juízo da menina... Seus olhos nadaram em lágrimas... Não
bastasse a doença da pobre criaturinha, enfrentava sérios problemas com o esposo, que
desde então acentuara seu pendor pela bebida, imputando-lhe a responsabilidade do
problema. Amiúde exclamava::
- És a causadora de tamanha desgraça! Tivesses aviado-te na hora do parto, ela seria
normal! Nasceu roxinha, esperaste demais para colocá-la no mundo...
Tudo era fácil para as crianças! Viajar... Sem dinheiro, uma criança enferma ao colo...
Com o marido não poderia contar... E quem garantiria a veracidade das histórias?
Arriscava-se a fazer uma viagem inútil...
- Veremos, meu filho, veremos...
O dia transcorreu na tediosa rotina de sempre. À noite, o esposo não regressou, mas o
fato transformara-se em algo corriqueiro nos últimos tempos; as vizinhas alertavam-na,
oferecendo detalhes sobre a aventura extraconjugal do companheiro, todavia nada podia
fazer, temendo enfrentar o temperamento colérico e instável do consorte, sem
mencionar a dependência financeira, precisando para os inevitáveis compromissos.
Assim, calava, aguardando que as coisas melhorassem, orando para que o inconseqüente
retornasse calmo ao lar. A última ausência fora terrível, com privações de alimentos e
doenças dos filhos, ela passando noites insones a suas cabeceiras, procurando aliviar os
sintomas das enfermidades com ervas e chás caseiros, ligando-se a Deus, implorando
auxílio. Quando o jovem esposo finalmente chegara à casa simples e asseada, mostrara-
se irrritado, descontando nos familiares e nos poucos móveis e utensílios a ira, surrando-
a impiedosamente; como se não bastasse, virara a caminha da doentinha, jogando-a no
chão, enquanto bradava violentamente:
- Inútil! Por que não morres? Tenho eu que me matar de trabalhar para sustentar um
verme como tu?
Isso fora há seis meses. Desde então, as ausências ocorriam periodicamente, mas não
tão demoradas, e o cônjuge aparentava maior serenidade, embora indiferente a tudo e a
todos. Graças a seus próprios esforços, auxiliada por Jesiel, iniciara uma horta nos
fundos da casa, pacientemente retirando pedras e estercando a árida e improdutiva terra,
até que o solo se abrira em vegetais e hortaliças viçosos, que ela usava na alimentação
familiar, permutando o excedente com os vizinhos, a troco de gêneros diversos. As
dificuldades enfrentadas com a irresponsabilidade do esposo haviam servido de lição,
determinando que se precavesse para o futuro. Conseguira também mudas frutíferas,
plantando-as, surda às irônicas observações do marido a respeito do tempo que levaria
para a colheita. Foram maneiras de minorar as necessidades, a penúria, além de salutar
terapia para a tristeza e a ansiedade que ameaçavam fragilizá-la. Discutir? Melhor calar
e trabalhar, pois não poderia deixá-lo. Olhava a pequenina com especial apreensão,
raciocinando:
- Se eu, que me considero normal, pronta para o trabalho, estou em tal situação que
dizer da coitadinha?
Vencida pelo cansaço, Marta adormeceu, despertando ao primeiros albores do novo dia.
A manhã radiosa da Galiléia, com seus perfumes, brisas e céu de puríssimo anil,
encheu-lhe o coração de esperança. A imagem do Rabi formou-se em sua mente e ela
riu. Não o conhecia! Será que a mania de fantasiar de Jesiel era contagiosa? De tanto
ouvir o filho discorrer sobre o enviado, estava a imaginá-lo, apossando-se dos detalhes
entusiasticamente descritos pelo menino: belo, forte, cabelos à altura dos ombros,
macios e levemente anelados, olhos claros... Balançou energicamente a cabeça, tentando
afastar os insistentes pensamentos, mas eles retornavam sempre ao Mestre. Teria Jesus,
realmente, os tais poderes? Haveria doçura em seus olhos e ternura em suas mãos,
entendimento e compaixão pelas dores do mundo?
Não entendia a vida... Uns ditosos, outros penando amargamente... Por que Jesiel era
forte como um tourinho, esbanjando saúde e vitalidade, e sua Ester, tão doente? Seria
sua culpa, como o marido não se cansava de repetir?! O filho viera ao mundo em
estrelada noite, com uma facilidade enorme, mal sentira as dores do parto. Uma criança
linda, risonha, de bem com a vida e com as pessoas... Ester, ao contrário, dilacerara-lhe
o corpo em atrozes dores na hora do nascimento, como se presa, imantada ao materno
ventre, recusando-se a adentrar o mundo... Olhando-a, não raro sentia inexplicável
angústia, um medo imenso invadindo-a, como se aquela criaturinha indefesa de alguma
forma pudesse atingi-la... Um desejo de fugir para bem longe, abandonar tudo...
Todavia, amava a filhinha, ela não sobreviveria sem sua atenção de mãe... Que seria de
seus filhos, especialmente de Esterzinha, caso viesse a falecer? Sentia-se cada vez mais
fraca, mal dava conta dos serviços da casa, a febre corroendo-a dia e noite, minorada
por tisanas e chás, mas sempre ali, avisando-a do lento esgotar da vida...
A mulher avaliou o homem, atentando nas feições que o sol das estradas tisnara, nas
fortes mãos, inequivocadamente as de um trabalhador, nas roupas limpas, na barba
cerrada e escura, tratada e aparada com cuidado... Tudo nele inspirava confiança, sem
falar nos olhos castanhos que a fitavam com respeito e bondade. Havia gentileza e
educação em seus gestos e modo de falar... Certamente não se tratava de um bandido!
Um pensamento veio-lhe insistente: não se perguntava, momentos antes, sobre o que
faria Jesus em seu lugar? Certamente o Mestre não ficaria ali, morrendo aos poucos,
sentindo piedade de si mesmo, na soleira de uma porta, a filha imóvel em uma cama...
Nem pensar! Ela também não deixaria escapar a possibilidade de resolver seus
problemas, ainda que fosse o de Ester, pelo menos!
- Muito bem, senhor Jediadah, seguiremos em vossa companhia! Mas como
voltaremos?
- Fácil! Daqui a dias trarei novo carregamento, desta vez pequeno, e vireis comigo.
- Assim sendo, se não incomodamos, tereis companhia! Precisamos encontrar Jesiel!
Foi à fonte encher os potes com água... Prepararei Ester...
Um pensamento repleto de apreensão delineou-se: não tinha um tostão sequer e muito
menos víveres para a inesperada viagem! Como se lhe adivinhasse as preocupações, o
homem tratou de complementar:
- Ficareis em nossa casa, em companhia de meus pais... São idosos e adoram ter com
quem conversar! Ah, adiantei-me, pedindo à estalajadeira que preparasse algumas
coisas para o trajeto... Parece que ela exagerou...
Meia hora após, seguiam os quatro pela estrada. Deitada ao lado da pequenina, a moça
meditava sobre o destino. Há pouco julgava impossível chegar até o Rabi... No entanto,
com a interferência de um desconhecido, teria a oportunidade de socorrer-se do amor do
Mestre. Acaso?
Que serenidade naquele companheiro de viagem! Há muito não se sentia tão protegida
e, ao mesmo tempo, inusitadamente livre, com a maravilhosa sensação de estar viva e
com direito à felicidade! Abençoou intimamente o fortuito encontro do filho com o
moleiro Jediadah...
A escuridão da noite ocultou a tristeza nos olhos do moleiro. Limitou-se a explicar com
brevidade haver perdido a esposa, vivendo com os pais. Então, chegavam à casa
confortável e impecavelmente limpa e arrumada, a ponto de encantar a visitante. Tudo
simples, mas cuidado com zelo.
- Senhor Jediadah, vossa casa é linda! Quantas flores...
- Estimo que aprecieis, senhora. Vinde, vou levar-vos ao quarto. Podereis lavar-vos da
poeira da viagem e a ceia será servida...
A velha senhora, de alvos cabelos e serenos olhos, e o ancião forte e risonho receberam-
nos como pessoas da família, alegres com a notícia de que procurariam Jesus, passando
a narrar fatos e a transmitir enriquecedores conceitos aprendidos do Mestre,
surpreendendo a moça com a elevação de seus sentimentos. A anciã, observando a
criancinha acomodada ao colo da mãe, que pacientemente se esforçava para fazê-la
engolir alguns goles de leite, interessou-se, indagando dos motivos de seu problema.
- Enfrentamos sérias dificuldades em seu nascimento... O parto foi longo, difícil, a
parteira praticamente teve que arrancá-la de dentro de mim... O pai insiste que a culpa é
minha...
- Credes que Jesus possa curá-la, minha filha?
- Sim, somente Ele poderá operar tal milagre! Tenho fé que sim!
- Amanhã bem cedinho ireis onde as gentes se reúnem para vê-lo e ouvir suas palavras...
São muitos, sempre uma multidão aflita, suplicante... Podereis abrir vosso coração sem
medo... Para tanto, que tal vos recolherdes? O Mestre começa bem cedo o seu trabalho...
Despertou às primeiras horas do amanhecer, com a álacre algazarra dos pássaros nos
beirais da casa; inicialmente, sentiu-se perdida no tempo e no espaço, mas a súbita
lembrança do dia anterior sobressaltou-a: o Mestre!
A anciã não se enganara... Embora fosse muito cedo, enorme multidão aguardava a
presença de Jesus, Jediadah acompanhara-os, levando nos braços Ester, fitando
penalizado o semblante pálido e abatido de Marta. Estava doente a jovem senhora,
provavelmente muito enferma a julgar pela extrema magreza e abatimento; o moço
recordou o momento em que ela saíra do quarto com a menina no colo, horas atrás. Mal
tinha forças para carregar a pequenina! Então se oferecera para levá-los, a pretexto de
também ver o Mestre. Retirara-lhe dos braços a criança e pudera notar a dificuldade da
jovem mãe em respirar; agora, aguardando a chegada do Profeta, perguntava-se qual
seria a mais necessitada: mãe ou filha?
Grande agitação anunciou a chegada daquele a quem esperava. Jesus caminhou entre a
massa, parando vezes seguidas, escutando uns e outros. Seus passos dirigiram-se para o
lado onde Marta tomara lugar e ela mal podia acreditar na sorte. Com tanta gente, seria
abençoada com uma palavra do Mestre?
Ei-lo à sua frente! Em um primeiro impulso, Marta prosternou-se; depois, movida por
estranha força, levantou-se, tomando a filha dos braços de Jediadah, estendendo-a para
o Mestre:
- Curai-a, eu vos suplico!
- Sabes o que me pedes, mulher?
- Sim, peço-vos a cura de uma criança inocente! Pouco tempo me resta de vida, Senhor,
ninguém a aceitará assim!
O dia parecia não terminar nunca! Perquirições atormentavam a angustiada Marta: por
que o Rabi queria falar com ela a sós? Como Ele delas se acercara, perdidas que
estavam em meio à multidão? No intuito de acalmá-la, Ana, a mãe de Jediadah, relatou
que o Messias costumava reunir-se, no final do dia, após a refeição, com pessoas a
quem falava em especial, além de informalmente continuar a ensinar a todos, de
preferência através de histórias e casos.
- Senhora, por acaso fostes a alguma dessas reuniões?
- Não, minha filha, eu jamais fui a um desses serões, até porque somos abençoados com
saúde e paz. O meu Jediadah talvez se interesse em escutar o Mestre mais de perto, pois
tem sofrido muito com a morte da esposa, sente muita falta dela... Além de muito
bonita, era boníssima... Viviam como dois namorados... Meu filho se ressente de não
terem tido filhos, que talvez preenchesse a solidão de seus dias...
A casinha era humilde. Efraim labutava nos campos, em terras alheias, e já contava
relativa idade, a julgar pelos grisalhos cabelos. Sua esposa lembrava muito Ana, pela
gentileza e bondade; recebeu-os com sincera alegria, acomodando Marta e a criança em
um dos poucos bancos da sala, afagando os cabelos de Ester com carinho. Temendo ser
considerada intrusa, Marta apressou-se em esclarecer:
- O Mestre mandou-nos vir, senhora!
- Como não! Sêbem-vinda, minha filhinha. Jesus está nos fundos, conversando com
Efraim, não tarda. Estão vendo a construção que meu esposo está levantando, com a
graça de Deus. A casa é pequenina e Efraim tem o sonho de aqui reunir as pessoas para
o Evangelho do Mestre, até já ganhou algumas anotações do discípulo Mateus! O jeito
foi levantar um aposento só para isso... E ele está pedindo conselhos a Jesus, que já foi
carpinteiro com o pai... Coisa de homens!
Marta ficou contemplando o rosto radiante da velha senhora. Ela falava de Jesus com
uma familiaridade! Carpinteiro?! Havia amor nos olhos da mulher, como se
mencionasse um filho, um parente muito amado...
Vozes, uma delas alta e cantante e a outra sonora e educada, indicaram a chegada do
anfitrião e do Mestre. Sua presença iluminou a sala despretensiosa! Sutil lufada de
perfumados ares refrescou o aposento repleto. Sorrindo, o Mestre convidou-os:
- Faz calor aqui. Que tal nos reunirmos nos fundos, sob as árvores? Belíssima lua
fornecer-nos-á sua luz e as estrelas serão rutilante dossel sobre nós...
A conversa transcorria amena. Jesus falou, escutou, esclareceu, riu, brincou com o
inevitável... Marta pegou-se encantada com sua figura muito bela, de uma beleza
inexplicável. Quanto mais Ele falava, mais ela se rendia a seu encanto...
Uma a uma as pessoas foram se retirando; Marta fitou interrogativamente Jediadah, mas
o moço também estava hesitante, respondendo-lhe com leve levantar dos fortes ombros.
O Mestre tê-los-ia esquecido? Para alívio de ambos, o convite de Jesus não tardou:
- Então, conversemos? Marta, queres a cura de Ester. Julgas que, se ela estiver em
condições físicas satisfatórias, melhor se defenderá das vicissitudes da existência.
Acertei?
- Senhor, esse é meu pensamento! Temo pela sorte da pobrezinha quando eu for...
- Vais partir, Marta?
- Senhor, tudo indica que sim. Estou muito doente, tusso sangue, faltam-me as forças...
- E por que pedes por tua filha e não por ti?
Espanto estampou-se no pálido rosto da mãe. Como sabia Ele de seus secretos terrores?
Realmente, estranhas sensações invadiam-na ao fitar a criaturinha indefesa, como se ela
pudesse causar-lhe muito mal...
- Devem ser meus nervos, Senhor!
Marta olhou o Mestre nos olhos e viu que Ele estava divertindo-se com a situação...
Pobres tolos eram eles, que julgavam mandar em seus destinos ou considerá-los ao
sabor das incertezas! Novamente imbuído de seriedade, Jesus prosseguiu:
- Pediste-me algo para Ester... Julgo acertado explicar-te as razões pelas quais
desaconselhamos a cura de tua filhinha. Para tanto, recordarás existência pretérita, uma
em especial, aquela que determinou os profundos vínculos entre ti e a que conheces
atualmente como Ester.
***
Muitas horas depois, quando a madrugada derramava róseos tons no céu, o misterioso
viajor adentrava a deserta cidade. Cuidadoso, prendia o animal a escondida árvore,
embrenhando pelas ruelas, ganhando sem hesitação a região nobre, onde palacetes
rivalizavam em beleza e luxo. Na casa iluminada por archotes, o moço novamente
desviava seu caminho da rota dos guardas que efetuavam a vigilância noturna; ganhava
rapidamente as escadarias que conduziam ao andar superior com a naturalidade dos que
conhecem o terreno, estacando diante de uma porta delicadamente lavrada em tons de
ouro e marfim. Recuava e avançava vezes diversas, como se enfrentasse sério dilema,
decidindo-se finalmente: sem bater, adentrava o quarto em penumbra. Um odor
acentuado de incenso provocava-lhe leve tontura e ele intimamente questionava a
preferência da ocupante do luxuoso aposento: como poderia alguém viver naquela
atmosfera, longe das brisas refrescantes da noite? Painéis de seda recobriam as paredes
e pendiam do teto; o rapaz afastava-os com irritação e desdém. Um animal aproximava-
se silenciosamente e ele constatava tratar-se de um gato do deserto, espécie selvagem
domesticada por gentil e férrea mão, meneando a cabeça: absurdo!
Sobre o leito, entre almofadas, a moça dormia. Os longos cabelos de fulvos fios
escorriam pelos travesseiros, sedosos e brilhantes; delicada indumentária de diáfanos
panos vermelhos envolvia-a, mal velando as formas perfeitas e delicadas. O homem
quedava-se a olhá-la e a expressão irada ia aos poucos abrandando... Depois, seus
olhares caíam sobre os alvos trajes em uma cadeira, bordados e rebordados com fios de
ouro e pedrarias: as vestes do casamento! A ira retornava aos negros olhos do invasor...
Silenciosamente tomava nas mãos uma das almofadas que guarneciam o leito,
pressionando-a contra o rosto da formosa adormecida. Lágrimas deslisavam pelo rosto
másculo e bronzeado, mas a pressão não diminuía e ele apertava com força cada vez
maior, impedindo que a vítma fugisse ao fatal jugo.
- Morre, morre, traidora! Se não és minha, de outro não serás jamais, jamais!
A pobre tentava liberar-se das fortes mãos do agressor, contudo somente conseguia
arranhar-lhe os braços. Instantes depois, o corpo jovem e lindo quedava-se entre as
sedas. Então, lentamente a almofada era retirada e o homem observava as delicadas
feições amorosamente, acariciando o rosto perfeito. Sempre chorando, beijava
demoradamente os lábios da morta, retirando-se pelo mesmo caminho anteriormente
percorrido. O profundo silêncio da casa não fora quebrado pelogesto assassino e breve o
invasor perdia-se na cidade ainda adormecida. Relâmpagos clareavam a madrugada,
espantando as luzes da aurora, e o céu plúmbeo prenunciava a procela, que não se fazia
tardar. A escuridão instaurada pela violenta tempestade seria conivente com o segredo
daquelas duas almas. Para conhecer-lhes a trágica história, reportemo-nos há seis
meses...
Seis meses antes da trágica noite, encontraram-se pela vez primeira Esaú e Samara. O
jovem integrava uma das tribos hebraicas, tendo recebido tradicional educação,
preparando-se para desempenhar futuras e importantes funções.Dele muito esperavam
os anciãos, tratando-o com especial deferência. De resto, não se lhe poderiam negar a
bela aparência física, a inteligência, a habilidade nas artes marciais. Os olhos
profundamente negros despertavam suspiros femininos, as jovens casadouras anelavam
por sua atenção. Estudara as escrituras e jamais cogitara em renunciá-las, acreditando
em um Deus único, inteiramente voltado para as necessidades dos que como ele
pensavam. Os povos politeístas que os cercavam despertavam-lhe repulsa, indignação e
desprezo. A existência transcorria pacífica e serena, dividida entre as ovelhas, os
estudos, os jogos de guerra e as belas jovens da tribo, das quais uma merecia distinção:
Raquel.
Estranhamente, aquele dia mostrara-se, desde muito cedo, atribulado. A mãe, sempre
cuidadosa e pontual, dormira além da conta, o mesmo acontecendo com as servas da
casa, que também deixaram queimar o desjejum, sendo preciso improvisar uma refeição
às pressas. Foi assim que Esaú percorrera os habituais caminhos que o conduziriam à
região de pastoreio muito mais tarde do que o costumeiro.
Meia hora depois, diminuira ainda mais o ritmo dos viajantes, facilitando as coisas para
o moço hebreu. Estavam cansados... Melhor... Lembrara-se da presença de verdejante
local, onde límpidas águas costumavam acolher humanos e animais, deduzindo que ali
aportariam.
Então ela volvera e, extasiado, Esaú pudera contemplar a pele clara, os lábios delicados,
as afiladas mãos que seguravam o ramalhete singelo... Ela subia e ele procurava
ocultar-se melhor. Naquele momento, lindo pássaro de coloridas plumagens
empreendera gracioso e longo vôo de uma rocha próxima, pousando na árvore-
esconderijo, desatando a cantar primorosamente, encaminhando os fascinados olhos da
moça para o ansioso que a espreitava. Fitaram-se por instantes e o moço, ao ler surpresa
e temor nos imensos olhos verdes, prevendo que ela gritaria, precipitara-se dos galhos,
envolvendo-a em apertado abraço, enquanto uma das mãos tampava-lhe a boca,
sussurrando ao mesmo tempo:
- Não tenhas medo, não te farei mal algum! Jamais te magoaria... Meu Deus, és a
criatura mais linda do mundo! Vou retirar a mão, fica quieta senão acabam comigo, o
que seria uma pena, pois pretendo casar contigo, bela estranha!
O que atrairia duas criaturas com tamanha intensidade? A pergunta formulada pelos
enamorados de todas as épocas ficariam sem resposta, somente o irrefutável
permanecendo: a paixão imediata, a primeira vista, incontrolável...
Vozes chamavam-na:
- Samara!
O regresso à tribo fora em estado de graça. Amava-a! A imagem de certa moça, a quem
prometera casamento, esvaíra-se nas asas da paixão estrangeira. Apaixonara-se, o que
constituía um sério problema em vista dos costumes hebraicos, discriminatórios em
relação a estranhos como consortes. E a diferença de crença? Até então, ele mesmo fora
intransigente quanto aos politeístas!inseridos entre povos com uma profusão de deuses,
obstinavam-se em manter a pureza da crença, evitando a influência de hábitos
alienígenas. E agora? Restar-lhe-ia obedecer, desistir do amor, da felicidade? Seria
justo?
Notaram todos que algo acontecera. De natural alegre e bem humorado, Esaú tornara-se
irritadiço e tristonho, amuado pelos cantos, evitando os amigos, ensimesmado em
incomum mutismo, Raquel, a bela judia, com a sensibilidade das mulheres apaixonadas,
compreendia a seriedade da transformação do noivo, buscando o patriarca:
- Pai, creio que Esaú deixou de amar-me...
- Ora, que tolices estás a dizer, minha filha?! Imagina se ele rejeitaria a mais bela filha
de nossa raça! É bem verdade que tem andado estranho, mas nada deve ter a ver
contigo... Se te tranqüiliza, falarei com ele... Já é hora de acertar o casamento para o
mais breve possível!
Fora com surpresa e temor que o moço recebera o recado do ancião. Às primeiras
palavras, compreendera: Raquel queixara-se de sua indiferença. Melhor! Resolveria de
uma vez a pendência. Recusar-se-ia ao casamento acertado pelos pais e aceito com tanto
gosto por ambos os envolvidos até o dia em que enxergara a linda estrangeira e mudara
de idéia. O patriarca assustara-se:
- Como?! Está acertado, Esaú! Se´rá uma desfeita irreparável! Existe alguma razão para
tal despautério? Raquel cometeu alguma indignidade que estás a ocultar-me?
- Não, em absoluto, senhor! Raquel tem sido um anjo! Mas não posso unir-me a ela, não
a amo... Outros pretendentes surgirão assim que desfizer o compromisso e ela poderá ter
como esposo alguém que a ame e respeite como merece. Eu, amando outra, seria
péssimo companheiro e, com o tempo, ela reconheceria isso, sentindo-se infeliz... Eu
também seria infeliz!
- Se não queres Raquel, qual é a elita de teu coração?
- Não sei seu nome de família, mas tão somente onde mora. Buscá-la-ei, trazendo-a até
vós.
- Que história é essa, Esaú?! Conhecemo-nos todos e de há muito! Estás louco?
A moça, no entanto, recusava-se a partir com o rapaz, alegando não conseguir viver
longe da família, temendo ser maltratada em meio ao povo de Esaú. O rapaz, embora
intimamente concordasse com as alegações, esforçava-se em tirar da cabeça da
namorada tais idéias, temendo um rompimento definitivo.
Como não poderia deixar de ser, o namoro fora descoberto e as servas severamente
punidas; com muita sorte, Esaú evadira-se, retornando a sua aldeia. Se alguma vez
cogitara que poderia olvidá-la, os meses seguintes serviram para provar que a paixão
aumentava com a distância. Sentia-se enlouquecer! Pressionavam-no, exigindo que se
consorciasse com Raquel ou outra qualquer de sua raça; com Samara, nem pensar!
Ameaçaram-no com expulsão, quando viveria longe dos seus, amargando forçado
exílio. Sua existência transformara-se em um inferno particular, dividido entre o amor a
uma mulher e suas responsabilidades em relação à tribo, entre a paixão e o dever!
Após dois meses, Esaú resolvera investir novamente na conturbada relação, partindo
para as terras de sua amada. Pensara muito e resolvera abandonar seu povo e assumir os
hábitos e crenças de sua escolhida, iniciando nova etapa de vida entre os estrangeiros.
Em momento algum refletira que poderiam rejeitá-lo! Encontrara a jovem entristecida,
ouvindo de seus lábios o relato de desventuras e pressões e a notícia de que o pai,
desgostoso com as atitudes da filha predileta, acamara seriamente correndo perigo de
vida. Assim sendo, a jovem decidira terminar o namoro, pedindo-lhe que se afastasse
definitivamente. Juntos, causariam tanto mal a tantos... Jamais seriam felizes...
A índole apaixonada do rapaz revoltara-se contra aquilo que julgava ser indiferença da
mulher amada. Queria dela o mesmo desespero seu, decisões arrojadas e definitivas no
sentido de defender o envolvimento de ambos, a disposição de cometer loucuras em
nome do amor! Um Esaú completamente desatinado, com desejos de vingança contra
tudo e todos, deixava as terras dos gentios!
Três meses! Em três meses outro a possuiria, afogar-se-ia na maciez dourada de seus
cabelos, perder-se-ia no corpo jovem e frágil... Ciúme atroz corroía-lhe a alma, não
obstante os conselhos paternos, as palavras conciliadoras dos anciãos e a solicitude
afetuosa e sincera de Raquel, que desistira da pretensão de desposá-lo, sufocando os
sentimentos de mulher para assisti-lo na qualidade de sincera amiga. O pacífico Esaú de
outrora, em confronto com a realidade da perda e a impotência de realizar seus desejos,
revelava-se um homem magoado e vingativo, apegado à idéia fixa de que a pobre
Samara o traíra. Enquanto isso, a moça aceitara o matrimônio imposto, descobrindo no
noivo uma criatura bondosa, portador de enobrecedoras fqualidades. Em incomum
diálogo, a moça expusera ao homem eleito por seu pai o frustrado romance, usando de
sinceridade, pedindo ao noivo paciência, asseverando que o honraria, havendo a futura
possibilidade de amá-lo. Na verdade, a jovem Samara decepcionara-se com o
comportamento de Isaú, desagradavelmente surpresa com a raiva, o ciúme e o ódio
expressos por ocasião do desenlace. As suspeitas quanto à inexistente traição
indignaram-na e não compreendia a dificuldade do rapaz em entender que não pretendia
magoar os pais, a família. Além do mais, despindo o relacionamento das ilusões e
brilhos aventurescos, restava uma indagação: seria amor ou simplesmente uma paixão?
Dias antes das núpcias, mercadores de passagem pela aldeia de Esaú trouxeram notícias
de que muito haviam negociado em terras próximas, por conta dos festejos de
casamento da bela Samara. Esaú julgara-se enlouquecer! Vagava pelos campos aos
gritos, extravasando a dor e o ciúme, mas infelizmente não lograra acalmar-se, sentindo
uma raiva inensa da moça, uma ânsia de destruí-la... Rejeitara ponderados conselhos,
expulsara de casa a chorosa Raquel que buscava consolá-lo, partindo para a cidade
daquela que passara a considerar mortal inimiga.
Após o assassinato, Esaú encaminhara a montaria para sua aldeia. A tempestade
subitamente instalada amedrontava-o pelo furor dos ventos e lampejos. O pobre, em sua
insanidade, julgara que, eliminando a mulher amada e pretensamente odiada, a paz
retornaria ao seu coração, mas descobria tarde demais que se enganara terrivelmente. A
lembrança da jovem atormentava-o e a razão começava a falar mais alto: por que fizera
aquilo? Como poderia viver com aquela culpa a dilacerá-lo, com saudade a consumi-lo?
Desesperado, nas primeiras voltas do trajeto, forçara o assustado animal a precipitar-se
despenhadeiro abaixo, dilacerando o corpo nas pedras, julgando assim asserenar o
coração.
Os anos passaram-se... Dez, vinte, trinta, oitenta, cem... Ao tempo de Jesus, renasciam
Esaú como Ester e Samara como Marta. A bondosa e paciente Raquel retornava nas
roupagens carnais de Jesiel. Uniam-se, sob um mesmo teto, os personagens da tragédia
de outrora, perseguindo o inevitável reajuste.
***
Marta sentiu-se como alguém que desperta de um longo sonho, mas, a julgar pelos
demais, tudo havia ocorrido rapidamente. Jediadahh fitava-a surpreso, pois a jovem
senhora, que conversava normalmente com Jesus, em discreta e reservada posição,
entrara em uma espécie de transe, do qual retornara minutos depois com a estranha
expressão no pálido rosto. Pudesse ler os pensamentos de sua hóspede! Marta ainda
sentia as emoções da regressão: Ester, a sua filhinha... Roubara-lhe a vida, de forma tão
violenta e sem possibilidade de defesa... Então, era Exaú... E ela, a pobre dona de casa,
fora aquela jovem lindíssima, com vestes luxuosas, servas, jóias... Começou a entender
porque a criança nascera tão penosamente, como se a recusasse no papel de mãe...
Jesiel, o filho amoroso, com quem se relacionava maravilhosamente, fora aquela moça
gentil que amara sinceramente o jovem Esaú, não obstante seus defeitos! Estaria ficando
louca}? Olhou para Jesus e Ele brincava com uma varinha, extraída de florido arbusto.
- Mestre, que significam tais lembranças?
- Para entendermos o presente , Marta, faz-se mister entender o passado. Ester traz no
corpo físico as seqüelas do ato perpetrado contra a própria vida, sem falar nas culpas
oriundas da violenta agressão contra aquela que se chamava Samara. Dilacerando o
corpo outrora, determinou os defeitos físicos do momento e talvez de encarnações
vindouras. Tu, a vítima do passado, a involuntária causadora do desespero de Isaú,
aceitaste a redentora tarefa de auxiliá-lo, na pele da enferma Ester, a transformar-se.
Não pretendo curá-la, pois estaria privando-a de valiosa oportunidade de aprendizagem
e mudança. Terá que trabalhar os infelizes sentimentos que a conduziram, em pretérita
existência, ao assassinato e ao suicídio. Em verdade, posso afirmar-te que em Ester
criança vive o mesmo Esaú revoltado de antes! Pensas que não ouve, não vê, não sente?
Somente não exterioriza, pelas limitações físicas, suas percepções e sentimentos...
- Mas, Mestre, vou-me desta vida, provavelmente pouco tempo me resta...
- Quem disse isso? Porventura sabes mais do que nosso Pai? Eu te digo, em verdade,
longos anos habitarás sobre a Terra; cuidarás de teus filhos Jesiel e Ester e de outros que
virão. Todos se casarão, mas Ester será só, dependendo de ti e de teu companheiro.
Deverão amá-la, educando-a para o verdadeiro amor, aquele que nada exige, que basta
por si próprio, libertando a criatura ao invés de agrilhoá-la em nefastos apegos. Ao
término de vossas jornadas existenciais, almejamos a reconciliação de almas que se
feriram no passado e significativas mudanças na área afetiva em cada um dos
envolvidos.
- Como farei isso, Jesus? Como?! Sou uma pobre mulher, ignorante, dedico-me tão
somente aos labores domésticos...
- Depois do que presenciaste de anterior existência, persistes nessas bobagens? São
crenças sem fundamento, transmitidas e inccorporadas há gerações, preconceituosas,
injustas e cômodas para os que não desejam crescer! Mulher, homem, que importa? Sois
todos espíritos, com possibilidades e potencialidades infinitas! Tendes a capacidade de
superar os problemas, basta que abandoneis a condição de vítima, saindo da inércia dos
que bradam Senhor! Senhor!, de olhos fechados para a inspiração superior e o trabalho
de construção íntima, aguardando “milagres”.
- Mestre!
- Marta! Quando deixarás de crer no acaso, sabendo que leis perfeitas regem o Universo
e não há nele uma só folha que caia sem que meu Pai disto se inteire? O homem ora,
ainda que não saiba o que está fazendo, e não acredita nas respostas divinas?! Pede o
auxílio dos céus, mas permanece preso à terra qual verme, preferindo acreditar em algo
sobrenatural que o livrará dos problemas a saber da força interior que reside em cada
criatura, capacitando-a a conduzir a própria vida?!
- Jediadah?
Jesus riu:
- Jediadah, Marta! Como disseste? Encontro fortuito? Assim te referes a teu futuro
marido?
- Sou casada, Senhor!
- Eras. Teu esposo malbaratou preciosa oportunidade, preferindo as ilusões mundanas.
No momento jaz em rasa cova, vítima de ladrões da estrada. Sofrerás a perda, chorarás,
mas Jediadah será excelente companheiro no futuro, auxiliando-te na tarefa de
recuperação moral de Ester, ou devo dizer Esaú?
- Terei forças para tão difícil empreita, Senhor?
- Certamente! Ora, ligando-te a Deus. Pede com fé, mas deixa a Ele a atribuição de
analisar tuas preces, destinando o melhor para a tua evolução espiritual, o que nem
sempre coincidirá com tuas aspirações imediatistas... Vê o caso de Ester, por exemplo:
para ti, ideal sseria se eu a livrasse de seus males da matéria, tornando-a fisicamente
perfeita; para ela, espiritualmente falando, isso seria um desastre, privando-a de
benéficas experiências que a favorecerão no futuro. Tu enxergas o presente; eu, a
eternidade. Agora vai, minha irmã. Não te esqueças de reunir a família para o
Evangelho e a oração diários, pois assime stareis juntando forças e intenções,
potencializando o ato da prece.
Jediadah fora-se pela longa e poeirenta estrada e ela sentira um aperto no coração ao vê-
lo assenando alegremente para Jesiel. Voltaria dali a um mês, desta vez com um
carregamento real. Marta não nencionara a ninguém o ocorrido na longa entrevista com
Jesus, talvez por temer revelar coisas tão pessoais... Receava que não compreendessem
o Mestre...
Nos dias seguintes, sentia falta do novo amigo, de suas explicações sobre a Boa Nova.
Surpreendera-se com o conhecimento dele e mais surpresa ficara quando desembolsara
alguns pergaminhos contendo rústicas anotações dos ensinamentos de Jesus! Lembrava-
se de sua solicitude, da voz sonora, do riso franco, de sua presença tranqüila e amiga...
Vinte dias após o retorno, a notícia: ao preparar as terras para o plantio, agricultores
haviam encontrado, em rasa cova, o corpo do esposo, vitimizado por severas pauladas.
Depoimento
Um dia, séculos atrás, aquela conhecida como minha mãe levou-me a Jesus. Viajei
confortavelmente a seu lado, odiando-a por estar perfeita e bela enquanto eu,
impossibilitado de amá-la como homem, disforme e preso a um leito, no corpo de uma
meninazinha enferma e indefesa, bradava mudamente contra os céus que me haviam
colocado em tal situação. Chamavam-me Ester, mas eu era Esaú!
O profeta não me curou. Nos braços de minha mãe, escutei sua gentil negativa e odiei-
o! Estava inapelavelmente condenado ao encarceramento no corpo físico defeituoso.
Tinha eu, então, três anos... A existência pretérita como Esaú falava muito alto em
mim!
Ao abandonar o corpo que me fora abençoada prisão, sentia-me Ester, era Ester, a
filha muito amada de Marta e Jediadah. Finalmente havia me reconciliado com
Samara e comigo mesmo.
Ester
OS LADRÕES
“Os apóstolos disseram ao Senhor: ‘Aumenta em nós a fé!’ O Senhor respondeu: ‘Com
a fé que tendes, como um grão de mostarda, se dissésseis a esta amoreira: Arranca-te e
replanta-te no mar, ela vos obedeceria’.” (Lucas, cap. XVII; v. 5 e 6).
“No homem, a fé é o sentimento inato de seus destinos futuros; é a consciência que ele
tem das faculdades imensas depositadas em germen em seu íntimo, a princípio em
estado latente, e que lhe cumpre fazer com que desabrochem e cresçam pela ação de
sua vontade.” (O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XIX).
O sol, imensa bola de fogo suspensa acima das suarentas cabeças dos viajores,
assemelhava-se a ardente fornalha incrustada nos céus de límpido azul; nenhuma
nuvem passeava pelo anil, suavizando a implacável ardência do dia, e a terra ressequida
abria-se em profundos sucos e estéreis ranhuras, estendendo-se poeirenta e clara, unida
ao infinito no horizonte distante.
Os animais foram preparados com toda a rica carga e o bando abandonara o local.
Somente quatro seguiam viagem... Mediante rápido consenso, haviam decidido eliminar
o rapazinho: inútil, fraco, indefeso e, acima de tudo, um a menos na partilha!
Passadas as primeiras horas, a euforia provocada pela visão das riquezas fora gradual e
sorrateiramente substituída por desconfiança e desmedida ambição. Dispondo de víveres
e confortos a que não estavam acostumados, ainda assim suas existências
transformaram-se em contínuo pesadelo. Fascinados pela fortuna, nela pensavam noite e
dia, calculando e recalculando, na intimidade de seus pensamentos, o quinhão que
caberia a cada um. Refaziam as contas e, à medida que o tempo passava, mentalmente
eliminavam os companheiros de crime, repassando a si próprios o valor de suas partes.
A ambição falava alto, muito alto, e os valores morais e éticos eram insuficientes para
coibir os excessos, restituindo-lhes a razão. Cada um, confiante em suas potencialidades
e seguro de sua força e poder, decidira que prevaleceria a lei do mais forte e argusto,
vigiavam-se, privando-se do sono, temendo serem eliminados, deixando de se
alimentarem adequadamente por medo de a comida estar envenenada, testando áugu e o
vinho nos indefesos animais, apavorados com a possível perspectiva de traição e morte.
A situação deixara-os irritadiços e desequilibrados, exacerbando-lhes as más tendências
tornando a convivência penosíssima.
Certa manhã, um deles não aparecera para o costumeiro desjejum; encontraram-no entre
as cobertas empapadas de sangue, a jugular seccionada por certeiro golpe de afiado
punhal. Pelo precioso punho cravejado de rubis, reconheceram-no como um dos
constantes do tesouro saqueado... O assassino subtraira-o à carga no evidente intuito de
ocultar sua identidade... Quem seria o assassino? Limitaram-se a murmurar falsos
pesares sobre o morto, imediatamente calculando o repasse de seus haveres aos
remanescentes. O quinhão aumentara consideravelmente...
Restavam três.
Restavam dois.
Vigiavam-se qual selvagens animais, constantemente de sobreaviso, apavorados.
Evitavam adormecer, comer, beber, temerosos um do outro... Sorriam e conversavam,
simulando uma concórdia inexistente. Sem que percebessem, enlouqueciam, em
contínuo processo auto-obsessivo, agravado pela presença de entidades espirituais por
eles prejudicadas quando em vida, incllusive os companheiros mortos.
Assim fizeram.
Estamos em importante cidade da Judéia, sob o jugo romano. Por toda parte, as marcas
do progresso material advindo do conquistador! À beira-mar, a belíssima urbe
caracterizava-se pelo florescente comércio e os frutos da riqueza estendiam-se ás casas
luxuosas, verdadeiros palácios debruçados sobre as águas. Em afastado local, quase fora
dos limites urbanos, magnífico palacete, em meio a estupendos jardins, encantava os
olhos; dominava a região devido à sua elevada posição, possibilitando visualizar os
caminhos de acesso através de seus níveos e floridos terraços. Elevados muros
cercavam-no e bem armada guarda policiava-lhe os limites, coibindo a entrada de
estranhos. Tamanho zelo pela segurança seguramente sinalizaria o temor de seu
proprietário, o rico mercador Josué, no tocante à invasão de sua privacidade!
Satisfeita com o resultado, a menina recebeu as jóias que lhe adornariam as pequeninas
orelhas e os delgados pulsos, sorrindo das expressões de admiração das servas e da ama
que dela cuidara desde o nascimento, todas desmanchadas em elogios, principalmente a
robusta mulher:
- Minha menina, estás uma princesa, uma verdadeira princesa... Linda, linda...
Finalmente estava pronta para a tão esperada festa, a primeira de sua existência como
adulta, aquela que lhe facultaria a entrada na sociedade! O coraçãozinho romântico batia
acelerado, na expectativa das surpresas inerentes ao evento. Conheceria alguém, tinha
certeza, alguém que lhe arrebataria a alma, despertando desconhecidos sentimentos!
Esquecento a postura condizente com a riqueza dos trajes e a seriedade do momento,
enlaçou a velha e rotunda ama, conduzindo-a em forçada dança pelo amplo quarto, sob
os protestos da pobre criatura e os risos das demais servas.
- Assim me matas, menina! Deixa-me, passei da idade de bailar...
Sentia-se feliz, imensamente feliz! Amada pelo pai, idolatrada mesmo, todas as suas
vontades satisfeitas, jovem linda, saudável, herdeira de incalculável fortuna, mimada e
acarinhada por todos... Que mais poderia almejar?
Quinze anos atrás, chegara à cidade, levando nas cansadas alimárias insuspeitos
tesouros; quedara-se junto ao mercado, atraído por gritos e entusiásticos lances, cada
vez mais acalorados. Após garantir a segurança da preciosa carga, misturara-se ao
círculo de homens, interessado em descobrir a causa de tamanha excitação.
Sobre tablado recoberto com esgarçada seda, uma mulher assustada e trêmula fizera
com que seu coração disparasse. Jamais seus olhos haviam fitado criatura mais linda e
encantadora! Esguia, de mediana estatura, pele alva e perfeita, cabelos longos e louros e
enormes olhos azuis, a moça vestia leve seda e o diáfano tecido ressaltava as formas
jovens e esculturais. O leiloeiro, criatura maliciosa e atrevida, adiantava-se, estendendo
as mãos para a infeliz, intentando realçar as qualidades de sua mercadoria e estimular o
desejo dos compradores. O viajante observara-a recuar violentamente, fugindo do
odioso toque, as faces rubras de vergonha e indignação. Fitando-a parada sob os
cobiçosos olhares, apiedou-se dela. Seguramente vinha de longínquas terras, sendo na
época comum um rapto de belas jovens para o mercado de escravas. Aquela sinalizava
boa família, posses, refinada educação... Havia uma dor imensa nos olhos da mocinha,
imersos em lágrimas que ela corajosamente impedia de deslizar, mantendo a dignidade.
Naquele instante, amou-a, ssentindo que seria por toda a existência.
Resolvidos os problemas mais urgentes, volvera à hospedaria, ansioso para rever a linda
escrava. Tudo correra bem e o pressuroso proprietário dera contas, nos mínimos
detalhes, da tarefa encomendada; vencera a largos passos os lances das escadas de
madeira, anunciando sua entrada com breves batidas na rústica porta, ao tempo em que
a destrancava or fora. Adentrando os aposentos confortáveis e simples, sentira-se
perdido. Olhando-a, as emoções do primeiro encontro ressurgiram!
A jovem passara os dias em pranto, pelo estado dos olhos vermelhos e irritados.
Emagrecera muito, denunciando que se recusara a comer ou, pelo nervosismo, não
pudera fazê-lo de maneira satisfatória. Ainda assim, fraca e assustada, conseguira
arregimentar forças para manter digna e educada atitude perante aquele que a lei
considerava seu dono!
Sentimentos até então desconhecidos agitaram a alma do moço. Desde muito cedo,
batalhando exclusivamente pela sobrevivência, os relacionamentos haviam se resumido
ao sexo, deixando tão somente agradáveis e passageiras lembranças. As mulheres
constituíam proteção contra as autoridades... No entanto, agora... O que sentia... Seria
isso o amor? Essa vontade de amparar, cuidar, evitar sofrimento? O desejo de abraçar e
ser correspondido? Banido do lado da mãe desde muito cedo, amargara a solidão das
ruas até se transformar em jovem de bela aparência, não obstante a pobreza dos trajes;
bem cedo percebera que poderia tirar vantagem dos atributos físicos e não se pejara em
fazê-lo. Jamais se ligara a alguém, limitado às ligações carnais, evitando envolvimentos
mais profundos. Com extrema facilidade fugira aos compromissos, rompendo os frágeis
laços de afetividade, surpreso com os choros e súplicas, pois seu coração nada sentia por
nenhuma daquelas mulheres e não compreendia o motivo de tais emoções.
Durante a recepção, que para ele parecia arrastar-se interminável, sorria, mas a alma
abrigava sombrio desespero! Em meio aos grupos de convidados, a jovenzinha divertia-
se, encantando uns e outros com sua beleza e inteligência. Os olhos do pai não a
abandonavam, zelosamente cuidando do tesouro maior...
Precedido pela apavorada ama, precipitou-se na direção dos aposentos da filha. No leito,
transfigurada em convulsos acessos, debatia-se a frágil criatura. Tocando-lhe a fronte,
sentiu-a ardente! Queimava em febre! Aos brados, ordenou providenciassem um
médico, o melhor da cidade, enquanto gritava às atarantadas servas por compressas frias
para refrescar a ardência do corpo da enferma. Bem pressentira que algo funesto
ocorreria!
Moléstia de origem desconhecida! Prescreveu-se rigorosa observação e alguns
medicamentos, simples paliativos. Nos dias seguintes, a pele alva abria-se em
purulentas chagas de fétido odor e a jovenzinha jazia inconsciente sobre o leito!
Então, humilde serva aproximou-se, apiedada da dor daquele pai, a medo sugerindo que
o amo procurasse o Profeta, aquele que diziam Filho de Deus, o anunciado pelas
sagradas escrituras...
Anestesiado, ficou ouvindo-a discorrer sobre os feitos do tal Jesus, enquanto a mente
exacerbada classificava o Mestre como mais um charlatão a extorquir dinheiro dos
menos avisados, enganando o povo ignorante, levando-lhe os poucos e derradeiros bens.
Profeta?! Profeta algum resolveria o que os doutores davam como inevitável!
Dispensou-a com bruscos gestos e adentrou novamente o quarto da filha. Sobre a cama,
o corpo emagrecido e a face com o palor da morte iminente fizeram-no abandonar
preconceitos e julgamentos. Nada lhe restava, não havia mais portas onde bater, a não
ser recorrer ao tal Rabi, fosse Ele quem fosse... Arrepanhou os lençóis de linho,
envolvendo o corpinho em chagas, despencando pelas escadarias, bradando por uma
carruagem, procurando acomodá-la entre as luxuosas almofadas, sentindo-se um idiota,
correndo atrás de um feiticeiro, um mago, um revolucionário talvez, pois suas idéias, no
dizer da serva, afrontavam o poder dominante em defesa dos pequeninos. Mais essa!
Todavia, não lhe restava nenhuma esperança a mais! Quem sabe...
Com a filha aconchegada ao peito forte, surpreendeu-se. Ele que jamais orara, agora
instintivamente solicitava o auxílio de Alguém superior, intimamente ligado a uma
esfera espiritual! De onde viria essa fé desconhecida? Ao morrer a esposa, agarrara-se à
criança recém-nascida... Ela constituíra sua razão de continuar a viver! Agora, nada lhe
restaria... Ainda assim, dentro de si, pressentia algo a direcionar seus desesperados
passos...
Os olhos claros e compadecidos fitaram-no e viu-se de joelhos aos pés do estranho, sem
nada conseguir falar. Queria dizer-lhe de seu desespero, relatar as circunstâncias da
cruel doença, implorar, oferecer bens, tudo o que tinha, até sua vida, tudo em troca da
saúde da menina amada. Então, nada conseguindo pronunciar, simplesmente ergueu o
leve fardo, implorando, os olhos presos à impressionante figura do Mestre.
Jesus nada disse também. Ficou ali parado, fitando-os. Ao lado dEle, em alvos trajes de
translúcida tecitura, novamente a esposa... Estranha e subitamente, pareceu-lhe normal
sua presença ao lado do Rabi...
Tudo daria pela vida da filha, mas a quem oferecer? Ao falecer a esposa, embora
surpreso pela desgraça e sofrendo muito, superara, pensando na meninazinha...
Acompanhando a atroz doença da filha, vendo-a desfigurar-se em chagas e o sopro vital
esvair-se rápida e implacavelmente, iniciara um processo de involuntário retorno ao
passado, possibilitando o ressurgimento de emoções recalcadas há anos, libertando-as
do esquecimento forçado, única maneira por ele encontrada de superar os crimes
praticados quando jovem, resguardando sua integridade emocional, anestesiando a
consciência.
Piedoso sono arrebatou às torturas da expectativa do desenlace. Adormeceu em um dos
triclínios, o rosto lavado em prantos, o corpo agitado por incontroláveis tremores.
Os gritos acordaram-no. O sol penetrava pelas janelas... Falecera sua menina! Alguns
segundos foram necessários para que entendesse que neles havia júbilo. Correu para os
aposentos da doentinha, encontrando-a desperta, cercada pelas servas. Das chagas
restavam apenas marcas arroxeadas... Haviam-se cicatrizado! A febre deixara de
existir... Queixava-se de fome, reclamando trocassem as roupas do leito, repreendendo
docemente a ama que, atoleimada, tocava sem cessar suas faces, seus braços, suas
mãos...
A quem atribuir tal milagre? Relutava o orgulhoso pai em repassar a Jesus o mérito da
cura, preferindo atribui-la ao acaso. Quis encerrar o triste e controverso episódio, mas as
dúvidas persistiam, colocando-o contra a parede, tirando-lhe o sossego. Perdeu o sono,
debatendo-se na incerteza. O homem era surpreendente, sem dúvida, todavia não o vira
fazer as feridas sumirem! Mas se não fora Ele, quem mais poderia ter afastado a morte?
Estaria a esposa a seu lado realmente, ou fora fruto de sua imaginação, exacerbada pelo
medo e desespero?
Uma semana depois, ao constatar que não havia jeito, trilhou o mesmo caminho. Ia em
busca de Jesus! Saiu pela manhã, bem cedinho... Tiraria suas dúvidas! Agora estava
calmo,bem calmo, pois a filha se restabelecera e não havia motivos para ilusões. A luz
incerta do luar e fraca das andeias não lhe pregaria peças novamente! Sob a reveladora
claridade solar, o tal Profeta certamente se reduziria a um simples pescador ignorante e
rude...
Na praia, entre verdadeira multidão, encontrou-o. O sol iluminava-o por inteiro e a brisa
do mar, fresca e olorosa, agitava-lhe os cabelos. Ele sorria.
Para ser sincero consigo mesmo, reconheceu-o muito melhor à luz do dia... A emoção e
a dor certamente não haviam influenciado seu julgamento quanto a aparência do Rabi e
às incríveis sensações que Ele provocava... Mas dali a curar...
Aproximou-se mais uma vez, antes que lograsse conter-se, estava ajoelhado aos pés do
Mestre. E lá estava a esposa novamente, junto a Ele, explendorosa presença! Era dia!
Estaria ficando louco?!
Arrependei-vo? O remorso pesa sobre vossos dias e afasta o sono à noite? Eu assevero
que necessitais da transformação moral para que vossos pecados sejam perdoados.
Somente o remorso não basta, pois ele nada constrói sem a ação da vontade de mudar,
de reparar os danos do passado...
Quando a preleção terminou, envolveram-no e Ele percorria a extensa fila de
suplicantes, a cada um contemplando com sua doce e terna atenção. Humildemente, o
antigo ladrão postou-se à retaguarda , aguardando ansiosamente o encontro, temendo-o,
todavia. Vendo a vergonha e o remorso nos olhos do rico senhor, Jesus aconselhou:
- Erraste, meu irmão? E quem não erra sobre a Terra... No entanto, cada criatura dá de si
o melhor em cada momento de sua existência... Importa reconhecer o erro, perdoar-se e
seguir adiante... Assim, estarás possibilitando a ti mesmo novas oportunidades de
renovação interior. Amor ao próximo, o maior dos mandamentos, mas precisas aprender
a amar... As agressões decorrem da ausência do amor e são tantas sobre a face da Terra.
Por isso vim ensinar-vos a amar, de forma plena, incondicional...
Muitas vezes voltou à praia, anônimo entre a multidão de sofredores, ansiando por suas
palavras, bebendo da límpida fonte da Vida. DEle recebera a graça de conservar a filha
junto de si e, graça maior ainda, a oportunidade de renovação interior e quitação dos
desmandos do negro passado, tudo através das ações de amor. Caridade, Ele
recomendava! Jugo leve, leve e doce, imerso nas safirinas claridades do dever
cumprido. Pouco a pouco, fortalecia-se a fé que considerava inexistente em si...
Em uma das vezes, levou a filha. Havia narrado à mocinha os impressionantes fatos
ocorridos durante a insidiosa moléstia, preparando-a para o encontro com o Mestre.
Entre os estropiados e maltrapilhos, a figura jovem e linda, envolta em singelas e alvas
vestes, destacava-se. O pai, temeroso da reação da menina diante de tamanha misérias,
surpreendeu-se agradavelmente. A alma da filha abriu-se incondicionalmente para os
desvalidos, saindo-lhes ao encontro no intuito de auxiliá-los. Emocionado, observou-a
amparando os que não andavam, guiando cegos perdidos em meio às gentes, levantando
criancinhas e aconchegando-as ao colo, aproximando-as do Mestre. Não lhe reconheceu
repugnância frente às chagas jmalcheirosas e a tanta sujeira. As vestes brancas tisnaram-
se com as marcas de mão e o sangue das feridas enodou-as, mas ela nada notava,
inteiramente voltada para Jesus. Olhos súplices, agarrava-se ao pai , solicitando-lhe
autorização para amparar os pobrezinhos em maiores dificuldades, proporcionando-lhes,
pelo menos, o pão.
Foi assim que a magnífica e isolada casa abriu suas portas para os sofredores.
Até então, jamais conhecera o menino abandonado que havia dentro de si mesmo,
sequer aprendera a amá-lo, vendo-o sob a mesma ótica distorcida e preconceituosa do
mundo. Lembrou-se da mãe, agora com infinita piedade, sabendo aquilatar-lhe os
sofrimentos e carências. Reconhecia haver reagido contra a sociedade, agredindo-a na
mesma medida com que esta o penalizara, aderindo os conceitos que valorizavam bens
materiais somente. Para tanto, roubara e matara!
Onde já vira aquelas jovens feições de louros cabelos e verdes olhos? O moço guardava
enorme semelhança com alguém que conhecera no passado... Quem?
Com imensa solicitude, o rapaz tomou o corpo do homem nos braços fortes,
aproximando-se de Jesus, depondo a seus pés o fardo envolto em amplo e luxuoso
manto. Ajoelhou-se e seus olhos fitaram o rosto compenetrado e sereno do Mestre, em
muda súplica. Lentamente descobriu o corpo, revelando aos olhos de todos o corpo
chagado do genitor, aberto em pústulas de nauseante odor.
Jesus observou compadecido o mísero, enxergando aquilo que os outros não podiam
ver: marcas indeléveis no perispírito, denunciando graves delitos do passado próximo e
distante. Aquele homem há muitos prejudicara! Um deserto, um deserto e quatro
companheiros... Uma caravana chacinada... Um adolescente amedrontado, sacrificado
sem piedade em nome de uma partilha de preciosos bens... Mais duas mortes, de seus
asseclas... Encarou o filho e, nos olhos claros do rapaz, registrou imenso amor e
compaixão filiais.
A tempestade amainou como que por milagre e o céu abriu-se em azuladas nesgas; o sol
retornou, expulsando-os do apertado abrigo em demanda às areias da praia. Ansiosa, a
multidão retornava...
O doente guardou o leito por muitos e muitos dias; aos poucos, as chagas foram
fechando, primeiramente nas faces, permitindo que as feições se tornassem visíveis.
Rico e conceituado na cidade onde se instalara após o golpe que lhe facultara as imensas
riquezas, o antigo comparsa consorciara-se com moça de rica família, advindo-lhe do
matrimônio um único filho, em parto difícil e também fatal à jovem esposa. A morte
prematura da companheira fora rápida e facilmente aceita, pois o amor não motivara a
união. Quanto ao filhinho, criara-o com desvelos, orgulhando-se dos atributos físicos e
intelectuais da criança.
A visão que o pai oferecia sobre a cama, em pungente padecimento, afligia o amoroso
filho; a inúmeros meios recorrera, consultando médicos em desgastantes sucessão, todos
eles afirmando ignorar as origens de tal enfermidade. Certo dia, quando já não havia a
quem mais recorrer, ouvira falar em Jesus e suas curas milagrosas. Sua alma reacendera
plena de esperança, e ele resolvera encontrar-se com o surpreendente Rabi. A viagem
fora penosa, pois o doente achava-se em péssimas condições, queixando-se
continuamente de dores, e extremamente irascível. O pobre apodrecia em vida, em
morte dolorosa e demorada, e a paciência certamente não constituía virtude sua!
Com o imenso carinho que lhe caracterizava o trato com o pai, o moço percorrera as
estradas, ignorando os muitos ataques verbais decorrentes da revolta paterna. Ao
chegarem à praia naquela tarde, a tempestade estava prestes a desabar, prevendo-se
avassaladora fúria. Raios riscavam os céus escurecidos e trovões estrondeavam; grossos
pingos de água precipitavam-se. Tomando o pai nos braços, agora em abençoada
inconsciência, demandara em busca do Mestre, nele colocando suas derradeiras
esperanças.
Ao contrário do que ouvira falar, as feridas não sumiram imediatamente; mesmo assim,
sabia que houvera a cura! A insólita recomendação do Mestre, colocando-os sob
responsabilidade de digno senhor presente na ocasião, causara-lhe estranheza e
vergonha, pois receava importunar o inesperado anfitrião. Rapidamente se acalmara,
contudo, observando o tratamento fraterno e afetuoso a eles dispensado por seu
benfeitor. A saúde do pai restabelecia-se aos poucos, para seu imenso júbilo,
acompanhada de uma transformação moral que até então julgara impossível, mercê das
edificantes e pacientes conversas do nobre senhor e de sua encantadora filha com o
enfermo, sempre entretecidas com profundos ensinamentos colhidos junto a Jesus. Os
longos anos de sofrimento haviam lavrado o terreno árido daquele espírito embrutecido,
preparando-o para a semeadura, e esta estava sendo realizada no momento certo:
quando se cansara de amargar dores e rejeição; quando o Mestre se impusera pela
veracidade de suas palavras e ações; quando lera nos olhos daqueles que julgava
desconhecidos a verdadeira caridade cristã...
Menos assoberbado com a saúde do pai, o moço permitiu-o atentar nas qualidades da
jovem que os hospedava. Ao lado da extrema beleza física, descobriu-lhe os excelsos
atributos das alma. A atração foi mútua! Breve trocavam confidências, partilhavam
idéias e interesses, identificando gostos e ideais. Repassando ao jovem hóspede as lições
da Boa Nova, a moça proporcionava ao novel amigo, também atento ouvinte, a
oportunidade de conhecer aquele que possibilitava profundas e ternas modificações em
suas existências.
Observando os olhares e gestos de carinho dos dois jovens, o pai da moça questionava-
se, insatisfeito com o involvimento, reprovando e rechaçando a provável união. Filho de
ladrão e assassino! Como colocar a filhinha, tão meiga e amorosa, em tal família?!
Após noites de insônia, mente febril e cansado corpo, a verdade chegou-lhe de forma
atordoante: e o que era ele, afinal?! Também praticara os desmandos que culminaram
em mortes, muito embora não houvesse pessoalmente empunhado a arma assassina
contra seus companheiros! Calara! Omitira-se! Assim fora, a ponto de a lembrança dos
infelizes privados de suas vidas quando em inocente sono não abandonar, povoando-lhe
as noites com sonhos estresssantes e remorsos contínuos... Com Jesus aprendera a
conviver melhor com a culpa, transformando-a em produtiva ação em prol do bem...
Nem por isso deixara de ser o assassino e o ladrão do pretérito! E a criatura doce e
pura, de nobres sentimentos, não era também filha de um réprobo do passado? E ele
mesmo não se dispusera a salutar mudança, em redentores rumos, principalmente após o
contacto com o sereno Rabi?
As mensagens da Boa Nova de Jesus jamais lhe pareceram tão profundas e verdadeiras!
Um novo homem adentrou os aposentos do convalescente naquela manhã. Sentimentos
fraternos impulsionavam-no finalmente, pois até então muito se esforçara para agir
como um discípulo do Mestre... A aceitação do próximo e o amor incondicional já não
lhe soavam tão distantes! Aprendera a não julgar, a aceitar e amparar sem nada
esperar... Voltara para si mesmo os inquisitivos olhos e entendera a gravidade do
julgamento e suas conseqüências; afiado punhal de dois gumes, atingia imvariavelmente
o censor e o censurado, unindo-os em ciranda de intranqüilidade, prenunciando futuros
reajustes. Além do mais, finalmente conseguia entender que, ao severamente julgar, a
criatura volta contra si mesmo os mesmos parâmetros utilizados em relação ao outro...
Novos tempos iniciaram-se para as famílias reunidas. Anos atrás, dois haviam se
afastado, premidos pela necessidade de sobrevivência, reconstruindo suas existências,
levando cada um em suas bagagens pesados débitos. Reuniram-se, através de Jesus e do
amor de seus filhos, em redentor recomeço, inseridos em salutares atividades de amparo
aos deserdados, nelas encontrando alívio para os remorsos. Assim, ambos construiram
magníficas oportunidades de reajuste. Nos netos, embora desconhecessem, a
Espiritualidade Maior enviou-lhes algumas das vítimas do passado, propiciando novas
aprendizagens e o exercício do amor e do perdão sob as claridades da doutrina de Jesus.
As reencarnações futuras foram difíceis para os dois antigos comparsas de crime, porém
jamais destituídas de resignação quanto aos naturais impositivos da lei de ação e reação.
Dedicaram-se à difusão da Boa Nova, exemplificando as verdades e vivenciando-as,
superando as dificuldades com coragem e fé. Estiveram entre os mártires que desceram
aos circos romanos, em cânticos de louvor, alheios ao ensurdecedor alarido da turba em
sombras, e ressurgiram redimidos, levados por amorosas mãos de sublimes entidades
espirituais enquanto seus corpos serviam de repasto a pobres feras famélicas, em
macabro banquete ovacionado por insana multidão.
Então, o pensamento conduziu-os às mesmas praias de outrora, aquelas por onde Jesus
caminhava, seguido por aqueles que o buscava. O mesmo sol iluminava as alvas areias,
o mar aproximava-se em brancas espumas. Um dia Jesus ali estivera, molhando seus pés
naquelas águas... Ali Ele modificara suas vidas, ensinando-lhes o que era Amar...
Muitas e muitas vezes retornariam à Terra, sabiam-no, pois muitos ainda não conheciam
o Mestre e necessitavam de quem os orientasse. Além de tudo, ambos ainda tinham
muito a evoluir, sendo imprenscindíveis as experiências em corpo físico. Olhos úmidos,
os dois antigos comparsas de crime costumavam pensar especialmente naqueles que
haviam aplaudido as mortes dos cristãos nos circos romanos... Teriam que ser
esclarecidos e amparados, como um dia Jesus fizera por eles!
Depoimento
Benditos aqueles que nos são colocados no caminho com o providencial intuito de
retirar seculares vendas de nossos olhos, revelando verdades que iluminam o ser!
Abençoados aqueles aos quais é dada a oportunidade de lançar luzes sobre a escuridão
da descrença, aqueles que têm fé suficiente para tomar o arado e lavrar os vastos e
incultos espaços das almas, transformando-os em campos aptos ao florescimento da
Boa Nova!
Ainda imperfeito, orgulhoso, egoísta, vaidoso, ainda assim e uma vez mais julgávamos
deter o direito de apontar no outro aquilo camuflado em nós, máscara afivelada ao
corpo ilusória visão de nós mesmos. Os ensinamentos de Jesus, contudo, acabaram por
chamar-nos à razão, a ponto de aceitarmos o antigo companheiro de falcatruas e
assassinatos como irmãos e ao filho deste, como companheiro estimado de nossa jovem
filha. Certamente não foi nada fácil, requerendo perseverança e humildade, tolerância
e resignação!
“A humildade é virtude muito esquecida entre vós... Entretanto, sem humildade, podeis
ser caridosos com o vosso próximo? Oh! Não, pois que este sentimento nivela os
homens, dizendo-lhes que todos são irmãos, que se devem auxiliar mutuamente, e os
induz ao bem... Sem a humildade, apenas vos adornais de virtudes que não possuis...”
(O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. VII).
O dia surgira há pouco. Céu azul, brisas suaves agitando as folhas dos sicômoros, flores
singelas derramando-se pelos caminhos, espargindo perfumes sutis no ar puro da clara e
ensolarada manhã.
***
Rico senhor de terras fora aquela que presentemente padecia as inomináveis agruras da
terrível doença. Nobre, orgulhoso e prepotente!. Em suas mãos, as vidas de muitos, com
poder de decisão sobre os destinos de humildes e abastados. Obedeciam-lhe ele
cegamente, sequer ousando pensar em questioná-lo. Com a mesma mão férrea dirigia os
destinos da família, envaidecido dos filhos belos e inteligentes, da esposa escolhida a
dedo dentre as filhas das melhores famílias das cercanias, após haver refutado com
desdém os partidos da vila onde residia. Opulento dote e a garantia de ilustre linhagem
haviam pesado na inflexível e rigorosa seleção. Educada, submissa, gentil... Alegrara-se
com a beleza da jovem consorte, avaliando-a como costumava fazer em relação aos
cavalos puro-sangue que albergava em seus estábulos. Os filhos vieram sem que o
sentimento de amor acompanhasse o ato conjugal. Atraente, dotado de marcante
personalidade e intenso vigor, continuava a buscar a companhia de mulheres,
principalmente as profissionais, pois não exigiam atenção e amor, considerando-as
cômodas, descartáveis discretas e facilmente quando delas se cansava. Na casa luxuosa,
a esposa triste e bela aguardava-o em vão. Jamais um carinho, uma palavra de ternura...
Os compromissos sociais eram encarados com severa disciplina. Enfim, um homem que
exigia o cumprimento de exterioridade, desdenhoso de sentimentos e emoções mais
nobres, ardoroso adepto das paixões e do egoísmo, aquartelado em inexpugnável
fortaleza íntima.
Naquela manhã, como já o fizera em tantas outras, saíra bem cedo para percorrer as
extensas propriedades. Habituara-se a conferir pessoalmente o desempenho dos
camponeses e a finalização da farta colheita sempre exigira de sua parte acurada
vigilância, para que os preciosos grãos não se perdessem no trajeto dos enormes
celeiros. Satisfeito, observara a faina incessante e os vastos campos a se perderem no
horizonte, ondulando ao vento, dourados e férteis. A cabeça calculava rapidamente o
montante dos lucros e os lábios sorriam na antecipação da fortuna que abarrotaria ainda
mais seus cofres.
Frente a frente com a jovem, encarando o ingênuo olhar, sentira-se encabulado. Poderia
ser sua filha, posi mal ssaíra da infância! Levantando-se, a mocinha deixara cair as tiras
de vime, enquanto saudava respeitosamente o visitante, percebendo-lhe instintivamente
a importância.
- Menina, poderias dar-me um pouco de água!
- Certamente, senhor! O líquido cristalino e frio, servido em rústico e asseado púcaro,
acalamara-lhe a garganta subitamente ardente e ressequida. Então, perguntara sobre os
demais ocupantes da casinha.
- Há pouco tempo aqui estamos, senhor... Tomamos conta deste casebre
temporariamente, enquanto meu avô batalha recursos para seguirmos adiante... Somos
somente os dois, pois meus pais faleceram, vitimados por uma epidemia de febre, há
mais de dez anos. Enquanto não surgir um trabalho melhor, ficaremos aqui...
Depois, olhando para os orgulhosos olhos do rico homem, com firmeza complementara:
- Com todo o respeito, senhor, não criei minha netinha para ilícitas relações, que muito a
degradariam como mulher.
Educadamente, agradecera pela injustificada deferência, bem claro deixando que não
mudaria de opinião. Quanto à mocinha, limitara-se a abaixar a cabeça, visivelmente
envergonhada com as propostas indecorosas do elegante senhor.
Com que facilidade a tomara nos braços, indiferente a seus gritos, frustrando-lhe os
desesperados esforços para se libertar e acudir o avozinho que se esvaía em sangue
sobre o chão! Em minutos, perdera-se a veloz montaria pelos meandros da deserta
estrada, conduzida por forte e firme mão até isolado e distante local, ond se erguia, em
meio à luxuriante vegetação, pequenina casa, construída com luxo e zelo. Ali o severo
chefe de família, o homem rigoroso e controlador escondia aos olhos do mundo suas
ilícitas conquistas amorosas, em meio às tapeçarias preciosas que revestiam o piso e às
sedas que forravam as paredes. Espelhos e estatuetas em sugestivas poses, móveis
delicados e caríssimos completavam a decoração. Sobre as mesinhas, objetos variados,
caixas com doces, enfim, um verdadeiro arsenal de frivolidades para agradar à
sensibilidade feminina.
Na realidade, o arrogante senhor jamais havia acalentado a intenção de montar casa para
a pobre menina em qualquer aldeia utilizando a história com a intenção de convencer o
avô, evitando maiores conflitos. Desde o início, pretendera levá-la para o costumeiro
ninho de amor! Acostumado à rendição das mulheres, acreditava que ela acabaria por
aceitá-lo! Desconhecendo as sutilezas do amor, não sabia interpretar a seriedade dos
sentimentos que a jovenzinha despertara em seu empedernido coração. Pobre e tolo
cego!
Naquela manhã, a porta finalmente se abrira e o homem adentrara a sala. Nas mãos,
perfumado ramo de flores; nos lábios, conquistador sorriso.
Aliviada, pois chegara a pensar que a esqueceria ali, trancafiada para sempre, vítima da
fome e da sede quando os alimentos e a água acabassem, arrojara-se-lhe aos pés,
suplicando:
- Senhor, permiti que eu volte para junto de meu avozinho! Certamente precisa de mim,
está ferido... Quem lhe fará os curativos? Bem viu sangue... Pobrezinho...
Como lhe contar a verdade? O fiel servo que lhe acobertara as aventuras encarregando-
se de sumir com o cadáver do ancião, atirando-o em profunda vala na floresta,
sepultando para sempre a prova do crime.
À prisioneira, a presença do algoz constituía doloroso transe; sentia repulsa pelo omem
elegante e belo que procurava agradá-la de todas as formas. Odiava-o! Os vestidos, as
jóias, os mimos, tudo ficara relegado ao abandono, nada significando. Estando ele
ausente, lavava as roupas pobres, secando-as e voltando a envergá-las, repudiando o
luxo com o qual ele pretendia seduzi-la. Pelas janelas gradeadas, vislumbrava o
esplendor dos dias ensolarados, o brilho das noites estreladas... Qual pássaro em
rutilante gaiola, ansiava pela liberdade dos campos, pela amplidão dos céus. Lembrava-
se do noivo, de seu amor respeitoso e destituído de sofrimento, de sua svestes simples,
de suas mãos calosas e ternas... Os sonhos de um lar repleto de crianças, muitas
crianças, nunca a abandonavam.
Ele não conseguia entender... Por que não a havia conquistado:? Tudo lhe dera:
vestidos, jóias, perfumes, bálsamos caríssimos, dignos de uma rainha. Somente não a
pudera deixar livre, por culpa dela mesma, pois certamente fugiria!
***
O Mestre sorriu. A expiação havia se completado, não como exigência cruel da Lei,
mas como mecanismo de reequilíbrio imposto pelo próprio espírito endividado e cheio
de arrependimento.
Um a um Ele tocou, com ternas palavras de consolo e esperança. Dos leprosos que o
buscaram naquele dia à beira da praia, somente a mulher alcançou a cura física. O mal
foi abandonando-a gradativamente, as chagas secaram e a pele refez-se. Na alma, a paz
finalmente. Mais de uma vez, os olhos de Jesus lograram localizá-la na multidão,
escutando-lhe as palavras de vida eterna, auxiliando os que estavam em precárias
condições, seguindo-o discretamente pelos caminhos, em anônima tarefa de servir aos
outros e a sim mesma, recolhendo preciosas lições, esclarecimentos que seriam
repassados, no futuro, para outras pessoas que não o haviam conhecido. As vestes sujas
e rotas haviam sido substituídas por trajes simples e limpos, os olhos brilhavam,
extravasando alegria e esperança.
Depoimento
Humildade, meus irmãos humildade... Aquele que foi e sempre será o maior lavou-me
os pés... A mim, indigno de ajoelhar diante dEle! E o fez com tanto amor, com tamanho
desprendimento, com tal naturalidade...
Invariavelmente, ao encerrar a singela preleção, o apóstolo chorava e nós todos o
acompanhávamos, tamanho a nossa emoção...
“Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas sim
aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos Céus. Muitos me dirão naquele
dia:’Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizamos e em teu nome que
expulsamos demônios e que em teu nome fizemos muitos milagres?” Então eu lhes
declarei: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade.”
(Mateus, cap. VII, v. 21 a 23).
- Que tens haver com isto, peregrino? Acaso deténs autoridade para julgar nossos atos?
Convém saibas que temos a devida permissão!
- E quem vos deu tal autorização? Por acaso o Deus de Abraão permitiu que seu
domínio sirva a essa manifestação de ganância?
- Quem é esse homem, esse louco que se atreve a lançar ao chão as bancas, libertando
os animais destinados ao sacrifício, agredindo-nos com tamanha falta de cerimônia,
humilhando-nos perante o poviléu? Que poderemos esperar se nos submetermos a
tamanha vilania?!
Improopérios e acusações brotavam daquelas bocas que se propunham à consagração ao
serviço de Deus.
O retorno ao lar foi imerso em cogitações. Haviam lhe dito que o audacioso homem,
ostensivamente chamado de Rabi pelo povo, tornara-se o centro de um movimento que
ameaçava a paz e o equilíbrio das classes hebraicas dominantes. Não lhes bastavam os
problemas que enfrentavam, tendo que se submeterem ao jugo romano, vendo seus
odiados dignitários mandando e desmandando, vigiando-os constantemente! E agora
surgia, dentre os de sua própria raça, um proponente ao lugar de filho de Deus, o
Messias Salvador! Era demais!
Vestia-se o pretenso Rabi como os judeus, sem luxos em suas vestes, mas o tecido era
de boa qualidade e a limpeza evidente. Perspicaz, extremamente observador, não pudera
deixar de notar que, embora os bruscos e aparentemente agressivos gestos, algo
destoava do costumeiro perfil daquele que se encoleriza. Os olhos! Sim! Havia ternura e
compaixão neles, mesmo em meio ao tumulto gerado por sua impetuosa e decidida
ação! Olhava-os como se os compreendesse, como o pai que ama mas é obrigado a
corrigir o filho que desatende a apelos mais suaves e menos constringentes! Com que
tranqüilidade se afastara! Dera o incidente por encerrado, quando eles permaneceram
em cólera contra sua pessoa e contra si mesmos até, buscando um culpado, um bode
espiatório para a humilhante situação! Exausto, procurou dourar a derrota, mentalmente
acrescentando que o comércio seria restabelecido sem maiores prejuízos no dia
seguinte; aumentariam a proteção e os guardas prenderiam o cretino caso aparecesse
para causar confusão; os preços subiriam, pois dispunham da adequada desculpa da
perda de muitos dos animais, não havendo tempo para a preparação religiosa de outros...
Assim, logicamente, os restantes custariam mais!
Sorriu, apaziguando a mente febricitante com a desforra financeira. Para tudo havia um
jeito, bastando utilizar a inteligência! Afinal, a eles cabia direcionar o povo, mantê-lo
sob ferrenha ordem, rédea curta e apertada, pois não convinha que pensasse. Afinal, não
dispunha de capacidade para tanto! A eles, sim, fora outorgado o poder de mando, Deus
assim o quisera!
***
Desciam todos o suave outeiro que terminava nas férteis margens do rio. Flores de
lótus, cultivadas em meio a sagrados rituais, emergiam das águas. O deus movimentava-
se no céu de límpido azul, prenunciando mais um dia claro e repleto de atividades.
Aquela seria um cerimônia como muitas outras... Aborrecia-o ter que acolher no templo
tantas pessoas, ainda que representasse o que de melhor havia na corte egípcia.
Enfadado, aguardava o início do ritual, brincando com o medalhão que lhe adornava o
peito. Exercícios ao ar livre e alimentação adequada garantiam-lhe o invejável porte;
estudos e inteligências, a conversa interessante e culta. Escutava e respondia com
facilidade, sugeria sem envolvimento emocional, utilizava as intuições com
surpreendente perspicácia, suscitando admiração e inveja, respeito e temor. Que mais
poderia desejar?
Um novo grupo adentrava o imenso salão decorado com pinturas em ouro e azul e ele
constatava serem estranhos. Jamais os vira anteriormente. Que fariam ali? Tratar-se-ia
de pessoas importantes certamente, caso contrário não teriam acesso à selecionada
platéia. Sua atenção foi desviada para a jovem de estonteante beleza. Estranho calor
aquecia-lhe as veias, de natural gélidas e indiferentes, sentia que o suor molhava as
palmas de suas fortes e bronzeadas mãos... Era muito bela, de uma beleza incomum aos
egípcios, talvez pertencesse a outro povo... O primeiro impulso foi de repúdio,
entendendo tratar-se de mais uma da raça daquele intruso a quem o faraó concedera
excessivo poder: José, o hebreu. Desde que o odioso chanceler, o predileto do soberano,
resolvera trazer seu povo ao Egito, impondo a nação suas desprezíveis presenças,
apareciam em locais e eventos comumente vedados a suas figuras estrangeiras,
verdadeira afronta!
Desviava o olhar sentindo-se injuriado. Como que atraído por poderoso ímã, este
insistia em volver à jovem, detendo-se em seu encantador perfil. Era jovem, muito
jovem, de natural beleza, desataviada dos cosméticos que as egípcias adoravam;
pessoalmente, agradava-se da maquiagem usada pelas conterrâneas, também apreciando
seu vestir luxuoso e exótico. A moça, todavia, transmitia o frescor das manhãs! Trajava
branco, singelas e encantadoras vestes que não rivalizavam com a cor alva de sua pele,
com os imensos e azuis olhos e muito menos com os claros cabelos da cor do trigo que
balouçava maduro ao sabor das cálidas brisas do Egito, fonte de alimento e riqueza.
Nenhuma jóia preciosa sobressaía, a não ser pequenino colar de transparentes gemas no
delgado pescoço e, nos cabelos fartos e longos, suavemente encaracolados, presilhas
com as mesmas pedras, afastando-os do rosto perfeito. Belíssima!
***
Como que por encanto, o judeu despertou em seu leito na cidade de Jerusalém. Que
sonho fora aquele?! Recordava cada detalhe e ansiava por sua continuidade, sentindo
uma saudade pungente dilacerar-lhe a alma, uma sensação de perda imensa. A figura da
jovem não lhe saía da mente e parecia de tal forma real que, ao sair da casa confortável
e silenciosa, poderia encontrá-la na primeira esquina... Loucura!
- Onde eestavas? Nunca deixas de cumprir tuas obrigações junto ao templo... Pela
primeira vez em muitos anos, deixaste de subir os degraus ao amanhecer, revereciando
o Deus de Abraão antes de todos! Por acaso adoeceste?
- Queremos que organizes uma busca e o localizes! Não será difícil, pois chama a
atenção... Onde vires um ajuntamento de pessoas, lá estará Ele certamente... Sonda-o,
observa-lhe as atitudes e atos, perquire seus hábitos de vida! Talvez tenhamos que nos
livrar dEle... Com certeza teremos de fazê-lo, para nossso bem e das sagradas escrituras!
Aproxima-te como se fosses mais um a buscá-lo e traze a verdade! Ontem foi a gota
d’água! Precisamos acautelar-nos! E tu, como conhecedor das escrituras e digno
membro de uma das mais importantes famílias judaicas, deves ajudar-nos. Temos que
nos prevenir! Imagine se, empolgado com o sucesso de feito, reunir homens do povo,
atacando-nos! Bastam as preocupações com os malditos romanos! Deles estamos
impossibilitados de livrar-nos... Quanto ao profeta, a coisa é bem diferente! Contudo,é
imprescindível agir com astúcia para não gerar descontentamento...
- Assim será feito! Tranqüilizai-vos! Amanhã irei em busca do tal Rabi e veremos quem
pode mais...
- Um conselho, meu amigo! Paramenta-te com mais simplicidade, para não o alertares.
E acrescentou:
Meneando a cabeça, o jovem judeu perdeu-se na escura noite, atingindo o lar às pressas,
presa de constrangedora ansiedade. Recusando a costumeira ceia, atingiu os aposentos
de dormir, lançando ao chão os pesados trajes, deixando-se cair sobre o leito em ansiosa
expectativa. Suave torpor envolveu-o ele mergulhou no sonho da noite anterior,
retormando-o exatamente no ponto em que o abandonara ao despertar pela manhã, com
uma sensação de incredulidade a envolvê-lo... Como aquilo poderia estar acontecendo?
***
O edifício deserto e silencioso até então lhe agradaram; ansiava sempre pela solidão que
tornava possível adentrar o fascinante universo do conhecimento sem que nada
distraísse sua concentração. Anoitecia e sentia-se só pela primeira vez! Perambulava
pelos corredores vazios, pelos amplos salões, observando as altas colunas, as pinturas ,
os luxuosos adornos... Onde estaria a jovem? Quem seria e que sonhos acalentariam tão
linda criatura?
Nos dias seguintes, procurava esquecê-la; o instinto dizia-lhe que o relacionamento seria
prejudicial a seus interesses, distraindo sua atenção dos reais objetivos, colocando-o em
perigosa situação; tratava-se de uma judia, pertencente ao povo apenas tolerado por
imposição do mandatário despótico e revestido de imensa autoridade, a quem o faraó
delegara poder muito semelhante e quiçá superior ao seu. Os egípcios odiavam José,
muito embora ele houvesse feito do Egito uma potência! Mas a que preço! O povo
faminto, enquanto os enormes armazéns regurgitavam de grãos, avaramente negociados
a peso de ouro e pedras preciosas com as nações vizinhas, também vitimadas pelas
longas secas! E que dizer da classe nobre, sob o jugo de sua obstinada vontade e de seu
flamejante e tirânico orgulho? Ele humilhava as famílias ilustres, ridicularizando-as;
trouxera toda sua gente e nada lhe faltava, enquanto os egípcios padeciam fome e
vergonha aviltantes! Melhor ficar longe da bela criatura, indigna de seu interesse! Além
do mais, conhecia muito bem a força do pulso do chanceler! Protegia os de sua raça
como uma leoa a seus filhotes!
As noites tornavam-se longas e insones. Controlava-se para não tornar à encantadora
vivenda às margens do Nilo. Inútil! Os exacerbados sentidos percebiam os odores das
longínquas trepadeiras que adornavam o terraço da estonteante judiazinha... A visão da
moça adormecida não lhe abandonava a mente... Decidia-se: uma vez, somente uma, e
renunciaria à avassaladora paixão, afastando-se para sempre!
Imensa lua repetia-se no céu. A noite cálida envolvia-o novamente e ele mergulhava na
viagem, ansiando pela chegada. Não mais necessitava da perquirente intuição para
localizar a casa imersa em enluarada atmosfera; os remos impulsionavam velozmente a
embarcação. As pedras levavam-no ao mesmo terraço. As portas estavam fechadas e ele
forçava-as com cautela, evitando ruídos. Abriam-se mansamente... Vazio o quarto,
guardando resquícios do perfume da amada!
Mais uma vez a barca descia o rio, protegida pelo véu da noturna escuridão. As cortinas
flutuavam ao vento e as flores desprendiam seu aroma na noite quente e úmida; enormes
formações plúmbeas anunciavam chuva e esparsos relâmpagos clareavam os céus. Não
se impressionava, contudo, com a iminente tormenta, pois uma bem maior rugia sua
alma...
A vela tresmeluzia no aposento imerso em suave claridade. Percorria o espaço até ela
com extrema cautela, desviando dos móveis. Retirava das vestes pequenino frasco
contendo grânulos de cor azulada, derramando seu conteúdo sobre a chama, enquanto
protegia o rosto com o manto, afastando-se rapidamente rumo ao terraço, onde
permaneceria por alguns minutos. No interior do quarto, a fumaça espalhava-se,
envolvendo-a a adormecida jovem, inquietando-a; ela debilmente gemia, mas
continuava a dormir. Aos poucos, as brumas eram varridas pelas brisas da noite e tudo
volvia ao normal.
Naquela manhã, mal o sol raiara, fora surpreendido com a chegada dos dois homens ao
templo, em atitude muito contrária à comumente adotada. Notícias inesperadas!
- Que fazeis aqui? Esquecestes? Não desejo ser procurado aqui... Eu estabeleço o
contacto!
- Senhor, a casa está um entra e sai incrível. O noivo, o tal judeu que deve desposar
aquela beleza, foi chamado e, pos sua expressão ao sair, as coisas não andam bem...
Estava furioso, esmurrando os ares, desesperado mesmo. As mulheres choram e os
homens vociferam! Fizemos amizade com um dos servos, não foi fácil... Ele abriu o
bico e contou uma história estranha... Avaliai, meu senhor, que a moça estava em vias
de contrair matrimônio com o pretendente de seu povo... E aparece prenha... Isso
mesmo! Esperando criança! O primeiro suspeito de tal façanha foi certamente o noivo,
muito embora a mocinha tenha jurado pureza. Instado a comparecer com urgência à
casa da noiva, negou qualquer comprometimento, mostrando-se ultrajado com o
ocorrido, repudiando com veemência a jovem. Ela protesta inocência... Podeis
imaginar?!
Um filho! Certamente que a jovem não saberia de nada, pois tomara o cuidado de sedá-
la, noite após noite, com os mágicos grânulos adicionados à chama da vela. Não
imaginara que pudesse acontecer, mas aquela era a hora exata de bater em retirada
discretamente, esquecendo-a.
Mergulhava no estudo com desesperado afinco. Precisava olvidar, sepultar o que lhe
agitava o peito! Coincidentemente, o ancião responsável pelo templo adoecia, vindo a
falecer em poucos dias. Era necessário um sucessor e, conquanto jovem, recaíam sobre
ele as preferências, principalmente por suas qualidades profetizadoras, tão ao agrado de
todos na época.
Que dizia a lei? Era extremamente rigorosa com as mulheres e sua moral, dando ao
homem que se sentisse injuriado plenos direitos e poderes sobre a ofensora, inclusive o
de condená-la à morte, se julgasse que isto restabeleceria sua honra.
O pai preferia expulsá-la de casa. Fora piedoso, considerava ele. Certamente não, pois a
permanência nas ruas para uma moça como ela equivaleria a mil mortes em vida,
tamanhos os sofrimentos que a aguardariam.
- Menina, que fazes nas ruas? Vejo que vens de família rica... Tuas vestes são caras, as
mãos jamais enfrentaram pesados serviços...
- Esperas um filho? Não adianta negar, menina! Crescer-te-á a barriga cada vez mais, é
inútil mentir! Vamos, tenho um lugarzinho simples, mas limpo... Lá poderás descansar e
comer algo. Vê! Os ricos lançam no lixo comida muito boa, graças aos deuses, e
poderemos fartar-nos! Vamos lá...
- Analisa o meu caso, por exemplo. Apaixonei-me por rico senhor e cedi a seus apelos.
Enrolou-me com promessas vãs e acabei nas ruas, também escorraçada por meu pai e
irmãos. Mas não esperava um filho! Prostituí-me para sobreviver, até que deixei a
beleza e a juventude para trás e me restaram somente as vielas... Peço esmolas, rebusco
o lixo, sobrevivo... Mas tu, tu és uma beleza, e os homens não te darão sossego! Assim
que te livrares da barriga, prepara-te. Não basta a vontade de fugir à vida que te parece
aviltante! És mulher e frágil, acabarás cedendo... Não há saída! Poderás ganhar muito
dinheiro se fores esperta... Se quiseres, poderei aconselhar-te, intermediar vantajosos
encontros... Seguindo minhas instruções, sairemos deste buraco e levaremos vida de
rico, minha menina!
- Juras que és inocente, que não te lembras de nada... Só se estavas dormindo... Tens
recordação de algum sonho estranho?
- ?Sim, agora que a senhora menciona, um sonho que se repetia sempre e sempre... Um
homem alto e belo, um egípcio certamente, por sua pele morena e seus olhos negros e
profundos. Dizia-me doces palavras de amor, que soavam distantes e imersas em
envolvente névoa. Ainda sinto o toque de suas mãos, devasssando-me o corpo,
mergulhando-me em intermináveis ondas de prazer... Mas é um sonho, senhora, um
sonho perturbador que não se repetiu desde que esta tragédia transtornou meus dias!
- Não sei, senhora. Às vezes, julgo que sim, parece-me tê-lo visto, mas a lembrança é
falha, imprecisa... Estarei louca?
A velha ria nervosamente, enquanto percorria, com passos largos e ansiosos, o aposento
da tapera onde se abrigavam.
- E, por acaso, teu quarto dava para o rio}? Seria fácil chegar até ele?
- Sim, há uma escada formada por pedras... Vai da margem do rio ao terraço... Mas eu
saberia! Teria consciência se alguém me seduzisse, não vos parece, senhora? Eu
acordaria!
- A menos que o homem te sedasse! Ah, ah! Tens que recordar de onde o conheces, pois
poderei procurá-lo e pedir-lhe contas da vilania que cometeu contra ti!
- Filha, nada mais, nada menos que o supremo sacerdote! Pois, pela descrição, somente
pode ser ele! Procuremo-lo! Vamos pressioná-lo e estará resolvida a pendência!
Provavelmente nem sabe de tua gravidez... Desfrutaremos de bens e tranqüilidade!
Seremos ricas, ricas!
- Quero ver quando tiveres um filho nos braços! Até o trabalho de prostituta será difícil,
pois crianças incomodam! Poderás sempre dá-lo a alguém, pois será um belo rebento,
ambos ostentais grande beleza física... Todavia, mito melhor será arrancar uma fortuna
do miserável Vamos, vamos! No futuro, tu me agradecerás!
- Que desejas, desaforada? Fora, senão mando açoitar-te e atirar tua carcaça aos cães!
Não pretendo perder meu valioso tempo contigo!
- Meu rico senhor, por acaso não conheceis a jovem que carrega no ventre vosso filho?
A moça, que se mantivera afastada, oculta pela sombra de uma das gifgantescas colunas
do edifício, adiantava-se a contragosto, obedecendo aos incisivos gestos da
companheira, permitindo que a luz dos archotes iluminassem sua trêmula figura.
O moço titubeava por instantes, fitando-a dolorosamente. Estava sendo tão difícil
arrancá-la de sua vida e ei-la surgindo do nada, acusando-o da paternidade do filho que
lhe intumescia o ventre! O orgulho encarregar-se-ia de sufocar o sentimento de amor...
Uma judia... Raça maldita que medrava como praga no Egito, sugando-lhe as energias...
Jamais!
- Estais loucas! Guardas, livrai-vos delas! Atirai-as ao Nilo, servirão para fertilizá-lo!
***
O moço judeu despertou. Que sonho seria aquele, tão real que podia sentir as as
emoções do egípcio como se suas fossem? A culpa que o sacerdote abrigava em seu
coração parecia vergastá-lo também! Levantou-se açodadamente, mirando-se no
espelho... Suspirou aliviado! As feições reproduzidas eram as de um homem jovem, de
fartos cabelos escuros e negros olhos; a barba escondia parcialmente os traços, mas
seguramente nada tinham a ver com os do moço do sonho. A figura forte não condizia
com a do sacerdote egípcio, musculosa mas esguia. Estava exausto, sobrecarregado,
deixando-se levar por tolas ilusões! Aliviado, suspirou... Fora um sonho, nada mais!
Outro dia, que certamente constituiria novo marco em sua vida. Dedicava-se há muito
ao estudo das sagradas escrituras; na tribuna, a firme convicção da palavra e a altaneira
postura impressionavam e convenciam; dispunha de posses, que se acumulavam cada
vez mais nos cofres; a classe religiosa acolhia-o com agrado, considerável a ponto de
conferir-lhe a tarefa de desmascarar o impostor, o falso profeta que se atrevia a
enxovalhar as crenças de uma raça. Patife!
Volveu ao lar, fazendo aparelhar a melhor das montarias, ordenando aos servos que
acrescentassem um alforje com frutas, pães e carnes, partindo célere no encalço de sua
vítima, calculando que, se tudo corresse a contento, no dia seguinte estaria mergulhado
na honrosa tarefa de desmascará-lo. Pelo caminho, engendrava estratégias, regozijando-
se antecipadamente com a derrota dAquele que elegera inimigo.
A pequenina aldeia quedava-se silente ao sol da cálida tarde. Seus habitantes haviam
abandonado as casas e os barcos de pesca; a notícia da chegada do Mestre abalara
convenções e rotinas, retirando-os de seus habituais postos de trabalho, enviando-nos à
praia de claras águas e límpido céu; as areias não se enxergavam quase, tamanha a
concentração em determinado ponto, onde o Estranho de dias atrás, o arruaceiro do
templo, discursava.
Desviou os olhos do orador, circulando-os pela multidão com visível asco. Enfermos e
mais enfermos... Disformes, aleijados, cegos... Endemoninhados, acorrentados...
Desnutridos, famintos... Seria essa a platéia dAquele que se julgava no direito de
analisar as atitudes dos que zelavam pela religião oficial da nação?
Cambaleou, sentindo-se desmaiar! A moça, a moça do sonho! Ela mesma, sem dúvida
alguma! Os mesmos cabelos, agora cobertos com amplo véu, os olhos imensos e azuis,
a pele alva e perfeita, desafiando o sol ardente. Por instantes, julgou-se no distante
Egito, recordando a casa à beira do Nilo, revivendo as maravilhosas noites de amor...
Embora sedada durante as visitas, o ardoroso egípcio jamais lograra surpreender no
cálido corpo qualquer rejeição, como se a alma toda se entregasse... A saudade pungiu-
lhe o peito, arrancando lágrimas. Depois, assustado, pressionou a fronte... Que
pensamentos eram aqueles?! O sonho nada tinha a ver com sua pessoa! As emoções e
sentimentos pertenciam ao sacerdote, ao egípcio...
A multidão agitou-se. Jesus silenciara, iniciando seu caminhar entre os aflitos
suplicantes... O moço pretendera observar as curas com especial cuidado para melhor
acusar o farsante, mas a belíssima figura absorvia inteiramente sua atenção. Certamente
ela não se incluía no rol dos que necessitavam de tratamento, pois toda sua linda pessoa
recendia a saúde e juventude!
Estaria Ele ironizando? Não parecia... Ainda assim, a educada e singela indagação
importunou-o:
- De ti nada quero, pois nada tens a me dar. Não me convences, como a esse povo
ignorante e tolo. Não acredito em tuas curas, verdadeiro sacrilégio, pois somente ao
Deus de Abraão cabe o poder de determinar os destinos de seu servo, destinando-lhe
saúde ou morte. Tu, ao contrário, não passas de um embusteiro! Mais dias ou menos
dias, conhecer-te-emos os verdadeiros propósitos, e eles não serão o modelo de
desinteresse e desapego que propagas! Portanto, segue adiante, poupa-me de tuas
veleidades e mentiras!
Aguardou a réplica do falso Rabi, mas ela não veio. Sorindo, Ele prosseguia, relevando
as palavras do moço judeu. Livre da presença que tanto o incomodava, o jovem em vão
procurou pela encantadora figura da moça. Miragem, sem dúvida... Decididamente,
aquilo não poderia estar acontecendo com ele, sempre tão realista e equilibrado, modelo
de sangue frio citado por seus companheiros de estudos com admiração! Intimamente,
percebeu-se decepcionado, embora a aparição da moça fosse algo assustador,
inexplicável... Estava dividido, temeroso de admitir suas emoções e sentimentos,
apavorado enfim!
- Estarei ficando louco, meu Deus? Que seignificado teriam meus sonhos das noites
anteriores? Embora fisicamente diferentes, sinto-me o jovem e belo egípcio... Sou ele e,
ao mesmo tempo, não sou... E a miragem em meio às gentes na praia? Era a moça do
sonho... Desfez-se, no entanto... Não pode ser!
-Que hora para ter tais sonhos! Agora que preciso de tranqüilidade para desmascarar o
falso Profeta e atirá-lo em uma prisão, fico com tais tolices. Perdi a chance de descobrir
os truques que se escondem por detrás das curas ditas milagrosas... Assim que
amanhecer, voltarei aos mesmos sítios e tratarei de desmascará-lo!
Aliviado, a custo abandonou a água então gelada, desabando sobre o leito, tornando a
adormecer pesadamente. Para seu desapontamento, ao acordar no dia seguinte, nada
interessante restara da tumultuada noite, a não ser uma incrível dor de cabeça provocada
pela incomum ingestão de vinho. Embora decepcionado, buscou convencer-se de que
atribuíra demasiada importância às noites anteriores. Pesadelos causados pela irritação
que Jesus provocara! Lembrando bem, o primeiro episódio acontecera logo após o
incidente no templo de Jerusalém! Abandonou a cama, pronto para repetir a viagem, tão
agitado que recusou o desjejum, partindo emdesabalada carreira para a aldeiazinha,
esperando encontrar a praia vazia ao raiar do dia seguinte. Precisava confrontar Jesus!
Para tanto, necessário estar a sós com Ele! Menos orgulhoso fosse, compreenderia que
suas crenças estavam prestes a sofrer sério abalo e que pressentia isso, preferindo
resguardar-se da presença de demais pessoas... Mais uma vez se decepcionou... Não
obstante o dia mal houvesse raiado, outros tinham se antecipado e pacientemente
aguardavam, olhos nas águas em que o sol punha luminosos revérberos. Irritado,
entendendo-se mais uma vez enganado em suas previsões quanto ao comportamento do
Rabi e seus seguidores, indagou dos mais próximos:
- Um Profeta que cheira a peixe! Só faltava isso ao nosso povo, subjugado pelos
romanos e tão humilhado! Esperamos um rei e recebemos um pescador que se diz filho
de Deus! Que o Deus de Abraão nos livre de tamanha desgraça!
- Não perdes por esperar, Rabi! Hoje tuas falcatruas encerrar-se-ão e dormirás na
masmorra... Lá terás tempo de sobra para teus truques!
***
Nos dias subseqüentes ao brutal assassinato das duas mulheres, o jovem sacerdote
egípcio vivenciava desesperos, remorsos, saudades... A velha enchera os ares com seus
gritos e súplicas, enquanto da jovem somente se escutaram sentidos soluços. A visão do
ventre distendido não abandonava a retina do sacerdote... Um filho indesejável, inútil,
prova irrefutável do crime! Que lhe restava fazer, a não ser silenciar as acusadoras
vozes? Relutando, ainda apegado ao frio raciocínio inicial, dolorosamente concluía que
a solução poderia ter sido menos drástica, pois não haveria meios de provar seu
envolvimento. Por que, então, tamanha repulsa em ser acusado? A razão apontava
claramente para a nacionalidade da moça. Uma judia! Seria o fim, motivo de vergonha,
mesmo se tratando de acusação sem provas. Por outro lado, para que gozassem de tantas
regalias no Egito, os familiares da jovem seriam muito bem relacionados com o temido
José, conhecido por seus sobrenaturais poderes e sua influência junto ao faraó. Não
valia a pena arriscar... No mais, muito bem se inteirava dos rígidos padrões morais e
éticos estabelecidos para os sacerdotes do templo! Discretamente, talvez ocasionais
escapadelas na área sexual fossem relevadas; às escâncaras e com escândalo, jamais!
Não se interessaria novamente por outra mulher, como se a experiência com a linda
judia fosse única e irreproduzível. Acataria finalmente o celibato físico, sublimando as
energias, canalizando-as para o estudo, as artes, as manifestações paranormais.
Certa noite, no Egito de séculos atrás, deitara-se para não mais levantar; os
embalsamadores cuidaram-lhe do corpo, acomodando-o em rico sarcófago no interior
de segura tumba, na companhia de magníficos tesouros, que nada ficava a dever aos dos
faraós; os caminhos foram selados e, com o sacrifício dos servos, julgavam haver
preservado para sempre a integridade e o segredo do túmulo. Acreditavam que, no
momento propício, o orgulhoso sacerdote surgiria dentre os mortos, investido dos
poderes que desfrutara na Terra...
***
Despertou do pesadelo como que picado por mil aguilhões. O sol brilhava intensamente
nas águas do mar, formando longas esteiras luminosas... Os barcos vinham chegando!
Jesus fitou com ternura e compaixão a quase ensandecida criatura. O confronto com a
verdade constituía severa prova para o orgulhoso fariseu!
- Tu és filho de Deus como eu. Estás no planeta Terra, uma das moradas do Pai, em
jornada evolutiva. Egípcio, judeu ou o que se fizer necessário para que cresças e alijes d
teu espírito as excrescências que lhe velam a transparente e o brilho: egoísmo, vaidade,
apego, orgulho, desamor enfim. Queres conhecer a verdade ou és como os sacerdotes,
que se recusam a aceitá-la, temerosos das mudanças? Escolhidos todos vós, detentores
do conhecimento, mas arraigados às paixões humanas, comprazendo-vos nelas,
negando-vos a crescer, a evoluir. Vê o teu caso especificamente: representantes de
divindades há séculos, carregando reencarnação após reencarnação, a sublime missão de
orientar, encaminhar, educar... E que fazes? Assumes somente o papel, sem
comprometimento real do coração. Cego guiando cegos... Queres continuar assim?
Desespero e espanto calaram omoço judeu. Ele sabia! Que homem seria aquele que lhe
desvelava os íntimos recônditos da alma?
Uma criatura perplexa e assustada abandonou as areias, procurando pelo cavalo, que
calmamente saboreava as gramíneas próximas a frondosa árvore, alheio aos tormentos
de seu dono. Incapaz de montanha sequer, as pernas enfraquecidas e a cabeça a rodar, o
judeu deixou-se ficar à sombra, imerso em pensamentos. Quando anoiteceu e gelados
ventos sinalizaram que deveria tornar ao lar, fê-lo mecanicamente.
Ei que, o final de alguns dias, quando já se preparavam todos para o iminente desenlace,
surgiu à porta desconhecida jovem, rogando aproximar-se do doente em nome de Jesus,
o Nazareno. Solicitação de tal estranheza e empenho abalou a todos, mas ficaram
impedidos de recusar, até porque o homem estava morrendo! Os sacerdotes
entreolharam-se e uma só idéia lhes ocorreu: se aquela mocinha ousasse empreender
uma tentativa de cura em nome do falso Profeta, decretaria a sentença do odiado Rabi
como explorador do povo, indutor de falsas crenças, traidor das sagradas escrituras,
sacrílego... Seu fracasso seria para comprovar as mentiras que Jesus andava a espalhar!
Ótimo!
Aos pés do leito, observando o homem que outrora fora forte e poderoso, compaixão e
ternura traduziram-se nas feições da jovem, arrancando lágrimas de seus olhos.
Aproximou-se lentamente, obedecendo a interior comando, roçando as cerradas
pálpebras do moribundo, sussurrando:
Para desespero dos candidatos a detratores do Mestre, tênue sorriso pairava nos lábios
do dantes moribundo...
- Não é necessário, meu senhor, Jesus não cobra por suas curas!
Ato contínuo, depositou a espórtula indesejada nas sôfregas mãos de um paralítico que
esmolava à porta, retirando-se em atitude digna e humilde.
- O senhor necessita saber a respeito dela! Uma moça tão linda, quem sabe até poderiam
apaixonar-se... Por que não? O amo afastar-se-ia daqueles abutres do templo! Está na
hora de as coisas mudarem definitivamente nesta casa!
Naquela manhã, o moço judeu recebeu a visita dos sacerdotes. Vinham cobrar-lhe o
resultado das diligências junto a Jesus, pois o intenso movimento em torno do Rabi
continuava a incomodar, em um crescendo preocupante. A cada dia, adquiria o Profeta
maior prestígio, ameaçando a estabilidade religiosa. Além do mais, expunha-os ao
ridículo, revelava-lhes as imperfeições, cobrava os desmandos, desmascarava-os,
exortando o povo mudanças que, em absoluto, não lhes interessavam.
Que dizer? Falar a verdade ou mentir? Omitir? Calar? Disfarçar? Optou pela última
alternativa, decidindo dissimular seus sentimentos, até porque, apesar de muito refletir,
não conseguira chegar a um consenso consigo mesmo sobre a controvertida figura de
Jesus. Pretextou necessidade de maiores informações, comprometendo-se a cumprir o
assumido nos dias vindouros. Também estudaria a possibilidade de maior empenho
junto ao templo, conforme estavam cobrando...
- Vai voltar a ser tudo como antes! Ah vai, vai sim! Os abutres querem que o amo
persiga Jesus e ocupe lugar na tribuna do templo... Acabou-se o sossego, a menos que...
- Mulher, estás louca? Os sacerdotes mandam-nos açoitar até a morte se souberem que
contamos ao senhor o acontecido aqui!
- E que recebíamos nós quando o amo era outro? Por acaso ele nos poupava de
pancadas, ao saber de seu terrível humor? Ainda sinto no lombo o ardor da chibata! Pelo
menos teremos uma chance... E o coitado?! Está tão diferente o pobrezinho... Não é
justo! Enganado como um bobo qualquer, servindo de capacho, achando que eles são
seus amigos... E Jesus, então?! Graças a Ele nosso amo tornou-se outro homem... Está
meio atrapalhado, é bem verdade, mas melhorou muito. Se ele souber o que realmente
ocorreu nos dias em que esteve para morrer, quem sabe acorda e chuta essa corja para
longe desta casa!
- A moça, como dizes que se chamava? Nem ao menos procuraste saber seu nome ou
paradeiro?
- Senhor, eles pegaram-na pelo braço e praticamente a arrastaram até a saída... Ainda
segui atrás, curioso de ver o que fariam... Puseram-lhe nas mãos rica moeda, mas ela
entregou o ouro a um mendigo que se acoitava em vossa porta!
Alívio e vergonha desceram sobre o aflito rapaz. Deveria estar muito mal para que um
simples servo raciocinasse melhor que ele, estudado e culto, prestes a ser nomeado
doutor da lei!
Dispensando o serviçal com incisivo gesto, dirigiu-se às estrebarias. Para seu espanto,
haviam lhe preparado um alforje para viagem e o animal estava pronto... Talvez
estivesse enganado a respeito dos servos... Sempre os julgara incapazes de pensar,
dependentes... Eles haviam pressentido sua reação diante da verdade! Em breves
minutos adentrava a rua ensolarada e quente. Logo anoiteceria, mas a ansiedade
impedia-o de postergar a jornada para o outro dia... Além disso, se o Mestre continuasse
na aldeiazinha de antes, conhecia o caminho muito bem!
Mais uma vez, como que atraído por poderoso ímã, partiu no encalço de Jesus. Um
misto de ansiedade e temor, atração e repulsa, tomava conta de sua alma... Faltava-lhe
ar, a ponto de obrigar-se a sustar a montaria, dirigindo seus passos até frondosa árvore;
sentou-se encostado ao rijo tronco, deixando a mente vagar em pensamentos mil. Quem
seria aquele homem denominado Rabi, detentor de tamanhos poderes que desencadeava
curas até em seu nome:? Fora encarregado de vigiá-lo, espreitar-lhe os passos, obter
provas de sua culpa! Decidira olvidar sua luminosa presença, apresentando aos
sacerdotes satisfatória desculpa, livrando-se do trabalho dantes gratificante e honroso;
temia qualquer contacto com Jesus, pois Ele tinha o dom de abalar suas crenças,
balançando-lhe as convicções, constituindo severa ameaça a uma escala de valores
consubstanciada nos costumes e conveniências dos grandes de Israel. Que seria dele se
aceitasse Jesus em sua existência?! Agora, contudo, ciente dos reais motivos da
recuperação de sua saúde, via-se forçado a repensar sua decisão... Precisava falar
novamente com Jesus! Olhando o animal que saboreava as gramíneas ao derredor,
descobriu-se tenso, envolto por imensas dúvidas. A mulher dos sonhos, pois só podia
ser ela pela descrição do servo, emergia do distante passado com avassaladora força.
Como se não bastasse aliava-se ao Rabi, em nome dEle salvando-o da morte...
Decididamente, tudo conspirava contra sua decisão de afastar-se de Jesus! Por que o
Rabi tinha o poder de incomodar tanto? Afinal, que lhe fizera o Mestre? Mesmo no
templo, fora educado ao inquiri-lo... Em seus gestos havia energia, mas não rancor ou
fúria...
- Sim, meu senhor; estamos voltando da aldeia onde se reúne com amigos! Ele realizou
curas miraculosas, revelando-nos as verdades divinas! Que quereis com Ele, meu
senhor? Não nos parece que careçais de saúde ou instrução...
Jamais um caminho parecera tão longo! As sombras da noite haviam descido sobre as
brancas construções quando chegou.
O Mestre indagava, sorrindo para João, que o fitava com admiração e reverência,
convidando-o à formulação da dúvida que a voz até então calara:
- Senhor, conta-nos a respeito da vida após a morte. Temos curiosidade, pois nunca
ninguém voltou para relatar claramente o que se passa depois... Os ensinamentos das
escrituras deixam muita coisa oculta, misteriosa... É verdade que vivemos muitas vezes?
O moço judeu, junto à porta onde discreto se postara, alegrou-se com o providencial
questionamento. Finalmente teria chance de obter respostas para as dúvidas que o
afligiam!
- Credes que nosso pai faria corpos tão perfeitos para que tudo fundasse com a falência
do físico? Não vos parece um desperdício? E que constitui uma única existência perante
a grandiosidade do universo? Quantas vezes não ficastes olhando as estrelas no
firmamento, sentindo-vos pequeninos, angustiados diante da constatação de que nada
sabeis a vosso respeito e a respeito dos outros, do mundo enfim? No entanto, mesmo
em vossa pequenez reconheceis a maravilha que sois, a perfeição de vossos corpos, o
brilho prometido para vossas inteligências... Bem no âmago de vossos seios, tendes a
certeza de que nada acabará com a morte; somente o medo do desconhecido e a falta de
fé fazem com que tenhais dúvidas a respeito da continuidade, da existência de vida após
o desencarne... Pois bem, a reencarnação constitui o mecanismo primeiro pelo qual se
processa a evolução de cada espírito criado por Deus. Ainda que vos recuseis a aceitá-
la, dela não estareis isentos...
- Mas não nos lembramos de nada, Mestre! Que proveito tiramos se o esquecimento
tolda nossa visão? Não seria melhor recordarmos? Caminhamos como cegos,
certamente repetiremos os erros...
Quis correr atrás dEle, perguntar mais, todavia a educação tolheu seus anseios.
Aguardaria o amanhã...
Fora da casa, os astros cintilavam e o luar delineava caminhos. Uma brisa cálida agitou-
leh os fartos cabelos e o aroma de flores silvestres sensibilizou agradavelmente suas
narinas. Outro perfume veio com o vento, ativando-lhe os centros de memória.
Ela!
Parada em meio à noite, envolta pelo luar que se derramava dos céus, misteriosa e linda,
seria produto de seus sonhos ou realidade? Oportunidade de recomeço e perdão talvez...
Não conseguiu dizer nada, as palavras presas na garganta, emoção e dor sufocando-o.
Jamais a ele se dirigira antes, mesmo quando um filho de ambos distendera seu indefeso
ventre. Junto à gigantesca coluna do templo, no Egito de outrora, nenhuma palavra,
nenhum julgamento! Nas noites de amor, sedado o corpo, silêncio de palavras...
- Senhor, vinde, sentai-vos aqui. Empalidecestes! Acaso vos ofendo com minha
presença? Perdoai-me o atrevimento, julguei lembraríeis de minha pessoa... Tola!
Estáveis desacordado...
Ainda emudecido, o moço pensava: “Deus, meu Deus, que devo responder? Como
explicar a esssa moça o distante passado? Julgar-me-á louco, insano... Terá medo de
mim!”
- Estou melhor, despreocupai-vos. Se não estou enganado, fizestes uma visita a minha
casa recentemente, quando insidiosa moléstia intentava arrastar-me ao sepulcro. Soube
que me curastes!
- Somente fiz o que meu Mestre Jesus solicitou. Naquele dia, Ele acabara de chegar a
nossa aldeia... Retirou-me do meio dos que ouviam sua palavra, falando-me a respeito
de vossa pessoa. Disse que sois muito estudioso e entendido das leis de nosso povo...
Afirmou estimar-vos e necessitar de meu concurso para vos recuperar de cruel doença.
Enviou-me, recomendando que obedecesse ao meu coração. Ao deparar convosco nos
estertores da morte, impus minhas mãos e roguei ao Mestre amado que vos salvasse!
Queria continuar ao vosso lado por mais tempo, mas os senhores do templo trataram de
retirar-me da casa, como se eu importunasse...
- Sim, acredito em suas palavras e creio nas verdades divinas enunciadas por sua boca.
Somos muitos a perseguir seus passos... E vós? Que boba sou, pois certamente sois
amigos, tamanho o empenho dEle em salvar vossa vida!
Que dizer? Uma vez mais, as dúvidas. Até ontem, estivera decidido a colaborar com a
destruição de Jesus, considerando-o uma ameaça. Hoje, já não sabia ao certo o que
sentia ou pretendia.
Desconversou.
Lia, muito embora conhecesse Jesus de há pouco, sentia-o de há muito e suas palavras
não lhe eram desconhecidas, recordava-as tão somente. Quanto àquele homem, algo a
atraía, como se o conhecesse, mas um medo estranho e profundo alertava: deveria ficar
longe!
- Preciso voltar para a casa, senhor, pois meus pais devem estar preocupados... A
reunião com Jesus terminou faz tempo. Senhor, desejo-vos saúde e paz!
- E agora? Em que me meti, meu Deus! A razão manda afastar-me, mas o coração clama
por doce presença. Ainda bem que não se lembra de mim como dantes fui, pois fugiria
apavorada! Como pude fazer aquilo? Foi monstruoso! Que sentirá ela em minha
presença?
Na casa humilde, deitada em tosco leito de alvos e ásperos panos, a jovem revolvia-se
encontrando problemas em conciliar o sono. Estranha sensações e desconhecidas
emoções agitavam-na e certamente haviam sido provocadas por aquele senhor...
Tratava-se de um belo homem, sem dúvida, de maneiras educadas e gentis, muito
diferente dos rústicos aldeões do lugar. Belas e caras roupas indicavam tratar-se de
alguém com consideráveis posses. Riu, divertida com sua ingenuidade: pois não estivera
na casa luxuosa, verdadeiro palácio, não adentrara os aposentos de dormi? Melhor
esquecer, pois ele somente fora cortês!
A razão determina, o coração nem sempre obedece... Ambos não vibram em uníssono, a
não ser com mútuo consentimento. Ora, os corações dos amantes de outrora exigiam
aproximação, embora os alertas advindos dos arquivos de um passado distante e as
restrições da atual existência racionalmente determinassem afastamento.
O moço ponderava:
- Esta será uma união socialmente díspar... Que dirão os amigos, os familiares? Perderei
a liberdade, prejudicarei meus interesses... Um homem casado jamais poderá dedicar-se
inteiramente às escrituras... Virão filhos...
- Cada vez que a encontro, relembro o passado, o terrível episódio de sua morte...
Desposando-a, poderei suplantar os remorsos, a culpa?
A jovem embora culta e bela, sentia-se inferior ao objeto de seus amores. O distante
passado, conquanto sepultado no esquecimento, permanecia nos arquivos existenciais,
vivo, pungente, sofrido, repleto de emoções... Sentia-se rejeitada... Desde a primeira vez
em que o vira, desfalecido sobre o leito, à mercê de remédios desenganado pelos
médicos da Terra, imensa ternura envolvera seu coração e ele passara a povoar-lhe as
ilusões juvenis, os sonhos de felicidade.Reencontrá-lo, com ele falar, ouvir-lhe o riso,
tudo reforçara o amor incipiente mas firmado em profundos vínculos reencarnatórios.
Naquela manhã, Jesus abandonara o leito bem cedo, enquanto todos ainda dormiam;
apesar do silêncio com que deixara a humilde construção, o moço judeu, que do lado de
fora pernoitara junto às frondosas árvores, mercê da aflição que o impedia de retornar
ao lar, despertou do leve e agitado sono. A aurora tingia o céu de róseas nesgas e breve
o sol surgiria, a casa encher-se-ia de gente, atraída pela presença do meigo Rabi. Agora
ou nunca!
- Sim, meu amigo... Não me perturbas em absoluto! Vejo que também levantaste cedo...
Conversemos, pois.
- Mestre, não sei o que faço! Sabeis do meu passado e das vilanias que cometi...
Conquanto não seja santo, atualmente jamais cometeria tais erros! A moça, aquela a
quem ofendi e matei outrora, está aqui... Amo-a, quero-a como companheira, mas a
culpa não me abandona! Ela, por sua vez, foge de mim, talvez intuindo o que aconteceu.
Contudo, sinto que também me ama! E tem mais, muito mais, meu Senhor...
Olhou para Jesus e sentiu vergonha. O Mestre sorria, sabendo o que viria nas receosas
palavras do jovem:
- Que mais?
- Fico pensando... Fui sacerdote em Tebas, hoje aspiro a altos postos junto à fé judaica;
sem dúvida, a religião chama-me há muito e parece ser o meu caminho. No entanto,
aceitando-vos, invalidei meu trabalho junto ao templo de Jerusalém, pois não
conseguiria pregar aquilo que interessa aos sacerdotes. Creio em vossas verdades, mas
estou preso, atado àquilo que sou e fui... Sinto-me perdido! Conseguis entender-me?
- Mais que nunca, meu filho! Estás bem, muito bem, no caminho certo!
- Como, se me sinto sufocar, se o corpo todo me dói de tanta aflição, se não durmo, se
não consigo colocar a razão à frente de tudo, como sempre fiz?!
- Pior antes, quando aceitavas as mentiras por vconveniência... Vamos por partes:
Primeiro, vocação religiosa, claramente detectada. Estás certo... Posso revelar-te que em
outras mais encarnações foste sacerdote, em diferentes ceitas. Surpreso? Qualquer que
seja o estado evolutivo do ser, sempre haverá o elo com o Criador, não importando o
nome que lhe seja dado. No longo do caminho evolutivo, todos aprenderão a amar
incondicionalmente! Estás aprendendo a amar... Foste chamado muitas vezes...
Afivelaste máscaras, assumiste vazios papéis... Pura ilusão! Agora, afirmo-te estás
realmente predisposto à tarefa, não mais junto aos grandes da Terra, e sim ao lado dos
humildes, dos que sofrem, de todo aquele que chama pela verdade. Precisarás alijar de
teu espírito o interesse, a cobiça, as glórias mundanas, assumindo teu posto no exército
responsável pela evolução do planeta. Neste exercício, meu amigo, o Amor constitui a
maior das armas. Achas pouco, simples demais? Serás perseguido, humilhado, atirar-te-
ão pedras, sofrerás discriminações por proferires meu nome e carregares a bandeira da
iluminação espiritual. No entanto, a consciência do dever cumprido acalentar-te-á os
dias, asserenando os percalços da árdua caminhada. Não precisas do cargo de sacerdote
ou de qualquer outro semelhante para louvar e servir a Deus: Toma de tua cruz, segue-
me. O maior inimigo estará em ti mesmo e com ele travarás gigantesca batalha,
acredita-me.
- E o casamento, quando será? Aprecio deveras uma boa festa e há muito não sou
convidado para bodas. Esquece, perdoa-te e segue adiante. Virão filhos e, dentre eles,
aquele a quem negaste o direito à vida. Não há nada que o amor verdadeiro não
conserte. Precisarás de uma companheira fiel e sábia que te ampare na missão que
assumirás... Vamos lá, coragem!
Assim ocorreu. Vencendo as barreiras, com o doce e amigo auxílio do Mestre, que,
pessoalmente o levou até a moça, recomendando-lhe carinho com o novo companheiro
de divulgação doutrinária, uniram-se os amantes do antigo Egito. Um ano depois, nascia
o primeiro filho, um lindo menino de enormes olhos azuis, como os da mãe, e negros
cabelos. Chorava muito o pequenino, como se duvidasse da ternura e da bondade do pai:
retornava à terra o espírito cujo nascimento fora brutalmente frustrado nas águas do
Nilo!
DEPOIMENTO
Assim como as águas dos rios retornam a seus lugares de origem, transportadas nas
gotas da chuva que desce dos céus em sua sublime destinação, assim também o ser
humano retorna àquilo que deixou para trás, em situações não resolvidas
adequadamente.
Jesus! Lembro-me como se fosse agora do momento em que ele, com doce sorriso nos
sábios, acercou-se de mim:
- Mestre, quem sou eu para isso? Outros há melhor preparados! Surpresa e assustada,
fitava-o, mergulhada nos olhos de luz. Ele, sorrindo sempre, complementava:
- De ti necessito. Irás ao leito onde jaz um servidor de meu Pai trazendo-lhe o alívio de
cruel enfermidade. Para tanto, basta que imponhas, em meu nome, tuas mãos sobre ele.
Depois retornarás, pois não te permitirão acompanhar-lhe as melhoras embora assim o
desejes.
Doce Jesus, amigo de todas as horas, Espírito de divina luz, tão humano quando
conosco, entendendo-nos os medos e culpas, acudindo-nos pessoalmente, enviando-me
à tarefa que possibilitaria o abençoado reencontro com o amor do pretérito. Muitos
guardaram dEle recordações nos momentos difíceis da crucificação, nas preleções
magníficas em contato com o céu e o mar, pelas estradas... Eu, contudo, vejo-o nas
bodas, rindo e dançando em meio aos convidados, iluminando-nos com sua ternura,
recordando-nos, em silencioso e eloqüente testemunho, a beleza da vida, oportunidade
bendita de evolução, amoroso chamamento aos compromissos de engrandecimento do
espírito imortal!
Lia
O PROFETA
“Não há árvore boa que dê fruto mal e nem árvore má que dê fruto bom; com efeito,
uma árvore é conhecida pelo seu próprio fruto; não se colhem figos de espinheiro, nem
se vindimam uvas de sarças. O homem bom, do bom tesouro do coração, tira o que é
bom, mas o mau de seu mal tira o que é mau, porque a boca fala daquilo de que está
cheio o coração.” (Lucas, cap VI, v. 43 a 45).
“...Não vos disse o Cristo: conhece-se a árvore pelo seu fruto? Se, pois, são amargos
os frutos, já sabeis que má é a árvore; se, porém, são doces e saudáveis, direis: nada
que seja puro pode provir de fonte má.
É assim, meus irmãos, que deveis julgar; são as obras que deveis examinar. Se os que
se dizem investidos de poder divino revelam sinais de uma missão de natureza que se
dizem investidos de poder divino revelam sinais de uma missão de natureza elevada,
isto é, se possuem no mais alto grau as virtudes cristãs e eternas: a caridade, o amor, a
indulgência, a bondade que concilia os corações; se, em apoio das palavras,
apresentam os atos, podeis então dizer: estes são realmente enviados de Deus”. (O
Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XXI).
Conforme mencionamos, desde muito cedo, quando um pai e uma mãe ainda o
protegiam, encabulava as pessoas com singulares relatos e colocações, em que constava
a presença de seres invisíveis, considerados frutos de sua imaginação doentia e
desequilibrada. Apontava com os dedinhos homens, mulheres e crianças que ninguém
mais via ou ouvia, tratando-os com familiaridade, porquanto convivia com o outro
mundo de maneira natural e constante. Um pouco mais crescida, ao dominar melhor o
aparelho de linguagem, a criança passou a descrever com surpreendente riqueza de
detalhes as vestimentas, os lugares e os eventos, todos eles remontando ao passado,
categoricamente afirmando que os personagens envolvidos estavam misturados ao dia-
a-dia de todos. O povo da aldeia, simples e ignorante, ria-se do pequenino,
considerando-o leso, para desgosto de seus genitores. Surras constantes e castigos
diversos atormentavam o pobrezinho, com a precípua finalidade de coibir-lhe as
pretensas estranhezas. Ainda assim o menino persistia, aliando-se cada vez mais em um
universo particular, em companhia de desencarnados com os quais mantinham
fascinantes conversações, deles recebendo atenção e carinho.
Aos doze anos, vitimados por fulminante e insidiosa febre, faleceram-lhe os pais,
ficando destituído de quaisquer bens, só, sem amparo de parentes ou amigos, pois a
ninguém interessava assumir o estranho e magrelo adolescente, eternamente alheio à
realidade. Restaram-lhe o trabalho duro, a assunção de precoces responsabilidades de
sobrevivência e a solidão afetiva. Um vizinho, criatura de posses e detentor de irracível
gênio, calculando um braço a mais na lide do campo, levou consigo, destinando-lhe à
guisa de lar, apertado espaço em abarrotado celeiro. Pesados labores, irrisória paga,
nenhuma instrução e pungente isolamento aguardavam-no naquela fazenda.
Quis o destino ou acaso, como costumais designá-lo, que triste fato deitasse por terra os
esforços do rústico e cruel patrão em sufocar os dons mediúnicos do submisso
empregado.
Era uma época em que os estudos não alcançavam a maioria dos homens,
principalmente os que se dedicavam às lides do campo, colocou a moça na linda
cabecinha que deveria estudar, aprender a ler e escrever e tudo o mais que caracterizava
uma esmerada educação. O indignado pai negou-se àquilo, considerando tudo uma cara
e desnecessária besteira: gritou, ameaçou, tergiversou, mas, diante do rio de lágrimas
que descia dos negros olhos e dos sentidos soluços, capitulou, acedendo ao insólito
desejo da bela tirana, passando a procurar adequado professor.
Na aldeia, nem pensar! Todos iletrados! Rebuscou nos vilarejos vizinhos, ele mesmo
empreendendo cansativas e desanimadoras viagens, até que lhe indicaram, finalmente,
um jovem novo naquelas bandas, recém-chegado de Jerusalém, onde desempenhara
funções de preceptor junto a abastada família romana. Serviria! Ademais, conhecendo
muito bem a inconstância da filha, previa pouca duração para o capricho... Observou o
candidato mais atentamente, com desagrado constatando: jovem demais, bonita
estampa, boas falas, cativante sorriso... Que fazer? Arriscar-se-ia, colocando a preciosa
e bela filha nas mãos do moço? Em vão procurou outra pessoa, menos atraente e mais
velha, acabando forçado a contratar o jovem por módico estipêndio, com direito a
moradia e alimentação. Daria um jeito de vigiá-lo vinte e quatro horas por dia e ai dele
se deitasse olhos na direção de sua filha!
O pai aquietava-se, pois um de seus receios era justamente o de colocar suas riquezas
nas mãos de algum incompetente que acabasse com tudo em estroinices. Conhecendo o
gênio forte da filha, ponderava que, devidamente estudada, dominaria um futuro esposo,
obrigando-o a acatar-lhe as ordens. Ótimo! Mais conformado, resmungava:
- Por que Deus não me concedeu um filho homem:?! Seria muito mais fácil e menos
preocupante! As meninas dão muito trabalho!
Enquanto assim refletia o fazendeiro, forte paixão dominava os dois jovens! O único
impecilho a maiores manifestações constituía o servo... Certa manhã, o professor
finalmente notou o interesse do rapaz pelas aulas, indagando se gostaria de participar
das lições, estendendo-lhe estilete e pergaminho para a escrita. Para a surpresa dos
apaixonados, o jovem Saul traçou palavras inteligíveis, com caligrafia agradável e clara.
- Onde aprendeste?
- Olhando e observando com cuidado... Além do mais, não me parece tão difícil... Se
estou incomodando...
Um pensamento insinuou-se na mente do professor: por que não usá-lo para seus
propósitos, oferecendo-se para ensinar ao importuno tudo o que pudesse?! Ele ficaria
distraído e deixá-los-ia em paz por preciosos momentos, talvez horas... Começou a
investir no novo aluno, designando-lhe significativas incumbências, mandando-o copiar
extensos textos, tendo o cuidado de diminuir a lição da mocinha para que ela terminasse
sempre bem antes... Então, os dois passaram a abandonar o recinto, refugiando-se no
jardim, em discretos e floridos caramanchões, entregues ao avassalador sentimento.
Três meses depois, ingrata notícia abalou os jovens amantes. Inesperada gravidez
dilatava o ventre de Marta! Um filho crescia no jovem e esguio corpo e breve todos
notariam o engrossar da cintura delgada...
O preceptor engendrou um plano de fuga que incluía o esvaziamento dos cofres da rica
casa a fim de não enfrentarem dificuldades financeiras em sua nova vida. Na calada de
escura e quente noite, o casal evadiu-se furtiva e silenciosamente, levando jóias e ouro
nos alforjes.
Enquanto tudo era combinado e ocorria, o ingênuo Saul tranqüilamente estudava, certo
de que a situação estava sob controle, deixando de atentar para o perigo das escapadas
dos jovens rumo aos jardins e muito menos para o nervosismo dos dois e os vermelhos
olhos de Marta nos últimos dias.
A notícia da fuga assumiu a magnitude de um raio! O irado olhar do traído pai desceu
acusador sobre o empregado:
- Onde estavas, servo infiel e ingrato? Por acaso não viste o namoro sob tuas ventas?
Dormistes ao invés de vigiá-los?
Ouvindo dos trêmulos e sinceros lábios de Saul a verdade, encolerizou-se ainda mais:
- - Maldito! Coloco-te para vigiar e entreténs-te com a leitura e a escrita?! Para que
precisas desses luxos se não passas de um verme, mal serves para puxar um arado?
Querias estudar, ler e escrever, desgraçado? Garantir-me-ei de que não o faças nunca
mais, ouviste?
Aos berros, ordenou aos apavorados servos que assistiam à cena fossem à estrebaria e
trouxessem ígneos carvões da forja. Rindo alucinadamente, aqueceu o estilete com que
se traçavam letras sobre o pergaminho até que ficasse incandescente, com ele cegando
os dois olhos de Saul, não obstante as súplicas por misericórdia do rapaz e a
desesperada tentativa de interferência da esposa, lançada contra a parede quando ousou
discordar do que ocorria. Após o terrível castigo, ele mesmo empurrou brutalmente a
cega criatura até o celeiro, deixando-o entregue à sorte, enquanto reunia, em altos
brados, homens para a busca.
Que dor! Chamas pareciam consumir os globos oculares cauterizados e Saul julgou
morrer, tamanho o sofrimento. A escuridão cercava-o e ele tateou até achar o leito,
sobre ele desabando. Morreria certamente! Quem se atreveria a acudi-lo? Sedento,
faminto, machucado... As dores aumentavam num crescendo insuportável e ele
implorou pela morte que há pouco temera!
Passos suaves surpreenderam-no. Em meio à agonia das trevas, sentiu o toque de suaves
e bondosas mãos, segurando-o gentilmente, ajeitando sob sua cabeça macio
travesseiro... Depois, como que por milagre, frescas compressas com odor de ervas
foram sendo deixadas sobre os ardentes olhos, substituídas amiúde. Abençoada
sensação de bem-estar envolveu-o... Quem seria o anjo que dele tivera piedade naquela
hora de tamanha amargura?! Levantou a destra trêmula e tateante, prendendo a delicada
mão, puxando-a para os lábios, beijando-a respeitosamente, murmurando palavras de
agradecimento. Doce e mansa voz tranqüilizou-o:
- Tudo vai ficar bem, meu filho! Dorme agora, dorme... A dor cederá com o efeito das
ervas e do descanso. Mais tarde retornarei com um bom caldo e uma pomada que
auxiliará tua recuperação. Mandarei buscar o que for preciso na aldeia e eu mesma
prepararei o remédio com muito cuidado... Dorme, dorme em paz!
- Senhora, vosso esposo, se descobrir que estais aqui, ajudando-me, certamente vos
maltratará!
- Não saberá! Saiu para procurar Marta junto com os homens da fazenda e da
vizinhança! Achas que alguns dos servos que ficaram abrirá a boca, delatando-me?
Duvido, pois eles também não compactuam com tamanha selvageria! Eu, que sou mãe e
parte diretamente interessada, embora sinta a dor da perda, considero injusto imputar-te
a responsabilidade pelo ato de minha filha. Está claro que foste ludibriado para que
pudessem dispor de privacidade... Tens sim a culpa de não tê-la vigiado, mas conheço
bem minha Marta e sei que sempre consegue o que quer, não se importando em
desgraçar outras pessoas. Tu, meu querido, somente quisestes aprender! Eles
enganaram-te e caíste na armadilha, acabando por perder a visão devido à
irresponsabilidade de ambos!
Saul sentiu quentes lágrimas caírem sobre suas mãos, compreendendo que a senhora
chorava mansamente.
- Lembro-me do dia em que meu esposo trouxe o órfão... Triste e apavorado menino...
Eras tão bonito! Tão desprotegido! Elegeu-te imediatamente filho do coração... Implorei
que me deixasse acolher-te como o filho homem negado por Deus até então. Marta tinha
quatro anos e eu pressentia que seria a única gerada por meu ventre... Não obstante
meus anseios maternais e reiterados apelos, transformou-te em pobre escravo,
sufocando tua iniciativa, privando-te da possibilidade de naturais escolhas, inerentes a
todo ser humano... Repassou para teus infantis e frágeis ombros as tarefas de adulto...
Pior! Não permitiu a interferência de ninguém, proibindo que me aproximasse,
negando-me o direito de externar meu amor, sob pena de ambos sermos castigados.
Calei-me, buscando não dificultar ainda mais as coisas! Pobre esposo, mais cego do que
tu, pois ignora o sentido da palavra amor, refugiado em egoísmo e avareza!
A senhora silenciou, como se imersa em cismas; quando voltou a falar, sua voz tinha a
amarga inflexão das pungentes lembranças:
- Vês o nosso matrimônio? Não passo de uma serva bem vestida e enfeitada, sempre
calada e à disposição de seus desejos. O casamento foi arranjado por nossos pais,
visando tão somente a união de fortunas. No entanto, quando o vi na hora da cerimônia,
meu coração encheu-se de alegria, amando-o desde aquele momento. Tenho me
esforçado para ser uma boa esposa e agradá-lo, sem nada conseguir no entanto, pois sou
ignorada sempre... Outras mulheres são as donas de sua preferência, restando-me a
solidão. Trancada em uma luxuosa casa, com serviçais a meu dispor... Dourada gaiola!
Novo silêncio. À maneira de quem quer desculpar-se pelo que não pudera realizar, ela
acrescentou:
- Acalma-te! Saiu em diligência atrás dos fugitivos, pretendendo trazer a filha de volta e
eliminar o rapaz. Deus queira que não os encontre hoje, pois meu coração prevê uma
desgraça! Talvez amanhã se acalme... Temo que sangue será derramado em nome de um
conceito de honra, inútil, gerando dores e arrependimentos futuros. Não seria melhor
consentir no casamento? A quem deseja o senhor esposo enganar? É evidente que nossa
filha acompanhou o professor de bom grado, deitando por terra a alegação de rapto.
Aceitemos que se enamoraram e tudo se resolverá! E quem poderá devolver a luz de
teus olhos? Com que direito, meu Deus, ele arvora-se em juiz e carrasco, na ilusão de
que tua punição minoraria o desastroso efeito da fuga? Orgulho ferido tão somente! Eu
tenho minha parcela de responsabilidade, pois jamais tive a coragem de enfrentar o
tirano com que me casaram e a quem amo sinceramente, restando-me a culpa da
omissão. Perdoa-me!
Saul ouviu os passos leves afastando-se e a porta do celeiro sendo fechada. Negra
escuridão continuava a envolvê-lo e estranho torpor, que ele atribuiu ao efeito calmante
das ervas sobre seus olhos, mergulhou-o em benfazejo sono. Sonhos agitados, todos eles
relacionados com a figura do irascível senhor, povoaram-lhe o pesado descanso e, ao
acordar, sentiu-se molhado por álgidos suores. Desejou um banho revigorante nas
límpidas e refrescantes águas do riacho... Como chegaria até lá? Desespero e angústia
invadiram-no... Como viveria assim? Por que o senhor não o matara simplesmente,
poupando-lhe tanto sofrimento? Melhor seria estar morto!
- Então já acordastes, meu amigo? Trouxe comigo Jeremiah! Vai levar-te ao regato e
auxiliar no banho, vestindo-te roupas limpas e frescas. Não temas... Ele é bem forte e
cuidará para que nada aconteça de mal... Aproveitarei para trocar as roupas da cama e
aguardo tua volta para a pomada e o curativo... Enfaixarei tua cabeça com tiras de
linho... Precisamos evitar sujeira e insetos... Assim, logo estarás curado. Depois, um
caldo quentinho e cama novamente, pois precisas descansar. Enquanto o sono não vier,
conversaremos... Ir-me-ei quando adormeceres, pois bem sei quanto é ruim ficar só...
Nada temas, estarei contigo, meu filho.
Em instante algum cogitou que poderia perdoar e aceitar a volta da filha em companhia
do jovem professor... Pobre egoísta!
Enquanto isso, no celeiro, envolto pela mais negra das escuridões, Saul analisava os
ruídos, adivinhando o retorno de seu carrasco. Pelo silêncio de vozes, inferiu o malogro
da expedição, frustrada em seus intentos de resgatar a bela Marta. Inicialmente, sentiu
até uma certa alegria com o insucesso da empreita, sem falar na raiva e na revolta,
considerando que os fugitivos sequer haviam se preocupado com a sorte do mísero
servo encarregado de vigiá-los. A inconseqüente mocinha bem conhecia a severidade do
pai! Por que um castigo tão cruel se ele também fora passado para trás?! Cegá-lo por
acaso traria de volta a moça? Compreendia que, muito mais do que a dor da ausência da
filha querida, o orgulhoso desmedido, duramente afrontado pelas ações dos amantes,
vergastava o rico senhor. Profundamente magoado com o que lhe ocorrera, Saul
murmurava:
- Está preocupado com o que os outros dirão! Jamais pensou em meu sofrimento ou no
da esposa... Que padeça, pois, com o desaparecimento da filha!
Então, a cena delineou-se com nitidez em sua mente... Viu o homem sentado, a faca nas
mãos, o desespero no coração, o gesto tresloucado a consumar-se dali a instantes...
Como que por milagre, a ira foi-se, substituída por compaixão e vontade de ajudar...
Penetrou na dor daquele pai, sentindo a mesma angústia, a mesma desesperança...
Soergueu-se do leito, tateando o caminho, conseguindo chegar até a porta que ás pressas
abriu, clamando pelo servo:
- Jeremiah! Jeremiah!
- Estás louco, infeliz?! Matas-te e fazes-nos matar! Que queres:? Do jeito que o senhor
entrou na casa, corremos sério risco! Melhor te esconderes bem, pois as coisas não
seguiram o rumo almejado por nosso amo... Se te pega na reta...
- Ouve, amigo, por Deus, ouve! Chama a senhora antes que uma desgraça ocorra...
Corre! Dize a ela que vá até a sala onde o amo se trancou e transmita, sem demora, que
eu sei onde a filha dele está escondida! Corre! Corre, pois nosso amo vai-se matar!
Minutos depois, cambaleando, a faca ainda na trêmula mão, seguido pela atordoada
esposa, o homem atravessava o pátio, empurrando violentamente a porta do celeiro,
postando-se à frente do leito onde Saul, após o temerário convite, ajeitara o corpo,
encolhendo-se.
- Estás a mentir, infeliz! Se soubesses, terias dito quando te apurei! Então, juraste
ignorância... Duvido que tivesses ocultado tal informação, pois poderias ter salvo teus
olhos! Estou enganado?
Desesperado, continuava:
- Senhor, por Deus, escutai-me! Que motivo teria eu para mentir? Melhor seria que
calasse, ocultando-me de vós! Escutai-me! Por meios que não importa detalhar, sei que
vossa filha corre sério perigo de vida! Ao sair daqui, o casal cuidou de ocultar-se até
que a agitação diminuísse, evitando o encontro com pessoas, pois elas poderiam
repassar-vos informações a respeito do rumo tomado... É bem verdade que os
perseguistes, mas eles são espertos e fizeram tudo muito bem planejado... Apagaram as
pistas deixadas pelos animais, viajaram em meio às rasas águas do riozinho e
amoitaram-se em seguro esconderijo, ainda na fazenda, aguardando que as buscas
findassem para prosseguir... Ouvi-me! Vossas filha corre sério risco de vida, acreditai-
me! Lembrai-vos daquele maciço de rochas a sudoeste daqui? Nele há muitas cavernas
disfarçadas e em uma delas há pouco buscaram refúgio para pernoitar...
- Cala-te! Julgas-me bastante tolo para crer que minha filha entraria em semelhantes
covis?! Há víboras em cada pedacinho daquelas grutas! Ninguém jamais sairia vivo
dali!
- Exatamente, senhor... Exatamente! Vós sabeis, eu sei, mas ela e ele não! Uma das
cobras picou o jovem mestre matando-o. Vossa filha desmaiou de puro terror, quedando
imóvel no solo, o que a salvou até o momento. Vejo que esvai em sangue! Perde a
criança! Por milagre, senhor, as cobras deixaram-na em paz...
- Criança? Que criança?! Estás louco! Seria muita vergonha para um pai honrado! Aliás,
sempre foste maluco, deveria ter te matado de pancada, apanhaste pouco, infeliz!
- Senhor meu esposo, ouçamo-lo! Como bem dizeis, sempre foi muito estranho, dado a
visões, a premonições... Quem sabe enxerga o que nossos olhos não vêem! Nossa filha
pode estar à morte e ficamos a discutir?! Somente nós três sabemos a respeito do que
está sendo falado aqui... Pensai bem! Vossa honra está resguardada! Deveis procurá-la
pessoalmente, sem testemunhas... Levai sultão, o melkhor e mais destemido de nossos
cães de caça... Interrogai Saul para maiores detalhes!
- Uma vez na vida disseste algo que se aproveite, mulher! Fala, infeliz!
- Ide pelo caminho que leva à montanha, senhor. Logo após o riacho... Devereis
transpô-lo, senhor... Logo após, enxergareis alguns trilhos... Tomareis o atalho mais
batido e seguireis em frente. Dareis de cara com uma formação rochosa que lembra um
grande pássaro; do lado correspondente à asa esquerda, contai uma, duas, três... Na
quarta caverna, encontrá-la-eis! A entrada está vedada por galhos que os dois cuidaram
de ali colocar, ocultando-a dos olhares de prováveis curiosos...
Três horas depois, a mocinha retornava nos braços do pai. Velha parteira, adrede
chamada pela genitora a instâncias do cego, aguardava-a. Potente infusão de ervas
completou o inevitável aborto, enquanto o pai aguardava na saleta contígua aos
aposentos de dormir, ensimesmado em sombrios pensamentos.
- Marta estava pálida, muito pálida... Perdeu muito sangue... Mas sobreviverá, pois é
jovem e forte. Sinto-me aliviado! Tudo terminará bem! Morto o sedutor, extraída a
criança, nada restará do triste episódio... Tratarei de pagar regiamente a parteira... Isso!
Pessoalmente a alertarei sobre o perigo de dar com a língua nos dentes... Se ignorar o
aviso, nada mais fácil do que eliminá-la!
- Minha esposa não constitui perigo... Mas o cego, o cego odeia-me certamente, pelo
justo castigo que lhe infligi... melhor matá-lo! Evitarei problemas futuros...
- Estranhas são as criaturas! Erram e não aceitam a punição! Dei de comer a esse infeliz
desde que era um menino imprestável e ele me retribui assim, permitindo que um reles
sedutor roube minha filha! Se não fosse o miserável, que não cumpriu minhas ordens,
nada teria acontecido... Merecido castigo! Vejamos... Primeiro elimino o ceguinho,
depois trato de espalhar convincente história, de forma a salvaguardar-me a honra e
garantir vantajoso casamento para Marta no futuro. Vejamos... Direi que o tal
professorzinho não passava de um miserável ladrão, que se aproveitou de minha
bondade... Melhor passar por tolo do que ter uma filha desonrada, alvo de falatórios... É,
bem melhor... Arrombou os cofres, pilhou-os, foi surpreendido por minha inocente
filha e seqüestrou-a, acreditando conseguir vultoso resgate de um pai amoroso e rico...
Um viajante, um estranho a quem recompensei generosamente e se bandeou para
distantes terras, trouxe notícias da dupla, ao passar pela propriedade, inocentemente
procurando pouso e comida por uma noite... Por acaso, por acaso... Na pressa, decidi
partir sozinho no encalço do bandido, temendo pela integridade de minha pobre
filhinha... Matei o infame e trouxe-a de volta, sã e salva!
Exultante com sua sagacidade, devido ao adiantado da hora, decidiu deixar para o dia
seguinte a morte do cego, optando por agir ele mesmo, evitando o concurso de outras
pessoas no constrangedor episódio.
Mal raiara o dia, após ligeira visita ao quarto da filha adormecida, quando lhe constatou
a evidente melhora, dirigiu-se ao paiol, disposto a resolver a derradeira pendência.
Encontrou o moço sentado, tateando tiras de vime com as mãos sensíveis, trançando
grande cesto. Saul buscava no trabalho forças para continuar a viver, suplantando a
desgraça que o atingira. Consciente da impossibilidade de enxergar novamente, com a
ajuda da mãe de Marta e muita resignação, conseguira adaptar-se às novas condições
existenciais. Precisava sobreviver e não pretendia fazê-lo às expensas de outros. Assim,
o prepotente e orgulhoso senhor encontrou-o a trançar as tiras:
O moço ouviu tudo, cabeça baixa, grossas e quentes lágrimas escorrendo dos olhos
mortos. Estranhamente, não mais sentia revolta, somente uma grande tristeza, mesclada
com comiseração... Quão desumano era seu senhor!
Alguns meses transcorreram; aos poucos Saul readquiria confiança, acalmando-se. Não
abrigava no generoso coração ímpetos de revanche, mas uma mágoa que o importunava,
manifestando-se a cada momento em que seus apurados ouvidos escutavam a voz do
amo. Ouvia-o a gritar com os servos, escutava os gemidos e o pranto provocados por
seus impiedosos castigos... Ansiava pelo esquecimento, intuindo que somente assim
teria paz. Queria tudo olvidar, queria... Faltava-lhe a palavra, inexistente na lei
mosaica... Perdoar! Logo conheceria Alguém cuja lei maior seria o Amor, incondicional
e pleno, tudo perdoando, tudo esquecendo...
Certo dia, em uma das constumeiras conversas com a senhora, aproveitando a hora em
que o amo saíra para tratar dos muitos negócios, atreveu-se a manifestar um desejo:
apreciaria morar longe dali!
- Senhora, pressinto que seria enorme bem para minha alma ainda ferida afastar-me
desta casa, pois a presença de vosso marido desperta em mim sentimentos e emoções
dos quais não me agrado e que ainda não consigo superar. Estou curado fisicamente,
graças à vossa bondade; aprendi a conviver com a escuridão e ela já não me afeta como
no início. A negritude de meus dias proporcionou-me a oportunidade de desenvolver
outros sentidos, dilatando-os. Falo do tato, do olfato, da audição, do paladar... Além
disto, a vós posso relatar sem constrangimento ou temor: algo surpreendente tem
ocorrido. Vejo com os olhos da alma, de uma forma que as pessoas ignoram, presas que
estão a suas vidinhas rotineiras e materialistas, desatentas a tudo que as rodeia... Seres,
muitos dos quais conheci quando em seus envoltórios corporais, hoje na pátria
espiritual, comigo conversam. Convivo com outros também, amigos de mundos
diferentes do nosso e muito mais evoluídos... Assim, todos eles contribuem para
afugentar a solidão... Jamais estarei só ou desprotegido... Voltando ao pedido, lembrai-
vos daquela cabana de caça em meio ao bosque? Há dias venho pensando em implorar
que sejais minha intercessora junto a vosso esposo, para que ele me autorize a lá viver
de agora em diante. Podereis visitar-me, pois sois a responsável por minha salvação na
hora mais difícil da vida e nutro sincero afeto por vós...
Foi com verdadeiro alívio que o genioso senhor concordou, pois a presença próxima do
cego importunava-o igualmente, despertando a recordação do mau passo dado pela
filhinha. Estranhou o interesse da esposa por Saul, indagando:
- Conversas sempre com essa criatura, mulher? Que perda de tempo!
- Auxilio-o, meu senhor e esposo, e ouso implorar-vos permissão para continuar a
socorrê-lo. Não nos farão falta sobras de alimentos e velhas roupas...
- Faze como quiseres! Contanto que não me importunes!
Escutando-a, Saul viu formarem-se imagens, cenas em que a figura jovem do professor
transitava pela casa de Marta, perambulando pelos corredores e aposentos, buscando
comunicar-se, insciente de seu desencarne. Chorava e lamentava a indiferença geral à
sua presença, principalmente a de sua amada. Calou-se, pois não havia condições de
explicar o que estava acontecendo. Ele mesmo não entendia os mecanismos
relacionados ao fenômeno, porquanto lhe faltavam os conhecimentos teóricos a respeito
do assunto, o que não impediu, contudo, que intuísse as origens da irritabilidade da
moça, indubitavelmente relacionada com o falecido e enamorado professor!
Dias depois, em clara manhã de primavera, a casinha humilde e asseada recebia a visita
das duas mulheres. Mãe e filha buscavam o conforto da palavra amiga e ponderada do
jovem cego. Sentaram-se todos e, após a troca de amabilidades iniciais, o moço
solicitou à amiga que o deixasse a sós com a calada Marta, sugerindo-lhe um passeio ao
encantador riacho próximo. Mal saíra a genitora, a moça desatou a chorar
angustiadamente, indagando:
- Como sabes o que está ocorrendo? És um bruxo ou algo assim?! Sinto-me enlouquecer
de pavor! Noite após noite, vejo-o adentrar o quarto, o belo rosto, que tanto acariciei e
beijei, agora arroxeado com gesto, em atrozes esgares de sofrimento e desespero! Ele
tenta falar, estende os braços para que eu neles me aninhe... Chora, chora sempre, e seus
lamentos enchem-me os ouvidos, penetram-me a cabeça! Em pânico, expulso-o, recuso
seu toque, embora meu coração esteja dilacerado de saudades... Como pode ser assim,
meu Deus? Amei-o, ainda o amo, mas sua presença aterroriza-me! Sei que está morto e
apodrece no fundo da caverna, pois meu pai sequer atendeu a meus apelos de
proporcionar-lhe o conforto de uma cerimônia fúnebre... Deus!
Seus questionamentos ficaram uma vez mais sem resposta e mentalmente considerou
que os céus permaneciam calados para ele, embora abertos para as dúvidas e os
padecimentos alheios...
A partir daquele dia, mãe e filha encontraram o fio da meada em seu relacionamento,
iniciando uma nova etapa, na qual o respeito e a amizade imperavam. Liberta da
presença infortunada do amado, a mocinha readquiria o equilíbrio pouco a pouco,
recuperando as saudáveis cores da juventude. O sofrimento tornara-a mais madura,
menos egoísta, menos orgulhosa... Extremamente benéficos, os longos diálogos com o
jovem cego derrubavam por terra absurdas e ultrapassadas crenças, fazendo-a repensar a
existência, as relações familiares, o amor...
Foi naqueles dias que Jesus passou por aquela localidade obscura.
Na retirada moradia, Saul sequer teve notícias de que Ele viria... Mãe e filha foram ao
encontro do Mestre, pois já sentiam nos corações o doce chamamento da verdade. Ricas
e saudáveis, algo ainda lhes faltava... Desde os infortúnios relacionados à malograda
fuga, novas necessidades existenciais haviam surgido, principalmente para Marta; belas
roupas, jóias, luxo, nada ocupava o mesmo espaço de outrora, e as almas das duas
mulheres ansiavam por muito mais. Jesus, com sua bondade e sabedoria, descerrava
desconhecido leque de opções, permitindo escolhas que implicariam salutares
mudanças, constituindo o inconteste guia para suas existências. Tão belo, chegava até a
tirar o fôlego! E suas palavras! Compreensão, ternura, carinho, respeito, aceitação,
amor... Escutando-o, presenciando as curas, ambas imediatamente pensaram em Saul...
Se quisesse, Ele poderia curá-lo!
Como sempre, muitos convidaram o Rabi e seus discípulos para que tomassem lugar em
suas mesas, partilhando da hospitalidade de seus lares. Aproveitando o afastamento do
esposo, em providencial viagem de negócios, a senhora ofereceu sua casa ao Mestre,
exultando quando Ele acedeu. Após a refeição, a mulher solicitou a Jesus permissão
para falar-lhe a sós, relatando a triste história do moço cego. O divino enviado escutou-
a com atenção, sem nada opinar. Finalizando, ela ousou uma pergunta:
- Por caridade, visitá-lo-íeis, Mestre? Ficará tão feliz em conhecer-vos! Poderíeis curá-
lo, Mestre? Dói-me a injustiça contra ele praticada por meu esposo; aflige-me a
escuridão em que o pobrezinho está mergulhado; punge-me a resignação com que
enfrenta os problemas, sempre disposto a atender os infelizes que o procuram. Ele
jamais se queixa, ao contrário, escuta as lamentações alheias com serenidade e
compreensão...
A tarde findava quando Jesus e as mulheres chegaram à cabana. A mais velha adentrou,
anunciando a Saul a visita do Rabi, enquanto o Mestre e Marta quedavam-se à sombra
de enorme árvore. O moço volveu a cabeça em direção à porta e, em meio à escura
cegueira, percebeu-o recortado contra as luzes do crepúsculo. Na sala humilde, os
costumeiros companheiros espirituais do moço também aguardavam o excelso visitante,
que se aproximou, envolvendo Saul em caloroso amplexo, beijando-o nas faces
molhadas de lágrimas. Assentou-se a seu lado no rústico banco serenamente
perguntando:
- Esta mulher suplica o retorno de tua visão. Precisas enxergar, meu amigo? Quão cegos
são os homens que vivem única e exclusivamente a vida material, impossibilitados de
contemplar a verdade, que não está afeta aos olhos do corpo físico... Tu, ao contrário,
embora mergulhado em sombras, não te deixas por elas dominar... Pedem-me a cura,
mas não vejo doença! Ao roubarem a luz de teus olhos, diante das posturas por ti
assumidas, podes considerar-te credor perante a vida. Não há em ti revolta ou
desespero... Sofres, eu o sei, mas prossegues sempre, persistindo no bem, galgando os
degraus evolutivos lenta e seguramente. Levas o consolo aos que choram, amas sem
esperar retribuição... Aos olhos do mundo, és um deficiente; aos de Deus, um
convalescente da longa moléstia do egoísmo, contra o qual a Boa Nova certamente
constituirá poderoso medicamento, fornecendo-te subsídios para prosseguir adiante com
mais firmeza, maior segurança.
Cinco dias permaneceu Jesus na casa de Saul. A senhora e sua filha foram-se logo na
manhã seguinte à chegada, obedecendo aos imperativos do lar, receosas do regresso do
intolerante senhor, que indiscutivelmente de nada deveria saber a respeito do ilustre
visitante. Ao final do quinto dia, o Mestre indagou mais uma vez:
- Queres que te devolva a luz dos olhos, meu amigo?
- Mestre, destes-me algo muito maior e mais precioso do que a mera cura do corpo
físico. Acendestes em mim uma cintilação que iluminará meu espírito milênios a fora e
acompanhar-me-á pela eternidade. Este corpo, transitório tabernáculo do imortal
espírito, perder-se-á com o correr dos anos, retornando ao pó e ás cinzas. É necessário e
importante, mas jamais deverá ou poderá suplantar as prioridades do espírito que o
anima. Contudo, acaso desejardes, que se faça em mim a vossa vontade, Senhor.
- Tua fé curou-te, Saul. Em nome do Pai, eu restituirei tua visão! Contudo, antes que
vejas novamente com os olhos da carne, apreciaria informar que não houve injustiça no
ato praticado contra ti. Nosso irmão, ao cauterizar teus olhos com o incandescente
estilete, assumiu significativo débito contra as leis divinas de amor e caridade, mas tu,
Saul, resgataste o passado, quando cegastes para garantir o poder. Recorda, eu ordeno!
O moço observou enorme tela mental desdobrar-se à sua frente; cenas desfilavam e ele
nelas estava, com diferente corpo, mas seguramente, ele. Emoções do passado e do
presente mesclavam-se com atordoante nitidez e surpreendente velocidade...
***
Algo absorvia a atenção do governante do poderoso Egito: a tumba que abrigaria seus
despojos depois da morte! Nela guardado, sobreviveria ao óbito, retornando ao corpo no
momento certo... A suntuosidade da pirâmide garantiria seu reconhecimento pelos
deuses, inequivocamente sinalizando o valor de que era digno como divindade
encarnada na Terra, garantindo diferenciado e justo tratamento. Pobre faraó! Da verdade
conhecia somente uma pequenina parte, ignorando que o retorno ocorreria sim, mas
através da reencarnação em novo corpo, e não necessariamente em meio à realeza,
podendo o orgulhoso esp´rito abrigar-se em humílimo invólucro carnal de mísero
escravo, conforme suas necessidades evolutivas!
A areia do deserto refletia o sol do meio-dia. Estavam finalmente concluídas as obras da
gigantesca pirâmide! Na câmara mortuária, operários davam os últimos retoques e os
ourives completavam a magnífica máscara mortuária em ouro, esmalte e lápis-lazúli,
representando o faraó em sua jovem e bela idade, pois ele pretendia que os deuses o
encarassem com tal imagem, não importando com quantos anos deixasse o corpo. O
poderoso sacerdote tudo comandava pessoalmente, certificando-se da perfeição nos
mínimos detalhes, crendo que o faraó poderia despreocupar-se, desfrutando cada dia de
sua existência, certo de que sua integridade estaria assegurada quando chegasse a hora
de partir.
Uma pergunta do comandante dos guardas reais, pessoa de sua inteira confiança,
provocava uma suspeita:
- Todos foram eliminados... Estais satisfeito, supremo sacerdote?
***
A voz mansa e compreensiva de Jesus trouxe-o à atualidade:
- Fazendo mau uso do poder inerente à posição que ocupavas no templo, criaste pesados
débitos, meu amigo. Deus jamais pune, ao contrário do que costuma acreditar as
pessoas. Quando a criatura toma consciência dos fragorosos erros cometidos no
passado, ela mesma implora pela oportunidade de realizar os acertos, quita aas dívidas,
conquistar a paz interior. Isso ocorre à medida que acende evolutivamente,
aperfeiçoando seus sentimentos. Neste triste drama do presente, reencontraste o
orgulhoso faraó de outrora na figura de Marte e oficial, que nunca perdoou a traição e a
cegueira, como o amo que te infligiu idêntico castigo. Montado o cenário
reencarnatório, o livre-arbítrio de cada um de vós imprimiu os caminhos das ações...
Podes deduzir que o antigo soldado egípcio não conseguiu suplantar a raiva,
enveredando pelas sombrias veredas da vingança... Quanto ao faraó, hoje em corpo
feminino, ainda insiste em seu raciocínio egocêntrico, desconsiderando as
conseqüências de seus atos... Parece-nos, no entanto, que assimilaste muito bem a lição,
sobrepujando as dificuldades, esforçando-te para perdoar, doando-te aos menos
afortunados com amor e resignação. Assim sendo, levando em conta tuas futuras
tarefas, em nome do Pai, ordeno: vê, Saul!
Como era bom enxergar novamente! Seus olhos encheram-se de lágrimas ao fitar o
amigo... Depois, como que adivinhando a boa notícia, as duas mulheres apareceram. No
olhar carinhoso da mais velha,Saul leu sincera alegria e uma paz muito grande; ao
abraçá-la, murmurou baixinho, de maneira que somente ela ouvisse:
- Minha mãe do coração!
Marta fitava-a calada. Mudara tanto a moça! Onde a jovem orgulhosa e petulante de
outrora? Onde as faces rosadas e o jeito de menina? Onde os olhos brilhantes e o riso
fácil? Apiedou-se, compreendendo o fardo que a moça carregava, enfrentando cobrança
diária do pai autoritário e genioso, a perda do homem amado, o aborto do filhinho... No
entanto, continuava linda!
E o Mestre partiu.
Liberto da cegueira física, Saul preparou-se para o ministério de amor que Jesus lhe
delegara. Ao saber do restabelecimento do antigo servo, o pai de Marta apressou-se em
expulsá-lo de suas terras, apesar dos reiterados apelos da esposa e da filha, acreditando-
se eximido de qualquer responsabilidade. No fundo de seu rancoroso coração,
continuava a culpá-lo da desonra da filha, esperando nunca mais com ele deparar. O
moço aceitou a decisão com serenidade, concedendo ao ex-amo o benefício do perdão,
olvidando o ocorrido, principalmente depois do relato de Jesus sobre seu passado no
Egito de outrora, clareando os reais motivos de tanta raiva contra sua pessoa. Passou a
residir na aldeia, obedecendo as determinações do Rabi. Na realidade, a mudança
facilitaria a divulgação da Boa Nova, bem como a vena dos cestos de vime garantindo
seu sustento. À noite, a casinha pobre tornava-se o ponto de reunião dos moradores do
vilarejo, onde a palavra de Jesus encontrava atentos ouvidos, difundindo-se a olhos
vistos. Os potenciais mediúnicos de Saul tornaram-se conhecidos e muitos iam até ele
para alívio de seus problemas e dores. Fiel às instruções do Mestre, o moço propugnava
pela discrição e caridade, negando-se a vaidades e ilusões.
Certa manhã, quando mal começara a tecer os cestos, assustou-se com a inesperada
chegada da filha de seu antigo senhor. Vinha em prantos.
- Vão casar-me! Meu pai acertou núpcias com o velho Naim, um homem que tem idade
para ser meu avô! Viúvo há pouco tempo e desejoso de bela e jovem esposa, tudo
combinou com meu ganancioso pai, mediante vultosa quantia, como se eu fosse
mercadoria à venda! Expliquei desejar alguém por quem meu coração batesse mais
forte, mas ele não me ouviu, interessado tão somente na fortuna do pretendente! Diz que
devo calar-me e agradecer a Deus, pois não sou mais virgem! Atira-me às faces o mau
passo de outrora... Ameaça-me, ordenando mantenha segredo do acontecido, para não
espantar o noivo... Pensa somente em dinheiro, terras, poder! Que faço, Saul?!
Imensa tristeza envolveu o moço. Olhou a jovem vestida com ricos panos, as jóias que
lhe adornavam as orelhas e o colo, as pulseiras... Depois atentou na delicadeza das mãos
que não conheciam duros labores ou sequer os serviços de uma casa... Amava Marta
desde o instante em que a recebera na cabana... Talvez o sentimento existisse de há
muito, sufocado pela superioridade financeira e social da moça... Guardara segredo, por
reconhecer nada poder ofertar a não ser uma vida atribulada e pobre. Além de tudo, o
orgulhoso pai nunca permitiria uma união tão díspar, antes sacrificaria a filha única no
altar de sua avareza e ambição! Com palavras duras, contundentes, ameaçadoras,
certamente conseguiria anular a resistência filial, entregando-a em matrimônio contra
sua vontade!
- Marta, que esperas que eu te aconselhe? Pudesse eu, não estarias em tal situação,
tamanho o carinho que te dedico. Para fugires ao enlace, somente rompendo
definitivamente com tua família, saindo de casa às escondidas novamente. Estás
preparada para tão difícil passo?
A moça olhava-o sem entender. Por que os lábios de Saul calavam quando os olhos
gritavam que a amava?! Estaria iludida, confundindo afeto fraterno com amor entre
homem e mulher? Ele conhecia seu passado, sabia de seus enganos, provavelmente
também a considerava desonrada e impura... Pensou em dizer o que sentia, em pedir que
a aceitasse como companheira, arrostando a cólera de seu pai, mas temeu dolorosa
recusa... Aquartelada em seu imenso orgulho, silenciou as palavras de amor.
Trinta dias depois, com insólita pressa do genitor e do consorte quase septuagenário,
realizaram-se as bodas, com pompa e luxos incríveis. A noiva mantinha baixos os olhos
avermelhados pelo pranto e suas mãos tremiam incontrolavelmente. Ante os
cumprimentos, esboçava forçoso e fixo sorriso, indiferente aos reiterados elogios sobre
os belíssimos trajes e sua aparência. Realmente, seria difícil encontrar uma oiva mais
linda! Um esposo hébrio e cambaleante conduziu-a ao leito na noite nupcial e, para seu
alívio, desabou desacordado entre linhos e rendas, ressonando fortemente, vencido pelo
álcool e pelo cansaço.
Iniciar-se-ia uma fase de verdadeira tortura para a jovem esposa. Compartilhar o dia-a-
dia de um homem idoso e irritadiço, constantemente reclamando das mínimas coisas e
blasfemando, recusando-se a aceitar as naturais limitações impostas pela idade, violento
e áspero no trato, não era nada fácil, fazendo com que o convívio com o difícil pai nos
tempos de solteira parecesse um paraíso perdido.
Nunca mais retornou à casa de Saul. O moço, respeitando sua condição de mulher
casada, afastou-se também. Às ocultas, no entanto, em momento d grande tristeza, abriu
o coração àquela que considerava como mãe, expondo o amor sufocado a duras penas,
pedindo notícias de Marta sempre que a encontrava.
Desencontros!
Quanto a Marta, seu casamento entrara em desgastante rotina, na qual o esposo primava
por acerbas críticas e maldosos comentários, esmerando-se em constrangê-la. Olhando a
esposa surpreendentemente bonita e jovem, não obstante a angustiosa situação de
carência afetiva e dolorosa humilhação, odiava-a, ciente de que jamais poderia inspirar-
lhe amor; talvez, se tivesse sido mais carinhoso e cordato, pudesse estabelecer laços de
respeito e companheirismo, convivendo de forma saudável e amena. Mas ele ainda não
sabia assim agir...
Ao final do quarto ano, uma novidade sacudiu a união do insatisfeito casal. Marta
surpreendeu-se grávida, para seu espanto e inicial repulsa, pois não lhe agradava em
nada ter um filho com semelhante consorte. Regozijou-se o cônjuge, contudo,
ordenando festejos por vários dias, exultando com a maravilhosa notícia. Embora não o
soubessem, retornava ao mundo a criança tragicamente abortada na caverna, anos atrás.
Juntamente com aquela que agora abertamente denominava mãe, desenvolvia o trabalho
assistencial e de divulgação da Boa Nova ao qual se propusera; noite após noite, enchia-
se a ampla sala de orações e evangelho, e de suas mãos impostas emanava a cura para
muitos e o consolo para outros. Olhando as longas filas de carentes, os fardos de
alimentos doados pela admirável senhora, as frentes de trabalho que permitiam o ganha-
pão aos fortes e saudáveis, Saul às vezes questionava:
- Mestre, tudo vai bem, o trabalho expande-se, é impossível deixar de notar a mudança
nas criaturas... No entanto sinto-me tristemente só... Haverá necessidade de tamanha
solidão? As pessoas vêm em busca de auxílio e retornam a seus lares humílimos, mas
neles há o afeto da companheira, o riso dos filhos, os animais domésticos pertencentes
às criancinhas... Quando o derradeiro solicitante parte, vejo-me sozinho nesta casa
enorme... Gostaria de acalentar nos braços um filho, de aquecer-me de encontro à
mulher amada, de conversar e partilhar as idéias comuns aos mortais... Será errado
almejar tudo isso, Senhor?
A voz repetia-se dia após dia, com argumentos cada vez mais conclusivos e
aparentemente justos, todos eles visando ao bem-estar e à felicidade dele, Saul! Pelo
menos, assim parecia...
Abrindo o manto, desnudou o peito, expondo aos olhos do moço enorme tumor
avermelhado, que estendia seus tentáculos em direção à garganta.
- Vês? Logo me asfixiará, segundo os doutores! Começou com uma pequenina
ulceração, foi crescendo, aumentando sempre, muito embora os caríssimos tratamentos
a que tenho me submetido, espalhando-se rapidamente... Ao atingir a garganta,
padecerei morte triste e dolorosa, impossibilitado de beber ou comer... Entendes meu
medo? Podes resolver o caso? Sou rico, muito rico, poderei recompensar-te regiamente!
Nesse preciso instante, a voz que assediava Saul nos últimos tempos intimamente
insinuou:
- Trata de dispensá-lo! Morrerá breve, muito antes do que pensa! Não lhe dou um mês!
É caso perdido! Poderás herdar a rica viúva... Tu não a amas? Então! Além do mais, se
o ajudares, poderá sobrar para ti, dirão que o mataste por amar a bela Marta! Ou achas
que ninguém sabe que a amas? Manda-o embora! Por que tens que sempre ajudar, em
detrimento de tua felicidade? Tu não colocaste no peito do infeliz o tumor que o
matará... Além do mais, quem disse que poderás curá-lo? Ela te ama, sofre longe de ti,
muito mais do que imaginas, pois tem de aturar um esposo senil e autoritário, exigente e
malcriado! Reflete bem, esta é a hora de decidires a questão! Não estarás fazendo nada
de mal, porquanto não tens obrigação alguma de atender este infeliz...
Saul transpirava, sentindo-se angustiado, cheio de dúvidas. Queria tanto uma família
com a mulher amada, com Marta! De repente, a figura de Jesus impôs-se e ele recordou
as palavras ditas na cabana, anos atrás:
- “Cuidado com os maus conselheiros do mundo espiritual...”
Mal saíra o homem, sem sequer um agradecimento, aborrecido com a delicada recusa
do jovem em aceitar polpuda bolsa de moedas, os acompanhantes espirituais
começaram a insultá-lo, indignados com sua escolha. Ignorou-os, procurando eliminar
os pensamentos de raiva, revolta, ciúme, apegando-se a Jesus e seus ensinamentos.
Dentro do peito, contudo, o coração doía de saudade da moça e o silêncio da casa vazia
atormentava-o. Saul procurava espantar o amor pela bela esposa de Naim, a falta que ela
lhe fazia, os ciúmes nada cristãos...
Noite após noite, com uma perseverança somente explicada pelo pavor da morte,
observou o esposo de Marta adentrar a sala ampla e simples. No começo, vinha
ressabiado, olhos fixos na porta de saída, como se preparado para uma fuga de
emergência. Fitava com indisfarçável repugnância a assembléia pobre, doente, como se
ele pertencesse a um mundo à parte, esquecido de que ali estava também em busca de
auxílio para suas dores, não obstante rico. Saul percebia-o aterrorizado com a
perspectiva do eminente desencarne, pois não falhava uma vez sequer ao Evangelho,
mesmo quando a chuva desabafa torrencial sobre a aldeia, afastando até os mais
devotados. Com o tempo, o moço notou modificação no comportamento do velho, a
repulsa sendo atenuada, o interesse pelas preleções manifestando-se... Depois, para
enorme espanto de muitos, passou a fazer-se acompanhar de grandes fardos de
alimentos, cuidadosamente embalados em pacotes, que ele pessoalmente distribuía entre
os carentes freqüentadores da casa. O medo da morte dolorosa empurrara-o até Jesus e o
Mestre da Galiléia impressionara-o de tal forma que Naim estava reformulando suas
crenças e valores! Certa noite, trouxe a esposa e o filhinho, exibindo-os exultante e
vaidosamente. Ambos pareciam seus netos... Os olhos de Saul e Marta encontraram-se e
o rapaz sentiu dolorosa pontada de ciúme; dominou-se, porém, esforçando-se para
encarar aquela família como qualquer outra das muitas que lhe freqüentavam a casa de
estudos e preces. As palavras da oração do Mestre, incentivando-lhe a renúncia,
recomendavam:
- “Seja feita a vossa vontade...”
Após dois meses, o terrível tumor desaparecera, restando apenas arroxeados vestígios.
Julgou que o homem não mais tornaria, mas estava enganado! Mais do que a saúde do
corpo, o esposo de Marta encontrara Jesus e não pretendia dEle abdicar. O rapaz
emocionou-se profundamente, compreendendo que, se tivesse dispensado o rival,
ignorando os preceitos de amor e caridade aprendidos com o Mestre, ele poderia até
estar vivo, mas certamente não conheceria Jesus e não teria condições de modificar-se...
Ele, Saul, teria falhado! Acolher o cônjuge da mulher amada fora extremamente custoso
em termos de alta disciplina, pois tivera que deixar de lado os anseios de seu coração e
trilhar, dia após dia, os difíceis caminhos da renúncia e do amor incondicional. Agora,
no entanto, sentia-se em paz, sabendo que cumprira com seu dever cristão perante
aquele homem e sua família!
O tempo passou...
Depoimento
Léon solicitou-me que registrasse algumas palavras, repassando aos leitores aquilo
que vivenciei. Com as qualidades de enérito escritor, reproduziu em conto uma fase
importantíssima de minha vida, verdadeiro marco da transformação em criatura a
serviço do Mestre Jesus. Por seu sorriso, pude senti-lo entrigado com alguma coisa,
que educadamente tentava não nencionar, provavelmente aguardando que eu o
entendesse e satisfizesse a curiosidade tão comum aos que passam para o papel as
histórias das pessoas. Não foi muito difícil chegar ao objeto de seu interesse, na forma
de amarelecido pergaminho. Nosso amigo Léon estava curioso quanto ao conteúdo da
carta escrita por Naim na noite de seu desencarne e entregue a mim por Marta, logo
após seu sepultamento! Reproduzo-o agora em sua íntegra, concedendo fecho de ouro
a esta narrativa.
Reparaste que nunca te ofereci nada em troca do bem que me fizeste, a não ser quando
nos conhecemos, em uma primeira e definitiva tentativa, embora muito rico e sabendo
de tua humilde condição? Aprendi contigo que benefícios de tal ordem e amplitude
advêm de Deus e somente Ele poderá determinar a forma de reconhecimento! Contudo,
meu amigo Saul, atrevo-me a deixar-te por herança os dois maiores bens que possuo:
minha esposa e meu filho. Na falta de outros herdeiros, legalmente faço minha querida
Marta, que sempre me respeitou, calando o amor por ti em seu coração, a legatária de
tudo o que amealhei, com a única condição de que seja feliz a teu lado.
Esses poucos meses de convívio contigo e com o Mestre foram de tal forma importantes
a ponto de me ensinar que, em nossa infância evolutiva, os sentimentos deixam muito a
desejar e necessitamos do concurso de outros mais experientes para enxergar a
direção, como as crianças precisam de mãos fortes e ternas até que possam caminhar
sozinhas. Tu e Jesus amparaste-me e hoje posso dizer com imenso júbilo que parto
confiante e ditoso sem medo da morte livre dos apegos que sempre me obscureceram os
dias.
Agora, traçando estas linhas, ocorreu-me que estou morrendo, como os médicos
diagnosticaram! A diferença reside, única e exclusivamente, na certeza de uma vida
após a morte, eterna e repleta de oportunidades de crescimento, que faz com que
aceitemos o decessos do corpo físico como simples viagem de retorno a nossa pátria de
origem, deixando para trás tudo e todos, permitindo que cada um siga seu caminho.
Amanhã não mais estarei entre vós, os chamados vivos, mas, de onde estiver,
abençoar-vos-ei a união que estabelecereis. Sede felizes, meus irmãos queridos! Ass.
Naim
Saul