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Revista Calundu – Vol.7, Num.

1, jan-jun, 2023

O PANO DA COSTA E O TORÇO COMO PANOS DE


VESTIR: ENTRE AMARRAÇÕES, TORÇÕES E NÓS
Ketilley Luciane de Jesus Purpura1
Francisca Dantas Mendes2
DOI: 10.26512/revistacalundu.v7i1.47427

Resumo: Este estudo decorre de uma pesquisa mais ampla sobre roupas com capacidade
de mutação. Aqui o foco é nas roupas usadas tanto nos cultos de religiões afro-brasileiras,
como a umbanda e o candomblé, e africanas, como o ifá, geledé, etc, quanto no cotidiano.
Para isto, foi necessário recuar a investigação sobre os usos destes panos para o período
colonial e imperial do Brasil. E, desta forma, constatou-se que o pano da costa e o torço
transcendem a religião. Fora dela, estas vestes, como trajes completos, adquirem outras
funções, e seus usos são ressignificados quando amarradas, torcidas ou fechadas com nós,
em substituição à costura. O método utilizado foi o da pesquisa bibliográfica e
iconográfica, com resultados que apresentam uma retórica discursiva e argumentativa
relacionando o objeto de estudo à cultura material.
Palavras-chave: Pano da costa. Roupa de axé. Roupa de baiana. Torço.

Resumen: Este estudio se deriva de una investigación más amplia sobre la ropa mutante.
Aquí, el foco está en la ropa utilizada tanto en las religiones afrobrasileñas, como
Umbanda y Candomblé, como en las religiones africanas, como Ifá, Geledé, etc., así como
en la vida cotidiana. Para ello, fue necesario remontarse a la investigación sobre los usos
de estos paños para el período colonial e imperial de Brasil. Y, de esta manera, se constató
que la tela costera y el torso trascienden la religión. Fuera de ella, estas prendas, como
trajes completos, adquieren otras funciones, y sus usos se resignifican cuando se anudan,
se retuercen o se cierran con nudos, reemplazando la costura. El método utilizado fue la
investigación bibliográfica e iconográfica, con resultados que presentan una retórica
discursiva y argumentativa que relaciona el objeto de estudio con la cultura material.
Palabras clave: Pano da costa. Ropa de axé. Ropa de baiana. Torço.

Introdução
Os tecidos são usados como se fossem uma segunda pele para o corpo, uma pele
cultural que, por conta da sua capacidade de maleabilidade, facilita os movimentos
daquele que a veste. Quando sobreposto ao corpo, o tecido passa a ter a conotação de uma
veste ou uma roupa e, ao mesmo tempo, adquire uma aparência que pode representar um
grupo ou uma identidade cultural de um determinado lugar (CALEFATO, 2021). Esta
representação da aparência pode ocorrer também por meio do vestuário, isto é, o

1
Escola de Artes, Ciências e Humanidade (EACH), da Universidade de São Paulo (USP). e-mail:
ketypurpura@usp.br.
2
Escola de Artes, Ciências e Humanidade (EACH), da Universidade de São Paulo (USP). e-mail:
franscicadm.tita@usp.br.

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“conjunto das peças de roupas, gerando uma composição”, (PEREIRA, 2015, p. 205).
Para Diana Crane (2006, p. 21), o vestuário constitui “uma indicação de como as pessoas,
em diferentes épocas, veem sua posição nas estruturas sociais e negociam as fronteiras de
status”. Sendo assim, o vestuário passa a ser um meio de identificação do indivíduo, pois
as roupas podem expressar a “ocupação, identidade regional, religião e classe social”
(idem, 2006, p. 21).
Ao descrever as origens e a mudança do vestuário ao longo do tempo, o historiador
François Boucher (2010, p. 13), no seu livro História do vestuário no ocidente, questiona
se a vestimenta resulta de “condições materiais – clima e saúde, de um lado, e produção
têxtil, de outro -, ao passo que o vestuário decorreria de fatores mentais, como crença
religiosa, magia, estética, situação social, diferença étnica, inclinação à imitação”. De
qualquer modo, acreditamos que a roupa corresponda a todas as funções descritas por ele,
pois esta pode desempenhar mais de uma função e um uso, ao mesmo tempo.
O pano da costa e o turbante são dois exemplos de tecidos usados como vestes
identitárias dos povos da diaspora africana presentes no Brasil desde a época colonial, e
constituem o objeto deste artigo. Eles fazem parte da roupa ou traje de baiana, vestimenta
ou roupa de crioula3, uma indumentária brasileira complexa por ter influências
mulçumanas, uma vez que há uma presença muçulmana forte e antiga no continente
africano, bem como na Europa que, de certa forma, também se refletiu no Brasil.
O turbante e o pano da costa são, justamente, dois elementos marcantes desta
indumentária. Ao contrário da peça de roupa costurada, cujo uso se dá de maneira estática,
ou da forma que se espera delas, estes pedaços de pano possibilitam a sua manipulação
por parte de quem os usa, permitindo uma mutação constante (MILLER, 2010).
O turbante, pano de cabeça ou torço4, e o pano da costa, envoltos ao corpo, no
Brasil, são de uso quase que majoritário entre as mulheres negras, desde o período
colonial, e entre as mulheres dentro do candomblé.5 Ao mesmo tempo, de várias formas,
estas mulheres transformaram estas vestes em símbolos de pertencimento a um lugar, de
maneira cotidiana e despretensiosa, indo além do uso ritual nas religiões afro-brasileiras,

3
Os crioulos, como eram chamados os negros nascidos nas colônias, “enfrentaram a escravidão e
perpetuaram a memória da África, ainda que em outro contexto cultural”. (MONTEIRO; FREITAS, 2010,
p.385)
4
Verificou-se que a grafia da palavra torço não é escrita da mesma forma. Torres (2004) o escreve com a
letra “s”, já Lody (2015) e Valladares (1952) o escrevem com “ç”. Nesta pesquisa optou-se por escrever
com a letra “ç”, para se aproximar do verbo torcer, que significa enrolar, enroscar algo em movimento
espiralado, movimento feito com o torço na cabeça.
5
Diferentemente, no norte da África, o turbante é utilizado por homens, enquanto as mulheres usam mais
o véu muçulmano.

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como o candomblé, com as suas três principais matrizes que representam os povos de
nação ketu, jeje e angola6, ou a umbanda, entre outras.
Dito isto, o objetivo desta pesquisa é entender como as mulheres escravizadas,
libertas e livres ampliaram os usos do turbante e do pano da costa, oscilando entre o
espaço ritual e o espaço cotidiano. O recorte temporal concentra-se no século XIX pela
riqueza de imagens que documentam os usos destas vestes. Para isto, buscamos dados em
livros e artigos acadêmicos sobre história da moda e do vestuário mundial como, por
exemplo, Boucher (2010), Laver (1989), Okasaki (2021). Este último apresenta
informações úteis sobre os tecidos vindos com os escravizados. Dentro da teoria da moda,
Crane (2006) e Calefato (2021) apontaram para os aspectos sociais e de gênero presentes
no ato de vestir. Finalmente a abordagem antropológica de Miller (2013), Torres (2004),
Valladares (1952) e Lody (2006 e 2015) mostra a relação entre moda e religião, como
também oferece descrições do pano da costa e do turbante, que permitem reconhecer e
associar as características das roupas e assim classificá-las.
Além disso, a pesquisa do uso do torço e do pano da costa entre mulheres negras,
por meio de imagens e ilustrações, tem uma referência importante na análise proposta por
Peter Burke (2017), que envolve a interpretação do que ele chama de testemunhas
oculares, suas possíveis representações simbólicas e suas conexões com contextos
históricos, sociais e culturais. Vale ressaltar que se, por um lado, as imagens e ilustrações
são evidências históricas e possibilitam uma leitura da realidade material, por outro lado,
existe uma narrativa artística de quem produz as imagens que pode conter diferenças entre
a realidade e a visão do ilustrador, entre o que era e como era realmente utilizado.
Com base nestas informações, dividimos o artigo em cinco partes: na introdução
e no tópico dois são explanados os conceitos de traje e indumentária; no tópico três é
ressaltada a importância da gestualidade feminina em um processo de resiliência e
estratégia para manter a tradição. No tópico quatro são denominadas as roupas de axé,
com a descrição do torço e do pano da costa.

6
Ketu – origem Iorubá (Nigéria e Benin) – cultuam divindades que são chamadas de orixás. Jeje ou Fon
(Benin) – cultuam divindades chamadas de Voduns; Angola, Congo Angola ou Bantu – (Angola,
Moçambique) – cultuam divindades chamadas de Inquices.

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2. Traje ou indumentária?
Indumentária é todo o conjunto de vestes que se mantém e transcende o tempo
histórico. O significado da indumentária está relacionado com um vestuário que foi usado
em uma determinada época e que pode ter sofrido alterações com o passar do tempo.
Porém, o “traje está diretamente ligado ao vestuário habitual, que detém uso e significação
específica em cada sociedade, exemplificada pelo traje profissional e pelo traje para
eventos” (PEREIRA, 2015, p. 205). Neste sentido, o pano da costa e o turbante, por
fazerem parte do conjunto de vestes que compõem a roupa da baiana, quando utilizados
no conjunto pertencem a uma indumentária, quando usados individualmente constituem
o traje (idem, 2015).
A partir destas definições, é possível afirmar que a indumentária possui
características sociais e culturais. Desta maneira, o indivíduo, ao se vestir, “acata” os
símbolos e os códigos de um determinado grupo para fazer parte dele, sendo levado a
imitar um “determinado modelo de moda que atende a uma necessidade de apoio social”
(PEREIRA, 2015, p. 209). Assim, a indumentária como um dos signos representantes de
uma nação ou de um povo, por meio da tradição, organizou e juntou estas pessoas
escravizadas, libertas e livres.
Isto pode ser observado nas ilustrações do pintor alemão Johann Moritz Rugendas,
na sua expedição no Brasil na primeira metade do século XIX. Em seu exercício de
ilustração de situações do cotidiano, foi possível encontrar diversos exemplos sobre os
trajes que poderiam demonstrar o argumento aqui sugerido. No entanto, foram escolhidas
duas ilustrações que trazem o uso do traje da baiana em uma situação cotidiana.
A primeira ilustração (Figura 1) apresenta uma cena que sugere uma relação de
comércio entre duas mulheres negras. A negra que está em pé, provavelmente não é uma
negra livre; o fato de estar descalça pode indicar que ela é uma negra-de-ganho (DIENER;
COSTA, 2012). Negras-de-ganho, ou escravas ganhadeiras, eram aquelas que tinham
autorização para vender frutas, tecidos, e objetos vários nas ruas. Além delas, tinha as
negras libertas e livres que faziam do comércio um meio para o seu próprio sustento e de
seus filhos (SOARES, 1996). Vale ressaltar também que esta atividade não era restrita às
mulheres. Com relação ao traje das negras-de-ganho no século XIX, Lody afirma que
houve uma influência portuguesa, nas “roupas das vendedeiras portuguesas dos séculos
XVIII e XIX, [...] que já haviam incorporado uma afro-islamização acrescida de várias
outras vertentes civilizatórias da Índia e da Ásia.” (LODY, 2001, p. 44).

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Em relação à descrição da ilustração, figura 1, esta sugere que a negra-de-ganho


veste uma saia de algodão provavelmente bordada ou estampada, visto que a Índia
exportava seu chintz7 para o Brasil, via Inglaterra, uma espécie de blusa e, por cima, o
pano amarrado na cintura servindo como suporte da criança que está nas costas. Na
cabeça, ela usa um turbante listrado que serve também como um suporte para carregar
um cesto com frutas, o que faz com que ela tenha as mãos livres. No entanto, a negra que
está sentada parece ser uma negra liberta por estar com sapatos, usar brincos, e também
por usar um tecido que parece ser mais “nobre”, devido à sua aparência sedosa e de brilho
acetinado. Usado sobreposto a um vestido ou uma composição, é possível visualizar
detalhes de fita que parece ser de cetim. Em um dos ombros, a fita termina em um laço.
E como complemento, o uso do turbante na cabeça, que deixa os cabelos à mostra,
sugerindo, também, uma forma diferente de usar o turbante.

Figura 1 – Negras do Rio de Janeiro – Johann Mortiz Rugendas

Fonte: Diener e Costa (2012, p.451)

A segunda ilustração, figura 2, chamada Negro e negra da Bahia, ilustra uma


mulher negra em pé parecendo conversar com um homem negro sentado; ao lado deste
homem, há uma bandeja com alguns peixes, o que sugere que este homem é um escravo
de ganho por estar descalço, ou um pescador. Na composição do quadro, a figura da

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Chintz: “tecido de algodão, originário da Índia” (CHATAIGNIER, 2006, p. 141).

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mulher está ressaltada, primeiramente por sua posição central, e depois pela sugestão do
seu movimento que faz saltar aos olhos o pano da costa, listrado. Além disso, verifica-se
que ela usa uma saia provavelmente estampada, pois os bordados eram caros, por isto,
eram feitos em menor quantidade em acabamentos; ela ainda tem o turbante, o camisu,
as contas no pescoço, o chinelo, brincos e pulseiras. Nesta figura 2, o fato de a mulher
estar calçada, também sugere que se trata de uma mulher livre. Quanto à relação entre os
dois, é possível apontar uma relação comercial, pois neste período era comum as
ganhadeiras livres ou libertas, e até mesmo escravizadas, terem prioridade nas vendas de
produtos de primeira necessidade (SOARES, 1996).

Figura 2 – Negro e negra da Baha

Fonte: Diener e Costa (2012, p.453)

Ao mesmo tempo, vale ressaltar que embora a roupa dos escravizados no século
XIX fosse mais simples, esta era feita de tecidos de algodão mais grosseiro (PRADO,
2019), sobretudo entre aqueles que trabalhavam nas plantações e nos serviços domésticos.
Assim,

[...] não tardou muito para que os senhores de escravos passassem


a encomendar para alguns ourives das cidades, determinadas
jóias em ouro para algumas de suas escravas, bem como
vestimentas em algodão que extrapolavam a simplicidade, como

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uma forma de exposição de sua própria riqueza conquistada


através da exportação do açúcar e do fumo, no caso do
Recôncavo, para o mercado europeu e norte-americano
(MONTEIRO; FERREIRA; FREITAS, 2010, p.389).

3. A gestualidade feminina como ato de transfomação


As particularidades do pano da costa e do torço, os seus diferentes usos e funções,
podem ser entendidos de forma simbólica, como uma complexa e elaborada forma de
distinção nos rituais e no convívio social. Além disso, existe também o aspecto dinâmico
e prático no seu uso, como se atentou Daniel Miller (2013) ao observar um fenômeno em
que um mesmo objeto tinha vários usos.
Ao mesmo tempo, Custódio alega que “as roupas são objetos que têm circulação
social” (2015, p. 27). Neste sentido, na perspectiva da cultura material, para as roupas é
conferida uma importância tangível:

Só os objectos transcendem a fronteira do tempo e do espaço.


Uma materialidade que é caracterizada pela permanência, mas
não pela imobilidade. Aos objectos é conhecida a sua faceta
“viajante”. Eles circulam no seio das sociedades humanas e por
isso, um mesmo objecto pode adquirir diversos significados em
mais de um contexto ou lugar (NOGUEIRA, 2002, s/n).

Desta maneira, a partir do objetivo deste estudo, que foi entender como as
mulheres escravizadas ampliaram os usos do turbante e do pano da costa, verificou-se
que a mulher negra enquanto escravizada, e depois como liberta, ressignificou as suas
vestes e, por meio delas, reinventou tradições. E, consequentemente, os panos envoltos,
ou em alguma parte do corpo, passaram a fazer destas vestes uma forma de representação
da cultura negra no Brasil. Estas mulheres, segundo Torres (2004), vieram de países do
continente africano para o Brasil em um estado quase que de total nudez, e, enquanto
escravas, eram expostas aos prováveis compradores, sendo que era mais comum naquele
período homens comprarem escravos. Torres adiciona que:

A literatura especifica as peças de roupa que se compravam para


os homens, mas é omissa com relação à das mulheres. Sem
dúvida, porém, algum pano deveria envolvê-las no percurso até

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à nova moradia. E a cobertura do corpo passava então a ser


cuidado da Sinhá. A negra que trabalhava na lavoura recebia
menos atenção; a mucama trajava-se com mais capricho, mesmo
porque, em certa medida, “representava” a casa do Senhor e por
isso o desvelo da Senhora se apurava no traje das escravas nas
ocasiões em que se fazia acompanhar, a si ou a seus filhos, pelas
mucamas. Na roça, um simples pano envoltório, uma camisa ou
uma saia. Nas cidades, a mulher operária que os amos alugavam
para serviços auxiliares de ofício, como serventes de pedreiro,
trajavam simplesmente uma camisa. Ainda na segunda metade
do século passado, uma das minhas informantes lembrava-se de
vêlas diariamente voltar do trabalho assim vestidas, às vezes,
com uma tira ajustando a camisa ao corpo” (TORRES, 2004, p.
436).

Este relato sugere que o corpo negro feminino era, desde então, o corpo mais
desvalorizado na sociedade, mas, ao mesmo tempo, sugere também a relação da roupa
com o ofício. Quanto mais desvalorizada a atividade laboral para a sociedade, menos
elaborada era a vestimenta, já que, neste período, o tecido era considerado uma moeda de
troca, portanto tinha um alto valor.
Pode-se observar na ilustração Colheita de café na Tijuca, de Rugendas, (Figura
3), que há uma questão de distinção no modo de vestir. Quanto mais completa a
vestimenta do personagem da ilustração, maior parece ser a influência. Isto significa que
os escravizados estão com menos roupas. A mulher da parte inferior esquerda, que está
abaixada, colhendo café, está de peito nu. Verifica-se que ela está vestindo uma saia, ou
um tecido amarrado na parte inferior do corpo, enquanto na cabeça ela usa o turbante,
assim como todas as outras mulheres da obra. Há outra mulher usando apenas a saia, e,
para tapar os seios, esta coloca um pano que serve também para carregar a criança,
enquanto ela trabalha. Percebe-se que as demais mulheres presentes, estão usando, de
alguma forma, algum tipo de amarração, seja em forma de torço, ou na cintura, como se
fosse um cesto para segurar a colheita. Os homens escravizados da figura, usam as
amarrações de maneira diversa: um a usa de forma transpassada pelo torso corporal, o
outro a veste de um jeito amarrado na cintura. Ainda completando a ilustração de
Rugendas, há dois homens de chapéu, que parecem ser brancos, vestidos conforme a
moda vigente daquele período; embora um deles esteja descalço, estes estão com a

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vestimenta completa: calça, camisa, colete, lenço no pescoço e o chapéu. É possível


sugerir que os dois homens vestidos à moda da época evocam um estilo ocidental,
enquanto os negros escravizados estão com um traje que para a época era considerado
exótico. As vestimentas da ilustração sinalizam que há uma diferenciação conforme
argumentado por Kaiser (2012) e Calefato (2021). Estas compararam, no âmbito da moda,
a utilização dos termos “tradicional ou exótico versus moderno (estilo-moda vestido)”
(KAISER, 2012, p. 87). As autoras sugerem que tudo aquilo que não atende aos padrões
ocidentais é considerado “exótico”. Ou seja, é como se a moda ditada na Europa fosse a
genuína, enquanto a criada fora dela era considerada estranha e equivocada.

Figura 3 – Colheita de café na Tijuca – Johann Mortiz Rugendas / 1827-


1835

Fonte: Diener e Costa (2012, p.553)

Salienta-se que a origem dos tecidos utilizados como pano de cabeça e pano da
costa no século XIX eram tecidos africanos que vinham de navio, e eram produzidos de
maneira artesanal por homens e mulheres. Ademais, o tecido kijipa, por exemplo,
produzido por mulheres iorubás no tear vertical também chegou no Brasil.8 Em relação
ao tear, tanto Okasaki (2021) quanto Santos descrevem os tecidos produzidos pelos
iorubas, e Santos (2021) afirma que “a técnica de tecelagem, no contexto nàgó iyorùbá, é
chamada de Așǫ Oke, panos de tiras estreitas realizadas à mão, no tear, pelos nigerianos,
em especial os iyorubá” e ainda complementa que “os panos Așǫ Oke, em sua maioria,

8
No entanto, o tear masculino geralmente se utiliza na posição horizontal.

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apresentam padrões de listras verticais, relações de simetria, relação de cores análogas e


complementares” (2021, p. 168).
Este tecido foi um dos primeiros a serem comercialiados entre Brasil e o
continente africano, daí o nome pano-da-costa, por se referir “à rota de comerciaização
da Costa Oeste africana (ao sul da faixa do litoral do rio Senegal até Gâmbia) à costa
brasileira (em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro)” (OKASAKI, 2021, p. 284). Para o
pano-da-costa, “o modelo mais antigo e mais tradicional é o feito a partir da costura de
várias tiras de tecido plano unidas pela ourela” (IDEM, 2021, p. 284).
Além de Okasaki, Santos também possui uma pesquisa sobre os tecidos Așǫ Oke
em que ele ressalta as possibilidades de usos com esses panos a partir dos quais:

são criadas as vestes reais, os trajes populares, as sobreposições


e amarrações, que são colocadas em várias partes do corpo: como
cabeça, formando um belo turbante; nos ombros; na cintura;
como se fosse uma saia envelope; e no peito. As amarrações são
uma das bases das vestimentas e trajes da região iyorubá. E ainda,
utilizado para carregar as crianças (SANTOS, 2021, p. 169).

4. Roupa de axé
A roupa de axé9 é aquela que é usada em cultos religiosos do candomblé,
umbanda, terecô, tambor de minas, batuques, entre outras religiões consideradas de
matriz afro-brasileira. A roupa de baiana é a principal indumentária usada nestes cultos.
Ela tem como uma das suas primeiras composições um tipo de roupa lisa e sem adornos,
a chamada roupa sura (LODY, 2015). Esta é composta apenas de saia e camisa, e nos
dias de hoje, este traje mais simples é usado nos terreiros de candomblé como um traje
de uso cotidiano, sendo chamado também roupa de ração. Segundo Lody (2015), a roupa
de ração é um traje usado internamente no candomblé. É “composto por saia sem anáguas,
com ou sem camisa. A saia pode ficar na altura do busto, deixando ombros livres. O nome
roupa de ração vem de roupa que come, que recebe obrigações durante os diferentes
rituais religiosos” (LODY, 2015, p. 28). O tecido usado no camisu, geralmente, é
composto pelo richelieu ou pela renda renascença. O richelieu é um tecido conhecido
também como pano ponto de Veneza, e seu surgimento no século XV, na Itália
(PLEBANI, 2015).

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Axé – Asè - é uma palavra de origem Iorubá. Trata-se de uma saudação que transmite uma força vital.

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A sua principal característica é que o pano tem o seu “fundo aberto e os fios do
tecido são rebordados e seguem os desenhos do ponto cortado” (LODY, 2015, p. 30). Não
é incomum encontrar toda a roupa de ração em richelieu conforme a Figura 4.

Figura 4 – Exemplo de Richelieu Figura 5 – Exemplo de Renda


Renascença

Fonte: Pinterest10

Fonte: Pinterest11

Já a renda renascença, figura 5, é um tecido de renda formado por desenhos que


podem ser flores, folhas, entre outros.
Assim, a “roupa da baiana serve de base para a indumentária dos orixás, voduns
e inquices12, acrescida de detalhamentos peculiares de cores, matérias e formatos,
contando, também com as ferramentas – símbolos funcionais dos deuses” (LODY, 2015,
p. 29).
A indumentária da baiana ou de crioula, conforme a figura 6, é usada, geralmente,
na cor branca e é composta pelas seguintes vestes:
• o camisú; a camisa de crioula; a bata (um pouco mais cumprida e com a gola
menos cavada); a camisa de crivo, que possui indícios de origem muçulmana. A
baiana pode usar uma dessas quatro;
• o torço, o turbante ou ojá, que também possui influências muçulmana;

10
Richelieu: site Pinterest. Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/5840674507598800/ Acesso em: 11
de mai, 2023.
11
Renda Renascença: site Pinterest. Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/831899362432763430/
Acesso em: 11 de mai. 2023.
12
Os orixás são divindades da mitologia africana iorubá que são cultuados no Brasil nas religiões de matriz
africana. Já os voduns são as divindades estrangeiras jejes, e inquices são divindades angolanas e do Congo.

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• a saia, geralmente, é usada armada nos cultos ou em eventos específicos que a


deixam volumosa e arredondada com a anágua, e possui influência europeia,
sobretudo francesa;
• a anágua (sobretudo nos terreiros kêtu e angola), de origem francesa;
• o calçolão;
• o pano da costa;
• os chinelos de pontas ou chinelinhas, outra peça mourisca;
• os fios de contas e as joias.

Na figura 6, é apresentada a roupa de baiana, onde se pode observar a presença


dos elementos mais básicos do traje. Nesta imagem, as vestes estão na cor branca, todas
elas compostas pelo tecido bordado em Richelieu.

Figura 6 – Reprodução da “Baiana”

Torço ou turbante

Joias e fios de contas

Pano da costa
Bata

Saia

Fonte: Foto de autoria própria tirada no Museu Afro Brasil

Lody afirma que “as baianas apontam e reúnem elementos visuais barrocos da
Europa, as tecnologias, as cores, as texturas de peças africanas do Ocidente, e também a
forte presença islâmica” (2015, p. 27).
Além disto, o traje da baiana está presente como base em diferentes manifestações
da cultura popular brasileira; nos desfiles de escola de samba, por exemplo, em que há

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uma ala obrigatória, a ala das baianas, e também nas congadas de Minas Gerais e nos
maracatus de Recife, em que:

ela aparece como a baiana rica, que exibe a indumentária mais


elaborada, como saia armada feita de tecidos nobres, e a baiana
pobre ou catirina, que exibe sua indumentária feita de chita
multicolorida, saia longa, bata e turbante do mesmo tecido.
Também com essas mesmas características da indumentária da
baiana pobre, a catirina está nos autos do boi, como a mulher do
vaqueiro; e como crioula, nos cortejos e danças como as de São
Gonçalo, na localidade de Mussuca, em Sergipe (LODY, 2015,
p. 29).

Em alguns estados brasileiros, tais como Pernambuco, Bahia, Maranhão, Rio de


Janeiro e Minas Gerais, houve a conservação das características no traje da negra baiana,
onde o pano da costa e o turbante são peças indispensáveis para a identificação identitária
que passaram de geração em geração (LODY, 2006).
Da roupa de baiana ou de crioula deriva também o traje de beca. Ele é a marca
identitária das mulheres da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. Esta Irmandade
surgiu na cidade de Salvador, no século XIX, e depois teve a sua continuação na cidade
de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. É composta por mulheres negras, acima dos 45 anos
de idade, adeptas do candomblé e que, ao mesmo tempo, cultuam a Nossa Senhora. Estas
também possuem uma relação com as Iabás, divindades femininas do candomblé,
presentes em diversas nações e cultos afro-brasileiros, mais especificamente nas
cerimônias e rituais do candomblé, sendo representadas por Iansã, Oxum, Iemanjá e
Nanã. Esta última é considerada, no candomblé, como a mãe de todas as Iabás, associada
também à sabedoria, à ancestralidade e à transição entre a vida e a morte, o que explica
provavelmente a relação das mulheres da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte com
as Iabás e, em especial, com Nanã. Além do mais, o principal objetivo desta irmandade,
desde a sua criação, é arrecadar doações para amparar os seus associados e, antes da Lei
Aurea, elas compravam alforrias para os escravizados (MONTEIRO; FERREIRA;
FREITAS, 2010).
Embora tenha sofrido alterações conforme o tempo, sobretudo no uso dos tecidos
nas vestes, o traje de beca é de uso restrito às mulheres que pertencem à irmandade há

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mais de três anos. Para as iniciadas, conhecidas como irmã de bolsa, é reservada a roupa
branca nas procissões e cerimônias. Após os três anos, esta é reconhecida como irmã, e
daí recebe o traje de beca, figura 7. A forma como as irmãs usam as roupas em cerimônias
festivas indica qual é o ritual da festa: luto, representado pelo uso das vestes branca, cor
que, no candomblé, representa o luto como também o sentido cíclico/espiralar da vida, já
que é cor do nascimento na religião; alegria, quando o pano da costa é usado na cor
vermelha; ou tristeza, com o uso do pano da costa usado no lado preto. Basicamente o
traje é composto pelo:

camisu de crioula de algodão branco bordado em richelieu, saia


preta de cetim plissada, pano da costa de veludo que tem duas
cores; um lado preto e o outro vermelho, um torso branco de
algodão também bordado em richelieu, um lenço de algodão
também branco bordado em richelieu que é amarrado à cintura,
e um chagrin (sapato de couro) branco. O traje é completado com
os adornos, correntões cachoeiranos de ouro ou imitação, contas
de Orixás e com braceletes em ouro ou imitação (MONTEIRO;
FERREIRA; FREITAS, 2010, p. 396).

Figura 7 – Traje de beca – Irmãs da Boa Morte

Fonte: Foto de Adenor Gondim13

13
MUSEU EM SÃO PAULO MOSTRA A RIQUEZA DA CULRURA NEGRA NO BRASIL. Site Terra.
Disponível em: https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/turismo/turismo-de-negocios/sao-paulo/museu-em-
sao-paulo-mostra-riqueza-da-cultura-negra-no-
brasil,34ba8faea7172410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html Acesso em 14 de fev, 2023.

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Além disso, o uso do traje de beca:

marcava a diferença entre as mulheres negras e brancas na


sociedade colonial. Distinguia também as negras entre si, pois
fossem elas escravas, libertas ou alforriadas, nem todas possuíam
um traje de beca no século XIX. As mulheres negras que podiam
usá-lo, geralmente eram as que pertenciam à Irmandade, isto quer
dizer que elas tinham um certo poder aquisitivo, pois para
pertencer à confraria de negros tinham que possuir algum bem.
Muitas dessas mulheres eram comerciantes [...] (MONTEIRO;
FERREIRA; FREITAS, 2010, p. 397).

Nesses rituais e comemorações, tanto o traje de baiana quanto o traje de beca,


assumem também no dia a dia uma dimensão estética que passa a ser um aspecto central
nessas experiências. (SOUZA, 2007)

4.1 Pano da costa


O pano da costa ou pano alaká faz parte da “tradicional indumentária de baiana
ou de crioula”14 (LODY, 2015, p. 33). Este e outros produtos chegaram ao Brasil, por
meio do “intenso comércio entre a costa atlântica africana e o Brasil, ocorrido a partir do
século XVI, impulsionado pelos navegadores portugueses” (LODY, 2015, p. 33). Pode-
se acrescentar que o pano da costa faz parte do vestuário das africanas e que
tradicionalmente

é usado enrolado ao corpo, sendo um costume em diversas


regiões africanas como: Costa do Marfim, Gana, Nigéria, Congo,
Benin e Senegal. Chegando ao Brasil, tornou-se parte da
indumentária das crioulas que habitavam em Salvador, Rio de
Janeiro, Recife e Minas Gerais no século XIX (Cadernos do
IPAC – Pano da Costa, 2009, p. 18-19).

14
Dava-se o nome de crioula ou crioulo, o escravizado que nascia na colônia e, portanto, estava mais
integrado socialmente e linguisticamente naquele ambiente do que os africanos.

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Santos (2021) citando Thompson (2011), aponta de maneira hipotética que o


surgimento do pano da costa “é baseado no estilo e influência Mande, com listras
estreitas, animada pela ordenação de blocos de tramas ricas e vívidas – assim
caracterizada por desenhos metricamente escandidos, em ressonância visual”
(THOMPSON, 2011 apud SANTOS, 2021, p. 186)
Para a antropóloga Heloïsa Alberto Torres, o pano da costa é um símbolo que
“traduz um sentimento de fidelidade para com o passado, prende as suas portadoras à
terra de origem” (2004, p. 435). Ela ainda acrescenta que o pano da costa é uma inovação
afro-brasileira pelo uso das cores e pela ampliação dos usos.
O pano da costa possui formato retangular – com o tamanho de dois metros de
comprimento e largura variável. Ele pode ser listrado, liso, estampado ou de renda. Lody
descreve que, tanto na África Ocidental quanto na Bahia, o processo de tear é o mesmo:
o horizontal. Lody descreve abaixo como é o processo de tear.

O trabalho inicia-se com o urdimento dos fios, ou seja, os fios


são selecionados por cores e quantidades, conforme o padrão
desejado, e assim colocados no tear. A tecelagem é iniciada
seguindo o processo convencional de acionar liços, pentes e
pedais, e dessa maneira resulta o tecido. Caracteriza também a
tecelagem do pano da costa a feitura de tiras, tiras tecidas, que
posteriormente serão costuradas de maneira artesanal conforme
a largura desejada do pano.” (LODY, 2015, p. 34).

Ao mesmo tempo, trata-se de uma peça que marca o “posicionamento feminino


nas comunidades religiosas afro-brasileiras” (LODY, 2006, p. 302). Também conhecido
como pano de cuia, pano de serviço ou pano de trabalho, o pano da costa pode ter
diferentes usos e significados. Conforme pode ser visto na figura 8 ele é:

estendido sobre um dos ombros e pendendo para as costas


significa uso social e atividade de “passeio”. O pano da costa
transpassado sobre o peito indica uso sociorreligioso, o mesmo
ocorrendo com o pano da costa enrolado como uma faixa na
cintura; usado como mantilha ou véu significa proteção para o
corpo; e dobrado em um dos ombros é chamado de embrulho,

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conforme a tradição do Recôncavo da Bahia (LODY, 2015, p.


34-35).

Figura 8 – Diferentes modos de usar o Pano da costa

Fonte: Torres (2004, p.454)

Santos (2021) afirma que “é no candomblé que o uso do pano da costa está
presente, limitado ao contexto sócio-religioso dos templos/terreiros, tendo sido
reelaborado e adaptado”. Portanto a sua principal função é:

a de distinguir o posicionamento feminino nas comunidades afro-


brasileiras, de acordo com o seu uso, ou seja, exaltando o
contexto hierárquico adquirido pelas mulheres. Quando usado no
ombro esquerdo identifica as que ocupam e atuam como
Ìyálòrìsà (Sacerdotisa) e Oloyè (auxiliar da Iyàlòrisà que faz
parte do corpo sacerdotal do templo terreiro), no status de ègbón
(mais velhas), ou quando enrolado nas costas, na altura do peito,
identifica o status de ìyàwó (noviças) (SANTOS, 2021, p. 185)

4.2 Torço
O Ojá, como é conhecido na África, ou torço como é chamado nas religiões de
matriz africana, e ainda turbante, o nome mais popular no Brasil, é o responsável por
proteger o orí (cabeça) de quem o usa. É também um dos símbolos da roupa de baiana.
Trata-se de um pedaço de tecido, que pode ter formatos variados sendo eles: quadrado,

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retangular ou triangular, ou ainda em tiras, faixas largas ou estreitas. O Ojá pode se


transformar em torço ou turbante, a depender da largura e comprimento. Desta forma, ele
é trajado na cabeça de homens e mulheres em muitas culturas. “Na Índia, Paquistão,
Afeganistão, Bangladesh, Sul da Ásia, Oriente Médio, Norte e Leste da África o uso do
turbante é muito comum e antigo. Nesses lugares os homens o usam com maior
frequência, muitas vezes em referência às suas religiões” (SILVA, 2020, p. 66).
No século XIX, entre os produtos do comércio entre a costa Brasileira com os
países da costa Africana, havia as tiras de tecido que, uma vez costuradas pela ourela,
formavam o Ojá orí ou, em maiores quantidades, o pano da costa, feito a partir de um
tecido composto em dimensões distintas.
Segundo Silva, existem algumas hipóteses sobre a origem do turbante. Por meio
de pesquisas, ela afirma que a teoria mais provável foi que um dos primeiros registros
sobre o uso de amarrações na cabeça encontrados, foi usada pelo Faraó Nemes (3.1000
a.C.), provavelmente o material era feito com tecido de linho, em Kemet ou Khemet, o
antigo Egito. “A palavra turbante vem do persa ‫ دﻟﺒﻨﺖ‬dulband, em turco tülbent”. (SILVA,
2020, p.61). Para Lody, “A associação entre o turbante e o islã não é simplória. Na
concepção muçulmana, o turbante opõe-se a tudo que é profano, ele protege o pensamento
sempre propenso à dispersão, ao esquecimento” (2004 p. 84).
Ao longo da primeira metade do século XIX, muitos africanos mulçumanos foram
traficados da região que hoje reconhecemos como o Norte da Nigéria, para a Bahia. Silva
explica que “na época da escravização uma parcela de negros mulçumanos veio para o
Brasil, os Malês,”15 (2020, p. 69) os quais em território africano usavam o turbante. No
entanto, a pesquisadora notou que, nesse período, os homens já não utilizavam mais os
turbantes, ficando estes exclusivos para as mulheres.
O torço possui simbolismo socio-religioso e dentro das religiões de matriz
africana no Brasil, e mais especificamente no candomblé, este serve de indentificador
mostrando a presença dos orixás. Lody explica que quando uma pessoa é dedicada “às
Iabás (divindades femininas), os turbantes possuem as pontas à mostra, sendo mais farta
a quantidade de tecido. Se a pessoa é dedicada aos Aborós (divindades masculinas), os
turbantes são mais enrolados na cabeça, não aparecendo as pontas”. (2006, p. 303).
Segundo Torres o torço, ou turbante:

15
O termo malês significa muçulmano na lingua iorubá.

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é o elemento mais individualizador de toda indumentária baiana;


algodão, seda; lisos ou bordados; em cores unidas ou de padrões
geométricos por tecelagem ou de estamparia. É o remate final da
vestimenta e adapta-se, mesmo nas horas de trabalho, a fins
utilitários para amortecimento de pesos carregados à cabeça e
ajustamento da forma da cabeça ao plano inferior da peça a
carregar. (TORRES, 2004, p. 442)

O turbante se presta a um uso com múltiplas funções. Este é usado na cabeça como
proteção, mas pode também ter características estéticas, identificação de status,
manifestar identidade geográfica, e ainda pode servir de apoio para transportar diferentes
objetos na cabeça. Já como uso estético, os turbantes podem lembrar penteados na sua
maioria de influência europeia. Nas figuras 9 e 10, foi possível observar a variedade de
uso do turbante e também do pano da costa. E, assim, também reforçar a idéia que “é nos
momentos de crise que buscamos o princípio uterino de kuumba (criatividade) e nos
colocamos em prática criativa ancestral” (NJERI; RIBEIRO, 2019, p. 600).

Figuras 9 e 10 – Diferentes modos de usar o torço

Fonte: Torres (2004, p. 455, 456)

Silva (2020) complementa que o turbante exerce outras funções em alguns lugares
do continente africano, onde esta amarração foi adotada, como a da proteção do sol, frio
e calor, mas também como objeto de distinção em relação ao estado civil e idade.
Valladares (1952) também elenca algumas razões, entre as quais as:

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[...] razões de ordem religiosa, que são muitas, e das quais bastará
citar apenas uma para se fazer ideia de sua importância.
Realmente, como, senão com um turbante, poderia sair à rua
filha-de-santo que terminou sua iniciação nos cultos do
candomblé, e que por isso está com a cabeça raspada? Filhas-de-
santo antigas falam que havia um modelo de torço para cada uma
das diferentes “nações”: torço à moda gêge, à moda ketto, ijexá,
angola, congo etc. Também fala numa correlação do culto, ou de
correlação entre o torço e a divindade, “orixá”, a que se está
consagrado. Tal relação abrangeria tanto o formato do pano como
seu colorido e o modo de amarrá-lo. (VALLADARES, 1952, p.
8)

No Brasil, no período da escravidão, ele também passou a exercer funções


diferentes como “trazer equilíbrio e não machucar a cabeça, ao carregar água, panelas
quentes e madeira” (SILVA, 2020, p. 70).

5. Considerações finais
Este estudo teve como objetivo entender como as mulheres escravizadas, libertas
e livres ampliaram os usos do turbante e do pano da costa que são usados como acessórios
relacionados à estética da cultura negra, até os dias de hoje. Pecerbeu-se que estas peças
transitaram e transitam no contexto religioso e cotidiano, não havendo uma transição.
Desta maneira, sugere-se que foram mãos negras, sobretudo de mulheres, que
manusearam os panos em seus corpos, de uma maneira que fossem enrolados e
amarrados. Percebeu-se que se trata de uma moda vernacular, ou seja, aquela que é feita
pela cultura local, como uma forma de pertencimento. Por meio da hibridização das
vestes, que nestes casos possuem elementos das culturas europeia, mulçumana e africana,
as peças de roupas quando usadas em conjunto, sugerem um outro significado, que só faz
sentido para as pessoas que compartilham naquele local os mesmos costumes e
frequentam os mesmos rituais religiosos.
Com a escravidão no Brasil, os negros que aqui chegaram tiveram que criar as
suas modas a partir daquilo que estava disponibilizado para eles e adaptar as suas
tradições de forma atualizada. E desta maneira, estas pessoas escravizadas se juntaram
adquirino uma identidade para elas e seus descendentes. O pano da costa e o turbante

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foram elementos constituintes desta identidade, servindo de base para o traje de roupas
usadas em festas populares, em diferentes localidades do Brasil, e em rituais de religiões
de matriz afro-brasileira como o candomblé e a umbanda.
Apurou-se também que tanto o turbante quanto o pano da costa não são de uso
exclusivo das mulheres, mas de homens, crianças e de pessoas de qualquer idade. O
turbante é uma peça que pode ser usada com diferentes amarrações, o que faz dele uma
veste que pode demonstrar a individualidade de cada pessoa que o usa. O mesmo ocorre
com o pano da costa, que teve o seu uso ampliado a partir da escravidão, onde as mulheres
fizerem dele um “aliado” no que se refere à sua função, que neste caso, vai além do vestir
apenas uma peça. Estas vestes viraram símbolo de representatividade e resgate ancestral.
Nestes sentido, sugere-se que as mulheres negras escravizadas encontraram uma
maneira de demarcar uma linguagem visual herdada, nos diferentes modos de usá-los
cotidianamente. Portanto, trata-se de duas peças que transcedem a sua materialidade.
Nesta lógica, por serem vestes que são usadas de forma determinada, em rituais religiosos,
elas possuem um significado imaterial, quase que espiritual. Por meio da roupa do santo,
a pessoa que a usa teria permissão para acessar um outro plano, o da divindade.

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Aceito em: 20/05/2023

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