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v i s

d e l
e r
u r a
t r a
a v e
i a

Nós-outros: sobre o
sujeito do Manifesto
Antropófago
We-Others: On the Subject of the Anthropophagic Manifesto

Alexandre Nodari
UFSC / CNPq

https://doi.org/10.5007/2176-8552.2023.e93740

Universidade Federal de Santa Catarina - 1º semestre de 2023 177


r e v
t a d
Resumo i t
Ao longo de todo o Manifesto Antropófago, um sujeito (se) enuncia de forma oblíqua. Seja,
como aponta Beatriz Azevedo, por meio da “primeira pessoa do plural implícita no texto”, a t u
um “nós” às vezes inclusivo, outras, exclusivo, seja como complemento verbal ou pronome o u
possessivo, o enunciador do texto quase nunca se explicita plenamente, de corpo inteiro.
t r a
Todavia, o que deveria ser a mais elementar das perguntas sobre o Manifesto oswaldiano a
saber, quem nele se manifesta, ainda não recebeu a devida atenção por parte da crítica, talvez s s
porque o modo como ele se manifeste torne mais complicado responder a interrogação que o
texto não cessa de colocar: “nós, quem?”
Palavras-chave: Manifesto Antropófago; Oswald de Andrade; Antropofagia

Abstract
Throughout the entire Anthropophagic Manifesto, a subject speaks obliquely. Be it either,
as Beatriz Azevedo points out, through the “implicit first-person plural in the text,” a “we”
that is sometimes inclusive, sometimes exclusive, or as a verbal complement or as a possessive
pronoun; in both cases, the speaker of the text almost never explicitly reveals themselves with
their whole body. However, what should be the most fundamental question about Oswald’s
manifesto, namely who is manifesting in it, has yet to receive proper attention from critics,
perhaps because the way in which the subject manifests makes it more difficult to answer the
question that the text never stops posing: “we, who?”
Keywords: Anthropophagic Manifesto; Oswald de Andrade; Anthropophagy.

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v i s
d e l
“a carne do bicho tem as qualidades do bicho, quem come onça
e r
fica brabo, quem come preguiça fica preguiçoso, quem come jacaré fica
u r a
traiçoeiro, quem come veado fica perdido, só com o bicho homem é que é
t r a
ao contrário, quem come um malvado fica bom”
a v e
Pater [Júlio Paternostro], “intróito da odysséazinha”
i a

0. E o verbo se fez carne para que a boca também pudesse comer.

1. O sujeito de um manifesto não só se dá a ver, como também se


institui ao ser dito: o manifesto constitui o enunciador no ato mesmo de
sua enunciação. “Trabalhadores de todas as terras, uni-vos” é a célebre frase
que encerra o Manifesto do Partido Comunista, constituindo-o (o partido
que é tal união) nesse mesmo gesto: o “nós” de um manifesto é um “nós”
performativo. É evidente que isso ocorre, em maior ou menor medida, em
toda enunciação e a especificidade do manifesto talvez seja a de evidenciá-lo
ou manifestá-lo, i.e., a de chamar a atenção sem cessar para a questão: “nós,
quem?”. Daí a oscilação, também típica no gênero, entre um “nós” exclusivo
e um “nós” inclusivo: por um lado, quem enuncia um manifesto são aqueles
que o subscrevem, e que, assim, demarcam e tornam pública uma posição
distinta, por outro, o manifesto visa justamente adesões a essa posição, e,
no limite, que a parte tendencialmente se torne o todo, ou, ao menos, a
maioria. No caso das vanguardas (políticas ou estéticas), esse movimento é
ainda mais explícito: um avanço com fileiras cerradas para possibilitar que
depois venha o pelotão, a hegemonia. Entre o fechamento numa posição
singular e a abertura infinita, o “nós” (do) manifesto, especialmente quando
assinado por uma só pessoa, como é o caso do Antropófago, subscrito apenas
por Oswald de Andrade, parece, assim, variar entre um “nós” majestático
metonímico e uma deiticidade democrática que permite a todo aquele que
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diz o “nós” do Manifesto, constituir-se Antropófago. Variação tanto mais r e v
drástica, na medida em que, ao contrário do Manifesto de Marx e Engels, no t a d
de Oswald a união (proletária, no caso deles) não é o objetivo, um projeto i t
ou construção que universalizaria uma condição (a abolição das classes, a t u
i.e., a proletarização geral), mas o ponto de partida, aquilo que já é dado a o u
todos, sendo enunciado na posição diametralmente oposta, ou seja, como t r a
primeira frase, embora essa união se dê na forma do que é considerado o mais s s
inumano e menos gregário de todas as práticas: “Só a Antropofagia nos une.
Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. // Única lei do mundo.
Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos.
De todas as religiões. De todos os tratados de paz”.1

2. Há apenas três passagens do Manifesto em que um enunciador


se manifesta mais explicitamente. A primeira é uma auto-designação que
se encontra logo nos aforismos iniciais: “Filhos do sol, mãe dos viventes.
Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade,
pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra
grande”. Desfeita a sua forma elíptica, a frase de abertura da passagem se
leria assim: Nós, que somos filhos do sol, o qual é a mãe dos viventes, ou, mais
simplesmente, nós, viventes. Por uma questão de espaço, não vou abordar
a fonte do aforismo, uma passagem de O selvagem de Couto de Magalhães
sobre a teogonia tupi, nem na sobreposição de gêneros (cosmológicos) que,
a partir dessa referência, Oswald opera (o sol é a mãe).2 Interessa destacar
que, embora o sujeito do Manifesto não coincida aqui com todos os viventes
(o texto não diz os filhos do sol), seu parentesco com os demais seres vivos,
a co-participação com eles em um mesmo “sistema social-planetário”,

1 As citações do Manifesto Antropófago e de outros textos da Revista de Antropofagia provêm


da edição fac-similar da mesma publicada em 1975: Revista de Antropofagia: 1ª e 2ª dentições (fac-
símile), 1975.
2 Cf. NODARI, Alexandre & AMARAL, Maria Carolina de Almeida. “A questão (indígena)
do Manifesto Antropófago”. Direito e Práxis, 2018.

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v i s como o Manifesto chama o que hoje o jargão antropológico conhece como
d e l “cosmopolítica”, coloca no centro da Antropofagia, como Gonzalo Aguilar
e r tem insistido, “algo que o manifesto chama de ‘o vivente’”3, visível também
u r a na referência positiva, ainda que irônica, a Voronoff, médico-charlatão
t r a que fazia xenotransplantes4: em jogo está uma contestação ao privilégio
a v e ontológico (e à pureza existencial) que o Ocidente atribui à espécie humana,
i a ao mesmo tempo que uma proposição de uma outra ideia de “humanidade”.
“Filhos do sol” como revela a sobreposição (inclusive de gênero) operada
por Oswald entre a cosmologia tupi retirada de Couto e uma clara remissão
a habitantes das regiões tropicais, diz respeito também, evidentemente,
aos nativos, aos indígenas, o que é reforçado pelo restante do aforismo:
“Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos
imigrados, pelos traficados e pelos touristes”. Imigrados e não imigrantes,
numa referência ao estatuto de degredados, condenados, ou mesmo de
civilmente mortos de muitos dos colonos portugueses, o que é reforçado
mais adiante, quando sobre estes, mencionados na terceira pessoa, é dito:
“Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização
que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti”.
Traficados: os africanos escravizados aqui trazidos à força. E os turistas, desde
os viajantes coloniais até os contemporâneos. Nenhum elogio, porém, da
miscigenação: os filhos do sol “encontrados” foram “amados ferozmente”,
numa clara alusão ao estupro de mulheres indígenas (a ferocidade, tão
atribuída aos ameríndios – “canibais” –, aqui caracteriza mais propriamente
aqueles que o atribuíram aos outros), “com toda a hipocrisia da saudade”,
por exemplo, a de Martim, de Iracema, de José de Alencar, que Oswald aqui
e em outras passagens não cessa de criticar. O “nós” do Manifesto se referiria,
então, aos povos indígenas, em nome dos quais Oswald falaria, arrogando a
3 AGUILAR, Gonzalo. Por una ciência del vestigio errático, 2010, p. 45.
4 Cf. AGUILAR, Gonzalo. “A Antropofagia de Oswald de Andrade e Serge Voronoff:
incursões no corpo”. Língua-Lugar, 2002.

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voz e a luta dos ameríndios, na qual inseria, como continuação, a vanguarda r e v
que capitaneava? Não me parece tão simples. t a d
i t
3. A segunda manifestação de um enunciador se dá não por auto-
a t u
designação, mas por contraste: é quando emerge mais ou menos no meio
o u
do texto e pela única vez, a primeira pessoa do singular, numa espécie de
t r a
efeito de anti-ilusionismo apontando que o “nós” que atravessa o Manifesto
s s
é também um “nós” majestático, por trás do qual se oculta o “eu” que o
subscreve (lembremos que o texto é assinado somente por Oswald):
“Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a
garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chama-se Galli Mathias.
Comi-o”. Esse aforismo parece performar um que lhe é anterior: “Só me
interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”, operando
a passagem do homem e de sua lei (“Perguntei a um homem o que era o
Direito”) à antropofagia (“Comi-o”), por meio de uma transformação do
uso da boca: da linguagem (característica que atribuiria ao humano a sua
excepcionalidade ontológica) à devoração. Porém, não se trata simplesmente
de uma oposição entre comer e falar, mas entre dois regimes distintos do
uso da boca: como comer e como falar, e como ambos se relacionam, a saber,
se falar é um uso mais elevado da língua, sublimação do comer (ou uma
exaptação do sistema digestivo-respiratório, segundo a versão científica),
ou, se, ao contrário, é uma manifestação da devoração. Note-se que, no
aforismo, a devoração é enunciada (ou mesmo metafórica, como que a
dizer ‘jantei ele na discussão’), fazendo parte de um diálogo (ou vice-versa,
um diálogo que faz parte de uma cena de devoração, como no diálogo
cerimonial do canibalismo tupinambá), na qual o antropófago, antes de
tudo (e especialmente, de comer o seu adversário), fala: “Perguntei a um
homem...”. Por outro lado, o homem devorado, sem deixar de sê-lo, é
também um galo, Galli Matias, numa referência à pseudo-etimologia de
galimatias, termo que designa um discurso confuso, sem nexo, segundo a

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v i s qual ele derivaria de um lapso de um advogado no tribunal, que, de tanto
d e l repetir o “galo de Mateus”, gallus matthiae, acabou se confundindo e
e r dizendo “Matheus, o galo”, galli Mathias. Ou seja, não sabemos se aquele
u r a que pergunta é um homem, já que essa condição só é marcada no outro,
t r a que, ao mesmo tempo, pelo seu modo de falar, um cacarejar sem sentido (a
a v e definição que dá do Direito é rocambólica), parece com um bicho, é como
i a um bicho: aquele que (se) come não é um semelhante; aquele que (se) come
é diferente, difere e faz diferir no e pelo ato de comer e de falar. Lembremos
do famoso dito de Cunhambebe frequentemente citado pelos antropófagos:
quando interrogado por Hans Staden sobre como poderia devorar outro
humano já que nem os animais mais selvagens comiam seus semelhantes, o
chefe Tupinambá teria respondido “Iagûara ichê”, “sou uma onça” (como
que a apontar: sou uma fera devorando gente, e não um humano comendo
seu igual). Se poderia dizer, portanto, que a Antropofagia oswaldiana é a
manifestação dessa diferença, que se dá a partir (ao redor, no interior) da
comunidade da boca (do atributo da fala e da nutrição), no modo de comer
e de falar, uma diferença dos modos à mesa, que coloca os modos à mesa. É
sintomático, assim, que a primeira pessoa do singular só emerja numa cena
dialógica, com e diante de um outro, ao qual devora, deixando portanto, de
ser um “eu”, e voltando a ser “nós”, sendo assim, imediata – e literalmente
(pela letra) – transformada (multiplicada) pela devoração.

4. Passemos à terceira e última manifestação do sujeito do texto.


Como a primeira, trata-se de uma auto-nomeação, encontrando-se em uma
posição diametralmente oposta a ela, i.e., quase ao final do Manifesto:

só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal,


que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males
identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma
sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto
antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade.
Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se.
Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos

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pecados de catecismo - a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. r e v
Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que t a d
estamos agindo. Antropófagos.
i t
Na passagem, nos deparamos com duas dimensões da Antropofagia a t u
oswaldiana. Primeiro, a ontológica ou cosmológica, uma explicação do o u
funcionamento de tudo: não só toda conduta humana se situa em algum t r a
ponto da “escala termométrica do instinto antropofágico”, mas também, s s
na medida em que “Nada existe fora da Devoração”5, toda relação é uma
relação de antropofagia, até mesmo a entropia, a “devoração do planeta
pelo imperativo do seu destino cósmico”.6 É por isso que a Antropofagia é
a “Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos,
de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz”.
Como vimos, ao contrário do Manifesto de Marx e Engels, no de Oswald a
união não é o objetivo, um projeto ou construção que universalizaria uma
condição, a frase final do texto, mas o ponto de partida, aquilo que já é dado
a todos, sendo enunciado na posição diametralmente oposta, ou seja, como
primeira frase, embora essa união se dê na forma do que é considerado a
mais inumano e menos gregária de todas as práticas: “Só a Antropofagia nos
une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”.

Mas se toda relação é antropófaga, então tudo é sujeito, tudo é humano


(não é à toa que o Manifesto advogue o “antropomorfismo”), e cada sujeito
é sujeito de seu mundo: “o Cosmos parte do eu”, diz o Manifesto. Não se
trata aqui de afirmar que a vanguarda antropófaga elaborou uma teoria do
perspectivismo ameríndio antes do tempo, mas apenas que, como é atestado
por uma série de textos da Revista de Antropofagia, seus integrantes conheciam
e fizeram uso de uma série de mitos e concepções indígenas que estão na
base daquela, formulando seu próprio perspectivismo pela combinação

5 ANDRADE, Oswald de. Estética e política, 2011, p. 449.


6 Idem. A utopia antropofágica, 2011, 146.

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v i s com outras teorias. Conjugando, assim, numa bricolagem intelectual, mitos
d e l coletados por Couto de Magalhães (como um tupi amazônico sobre a origem
e r da noite, que se inicia dizendo que “No princípio [Yperungaua] [...] [n]
u r a ão havia animais [ou seja, tudo ainda era humano]; todas as coisas falavam
t r a [tudo era sujeito]”, e que será recriado por Raul Bopp na Revista), com o
a v e animismo de Lévy-Bruhl, o perspectivismo de Nietzsche, autor de cabeceira
i a de Oswald e uma das fontes filosóficas da teoria de Viveiros de Castro, além
de William James, do relativismo de Einstein, da radicalização (historicização
e especiação) do apriorismo kantiano e da biologia de Uexküll, para quem
todo ser vivo, todo vivente, é sujeito de seu próprio mundo, e que seria “uma
das melhores afirmações da hipótese antropofágica”, chega-se a formulações
como a seguinte, de Oswald: “Como a ostra vive de coordenadas próprias,
vivem também no seu universo pessoal a estrela do mar, o caranguejo, a tainha,
a cobra (...). [Mas] A quietude, a harmonia da terra evoluindo ordeiramente
ou os mundos gravitando sem gastos e sem lesão seriam o absurdo biológico
mesmo. O que faz a boa tragédia da vida é justamente esse encaixamento
de universos individuais que eternamente se entrechocam num presente
antropofágico”.7 “De William James e Voronoff”: do pluriverso de mundos
individuais e humanos do empirismo radical de James aos múltiplos universos
trans-humanos e que “se entredevoram” – a “experiência pessoal renovada”
do Manifesto não é uma experiência meramente humana, e nem meramente
individual: sua “renovação” é sua transformação a partir do contato com a
de outros viventes, seus corpos e mundos.

Assim, por este prisma, inclusive o capitalismo, o catolicismo e o


colonialismo seriam manifestações da Antropofagia: “[Bartolomeu de]
Las Casas,” diz Oswald, “vindo para converter e moderar a sanha dos
antropófagos, viu-se repentinamente cercado pela antropofagia muito mais

7 Idem. “A antropofagia como visão de mundo”, 2022, p. 537 (grifo nosso).

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perigosa, real e combativa dos conquistadores”.8 Contudo, e aqui entra a r e v
outra dimensão da Antropofagia, a ético-política, se tudo é devoração e t a d
participa de uma mesma “escala termométrica”, esta também é uma tábua i t
de valores, de valoração dos distintos modos de comer: as diferentes formas a t u
de devoração não são equivalentes. Pelo contrário: o longo aforismo que o u
citamos apresenta dois polos radicalmente distintos da “escala”: de um lado, t r a
a “antropofagia carnal”, que porta o “mais alto sentido da vida”; de outro, o s s
“aviltamento”, a “baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo”,
contra a qual se afirma o sujeito coletivo do Manifesto, aqui auto-designado
ou caracterizado como “Antropófagos” (“Peste dos chamados povos cultos
e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos”). Observe-
se que, nessa passagem, o “nós” – “Antropófagos” – não coincide com as
“puras elites”, referidas na terceira pessoa, que realizam a “antropofagia
carnal”, ou seja, os Tupinambá, que aparecem, portanto, como exemplos para
o enunciador do texto. Todo mundo é antropófago, mas “nós” só seremos
dignos desse nome se formos capazes, ao mesmo tempo, de guardar o “alto
sentido da vida” daquela prática e, seguindo esse exemplo, nos opormos à
“peste dos chamados povos cultos e cristianizados”.

5. Saiamos agora um pouco do texto para nos focarmos na imagem


em torno da qual ele gravita: o Abaporu, tanto o quadro, quanto o seu título
e especialmente a relação entre ambos. Lembremos que, segundo Tarsila
do Amaral, ao ver o quadro, Raul Bopp sugeriu “fazer um movimento em
torno” dele.9 E, de fato, a Antropofagia, ou, ao menos, o seu Manifesto, se dá
ao redor da tela: na sua publicação original no número inaugural da Revista,
os aforismos rodeiam um desenho-esboço do quadro, sendo impossível,
assim, não pensar que relação se estabelece entre o texto e a imagem10 – e

8 Ibidem, pp. 528-529.


9 AMARAL, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo, 2003, p. 279.
10 Cf. AGUILAR, Gonzalo. Por una ciência del vestigio errático, 2010.

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v i s vale lembrar que a Revista se encerra pouco depois da exposição de Tarsila
d e l em que o quadro e outras obras antropófagas de Tarsila são exibidos ao
e r público pela primeira vez, exposição que passa a centralizar os últimos
u r a números da publicação, com grande destaque para a recepção crítica da
t r a abertura; ou seja, o movimento continuou a se dar ao redor do Abaporu,
a v e até que ele se dissipou ou se converteu em outra coisa... Quanto ao nome
i a da tela, que Oswald caracterizou como “o homem, plantado na terra”11,
Aracy Amaral afirma que os três (Tarsila, Oswald e Bopp) recorreram ao
dicionário guarani de Montoya e “compuseram a palavra: Abaporu. Aba:
homem; poru: que come”.12 Aqui, porém, o relato é inexato. Se “Abá”, de
fato, aparece no Tesoro de la lengua guaraní como “homem” (no sentido
de “gente”, “pessoa”, e também “índio” em oposição aos brancos), “poru”
significa, e é Montoya quem o diz, “comedor de carne humana”: de “por-”,
objeto em sentido indeterminado, traduzido por “gente”, “pessoa”, + “‘u”,
verbo que indica ingestão pela boca (comer, beber, fumar, etc.). “Abaporu”,
assim, significa gente/pessoa que come carne humana, “hombre que la
come”, como lemos no Tesoro. Mas não se trata de uma tautologia, pois
o título da obra sobrepõe duas figuras que costumam ser tomadas como
sinônimas, mas cujo campo semântico só coincide quando referidas a um
humano. Primeiro, a do antropófago, aquele ser, humano ou não, que
come gente: e, de fato, também em tupi (antigo ou tupinambá, línguas
muito próximas ao guarani mapeado por Montoya), poru pode remeter
a devoradores não-humanos de carne humana, como nessa passagem do
“Auto de São Lourenço” de Anchieta: “xe îagûaretéporu”, “sou uma onça
(îagûareté) comedora de gente (poru)”.13 Segundo, a do canibal, aquele que
come seu semelhante, um indivíduo da mesma espécie, termo que, como

11 AMARAL, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo, 2003, p. 279.


12 Ibidem.
13 ANCHIETA, José de. Teatro, 2006 pp. 68-69.

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sabemos, tem sua origem em um “erro de Colombo”: ouvindo os índios r e v
Taino falarem de seus vizinhos e inimigos como praticantes da antropofagia, t a d
os “Cariba”, num erro de escuta (afinal, “[a] gente escreve o que ouve – i t
nunca o que houve”14), Colombo os denomina “Caniba” e “canibales”, a t u
entendendo também que estes estavam em guerra com o grande Cã... O o u
canibal é sempre (o) outro. Mesmo que posteriormente a prática de canibalismo t r a
entre os Cariba fosse desmentida, a palavra “canibal” (e sua associação com s s
os povos ameríndios) permaneceu, entrando no léxico das línguas europeias
modernas para designar os que comem seus semelhantes – mais um exemplo,
junto com “índio”, do desencontro que funda a percepção e nomeação dos
povos originários pelos europeus. Mas, se o título da tela sobrepõe, assim,
o canibal e o antropófago, caracterizando como gente (Abá) aquele que
come gente (poru), a figura a que o nome remete (o quadro de Tarsila)
dificilmente pode ser dita “humana”, sem mais, assim como o seu aspecto
não remete em absoluto à ferocidade ou avidez comumente associados
ao canibalismo e à antropofagia, e o ambiente em que ela se encontra não
possui indícios sequer de uma prática carnívora: nele encontramos apenas
uma planta, mais especificamente, um cacto. Monstruosa, desproporcional
(a cabeça minúscula, o pé gigante), acoplamento disparatado, “formado
por uma mistura promíscua de componentes humanos e não humanos”15,
como Gonzalo Aguilar sintetizou algumas das recepções do quadro à época
(pejorativas, em sua maior parte), quem é esse homem que come carne
humana, quem é essa gente que come gente? Se o título faz coincidir, no
“homem”, o “antropófago” e o “canibal”, a imagem que ele intitula provoca
uma não-coincidência com a imagem (que temos) do homem, do canibal
e do antropófago. O Abaporu propõe, desse modo, um deslocamento do
que é o sujeito (a ênfase não está na cabeça, mas no pé, no contato com a
14 ANDRADE, Oswald de. Estética e política, 2011, p. 62.
15 AGUILAR, Gonzalo. “A Antropofagia de Oswald de Andrade e Serge Voronoff: incursões
no corpo”. Língua-Lugar, 2002, p. 38.

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v i s terra, elemento crucial da Antropofagia, como veremos), deslocamento que
d e l se manifesta no sujeito de enunciação do próprio Manifesto Antropófago
e r que se desenrola em torno dele: o antropófago que se manifesta, que se
u r a torna manifesto16, devolve, à série de derivações designativas e figurativas
t r a provindos do mau-encontro colonial (“canibal”, “índio”, etc.), uma espécie
a v e de des-encontro contra-colonial ao redor dos mesmos nomes e imagens. O
i a antropófago é aquele que devora a (concepção da) “humanidade” europeia.

6. Em uma entrevista de 1928, Oswald, apresentando a


Antropofagia, aborda quem constitui o “nós” de que o movimento seria a
manifestação:

(...) nós somos, antes de tudo, antropófagos... Sim, porque nós da


América – nós, o autóctone: o aborígene – rodeamos o cerimonial
antropófago de ritos religiosos. Comer um igual para o índio –
não significava odiá-lo. Ao contrário. (...). O dia em que os Caetés
comeram o bispo Sardinha deve constituir, para nós, a grande
data. Data americana, está claro. Nós não somos, nem queremos
ser, brasileiros, nesse sentido político-internacional: brasileiros-
portugueses, aqui nascidos, e que, um dia, se insurgiram
contra seus próprios pais. Não. Nós somos americanos: filhos
do continente América; carne e inteligência a serviço da alma
da gleba. O fim que reservamos a Pero Vaz Sardinha tem uma
dupla interpretação: era, a um tempo, a admiração nossa por ele
(representante de um povo que se esforçara por derrubar aquele
presente utópico, que foi dado ao Homem ao nascer, e que se
chama Felicidade) e a nossa vingança. Porque, que eles viessem
aqui nos visitar, está bem, vá lá, mas que eles, hóspedes, nos
quisessem impingir seus deuses, seus hábitos, sua língua... isso
não! Devoramo-lo. Não tínhamos, de resto, nada mais a fazer.17

Observe-se que se, num primeiro momento, o “nós” inclui os povos


indígenas, ou inclui os não-indígenas enquanto nativos (“nós da América –
nós, o autóctone: o aborígene – rodeamos o cerimonial antropófago de ritos
religiosos”), já na frase seguinte, e a respeito do mesmo ritual que teríamos
(todos nós) praticado, este é atribuído exclusivamente aos índios, referidos
16 Cf. AZEVEDO, Beatriz. Antropofagia: Palimpsesto selvagem, 2016.
17 ANDRADE, Oswald de. Os dentes do dragão: entrevistas, 2009, pp. 66-67.

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na terceira pessoa, como outros, ou seja, excluídos do “nós” (“Comer um ser r e v
igual para o índio”), assim permanecendo até o fim da citação, em que se dá t a d
o movimento inverso, de “re-inclusão”, digamos assim, dos ameríndios no i t
“nós”, ou melhor, dos não-índios nos americanos, inclusão que não está posta a t u
de antemão, mas se dá como tarefa, demandando uma atitude (que passa o u
pela reivindicação da Antropofagia ritual como nossa, com um tornarmo- t r a
nos nós-outros): “O dia em que os Caetés comeram o bispo Sardinha deve s s
constituir, para nós, a grande data. (...). Nós não somos, nem queremos ser,
brasileiros, nesse sentido político-internacional: brasileiros-portugueses,
aqui nascidos, e que, um dia, se insurgiram contra seus próprios pais. Não.
Nós somos americanos: filhos do continente América; carne e inteligência
a serviço da alma da gleba. O fim que [nós] reservamos a Pero Vaz Sardinha
(...)”. Além disso, a autoctonia, o indigenato que caracteriza o “nós”, é
afirmado como uma relação de parentesco com a terra (“filhos do continente
América”) que se opõe ao vínculo genealógico regido pela lógica da herança
patriarcal (“brasileiros-portugueses”), e não uma disputa filiar dentro nos
marcos desse vínculo. Assim, na mesma entrevista, a Antropofagia é definida
como “a própria terra da América, o próprio limo fecundo, filtrando e se
expressando através dos temperamentos vassalos de seus artistas”.18 Todavia,
essa relação com a terra não é um dado, não é mera reivindicação do solo em
oposição ao sangue como elemento determinante do pertencimento. No
seu relato sobre o movimento, Bopp lembra de uma afirmação de Oswald a
respeito: “Somos prisioneiros de uma civilização técnica. Perdemos contato
com a terra”.19 Ou seja, nascer aqui não seria suficiente para ser um “filho da
América”. Seria preciso nos (re-)colocarmos “em comunicação com o solo”,
gesto apregoado pelo Manifesto e que será uma constante da Antropofagia,
constituindo um de seus pontos-chave. Para tanto, nada melhor que seguir

18 Ibidem, p. 65.
19 BOPP, Raul. Vida e morte da antropofagia, 2008, p. 60.

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v i s o exemplo daqueles povos que têm e mantêm essa comunicação e aos quais
d e l poderíamos nos filiar, (re-)estabelecendo-a e constituindo-nos, só assim,
e r como autóctones, nativos da América: por isso, Bopp definirá o “Índio”
u r a como a “Raça-alicerce. A que está em contato com a terra. Subjacente. Mas
t r a determinando as linhas do edifício”. Ou seja, nós não somos “filhos do
a v e continente América” por genealogia, por descendermos em maior ou menor
i a grau dos povos indígenas, nem tampouco só por termos nascidos na mesma
terra, mas por uma relação de contato com ela que perdemos e que precisamos
reaprender com o exemplo dos ameríndios. Caso consigamos, seremos filhos
da terra e nos filiaremos a eles: é a terra que faz o aparentamento. “Filiação.
O contato com o Brasil caraíba”.

7. “Caraíba” (e não “tupi” nem “índio”) é o termo preferencial


da Antropofagia para se referir ao cosmos indígena. Alguns comentaristas
desavisados viram aí uma referência aos povos Caribe – os mesmos do erro
de Colombo... Embora não seja esse o sentido do termo no Manifesto, não
se pode ignorar a “contribuição milionária de todos os erros”. Pois o Brasil
caraíba é um brasil canibal: quem se manifesta é o antropófago (e não o
brasileiro pura e simplesmente). Contudo, em tupi, a palavra, bem como
seus cognatos nas línguas do tronco macro-tupi designa: 1) uma classe
de demiurgos míticos; 2) por extensão, uma classe de xamãs, igualmente
dotados de um poder respeitado e temido; 3) e, também extensivamente, os
brancos (ou seus sacerdotes) que aqui chegaram, vistos como seres poderosos
dotados de artefatos potentes (até hoje, derivados de karaí são usados nessa
acepção por diversos povos indígenas, inclusive não-tupi) – e essas três
acepções são explicitamente mobilizados na Revista de Antropofagia e no
Manifesto.20 Além de remeter a uma dimensão mítico-cosmológica em que
tudo é (potencialmente) humano e a práticas xamânico-rituais, o “caraíba”

20 Cf. NODARI, Alexandre & AMARAL, Maria Carolina de Almeida. “A questão (indígena)
do Manifesto Antropófago”. Direito e Práxis, 2018.

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do Manifesto, desse modo, poderia então ser não o índio, mas o branco, r e v
ou melhor, o branco tal como foi visto, transformado pelo índio: “nós” do t a d
ponto de vista do outro? i t
a t u
De fato, podemos pensar nessa direção a partir da brilhante leitura
o u
de Beatriz Azevedo, que traz à tona a forma como o texto arma e rearma,
t r a
arranja e rearranja, uma cena enunciativa, o modo como ele manifesta o
s s
antropófago, e como tal canibal se manifesta por meio dele. Nesse “grande
palco em que se transforma o manifesto”, um “sujeito coletivo” se dirigiria,
como que em praça pública, a um “auditório virtual”, a outros, declarando
uma guerra, nomeando inimigos.21 Segundo Beatriz Azevedo, a cena que a
cenografia do Manifesto constrói é a do ritual antropofágico tupinambá,
em que justamente as posições do próprio (“nós”) e do outro (“vocês”) se
encavalgam: estaríamos, então, diante da encarnação “no corpo do texto” da
“vivência da teatralidade do jogo entre o devorador e o devorado”.22 Como
se sabe, na cerimônia canibal tupinambá, matador e vítima encenavam um
diálogo feroz no qual era difícil definir quem mataria e quem seria morto, de
quem seria a carne devorada, pois o prisioneiro insistia que já havia comido
muitos dos parentes do seu algoz e que seus próprios parentes o vingariam
devorando a este. Na Revista de Antropofagia, são várias as remissões a esses
diálogos, a começar por uma de Bopp citada por Oswald no “Esquema
ao Tristão de Ataíde”, publicado no número de setembro de 1928 (da 1a
dentição): “Veja só que vigor: – Lá vem a minha comida pulando! E a ‘comida’
dizia: come essa carne porque vai sentir nela o gosto dos teus antepassados.”
Na segunda dentição também aparece um “canto do prisioneiro que vai
ser comido” (o outro lado do diálogo), sem indicação da fonte, a não ser
que provém “Dos Tupinambás”): “Eu não me lamento. Os verdadeiros
bravos morrem no país de seus inimigos. O meu país é grande e os meus

21 AZEVEDO, Beatriz. Antropofagia: Palimpsesto selvagem, 2016, pp. 198, 99.


22 Ibidem, p. 194.

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v i s saberão vingar-me de vós”. O prisioneiro, portanto, se dizia já vingado (pela
d e l certeza de que seus parentes o fariam), se vangloriava de já ter matado ou
e r comido muitos da aldeia de seus captores, insistia, para retomar o “canto de
u r a um desses prisioneiros” citado no relato de Montaigne (fonte essencial do
t r a movimento), que a carne que estes comeriam tinha um sabor familiar:
a v e
i a Que se aproximem todos com coragem e se juntem para comê-
lo; em o fazendo comerão seus pais e seus avós que já serviram
de alimento a ele próprio e deles seu corpo se constituiu. Estes
músculos, esta carne, estas veias, diz-lhes, são vossas, pobres
loucos. Não reconheceis a substância dos membros de vossos
antepassados que no entanto ainda se encontram em mim?
Saboreai-os atentamente, sentireis o gosto de vossa própria
carne.23

Comer com a boca o corpo dessa boca que fala que sua carne é a mesma
daquela que come: eis a Antropofagia. Nesse sentido, não poderíamos dizer,
seguindo Beatriz Azevedo, que quem fala no Manifesto, o “nós” do texto,
são os índios em nós, aqueles que devoramos pelo processo colonizador; que
quem nele se manifesta para nós são os índios em nós, os outros em nós, nós-
outros? E não poderíamos afirmar também que, como “vacina antropofágica”
contra nós-mesmos, o que eles nos oferecem, pelo “corpo desmembrado da
palavra” do Manifesto que se assemelha ao corpo “retalhado” do inimigo
no banquete canibal, é o “gosto”, amargo e indigesto, da nossa “própria
carne”?24

8. Um outro “nós” também comparece na entrevista citada acima, o


“nós” vanguardista: “nós, os artistas – sismógrafos sensibilíssimos dos desvios
físicos da massa – nós de vanguarda, hiperestéticos, o compreendemos”25 –
formulação que adianta a conhecida expressão de Pound, “antenas da raça”,
e, ao mesmo tempo, situa os artistas à frente – em sensibilidade – dela (da

23 MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Livro I, 1961, p. 267.


24 AZEVEDO, Beatriz. Antropofagia: Palimpsesto selvagem, 2016, p. 204.
25 ANDRADE, Oswald de. Os dentes do dragão: entrevistas, 2009, p. 68.

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“massa”) e os coloca como dependentes de suas emissões ou “desvios físicos”: r e v
“Virá, mesmo [a Antropofagia], de encontro a um desejo da massa?”, t a d
pergunta Oswald no encerramento da entrevista.26 E sintomaticamente, i t
em um texto que saiu na página de “Antropofagia” da revista O Q A no a t u
dia 26/9/1929, intitulado “o senso estético de Poe”27, as figuras do nativo o u
e da vanguarda são fundidas, cabendo a “nós” segui-los, num movimento t r a
análogo ao descrito ou prescrito no trecho anterior da entrevista. Aqui, são s s
outros que ocupam a posição de vanguarda, a saber, não mais os artistas, não
mais “nós”, mas os outros, os indígenas: “caminhamos, porém, à vanguarda
dos nossos avós – os índios”. Nessa espécie de curto-circuito temporal, em
que os “avós” constituem a linha de frente, a posição mais avançada, é o
próprio sentido da vanguarda, da ancestralidade e do aparentamento que se
coloca em disputa: reivindica-se, como herança, aqueles que já estavam aqui
(um passado), mas que não só continuam aqui (no presente), como estão
adiante, na vanguarda (apontando ao futuro). Não é um acaso que o “nós”
do Manifesto enuncie já ter tudo aquilo que as vanguardas políticas e estéticas
almejam: “Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A
idade de ouro”, e também “a relação e a distribuição dos bens físicos, dos
bens morais, dos bens dignários”, a “Política que é a ciência da distribuição.
E um sistema social-planetário”. Para os antropófagos, os indígenas estão na
vanguarda, são a vanguarda, são o movimento que a vanguarda, o movimento
antropófago, deve seguir: são avós não porque estão no passado, na origem do
Brasil, mas porque são originários, não cessando de originar outras histórias,
porque há muito tempo estão abrindo e seguindo o caminho outro que
forma os “Roteiros” múltiplos que nós agora devemos trilhar. E é por esse
caminhar, é porque “Caminhamos”, em “comunicação com o solo”, que
eles se tornam nossos avós, i.e., que se estabelece a “Filiação. O contato com
26 Ibidem, p. 71.
27 Cf. NODARI, Alexandre. “A oca de Clóvis de Gusmão: sobre a página antropófaga na
revista O Q A (O que há)”. Landa, 2021.

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v i s o Brasil Caraíba”. A Antropofagia é a proposição de uma aliança político-
d e l ontológica com os povos ameríndios, uma frente ampla contra a colonização,
e r que toma a (onto-)lógica da Antropofagia ritual tupinambá como exemplo
u r a (vanguarda) de saída do conflito edípico-genealógico da tradição. Não é um
t r a acaso que o Manifesto seja muito mais uma invectiva de transformação contra
a v e a civilização cristã-ocidental que a afirmação de uma identidade indígena: o
i a “antropófago”, diz Eduardo Sterzi, “não é propriamente um indígena, mas,
antes, um aglomerado indígena-alienígena”.28 É comendo (politicamente) a
colonização que nos constituímos performativamente como seu contrário,
a saber, como nativos e antropófagos. Como nós, os outros. Nós-outros.

Referências

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ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. 4. ed. São Paulo: Globo, 2011.

28 STERZI, Eduardo. Saudades do mundo: notícias da Antropofagia, 2022, p. 206.

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ANDRADE, Oswald de. “A antropofagia como visão de mundo”. In: Diário r e v
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NODARI, Alexandre. “A oca de Clóvis de Gusmão: sobre a página antropófaga na


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2022.
Submissão: 06/04/2023
Aceite: 11/07/2023

https://doi.org/10.5007/2176-8552.2023.e93740

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